Nós,osgaúchos
1-edição: 1992
Direitos reservados desta edição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Paulo Antonio da Silveira Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos Anajara Carbonell Closs Maria da Graça Storti Féres
Montagem: Rubens Renato Abreu Administração: Júlio César de Souza Dias
Agradecimento especial à Fátima Rodrigues Ali pela colaboração nas revisões.
897n Nós, os gaúchos. 3.ed/coordenado por Sergius Gonzaga, Luís Augusto Fischer. - Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS,1995.
1. História, RS. 2. Literatura, RS. I. Gonzaga, Sergius. II. Fischer, Luís Augusto. III. Título.
CDU 981.65 828.165
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto. CRB 10/1023
A liistória deste livro começou há algum tempo. A partir de alguns artigos publicados na imprensa de Porto Alegre, Poti Campos sugeriu, como quem não quer nada, que os reuníssemos em um volume, na companhia de outros textos encomendados a quem tivesse o que declarar sobre o mesmo assunto — o Rio Grande do Sul de hoje,as maneiras peculiares de ver o mimdo que circulam por esta parte do planeta.
Foi o que fizemos. Telefonamos, conversamos,incitamos; e o resultado é este livro.
Os nomes não foi difícil reunir: bastou lembrar aqueles que, de uma forma ou de outra, têm pensado sobre a matéria. A todos propusemos uma tarefa simples de enunciar, e nem tanto de cumprir: escrever um texto que tentasse flagrar um aspecto não-óbvio do nosso jeito de ser. E que isso viesse, preferentemente, num formato não acadêmico, sem muitas notas de rodapé, com liberdade.
Alguns nos perguntaram, desconfiados, se ainda fazia sentido pensar sobre identidade regional,nestes tempos que parecem ter homogeneizado tudo, todas as coisas,todos os desejos,todos os passados.Outros reagiram na direção contrária, enfáticos na defesa de que isso sim é que era assunto. Para todos, a resposta dos organizadores foi a mesma:só queríamos textos que,independen temente do ponto de vista, tentassem ver o que ainda não foi visto, dizer o que ainda não foi dito.
O resultado, como se podia esperar, ficou variado, matizado. Esta espé cie de lavagem piíblica de nossa roupa suja reflete saudavehnente as cores do pensamento dos professores,jornalistas, intelectuais e artistas que se dispuse ram à tarefe.
Para agnipar os textos, utilizamos critérios de proximidade tão discutí veis quanto quaisquer outros, que no entanto buscam dialogar com traços marcantes de nossa vida. Nós e o resto do mundo especula sobre as relações entre a província e o País,entre a província e o mundo.Nósquem ?,por sua vez, recua em direção aos gnipos humanos que constituem a população. Avaliando o fenômeno regional em sua versão mais pronunciada, ordenamos a seção Então nospilchamos. Como não podia deixar de ser, procuramos ouvir o ruído do passado, No tropel da memória,Para exorcizar o fantasma de nossa eterna prontidão, perguntamos: Sentinelas de quê? Já o fomos 'Mo pago", lugar e tarefa que geraram o modo talvez peculiar de tazer arte entre nós,nesta espécie de Fandango da cultura,E dirigimos o olliar,então,para A cidade que não está no mapa^ isolada e integrada ao território gaúcho, igual ao pampa, mas com ares cosmopolitas.Talvez todo o esforço dos articulistas,enfim,tenlia sido o de
perguntar, a nós mesmos em primeiro lugar, o que se esconde Atrás de alma macanuda.
Com as fatais lacunas que sempre ocorrem em agmpamcntos heterogê neos e de pretensão panorâmica, aí estão os ensaios de Nós^ os gaiichos, destinados, quem sabe, a estabelecer um patamar mais arejado de discussão sobre o tema que mais acalorados debates tem gerado entre a gente gaúcha nós mesmos.
LUÍS AUGUSTO FISCHERSumário
NOS E O RESTO DO MUNDO
O cliannc provinciano
José Antônio Pinheiro Machado 12
E o que somos agora, depois que viramos brasileiros?
Paulo Coimbra Guedes J5 De 1'rustração histórica do Rio Grande Sandra Jatahy Pesavento J9 ^ Eu e eles Janer Cristaldo 22
O regionalismo rio-grandcnse no Brasil: autonomia ou participaç<ão?
