ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO PERGUNTAS DE UM ALFABETIZADO QUE LÊ João Wanderley Geraldi1 Mas, se todo o mal está nisso! ... Nas palavras. Todos trazemos dentro de nós um mundo de coisas: cada qual tem o seu mundo de coisas! E como podemos entender-nos, senhor, se, nas palavras que digo, ponho o sentido e o valor das coisas como são dentro de mim, enquanto quem as ouve lhes dá, inevitavelmente, o sentido e o valor que elas têm para ele, no mundo que traz consigo? Pensamos entender-nos... e jamais nos entendemos! (Pirandello, na voz de O Pai. Seis Personagens à Procura de um Autor)
Introdução Se as palavras se deixam vestir pelas experiências individuais, somente o diálogo, ainda que polêmico, pode restabelecer o campo entrecruzado de sentidos em que compreensões partilhadas são construídas. Por isso esta insistência constante de retorno a temas, cujo tratamento final e acabado jamais se dará, porque os sentidos que atribuímos às muitas de suas facetas são modificados nas retomadas constantes, nas vozes múltiplas e nos novos enunciados marcados por suas condições de produção. O tratamento de um tema é inesgotável. Os limites são impostos pelo projeto de dizer, e aquele que diz sabe que não dominará por completo os sentidos de seu dizer. Mas esta condenação dos sentidos múltiplos é também o lugar da riqueza da experiência humana: afasta a uniformidade, a conformidade e o conformismo. O risco do retorno a um tema não está na exigência de conformar o que se diz aos jáditos; o risco está na construção de sentidos outros, pois eles podem iluminar ou sombrear facetas do fenômeno que se quer ver mais de perto. Risco inevitável. Brecht, a voz primeira, que já no título aqui se invoca, ensina a perguntar, deslocando os sentidos postos e tranqüilizados da história. Em Pirandello, a segunda voz, o alerta para 1
Professor Titular aposentado da Unicamp. Agradeço aos colegas Cláudia Maria Mendes Gontijo e Antônio Augusto Gomes Batista pela leitura da primeira versão deste texto e pelas sugestões feitas. Obviamente sou responsável, mesmo pelos ajustes, que nem sempre aderiram a suas relevantes indicações. jwgeraldi@yahoo.com.br
as dificuldades com as palavras: e não dispomos de outras sem história, só esqueleto descarnado, mesmo quando fazemos de conta que definimos à perfeição conceitos postos em circulação. Bakhtin, a terceira voz, insiste que se vá em frente pois no tempo grande todos os sentidos ressuscitarão, não porque presentes todos ao mesmo tempo, mas porque aqueles ausentes hoje foram nascedouro daqueles hoje presentes. Assim, correndo os riscos de sombrear o já claro, meu objetivo neste texto é formular algumas perguntas a propósito das relações entre alfabetização e letramento. Perguntas que encontram suas justificativas inicialmente nos pontos de vista delineados a partir de uma concepção de linguagem que não separa, nas línguas, aquilo que é da ordem do estabilizado daquilo que é da ordem da instabilidade enunciativa a serviço da qual o estabilizado se constitui2. Em segundo lugar, estas perguntas são motivadas também pelo que vem sendo assumido em discursos oficiais ou semi-oficiais nas políticas de ensino, em que a alfabetização teria por finalidade ensinar as convenções do código escrito e o letramento teria por finalidade proporcionar a inserção dessas mesmas crianças no mundo da cultura escrita, ambas as finalidades explicadas considerando as exigências sociais de uso da escrita e da leitura na sociedade, sem qualquer questionamento a respeito destas exigências, chamadas de demandas sociais de leitura e escrita. Obviamente, estas demandas se exercem em diferentes níveis, no cotidiano dos sujeitos sociais. Pensar a alfabetização e o letramento, em conseqüência, o ingresso no mundo da escrita, para responder a demandas existentes é reduzir o processo educativo, em termos de linguagem, à manutenção do existente, sem que a perspectiva de transformação da estrutura social dada esteja no horizonte dos processos pedagógicos (ainda que o horizonte desta transformação esteja longínquo e não absolutamente alcançável somente pela ação pedagógica). As perguntas são sempre necessárias para quem não quer ver embotada sua capacidade de surpreender-se. Mas aquelas aqui formuladas podem ser produtos da ignorância: a literatura própria especializada é tão ampla que já pode ter a tudo respondido. Se supõe ter feito isso, seria triste imaginar um horizonte teórico tão hiper-lúcido que segaria as emergências de sua própria renovação: as perguntas. 2
Isto significa não recusar as estabilidades, sejam elas da ordem que forem, mas aceitar que o reconhecimento do estabilizado é insuficiente para qualquer uso social da linguagem. Também não significa desconhecer a existência de convenções em relações do tipo fonema/grafema ou de ordem ortográfica. Mas significa não esquecer suas arbitrariedades e o muito de relações de poder que pelas vias da estabilização se perpetuam nos usos sociais das línguas.
