Miguel Miranda, "como se fosse o último"

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MIGUEL MIRANDA (1956-)

Imagem ~ aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli


Como se fosse o último **

A mulher reviu o rosto no retrovisor. Um, dois segundos, não mais. Pareceu-lhe estar tudo em ordem, o liner rasgando-lhe os cantos dos olhos, o rímel eriçando-lhe as pestanas, a base calafetando-lhe as rugas, escoando-lhe as olheiras, o baton desenhando-lhe a curva dos lábios. Estava demasiado escuro para apreciações mais profundas, no fundo, o que eu tenho é medo de achar que não estou bem, pensou, passando os dedos no rosto. Não resistiu e acendeu o pirilampo debaixo do espelho, consultou o buço, inspeccionou o queixo, certificando-se da eficácia da depilação. Nunca se dava por satisfeita, parecia-lhe sempre existir um coto

de

pêlo

transviado.

Catou

na

bolsa,

pescando

uma

pinça,

desesperando-se debaixo do cone de luz baça num exercício de relojoeiro, tentando excisar a imperfeição pilosa que lhe desfeava o rosto. À terceira tentativa, desistiu. Voltou à bolsa, revolvendo os objectos soltos no seu interior até encontrar o pequeno boião de base. Desarrolhou-o, embebeu a polpa do dedo no creme e massajou o rosto nos locais onde temia que a penugem se notasse. Com um pincel de cerdas curtas espalhou blush em movimentos concêntricos. Consultou o pulso, era tarde, ele estava atrasado. Recostou-se no estofo do carro e esperou. O homem aspergiu pela centésima vez os sovacos com a colónia duvidosa comprada na loja de conveniência. Estava atrasado, ela devia estar furiosa. Temos que nos deixar de ver como morcegos, dissera-lhe da última vez. Ela fizera um aceno pouco convincente, ele insistira: quero sair contigo à luz do dia. A voz, um quase grito perdera-se no recôncavo da noite enquanto ela arrancava com os dedos drapejando ao vento, deixando-o plantado no passeio. Concentrou-se na condução, a fila de carros escoava, viscosa, sem permitir recuperar o tempo perdido no hospital. Veja-me lá isso do aparelho, doutor, dissera para o médico. Veja-me lá isso bem, hoje vou beijar pela primeira vez uma mulheraça que ando a rondar e a máquina tem que aguentar. O médico sorriu,


meneando a cabeça, o pace maker aguenta com tudo, disse com voz funda e tranquila, não tem problemas com esforços ou emoções. Ele fixou os olhos ocos do médico, sondando-lhe a veracidade das palavras. Estava farto de ser enganado com palavras mansas, para eles a vida era apenas uma questão estatística. Tudo se resumia a uns quantos por cento de probabilidade de sobrevida, para eles a morte é casuística, não conhecem a cor do sofrimento, o medo amarelo que lhe tolhia as entranhas. Segurou-lhe um braço com excesso de força, pedindo-lhe certezas verdadeiras. Posso então estar descansado? O abutre de bata casquinou, libertando-se do amplexo. Claro, pode confiar. Há uma probabilidade remota, o cabo que conduz o estímulo ao ventrículo pode deslocar-se, mas a probabilidade de isso acontecer é baixa. Inferior a um por cento. E, claro, já sabe que o perigo está em campos electro-magnéticos fortes ou descargas eléctricas. Esse é o maior cuidado a ter. O homem gargalhou, agora já mais confiante. Distendeu os ombros e apertou o colarinho da camisa, que se danem as percentagens, não se preocupe, não vou subir a nenhum poste de alta tensão, vou apenas beijar uma mulher. Um grande pedaço de mulher. Começara a chover. Um chuvisco miúdo, toldando a visibilidade. Ela consultou novamente o buço na luz fanhosa do espelho. Deu-lhe ganas de usar a pinça às cegas, esperando que a sorte a bafejasse. Sim, precisava de sorte, era a quinta vez que saíam juntos e ele nunca mais se decidia a beijá-la. Estava farta de colocar creme nas rugas, de afilar os olhos com liner, de encurvar as pestanas com rímel, amorangar os lábios com baton carmim, de mudar vezes sem conta de perfume, dos doces para os suaves, nada parecia fazer despenhar o homem sobre a sua boca. Como se ele tivesse medo. É estranho, medo de quê? Consultou o pulso, ele estava muito atrasado. No hospital é sempre assim, não há horas, tanto se pode demorar minutos como eternidades. Ele está atrasado por causa do hospital, repetiu, tentando afastar um horrível pressentimento que ele fosse retardado pelo medo. Medo de quê, perguntou-se novamente.


