África à vista Dez estudos sobre o português escrito por africanos no Brasil do século XIX
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Universidade Federal da Bahia Reitor Naomar de Almeida Filho
Vice-reitor Francisco José Gomes Mesquita
Editora da Universidade Federal da Bahia Diretora Flávia M. Garcia Rosa Conselho Editorial Ângelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas
Suplentes Alberto Brum Novaes Antônio Fernando Guerreiro de Freitas Armindo Jorge de Carvalho Bião Evelina de Carvalho Sá Hoisel Cleise Furtado Mendes Maria Vidal de Negreiros Camargo
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Tânia Lobo Klebson Oliveira (organizadores)
África à vista Dez estudos sobre o português escrito por africanos no Brasil do século XIX
Salvador Edufba/2009
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©2009 by autores Direitos para esta edição, cedidos à Editora da Universidade Federal da Bahia. Feito o depósito legal.
Concepção da capa: Lis Machado Execução e arte final: Fábio Ramon Revisão: Organizadores
Sistema de Bibliotecas - UFBA África à vista / Tânia Lobo, Klebson Oliveira (Organizadores). - Salvador : EDUFBA, 2009. 367 p. ISBN 978-85-232-0603-1
1. Língua portuguesa - Brasil - Africanismos - Coletânea. 2. Línguas africanas Brasil - Coletânea. 3. Lingüística histórica - Brasil - Coletânea. I. Oliveira, Kleber. Lobo, Tânia. CDD - 469.798
Editora afiliada à:
EDUFBA Rua Barão de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina 40.170-115 Salvador-Bahia-Brasil Telefax: (71) 3283-6160/6164/6777 edufba@ufba.br www.edufba.ufba.br
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 6 (ou sobre como a África, no Brasil, avista a escrita) Klebson Oliveira & Tânia Lobo Capítulo 1 50 Tópico Edivalda Araújo Capítulo 2 70 Sujeito Norma Almeida & Zenaide Carneiro Capítulo 3 90 Complementos verbais diretos e dativos Rerisson Cavalcante & Cristina Figueiredo Capítulo 4 138 Apagamento de Pronomes clíticos de forma reflexiva Regina Lúcia Bittencourt Capítulo 5 174 Ordem dos clíticos Charlotte Galves & Tânia Lobo Capítulo 6 208 Relativas Ilza Ribeiro & Cristina Figueiredo Capítulo 7 241 Articulação de orações e emprego de conectores interfrásticos Therezinha Barreto Capítulo 8 255 Concordância nominal Klebson Oliveira, Juliana Soledade & Verônica de Souza Santos Capítulo 9 317 Concordância verbal Alan N. Baxter Capítulo 10 338 Variação ter/haver Rosa Virgínia Mattos e Silva & Américo Venâncio Lopes Machado Filho POSFÁCIO 352 Charlotte Galves
INTRODUÇÃO (OU SOBRE COMO A ÁFRICA, NO BRASIL, AVISTA A ESCRITA) Klebson OLIVEIRA (UFBA – PROHPOR) Tânia LOBO (UFBA – PROHPOR)
A formação histórica do português brasileiro deu-se em complexo contexto de contato entre línguas. Dentre as diversas situações de contato havidas, a do português com línguas africanas assume maior relevância por ter sido generalizada no tempo e no espaço. Africanos e afro-descendentes, no período que se estende do século XVII ao século XIX, correspondem juntos a cerca de 60% da população brasileira (cf. MUSSA, 1991). Contudo, a escrita da história lingüística deste que é o mais expressivo segmento formador da população brasileira era tarefa que se colocava no plano de uma reconstrução quase que exclusivamente a partir de ‘indícios’, uma tarefa não para historiadores, mas para arqueólogos da língua portuguesa (cf. MATTOS E SILVA, 2002). No ano de 2000, Oliveira (2003 e 2006) localizou na Sociedade Protetora dos Desvalidos – irmandade negra fundada tardiamente em Salvador no ano de 1832 – um expressivo e raro acervo de documentos escritos por africanos e negros brasileiros forros. Tais documentos são de fundamental importância para a reconstrução da história lingüística brasileira por, pelo menos, dois aspectos:
1. São
fontes
que,
se
supõe,
devam
permitir
uma
reconstrução
significativamente mais aproximada das chamadas normas vernáculas do português brasileiro. 2. Desvelam, nas investigações sobre a história da cultura escrita no Brasil, um campo de estudos ainda quase por explorar: o dos caminhos trilhados por negros livres ou libertos, integrantes de grupos sociais subalternos, para aprenderem a ler e escrever.
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Os dois aspectos acima referidos são os pontos que merecerão destaque, neste capítulo introdutório do África à vista, livro, cujo objetivo principal é a divulgação de dez estudos sobre a morfossintaxe de um conjunto de documentos – sobretudo atas – , escritos em português por africanos na Bahia do século XIX1. 1. A IMPORTÂNCIA DA LOCALIZAÇÃO DE TEXTOS ESCRITOS POR AFRICANOS E AFRO-DESCENDENTES PARA A ESCRITA DA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO Calcula-se
que,
quando
da
chegada
dos
portugueses
ao
Brasil,
aproximadamente 1.175 línguas (cf. RODRIGUES, 1993) seriam faladas pela população indígena. Embora tenham aportado no Brasil em 1500, o início do processo de transplantação da sua língua ocorrerá, sensivelmente, a partir da década de 1530, quando o rei D. João III – por isso mesmo chamado de o colonizador – traça, com a divisão do país em Capitanias Hereditárias, uma política para povoar e administrar as novas terras. Também na década de 1530, dá-se início ao tráfico de escravos que para aqui trará falantes de, aproximadamente, 200 a 300 línguas (PETTER, 2006). Passados, hoje, mais de 500 anos de muitas e diversas histórias de contato lingüístico, não há língua africana sendo falada como nativa por nenhuma comunidade lingüística brasileira, sobrevivem cerca de 150 a 180 línguas indígenas, faladas por uma população de aproximadamente 260.000 índios, e é a esmagadora maioria da população brasileira falante nativa de uma língua que é continuadora histórica da língua portuguesa e a que a lingüística brasileira contemporânea tem designado de português brasileiro. Como se deu a transplantação da língua portuguesa para o Brasil; como se deu a sua implantação no território brasileiro; como se deu a formação do português brasileiro e, finalmente, como se deu, em paralelo ao processo de formação, a
Este capítulo introdutório é constituído de duas partes. A primeira, escrita por Tânia Lobo, integra o artigo “Escrita liberta: letramento de negros na Bahia do século XIX”, produzido em co-autoria com Klebson Oliveira e publicado em CASTILHO et alii (2007, p. 437-460). A segunda é parte da Tese de Doutorado de Klebson Oliveira, defendida no ano de 2006.
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generalizada difusão do português brasileiro no território nacional são questões fundamentais para uma história lingüística do Brasil Como historiadores da língua portuguesa têm respondido às questões acima referidas é o que se discutirá a seguir. Segundo Teyssier (1997 [1982], p. 94-95),
Durante muito tempo, o português e o tupi viveram lado a lado como línguas de comunicação. Era o tupi que utilizavam os bandeirantes nas suas expedições. Em 1694, dizia o Pe. Antônio Vieira que “as famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios e a dos portugueses a vão os meninos aprender à escola”. Na segunda metade do século XVIII, porém, a língua geral entra em decadência. Várias razões contribuem para isso, entre as quais a chegada de numerosos imigrantes portugueses seduzidos pela descoberta das minas de ouro e diamantes e o Diretório criado pelo marquês de Pombal em 3 de maio de 1757, cujas decisões, aplicadas primeiro ao Pará e ao Maranhão, se estenderam, em 17 de agosto de 1758, a todo o Brasil. Por elas proibia-se o uso da língua geral e obrigava-se oficialmente o da língua portuguesa. A expulsão dos jesuítas, em 1759, afastava da colônia os principais protetores da língua geral. Cinqüenta anos mais tarde, o português eliminaria definitivamente esta última como língua comum, restando dela apenas um certo número de palavras integradas no vocabulário português local e muitos topônimos.
Em Castro (1992, p. 31-32), lê-se:
Perante a radical eliminação da língua no Brasil e a imposição do ensino do português segundo a gramática de Lobato, quem hesitará em imputar a responsabilidade pela homogeneidade lingüística brasileira a gesto político do Marquês de Pombal?
Finalmente, Mattos e Silva (1993, p. 83) afirma:
A partir da segunda metade do século XVIII, uma série de fatores de história externa conduzem à definição do Brasil como país majoritariamente de língua nem indígena nem africana. O multilingüismo menos ou mais generalizado, a depender da conjuntura histórica local nos séculos anteriores, localiza-se e abre, então, o seu caminho o português brasileiro. Em 1775, com o Marquês de Pombal, se define explicitamente para o Brasil uma política lingüística e cultural que fez mudar de rumo a trajetória que poderia ter levado o Brasil a ser uma nação de língua majoritária indígena, já que os dados históricos informam que uma língua geral de base indígena ultrapassara de muito as reduções jesuíticas e se estabelecia como língua familiar no Brasil eminentemente rural de então. O Marquês define o português como língua da colônia, conseqüentemente obriga o seu uso na documentação oficial e implementa o ensino leigo no Brasil, antes restrito à Companhia de Jesus, que foi expulsa do Brasil.
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O propósito da transcrição das três citações acima não é outro senão destacar a centralidade atribuída ao Marquês de Pombal – ou melhor, ao período pombalino, dito de remodelação iluminista – na definição da história lingüística do Brasil. Nas citações acima, evidenciam-se duas relações de causalidade (cf. LOBO, 2001, p. 63):
a. em primeiro lugar, considera-se que a política lingüística traçada pela metrópole exerceu um papel fundamental favoravelmente à definição do português como língua hegemônica no Brasil; b. em segundo lugar, considera-se que o modelo de ensino adotado, além de ter sido um dos fatores responsáveis pela consolidação do português como língua dominante, teria ainda conduzido à homogeneização do português brasileiro.
Se se admitir que, para ter sido eficaz, a política lingüística pombalina devesse ter estado sob a tutela de um sistema eficaz de escolarização, não será difícil concluir que os esforços nesse sentido terão sido quase inócuos, devendo-se buscar outras explicações para a consolidação do português como língua hegemônica no Brasil. Conforme Freire (1993), historiadora da educação, para o longo período que se estende do século XVI a 1850, é mais apropriado falar-se da história do analfabetismo, e não da alfabetização no Brasil. Ainda segundo a mesma historiadora, para o período pombalino, em particular, houve um retrocesso, uma vez que o esfacelamento do sistema escolar jesuítico não deu lugar a um sistema alternativo e eficaz de ensino, com o agravante de que, no período de elaboração das reformas educacionais pombalinas, período que se estende de 1759 a 1772, simplesmente deixou de haver escolas no Brasil. A questão da língua geral ou das línguas gerais, foco central das políticas pombalinas, é, reconhecidamente, um dos temas que ainda hoje demandam muita investigação. Na literatura dedicada à história lingüística do Brasil, a expressão língua geral é polissêmica, sendo empregada : a) para designar a língua falada pelos tupinambás na costa no século XVI – o que se convencionou chamar de língua geral da costa; b) para designar a língua falada pelos kariris, supondo-se que essa língua, 9
em área interiorana do Nordeste, no século XVII, teria, assim como o tupinambá na costa, no século XVI, sido a língua de contato entre portugueses e índios; c) para designar a língua indígena codificada gramaticalmente pelos jesuítas no século XVI; d) para designar um possível pidgin ou crioulo formado a partir do contato entre portugueses e índios e índios falantes de línguas diversas ou mesmo formado anteriormente à chegada dos portugueses e e) finalmente, apenas para designar duas línguas de origem indígena – a primeira, de origem tupiniquim, falada de início em São Paulo e posteriormente – tendo sido levada pelas bandeiras – em Minas Gerais, no Sul de Goiás, no Mato Grosso e no Norte do Paraná; a segunda, de origem tupinambá, falada de início no Pará e no Maranhão, e, posteriormente, na Amazônia, acompanhando a expansão portuguesa na área. A última das acepções referidas é aquela a que, de acordo com Rodrigues (2004), se deveria limitar o emprego da expressão lexicalizada língua geral, respeitando-se o sentido bem definido que a expressão teria adquirido no Brasil, nos séculos XVII e XVIII, quando seu uso teria estado marcadamente associado a situações em que “a miscigenação em grande escala de homens europeus com mulheres indígenas teve como conseqüência a rápida formação de populações mestiças, cuja língua materna foi a língua indígena das mães e não a língua européia dos pais” (p. 01). Tais situações se teriam limitado a São Paulo, no século XVI, e ao Pará e Maranhão, no século XVII. Assim, propõe que a expressão língua geral designe um produto especial de uma particular história de contato lingüístico que se observou na América do Sul – além do Brasil, também no Paraguai –, produto este formado em condições nitidamente distintas das que permitiram a formação de línguas pidgin e crioulas, já que a transmissão lingüística, nas comunidades mestiças referidas, se teria feito sem interrupção, sem mudança de língua. Não é propósito deste texto discutir a pertinência da proposição que distingue língua geral como uma classe especial de línguas resultante de contato lingüístico, e que seria distinta de outras, tanto do ponto de vista sociolingüístico, quanto do ponto de vista estrutural. Antes, interessa aqui ressaltar o fato de que, se o uso da expressão língua geral deve limitar-se aos dois contextos referidos por Rodrigues, parece ser pouco provável que, em meados do século XVIII, uma língua geral ‘rivalizasse’ com 10
a língua portuguesa pela hegemonia lingüística no Brasil. Note-se que o Diretório do Marquês de Pombal, datado de 3 de maio de 1757, proibindo o uso da língua geral e obrigando oficialmente o da língua portuguesa, se aplicou primeiro ao Maranhão e ao Pará; só posteriormente, em 17 de agosto de 1758, é que as decisões se estenderam ao restante do Brasil (TEYSSIER, 1997 [1992], p. 95). No texto de 1993, de Mattos e Silva, antes referido, diferentemente dos dois outros autores citados – Teyssier e Castro –, que se ativeram à política pombalina, a autora também indica, ainda que sem uma ênfase especial, a demografia diacrônica brasileira como um fator relevante a se considerar na elucidação da questão em foco – ou seja, a questão da generalizada difusão da língua portuguesa. Embora discordando da idéia de que a história das línguas humanas seja uma história essencialmente demográfica, já se mostrava então tocada por Mussa (1991), no sentido de inferir correlatos lingüísticos a partir de painel reconstitutivo da história da formação da população brasileira. Assim, em texto de (2004 [2000]), são justamente argumentos extraídos de dados de demografia histórica – aliados a outros extraídos de dados de mobilidade geográfica e social e dados da história da escolarização – que passarão a embasar a tese de que africanos e afro-descendentes não apenas foram os principais difusores da língua portuguesa no Brasil, mas foram também os formatadores da sua variante social majoritária, o chamado português popular brasileiro. Ou seja, a larga predominância de africanos e seus descendentes no conjunto da população do Brasil colonial e pós-colonial, a presença constante de escravos nas grandes frentes de economia da Colônia, a mobilidade geográfica dos escravos em decorrência da vida econômica de seus senhores e da economia brasileira e os inúmeros e multifacetados papéis pelos escravos desempenhados, tanto nos centros urbanos, como rurais do país, esses seriam os fatores responsáveis pela generalizada difusão do português popular brasileiro; quanto à sua particular formatação, teria decorrido do fato de esse contingente de africanos e afrodescendentes ter adquirido o português em condições imperfeitas. A mudança lingüística, objeto central da lingüística histórica, opera-se no plano da fala. Lidam, pois, os historiadores das línguas particulares com o problema de terem de reconstruir a história das línguas a partir de textos escritos – textos que, 11
por suposto, abstraem a variação e buscam não revelar as mudanças que se operam nas línguas. Coloca-se, assim, para a reconstrução da história do português popular brasileiro, o problema das fontes, ou seja, o problema de se localizar, para o passado, textos escritos por indivíduos pouco letrados, pertencentes a estratos sociais subalternos e, mais centralmente, coloca-se – ou se colocava – o tão proclamado problema da inexistência de textos escritos por africanos e afro-descendentes durante o período da escravidão. Em artigo de 2001, “A variedade lingüística de negros e escravos: um tópico da história do português no Brasil”, Alkmim assim se manifesta sobre o problema referido:
“Infelizmente ainda não se descobriu nenhum documento do linguajar que eles falavam no Brasil, nos primeiros séculos”. Essa afirmação de Serafim da Silva Neto a respeito da ausência de documentação sobre a fala de negros e escravos no Brasil colonial é bem conhecida. E é de fato impressionante a falta de registros históricos sobre o tema deste trabalho: parece ter havido uma conspiração por parte daqueles que conviveram com a numerosa população de origem africana trazida para o Brasil, a partir do século XVI, para trabalhar como mão-de-obra escrava. Não faria sentido nenhum reclamar da ausência de documentação sistemática, de registros organizados e consistentes.
A falta de sentido de se ´reclamar de ausência de documentação sistemática, de registros organizados e consistentes’
a que se refere a autora, se explicaria,
certamente, pelo fato de a escolarização de negros escravos ter sido totalmente proibida no Brasil durante a escravidão. Não só entre lingüistas, mas também entre historiadores, se revela, se não um total, um quase total desconhecimento de documentos escritos por negros. Mattoso (1990, p. 113), ao pronunciar-se sobre o assunto, afirma:
Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a escravos transgridem as regras estabelecidas e são poucos. Eis porque o escravo brasileiro é um desconhecido, sem arquivos escritos. Faltam-nos as “Lembranças” ou “Memórias de Escravos”, tão numerosas no Sul dos Estados Unidos, que poderiam ter contado com toda sua carga afetiva a vida desses homens e mulheres no cativeiro2.
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Grifo nosso.
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Em Reis (1997, p. 12), porém, já se lê o seguinte:
Os estatutos das confrarias, chamados compromissos, e outros documentos constituem uma das poucas fontes históricas da era escravocrata escrita por negros ou pelo menos como expressão da sua vontade. As irmandades [negras], aliás, produziram muita escrita3.
Para Reis, não seria o escravo brasileiro ´um desconhecido, sem arquivos escritos’. Contudo, ao se referir aos acervos das irmandades negras, não dá uma indicação precisa quanto ao fato de os documentos que delas se preservaram terem sido efetivamente escritos por negros ou serem apenas expressão da sua vontade. Finalmente, no brasilianista Schwartz (2001, p. 47-48), colhe-se a informação de que existiriam escritos ou depoimentos de escravos ou ex-escravos, embora raros:
Ao contrário da situação dos Estados Unidos, onde existem inúmeras narrativas de escravos e onde foram criadas, com o patrocínio do governo, coleções de testemunhos de escravos que depois analisadas, os escritos ou depoimentos de escravos ou ex-escravos são raros no Brasil. Mas existem alguns (...). Entre os mais interessantes desses depoimentos de escravos, figura a longa entrevista realizada em 1982 por Maestri Filho (...) num hospital de Curitiba com Mariano Pereira dos Santos, ex-escravo.
Tendo sido os negros escravos proibidos de freqüentar escolas durante todo o período da escravidão, o seu letramento terá, necessariamente, para o referido período, ou ocorrido em espaço extra-institucional ou, se em espaço institucional, ou outro(s), mas não a escola. A propósito, não se pode deixar de mencionar aqui que também para as mulheres, no período colonial, não havia ensino institucionalizado. A casa, os recolhimentos e os conventos foram os espaços em que, até 1827, com a primeira lei de instrução pública, se determinou a criação das escolas de primeiras letras ou pedagogias, único nível do ensino escolarizado a que as meninas podiam ter acesso. Ainda a propósito de negros e mulheres, também não se pode deixar de mencionar a coincidência de dois depoimentos – o do viajante francês Le Gentil de La Barbinais, no século XVIII, referindo-se às religiosas do Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, e o do bispo D. Azeredo Coutinho, no século XIX, referindo-se às moças
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Grifo nosso.
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do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, em Recife –, depoimentos que revelam uma surpreendente e por eles recriminada, proximidade entre a fala de mulheres iletradas ou semiletradas da elite e a fala dos escravos (cf. LOBO, 2001, p. 162-165). A história do letramento de negros deve responder a questões diversas, tais como onde aprenderam a ler e escrever; quando aprenderam a ler e escrever; quem os ensinou a ler e escrever; por que aprenderam a ler e escrever; como liam e escreviam; o que liam e escreviam; para quem liam e escreviam; que tipos de textos liam e escreviam e, mais centralmente, a questão de saber quem aprendeu a ler e escrever. Fundamentalmente, o que se pretende, a seguir, é caracterizar os seis africanos autores dos textos analisados nos capítulos subseqüentes. Para tal, dois aspectos serão priorizados: em primeiro lugar, o levantamento de indícios que permitam identificar as vias para a alfabetização e letramento de negros – escravos, livres ou libertos – e, em segundo lugar, a caracterização das irmandades negras – em particular a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de que os referidos africanos são fundadores – como sendo, muito provavelmente, as principais agências de alfabetização e letramento de negros no Brasil durante o longo período da escravidão. 2. AFRICANOS, NEGROS LIVRES E LIBERTOS NO MUNDO DA CULTURA ESCRITA – BAHIA, SÉCULO XIX São 6 os indivíduos que deixaram testemunhos autógrafos em que se esteiam os trabalhos do presente livro. Se Gregório Manuel Bahia, José Fernandes do Ó, Luís Teixeira Gomes, Manuel da Conceição, Manuel do Sacramento e Conceição Rosa e Manuel Vítor Serra são africanos, nada mais natural pensá-los como escravos e, por conseguinte, que podem ter se apropriado da faculdade das letras ainda enquanto indivíduos mantidos sob o cativeiro. Desse modo, inevitavelmente, há de se buscarem indícios sobre como escravos se apropriaram da leitura e da escrita em tempos em que, do ponto de vista legal, não podiam freqüentar instituições formais de ensino, restritas até mesmo para brancos. Avistem-se, inicialmente, as palavras da historiadora Kátia Mattoso (2001 [1982], p. 113): 14
A educação escolar do escravo é totalmente proibida no Brasil e os próprios forros não têm o direito de freqüentar aulas. Esta proibição será mantida durante toda a época da escravidão, mesmo durante a segunda metade do século XIX, em plena desagregação do sistema servil. Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a escravos agridem as regras estabelecidas e são poucos. Eis porque o escravo brasileiro é um desconhecido, sem arquivos escritos.
Essa mesma historiadora, em outro estudo (1992, p. 200-201), analisou o primeiro censo oficial feito para o Brasil, datado do ano de 1872, mas lhe interessaram somente os dados concernentes à Bahia. A população escrava no Estado estava à volta de 176.824. Desses, 62 sabiam ler e escrever. Quanto ao contingente masculino – 98.094 indivíduos – 47 foram declarados como alfabetizados; só três, contudo, viviam na cidade de Salvador (na Paróquia do Pilar), os demais estavam assim localizados: 4 em Camamu, 2 em Caravelas, 1 em Viçosa, 2 em Entre Rios, 1 em Purificação, 1 em Itapicuru, 1 em Pombal, 1 em Santa Isabel do Paraguaçu, 3 em Caetilé, 2 em Monte Alto, 1 em Rio de Éguas, 1 em Xique-Xique, 1 no distrito de Cachoeira, 3 no de Santo Amaro, 7 no de Tapera e 13 no de Nazaré. Entre as mulheres escravas – recenseadas em torno de 78.730 – 15 eram alfabetizadas: 1 em Itapecuru, 2 em Xique-Xique e 12 no distrito de Nazaré. É nesse último local, como se pode observar, que se concentrava o maior número de escravos letrados: treze homens e doze mulheres. Seriam escravos de um mesmo dono? Isso o censo não informa, mas Mattoso (1992, p. 201) assevera que o aprendizado da leitura e da escrita, pelo menos para esses 25 privilegiados, se fez na casa do senhor. Andrade (1988, p. 146) observa, em sua pesquisa sobre 6.974 escravos urbanos da cidade de Salvador, entre o período de 1811 e 1860, que apenas oito apresentaram, ao lado dos seus nomes, a observação de que sabiam ler, escrever e contar, portanto menos de 1% da população escrava estudada pela historiadora. A mesma situação identificada por Costa (1997), também para o século XIX, em São Paulo. Segundo ela, que trabalhou com diversas fontes referentes a escravos, era um ou outro que sabia ler e escrever. Aliás, quando isso acontecia, os jornais que notificavam fugas de escravos ressaltavam tal ‘qualidade’. Vale a pena ler dois desses anúncios transcritos por Costa (1997, p. 191):
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Fugiu ontem da casa do Sr. Savério Rodrigues Jordão, um escravo de nação de nome Augusto, cinqüenta anos de idade, alto, testa larga e bem barbeado. Sabe ler e escrever e é bem falante. É ótimo cozinheiro de forno e fogão. Quem o apreender e o levar a seu senhor será gratificado. (Diário de São Paulo de 12 de agosto de 1870). Gratifica-se com 100$000 a quem entregar a Estanislau de C. P. o escravo Inácio de 30 anos de idade, mais ou menos, bem preto, barbado, boa dentadura, rosto comprido, nariz afilado, altura regular, ladino, olhos avermelhados, gosta de tocar viola, sabe ler, é natural da Província da Bahia. (A Província de São Paulo de 15 de julho de 1879).
Ressaltar, ao lado dos nomes e características físicas dos escravos, o fato de que sabiam ler ou escrever, ou, ainda, as duas habilidades, parece mostrar que, para a própria sociedade de então, havia, de certa forma, a consciência de que isso era raro, ou seja, diante do mar de analfabetismo em que estavam mergulhados os escravos, quando ocorriam casos excepcionais de algum que sabia ler e escrever, isso o individualizava perante seus pares e servia-lhe, por conseguinte, como marca identificadora. Se há indícios de que escravos se alfabetizassem – poucos, que se registre – e, como já se informou, provavelmente não pelos meios formais, quais teriam sido os caminhos percorridos por essa parcela da população que, de alguma maneira, conseguiu alguma habilidade na escrita e na leitura? Discutem-se, a seguir, algumas hipóteses.
2.1. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO DE ESCRAVOS Um provável caminho foi apontado pela historiadora Kátia Mattoso (1992), quando diz que a aprendizagem da leitura e da escrita, por parte de escravos, tenha, talvez, se efetuado na casa do senhor. Portanto, para uma reconstrução do caminho percorrido por escravos para se alfabetizarem, tem que ser levada em consideração a sua relação com as famílias dos senhores. Trata-se, como é óbvio, de percurso difícil de ser reconstruído, uma vez que essas relações, estabelecidas dentro dos casarios, não deixaram, quanto ao aspecto que se busca, registros em outros lugares da sociedade passada. Os estudos de história social, entretanto, parecem deixar claro que as relações mais ‘afetuosas’ entre os escravos e as famílias dos senhores tinham mais chances de se estreitar com os chamados escravos domésticos, ou seja, aqueles que 16
ocupavam lugares de trabalho dentro dos domicílios. Tais relações seriam mais raras com os escravos urbanos, uma vez que viviam a trabalhar nas ruas, em várias atividades comerciais, como ambulantes, carregadores etc., apenas repassando o ganho obtido ao seu dono, e também com os escravos rurais, porque as atividades agrícolas não possibilitavam contatos mais diretos entre eles e os senhores. Desse modo, dos grupos de escravos mencionados – os domésticos, os urbanos e os rurais –, foram os primeiros, talvez, os mais prováveis a estabelecer relações, além de trabalhistas, com a família do senhor. Mesmo os que se denominam como escravos domésticos não podem ser considerados como um todo homogêneo. Guarde-se que, mesmo estando todos na esfera do labor doméstico, havia cargos, por assim dizer, mais nobres que outros. Isso, ao que parece, se refletia nas relações entre senhores e escravos. Explicando melhor: dentro do mesmo espaço de convívio, um carregador de dejetos não tinha o mesmo ‘prestígio’ que uma mucama ou um escravo tido como ‘braço direito’ de um senhor. Portanto, não será desarrazoado considerar que alguns postos possibilitariam um contato mais afetivo com a família senhorial e, conseqüentemente, que a seus ocupantes fossem, por causa disso, facultada a oportunidade de alfabetização, mesmo que rudimentar. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992, v. 1, p. 33) conta que, em sua casa, aliado ao trabalho desempenhado pelas escravas, sua mãe contava-lhes histórias para motivá-las no labor: “Minha mãe falava-lhes benevolamente, muitas vezes contandolhes histórias, quase sempre tiradas da Bíblia, em que era muito versada.” De sua parte, esse ato despertava nas escravas a vontade de ouvi-las freqüentemente:
...chamando eu, em certa ocasião, uma ex-escrava, há muito alforriada, para auxiliar as criadas de casa em um trabalho a que eu assistia, disse-me ela: - Porque vossemincê não conta uma história, como fazia Iaiá quando cosiam ao pé dela? Assim a gente não tinha sono nem preguiça de costurar. - E você lembra-se dessas histórias? Perguntei-lhe. - Ora se me lembro! Era a história de José de Egito, de Jó e outras, todas muito bonitas. E, fazendo-lhe algumas perguntas, vi não só que as guardava de memória, porém que as havia bem compreendido. (BITTENCOURT, 1992, v. 2, p. 33-34)
Despertado o desejo pela leitura, teria este se estendido para o escrever e ler por conta própria? E, se assim o fosse, a ‘bondosa’ mãe da escritora, tão afeiçoada a 17
seus escravos e, em conseqüência, muito repreendida por isso, respaldaria esses anseios? Nas suas memórias, Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992) não deixa pistas sobre o assunto. De qualquer modo, narra um episódio em que fica claro o peso da afeição por escravos que se alfabetizaram na Bahia do século XIX:
Como eu apresentasse sensível melhora na vista, escreveu minha mãe um alfabeto com letras grandes e bem vivas para ensinar. Uma mulatinha de minha idade, destinada a ser minha ama de quarto, foi minha companheira de estudo por julgarem que assim eu não me aborreceria. Lembro-me dela com saudades; chamava-se Felicidade e morreu aos dez anos. Muito afeiçoada a mim, era, apesar da raça africana, que tinha já muito longe, mais branca do que eu e até loura. Um dos luxos das moças ricas daquele tempo era ter uma criada de quarto de cor branca. (v. 2, p. 69-70)
Se se considerar que a população brasileira, em sua grande maioria, estava, naquela altura dos acontecimentos narrados pela escritora – 1853, uma vez que nascera em 1843 e a passagem em questão aconteceu quando contava com 10 anos –, mergulhada no analfabetismo, ser alfabetizada, sem dúvida, é que foi um luxo para Felicidade. E para tal, não concorreu apenas a afeição que a sua ama lhe tinha, mas também o distanciamento dos traços que pudessem lembrar a sua origem africana. A estima que aos escravos devotavam poderia ainda ser um elemento para satisfazer as expectativas que os próprios escravos construíam em relação aos seus senhores, configurando-se, segundo Oliveira (1992, p. 256), em uma espécie de pacto velado de que ambos tiravam proveito. Ao senhor, a obediência e os bons serviços dos seus subordinados; aos escravos, a alforria, a qualificação profissional ou, ainda, o reconhecimento no ‘mundo dos brancos’. Entretanto, ainda segundo a historiadora, algumas expectativas experimentadas pelos escravos, inclusive aquela em torno da alfabetização, acrescenta-se, não foram correspondidas e, quando puderam, externaram eles os seus ressentimentos. A análise de Oliveira (1992) encontra eco no caso do pardo José Teixeira, que, em 1807, quando foi inventariante de sua filha Maria José, declarou que não poderia assinar o inventário, porque seu exproprietário não tinha por ele nenhuma estima e nem lhe deu “criação de pardo, de forma que nem o mandou ensinar a ler e escrever, como sabiam ainda outros escravos negros crioulos criados com estimação”4. Ou seja: José Teixeira preenchia 4
Arquivo Público do Estado da Bahia. Série inventários, maço 672, set. 1807.
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apenas alguns pré-requisitos para que seu dono o mandasse aprender a ler e escrever – era pardo e dedicado –, mas lhe faltou um: a estima do seu senhor. Outro exemplo que parece demonstrar que o fator afeição poderia render ao escravo o ingresso no mundo das letras é inferido de um trecho do relatório do subdelegado de polícia, que acompanha a carta do escravo Timóteo, que se suicida na Salvador do ano de 18615: Passando a correr se lhe a roupa com que viera da rua, achou-se o bilhete, que remetto, e que prova que o suicídio estava premeditado a muito tempo por que tendo elle sido criado em casa dos Senhores com alguma liberdade, tendo até aprendido a ler, e devendo em praça publica tendo hoje a ultima, entendeo não dever passar á outro senhores.
A palavra liberdade, no contexto em que está sendo usada, poderia significar, talvez, algum afrouxamento da condição escrava, o que teria facultado a Timóteo a habilidade da leitura e da escrita. O subdelegado parece querer enfatizar que não se trata de um cativo como outros quaisquer, uma vez que ressalta ter sido ele criado na intimidade dos seus senhores. Amélia Rodrigues (1998), escritora que alcançou a segunda metade do século XIX, também manipulou a sua pena, no sentido de testemunhar que a tríade ‘bons serviços – afeição - alfabetização’ vigorava na Bahia de oitocentos. Na peça Fausta, drama em 4 atos, encenada no ano de 1886, a escritora revela a história do escravo Lúcio. Ao referir-se a si próprio, a personagem diz que foi criado como um filho, que o seu senhor tivera o capricho de alfabetizá-lo e instruí-lo. Eis o motivo por que Lúcio nunca sentiu em sua casa os rigores do cativeiro, nunca experimentou o peso da palavra escravo (RODRIGUES, 1998, p. 27). Em outro diálogo, na mesma peça, escreve a autora, mais adiante, sobre a personagem:
Nasci nesta casa, quase ao mesmo tempo em que nasceu o finado meu senhor, pai de D. Fausta. Minha mãe amamentou-o nos seios, repartiu com ele o leite que me devia caber. Crescemos juntos, brincamos como irmãos; o mestre que o ensinou a ele ensinou-me a mim, porque meu senhor, vendo que eu tinha algum talento, quis ter a fantasia de aproveitá-lo. (p. 46)
Arquivo Público de Estado da Bahia, Seção Colonial e Provincial, correspondências recebidas de subdelegados, maço 6234, 1861.
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Se se considera que o texto literário, em alguma medida, lê a realidade, o exsenhor de Lúcio não mandou alfabetizá-lo apenas porque vira no escravo algum talento. Certamente contou também o fato de que era “um amigo, um irmão prestimoso, dedicado até o sacrifício, fiel até o heroísmo” (RODRIGUES, 1998, p. 38). Os bons serviços do escravo parecem ter-lhe rendido uma contrapartida: o domínio da leitura e escrita. “Não há senhor mau para o escravo bom”, ensina a também escritora Anna Ribeiro de Goes Bittencourt (1992, v. 2, p. 74), contemporânea de Amélia Rodrigues, nas suas memórias. Ou seja, desde que se guiassem pelo caminho do dever, os castigos poderiam não existir, o peso da palavra escravo poderia não pesar, pelo menos na visão de Lúcio, e, para aqueles mais dedicados, alfabetizar-se poderia vir ‘incluído no pacote’. Com esses indícios, fortalece-se a hipótese de que um possível caminho para a alfabetização de escravos se deva às relações afetuosas que constituíram com a família dos senhores. Se o âmbito doméstico favoreceria, em alguns casos, a ascensão de escravos ao mundo da leitura e da escrita, disso resultam, é óbvio, diversos graus de contato entre esses escravos e as habilidades de ler e escrever. Essa história, sendo assim, apresenta-se multifacetada, constituída de inúmeras nuances. Se algum dia surgirem trabalhos que trilhem esse caminho, o que emergirá não será uma história, mas várias, tantas quantas forem os casos revelados. Outro indício foi dado por Andrade (1988, p. 149). Na sua pesquisa, já referida, quanto aos pouquíssimos escravos que sabiam ler e escrever, as fontes estudadas pela historiadora não se calaram completamente, como se nota, por exemplo, para o caso “Cândido, pardo, moço, que tem habilidade de caixeiro do trapiche e que sabe ler e escrever e contar, sem moléstia, avaliado em 900$000”. Como adverte Andrade, para o exemplo acima transcrito, o ofício do escravo em questão mais a habilidade na leitura, na escrita e nas contas fizeram que fosse ele mais valorizado, em 900$000, uma vez que existiam outros, que também trabalhavam no trapiche, estimados em, no máximo, 600$000. Mais um exemplo referente a escravos alfabetizados também é apresentado pela historiadora: “o inventário do Capitão-Mor Luís Pereira Sodré, que foi deputado da Mesa de Inspeção durante 26 anos – um homem importante na escala social – avalia bens móveis e os seguintes 20
escravos: Dois carregadores de cadeira, dois escravos do serviço de casa, três bordadeiras, três crianças filhas das mesmas, um aprendiz de alfaiate, moço que já sabe ler e escrever, sem moléstia’ ” (ANDRADE, 1998, p. 149). Nesse segundo trecho, fica claro que apenas o aprendiz de alfaiate sabia ler e escrever, porque, só para ele, foram ressaltadas essas habilidades. Tomando agora os dois trechos, quanto às profissões dos escravos, os que sabiam ler e escrever eram caixeiro de trapiche e aprendiz de alfaiate; os outros, carregadores de cadeiras, bordadeiras e escravos do serviço de casa. Dessa forma, os dois letrados estavam ocupados em profissões que exigiam certa especialização; os demais, não. O indício que se levanta é o seguinte: será que, para o exercício de algumas profissões mais especializadas, era necessário, mesmo que minimamente, algum conhecimento da leitura, da escrita e da contagem? Se assim o fosse, não surpreende o baixo índice de escravos alfabetizados entre os pesquisados por Andrade (1988), haja vista que, em sua maioria, estavam eles ocupados em tarefas que não careciam de especialização alguma. Silva (2000, p. 105), voltando-se para a Corte, notou que, desde a chegada da Família Real, com o crescimento urbano e as novas oportunidades de negócio, os pequenos proprietários tiveram interesse em especializar seus escravos em determinadas tarefas, porque, através delas, podiam aumentar as rendas em função do seu trabalho. Refere-se, inclusive, a escolas especializadas no treinamento de escravos, que lhes ofereciam, além das habilidades específicas ao ofício, a iniciação na leitura, na escrita e na contagem. Desse modo, conclui a autora que a aquisição de determinadas especializações dependia da vontade ou da possibilidade dos senhores de treiná-los e, entre os escravos, os especializados compunham uma minoria, o que significa dizer que, se há uma relação entre alfabetização e ofícios especializados na Corte, devem ter sido poucos os escravos que aprenderam a ler, escrever e contar em função da aprendizagem desse ofício. A mesma situação é relatada por Andrade (1998) para a cidade de Salvador. Ainda assim, iniciar-se na escrita e na leitura, para que algumas profissões fossem devidamente exercidas, se apresenta como mais um caminho possível para que escravos – poucos, que fique claro – chegassem ao domínio das letras. 21
Para que se aponte outra possibilidade, é preciso que, antes, algumas considerações sejam feitas. Em 9 de janeiro de 1827, o cônsul inglês William Pennel enviava suas observações sobre as condições de vida dos escravos emancipados, após uma estada de alguns dias em um pequeno lugarejo chamado Santana, hoje bairro do Rio Vermelho, na cidade de Salvador (apud VERGER, 1987, p. 526-527). Segundo o cônsul, habitavam o lugar 50 brancos, 50 escravos, 900 negros livres e 40 mulatos e cabras, portanto os negros – africanos e crioulos – constituíam a população majoritária de Santana. Pennel revela que, nessa localidade, um habitante branco, vendo que a escola mais próxima do lugarejo se situava a alguma distância, resolve ali abrir uma e passa a ensinar meninos negros, em razão de uma determinada quantia por mês. Quando procurou saber dos pais o motivo pelo qual encaminhavam seus filhos à escola, verificou que lamentavam o fato de não saberem ler e escrever e não queriam que tal situação se estendesse a seus descendentes. O importante a ser ressaltado nesse episódio descrito é que a alfabetização para esses negros gozava de prestígio e, conseqüentemente, era incentivada. Isso demonstra que, por parte dessa população, a alfabetização podia fazer-se presente, desde que alguma condição para isso fosse dada. Dessa maneira, pode-se cogitar a hipótese de que os negros não se mantinham sempre passivos em relação ao aprendizado da leitura e da escrita. Aliás, Reis (2003, p. 414) informa que, em 1835, quando foram interrogados negros suspeitos de terem participado do Levante dos Malês6, Ignácio Santana, nagô liberto, de idade já bem adiantada, declarou que “se ocupa com mandar ensinar a seus filhos hum a carpina, outro na escola e a crear o outro que ainda hé muito pequeno”. Embora não esteja claro o que significa exatamente o termo escola, certo é que não se trata da aprendizagem de uma profissão específica, porque, se assim o fosse, tê-lo-ia declarado Ignácio Santana, como o fez para o seu primeiro filho citado. Além do mais, parece que o declarante enumera os seus filhos de acordo com a idade de cada um. Veja-se que o primeiro
Revolta acontecida na cidade de Salvador, no ano de 1835, liderada, sobretudo, por escravos africanos muçulmanos.
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parece ser o mais velho, em idade, talvez, de já estar às voltas com a aprendizagem de uma profissão; o último, por ser ainda criança, ficava aos cuidados do pai. Entre um e outro, estava o que ia à escola, não era tempo, talvez, de aprender um ofício, mas também já não estava com idade de permanecer em casa. Estaria em idade escolar? Mandar o filho à escola não significava que, para o pai, o letramento fosse índice de prestígio e, portanto, de ascensão na sociedade soteropolitana de então? Veja-se que, tanto no episódio narrado pelo cônsul William Pennel, quanto no narrado por Reis, os atores principais são negros que já se mantiveram em cativeiro, o que reforçaria a hipótese de uma representação positiva da alfabetização, não só entre libertos, mas, possivelmente, também entre escravos. Há ainda pistas de que o letramento encontrasse valor positivo dentro de irmandades negras, tão comuns ao Brasil colonial e pós-colonial. Segundo Oliveira (1988, p. 79-80), as confrarias, nome alternativo a irmandades, remontam às corporações de artes e ofícios medievais. Eram subdividas em irmandades e ordens terceiras, que tinham como característica maior o controle social e religioso dos seus membros. Nas irmandades, indivíduos se congregavam para promover a devoção a um santo, manifestada por cultos e realizações de festas. Para a Igreja, significava a oportunidade de introduzirem os leigos no culto católico. No Brasil colonial, às confrarias, introduzidas por iniciativa do governo português, foi atribuída a tarefa de catequizar as populações, por conseguinte, “a aprovação dos compromissos, com o elenco dos direitos e deveres de seus membros, era, no período colonial, da competência do Rei de Portugal, como Grão-Mestre da Ordem de Cristo” (OLIVEIRA, 1988, p. 80). No território brasileiro, as confrarias encontraram terreno fértil. Elas, contudo, espelharam, na constituição dos seus membros, as tensões de toda natureza que prevaleciam na sociedade. Observem-se as palavras de Reis (1997, p. 12) a respeito do que se diz:
A sociedade formada na colônia escravocrata estava estruturada em moldes corporativistas, que refletiam diferenças sociais, raciais e nacionais. As irmandades são um exemplo disso. Muitas fizeram as vezes de corporações profissionais típicas do antigo regime. Algumas poucas abrigavam a nata da sociedade, a ‘nobreza’ da colônia, os senhores de engenho, altos magistrados, grandes negociantes. Mas o principal critério de
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identidade dessas organizações foi a cor da pele em combinação com a nacionalidade. Assim, havia irmandades de brancos, de mulatos e de pretos. As de branco podiam ser de portugueses ou de brasileiros. As de preto se subdividiam nas de crioulos e africanos. Estas podiam se fracionar ainda de acordo com as etnias de origem – ou, como se dizia na época, as ‘nações’ – havendo as de angolanos, benguelas, jejes, nagôs etc.
As irmandades que ‘abrigavam a nata da sociedade’ eram freqüentemente chamadas, no Brasil, de Ordens Terceiras e compostas exclusivamente por brancos. Os brancos pobres, por sua vez, também fundaram as suas. Contudo, nem umas nem outras se misturavam com a população de ascendência africana. Mesmo dentro dessa comunidade, a cor da pele e a origem eram critérios de secção. Desse modo, como destaca Reis (1998), existiam as irmandades de pretos e as de crioulos, as primeiras divididas por ‘nações’, as segundas pelo matiz da cor da pele e também pelo estatuto social dos seus membros, se escravos ou não. A sociedade dominante via com bons olhos essa fragmentação, sobretudo para com os africanos, uma vez que podia servir de empecilho para que, juntos, trouxessem transtornos à ordem escravocrata. Além do aspecto religioso, as irmandades angariaram prestígio entre negros, escravos ou libertos, por terem se constituído em um dos poucos espaços legítimos na sociedade em que se praticavam ações assistenciais e por possuírem intensa vida social. Mattoso (1992, p. 398) nota que se tornaram célebres, em todo o Brasil, as irmandades de escravos e alforriados, que possuíam esplendor comparável ao das irmandades exclusivas de homens livres e brancos. Freqüentemente, exigia-se dos associados uma quantia, designada por jóia, com a qual se davam dotes às órfãs, se hospitalavam os doentes, se visitavam os indigentes, se emprestava dinheiro para alforria, se ofereciam, aos seus membros, enterros decentes nos seus cemitérios etc. Mais uma vez, como Reis (2003, p. 332) se pronuncia sobre o assunto:
Amparavam de diversas maneiras os membros de suas nações constituintes, na vida, com empréstimos, doações e alforrias; na morte, com a promoção de enterros em suas capelas e de missas para as almas de seus defuntos. As irmandades eram também meios de produção cultural, em particular suas celebrações periódicas. Nos feriados cristãos, em especial nas comemorações a seus padroeiros, os irmãos promoviam festas e mascaradas
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com a coroação de reis e rainhas africanas, revivendo simbolicamente o mundo que haviam perdido. Se de início o regime senhorial e sua Igreja imaginaram poder enquadrar culturalmente os membros de irmandades de cor, no final já tinham que admitir o surgimento de uma nova religiosidade, de uma expressão cultural diferente daquela que se tentara impor.
Contudo, não é pacífico, entre os estudiosos, o papel desempenhado pelas irmandades entre a população africana e afro-descendente. Por um lado, acreditase que elas tenham servido de instrumento para a aculturação desse contingente populacional aos moldes da sociedade dominante e da Igreja Católica. Por outro, teriam encontrado nelas os africanos e os seus descendentes um espaço dentro dos qual podiam manter e transmitir as suas tradições, fazer contatos freqüentes, preservar as suas línguas de origem etc. Aliás, notificam-se, na literatura sobre o tema, casos de irmandades que se cobriam com a capa do que queria a sociedade dominante, mas, no seu interior, longe dos olhos brancos, eram outras as atividades ali mantidas. Não parece haver dúvidas, contudo, de que muitas das irmandades de negros tinham como alvo aproximar-se da sociedade à sua volta; outras, por sua vez, objetivavam propósitos bem menos caros à grande parte dos olhos da época: a busca da alforria dos seus membros ou de parentes e amigos que ainda estavam na condição de escravos. Lembre-se que, para a decadência das irmandades negras na segunda metade do século XIX, dentre outras causas, foi de fundamental importância o aparecimento das sociedades emancipadoras7. Volta-se agora ao fio condutor atrás deixado: indícios de vias para a alfabetização de escravos. Recapitulam-se as seguintes informações: valor positivo da alfabetização entre negros e irmandades que abrigavam no seu seio indivíduos ainda mantidos sob a condição de escravos. O que se procurará, em verdade, são pistas no sentido de mostrar que as irmandades negras poderiam ter se constituído em mais um desses caminhos. Reis (1997, p. 12), como já se disse anteriormente, adverte que “os estatutos das confrarias, chamados compromissos, e outros documentos constituem uma das poucas fontes históricas da era escravocrata escritas por negros ou pelo menos
7 Associações criadas com o objetivo de manifestar-se contra o regime escravista através de meios os mais diversos.
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como expressão da sua vontade. As irmandades, aliás, produziram muita escrita”. Em época em que o analfabetismo era quase que geral à população negra, não deixa de ser surpreendente a afirmação do historiador. Entretanto, ainda consoante o autor, nem sempre foi assim. Houve época em que a escrita dentro das irmandades negras era produzida por brancos que procuravam delas participar como estratégia de controle, embora, algumas vezes, até o fizessem por devoção sincera. Os negros aceitavam a participação dos brancos por diversos motivos: para que cuidassem dos livros era um deles, uma vez que não tinham instrução para escrever e contar e certos cargos, como o de escrivão e tesoureiro, por exemplo, exigiam as referidas habilidades. Ao estudar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, nas Minas Gerais do século XVIII, esse aspecto mereceu a atenção de Scarano (1978, p. 130):
Determinados cargos poderiam ou, às vezes, deveriam ser ocupados pelos brancos, conforme consta de vários compromissos. Também no distrito diamantino, essas funções são reservadas aos brancos, pois, não tendo personalidade jurídica, o escravo não as poderia exercer. Por outro lado, tratando-se de cargos que exigiam maior nível cultural, era normal que se reservassem aos que tivessem melhores requisitos para ocupá-los. Muitas vezes os compromissos acentuam a exigência de ‘conhecimentos’, a fim de mostrar a necessidade de se colocar o branco nessas funções, consideradas difíceis e complexas. É fácil compreender que a alfabetização era indispensável para determinados cargos. O de tesoureiro, por exemplo, pedia conhecimentos que ficavam acima do alcance de pequena instrução. Mesmo os brancos apresentavam não raro deficiências nesse particular, o que explica a confusão com que são redigidos muitos livros.
Aceitavam ainda os integrantes das irmandades negras a participação de brancos para receberem doações generosas, haja vista não poderem sustentá-las, ou ainda por imposição. Assim, a presença de brancos em irmandades negras foi constante em todo Brasil. Em fins do século XVIII, porém, a situação começava a ser outra. Um caso delicioso, ilustrado por Reis (1997), aconteceu na Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco, irmandade negra das mais populares e antigas da cidade de Salvador que abrigava libertos e escravos. Em 1789, os seus irmãos – assim se chamavam os membros dessas instituições – enviam à Coroa portuguesa um pedido de permissão para reformar o compromisso de 1730, 26
propondo excluir os brancos dos cargos de escrivão e tesoureiro. Na argumentação, diziam os irmãos que, em 1730, não havia negros letrados, mas àquela altura, em 1789, “a iluminação do século [nos] tem feito inteligentes da escrituração e contadoria” (REIS, 1997, p. 22). Observe-se que, para a procura de indícios sobre alfabetização de escravos, esse dado é de extrema relevância. Não pode passar despercebido o fato de que negros escrevem de próprio punho que a iluminação do século os tem feito inteligentes da escrituração e da contadoria. Instigante é saber o que estaria por trás da expressão iluminação do século. De qualquer sorte, o dado de que, em 1730, não havia negros letrados e de que, em espaço de 59 anos, já havia notícia deles leva à indagação do que teria se passado nesse período para que isso tenha ocorrido. A história continua: os brancos que ocupavam os cargos de escrivão e tesoureiro na dita irmandade refutaram e também escreveram à Coroa, dizendo que não ocupavam esses cargos apenas em função da inabilidade dos negros com a escrita, por serem ignorantes nessa arte, mas porque, em sua maioria, eram homens que ainda viviam sob o cativeiro e, por essa razão, incapazes de terem fé pública. Veja-se que o argumento principal se centra no fato de haver, naquela irmandade, negros que ainda viviam como escravos e, assim, não tinham fé pública e não no fato de não saberem ler, nem escrever, nem contar; pelo contrário, admitiram os brancos que alguns dominavam essas habilidades, mesmo que barbaramente. Mentiram os brancos, entretanto, quando escreveram que em todas as irmandades negras da Bahia as contas e os escritos estavam nas mãos de seus pares. Os irmãos da Irmandade de São Benedito não se intimidaram e, novamente, em outro pedido, listam 12 irmandades negras em Salvador em que os cargos de escrivão e tesoureiro eram ocupados por irmãos pretos, que exerciam seus empregos com manifesto zelo e louvor. Final da história: a rainha Dona Maria pede ao governador Dom Fernando José de Portugal parecer sobre o assunto. Este verificou ser verdadeiro o que diziam os irmãos da Irmandade de São Benedito e o pedido foi aceito. A partir de então, os negros dessa irmandade passaram a ocupar todos os cargos, inclusive os de escrivão e tesoureiro.
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O que teria acontecido para que, em 1789, final do século XVIII, 12 irmandades tivessem em cargos importantes, como o de escrivão e tesoureiro, negros à frente? Não pode ser descartada a hipótese de que a iluminação do século fosse, talvez, propagada dentro das próprias irmandades. Dito de outro modo, já se cogitou que a escrita e a leitura tinham representação positiva entre os negros, o que os levaria a incentivá-las, como foi o caso do lugarejo de Santana, segundo testemunhou o cônsul Wiliam Pennel. Talvez, nas irmandades negras, as condições para esse incentivo fossem favorecidas, possibilitando a consciência de que se alfabetizar era um índice para se ter alguma voz dentro da sociedade branca. Observe-se que, não podendo freqüentar escolas e levando-se em consideração o fato de que as irmandades eram micro-comunidades em que a ajuda mútua era a mola propulsora das relações ali estabelecidas, a hipótese de que essa comunhão se estendesse ao alfabetizar-se é bem-vinda. Assim como irmãos negros se ajudavam na doença, nos enterramentos, na compra de alforria ou para si ou para membros e parentes próximos ainda mantidos no cativeiro, poderiam também iluminar-se conjuntamente na escrita e na leitura. E, como as irmandades negras eram constituídas também por escravos, seria esse, talvez, mais um possível caminho para que adquirissem essas habilidades. Reuniram-se, então, através de indícios, três vias que explicariam, talvez, o porquê de o analfabetismo não se ter feito presente em 100% da população escrava: •
Relações afetuosas dos escravos com a família senhorial;
•
Especialização de certas profissões, que exigiam algum conhecimento da leitura, escrita e contagem;
•
A representação positiva da alfabetização entre negros e o papel das irmandades negras.
Não pode ser descartada, no entanto, a hipótese de que Gregório Manuel Bahia, José Fernandes do Ó, Luís Teixeira Gomes, Manuel da Conceição, Manuel do Sacramento e Conceição Rosa e Manuel Vítor Serra terem se letrado já na condição, não de escravos, mas de libertos. E é esse um aspecto que também merece atenção.
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2.2. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO DE NEGROS LIVRES E LIBERTOS Sem dúvida estariam entre os livres e libertos as maiores chances de a população africana se letrar, mas, pelo menos para Salvador, o ingresso para a sociedade de homens livres não significava, para a maioria esmagadora dos exescravos, ascender socialmente e, conseqüentemente, ter abertas as portas da alfabetização. Se não havia nenhuma lei que impedisse os forros ou livres de freqüentarem as instituições formais de ensino, como existia para os escravos, as condições de vida a eles proporcionadas se encarregavam de cerrar as suas portas. A dura e penosa sobrevivência dos libertos e livres parecia, então, constituir a prisão que os impedia de se letrarem. Mesmo para aqueles que constituíram uma categoria especial de libertos, como foram os indivíduos pesquisados por Oliveira (1988, p. 7) – porque deixaram testamentos e, conseqüentemente, estavam mais integrados à sociedade –, entre o período de 1790 e 1890, na cidade de Salvador, a situação, no que toca ao domínio das letras, igualmente não se configura como especial. Em um universo de 482 indivíduos – 240 homens e 242 mulheres –, apenas 22 sabiam assinar o nome e 3 declararam também saber escrever. Interessante a distinção feita pelos libertos entre saber assinar o nome apenas e escrever. Os testamentos deixados por esses forros foram, dessa forma, escritos por mãos de outros, uma vez que eles, em sua maioria, eram analfabetos. Dado que as suas condições sociais não se diferenciavam muito das dos escravos, as três vias, antes apontadas como trilhas seguidas pelos que ainda se mantinham no cativeiro para se alfabetizarem, parecem também aplicáveis aos libertos e livres. Note-se que, também na sociedade de homens livres, os forros e os que já nasceram fora da condição de escravo estabeleceram relações afetuosas com os dominantes; que, quando da passagem à liberdade, muitos dos ex-escravos continuavam exercendo o mesmo ofício de antes e, se não, caso a liberdade lhes propiciasse a aprendizagem de uma atividade mais especializada – sabe-se que isso é a exceção e não a regra geral –, poderia despontar alguma possibilidade de se letrarem; que as irmandades, para além daquelas compostas por escravos, acolhiam também negros livres e alforriados. 29
De qualquer modo, quanto à alfabetização, embora já se tenha colocado a razão de não poderem, no geral, freqüentar instituições oficiais de ensino, pareciam contar os libertos e livres com maior sorte. Outros caminhos se abriram para que pudessem se alfabetizar. Através de estudo feito por Fraga Filho (1996), observa-se que, na Salvador do século XIX, os designados moleques proliferavam pelas ruas da cidade. Quanto ao seu perfil, eram quase que exclusivamente crianças não-brancas, as quais perfizeram o índice de 88.3% da amostra estudada pelo autor (crioulos, 60.0% e pardos, 28.3%), enquanto os brancos totalizaram 11.7%. Uma das iniciativas para que se resolvesse o problema da vadiagem entre os menores foi a criação, em 1840, do Arsenal de Aprendizes de Marinheiro, que deveria acolher meninos expostos, órfãos indigentes e menores abandonados, com idade entre 8 e 12 anos, para serem iniciados na marinhagem. Nessa instituição, os menores, além de serem submetidos a uma rígida disciplina, dedicavam-se todos os dias à aprendizagem das primeiras letras e também aos trabalhos nas oficinas do Arsenal. Diante disso, ser recolhido ali despontava como uma possibilidade de meninos negros livres e libertos, os maiores componentes do contingente dos moleques, se alfabetizarem, porque era obrigatório o estudo das primeiras letras. Fraga Filho (1996) não apresenta o perfil dos meninos que nessa instituição foram recolhidos; fornece, no entanto, um dado de extrema relevância para se demonstrar que essas oportunidades de alfabetização não se distribuíam indistintamente entre os moleques da cidade. Segundo ele, alguns anos depois da sua fundação, o Arsenal passou a não mais admitir a entrada de rapazes pretos presos nas ruas de Salvador. Alegava-se ser preciso mais cautela na seleção, porque se fazia necessário elevar o conceito internacional da Marinha do Brasil (FRAGA FILHO, 1996, p. 129) Se a proibição atingia apenas os pretos, seriam os brancos e os pardos, em proporção menor que os pretos – negros nascidos no Brasil –, então, os privilegiados para ingressarem no Arsenal e, conseqüentemente, os candidatos mais prováveis a se alfabetizarem. Disso, pode-se observar que as poucas oportunidades de o contingente de ancestralidade africana obter o ingresso para o mundo das letras não
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se distribuíam de modo igualitário entre todos: a cor da pele entrava em cena e, quanto menos escura, maiores as diminutas chances de letramento. Situação semelhante aconteceu na Casa Pia Colégio dos Órfãos de São Joaquim, objeto de estudo do historiador Alfredo Eurico Rodrigues Matta, em livro de 1999. Destinada a recolher meninos órfãos de Salvador, essa instituição de acolhimento foi fundada em 1825. Destacou-se pelo fato de que “desde o início, a preocupação com as crianças não era somente dar-lhes abrigo e alimento, mas também formação religiosa, alfabetizá-los e ensinar uma arte de ofício” (MATTA, 1996, p. 45). O objetivo maior da Casa Pia era qualificar menores abandonados, por motivos vários, em alguns ofícios mecânicos de que carecia a cidade de Salvador nos inícios do século XIX. De acordo com o programa de ensino da instituição que, de fato, segundo o autor, foi aplicado, nota-se que, durante o tempo mínimo de permanência na Casa, 5 anos, os alunos estudavam, além de outras, disciplinas circunscritas à leitura, escritura e gramática de língua portuguesa. Veja-se o conteúdo disciplinar ministrado na Casa Pia:
Conteúdo programático ensinado na Casa Pia - Programa mínimo ANOS LETIVOS DISCIPLINAS (CHAMADOS DOUTRINAS PELOS ESTATUTOS) 1º., 2º., 3º. Anos Doutrina Cristã, Urbanidade, Leitura e Escritura Portuguesa, Prática de Operações Fundamentais da Aritmética 4º. Ano Gramática e Língua Portuguesa 5º. Ano Gramática e Língua Francesa ou Inglesa A Aritmética, Geometria e Álgebra, até equações do 2º. Grau B Desenho de Figura e Arquitetura C Elementos de Comércio e Escrituração Mercantil D Idéias Gerais da História Natural e da Química no que for aplicável à Agricultura. Quadro 01: Matta (1999, p. 121).