1. Dos instrumentos de compreensão Nossa sociedade fez da mudança acelerada seu apanágio. Sua organização e as estratégias técnicas, econômicas e administrativas que a estruturam estão sempre acelerando a história dos acontecimentos e das invenções (Guillaume, 1998:109). Muito antes de os sujeitos sociais se acostumarem ao recente, outro novo recente já o substituiu. Cazuza cantaria: o tempo não pára!, mas a este tempo não há mais que se dar o sentido tradicional da mitologia do deus Kronos que mata suas criaturas no transcurso do tempo. O tempo da velocidade é o tempo da exigência de um novo contínuo, sem transcurso temporal: tudo é substituído e deve ser substituído com pressa. Gerar o lixo talvez tenha sido apenas uma das conseqüências desastrosas desta velocidade.
Enquanto homens vulgares, nós nos constituímos pelas táticas infiltradas por hábitos, crenças, representações, resistências. Tudo produto de um tempo não veloz que construiu o líquido amniótico da cultura em que respiramos e com que e em que nos identificamos. Na história (tempo) e na cultura (ação coletiva de homens ao longo do tempo) nos fazemos o que somos. Mas a velocidade das organizações modernas exige outra tática de sobrevivência: há que abandonar identificações culturais, costumes estabelecidos e crenças ou representações para aceitar que o ontem hoje é obsoleto. Na expressão de Bauman (2008:114): Na verdade, a mensagem transmitida com grande poder de persuasão pela mais efetiva mídia cultural, a mensagem lida com facilidade por seus receptores é a mensagem da indeterminância e maciez essenciais do mundo: tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito apenas uma única vez e durar para sempre – e seja lá o que for que aconteça, chega sem se anunciar e vai embora sem avisar. Em conseqüência, uma das máscaras sob a qual somos chamados a nos esconder para sermos contemporâneos, atualizados, estarmos neste mundo de vertigem, resulta do embotamento de uma de nossas qualidades: a capacidade de nos surpreendermos. De olhos atentos, uma criança olha o novo com surpresa! Seria gesto infantil o homem atual assumir a mesma posição. Como tudo muda, como tudo se desloca, nada deve surpreender e tudo deve ser tributado ao progresso, ao desenvolvimento, naturalizando esta crescente necessidade do novo. Paradoxalmente, o novo é o que não existia, mas é
o que era já esperado. Toda novidade, tecnológica ou não, já estava na ordem do dia, estava por acontecer, viria não se sabia a hora e se faria obsoleta sem qualquer aviso prévio. Nós nos movemos neste mundo de novidades que invadem a vida depois de terem invadido os laboratórios. Sempre que um novo e melhor instrumento é construído, outros instrumentos ou se tornam obsoletos e são descartados ou são re-configurados, reciclados, para servirem a outros objetivos. Obviamente não é somente no mundo da vida cotidiana que as novidades se vem impondo. Também o mundo das construções de nossas compreensões não está infenso à velocidade do tempo. Novos instrumentos com que diagnosticar, com que medir, com que se aproximar do real estão sempre surgindo nos nossos laboratórios de pesquisa e com eles construímos outras realidades - lembremos que as ‘realidades’ não são o mundo real, mas o mundo real tal como o podemos ver pelos instrumentos usados. As ciências humanas não escapam a este mesmo movimento. Nós, que tratamos dos fenômenos humanos, também lançamos mão de instrumentos: os conceitos com que construímos nossas compreensões. Quando nosso objeto de estudos é o mundo da escrita, campo vasto que pode envolver desde os processos iniciais de acesso a este mundo até as práticas sociais que o constituíram e que o constituem no presente, impomo-nos a construção de conceitos, nossos instrumentos. E quando novos conceitos emergem3 tornam outros conceitos obsoletos ou demandam uma re-significação dos conceitos em uso. A única forma de não cairmos na armadilha do embotamento de nossa capacidade de nos surpreendermos é continuar a fazer perguntas diante do novo que emerge para evitar que ele se torne apenas novidade consumível como mercadoria. Um novo conceito não vem sem seu aparato, sem produzir efeitos e sem oferecer soluções de problemas que outros ‘conceitos’ não conseguiram sanar: não esqueçamos, as ações se definem a partir de projetos de futuro e de concepções e estas definem conceitos. Por isso, as perguntas 3
“... novas palavras são criadas, ou a velhas palavras dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas idéias, novas maneiras de compreender os fenômenos.” (Soares, 1998 : 19)
são formas de estarmos atentos: elas evitam este risco de transformar conceitos em mercadorias numa sociedade organizada em torno do consumo. Face ao exposto, eis duas perguntas necessárias: 1. a emergência do conceito de letramento, nos estudos sobre a aquisição e circulação da língua escrita, é conseqüência de novos fatos sociais e discursivos? 2. o conceito de letramento torna obsoletos ou impõe re-significações a que outros conceitos? 