Ele desviou o carro para a entrada do parque da área de serviço onde tinham combinado encontrar-se. O nevoeiro húmido cerrava a visibilidade, o gemido das borrachas dos limpa vidros era doloroso, orgástico. Estava muito atrasado, o coração estalava-lhe dentro do peito num galope desenfreado, não gostava nada de se atrasar, as coisas começavam logo mal, era preciso justificar, as palavras atrapalhavam-se na boca, o raio dos nervos escavacavam-lhe o romantismo das palavras, só de pensar nisso ficava ainda mais nervoso. Calma, tenho que ter calma, é hoje que a vou beijar, nem que seja a última coisa que faça. Um clarão de discernimento alumiou-lhe o cérebro. Sim, talvez desse resultado. Em vez de excesso de palavras, secar todos os protestos com um longo beijo. Será o primeiro beijo, não o último, não há que ter medo, que estupidez ter medo de ser feliz, calma, muita calma é o que é preciso nesta circunstância. Imaginou-se caminhando apressado em direcção ao carro, ela baixando o vidro entreabrindo os lábios para deixar escoar um lamento, anteviu o movimento lento do pescoço, dobrando sobre ela, os lábios encontrando-se, primeiro a medo, depois com violência, sonhou com um longo beijo e um diálogo surdo de línguas inquietas, sonhou com a tontura da respiração suspensa pelo longo beijo unindo-os pela boca num ser único, bicéfalo, de olhos fechados e ritmo cardíaco em estéreo, aquela figura grotesca e ridícula em que se transformavam os amantes. Passou a língua nos lábios, como se já saboreasse o primeiro como se fosse o último. Calma é o que é preciso, pensou. Ela percebeu um carro aproximando-se e teve a certeza que era ele. Ele caminhou apressado em direcção a ela, é pressa ou medo que me faz tremer as pernas, interrogou-se. Medo de quê? Ela esperava, o rosto máscara, sem trair a ansiedade. Será desta que ele se decide a beijarme? Passou a língua nos lábios para os tornar mais brilhantes, desceu o vidro do carro e inclinou a cabeça de lado. Mais não podia fazer, agora era só esperar. Ele acostou à janela do carro dela, meio esbaforido. Apreciou-lhe o brilho dos olhos, o cetim dos lábios, os reflexos de cobre dos cabelos.


Tentou ganhar ar e coragem no mesmo galope de inspiração, através de um meio sorriso circunstante. Reviu mentalmente todos os gestos necessários para lhe atingir os lábios. A cara doía-lhe de tanto sorrir sem sentido, uma onda de indecisão subia-lhe nas entranhas como uma maré. Que se dane, pensou. Ou é agora ou nunca. Fechou os olhos e mergulhou em direcção à boca dela. Ela percebeu que chegara o momento de ser beijada. Fechou os olhos, relaxou o pescoço e abandonou-se. Quando os lábios se tocaram, uma carga de electricidade estática, violenta e seca, mordeu-lhes a boca. Ela soltou um pequeno grito e recuou a cabeça. Ele tentou dizer qualquer coisa, mas desabou no asfalto, o coração parado dentro do peito. Curta e certeira, a descarga eléctrica descontrolara o pacemaker, a ceifeira da morte colhera-o a meio do beijo. A mulher começou a gritar, pedindo socorro, que já não chegará a tempo. Os gritos esbatiam-se, longínquos, estranhamente doces. Enquanto tudo se apagava, sem medo e sem cores, ocorreu-lhe que menos de um por cento de probabilidade de morte é um bom número. Saboreou o beijo eléctrico e, apesar de tudo, sentiu-se feliz. Miguel Miranda

** In “Contos de Verão”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 831, de 7 de Agosto a 20 de Agosto de 2002

 Miguel Miranda ~ biobibliografia


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