Conceito de alfabetização dilza côco

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ALFABETIZAÇÃO: UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO1 Dra Dilza Côco2 Instituto Federal do Espírito Santo

O conceito de alfabetização suscita debates e questionamentos por apresentar, segundo alguns autores, definições instáveis, provisórias e em constante modificação.

Em cada época, assume contornos específicos diante das

demandas sociais, políticas e econômicas que se apresentam. A essa questão Graff (1994), Cook-Gumperz (1991) e Olson (1997) dedicam atenção em seus estudos e oferecem contribuições a partir do enfoque da história. Conforme podemos ler em Graff (1994), a polêmica em torno da definição desse termo pode ser tributada justamente pela ausência de fundamentações consistentes. Segundo o mesmo autor, é por essa razão que, recorrentemente, o conceito de alfabetização é utilizado de forma genérica e abstrata. Afirma ainda que a fragilidade conceitual da alfabetização possibilitou a produção de vários mitos. Dentre eles, cita a relação entre alfabetização e desenvolvimento econômico, alfabetização e modernidade, alfabetização e controle de fertilidade.

A alfabetização também foi compreendida como condição para alcançar estágios mais elevados de civilização, como fator de promoção de mobilidade social, responsável pela transformação individual com realce aos aspectos cognitivos, indicativos de estabilidade política de um povo e ainda como elemento de racionalidade democrática. Graff (1994) adverte também que, embora essas relações encontrem ampla aceitação social, elas nem sempre apresentam evidências empíricas e, em muitas sociedades, não constituem categorias válidas. Por isso diz que a

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Esse texto integra parte do projeto de pesquisa de doutorado, apresentado ao Programa de PósGraduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), na linha Educação e Linguagens. Foi apreciado e aprovado em exame de qualificação I realizado no dia 17 de novembro de 2011 no Centro de Educação. 2

Professora lotada na coordenadoria de matemática com atuação nos cursos de licenciatura em matemática, licenciatura em Letras, Especialização Proeja e Mestrado Profissional em Educação, Ciências e Matemática (Educimat).


2 [...] construção equivocada dos significados e contribuições da alfabetização, assim como as interessantes contradições que daí resultam, é não apenas um problema empírico e de demonstração, mas também uma falha de conceptualização e, ainda mais, de epistemologia (GRAFF, 1994, p. 27).

O autor aponta que uma das falhas presentes nessa questão é conceber a alfabetização com um valor em si mesma, destituída de seu contexto sociocultural. Também argumenta que indicar mudanças qualitativas dos níveis de alfabetização a partir de evidências obtidas em testes ou escritas aleatórias “[...] pouco ou nada dizem sobre as habilidades alfabéticas: as habilidades básicas de ler e escrever” (GRAFF, 1994, p. 29). Defende que, para estudar e interpretar a alfabetização, é necessário formular uma definição que sirva comparativamente ao longo do tempo e através do espaço. Para isso, indica o uso de diversas fontes como documentos escritos, autoavaliações, registro de questionários e enquetes, resultados de testes e medidas similares. Segundo o autor, somente o inventário de dados sistemáticos em fontes diversas é que poderá oferecer precisão, utilidade e comparabilidade no estudo da alfabetização.

Graff (1994) também argumenta que é preciso compreender que esse termo se refere à “[...] tecnologia ou conjunto de técnicas para a comunicação e a decodificação e reprodução de materiais escritos ou impressos” (GRAFF, 1994, p. 33). Como é técnica, deve ser entendida como uma base, um fundamento, que não possui valor em si mesmo, mas adquire sentidos a partir dos usos que se faz dela. Essa acepção aponta para desafios na investigação da área, pois O principal problema nos esforços para estudar a alfabetização, seja no passado, seja no presente, é o da reconstrução dos contextos de leitura e escrita; como, quando, onde, por que, para que e para quem a alfabetização foi transmitida; os significados que lhe foram atribuídos; os usos que dela foram feitos; as demandas colocadas sobre as habilidades alfabéticas; os graus nos quais essas demandas foram satisfeitas; a extensão da restrição social na distribuição e difusão da alfabetização; e as diferenças reais e simbólicas que emanaram da condição social do ‘ser alfabetizado’ entre a população (GRAFF, 1995, p. 34).