2. Buscando respostas 2.1. Sobre os ‘novos’ fatos sociais: responder adequadamente Podemos responder à primeira pergunta acompanhando Magda Soares (1998 :20) ... o estado ou condição de quem sabe ler e escrever, isto é, o estado ou condição de quem responde adequadamente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita, esse fenômeno só recentemente se configurou como uma realidade em nosso contexto social. Antes, nosso problema era apenas o do “estado ou condição de analfabeto” – a enorme dimensão deste problema não nos permitia perceber esta outra realidade, o “estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, e, por isso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto – alfabetismo ou letramento – não nos era necessário. Só recentemente esse oposto tornou-se necessário, porque só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento (que, como já foi dito, vem-se tornando de uso corrente, em detrimento do termo alfabetismo) (os grifos em itálico são meus). Temos algo novo: uma preocupação com aqueles que sabem ler e escrever, mas que parecem não responder adequadamente às demandas sociais do mundo da escrita. Se pensarmos em termos históricos e nos perguntarmos pelas razões desta preocupação surgir só recentemente, talvez tenhamos que deduzir que (a) aqueles que sabiam ler e escrever no passado respondiam adequadamente às demandas sociais amplas da leitura e escrita – e por isso o conceito não nos era necessário;
(b) muitos dos que sabem ler e escrever no presente não respondem adequadamente às demandas sociais amplas da leitura e escrita – e por isso o conceito emergiu. Estas deduções permitiriam levantar várias outras perguntas ou formular várias hipóteses. Por exemplo, no passado somente eram alfabetizados aqueles que, já pertencentes socialmente ao mundo em que a escrita circula, compreendiam desde os primórdios de seu acesso à escrita os seus usos adequados? Teria sido um feito da escolarização alcançar outras camadas sociais, e estas, não provindo do mesmo mundo social onde a escrita circula, não respondem adequadamente às suas demandas, pois as diferenças sociais permanecem as mesmas? Defeito da escolarização por não adequar seus alfabetizados a este mundo pré-dado? Ou estaria o mundo da produção exigindo de seus trabalhadores, agora alfabetizados, mais do que demandava antes? O envolvimento e o movimento dos empresários, todos pela educação, não estariam indiciando que a produtividade industrial está exigindo mais do que gestos mecânicos e repetitivos? 4 Ou ainda, caminhando por outras veredas: a sociedade tornou-se efetivamente letrada e seu funcionamento depende da escrita, pelo uso das novas mídias que, ao contrário das previsões dos anos 1970, não tornam obsoleto o alfabeto? Um vasto campo de pesquisa se abre não porque as questões não pudessem ser formuladas antes da emergência do conceito de letramento, mas porque o uso deste conceito deslocou outros que eram usados para tratar destes fenômenos, particularmente os conceitos de ‘usos sociais da escrita’; ‘aquisição da língua escrita’; ‘o mundo da escrita’ e semelhantes. Independentemente das respostas que possam ser formuladas a estas novas perguntas, a nossa primeira resposta a propósito dos fatos sociais novos que o conceito de letramento torna visíveis traz em seu bojo um esclarecimento oportuno a respeito do que se quer dizer quando se fala em letramento: responder adequadamente às exigências e demandas sociais de uso da leitura e da escrita.
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O Grupo Gerdau, por exemplo, investiu e investe na escolaridade de seus trabalhadores – hoje todos com ensino médio – não porque pretende mudanças nos processos sociais pelo exercício pleno da cidadania, mas porque quis igualar, e conseguiu, a produtividade do trabalhador brasileiro à produtividade dos trabalhadores dos países mais avançados. A diferença de produtividade não estava nas máquinas usadas para produzir, mas na escolaridade daqueles que as punham em funcionamento.
Mas que é esse ‘adequadamente’? Entrar no estado de letrado variará segundo as adequações exigidas em diferentes níveis? Vejamos um exemplo oferecido por Magda Soares no mesmo artigo: Uma última inferência que se pode tirar do conceito de letramento, é que um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser, de certa forma, letrado (atribuindo a este adjetivo sentido vinculado a letramento). Assim, um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e economicamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros lêem para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva (e é significativo que, em geral, dita usando vocabulário e estruturas próprios da língua escrita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixados em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e escrita. (Soares, 1998 : 24) Como se pode notar, este exemplo de um “letrado de certa forma” ou muda o conceito de letramento, pois já não se trata mais de pensar “o estado ou condição de quem sabe ler e escrever”, ou teremos que ter mais atenção ao que se quer dizer com “quem responde adequadamente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e diferenciado da leitura e da escrita”. A possibilidade de letramento independente do saber ler e escrever é assumida de forma ainda mais explícita por outra pesquisadoras Sendo o letramento [...] um processo, no qual está encaixado outro (a alfabetização), é preciso considerar nele uma heterogeneidade, visto que as condições de produção onde os discursos escritos são produzidos e lidos passam a ocupar lugar proeminente, assim como os efeitos de sentidos que produzem. Assim, afirmo que existem letramentos de natureza variada, inclusive sem a presença da alfabetização (Tfouni, 2008, p.78, apud Giovani, 2010, p.16) (grifos meus) Assim, os defensores do letramento terão de admitir um continuum de letramento, níveis etc. É o que se pode inferir de outra passagem quando se procuram critérios para dar conta de medidas e avaliações: ...quais habilidades e aptidões de leitura e escrita qualificariam um indivíduo como “letrado”? que tipos de material escrito um indivíduo deve ser capaz de ler e escrever para ser considerado “letrado”?