José Antônio Giusti Tavares 29
O deslalecido orgulho gaiícho Décio Freitas 36
NÓS QUEM?
Nós,os gringos
Rovílio Costa e Luís Alberto De Boni .40 Eles,os aleinfies
René E. Gertz 45
Do diário de campo; os percursos da descoberta do ser gaúcho, do ser homem (e do ser mulher)
Ondina Fachel Leal 50 Nós,os negros Oliveira Silveira 55 Nós,que fazemos política
Antônio Hohlfeldt 59 Chinoca (ou o legado indígena de gaúchos sem memória) Amo Alvarez Kem 64
ENTÃO NOS PILCHAMOS
Porteira Aberta
Barbosa Lessa 72
O renascimento do gaucliismo
RulxMi George Ohven 77
Origem e função dos CTGs
José Hildcbrando Dacanal 81 Reflexos entre o gaúcho real e o inventado Tau Golm 91
E o gaúcho,morreu?
Antônio Augusto Fagundes 95
NO TROPEL DA MEMÓRIA
Caudilhos e doutores
Carlos Reverbel 100
O trem da história já saiu de Porto Alegre Sergius Gonzaga 104 Minlia vida no Rio Grande Nelson Wemeck Sodré 108 Cinema paradiso Goida 112
Do Rio ao Rio Grande: a trajetória da paixão Arnaldo Campos 118
Cidade e cenário Luiz Coronel 124
O Estado mais politizado do Brasil Deonísio da Silva 130
SENTTNELAS DE QUÊ?
Tratado mínimo das grandes famílias Luiz Antônio de Assis Brasil 136
A ideologia gaúcha dos farrapos ao getulismo Luiz Pilla Vares 139
Em terra de branco,não tem lugar pra negro Mário Maestri 145
A liistoriografia sul-rio-grandense e o mito do gaúcho brasileiro leda"Gutfteind 148
O caudilliismo
César Guazelli 153
Os gaúchos e a perspectiva nacional: das fazendas ao Catete Pedro Cezar Dutra Fonseca 157 Traços peculiares do Rio Grande Mozart Pereira Soares 162
FANDANGO DA CULTURA
Os gaúchos filósofos
Luiz Osvaldo Leite 172 Nós,os professores
Carlos Alberto Torres Gianotti 177 Dos gaudérios aos punks
Juarez Fonseca 180 Esses moços
Nélson Coelho de Castro,Bebeto Alves e Gélson Oliveira 188
Manilcslo do Centro de Tradições Arquitetônicas Gaúchas (proposta para discussão)
Günter Weimer i95
A sombra da escola do elogio mútuo Peter Naumarm 200 Crônica jornalística e cultural do curral Carlos Augusto Bissón 204 Sob o signo de escorpião Luciano Alabarse 209
Em busca de uma genealogia Júlio Conte 214 Eu gosto Paulo Hecker FiUio 222
A luz no imaginário gaúcho Susana Gastai 230
A CIDADE QUE NÃO ESTÁ NO MAPA
A lenda desconJiecida. A maldição da bmxa de Porto Alegre
Cláudio Levitan 236
A década de 20 Cyro Martins 242 Noites porto-alegrenses
Moacyr Scliar 247 Nós,as normalistas do Instituto Guacira Lopes Louro 250 Mas não se vai a Paris em agosto
Tatata Pimentel 254
A cidade que não está no mapa Luis Fernando Veríssimo 258
ATRÁS DA ALMA MACANUDA
A estética do frio Vítor Ramil 262 À sombra da chama de uma vela Lélia Almeida 271 Como era bom ter inimigos Luís Augusto Fischer 275 Gaúchos,existem?
Sérgio da Costa Franco 281 Os babados e a diferença Maria Helena Weber 284 O laçador de palavras Flávio Aguiar 290 Da alma brizólica Cláudia Laitano 297
Da frustração histórica do Rio Grande
Sandra Jatahy Pesavento... pois ninguém me convence de que nós, os gaúchos, não sofremos de uma lamentável fnistração liistórica... Não me refiro a nenhuma calamidade psicológica, que nos remeta a algum terrível complexo de inferioridade. Nem está em pauta imaginar que sofremos humilhações,grandes derrotas em campo de batallia, vexames políticos notáveis e outras coisas do gênero.