Essas questões levantadas por Graff (1994) são constantemente revisitadas por outros autores. Nesse sentido, podemos tomar as contribuições


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desenvolvidas por Pérez (2008). Essa autora busca delinear uma trajetória histórica das transformações dos significados do conceito de alfabetização. Para ela, na Antiguidade Clássica, a tradição oral figurava como principal estratégia de transmissão de conhecimentos e o registro escrito era apenas uma forma de registro da fala. Nesse contexto, a leitura em voz alta, coletiva, era mais valorizada do que a escrita, provavelmente, pelas condições incipientes de publicação e reprodução dos textos, uma vez que eram copiados manualmente e guardados em bibliotecas. Com as guerras e invasões comuns à época, as bibliotecas foram alvos de ataques e destruições, provocando o quase desaparecimento da escrita.

A partir desse contexto, observou-se o declínio da escrita comum e o predomínio da escrita espiritual (sagrada), que registrava e divulgava os ensinamentos cristãos e os preceitos da Igreja. Desse modo, na Era Medieval, a Igreja Católica foi a instituição que dominava a escrita e exercia forte controle e censura dos textos a serem reproduzidos. A necessidade de controlar o acesso aos materiais impressos também produziu a prática da leitura silenciosa nos mosteiros e a formação de um grande contingente de monges copistas que, em muitos casos, não entendiam o significado dos registros escritos que realizavam. Nesse período, a Igreja detinha o monopólio da reprodução dos livros e desenvolvia internamente seu sistema de ensino com características bem definidas. [...] O ensino era oralizado, o mestre falava e instruía, o aprendiz ouvia e memorizava. A aprendizagem da leitura se dava por meio de Salmos, que o aprendiz oralizava e repetia inúmeras vezes; a oralização (e a memorização) era o método utilizado para que o aprendiz associasse o sinal gráfico ao significado da escrita (PÉREZ, 2008, p. 181).

Essa dinâmica de ensinar e utilizar a escrita sofreu abalos estruturais a partir da introdução dos tipos móveis na Europa, em 1543, por Gutemberg (Alemanha). Com essa nova tecnologia, foi possível aumentar a produção de livros e materiais impressos, especialmente a Bíblia. Diante dessas condições, o domínio e uso da escrita deixa de ser monopólio da Igreja Católica e passa a atender outros interesses. Nessa direção, Martinho Lutero empreende o


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movimento da Reforma Protestante em que defendia o acesso direto do homem as escrituras sagradas como alternativa para alcançar a salvação. Para isso, era necessária a popularização da alfabetização. Esta entendida como capacidade de leitura para ler os textos bíblicos e familiares e a escrita como capacidade para assinar o nome.

Graff (1994) e Pérez (2008) relatam experiências ocorridas em vários países, a partir desse conceito de alfabetização, e afirmam que sua apropriação ocorreu de forma singular em regiões diferentes. O caso da alfabetização na Suécia é bastante emblemático e mostra repercussões específicas daquela sociedade. Nesse país, foram criadas escolas públicas religiosas, de frequência obrigatória, que instituía exame anual de leitura. A capacidade de leitura comprovada por esses exames significava a possibilidade de acesso do indivíduo à comunhão ou ao casamento. Essas estratégias provocaram grande envolvimento dos sujeitos no processo de ensino aprendizagem da alfabetização e levou a Suécia a apresentar altos índices de domínio da leitura, já no século XVIII. Na Alemanha, Escócia, Inglaterra e Estados Unidos, outros roteiros de implantação de escolas foram adotados e os investimentos na alfabetização mantinham estreita ligação com o projeto de propagação da fé, orientados pela Reforma. Embora com algumas diferenças, esses outros países também apresentaram altos índices de população alfabetizada.

É importante situar que Pérez (2008) indica que, em países em que predominaram a influência do poder da Igreja Católica, como Espanha e Portugal, foram propostas ações de Contrarreforma que desencadearam a ampliação da alfabetização como estratégia de manutenção e propagação da fé católica. Nesse contexto, a alfabetização era destinada a alguns grupos, como população masculina de poder aquisitivo privilegiado, elite intelectual, como clérigos, letrados e mestres, funcionários e nobres. O processo de alfabetização centrava a atenção no ensino do alfabeto e incentivava a prática da leitura. Esse estágio inicial era oportunizado inclusive às mulheres, contudo a escolarização mais avançada só era permitida às elites religiosas, às classes dirigentes e aos grandes comerciantes.


