MIA COUTO, "Prenda de anos"

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MIA COUTO

Mia Couto: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


Prenda de anos

Abriu as mãos, desconchando-as, e delas tombou a pedrinha. Os olhos da menina seguiram a queda, até se fecharem como se se protegesse do adivinhado ruído. - Isso que trouxe para mim? O pai acenou. Que sim, trouxera da viagem para o aniversário da mais nova. Uma anónima pedra, sem tamanho nem cor especiais. Ser pedra era o único valor daquela pedra. A menina já conhecia as ofertas que lhe cabiam: pena de corvo, casca de arbusto, fragmento de chão. Tudo fragrância do natural, nada comprado nem comparável. Esses sendo seus mimos desde que nascera, consumando o pensar paterno – o que se dá, quando se ama, não se compra. A moça levou a prenda e colocou-a sobre a mesa do seu quarto. Sentou-se, sem gesto nem ruído. Assim calada, esperava que a pedra saísse do silêncio. - Nenhuma coisa é um qualquer nada. Assim aprendera a inventar nome para os muitos anónimos objectos. Ela vestia esses pequenos desvalores com histórias que retirava da sua fantasia. Nesse criar ela mesmo se iluminava. A restante família se opunha a este fazer de conta. Para os outros aquilo era um desgaste de tempo, desconversação. As amigas da moça, por igual, lhe desvalorizavam as dádivas. E exibiam os seus pertences, cheios de preços. E tanto o faziam que, às vezes, a menina era ruída por súbitas invejas. Como aquela que agora despontava em sua alma. Porque ela, sentada na penumbra do quarto, não lograva inventar nenhuma fantasia para a prenda de anos, algo que convertesse a pedra em coisa única.


Então, o pai entrou no aposento e igualmente se sentou. Não se imagina o que sentado se alcança fazer. O Homem se constituiu graças à marcha. Mas foi o sentar que forjou a maior fatia da nossa humanidade. - Lhe explico a palavra, filha. Paisagem vem de pai. A filha riu, enquanto ele lhe contava como descobrira aquela pedra, tão aquela e nenhuma demais. Começava, então, a prenda não de aniversário mas de eternidade. Conforme catava magia com suas palavras o pai era todo dela, entregue inteiro e aparecido, como se ela fosse sempre o único motivo dela. Seu pai lhe dava um outro pai,

roubando-a

dessa

orfandade

original

que

nos

ataca

nas

fraquezas. A voz do pai dissolvia o tempo como açúcar se extinguindo no chão. Na ensombração do quarto, o mundo sumia enquanto uma pedra entrava em ovulação.

Mia Couto, in «Pública», 16.6.2000


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