Respostas a tais questões são bastante problemáticas. As competências que constituem o letramento são distribuídas de maneira contínua, cada ponto ao longo desse contínuo indicando tipos e níveis de habilidades, capacidades e conhecimentos, que podem ser aplicados a diferentes tipos de material escrito. (Soares, 1998 : 70-71) Se a preocupação com “o estado ou condição de quem sabe ler e escrever” numa sociedade letrada – única onde há demandas de leitura e escrita – inclui neste “estado ou condição” aqueles que fazem uso da escrita mesmo não sabendo ler e escrever como no exemplo apresentado de letrado no sentido vinculado a letramento, então ninguém, numa sociedade letrada, estaria fora do letramento. Este deslizamento de sentidos do conceito, a ponto de incluir aqueles que não dominam o alfabeto como ‘letrados’ (no sentido vinculado a letramento) parece ser uma particularidade bastante local, muito provavelmente decorrente da ideologia do “politicamente correto”. Soares (2004) faz uma retrospectiva histórica do conceito em suas origens nos EEUU e França e nada faz crer que o conceito incluiria também os analfabetos. Na verdade, o conceito parece surgir face à constatação de uma falta: um certo nível de incapacidade de sujeitos alfabetizados lidarem social e adequadamente com textos (na leitura ou produção)5. Se a ‘falta’ foi constatada onde o conceito emergiu, não será pela ‘falta’ que ele deverá circular. E preciso assegurar a positividade, ainda que apenas nas palavras, para responder à ideologia do “politicamente correto”. E como por cá queremos ser mais politicamente corretos ainda, incluímos entre os letrados também aqueles que não foram alfabetizados6. O fenômeno que o conceito quer captar não admitiria esta inclusão, como se pode ler na seguinte passagem em que se diz a que “letramento” faria referência ... reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita (Soares, 2004, p.6) 5
A demanda social de uso da escrita numa sociedade de desiguais não é analisada. Qual o verdadeiro acesso ao mundo da escrita que uma sociedade como esta realmente permite? Quando estes sujeitos sociais têm que encarar um material escrito um pouco mais complexo, obviamente não apresentarão a mesma habilidade que têm ao lidar com as máquinas da fábrica ou a mesma ligeireza daqueles que, nesta mesma sociedade, por razão de ofício ou de pertencimento às classes favorecidas, convivem diariamente com a escrita. 6 É uma lástima que as necessidades da produção estejam exigindo mais acesso ao mundo da escrita do que aquele que a estrutura social tem permitido, porque cunhado o conceito e assim expandido, poderíamos ter justificativas teóricas para nos dispensarmos de qualquer esforço de alfabetização e escolarização das camadas populares, dos agricultores assentados, dos trabalhadores sem terra acampados à beira da estradas, etc. Eles todos já teriam o nível de letramento demandado...