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Em regiões de colônias, como no caso o Brasil, essas diretrizes de ensino da língua foram adaptadas, pois o nível rudimentar da alfabetização estava direcionado às populações indígenas e aos filhos dos colonos, por meio da catequese. A educação média de caráter propedêutico visava a formar letrados e eruditos e estava a serviço da formação dos sacerdotes ou da elite da classe dominante, que concluía seus estudos na Universidade de Coimbra. Assim, a alfabetização, no contexto da Contrarreforma, significava distinção social vinculada à classe de poder religioso ou econômico.

A autora também evidencia que com a emergência do capitalismo, em alguns países, no século no XVIII, e em outros, no século XIX, provocou o redimensionamento das funções da alfabetização. Essa nova lógica de produção econômica, pautada no uso de máquinas e em equipamentos, exigia uma formação específica dos indivíduos para o mundo do trabalho, induzindo à emergência da escola de massa e a alfabetização universal. Essas demandas foram consideradas fatores básicos para a consolidação do processo de modernização das sociedades ocidentais. Em nosso país, a escola de massa passa a ser pensada tardiamente a partir da segunda metade do século XIX, em função das transformações políticas e sociais provocadas pela classe de intelectuais brasileiros influenciados pelos ideais positivistas. Nesse contexto, ocorreu a institucionalização da República Federativa sob o lema ordem e progresso. Esse ambiente de transformações exigia [...] um novo modelo de educação: uma educação de massa, que incluísse o maior número de pessoas, pois, para o positivismo, a educação era condição de evolução e garantia de liberdade do homem (PÉREZ, 2008, p. 192).

A alfabetização no Brasil, nesse período, foi marcada pelo debate em torno da escolha de métodos científicos e positivos adequados ao ensino da língua. Segundo Pérez (2008), esse debate envolveu três grupos diferentes: um que advogava pelo método tradicional de soletração; o outro de Silva Jardim, que defendia o método analítico de palavração; e o terceiro grupo, formado por intelectuais e professores paulistas, defensor do método analítico de sentenciação. Toda essa polêmica promoveu o fortalecimento de práticas de alfabetização ancoradas no método tradicional de soletração que seguia


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algumas etapas de ensino. Iniciava pela recitação das letras seguida da silabação, observando uma organização conforme as dificuldades ortográficas crescentes. Esse processo era guiado pela abordagem dos elementos da língua considerados mais simples (letras) até atingir os considerados mais complexos (textos).

No Espírito Santo, o debate sobre a questão da escolha de métodos mais apropriados para alfabetizar também marcou presença no cenário político e educacional dessa época. Segundo Assunção (2009), na década de 1870, havia discussões nessa província sobre a necessidade de adotar métodos eficazes para alfabetizar um maior contingente populacional. Assim, os desafios da educação pública eram tratados em termos de adequação de métodos. Nesse contexto, estava em pauta a adoção do método simultâneo, o método mútuo e o método misto. 3

Segundo a pesquisadora, essas três metodologias contemplavam materiais de marcha sintética, e o que predominou nas práticas educativas de ensino da leitura e da escrita foi a ênfase nas unidades menores como letra, sílabas e palavras. Desse modo, a necessidade de mudança e de transformação da realidade educacional ficou apenas no plano do discurso, pois as carências do setor continuaram sem alteração. Assunção (2009) comenta que havia ausência de materiais elementares para o trabalho escolar e o recurso do areeiro4 ainda era utilizado para desenvolver atividades de leitura e escrita.

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Conforme podemos ler em Souza (2009), o método simultâneo era aquele em que o professor ministrava um único conteúdo para vários alunos ao mesmo tempo. Nesse modelo, os alunos eram divididos em grupos de acordo com seus conhecimentos, ou seja, defendia um regime seriado, homogêneo. Já o método mútuo significava que os alunos seriam atendidos individualmente por um professor ou por monitores. Esses monitores eram alguns alunos que se destacavam na turma. Nesse método as regras para as atividades eram rígidas. Havia horários para cópia, para tomar leitura, para atividades de aritmética e outras. O ensino era graduado, pois abordava os conteúdos considerados mais simples para os mais difíceis. Com relação ao método misto, Souza (2009) explica que era uma combinação de características do método simultâneo, do método mútuo e do individual. Assim, o método misto contemplava uma explicação geral do professor para um grupo de alunos, mas também utilizava o recurso da monitoria para acompanhar, controlar e auxiliar os alunos individualmente. Nessas três modalidades metodológicas prevalecia o ensino de marcha sintética (letras, sílabas, palavras). 4 Conforme Assunção (2009) descreve, o areeiro era uma caixa de areia que servia para os alunos, principalmente os mais novos, treinarem a escrita antes de usarem o papel.