Os menores recolhidos à Casa Pia, quando da sua saída, estariam, pelo que demonstra esse programa, alfabetizados, mesmo que a dedicação às primeiras letras não fosse tão privilegiada, haja vista que o objetivo primordial ali era capacitá-los para trabalhos comuns e artes de ofício. Estudando a origem dos órfãos ingressos, entre o período de 1825 e 1864, quanto à cor, o autor apresenta a sugestiva tabela que segue:
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Etnias entre os ingressos na Casa Pia, 1825/1864 ETNIA TOTAL % Brancos 363 53.8 Pardos 249 36.9 Cabra 02 0.3 Preto 03 0.4 Indígena 01 0.1 Não-declarada 57 8.4 TOTAL 675 100 Tabela 11: Adaptada de Matta (1999, p. 102)
Não é difícil observar que a Casa Pia utilizava como critério de seleção a cor dos menores. Aos brancos, eram oferecidas as maiores oportunidades de ingressarem no Colégio. No período em questão, eles ultrapassam a metade dos percentuais. Dentre os de ascendência africana, notadamente os cabras e os pretos eram preteridos em função dos pardos. Aliás, o primeiro preto só entra no colégio no ano de 1858, 30 anos após a sua fundação, e o primeiro cabra, em 1850. Quanto aos pardos, 12 deles já ingressam no primeiro ano de funcionamento da Casa. Assim, o que se pode concluir desses dados? Com a palavra, o autor:
(...) a Casa Pia tinha a política de permitir, preferencialmente, o ingresso de menores brancos, em detrimento de pardos e outras etnias. Negros e crioulos eram quase totalmente excluídos. Pode-se dizer que a discriminação racial vigorava na Casa Pia. (MATTA, 1999, p. 105).
Que a alfabetização, na comunidade de livres e libertos, também escolhia a sua cor nas instituições de recolhimento é a lição que fica do estudo de Matta (1999). Mais uma vez, esse aspecto refletia nada mais que a imagem social da época. A longa citação de Mattoso (2001 [1982], p. 225-226), posta a seguir, é imprescindível para que se compreenda o porquê de os pardos ou mulatos terem sido, ao longo do período escravista brasileiro, os mais privilegiados em tudo entre os de ascendência africana, e também para que se saiba que, no que tange à alfabetização, a sua história não pode ser contada nos mesmos moldes da história daqueles que não traziam na pele a ambigüidade da cor:
O ‘embranquecimento’ torna-se o único meio à disposição do homem de cor desejoso de fazer esquecer a ‘tara’ de sua origem africana, empreender uma ascensão social, adquirir certo peso econômico. Mas o primeiro efeito desse comportamento é o de isolar no seio da sociedade o grupo bem caracterizado dos mulatos de personalidade ambígua.
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Rejeitado pelos brancos, que aspiram a achegar-se aos mais brancos que eles, rejeitado pelos negros, que o consideram um traidor, o mulato vai submeter-se a todas as exigências de seu modelo branco. Não se esqueça de que é aos gritos de ‘morte aos brancos e aos mulatos’ que os negros baianos se revoltam ao longo dos primeiros 40 anos do século XIX; nem tampouco que a sociedade dos brancos recruta especialmente os mulatos para os batalhões policiais encarregados de vigiar a população africana. Tudo lhes é prometido, contanto que eles atuem para ‘embranquecer’ Salvador e somente os viajantes estrangeiros adoram as cores cintilantes e exóticas que a sociedade local procura por todos os meios modelar ao gosto europeu, pálido e frio. O mulato, aliado dos brancos, sonha para seus filhos e netos uma rápida passagem ao modelo europeu. Tornase com facilidade o instrumento dos brancos. É encorajado, instigado por todos os exemplos dos mestiços que obtiveram êxito, esses irmãos de cor mais ou menos clara, os brancos da terra, que são ilustres médicos e advogados, excelentes padres, indispensáveis mestre-escolas, professores brilhantes. É simplesmente natural, no século XIX baiano, orgulhoso de sua cultura humanista, vaidoso de ser o filho emancipado de mãe portuguesa, ver no liceu da cidade um professor preto conviver amigavelmente com seus colegas filhos de senhores de engenho também professores. Mas todos esses mulatos, admitidos até nos mais altos cargos do estado, adotam conduta de brancos, pensam como brancos, servem ao estado branco no aparelho governamental, nos conselhos, nas câmaras, no corpo diplomático. As senhoras queixam-se inutilmente de que uma bela mulata lhe roubou os filhos; nada podem contra isso. Os ‘embranquecimentos’ são irreversíveis e vêm enriquecer uma sociedade desejosa de fechar-se, mas sem haver ainda forjado as armas que lhe permitirão recusar o sangue novo oferecido irrestritamente por todo um grupo social que aspira apenas a desaparecer: o grupo dos mulatos.
2.3. A SOCIEDADE PROTETORA DOS DESVALIDOS (SPD): HISTÓRIAS E TRAJETÓRIAS Na Bahia oitocentista, ainda sob a égide da escravidão, embora fossem poucos, existiram, para os negros – escravos, alforriados ou livres –, espaços em que mantinham alguma autonomia: “A classe senhorial não exercia o poder apenas na ponta do chicote, mas também mediante o convencimento de que o mundo da escravidão oferecia ao escravo – e a uns mais que a outros – segurança e mesmo algum espaço de barganha” (REIS, 2003, p. 323). Dessa maneira, até pela manutenção do sistema escravista, o estrato dominante negociou com os negros aspectos de sua sobrevivência e, por conta disso, surgiram lugares em que, como decorrência dessas ‘negociações’, negros puderam, com alguma autonomia, se socializar e manter, entre si, uma extensa rede de ligações. Citam-se, como exemplo, os ‘cantos de ganho’, nos quais escravos, alforriados e livres trabalhavam sob leis regidas, em alguns aspectos, por eles próprios. Foi em decorrência disso que se permitiu ainda a criação de irmandades negras durante todo o período colonial e pós-colonial brasileiro.
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Falou-se acima fartamente sobre as irmandades, mas cabe mencionar duas das principais razões, segundo Gonçalves (2000, p. 332), por que foi autorizada a sua existência:
A primeira mostra claramente que a coroa portuguesa, quando pressionada a autorizar a construção de irmandades na colônia, viu nisso uma saída para se livrar das cláusulas do contrato que a obrigava a construir igrejas e assegurar o culto no Brasil. A segunda não deixa dúvidas de que as irmandades [negras] seriam uma solução que iria ao encontro do racismo dos proprietários de escravos. Constrangidos pela hierarquia eclesiástica a catequizar seus escravos e a introduzi-los no mundo cristão, os escravocratas viram nas irmandades uma ótima oportunidade para separar de uma vez por todas as igrejas dos brancos da igreja dos negros. Ou seja, mandavam seus escravos à missa, entretanto eles não suportavam conviver com o mau cheiro exalado por eles. Como bons cristãos, agiram para conversão de seus escravos sem precisar aceitá-los no mesmo espaço de culto.
É dentro de um contexto mais amplo, o de separar brancos e negros em tudo quanto fosse possível, que se erige, na primeira metade do século XIX, na cidade de Salvador, a Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos, posteriormente Sociedade Protetora dos Desvalidos (doravante também SPD). A SPD é considerada, dentre as irmandades negras de Salvador, de fundação tardia. “Aos dez dias do mez de Setembro de mil oito centos e trinta e dous”, Manuel Vítor Serra, negro africano liberto, junto com dezoito outros amigos, também africanos alforriados, faz, na Capela dos Quinze Mistérios, uma reunião preliminar para a fundação da irmandade. Em 16 de setembro desse mesmo ano, consolida-se a SPD. Mantém-se viva até o tempo presente, contando, portanto, com 176 anos. Inicialmente se chamou Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. A partir de 1848, deixou a Capela dos Quinze Mistérios e mudou-se para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, onde permaneceu durante 20 anos. Em 1851, passou a se chamar Sociedade Protetora dos Desvalidos8, nome mantido até hoje. 36 anos depois, em 1887, com a aquisição de um prédio próprio no Cruzeiro de São de Francisco, de número 17, instalou-se ali. É essa, desde então, a sua sede. Contam Braga (1987, p. 23) e Verger (1987, p. 517) que a SPD Com a mudança de nome, não se sabe quais outras existiram no âmbito da SPD quando deixou de ser irmandade e passou a ser sociedade. Embora seja instigante, não se ocupará o trabalho dessa questão. Por enquanto, aponta-se apenas para o fato de que a documentação parece indicar que, efetivamente, nenhuma reestruturação relevante tenha existido. Diante disso, os termos irmandade e sociedade, e por vezes associação, serão utilizados como sinônimos. 8
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funcionou, nos seus inícios, como uma espécie de junta que, com sistema de créditos, assistia, sobretudo, parentes e amigos dos associados que ainda estavam no cativeiro. Verger (1987, p. 517-518) é quem, dos pouquíssimos autores que se referem à irmandade, oferece um perfil dos seus fundadores. Segundo ele: Ela [a SPD] foi fundada por iniciativa de Manoel Victor Serra, africano, ‘ganhador’ no ‘canto’ chamado Preguiça. Ele convidou alguns de seus amigos a participar, em 10 de setembro de 1832, de uma reunião na Capela dos Quinze Mistérios, onde, após discussão, foi decidido reunirem-se de novo no dia 16 de setembro para fundar uma junta que levaria a [sic] nome de Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Dezenove africanos alforriados foram os fundadores daquela instituição: Victor Serra era nomeado juiz fundador, Manoel da Conceição (marceneiro) era tesoureiro e Luiz Teixeira Gomes (pedreiro) era o encarregado da escrita; os três tinham uma das chaves de um cofre que não podia ser aberto a não ser que as três estivessem sendo utilizadas ao mesmo tempo. O mesmo cofre estava colocado na casa do vigário da paróquia de Santo Antônio, o reverendo Padre Joaquim José de Sant’Anna, de quem um empregado, José Maria Vitela, fazia parte do comitê administrativo [da SPD]. Os outros membros fundadores eram Gregório M. Bahia, marceneiro, cuja reputação era tal que diziam que as pessoas que possuíam cadeiras por ele feitas não as cederia por cincoenta contos de réis; Ignácio de Jesus e Barnabé Álvaro dos Santos, cuja profissão não conhecemos; Bernardino S. Souza e Pedro Fortunato de Farias, pedreiros; Gregório de Nascimento, carroceiro, que era rico; Balthazar dos Reis e Manoel Sacramento Conceição Roza, marceneiros; Theotônio de Souza que fazia vinagre; Francisco José Pepino, calafate; Daniel Correa, do ‘canto’ do Pilar; Roberto Tavares, que era carregador de água e possuía um asno para transportá-la; José Fernandes do Ó, vendedor de toucinho e, enfim, Manoel Martins do Santo, que trabalhava no ‘porto da lenha’ O número de associados não era limitado, deviam ser exclusivamente de cor preta.9
Embora extensa, trouxe-se aqui essa citação de Verger (1987, p. 517-518) pelo fato de se poderem apreender dela, principalmente, informações sobre o universo social dentro do qual estavam inseridos os fundadores da SPD. Quanto à origem dos membros, quer-se saber se foram eles africanos ou negros nascidos no Brasil. Conforme já se disse, as irmandades negras refletiam no seio da sua constituição as tensões sociais. Foi comum, ao longo do século XIX, e mesmo antes, irmandades de negros que se dividiram, tendo como critério a origem dos seus membros: se nascidos no Brasil ou não. No caso daquelas cuja origem dos Embora afirme Verger terem sido 19 os fundadores da Sociedade Protetora dos Desvalidos, o autor elenca 18 nomes. Excetuando-se a parte em que traça o perfil social dos fundadores, Verger parece, pelo menos quanto à cronologia dos fatos referentes à fundação da SPD e quanto às funções que os membros iniciais nela desempenharam, ter recorrido à documentação ali remanescente, uma vez que, de fato, os primeiros textos escritos dentro da irmandade confirmam o que diz o autor. Contudo os primeiros documentos indicam que também foram membros fundadores: Ricardo do Laço Sampaio, Rodrigo da Cruz Veloso, Vicente Rodrigues Pacheco, Francisco Miguel dos Anjos e Manuel João do Rosário.
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integrantes era africana, dividiam-se as irmandades por ‘nações’. Em Salvador, de acordo com Reis (1997), os jejes mantinham, desde 1752, sua própria irmandade, a do Senhor do Bom Jesus das Necessidades e Redenção, que funcionava na igreja do Corpo Santo, na Freguesia da Conceição da Praia; os angolas se acomodavam em muitas irmandades, sobretudo naquelas dedicadas à Nossa Senhora do Rosário. Com o tempo, porém, “as irmandades começaram a se abrir, mas sem escancarar as portas indiscriminadamente e sim estabelecendo regras de alianças seletivas. Bem cedo crioulos – negros nascidos no Brasil – e os africanos denominados angolas, por exemplo, uniram-se, sem abolir suas diferenças, para exercer o poder sobre irmãos de outras origens étnicas” (REIS, 1997, p. 13). Também a Irmandade do Rosário dos Pretos da Igreja da Conceição da Praia, no distrito comercial de Salvador, era composta por homens e mulheres de diversas origens étnicas, inclusive brancos e mulatos, no entanto só crioulos e angolas podiam ser eleitos, em números iguais, para os cargos de direção. O mesmo ocorria com a Irmandade de Santo Antônio de Categeró, cuja fundação data de 1699 na igreja matriz da freguesia de São Pedro. Embora essa irmandade aceitasse pessoas de qualquer condição, apenas angolas e crioulos, homens ou mulheres, poderiam eleger-se para a mesa diretora. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, a mais importante irmandade negra da Bahia, fundada em 1685 por negros angolanos, já abrigava, em finais de setecentos, membros crioulos, jejes e outros africanos. Contudo, os angolanos e crioulos, por serem os mais velhos na irmandade, embora não fossem os mais numerosos, detinham o monopólio dos cargos da mesa diretora. No compromisso de 1820, essa irmandade passou a admitir membros de qualquer qualidade e sexo, fossem livres ou escravos, mas, mesmo assim, continuou a ser uma associação de angolas, jejes e crioulos. As alianças a serem estabelecidas dependiam, muitas vezes, das relações que os grupos étnicos mantinham entre si. Nas irmandades de feição angolana, os crioulos – negros nascidos no Brasil – foram os privilegiados. Na Irmandade do Rosário da Rua de João Pereira, os benguelas, da região sul de Angola, uniram-se ao jejes, da região do Daomé, para ocuparem os cargos da mesa diretora. Na Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, na vila de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, os 36
jejes expressavam, no compromisso de 1765, a sua animosidade em relação aos crioulos. Estabeleceram que não seriam admitidos ali os homens pretos nacionais, a não ser que pagassem uma taxa de associação cujo valor era 15 vezes mais alto que o cobrado para a associação de africanos. Mesmo pagando a quantia exigida, haveria para com os crioulos restrições: “a condição de que nenhum exercerá em Mesa cargo algum em que haja de ter voto” (REIS, 1997, p. 16). O contrário, crioulos discriminando africanos, também ocorreu. É esse o caso, por exemplo, da Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz dos Crioulos, da vila de São Gonçalo dos Campos, em cujo compromisso, de 1800, se lê: “Procurarão indagar de qualquer Irmão, que entrar para a Irmandade se é nacional da terra, e no caso que entrar algum dizendo que o é, se vier ao conhecimento que é Angola, Benguela, ou Costa da Mina, vindo adúltero, será riscado da Irmandade, para nunca mais ser admitido” (apud REIS, 1997, p. 17). Diante desse panorama traçado a partir do estudo de Reis (1997), pensa-se que, para se constituir um corpus a partir de documentação remanescente nas irmandades negras, necessário se faz conhecer por dentro, na medida do possível, a sua constituição no que toca à origem dos seus membros. Vejam-se os motivos: •
Em algumas irmandades negras, a presença branca foi uma constante, porque, como já foi referido, dentre outros motivos, eram raros os negros que sabiam ler, escrever e contar. Sendo assim, eram os brancos que ocupavam os cargos de escrivão e tesoureiro. Uma edição de textos que não leve esse aspecto em consideração correrá o risco de atribuir a mãos negras documentação escrita por brancos. Esse parece ser o caso de irmandades que se erigiram muito cedo em solo brasileiro, como foi o caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na cidade de Salvador.
•
De casos de irmandades em que houve alianças inter-étnicas, vem outra questão. A história das que assim procederam, afastada por investigação a hipótese de que os textos nelas produzidos não tenham saído de mãos brancas, pode levar à constituição de corpora compostos por documentos escritos por negros, por um lado; por outro, a desatenção a esse aspecto pode esconder uma nuance preciosa: textos escritos por africanos, que tiveram o 37
português como segunda língua, e por negros brasileiros, para quem era o português língua materna.
Por conta disso, discutir essa questão em relação à Sociedade Protetora dos Desvalidos é central. Para a SPD, não foram admitidos brancos nem mulatos, àquela altura designados pardos ou cabras. Constituiu-se, portanto, como uma irmandade composta exclusivamente por negros. Quanto à origem dos fundadores, Verger (1987, p. 517) identifica-os como africanos. Monteiro (1987, p. 63) também confirma essa procedência para os membros fundadores. Mesmo que se tenha como certa essa origem, tudo leva a crer que não foi o critério da etnia que congregou os primeiros membros da Sociedade para a sua fundação, mas, sim, outro, de caráter religioso. Eram os fundadores negros muçulmanos ou islamizados ou, ainda, maometanos (VERGER, 1987, p. 518-519; MONTEIRO, 1987, p. 63-64). A SPD destacou-se, dentre as irmandades negras da cidade de Salvador, por abrigar negros adeptos da religião que começou a ganhar corpo entre as gentes de cor na primeira metade do século XIX. Reis (1997, p. 15) menciona que africanos islamizados freqüentaram a Irmandade de Nossa do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, mas a sua presença foi muito mais numerosa na SPD, àquela época, ainda denominada Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Segundo Monteiro (1987, p. 45) houve, à Rua do Bispo, nº. 20, uma mesquita para o culto muçulmano, palco de grande destaque na Revolta dos Malês. Aí se desenvolveram planos de guerrilhas e seus freqüentadores eram todos oriundos da SPD, da qual a mesquita era uma espécie de filial. Acrescenta ainda que Manuel Vítor Serra, fundador da SPD, era malê e tinha honrarias de sacerdote no culto muçulmano. Da mesma forma, Luís Teixeira Gomes e José do Nascimento, também iniciadores da irmandade, tinham títulos honoríficos dentro da religião. Inclusive, quando da fundação da Sociedade, o assentamento do Conselho foi estabelecido em alas, seguindo um dos preceitos do islamismo. A conversão ao catolicismo – exigência para que irmandades negras fossem legitimadas – dos membros fundadores da SPD era, segundo Braga (1987, p. 13), 38
apenas exterior e feita por conveniência, uma vez que corria nas veias dos seus integrantes sangue islâmico. Verger (1987, p. 518) não comunga da mesma opinião. Segundo ele, os integrantes aderiram simultaneamente, e com a mesma sinceridade, ao catolicismo e ao islamismo. De qualquer sorte, talvez seja a ligação dos seus membros com a religião muçulmana o que explica uma mudança radical ocorrida, a partir de 1835, na SPD. Trata-se da imposição de um novo critério para a admissão de sócios. Repete-se que africanos eram os fundadores da SPD. Em 1835, Manuel Vítor Serra redige um documento cujo único propósito, ao que parece, era registrar, ao contrário dos anteriores, a feição da Sociedade. Segue na íntegra o documento:
A Vinte Nove dia do Mez de Março de 1835 Estanto todos Corpos da Devoçaõ, Reonidos Aprovamos prunanamine Vondades oprez ente Comprimiço da nossa Devocaõ, da Santiçi cima Verginal Senhora da Sollidade dos Devalidos prentencente Chiolos Liver de Cores pretas Naçidos no Inperio do Barzelio Ereta na Capella de Nossa Senhora do Ruzario do 15 Misterio Fergezia do Santo Antonio Alem do Carmo epor Achamos todos Corformes pretammos Nossa Fremeza de o bresevar e Faze obrecervar Nesta Valedoza Sidade da Bahia de todos o Santos Eu que Fis e Cobrequever Como Sracretario Manoel Victo Serra e Fis Sor berçerver10
Manuel Vítor Serra deixa claro, propositalmente, que a Sociedade pertencia a crioulos livres de ‘cores pretas’. A expressão crioulo, por si só, já encerra a idéia de negros nascidos no Brasil, no entanto o autor a reforçou com “Naçidos no Inperio do Barzelio”. Não parece ter sido à-toa esse procedimento. Há algo de intencional nele. Para aquilo de que se procura dar conta – a origem dos membros da Sociedade –, não deixa de ser estranho o fato de que uma irmandade fundada por africanos tenha passado a não admiti-los mais como sócios. Ser brasileiro, ou melhor, natural da terra, passou, a partir de então, a ser critério observado com rigor para os candidatos a irmãos da SPD. Em 15 de dezembro de 1855, um ‘sócio amante da Sociedade’
10 Livro de atas de 1832 (Relíquia da Sociedade Protetora dos Desvalidos). Acervo da Sociedade Protetora dos Desvalidos.
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indefere o requerimento de um candidato por este não ser nacional. Veja-se o documento enviado ao Presidente e mais sócios11:
Illustríssimos Senhores Prezidente e mais Socios da Sociedade Amparo dos Desvalidos. Participo a Vossa Senhorias que o Candidato Chamado - Luiz de tal apezar de ser artista e ter bom comportamento até ao prezente bem como ter aprezentado Certidaõ de Baptismo mesmo assim naõ se acha no caso de ser adimittido para Socio da Sociedade, porque naõ está em conformidade do que determina o artigo 3 e 45 dos nossos estatutos (por naõ ser nacional), e assim espero que VossaSenhorias tomem em Concideraçaõ o que acabo de relatar, e termino conciderando-me ser. DeVossaSenhorias Muito Attenciosamente.
‘Luiz de tal’, apesar de artista e apresentar bom comportamento, teve como impedimento à sua aceitação como sócio o fato de não ter nascido no Brasil. O documento ainda revela outro dado bastante interessante a esse respeito: ser nacional era critério legitimado nos artigos 3 e 45 dos estatutos da Sociedade. O que teria ocorrido para que, dentro da SPD, se operasse mudança tão significativa? Formulada em outros termos: por que a SPD, iniciada por africanos, não permitiu que seus congêneres, a partir de um dado momento, fizessem mais parte da sua constituição? Nenhum dos autores lidos atentou a esse processo havido na Sociedade, o qual, como já se colocou de sobreaviso, é fundamental quando os textos ali produzidos serão objeto de análise lingüística. A explicação que se aventará aqui é, como não poderia deixar de ser, uma hipótese. Para isso, faz-se necessário trazer de volta o clima no qual mergulhou a cidade de Salvador após ter-se sufocado a Revolta dos Malês. Segundo Reis (2003, p. 451-549), após a Revolta, capitaneada por negros islamizados, uma atmosfera de histeria, racismo, perseguição e violência contra os africanos tomou conta da Bahia no ano de 1835. Os vencedores se lançaram à vingança, espancando e assassinando indiscriminadamente africanos pacíficos e 11
Livro de registro de pagamento de sócios, ano 1848. Acervo da Sociedade Protetora dos Desvalidos.
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inocentes que fugiam aterrorizados cada vez que uma patrulha despontava em sua frente. Africanos tiveram constantemente as suas casas invadidas por ordem policial e os que não davam, aos olhos dos dirigentes da lei, respostas convincentes eram imediatamente encaminhados às prisões públicas. A sociedade soteropolitana da época também deu a sua contribuição à perseguição, denunciando africanos que conhecia. Dessa forma, as batidas policiais, ocorridas durante todo o ano de 1835, fizeram centenas de africanos detentos. Diante desse quadro de terror, não foram poucos os africanos que retornaram à sua terra de origem, por vontade própria ou porque as autoridades assim ordenavam. Os que na Bahia permaneceram tiveram suas vidas controladas por uma série de medidas legais. Ainda de acordo com Reis (2003, p. 496-497), em 21 de fevereiro de 1835, o chefe de polícia Gonçalves Martins assinou um edital que se tornaria um dos principais instrumentos de ação policial contra os africanos. Estabelecia-se, por ele, que todo escravo encontrado nas ruas depois das 8 horas da noite deveria trazer consigo um passe, assinado pelo senhor, em que fossem indicadas a hora em que saíra de casa e a hora em que deveria a ela retornar. Quanto aos libertos que na rua fossem encontrados após o horário prescrito, deveriam ter “um destino que se julgar conveniente” (REIS, 2003, p. 496). Sendo assim, os escravos, desde que portassem a licença requerida, podiam circular com mais liberdade que os livres e libertos pelas ruas da cidade. Analisando as prisões efetuadas durante o período de 1835 a 1837, utilizando como fonte os relatórios das rondas policiais, Reis, anteriormente mencionado, observa que nenhum brasileiro foi preso com base no edital acima referido. Ao contrário, eram africanas as 143 pessoas detidas no período. Para dificultar a vida desse contingente, foram também criados outros dispositivos legais. A lei nº. 9, de 13 de maio de 1835, prescrevia que todo africano que na Bahia vivesse, quer fosse suspeito ou não, deveria deixar o país tão logo o governo provincial arranjasse lugar na África para recebê-lo. Enquanto isso não acontecia, deveria pagar um imposto anual avaliado em 10$000, o que equivalia a três arrobas de carne seca ou 73 litros de feijão ou 16 litros de farinha de mandioca. Os juízes de paz ficaram responsáveis por vigiar as moradas dos africanos, objetivando, ao mesmo tempo, facilitar a coleta do 41
imposto e ter controle sobre os seus movimentos na cidade. Ainda neste ano, os africanos foram proibidos de possuir bens móveis de qualquer espécie e, se quisessem alugar quartos, não poderiam fazê-lo sem a permissão do juiz de paz. Até os espaços onde os negros, africanos ou não, tinham uma relativa autonomia, como foram os ‘cantos de ganho’, em que trabalhavam regidos por leis próprias, foram alvo de vigilância e, conseqüentemente, de profunda reestruturação. O comando dos ‘cantos’, antes sob a responsabilidade do capitão-do-canto, negro, foi entregue aos capatazes, que, nomeados pelos juízes de paz das freguesias, deveriam cuidar do bom comportamento e do desempenho dos ganhadores em serviço, em troca de um salário razoável. Aliás, aos africanos forros, restringiu-se-lhes a natureza dos gêneros que deveriam comercializar. Em 4 de novembro de 1835, um edital proibiu que revendessem gêneros de primeira necessidade. Para concluir esse excurso à Salvador pós-Levante Malê, as seguintes palavras de Reis (2003, p. 478): A fórmula de punição aos rebeldes foi clara: açoite para os escravos, deportação para os libertos. Africanos e brasileiros entendiam as implicações dessas medidas: a presença dos primeiros só interessava aos segundos se eles servissem como escravos ou, se libertos, agissem como tais. Já que obediência e submissão não foram conseguidas com a tranqüilidade desejada, tratou-se de livrar a Bahia dos libertos e manter os que aqui permaneceram sob severa vigilância. O objetivo era tornar a vida do liberto insuportável a ponto de obrigá-lo a emigrar espontaneamente e de fazer o escravo desistir de se tornar liberto. Os homens que controlavam a província podiam ser cruéis sem precisar ser sanguinários como os escravocratas norte-americanos ou jamaicanos, que preferiam matar escravos rebeldes.
Não passariam incólumes às medidas repressivas também as irmandades negras de composição africana. Nesse caso, estava a SPD. Observe-se que o documento através do qual o seu membro-fundador, Manuel Vítor Serra, define a Sociedade como uma irmandade composta por crioulos – negros nascidos no Brasil – foi escrito em 29 de março de 1835, dois meses após o Levante dos Malês, época em que a ‘caça às bruxas’ estava em seu auge. Embora a ligação dos membros da SPD com a religião islâmica não fosse às escondidas, como diz Verger (1987, p. 518), nada foi provado sobre o envolvimento de indivíduos dessa irmandade com o levante. No entanto, não seria desarrazoado propor que, como medida de precaução, ou, quem
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sabe, por imposição12, a SPD tenha mudado, a partir de 1835, o perfil dos seus membros, quanto à origem, por conta das perseguições havidas na cidade de Salvador, após o Levante. Dessa maneira, não parece ter havido ali, como se observou para tantas irmandades negras que se constituíram em Salvador, uma aliança inter-étnica entre africanos e crioulos; o mais provável de ter ocorrido, e a documentação primária o demonstra, foi uma mudança radical em relação à admissão de membros de um momento em que a SPD era notadamente de feição africana – embora o critério para a sua fundação, como já se disse, não fosse étnico e, sim, religioso –, para outro em que ser crioulo, negro nascido no Brasil, era exigência para dela tornar-se. Exigência, aliás, que, ao menos em um caso, parece ter sido levada a extremos. Em finais da década de 40, José Antônio Ferreira da Silva, nascido no Brasil, casado, 36 anos e oficial de barbeiro, apresenta o seu requerimento à SPD13. O seu perfil não destoa do de muitos candidatos aprovados e, a princípio, estava em acordo com o que exigia a irmandade para a admissão de membros, não fosse uma nota como a querer desqualificá-lo: tinha pais africanos. Se o requerimento não faz menção ao fato de ter sido aprovado, também será o único documento em que se ‘ouve’ falar de José Antônio Ferreira da Silva, índice seguro de que não entrou para a SPD.
2.3.1. LETRAMENTO ENTRE OS MEMBROS DA SPD Já se apontou anteriormente que o critério de congregação dos fundadores dessa irmandade parece ter sido o religioso, isto é, professavam, ao lado do catolicismo, a religião muçulmana. Sendo assim, há consenso, pelo menos quanto aos iniciadores, no sentido de que eram malês os negros que passaram a fazer parte daquela associação. Antes da revolta de 1835, consoante Verger (1987, p. 518), o culto à religião islâmica era feito pelos seus membros às claras. A repressão advinda com a repressão ao levante foi suficiente para se impor outro critério quanto à origem, mas não para que os sócios da irmandade deixassem de lado a religião dos membros Essa questão precisa ser melhor esclarecida. Na documentação primária e nas fontes secundárias pesquisadas para compor este item, nenhuma pista é fornecida no sentido de se elucidar esse tópico. 13 Livro de registro de pagamento de sócios, ano 1848. Acervo da Sociedade Protetora dos Desvalidos. 12
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fundadores. Monteiro (1987, p. 67-96) lista uma série de indivíduos que confirmaram ter tido o muçulmanismo vida longa dentro da irmandade, muitos deles pertenceram – o autor se comprometeu a publicar o livro depois que todos os seus informantes morressem – ou tiveram ancestrais sócios da SPD. Destaca-se ainda, com base na documentação remanescente, que a política corrente não permitiu que nenhum branco ou pardo se tornasse membro, por isso se pode concluir que são remotíssimas as chances de que os textos ali produzidos tivessem sido escritos por mãos brancas. Diante disso, pode ser que a alfabetização entre os sócios da SPD, ao menos para os seus iniciadores, possa ser explicada, mas não só, pelo fato de se fazer presente na irmandade a religião muçulmana. Cabe ressaltar que caracterizava os negros malês a habilidade na leitura e na escrita, pelo menos em língua árabe. Entretanto a historiadora Antonietta d’Aguiar Nunes (2000, p. 13) afirma que Manuel Vítor Serra, fundador da SPD, era maometano, com base no argumento de ser ele alfabetizado e de se preocupar com a educação dos demais negros, em uma época em que não podiam freqüentar escolas, muito menos saber ler e escrever. Observe-se que ser alfabetizado foi o indício de que se utilizou a historiadora para mostrar a devoção do fundador da SPD ao maometanismo e não o contrário. Não fica explícito, entretanto, se, sendo muçulmano, Manuel Vítor Serra incentivava a educação de seus pares em árabe ou em português. Tende-se a acreditar que, se o fez em árabe, o fez também em língua portuguesa. De fato, Nunes (2000) tem razão quando coloca o fundador da SPD como alfabetizado; comprovamno os inúmeros textos autógrafos por ele escritos. Monteiro (1987, p. 64) também coloca, entre os negros muçulmanos da Salvador oitocentista, Luís Teixeira Gomes, primeiro escrivão da SPD, autor de 15 documentos. Além desses, mais quatro membros fundadores – Gregório Manuel Bahia, José Fernandes do Ó, Manuel da Conceição e Manuel do Sacramento e Conceição Rosa – todos muçulmanos, conforme Monteiro, referido acima, também são autores de documentos escritos na SPD. Diante disso, pode-se cogitar que a preocupação com a alfabetização de outros membros talvez não fosse afeta apenas a Manuel Vítor Serra, mas também a outros sócios, àquela altura já letrados, e, assim sendo, é possível que tenha se espalhado
44
entre os membros da SPD aquela ‘iluminação do século XVIII’ a que fazem referência os irmãos da Irmandade de São Benedito. A documentação dá alguma pista do que se contou acima. Baltazar dos Reis, membro fundador, africano, portanto, fez parte da Sociedade em um momento em que era freqüente os sócios fazerem constar, de punho próprio, a sua assinatura depois dos documentos. Seu nome está estampado em vários deles, mas, ao longo de sua permanência nos inícios da SPD, pediu aos seus pares que o fizessem. Isso e mais o fato de um documento do ano de 1834 trazer explicitamente a informação de que Joaquim do Nascimento assinou a rogo de Baltazar dos Reis indicam ser o último analfabeto. Acontece que, algum tempo depois, entra em cena o nome de Baltazar dos Reis com uma caligrafia trôpega, insegura e, o que é mais importante, que não se identifica com nenhuma outra. O sócio, ao que tudo indica, já estava escrevendo o nome com as próprias mãos, mas, vez por outra, era ainda um seu par quem assinava por ele. Excetuando-se essa última parte, a narrativa se estende também a outro membro, Henrique de Oliveira. Resta ainda a fazer uma inferência, a de que, mesmo não se sabendo com exatidão a trajetória percorrida pelos sócios fundadores da SPD para se alfabetizarem, possivelmente o domínio da escrita se representou no âmbito da irmandade em graus distintos. Um método, vagamente apresentado quando se referiu à assinatura de Baltazer dos Reis, vem da paleografia italiana, de um artigo antológico de Armando Petrucci (1978). O paleógrafo admite, para qualquer tempo histórico, a imersão de um indivíduo na cultura escrita através de uma visão tripartida no que toca às características físicas da execução caligráfica. Os escreventes com competência gráfica elementar ou de base se manifestam por apresentarem traçado muito descuidado, incapacidade de alinear perfeitamente as letras num regramento ideal, tendência a dar às letras um aspecto desenquadrado, uso de módulos grandes, emprego de letras maiúsculas do alfabeto mesmo no meio da palavra, abreviaturas escassas, bem como a falta de ligação entre os caracteres das palavras e, por fim, rigidez e falta de leveza ao conjunto do texto. Em outro extremo, localizam-se as mãos com competência gráfica elementar, ou seja, as ‘in pura’, no dizer de Petrucci (1978), reconhecendo-se-lhes as seguintes características: escrita 45
tecnicamente bem executada, cercada de detalhes, identificáveis, sobretudo, em filetes enfeitados junto às letras; módulo pequeno, produzido com muita segurança e perícia, respeitando a relação entre o corpo da letra e as hastes, sejam elas descendentes ou ascendentes. Diferenciam-se ainda pelo limitado número de abreviações e, quanto aos ligamentos entre letras, prezam pela espontaneidade, fruto de uma escolha estética. Entre esses extremos – mãos com competência gráfica elementar ou de base e mãos ‘in pura’ –, assentam-se as ‘in usual’, que registram maior fluidez na escrita, traçado mais regular do que os do primeiro grupo, módulo menor da letra também melhor alinhada, uso de abreviações e de ligamentos. De modo geral, é uma escrita de quem não ficou relegado ao nível elementar, mas que é usada por necessidades de trabalho ou, então, por quem, tendo um bom modelo, o repete de maneira diligente sem necessariamente precisar de um exercício constante. Esse grupo se destaca pela heterogeneidade, abraçando, por vezes, características afetas tanto à primeira, quanto à terceira facção. Nos documentos escritos pelos africanos e que compõem a base empírica dos trabalhos lingüísticos que estão por vir, encontram-se representantes residindo nesses três níveis de competência gráfica14. De fato, depois de lida tão longa exposição, está mais do que claro que o leitor não teve acesso apenas a uma Introdução. Mais do que isso: procurou-se situar os atores que escreveram os documentos, predominantemente atas, nos seus cenários, que não deixarão, como em qualquer trabalho de natureza semelhante, de ser aproximativos. O que resta dizer, então? Por certo, muita coisa; por ora, que se navegue nos dez estudos sobre o português escrito por africanos no Brasil do século XIX. REFERÊNCIAS ALKMIM, Tânia Maria (2001). A variedade lingüística de negros e escravos: um tópico da história social do português no Brasil. In: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Org.). Para a história do português brasileiro. Volume II: primeiros estudos. t. 2. São Paulo: Humanitas. p. 317335.
14
Veja-se a questão mais desenvolvida no Capítulo 8.
46
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TÓPICO Edivalda ARAÚJO1 (UFBA) INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é analisar as construções de tópico realizadas nas atas escritas, no século XIX, em português, por africanos, tendo como base o corpus editado por Oliveira (2006), da Sociedade Protetora dos Desvalidos. Procuramos demonstrar que as construções de tópico presentes nas atas são provavelmente derivadas de uma aprendizagem tosca e irregular da língua portuguesa. Tal pressuposto se justifica a partir dos dados que evidenciaram construções de tópico diferenciadas das previstas para o português, como, por exemplo, a realização de verbo sem um dos argumentos expressos, cuja identificação da referência se apóia exclusivamente no contexto do qual faziam parte, revelando daí construções de tópico nulo, nos termos de Huang (1984) e Hyams (1992). Vale salientar, entretanto, que o fato de julgarmos que houve uma aprendizagem “tosca” da língua portuguesa não implica acreditar na falta de domínio ou de conhecimento lingüístico elaborado, incluindo-se aí, possivelmente, as estratégias da língua escrita em suas línguas de origem, como mostra o trabalho de Oliveira (2006). O texto está organizado em cinco seções, além da introdução e das considerações finais: na 1, discutimos a questão do tópico e do tópico nulo; na 2, apresentamos uma análise das características do português em solo brasileiro no século XIX; na 3, ao lado de construções típicas de realização de argumentos do português da época, analisamos as construções que apresentam o tópico nulo; a seguir, na 4, comprovamos, com dados das atas, a análise dos argumentos como tópico nulo; na 5, trazemos outros fatos que, de certa forma, reforçam a nossa proposta de análise, como as construções de tópico na sintaxe visível, a assimetria na ocorrência dos argumentos nulos e a comparação com estruturas de textos semelhantes da mesma época. 1 Agradeço Charlotte Galves (UNICAMP) e Ilza Ribeiro (UFBA) pelos comentários e sugestões. Problemas, se persistirem, são de minha responsabilidade.
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1. A QUESTÃO DO TÓPICO O tópico é um elemento que faz parte da interface sintaxe e discurso, obedecendo à distribuição da informação na oração, ou melhor, à estrutura da informação. Para satisfazer aos requisitos dessa estrutura, os elementos são distribuídos na oração de modo a refletir ou o conhecimento comum entre os interlocutores – informação pressuposta (o tópico) – ou o conhecimento só do falante/escritor acerca de algum fato ou evento – informação asserida2 (o foco). Em função de ser um elemento da interface, o tópico é analisado sob duas perspectivas: sintaticamente, o tópico pode se realizar como um DP3 lexical ou pronominal, geralmente deslocado à esquerda em uma oração, em torno do qual será construído um predicado ou comentário; discursivamente, entretanto, o tópico não é visto apenas como um constituinte deslocado na oração, mas como um princípio de direcionamento do discurso, sinalizando que o falante/escritor pressupõe ser a informação desse constituinte inicial conhecida pelo ouvinte/leitor. Ou seja, o falante/escritor presume que a informação escolhida para ser o tópico já está disponível na mente do ouvinte/leitor no momento da produção lingüística. Realizado fonologicamente em uma sentença, o tópico apresenta as seguintes características:
i)
é definido, porque é sobre algum referente;
ii) é referencial, uma vez que o seu referente deve ser identificável pelo falante/escritor
e
pelo
ouvinte/leitor
no
processo
de
interação
comunicativa; iii) é identificável, ou seja, acessível no discurso, marcado com os traços de definitude e de especificidade.
Para van Dijk e Kintsch (1983), as construções de tópico estão relacionadas às estratégias de construção sintática, em combinação com as estratégias discursivas,
2 3
Cf. Lambrecht (1996) O DP é a base, podendo ser encabeçado por preposição.
51
com a função de indicar sobre o que é a oração ou o texto. Mas ressaltam os autores que a noção de tópico só pode ser propriamente definida em termos das relações entre uma sentença e o contexto. Além disso, para eles, a menção prévia explícita de algum conteúdo não é necessária para que o tópico possa ser considerado como referencial, uma vez que os interlocutores podem gerar inferências a partir do conhecimento partilhado entre si, para fazerem a conexão do tópico com o conteúdo implícito, como ocorre nas construções de tópico nulo, em que, como veremos, a referência ao conteúdo só pode ser feita dentro de um contexto. A possibilidade de não realização fonética do tópico, ou do tópico nulo, contudo, está condicionada à configuração sintática da língua. Ou seja, as línguas, apesar de permitirem construções de tópico, vão diferir em relação à possibilidade de ocorrência ou não do tópico preenchido ou nulo. 1.1. O TÓPICO NULO Existem línguas de sujeito nulo e línguas de tópico nulo. A escolha entre uma opção e outra está relacionada aos parâmetros definidos pela língua. A depender dessa escolha, existem três tipos de língua, como o mostra Huang (1984), baseado na classificação proposta por Ross (1982):
i)
“quentes”: aquelas que não permitem a omissão de pronomes de suas sentenças e as informações necessárias para o entendimento da sentença são obtidas na própria sentença, sendo este, por exemplo, o caso do inglês;
ii) “frias”: permitem a omissão dos pronomes, tanto na posição de sujeito, quanto na de objeto, porque parte do entendimento de suas sentenças depende de informações partilhadas entre o ouvinte e o falante e também de dados do contexto; é o caso do chinês; iii) “médias”: permitem a omissão dos pronomes na posição de sujeito de uma oração finita, mas não na posição de objeto ou de não-sujeito; são assim, por exemplo, o italiano e o espanhol.
52
A partir da análise das categorias vazias do chinês, Huang (1984) chega à conclusão de que o que diferencia as línguas “frias”, como o chinês, das línguas “quentes”, como o inglês, é a possibilidade de aquelas permitirem um tópico zero ligando uma variável (ou a categoria vazia na posição do objeto), o que não acontece com as línguas “quentes”. Indo mais além, o autor estabelece uma relação entre os tipos de língua e as ocorrências de categorias vazias, mostrando que existem dois parâmetros que vão definir quatro tipos diferentes de língua: o parâmetro do tópico zero, que distingue línguas de tópico zero de línguas de tópico não-zero; e o parâmetro do sujeito nulo, que distingue línguas que permitem sujeito nulo de línguas que não o permitem. Esses dois parâmetros vão derivar os seguintes tipos de línguas:
(i) Línguas que não apresentam nem tópico zero nem sujeito nulo, como o inglês e o francês; (ii) Línguas com sujeito nulo, mas que não permitem o tópico zero, como o italiano e o espanhol; (iii) Línguas que apresentam tanto o tópico zero quanto o sujeito nulo, como o japonês, o chinês e o português brasileiro; (iv) Línguas que permitem o tópico zero, mas não apresentam sujeito nulo, como o alemão.
Na verdade, o cerne da discussão está na definição do que seja um tópico nulo. A partir de exemplos do chinês, Huang (1984) apresenta a definição desse tipo de tópico e a sua ocorrência:
1.
neige reni Zhangsan shuo [Lisi bu renshi e4i]. that man Zhangsan say Lisi not know ‘That mani, Zhangsan said Lisi didn’t know ei5’. (HUANG, 1984, p. 542)
4 5
O e representa empty = vazio. Tradução: Aquele homemi, Zhangsan disse que Lisi não conhecia ei
53
Em (1), o objeto encaixado – neige ren – foi topicalizado na posição inicial da sentença. Pode-se dizer, então, que todas as informações estão presentes na sentença, inclusive o tópico, diferentemente do que ocorre abaixo
2.
[Top ei], Zhangsan shuo [Lisi bu renshi ei]. Zhangsan say Lisi not know ‘*[Himi], Zhangsan said Lisi didn’t know ei’. (HUANG, 1984, p. 542)
em que, de acordo com a análise apresentada pelo autor, não há lacuna do objeto, mas do tópico. Para ele, primeiro ocorre a topicalização do objeto, como em (1), e, depois, o elemento na posição de tópico é apagado, derivando, conseqüentemente, o tópico nulo. Ou seja, o que está ausente na realização da frase em (2) não é o objeto, mas o tópico, que pode ser recuperado a partir de informações do contexto. O tópico nulo também pode acontecer em cadeia, como ocorre em:
3.
(As for) China, (its) land area is very large. (Its) population is very big. (Its) land is very fertile. (Its) climate is also very good. We all like (it). (HUANG, 1984, p.549)
O primeiro tópico – China – é realizado na primeira frase, mas, nas subseqüentes, os elementos que estão entre parênteses representam a ausência de realização e sinalizam o lugar de apagamento do tópico. Ou melhor, os elementos ausentes estão co-indexados, ligados na mesma cadeia interpretativa de um mesmo tópico – China –, mas esse tópico, nas frases seguintes, é nulo. Para esses casos, Huang (1984) acredita que há uma regra de co-indexação, na gramática do discurso de uma língua orientada para o discurso (no módulo da Forma Lógica), que coindexa um nódulo de tópico vazio com um tópico precedente apropriado. Em línguas orientadas para a sintaxe, ou melhor, nas línguas “quentes”, como o inglês, ou nas “médias”, como o português, isso não ocorre, porque elas têm uma gramática do discurso menos substantiva, o que implica ausência de regra de interpretação da cadeia de tópico.
54
2. CARACTERIZAÇÃO DA LÍNGUA EM ANÁLISE: O PORTUGUÊS O português do início do século XIX, em solo brasileiro, apresentava, de modo geral, os traços característicos da vertente européia; dentre outros, a ocorrência do sujeito nulo. Ou seja, o português no Brasil desse período exibia propriedades inerentes ao Parâmetro do Sujeito Nulo; dentre elas, além do não preenchimento do sujeito pronominal em orações principais, havia ainda a possibilidade de inversão de sujeito e categoria vazia na posição de sujeito em orações subordinadas. O sujeito nulo, de acordo com Rizzi (1986), é um elemento pronominal não realizado foneticamente – um pro –, mas que pode ser recuperado nas informações sintáticas da frase, como, por exemplo, na marcação da morfologia do verbo. Isso implica que pro deve ser formalmente licenciado e identificado, como vemos em (4):
4. pro estudamos à noite.
Nesse exemplo, o sujeito nulo não é foneticamente realizado por nenhuma categoria nominal, mas é licenciado e identificado no verbo através do morfema –mos de 1ª pessoa do plural. Esse licenciamento de não realização fonética do sujeito pronominal está restrito à 1ª e à 2ª pessoas do discurso, singular ou plural, e à 3ª pessoa do plural. Nas construções com a 3ª pessoa do singular, como indica Roberts (2007), a falta de referenciação para pro impõe restrições para a sua realização, mesmo em línguas de sujeito nulo. Desse modo, não existe a possibilidade de uma construção do tipo que encontramos em (5): 5. *pro estudou.
a não ser que haja um contexto imediatamente prévio que possa fornecer as informações necessárias para a interpretação de pro, como em:
6. A: João estudou? B: pro estudou.
55
Diferentemente do exemplo em (5), a construção em (6B) é licenciada não só pela flexão, mas também por dados imediatamente prévios do contexto. Tais exemplos poderiam indicar que o português é uma língua “média”, conforme classificação de Huang (1984), porque permite a realização de uma categoria vazia na posição de sujeito de oração finita. Porém Galves (2001) evidencia que o português europeu, nas frases com tempo, requer um sistema que não leve a ambigüidades entre determinação e indeterminação. Desse modo, uma frase como
7. pro pensa que os adolescentes gostam de celular.
só é permitida se houver uma interpretação determinada – um pro – imediatamente recuperável no contexto prévio. Não havendo essa recuperação prévia, a frase é considerada agramatical. Para evitar ambigüidades, o sistema lança mão do recurso da inserção do se, para obter uma interpretação indeterminada, como em:
8. Pensa-se que os adolescentes gostam de celular.
Na frase acima, a falta de referenciação ou de identificação para a categoria vazia do argumento externo do verbo pensar é compensada pelo pronome expresso – se –, que indica a indeterminação do argumento, diferentemente do que ocorre em (7), em que a não realização do argumento externo do verbo pensar indica que há uma co-indexação da categoria vazia nessa posição com um elemento expresso no contexto prévio. Se não houver essa interpretação, a frase será considerada agramatical. De modo geral, de acordo com o que foi acima discutido, podemos dizer que o português do início do século XIX, apesar de permitir construções de sujeito nulo na 1ª e na 2ª pessoas (no singular ou plural) e na 3ª pessoa (plural), não permitia a realização livre de sujeitos nulos com a 3ª pessoa do singular, em função da impossibilidade de se identificar o seu conteúdo. O pro, nesse tipo de realização, seria menos referencial, conforme designação proposta por Cardinaletti e Starke (1999), o que resultaria numa construção agramatical para o parâmetro do português da época. 56
3. OS DADOS LINGÜÍSTICOS DAS ATAS: O TÓPICO NULO Considerando as características do português da época, primeira metade do século XIX, podemos dizer que havia várias formas de realização dos argumentos verbais, dentre elas, o sujeito nulo, a apassivação pronominal, a inversão do sujeito, e, em relação ao objeto, ou a realização nominal seguida de retomada pronominal ou a cliticização. Tais formas foram encontradas na análise das atas produzidas pelos africanos, o que indica que eles tinham um relativo domínio das estratégias de realização dos argumentos de acordo com o português da época, como o revelam os dados abaixo nos elementos em destaque:
EM RELAÇÃO AO SUJEITO:
Realização do sujeito nulo: 9. es tando o Provedor emais mezarios Reunido em meza lemos otermo em midiato do que ficou adiado (JFO.5)
10. deu-se todos poderes ao Nosso Irmaõ Consultor Manoel da Conceicam para exercer de Thezoureiro té que em o dia daposse dezesseis do Corrente; e com estes poderes pode tudo pagar (LTG.1)
Apassivação pronominal: 11. mandou o Prezidente que selança-çe es te termo em que nos a signamos (GMB.2) 12. Feixosse achamada com tinuouse os trabalho (LTG.13) Inversão de sujeito:
13. epor estar Com forme mandou o Provedor lavra este (JFO.2) 14. sentaraõ que de - Veraõ ser feita as suas mezas nos dias asima (MSR.9)
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Realização nominal, seguida de retomada pronominal: 15. Fica em meopoder hum Coffre feixado com três/chaves Axando-se huã em maõ do Juiz Manoel/Victo, outra na do Escrivaõ Luiz Teixeira Gomes/outra na do Procurador Geral Joze do Nacimento (LTG.3)
EM RELAÇÃO AO OBJETO:
Cliticização do objeto: 16. paçou-se es te termo para Constar os feito desta Re uniaõ eeu es Crivaõ Auctual ofis e Subri, es Crivi (JFO.4)
17. mandou oprovedor Lavra estes ter mo em que nos acinamos e eu o Escrevi (JFO.8)
Nas construções em (9)-(17), podemos observar as possibilidades de realização dos argumentos seguindo as normas do português da época em análise. Ao mesmo tempo, ao lado de realizações desse tipo, encontramos construções em que, por vezes, um dos argumentos do verbo não é realizado, como podemos ver a seguir:
Não realização do sujeito: 18. e para Ø constar mandou o Prezidente que selança-çe es te termo em que nos a signamos (GMB.2)6
19. epor Ø estar Com forme Ø mandou lavra este para Constar Herá Suprá Cons cistorio dos des Valido etc. (JFO.7)
20. epor Ø esta Comforme Ø mandou passar este pormim, em falta do Secretario (JFO.11)
Essas construções revelam distanciamento do português da época, uma vez que a recuperação do conteúdo dos argumentos que se encontram nulos está diretamente subordinada ao contexto. Considerando os dados em (18)-(20),
Charlotte Galves (c. p.) chama a atenção para o aspecto formulaico do exemplo em (18) e conseqüentemente para a sua freqüência em documentos como atas, o que não justificaria a sua inclusão na análise aqui realizada.
6
58
levantamos o seguinte questionamento: são exemplos de sujeito nulo ou de tópico nulo? Lipski (1999), em análise de dados de crioulos de base românica, como o espanhol, o francês e o português, por exemplo, detectou realizações de sujeito nulo completamente diferentes de suas línguas de origem7. Nesses crioulos, existe um tipo de categoria vazia pronominal na posição de sujeito, mas que não se comporta sintaticamente como um sujeito nulo típico das línguas de sujeito nulo. Embora seja um pro referencial, diferencia-se por ser pragmaticamente ligado às informações do contexto discursivo. É o que podemos ver no crioulo das Filipinas de base espanhola, em (21); no crioulo mauriciano, de base francesa, em (22); no crioulo, de base portuguesa, em (23):
21. Ta pwede pa kome chicharon maskin kwanto bilug ya lang el dyente 8 [He] can still eat pork rinds no matter how many teeth [he has] left'
22. lôtâ, 0 ti degrad karo kan ar pios9 `Long ago, [people] cleared canefields with a pickaxe'
23. Iou-sua avô-cong, quelóra [0] já tocá Pacapio, azinha-azinha [0] mudá vai Pénha ficá. [0] Non-pôde achá casa bem-fêto, já virá nôs tudo ficá na vacaria.10 `My grandfather, when [he] came from Pacapio, then [he] moved to Penha. [We] couldn't find a well-built house, so we returned to the parsonage.'
A análise de Lipski (1999), para os exemplos acima, revela que os sujeitos nulos são referenciais e, portanto, um pro, mas tipologicamente muito diferentes dos sujeitos nulos das línguas românicas, uma vez que são restritos à posição de oração matriz, e a identificação dos traços só pode ser detectada através da referência ao discurso precedente, e não a elementos contidos na sentença.