Pelo contrário: gregos e troianos concordam que possuímos uma bela liistória, com fartos episódios bélicos, de grande ação, e plenos de atos de bravura.
Nem mesmo a polêmica trazida à baila por ocasião do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha em tomo de Bento Gonçalves parece ter hoje algum sentido.Prevaleceu,acacianamente,o senso-comum,e atualmente ninguém dá muita bola para o fato de personagem tão ilustre, que puxa o desfile de heróis regionais, ter roubado ou não cavalos. Sendo uma prática social corrente da época, assim como o contrabando e outros atos de violência não muito reco mendáveis, mas típicos de luna sociedade guerreira, era natural que o nosso homem não fugisse à regra.
Se abandonannos o período heróico da formação sulina, marcado por guerras de fronteiras contra os castellianos, nos deparamos no século 19 com um Volkerw^anderiuig pacífico, de imigrantes estrangeiros, que não só dinami zou a economia do sul como também deu-llie uma nova feição étnica e cultural. Mais ainda: pesquisadores contemporâneos concordam em apontar que São Paulo e Rio Grande do Sul vivenciaram, na mesma época, as origens do seu processo de desenvolvimento industrial.
Da mesma forma, se apelarmos para os líderes de nossa liistória, nos depararemos com uma galeria de tipos inigualáveis: que dizer do general Osório,o Leão do Herval,cujo epíteto alegórico é indício de bravura insuspei ta? E da figura carismática de Gaspar Silveira Martins,o homem do''eu quero, eu faço,eu chovo''? Já Júlio de Castilhos,o radical e impetuoso líder republi cano,compensava na pena e na ação o que lhe faltava em dotes de oratória. A lista não se esgota,indo república afora,num desfile de personalidades marcan tes: Borges de Medeiros, o homenzinlio terrível que governou com mão de ferro o Rio Grande por 25 anos; o lendário Pinlieiro Machado,que brilhou no cenário nacional até ser morto pelas costas, como previra... Convém lembrar que cada uma destas figuras deixou no anedotário político, entre a verdade e a
lenda,uma série de ditos espirituosos e de efeito,para o regalo dos pósteros. É o caso, por exemplo, da tirada olímpica '^Idéias não são metais que se ftindem'\ ou da altamente picaresca receita para bater em retirada: "'Nem tão devagar que pareça afronta,nem tão rápido que pareça fuga' .
Ou seja: não nos faltaram tipos,estilo e espírito.
Tem ainda Getúlio Vargas que... Bom, com Vargas começaram os problemas. Não que o Rio Grande não se orgulhe dele ou desmereça suas acrobacias poUticas, muito pelo contrário. Mas depois de 30 começou aquela sensaçãozinha incômoda de que algo não dera certo.
Afinal, com tantas cabeças brilhantes e passado glorioso, por que será que o Rio Grande do Sul acabou perdendo todos os bondes da liistória contem porânea que por este Brasil passaram?
Senão vejamos:o imediato pós-30já reservou para parcela da oligarquia gaúcha uma frustração histórica inicial. Ela,que se considerava dona de Getú lio e da Revolução,viu as coisas tomarem outro nimo. Caindo São Paulo e o café, em vez de assumirem o papel hegemônico nacional o Rio Grande e os pecuaristas, o que se viu foi que, no novo bloco do poder montado, Getúlio estabeleceu alianças justamente com os setores não-agrários do centro econô mico do País. A reversão de expectativas levou os inconformados às armas, unindo-se aos paulistas — quem diria! — na revolução constitucionalista de 1932. A derrota chegou rápida,e a saída foi a adesão, baseada talvez no vellio princípio de que, se não se pode vencer o opositor, o melhor é aliar-se a ele. Afinal, motivos havia para serenar(em parte) as consciências: o homem era gaúcho,assim como o grupo palaciano mais próximo; a política de mtegração do mercado interno e de diversificação das importações era tudo o que o Rio Grande sempre sonliara,etc.,etc., etc.
Mas,que diabo!Por que afinal o Rio Grande não deslanchava igual a São Paulo, por exemplo? Ser '"celeiro do País",sem dúvida, era uma bela figura, mas parece que ser industrializado rendia mais.O Rio Grande era heróico,mas outros estavam ficando ricos. Contávamos lústórias de glórias passadas e festejávamos revoluções,como em 1935, mas "eles" inauguravam fábricas e influíam nas decisões do poder central.