Seria muito interessante perguntar as razões que levaram ao alargamento das referências numa sociedade como a nossa, pouco escolarizada e com índices de analfabetismo ainda muito elevados. Seria um reconhecimento de que numa sociedade letrada todos somos influenciados pela escrita? Seria a aceitação de um princípio ‘construtivista’ 7 de que numa sociedade onde há escrita, as crianças chegam à escola sabendo o que é escrita? Ou seria um deslizamento ideologicamente mais profundo: onde há escrita, todos a ela pertencemos, obviamente em diferentes graus. Uma igualdade que esconde as diferenças. Não há falta. O letramento, entre nós, introduz esta positividade, ao prever os escaninhos dentro dos quais cada letrado (no sentido vinculado a letramento) deve se enquadrar e responder adequadamente, e no espaço de seu nível, às demandas sociais de leitura e escrita que se lhe apresentam. Se esta minha uma leitura é ‘adequada’ em alguns de seus aspectos, então o conceito de letramento gaseificou-se8: preenche tudo e nada ao mesmo tempo, o que o tornaria desnecessário. Nem os fatos seriam novos, nem as idéias seriam novas, como podemos constatar em outro estudo a propósito do conceito de letramento. Trata-se do trabalho de Britto (2007) que, ao contrapor-se a um letramento em abstrato, desvinculado do conhecimento, demonstra que o acesso ao mundo da escrita corresponde um acesso ao mundo do conhecimento. E que os bloqueios a este acesso, como em outros campos, é perpassado pelas relações de poder: Há [...] um vínculo estrito entre a escrita e as formas de poder e de apropriação dos bens simbólicos produzidos na própria cultura escrita. E isto não é de se estranhar quando se considera uma ordem social em que a apropriação desigual da produção é essencial. Como ocorre com qualquer outra técnica, a posse da escrita, na sociedade de classes, está desigualmente distribuída. Noutra passagem extremamente arguta, considerando que o letramento, tal como venho expondo, tem sido pensado como habilidade, capacidade ou um saber-fazer que se mediria pela resposta adequada às demandas 7
Apresentado como um dos ‘bodes expiatórios’ dos problemas da falta de ‘resposta adequada às demandas sociais de leitura e escrita’, o construtivismo já afirmara que crianças de sociedades letradas sabem algumas coisas sobre o alfabeto muito antes deste lhes ser ensinado, ou melhor, muito antes de elas se apropriarem do alfabeto. 8 A dificuldade de definição do conceito não escapa aos autores que sobre ele têm se debruçado. Letramento, independentemente de adjetivos que possam lhe ser apostos, pode referir a estado ou condição; a habilidades e aptidões; a processo; a uso de habilidades de leitura e escrita (o que quer que isso signifique!).
É interessante indagar de que se fala examente quando se afirma que haveria novas demandas de conhecimento e de uso da leitura e escrita na sociedade contemporânea. Aí está um elemento sempre afirmado e poucas vezes efetivamente explicitado. Levanto a hipótese de que estas “novas demanda” estão vinculadas ao uso da escrita e dos processos normatizados no plano da vida cotidiana, nas atividades de produção e consumo e da organização dos espaços públicos e da vida diária. Nesse sentido, trata-se antes de expansão de certos usos – em especial dos usos contextualizados e automáticos da escrita – que de criação de novas formas de relacionamento intelectual com o conhecimento formal; trata-se, em outras palavras, de processos reguladores do cotidiano do trabalhador que impõem a necessidade de certos usos da escrita, seja para seguir comandos, realizar tarefas conforme o modelo, informar-se, distrair-se, circular no espaço público, cuidar de si e organizar a vida diária, enfim, agir com o padrão normatizado no espaço público. Trata-se, enfim, para repetir o argumento de Osakabe9, de garantir que a população tenha um “nível pragmático” de leitura e escrita. A formação intelectual que implique o pensamento descontextualizado e a suspensão da cotidianidade não se inclui “nas novas demandas”. Mas se o conceito emergiu, então algo há. Explicitamente, um desconforto com escolarizados não proficientes. Mas também só parcamente incluídos no mundo da escrita, como reconhecemos todos. Mas a estrutura social onde alfabetizados e não alfabetizados, ambos letrados, vivem parece não ser assunto para quem se ocupa com as operações de linguagem. Talvez haja também um desconforto pela circulação em ambientes letrados (no sentido tradicional deste adjetivo) de ‘invasores’ que falam diferente e querem acessar aos privilégios do pensar já que se lhes ofereceu algum acesso à escola. Teria o Brasil profundo mostrado a sua cara? 10 Seria bom que assim fosse. E a resposta que deveríamos lhes dar é que se quiserem circular por aqui, deverão ser proficientes segundo as demandas que lhes fizermos?
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O autor está fazendo referência ao texto OSAKABE, H. 1983. Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita. In: ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola – as alternativas do professor. 2ª ed., Porto Alegre, Mercado Aberto, p. 147-152. 10 A pergunta tem razão de ser: em observações não sistemáticas em trabalhos com professores destes brasis constatamos o enorme esforço de escolarização realizado em uma ou apenas duas gerações! Inúmeros professores ao recuperarem suas histórias de vida revelam que seus pais ou avós eram analfabetos. É muito pouco tempo para um salto de tal magnitude, do analfabetismo à conclusão do ensino superior. E nas condições adversas de distribuição de renda e de acesso aos bens culturais: nossa sociedade permanece entre as campeãs em desigualdades sociais.
Certamente a resposta a esta última pergunta será negativa. Todos nós, defensores ou não do conceito, queremos mais: queremos um acesso cada vez mais pleno ao mundo da escrita, aos gêneros não cotidianos presentes neste mundo, aos temas que por aí circulam, às formas mais abstratas de construção de explicações do vivido. A herança cultural, os conhecimentos científicos, não são latifúndios que não mereçam nossa ocupação. Mas então, ser letrado significará algo bem mais profundo do que a adequação na resposta às demandas de leitura e escrita postas pela estrutura social. Não será um simples pertencimento à cidade das letras nas formas que esta prevê, mas um envolvimento com as letras para construir outra cidade.