É preciso que se esclareça que o francês é uma língua de sujeito preenchido, mas, em raras situações (como em receitas, por exemplo), permite, assim como o inglês, o sujeito nulo. Todavia os crioulos daí derivados, como indica o autor, criaram construções de sujeito nulo que não se assemelham com os dados do francês. 8 Dados de Frake (1980, p. 301, apud LIPSKI, 1999). 9 Dados de Baker & Corne (1982, p. 89-90, apud LIPSKI, 1999) 10 Introduction to the comedy "Qui-nova, Chencho" (FERREIRA, 1973, p. 165, apud LIPSKI, 1999) 7
59
Para o autor, a diferença entre o uso do pronome nulo, nos exemplos acima, e o licenciamento de pronomes nulos, em línguas de sujeito nulo, é o tipo de julgamento de aceitabilidade oferecido pelo falante nativo. Em português e espanhol, os falantes aceitam qualquer uma dessas frases como contendo um sujeito nulo e, de fato, preferem os pronomes nulos à realização deles. Nos crioulos de base românica, as sentenças com pronomes sujeitos nulos não são aceitas isoladamente, visto que a falta de concordância nessas línguas torna a identificação do sujeito impossível em orações simples. Porém, quando os pronomes são omitidos em contexto bem definido, que permita a sua identificação, os falantes desses crioulos reconhecem a gramaticalidade das sentenças. Ao compararmos os dados dos crioulos de base românica apresentados por Lipski (1999), em (21)–(23), e os encontrados no corpus sob análise, (18)-(20), percebemos uma clara semelhança entre eles, como se os dados fossem parte dessas realizações. Discordamos, contudo, da análise indicada pelo autor de que seriam casos de sujeito nulo referencial, um pro, nos termos de Rizzi (1986). Ao contrário, preferimos acreditar que a categoria vazia no lugar do sujeito seja um pro referencial, mas seguindo o que propõe Holmberg (2005) e Hyams (1992). A discussão em torno do pro, como sujeito nulo referencial, recebe uma nova configuração a partir da análise apresentada por Holmberg (2005). Para esse autor, existem dois tipos de língua:
i)
as que possuem flexão rica, como o italiano e o espanhol;
ii) as que não possuem nenhum tipo de concordância, mas se apóiam exclusivamente no contexto, recuperando aí os traços necessários para a interpretação do sujeito nulo, como o chinês e o japonês.
As do primeiro tipo obtêm todas as informações na sintaxe, não dependendo de informações do contexto, daí poderem licenciar o sujeito nulo; as do segundo tipo, mesmo sem flexão rica, podem liberar o sujeito nulo, porque as suas informações são do contexto, o que as torna independentes das informações sintáticas ou
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morfológicas. Estas línguas, em função da dependência contextual, permitem a ocorrência do tópico nulo, como é possível ver no exemplo em (24), do mandarim 24.
a. [e] me´i chı¯ zaˇofa`n. no eat breakfast ‘(I/You/He/etc.) have not had breakfast.’ (HOLMBERG, 2005, p. 40)
em que há ocorrência de uma categoria vazia [e] na posição do sujeito e cuja referência não pode ser encontrada nos traços morfológicos do verbo, mas somente no contexto discursivo. Holmberg (2005) argumenta que as línguas que têm sistema rico de concordância precisam de um sujeito especificado para assinalar os valores a AgrP11, o que implica que a categoria nominal, mesmo ausente da frase, é recuperada nas informações do verbo que detêm as marcas necessárias para a identificação do sujeito. Ou melhor, o sujeito, na verdade, não estaria ausente da frase, mas codificado nas informações do verbo, como acontece nos exemplos em (4), (9) e (10). As línguas que não têm sistema rico de concordância apresentam efetivamente um sujeito nulo cujas informações não estão diretamente na sintaxe, mas são recuperadas nas informações do contexto, como pode ser visto no exemplo em (24). Desse modo, para o autor, pro só existe em línguas que não possuem um sistema rico de concordância. Esse tipo de pro, ou de sujeito nulo, é considerado por Hyams (1992)12, uma realização do tópico nulo, do tipo que ocorre em línguas como o chinês e o japonês. A vantagem dessa proposta, para Roberts (2007), é que ela consegue estabelecer uma relação entre a ocorrência de frases com sujeitos não realizados na linguagem infantil em línguas de sujeito nulo com os sistemas que apresentam empobrecimento de concordância. Ou melhor, as crianças de línguas de sujeito nulo ainda não detêm todo o sistema de concordância de sua língua e, ao realizarem frases sem sujeito, estão, na verdade, produzindo frases de tópico nulo, do mesmo modo como o fazem
11 Categoria acima de VP, no diagrama proposto pela teoria gerativa, onde ocorrem as informações relacionadas à concordância 12 Apud Roberts (2007)
61
os adultos de línguas de sujeito nulo, mas cujo sistema de concordância não é rico, como o chinês e o japonês. A partir desse fato, teríamos, de acordo com Hyams (1992), evidências da existência do parâmetro do tópico nulo, o que explicaria o fato de tanto línguas de sistema flexional rico quanto línguas de sistema flexional pobre permitirem o sujeito nulo. Para ela e também para Holmberg (2005), a diferença entre essas línguas está no fato de que as primeiras, como o italiano e o português, requerem concordância verbal rica para recuperar o conteúdo do sujeito nulo, enquanto as segundas, como o chinês e o japonês, mesmo não tendo concordância, permitem argumentos nulos de vários tipos, devido à ocorrência do tópico nulo. É como se a ocorrência do tópico nulo pudesse garantir o preenchimento das informações e conseqüente interpretação dos argumentos nulos que não podem ser expressos pelo sistema flexional dessas línguas. O que dizer, então, dos dados encontrados em (18)-(20)? Consideramo-los como uma ocorrência de tópico nulo, com um pro referencial, ligado aos dados do contexto discursivo. Não descartamos as informações presentes em (9)-(17), visto que são evidências de que os africanos detinham conhecimento formal da língua da época, expresso nas diversas formas de realização dos argumentos. As construções presentes em (18)-(20) poderiam ser, como evidenciam os dados de Lipski (1999), resquícios de uma provável crioulização, o que explicaria o fato de haver concorrência de gramáticas nos dados analisados: construções com sujeito nulo (típicas de línguas com morfologia forte) e construções com tópico nulo (típicas de línguas com morfologia fraca). Fortalecendo essa proposta, encontramos mais dados no corpus, em que o argumento interno do verbo também não foi foneticamente realizado, como nas construções que seguem:
Não realização do objeto: 25. epara que Conste passou Ø oprezidente (MSR.2)
62
26. Aos quatro dias do mez de Agosto de1833, pedio Ø o Juiz Fundador Meza, perante esta compareceraõ os Deffinidor emais mezários reu- nido epropos o Juiz que sedevia Organizar hu)a Loteria de mil Belhetes (LTG.11)13
27. epor Achamos todos Corformes pretammos Nossa Fremeza de o bresevar Ø e Faze Ø obrecervar Ø Nesta Valedoza Sidade da Ba- hia de todos o Santos Eu que Fis Ø e Cobrequever (MVS.3)
Nos dados acima, considerando-se a proposta de Huang (1984), há uma ocorrência de tópico nulo – o argumento foi topicalizado e, conseqüentemente, apagado. Para Hyams (1992), é a existência do tópico nulo que garante o apagamento do argumento, uma vez que a interpretação desse argumento vai estar diretamente ligada ao contexto discursivo. Qualquer que seja o caso, estamos diante de construções que exibem o tópico nulo. Desse modo, tanto em (18)–(20), quanto em (25)–(27), defendemos a existência de tópico nulo, considerando que: •
a interpretação dos argumentos nulos está diretamente vinculada ao contexto discursivo, porque não há elementos internos ao texto que possam preencher a sua referência;
•
o português da época não licenciava construções em que o sujeito nulo da 3ª pessoa do singular pudesse ter sua referência no contexto, como foi discutido na seção 6, a não ser que sua referência estivesse imediatamente no contexto prévio;
•
o português da época não licenciava construções em que o objeto não fosse preenchido, como as que são observadas em (25)-(27);
•
há uma possibilidade de ter havido um processo fraco de crioulização, como indica Lucchesi (2001), e esses dados em (18)-(20) e (25)-(27) seriam resquícios
dessa
provável
crioulização,
já
a
caminho
de
uma
descrioulização, se considerarmos os dados de (9)-(17).
13 Ilza Ribeiro (c. p.) chama a atenção para o fato de que, no exemplo (26), o escrivão pode não ter colocado o complementizador que. Isso implica que o objeto direto do verbo pedir estaria presente [(que) perante esta compareceraõ os ...]
63
4. EVIDÊNCIAS DO TÓPICO NULO NAS ATAS Seguindo a proposta de Huang (1984), de Hyams (1992) e de Holmberg (2005), defendemos que as construções encontradas nas atas escritas por africanos apresentam evidências de ocorrência de tópico nulo, conforme explicado na seção anterior. Nesta seção, procuramos apresentar comprovações que evidenciem a ocorrência desse tipo de tópico, conforme exemplificação em (28) e (29):
28. Aos deis dia domes de Julho de1842 estando prezente o Pro-/vedor emais Mezarios fesse aReuniaõ do Costume eficou adi-/ado, o andamento do Comprimissó Sendo descutido pello an- / ticipado de Capitulo a Capitulo, ejuntamente aopiniaõ / da aprezentaçaõ do Irmaõ Ex-cecretario Marco Jozé do Ro- /zario, pello Capi tulo apontado pello no Seu memo Reque / rimento epor esta Comforme mandou passar este pormim, / em falta do Secretario (JFO.11)
As informações presentes no texto em (28) não dão indicações de quem mandou passar este. O argumento externo do verbo mandou não está presente na construção sintática, embora possa ser recuperado apenas através das informações contextuais, que, no caso da nossa análise, se referem à comparação com outras atas escritas. De modo geral, encontramos nessas atas as construções: mandou o provedor passar. Entendemos, então, que o argumento nulo do verbo mandar, no texto acima, não pode ser considerado um sujeito nulo nos termos propostos por Rizzi (1986), mas pode ser considerado um tópico nulo, de acordo com os argumentos de Huang (1984) ou de Hyams (1992). Ou seja, o provedor é o tópico nulo que liga o pro referencial de mandou, conforme análise proposta por Holmberg (2005). O texto a seguir, em (29), traz uma exemplificação do tópico nulo relacionado à posição de objeto:
29. Aos Vinte trez dias do mes de Fevereiro de 1834 / Estand o prezidente os Juiz Fundador e Prezidente/ da Junta de liberou aJunta que to dos Irmãos / Princi piante aes ta Devocaõ tenhaõ o termo / de D[o]finidores aquelles que merecer Unanim / amente Popular epara que Conste passou oprezidente / Bahia Escreve Como Sacretario de Junta., faco aprezente /e de Claro que hé a meza de 1832 para 1833- (MSR.2)
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No texto acima, encontramos três formas verbais sem argumentos expressos: conste, passou e escreve. Para o primeiro, não há referência do seu sujeito14 e, para os dois outros, não há referência interna para o que seja o objeto. Em todos os casos, entretanto, é possível a recuperação do conteúdo desses argumentos nulos através das informações contextuais, que, no caso da nossa análise, se referem à comparação com as outras atas. A partir daí, podemos entender que o que consta é o que foi discutido na reunião, o presidente passou o termo ou as informações constantes na ata e o secretário escreve o termo ou a própria ata. Todas essas informações, como se pode observar acima, não estão presentes no texto, mas são inferidas a partir dos dados do contexto. Considerando os dados apresentados até então, defendemos a ocorrência do tópico nulo, retomando argumentos tanto na posição de sujeito quanto na de objeto, conforme o demonstram os exemplos acima. A existência dessas construções pode indicar duas possibilidades não excludentes:
a) resquícios de uma provável crioulização da língua, uma vez que a língua de origem desses africanos era completamente diferente do português, o que demandou um esforço de aprendizagem, mas de modo irregular, considerando a sua posição social, o que pode ter levado ao desenvolvimento de um crioulo. Tal crioulização, entretanto, já estaria em vias de descrioulização, como o atestam as construções em (9)-(17); b) interferência das línguas de origem dos africanos em suas construções do português. Essa interferência, entretanto, ocorre de modo sutil, ou fraco, uma vez que é possível encontrar outras estratégias de realização dos argumentos do verbo, segundo o padrão do português da época, conforme exemplos em (9)-(17).
14
Ou do seu argumento interno, uma vez que o verbo é inacusativo.
65
5. OUTROS FATOS REVELADOS NA ANÁLISE DOS DADOS A análise das atas escritas pelos africanos, apesar de as considerarmos documentos formais, que seguem uma estrutura, evidencia alguns fatos interessantes em relação às construções de tópico, como, por exemplo: i) a realização de tópico na sintaxe visível; ii) a simetria entre os argumentos nulos e iii) a estruturação do documento, conforme modelos “oficiais” da época. É o que discutiremos a seguir.
5.1 A REALIZAÇÃO DE CONSTRUÇÕES DE TÓPICO NA SINTAXE VISÍVEL Além das construções de tópico nulo, foram encontradas também construções com tópico realizado na sintaxe visível, como podemos ver nos exemplos em (30)(31):
30. e com estes poderes pode tudo pagar, e cobrar: pois por elle ficamos responsável (LTG.1) 31. ea Comiçaõ Nomeadá epor ter preenchido, estes deveres, ficou marcadó apossé pará para treze de Dezembro deste mesmo annó (JFO.10)
Tais construções, entretanto, não foram realizadas em grande quantidade, havendo apenas os exemplos acima citados. A sua pouca ocorrência pode ser justificada se considerarmos que o apoio ao contexto com a realização de tópico nulo pode ter inibido a realização de tópicos visíveis.
5.2 A ASSIMETRIA ENTRE OS ARGUMENTOS NULOS Um fato que chama a atenção na análise é a assimetria entre as construções de argumento nulo envolvendo o sujeito e o objeto, conforme Tabela 1 abaixo:
66
Tabela 1: Comparação entre a realização dos argumentos nulos na posição de sujeito e de objeto Autores
Quantidade de documentos escritos
Sujeito
13 15 08 15 02 02 55
16 10 8 3 1 0 38
José Fernandes do Ó (JFO) Manuel do Sacramento e Conceição Rosa (MSR) Manuel Vítor Serra (MVS) Luís Teixeira Gomes (LTG) Gregório Manuel Bahia (GMB) Manuel da Conceição (MC) Total
Objeto
2 5 14 21 0 3 45
Os dados, por autor, constantes da Tabela acima, evidenciam que, à proporção que cresce o número de argumentos nulos na posição de sujeito, decresce o número de argumentos nulos na posição de objeto, ou vice-versa. Tal fato pode ser uma indicação de que os autores, de modo diferenciado, como se pode ver na comparação entre MSR e LTG, que escreveram a mesma quantidade de documentos (15), concebem o equilíbrio no não preenchimento das posições sintáticas. Ou seja, tem-se a impressão de que existe a noção, por parte dos escritores, de que pelo menos um argumento deve ter referência e ser identificado dentro do texto, deixando o outro argumento com referência direta no contexto.
5.3 A ESTRUTURAÇÃO DO DOCUMENTO Os documentos seguem a estruturação de atas escritas no período, como podemos ver no exemplo abaixo, uma ata escrita no mesmo período na câmara de vereadores da cidade de Salvador (BA):
32. CHEGADA DO GOVERNO PROVISORIO VINDO DE VILLA DA CACHOEIRA – TERMO DE VERIAÇÃO EXTRAORDINARIA
Aos tres dias do mez de Julho de mil novecentos e vinte e tres annos nesta cidade da Bahia e casas da Camara onde foi vindo o Doutor Juiz de Fóra do Crime interino Presidente e mais Vereadores, Procurador do Conselho ahi em vereação extraordinaria a que se procedeu positivamente para o fim de se tratar da Sagrada causa da Independencia da Aclamação do Imperador Constitucional do Brasil Seu Perpetuo Defençor na pessoa do Magnanimo Principe, Sucessor da Corôa, o Senhor Dom Pedro de Alcantara, foi accordado que visto haverem as Tropas Européias de Portugal, evacuado esta cidade no dia de ontem em que tão
67
bem entrarão alguãs das do Exercito Passificador da Provincia se afixasem Editaes convidando a todos os Cidadõens, Clero, Nobreza, e Povo a concorrerem em hum dia certo nestes Paços do Senado para com o seu voto se lavrar a respectiva acta sobre a referida Independencia, e Aclamação, asinado para este fim o dia dezeseis do corrente mês por ser o da Celebração da Santo Causa digo deliberação do Triunfo da Santa Causa o que assim se executou fazendo se afixar Editaes. E mandou a vereação mencionada que a entrada de parte da Tropa do Exercito Pacificador, e bem assim do seu commandante em Chefe o Excelentissiomo Coronel José Joaquim de Lima e Silva fora a hua hora da tarde do dia de ontem dois do corrente do que para constar fis este termo em que asinarão, declarando mais que a entrada da Tropa do mesmo Exercito Pacificador fora feita debaixo de muita ordem e disposição da parte da mesma Tropa igualmente feito dos habitantes da Cidade que davão os mais desisivos sinaes do seu regosijo guardando a maior moderação, e tal qual compete a hum povo Civilisado eu Antonio Lopes de Miranda Tabelião que no empedimento do Escrivão da Camara asino.
Podem-se detectar parcialmente, no texto acima, as mesmas construções encontradas nas atas dos africanos, com diferenças justamente na realização do tópico nulo. Enquanto a ata escrita por brasileiros pertencentes à camada do poder e com conseqüente domínio efetivo da língua portuguesa apresenta argumentos nulos recuperados no próprio texto, a ata escrita por africanos apresenta argumentos nulos recuperados no contexto, como é o caso da construção por estar conforme, típica das atas escritas por africanos. A apresentação de um documento similar às atas escritas pelos africanos tem por objetivo comparar as construções com argumento nulo, para demonstrar que, no português da época, eram comuns construções com sujeito nulo, mas não com tópico nulo, como foi encontrado no texto dos africanos. A semelhança entre os textos é perceptível nos procedimentos formais do tipo do texto, mas não se encontram no texto acima, em (32), dados que evidenciem construções de tópico nulo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise das atas revelou a existência de construções com argumento nulo, com interpretação subordinada ao contexto discursivo, evidenciando um pro referencial a um tópico nulo, conforme proposta de Hyams (1992) e Holmberg (2005). 68
Essas construções apresentam resquícios (ou indícios) de provável crioulização (seguindo os exemplos de LIPSKI (1999)), uma vez que, ao lado dessas construções não licenciadas pelo parâmetro do português da época, foram realizadas outras construções respeitando esse parâmetro. Estudos futuros poderão demonstrar se houve ou não interferência da(s) língua(s) de substrato nessas construções de tópico nulo.
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Diachronic
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Oxford:
Oxford
University
Press.
69
SUJEITO Norma ALMEIDA (UEFS – PROHPOR) Zenaide CARNEIRO (UEFS – PROHPOR)
INTRODUÇÃO O objetivo deste texto é apresentar uma descrição do sujeito, com base em documentação escrita por africanos na Bahia do século XIX, como já detalhado na introdução deste livro. Trata-se de 53 atas da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), que, além de raras, são de valor histórico inestimável para as investigações sobre o português brasileiro (PB), devido à importância da população africana e dos seus descendentes no processo de contato lingüístico no Brasil. Destacam-se, também, por terem sido escritas entre 1832 e 1842, dentro, portanto, do período em que traços da gramática do PB são apreensíveis em textos escritos no Brasil (cf. TARALLO, 1993; KATO & ROBERTS, 1993; CARNEIRO, 2005, dentre outros). Isso nos levar a supor que as construções de sujeito podem expressar um padrão do PB, com tendência ao preenchimento, ou um padrão do português europeu (PE), com menos preenchimento. Desse modo, pretendemos investigar quais as contribuições que a referida documentação pode trazer para o estudo desse fenômeno em processo de mudança no período estudado e, se forem identificados os dois padrões, tentar oferecer uma explicação, separando o uso de uma norma pautada no PE das manifestações de uma gramática nuclear do PB. O trabalho se organiza da seguinte forma: em 1, mostraremos como vem ocorrendo a expressão do sujeito no PB; em seguida, nas seções 2 e 3, apresentaremos resultados de estudos sobre a aquisição do português como L1 e como L2; na seção 4, faremos a descrição dos dados e, finalmente, na seção 5, compararemos os resultados com os encontrados por Duarte (1993, 1995).
70
1. O SUJEITO NULO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Estudos comparativos entre o PE e o PB contemporâneos mostram que essas duas variedades apresentam diferenças profundas em termos gramaticais (cf. GALVES, 1983, 1988, 2001; TARALLO, 1993, dentre outros). Entre essas diferenças, está o uso do sujeito nulo referencial1, muito mais restrito na variedade brasileira. Abaixo, temos exemplos de dois desses contextos:
(1) a. PE: O Joséi disse que cvij está doente. b. PB: O Joséi disse que cvi está doente. (2) a. PE: cv Viajou ontem. b. PB: Ele viajou ontem.
Destacamos a estrutura (1), acima, como uma das diferenças fundamentais entre o PB e o PE contemporâneos, no que diz respeito ao sujeito nulo. No PE, os falantes podem interpretar a categoria vazia como José ou como se referindo a outra pessoa. No PB, a categoria vazia irá sempre se referir a José. O exemplo (2) também se caracteriza como um aspecto diferenciador entre as duas variedades, porque, em PE, só ocorre, nesse contexto, a realização do sujeito pronominal quando há a necessidade de se dar ênfase. No PB, para alguns autores, essa já é uma estrutura na qual o sujeito pleno apresenta um uso categórico2. Esse é um fenômeno importante para os estudos sobre o surgimento do PB e tem tido lugar de destaque nas análises de orientação gerativista (cf. CHOMSKY, 1981, 1986), cuja noção de língua é a de um objeto mental, interno, a chamada língua-I. Nesse modelo, a aquisição se dá através da combinação de propriedades invariantes e universais, os princípios, e de propriedades específicas, que distinguem as línguas, os parâmetros. Para Chomsky, os parâmetros podem vir definidos pelos valores (+) ou (-), que são marcados à medida que a criança é exposta aos dados. Assim, quando os valores dos parâmetros estão selecionados, temos uma gramática nuclear. No entanto, a língua-I de um indivíduo é constituída por uma gramática nuclear por oposição a gramática periférica. Neste sentido, o estudo do sujeito nulo é importante, porque mostra que hoje a marcação do parâmetro do sujeito nulo ou pro-drop ocorre diferentemente em duas das variantes do português, a européia e a brasileira. Esse parâmetro, conhecido como pro-drop, é entendido como um conjunto de propriedades estruturais, tais como a “omissão” do sujeito, a inversão sujeito/verbo e a insensibilidade ao filtro that. No entanto, a correlação dessas outras propriedades ao sujeito nulo tem sido questionada (cf. KAISER, 2006). 2 Há algumas controvérsias com relação a esse ser ou não um contexto, em PB, de sujeito pleno categórico. No entanto, nos dados de Almeida (2005), há alguns casos em que o sujeito nulo aparece 1
71
Diversos trabalhos relacionam a mudança do estatuto do sujeito na variedade brasileira do português à redução de seu paradigma flexional verbal (DUARTE, 1993; TARALLO,
1993,
dentre
outros).
Essa
redução
morfológica
é,
também,
freqüentemente relacionada ao fato de, no Brasil, o português ter sido adquirido como L2 por diversos grupos lingüísticos, destacando-se, principalmente, os africanos, como já apontado na introdução. Oliveira (2001) não vê essa relação e afirma que, se a redução do sujeito nulo estivesse relacionada ao processo de redução morfológica, era de se esperar um grande número de sujeitos expressos na 2ª e na 3ª pessoas, e não na 1ª, que ainda apresenta morfologia específica3. No entanto, o que ocorre é um número ainda razoável de categorias vazias na 3ª pessoa e muitos pronomes plenos na 1ª e na 2ª. Já Galves (1987, 2001) afirma que o enfraquecimento da concordância não levou a um total abandono do sujeito nulo, mas a uma reorganização em torno do tópico, aspecto já apontado no trabalho clássico de Pontes (1987). Duarte (1993) procura confirmar a hipótese da relação entre preenchimento do sujeito e redução morfológica, através de uma pesquisa que utiliza dados que vão de 1845 até 1992, já que, ao longo desse período, o PB culto passou a apresentar um paradigma verbal com apenas quatro desinências distintivas, ao invés de seis, a partir da entrada no sistema pronominal do você e do vocês, como formas de expressão da segunda pessoa4. A Figura 1 traz os percentuais encontrados a partir desses dados:
em sentenças raízes, mesmo não sendo resposta direta a uma pergunta. O exemplo a seguir é ilustrativo: Doc 1: E ele quando saiu falou o quê? Você soube? Inf: cv Foi lá passear no... meus irmão lá em São Paulo. Aí, cv falou que ia só passear lá, dar um passeio e vim em trinta dias e vortava. 3 Confira-se Kato (1999) sobre essa questão. 4 De eu canto, tu cantas, ele canta, nós cantamos, vós cantais, eles cantam passamos para eu canto, você canta, ele canta, nós cantamos, vocês cantam, eles cantam. No português popular, e também no culto contemporâneo, essa redução é ainda maior se considerarmos a entrada do a gente, como forma de expressão da 1ª pessoa do plural.
72
Figura 1: Ocorrência total de sujeitos nulos (Duarte, 1993)
Os dados acima mostram a perda gradual do sujeito nulo, que apresentava, em 1845, 80% de categorias vazias e, em 1992, apenas 26%. Se os dados de Duarte (1993) refletem realmente a gramática do PB, esta ainda era, provavelmente, no século XIX, uma língua +prodrop, como o italiano, conforme os percentuais apresentados para 1845 e 1882 o demonstram. Desta forma, os africanos poderiam ter tido acesso a uma gramática de sujeito nulo, tanto através da gramática do PB, quanto através da gramática do PE. Passemos, a seguir, para a discussão de como se dá a aquisição do sujeito nulo em português como L1 (seção 2) e como L2 (seção 3).
2. AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS COMO L1 Toda a mudança que vem ocorrendo no PB, no que diz respeito ao estatuto do sujeito nulo, levou alguns pesquisadores a investigar como esse processo vem se dando na aquisição, no intuito de observar, entre outros aspectos, se a mudança em direção ao preenchimento já estaria consolidada. Simões (1997) mostra, por exemplo, que a criança brasileira, analisada em seu estudo, tem um uso relativamente estável de categorias vazias e pronomes plenos. Mas, chama a atenção para o fato de que o percentual apresentado pela criança brasileira é menor do que o apresentado por crianças adquirindo uma língua de sujeito nulo do tipo do italiano. 73
Magalhães (2007), comparando a aquisição de pronomes sujeitos em PB e PE contemporâneos, chega às seguintes conclusões:
1) no início da aquisição, crianças brasileiras apresentam percentuais de sujeitos nulos equivalentes aos encontrados na aquisição do PE, mas, no decorrer do desenvolvimento gramatical, esses percentuais vão caindo até atingirem índices próximos aos produzidos pela gramática-alvo, ou seja, menos de 40%5. 2) os contextos em que há restrições para o uso de nulos na gramática-alvo também são contextos de maior preenchimento na fase inicial de aquisição, como, por exemplo, o contexto em que o CP6 está preenchido, como em (3) ... essa que ele vai contar (RAB 077).
O mesmo é válido para as sentenças que ainda permitem sujeito nulo na língua do adulto, ou seja, são ambientes de maiores percentuais de categorias vazias também na fala das crianças, como é o caso de respostas curtas e expletivos: (4)
(Mãe): não tem banheiro nessa casa? RAQ8: cv Tem.
A autora mostra que o grande número de nulos, na fase inicial de aquisição, ocorre, porque há uma inflação de sujeitos de 3ª pessoa do singular, sendo que, a partir do momento em que a 3ª pessoa vai sendo diluída, em favor das outras, os sujeitos nulos começam a cair. Assim, nos perguntamos: o que esses resultados poderiam nos indicar? Será que na escrita dos africanos poderia ocorrer também uma “inflação” de determinados contextos, mascarando os resultados gerais? No decorrer da análise, verificaremos que, diferentemente dos dados infantis, não há “inflação” de uma determinada pessoa, nem de uma determinada estrutura Lopes (2003) também mostra que, na primeira fase de aquisição, crianças brasileiras apresentam índices de nulos altos e esse percentual vai caindo à medida que o desenvolvimento lingüístico ocorre. 6 Marcador de construções subordinadas. 7 Abreviatura usada por Magalhães (2007) para a identificação da criança. 8 Abreviatura usada por Magalhães (2007) para a identificação da criança 5
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sentencial nos dados das atas da SPD. Vejamos, agora, os resultados de um estudo que trata da aquisição do sujeito nulo do PB, por aloglotas, em situação de imersão. 3. AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO COMO L2 Considerando que o entendimento do presente pode iluminar o passado, verificaremos como se deu o processo de aquisição do sujeito nulo no PB contemporâneo, por aloglotas. Utilizaremos, para tanto, o estudo de Xavier (2006). A autora analisa dois grupos de indivíduos aprendendo o português: falantes do inglês (língua –pro-drop) e falantes do italiano (língua +pro-drop). Xavier (2006) mostra que não há, em certo momento da aquisição (“estágio mais avançado”), diferenças significativas entre os percentuais apresentados pelos falantes do italiano e os do inglês. Tal fato mereceu o estranhamento da autora, já que eram esperados mais nulos nos dados dos nativos italianos e menos, nos dados dos falantes nativos do inglês, pois o inglês é língua de sujeito preenchido e o italiano é uma língua de sujeito nulo, podendo haver “transferência” da L1 para a L2. A Figura 2 apresenta os percentuais gerais encontrados: Figura 2: Dados do sujeito nulo no português utilizado por falantes do italiano e do inglês (Xavier, 2006)
Apesar de, no geral, esses índices serem próximos, a autora encontrou diferenças nas amostras dos falantes que se encontravam em distintos estágios de aquisição. Vejamos: 75
1) a informante do inglês, em estágio intermediário de aquisição, apresentou 76% de nulos, indicando um code-switching9 entre o nulo de sua gramática do espanhol (sua segunda língua) e o default da gramática universal (GU)10; 2) os informantes, também do inglês, em estágio mais avançado e em estágio inicial de aquisição, apresentaram, respectivamente, 35% e 8% de categorias vazias. Esses percentuais indicam que o indivíduo que se encontrava em fase inicial pode ter sido influenciado por sua L1 (o inglês) e o indivíduo em estágio avançado apresenta percentuais de CVs próprios do PB; 3) o falante do italiano, em estágio inicial de aquisição, se influenciou por sua L1, apresentando percentuais de nulos mais altos do que os usados pelo falante em estágio avançado.
Assim, a autora conclui que, em fase mais adiantada de aquisição, os aprendizes, tanto do italiano, quanto do inglês, fazem uso de estruturas próprias do PB, o que, para ela, mostra que eles tiveram acesso direto à GU11, demonstrando aquisição da gramática-alvo da língua. Será que os africanos, a exemplo dos informantes estudados por Xavier (2006), resguardado o fato de se tratar de língua escrita, irão apresentar estruturas próprias do português ou eles apresentarão estruturas muito diferenciadas? No decorrer da análise, verificaremos que, ao que parece, os africanos também atingem a gramática de sujeito nulo do português usada naquele período, demonstrando estágio avançado de aquisição. Na próxima seção, nos deteremos na análise do sujeito nas atas produzidas pelos africanos, principal objetivo deste estudo. Levaremos em consideração apenas os pronominais referencias definidos.
Code-switching é entendido como o uso de duas ou mais línguas na mesma situação conversacional. É a alternância de códigos, baseada em regras de que os falantes bilíngües lançam mão (POPLACK, 1980). 10 A autora considera que o default da GU seria “necessariamente anterior a qualquer experiência lingüística, e é programada já no mecanismo de aquisição para garantir um comportamento que não viole as regras da GU. No caso do parâmetro pro-drop, o sujeito nulo foi considerado a opção default” (XAVIER, 2006, p. 23) 11 Não discutiremos aqui se os informantes tiveram ou não acesso direto ou indireto à GU, pois esta é uma discussão teórica que não nos cabe neste momento. 9
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4. O SUJEITO NULO NAS ATAS Como já dito na introdução, este estudo será feito a partir da escrita, em português, de africanos no Brasil do século XIX. Assim, os dados analisados podem abrir novas perspectivas de investigação, porque iremos considerar, na medida do possível, a discussão sobre o papel relevante da aquisição, tanto por crianças, como por adultos, no estudo da mudança lingüística. Exploraremos as fontes como forma de entender se o surgimento de um novo sistema se encontra refletido na escrita desses indivíduos. Com o objetivo de detectar algum indício de um novo sistema, procuramos considerar alguns contextos que são importantes para a análise do sujeito; são eles: pessoa do discurso, relação pessoa do discurso e morfologia verbal, tipo de oração, animacidade ou não do sujeito, estilo +formular ou –formular do texto, década em que o documento foi escrito (30 ou 40) e informante12 que o produziu. Foram atestadas no corpus quase todas as pessoas gramaticais. Vejamos a Figura 3: Figura 3: Dados do sujeito nulo de acordo com as pessoas do discurso (SPD – Africanos)
Pelo tipo de sujeito que apareceu, ou seja, de 1ª pessoa do singular (38/56), 3ª pessoa do singular (16/18), 1ª pessoa do plural (51/57) e 3ª pessoa do plural (13/14), podemos dizer que não houve “inflação” de uma determinada pessoa, como ocorreu com os dados das crianças em fase inicial de aquisição, analisadas por Magalhães 12
Como dito, para uma caracterização dos escrivães, confiram-se Lobo e Oliveira neste volume e Oliveira (2006).
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(2007). A 2ª pessoa não aparece, porque esse tipo de documento não o permite. Desta forma, não há nenhuma maneira de mascarar os dados. Nos exemplos abaixo, temos sentenças com a 1ª e a 3ª pessoas:
(5) ...
cv
faco aprezente|e
cv
de Claro que hé a meza de 1832 para 1833- |Como os primeiro
fundadores que Instalaraõ esta (MSR, 23 de fev. de 1834). (6) ejuntamente aopiniaõ|da aprezentaçaõ do Irmaõ Ex-cecretario Marco Jozé do Ro-|zario, pello Capi tulo apontado pello no Seu memo Reque|rimento epor esta Comforme
cv
mandou passar este pormim, |em falta do Secretario – (JFO, 10 de jul. de 1842).
O exemplo (6) foi considerado como de sujeito nulo definido, porque, nas outras sentenças do mesmo tipo, o preenchimento se dá sempre com um Sintagma Nominal (SN) bastante definido e repetido, o provedor (ex. 7), o que mostra que esse sujeito é determinado, inclusive pela própria estrutura da SPD:
(7) epor está Comforme man|dou o Provedor lavra este termo, para atodo tempo Cons|tar e eu Escrivam ofes é Sobre escrevi hera Supra (JFO, 30 de out. de 1836).
Os exemplos abaixo são casos típicos de sujeito pleno de 1ª pessoa do singular nas atas analisadas. A 1ª pessoa parece ter tido um maior índice de preenchimento por ocorrer em orações construídas a partir de expressões fixas, indicando o secretário responsável pela redação da ata:
(8) Sobre as nossás despoziçoins epor estar|Com forme mandou o Provedor lavra esté e eu Subré|esCrevi Como Secretario
(JFO, 01 de nov. de 1835).
(9) epor|estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que este|sefizesse e nos assignasemoz. Eu que esta subscrevi (MSR. 5 de jul. de 1835).
Esse tipo de construção é relativamente comum em estruturas formulares, a exemplo das encontradas em cartas escritas por escrivães da administração de D. João III, rei de Portugal (1521-1557), como as apresentadas em (10):
(10) a. Sprita em Tomara, 38|XIII dias d’outubro, Antonio Affonso a fez, de 1523. J. Rey.
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b. Sprita 49|em Evora, oje, segunda feira, quatro dias de julho, Damiã Dias a 50|fez, de 1524. J. 51|Rey. c. Feito em Evora, a doze dias d’outubro, o secretario a fez, 74|1524. J. 75|Rey.
Já o preenchimento nas outras pessoas não é muito comum, sendo a construção (11) uma das poucas em que ocorre o preenchimento na 3ª pessoa pronominal. Em (12), temos um sujeito nulo também na 3ª pessoa: (11) as murta que os Irmão tiuerem|de Comprir pagar elle ficara res-|ponca vel pella as fatas do andamento|des ta de uo caõ Visto negar o despaxo|que a Commicaõ emViov emNome da De-uocaõ ev que fis easiner
(MC, 2 de maio de 1841).
(12) entre os a tuaes Soçio A-|Administradores de serem chamados pri-|meira e 2a. Vez e de Ultimo huma Junta|nodia asima <cvnaõ compareçeraõ> epara naõ ser Reprovado segundo|aLei do nosso Comprimiço. Capítulo 8// epara Constar-|mandou os Soçios Ex que Este se fizesce eu|me asignase Como Sacretário Manoel Victor Serra (MSR. 7 de set. de 1834).
Abaixo está a Tabela com o cruzamento entre a pessoa gramatical e a morfologia verbal. Esse cruzamento foi feito, porque verificamos que há, em alguns momentos, discordância entre os traços do sujeito e os do verbo: Tabela 1: Dados do sujeito nulo de acordo com morfologia verbal versus pessoa do discurso (SPD – Africanos) Morfologia/pessoa 1ª pessoa do 3ª pessoa do 1ª pessoa do 3ª pessoa do gramatical singular singular plural plural Morfema –o –ei 38/56 68% Morfema 0 16/18 2/2 89% 100% Morfema –mos 51/57 89% Morfema –m 11/12 92%
A discordância entre o sujeito e o verbo apareceu na 3ª pessoa. Esse percentual de discordância entre os traços do sujeito e os do verbo cresce um pouco se levarmos em consideração os sujeitos lexicais. É interessante notar que essa discordância pode
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ser uma conseqüência do contato entre gramáticas, que, no geral, leva a reduções morfológicas (KROCH, 1989)13. Ribeiro e Lobo (2004) fizeram um estudo sobre a relação concordância e sujeito em atas de Gregório Joaquim de Santana Gomes Ferrão, negro brasileiro forro que fez parte da SPD em 1860. As autoras assumem as propostas de Givón (1984) e Kato (1999), concluindo que:
1) nas construções de sujeito nulo referencial, só a representação com afixo verbal como núcleo independente se realiza; o afixo verbal é o verdadeiro argumento externo do verbo; 2) nas construções ditas de sujeito nulo não-referencial, só há a realização da estrutura em que o verbo já está flexionado no léxico mental; 3) nas construções ditas de sujeito realizado, há dois padrões: se o elemento é topicalizado ou focalizado, a função de sujeito é realizada pela flexão, contudo, se o SN é o próprio argumento externo do predicado, a flexão do verbo se realiza na forma não-marcada de 3ª pessoa. Assim, também nas atas do escrivão Gregório Joaquim de Santana Gomes Ferrão, há um bom número de sujeitos nulos referenciais e há um maior número de preenchimento quando há discordância entre os traços do sujeito e do verbo e, nesses casos, o argumento externo é geralmente um SN.
Apesar de só estarmos trabalhando com os pronominais, abaixo está o exemplo (13), no qual aparece discordância entre os traços do sujeito e os do verbo, tendo um SN como sujeito:
(13) epozemos em execuçaõ os trato dos devitos que|ficou em Exzecuçaõ eficá adiado para primeira |Reuniaõ entre os a tuaes Soçio A-|Administradores de serem chamados pri|meira e 2a. Vez e de Ultimo huma Junta|nodia asima <naõ compareçeraõ> epara naõ ser Reprovado segundo|aLei do nosso Comprimiço. Capítulo 8// epara Constar-
13 Dentro da perspectiva da lingüística de contato, Lucchesi (2003) afirma que, em processos de transmissão lingüística irregular, há uma tendência a reduções morfológicas.
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|mandou os Soçios Ex que Este se fizesce eu|me asignase Como Sacretário Manoel Victor Serra (MSR. 7 de set. de 1834).
Nesse caso, como haveria ambigüidade na identificação do sujeito, houve o preenchimento através de um SN. Essa é uma estratégia comum quando não há traços morfológicos possíveis de assumirem a função de argumento externo, a exemplo do que foi encontrado nas atas dos Gregório Joaquim de Santana Gomes Ferrão, analisadas por Ribeiro e Lobo (2004). O contrário também acontece, ou seja, sujeito na 3ª pessoa do singular e verbo na 3ª do plural; nesses casos, ocorre a concordância semântica:
(14) aos vinte...a Comisçaõ Reonida, finalizarãoo seos trabalho para o que famos nomiados...(GMB, 29 de dez. 1834).
Outro aspecto analisado foi a animacidade do sujeito de 3ª pessoa. Foram 80% de nulos com sujeitos animados e 100% com inanimados, confirmando outros estudos sobre o tema, que revelam que sujeitos inanimados favorecem o uso da categoria vazia, mesmo na gramática do PE atual, na qual esse ainda é um contexto de sujeito nulo categórico. É bom ressaltar que os inanimados apareceram basicamente em orações relativas com sujeito correferente, como na construção abaixo:
(15) Aos Vinte diás domez de Julho em-|Reuni aõ ém assa dos Devotoz de Nossa Senhora|do [?] Solidade dos Des validos foi oferecido|pello Escrivam a tual da meza Manuel Victor|Serra hu progetto oqual cv será inda des Coti-|do (MSR, 23 de julho de 1834).
Também foi descrito o tipo de oração, uma vez que há no PB contemporâneo contextos que, ou restringem o sujeito nulo, ou o permitem, com restrição de interpretação,
como
no
exemplo
(1),
colocado
anteriormente.
Ocorreram
matrizes/principais, coordenadas com sujeito correferente e sem sujeito correferente e relativas. Não atestamos subordinadas com sujeitos pronominais14, o que, de certa 14 Apareceu apenas uma sentença adverbial com sujeito pronominal “quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão” (MSR, 23 de julho de 1834), mas não os outros tipos de subordinadas que são relevantes
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forma, limita um pouco a nossa análise, já que esse é um contexto importante para a caracterização do PB em contraposição ao PE, conforme também especificado em (1). Apareceram algumas poucas sentenças que poderiam ser classificadas como subordinadas. No entanto, como não tivemos segurança na classificação, dada certa confusão na escrita, não as incluímos na análise. A seguir, está a Figura 4 com esses resultados gerais por tipo de sentença:
Figura 4: Dados do sujeito nulo de acordo com o tipo de sentença15 (SPD – Africanos)
As coordenadas com sujeito correferencial foram as que apresentaram o maior índice de categorias vazias, 100%. Diversos autores, ao analisarem o sujeito, excluem esse tipo de oração, porque categorias vazias nesse ambiente são comuns a todas as línguas, sendo uma propriedade mais geral e, portanto, não constituindo uma idiossincrasia das línguas de sujeito nulo. Entretanto, mantivemos esse tipo de sentença, porque, se pronomes plenos aparecessem nesse contexto, haveria indício de uma nova gramática, já atuante no PB atual. Esse tipo de sentença apareceu como coordenada de orações que iniciam o fechamento das atas. As frases iniciais são do tipo Eu que escrevi, Eu escrivão o fiz, e as coordenadas com sujeito nulo são do tipo e subescrevi, como pode ser visto no exemplo abaixo:
(16) Com forme mandou o Provedor lavra es|te termo eeu Como Secretario ofis cv eSu|bré escrevi, etc. (JFO 10 de julho de 1936). para a discussão sobre as diferenças entre PB e PE. Essa sentença não está colocada no gráfico. É interessante a realização de um estudo sobre o tipo de oração que aparece nas atas. 15 Sentenças clivadas foram computadas como coordenadas e matrizes. Aparecem muitas clivadas do tipo: Eu que escrevi.
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O menor percentual de nulos ocorreu nas orações coordenadas sem sujeito correferente. Esse tipo de estrutura foi também bastante produtivo em expressões formulares, como as colocadas em (8), (9), (16) e em (17) abaixo: (17) epor |estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que este | sefizesse e nos |assignasemoz. Eu que esta subscrevi (MSR, 05 de julho de 1835).
Os outros tipos de sentença, relativas e matrizes/principais, apresentam percentuais altos e equilibrados de categorias vazias. A ocorrência de categorias vazias nas sentenças matrizes é importante, porque esse é um dos contextos de sujeito pleno “quase categórico” no PB contemporâneo, como o exemplo colocado em (2). Outros fatores analisados foram: +formulares/ –formulares; década de 30 / década de 40 e os informantes. Desses os que se mostraram mais relevantes foram + ou formulares e informante. A figura 5 mostra os percentuais por estilo do texto:
Figura 5. Dados do sujeito nulo de acordo as partes do texto (+formulares e – formulares) (SPD – Africanos)
Novamente chamamos a atenção para as sentenças como as apresentadas em (8), (9) (16), (17), pois se trata de um tipo bastante formular, ocorrendo em maior número com 1ª pessoa. Abaixo colocamos outro exemplo desse tipo:
(18) e Por estarmos conforme| eu sobscrevi e cv assignei Luis Teixeira Gomes...(LTG, década de 40).
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A Figura 6 mostra os percentuais por informante. São cinco indivíduos, sendo que o número de dados, em textos de dois deles – Gregório Manuel Bahia (1/3) e Manuel da Conceição (3/3) –, foi muito pequeno, não se podendo chegar a nenhuma conclusão. Figura 6: Dados do sujeito nulo de acordo escrivão (SPD – Africanos)
Observamos uma pequena diferença de percentual nos dados de José Fernandes do Ó. Há que se considerar que esse informante faz muito uso das estruturas formulares, quase 60% das que foram analisadas. Tal fato nos leva a concluir que esse escrivão, talvez, se deixasse influenciar um pouco mais por traços da oralidade16, traços esses que podem ter levado a um índice maior de preenchimento, mas não ao uso de outra gramática, já que essa seria apenas uma pequena diferença quantitativa, e não qualitativa. Assim, com exceção dos textos de Gregório Manuel Bahia, os índices de categorias vazias, no geral, aparecem acima dos 70% e, nas estruturas menos formulares, acima dos 90%, o que mostra que a gramática que se encontra refletida nos textos é ainda de sujeito nulo.
16 Kato (2005) afirma que, no processo de letramento, o indivíduo recupera o conhecimento gramatical de um período anterior. Dentro desta perspectiva, talvez esses africanos, mesmo sendo aprendizes do PB como L2, apresentem percentuais altos de nulos, recuperando estágios anteriores da língua. Porém, pensamos que essa recuperação não seria tão profunda a ponto de mascarar os resultados. Assim, talvez essa ainda fosse uma gramática de sujeito nulo.
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5. COMPARAÇÃO COM OS DADOS DE DUARTE (1993)
Vemos que os resultados encontrados nas atas da SPD em nada diferem dos encontrados nos textos do corpus analisado por Duarte (1993). Tal fato nos causou certa estranheza inicial, porque as peças teatrais analisadas pela autora foram escritas por Martins Pena e França Júnior17, falantes nativos do português, mostrando, assim, que não houve, para o fenômeno em questão, diferenças significativas entre adquirir o PB como L1 ou como L2. Sobre
essa questão,
Quint
(2008) argumenta que o fenômeno do
preenchimento no PB contemporâneo parece ser um prolongamento de uma tendência, atestada nas línguas românicas, de substituição das desinências pessoais sufixadas ao verbo por pronomes pré-verbais. Na opinião desse autor, essa tendência ao preenchimento não contou com a influência das línguas africanas para cá trazidas, o que, para ele, é provável para outros aspectos do sistema do PB18. Os resultados aqui apresentados parecem corroborar, inicialmente, a hipótese de que o contato com as línguas africanas não teria sido, no primeiro momento, crucial para o preenchimento da posição do sujeito. No entanto, outros dados poderão ou não confirmar esta hipótese. Abaixo está a Tabela 2, na qual estão colocados os resultados por pessoa, confrontando com os percentuais encontrados por Duarte (1993, 1995), a partir de peças teatrais e os trabalhados por nós, a partir das atas da SPD: Tabela 2: Comparação entre os percentuais de nulo encontrado nas atas e nos dados de Duarte (1993, 1995) Pessoa/Documentação Resultados das Atas Resultados de Duarte 1ª pessoa do singular 89/113 69% 79% 3ª pessoa do singular 29/32 93% 91%
Como não há diferenças significativas entre os percentuais encontrados nos dois estudos confrontados, podemos dizer que, apesar de as condições de Duarte (1993) utilizou diversos outros autores como representantes do século XX. Oliveira (2006) encontrou diversos “problemas” na ortografia desses africanos, o que demonstra que traços próprios da língua oral estavam, de alguma forma, refletidos nos textos. Além disso, há uma variação na concordância nominal e verbal que parece derivar também da influência da oralidade. 17 18
85
aprendizagem do português pelos africanos para cá trazidos não serem, provavelmente, as ideais, houve, no que diz respeito ao uso do sujeito nulo, aquisição da gramática-alvo. Esse fato corrobora a proposta de Kato (2003), que diz que parece não haver período crítico para a aquisição da sintaxe, e, sim, da fonologia e da prosódia19. A autora argumenta que, quando a aquisição se dá por imersão, ou seja, se o ambiente de aprendizagem é natural, se os dados são robustos, não haveria diferença entre a aquisição da sintaxe de L1 e de L2. Tal hipótese foi comprovada pelos resultados aqui apresentados e também pelo estudo de Xavier (2006), no qual está demonstrado que falantes do inglês e do italiano, em estágio avançado de aquisição, usam estruturas próprias do PB, independentemente de suas línguas nativas serem ou não pro-drop. Por enquanto, podemos resumir da seguinte forma as discussões e conclusões apresentadas ao longo do trabalho:
1) a gramática do português a que os africanos tiveram acesso era, ao que tudo indica, uma gramática de sujeito nulo20; 2) houve a aquisição do sujeito nulo por parte dos africanos da SPD, estando esses informantes, supostamente, em estágio avançado de aquisição de L2; 3) a categoria vazia em posição de sujeito aparece em diferentes contextos, não havendo “inflação” de um determinada pessoa, nos termos colocados por Magalhães (2007), ou um determinado tipo de estrutura.
Toda a discussão aqui travada ficará muito mais clara quando compararmos os textos dos africanos com os textos de seus descendentes brasileiros. As atas escritas pelos negros nascidos no Brasil já são, predominantemente, da segunda 19 Talvez mudanças posteriores tenham ocorrido exatamente por conta de uma nova prosódia do PB, iniciada, provavelmente, na boca desses africanos que o aprenderam como L2. Galves et alii (1998) desenvolvem um projeto de pesquisa que visa a investigar mudanças sintáticas originadas a partir de mudanças prosódicas. Trata-se do projeto Padrões rítmicos, fixação de parâmetros e mudança lingüística, aprovado pela FAPESP. Agosto, 1998. Cf. (http://www.ime.usp.br/~tycho/presentation). 20 É bom observar, como já dito, ao longo do texto, que há, nas atas, variação na concordância verbal, mas essa parece não ter tido uma influência direta e imediata na expressão do sujeito. Tal fato pode nos levar a questionar a relação entre morfologia verbal e preenchimento do sujeito no português popular brasileiro. Essas questões serão abordadas em estudo que estamos realizando com as atas escritas pelos brasileiros pertencentes à SPD, nos finais do século XIX.
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metade do século XIX e podem trazer refletidos indícios da nova gramática brasileira, atestada por Tarallo (1993) e outros. Essa gramática teve, provavelmente, como input a língua usada por esses e outros africanos e também por brasileiros e até, quem sabe, por portugueses. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Norma Lúcia Fernandes de. (2005). Sujeito nulo e morfologia verbal no português falado em três comunidades rurais da Bahia. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. AVELAR, J. (2005). Gramática, competição e padrões de variação: casos com TER/HAVER e DE/EM no português brasileiro. Revista de estudos da linguagem, Ouro Preto, v. XIV, p. 99-144. BARBOSA, Pilar; KATO, Mary & DUARTE, M. Eugenia. (2000). A distribuição do Sujeito nulo no português europeu e no português brasileiro. In: XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGÜÍSTICA, Coimbra. Anais... Coimbra. CARNEIRO, Zenaide de Oliveira Novaes. (2005). Cartas brasileiras (1809-1907): um estudo lingüístico-filológico. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CHOMSKY, Noam. (1986). Knowledge of language: its origin, nature and use. New York: Praeger. (O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1994). CHOMSKY, Noam. (1981). Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. (1993). Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In: ROBERTS, Ian; KATO, Mary. (Orgs.). Português brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Editora da UNICAMP. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. (1995). A perda do princípio “evite pronome” no português brasileiro. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. FERREIRA, Marcelo Barra. (2000). Argumentos nulos em português brasileiro. Dissertação de Mestrado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. GALVES, Charlotte. (1987). A sintaxe do português brasileiro. Ensaios de lingüística, n. 13, p. 31-50. GALVES, Charlotte. (2007). A língua das caravelas: periodização do português europeu e origem do português brasileiro, In: CASTILHO, Ataliba de; MORAES, M. A. Torres; LOPES, R. Vasconcellos & CYRINO, S. M. Lazzarini. (Orgs.). Descrição, história e aquisição do português brasileiro. Campinas: Pontes. p. 513-528.
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COMPLEMENTOS VERBAIS DIRETOS E DATIVOS Rerisson CAVALCANTE (USP1 – FAPESP) Cristina FIGUEIREDO (UNIME – UFBA2)
1. INTRODUÇÃO Este texto analisa a realização dos complementos verbais em atas escritas por africanos alforriados, no Brasil oitocentista, no período de 1832 a 1842, com o objetivo de fornecer dados para uma melhor compreensão da formação da variedade brasileira da língua portuguesa. A realização do objeto direto é, ao lado do preenchimento do sujeito, um dos fenômenos que mais claramente diferenciam o português brasileiro do europeu, tendo merecido bastante atenção na literatura (cf. DUARTE, 1986; GALVES, 1989; CYRINO, 1997; FIGUEIREDO, 2004; entre outros). A investigação comparativa da realização dos objetos indiretos (dativos), por outro lado, apenas mais recentemente tem despertado maior interesse dos pesquisadores (cf. TORRES MORAIS & BERLINCK, 2006, 2007). Antes de apontar as mudanças que ocorreram no modo de expressão desses dois tipos de complementos, façamos uma breve apresentação das características que estes manifestam em oposição aos demais argumentos internos dos verbos. Os argumentos internos (ou complementos verbais) podem ser classificados em dois grandes tipos, em função da presença ou ausência de um elemento proposicional como introdutor obrigatório do sintagma selecionado pelo verbo3: os Pós-Graduação em Semiótica e Lingüística Geral. Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. 3Os verbos são, segundo Duarte e Brito (2003, p. 183), predicadores por excelência e requerem, a fim de se ter seu sentido completado, argumentos que constituem a sua grade argumental. Os argumentos, que denotam os participantes de uma ação ou atividade, podem ter uma relação mais próxima com o verbo (são os argumentos internos, que formam com o verbo um nível intermediário) ou uma relação mais distante (o argumento externo). Geralmente, o argumento externo, após uma operação sintática, exerce a função de sujeito da sentença. Já a posição de argumento interno pode ser ocupada por um dos seguintes constituintes: objeto direto, objeto indireto, locativo, ou a combinação desses de acordo com a entrada lexical de cada verbo. Os argumentos internos do verbo distinguemse, categorial e semanticamente, a depender da entrada lexical de seus predicadores. 1 2
90
argumentos preposicionados e os não-preposicionados. Essas duas categorias correspondem, de maneira geral, aos objetos indiretos e aos diretos das gramáticas tradicionais, que analisam a preposição da primeira categoria como um elemento de ligação. Trata-se, entretanto, de uma divisão simplificadora e imprecisa. Enquanto os complementos diretos fazem parte de uma classe relativamente homogênea, os complementos preposicionados formam uma classe heterogênea, que pode ser subdividida em, pelo menos, três grupos com características distintas. Os complementos diretos correspondem aos sintagmas nominais (DPs) que ocorrem em sentenças transitivas, como em (1a-b), e bitransitivas, como (1c-d), e que exercem a função semântica (papel temático) de tema ou paciente da ação verbal. Em português, os complementos diretos podem ser substituídos por clíticos acusativos, como mostram os exemplos em (2) e, em construções passivas, podem ser alçados à posição de sujeito, como em (3):
(1)
a. Maria matou o assaltante. b. A equipe venceu o torneio. c. Maria entregou o assaltante à polícia. d. A equipe recebeu a taça do presidente da federação.
(2)
a. Maria o matou. b. A equipe o venceu. c. Maria o entregou à polícia. d. A equipe a recebeu do presidente da federação.
(3)
a. O assaltante foi morto por Maria. b. O torneio foi vencido pela equipe. c. O assaltante foi entregue à polícia por Maria. d. A taça foi recebida, do presidente da federação, pela equipe.
Os complementos preposicionados, por sua vez, podem ser classificados em três tipos, de acordo com as características semânticas e sintáticas que apresentam: os oblíquos, os circunstanciais e os dativos. Apesar de serem introduzidos obrigatoriamente por preposições, os complementos (indiretos) oblíquos se aproximam mais dos complementos diretos do 91
que dos demais argumentos preposicionados, por exercerem igualmente a função de tema ou paciente da ação verbal, como nos exemplos em (4):
(4)
a. O pugilista bateu no oponente. b. Os baianos gostam de acarajé. c. João pensou na moça o dia todo. d. Os doentes precisam de atendimento urgente.
Esses complementos parecem receber preposição unicamente por um requisito formal de licenciamento de caso. Uma interpretação preliminar para a diferença entre as construções com complementos diretos e com indiretos oblíquos é que, no primeiro caso, os verbos atribuem caso acusativo diretamente aos sintagmas (nominais) que selecionam como argumentos, enquanto, no segundo caso, os verbos parecem ser incapazes de fazê-lo, o que torna indispensável a presença da preposição como marcador de caso. Nesta análise, a preposição não é vista como um mero elemento de ligação, mas como um recurso sintático responsável por licenciar a ocorrência do sintagma nominal selecionado pelo verbo. O fato de não receberem caso (acusativo) do verbo também se reflete na impossibilidade de os complementos oblíquos serem substituídos por clíticos acusativos ou de serem passivizados, como mostra a agramaticalidade das sentenças em (5)4 e (6):
(5)
a. * O pugilista o bateu. b. ?* Os baianos o gostam. c. * João a pensou o dia todo. d. * Os doentes o precisam.