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Pérez (2008) reflete que a promessa do ideário da educação positivista, como missão civilizadora,

não se

efetivou na realidade brasileira,

apenas

empobreceu o debate sobre a alfabetização ao limitar a discussão em torno da questão dos métodos. No viés político também fracassou, uma vez que, na década de 1920, 65% da população eram consideradas pessoas analfabetas, ou seja, não sabiam ler ou escrever.

Após a Primeira Guerra Mundial, o mundo se reorganizava geopoliticamente e, nesse processo, predominaram no Brasil influências oriundas dos pensadores norte-americanos, em especial de John Dewey. No campo educacional, um grupo de educadores liberais vinculado ao movimento da Escola Nova buscava consolidar proposições que marcavam os aspectos políticos da educação. A educação é um direito de todo cidadão, não um privilégio de classe, é dever do Estado assegurá-la para todos, por meio de uma escola pública gratuita, obrigatória e laica, substituindo a tradicional estrutura pedagógica, artificial e verbalista por uma pedagogia ativa (PÉREZ, 2008, p. 194).

Assim, o movimento renovador, ao defender a educação como direito, tenta evidenciar sua natureza política. Nessa época, Anísio Teixeira, um dos integrantes desse movimento, teve atuação em vários setores da administração pública e vislumbrava o ideário da educação como alternativa para a consolidação da democracia no País. Também produziu muitos textos e livros que propagavam princípios de democratização da educação.

Essa

efervescência de ideias se arrefece com a instalação do Estado Novo, regime repressor e totalitário, que entendia a alfabetização destituída de seus aspectos políticos,

colocando

luz

sobre

os

conteúdos

teórico-metodológicos

considerados neutros. Essa formação política que assumiu o poder valorizava os discursos de base psicológica fundados em conceitos de maturidade e prontidão para a organização do ensino. Segundo Pérez (2008), esses discursos foram materializados em indicações de composição de turmas homogêneas e de estruturação curricular dos conhecimentos. Nesse contexto, alfabetizar requeria procedimentos de diagnosticar, medir, determinar a maturidade individual e prontidão para determinadas aprendizagens. Assim, o conceito tomava como base estruturante a perspectiva psicológica do


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desenvolvimento de capacidades individuais e não mais os aspectos políticos e democráticos.

Como ocorreu no Brasil, a bandeira da democracia na Europa e na América Latina estava em risco com o crescimento de regimes totalitários. Após a Segunda Guerra Mundial, um conjunto de países ocidentais, em 1945, se encarregou de criar a ONU para instaurar, pelo menos no plano discursivo, princípios universais em favor da paz e dos direitos humanos. Perez (2008) indica que essas diretrizes globais ecoaram no Brasil por meio da promulgação da Constituição de 1946, que explicitava princípios liberal-democráticos. Realça a autora que Do ponto de vista político, assegurar o direito à educação é um dever do Estado Democrático, que deve promover a educação do povo, cuidar da expansão e manutenção da escola pública, assegurando-a efetivamente para todos. Do ponto de vista econômico, o grande desafio que se colocava para o Brasil do Pós-Guerra era universalizar a alfabetização e o acesso à educação elementar, ampliando os níveis de escolarização da população. A educação é condição necessária ao desenvolvimento, pois o capitalismo moderno se apóia em técnicas que dependem cada vez mais do domínio da leitura, da escrita e das operações matemáticas elementares (PÉREZ, 2008, p. 195).

A autora indica que preceitos dessa natureza predominaram até a década de 1970 no Brasil. Nesse contexto, a concepção de alfabetização foi ampliada para além das capacidades de ler e escrever. Significava o desenvolvimento de competências e habilidades vinculadas à vida social e ao mundo do trabalho, tendo o tecnicismo como uma marca dos processos de ensinar e aprender. Desse modo, a alfabetização é veiculada a partir da perspectiva funcional, ou seja, as capacidades de leitura e de escrita deveriam atender às necessidades de formação para o trabalho e potencializar a produtividade dos indivíduos.