2.2. Deslocamentos e obsolescências: um passado inalterado manufatura um presente imutável Extraí do historiador Andrew Wheatcroft (2004) o enunciado que faz parte do título desta seção: a mudança do presente resulta necessariamente também da mudança de nossas compreensões do passado. Impossível romper com o “arame farpado” que representa a linguagem no acesso democrático ao conhecimento, à cultura e à vida sem re-visitar os fundamentos das percepções que acompanham muitas de nossas ações de controle sobre o que se diz e sobre o como se diz. Como o presente é mutável – tanto que nele emergem novos conceitos – o passado tem que ser alterado. Que passado se procura alterar com a emergência do conceito de letramento no presente? Inicialmente, ele afirmaria o lado positivo e naturalizado do ‘alfabetismo’, que designou aqueles que estavam fora de seu mundo como analfabetos. Como salientam Soares e outros autores, dispúnhamos de analfabetismo, mas não dispúnhamos de um substantivo como alfabetismo11. Aqueles que pertencem ao mundo da escrita precisavam também se designar, para justificar a hetero-designação que fundaram. Encontrar um par positivo para o lado negativo é muito pouco para cunhar um conceito, mas dele dispomos hoje e podemos dele fazer uso, não para constatar entre os alfabetizados seu iletrismo – o que seria uma nova hetero-designação, mas para reconhecer a alfabetização é apenas o momento iniciático de acesso ao mundo da escrita. Uma alfabetização num contexto de letramento, como defendido por Soares, incorporaria todo o esforço pelo acesso pleno ao mundo da 11
Alfabetizado ou letrado não designam o ‘fenômeno’ mas a qualidade daquele que pertence ao estado do fenômeno que não encontrava em nosso léxico a palavra adequada.
escrita e demandaria, sim, o conhecimento necessário do alfabeto e ainda mais do que isso: o acesso ao conhecimento em que a escrita encontra suas referências. Infelizmente não parece ser este o papel que o conceito de letramento vem cumprindo. É um passado que este conceito vem modificando. E neste ponto que se encontra a relação mais íntima entre este novo conceito (seja lá o que quer que ele recubra – um estado, um processo, uma habilidade) e nossa noção de alfabetização. Mesmo que esta não seja “prérequisito” para aquele (Soares, 2003), as remessas ao saber ler e escrever, ao domínio de habilidades e aptidões de leitura e escrita; ao uso da escrita etc. necessariamente envolvem a presença deste artefato histórico a que chamamos alfabeto. Parece que aqui encontramos o mais importante deslocamento desejado pela preocupação com o estado ou condição de quem sabe ler e escrever (que aliás não precisa saber ler e escrever para estar no estado de letramento, basta que responda adequadamente às exigências que lhe são postas pela sociedade, dentro de seu nível de letramento...). Não é por acaso que ao falarmos em letramento estamos fazendo um recorte relativo aos processos iniciáticos de entrada no mundo da escrita (seja de crianças, seja de adultos). É verdade que o conceito se gaseificou tanto que a expressão “evento de letramento” recobriria qualquer momento em que escrita e leitura estão presentes12, mas somente é usada quando se trata de processos iniciais. A preocupação com a alfabetização é muito antiga. Não vou retomar aqui sua história. Apenas vou trazer alguns elementos de reflexão para desenhar um quadro dentro do qual o ponto de vista que exporei pode fazer algum sentido. Se “a leitura é um processo de relacionar símbolos escritos a unidades de som e é também o processo de construir uma interpretação de textos escritos” e se “a escrita é um processo de relacionar unidades de som a símbolos escritos, e é também um processo de expressar idéias e organizar o pensamento em língua escrita” (Soares, 1998: 12
Encontramos na literatura especializada sobre os usos das mídias contemporâneas a expressão “evento de letramento” para explicar qualquer passeio pela internet... Quando estamos escrevendo, estamos num evento de letramento ou estamos produzindo um evento de letramento ou simplesmente estamos escrevendo? Há pesquisas reduzindo, por exemplo, um rito religioso a uma seqüência de ‘eventos de letramento’, afinal há leitura de orações, da bíblia, de livros de hinos, etc. É impressionante como todas as relações sociais passam ao largo: elas palidamente aparecem nas descrições das ‘ancoragens enunciativas’, desvestidas estas das relações de poder.