(6)
a. * O oponente foi batido pelo pugilista. b. * Acarajé é gostado pelos baianos. c. * A moça foi pensada por João o dia todo5.
A restrição à substituição por clíticos, porém, parece ser geral dos complementos oblíquos, não dizendo respeito apenas aos clíticos acusativos. Estes complementos também não podem ser substituídos por clíticos dativos, o que serve também como recurso para diferenciá-los. 5 Note-se que, diferentemente, em (i), a passivização com o complemento de PENSAR é perfeitamente aceitável. Isso, provavelmente, está relacionado à diferença de interpretação do verbo, que, em (i), dá a idéia de algo que é objeto de planejamento, sentido que não está presente em (6c). 4
92
d. * Atendimento urgente foi precisado pelos doentes.
Os complementos circunstanciais, por outro lado, manifestam características mais semelhantes às de adjuntos verbais. Esses complementos não desempenham as funções semânticas de tema ou de paciente e podem ser realizados por expressões de natureza adverbial, como mostram os exemplos em (7):
(7)
a. Eu fui à praia. b. Eu fui lá c. Eu moro em Salvador. d. Eu moro aqui. e. A menina se comportou de modo adequado. f. A menina se comportou bem.
Os complementos dativos diferem essencialmente dos diretos, de um lado, e dos indiretos oblíquos e circunstanciais, de outro, por três características básicas: (i) são selecionados apenas por verbos bitransitivos, co-ocorrendo, portanto, com complementos diretos (realizados ou implícitos); (ii) não podem ser substituídos por clíticos acusativos nem passivizados e (iii) manifestam as funções semânticas de alvo / meta ou fonte / recipiente, como em (8):
(8)
a. Maria entregou o assaltante à polícia.
[alvo / meta]
b. O policial ofereceu ao acusado uma alternativa.
[alvo / meta]
c. A equipe recebeu a taça do presidente da federação. [fonte] d. O ladrão roubou o relógio ao Pedro.6
[fonte]
Este capítulo trata, essencialmente, da realização de dois desses quatro tipos de argumentos verbais: (i) os complementos diretos, com papel temático de tema ou
(i) O plano foi pensado em conjunto pela equipe. 6 O exemplo é dado por Morais & Berlinck (2007) e corresponde ao português europeu. A perda da preposição A como introdutora de dativos no português brasileiro provocou o desaparecimento dessa construção, substituída por (i), com a presença da preposição DE, em que o sintagma preposicionado não é interpretado como dativo com papel temático de fonte, mas como genitivo / possuidor. (i) O ladrão roubou o relógio de Pedro.
93
paciente em estruturas verbais transitivas e bitransitivas; (ii) e os complementos dativos, com função semântica de meta, alvo ou fonte, em estruturas bitransitivas.
2. COMPLEMENTOS DIRETOS O objeto direto (OD) é o argumento selecionado por um verbo transitivo e pode ser representado por um DP, um CP ou ainda por um IP, como em (9): (9)
a. Ricardo disse algumas palavras. b. Ricardo disse que comprou alguns brinquedos. c. Ricardo diz ter comprado alguns brinquedos.
Além da seleção categorial, o verbo também seleciona semanticamente esse tipo de complemento. O objeto recebe diretamente do verbo o papel de tema/paciente. Uma vez desrespeitado esse requerimento, ocorrem seqüências inaceitáveis ou bastante marginais, como em (10b): (10)
a. O terrorista castigou três prisioneiros. b.* O terrorista castigou três pedras.
Em (10b), a seqüência é agramatical devido à incompatibilidade entre o verbo e o DP três pedras. O verbo requer que o DP interno ao verbo possua, entre outros, o traço [+animado]. Porém, não é categórica a presença de um DP com esse traço nessa posição. Aliás, a posição de argumento interno não faz qualquer restrição de animacidade. A restrição observada em (10b) ocorre devido a propriedades semânticas específicas do verbo castigar. À caracterização do objeto direto é também relevante a noção de caso estrutural. Segundo a teoria gerativa, em todas as línguas, o DP deve ter caso marcado7, para que o seu papel semântico seja interpretado. O caso, entre as línguas, Existem diferentes implementações técnicas para a teoria do caso. A versão clássica considerava que os DPs surgiam na computação sem caso e o recebiam, posteriormente, de um elemento atribuidor. Posteriormente, no modelo minimalista, se considerou a hipótese de que os DPs surgissem já totalmente flexionados em caso, apenas checando a compatibilidade do caso com o elemento apropriado, no curso da derivação.
7
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pode ser marcado morfologicamente, quando existe um sistema morfológico para tal, como no latim e no alemão; ou através de uma marcação abstrata, ou seja, sem a manifestação de elementos flexionais. No português, não há um sistema visível de marcação casual, exceto no paradigma pronominal. No PB, especificamente, a distinção de caso no sistema pronominal reflete-se mais rigorosamente na escrita, enquanto, no vernáculo, essa distinção se atenua sensivelmente. Conforme propõe a tradição gramatical, os pronomes pessoais, quanto à distinção entre nominativo e acusativo, assim se dividem:
Quadro 1: Pronomes pessoais do português segundo a tradição gramatical Caso reto
Caso oblíquo
Pessoa
Nominativo
Acusativo8
1a
eu
me
2a
tu
te
3a
ele9
o, a, se
1a
nós
Nos
2a
vós
Vos
3a
eles
os, as, se
Em línguas que perdem a marcação morfológica, é necessário que haja outro sistema para realizar o caso dos DPs. A teoria gerativa propõe que, nessas línguas, ocorre uma marcação abstrata de caso, através de outros recursos formais diferentes da morfologia. Em algumas línguas, inclusive no PB, é a ordem dos termos que permite a identificação do caso de um termo na sentença. Essa característica permite, principalmente no PB vernacular, a ocorrência do pronome sujeito na posição de objeto direto, como no verso da música de Dorival Caymmi:
(11) Ai, saudade, leva eu.
8 9
Apenas os pronomes de terceira pessoa O(S), A(S) expressam, essencialmente, o caso acusativo. O pronome ele(a)(s) pode, ainda, receber caso dativo ou genitivo de preposições.
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Nesse verso, o pronome “nominativo” eu é interpretado como objeto direto, devido à sua posição interna ao VP, que o identifica como acusativo. Esse uso não se restringe só à 1a pessoa do paradigma pronominal, sendo muito mais freqüente com a 3a pessoa, principalmente pela queda dos clíticos acusativos de terceira pessoa:
(12) O João, encontrei ele no cinema ontem10.
O verbo que subcategoriza um DP como argumento interno e a ele atribui caso acusativo e papel temático tema/paciente é chamado de transitivo direto. Esse tipo de verbo também pode atribuir acusativo ao sujeito de sentenças encaixadas cujo verbo infinito não pode atribuir nominativo. São os verbos transitivos causativos ou sensitivos:
(13)
a. Luísa estava à toa, então mandei-[a fazer o dever de casa]. b. Minha vizinha tem uma linda voz. Ouço [ela cantando].
Nos exemplos em (13), a sentença entre colchetes é o argumento interno exigido pelo verbo transitivo direto. Esse verbo, entretanto, atribui acusativo ao clítico em (13a) e ao pronome ela em (13b), que, na verdade, são argumentos dos verbos encaixados FAZER e CANTAR. Essa operação é chamada marcação excepcional de caso (ECM)11. A operação é mais evidente em (13a), devido à realização do clítico A, que possui caso morfologicamente explícito. O verbo transitivo direto pode também selecionar como argumento interno uma mini-oração12, construção em que também ocorre ECM:
10 Segundo Galves (2001, p. 66), “a possibilidade de aparecer um pronome pleno em posição de objeto e a sua capacidade de referir-se ao tópico livremente (...) é uma manifestação da interferência direta do discurso na sintaxe”. 11 Dentro da teoria gerativa, chama-se Marcação Excepcional de Caso (ECM) quando um elemento predicador, como um verbo, atribui caso a um item que não é de fato seu argumento, mas sim de outro predicador. É a situação de (i), em que o DP pronominal NOS é argumento externo do verbo SAIR, da sentença encaixada, mas não recebe caso nominativo por a sentença ser infinita. O DP recebe, então, caso acusativo do verbo matriz. Note-se que o real argumento interno de VER é a sentença encaixada inteira. (i) Ele viu-nos sair de casa. 12 Uma mini-oração é uma construção que contém uma relação mínima de predicação, mas que não é intermediada por um verbo.
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(14)
Um político estava sendo julgado pelo crime de corrupção, mas o juiz considerou[o/ele inocente].
Em (14), o sujeito da mini-oração (o/ele) recebe do verbo o caso acusativo, da mesma forma que ocorre em (13). Embora os pronomes nos contextos em (13-14) não se constituam sozinhos o argumento interno verbo, eles têm sido incluídos em investigações sobre o OD que retoma um antecedente no contexto discursivo (cf. DUARTE, 1986; FIGUEIREDO, 200413). As construções com verbos transitivos diretos permitem o processo de passivização, em que o OD é promovido à posição de sujeito da sentença e o sujeito/agente pode ser omitido, indeterminando o responsável pela ação verbal. São três os tipos de construções passivas: passivas verbais, constituídas por verbo ser +particípio, como em (15a); passivas pronominais, verbo + SE, como em (15b); passivas adjetivas, ficar +adjetivo participial, como em (15c):
(15)
a. As decisões foram adiadas pela diretoria. b. Adiaram-se as decisões. c. Ficaram adiadas as decisões.
Outra característica do OD que está diretamente ligada ao discurso é o fato de ele poder retomar um referente já mencionado no contexto discursivo (16a) ou se referir a um referente presente no contexto situacional (16b). O primeiro caso, chamado de objeto direto anafórico, tem sido amplamente estudado14, visto que as suas possibilidades de manifestação distinguem as línguas:
(16)
a. Deixaram os brinquedosi espalhados, mas deveriam gruardá-losi antes de sair. b. Diante de documento no chão, A diz a B: — Pegue Ø!
13 Em trabalho recente, Figueiredo (em preparação) tem descartado esse tipo de construção (12-13), e a estratégia realizada nesta posição é considerada como sujeito. 14 Huang (1984, 1991); Duarte (1986), Galves (1986, 2000), Cyrino (1997), Figueiredo (2004, 2006), Cavalcante (2005), entre outros.
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Para retomar, na função de objeto direto, um elemento já mencionado no discurso, o português conta com quatro estratégias:
Clítico (CL): (17) Anai chegava por uma rua pouco iluminada, mas eu ai via de longe.
Objeto nulo (ON): (18) Vi o carro de meus sonhosi em uma exposição, mas não pude comprar ___i.
Pronome nominativo ELE (PR)15: (19) Ritai me convidou para uma viagem, mas eu não pude acompanhar elai.
Sintagma nominal (DP): (20) Doce prontoi tem em qualquer lugar. Mas algumas pessoas teimam em fazer docei em casa.
Nos exemplos acima, as três primeiras estratégias (17-19) não possuem autonomia discursiva, a sua interpretação se dá quando é correferente a um elemento presente no discurso ou na situação comunicativa. Já a quarta (20) é uma expressão referencial, que, a rigor, não exige antecedência, possuindo autonomia referencial. A literatura sobre o tema considera esse recurso como uma estratégia de esquiva adotada pelo falante. Nas próximas subseções, apresentamos a distribuição dessas estratégias nas variedades européia e brasileira da língua portuguesa e também no crioulo de base portuguesa de Cabo Verde. Posteriormente, examinamos a realização dos complementos diretos nas atas, a partir dos aspectos apresentados nessa seção.
15 O uso do pronome nominativo ELE/ELA tem sido alvo de inúmeros trabalhos. Câmara Junior, em 1957 (1972), já discutia esse uso peculiar no PB; seguem-se a ele Duarte, 1986; Galves, 1986 (2001); 2000 (2001), entre outros.
98
2.1. OBJETO DIRETO NO PORTUGUÊS EUROPEU Estão disponíveis para o PE apenas duas das estratégias acima mencionadas, o CL e o ON (cf. RAPOSO, 1986, 2004; KATO & RAPOSO, 2005; CYRINO, 2005). Porém, o contexto sintático é bastante relevante na escolha das estratégias. Enquanto o CL é o recurso utilizado na maioria dos contextos, o ON não é licenciado livremente, devido a restrições sintáticas. Raposo (1986)16 defende que a ocorrência do ON em contexto de ilhas seria agramatical no PE, o que o fez defender a idéia de que o ON seria uma variável ligada a um operador nulo movido para uma posição de tópico, análise que explica a impossibilidade em ilhas. Os exemplos em (21), de Raposo, mostram que, em sentenças simples, seriam possíveis tanto o CL quanto o ON, enquanto (22) mostra que, em ilhas, o ON seria agramatical no PE:
(21)
a. Joana viu-os na TV ontem. b. Joana viu ___ na TV ontem. (Raposo, 1986, p. 373)
(22)
a. *Eu informei à polícia da possibilidade de o Manuel ter guardado ___ no cofre da sala de jantar. b. *O rapaz que trouxe ___ mesmo agora da pastelaria era o teu afilhado. c. *Que a IBM venda ___ a particulares surpreeende-me. (Raposo, 1986, p. 381-2)
Uma análise do português rural de Portugal está sendo realizada por Figueiredo (em preparação). Os resultados preliminares referentes às três regiões17 portuguesas investigadas confirmam que o PL não é produtivo nesses dialetos, mas que o ON e o CL apresentam comportamentos diferenciados em função da região: ON é bastante freqüente no sul de Portugal, com 67% dos dados, enquanto o clítico é mais freqüente na região meridional, 72%. No norte de Portugal, há um maior equilíbrio entre a freqüência das estratégias, como se pode verificar na Tabela 1 abaixo: 16 Raposo (2004), porém, revê a sua posição em relação a esses contextos, passando a considerar marginais tais sentenças e não mais agramaticais. 17 O corpus utilizado para esta pesquisa está disponível no site http://www. clul.ul.pt/english/sectores/variacao/cordialsin/projecto_cordialsin.php
99
Tabela 1: Freqüência do objeto direto nos dialetos do PB ON CL SN
Total
Regiões
Ocorrências
%
Ocorrências
%
Ocorrências
%
Ocorrências
%
Norte Central Sul Total
83 26 96 205
42 17 62 40
68 118 32 218
34 77 21 43
48 9 27 84
24 6 17 17
199 155 152 507
100
Os resultados da pesquisa mostram que o ON, no PE, é favorecido pelo traço [+genérico] em sentenças em que o verbo expressa uma atividade, como em (23a), ou com antecedentes [-definido], como (23b):
(23)
a. Depois notei. Depois andava aqui na pedreira apanhando medronhoi ia vender ___i para o pomar... (sul) b. Outra vez lá o médico escreveu uma cartinhai, entregou ___i lá aos urgentes, lá os da ambulância, outra vez a caminho do hospital […] de Odemira. (sul)
Quanto aos contextos de ilha, foram encontradas dez ocorrências de ON em sentenças adjuntas adverbiais no dialeto do norte e do sul, com leitura indefinida:
(24)
a. A sogra é que me dava… Uma vez prantou-me ele lá uma teia [para mim urdir ___], e nem sequer era […] para mim tecer, era lá para umas outras empregadas. E foise embora, quando ele voltou, eu tinha-a urdida, (sul) b. E eu arranjei-lhe, então, umas febrasi, e disse-lhe: "Pronto, filhinha, vai. E olha, enquanto eu tiver ___i, vem, que eu te arranjo. (E come) do que puderes".(norte)
Os dados do PE rural confirmam que existe sim uma diferença de comportamento entre o ON do PE e o do PB, embora não tão radical quanto na perspectiva de Raposo (1986). Além de ocorrer, de modo geral, com uma freqüência menor do que no PB, como se verá na próxima seção, o ON do PE não é totalmente excluído no contexto de ilhas, mas apresenta restrições com relação aos traços de referencialidade, principalmente nestas construções.
100
2.2. OBJETO DIRETO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Diferentemente do PE, no PB, estão disponíveis três estratégias de retomada do objeto direto. Além do CL e do ON, o PB vernacular utiliza com freqüência cada vez maior o pronome forte ELE / ELA nesta função, como mostram os exemplos em (25):
(25)
a. Maria matou ele. b. A carta, Maria colocou ela no correio ontem. c. A taça, a equipe recebeu ela do presidente da federação.
A rigor, porém, o PB conta apenas com o ON e o PL, uma vez que o uso do CL é praticamente restrito à modalidade escrita ou a situações mais formais de comunicação. Em corpus de fala urbana, da cidade de São Paulo, Duarte (1987, 1989) encontrou apenas 4,9% de CL, contra 15,4% de PR, 62,6% de ON e 17,1% de SNs / DPs anafóricos, como mostram os números da Tabela 2: Tabela 2: Realização do objeto direto anafórico em Duarte (1987) Variantes Ocorrências % Clítico 97 4,9 Pronome ELE 304 15,4 Categorial vazia 1235 62,6 SNs anafóricos 338 17,1 Total 1974 100 Adaptado de Duarte (1987).
Os resultados de sua pesquisa indicam que o uso do clítico é favorecido pelas variáveis sociais que apontam para uma maior formalidade, como escolaridade mais alta, faixa etária mais elevada e estilo de fala mais cuidado. Ainda assim, a freqüência não atinge percentuais muito elevados, mesmo nesses contextos. Cavalcante (2005), em um pequeno corpus de textos de diários virtuais da internet (blogs), encontrou um uso bem mais elevado de CL, que alcança 41%,
101
rivalizando diretamente com o ON. Entretanto, a freqüência de ON ainda é majoritária, com 51%18:
Tabela 3: Distribuição do objeto direto em textos virtuais Variante Freqüência Clítico 41 Pronome lexical 8 Categorial vazia 51 Total 100 Adaptado de Cavalcante, 2005.
Note-se que os diários virtuais apresentam apenas um grau moderado de formalidade, distanciando-se bastante de textos jornalísticos e acadêmicos, por exemplo, em que o uso de CL deve ser ainda maior e o de PR, nulo. Esses três aspectos — (i) o número reduzido de CL em dados de fala, (ii) o seu condicionamento social e (iii) a freqüência mais elevada em textos escritos — confirmam a hipótese consensual na lingüística brasileira de que o CL não faz parte do vernáculo brasileiro, sendo adquirido apenas via escolarização.
2.2.1. OBJETO DIRETO NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO Figueiredo (2004), trabalhando com corpus de comunidade afro-brasileira do interior do estado da Bahia, se depara com a ausência completa de CL. Esse resultado é esperado, devido ao perfil social de acesso nulo ou praticamente nulo à escolarização na comunidade, e confirma a análise do CL como forma nãovernacular, introduzida apenas pela escolarização. Os números encontrados pela autora são apresentados na Tabela 4. Como se pode ver, o ON é a forma majoritariamente utilizada pelos informantes, como 65,6% de freqüência. A ocorrência de PR é de apenas 12%. Isso, somado à tendência de aumento do uso de PR da faixa etária mais elevada para a mais jovem, confirma que o PR é uma forma vernacular do PB com plena vitalidade, embora o ON seja menos marcado e mais bem distribuído. 18 É importante notar que Duarte (1987) inclui no cálculo os dados de DPs correferentes, descartados por Cavalcante. Os DPs alcançam 17% dos dados de Duarte. Excluindo-se esses casos, contudo, a freqüência de CL subiria de 4,9% apenas para 5,9% dos dados, contra 18% de PR e 75% de ON.
102
Tabela 4: Realização do objeto retomado no português afro-brasileiro Variantes Ocorrências % CL 0 0 PR 213 12 ON 1267 62,6 DP 275 16 Total 1974 100
Nesse trabalho, Figueiredo (2004) conclui que o ON está há mais tempo nesta comunidade e que é o PR a estratégia inovadora, considerando que, no dialeto urbano paulista (Duarte, 1986), essa estratégia possui freqüência mais alta que no dialeto rural afro-brasileiro. 2.2.2. O OBJETO DIRETO NO DIALETO RURAL DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS Figueiredo (em andamento), a fim de estabelecer um continuum entre o dialeto urbano e o rural isolado (de afro-descendentes), analisa o município de Santo Antônio de Jesus19, separando-o em duas áreas: a sede e a zona rural. Em cada área, foram analisados doze inquéritos. Os membros da sede mantêm contato com falantes de diversos dialetos devido ao forte comércio existente na cidade; já os membros da zona rural mantêm um contato constante com a sede, a fim de vender seus produtos. Isso diferencia a zona rural de Santo Antônio de Jesus do perfil das comunidades rurais afrobrasileiras que vivem em relativo isolamento e praticam a agricultura apenas com o objetivo de subsistência. Nas duas regiões de Santo Antônio de Jesus, não há ocorrência de clíticos. Já as estratégias PR e ON apresentam comportamento diferente em cada região. A freqüência do ON na sede é menor que na zona rural, como mostram os percentuais de 75% e 84%, respectivamente, enquanto a freqüência do PR tem comportamento inverso, 11% na sede e 7% na zona rural.
19 O corpus analisado pertence ao banco de dados do projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia.
103
Tabela 5: Objeto direto em Santo Antônio de Jesus Variantes CL PR ON DP Total
Sede Ocorrências 0 46 325 61 432
% 0 11 75 14 100
Zona rural Ocorrências 0 51 647 74 772
% 0 7 84 10 100
Comparando os resultados dessas duas comunidades com o dialeto urbano e o rural afro-brasileiro, pode-se dizer que a sede de Santo Antônio de Jesus tem um comportamento semelhante ao do dialeto urbano (DUARTE, 1986), ou seja, menor freqüência de ON e maior freqüência de PL. Já o comportamento da zona rural de Santo Antônio de Jesus está mais próximo do dialeto rural afro-brasileiro (FIGUEIREDO, 2004), maior índice de ON e menor índice de PL. Esses resultados parecem apontar para um continuum entre esses quatro dialetos (o dialeto urbano, o da sede do município do interior, o da zona rural desse mesmo município e o da comunidade rural isolada), com a freqüência de PR crescendo à medida que se passa da comunidade isolada em direção ao dialeto urbano, e a freqüência de ON apresentando o perfil oposto, maior entre os dialetos mais rurais e menor entre os mais próximos do padrão urbano. Esse quadro parece reforçar as considerações de Figueiredo (2004) de que a forma ELE na função acusativa é mais recente no PB do que a forma nula, ou, ao menos, mais recente nos dialetos rurais, o que pode indicar que o seu surgimento ocorreu nos dialetos urbanos, sendo depois o ELE disseminado para outras variedades.
2.3. O OBJETO DIRETO NO PORTUGUÊS CRIOULO DE CABO VERDE O caboverdiano, língua crioula de base portuguesa, é falado no arquipélago de Cabo Verde, no Oceano Atlântico, na África, e possui dois dialetos geográficos: Barlavento e Sotavento. Essa língua crioula, segundo Baptista (2002), a depender do contexto, conta com duas estratégias pronominais para preencher a posição de objeto
104
direto: um elemento clítico (CL) e outro não clítico (Ncl)20, conforme demonstram os exemplos a seguir: (25)
Clítico a. João odja-l.
(Cabo verdiano)
João viu-a/o.
(26)
Não-clítico a. João da-me el.
(Cabo verdiano)
João deu-me ele/ela.
Segundo Baptista (2002, p. 236), o pronome não clítico el pode também desempenhar a função de sujeito, um comportamento semelhante ao dos dialetos rurais apresentados neste trabalho. Essa língua possui um sistema de pronomes clíticos e não clíticos para ocupar tanto a posição de sujeito quanto a de complemento verbal. Observa-se, no Quadro abaixo, que, mesmo no paradigma pronominal clítico, há a possibilidade de um mesmo elemento exercer funções distintas, exceto as formas de terceira pessoa. Sobre essa suposta distinção, Batista (2002, p. 235) esclarece que “o pronome clítico da terceira pessoa do singular e da terceira do plural perde sua vogal inicial, cliticizando-se ao verbo que o precede”, em (25a).
Quadro 2: A distribuição dos pronomes clíticos do crioulo cabo verdiano Clíticos 1a sing. 2a sing 3a sing 1a PL 2a PL 3a PL
Sujeito N (M) bu e nu nhos es
Objeto -m -bu -l -nu -nhos -s
Preposicionado NA
Desse Quadro, pode-se inferir que, como a maioria dos clíticos exerce tanto a função de sujeito quanto a de objeto direto, a atribuição de caso é estrutural nessa língua, e que, em seu sistema pronominal, as formas não são marcadas morfologicamente.
20
Conforme Baptista (2002: 235), as formas não clíticas não podem ocorrer adjacentes ao verbo.
105
2.4. OBJETO DIRETO NA ESCRITA DE AFRICANOS ALFORRIADOS NO BRASIL As construções sintáticas incluindo verbos transitivos diretos, nas atas, estão bastante relacionadas ao gênero textual a que pertencem. Esse gênero, de caráter documental, consiste no registro dos atos e decisões tomadas em uma dada reunião ou seção. Três características do gênero ata são determinantes na escolha das construções sintáticas utilizadas:
I. Objetividade: os assuntos são ordenados linearmente, sem repetições e com poucas retomadas anafóricas; II. Registro coletivo: a responsabilidade dos atos e das decisões tomadas é diluída, o que dispensa construções com sujeito explícito; III. Documental: o que leva ao estabelecimento de uma estrutura formal bastante rigorosa, abertura e fechamento seguem formas pré-estabelecidas, ficando livre apenas o corpo da ata, em que se registram as informações novas. 2.4.1. AS CONSTRUÇÕES TRANSITIVAS NAS ATAS E O COMPORTAMENTO DO ARGUMENTO INTERNO
As características desse gênero textual podem levar a um uso produtivo de construções com verbos transitivos diretos sem que eles, necessariamente, requeiram que o argumento interno exerça a função de complemento direto, por exemplo, em construções passivas. A Tabela 6, a seguir, registra a distribuição das construções ativas (que requerem a realização da função de objeto direto) e das passivas (em que o argumento interno é elevado à posição de sujeito). Identificamos 409 construções que envolvem verbos transitivos diretos. A maior freqüência é da voz ativa, com 59% das ocorrências. Tabela 6: Objeto direto em construções ativas e passivas Variante Ocorrências % Voz ativa 240 59 Passiva 169 41 Total 409 100
106
Para o fenômeno analisado, o caráter formular do fechamento das atas pode enviesar os números, visto que esta parte da ata é constituída de verbos transitivos semelhantes, que têm como complemento o mesmo referente nas diversas atas:
(27)
a. epor esta / Com forme mandou o Provedor lavra es / te termo eeu Como Secretario ofis eSu / bré escrevi ___, etc. (JFO, 05, 10.07.1836) b. e para Constar mandou o Prezidente e mais / Membro da Junta que / este fizese e asig ase (MSR,01, 23.02.1835) c. e para Constar mandou a meza / Administradora que este Sefizese para Constar etodo tempo eu que /subscrevi e Asignei (MSR, 15, 11.10.1835) d. epor estar Com forme mandou lavra este / para Constar Herá Suprá Cons cistorio / dos des Valido etc (JFO, 7, 04.09.1836).
Nos exemplos em (27), retirados do fechamento, observa-se a repetição do verbo transitivo mandar, que, sendo causativo, seleciona como argumento uma sentença, cujo verbo ora é lavrar (27a, d), ora é fazer (27b, c). O complemento dos últimos verbos é sempre o documento redigido, ou seja, a ata. A fórmula ainda inclui dois verbos que selecionam como complemento o mesmo referente, a ata, assinar e subscrever. A fim de se obter números mais precisos, desconsideramos o fechamento das atas, devido a seu caráter formular, mas retomaremos consideração sobre essa parte adiante. Sem os dados do fechamento, os números são outros e há uma inversão na freqüência dessas construções. Quando são focalizados apenas os dados do corpo das atas, é maior a freqüência de construções passivas, com 58%, como se pode ver na Tabela 7, uma diferença bastante significativa de quando consideramos todos os dados:
Tabela 7: Objeto direto em construções ativas e passivas no corpo das atas Variante Ocorrências % Voz ativa 110 42 Passiva 151 58 Total 261 100
O uso de construções passivas reflete uma das características do gênero textual analisado, que é o fato de não ser necessário explicitar o agente das ações realizadas. No corpo das atas, encontraram-se três tipos de passiva: a verbal com o 107
verbo ser + particípio passado (cf. 28); a passiva adjetiva, com o verbo ficar + particípio adjetivado (cf. 29); e a passiva pronominal, verbo + pronome apassivador SE (cf. 30). Consideramos construções passivas as formas verbais no particípio, construções consideradas reduzidas21 (31): (28)
a. Segundo, que a Missa he selebrada / pelo Padre que adisser logo as Oito horas imperte /rivelmente. (LTG, 16.11.1832) b. e Continuou-se os traba / lhos e determi nou-se que naõ pode ra ser Eleito / Irmaõ algum sem que naõ esteje legar emsuas Contas / mensaes ou Entrada segúndo marca naLei <Artigo> 49 (MSR, 18.07.1835)
(29)
a. Fica adi / ado aremataçaõ do novo Coffre aquem / preferi por menos fazer. (LTG, 04.10.1835) b. Irmoins por- / Estremadós, ea Comiçaõ Nomeadá epor ter preenchido, estes / deveres, ficou marcadó apossé pará para treze de Dezembro / deste mesmo annó. (JFO, 10, 13.11.1836)
(30)
a. Decidio-se por maior / votto das favas oSeguinte / (16.07.1832) b. Lanca-se o Termo como Ley os que / ficaraõ aprovado, assim como aver / Loterias. (LTG, 21.04.1833)
(31)
a. epropos o Juiz que sedevia Organizar / hu a Loteria de mil Belhetes [empresso a 32o cada hum, / (LTG, 11. 04.08, 1833) b. a Meza de pois de ter es corrido o es co tinio man / dar im primir huma Satisfacaõ ao Publico / em Resposta da dita. Espedida nodia 16 de Janeiro /de 1834 (MSR, 01, 23.02.1834)
Quanto às construções ativas, foram selecionados todos os tipos de categorias como complemento:
DP: (32)
nafalta que possaõ ter sobre as festividade / poderá o Cofre Emprestar [adita quantia] ao Thezoureiro de que / faltar sobre a Finta dos 500 reis (MCRS, 14, 13.07.1835)
21 A tradição gramatical chama de orações subordinadas de particípio e, ao serem desenvolvidas, correspondem a uma construção passiva verbal. i) Iniciados os trabalhos, deu-se prosseguimento às discussões. ii) Quando os trabalhos foram iniciados, deu-se prosseguimento às discussões.
108
CP22: (33)
de liberou aJunta [que to dos Irmãos / Princi piante aes ta Devocaõ tenhaõ o termo / de D[o]finidores aquelles que merecer Unanim / amente Popular] (MSR, 02, 23.02.1834)
IP: (34)
Mandar [emprimil a Leis] para Repatir Com o Irmão (MVS, 04, 05.04,1835)
Mini-oração: (35)
lemos o termo Anteceden / te do que ficou adiado sobre as Conta do Ex Tezoureiro Da / niel Correia eaXemos [___ Com forme] (JFO, 06, 14.08.1836)
Devido às características particulares do gênero textual analisado, os assuntos se dispõem linearmente nas atas, de maneira que repetições e retomadas anafóricas foram evitadas no corpo das atas. Identificamos apenas treze ocorrências de objeto anafórico, realizado por ON (36a), por clítico (36b) ou por DP (36c):
(36)
a. etratemos a Rever o debitoi que Se devia a Caza ó / qual mandou oVis Provedor Cartiar-sé aos / ditos para Virem Remirem ___i naprimeira Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836) b. Segundo, que a Missai he selebrada / pelo Padre que aidisser logo as Oito horas imperte / rivelmente. (LTG, 06, 16.12.1832) c. O Sacretario Luiz Teixeira Gomes / naõ deu votto algum na re- / formai por ser quem fes areformai (LTG, 10, 21.04.1833)
Para não fugir à objetividade, outro recurso utilizado para a retomada é o uso de construções relativas. Nessas construções, o objeto direto é realizado por um pronome relativo, reunindo duas informações em uma só sentença. São treze as ocorrências deste tipo de construção, dentre elas estão as sentenças apresentadas em (37):
O verbo deliberar ocorre principalmente na abertura das atas e ora seleciona um CP, como em (29), ora seleciona um DP, como no exemplo a seguir. i) O Prezidente da Junta de Liberou [o seguinte]- / (MSR, 01, 23.02.1834)
22
109
(37)
a. elle ficara res- / ponca vel pella as fatas do andamento / des ta de uo caõ Visto negar o despaxoi / quei a Commicaõ emViov emNome da De- / uocaõ (MC, 02, 02.05.1841) b. Igiga do Mencaes da Deuocaõ as murtai quei os Irmão tiuerem / de Comprir pagar (MC, 02, 02.05.1841) c.com tinuouse os trabalhoi quei ja vai para / a Comissaõ dessedir eregular, (LTG, 13, 03.05.1835)
Na próxima seção, trataremos apenas de um subconjunto dos casos dos argumentos internos, aqueles que realizam na função típica de objeto direto, ou seja, na voz ativa. 2.4.2. REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO DE OBJETO DIRETO NAS ATAS Nesta
subseção,
trataremos
das
ocorrências
do
argumento
interno
efetivamente na função de objeto direto, ora retomando um antecedente discursivo, numa relação anafórica23 (cf. 38), ora se referindo a um elemento presente na situação, numa relação dêitica (cf. 39). A identificação da referência dêitica se diferencia da anafórica por não apresentar índice de correferência:
(38)
a. epara cons / tar mandou oprovedor Lavra estes ter / moi em que nos acinamos e eu oi Escrevi e / Como Secretario, e a Signei etc. (JFO, 08, 02.10.1836) b. epor estar Comforme mandou passar este / termo em Com formidade daLei, e eu Escrivaõ Auctual Escrevi, / eSubré esCrevi, herá Suprá etc. / (JFO, 10, 13.11.1836)
(39)
a. é por una- / nimidade dos actuáes Mezarios o escre / vi // e assignei como Secretário Luiz Teixeira Gomes (LTG, 09, 24.03 a 21.04.1833) b. epor estar Conforme / Assignamos ____ (LTG, 07, 16.11.1832)
A maior freqüência de construções anafóricas e dêiticas foi registrada no fechamento das atas e, como se observa em (38-39), há variação entre o clítico (versão a) e o ON (versão b). A quantidade dessas construções pode ser vista na Tabela a seguir: 23
Utilizamos o termo aqui de acordo com a Lingüística Textual.
110
Tabela 8: Distribuição do objeto direto no corpo e no fechamento das atas Fechamento Total Corpo Ocorrências % Ocorrências % Ocorrências % Anafórico 13 33 26 67 39 48 Dêitico --42 100 42 52 Total 13 16 68 84 81 100
No corpo das atas, não há nenhuma ocorrência de OD com referência dêitica, e de anafóricos foram encontradas apenas treze ocorrências. Existe mais de uma estratégia lingüística para realização desses tipos de objeto, como demonstram os exemplos em (38-39). Além do clítico e do ON, a retomada pode ser realizada através de um DP, como no exemplo em (20). Estudos realizados sobre OD anafórico no PB apontam que a escolha pelo ON ou pelo clítico está relacionada ao traço semântico de animacidade (cf. DUARTE, 1986; CYRINO, 1997; FIGUEIREDO, 2004; entre outros)24 e a traços de referencialidade. O português que chegou ao Brasil permitia duas estratégias de retomada de um antecedente discursivo: (i) o clítico para a retomada de DPs já pronunciados e (ii) o clítico neutro e o ON25 para retomar uma sentença (CYRINO, 1997). No século XIX, segundo Cyrino (1997), a criança, a partir da elipse sentencial, estendeu a possibilidade de ON a antecedentes não-oracionais com traços [+específico, –animado], um comportamento lingüístico disponível para os redatores das atas analisadas. Ainda nesse século, com o enfraquecimento do clítico acusativo de terceira pessoa26, surge uma nova estratégia de retomada na posição de OD no PB, o pronome ELE. Tem-se, então, a seguinte distribuição: quando o antecedente possui o traço [-animado], o ON é favorecido; quando o antecedente possui traço [+animado], o pronome ELE é utilizado, concorrendo com os clíticos que ainda resistem.
Figueiredo (em andamento) reanalisa o papel da animacidade no licenciamento dessas estratégias, sugerindo que é a posição onde o antecedente é gerado que permite a realização de uma ou de outra estratégia. 25 O exemplo é uma amostra do português europeu do século XVI, encontrado em Gil Vicente: i) Tomaste ante como ante por marcante o corsário Santanás porque querees___ (cf.porque o queeres) (CYRINO, 1997, p. 242) 26 Cyrino (1997), Nunes (1996). 24
111
Embora o número de dados encontrados não seja suficiente para nos fornecer uma generalização, verifica-se que o ON é a estratégia mais realizada no corpo das atas, com 69% das ocorrências, seguida pelo clítico (23%) e pela repetição do DP (8%), com apenas 1 caso. Tabela 9: Estratégias de retomada de objeto direto no fechamento das atas CL ON SN Total Antecedentes Ocorrência % Ocorrência % Ocorrências % Ocorrênc % s s ias DP 2 80 7 70 1 10 10 77 Sentença 1 33 2 67 3 23 Total 3 23 9 69 1 8 13 100
A retomada de um DP, nas atas, ocorreu através de um clítico (40), do ON (41) e de um DP (42).
(40)
a. Segundo, que a Missai he selebrada / pelo Padre que aidisser logo as Oito horas imperte / rivelmente. (LTG, 06, 16.12.1832) b. estando o Vice Provedor emais / mezariosi sancionou-se o seguinte que na1a. Dominga de / setembro osi Encarrega dos da 4a. e 5a. Loteria darem Conta / e Enaõ o fazendo pasaraõ a responsabilizado; (MSR, 12, 02.08.1835)
(41)
a. teratemos a Rever o debitoi que Se devia a Caza ó / qual mandou oVis Provedor Cartiar-sé aos / ditos para Virem Remirem ___i naprimeira Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1833) b.Fica adiado aremataçaõi do novo Coffre aquém / preferi por menos fazer ___i. (LTG, 14, 04.10.1835) c.o 2 Mandar emprimil a Leisi para Repatir ___i Com o Irmão / 1o. Atrigo sahio Aprovado para principial o que era / e a Cabar a Mejo dia e 2o. para a Commiçaõ de sider. (MVS, 04, 05.04.1835) d. lemos o termo Anteceden / te do que ficou adiado sobre as Conta do Ex Tezoureiro Da / niel Correiai eaXemos ___i Com forme ficando, a Rezista em / tomar o Conhecimento das mais prestada do dito Tezoureiro27 / (JFO, 06, 14.08.1836) e. Aos dez dias do mez de Se / tembro de mil oito centos etrinta e dous pe- / rante o Juiz e Mezarios deu-se todos poderesi / ao Nosso Irmaõ Consultor Manoel da Conceicam / para exercer ____i de Thezoureiro té que em o dia daposse / dezesseis do Corrente; (LTG, 01, 10.07.1832)
27 Optamos por considerar tal dado, embora o ON não seja o argumento interno legítimo do verbo, mas a mini-oração de que faz parte.
112
f. e com estes poderes pode / tudoi pagar, e cobrar ___i/28 (LTG, 01, 10.09.1832) g. Segundo qualquer Irmaõ que estando em / Meza fica responsalbelizado por qualquer / abuzo por dizer [oque sepassou na Meza] i / aoutro seu Amigo, parente, Irmaõ, / ou Mulher, May, Pay, [ou]filho; e / no Cazoque se saiba que qualquer publicou ___i / he suspenço para outra reuniaõ por suspei (LTG, 07, 16.12.1832) (42)
O Sacretario Luiz Teixeira Gomes / naõ deu votto algum na re- / formai por ser quem fes areformai (LTG, 10, 21.04.1933)
Encontramos, nesta parte das atas, apenas três dados de OD que retomam uma sentença, uma vez através do clítico (43) e duas através do ON (44):
(43)
estando o Vice Provedor emais / mezarios sancionou-se o seguinte que na1a. Dominga de / setembro os Encarrega dos da 4a. e 5a. Loteria darem Conta / e Enaõ o fazendo pasaraõ a responsabilizado; (MSR, 12, 02.08.1835)
(44)
a. lemos o termo Anteceden / te do que ficou adiado sobre as Conta do Ex Tezoureiro Da / niel Correia eaXemos Com forme ficando, a Rezista ___ em / tomar o Conhecimento das mais prestada do dito Tezoureiro / (JFO, 06, 14.08.1836) b. aprezentor o Feçal o Irmão Luis Theixeira / Gomes o seguinte 1o Passar por Leis emquanta hora de Acha / mos nas [Comprencia] e quanta horas de de Vemos de Acabalr /o 2 Mandar emprimil a Leis para Repatir Com o Irmão / 1o. Atrigo sahio Aprovado para principial o que era / e a Cabar a Mejo dia e 2o. para a Commiçaõ de side ___ 29/ (MVS, 04, 05.05, 1835)
Quanto à escolha das estratégias de retomada de DPs, percebe-se que o antecedente com traço [-animado] pode ser recuperado através do clítico, como em (40a), e do ON, com em (41). No único caso de antecedente com traço semântico
28 O exemplo (41f) é ambíguo entre duas análises estruturais. Na primeira, a posição de complemento do segundo verbo (COBRAR) é ocupada por um objeto nulo, qualquer que seja a análise para ele (um pronome nulo, uma variável ligada a um operador), correferente ao complemento do primeiro verbo (PAGAR). Na segunda análise, existe um tipo de estrutura coordenada, em que ambos os verbos compartilham o mesmo objeto (um tipo de coordenação verbal), da mesma forma que em (i), que é, então, topicalizado, de um modo semelhante ao que ocorre nas construções across-the-board (ATB) como em (ii), em que o elemento QU deslocado liga as posições de complemento vazias nas duas sentenças coordenadas: (i) … pode [[pagar] e [comprar] tudo]. (ii) Quem João encontrou ___ e cumprimentou ___? 29 Esta lacuna permite a seguinte leitura: mandar imprimir as leis.
113
[+animado], (40b), a realização ocorre através de um clítico, o que não nos permite propor um padrão de comportamento das estratégias. Segundo Cyrino (1997), no século XIX, o ON está disponível para retomar DPs com traço [+específico], o que é observado nos dados em (17 a-d). O ON também retoma antecedentes [-específico], como em (41 e-g). Quanto à retomada de sentenças nas atas, embora sejam poucas as ocorrências, predomina o uso do ON, mas ainda ocorre a presença do clítico, refletindo um comportamento da época. No fechamento, há ocorrências não só de objetos diretos com referência anafórica, mas também dêitica. Como se viu na Tabela 8, as ocorrências com referência dêitica se restringem a esta parte do texto, podendo realizar-se através de um clítico, como em (39a), ou de um ON, como em (39b), e têm como referente a própria ata. A quantidade dessas estratégias, no fechamento das atas, é bastante equilibrada, e a escolha por uma delas está relacionada ao estilo dos secretários. Há registro de 37 ocorrências desse tipo de construção e, em apenas uma ocorrência,o clítico é encontrado (cf. exemplo em (39a)). Do total de 40 ocorrências de retomada anafórica, 30 encontram-se nessa parte do texto, em que o antecedente é sempre o mesmo, a própria ata, e se distribuem entre o ON, com 18 ocorrências, e o clítico, com 8 ocorrências apenas. Há ainda uma terceira estratégia, que é a retomada pelo demonstrativo este(a), sempre topicalizado. São quatro os dados em que a retomada é realizada por um demonstrativo: dois ocorrem com o verbo fazer e dois com o verbo sobrescrever:
(45)
a. e para constar mandou o Prezidente / que selança-çe es te termo em que nos / a signamosi; e como Sacretario da dita /Comiçaõ que estei fis. (GMB, 02, 29.12.1835) b. epor estar / mos Com for me mandou a Junta que se lavrase / este Termoi Como Sacratário que estei fiz e a signei / (MSR, 08, 08.02.1835) c. epor / estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que estei / sefizesse e nos assignasemoz. Eu que estai subscrevi (MSR, 09, 05.07.1835) d. epor estar Com forme man / dou a Ameza Administradora que estei sefizese e asig narmoz / Como Sacretário que estei sobre es crevi e Fica aguiado (MSR, 12, 02.08.1835)
114
O caráter formular desta parte do texto é evidenciado na repetição dos mesmos verbos, fazer, escrever, assinar e subescrever, e também na retomada do mesmo referente, a própria ata, seja com referência anafórica, seja com referência dêitica. Tabela 10: Objeto direto e tipo de verbo Fazer
Referência CL Dêitica O N Subtotal Anafórica CL O N Subtotal Total
Assinar
Escrever
Subscrever
Total
Ocorrências -3
% -7
Ocorrências -23
% -56
Ocorrências 1 5
% 100 12
Ocorrências -10
% -25
Ocorrências 1 41
% 2 98
3 5 --
7 63 --
23 2 8
55 25 44
6 1 1
14 12 6
10 -9
24 -50
42 8 18
100 31 69
5 8
19 12
10 33
38 48
2 8
8 12
9 19
35 28
26 68
100 100
Como se vê na Tabela 10, a quantidade de ON é maior que a do clítico, de maneira semelhante às ocorrências encontradas no corpo das atas. São 59 ocorrências de ON e apenas 9 de clíticos. A única ocorrência de clítico com referência dêitica está exemplificada em (39a). O verbo fazer seleciona como complemento tanto o clítico quanto o ON, porém, quando a referência é dêitica, a retomada só ocorre pelo ON (46) e, quando a referência é anafórica, só ocorre CL (47):
(46)
a. Eu que Fis ___ e Cobrequever Como Sracretario Manoel Victo Serra e Fis Sor berçerver / (MVS, 03, 29.03.1835) b. ev que fis ___ easiner (MC. 02, 02.05.1841)
(47)
a. epor estar Com forme a Si- / gnamos, etc. Como Secretario que estei oi fes / ea Signei - Jozé Fernandes do Ó ( JFO, 03, 17.04.1836) b. epor esta / Com forme mandou o Provedor lavra es / te termo eeu Como Secretario ofis eSu / bré escrevi, etc. (JFO, 05, 10.07.1836) c. epor esta Com forme mandou o Provedor / lavra este termo, para atodo tempo Constar eeu / Escrivaõ Actual, ofis e Subri, es Crevi etc. (JFO, 06, 14.08.1836) d. epor esta Com forme mandou o Provedor / lavra este termo, para atodo tempo Constar eeu / Escrivaõ Actual, ofis e Subri, es Crevi etc. (JFO, 06, 14.08.1836) e. epor está Comforme man / dou o Provedor lavra este termo, para atodo tempo Cons / tar e eu Escrivam ofes é Sobre escrevi hera Supra / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 09, 30.10.1836)
115
Dos oito casos de clíticos anafóricos, cinco são encontrados nas atas escritas pelo mesmo secretário, José Fernandes do Ó, e apresentam a mesma redação nos exemplos em (47 b-e). A estrutura é quebrada apenas em (47a), em que o clítico é um pronome resumptivo, que retoma o demonstrativo este topicalizado. O verbo fazer também é usado por Luís Teixeira Gomes como causativo e pede uma sentença como complemento, totalizando 5 ocorrências desse uso em 15 atas escritas por esse secretário:
(48)
a. Como / Sracretario Manoel Victo Serra e Fis [Sor /berçerver] (LTG, 04, 29.03.1835) b. e Por estarmos conforme assi- / gnamos e eu sobscrevi Luis Teixeira Gomes / como sacretário que fiz [Escrever] – (LTG, 10, 21.04.1833)
O verbo sobrescrever apresenta um comportamento peculiar; nas duas leituras, dêitica ou anafórica, o referente é retomado pelo ON, (cf. 49), exceto em uma ocorrência em que a retomada se dá pelo demonstrativo esta topicalizado (cf. 49 c): (49)
a. epor estarmos comforme / eu sobscrevi___ e assignei (LTG, 06, 16.11.1832) b. epor esta Com forme mandou o Provedor / lavra este termoi, para atodo tempo Constar eeu / Escrivaõ Actual, ofis e Subri, es Crevi ___i etc. (JFO, 06, 14.08.1836) c. epor estar Com forme / Esta Sobré Escrevi etc. (JFO, 01, 18.10.1835)
Das 33 ocorrências do verbo assinar, em 23, o verbo seleciona ON com referência dêitica (50a); quando a referência é anafórica, são duas as ocorrências de clítico (50b) e 8 as de ON (50c):
(50)
a. e por estar Comforme- / aSignemoz ___ / (MSR, 05, 01.03.1834) b. epor esta / Com forme mandou lavra estei para Constar / e eeu Secretário oiaSignei - Jozé Fernandes do Ó (JFO, 13, 27.11.1842) c. e para Constar mandou o Prezidente e mais / Membro da Junta que estei fizese e asig ase ___i / (MSR, 01. 23.02.1834)
O verbo assinar aparece ainda em construções em que não seleciona um argumento interno, embora exija a ocorrência um elemento parece exercer a função 116
de complemento. São construções em que o verbo aparece como pronominal (51a) ou como transitivo indireto (51b)
(51)
a. E para Cons tar o prençipio des te trabalho, / mandou o Prizidente lançar es te termo / em que nos Assignamos. (GMB, 01, 14.11.1834) b. epor estarmos Comforme man / dou o socios Adimins tradores que sefizesse / estes Termo em que asig namoz Como Sacretário / que sobscrevi (MSR,06, 07.01.1835)
De um modo geral, os dados mostram que estão em jogo, no corpus, apenas a realização nula e a clítica do objeto direto, com nítido predomínio da forma nula, como se discutirá na seção 2.4.4.
2.4.3. O COMPORTAMENTO DOS REDATORES Embora as atas possuam um caráter formular, os redatores imprimiram nelas o seu estilo: uns preferem, no fechamento, uma retomada dêitica, outros uma retomada anafórica, outros ainda dão preferência a explorar as possibilidades dos verbos (transitivo direto, indireto, pronominal). Nesta subseção, trataremos apenas das possibilidades de retomada um referente no discurso ou na situação. Os números da Tabela 11 mostram que, na escrita de João Fernandes do Ó, ocorrem 8 clíticos contra 15 casos de objeto nulo; já na escrita de Luís Teixeira Gomes, os clíticos ocorrem apenas duas vezes, contra 26 objetos nulos. Manuel da Conceição utiliza a forma nula duas vezes e não utiliza o clítico. Manuel do Sacramento e Conceição Rosa utiliza duas vezes a forma clítica e 15 vezes a nula. Por fim, Manuel Vítor Serra utiliza apenas a forma nula, num total de 10 vezes.
117
Tabela 11: O comportamento dos redatores na retomada do objeto direto Total Dêitica Anafórica Corpo Fechamento Corpo Fechamento CL ON CL ON CL ON CL ON CL ON GMB JFO LTG MC MSR MVS Total
1
1
2 22 2 7 8 41
1
3 4
8
10
2 3
8 2 9
8
18
8 2 2 12
15 26 2 15 10 68
2.4.4. ANÁLISE: A GRAMÁTICA DO COMPLEMENTO DIRETO NAS ATAS Inicialmente, é importante salientar que o gênero textual analisado não contribuiu para o uso de retomadas discursivas, o que acabou por favorecer as construções passivas e a retomada através da relativização. Ainda assim, os dados levantados e analisados sobre a realização do objeto direto no corpus mostram que o ON foi a estratégia mais utilizada. Essa forma alcança a freqüência de 69% no corpo das atas. No fechamento, ocorrem os mesmos 69% de ON quando se trata de contexto de correferência, mas há um aumento para 98% dos dados no contexto de referência dêitica. Não foram encontrados casos do pronome forte ELE exercendo essa função. Esses resultados apontam para uma maior proximidade da gramática dos redatores das atas com a do PB contemporâneo do que com a do PE, uma vez que o ON é favorecido quando seu antecedente é referencial e possui o traço [+específico], o que não ocorre no PE. Como se pôde ver na seção 2.1., no PE rural, o clítico é a forma majoritária e o ON sofre restrições de referencialidade. Por outro lado, a ausência do pronome ELE aponta para uma diferença em relação ao PB contemporâneo e fortalece a hipótese levantada por Figueiredo (2004) de que essa forma não se desenvolveu no PB com resultado direto do processo de transmissão lingüística irregular, mas apenas mais tardiamente. Em outras palavras, o ON parece ter se desenvolvido e se generalizado na fala brasileira antes do surgimento e implementação do pronome forte, sendo, provavelmente, a verdadeira estratégia crioulizante do PB. 118
3. COMPLEMENTOS INDIRETOS DATIVOS O complemento dativo é, como visto anteriormente, o argumento verbal que ocorre em estruturas bitransitivas com o valor semântico de alvo/meta ou fonte de um movimento. Em português, o dativo é expresso, canonicamente, através de um sintagma nominal (DP) introduzido pela preposição A ou de um elemento clítico (no caso da terceira pessoa, em contexto de retomada referencial, pelo clítico dativo LHE/LHES), ao qual é associado, normalmente, mas não exclusivamente, o papel semântico [+humano]. Como se verá nas próximas subseções, as variedades européia, brasileira e africana (moçambicana) do português apresentam entre si diferenças na realização dos dativos, que dizem respeito (i) à possibilidade de redobro; (ii) à presença e ao tipo de preposição introdutora (iii) e à natureza do item pronominal utilizado em contexto anafórico (clítico, pronome nulo ou pronome forte).
3.1. DATIVOS NO PORTUGUÊS EUROPEU Torres Morais & Berlinck (2006; 2007) apontam que o complemento dativo é realizado, no PE, tipicamente sob a forma de sintagma nominal introduzido pela preposição A. A substituição pela preposição PARA é rara e sofre várias restrições, já que o uso de PARA está associado mais ao papel temático de beneficiário de uma ação do que ao de alvo de um movimento ou transferência. Por exemplo, na versão (a) de (52), o PP em destaque, introduzido por A, é um argumento dativo, que apresenta uma interpretação ambígua entre expressar a origem ou o ponto final do movimento de compra. Já na versão (b), com a preposição PARA, não há ambigüidade e o sintagma em destaque é um adjunto adverbial que expressa o beneficiário da compra (TORRES MORAIS & BERLINCK, 2006, p. 76):
(52)
a. O Pedro comprou um carro ao José. b. O Pedro comprou um carro para o José.
119
Outra característica da realização dos dativos no PE é a possibilidade de redobro desse complemento através da forma clítica LHE, como mostram os exemplos abaixo. As autoras afirmam que o redobro através do clítico é obrigatório quando o sintagma dativo é introduzido pela preposição A, como mostram os exemplos (53a-b). Já quando introduzido por PARA, o redobro é impossível, como mostra (53c):
(53)
a. Dei-lhe o livro a ela. b. * Dei o livro a ela. c. * Dei-lhe o livro para ela.
A realização do dativo como um DP não introduzido por preposição, possível em outras línguas e em variedades do português, é agramatical no PE.
3.2. DATIVOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO Os estudos sobre a realização dos complementos dativos na história do PB, como os de Torres Morais & Berlinck (2006, 2007), têm apontado para duas importantes mudanças:
(i) a perda quase completa do pronome clítico de terceira pessoa LHE(s), substituído pela realização nula ou pelo pronome forte ELE(A) introduzido por preposição; (ii) variação entre a preposição A e PARA, com progressiva substituição da primeira pela segunda.
Os números do Gráfico 1, retirado de Freire (2000), exemplificam a primeira mudança: o pronome clítico é a variante majoritária no PE, com ocorrência superior a 80%, mas sua ocorrência é igual a zero no corpus do PB investigado pelo autor. Os números apresentados no Gráfico permitem a interpretação de que o clítico, como estratégia de retomada referencial, é substituído pela forma nula e pelo pronome forte ELE introduzido por preposição. 120
Gráfico 1: Realização dos dativos no PE e PB
Outros estudos empíricos apontam resultados semelhantes quanto à perda do clítico dativo no PB. Na fala de Florianópolis, Silveira (1999) encontrou apenas 2% de casos de clíticos dativos de 3ª pessoa; na fala de Curitiba, Berlinck (2001) encontrou apenas 1% de dados, enquanto, no Rio de Janeiro, Gomes (2003) não encontrou nenhuma ocorrência. A segunda mudança, o processo de substituição da preposição A por PARA tem respaldo nos resultados de pesquisas diacrônicas. Berlinck (2001) registra 95% e 90% de uso da preposição A na primeira e na segunda metade do século XVIII, respectivamente. As ocorrências de PARA encontradas pela autora se encontram em complementos indiretos não-típicos, que não podem ser substituídos pelo clítico LHE. Berlinck (2000) aponta resultados semelhantes para o século XIX, mas já com o delineamento de uma ligeira tendência de queda no uso de A: 93% e 83%, respectivamente, na primeira e na segunda metade do século. A Tabela 12, abaixo, resume essas informações:
Tabela 12: Preposição introdutora do dativo na diacronia do PB Período Freqüência 1701-1750 95% 1751-1800 90% 1801-1850 93% 1851-1900 83%
121
No PB contemporâneo, os trabalhos de Salles & Scherre (2002) e de Berlinck (2001) registram 33% de uso de A em Fortaleza e apenas 6% no Rio de Janeiro, confirmando essa tendência. Os resultados das pesquisas mostram, dessa forma, que esses dois processos de mudança, a perda do clítico dativo LHE e a substituição de A por PARA, estão em estágio avançado no PB. Essas duas mudanças têm como conseqüência lógica também a impossibilidade de redobro do clítico. Por outro lado, semelhantemente ao PE, a ausência da preposição em DPs dativos é rara no PB, sendo agramatical ou bastante marginal na maioria dos dialetos. Duas exceções documentadas são o dialeto da Zona da Mata de Minas Gerais e o de comunidades afro-brasileiras isoladas, como se verá nas próximas subseções.