Macedo (2000) formula severas críticas a essa concepção de alfabetização e denuncia os limites dessa corrente de pensamento para a construção de uma sociedade efetivamente democrática. Para ele, a abordagem funcional da alfabetização preconiza o aprendizado mecânico da língua e sacrifica a crítica das ordens social e política, que dá origem à necessidade da leitura em primeiro lugar. O autor recorre a Giroux (1983, p. 215-216) para reafirmar:


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A alfabetização, dentro dessa perspectiva, funciona bem para fazer adultos mais produtivos como trabalhadores e cidadãos numa dada sociedade. A despeito de seu apelo à mobilidade econômica, a alfabetização funcional reduz o conceito de alfabetização, e a pedagogia a que ele se ajusta, aos requisitos pragmáticos do capital; conseqüentemente, as noções de pensamento crítico, cultura e poder desaparecem sob os imperativos do processo de trabalho e da necessidade de acumulação de capital.

Segundo análises do autor, a alfabetização funcional ou utilitarista está ancorada em pressupostos da teoria da reprodução cultural e, como alternativa a essa opção, advoga em prol de uma alfabetização emancipadora, alicerçada numa pedagogia radical, estruturada na dinâmica da produção cultural. Nessa direção, afirma que “[...] o programa de alfabetização de que se precisa é aquele que há de representar uma afirmação do povo oprimido e permitir-lhe recriar a própria história, cultura e língua [...]” (MACEDO, 2000, 86).

A base conceitual dessa perspectiva de alfabetização toma como referência o pensamento inaugurado por Paulo Freire que enfatizava a dimensão política e cultural que permeia o ensino da língua materna. Freire (2001) defendia que a alfabetização era um ato político que visava à emancipação pessoal, à conscientização

política

e

à

ampliação

da

participação

social

dos

alfabetizandos. Segundo ele, pensar a alfabetização numa perspectiva emancipadora exige admitir que “Ler a palavra e aprender como escrever a palavra, de modo que alguém possa lê-la depois, são precedidos do aprender como ‘escrever’ o mundo [...]” (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 31). Essas proposições ganharam destaque no cenário nacional e internacional, em especial nos programas de educação popular desenvolvidos em outros países.

Após esse período, por volta da década de 1980, Pérez (2008) informa que as discussões sobre a alfabetização assumiram enfoques diversos. Segundo ela, os estudos da área centraram esforços em análises de processos e resultados, outros se dedicaram a uma revisão metodológica e também ocorreu a difusão da concepção de alfabetização como um processo de construção do sujeito cognoscente. Esse novo modo de pensar a alfabetização defendia a adoção de metodologias flexíveis e múltiplas, adaptadas às necessidades dos alunos e


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enfatizava a dimensão linguística do processo de aprendizagem da língua. Essa abordagem da alfabetização foi veiculada tomando como referência os pressupostos da abordagem construtivista. A diversidade de enfoques que motivavam os estudos e debates da alfabetização, nessa década, tinha como principal fundamento a recorrência de altos índices de evasão e repetência das crianças nas séries iniciais. Esse quadro de preocupações também era comum em outros países.

A questão dos elevados índices de analfabetismo no mundo constituiu uma das justificativas explicitadas pela Unesco para a realização da Conferência Mundial de Educação, em 1990, na Tailândia. Nessa conferência, foi produzida a Declaração Mundial de Educação para Todos, que delineia metas a serem alcançadas pelos países participantes, dentre eles, o Brasil, com especial destaque para a alfabetização, entendida sob a perspectiva da sociedade da informação. Como essa sociedade é marcada pelo avanço dos recursos tecnológicos, a Declaração evidencia a necessidade de pensar um processo educativo que possibilite o desenvolvimento de capacidades complexas de uso de diferentes linguagens. Segundo Pérez (2008), foi nesse cenário de debates que nasceu o conceito de alfabetização plural. Para ela, a alfabetização, então, passa a ser entendida como um processo que [...] implica um enfoque integrado e flexível, articulado a todos os aspectos da vida cotidiana e que, para além da comunicação oral ou escrita, traduz uma concepção complexa de linguagem: unidade na diversidade que inclui o falar, escutar, ler, escrever, desenhar, tocar, digitar, cantar, representar, etc. (PÉREZ, 2008, p. 199).