68-69/70), então temos que reconhecer, junto com a autora em outro artigo (Soares, 2003), que o acesso ao mundo da escrita pode ser organizado por duas vias distintas – aquele da relação entre sons e símbolos escritos ou aquele da idéias e suas interpretações, dando ênfase a um ou outro aspecto como “porta de entrada”. Uma porta de entrada não quer dizer ficar nela: é preciso visitar ambos os cômodos desta adição entre A e B das duas definições dadas. Assumindo a primeira perspectiva, dá-se ênfase aos símbolos escritos (em aquisição); assumindo a segunda perspectiva, dá-se ênfase aos significados do que se escreve e lê. Há toda uma história de redução do processo de alfabetização à aquisição do código da escrita – aquilo que se repete nas relações som/grafema, para só depois emergir a preocupação com os sentidos. Velhas cartilhas de alfabetização estão aí para comprovar este movimento que vai da letra ao sentido. Mas há alguns anos a preocupação com os sentidos passou a ter predominância. Desde Paulo Freire e a escolha dos temas geradores 13, dos quais emergiam as palavras usadas para a aquisição do código, mas palavras prenhes de sentido político, os estudiosos da alfabetização têm dedicado especial atenção ao fato de que ao usarmos a língua falada não estamos preocupados com os sons discretos que a compõem, mas com os sentidos. As crianças, no processo de aquisição da linguagem, não aprendem primeiro os sons da língua para depois falarem, mas falando tomam consciência do contínuo discretável dos sons [fones] e mais tarde deles extraem também o sistema fonológico da língua. Seguindo este princípio de que os sentidos são mais importantes do que as unidades não significativas – sons, fonemas, grafemas – muito recentemente algumas escolas ou redes de ensino têm experimentado alfabetizar a partir do convívio com material escrito e seus significados. Isto não quer dizer que nelas tenha desaparecido a preocupação com 13
Que são geradores, o que significa que não se fica neles durante o processo. Se o cotidiano fornece os temas, isto não quer dizer que o processo de análise do cotidiano se restrinja ao senso comum, não demande conhecimentos, abstrações e tudo aquilo de que dispomos na herança cultural. Tem sido muito comum esquecer este aspecto gerador a partir do conhecido, especialmente entre aqueles que imaginam e desejam um processo escolar organizado a partir da herança cultural (esquecendo quem seleciona desta os temas e conhecimentos que a escola deve distribuir!). Obviamente é mais fácil partir do já-dado, selecionar o desejado, recortá-lo, seriá-lo, planejá-lo e controlá-lo no processo de ensino, subordinando a este a aprendizagem. Se a visada é da aprendizagem, é esta que demandará, e sempre demanda, o acesso ao já-dado segundo sua própria dinâmica. O ensino é uma demanda do aprendiz e de sua curiosidade. E isto não significa que o educador é mero testemunha da aprendizagem, mas seu mediador, aquele que traz o desconhecido e faz avançar a aprendizagem.
a relação fonema/grafema durante este processo, e que a compreensão desta relação não se faça com intervenções contínuas pelas mediações do professor. Somente se reconhece que esta relação fonema/grafema não conduz todo o processo. São estas experiências diferenciadas, que aceitam por princípio que é preciso o convívio com a escrita para dela apropriar-se que têm merecido as maiores críticas. Entre nós, o construtivismo teve mais larga aceitação. Segundo Soares (2004), esta escola reduziu o processo de aquisição da língua porque centrou o olhar na criança, nos processos de aprendizagem infantil (dimensão psicológica), e deixou de se preocupar com a dimensão linguística da alfabetização, com os aspectos fonéticos e fonológicos: ... dirigindo-se o foco para o processo de construção do sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza do objeto de conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto lingüístico constituído quer se considere o sistema alfabético quer o sistema ortográfico, de relações convencionais e freqüentemente arbitrárias entre fonemas e grafemas. Em outras palavras, privilegiando a faceta psicológica da alfabetização, obscureceu-se sua faceta lingüística – fonética e fonológica (SOARES, 2004, p. 11). Independentemente de concordar com as concepções de língua escrita que subjazem ao construtivismo de Emília Ferreiro e colaboradores, a afirmação de que a faceta lingüística fica obscurecida é um tanto surpreendente, pois até mesmo as etapas de evolução da escrita que a criança supostamente re-percorreria em suas hipóteses se estabelece com base na natureza lingüística da escrita! Também os processos de mediação do professor nas relações do aluno com a escrita implicam presença e intervenção (e não mero testemunho). Mediar implica ajudar, estar presente no processo de desenvolvimento. Certamente, e aqui a diferença é fundamental, a mediação difere do método porque não defende que todos aprendem o mesmo, na mesma seqüência, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Defende-se intervenção sistemática, contínua, presente, com base no processo de aprendizagem e não com base na organização metodológica e linear concebida a partir das características do que é estável na língua.