3.2.1. DATIVOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO DA ZONA DA MATA Além da mudança na preposição que introduz o dativo, outro fenômeno importante, embora mais localizado, é a não-realização da preposição. Um dos (poucos) dialetos brasileiros em que isso ocorre é o da Zona da Mata de Minas Gerais, como apontado por Scher (1996). A ausência de preposição em dativos é um fenômeno comum (e muito estudado) em inglês. Os estudos sobre o tema mostram que não se trata apenas de um processo de omissão fonológica da preposição. As chamadas construções de duplo objeto (CDO) apresentam um comportamento peculiar. As características mais importantes são (i) a ocorrência obrigatória do dativo em adjacência ao verbo, como mostra (54) e (ii) a possibilidade de se passivar um dativo em inglês, como em (55), ao contrário de outras línguas que não exibem CDO:
(54)
a. I gave Mary a book. b. I gave a book *(to) Mary.
(55)
Mary was given a book.
Essas propriedades mostram que as CDOs verdadeiras provavelmente envolvem algum tipo de licenciamento sintático diferenciado do caso do dativo, por 122
parte diretamente do verbo e não da proposição. Nesse sentido, Scher (1996) observa que o fenômeno de omissão da preposição no dialeto mineiro apresenta muitas diferenças em relação ao que ocorre em inglês. Os exemplos em (56-57) mostram que a omissão da preposição pode ocorrer independentemente da ordem interna ao VP (em adjacência ou não ao verbo) e que o dativo não pode ser passivizado:
(56)
a. Mostra o carrinho os meninos! b. Dá o recado o seu irmão! (Scher, 1996: 39)
(57)
a. *Os meninos foram dados um livro. b. *Pros/aos meninos foram dados um livro. (Scher, 1996: 28)
Scher (1996) defende, portanto, que não se trata de um fenômeno de licenciamento sintático, mas de um processo fonológico de apagamento da preposição, condicionado por fatores de natureza morfo-fonológica30.
3.2.2. DATIVOS NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO Lucchesi (2001) aponta como uma das características lingüísticas de comunidades afro-brasileiras isoladas, como Helvécia (BA), a perda da preposição que introduz os objetos indiretos. Segundo o autor, esse fenômeno, comum também em várias línguas crioulas, seria conseqüência direta de um forte processo de contato lingüístico. O trabalho de Barros (2008) mostra que, em Helvécia, a variante nãopreposicionada do dativo ocorre com uma freqüência de 6%, quando considerados todos os casos de dativos (realizados como nulos, como sintagmas plenos ou clíticos). A forma predominante no corpus é a nula, como 72% dos dados, contra 13% de dativos preposicionados e 10% de clíticos. Dentre os clíticos, entretanto, os de 3ª pessoa estão totalmente ausentes do corpus, conforme o esperado. Todos os dados de clíticos se referem aos de 1ª e 2ª pessoas. 30
Cavalcante (2009) fornece uma análise para esse fenômeno em termos sintáticos.
123
Por outro lado, considerando apenas a realização plena dos sintagmas (excluindo nulos e clíticos), os dados de omissão da preposição são bem mais significativos: alcançam cerca de 30%, como mostra a Tabela 13: Tabela 13: Dativo com e sem preposição em Helvécia (BA) Freqüência
PP
DP
70,3%
29,7%
Adaptado de Barros, 2008.
Os resultados de Barros sugerem que o fenômeno em Helvécia se diferencia do que ocorre no dialeto mineiro, se aproximando mais das características das CDOs, pois a perda da preposição é praticamente restrita à ordem [V OI (OD)], em que há adjacência entre o verbo e o dativo, embora independente da realização fonética do OD, como mostram os exemplos em (58). Infelizmente, não é possível testar a possibilidade de alçamento do dativo a sujeito, devido à baixa produtividade de construções passivas no dialeto.
(58)
a. ... deu Luísa iss'aí pá Luísa prantá. b. Ele vendia compade Jacó porco gordo. c. É... vinha dá ele recado certim.
A omissão também parece ser restrita aos verbos de transferência material (dar, entregar) ou verbal (perguntar, dizer), não ocorrendo com verbos de movimento físico (levar, trazer) ou abstrato (ensinar, oferecer). A baixa freqüência de sintagmas dativos não introduzidos por preposição parece encontrar respaldo no trabalho de Assis (2008) sobre o comportamento dos verbos (não dativos) de movimento, em que a preposição A é pouco freqüente, mas ocorre substituição por PARA e EM, ao invés de simples omissão. Barros aponta, porém, um processo de mudança em progresso na comunidade, com perda da forma não-preposicionada, que ocorria em 50% dos casos na faixa etária mais elevada, contra 26% na faixa intermediária e apenas 12% na faixa mais jovem.
124
Como relação à alternância entre as preposições A e PARA, os dados de Helvécia apontam para o mesmo quadro geral do PB, com predomínio de PARA, com freqüência de 79%, e um perfil diageracional de mudança em progresso: a freqüência de PARA sobe de 58% na faixa etária mais elevada, para 82% na intermediária e 91% na faixa mais jovem, o que mostra que essa forma é praticamente categórica nos falantes mais jovens do dialeto.
3.3. DATIVOS NO PORTUGUÊS DE MOÇAMBIQUE De acordo com Oliveira (2005), no português falado em Moçambique, ocorre freqüente omissão da preposição nos complementos indiretos em geral, inclusive dativos, quando estão em posição de adjacência ao verbo, como em (59). Além disso, os complementos dativos podem ser alçados para a posição de sujeito em construções passivas. As duas características apontam para um fenômeno semelhante às CDO do inglês:
(59)
a.Demonstrou __ as outras mulheres o papel do destacamento feminino b. Os jovens são dados responsabilidades de família.
3.4. DATIVOS NA ESCRITA DE AFRICANOS ALFORRIADOS NO BRASIL Nesta seção, descrevemos os dados de complementos dativos encontrados nas atas produzidas por ex-escravos africanos na Bahia do século XIX. Essa tarefa está alinhada ao objetivo mais geral de fornecer subsídios para uma descrição e, conseqüentemente, compreensão mais completa dos processos que contribuíram para a formação do português brasileiro. Em segundo lugar, de modo mais específico, essa descrição tem o propósito de comparar o comportamento dos dativos nesse corpus com o comportamento identificado nas variedades do português descritas acima. Dessa forma, analisamos os seguintes aspectos na realização dos dativos: (i) realização lexical versus realização nula do dativo; (ii) presença versus ausência da
125
preposição introdutora do dativo; (iii) tipo da preposição utilizada; (iv) produtividade da forma clítica. O fato de os autores desses textos não serem falantes nativos de português, tendo aprendido a língua em situação de contato lingüístico, faz com que a hipótese default seja a de que o corpus apresente um desvio em relação ao padrão do PE, aproximando-se do padrão do PB e/ou do português africano: espera-se um uso reduzido ou nulo do clítico LHE e uma competição entre PARA e A, com possível predomínio da primeira preposição. De acordo com a hipótese de Lucchesi (1999), de que a forma não-preposicionada documentada em Helvécia é resultado de contato lingüístico, é de se esperar também a ocorrência significativa de dados em que haja omissão da preposição. Importante também seria verificar a existência ou não de dativos promovidos à posição de sujeito em construções passivas.
3.4.1. DATIVOS NULOS Inicialmente, é preciso salientar a baixa produtividade de complementos dativos no corpus examinado, dado o caráter dos textos (vide seção 2.4). Nas cinqüenta e três atas examinadas, ocorrem apenas vinte e três casos de complementos dativos. A Tabela 14 apresenta os números gerais. Tabela 14: Distribuição das formas dativas nas atas Ocorrências
Freqüência
Pronome nulo
9
39%
PP introduzido por A
9
39%
PP introduzido por PARA
1
4,4%
PP introduzido por DE
2
8,8%
DP sem preposição
1
4,4%
Clítico
1
4,4%
Total
23
100%
A maior quantidade dos dados corresponde ao pronome nulo e à forma preposicionada introduzida por A, cada um com nove ocorrências, o que equivale a 39% de freqüência. Quanto aos casos do pronome nulo, todos ocorrem em contextos 126
não-anafóricos, devido à existência de poucos contextos de retomada referencial, o que se deve ao fato de as atas serem curtas. Como se pode ver nos exemplos abaixo, o dativo tende a ser interpretado contextualmente, se referindo à mesa reunida, aos presentes nas reuniões ou aos membros da irmandade como um todo:
(60)
a. ... prestimo damesma devoção ejuntamente na 1a. Reuniaõ aprezentar Ø qual quer hum Irmão a Sua Instruçaõ ou tabella deRejime para por elles... (JF,02, 01.11.1835) b. ... eficou adiado para a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar Ø hum Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os seus Mensais. (JF,03,17.04.1836) c. ... perante esta compareceraõ os Deffinidor emais mezários reu- nido epropos Ø o Juiz que sedevia Organizar hu a Loteria de mil Belhetes empresso a 32o cada hum... (LTG,11,04.08.1833) d. O Prezidente da Junta de Liberou o seguinte- em Concideraçaõ do que sereprezentou
Ø
Contra
o-
Irmaõ
Ex
Escrivam
Luiz
Teixeira
Gomes...
(MSR,01,23.02.1834) e. Aos Vinte diás domez de Julho em- Reuni aõ ém assa dos Devotoz de Nossa Senhora do [?] Solidade dos Des validos foi oferecido Ø pello Escrivam a tual da meza Manuel Victor Serra hu progetto oqual será inda des Coti- do... (MSR,03,23.06.1834) f. hu progetto oqual será inda des Coti- do quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão folhe tos enpreço que Contenhaõ os Artigo e §§ que ofereceu Ø em firmeza de que e foi sencionado eVotado e foi aprovado... (MSR,03,23.06.1834) g. ... fasa sciente a Vossa Senhoria que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- pr ezentar Ø as émendas dos novos Estatu tos... (MSR,07,15.01.1835) h. de Claro que as nossa - Irmãs poderaõ aprezentar Ø se no dia da Festa Com sua fita Rocha dórada (MSR,12,02.08.1835) i. ... ejuntamente fica na Responcabilidade quanto antes- O 2o. Fiscal o Irmão Gregorio Manuel Bahia de aprezentar Ø o novo Cofre... (MSR,15,11.10.1835)
É possível imaginar que a freqüência de nulos seria ainda maior, se houvesse contextos que favorecessem o uso anafórico. Ainda assim, esse resultado aponta uma aproximação com relação ao comportamento do português brasileiro atual, em que a forma nula do dativo é bastante produtiva, em detrimento da forma clítica. Retornamos a isso ao comentar sobre a realização do dativo com clítico, no corpus.
127
3.4.2. DATIVOS PREPOSICIONADOS E NÃO-PREPOSICIONADOS Como mostram os números da Tabela 14, ocorreram no corpus doze casos de dativos preposicionados. A grande maioria deles, no entanto, corresponde à forma introduzida pela preposição A, que ocorre nove vezes:
(61)
a. ... fica o Secretario participado aes Crever atodo qual quer hum Irmão que Seacha atrazado... (JF,02,01.11.1835) b. ... ficou em Se comonicar por huma Carta ao Nossó Irmão dito adeliberaçaõ da Meza c. deu-se todos poderes ao Nosso Irmaõ Consultor Manoel da Conceicam... (JF,13,27.11.1842) d. ... qualquer Irmaõ que estando em Meza fica responsalbelizado por qualquer abuzo por dizer oque sepassou na Meza
aoutro seu Amigo, parente, Irmaõ, ou
Mulher, May, Pay, [ou]filho (LTG,07,16.11.1832) e. Em vertude da Meza do dia 24 de Março do prezente anno commonico aVossas Merces para vir des cutir o nosso Compromisso em algum dos Capítulo... (LTG,09,?.?.1833) f. Fica para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- ras da manha adar-se comprimento ao dinheiro para o novo Coffre... (LTG,15,08.11.1835) g. quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão folhe tos enpreço que Contenhaõ os Artigo e §§ que Contenhaõ os Artigo e §§ que ofereceu em firmeza... (MSR,03,23.06.1834) h. ... etanbem Escrever aos quatros Irmãos que estaõ pre enxido emseu men saes... (MSR,15,11.10.1835) i. o outro sim juntamente pedir-se a Irmandade do Rozarío onde estamos... (MSR,12,02.08.1835)
É interessante observar que, em quase todos os exemplos, a preposição A é escrita presa à palavra seguinte, do sintagma que introduz, como TODO em (a), OUTRO em (d) e VOSSAS em (e). Isso poderia ser conseqüência da generalização da regra da escrita que coloca juntos preposição e artigo masculino ou de uma reinterpretação de A como um prefixo. O exemplo em (i), por outro lado, é ambíguo entre a presença ou ausência da preposição, em função da possibilidade de crase com o artigo A. Esse é um exemplo 128
que, na maioria dos estudos sobre o tema, não é considerado, não entrando na contagem da realização da preposição, justamente por seu caráter ambíguo. A preposição PARA aparece apenas uma vez no corpus, num contexto de dativo não típico, com um papel temático mais associado a beneficiário do que a alvo ou meta. Além disso, também é importante notar que esse único exemplo ocorre com um verbo que não é bitransitivo, diferentemente dos demais dados levantados. Esse resultado contraria a expectativa inicial, que previa uma competição mais intensa entre as duas preposições, com favorecimento de PARA, por ser uma forma fonologicamente mais saliente:
(62)
fica multado aqual quer Mezários quefalte assistencia de Meza Mensaes pagaraõ de
cada falta servindo esse dinheiro para os mulimentos eu tencilios para devocaõ social. (LTG,08,02.02.1833)
Há dois modos de interpretação desses dados. O primeiro aponta para a possibilidade de o processo de substituição de A por PARA não ser significativo na fala dos autores dos textos e da irmandade em geral. A segunda possibilidade é a de que a concorrência entre as duas formas fosse sim produtiva, mas que o uso de PARA fosse preterido pelos autores no processo de escrita, em favor da forma A. A primeira hipótese é favorecida pelos dados diacrônicos de Berlinck (2001), que apontam que apenas no século XIX é que se começa a notar nos corpus um declínio de uso de A e aumento de PARA. Ainda assim, esse não é um argumento forte o suficiente, uma vez que a expectativa é que a aquisição irregular da língua por parte dos autores africanos conduza a um maior favorecimento de PARA, fonologicamente mais saliente. Ou seja, a hipótese prevê justamente que o incremento de PARA registrado no português brasileiro tenha se iniciado entre os falantes mais fortemente influenciados pelo contato lingüístico. De qualquer maneira, os dados não permitem concluir que o uso da preposição pelos autores seja distinto do uso documentado em outros corpora do PB do mesmo período, o que parece apontar para o fato de que os autores puderam adquirir a preposição A, se não para o uso vernacular, ao menos no uso estilístico.
129
Existe apenas um único caso de dativo com a preposição omissa, na expressão dar comprimento Ø o(s) projetos, que aparece em (63). Porém, como se pode notar, o elemento em jogo é ambíguo entre funcionar como complemento do verbo dar ou do nome cumprimento. O dado é discutido aqui por a expressão dar cumprimento funcionar como uma lexia, um tipo de verbo complexo (=cumprir), do qual podemos considerar o(s) projetos um argumento:
(63) em uertude de dar Compimento o pogetos oferecidos a deuocaõ... (MC,01,21.10.1834)
O exemplo é de Manuel da Conceição e é o único dado de dativo encontrado em sua escrita, o que nos impossibilita verificar se se trata de um exemplo isolado na escrita desse redator ou de um comportamento consistente. A excepcionalidade desse único dado, portanto, não nos autoriza a considerar que a omissão da preposição fosse produtiva entre os autores das atas, muito menos em construções dativas mais típicas. Além disso, não foram documentados no corpus casos de argumentos dativos promovidos à posição de sujeito em sentenças passivas, algo que está relacionado à possibilidade de omissão da preposição.
3.4.3. CLÍTICOS DATIVOS Com relação aos clíticos, o corpus apresenta um comportamento distinto do PE, aproximando-se do PB contemporâneo, bem como das variedades afro-brasileira e moçambicana, que perderam o pronome clítico em favor da forma nula. O clítico LHE com a função de dativo de terceira pessoa está totalmente ausente no corpus. O único caso de clítico dativo documentado é o da primeira pessoa ME, apresentado em (64):
(64) A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria que nodia do prezente Janeiro do Corrente anno... (MSR,07,15.01.1835)
130
3.4.4. VERBOS DATIVOS UTILIZADOS NO CORPUS
Nos dados levantados, ocorreram doze verbos diferentes, a maioria deles possuindo semântica de transferência material (dar, receber) ou verbal (apresentar, comunicar, dizer). A Tabela 15 abaixo apresenta a listagem dos verbos utilizados no contexto de complementos dativos. Como se pode ver, o verbo mais freqüente nos dados é apresentar, que ocorre seis vezes, cinco com dativo nulo e uma com um PP introduzido por A. O segundo verbo mais utilizado é dar, que ocorre quatro vezes, duas com a preposição A, uma com DE e outra vez sem a preposição. Tabela 15: Distribuição dos dativos pelos tipos de verbos Ocorrências
Uso
6
Pron. nulo (5); A (1)
Dar
4
A (2); DE (1); Prep. nula (1)
Escrever
2
A (2)
Comunicar
2
A (2)
Oferecer
2
Pron. nulo (2)
Dizer
1
A (1)
Pedir
1
A (1)
Receber
1
DE (1)
Representar
1
Pron. nulo (1)
Servir
1
PARA (1)
Propor
1
Pron. nulo (1)
Ordenar
1
Clítico (1)
Apresentar
Em terceiro lugar, aparecem os verbos escrever, comunicar e oferecer, cada um com duas ocorrências. Os dois primeiros só ocorreram com A; o último, apenas com o nulo. Por fim, dizer e pedir, com uma ocorrência cada, com a preposição A; receber, uma vez com DE; representar (=apresentar), uma vez com nulo; servir, uma vez com PARA; propor, uma vez com nulo; e ordenar, uma vez com um clítico de primeira pessoa.
131
3.4.5. COMPORTAMENTO DOS REDATORES Os dados de dativos documentados no corpus se concentram na escrita de quatro dos seis redatores das atas. José Fernandes do Ó produziu sete exemplos, sendo dois de dativos nulos, três introduzidos pela proposição A e dois por DE. Luís Teixeira Gomes produziu cinco exemplos, um nulo, três com a preposição A e um com PARA. Manuel da Conceição utilizou apenas um exemplo de dativo, sendo este o único caso de (possível) omissão da preposição. Já Manuel do Sacramento e Conceição Rosa produziu um total de dez exemplos, sendo seis de dativo nulo, três introduzidos por A, um caso de clítico.
(65)
José Fernandes do Ó Dativos nulos a. ... prestimo damesma devoção ejuntamente na 1a. Reuniaõ aprezentar Ø qual quer hum Irmão a Sua Instruçaõ ou tabella deRejime para por elles... (JF,02, 01.11.1835) b. ... eficou adiado para a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar Ø hum Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os seus Mensais. (JF,03,17.04.1836) Introduzidos por A c. ... fica o Secretario participado aes Crever atodo qual quer hum Irmão que Seacha atrazado... (JF,02,01.11.1835) d. ... ficou em Se comonicar por huma Carta ao Nossó Irmão dito adeliberaçaõ da Meza e. deu-se todos poderes ao Nosso Irmaõ Consultor Manoel da Conceicam... (JF,13,27.11.1842) Introduzidos por DE f. recebemos Possé dos; Beins e Dependencia daMesma Devoção (JF, 01,18.10.1835) g. dé Comprimento da aCompra dehum Cinete epapel, para prestimo damesma devoção (JF,02,01.11.1835)
132
(66)
Luís Teixeira Gomes Dativo nulo a. ... perante esta compareceraõ os Deffinidor emais mezários reu- nido epropos Ø o Juiz que sedevia Organizar hu a Loteria de mil Belhetes empresso a 32o cada hum... (LTG,11,04.08.1833)
Introduzidos por A b. ... qualquer Irmaõ que estando em Meza fica responsalbelizado por qualquer abuzo por dizer oque sepassou na Meza
aoutro seu Amigo, parente, Irmaõ, ou
Mulher, May, Pay, [ou]filho (LTG,07,16.11.1832) c. Em vertude da Meza do dia 24 de Março do prezente anno commonico aVossas Merces para vir des cutir o nosso Compromisso em algum dos Capítulo... (LTG,09,?.?.1833) d. Fica para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- ras da manha adar-se comprimento ao dinheiro para o novo Coffre... (LTG,15,08.11.1835) Introduzido por PARA e. fica multado aqual quer Mezários quefalte assistencia de Meza Mensaes pagaraõ de cada falta servindo esse dinheiro para os mulimentos eu tencilios para devocaõ social. (LTG,08,02.02.1833)
(67)
Manuel Conceição Sem preposição em uertude de dar Compimento o pogetos oferecidos a deuocaõ... (MC,01,21.10.1834)
(68)
Manuel do Sacramento e Conceição Rosa Dativos nulos a. O Prezidente da Junta de Liberou o seguinte- em Concideraçaõ do que sereprezentou
Ø
Contra
o-
Irmaõ
Ex
Escrivam
Luiz
Teixeira
Gomes...
(MSR,01,23.02.1834) b. Aos Vinte diás domez de Julho em- Reuni aõ ém assa dos Devotoz de Nossa Senhora do [?] Solidade dos Des validos foi oferecido Ø pello Escrivam a tual da meza Manuel Victor Serra hu progetto oqual será inda des Coti- do... (MSR,03,23.06.1834)
133
c. hu progetto oqual será inda des Coti- do quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão folhe tos enpreço que Contenhaõ os Artigo e §§ que ofereceu Ø em firmeza de que e foi sencionado eVotado e foi aprovado... (MSR,03,23.06.1834) d. ... fasa sciente a Vossa Senhoria que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- pr ezentar Ø as émendas dos novos Estatu tos... (MSR,07,15.01.1835) e. de Claro que as nossa - Irmãs poderaõ aprezentar Ø se no dia da Festa Com sua fita Rocha dórada (MSR,12,02.08.1835) f. ... ejuntamente fica na Responcabilidade quanto antes- O 2o. Fiscal o Irmão Gregorio Manuel Bahia de aprezentar Ø o novo Cofre... (MSR,15,11.10.1835) Introduzidos por A g. quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão folhe tos enpreço que Contenhaõ os Artigo e §§ que Contenhaõ os Artigo e §§ que ofereceu em firmeza... (MSR,03,23.06.1834) h. ... etanbem Escrever aos quatros Irmãos que estaõ pre enxido emseu men saes... (MSR,15,11.10.1835) i. o outro sim juntamente pedir-se a Irmandade do Rozarío onde estamos... (MSR,12,02.08.1835) Clítico j. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria que nodia do prezente Janeiro do Corrente anno... (MSR,07,15.01.1835)
3.4.6. ANÁLISE: A GRAMÁTICA DO COMPLEMENTO DATIVO NAS ATAS Os dados levantados no corpus apontam para características que diferenciam o português dos redatores das atas do PE, aproximando-o do PB. As diferenças fundamentais que confirmam tal afirmação dizem respeito à inexistência de pronomes clíticos dativos de terceira pessoa, associada à produtividade da forma nula dos dativos, duas mudanças inter-relacionadas que caracterizam a realização dos dativos no PB, em oposição ao PE. O uso praticamente categórico da preposição A para introduzir os dativos com interpretação de alvo ou meta, entretanto, aponta para uma diferença entre o português das atas e o PB contemporâneo, embora se conforme com os resultados 134
das pesquisas diacrônicas que revelam o incremento do uso da preposição PARA nesse contexto apenas a partir do século XIX. Esse resultado, contudo, desautoriza uma interpretação de que a substituição da preposição A por PARA no PB tenha sido decorrência direta do processo de contato lingüístico e de transmissão lingüística irregular, que favoreceriam formas fonologicamente mais salientes, ou seja, que tenha começado entre os falantes nãonativos ou seus descendentes, tendo-se espalhado gradualmente pelo PB. Embora a perda do clítico e o incremento da forma nula possam estar associados ao processo de aquisição imperfeita do português, o mesmo não é possível afirmar para a perda da preposição A, que, com base nas atas examinadas, parece ter sido adquirida plenamente pelos africanos. Essa interpretação recebe apoio da pesquisa com dados de fala da comunidade de Helvécia (BA), no final do século XX. Os resultados encontrados por Barros (2008) indicam uma freqüência de ainda cerca de 50% nas faixas etárias mais elevadas, com redução progressiva nas faixas intermediária e mais jovem, sugerindo que, mesmo nessa comunidade, o processo de substituição de A é recente, não estando presente desde a origem da comunidade e da aquisição do português pelos escravos que a formaram. REFERÊNCIAS ASSIS, Telma Souza Bispo. (2008). A atuação das variáveis lingüísticas na regência dos verbos de movimento do português afro-brasileiro. Comunicação apresentada no V Encontro da Associação Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, São Paulo, 12-14 de novembro. BAPTISTE, Marlyse. (1997). The morpho-sintax of nominal and verbal categories in Capeverdean Creole. Tese de Doutorado. UMI Dissertation Services, Massachusetts. BARROS, Ísis. (2008). A variação nas construções dativas no dialeto de Helvécia (BA). Trabalho de Conclusão de Curso. UNIME, Lauro de Freitas. BERLINCK, Rosane de Andrade. (2001). Dativo ou locativo? Sobre sentidos e formas do dativo no português. Revista letras, Curitiba, n. 56. p. 159-175. BERLINCK, Rosane de Andrade. (2000). A expressão do complemento dativo anafórico no português brasileiro: o papel de um fator discursivo. Estudos lingüísticos, v. 29, p. 357-362. CÂMARA JUNIOR, Joaquim Mattoso. (1972). Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
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137
APAGAMENTO DE PRONOMES CLÍTICOS DE FORMA REFLEXIVA1 Regina Lúcia BITTENCOURT (UFBA2 – PROHPOR)
1 INTRODUÇÃO Muito se tem escrito a respeito do percurso diacrônico de clíticos reflexivos e não-reflexivos e muito ainda se escreverá. Muito se tem questionado a respeito da relevância do contato lingüístico para a formação do português brasileiro (doravante PB), em particular no que se refere à contribuição lingüística do segmento africano e afro-descendente, e muito ainda se questionará. Este trabalho objetiva, antes de tudo, lançar um pouco mais de luz sobre essas questões e contribuir para um melhor entendimento dos fatores que têm atuado em processos de mudança relativos a clíticos, em particular aos imprecisamente denominados clíticos de forma reflexiva, no que se refere ao seu apagamento e/ou a estratégias de esquiva. Objetiva também contribuir para uma melhor avaliação da importância do contingente demográfico que, por, no mínimo, três longos séculos, representou a maioria da população (cf. MATTOS e SILVA, 2004, p. 101) e que, entrando em contato com a língua portuguesa, a reconfigurou, moldando-a em PB. A análise da supressão de clíticos ditos de forma reflexiva é feita a partir da identificação de fatores condicionantes do apagamento, tendo sido selecionados como relevantes, até agora, os seguintes: 1) a predicação verbal (abordagem sintática e semântica); 2) a concordância entre verbo e argumento interno; 3) o grau de referência do argumento representado pelo clítico apagado e 4) o tipo de clítico.
1 O presente trabalho faz parte da dissertação de Mestrado intitulada No rastro do apagamento: pronomes clíticos nas funções recíproca, reflexiva, apassivadora e indeterminadora, que objetiva identificar em quais dessas funções os clíticos, normalmente referidos como de forma reflexiva, sobretudo na forma dita de terceira pessoa (se), têm sido mais propensos à supressão, bem como os fatores condicionantes do apagamento e/ou do desenvolvimento de estratégias de esquiva, no PB, durante o século XIX. 2 Aluna especial do Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística.
138
2 O PB NO SÉCULO XIX - A ESCOLHA DO CORPUS
O corpus analisado é constituído por um conjunto de atas da Sociedade Protetora dos Desvalidos (doravante SPD), escritas por negros africanos em Salvador-Bahia, no século XIX, compreendendo o período de 1832 a 1842. A análise de um corpus com as características do selecionado pode identificar fenômenos de constituição do PB que tenham sido favorecidos pela circunstância de os africanos terem adquirido o português como segunda língua (L2). Os estudos voltados para a compreensão da dinâmica da mudança lingüística devem entender a língua como produto histórico e social, considerando, por conseguinte, a sociedade que a utiliza, a influencia e é por ela influenciada. Ou seja, as mudanças lingüísticas estão relacionadas às mudanças socioculturais que ocorrem nas comunidades de fala. De acordo com, entre outros, Mussa (apud MATTOS e SILVA, 2004), a população do Brasil, no século XIX, era constituída por aproximadamente 60% de não brancos, entre eles, africanos, negros brasileiros e mulatos. Esse dado, juntamente com os estudos sobre a sócio-história do Brasil, revela a importância de análises das características lingüísticas da comunidade de fala desse contingente e suas possíveis implicações na formação de uma gramática do PB. Como ressalta Mattos e Silva:
[...] não se pode compreender a história do português no Brasil sem levar em conta, em pé de igualdade lingüística, e não apenas como contraponto, ‘os aloglotas’, o percurso histórico das populações e suas línguas que aqui conviveram e convivem com a língua portuguesa. (2004, p. 34)
Além disso, esse período é caracterizador da emergência de uma gramática própria do PB, e também é o momento em que, como observado por Nunes (1991, p. 37), construções de se apassivador com concordância entram em franca decadência e, segundo Cavalcante (1999, p. 21), a supressão do clítico se também se torna evidente.
139
3 APAGAMENTO HIPÓTESES
COMO
PROCESSO
DE
GRAMATICALIZAÇÃO
-
Para analisar as funções sintático-semânticas em que o se sofre maior apagamento, recorreremos à abordagem funcionalista, mais especificamente ao processo de gramaticalização. A indicação de que esse fenômeno pode ser compreendido como um processo de mudança que configura uma trajetória de gramaticalização pauta-se em propriedades essenciais ao processo: mudança semântica e perda de traços característicos de uma categoria gramatical. Nessa linha, Vitral (2006) observa que o se indeterminador se comporta como um afixo, e não propriamente como um clítico, o que reforça a hipótese da gramaticalização desse clítico, uma vez que ele parece seguir o processo descrito por Hopper e Traugott (apud VITRAL, 2006, p. 126): item lexical> item gramatical> clítico> afixo
De acordo com a teoria da gramaticalização, o zero, ou apagamento de uma categoria, é o último estágio do processo, quando um item gramatical pode desaparecer por ter-se tornado antifuncional. O percurso de inserção do item na estrutura lingüística pode ser assim traçado, segundo Givón (apud CASTILHO, 1997): discurso> sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero
Com base nessa perspectiva teórica e em estudos sobre o fenômeno, partimos inicialmente de três hipóteses:
1) O apagamento do clítico é motivado por diminuição e/ou perda de traços ou propriedades sintáticas e semânticas. Como esta é uma das características do processo de gramaticalização, supomos que a perda/diminuição de traços, em particular de pessoa e número, e a mudança progressiva da referência dos clíticos estejam latentes na base da hierarquia do apagamento.
140
2) O enfraquecimento do sentido passivo e aumento do sentido impessoal nas construções em que o se acompanha verbo transitivo direto e a conseqüente reinterpretação das passivas como voz ativa impessoal podem representar uma das etapas do processo que leva ao apagamento do clítico se. 3) Na base desse debilitamento do sentido passivo, pode estar um processo de reanálise, que, segundo Castilho (1997, p. 53), é um dos princípios do processo de gramaticalização: “A reanálise é um processo por meio do qual os falantes mudam sua percepção de como os constituintes de sua língua estão organizados no eixo sintagmático”.
A partir de meados do século XVI, segundo Naro (1976), surgem frases, supostamente de sentido passivo, sem concordância entre o verbo e o argumento interno plural. Como a concordância era uma das características peculiares da construção com sentido passivo, abriu-se caminho para uma interpretação de uma estrutura ativa com objeto direto e sujeito não especificado. Naro (1976) acredita que o processo de reanálise tenha sido desencadeado a partir de frases como
(1) & porem se lee este evangelho na festa da trindade (NARO, 1976, p. 802)
por ser estruturalmente ambígua e por:
i)
não apresentar evidência de concordância explícita entre o verbo e o argumento interno, devido ao fato de este argumento ser singular;
ii)
haver omissão do sintagma agentivo;
iii)
o sujeito sintático ocorrer em posição pós-verbal, criando um paralelismo com uma frase ativa, como
(2) & porem o padre lee este evangelho na festa da trindade (NARO, 1976, p. 803)
Esse é também o caso da seguinte frase encontrada nos dados: (3) sefez a chamada (MSR 10.02)
141
A extensão desse fenômeno a sentenças com argumento interno plural leva a que uma frase como (4) Leo-se as cartas deregeite
(LTG 05.03)
seja reinterpretada como de se indeterminador. Esse processo de reanálise foi discutido por Martins (2003):
A associação destes três factores permite que numa frase [como a (1)] o constituinte este evangelho, o sujeito gramatical na construção de se passivo, seja reanalisado como objecto directo, assim emergindo a construção de se impessoal. A identidade semântica entre as frases passivas sintéticas e as correspondentes frases activas "impessoais" com se terá sido um factor propiciador da mudança, favorecendo a sua estabilização e difusão.
Como visto, a variação na concordância e as semelhanças de superfície desencadearam um processo de reanálise sintática da antiga construção com se apassivador. Assim, sentenças como (1), (2) e (3) constituem o input ideal para o processo de reanálise, permitindo que estruturas como (4) tenham a seguinte interpretação: uma estrutura ativa com sujeito/agente indeterminado. Essa interpretação se sustenta ainda no fato de que, nos estágios iniciais da mudança, as formas/estruturas divergentes precisam ter significado igual ou semelhante, condição para a aplicação da reanálise. A fim de verificarmos as hipóteses antes enunciadas, analisaremos os seguintes fatores:
i)
predicação verbal (análise sintática e semântica);
ii)
concordância entre verbo e seu argumento interno;
iii)
tipo de clítico;
iv)
grau de referência dos argumentos representados pelo clítico apagado.
Supomos que a maior supressão e/ ou ocorrência de estratégias de esquiva se dêem nos contextos em que o clítico desempenha função indeterminadora, ou represente argumento cuja referência seja indeterminada genérica ou arbitrária.
142
Desta forma, levantamos ainda a hipótese de que haja uma hierarquia para o apagamento, que, em ordem decrescente, seria:
3) a) função indeterminadora; b) função passiva; c) função reflexiva; d) função recíproca. 4 FATORES CONSIDERADOS PARA A ANÁLISE 4.1 A PREDICAÇÃO VERBAL A classificação do tipo de clítico revela-se complexa por envolver três níveis de análise: o sintático (considerando a estrutura argumental do verbo “hospedeiro” e os traços categoriais do clítico); o semântico (considerando o papel temático ou função semântica dos argumentos e o tipo de verbo) e o discursivo (considerando a referência dos argumentos representados pelo clítico), uma vez que clíticos, sendo pronomes, têm suas propriedades atribuídas pela predicação em que se encontram3. O modelo de gramática funcional de Dik (1985, apud NEVES, 1997, p. 82) por nós, em parte, adotado, considera que todas as expressões lingüísticas são analisadas a partir da predicação e, dentro desta, o verbo tem papel central. A escolha do paradigma funcional para orientar a análise deve-se ao fato de ser uma proposta integrativa, pois considera os diferentes níveis gramaticais e, como visto, as expressões que constituem a predicação, em particular os clíticos, têm suas funções definidas a partir de, pelo menos, dois níveis. Assim, o predicado das construções com o clítico de forma reflexiva será classificado de acordo com critérios semânticos, sintáticos e discursivos. O critério semântico será pautado na subclassificação de predicado apresentada por Neves (2000). Essa subclassificação semântica dos predicados pode ser detalhada da seguinte maneira:
Os clíticos correspondem a argumentos verbais, ou seja, são termos da relação predicativa, e o verbo é o termo que governa a organização informacional.
3
143
i) predicados dinâmicos, que se sub-classificam em: • ações ou atividades: exprimem uma realização específica de um “fazer”; exprimem uma ação realizada por um argumento com macro-função Causa:
(5)
A mulher cortou o peixe.
(6)
O menino leu o livro.
A análise do plano semântico será muito importante para o estabelecimento de alguns traços, em particular, dos papéis temáticos (os quais estão relacionados ao grau de participação ativa de uma entidade num dado estado de coisas) que podem ocorrer em uma predicação da qual o clítico participe. Os papéis temáticos são, segundo Cançado (2003, p. 22), ordenados, no português, a partir das propriedades que expressam Agentividade e Afetação. A proposta dessa autora considera essas propriedades que compõem os papéis temáticos e os agrupa em macro-funções:
Macro-função Causa: {Agente; Causa; Instrumento; Fonte ou Origem} Macro-função Objeto Afetado: {Paciente; Experienciador; Objeto movido; Tema; Meta}
Adotaremos essa proposta, uma vez que não se pode prever o papel temático assumido pelos argumentos nas diversas predicações (cf. Quadro 1 de traços e propriedades) e por estas serem tratadas com base em noção escalar. • processos: exprimem que uma entidade é origem de um dado “fazer” ou
muda de estado ou condição; essa entidade recebe a
macro-função Objeto Afetado:
(7)
As pílulas abrem-se no estômago.
144
ii) predicados não-dinâmicos: • estados ou posições: indicam que o sujeito é o suporte do estado ou se localiza em relação a um elemento expresso por um complemento preposicionado:
(8)
Mário encontra-se doente.
(9)
O cofre encontra-se no banco.
A classificação sintática será feita com base no número de argumentos (objeto direto objeto indireto, complemento relativo, complemento circunstancial e sujeito) exigidos pela grade temática do verbo e pela relação semântico-lexical que aqueles mantêm com o predicador. Encontramos, principalmente em Mateus et alii (2003), as classificações que julgamos mais apropriadas para a análise que pretendemos, as quais especificamos da seguinte forma:
i)
verbos intransitivos: não faremos distinção entre inergativos e inacusativos, classificando-os como verbos que selecionam apenas um argumento:
(10)
Pedro morreu.
ii) verbos cópulas: verbos que selecionam como argumento interno uma oração mínima:
(11)
[Pedro]Suj está [morto]SAdj.
iii) verbos pronominais: são tradicionalmente divididos em: essenciais, os que não têm variante ativa, ou seja, sem clítico e com argumento interno e externo; e acidentais, aqueles que indicam reflexividade atenuada:
(12)
Eu me queixei de dor.
145
iv) verbos transitivos diretos: verbos que selecionam dois argumentos, um externo e outro interno, respectivamente, um sujeito agente ou causativo e um objeto afetado:
(13)
Pedro matou a formiga.
v) verbos de alternância causativa: segundo Cançado e Ciríaco (2007, p. 1), “a alternância causativo-ergativa consiste, sintaticamente, em uma mudança de transitividade, em que o complemento da sentença básica é alçado para a posição de sujeito e o sujeito dessa sentença é apagado.” Diferem do transitivo direto por apresentarem também uma variante (inacusativa ou ergativa) sem argumento externo, e o argumento que ocorre estabelece relação de sujeito gramatical4. Nas duas variantes, as relações sintáticas se modificam, embora os papéis temáticos permaneçam:
(14) Pedro quebrou o vidro. (variante transitiva ou causativa: X agente/causa VYtema) (15) O vidro quebrou (se). (variante inacusativa ou ergativa: Ytema V (-se) )
vi) verbos simétricos: verbos de alternância com simetria entre o argumento externo e interno, que são comutáveis, com as seguintes representações:
a)
X
V com Y
Pedro casou com Maria;
b)
Y V com X
Maria casou com Pedro;
c)
X e Y V (-se)
Pedro e Maria casaram(-se).
vii) verbos transitivos diretos e indiretos: selecionam três argumentos: um externo (sujeito) e dois internos – um objeto direto e um complemento
É interessante observar que alguns verbos dessa classificação apresentam a opcionalidade do clítico na variante inacusativa.
4
146
preposicionado
(objeto
indireto,
complemento
relativo
ou
complemento circunstancial):
(16)
Ele deu o dinheiro aos pobres.
viii) verbos transitivos indiretos: selecionam dois argumentos, um externo (sujeito)
e
um
complemento
preposicionado
(objeto
indireto,
complemento relativo ou complemento circunstancial):
(17)
Precisa-se de empregados.
ix) verbos causativos: conforme Neves (2000, p. 31), esses verbos podem ter sujeito co-referencial ou não co-referencial e são divididos, segundo a configuração sintática da completiva, entre os que têm: a) completiva iniciada pela conjunção integrante que; b) completiva com verbo no infinitivo com sujeito presente ou indeterminado:
18) O padeiro mandou que você arranjasse a farinha. 19) O padeiro mandou você arranjar a farinha. / O padeiro mandou arranjar farinha.
4.2
CONCORDÂNCIA ENTRE VERBO E ARGUMENTO INTERNO Como visto anteriormente, a análise da variação na concordância do
argumento interno com o verbo é relevante para a averiguação da reinterpretação de estruturas passivas em estruturas ativas, a partir de processo de reanálise. Sabemos, no entanto, que também a posição do argumento tem sido considerada para tal análise. Acreditamos, ainda, que outras propriedades também devam ser consideradas, o que esperamos possa ser feito em trabalho posterior.
147
4.3
GRAUS DE REFERÊNCIA O grau de referência do argumento representado pelo clítico será analisado,
tanto em relação aos traços categoriais de pessoa e número (em relação ao sujeito), quanto aos traços semântico-discursivos, que incluem: i) a especificação de pessoa do discurso, possibilidade de incluir ou excluir o falante; ii) atribuição de papel temático; iii) a referência à macro-função Causa, particularmente aos papéis de agente e causa, tendo em vista que esses são mais comumente atribuídos ao termo que ocupa a posição do sujeito, na voz ativa, e ao argumento ao qual o clítico se refere quando há destransitividade (voz média):
(20) O menino[agente] quebrou a vidraça. (voz ativa) (21) A vidraça [ tema] quebrou (-se). (voz média) (22) A porta abriu(-se) (com o vento)[causa].
A análise da referência dos argumentos representados pelos clíticos e dos elementos envolvidos nas estratégias de esquiva considerará os seguintes graus de referência:
i)
determinada1 : quando o elemento que recebe papel temático de agente for o sujeito gramatical. Assim o clítico é co-referencial ao sujeito/agente e está co-indexado com este:
(23) Os amigos se abraçaram.
ii)
determinada2 : nas construções em que o sujeito sintático não recebe a macro-função Causa e a macro-função de Objeto Afetado é preenchida pelo sujeito, o clítico faz referência a um agente ou causa e estabelece relação morfossintática com o sujeito, mantendo os traços de pessoa e número. Desta forma, diferem dos anteriores por não apresentarem referência dupla ao sujeito, mantendo apenas os traços categoriais, [+pessoa] [+número]: 148
(24) Ele [experienciador] se assustou com os fogos. (25) Nós [paciente] nos machucamos nos espinhos.
A classificação iii) foi feita a partir de alguns conceitos de Lopes (2003), no que se refere à gradualidade de referência: [genérica],[arbitrária]:
iii)
indeterminada: a indeterminação estende sua referência a qualquer pessoa (1ª; 2ª e 3ª pessoa), tendo a generalização como característica essencial, estabelecida por diferentes recursos. Para Milanez (1982) e Lopes (2003), a indeterminação comporta graus, podendo ser maior ou menor, a depender do contexto, e podendo ter os seguintes traços: a) [+genérico]:
(26) deu-se todos poderes
(LTG 01.03)
Nesse exemplo, o clítico, que se refere a agente indeterminado, pode ser substituído por alguém. Os traços semânticos da referência serão aqui distinguidos entre genérico e arbitrário. O genérico tem valor igual ao que a literatura denomina de ‘indefinido’, ou seja, interpretação similar a um quantificador existencial, alguém, e geralmente está relacionado a tempo específico.
b) [+arbitrário]:
(27) Mandou | ameza Administradora passar aprezente
(MSC 10.09)
O traço semântico arbitrário tem valor equivalente ao que a literatura denomina de quantificador universal, podendo incluir qualquer pessoa, inclusive o falante. A análise dessa propriedade está intrinsecamente relacionada à hipótese 1, para a qual a perda ou diminuição de traços ou de propriedades sintáticas e semânticas do clítico motiva seu apagamento e/ou utilização de estratégias de 149
esquiva, e à hipótese 2, para a qual o apagamento se daria com maior freqüência em contextos de referência indeterminada. A investigação dessa propriedade é relevante também, porque estudos sobre as mudanças que envolvem o parâmetro do sujeito nulo, no PB, têm apontado uma tendência ao preenchimento do sujeito pronominal, tanto de referência determinada, quanto indeterminada, partindo de um progressivo aumento do preenchimento dos sujeitos de referência menos acessível para os de referência mais acessível (DUARTE, 2003). Assim, o falante, quando não utiliza construção com o clítico apagado, utilizase de formas pronominais para realizar o sujeito como uma estratégia de esquiva:
(28) Não ø usa mais galocha nesta cidade. (29) A gente não usa mais galocha nesta cidade.
Além disso, Tarallo (1993) identificou a relação direta e inversamente proporcional entre o apagamento dos clíticos (reflexivos ou não) e a tendência à retenção pronominal dos sujeitos, ao observar que, na segunda metade do século XIX, já se evidenciava uma tendência ao maior preenchimento da posição de sujeito e ao menor preenchimento pronominal da posição de objeto pelos clíticos acusativos. Essa relação entre o apagamento dos clíticos e o preenchimento da posição de sujeito foi assim apresentada pelo autor:
No português brasileiro, entretanto, uma vez que o uso do sujeito pronominal alcançou alta freqüência de uso, o sistema já abriu espaço para uma interpretação indeterminada da categoria vazia. No Brasil, portanto, uma sentença como Não usa mais saia forçosamente recebe uma interpretação indeterminada, no sentido do se. (TARALLO, 1993, p. 85)
4.4 TIPO DE CLÍTICO A classificação dos clíticos, aqui proposta, não foi feita a partir dos dados encontrados, mas, considerando nossa orientação teórica funcionalista, tentamos estabelecer alguns traços sintático-semânticos mais prototípicos, uma vez que os diferentes tipos de predicação nas quais o clítico ocorre constituem fenômenos lingüísticos escalares, tendo por referência um modelo, um protótipo. O quadro a 150
seguir procura sintetizar as principais características de cada grupo de tipo de clítico, que possam nos auxiliar na análise das ocorrências do corpus.
151
Objeto Afetado
[±animado] [+humano] [α Agentivo] [α controlado]
Baixa
Causa
[+animado] [+humano] [+Agentivo] [+controlado]
Alta
5. Animacidade do sujeito
6. Agentividade do sujeito 7. Controle do sujeito sobre a ação, estado ou processo 8. Grau de transitividade 9. Referência à macrofunção Causa e/ou ao sujeito. [-Eu]
indeterminada
ou
indeterminada
determinada2
ou
Baixa
[-controlado]
[-Agentivo]
[-animado] [-humano]
Objeto Afetado
[-temático]
[+ número]
[+ pessoa]
se médio
determinada2
Baixa
[α controlado]
[α Agentivo]
[+animado] [+humano]
Objeto Afetado
[-temático]
[+número]
[+pessoa]
pseudo-reflexivo
[-Eu]
indeterminada
Baixa
[-controlado]
[-Agentivo]
[+ animado] [+ humano]
Objeto Afetado
[+temático]
[+número]
[+ pessoa]
se apassivador
[-Eu]
Indeterminada [α genérica]
Alta
[+controlado]
[+Agentivo]
[+animado] [+humano]
Causa
[-temático]
[α número]
[ α pessoa]
se pseudoapassivador
[- Eu]
indeterminada [+genérica]
Alta
[+controlado]
[+Agentivo]
[+animado] [+humano]
Causa
[-temático]
[- número]
[- pessoa]
se indeterminador (tipo 2)
[+Eu]
indeterminada [+arbitrária]
Baixa
[α controlado]
[α Agentivo]
[+animado] [+humano]
Causa
[-temático]
[Ф número]
[Ф pessoa]
se indeterminador (tipo 1)
1
152
A formalização dos traços seguiu os valores e tipos de subespecificação de traços estabelecidos por Rooryck (1994, apud LOPES, 2001, p. 133) para o qual: - [+X]: valor positivo (para atribuição de traço); - [-X]: valor negativo (traço ausente); - (α traço): “subespecificação α” para traços variáveis, isto é, os traços podem ter um valor “+” ou “-“, sintaticamente subespecificado. - (Ф traço): subespecificação para traços não-variáveis, isto é, não há variação de traço, é neutro, referindo-se aos valores “+” e “-”. 2 Como as formas pronominais de 3ª pessoa, o se pode acionar uma interpretação semântico discursiva que inclua ou não a 1ª pessoa do discurso na referência + qualquer um, ampliando e generalizando-a, tomando “como referente quaisquer seres presentes no contexto lingüístico ou pragmático da enunciação ou mesmo algum ser inferido no discurso.” (FIORIN, 2004, p. 164).
10. Especificação de pessoa2 do discurso
[-temático]
[+temático]
3. Atribuição de papel temático ao clítico 4. Macro-função do sujeito
determinada2
[+número]
[+número]
2. Categoria de número
determinada1
[+pessoa]
Inerente
[+pessoa1]
recíproco e reflexivo
Traços e propriedades 1. Categoria de pessoa
Tipo de clítico
Quadro 1 Proposta de descrição sintático-semântica dos tipos de clíticos em uma predicação
Pode-se observar, a partir desse quadro, a perda gradativa de propriedades intrínsecas aos pronomes clíticos, tais como os traços categoriais de número e pessoa e a potencialidade referencial, chegando ao grau máximo de indeterminação e podendo acionar uma interpretação semântico-discursiva que inclua ou não a 1ª pessoa do discurso na referência: [+Eu], [-Eu] (cf. Quadro 1). Notamos, pois, que subjaz ao processo de apagamento do clítico um dos estágios da gramaticalização, perda gradativa de traços sintático-semânticos. Ou seja, a perda de substância fônica está aliada à perda de conteúdo semântico, considerando também diminuição do grau de referência do argumento representado pelo clítico. Esperamos, então, que o apagamento e/ou estratégias de esquiva ocorram com maior freqüência com clíticos cujos traços categorias sejam [-pessoa], [-número], [Ф pessoa], [Ф número] e referência indeterminada [+genérica], [+arbitrária], [+Eu]. Passaremos agora a uma breve descrição de cada tipo de clítico:
i. recíproco: entendemos como construção recíproca aquela em que cada um dos termos – o sujeito e o complemento (pronome clítico) – representa em si mesmo os dois termos da relação transitiva (cf. NEVES, 2000, p. 452), o que Schmidt-Riese designa por participação dupla ou referência dupla. Sintaticamente, ele refere o sujeito através dos traços categoriais de pessoa e número, por isso [+pessoa], [+número]. Sintática e semanticamente, absorve o papel temático do objeto [+temático]. Como o elemento que recebe o papel temático de agente é determinado e é também o sujeito ao qual o clítico está co-indexado, a referência é estabelecida como determinada1. Essa dupla relação estabelecida diretamente com o sujeito representa uma simetria que, a partir dos inerentes, é quebrada, diminuindo a participação ou referência dupla do clítico em relação ao mesmo argumento. ii. reflexivo: o reflexivo é aquele que, como o recíproco, também incide na estrutura dos argumentos, ou seja, é [+temático] e refere o argumento interno (cf. SCHMIDT-RIESE, 2002, p. 255). Distingue-se do recíproco, substituindo-se
153
o pronome clítico por termos esclarecedores, como: a nós mesmos, a ti mesmo, a si próprio. iii. inerente: os clíticos desse tipo ocorrem com predicadores estativos ou de processo, sendo o sujeito suporte do estado ou a sede do processo, portanto seu papel temático é, geralmente, de Experienciador, caso tenha o traço [+animado], ou Tema, se [-animado], macro-função Objeto Afetado. Ocorrem também com verbos copulativos (cf. 34), cujo sujeito pode ser Tema e teria traços [-humano] e [-animado] e manutenção dos traços [+pessoa] e [+número] por parte do clítico:
(30) [O cofre] Tema
encontra-se
[no banco] Locativo
Diferem dos anteriores por não apresentarem referência dupla ao sujeito, mantendo apenas os traços categoriais, [+pessoa] [+número]. Alguns autores os definem como sem “qualquer função semântica”, pois não referem um dos papéis temáticos mencionados e a macro-função de Objeto Afetado é preenchida pelo sujeito, sendo assim [-temático].
iv. pseudo-reflexivo51: essa classificação abrange uma série de tipos de verbos que designam processo, movimento ou ação, mas, sem idéia de direção reflexa, não indicam que seja o sujeito o verdadeiro agente da ação ou movimento, indicando apenas que o sujeito é afetado pela ação que não sai do seu âmbito, como nos ergativos / inacusativos. A seguir, apresentamos características de alguns tipos. Em alguns casos, o sujeito não tem controle [-controle] e intencionalidade sobre o estado de coisas (cf. 31), diferentemente dos verdadeiros reflexivos (cf. 32):
(31) João feriu (-se) nos espinhos. (32) João se feriu com uma faca para incriminar José. 1 5Alguns
autores (cf. SCHMIDT-RIESE, 2002, p. 255) consideram pseudo-reflexivos todos os clíticos que não são verdadeiros reflexivos e recíprocos.
154
Os predicadores que designam evento com causa externa apresentam, na estrutura ativa, sujeito com macro-função Causa (cf. 32) e, na variante inacusativa (cf. 31), causa externa em adjunção, como locativo62:
(33) Os espinhos feriram João.
Segundo Pontes (1986), esse tipo de clítico (pseudo-reflexivo) ocorre na voz média e, em construções desse tipo, como o sujeito não é agente, o se não estaria mais sendo usado pelos falantes, pois o verbo já indicaria por si mesmo que o sujeito é paciente. Algumas predicações com esse clítico apresentam semelhança com os verbos inacusativos devido ao fato de que ocorre, em geral, apenas um argumento, conquanto o verbo seja transitivo, e o clítico funciona para destransitivizar, reduzir a valência do verbo, aproximando-o de um afixo verbal, como ocorre com os inerentes:
(34) João levanta (-se) da cama às seis horas.
v. se médio73: ocorre, preferencialmente, com verbos binários de alternância causativa (cf. MATEUS, 2003, p. 306), que exigem um argumento com a macrofunção de Objeto Afetado e podem ter argumento com macro-função Causa, indeterminado ou em adjunção (cf. 37), possibilitando que o argumento interno seja alçado à posição sujeito, numa construção inacusativa ou ergativa (cf. 35), em oposição a sua construção causativa (cf. 36), o que diminui o seu grau de transitividade. Difere do clítico pseudo-reflexivo principalmente por ocorrer com argumento [-humano] [-animado] e, portanto, [-agentivo] e [controlado]:
2 6Lê-se em Duarte (2003) que “estruturas existenciais e inacusativas admitem, além do argumento interno ao qual atribuem uma função temática de ‘tema’, um argumento extra (ligado à estrutura do predicado), que manifesta uma função locativa, como se fosse um secundário, esse elemento teria um comportamento muito próximo ao de um argumento externo”. 3 7A denominação de se médio para o clítico em questão pode ser encontrada em Schmidt-Riese (2002).
155
(35) [O vidro da janela] Tema partiu (-se). (36) [O vento] Causa partiu [o vidro da janela] Tema (37) O vidro da janela partiu (-se) [com o vento] Causa
Pode-se observar que os clíticos inerente, pseudo-reflexivo e médio têm em comum o fato de que, segundo Camacho (2003, p. 99), “o pronome reflexivo, que perdeu completamente seu estatuto argumental, pode ser considerado uma espécie de afixo pronominal que concorda em pessoa e número com o sujeito da sentença.” Para esse autor, o clítico que apresenta essas características faz parte da voz média, posição aqui também adotada.
vi. se apassivador: embora estejamos adotando a proposta de Martins (2003, p. 2) e de Raposo & Uriagereka (1996 apud MARTINS, 2003, p. 2) de que a construção dita de se passivo não tem, na verdade, natureza passiva no português moderno, analisando-a como uma estrutura ativa com concordância entre o verbo e o seu argumento interno (se indefinido), por se tratar de corpus relativo ao século XIX, de registro escrito, admitiremos a possibilidade da existência do se apassivador, o que somente a efetiva análise do corpus irá confirmar
ou
refutar.
Alguns
trabalhos
comprovam
a
variação
na
concordância naquele período, principalmente para corpus de registro escrito e formal, redigido por pessoas de escolaridade alta. Como essa não é uma característica dos documentos analisados, esperamos que o número de ocorrência de se apassivador seja baixo. No tratamento do nosso corpus, o se só será efetivamente classificado como apassivador e computado como tal, a depender da freqüência de ocorrências de construções em que haja concordância explícita entre verbo e argumento interno, o que só pode ser devidamente verificado para os argumentos internos no plural.
vii. se pseudo-apassivador: de acordo com o estudo de Martins (2003, p. 2) e de Raposo & Uriagereka (1996 apud MARTINS, 2003, p. 2), que consideram que a construção dita de se passivo não tem natureza passiva no português moderno, 156
analisando-a como uma estrutura ativa com concordância entre o verbo e o seu argumento interno e com alguns que trabalhos que comprovam a variação na concordância, no século XIX, principalmente para corpus de registro formal, redigido por pessoas de escolaridade alta, supomos que as construções com concordância entre verbo e argumento interno plural configurem concordância aparente. Contudo, essa suposição só será admitida a depender da freqüência de ocorrências de construções em que haja concordância explícita entre verbo e argumento interno plural. A reinterpretação mais recorrente das construções com se apassivador como se indeterminador (construções sem concordância), a partir do século XIX, e a afirmação dos autores de que não acreditam ter havido no PB, em particular no PB moderno, se apassivador, permitem inferir que, nesse período, a reanálise do clítico apassivador deveria estar praticamente estabelecida e o processo de gramaticalização, bem avançado. Ciente disto, a proposta que se estabelece para um pseudo-apassivador torna-se plausível. viii. se indeterminador (tipo 2): para esse tipo de clítico, consideraremos que o argumento realizado não é o sujeito. O clítico, não estabelecendo relação sintática com sujeito, tem, portanto, traços categoriais [-pessoa], [-número]:
(38) Vende-se casas. (39) Precisa-se de empregados.