A abrangência e amplitude desse conceito realimentaram os debates. Alguns intelectuais brasileiros entenderam que pensar a alfabetização nesse sentido amplo significava a perda de sua especificidade que tradicionalmente estava relacionada com a capacidade de domínio da tecnologia da escrita. Como alternativa para evitar essa descaracterização, apresentaram o termo letramento como complementar ao termo alfabetização. Soares (2004) foi uma das principais protagonistas dessas discussões e manifestou a defesa da necessidade da articulação dos dois conceitos. Na tentativa de esclarecer as suas especificidades, afirma:


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[...] parece ser necessário rever os quadros referenciais e os processos de ensino que têm predominado em nossas salas de aula, e talvez reconhecer a possibilidade e mesmo necessidade de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente se denomina letramento, de que são muitas as facetas – imersão das crianças na cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito – e o que é propriamente a alfabetização, de que também são muitas as facetas – consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala da forma gráfica da escrita (SOARES, 2004, p. 15).

Desse modo, Soares (2004) se preocupou em estabelecer distinções entre os dois conceitos, embora os considere articulados e integrados ao processo de ensino aprendizagem da língua materna. Esse posicionamento evidencia ambiguidades e, em nossa perspectiva, explicita inconsistência teórica das proposições, pois não consegue construir argumentos sólidos para a necessidade do termo letramento.

Outros grupos de intelectuais que podem ser representados pelas pesquisas de Smolka (1989), Gontijo (2003, 2008), Geraldi (1991), dentre outros, apresentam posicionamento distinto a essa ideia e argumentam que é possível pensar o significado do conceito de alfabetização numa perspectiva dialógica que contemple as várias dimensões da língua. Assim, Gontijo (2008) afirma que, numa visão ampla, a alfabetização significa a inserção da criança no mundo da escrita. Para especificar esse processo amplo e aberto, a autora entende o conceito de alfabetização como “[...] prática sociocultural em que se desenvolvem as capacidades de produção de textos orais e escritos, de leitura e de compreensão das relações entre sons e letras (GONTIJO, 2008, p. 34). A partir desse conceito, a autora reafirma que, no processo de alfabetização, a criança, ao aprender a língua, pratica a leitura e realiza produção de textos para dialogar com o outro ou, em muitas situações, consigo mesma. Assim, não se limita a estabelecer relações apenas entre elementos gráficos e sonoros, mas tem a possibilidade de manifestar ideias, sentimentos, avaliações, desejos, por meio da leitura e da escritura.


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A partir dessas considerações, podemos inferir que o conceito de alfabetização na atualidade ainda suscita debates. Observamos que, no início do século XXI, temos a presença de duas correntes de pensamento: uma que assume o termo alfabetização como restrito ao domínio dos aspectos linguísticos da língua, sendo necessário o uso de um termo complementar, letramento, para abarcar as dimensões funcionais e dos usos, e outra corrente teórica, que entende o conceito de alfabetização como prática sociocultural que integra dimensões discursivas e linguísticas.

REFERÊNCIAS

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COOK-GUMPERZ, J. (Org.). A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 19. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura da palavra leitura do mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GONTIJO, C. M. M. A escrita infantil. São Paulo: Cortez, 2008.

_____.

Alfabetização: a criança e a linguagem escrita. 2. ed. São Paulo:

Editora Autores Associados, 2003.


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GRAFF, H. J. Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

MACEDO, D. Alfabetização, linguagem e ideologia. Educação e Sociedade, ano

XXI,

n.

73,

dez.

2000.

Disponível

em:

<http://www.scielo.br/pdf/es/v21n73/4208.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2011.

OLSON, D. R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Editora Ática, 1997.

PÉREZ, C. L. V. Alfabetização: um conceito em movimento. In: GARCIA, R. L.; ZACCUR, E. (Org.). Alfabetização: reflexões sobre saberes docentes e saberes discentes. São Paulo: Cortez, 2008. p. 178 - 201.

SMOLKA, A. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez, 1989.

SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, n. 25, p. 5-17, jan./fev./mar./abr. 2004.


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