Bem que alguns,como Flores da Cunlia(outra figura notável, brilliante e charmosa da galeria dos rio-grandenses), tentaram reconstituir internamente um bloco regional de poder e articular-se frente à lúpertrofia do poder central. Flores deu-se mal e, rumando para o Uruguai, fez com que o Estado Novo começasse mais cedo no Rio Grande do Sul.
O remédio foi aderir(de novo),e nos especializarmos,no período ditato rial, em fornecer quadros para o autoritarismo central. Freqüentávamos antesalas do poder, mas "eles" decidiam. Maldito processo identidade/alleridade, que noSyOpunha de maneira desconfortável o contraste evidente: começávamos a fundar centros de tradições,enquanto "eles"^ sediavam as pontas avançadas de uma indústria de base.
Tudo isso era,contudo,difuso,uma pedrinlia no sapato que não produzia feridas maiores, mas acabava incomodando.
Para combater o fantasma da incômoda performance '"deles", "nós" nos utilizávamos da nossa ilusão referencial: sentinelas da fronteira, monarcas das coxilhas,centauros dos pampas,raça de gigantes, democracia racial. Tudo lindo,edulcorado pela distância liistórica que,em parte, compunlia um imagi nário social verossímil. Todos sabiam que tínhamos rebanlios, que lutáramos no passado,que os gaúchos andavam a cavalo e tomavam cliimarrão,etc., etc. E se alguém se descuidasse na lembrança, o êxodo rural se encarregava de trazer para a cidade recém-egressos do campo,que,diante das duras condições de vida,recompunliam de forma idealizada a realidade deixada na campanlia. Nos anos 50,as cabeças pensantes do Rio Grande vivenciaram o que se poderia chamar de"o grande despertar". Foi feito um esforço de reflexão para tentar explicar a defasagem que se tomara evidente nos anos JK:o Rio Grande ficara para trás. Choveram as constatações: deficiências na energia, nos trans portes. Avolumaram-se as queixas:o centro nos arrecadava demais,as decisões nacionais não levavam em conta os interesses dos gaúchos, os problemas estavam fora do Rio Grande. Retomava com força a dicotomia "nós" e os ''outros",e o lamento se ouvia:"ah,se o presidente fosse gaúcho"...
No início da nova década, esta oportunidade surgiu, com a renúncia de Jânio e a conflagrada posse de Jango. Momento ímpar para o orgulho local que, no movimento da Legalidade,foi ás armas na defesa da posse do vice-presiden te. Pareceu, por um momento,que passado e presente sejuntavam numa coisa só, e que o chamamento de 30(Rio Grande, de pé pelo Brasil: não poderás falhar a teu destino heróico)iria finalmente fazer-nos pegar o trem da liistória. Este,contudo,conduziu-nos na marra para um novo período de autoritarismo, bem mais longo que o anterior.
O paradoxo estabeleceu-se: sucediam-se presic^entes gaúchos(a bem da verdade, fardados e ex-alunos do Colégio Militar), inas o Rio Grande não acompanliava o ritmo de expansão da acumulação nacional. Mesmo as "nos sas" estatais eram menores que as "deles". Até o "nosso" Pólo não se comparava aos dos "outros".E não podiam acusar os gaúchos de não freqüen tarem banquetes e festas planaltinas e de estarem ausentes dos quadros admi nistrativos do governo central. Pelo contrário: pata lá foram muitos fillios da terra,sem que revertessem a situação dos pagos.
Mas, enfim, as coisas mudaram e o Brasil agitou-se, na passagem da década de 70 para a de 80, sacudido pelas palavras de ordem da abertura, distensão, democracia. A nova década entrou com conchavos e festas — "a mudança","as diretas-já",etc. —,e eis-nos no processo de redemocratização da Nova República. Mas onde estávamos nós, que não vimos o bonde ou a banda passar? Não nos coube o papel de protagonistas principais e de articuladores da virada da mesa. Algo houve, pois não fomos admitidos nos núcleos (fechados)da nova democracia(aberta)recém-mstalada.
Afinal,o que é que "eles" têm contra "nós"?