A fim de manter certa coerência com os prováveis traços sintático-semânticos do processo de gramaticalização que propomos, classificamos esse clítico como indeterminador (tipo 2) pelo seguinte motivo: se a reanálise se deu com verbos transitivos, os quais têm um argumento interno que pode, eventualmente, estabelecer a relação de concordância84, o continuum de traços categoriais deveria ter sido ao longo do processo de gramaticalização do clítico: [+pessoa] [+número] (construções verdadeiramente com se apassivador) Segundo Martins (2003, p. 9), o se indefinido, aqui classificado como pseudo-apassivador, “tem traços de [pessoa – número] subespecificados de valor variável (...), cujo valor pode ser preenchido desde que se estabeleça uma relação de concordância com um DP objecto.”
48
157
> [α pessoa] [α número] (construções de se indefinido ou pseudo-apassivador) > [pessoa] [-número] (construções sem concordância, indeterminador tipo 2). Nesta perspectiva, o se indeterminador tipo 2 concorreria com o pseudo-apassivador nos contextos em que a concordância fosse prevista, não nos esquecendo de que esta hipótese é para o português moderno. ix. se indeterminador (tipo 1): considerando que, durante o processo de gramaticalização, a perda dos traços categoriais chegaria ao ponto de esse tipo de clítico ter traços de valor não variável [Ф pessoa] [Ф número]95, além de não ter
natureza
argumental,
sendo,
portanto,
[-temático]
[-argumental],
consideramos que esse tipo de clítico estaria relacionado, (co-ocorreria) pois, apenas, com verbos intransitivos ou transitivos usados intransitivamente. Ou seja, se os valores para os traços categoriais são não variáveis [Ф], isto significa dizer que não há qualquer possibilidade de o clítico estabelecer “concordância sujeito-verbo” (traço [+]) ou não-concordância (traço [-]), pelo fato de não haver argumento que a faculte.
Portanto a primeira distinção entre o
indeterminador tipo 2 e o indeterminador tipo 1 deve-se ao fato de o primeiro só ocorrer com os verbos transitivos devido à possibilidade de o argumento interno desencadear ou não concordância, como visto anteriormente, o que é impossível com os intransitivos.
Verifica-se, no Quadro 1, que há distinção, no que concerne à referência, ou a propriedades interpretativas, como mencionado por Vitral (2006, p. 128), entre o se indeterminador (tipo 1 e 2) em diferentes contextos, e a possibilidade de o clítico estabelecer “relação de concordância sujeito-verbo” com o argumento interno, nos VT106, o que não pode ocorrer com o VI.
Martins (2003, p. 9) admite que: “... por não haver no caso do se impessoal preenchimento dos valores subespecificados dos traços de [pessoa – número] de se.(...) ou seja, podemos admitir que os traços de [pessoa - número] de se impessoal sejam traços subespecificados de valor não variável (traço θ-cfr. Rooryck (1994), Martins (2000)”. 6 10 Como mencionado por Martins (2003, p. 2, 9) para o se indefinido (que denominamos pseudoapassivador). 5 9
158
Observe-se que, no PE e no espanhol, e também no PB, têm sido constatadas as seguintes construções não normativas, tanto na oralidade, quanto em textos escritos por falantes cultos: (40) A Espanha pretende que, ainda antes das adesões previstas pra 1996, se avancem com as reformas institucionais. (PERES & MÓIA, 1995, p. 236)
Martins (2003, p. 11) analisa esse tipo de construção da seguinte forma:
A existência de tais frases resulta, de acordo com a perspectiva adoptada neste trabalho, da generalização aos complementos verbais oblíquos do mecanismo de activação da concordância sujeito-verbo manifestado nas estruturas de se indefinido das variedades standard portuguesa e espanhola. Nestas variedades, a relação de "parceria" entre se e o DP objecto, de que decorre o preenchimento dos traços subespecificados de [pessoa número] de se encontra-se limitada ao objecto directo. Nas variedades inovadoras, estende-se aos complementos oblíquos de verbos transitivos preposicionados.
Esse exemplo serve para reforçar a idéia de que o argumento interno é um elemento utilizado como “mecanismo de ativação da concordância”, sem que esteja associado à posição de sujeito, uma vez que, entre outros fatores, sua conversão para uma estrutura ativa não seria possível. Tais considerações reforçam a hipótese de que a presença de um argumento interno, não importando se direto ou oblíquo, possibilita o desencadeamento ou não de concordância. Mas essa distinção sintática não se limita aos traços categoriais e pode ter conseqüências ao nível semântico. Vejamos o que diz Vitral (2006, p. 128):
A razão da distinção (...) em relação ao se apassivador e o se indeterminador do sujeito se liga a propriedades interpretativas das construções em que aparecem (cf. CINQUE, op. cit.: 546). A principal delas é o fato de que, no caso do se apassivador, a interpretação do sujeito é ‘agentiva’, mas ‘indefinida’, o que explica a preferência dessa construção com passado ou com referência de tempo específica; enquanto que, em relação ao se indeterminador, a interpretação do sujeito é ‘genérica’ ou ‘prototípica’, o que favorece seu uso em construções com tempo presente ou não específico.
Inferimos, pois, que os intransitivos favorecem o uso de determinados tempos e aspectos verbais, além de propiciarem uma interpretação mais ampla do agente. Assim, a interpretação da referência do agente que se estabelece com esse tipo de 159
clítico seria indeterminada [+arbitrária], podendo incluir o falante [+Eu], o que configura um alto grau de indeterminação, diferente da do indeterminador tipo 2. Lembramos mais uma vez que, para o presente trabalho, não será possível fazer distinção entre intransitivos inergativos ou inacusativos, razão pela qual conferimos valor α aos traços [agentivo] e [controlado]. Além disso, a referência que se estabelece com esse tipo de clítico, sendo [argumental] e, portanto, não estando relacionado ao argumento externo, mas à flexão, teria sua natureza mais próxima de um afixo, precipitando o apagamento ou limite máximo de gramaticalização:
item lexical> item gramatical> clítico> afixo 6. ANÁLISE DOS DADOS A fim de mapear as funções mais propensas ao apagamento, foi feita uma coleta, seleção e quantificação de dados, sendo consideradas:
a) presença dos clíticos de forma reflexiva b) ausência (apagamento) 6.1 VARIAÇÃO NA REALIZAÇÃO DO CLÍTICO Os dados foram recolhidos em 835 linhas do corpus. Inicialmente, verificou-se a variação na realização do clítico. Foram encontradas 101 ocorrências em predicações que incluem verbos plenos, locuções verbais e predicados complexos (formados pelo causativo mandar), em que se pode prever o uso do clítico, sendo a distribuição da variação encontrada a seguinte:
Presença Ausência % % Total 63 38 101 62,4 37,6 Tabela 1: Variação presença / ausência do clítico
160
O alto índice de ausência (apagamento) do clítico deve-se, sobretudo, ao grande número de ocorrências do verbo assinar-se, muito comum no gênero textual em questão. Foram 33 ocorrências de assinar-se, sendo 26 estruturas com apagamento do clítico e 7 com presença. Confiram-se alguns exemplos dessas estruturas:
(41) por estar Comforme ø asinei
(MVS 02.08)
(42) el por esta bem me Asinei
(MVS 05.09)
Devemos observar ainda que o verbo assinar-se é considerado pela bibliografia consultada (cf. CAMACHO, 2003) como verbo cuja medialidade está associada à intransitividade, sendo a presença do clítico uma forma marcada, o que favorece, entre outros fatores, a “sua realização nula”. Já Nunes (1995, p. 209) o considera como caso de pré-fusão: “situação em que o clítico anafórico e o elemento que o liga estão numa relação de parte/todo, e o clítico deve ser parafraseado por sintagmas contendo um pronome possessivo, e não por reflexivos propriamente ditos”: eu (me) assino por eu assino meu nome. Em uma das atas, pode-se perceber a relação mencionada por Nunes (1995), quando o redator deixa claro que assina o documento:
(43) o despaxo| que a Commicaõ emViov emNome da De-| uocaõ ev que fis easiner (MC 02.20)
Ao refazermos os cálculos, excluindo assinar-se, encontramos os seguintes valores:
Presença Ausência % % Total 56 12 82,3 17,7 68 Tabela 2: Variação presença / ausência do clítico, excluindo verbo assinar-se.
Confiram-se alguns exemplos da variação:
(43) fes-se aReuniaõ do Costume
(JFO 11.02)
(44) fes ø a chamada
(MVS 07.02)
161
Se compararmos esse resultado com os resultados da pesquisa feita por Cavalcante (2001), em que houve 15,6% de apagamento para o NURC/RJ (década de 90) e 17,6% para o corpus APERJ (com informantes pouco escolarizados do interior do RJ), o percentual de 17,7% é considerável, principalmente porque se trata de corpus escrito, de registro formal e do século XIX.
6.2 O FATOR PREDICAÇÃO VERBAL 6.2.1 ABORDAGEM SEMÂNTICA Das 68 ocorrências em que se previa o uso do clítico, 11 dos 12 casos de apagamento foram com verbos de ação (fazer, mandar), os quais, nos contextos em que ocorreram, apresentaram as seguintes características: exigem que um dos argumentos deva ter o traço [+agentivo], pois o verbo apresenta a propriedade de ser [+dinâmico]; sujeito com macro-função Causa (papel temático de gente); objeto afetado [-animado], para o verbo fazer.
(45) fes ø o inventario naforma (JFO 12.02) (46) epor estar Comforme mandou ø passar este|termo (JFO 10.08)
O verbo mandar, causativo que expressa manipulação e controle entre o sujeito da oração principal e o da oração completiva, foi um dos que mais favoreceram o apagamento (04 ocorrências das 11 dos verbos de ação/atividade), muito provavelmente devido a essa relação semântica expressa por esse predicador. No cômputo geral, foram encontrados os seguintes valores:
Tipo semântico Presença Ausência % % Total de predicado 11 16,2 Ação/Atividade 38 55,9 49 Estado 02 2,9 01 1,4 03 Posição 03 4,4 0 03 Processo 13 19,1 0 13 Total 56 82,3 12 17,6 68 Tabela 3: Variação presença / ausência do clítico em relação ao tipo semântico de predicado
162
Abraçado (2003) constatou a influência dessas propriedades, em particular, da agentividade, na relação que crianças em estágios iniciais de aquisição do português como L1 estabelecem entre sujeitos geralmente não-humanos e inanimados de verbos mono-argumentais, pospostos ao verbo, com objetos de construções altamente transitivas. A autora observou que a agentividade é relevante para que as crianças relacionem os sujeitos de construções com baixo grau de transitividade ao objeto de construções altamente transitivas. Ou seja, a reanálise do SN posposto ao verbo como objeto não se deve apenas à ordenação dos constituintes, mas também ao conjunto de propriedades sintático-semânticas compartilhadas entre objeto de verbos de alta transitividade e sujeito paciente de construções de se passivo. Pelo que se depreende dos dados e do estudo de Abraçado (2003), esse processo de reanálise encontra-se tanto em aquisição de português como L1, quanto como L2. Quanto ao apagamento do clítico, supomos que se deva: ao enfraquecimento do sentido passivo e aumento do sentido impessoal, com conseqüente reanálise das passivas como voz ativa impessoal (hipótese 3); ao seu grau de referência (indeterminada), que será analisado mais adiante, como proposto na hipótese 1. A outra ocorrência foi com verbo de estado:
(47) epor ø Achamos todos| Corformes (MVS 03.09)
Os verbos de estado em que o sujeito não sendo agente (macro-função de Objeto Afetado) que, porém, apresentam propriedades [+controle] e [+agentivo], podem facultar o apagamento, como em Eu levanto (-me) às seis horas. É possível, também, que a morfologia verbal de 1ª pessoa do plural (–mos) favoreça a ausência do clítico. 6.2.2 ABORDAGEM SINTÁTICA No que se refere à classificação sintática do verbo, das 12 ocorrências de apagamento, 07 foram com o verbo transitivo direto fazer e 04 com o causativo 163
mandar. Ou seja, dos 17,7% de apagamento, 10,3% foram com o verbo fazer, verbo de transitividade alta, que exige argumento externo agente e argumento interno [animado]:
(48) Ao <Sico> quatro doDia de Mez de Majo <1835> fes ø a Chamada117 (MVS 05.01) (49) epor esta| Com forme mandou ø lavra este (JFO 13.16)
Como
podemos
ver,
as
ocorrências
de
apagamento
se
deram
preferencialmente com o verbo transitivo fazer. Além disso, tais ocorrências suscitaram duas considerações: i) o apagamento se deu em partes formulares das atas128, ocorrência menos previsível, uma vez que tais fórmulas são aprendidas; ii) essas estruturas são superficialmente ambíguas, como já discutido a partir dos exemplos (1) e (2), o que favorece o processo de reanálise e conseqüente reinterpretação dos constituintes da sentença, sendo que o sintagma nominal, quando posposto ao verbo transitivo direto, é reinterpretado como objeto direto, dado o padrão SVO (para estruturas ativas) e o traço [-humano] para o SN. É interessante notar que não houve ocorrência de mandar com a presença do clítico. Todas as 12 ocorrências de mandar que foram encontradas, além das 04 já mencionadas, tinham sujeito lexicalmente realizado:
(50) mandou a Junta que se Lavrase este Termo (MSC 08.10)
Assim, para os causativos, o apagamento correspondeu a 5,9% do total de apagamento, mas a 100% se considerarmos as ocorrências em que se previa o uso do clítico. Confiram-se os valores das ocorrências:
7 11 Cabe observar que as quatro primeiras linhas foram corrigidas, porém a frase com o apagamento permaneceu inalterada. 8 12 Verificamos que essas estruturas se repetem, como modelos, na maioria das atas.
164
Tipo sintático de predicado
Presença
%
Ausência
%
Total
Cópula 06 8,8 01 1,5 07 Pronominal 04 5,9 0 0 04 Simétrico 0 0 0 0 0 Alternância causativa 07 10,3 0 0 07 07 10,3 Transitivo direto 36 52,9 44 04 04 Causativo 0 0 5,9 Transitivo direto indireto 01 1,5 0 0 0 Transitivo indireto 02 2,9 0 0 02 Intransitivo 0 0 0 0 0 Total 56 82,3 12 17,7 68 Tabela 4: Variação presença / ausência do clítico em relação ao tipo sintático de predicado
Para esse tipo de verbo, foram encontradas 06 estratégias de esquiva. Consideramos as seguintes ocorrências como estratégias de esquiva do uso do clítico:
(51) Mandou | ameza Administradora passar aprezente (MSC 10.09) (52) epor esta Com forme mandou o Provedor lavra este termo (JFO 05.06) (53) epor estar Com forme mandou lavra este (JFO 07.07) (55) epor estar Comforme mandou passar este termo (JFO 10.08) (56) epor esta Comforme mandou passar este pormim (JFO 11.07) (57) epor esta| Com forme mandou lavra este (JFO 13.16)
As construções com o verbo no infinitivo foram consideradas como estratégias de esquiva devido ao seguinte:
i) a possibilidade de ocorrer uma oração desenvolvida, ou seja, sem ser reduzida de infinitivo, com o uso do clítico como a que foi encontrada em mesma parte formular de outras atas:
(58) mandou o Prezidente| que selança-çe es te termo (GMB 02.07)
ii) a oração reduzida apresenta o verbo no infinitivo impessoal, uma opção, segundo a gramática normativa de Cegalla (1995, p. 296-7), para indeterminar o sujeito.
165
Além disso, cabe observar que essas estruturas com mandar e completiva com verbo no infinitivo ocorreram em datas posteriores às estruturas com subordinada e uso do clítico.
6.3. O FATOR CONCORDÂNCIA ENTRE VERBO E ARGUMENTO INTERNO Foram analisadas as sentenças finitas com clítico e com verbos transitivos diretos e argumento interno plural, a fim de verificarmos a concordância/nãoconcordância entre esses elementos. Foram computadas, no conjunto total de atas, 09 ocorrências de sentenças com verbo transitivo direto e argumento interno plural; dessas, nenhuma exibiu concordância explícita entre verbo e argumento.
Concordância Não-concordância Total % % 0 0 100 09 09 Tabela 5: Variação na concordância verbo-argumento interno plural
Confiramos dois dos exemplos:
(59) deu-se todos poderes (LTG 01.03) (60) Leo-se as cartas deregeite (LTG 05.03)
Esse resultado revela que o clítico apassivador era reinterpretado como se indeterminador. Essa afirmação baseia-se nos estudos de Naro (1976) e Martins (2003), para os quais as estruturas com VTD e argumento interno singular serviram como input para a reanálise de se apassivador em indeterminador. Se as estruturas com argumento interno eram reinterpretadas como estruturas ativas, as estruturas com argumento interno, que serviram de input, já deveriam sê-lo também. Devido a esse fato, esse clítico realizado (09 ocorrências) com verbo transitivo direto e argumento interno plural, sem sujeito antecedente expresso e/ou recuperável no contexto, foi interpretado e classificado como se indeterminador (tipo 2).
166
6.4. O FATOR TIPO DE CLÍTICO No que se refere ao fator tipo de clítico, houve 11 ocorrências de apagamento para o clítico se indeterminador (tipo 2), 07 com o verbo fazer e 04 com o causativo mandar: (61) Ao <Sico> quatro doDia de Mez de Majo <1835> fes ø a Chamada
(MVS
05.01) (62) Ao Ao 5 Dia do Mez de Majo de1835 Fez ø a xam| Ada (MVS 05.05) (63) fes ø a chamada (MVS 07.02) (64) mandou o Prezidente e mais Membro da Junta que este ø fizese (MSC 01.16) (65) estan do o Vice Provedor imais mezarioz fes ø a chamada
(MSC 13.03)
(66) mandou o Pro-| vedor que esteø fizesse (JFO 12.07) (68) fes ø o inventario naforma (JFO 12.02) (69) epor estar Com forme mandou ø lavra este
(JFO 07.07)
(70) epor esta Com forme mandou ø lavra este para Constar (JFO 13.16) (71) epor estar Comforme mandou ø passar este|termo
(JFO 10.08)
(72) epor esta Comforme mandou ø passar este pormim (JFO 11.07)
Para os casos com o causativo mandar, consideramos o apagamento de se indeterminador, devido ao fato de o verbo estar na 3ª pessoa do singular sem antecedente expresso, sendo recuperável somente em outras atas do mesmo redator em mesma parte formular, como no exemplo abaixo:
(73) epor esta Com forme mandou o Provedor lavra este termo (JFO 05.06)
Cabe observar que as estruturas com mandar sem o clítico são posteriores às com o sujeito realizado, o que revela a importância do contexto discursivo para a classificação do tipo de clítico. A outra ocorrência de apagamento foi com o clítico classificado como inerente por ocorrer com verbo cópula/estado:
167
(74) epor ø Achamos todos| Corformes (MVS 03.09)
Tipo de clítico
Presença
%
Ausência
%
Total
0 Recíproco 0 0 0 Reflexivo 0 0 0 0 Inerente 10 14,7 01 1,5 Pseudo-reflexivo 0 0 0 0 Médio 07 10,3 0 0 Apassivador 0 0 0 0 Pseudo-apassivador 0 0 0 0 11 16,2 Indeterminador (tipo2) 39 57,3 Indeterminador (tipo1) 0 0 0 0 Total 56 82,3 12 17,7 Tabela 6: Variação presença / ausência do clítico em relação ao tipo de clítico
6.5 O FATOR GRAUS DE REFERÊNCIA REPRESENTADOS PELOS CLÍTICOS
DOS
0 0 11 0 07 0 0 50 0 68
ARGUMENTOS
O total da classificação da referência foi o seguinte: Grau de referência determinada 1 determinada 2 indefinida indeterminada [+genérica] [+arbitrária] Total
Oc.
%
0 01 0
0 5,6 0
11 06 18
61,1 33,3 100
Tabela 7: Grau de referência dos argumentos representados pelos clíticos que foram apagados ou dos elementos envolvidos nas estratégias de esquiva
A única ocorrência de referência determinada2 (quando não há referência dupla a um mesmo argumento, como nos reflexivo-recíprocos, havendo apenas a relação sintática com o sujeito, mantida pelos traços categoriais de pessoa e número) foi para o clítico inerente:
(75) epor Achamos todos| Corformes (MVS 03.09)
As 11 ocorrências para a referência indeterminada [+genérica] foram as 07 com verbo fazer e as 04 com o causativo mandar. 168
As seis ocorrências de referência indeterminada [+arbitrária], podendo incluir qualquer pessoa, inclusive o falante [+Eu], configuram estratégias de esquiva. Notemos que houve ocorrência em maior número para a referência indeterminada [+genérica], seguida da [+arbitrária], o que está de acordo com a hipótese 3, para a qual a maior supressão e/ ou ocorrência de estratégias de esquiva se dão nos contextos em que o clítico desempenha função indeterminadora, ou cuja referência seja indeterminada genérica ou arbitrária.
7. RELAÇÃO ENTRE APAGAMENTO DE CLÍTICO E REDATOR
Ao analisarmos os casos de apagamento, excluindo as ocorrências com o verbo assinar-se, notamos que alguns redatores se destacaram quanto à freqüência de ocorrência do fenômeno. Confiramos o gráfico abaixo:
Redatores
12 10 8 6 4 2 0
LTG
GMB
MVS
MSC
MC
JFO
Gráfico 01: Ocorrência de apagamento do clítico por redator
Para Luís Teixeira Gomes e Manuel da Conceição, todas as ocorrências (09 e 01, respectivamente) de apagamento foram com assinar-se. As duas únicas atas do redator Gregório Manuel Bahia não apresentaram um só caso de apagamento, mas 03 presenças do clítico, 02 com assinar-se. Excetuando as atas (15) de Luís Teixeira Gomes, 169
só havia 02 atas para cada um dos dois outros redatores, o que pode explicar a pouca ocorrência de apagamento. As atas de José Fernandes do Ó (vendedor de toucinho) e Manuel Vítor Serra (negro de ganho) apresentaram, respectivamente, 06 e 05 casos de apagamento. O lugar social desses redatores é classificado por Oliveira (1988 apud OLIVEIRA, 2006, p. 213) como “atividade não manual” e que não carece de qualificação, diferente das ocupações dos demais (pedreiro e marceneiro), que são classificadas como “ofícios manuais qualificados”. Lembrando o que nos diz Mattos e Silva (2004) a respeito dos papéis sociais e mobilidade geográfica dos africanos e afro-descendentes,
estes
dois
indivíduos
desempenhavam
atividades,
cuja
mobilidade permitia contato com outras variedades do português, além do vernáculo, e conseqüentemente com membros de outras comunidades de fala.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Tabela 8 mostra os fatores que mais favoreceram o apagamento no corpus analisado:
Fatores Tipo sintático de predicado Tipo semântico de predicado Tipo de clítico Grau de referência
Transitivo direto Causativo Ação Indeterminador (tipo2) Indeterminada [+genérica]
Oc. 07 04 11
% 10,3 5,9 16,2
11
16,2
11
61,1
06
33,3
Indeterminada [+arbitrária] Tabela 8: Fatores condicionantes ao apagamento
Se considerarmos que o elevado número de ocorrências com o VP assinar-se se deveu ao gênero textual e ao contexto discursivo, o apagamento deu-se em maioria para VTD de ação e causativo com clítico reinterpretado como indeterminador (tipo 2), confirmando as hipóteses de que: i) o enfraquecimento do sentido passivo também concorre para o apagamento do clítico; ii) a hierarquia do apagamento, para a qual o apagamento é mais freqüente para o se indeterminador, cuja referência é genérica ou arbitrária. 170
O percentual de 17,7% é praticamente o mesmo para o do corpus APERJ (17,6%) (com informantes pouco escolarizados do interior do RJ) e muito próximo do apresentado pelos informantes do NURC/90 (15,6%), o que pode significar que a comunidade de fala desses indivíduos, nesse período (1832-1842), revela a base de um processo que, segundo Nunes (1991), se iniciou no século XIX e se implementou nas últimas décadas do século XX. A partir do estudo de Corrêa (1991 apud KATO, 1999), Kato (1999) infere que a recuperação dos clíticos na escrita, a partir do processo escolar, difere muito da “aquisição natural”. Ou seja, a aquisição de clíticos via processo escolar como L1 pode ser comparada ao mesmo processo como L2139, posto que representam “gramáticas” distintas: i) para o falantes de L1, da gramática da fala; ii) para o falantes de PB como L2, da sua língua primeira. Se a aquisição de clíticos se dá primeiro na escrita e sendo esta uma gramática estranha à de L1, podemos dizer que a aprendizagem de clíticos para a criança brasileira está para uma aprendizagem de L2 e, assim, os dados encontrados podem não ser muito distantes do que se esperaria para falantes de português como L1 pouco escolarizados. Além disso, podemos supor que o contato lingüístico entre falantes de LP como L2 e como L1 tenha acelerado o processo do apagamento, se considerarmos que este uso de L2 se tornou dado lingüístico primário para crianças em processo de aquisição, com o agravante do pouco ou nenhum acesso à escolarização, principalmente para os afro-descendentes, que marcou todo o período colonial e imperial. Os dados que resultam da aquisição imperfeita, com o processo sistêmico da reanálise, em situação de contato lingüístico dá-se em particular no português não-padrão e daí podem subir para os registros informais da linguagem urbana culta. Ainda não se pode dizer se a perda gradativa de traços e propriedades sintático-semânticos relacionados ao apagamento já vieram embutidas no sistema
9 13 “A criança iletrada com pais incapazes de fornecer o ‘input’ da linguagem escrita, enfrenta, na escola, uma situação de aprendizagem de uma gramática ‘estrangeira’”. (KATO, 1996, p. 209)
171
devido à atualização do quadro pronominal (a partir da inserção de você e a gente no Brasil no século XVIII) e/ou encontrou na transmissão lingüística irregular terreno fértil para sua difusão.
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173
ORDEM DOS CLÍTICOS Charlotte GALVES (UNICAMP – CNPq) Tânia LOBO (UFBA – PROHPOR)
INTRODUÇÃO A ordem dos clíticos é um dos fenômenos de variação e mudança mais salientes na história do português. A variação flagrada ao longo do tempo afeta dois aspectos da colocação pronominal – a posição pré-verbal (‘próclise’) ou pós-verbal (‘ênclise’) do pronome e sua contigüidade ao verbo1. A alternância próclise ~ ênclise é bastante complexa, porque dependente, nas línguas de um modo geral, dentre outros, dos seguintes contextos sintáticos: orações finitas vs. orações
não-finitas; matrizes vs. subordinadas; primeira posição vs.
segunda posição do verbo na frase; natureza referencial dos sintagmas que precedem o verbo. Traçaremos, a seguir, um quadro da evolução desse fenômeno em duas vertentes geográficas do português, o português europeu (PE) e o português brasileiro (PB), a fim de estabelecer parâmetros que nos permitam analisar como a sintaxe de colocação de clíticos nas atas dos africanos se relaciona com os diversos padrões atestados na diversidade histórica e dialetal da língua portuguesa.
1. O PORTUGUÊS EUROPEU 1.1. ORAÇÕES FINITAS Historicamente, podemos distinguir, nas orações finitas, duas grandes classes de contextos: Aqui nos ateremos ao primeiro aspecto, uma vez que o segundo é pouco pertinente para a descrição das atas Trata-se do fenômeno tradicionalmente chamado de interpolação. Bastante produtiva até o século XVI, a interpolação se reduz essencialmente à negação a partir do século XVII, pelo menos na variedade padrão do português europeu (cf. MARTINS, 1994 e NAMIUTI, 2008, entre outros). Como veremos abaixo, há, contudo, nas atas, um caso em que o clítico é separado do verbo pela negação.
1
174
• os que não sofrem nem variação nem mudança ao longo do tempo; • e os que apresentam uma importante variação, que redunda, finalmente, em mudanças.
Na primeira classe, encontramos as orações com verbo em posição inicial absoluta (V1) como contexto que desencadeia categoricamente a ênclise ao longo da história da língua:
1.
a. Achou-os ditosamente, falou-lhes (André de Barros, n. 16752) b. *Os achou ditosamente, lhes falou
Existe, ainda, um conjunto de contextos em que só a próclise é possível, desde os primeiros documentos até o PE moderno. São eles: as orações negativas (2), as orações subordinadas (3), as orações em que o sintagma pré-verbal é um quantificador (4), um operador QU (5), um sintagma focalizado (6) ou um advérbio de uma certa classe (7):
2.
a. O Paulo não me fala b. * O Paulo não fala-me
3.
a. Todo mundo sabe que a viste b. * Todo mundo sabe que viste-a
4.
a. Alguém me chamou b. *Alguém chamou-me
5.
a. Quem me chamou? b. * Quem chamou-me?
6.
a. Só ele a entende.
7.
a. Eu (sempre, ainda, já) a encontrei no mercado
b. *Só ele entende-a
b. *Eu (sempre, ainda, já) encontrei-a no mercado
A referência aos dados extraídos do Corpus Histórico do Português Tycho Brahe faz-se com o nome do autor, seguido de “n.”, para `nascido em´ e o ano do nascimento.
2
175
É de se notar, porém, que Mateus et alii (2003, p. 850-852) chamam a atenção para o fato de, no português europeu contemporâneo, as primeiras produções com pronomes clíticos das crianças portuguesas exibirem a ênclise de forma generalizada, fato que também seria cada vez mais observável entre as gerações mais jovens, inclusive em textos escritos, produzidos por adolescentes e estudantes universitários:
a.
não chama-se nada (M., 20 meses, apud MATEUS et alii, 2003)
b.
foi alguém que meteu-me nesta fotografia (J.G., 39 meses, apud MATEUS et alii,
c.
porque é que foste-me interromper? (R., 29 meses, apud MATEUS et alii, 2003)
d.
mas ele já foi-se embora (P., 39 meses, apud MATEUS et alii, 2003)
e.
porque não apercebeu-se que ... (12 anos, modo escrito, apud MATEUS et alii,
f.
Todos os verbos volitivos e optativos fazem-se anteceder sempre de um SN
2003)
2003)
(estudante universitário, modo escrito, apud MATEUS et alii, 2003).
A segunda classe é aquela em que a colocação pronominal é variável ao longo do tempo. Ela é constituída dos contextos que não foram referidos acima, ou seja, as orações nas quais o verbo não está em primeira posição e não é precedido pelos elementos que forçam a próclise. Na história do português, observam-se, nesses casos, duas mudanças sucessivas e divergentes:
a) do século XIII ao século XVI, passa-se de uma predominância quase categórica da ênclise à próclise quase absoluta (cf. LOBO, 1992 e MARTINS, 1994); b) os séculos XVI e XVII são fortemente proclíticos, mas, a partir do século XVIII, assiste-se a um retorno da ênclise, que se torna majoritária entre os autores nascidos na segunda metade do século (cf. GALVES, BRITO, PAIXÃO DE SOUSA, 2006; doravante, GPBS, 2006), e passa a ser a única possibilidade no português europeu moderno.
176
Esse movimento divergente, raro na história das línguas, pode ser visualizado no Gráfico 1, de Paixão de Sousa (2004), que reúne resultados de várias análises com base em corpora diversos, constituídos por textos escritos de 1300 a 1900:
Gráfico 1
Ao investigarem a colocação de clíticos em autores portugueses nascidos de 1500 a 1850, GBPS (2006) definem dois conjuntos de contextos de variação. Chamam contextos de variação 1 aqueles formados pelas estruturas em que o verbo é precedido por um sujeito referencial não focalizado (8a,b), certos tipos de advérbio (9a,b) ou um sintagma preposicional com função adverbial (10a,b):
8.
a. As outras prophecias cumprem-se a seu tempo (A.Vieira, n. 1607) b. Estes thesouros … se abrirão a seu tempo (A.Vieira, n. 1607)
9.
a. Agora quero-lhe dizer algumas cousas das que Vossa Mercê desejará saber a meu parecer (A. Costa, n. 1714) b. Hoje me parto (A. Chagas, n. 1631)
177
10.
a. Em troca disto, ofereço-lhe da parte de Inglaterra defesa de tôdas as suas colónias e ... (Alorna, 1750) b. Com este aviso lhe foi juntamente infundida notícia dos excessos que entre estas duas súbditas suas passavam (Bernardes, n. 1644)
Já os contextos de variação 2 se referem às orações nas quais o elemento préverbal é uma conjunção de coordenação (11a,b) ou uma oração dependente (12a,b): 11.
Achou-os ditosamente, falou-lhes, e rendeu-os a largarem aquela vida brutal (A. Barros, n.1675) Durando as persuasões do padre, chegou preparada uma mezinha, e lhe pediram se retirasse. (Bernardes, n.1644)
12.
Para os começar a render, amimou-os com donativos, língua a todas as Nações não menos inteligível, que grata. (A. Barros, n.1675) Vendo-o um Cónego no adro daquela antiga Sé lhe disse: De quem sois meu menino? (A. Barros, n.1675)
As autoras justificam a divisão proposta em função dos diferentes padrões de distribuição da ênclise e da próclise nos dois conjuntos de contextos ao longo do tempo. Os contextos de variação 2 apresentam, desde o século XVI, uma freqüência de ênclise bem maior, com uma grande variação de autor para autor. Em contraste, os contextos de variação 1 são muito mais regulares de autor a autor e apresentam níveis de ênclise muito baixos nos séculos XVI e XVII. A mudança que afeta a colocação de clíticos nos contextos de variação 1, em autores nascidos de 1542 a 1836, pode ser observada no Gráfico 2, extraído de GBPS (2006):
178
1,00 0,90
0,85
0,80 0,70
0,70 0,63
0,60 0,50
0,30
0,41 0,27
0,21
0,20 0,10
0,48
0,45
0,40
0,10
0,12
0,08 0,11 0,06 0,05 0,05 0,02 0,050,05
0,15
0,03 0,00 1500 1525 1550 1575 1600 1625 1650 1675 1700 1725 1750 1775 1800 1825 1850 Enclisis vs. Proclisis in variation contexts
Galves, Britto & Paixão de Sousa, 2005
Gráfico 2
Como ressaltado por GBPS, o Gráfico 2 evidencia dois momentos na variação ênclise ~ próclise. No primeiro, até 1700, observa-se uma variação estável ao longo do tempo, com freqüências de ênclise variando entre 0% e 20%, em 12 dos 13 autores considerados3. No segundo momento, posterior a 1700, a freqüência da ênclise vai gradativamente aumentando, até chegar a níveis próximos a 100%, prenunciando o português europeu moderno. As autoras interpretam esse dois momentos como duas etapas gramaticais distintas. Na primeira, a variação seria produzida por uma gramática em que a próclise é a opção não marcada, mas que não exclui a ênclise.4 A segunda seria conseqüência de uma mudança gramatical que tornou a ênclise a única opção de colocação, mantendo-se, porém, a próclise durante um longo período como um resquício da gramática antiga na escrita, em consonância com processo alcunhado por Kroch (1994) como de competição de gramáticas.
A única exceção encontra-se nos Sermões de Vieira, com 45 % de ênclise. Para uma interpretação dessa discrepância, vejam-se Galves (2002) e GBPS (2006). 4 Falsos V2. Cf. Salvi (1991). 3
179
1.2. ORAÇÕES NÃO FINITAS Nas orações não finitas do PE, também se podem definir contextos de regra categórica e contextos de regra variável na colocação de clíticos. Mais uma vez, o fenômeno é complexo, particularmente por ser sensível à distinção infinitivo flexionado vs. infinitivo não flexionado. Não discutiremos as sutilezas de todas as colocações e suas variações ao longo do tempo. Só ressaltamos o fato de que a colocação enclítica ao verbo infinitivo é sempre categórica quando este é complemento de um outro verbo e que sempre houve alternância ênclise ~ próclise quando o infinitivo é complemento de preposição5. Um outro aspecto que merece destaque é a existência do fenômeno de ‘alçamento’, que consiste em o clítico se afixar não ao verbo não finito do qual é argumento, mas ao verbo flexionado com o qual o verbo não finito constitui uma locução verbal ou tempo composto, conforme ilustrado abaixo:
13. Para os começar a render, amimou-os com donativos, língua a todas as Nações não menos inteligível, que grata. (A. Barros, n.1675) 14. Agora quero-lhe dizer algumas cousas das que Vossa Mercê desejará saber a meu parecer (A. Costa, n. 1714)
Deve-se notar, porque será importante na comparação que posteriormente faremos com o português brasileiro, que o alçamento do clítico do verbo não finito para o verbo finito só é variável no PE com os infinitivos. Com as outras formas nãofinitas, gerúndio ou particípio, o clítico sempre aparece junto à forma finita. Também vale observar que, contrariamente ao que ocorre quanto às orações finitas, é difícil interpretar as mudanças que afetam a colocação de clíticos com verbos não finitos. No estado atual do nosso conhecimento, ainda não é possível relacionar a variação observada a uma mudança gramatical clara.
Ressaltando que cada preposição tem um comportamento diferenciado quanto a essa variação. No que diz respeito à evolução da colocação de clíticos, entre o século XVI e o século XIX, em orações infinitivas preposicionadas, podem- se consultar Abdo (2001) e Godoy (2006).
5
180
Em conclusão, a análise da colocação de clíticos na história do português europeu, a partir do século XVI, revela a existência de duas gramáticas, uma denominada português clássico, compartilhada por europeus e brasileiros, e a outra denominada português europeu moderno, que se converterá, na segunda metade do século XIX, no referencial para o estabelecimento da norma prescritiva brasileira.
2. O PORTUGUÊS BRASILEIRO Como já é do conhecimento geral, a colocação pronominal é um dos aspectos gramaticais em que o português brasileiro coloquial moderno difere mais obviamente do português europeu moderno. Isso se deve ao fato de que, ao longo do tempo, o PE e o PB tomaram rumos opostos. Enquanto o primeiro se tornava mais enclítico, o segundo generalizava a próclise, estendendo-a, em particular, à posição inicial absoluta: 15. Me chamo Fátima (Paulo Coelho, O Alquimista)
A outra inovação na sintaxe dos clíticos no PB é o fato de eles se manterem afixados, em próclise6, ao verbo não finito, tanto nas locuções verbais, quanto nos tempos compostos: 16. da praça onde haviam se encontrado um dia (Paulo Coelho, O Alquimista)
Os estudos recentes sobre a história da colocação de clíticos no português brasileiro (PAGOTTO, 1992; LOBO, 2001; CARNEIRO, 2005, dentre outros) convergem no sentido de evidenciarem a enorme variação que aparece nos textos escritos no Brasil ao longo do século XIX. Com efeito, contrariamente ao que expusemos acima a respeito do português europeu, não há praticamente nenhum contexto que escape à variação ênclise ~ próclise. Em decorrência da generalização da próclise na língua falada, a posição inicial absoluta deixa de ser um contexto de ênclise obrigatória. E, paradoxalmente, a influência da norma européia – que se faz O termo próclise está sendo aqui utilizado para referir o sentido de direção de cliticização fonológica da esquerda para a direita, e não como sinônimo de colocação pré-verbal do clítico.
6
181
sentir cada vez mais, tanto ao longo do século XIX, quanto do XX (como enfatizado inicialmente por PAGOTTO 1992, 1999) – tem como efeito a emergência da ênclise em contextos de próclise obrigatória na norma portuguesa. Carneiro e Galves (2006) propõem modelar esse fenômeno nos termos da noção de competição de gramáticas, proposta por Kroch (1994) e já referida anteriormente. Portanto, como se pode verificar no Gráfico 3, baseado em dados de Carneiro (2005) para o PB e de GBPS (2006) para o PE, encontra-se, na escrita brasileira, ao longo do século XIX, um aumento da ênclise nos contextos de variação 1 paralelo àquele que se verifica nos textos portugueses:
Gráfico 3
Ora, vemos surgir, ao mesmo tempo, nos mesmos textos, a tendência à próclise que subjaz ao clítico pré-verbal em posição inicial absoluta e ao clítico préverbal ao verbo não finito (exemplos extraídos do corpus de cartas brasileiras de CARNEIRO, 2005):
17. Me foi entregue sua carta de 8 do vigente 18. Sua Excelência respondeu me que ja haviam lhe escrito da Bahia
182
19. … tem por artimanha se apossado
Carneiro e Galves (2006) interpretam, então, o aparente caos encontrado nesses textos como o resultado da competição de três gramáticas7: o português clássico (gramática 1), subjacente aos textos dos séculos XVI e XVII, em que a próclise é o padrão não marcado nos contextos de variação 1; o português europeu moderno (gramática 2), que só produz a ênclise nas construções que antigamente eram de variação, e o português brasileiro (gramática 3), que só produz a próclise. O aumento da ênclise observado nos textos brasileiros do século XIX é o reflexo da competição entre o português clássico e o português europeu moderno.
Já a variação ênclise ~
próclise em construções V1 é o resultado da competição entre o português clássico e o português brasileiro. A coexistência de dois tipos distintos de competição explica, assim, a contradição aparente entre o aumento de ênclise concomitantemente ao aumento da próclise8. 3. APRESENTAÇÃO DOS DADOS Das atas escritas pelos africanos Gregório Manuel Bahia, José Fernandes do Ó, Luís Teixeira Gomes, Manuel do Sacramento e Conceição Rosa e Manuel Vítor Serra, extraiu-se um total de 99 ocorrências de sentenças com clíticos. Não houve nenhuma atestação de clítico nas atas do africano Manuel da Conceição. Dessas 99 ocorrências, 90 correspondem a sentenças com um só verbo, estando o clítico, em 53 (58,9%) delas, em colocação pré-verbal e, em 37 (41,1%), em colocação pós-verbal. As 09 ocorrências restantes correspondem a sentenças com uma seqüência verbal (locução verbal ou tempo composto), constituída por verbo finito + verbo não-finito, estando, em 6 (66%) delas, o clítico anteposto ao verbo finito e, em 3 (33%), posposto ao infinitivo.
Usamos itálico para distinguir as gramáticas das línguas instanciadas nos textos ou na fala (Língua-I e Língua- E, respectivamente, no sentido de CHOMSKY, 1986). 8 Como se vê também no Gráfico 3, com base nos dados de Pagotto, na primeira metade do século XX, a tendência se inverte no sentido da próclise. É o efeito da competição entre o português europeu moderno e o português brasileiro. 7
183
Não atestamos nenhum caso de clítico adjacente a verbo no futuro do presente ou do pretérito, razão pela qual nada podemos dizer acerca da colocação intraverbal. Exceto no exemplo abaixo, com interpolação do não, a contigüidade do clítico ao verbo é categórica:
20. Aos Vinte e Sete dias domes de Novembro estando / O provedor emais Mezarios em Mezá Estraordinaria / prestou-se por meio de escortino adiliberaçaõ aque / Esta[r]emos adita Mezá para adecizaõ do nossó Irmaõ / Manoel da Paixaõ que por huma Carta semandou / Sedespedir quando aMezá onaõ quizessé estar / pella Sua opiniaõ (JFO, 13, 27.11.1842).
Atestamos um outro exemplo com aparente interpolação de não, apresentado abaixo em (21):
21. Em vertude da Meza do dia 24 de Março / do prezente anno commonico aVossas Merces para vir / des cutir o nosso Compromisso em algum dos Capítulo / e § que seofferecer abem da nossa confraria / sendo porem em Junta imperterivelmente / no dia 21 de Abril, as 8 horas da manha / na mesma Capella dos Quinze Miste / rios. / ficando serto de que o naõ podendo / comparecer dar por bem, e aceito o que por / nos for sancionado (LTG, 09, 1833)
Trata-se de construção não computada no conjunto total dos dados analisados, sendo o trecho em que um suposto clítico o ocorre passível de ser interpretado como “em não podendo comparecer”.
3.1.
SENTENÇAS COM UM SÓ VERBO
3.1.1. MATRIZES 3.1.1.1.
VERBO EM POSIÇÃO INICIAL ABSOLUTA (V1)
Nas ocorrências em que o verbo figura em primeira posição, o clítico ocorreu categoricamente enclítico, conforme demonstram os exemplos de (22) a 29), abaixo: 184
22. Decidio-se por maior / votto das favas oSeguinte (LTG, 02, 16.09.1832) 23. Seguio-se | por enquanto para | estar nas- | Cazas Parte- | culares afim | de o depois | [?] para aonde for aprovado, ou o que for conveniente ajunta e Meza, foi para a caza do | Senhor Reverendo Padre Joaquim Joze deSanta Anna por ser já noite, e finda os trabalhos | [da] Meza (LTG, 02, 16.09.1832) 24. epor estarmos comforme / eu sobscrevi e assignei Luis Teixeira Gomes, Sa / cretario assignouse Manoel Victo Serra / Juz Fundador / Luiz Teixeira Gomes / Secretário Definidor (LTG, 06, 16.11.1832) 25. Lanca-se o Termo como Ley os que / ficaraõ aprovado, assim como aver / Loterias. (LTG, 10, 21.04.1833) 26. Aos tres dias do mes de Mayo de1835 estando / conjunto faltaraõ os Seguinte O Irmaõ Provedor / Joze do Nacimento, e o 2o. Sacretário Vicente Rodriguez Paxeco / e o Irmaõ Vezitador Joze Fernandez do O. feixosse / achamada com tinuouse os trabalho que ja vai para / a Comissaõ dessedir eregular (LTG, 13, 03.05.1835) 27. Aos tres dias do mes de Mayo de1835 estando / conjunto faltaraõ os Seguinte O Irmaõ Provedor / Joze do Nacimento, e o 2o. Sacretário Vicente Rodriguez Paxeco / e o Irmaõ Vezitador Joze Fernandez do O. feixosse / achamada com tinuouse os trabalho que ja vai para / a Comissaõ dessedir eregular (LTG, 13, 03.05.1835) 28. Tomou-se Conta da 4a. Loteria (LTG, 15, 08.10.1835) 29. Aos treze dias domez de Setembro de1835 / estando o Vice Provedor emais Mezario da Devocaõ se / fez a chamada enaõ faltaõ seguio-se os - / trabalho e determi nou-se que na 1a. Dominga / de outubro na Meza seguinte tomar Conhecimento / das contas dos Thezoureiros da 4a. e 5a Lotaria (MSR, 14, 13.09.1835)
Trata-se, em todos os casos, do clítico se – que ocorre como indeterminador em todos os casos, exceto em (23), em que é inerente (cf. Capítulo 4). Destacamos também o fato de que, das oito ocorrências atestadas para o contexto em questão, sete foram extraídas de atas escritas por Luís Teixeira Gomes e apenas uma de ata redigida por Manuel do Sacramento e Conceição Rosa. É interessante notar que Luís Teixeira Gomes é o redator que mais concordância nominal apresenta (cf. Capítulo 8). Isto concorre para caracterizá-lo como o que mais próximo se encontra do português padrão da época9.
9 Oliveira, Soledade & Souza (Capítulo 8) também mostram uma correlação entre os níveis de concordância nominal apresentados por cada um dos escrivães e sua competência gráfica.
185
Nas matrizes, para além das ocorrências em que está em posição inicial absoluta, o verbo apresenta-se ainda precedido de alguns tipos de constituintes, como veremos a seguir. 3.1.1.2.
VERBO PRECEDIDO DE SUJEITO
Nos casos atestados de (30) a (37), o verbo está precedido de sujeito e o clítico ocorre categoricamente proclítico. O exemplo em (30) distingue-se dos demais apresentados de (31) a (37), que se caracterizam como fórmulas de escrita típicas de fechamento de atas:
30. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos / Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos / 15 Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria / que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- / pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos que nos / hade Reger (MSR, 07, 15.01.1835) 31. epor esta Com forme / paçou-se es te termo para Constar os feito desta Re / uniaõ eeu es Crivaõ Auctual ofis e Subri, es Crivi, / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 04, 05.06.1836) 32. epor esta / Com forme mandou o Provedor lavra es / te termo eeu Como Secretario ofis eSu / bré escrevi, etc. (JFO, 05, 10.07.1836) 33. epor esta Com forme mandou o Provedor / lavra este termo, para atodo tempo Constar eeu / Escrivaõ Actual, ofis e Subri, es Crevi etc. (JFO, 06, 14.08.1836) 34. epara cons / tar mandou oprovedor Lavra estes ter / mo em que nos acinamos e eu o Escrevi e / Como Secretario, e a Signei etc. (JFO, 08, 02.10.1836) 35. e eu Escrivam ofes é Sobre escrevi hera Supra / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 09, 30.10.1836) 36. epor estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá Signei (JFO, 12, 02.10.1842) 37. epor esta / Com forme mandou lavra este para Constar / e eeu Secretário oaSignei - Jozé Fernandes do Ó (JFO, 13, 27.11.1842)
3.1.1.3.
VERBO PRECEDIDO DE SINTAGMA PREPOSICIONAL ADVERBIAL
Foram raros os exemplos com o verbo precedido por um SP com função adverbial. Nos três únicos casos atestados, o clítico aparece ora proclítico, como em (38), ora enclítico, como em (39) e (40): 186
38. por una- / nimidade dos actuáes Mezarios o escre / vi // e assignei como Secretário Luiz Teixeira Gomes (LTG, 09, ?.?.1833) 39. Aos dez dias do mez de Se / tembro de mil oito centos etrinta e dous pe rante o Juiz e Mezarios deu-se todos poderes / ao Nosso Irmaõ Consultor Manoel da Conceicam / para exercer de Thezoureiro té que em o dia daposse / dezesseis do Corrente (LTG, 01, 10.09.1832) 40. Aos 28 dias do mez deOutubro de1833 /Perante aMeza Fundadora Sentou-se / que para os Interamentos dos falecidos Irmãos / quer Irmaõ - ou Irmaã seraõ acom- / panhadas com Cincoenta Toxas assezas / para o lugar destinado sepultura (LTG, 12, 28.10.1833)
Em (38), encontramos mais um tipo de fórmula de escrita típica de fechamento de atas. Embora a sua configuração sintática seja distinta daquela que apontamos nas ocorrências mencionadas de (31) a (37), observamos que, em ambos os casos, se trata do clítico o, que se antepõe ao verbo. Em (39) e (40), não há de fórmulas de fechamento, mas, sim, de abertura de atas; importa destacarmos que, em (39) e (40), apesar da mesma configuração sintática observada em (38), o clítico, sendo agora o se, vem posposto ao verbo.
3.1.1.4. VERBO PRECEDIDO DE ORAÇÃO SUBORDINADA ADVERBIAL Finalmente, apresentamos os casos em que é uma oração subordinada o constituinte a preceder imediatamente o verbo. De (41) a (51), listamos os exemplos em que o clítico está em posição pós-verbal e, de (52) a (54), as três ocorrências em que a sua colocação é pré-verbal:
41. Aos deis dia domes de Julho de1842 estando prezente o Pro- / vedor emais Mezarios fesse aReuniaõ do Costume (JFO, 11, 10.07.1842) 42. Aos Vinte e Sete dias domes de Novembro estando / O provedor emais Mezarios em Mezá Estraordinaria / prestou-se por meio de escortino adiliberaçaõ aque / Esta[r]emos adita Mezá para adecizaõ do nossó Irmaõ / Manoel da Paixaõ que por huma Carta semandou / Sedespedir quando aMezá onaõ quizessé estar / pella Sua opiniaõ (JFO, 13, 27.11.1842)
187
43. Aos vinte tres dias do mez deSetembro demil / oito centos etrinta e dous prezentes o Juiz Funda / dor e Mais Mezarios Leo-se as cartas deregeite / dos Diffinidores Joze deSouza Santos – Caetano da Cunha - Manoel Jose Giló – Francisco Candido (LTG, 05, 23.09.1832)10 44. Aos quartos dias do Mez de outubro de1835 / Estando o Provedor e o Mais Mezario1 continu / ou-se o Trabalho de rever as contas das Lo- / terias (LTG, 14, 04.10.1835) 45. Aos Oito dias do mez de Outubro / de Mil oito centos e trinta ecinco / Estando o Prevedor emais Menbros / Administradores deo-se principio / aos trabalhos da Atta de 4 do Corrente (LTG, 15, 08.10.1835) 46. Aos sete dias do mez de Janeiro do anno / do Nassimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil / eoito sento e trinta e sinco estando Os / Juiz emais Administradores da Devocaõ / Sociavel de Nossa Senhora da Solidade dos Desvalidos / nos Qinze Misterio estando deLiberou-se / que quanto antez se chama-se huma Junta / para Vinte seis do Corrente as oito oras da manhã / nam es ma Capella (MSR, 06, 07.01.1835) 47. Aos dezanove días domez de Julho de1835 / Estan émeza o Viz Provedor emais Mezario fezse cha / mada ecompareceu todos e Continuou-se os traba / lhos e determi nou-se que naõ pode ra ser Eleito / Irmaõ algum (MSR, 11, 19.07.1835) 48. Aos dous diás do Mez deAgosto de mil eoito / sento e trinta e sinco estando o Vice Provedor emais / mezarios sancionou-se o seguinte que na1a. Dominga de / setembro os Encarrega dos da 4a. e 5a. Loteria / darem Conta / e Enaõ o fazendo pasaraõ a responsabilizado (MSR, 12, 02.08.1835) 49. Aos onze Dia do Mez de outubro dehum mil / outro Sento etrinta Sinco estando o Pro / vedor e mais a deminitador, principio-se / ostrabalho de ter minado - da data ante çedente e- / tomou-se Conta da4a. Lotaría (MSR, 15, 11.10.1835) Em destaque, em negrito, texto com a caligrafia de Manuel Vítor Serra. 50. epor esta Com forme / paçou-se es te termo para Constar os feito desta Re / uniaõ eeu es Crivaõ Auctual ofis e Subri, es Crivi, / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 04, 05.06.1836) 51. e Requerendo a Authoridade do Juiz de Paz do Bai- / ro para esse consentimento em combio-se o Procurador Geral Deffinidor / Joze do Nacimento o qual comprio com aformalidade / exegida (LTG, 11, 04.08.1833) ___________
52. Aos cinco dias do Mez de Julho de1835 estando / o Viz Provedor eos mais Membros sefez a chamada e que / naõ houve fal ta e Continuouse os trabalhos (MSR, 10, 05.07.1835) 53. Aos treze dias domez de Setembro de1835 / estando o Vice Provedor emais Mezario da Devocaõ se / fez a chamada enaõ faltaõ seguio-se os - / trabalho e determi nou-se que na
10
Trata-se de uma reduzida de gerúndio, embora não ocorra a forma verbal estando.
188
1a. Dominga / de outubro na Meza seguinte tomar Conhecimento / das contas dos Thezoureiros da 4a. e 5a Lotaria (MSR, 14, 13.09.1835) 54. el por esta bem meAsinei Manoel Victo Serra (MVS, 05, 05.05.1835)
Tanto nos exemplos apresentados em (39) e (40), quanto nos que se encontram de (41) a (49) e ainda em (52) e (53), trata-se de ocorrências de clíticos em fórmulas de escrita típicas da abertura de atas, que podem ser assim descritas:
(a) Exemplos (39) e (40): Aos X dias do mês Y do ano Z + perante alguém (...); (b) Exemplos (41) a (49) e (52)/(53): Aos X dias do mês Y do ano Z + estando alguém (...); essa fórmula comporta ainda a variante Aos X dias do mês Y do ano Z + presente alguém (...), conforme se observa em (43).