É preciso salientar: qualquer que tenha sido a teoria pedagógica adotada por aqueles que estavam/estão experimentando alfabetizar a partir da porta de entrada dos sentidos, são poucas as escolas públicas brasileiras que enveredaram por este caminho 14. A permanência das cartilhas de alfabetização e de seus métodos mostra que a maioria das escolas tem preferido entrar pelo domínio ‘técnico’ do alfabeto para depois exercitar a capacidade de compreensão e interpretação, ainda que o professor afirme ser ‘construtivista’,
‘alfabetizar
dentro
do
letramento’,
trabalhar
com
‘gêneros
diversificados’, etc. Mesmo porque alfabetizar com base no convívio com material escrito dá muito mais trabalho ao professor e à escola, cujas condições – e aqui estou pensando nas condições de ambos, a escola e o professor - sabidamente, são precárias. Esta alfabetização com base nos sentidos adquire imediatamente cunho político, porque não discutimos grafemas, mas sentidos. Reduzir a alfabetização à “aprendizagem da técnica, domínio do código convencional da leitura e da escrita e das relações fonema/grafema, do uso dos instrumentos com os quais se escreve” é desvestir o processo de alfabetização de todo e qualquer cunho político. Como se a técnica fosse neutra e como se seu uso – os sentidos que faz circular – fosse independente de interesses sociais. Infelizmente, aqui se encontra a razão política da importância do conceito de letramento. E sob dois aspectos: a alfabetização é ‘reinventada’ como uma atividade técnica (onde interpretação, a segunda parte da adição das definições de leitura e escrita, não passa de reconhecimento das significações e não construção de um sentido); e cada alfabetizado (mas lembremos, não é preciso ser alfabetizado para estar no estado ou condição de letrado...) adequar-se-á ao nível de uso da leitura e da escrita segundo as exigências sociais que lhe são impostas. Em outras palavras: domínio de uma técnica e adequação na resposta ao solicitado no mundo existente.
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Consideremos o sucesso dos pacotes pedagógicos do estiolo ALFA e BETO que estão presentes nas redes de ensino. Culpabilizar o construtivismo ou experiências esporádicas de algumas escolas públicas pelo fracasso na alfabetização e defender um método de alfabetização – seja ele qual for - para resolver a parte ‘técnica’ do processo de aquisição da escrita é tapar o sol com a peneira. Os métodos sempre estiveram e estão nas escolas. Apenas para citar um exemplo: a rede pública estadual de Sergipe comprou e introduziu no sistema o programa “Alfa e Beto”, “Se Liga” e “Acelera” há mais de sete anos... O primeiro deles seguramente um método fônico de alfabetização, ainda que seus autores apresentem seu material como algo inovador. Aliás, não é de estranhar que as redes públicas comprem estes pacotes pedagógicos. Eles têm como seus propagadores os empresários, unidos todos pela educação...Cfe. Torres e Jesus (2008).
Agora se tranqüiliza a escola e a manutenção do status quo desta sociedade: há o que ensinar nos primeiros anos de escolaridade: uma técnica (e há um método a ser implantado, o método fônico15) e um sentido (o reconhecimento do já dado, do previsto). Ler e escrever jamais seriam revolucionários nesta cidade do letramento ou letramentos, já que este prevê de antemão o lugar social que cada qual deve ocupar – qualquer exceção pode ser inadequada, quer sejam uma leitura e uma escrita para mais (política e crítica), quer sejam uma leitura e uma escrita para menos (escrever com erros ou não compreender instruções, avisos, faturas, contas, receitas etc gêneros discursivos tão presentes no neotecnicismo das seqüências didáticas de ensino dos gêneros discursivos). Enfim Tanto do ponto de vista da definição do conceito – sua gaseificação – quanto do ponto de vista das conseqüências políticas que o letramento introduz, parece que o conceito não ajuda a melhorar nossa compreensão dos processos de aquisição da língua escrita. Linguisticamente “ler e escrever é aprender a codificar e a decodificar” somente para aqueles que excluem da linguagem sua razão de ser: os sentidos que mobilizam o homem, desde suas necessidades mais comezinhas até suas necessidades de rupturas com o já estabelecido, inclusive com a língua. Neste mundo de letramento aqui recusado, O ambiente mágico está sendo intimidado a desaparecer. Não há mais rena verde no Forest Park. Os anjos estão deixando todas as alcovas no mundo inteiro, o ambiente no qual unicórnios, pé-grandes e renas verdes existem está cada vez mais ameaçado, como as florestas tropicais e as criaturas que nela vivem e respiram. Quando as florestas são derrubadas para dar lugar a motéis, Hiltons e MacDonald’s, morre também a magia do universo. (Burroughs, 2007 : 26). Ao circularmos pelos sentidos e através deles aprendermos, ajudados pelos que já sabem, o que se repete, que reconhecemos para imediatamente esquecer em benefício da compreensão do que se lê ou da exposição das idéias quando se escreve, estaremos 15
Estou apontando para a retomada o método fônico com base na quantidade do tipo de perguntas que apareceram na Provinha Brasil. São perguntas para alunos acostumados ao método fônico e como os professores entendem os recados implícitos nas políticas de avaliação, certamente para este método migrará ensino brasileiro.
investindo muito mais no conflito entre o dado e as respostas imprevistas do que na adequação às situações de demandas. Talvez este seja precisamente o “exercício de ser criança” proibido por nossa sociedade, e se é proibido, é porque nele vale a pena investir. ... A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito Porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. (Manuel de Barros. Exercícios de Ser Criança)
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