É ainda uma variante da fórmula de abertura apresentada em (b) o que pode ser observado de (55) a (61). Tal variante pode ser descrita como em (c), em que destacamos o fato de o verbo hospedeiro do clítico estar imediatamente precedido de uma conjunção coordenativa:
(c) Aos X dias do mês Y do ano Z + estando alguém + fez-se/se fez algo + E + fez-se/se fez algo
Predominantemente, tal como se verificou de (41) a (52), é a ênclise que ocorre no tipo de estrutura apresentado em (c). De (55) a (60), apresentamos as ocorrências de ênclise e, em (61), a única de próclise atestada:
55. Aos cinco dias do Mez de Julho de1835 estando / o Viz Provedor eos mais Membros sefez a chamada e que / naõ houve fal ta e Continuouse os trabalhos (MSR, 10, 05.07.1835) 56. Aos dezanove días domez de Julho de1835 / Estan émeza o Viz Provedor emais Mezario fezse cha / mada ecompareceu todos e Continuou-se os traba / lhos e determi nou-se que naõ pode ra ser Eleito / Irmaõ algum (MSR, 11, 19.07.1835) 57. Aos dezanove días domez de Julho de1835 / Estan émeza o Viz Provedor emais Mezario fezse cha / mada ecompareceu todos e Continuou-se os traba / lhos e determi nou-se que naõ pode ra ser Eleito / Irmaõ algum (MSR, 11, 19.07.1835) 58. Aos seis dias domez de setembro demil eoito / sento etrinta e cinco estan do o Vice Provedor imais / mezarioz fes a chamada efal taraõ o Senhores / Francisco Jozé Pipino Joaõ Carlos Theotonio deSouza / eseguio-se os trabalhos (MSR, 13, 06.09.1835)
189
59. Aos treze dias domez de Setembro de1835 / estando o Vice Provedor emais Mezario da Devocaõ se / fez a chamada enaõ faltaõ seguio-se os - / trabalho e determi nou-se que na 1a. Dominga / de outubro na Meza seguinte tomar Conhecimento / das contas dos Thezoureiros da 4a. e 5a Lotaria (MSR, 14, 13.09.1835) 60. Aos onze Dia do Mez de outubro dehum mil / outro Sento etrinta Sinco estando o Pro / vedor e mais a deminitador, principio-se / ostrabalho de ter minado – da data ante çedente e- / tomou-se Conta da4a. Lotaría (MSR, 15, 11.10.1835) Em destaque, em negrito, texto com a caligrafia de Manuel Vítor Serra. 61. Aos 2 dias do Mes de Outubro estando o Proved[or] emais me- / zarios estando em Corpo de Meza fes o inventario naforma / da lei, e Seachou tudo Com forme o estabalicimento do Nossos / Estatuto (JFO, 12, 02.10.1842)
3.1.2. SUBORDINADAS FINITAS Nas subordinadas finitas – completivas (13), relativas (17) e adverbiais (01) –, a próclise é categórica nas 31 ocorrências atestadas nas atas. Também aqui se destaca a repetição de expressões fixas, correspondentes a 14 ocorrências, portanto, a quase 50% dos dados, como os exemplos de (62) a (75) o comprovam:
62. e para constar mandou o Prezidente / que selança-çe es te termo em que nos / a signamos (GMB, 02, 29.12.1834) 63. epara Constar- / mandou os Soçios Ex que Este se fizesce eu / me asignase Como Sacretário (MSR, 04, 07.09.1834) 64. epor estar / mos Com for me mandou a Junta que se Lavrase / este Termo Como Sacratário que este fiz e a signei (MSR, 08, 08.02.1835) 65. epor / estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que este / sefizesse e nos assignasemoz. (MSR, 09, 05.07.1835) 66. epor estar Com forme mandou a meza que sefizese / este termo eAsignar-mos. (MSR, 11, 19.07.1835) 67. epor estar Com forme man / dou a Ameza Administradora que este sefizese (MSR, 12, 02.08.1835) 68. e para Constar mandou a meza / Administradora que este Sefizese para Constar etodo tempo eu que / subscrevi e Asignei Como Sacretário Manoel Victo (MSR, 15, 11.10.1835) 69. epor estarmos Comforme man / dou o socios Adimins tradores que sefizesse / estes Termo em que asig namoz Como Sacretário / que sobscrevi (MSR, 06, 07.01.1835)
190
70. epor / estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que este / sefizesse e nos assignasemoz. (MSR, 09, 05.07.1835) 71. epara Constar- / mandou os Soçios Ex que Este se fizesce eu / me asignase Como Sacretário (MSR, 04, 07.09.1834) 72. E para Cons tar o prençipio des te trabalho, / mandou o Prizidente lançar es te termo / em que nos Assignamos. (GMB, 01, 14.11.1834) 73. e para constar mandou o Prezidente / que selança-çe es te termo em que nos / a signamos (GMB, 02, 29.12.1834) 74. epara cons / tar mandou oprovedor Lavra estes ter / mo em que nos acinamos e eu o Escrevi e / Como Secretario, e a Signei etc. (JFO, 08, 02.10.1836) 75. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebemos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc. Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 03, 17.04.1836) __________ 76. Aos sete dias do mez de Janeiro do anno / do Nassimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil / eoito sento e trinta e sinco estando Os / Juiz emais Administradores da Devocaõ / Sociavel de Nossa Senhora da Solidade dos Desvalidos / nos Qinze Misterio estando deLiberou-se / que quanto antez se chama-se huma Junta / para Vinte seis do Corrente as oito oras da manhã / nam es ma Capella (MSR, 06, 07.01.1835) 77. e Esta será / Lavrada no Livro dos Termos damesma Devosao para / Cons tar que se aVizaraõ a todos Irmãos des ta nossa /Devocaõ (MSR, 07, 15.01.1835) 78. amesma Junta a Prova que se Cumpra odito- / Esta tutos Offerecida Pella Co micaõ Criada no dia 2 do / Mez de Dezembro do anno Financeiro (MSR, 08, 08.02.1835) 79. fica o Secretario participado aes Crever atodo / qual quer hum Irmão que Seacha atrazado, nos Seus Men / cais (JFO, 02, 01.11.1835) 80. etratemos a Rever o debito que Se devia a Caza ó / qual mandou oVis Provedor Cartiarsé aos ditos para / Virem Remirem naprimeira Reuniaõ ejuntamente opro / jecto que seaprezentou em Meza (JFO, 04, 05.06.1836) 81. etratemos a Rever o debito que Se devia a Caza ó / qual mandou oVis Provedor Cartiar-sé aos ditos para / Virem Remirem naprimeira Reuniaõ ejuntamente opro / jecto que seaprezentou em Meza (JFO, 04, 05.06.1836) 82. Aos dois dias do Mez de Outubro estando / todos Reunidos em Aucto deMeza no dia / Soleno dafestividade de Nossa Senhora da Solidade / dos devalidos onde Seacha Colocada fizemos / anova Meza Adminis tradora (JFO, 08, 02.10.1836)
191
83. Aos trezé dia do mes deNovembro demil eoito centos etrin- / ta e Ceis estando Reunida a Mezá Auctual, pará Comprimento / do Termo Antecedente oque estava digó que ficou marcadó o Ar- / tigo quarenta e Nové ao que Sedeu Comprimento juntamente ó / Artigó Nove (JFO, 10, 13.11.1836) 84. Protestamos ser constantes / no depozito das nossas joias entradas / a qual se acha já em coffre (LTG, 02, 16.09.1832) 85. Segundo, que a Missa he selebrada / pelo Padre que adisser logo as Oito horas imperte / rivelmente. (LTG, 06, 16.11.1832) 86. Segundo qualquer Irmaõ que estando em / Meza fica responsalbelizado por qualquer / abuzo por dizer oque sepassou na Meza / aoutro seu Amigo, parente, Irmaõ, / ou Mulher, May, Pay, [ou]filho (LTG, 07, 16.11.1832) 87. e / no Cazoque se saiba que qualquer publicou / he suspenço para outra reuniaõ por suspei / to por todo o anno (LTG, 07, 16.11.1832) 88. Em vertude da Meza do dia 24 de Março / do prezente anno commonico aVossas Merces para vir / des cutir o nosso Compromisso em algum dos Capítulo / e § que seofferecer abem da nossa confraria (LTG, 09, ?.?.1833) 89. e para esse fim apareceraõ planos / aonde se aprovou oprezente que foi impremido (LTG, 11, 04.08.1833) 90. em Concideraçaõ do que sereprezentou Contra o- /Irmaõ Ex Escrivam Luiz Teixeira Gomes o Progetto- / Emprenço Ferindo o milin dre da Soçiedade / damesma Devocaõ e que autorizou a Junta afacul / tar a Meza de pois de ter es corrido o es co tinio man / dar im primir huma Satisfacaõ ao Publico / em Resposta da dita. (MSR, 01, 23.02.1834) 91. Ao dois dia do Mez de Fevereiro Anno de1834 / Estando Juis e o Mais Mezario Dreminitador / de Roguemos o proteto pello ti tulo que se aturezar / o Dinifinidor Luis Theixeira Gomes (MVS, 01, 02.02.1834) 92. Nota Bene Asim Como / serecoe os bilhete / da 5 Lotaria (MSR, 08, 08.02.1835)
Note-se que a próclise se mantém mesmo nos casos em que a oração subordinada é uma segunda coordenada, com a conjunção não repetida (cf. exemplos 70 e 71).
3.1.3. SUBORDINADAS NÃO-FINITAS 3.1.3.1.
INFINITIVAS
A ênclise é categórica nas três ocorrências de infinitivas: 192
93. Sahio onossó Irmaõ Vencido Com / Oito Voto de Sua parte epor parte dadevoçaõ / Quinzé Votos o que ficou em Se comonicar por huma / Carta ao Nossó Irmão dito adeliberaçaõ da Meza e fican / do adiado hum Novó balanca o que a Caza possué- / em próxima Reuniaõ e Seguir-se os-afazeres, adiado / do nossó Irmaõ Marco Jozé do Rozario logo que este / Comprimento de mais nececidade Secompri (JFO, 13, 27.11.1842) 94. Fica / para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- / ras da manha adar-se comprimento / ao dinheiro para o novo Coffre que sevai / fazer; e tratar-se de criar-se Comis / soens (LTG, 15, 08.10.1835) 95. o outro sim juntamente pedir-se a Irmandade / do Rozarío onde estamos apedirmos Suas Gavettas / para servir de Arquivo a nossa Devoçaõ (MSR, 12, 02.08.1835)
3.1.3.2.
INFINITIVAS INTRODUZIDAS POR PREPOSIÇÃO
Ocorreram ainda, entre as infinitivas, orações introduzidas pelas preposições para, de, em e a.
3.1.3.2.1. Preposição PARA Com infinitivas introduzidas por para, houve variação no comportamento sintático do clítico, predominando, porém, as ocorrências com próclise, como se atesta de (96) a (100), as quais perfazem 72%:
96. efiquemos adiados para aprimeirá Reuniaõ Se / qualificar as conta que Sedeve Vintilar Com omaior, / Escrupulo pocivel para inteiro Conhecimento detodos os / Nossós Irmoins (JFO, 12, 02.10.1842) 97. de liberou para primeira Reuniaõ se dis cutir / hu Esclarecimento emViada pello 1o. Fiscal (MSR, 10, 05.07.1835) 98. efica aguiados para na / Dominga 13 doCorrente a Ver nova Reuniaõ para setratar / da Festa (MSR, 13, 06.09.1835) 99. ficando feita a Votaçaõ das nossas Irmã feita e / Publiçada ficando, adiado ó Artigo 42/ para sedar o in / teiro Comprimento deste dever (JFO, 09, 30.10.1836) 100. Os quar toze dias do Meis de Nouenbro / do anno de mil outo sen tro e trinta e qu- / artro haxando-çe Reonido na Caza da- / Meza de Nossa Senhora do Rozario dos quinze / Misterio, em ver tude do Tremo da data / do 1o. de Nouenbro des te mesmo anno, os- / nomiado para a dita e tirando-çe sorte para / se çaber quem Prezidente e Saçretario,
193
sahirão. / Prezidente / Joze Fernandez do Ó / Sacretario / Gregorio Manuel Bahia (GMB, 01, 14.11.1834) __________
101. Aos os trinta dias do Mez de Outubro de mil e oito Cen- / tos e trinta e Ceis estando, o Provedor emais mezarios todos / Conjunto para aVotacaõ das nossas Irmaã emais haveres / da devoçaõ ficou adiada para aprimeira Reuniaõ eLege-çe / a Comiçaõ (JFO, 09, 30.10.1836) 102. enaõ terá lugar a / reclamar civicias, visto de mostrar falta / como quando suspeito, muito embora não / séja Irmaõ, poisquejá esta deposse para qualquer / tempo e instante declarar-se (LTG, 09, ?.?.1833)
3.1.3.2.2. Preposição A Apesar do parco número de ocorrências, também com as infinitivas introduzidas por a, atestamos a variação no comportamento sintático do clítico:
103. Fica / para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- / ras da manha adar-se comprimento / ao dinheiro para o novo Coffre que sevai / fazer; e tratar-se de criar-se Comis / soens (LTG, 15, 08.10.1835) 104. Nota Bene e fica para sancionado / asedes cutir na próxima meza o Projeto de nosso Vice Provedor emais / dous Requerimento do fiscar (MSR, 11, 19.07.1835)
3.1.3.2.3. Preposições DE e EM Houve apenas uma ocorrência de infinitiva introduzida pela preposição de ou pela preposição em. Nos primeiro caso, atestamos a ênclise e, no segundo, a próclise:
105. Fica / para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- / ras da manha adar-se comprimento / ao dinheiro para o novo Coffre que sevai / fazer; e tratar-se de criar-se Comis / soens (LTG, 15, 08.10.1835) 106. Sahio onossó Irmaõ Vencido Com / Oito Voto de Sua parte epor parte dadevoçaõ / Quinzé Votos o que ficou em Se comonicar por huma / Carta ao Nossó Irmão dito adeliberaçaõ da Meza e fican / do adiado hum Novó balanca o que a Caza possué- / em
194
próxima Reuniaõ e Seguir-se os-afazeres, adiado / do nossó Irmaõ Marco Jozé do Rozario logo que este / Comprimento de mais nececidade Secompri (JFO, 13, 27.11.1842)
3.1.3.3.
GERUNDIVAS
Nas gerundivas, tal como nas infinitivas não introduzidas por preposição, é categórica a posposição do clítico ao verbo: 107. Os quar toze dias do Meis de Nouenbro / do anno de mil outo sen tro e trinta e qu- / artro haxando-çe Reonido na Caza da- / Meza de Nossa Senhora do Rozario dos quinze / Misterio, em ver tude do Tremo da data / do 1o. de Nouenbro des te mesmo anno, os- / nomiado para a dita e tirando-çe sorte para / se çaber quem Prezidente e Saçretario, sahirão. / Prezidente / Joze Fernandez do Ó / Sacretario / Gregorio Manuel Bahia (GMB, 01, 14.11.1834 108. Os quar toze dias do Meis de Nouenbro / do anno de mil outo sen tro e trinta e qu- / artro haxando-çe Reonido na Caza da- / Meza de Nossa Senhora do Rozario dos quinze / Misterio, em ver tude do Tremo da data / do 1o. de Nouenbro des te mesmo anno, os- / nomiado para a dita e tirando-çe sorte para / se çaber quem Prezidente e Saçretario, sahirão. / Prezidente / Joze Fernandez do Ó / Sacretario / Gregorio Manuel Bahia (GMB, 01, 14.11.1834) 109. Fica em meopoder hum Coffre feixado com tres / chaves Axando-se huã em maõ do Juiz Manoel / Victo, outra na do Escrivaõ Luiz Teixeira Gomes / outra na do Procurador Geral Joze do Nacimento (LTG, 03, 16.09.1832)
Contudo, estando o verbo antecedido pela negação, é a próclise, como esperado, que se atesta:
110. Aos dous diás do Mez deAgosto de mil eoito / sento e trinta e sinco estando o Vice Provedor emais / mezarios sancionou-se o seguinte que na1a. Dominga de / setembro os Encarrega dos da 4a. e 5a. Loteria
/ darem Conta / e Enaõ o fazendo pasaraõ a
responsabilizado (MSR, 12, 02.08.1835) 111. Nota Bene / deClaro que nafalta que possaõ ter sobre as festividade / poderá o Cofre Emprestar adita quantia ao Thezoureiro de que / faltar sobre a Finta dos 500 reis enaõ se afas / tando o ditto Thezoureiro de mutipllicar mais da C / onta que marca aditta quantia (MSR, 14, 13.09.1835)
195
Vale ressaltar que, em todos esses casos, encontramos uma sintaxe perfeitamente compatível com a norma da época, inclusive nos casos de variação com as preposições (cf. LOURENÇATO, 2001 e GODOY, 2006).
3.2.
SENTENÇAS COM SEQÜÊNCIAS VERBAIS As nove ocorrências seguintes correspondem a sentenças com uma seqüência
verbal (locução verbal, tempo composto), constituída por verbo finito + verbo nãofinito. Em todos os exemplos, o verbo não-finito é uma forma de infinitivo. Em 66% das ocorrências, verificamos o alçamento do clítico (clitic climbing) – exemplos de (112) a (117) -, inclusive no caso com interpolação de não – já destacado em (20) e abaixo retomado em (117) – e, em 33%, o clítico não se elevou, ocorrendo posposto ao infinitivo – exemplos de (118) a (120): 112. efiquemos adiados para aprimeirá Reuniaõ Se / qualificar as conta que Sedeve Vintilar Com omaior, / Escrupulo pocivel para inteiro Conhecimento detodos os / Nossós Irmoins (JFO, 12, 02.10.1842) 113. epropos o Juiz que sedevia Organizar / hũa Loteria de mil Belhetes empresso a 32o / cada hum (LTG, 11, 04.08.1833) 114. Fica / para Meza do dia 11 do Corrente as 7 ho- / ras da manha adar-se comprimento / ao dinheiro para o novo Coffre que sevai / fazer; e tratar-se de criar-se Comis / soens (LTG, 15, 08.10.1835) 115. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos / Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos / 15 Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria /que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- / pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos que nos / hade Reger (MSR, 07, 15.01.1835) 116. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos / Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos / 15 Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria /que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- / pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos que nos / hade Reger (MSR, 07, 15.01.1835) _______________ 117. Aos Vinte e Sete dias domes de Novembro estando / O provedor emais Mezarios em Mezá Estraordinaria / prestou-se por meio de escortino adiliberaçaõ aque / Esta[r]emos adita Mezá para adecizaõ do nossó Irmaõ / Manoel da Paixaõ que por huma Carta
196
semandou / Sedespedir quando aMezá onaõ quizessé estar / pella Sua opiniaõ (JFO, 13, 27.11.1842) _______________ 118. etratemos a Rever o debito que Se devia a Caza ó / qual mandou oVis Provedor Cartiarsé aos ditos para / Virem Remirem naprimeira Reuniaõ ejuntamente opro / jecto que seaprezentou em Meza (JFO, 04, 05.06.1836) 119. amesma Meza Comvida aVossa Senhoria queira a char-se no /ditto dia pellas 8 oras da manhá (MSR, 07, 15.01.1835) 120. Nota Bene de Claro que as nossa - / Irmãs poderaõ aprezentar se no dia da Festa Com sua / fita Rocha dórada. (MSR, 12, 02.08.1835)
3.3.
DISTRIBUIÇÃO DAS VARIANTES DE COLOCAÇÃO POR CLÍTICO Das 90 ocorrências de clíticos analisadas, 72 (80%) correspondem ao clítico se;
11 (12,2%), ao clítico o; 04 (4,4%) ao clítico nos e, finalmente, 03 (3,3) ao clítico me. Tais resultados condizem com o que se espera quando se trata de atas, gênero textual no qual não são freqüentes ou nem que sequer ocorrem os pronomes de primeira pessoa singular ou plural.
Colocação Próclise Ênclise
Tabela 1: Variantes de colocação versus clítico11 Clítico SE 0/A NOS 35 49% 11 100% 4 100% 37 51% -
3
ME 100% -
A Tabela 1 indica que a forma do clítico tem uma nítida influência sobre a sua colocação: os pronomes me, nos e o/a e são sempre proclíticos; o pronome se é o único que ocorre em ordem variável, apresentando uma alternância muito equilibrada entre próclise e ênclise. Retomamos, abaixo, todos os exemplos dos pronomes me, nos e o/a, a fim de que possamos averiguar os contextos em que ocorreram, bem como se predominam na escrita de algum secretário em particular:
11
Nesta Tabela, apenas foram consideradas as 90 ocorrências de clíticos em sentenças com um só verbo.
197
CLÍTICO ME: 121. el por esta bem meAsinei Manoel Victo Serra (MVS, 05, 05.05.1835) 122. epara Constar- / mandou os Soçios Ex que Este se fizesce eu / me asignase Como Sacretário (MSR, 04, 07.09.1834) 123. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos / Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos / 15 Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria / que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- / pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos que nos / hade Reger (MSR, 07, 15.01.1835)
CLÍTICO NOS: 124. A meza da Devocaõ de Nossa Senhora daSoledade dos / Desvalidos Ereta na Capela de Nossa Senhora do Rozário dos / 15 Mistério me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria /que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- / pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos que nos / hade Reger (MSR, 07, 15.01.1835) 125. epor / estamoz Com forme mandou a Meza Administradora que este / sefizesse e nos assignasemoz. (MSR, 09, 05.07.1835) 126. e para constar mandou o Prezidente / que selança-çe es te termo em que nos / a signamos (GMB, 02, 29.12.1834) 127. epara cons / tar mandou oprovedor Lavra estes ter / mo em que nos acinamos e eu o Escrevi e / Como Secretario, e a Signei etc. (JFO, 08, 02.10.1836)
CLÍTICO O: 128. epor esta Com forme / paçou-se es te termo para Constar os feito desta Re / uniaõ eeu es Crivaõ Auctual ofis e Subri, es Crivi, / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 04, 05.06.1836) 129. epor esta / Com forme mandou o Provedor lavra es / te termo eeu Como Secretario ofis eSu / bré escrevi, etc. (JFO, 05, 10.05.1836) 130. epor esta Com forme mandou o Provedor / lavra este termo, para a todo tempo Constar eeu / Escrivaõ Actual, ofis e Subri, es Crevi etc. (JFO, 06, 14.08.1836) 131. epara cons / tar mandou oprovedor lavra estes ter / mo em que nos acinamos e eu o Escrevi e / Como Secretario, e a Signei etc. (JFO, 08, 02.10.1836) 132. e eu Escrivam ofes é Sobre escrevi hera Supra / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 09,30.10.1836) 133. e por estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá Signei (JFO, 12,02.10.1842) 134. epor esta / Com forme mandou lavra este para Constar / e eeu Secretario oaSignei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 13, 27.11.1842)
198
135. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebemos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc. Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 03, 17.04.1836) 136. é por una - / nimidade dos actuáes Mezarios o escre / vi / / e assignei como Secretário Luiz Teixeira Gomes (LTG, 09, 1833) 137. Aos dous diás do Mez deAgosto de mil eoito / sento e trinta e sinco estando o Vice Provedor emais / mezarios sancionou-se o seguinte que na1a. Dominga de / setembro os Encarrega dos da 4ª. e 5ª. Loteria / darem Conta / e Enaõ o fazendo pasaraõ a responsabilizado (MSR, 12,02.08.1835) 138. Segundo, que a Missa he selebrada / pelo Padre que adisser logo as Oito horas imperte / rivelmente. (LTG, 06, 16.11.1832)
No total das 18 ocorrências que vão de (121) a (138), verificamos que apenas quatro delas não correspondem a fórmulas típicas de escrita de atas. São as seguintes: (123), com o verbo precedido de sujeito; (124), uma oração subordinada finita; (137), com o verbo precedido de negação, e (138), também uma oração subordinada finita. Exceto a ocorrência (123), que se integra aos contextos de variação 1, nas demais, o clítico figura em contextos em que, tanto na história do PE, quanto no padrão normativo ainda hoje vigente, a próclise é a regra categórica. Concluímos, então, que a discrepância de colocação observada entre os clíticos me, nos e o/a (sempre proclíticos), por um lado, e se (com alternância equilibrada entre próclise e ênclise), por outro, não pode ser atribuída exclusivamente, neste corpus, à forma do clítico. A distribuição, entre os diversos secretários, das ocorrências de fórmulas de escrita de atas em que se encontram os clíticos me, nos e o/a é, por outro lado, bastante desigual: 9 foram colhidas das atas escritas por José Fernandes do Ó; 2, das atas escritas por Manuel do Sacramento e Conceição Rosa; 1, das atas escritas por Manuel Vítor Serra; 1, das atas escritas por Gregório Manuel Bahia e, finalmente, também apenas 1 das atas escritas por Luís Teixeira Gomes. Feita a descrição pormenorizada dos dados, na qual, inclusive, foram apresentadas todas as ocorrências de clíticos atestadas, passaremos, a seguir a sua análise. 199
4. ANÁLISE DOS DADOS No que respeita aos clíticos, emerge das atas escritas por africanos uma sintaxe aparentemente padrão, que se distingue do que foi encontrado em outros textos produzidos no Brasil na mesma época:
(i) não há ocorrências de próclise em orações com verbo em posição inicial absoluta; (ii) não há ocorrências de ênclise em orações subordinadas finitas.
Trata-se também de uma sintaxe mais próxima do português clássico do que do português europeu moderno, pelos seguintes aspectos:
(i) é predominantemente proclítica em contextos de variação 1; (ii) os casos de ênclise se encontram essencialmente em contextos de variação 2; (iii) apresenta próclise com a preposição a.
Tais características contrastam fortemente não só com a ortografia dos textos (cf. OLIVEIRA, 2006), como também, de modo particular, com dois dos aspectos estudados, a concordância nominal e a concordância verbal (cf. Capítulos 8 e 9, respectivamente). A questão fundamental que se coloca, a partir das observações anteriormente feitas, é: dados tão excessiva e inesperadamente comportados revelariam o português falado como segunda língua pelos africanos redatores das atas? Teria sido a partir de um input com tais características que o chamado português popular brasileiro foi moldado pelos descendentes de africanos nascidos no Brasil? Não podemos responder a tais questões sem relacionarmos os resultados apresentados à natureza do tipo de texto de que eles emergem e, sobretudo, sem atentarmos para a medida da imersão no mundo da cultura escrita por parte dos vários africanos que foram secretários dentro da hierarquia funcional da SPD.
200
Atas são, inquestionavelmente, textos formais. No caso específico das atas de reuniões da SPD escritas por africanos, a formalidade pode atingir um certo “paroxismo”, como o atestam os exemplos a seguir, de atas redigidas quase que exclusivamente com a reprodução de fórmulas:
139. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebemos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc. Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 03, 17.04.1836) 140. Ao 5 Dia do Mez de Majo de1835 Fez a xam /ada Fartaro 2o. Secretario Vicente Rudriguez Pachexo /o Vizitador Joze Fernandez do O. do Commicao Carlos Manuel / Rezena Joaõ Carlo Francisco de Borgem Chavi el por esta bem me Asinei (MVS, 5, 05.05.1835)
Ao longo da apresentação dos dados, de forma reiterada, chamamos a atenção para o fato de que a maioria das ocorrências de clíticos foi atestada em fórmulas de escrita típicas de abertura ou de fechamento de atas. Um outro aspecto digno de nota e também observável através dos dois exemplos acima mencionados é que as atas redigidas pelos fundadores da SPD são muitíssimo curtas. A mínima extensão do texto aliada à máxima freqüência de fórmulas seriam indicadores de pouca intimidade com a escrita? No Capítulo 8 – a que remetemos, para maiores detalhes –, Oliveira, Soledade e Souza discutem a interferência de duas variáveis não lingüísticas – radator do documento e presença/ausência do constituinte em fórmulas – sobre a realização variável da concordância nominal. Relativamente à variável radator do documento, analisam a capacidade de execução caligráfica de cada um dos secretários e afirmam atestar, no corpus das atas, os três tipos, que, segundo Petrucci (1978), seriam reconhecíveis em qualquer tempo histórico: escreventes com competência gráfica elementar ou de base, com competência gráfica ‘in usual’ e ainda com competência gráfica ‘in pura’; além disso, afirmam também terem a impressão de que prevalecem entre os redatores das atas os “estacionad[o]s no nível de competência gráfica ‘in usual’. 201
Embora ressalvando a necessidade de investigação mais detalhada, indicaram haver uma relação entre mãos com competência gráfica elementar ou de base e menor aplicação da regra de concordância nominal e também o contrário – mãos com competência gráfica ‘in pura’ e maior aplicação da regra de concordância nominal. Por outro lado, no que respeita à presença/ausência do constituinte em fórmulas, concluíram não ser este fator relevante, realizando-se a concordância nominal em 71% das ocorrências em que o constituinte é atestado em fórmulas e em 77% das ocorrências em que está fora das fórmulas de escrita de atas. Considerando as duas variáveis referidas, as conclusões a que chegamos sobre a ordem dos clíticos destoam das apontadas por Oliveira, Soledade e Souza. Independentemente de ser variável a capacidade de execução caligráfica dos vários secretários, nada os distingue entre si, quando, estritamente, se considera a sintaxe dos clíticos. A hipótese que levantamos para tal homogeneidade de comportamento e também para responder à questão acima colocada – “dados tão excessiva e inesperadamente comportados revelariam o português falado como segunda língua pelos africanos redatores das atas?” – é que, nas atas, os clíticos foram atestados, sobretudo, em fórmulas, tendo havido repetição, e não quebra do modelo seguido. Por que, quando se consideram fenômenos, como, por exemplo, a concordância nominal, o modelo é passível de variação e, quando se consideram outros, como, por exemplo, a ordem dos clíticos, tal não se verifica, é questão que deverá ser, futuramente, objeto de atenção. Como já apontado nos Capítulos 3 e 4, algumas ocorrências, ainda que de forma bastante marginal, anunciam aspectos da sintaxe do PB no corpus. Tais aspectos são o “apagamento” dos clíticos – exemplos (138) a (143) – e a próclise à forma verbal não finita – exemplo (144):
141. epor estar Com forme mandou o Provedor lavra esté e eu Subré / esCrevi Como Secretario Jozé Fernandes do Ó (JFO, 2, 01.11.1835) 142. epor estar Comforme mandou passar este / termo em Com formidade daLei, e eu Escrivaõ Auctual Escrevi, / eSubré esCrevi, herá Suprá etc. Jozé Fernandez do Ó (JFO, 10, 13.11.1836)
202
143. epor estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá Signei, Jozé Fernandez do Ó (JFO, 12, 02.10.1842) 144. Ao <Sico> quatro doDia de Mez de Majo <1835> fes a Chamada / 1835 Fartaro 2o Sretario Vicete Rodego Pacheco /o Vizitador Joze Fernandez do O. epor Esta Comforme /a Sinei / (MVS, 05, 05.05.1835) 145. Ao 5 Dia do Mez de Majo de1835 Fez a xam /ada Fartaro 2o. Secretario Vicente Rudriguez Pachexo /o Vizitador Joze Fernandez do O. do Commicao Carlos Manuel / Rezena Joaõ Carlo Francisco de Borgem Chavi el por esta bem me Asinei (MVS, 5, 05.05.1835) 146. Aos 2 dias do Mes de Outubro estando o Proved[or] emais me- / zarios estando em Corpo de Meza fes o inventario naforma / da lei, e Seachou tudo Com forme o estabalicimento do Nossós / Estatuto.... Jozé Fernandez do Ó (JFO, 12, 02.10.1842) __________
147. Que por uma carta se mandou se despedir (JFO, 13, 27.11.1842)
O exemplo (147) é particularmente notável por ser o único caso de desvio de colocação nas atas, apresentando a reduplicação do clítico em posição baixa (junto ao verbo infinitivo), num contexto de alçamento. No corpus, chama a atenção o fato de que, em próclise, os clíticos aparecem muitas vezes colados ao verbo que os segue e dos quais são complementos.
148. epor esta Com forme / paçou-se es te termo para Constar os feito desta Re / uniaõ eeu es Crivaõ Auctual ofis e Subri, es Crivi, / Jozé Fernandes do Ó (JFO, 04, 05.06.1836) 149. Segundo, que a Missa he selebrada / pelo Padre que adisser logo as Oito horas imperte / rivelmente. (LTG, 06, 16.11.1832) 150. Aos cinco dias do Mez de Julho de1835 estando / o Viz Provedor eos mais Membros sefez a chamada e que / naõ houve fal ta e Continuouse os trabalhos (MSR, 10, 05.07.1835) 151. Aos 2 dias do Mes de Outubro estando o Proved[or] emais me- / zarios estando em Corpo de Meza fes o inventario naforma / da lei, e Seachou tudo Com forme o estabalicimento do Nossos / Estatuto (JFO, 12, 02.10.1842) 152. el por esta bem meAsinei Manoel Victo Serra (MVS, 05, 05.05.1835)
Dos clíticos o/a, que só aparecem em próclise, num total de 11 ocorrências, encontram-se 6 casos em que aparecem colados ao verbo. Dos clíticos se, para os 203
quais se observa uma freqüência de 49% de próclise, foram 17 casos em 35, sendo 14 em 28 orações finitas e 3 em 7 orações infinitivas. Destacamos o fato de esse fenômeno corresponder quase exatamente a 50% dos casos. Ou seja, numa vez em duas, o clítico vem colado ao verbo seguinte. Como Oliveira (2003) observa, este é um fenômeno freqüente, encontrado ao longo da história do português escrito e também na aquisição da escrita por adultos e crianças, correspondendo ao fato de que o clítico forma um ‘grupo de força’ com o verbo. Tal fenômeno também afeta as preposições, artigos e conjunções, que também se apóiam foneticamente na palavra seguinte. Encontramos vários casos desse tipo nas atas dos africanos:
153. epor esta Comforme mandou passar este pormim, / em falta do Secretario (JFO, 11, 10.07.1942)
Outro aspecto interessante, e talvez mais raro, é aquele que se caracteriza por o clítico acusativo vir junto à primeira vogal do verbo, e, juntos, ocorrerem separados do verbo:
154. epor estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá Signei (JFO, 12, 02.10.1842)
A separação da vogal inicial do verbo é um fenômeno de hiper-segmentação bastante
recorrente
nas
atas
(cf. OLIVEIRA, 2003,
p.
251-252),
afetando
freqüentemente o verbo ‘assinar’, bem como vários outros que começam com as vogais a e o12: De maneira interessante, essa hiper-segmentação afeta não só as sílabas que se confundem com os clíticos e os determinantes, mas também outras, que têm uma semelhança de forma com preposições e conjunções (cf. OLIVEIRA, 2003, p. 253). É como uma imagem especular do que acontece com a hipossegmentação e que parece 12 Em relação ao verbo ‘assinar’, é interessante notar que os redatores mostram competências diferentes. De novo, encontramos em Luís Teixeira Gomes o desempenho mais conforme a norma: apesar de alguma variação na grafia (assignar, assinar, asinar), as 12 ocorrências do verbo encontradas nas atas por ele escritas apresentam a segmentação correta. Vimos acima que é aquele que também apresenta o maior uso do clítico se em ênclise e a maior taxa de concordância nominal, além de uma competência gráfica qualificada como ‘in pura’ (cf. Capítulo 8).
204
refletir uma dificuldade em atribuir uma análise apropriada ao fluxo sonoro. No exemplo a seguir, José Fernandes do Ó apresenta vários casos desse tipo de hipersegmentação (ao lado de hipossegmentações): 155. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebemos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc. Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 03, 17.04.1836)
Nesse quadro, e pelo menos para alguns dos redatores das atas, a impressão que fica é a de que os pronomes clíticos não são claramente discriminados em relação às vogais iniciais dos verbos13. Na falta de uma análise comparativa dos diversos processos de segmentação em diferentes tipos de textos, correspondendo a diversos níveis de aprendizagem da língua e da escrita, e em diversas épocas, não é possível tirar nenhuma conclusão definitiva. Ficam, então, as observações feitas como apontamentos para uma fascinante direção de pesquisa. CONCLUSÃO A colocação de clíticos é um dos aspectos sintáticos dos textos das atas que praticamente não foge às normas da escrita padrão da época no Brasil. Neste capítulo, relacionamos isso ao fato de os clíticos aparecerem quase que exclusivamente nas fórmulas de abertura e fechamento das atas. É possível, contudo, detectar, de maneira muito marginal, a emergência da sintaxe brasileira, mais no apagamento dos pronomes (cf. também os Capítulos 3 e 4) do que na sua colocação, que só apresenta um desvio notável, a reduplicação do clítico em posição baixa (junto ao verbo infinitivo), num contexto de alçamento. Os fenômenos de segmentação inábil contribuem para reforçar, por outro lado, a conclusão de que os clíticos são usados dentro da repetição global de um modelo, sem que lhes seja realmente atribuída uma função própria na expressão dos 13
Note-se que observamos também uma certa colusão – já observada por Oliveira (2003) – nas terminações verbais, entre o clítico se em ênclise e a morfologia flexional do verbo, uma vez que, nos dois casos, o clítico/sufixo flexional pode aparecer tanto colado ao verbo quanto ligado a ele por um hífen: e para constar mandou o Prezidente / que selança-çe es te termo em que nos / a signamos (GMB, 02, 29.12.1834)
205
argumentos. Qual seria o papel das línguas africanas nesse desempenho? É difícil derivar os fenômenos descritos da interferência das línguas africanas, uma vez que, como longamente discutido por Oliveira (2003, 2006), os processos fonográficos e de segmentação atestados nas atas são típicos de mãos inábeis. Mas podemos, mesmo assim, formular a hipótese de que a(s) língua(s) materna(s) dos africanos contribuiu(íram) para tornar opaca a análise desses elementos – às vezes prefixos, às vezes sufixos –, cuja forma se confunde muitas vezes com a vogal inicial ou a terminação dos verbos. Tal como a concordância nominal e verbal, os pronomes clíticos constituem um aspecto gramatical do português difícil de adquirir por falantes de línguas que têm uma morfologia muito distinta. Contudo, os redatores das atas demonstram uma grande capacidade em se apropriar um discurso que envolve aspectos sintáticos complexos e bastante afastados do funcionamento das suas línguas maternas. Tudo leva a crer que o uso e a colocação dos clíticos que observamos devam ser entendidos mais como reflexo dessa capacidade do que como o efeito de uma real aquisição gramatical. REFERÊNCIAS CARNEIRO, Zenaide de Oliveira Novais. (2005). Cartas brasileiras (1809 – 1904): um estudo lingüístico-filológico. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. CARNEIRO, Zenaide de Oliveira Novais; GALVES, Charlotte. (2006). “Clitic-placement in the history of Brazilian Portuguese: a case of three-grammar competition”, comunicação ao IX Diachronic Generative Syntax Conference, Universidade de Trieste. CHOMSKY, Noam (1986). Knowledge of language: its origin, nature and use. New York: Praeger. GALVES, Charlotte, BRITTO, Helena, PAIXÃO DE SOUSA, Maria Clara. (2005). The change in clitic placement from Classical to Modern European Portuguese: results from the Tycho Brahe Corpus. Journal of Portuguese Linguistics, Special Issue on Variation and Change in the Iberian Languages: the Peninsula and beyond, v. 4, 1. GALVES, C., MORAES, M. A. T. & RIBEIRO, I. (2005) “Syntax and Morphology in the Placement of Clitics in European and Brazilian Portuguese”, Journal of Portuguese Linguistics, 4-2, 2005, M. Kato & J. Peres (orgs.), p. 143-177. GALVES, Charlotte; NAMIUTI, Cristiane; PAIXÃO DE SOUSA, Maria Clara. (2006). Novas perspectivas para antigas questões: revisitando a periodização da língua portuguesa. In: ENDRUSCHAT, A; KEMMLER, R.; SCHAFER-PRIEβ, B. (Orgs.). Grammatische Strukturen des Europaischen Portugiesisch. Tubingen: Calepinus Verlag.
206
GODOY. (2006). A colocação dos clíticos no ambiente das orações infinitivas introduzidas por preposição no português clássico. Relatório final de pesquisa de Iniciação Científica, disponível em http://www.tycho.iel.unicamp/~tycho/pesquisa. KROCH, Anthony. (1994). Morphosyntactic variation. Proceedings of the 30th annual meeting of the Chicago Linguistics Society, v. 2, p. 180-201. LOBO, Tânia Conceição Freire Lobo. (1992). A colocação dos clíticos em português: duas sincronias em confronto. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa. LOBO, Tânia Conceição Freire. (2001). Para uma sociolingüística histórica do português no Brasil. Edição filológica e análise lingüística de cartas particulares do Recôncavo da Bahia, século XIX. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. MARTINS, Ana Maria. (1994). Clíticos na história do português. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa. MATEUS, Maria Helena Mira et alii. (2003). Gramática da língua portuguesa. 5 ed. revista e aumentada. Lisboa: Caminho. NAMIUTI, Cristiane. (2008). Aspectos da história gramatical do português: interpolação, negação e mudança. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. PAGOTTO, E. (1992). A posição dos clíticos em português: um estudo diacrônico. Dissertação de Mestrado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. PAGOTTO, Emílio. (1999). Norma e condescendência, ciência e pureza. Língua e instrumentos lingüísticos, v.2, p. 49-68. PAIXÃO DE SOUSA, Maria Clara. (2004). Língua barroca: sintaxe e história do português nos 1600. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas. SALVI, G. (1990). La sopravvivenza della legge di Wackernagel nei dialettioccidentali della Peninsola Iberica. Medioevo Romanzo, n. 15, p. 177-210.
207
RELATIVAS Ilza RIBEIRO (UFBA – PROHPOR – CNPq1) Cristina FIGUEIREDO (UNIME – PPGLL/UFBA)
INTRODUÇÃO Diversos estudos têm discutido as características das estratégias de relativização no português brasileiro (PB), alguns dentro de uma abordagem diacrônica (cf. TARALLO, 1983 1993; COHEN, 1986; JESUS, 2002), outros, de uma abordagem sincrônica (cf. LEMLE, 1978; KATO, 1993; KATO et alii, 1996; KATO & NUNES, 2007; RIBEIRO no prelo, dentre outros). Em geral, quatro propriedades fundamentais das estratégias de relativização não-padrão do PB estão no centro das discussões2:
(a) a ausência de preposição antecedendo o tradicional pronome relativo (PR), em relativas de funções argumentais preposicionadas e de adjunto, denominadas relativas cortadoras; (b) a possibilidade de realização de pronome lembrete nas posições relativizadas, nas chamadas relativas lembretes; (c) devido à ocorrência da relativa cortadora, a obsolescência da estratégia pied-piping, que realiza a preposição selecionada pelos predicados para seus argumentos, ou segundo o valor semântico do constituinte com valor adverbial; (d) a estratégia da lacuna, para as funções não preposicionadas, variando com a de pronome lembrete. Também tem sido discutido o estatuto gramatical do constituinte relativizador que, entre ser um complementador ou um PR.
Os exemplos a seguir ilustram as citadas estratégias: 1 2
Esta pesquisa conta com o apoio do CNPq, processo no 309037/2003-4. Sobre as classificações e definições das relativas, cf. seção 1.
208
1.
a. [ A salai [que a janela ---i está quebradaSRel]] fica no corredor à esquerda. (cortadora)3 b. [ A salai [que a janela delai está quebradaSRel ]] fica no corredor à esquerda. (lembrete) c. [ A salai [cujai janela --- está quebradaSRel]] fica no corredor à esquerda. (lacuna) d. [A moçai [com quemi eu conversei ---i ontem sobre a pesquisaSRel]] não veio. (pied piping) e. [A moçai [que eu conversei ---i ontem sobre a pesquisaSRel]] não veio. (cortadora) f. A moçai [que eu conversei com elai ontem sobre a pesquisaSRel]] não veio. (lembrete)
A designação da estratégia em uso no exemplo (1c) como estratégia de lacuna não é muito feliz, pois, em (1 a/d/e), também há uma lacuna na SRel. Contudo, a escolha de SRel de genitivo e oblíquo para ilustrar a classificação permite identificar facilmente as três estratégias, sobretudo no que diz respeito às que deixam sempre uma lacuna dentro da SRel, diferindo pelo fato de que (1a/e) ilustram o uso de um complementador, enquanto (1c/d), o de um PR. As estratégias em (1b/f) também podem ser vistas como casos de uso de um complementador em lugar de um PR (cf. TARALLO, 1983, para exemplos semelhantes). Os estudos diacrônicos apontam para mudanças no PB na virada do século XVIII para XIX, momento em que a estratégia cortadora se mostra quantitativamente mais produtiva. A Tabela 1, a seguir, reproduz parcialmente a Tabela 5 do estudo diacrônico de Tarallo (1993:88):
Tabela 1: Estratégias de relativização por século (adaptada de TARALLO 1993) 1725 1775 1825 1880 Pied piping 99 89 73 63 89.2% 88.1% 91.3% 35.4% Pronome lembrete 11 8 1 9 9.9% 7.9% 1.3% 5.1% Cortadora 1 4 6 106 0.9% 4.0% 7.5% 59.5%
Os dados quantitativos delineiam o declínio da relativa pied piping no PB (de 89.2% para 35.4%), mas uma certa estabilidade no uso da relativa lembrete como uma estratégia marginal, com leve decréscimo de 1725 a 1880 (de 9.9% para 5.1%). A relativa cortadora passa de um uso inexpressivo no século XVIII (menos de 1%) para
3
Consideramos que este é um exemplo de relativa de uma função preposicionada, a de genitivo.
209
um uso quantitativamente relevante, no final do século XIX (59% de relativas sem a preposição). Comparações sincrônicas entre o PB culto e o português europeu culto (PE), bem como entre diversos dialetos regionais do PB, entre fala e escrita, entre falantes escolarizados e não escolarizados, e outros fatores condicionadores de variação social, têm formado a base empírica para apontar as diferenças e semelhanças entre os vários dialetos do português quanto ao uso das estratégias de relativização citadas acima (LEMLE, 1978; KATO, 1981, 1993; KATO et alii, 1996; CORRÊA, 1998, 1999). Os estudos sobre a estrutura das relativas no PB contemporâneo também mostram ser a estratégia com pronome lembrete a menos atestada nos dados. Por exemplo, os resultados de Bagno (2001), na Tabela 2, a seguir, indicam que a estratégia de pronome lembrete continua sendo uma opção marginal, com apenas 6% de realizações4: Tabela 2: Estratégias de relativização no PB contemporâneo (adaptada de BAGNO, 2001) Tipo de Relativas Percentagem Relativa lembrete 6% Relativa cortadora 94%
Comparando os resultados das Tabelas 1 e 2, observamos a ampliação quantitativa do uso da relativa cortadora (94%), indicando, em direção inversa, a perda acentuada da estratégia pied piping. O objetivo deste capítulo é o de apresentar uma análise da sintaxe das sentenças relativas em um conjunto de 53 atas escritas por seis africanos, entre 18321842, perfazendo um total de 104 dados coletados. Várias razões justificam uma pesquisa com base em dados escritos produzidos por africanos no Brasil oitocentista, uma vez que são muitas as perguntas que têm sido formuladas sobre as características sintáticas do PB, sobre as diferenças e semelhanças entre o PB e o PE contemporâneos, sobre as influências, no PB, das gramáticas das falas indígenas e africanas. Sabemos que a pequena extensão do corpus não permite reflexões sobre todas essas questões. Assim, nos limitamos neste texto a apresentar uma descrição Cf. também o estudo de Burgos (2003) e Ribeiro (no prelo), que atestam só poucas ocorrências de relativas lembretes em dados de fala de comunidades rurais de afro-descendentes.
4
210
das características das sentenças relativas no corpus, procurando responder tão somente a questões tais como:
(i) Quais tipos de relativas são atestados no corpus? Há diferenças entre seus usos e os atestados no PB e no PE contemporâneos que apontem para o fato de os africanos terem aprendido o português como L2? (seção 1) (ii) Quais tipos de estratégias de relativização são realizados pelos informantes africanos? Qual é o comportamento das relativas cortadoras e lembretes nesse corpus? Esses dois tipos de relativas já apresentam evidências para a mudança lingüística do PB contemporâneo, em relação à preferência pelo uso de relativas cortadoras? (seção 2.1) (ii) O que os dados do corpus revelam em relação às restrições universais para a formação de sentenças relativas, segundo estudo de Keenan & Comrie5 (1977, 1979)? (seções 2.1 e 2.2) 1. TIPOLOGIA DAS SENTENÇAS RELATIVAS Identifica-se como relativa uma sentença subordinada que modifica um nome ou um sintagma nominal na sentença matriz a que está associada. Por exemplo, o DP1 sujeito da sentença em (2)
2. [ [O livro]DP1 [ que João leu ___ ]SRel ]DP2 discute a tipologia de sentenças relativas.
consiste de um determinante (o), de um núcleo nominal (livro) e de uma sentença que modifica o núcleo nominal (que João leu ___ ), introduzida por um relativizador (que). Observa-se que, na SRel, o objeto do verbo ler não está realizado, estando sua posição marcada por ___, significando uma lacuna. O núcleo nominal livro é entendido como objeto de comprar; todo o DP que contém o núcleo nominal livro é sujeito do predicado discutir. Assim, o núcleo nominal parece estar associado a duas funções gramaticais. O fato de a SRel ter um antecedente realizado identifica-a como relativa 5
Doravante, K&C.
211
com cabeça; o de ter uma lacuna na posição relativizada, como relativa padrão, ou relativa com lacuna (cf. também seção 2). Esta seção parte da classificação e da definição ampla dos tipos de sentenças relativas (restritivas, não-restritivas e relativas livres) e apresenta uma descrição das suas ocorrências no corpus das atas. Também apresenta construções-QU aparentadas, como as de focalização (seção 1.3).
1.1. SENTENÇAS RELATIVAS RESTRITIVAS E NÃO-RESTRITIVAS As relativas com cabeça se caracterizam como relativas restritivas e relativas não-restritivas (ou explicativas, ou apositivas). O contraste entre elas pode ser ilustrado com os exemplos em (3):
3.
a. A professora está procurando [ o menino [SRel que fugiu da sala de aula ontem]] b. A professora está procurando [Pedrinho, [SRel que fugiu da sala de aula ontem]]
Na relativa restritiva em (3a), a SRel restringe a classe de menino que a professora está procurando, referindo-se somente àquele que fugiu da sala de aula ontem. Assim, a referência específica do DP o menino é determinada pelo modificador clausal. Em (3b), a relativa não-restritiva serve como um comentário à parte, separado do núcleo nominal Pedrinho, com entonação adequada, marcada na escrita por vírgula. O referente do núcleo nominal já é conhecido ou pode ser identificado, independentemente da SRel. Desse modo, a relativa não-restritiva simplesmente apresenta informação adicional sobre o núcleo nominal. Esses dois tipos são realizados nas atas, com uma distribuição favorecendo, em termos numéricos, o uso da relativa restritiva, como pode ser observado a partir da Tabela 3 abaixo:
212
Tabela 3: Tipos de sentença relativa6 TIPOS DE SENTENÇA RELATIVA FUNÇÃO – QU SUJEITO OBJETO DIRETO OBLÍQUO LOCALIZAÇÃO FÍSICA LOCALIZAÇÃO NOCIONAL COMPLEMENTO NOMINAL GENITIVO TOTAL
RESTRITIVA
NÃO-RESTRITIVA
18 08 --04 02 03 35
13 01-03 -01 -18
Exemplos de relativa restritiva e de relativa não-restritiva são apresentados em (4) e em (5), respectivamente:
4.
a. as émendas dos novos Estatu tos que nos hade Reger pos ta pella Comi cão (MSR em 15 de janeiro de 1835. É esse autor quem escreve o nome de MVS). b. e dos Irmão que pederem asua dimisaõ por Cauza do Compemen-to do Artigo aSima de Clarado (MC em 2 de maio de 1841).
5.
a para adecizaõ do nossó Irmaõ Manoel da Paixaõ que por huma Carta semandou Sedespedir (JFO em 27 de novembro de 1842). b. Como os primeiro fundadores que Instalaraõ esta Devocaõ (MSR em 23 de fevereiro de 1834).
A Tabela 3 também mostra que diferentes funções sintáticas podem ser relativizadas. Discutimos esse tópico na seção 2.2. Observamos, ainda, que, quando ocorrem duas relativas encadeadas, a ordem de realização é a observada no PB e nas línguas em geral:
6.
a. se ade a-pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos [que nos hade Reger] [pos ta pella Comi cão] (MSR em 15 de janeiro de 1835). b. etratemos a Rever o debito [que Se devia a Caza] [ó qual mandou oVis Provedor Cartiar-sé aos ditos] para Virem Remirem naprimeira Reuniaõ (José Fernandes do Ó em 05 de junho de 1836)7
Sobre relativa livre e relativa reduzida, cf. a seguir. Lemos a sentença com a forma verbal cartiar-se como: X mandou informar Y a Z. Outra possibilidade seria: X mandou informar sobre Y a Z, um tipo de alternância de regência, que poderia levar a analisar
6 7
213
No exemplo em (6a), a opção foi a de realizar a segunda relativa, que modifica o nome emendas, na forma reduzida; a primeira, modificadora de estatutos, pelo uso do relativo que; nos dois casos, as relativas são restritivas. No exemplo em (6b), observa-se a relativa restritiva seguida da relativa não-restritiva, ordem esperada.
1.1.1. RELATIVAS REDUZIDAS As relativas podem ser realizadas com formas nominais de gerúndio ou de particípio, as chamadas relativas reduzidas, como em:
7.
a. O homem comendo é o palestrante = O homem que está comendo é o palestrante b. O homem sentado na poltrona é o palestrante = O homem que está sentado na poltrona é o palestrante
Há 16 ocorrências de relativas reduzidas no corpus, com valores restritivos e explicativos. Alguns exemplos estão apresentados abaixo:
8.
a. o Progetto- Emprenço Ferindo o milin dre da Sociedade damesma Devocaõ (MSR em 23 de fevereiro de 1834). b. na meza extraordinaria marcada para a noite do dia 8 de Outubro: (LTG em 04 de outubro de 1835). c. seraõ acom-panhadas com Cincoenta Toxas assezas para o lugar destinado sepultura, (LTG em 28 de outubro de 1833) d. Fica em meo poder hum Coffre feixado com três chaves Axando-se huã em maõ do Juiz Manoel Victo, outra na do Escrivaõ Luiz Teixeira Gomes outra na do Procurador Geral Joze do Nacimento (Embora assinado pelo Vigário Joaquim José de Santana, é LTG quem escreve essedocumento em 16 de setembro de 1832.)
a relativa introduzida pelo PR o qual como uma relativa cortadora. No item 2.1.1., argumentamos que não há casos claros de relativa cortadora nas atas.
214
1.2. RELATIVAS LIVRES As relativas livres se caracterizam pela ausência de um antecedente explícito para a referência do constituinte relativo, sendo, por isso, também denominadas relativas sem cabeça. Assim, as relativas livres são necessariamente introduzidas por um pronome relativo (PR), nunca por um complementador nulo, nem por um relativizador do tipo that do inglês ou que do francês. Exemplos típicos de relativa livre no PB contemporâneo são como em (9) abaixo:
9.
a. Onde João estava foi na minha casa b. Quem comprou o livro foi João c. O que eu comprei foi este livro
As relativas livres totalizam 23% dos dados em estudo:
10. a. em Concideraçaõ do que sereprezentou Contra o- Irmaõ Ex Escrivam Luiz Teixeira Gomes. (MSR em 23 de fevereiro de 1834). b. por bem feito o que amesma Meza determinar (MSR em 15 de janeiro de 1835). c. fica adiado aremataçaõ do novo Coffre aquem preferi por menos fazer (LTG em 04 de outubro de 1835) d. por ser quem fes areforma / asignou, (LTG em 21 de abril de 1833) e. para aonde for aprovado, (16 de setembro de 1832 por LTG) f. Para estar aonde existe o Coffre do Senhor dos Mar- / tirios sahio com honzepretas, e vinte huma / branca (LTG em 16 de setembro de 1832)
Em resumo, os 104 dados computados se distribuem em:
(i) 34% são realizações de relativas restritivas finitas; (ii) 17.3%, de relativas não-restritivas finitas; (iii) 15.3%, de relativas reduzidas; (iv) 19%, de relativas livres.
215
Os 14.4% de dados restantes ocorrem em construções aparentadas, como será discutido na seção a seguir.
1.3. OUTRAS CONSTRUÇÕES-QU NAS ATAS Um dos dados computados se caracteriza como contexto de possível realização de relativa temporal, se apresentando com a forma que + gerúndio, no exemplo a seguir:
11. A Comicaõ Premanente Pros testa des o dia da Reuniaõ 2 de Majo de 1841 Sobre o Altigo 38 e 39 que Aparicendo deste dia por diente areprezentacaõ daComm- icaõ (MC em 2 de maio de 1841)8
e equivalendo a quando apareceu a representação da comissão. O que nos leva a esta análise se relaciona com outros usos no corpus de que + gerúndio em relação a tempo:
12. qualquer Irmaõ que estando em Meza fica responsalbelizado por qualquer .... (LTG em 16 de novembro de 1832)
ou seja, qualquer irmão, quando estiver em Mesa, ....
Há ainda catorze ocorrências de aparentes sentenças relativas, realizadas nas conclusões das atas: 13. a. Eu que esta subscrevi (MSR em 05 de julho de 1835) b. Como Sacretário que este sobre es crevi e Fica aguiado para a 1a. Reuniaõ dous Requerimento donosso Irmão Fiscal (MSR em 02 de agosto de 1835) c. e eu Escrivaõ que escrivi (LTG em 16 de setembro de 1832)
Mary Kato (c.p.) sugere que o exemplo em (11) pode ser analisado como um caso de relativa apositiva, que apresenta, como uma de suas características, a permissão de uma leitura adverbial.
8
216
Todas podem ser analisadas como casos de construções clivadas, sem a realização do verbo copulativo, como é comum no PB (cf. eu que fiz a ata; eu é que fiz a ata). Por fim, há cinco outras construções que não foram computadas, mas que merecem alguma referência:
14. a. tratemos dos Recebimentos dos Mencais ejuntamente das Asi - natura do termos que tinha ficado adiado para esta Reuniaõ; Cujas Continua por faltar ainda Asignatura de Algúns Irmoins (JFO em 05 de junho de 1836). b. prestou-se por meio de escortino adiliberaçaõ aque Esta[r]emos adita Mezá para adecizaõ do nossó Irmaõ Manoel da Paixaõ que por huma Carta semandou Sedespedir quando aMezá onaõ quizessé estar pella Sua opiniaõ, Cujo, aucto praticamos por Escortino (JFO em 27 de novembro de 1842) c. Em vertude desta fiança do Coffre na Caza do Senhor Reverendo Padre Vigário Joaquim Jozé deSanta Anna, por nos todos Irmãos congrátulados para ficar por estes dias té nova delibera çaõ da Meza Adminis tradora da Ca<i>xa Coffre, que ficou nadita Caza e na responsabelidade do mesmo Illustríssimo e Reverendo Senhor Padre (LTG em 16 de setembro de 1832)
Analisamos as formas de cujo e de que dessas construções como um uso demonstrativo: estas, este, isto, respectivamente9.
2. SENTENÇAS RELATIVAS E RESTRIÇÕES UNIVERSAIS K&C (1977; 1979a/b), com base nos resultados de análise de um número amplo de línguas (em torno de 50), de diferentes famílias lingüísticas, concluem que as quatro estratégias mais comuns de relativização, de maior uso nas línguas estudadas, são: (a) a estratégia da lacuna; (b) a do pronome lembrete; (c) a estratégia do pronome relativo; (d) e a estratégia do complementador (cf. exemplos apresentados em (1) acima).
No PE, as relativas com cujo estão restritas à escrita e à fala formais (cf. ARIM et alii, 2004). Cf. Jesus (2002), que aponta para a quase ausência de cujo na escrita formal do século XIX, no Brasil.
9
217
Os autores também observam que não há variação aleatória em relação à função sintática do elemento relativizado na SRel. A hierarquia proposta segue a seguinte cadeia (K&C, 1977, p. 66):
15. Hierarquia da Acessibilidade (Accessibility Hierarchy; doravante HA)
SU > OD > OI > OBL > GEN > Objeto de Comparação10
A HA de funções relativizadas em (15) reflete o fato de que algumas posições são mais acessíveis à relativização do que outras, ou seja, posições à esquerda da HA são mais fáceis de relativizar do que as posições à direita. A generalização derivada da HA é que, se uma língua pode construir SRel de uma dada posição da HA, então pode também construir relativas de todas as outras posições a sua esquerda. Assim, se uma língua pode relativizar objetos, também pode relativizar sujeito; qualquer língua que possa relativizar genitivos também pode relativizar oblíquos e as demais funções à esquerda. Com base na HA, também definem restrições universais para a formação de SRel. Das predições feitas por K&C (1977, 1979b), as seguintes são relevantes para este trabalho:
16. a. Nenhuma língua pode construir relativas somente de objetos ou somente de locativos, mas é possível uma língua construir relativas somente de sujeito (este é o Subject Relative Universal11 (K&C, 1979b, p. 652). b. Uma língua deve ter uma estratégia primária (primary strategy) de formar SRel; grosso modo, qualquer uma das estratégias referidas acima pode ser a estratégia primária12. c. A estratégia primária pode deixar de ser realizada em qualquer ponto da HA; assim, estratégias que se aplicam a um ponto da HA podem não se aplicar a qualquer 10 K&C (1977, p. 74) apresentam o seguinte exemplo de relativa de objeto de comparação: The man who Mary is taller than. Para Kato (1981, p. 2), a relativa de objeto de comparação é possível em PB com a estratégia do pronome lembrete: ?O homem que meu pai tem mais força que ele. 11 Assim, todas as línguas podem relativizar sujeito, caso a língua permita relativização, pois uma língua pode não ter desenvolvido qualquer estratégia de relativização. 12 As estratégias estudadas por K&C (1977) consideram, sobretudo, a posição da relativa em relação ao núcleo nominal que modifica (pré-nominal, pós-nominal ou interna), se a forma do PR é morfologicamente marcada para caso, se há retomada pronominal (obrigatória ou opcional) na relativa, dentre outras questões.
218
posição à direita. Conseqüentemente, se a estratégia primária, em uma dada língua, pode ser aplicada a uma posição baixa, então pode também ser aplicada a todas as posições mais altas da HA.
As subseções a seguir analisam as estratégias de relativização nas atas (subseção 2.1) e a hierarquia das funções relativizadas (subseção 2.2), tendo como ponto central de discussão as restrições universais de K&C. Portanto, tem-se como objetivo principal estabelecer comparações entre as possibilidades presentes em línguas humanas, apontadas acima, e os usos atestados no corpus em estudo.
2.1. ESTRATÉGIAS DE RELATIVIZAÇÃO Qual é a estratégia primária de construção de sentença relativa no PB e no PE? Um dos critérios usados por K&C (1977), para identificar a estratégia primária, é o de observar se o elemento nominal na sentença relativa permite expressar, claramente, qual posição sintática está sendo relativizada. No caso de relativas de sujeito e de objeto, como em13
17. a. A moça que João ama. b. A moça que ama João.
não há qualquer alteração na morfologia do morfema que da relativa que indique sua função sintática. Segundo Brito (1991), no PE, o morfema que das relativas de funções não preposicionadas (sujeito e objeto) é um complementador14. Proposta semelhante já tinha sido defendida por Tarallo (1993), para o PB15. Esta seria, portanto, a estratégia primária para estas duas funções. Para as funções preposicionadas, duas estratégias são possíveis: a) o uso de relativas cortadoras indica que a estratégia do complementador também pode ser
Exemplos traduzidos dos apresentados em K&C (1977, p. 64). Cf. Kato 1993, para uma análise do relativizador que como PR. 15 Cf. também Ribeiro (no prelo), que analisa dados do português rural afro-descendente e conclui que a estratégia do complementador é usada para todas as funções das relativas com cabeça; os PR se realizam nas relativas livres, um tipo de estrutura em que o complementador está excluído. 13 14
219
aplicada para estas funções. Consideramos, assim, que a estratégia primária pode ser aplicada a todas as posições da HA (cf. (16c)); b) o uso das relativas pied piping (atestados, sobretudo, na escrita formal, raramente na fala) é evidência da estratégia com o PR. Assim, dois tipos de morfemas estariam disponíveis para as relativas com lacuna: o complementador que ou um PR. Resta saber quais estratégias são evidenciadas no corpus em estudo.
2.1.1 RELATIVA PIED PIPING X CORTADORA NAS ATAS
Já comentamos acima que a relativa pied piping é um tipo de relativa com lacuna, específica das posições preposicionadas. Como já observado na introdução, no PB, a relativa pied piping se opõe em relação à cortadora (exemplos em (18a-b)):
18. a. A moça com quem conversei ontem (pied piping) b. A moça que eu conversei ontem (cortadora)
Quer dizer, como ilustrado na Tabela 1, adaptada do estudo de Tarallo (1993), diacronicamente, à proporção que a estratégia pied piping decresce, aumenta o uso da estratégia cortadora. Como os informantes das atas se situam entre os dois últimos períodos da pesquisa de Tarallo, a expectativa inicial deste estudo, por se tratar de informantes com pequeno nível de letramento, era a de que haveria pouco uso da relativa pied piping. Como veremos a seguir, os dados não confirmaram tal predição, pois, exceto em uma ocorrência, as preposições requeridas se realizam, como nos seguintes exemplos:
19. a. Comforme mandou o socios Adimins tradores que sefizesse estes Termo em que asig namoz (MSR em 07 de janeiro de 1835). b. Para estar aonde existe o Coffre do Senhor dos Mar-tirios sahio com honzepretas, e vinte huma branca (LTG em 16 de setembro de 1832). c. para aonde for aprovado (LTG em 16 de setembro de 1832) d. finalizaraõ o seos trabalho para o que famos nomi- ados, (GMB em 29 de dezembro de 1834)
220
e. e Continuouse os trabalhos de que de liberou para primeira Reuniaõ se dis cutir hu Esclarecimento emViada pello 1o. Fiscal ejuntamente o Capítulo 4o the o Artigo 22 (MSR em 05 de julho de 1835. f. Comparecerem em h hum estraordinario para o Comprimento dos desvalido em que esta mos em Caregado (JFO em 13 de novembro de 1836) g. adiliberaçaõ aque Esta[r]emos adita Mezá (JFO em 27 de novembro de 1842) h. Emprestar adita quantia ao Thezoureiro de que faltar sobre a Finta dos 500 reis (MSR em 13 de setembro de 1835) i. Ficando aespera da conta da 4a. Loteria que ficou responsavel o ex The zoureiro Manoel daConceiçaõ (LTG em 04 de outubro de 1835)
Os dezessete casos de relativas preposicionadas se distribuem como abaixo especificado:
(a) quatro são realizadas com em que locativos, como ilustrado em (19a), talvez resultantes de fórmula fixa de conclusão de ata; (b) cinco se realizam com a forma (a)onde, conforme exemplos em (19b/c). O exemplo em (19c) acima indica que a variação entre onde e aonde deve ser vista como uma questão de variação no nível lexical, e não como um caso de oscilação de uso da preposição a, já que aonde está antecedido da preposição para; (c)
na única relativa livre de função preposicionada não-locativa (cf. seção a seguir), a preposição está realizada (19d);
(d) três casos foram analisados como estratégias de relativizar genitivos, estando um deles em (19e); (e) dos três casos codificados como CN com realização da preposição, observamos o uso da forma preposicionada em que (19f) e a que (19g), embora no primeiro caso a preposição usual no PB contemporâneo seja de (encarregado de algo). O outro caso, em (19h), poderia levar a uma leitura de relativa com foco no sujeito = a quantia que faltar; não optamos por essa análise devido ao fato de o contexto levar a entender faltar como necessitar agentivo = emprestar a quantia de que o tesoureiro necessita para completar os 500 reis16; (f)
há um caso de CN sem preposição (19i), construção para a qual a norma prescritiva recomenda a realização de pela qual ou por que; portanto, é uma relativa cortadora.
16 Nesta leitura, a construção poderia ser um exemplo de relativa com foco no OBL: emprestar a quantia de que o tesoureiro necessite para completar os 500 réis.
221
Na seção a seguir, discutimos algumas questões relacionadas com aquisição de relativa pied piping, com o objetivo de mostrar ser essa uma estratégia de difícil aquisição, que se revela mais consistente na escrita do que na fala. Teceremos, então, algumas considerações sobre aquisição e os dados dos informantes acima descritos.
2.1.2 AQUISIÇÃO DE RELATIVA PIED PIPING
Guasti & Cardinaletti (2003) observam, nos três grupos de crianças adquirindo francês e italiano como L1, a ausência de relativas pied piping até os 10 anos de idade. Segundo as autoras, a estratégia vernacular de relativas, a com pronome lembrete, é a mais usada na fala coloquial dos adultos (com ou sem escolarização)17; portanto, é a estratégia selecionada inicialmente pelas crianças. Os resultados dessa pesquisa, no que importa à estratégia de relativização de funções preposicionadas, estão listados a seguir:
a.
nas relativas de OI, o pronome relativo (à qui, a cui) só é usado, embora raramente, por crianças mais velhas; tais relativas são mais freqüentemente introduzidas pelo complementador (que, che) ou, no caso do francês, pelo pronome relativo où, além de geralmente incluírem um pronome lembrete (86% nos dados do italiano e 31% no caso do francês)18;
b.
nas relativas de locativo, há variação entre os pronomes où, dove e os complementadores que, che, com maior uso dos primeiros (94% e 60.2%, respectivamente). Mesmo com a realização dos pronomes où, dove, um pronome lembrete é realizado após as preposições dessous, dentro, em 34% e 56% dos casos, respectivamente. Em alguns casos, a preposição usada não é adequada;
c.
são bem poucas as ocorrências de relativas de genitivo, sendo em geral introduzidas pelo complementador, também com uso da estratégia lembrete, ou transformadas em relativas de sujeito. Em francês, o pronome où aparece neste tipo de relativa, seguido do possessivo (le garçon où son chariot roule) (o menino cujo carrinho rola);
17 Berruto (1980) estuda o italiano falado em Emília e encontra a estratégia lembrete distribuída como: (a) 30% de OD; b) 79% de OI e de GEN; c) 53% de locativas (apud GUASTI & CARDINALETTI, 2003). 18 As variações percentuais se devem às diferenças nas idades das crianças dos dois grupos.
222
d.
relativas não-locativas introduzidas por où representam 18% dos dados do francês; em 50% delas, há um pronome lembrete19.
Concluem as autoras que a estratégia pied piping está mais restrita à fala formal e à escrita, caracterizando-se como um artefato prescritivo, que emerge como resultado de ensino explícito, durante a escolarização. Quanto à aquisição de relativas do PB como L1, os resultados alcançados por Perroni (2001) apontam que os elementos-QU exercem a função das duas posições mais altas na HA, sujeito e objeto; essas posições não preposicionadas representam quase 100% do total das ocorrências. Afirma ainda que, no processo de aquisição, “as relativas ‘difíceis’ são obviamente aquelas de sintagma preposicionado” (p.15). As questões sobre aquisição são pertinentes para concluirmos que: (i) se entendemos difíceis como tardias no processo de aquisição, a afirmação de Perroni (2001) aponta para o fato de que os falantes representados nas atas já se encontravam num estágio mais adiantado de aquisição das relativas, já que usam estratégias de relativização nas posições mais baixas da hierarquia, como mostrado na Tabela 3 deste trabalho, embora sejam poucos os dados totais atestados; (ii) nenhum dos fatos apontados acima é típico dos informantes em estudo, permitindo dizer que a sintaxe das relativas é diferente das estratégias observadas em outras situações lingüísticas. Quer dizer, os estudos de aquisição de L1, relatados acima, mostram que a estratégia pied piping surge com a escolarização, que há oscilação na escolha da preposição antes desse período, que funções não preposicionadas podem ser realizadas com preposições etc. Como não consideramos que os fatos relatados sobre as relativas preposicionadas devam ser reflexos de os informantes estarem em estágio inicial de aquisição da gramática20 do português, passamos ao segundo ponto, mais fundamental para a análise. Estudos sobre aquisição de sentenças relativas em L2 mostram que (cf. GASS, 1983; GRASS & ARD, 1984; ROMAINE, 1988):
19 20
Este uso não é observado nos dados do italiano. O que exclui questões de escrita.
223
i.
todos os informantes realizam relativas lembretes das funções mais baixas da hierarquia, independentemente da L1 de cada um;
ii.
em momentos de oscilação, quando os aprendizes se desviam da estrutura pretendida, é sempre em relação a uma função de uma posição mais baixa que passa a uma função mais acessível na hierarquia, um tipo de promoção (K&C, 1977);
Tudo isto indica que a aquisição de estruturas relativas passa por estágios muito semelhantes, quer em aquisição de L1, quer em L2. É evidente que os africanos aprenderam português como L2. Contudo, não podemos esperar diferenças substanciais no resultado dessa aprendizagem, no que diz respeito ao objeto sintático em estudo, pois o processo de aquisição de relativa de L2 passa, grosso modo, pelos mesmos estágios de aquisição de L1. Como terceiro ponto de discussão, retomamos a questão da mudança lingüística do PB em relação ao PE21, retratada na Tabela 1, que aponta para uma perda da estratégia pied piping no PB, atestada por Tarallo em documentos dos séculos XVIII e XIX. Contudo, a distribuição da estratégia de relativização com preposição nos textos dos africanos não fornece evidências positivas para esta mudança em curso. Embora tradicionalmente se considere que as relativas cortadoras apontam para mudanças na gramática do PB, estudos atuais da variação no PE mostram que, também lá, as relativas cortadoras estão presentes no registro culto e vernacular. Alexandre (2000) e Arim et alii (2004), em corpora do PE22, apresentam os seguintes exemplos de relativa, dentre outros23:
20. a. Isso é um atributo que as pessoas, prontos, gostam. (Dinheiro Vivo, RTP2) (ARIM et alii, exemplo (9)) b. As massas associativas têm que efectivamente valorizarem aquilo que gostam. [Os Donos da Bola, SIC] (ARIM et alii, exemplo (10)) 21 Cf. Ribeiro (1998, 2001) para uma discussão sobre características sintáticas do PB culto e vernacular e mudanças sintáticas em relação ao PE. 22 Arim et alii (2004) trabalham com dados de textos veiculados nos meios de comunicação social de Portugal. Alexandre (2000), com dados do “Corpus de Referência do Português Contemporâneo – oral” (CRPC), com dados recolhidos a partir de programas televisivos (de notícias ou de debates) e de conversas informais com os mais variados interlocutores. 23 Destaques em negrito foram por nós acrescentados.
224
c. Ideias é aquilo que toda a gente fala. [Jogo Falado, RTP2] (ARIM et alii, exemplo (11)) d. Não fixei o nome da pessoa que tu falaste. [Conversas Secretas, SIC] (ARIM et alii, exemplo (12)) e. A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares. [Noticiário, RDP] (ARIM et alii, exemplo (14)) f. São passos no sentido daquilo que se chama mais união política. [Noticiário, RDP] (ARIM et alii, exemplo (16)) g. ... saber informações mas tive pouca sorte porque um dos moços que eu escrevi, a carta não lhe chegou à mão. (ALEXANDRE, 2000, Anexo II, 1. (11)) h. Custou-me ouvir da boca do Octávio um insulto que eu não contava. (ALEXANDRE, 2000, Anexo II, 2. (4)) i. Desculpem interromper, mas nós temos aqui uma pessoa que já tentámos falar hoje à tarde. (ALEXANDRE, 2000, Anexo II, 2. (5)) j. ... mas por exemplo há uma revista que eu agora não tou certo do nome, que estudou o, os tabacos em si ... (ALEXANDRE, 2000, Anexo II, 1. (224)) k. A rapariga de que eu gosto faz-me rir. (ARIM et alii, exemplo (17))
21. a. O aumento de queixas, na polícia, nomeadamente na polícia judiciária que é a realidade de que eu conheço melhor prende-se também um pouco com isso. [Programa Maria Elisa, RTP1] (ARIM et alii; exemplo (42)) b. Eu gostaria de colocar uma pergunta ao doutor Gilberto Madaíl, de quem admiro muito, que era... [Livre e Directo, RDP] (ARIM et alii; exemplo (43)) c. É um investimento em que nós estamos muito satisfeitos por ter feito. [Dinheiro Vivo, RTP2] (ARIM et alii; exemplo (44)) d. Pedofilia, um tema de que, como dizia o professor Rosado Fernandes na primeira parte deste programa, está na moda há alguns anos a esta parte. [Programa Maria Elisa, RTP1] (ARIM et alii; exemplo (46))
Os autores encontraram ocorrências de relativas de funções preposicionadas sem a realização da preposição, como em (20a-j). Em relação à construção em (20k), dizem que já começam a ser sentidas como estranhas e pouco naturais por muitos falantes (p. 5). Também há casos de preposições indevidas (exemplos em (21)), mesmo quando a relativa realiza foco no sujeito (exemplo em (21d)). Uma vez que esses informantes são falantes nativos do PE e já ultrapassaram o estágio de aquisição, os fatos do PE podem encontrar uma explicação do ponto de 225
vista da mudança lingüística, significando que a gramática do PE também está deixando de licenciar relativas pied piping como estratégia vernacular24, ampliando a estratégia de uso de um complementador para as posições preposicionadas. A época de escrita das atas (1832-1842) é posterior ao terceiro período considerado por Tarallo (1993), período em que o ambiente lingüístico oferecia dados inconsistentes em relação às relativas de funções preposicionadas, desde que 59% eram cortadoras e 35.4%, pied piping. Não podendo estabelecer uma relação direta entre dados de escrita e fala, podemos, no entanto, imaginar que os dados de fala poderiam / deveriam apresentar um uso mais amplo das estratégias que hoje configuram a realidade lingüística brasileira, favorecendo a estratégia cortadora. Os dados dos informantes das atas, por outro lado, apontam para a preferência pela pied piping na escrita, indicando um conhecimento do valor formal / social de tais construções.
2.1.2. RELATIVA COM PRONOME LEMBRETE Guasti & Cardinaletti (2003) afirmam que as relativas lembretes são as primeiras estratégias de relativização, para todas as posições abaixo do sujeito25, em crianças aprendendo francês e italiano como L1 (de 4.5 a 10.0 anos de idade). Concluem as autoras que o uso de pronome relativo para essas funções resulta de uma aprendizagem posterior (até mesmo de ensino explícito). Também na fala coloquial adulta, a estratégia com pronome lembrete é freqüente, quer em italiano, quer em francês. Romaine (1988) encontra 15 ocorrências de relativas com pronome lembrete em dados de crianças aprendendo inglês, sendo 12 delas em estrutura de relativa de sujeito. No que diz respeito à fala de adultos, o estudo realizado por Suñer (1998) mostra que a relativa com pronome lembrete é uma estratégia presente em diversas línguas, se apresentando em variação com a estratégia com lacuna: o espanhol e o iídiche realizam a estratégia com pronome lembrete para todas as funções; irlandês, Ficando seu uso restrito ao discurso formal, planejado. Embora as relativas com lembrete de objeto sejam raras. Em francês, o objeto direto aparece introduzido por où, caso em que o pronome lembrete ocorre em 62% dos casos. 24 25
226
hebraico e palestino só recusam a estratégia lembrete para a função de sujeito; galês é a língua mais restritiva, só aceitando o pronome lembrete para as funções de oblíquo e genitivo. A Tabela 4 a seguir ilustra essas informações:
Tabela 4: Perspectiva trans-lingüística de relativas com pronome lembrete (adaptada de Suñer, 1998, p. 349)26 Espanhol Iídiche Irlandês Galês Hebraico Palestino SU ø / Pron. ø / Pron. ø ø ø ø OD Pron. ø / Pron. ø / Pron. ø / Pron. ø ø / Pron. OBL
ø / Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
GEN
ø / Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
Pron.
Nenhum caso de relativa com pronome lembrete foi atestado nas atas27. Chama a atenção a falta de lembrete por ser esta uma estratégia bastante atestada nos dados de aquisição de L1 de diferentes línguas. Já comentamos acima que, diacronicamente, esta sempre foi uma opção marginal no português28.
2.1.3. CONCLUSÕES PARCIAIS Os resultados observados na variação das estratégias de relativização no PE são bem relevantes para as questões colocadas neste texto, pois a discussão dos resultados do PB, tout court, pode levar a entendê-los como derivados de aquisição irregular do português (aquisição em situação de contato) por um número significativo de africanos e seus descendentes. Em dialetos rurais do PE rural, segundo Varejão (2006), as três estratégias são atestadas, com a seguinte distribuição:
26 ø = lacuna na posição sintática vinculada ao pronome relativo; Pron. = realização do pronome lembrete. 27 Exceto, talvez, se considerar o pronome possessivo da relativa de genitivo que será apresentada em (32a) como um pronome lembrete. 28 Cf., dentre outros, Tarallo (1993), Corrêa (1998), Perroni (2001), Bagno (2001), Burgos (2003) e Ribeiro (no prelo).
227
Tabela 5: Cortadoras e copiadoras, conforme a função sintática no português europeu popular (Tabela X, de Varejão (2006, p. 137)) CORTADORAS COPIADORAS Sujeito Objeto direto Adjunto adverbial Complemento relativo Objeto indireto Complemento nominal Adjunto adnominal (genitivo) TOTAL
----58 (77%) 14 (19%) 1 (1%) 2 (3%) 0 (0%) 75 (100%)
4 (14%) 7 (25%) 6 (21%) 1 (4%) 2 (8%) 4 (14%) 4 (14%) 28 (100%)
Alguns exemplos são como os seguintes:
22. a. Parece que isto que é talvez o dote com que nasce as pessoas (Cabeço de Vide 65) (exemplo (164) de VAREJÃO, 2006) b. Isto é os raios com que eles agarram (Câmara de Lobos 26) (exemplo (166) de VAREJÃO, 2006) c. Tenho um bocado aqui em baixo, que dei onze contos por ele (Perafita 41) (exemplo (106) de VAREJÃO, 2006) d. O cambao e aquela parte que esta essas pecas todas ligadas a ele (Monsanto 8) (exemplo (109) de VAREJÃO, 2006) e. Tinha uma argolazinha que amarrava-se o cordel (Camara de Lobos/Canical 31) (exemplo (161) de VAREJÃO, 2006)
A variação observada na fala rural européia também é atestada em outros registros de fala do PE. Com os exemplos em (20), já ilustramos casos de relativas cortadoras no PE culto. Também neste registro são atestados os usos de relativas lembrete, para diversas posições sintáticas, como os seguintes (dados de ALEXANDRE, 2000):
23. a. A opinião pública teve acesso a um conjunto de informaçõesi [[SU que], numa situação normal, elasi não seriam conhecidas]. (ex., Anexo I, 2. (4)) b. Eles são dois jogadoresi [[OD que] eu osi vejo partir com tristeza]. (ex., Anexo I, 2.) c. Olha o tipoi [[OI que] eu lhei emprestei o meu carro]. (ex., Anexo I, 2. (20)) d. Isso era afinal o que havia no tempo daquele senhori [[OBL que] dizem tanto mal delei]. (ex., Anexo I, 2. (29)) e. Sei de um caminhoi [[OBL que] o pai passou por lái da outra vez]. (ex., Anexo I, 2. (26))
228
f. Há técnicos muito bonsi [[GEN que] as pessoas não sabem o nome delesi]. (ex., Anexo I, 2. (44))
Contudo, esta não é a estratégia mais em uso no PE, como os resultados quantitativos apresentados na Tabela 6 mostram:
Tabela 6: Estratégias de relativização no PE (ARIM et alii, 2004) Tipo de relativa Casos atestados % Relativas canônicas 189 71% Relativas cortadoras 74 28% Relativas resumptivas 2 1% Total 265 100%
Embora Arim et alii (2004) só registrem 2 casos de relativas lembrete, Alexandre (2000) computa, no total, 112 ocorrências, assim distribuídas: (i) 22 casos de sujeito; (ii) 27 de objeto direto; (iii) 9 de objeto indireto; (iv) 48 de oblíquos; (v) 6 de genitivos. Em resumo, embora as estratégias cortadoras e lembrete tenham, durante muito tempo, sido consideradas um divisor de gramáticas entre o PB e o PE, os estudos acima relatados, sobre os processos de relativização no PE, têm apontado para a existência, também lá, das estratégias cortadora e lembrete, quer nos meios de comunicação social (ALEXANDRE, 2000; ARIM et alii, 2004)29, quer no dialeto rural (VAREJÃO, 2006)30. Isto mostra que a variação no uso das diferentes estratégias não é marcada socialmente, no sentido de que só falantes com baixa escolarização realizam as estratégias estigmatizadas pelos gramáticos normativos. Os dados dos africanos não refletem questões relacionadas à aquisição do PB em situação de contato, desde que as duas estratégias não se restringem ao PB.
Arim et alii (2004) trabalham com dados de textos veiculados nos meios de comunicação social de Portugal. Alexandre (2000), com dados do “Corpus de Referência do Português Contemporâneo – oral” (CRPC), com dados recolhidos a partir de programas televisivos (de notícias ou de debates) e de conversas informais com os mais variados interlocutores. 30 Corpus Dialectal com Anotação Sintática - CORDIAL-SIN, coordenado por Ana Maria Martins. 29
229
2.2. FOCO E ENCAIXAMENTO Esta seção se centra nas questões relacionadas com: (i) a função sintática da posição relativizada (foco); (ii) o tipo de relativizador que foi empregado para a função; e (iii) a função sintática do constituinte a que se vincula a relativa (encaixamento).
2.2.1. FUNÇÃO SINTÁTICA DO PRONOME RELATIVO NA AMOSTRA DE FALA ANALISADA Os números da Tabela 7, a seguir, mostram que os tipos de pronomes relativos mais usados no PB estão presentes no corpus:
Tabela 7: Tipos de pronome relativo X função sintática do pronome relativo31 TIPOS-QU
QUEM P+QUEM32 QUE P+QUE O QUE P+O QUE ONDE P+ONDE O QUAL TOTAL
FUNÇÃO DO PRONOME RELATIVO SU 02 01 28 --06 03 ----03 43
OD ----07 --04 ------01 13
OBL ----01 01 01 ----01 --04
CN ----01 03 ----------04
LOC N ------04 ----------04
LOC F ------------02 04 --06
TOTAL 02 01 37 08 11 03 02 05 04 73
Os pronomes relativos exercem majoritariamente as funções de sujeito (43 casos) e de objeto (13 casos). As demais funções estão presentes, mas com pequeno número de ocorrências, talvez devido ao número de dados coletados. As 53 atas estudadas são curtas, apresentando um número de sentenças bastante reduzido. Além disso, em qualquer situação discursiva, o número de sintagmas nominais exercendo as funções de sujeito e de objeto é sempre maior do que os em outras funções (K&C, 1977).
31 Não estão incluídos na tabela os números de dados das reduzidas, pois são sempre reduzidas de sujeito. As ocorrências de objeto de preposição e de genitivo estão incluídas nos OBL(íquos). 32 Cf. seção 2.4, para os casos de P+QUEM / P+O QUE, codificados como sujeito em relativas livres.
230
Quando hierarquizamos o número total de sentenças relativas produzidas nas atas, vemos que as predições de K&C (1977, 1979) se confirmam parcialmente (cf (15)):
24. SUJEITO > OBJETO > LOCATIVO > C-NOMINAL > GEN ~ OBL
A cadeia mais relevante da HA, a nosso ver, é a de apresentar como estratégia mais usual a relativização das funções não preposicionadas (SU e OD), depois as de funções preposicionadas, e isto é o que se observa nos dados das atas. Assim, o pressuposto de que as relativas de posições mais baixas na HA são psicologicamente mais difíceis de processamento (SLOBIN, 1982, 1986) se reflete nos resultados numéricos dos nossos dados. Acreditamos que a alteração da ordem das funções preposicionadas se deva ao número total de dados coletados, não permitindo fazer afirmações consistentes que contradigam a HA. Das 73 ocorrências apontadas na Tabela 7, 43 são de foco no sujeito. O uso predominante de relativas com foco no sujeito se correlaciona com o recurso de passivização (17 são construções passivas, sendo 11 de passivas com se), construção de promoção do objeto para a função de sujeito33, como nos seguintes exemplos:
25. a. participado aes Crever atodo qual quer hum Irmão que Seacha atrazado (JFO em 01 de novembro de 1835) b. Reuniaõ ejuntamente oprojecto que seaprezentou em Meza epor esta Com forme (JFO em 05 de junho de 1836) c. de Nossa Senhora da Solidade dos devalidos onde Seacha Colocada (JFO em 02 de outubro de 1836) d. pará Comprimento do Termo Antecedente oque estava digó que ficou marcadó o Artigo quarenta e Nové ao que Sedeu Comprimento (JFO em 13 de novembro de 1836)
33 A estratégia de promoção de constituintes para a posição de sujeito, como é o caso da passiva, é observada em muitas outras línguas, como, por exemplo, em muitas das línguas malaio-polinésias (K&C, 1977). Um exemplo típico é a língua falada em Madagascar, que tem a ordem básica VOXS e um sistema bastante desenvolvido de promoção de qualquer constituinte para a posição de sujeito (K&C, 1977, p. 69-70). Contudo, os autores ressaltam que as promoções ocorrem mais em línguas em que o sistema de promoção é bem desenvolvido. Este é o caso do PB, como sabemos.
231
e. commonico aVossas Merces para vir des cutir o nosso Compromisso em algum dos Capítulo e § que seofferecer abem da nossa confraria (LTG. Não é datado, porém se situa entre 24 de março e 21 de abril de 1833)
Observamos que os exemplos em (29) não poderiam receber uma interpretação de indeterminação de sujeito; mesmo para o exemplo em (29b), descartamos a indeterminação de sujeito pois só os membros da irmandade poderiam apresentar projetos à Mesa Diretora. É relevante observar a distribuição entre os usos de onde e em que, o primeiro sempre indicando localização física (exemplo em 30a/b); o segundo, localização nocional (exemplo em 30c/d).
26. a. Nossa Senhora da Solidade dos devalidos onde Seacha Colocada (JFO em 02 de outubro de 1836)34. b. Para estar aonde existe o Coffre do Senhor dos Mar-tirios sahio com honzepretas, e vinte huma branca (LTG em 16 de setembro de 1832). c. Comforme mandou o socios Adimins tradores que sefizesse estes Termo em que asig namoz (MSR em 07 de janeiro de 1835). d. epara constar mandou oprovedor Lavra estes termo em que nos acinamos (JFO em 02 de outubro de 1836).
Todos os quatro casos de em que com função locativa são como os dois apresentados em (30c/d), talvez indicando um uso formular de conclusão de ata, como já comentado na seção anterior. São apresentados a seguir exemplos das funções de SU, OD, CN e OBL do pronome relativo:
27. a. SU:
quando elle aprezen tar a Ca da hu dos Irmão folhe tos enpreço que Contenhaõ
os Artigo e §§ que ofereceu em firmeza de que (MSR em 23 de julho de 1834).
A variação entre onde ~ aonde já é observada na história do português, desde o período clássico, como ilustram Cunha & Cintra (1985, p. 343-2), com os seguintes exemplos: (i) Vela ao entrares no porto / Aonde o gigante está! (Fagundes Varela, VA, 76.) (ii) Não perceberam ainda onde quero chegar. (Alves Redol, BC, 47.)
34
232
b. OD:
Visto negar o despaxo que a Commicaõ emViov emNome da De-uocaõ (MC
em 2 de maio de 1841). c. CN:
Comparecerem em hhum estraordinario para o Comprimento dos desvalido
em que estamos em Caregado (JFO em 13 de novembro de 1836)35. d. OBL:
Comisçaõ Reonida, finalizaraõ o seos trabalho para o que famos nomi-ados,
(GMB em 29 de dezembro de 1834).
Os três casos codificados como OBL, que permitem uma leitura de genitivo (f. Tabela 3), são:
28. a. Primeiro, qualquer Irmaõ seja quem for que por sua cauza uzurpar qualquer alfaia da Confraria <sendo justificado> fica notado por la-draõ e extinto para nunca mais servir e menos ser valido pela Caixa ou interrado (LTG em 16 de novembro de 1832) b. epropos o Juiz que sedevia Organizar hua Loteria de mil Belhetes empresso a 32º cada hum, e para esse fim apareceraõ planos aonde se aprovou oprezente que foi impremido (LTG em 04 de agosto de 1833). c. Continuouse os trabalhos de que de liberou para primeira Reuniaõ se dis cutir hu Esclarecimento emViada pello 1o. Fiscal ejuntamente o Capítulo 4o the o Artigo 22 (MSR em 05 de julho de 1835.
O exemplo em (32a) permite a seguinte leitura: qualquer irmão, por culpa de quem / por cuja culpa for usurpada qualquer alfaia da confraria... O uso do possessivo no sintagma preposicional (por sua causa) está subjacente a esta leitura36. Lemos o exemplo em (32b) como: ... apareceram planos dos quais se aprovou o presente (plano), com um uso de aonde partitivo. Analisamos o exemplo em (32c) como um caso de esquiva na construção de relativa genitiva, entendendo a construção como: continuou-se os trabalhos, cuja deliberação foi para na primeira reunião se discutir um esclarecimento enviado pelo primeiro fiscal e o Capítulo 4º. até o Artigo 22.
Todos os casos de complemento de predicados de mini-orações foram analisados como de CN. Outra leitura seria possível, se o nome ‘causa’ significar ‘necessidade’, sendo assim uma relativa de sujeito: qualquer irmão que por necessidade própria usurpar qualquer alfaia da confraria... (OLIVEIRA, c.p.) 35 36
233
2.2.2. ENCAIXAMENTO DA RELATIVA A estratégia mais freqüente é a de SRel encaixada em constituinte nominal que exerce a função de objeto de verbo (23 dados) ou de preposição (23 dados, computando todas as posições de complemento de preposição), o que permite o encaixamento na posição mais à direita do constituinte, facilitando o seu processamento (SLOBIN, 1986); o encaixamento na função de sujeito é o menor (7 dados). Computando cada freqüência separadamente, a seguinte cadeia de encaixamento se apresenta37:
Tabela 8. Número de sentenças relativas em relação ao encaixamento38 SUJEITO OBJETO OBLIQUO C-NOMINAL LOCATIVO 07 23 12 08 03
Exemplos são apresentados em (34), destacando, em negrito, o constituinte nominal da sentença raiz.
29. a. SU:
foi oferecido pello Escrivam a tual da meza Manuel Victor Serra hu progetto
oqual será inda des Coti-do (MSR em 23 de julho de 1834). b. OD: folhe tos enpreço que Contenhaõ os Artigo e §§ que ofereceu em firmeza de que e foi sencionado (MSR em 23 de julho de 1834) c. OB: a Missa he selebrada pelo Padre que adisser logo as Oito horas imperte rivelmente (LTG em 16 de novembro de 1832) d. CN: epozemos em execuçaõ os trato dos devitos que ficou em Exzecuçaõ (JFO em 10 de julho de 1836) e. LOC: Rozario de Santo Antônio a onde estamos conjuntos (LTG em 16 de setembro de 1832)
37 Não estão incluídos os vinte casos de relativas livres, nem os casos de sentenças reduzidas. Em oblíquo estão computados os casos de encaixamento nas funções de GEN, de complementos verbais OBL e de OI. 38 Não estão incluídos os vinte casos de relativas livres. Em oblíquo estão computados os casos de encaixamento nas funções de GEN, de OBL e de OI.
234
Dos sete casos de encaixamento no sujeito, seis se realizam em construções inacusativas (verbos inacusativos e passivas), como no exemplo em (34a) acima e (35) abaixo:
30. só apareceo a conta da 5a. Loteria que reprezentou Oito centos e setenta enove bilhetes, (LTG em 04 de outubro de 1835)
Nos dois casos, o sujeito paciente é realizado em posição pós-verbal, o que pode ser considerado como recurso de encaixamento à direita, facilitador do processamento da construção (SLOBIN, 1982, 1986)39. Parece haver uma tendência nas línguas humanas a realizar mais o encaixamento na posição de objeto do que na de sujeito. Os resultados de Romaine (1988) sobre aquisição de relativas por falantes de inglês em fase escolar (Edinburgh), como L1, mostram que as crianças realizam relativas com 71% de encaixamento no objeto, contra 29% no sujeito. Assim, as diferenças em relação às estratégias de encaixamento, observadas nos dados de escrita destes africanos, não divergem do que é observado na aquisição convencional de L1. 2.4. DISTRIBUIÇÃO DOS PRONOMES RELATIVOS PELOS TIPOS DE SENTENÇA Na Tabela 9 abaixo, apresentamos os resultados quantitativos das ocorrências dos pronomes relativos segundo o tipo de sentença relativa:
39 Mary Kato (c.p.) chama a atenção para o fato de que, com os verbos intransitivos, o encaixamento deve ser central. Contudo, nos dados, não há casos de relativas encaixadas em verbos essencialmente intransitivos. No geral, as relativas ocorrem em estruturas de passivas (sintéticas e analíticas), de usos de verbos suporte (dar, tomar) e de auxiliares propriamente ditos (ser, ficar).
235
Tabela 9: Tipo de sentença relativa X tipo de pronome relativo TIPOS – QU
QUEM P+QUEM QUE P+QUE O QUE P+O QUE O/A QUAL ONDE P+ONDE TOTAL
TIPOS DE SENTENÇA RELATIVA RESTRITIVA
NÃO-RESTRITIVA
R-LIVRE
TOTAL
----26 08 --------01 35
----11 ------04 02 01 18
02 01
02 01 37 08 11 03 04 02 05 73
11 03
03 20
Como acontece no português, brasileiro e europeu, os pronomes relativos usualmente empregados em relativas livres são os mesmos atestados na escrita das atas: quem, o que, onde, precedidos ou não de preposição40. Observa-se que o pronome o que é o mais freqüente neste tipo de relativa, como também se atesta em outras línguas (DEN DIKKEN, 2001).
31. a. por ser quem fes areforma asignou, (LTG em 21 de abril de 1833) b. Para estar aonde existe o Coffre do Senhor dos Mar-tirios sahio com honzepretas, e vinte huma branca (LTG em 16 de setembro de 1832) c. dara por bem feito o que amesma Meza determinar para que emtempo algum naó Re clame que naõ foi ouvido (MSR em 15 de janeiro de 1835)
Há um caso de P+quem, sendo que o pronome exerce a função de sujeito:
32. Fica adi ado aremataçaõ do novo Coffre aquem preferi por menos fazer (LTG em 04 de outubro de 1835)
A relativa permite a leitura fica adiada a arrematação do cofre a uma pessoa que prefira fazer o cofre por menor preço, uma possibilidade presente no português. Outros casos de relativa preposicionada, marcados na Tabela 7 acima como realizando a função de sujeito, são como: 40
Em relação ao português europeu, cf. Brito (1991).
236
33. a. Aos deis dia domes de Julho es tando o Provedor emais mezarios Reunido em meza lemos otermo em midiato do que ficou adiado (JFO em 10 de julho de 1836). b. O Prezidente da Junta de Liberou o seguinte- em Concideraçaõ do que sereprezentou Contra o- Irmaõ Ex Escrivam Luiz Teixeira Gomes o Progetto- Emprenço ... (MSR em 23 de fevereiro de 1834).
Os exemplos em (39a-b) foram computados como casos de relativas livres, sendo a preposição requerida pelo termo da sentença raiz: lemos o termo de+o+que ficou adiado; em consideração de+o+que se representou. O antecedente do marcador de relativa é o demonstrativo neutro o. As formas o qual e variantes flexionais só aparecem como relativas nãorestritivas, o que se observa em geral no português:
34. a. foi oferecido pello Escrivam a tual da meza Manuel Victor Serra hu progetto oqual será inda des Coti-do (MSR em 23 de julho de 1834) b. para esse consentimento em combio-se o Procurador Geral Deffinidor Joze do Nacimento o qual comprio com aformalidade exegida (LTG em 04 de agosto de 1833)
CONCLUSÃO Como se pôde ver ao longo das seções, apesar do pequeno número de dados, as
estratégias
de
relativização
no
corpus
analisado
não
se
distanciam
significativamente das usadas nas línguas em geral e no português falado atualmente. Sintetizamos abaixo o que foi observado no corpus:
a) Todas as posições podem ser relativizadas. b) A relativa com lacuna e PR é a estratégia primária; não há casos de relativa lembrete, exceto no que se refere ao exemplo de genitivo em (32a). c) As relativas preposicionadas predominam. d) Uso de relativas restritivas e não-restritivas, com formas verbais com tempo ou reduzidas. e) A preferência pela relativização de posições não preposicionadas, sujeito e objeto. 237
f) Predominância de encaixamento em posições que permitam a ramificação da relativa à direita, favorecendo o processamento. g) A presença dos marcadores de sentenças relativas, antecedidos ou não de preposição: que, o que, o/a qual e quem. Não há ocorrência do pronome cujo como relativo, ausência muito freqüente também no PB e no PE falado contemporâneos. h) As estratégias de relativização pied-piping e cortadora podem estar presentes ou ausentes nas línguas, independentemente do contexto sócio-histórico em que a língua é adquirida. i) As estratégias de aquisição de relativas são muito semelhantes, quer em relação a L1, quer em relação a L2. j) As estratégias realizadas nas atas e no PB não divergem das observadas no PE, exceto, talvez, em termos quantitativos. REFERÊNCIAS ALEXANDRE, Nélia Maria Pedro. (2000). A estratégia resumptiva em relativas restritivas do português europeu. Dissertação de Mestrado. Universidade de Lisboa, Lisboa. ARIM, Eva; RAMILO, Maria Celeste; FREITAS, Tiago. (2004). Estratégias de relativização nos meios de comunicação social portugueses. ILTEC. Disponível em: www.iltec.pt/pdf/wpapers/2005-redip-relativas.pdf. Acesso em: Agosto de 2006. BAGNO, Marcos. (2001). Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola. BRITO, Ana Maria Barros de. (1991). A sintaxe das orações relativas em português. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica. BURGOS, Luís Eduardo S. de. (2003). Estratégias de uso das relativas em uma comunidade de fala afro-brasileira. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador. COHEN, Maria Antonieta. (1986) Syntactic change in Portuguese: relative clauses and the position of the adjective in the Noun Phrase. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, Campinas. COMRIE, Bernard; KEENAN, Edward L. (1979). Noun phrase accessibility revisited. Language, v. 55, n. 3, p. 649-664. CORRÊA, Vilma Reche. (1998). Oração relativa: o que se fala e o que se aprende no português do Brasil. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
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240
ARTICULAÇÃO DE ORAÇÕES E EMPREGO DE CONECTORES INTERFRÁSTICOS Therezinha BARRETO (UFBA – PROHPOR)
INTRODUÇÃO Este trabalho tece comentários sobre os processos sintáticos de articulação de orações e sobre o emprego de conectores interfrásticos, em documentos editados por Oliveira (2006), na sua Tese de Doutoramento, defendida na Universidade Federal da Bahia: são 45 atas, também designadas de termos, 2 ofícios e 3 comunicados, escritos no período de 1832 e 1842 por seis africanos alforriados, que, como membros da Sociedade Protetora dos Desvalidos de Salvador (doravante, Sociedade ou SPD), exerciam a função de secretários ou escrivães. Segundo Oliveira (2006), os negros fundadores da referida Sociedade eram muçulmanos e, para efetuarem a leitura do Alcorão, exigência que a própria religião lhes impunha, deveriam saber ler e escrever na língua árabe. Como afirma o autor, os fundadores da irmandade parecem ter incentivado a alfabetização dos seus membros, porém não há uma pista que se possa considerar fidedigna a respeito de como se processou a aquisição da escrita portuguesa pelos africanos pertencentes à SPD. Tomando por base o cline of clause-combining constructions1, proposto por Hopper e Traugott (1993, p. 170) para os processos sintáticos de junção de orações: a parataxe, que se caracteriza, segundo os autores, pela presença de dois ou mais núcleos expressos em um único contorno entonacional; a hipotaxe, que difere da parataxe, por apresentar apenas um núcleo e uma ou mais margens, isto é, claúsulas relativamente dependentes, que não têm existência isolada, e a subordinação ou encaixamento, em que a cláusula-margem é um constituinte da cláusula-núcleo, pode-se afirmar estarem presentes nos documentos analisados os três tipos de processos sintáticos.
1
Continuum de construções de combinação de cláusulas
241
Do ponto de vista discursivo, esses três processos apresentam um grau crescente de conexão. Levando-se em consideração a distribuição dos traços dependência e encaixamento, tem-se: Parataxe - dependente + encaixada
Hipotaxe >
+ dependente
Subordinação >
- encaixada
+ dependente + encaixada
As estruturas paratáticas podem-se apresentar justapostas ou coordenadas. As justapostas se caracterizam pela ausência de um elemento conector, enquanto as coordenadas apresentam, formalmente, um conectivo. As estruturas hipotáticas incluem as orações relativas apositivas e as adverbiais da gramática tradicional. As estruturas subordinadas abrangem as cláusulas completivas e as relativas restritivas. Essas cláusulas funcionam como argumento externo ou argumento interno de uma outra oração, a matriz, ou como modificadores de um nome dessa oração. Nesse continuum, as sentenças variam de um ponto em que o grau de vinculação entre as cláusulas é tênue até outro em que o grau de vinculação é bastante coeso. Harris & Campbell (1995) discutem os processos de junção de orações e questionam a unidirecionalidade da mudança, com base na hipótese de que uma língua se desenvolve de estruturas simples e desconexas para estruturas complexas, mais elaboradas. Os autores apresentam duas razões para a crença de que a hipotaxe é derivada da parataxe. A primeira se refere ao fato de ser a parataxe mais comum nos primeiros estágios de uma língua escrita; a segunda baseia-se no fato de serem os conectores, muitas vezes, derivados de pronomes interrogativos. Também Votre (2004, p. 12) formula a hipótese de que:
as línguas, na sua primeira fase, eram eminentemente paratáticas, com predomínio de justaposição de cláusulas; pressões de uso levaram, certos pares de cláusulas justapostas a uma hipotaxe, fazendo com que certas relações inferenciais se estabilizassem, passando
242
a ser interpretadas de forma homogênea pelos membros de uma comunidade de fala; e, por fim, à subordinação propriamente dita, primeiramente com orações desenvolvidas e, depois, com orações reduzidas.
Com base nas idéias expostas pelos autores acima referidos, pôde-se constatar, após a análise dos documentos, que os africanos, secretários e escrivães da SPD, já dominavam os três processos de articulação de sentenças, não estando em uma fase tão inicial de aprendizagem da língua, na qual, por certo, a parataxe seria o processo mais utilizado. Nos documentos, a parataxe é expressa através de orações coordenadas aditivas e explicativas, com os conectores e e pois, respectivamente.
1) O conector aditivo e ocorre ligando sintagmas e sentenças coordenadas:
(1) ... estando em meza o Visprovedor emais mezarioz... (MSR, doc. 09, l. 02-3) (2) ... lemos o termo Antecedente do que ficou adiado sobre as Conta do Ex Tesoureiro Daniel Correia e aXemos com forme ficando, a Revista em tomar o Conhecimento...
2) Ocorre também ligando sentenças que diferem do ponto de vista formal, transgredindo, desse modo, o princípio do paralelismo sintático, segundo o qual, sendo a coordenação um processo de encadeamento de valores sintáticos idênticos, quaisquer elementos coordenados entre si devem apresentar idêntica estrutura gramatical. É o que se verifica no trecho:
(3) ...O Prezidente da Junta de Liberou o seguinte – em Concideração do que sereprezentou contra o Irmão Ex Escrivan Luiz Teixeira Gomes o Progetto – Emprenço Ferindo o milin dre da Sociedade damesma Devoção e que autorizou a Junta afacultar a Meza... (MSR, doc. 01, l. 07-12)
3) Aparece como seqüenciador discursivo introduzindo o termo de encerramento das atas:
(4) ... e por estamoz com forme mandou a meza Administradora que este sefizesse... (MSR, doc. 04, l. 0810)
243
(5) ... epor esta comforme – Asignamoz (MSR, doc. 11, l. 11-12)
Os números que indicam as datas no termo de abertura desses documentos, algumas vezes, são ligados pela conjunção e; outras vezes, porém, aparecem justapostos:
(6) Aos vinte hum dia do mez de Abril de 1833... (LTG, doc. 10, l.01-2) (7) Aos vinte nove dias do meis de Dezembro do anno de mil e outo sento e trinta e quatro (GMB, doc. 02, l.01-3) (8) Aos dezoito dia do mez de Outubro de mil eoito centos etrinta ecinco... (JFO, doc. 01, l.012)
Nota-se, contudo, uma certa uniformidade: o conector não aparece entre os dois números que indicam o dia, e pode ou não estar presente, ligando os dois primeiros números que indicam o ano, entretanto está sempre presente entre os dois últimos, em todos os documentos analisados:
(9) ... do anno de mil outo sen tro e trinta e quartro... (GMB, doc. 01, l. 02-03) (10) ... do anno de mil e outo sento e trinta e quatro (GMB, doc. 01, l. 02-03) (11) ... deMil eoito Centos etrinta eCinco... (JFO, doc. 01, l. 01-02)
Quanto ao conector explicativo pois, ocorre uma única vez:
(12) ... e com estes poderes pode tudo pagar, e cobrar: pois por elle ficamos responsável... (LTG, l. 06-08)
A forma porém aparece em um dos ofícios ainda com o valor semântico de origem ‘por isso’:
(13) ... para vir descutir o nosso Compromisso em algum dos Capitulo e § que seofferecer abem da nossa confraria sendo porem em Junta imperterivelmente no dia 21 de Abril... (LTG, doc. 09, l. 06-10)
244
A hipotaxe se manifesta através de orações subordinadas adjetivas restritivas e adverbiais desenvolvidas ou reduzidas. Essas últimas, isto é, as adverbiais, denominadas por Dik (1980) de satélites, são orações que contribuem para constituir o fundo, isto é, a moldura na organização discursiva. Analisando os documentos, verificou-se ser bastante freqüente o emprego de orações subordinadas reduzidas, quer do infinitivo, quer do gerúndio, fato determinado, possivelmente, pelo gênero a que se filiam os textos: documentos formais, atas e ofícios, em que são empregadas fórmulas pré-determinadas para o início e fim do texto e cujo conteúdo, no caso da ata, se limita a relatar, exclusiva e resumidamente, fatos e decisões de uma assembléia, sessão ou reunião para um determinado fim, e, no caso dos ofícios e comunicados, a comunicar ou esclarecer fatos, efetuar convites ou agradecer favores recebidos. As atas iniciam-se por uma fórmula fixa, que indica o dia, o mês e o ano em que uma certa reunião ou assembléia se realizou: é o que constitui o seu termo de abertura, após o qual ocorrem, normalmente, formas nominais de gerúndio ou particípio, em orações que se referem à presença ou ausência de pessoas pertencentes ao grupo que, naquele momento, realiza a reunião:
(14) ... haxando-se Reonido na Caza da Meza de Nossa Senhora do Rozario dos quinze mistério... (GMB, doc 01, l. 04-5)
Só então, após a indicação do dia, do ano e das pessoas presentes à reunião, é iniciado, propriamente, o conteúdo do documento, no qual aparecem os conectores interfrásticos.
(15) ... estando o Provedor emais Mezario desta devóção... (JFO, doc. 02, l. 02-3) (16) ... a Comisção Reonida, finalizarão o seos trabalho (GMB, doc. 02, l. 03-4)
Orações reduzidas do infinitivo, causais ou finais, fazem parte também do termo de encerramento desses documentos, os quais apresentam as seguintes estruturas: 245
(17) ... epor estar Com formé Esta sobré Escrevi etc (JFO, doc. 1, l. 07-08) (18) ... epor estar Com forme paçou-se es te termo para Constar os feito desta Reuniaõ... (JFO, doc. 04, l. 09-11) (19) ... e para Constar mandou o Prezidente e mais Membro da Junta que este fezes se e asig ase... (MSR, doc. 01, l. 15-6) (20) ... por esta bem me Asinei (MVS, doc. 05, l. 09)
Orações adverbiais reduzidas podem também ocorrer no corpo do texto das atas, mas, nas atas analisadas, predominam as orações adverbiais desenvolvidas que, de acordo com o contexto, expressam relações de: •
Tempo
(21) ... para exercer de Thezoureiro té que em o dia daposse dezesseis do corrente; e com estes poderes pode tudo pagar, e cobrar ... (LTG, doc. 01, l. 05-07) (22) ... por uma Carta semandou sedespedir quando aMezá o naõ quizessé estar pella sua oipiniaõ... (JFO, doc. 13, l. 06-07) (23) ... e Seguir-se os afazeres, adiado do nosso Irmaõ Marco José do Rozario logo que este Comprimento de mais necessidade secompri... (JFO, doc. 13, l. 13-15)
•
Causa
(24) ... pois por elle ficamos responsavel pois que assinamos na Bahia 10 de Setem[br]o de 1832 como Escrevi... (LTG, doc. 01, l. 07-09)
•
Comparação
(25) ... Lanca-se o Termo como Ley os que ficaraõ aprovado assim como aver Loterias... (LTG, doc. 10, l. 15-16)
•
Concessão
(26) ... enão terá lugar a reclamar civicias, visto de mostrar falta como quando suspeito, muito embora naõ séja Irmaõ... (LTG, doc. 09, l. 14-17)
Na oração acima, o advérbio muito intensifica o item conjuncional
246
(27) Primeiro, que nos dias dezeceis sendo que caia em dias de servisso cabe aver missa no Domingo e mediato (LTG, doc. 06, l. 06-08)
•
Finalidade
(28) ... epara que conste passou oprezidente Bahia Escreve como Secretario de Junta... (MSR, doc. 02, l. 07-09)
•
Condição
(29) ... e determi nou-se que não pode ra ser Eleito Irmão algum sem que não esteje legar emsuas contas mensaes... (MSR, doc. 11, l. 05-07)
É interessante observar o emprego do item conforme: ocorre, sempre como adjetivo, com o valor semântico de ‘acordado’, isto é, ‘de acordo’:
(30) ... epor estar Com forme mandou o Provedor lavra este, e, eu Subré esCrevi Como Secretario. (JFO, doc. 02, l. 17-8)
Entretanto, é sempre empregado no singular, apresentando a flexão do plural apenas em um documento:
(31) ... epor estarmos conformes esta fez sobscrever... (LTG, doc. 13, l. 06-7)
Também em um único documento aparece com a flexão verbal da 3ª pessoa do plural:
(32) ... epor estar Conformem Asinei Manoel Victo (MVS, doc. 04, l. 08)
O fato de não ter sido empregado como um conector subordinativo parece confirmar que, como foi verificado em pesquisas anteriores (BARRETO, 1999, 2002), só no século XX, conforme, que, já nos séculos XVIII e XIX, seguido da preposição a, funcionava como locução prepositiva, se gramaticaliza como conjunção. A aposição é definida por Meyer (1992, p. 1) como “uma relação gramatical realizada por construções que têm características sintáticas, semânticas e pragmáticas 247
específicas”. Numa abordagem funcionalista, essa oração é considerada como um dos recursos sintáticos utilizados pelo falante para dar relevo ou ênfase ao que acaba de dizer. Por terem um caráter parentético, de acréscimo de informações, essas orações são candidatas ao ‘desgarramento’, ou seja, a serem empregadas como um enunciado independente, como em:
O jovem promoveu o espetáculo para a multidão. O que significa dizer que se tornou o artista da noite.
Esse tipo de emprego desgarrado, característico da língua falada, não foi detectado nos textos, apesar de terem sido encontradas orações classificadas pela GT como orações adjetivas restritivas, funcionando como adjuntos adnominais de apostos oracionais:
(32) ... Salvo onosso ‘Irmao’ Vencido Com Oito Voto de sua parte epor parte dadevoçaõ Quinzé Votos o que ficou em se comonicar por huma carta ao nossó Irmão dito adeliberaçaõ da Meza ... (JFO, doc. 13, l. 08-11) (33) ... tratemos dos Recebimentos dos Mencais ejuntamente das Asinatura do termos que tenha ficado adiado para esta Reunião; (JFO, doc. 04, l. 03-4)
Exemplos de orações adjetivas explicativas ou apositivas, nos textos, são:
(34) ... faltando cénto evinte para prehencher aconta de mil bilhete que heraseo compto, ficando o respectivo Thesoureiro Daniel Coréia na responsabilidade na meza extraordinária... (LTG, doc. 14, l. 07-10) (35) ... faco aprezente e de Claro que hé a meza de 1832 para 1833 — Como os primeiro fundadores que Instalaraõ esta Devoçaõ. (MSR, doc. 02, l. 08-11)
A subordinação abrange sentenças completivas e adjetivas restritivas. As completivas ou substantivas são orações que pertencem à predicação verbal ou nominal. Apresentam-se reduzidas ou desenvolvidas; as desenvolvidas são quase sempre objetivas diretas em que o conector integrante que pode estar lexicalizado ou não: 248
(36) ... epropos o Juiz que sedevia Organizar hũa Loteria de mil Belhetes empresso a 320 cada hum... (LTG, doc. 11, l. 04-06) (37) ... mandou o Provedor que este fizessé etodos as signassé... (JFO, doc. 12, l.07-8) (38) ... e juntamente digo Ficou de nen hum e Effeito o Requerimento do Primeiro Fiscal... (MSR, doc. 13, l.)
Há também:
1)
completivas nominais em que o item preposicional pode estar ou não
lexicalizado: (39) ... ficando serto de que o não podendo comparecer dar por bem, e aceito o que por nos for sancionado, enão terá lugar a reclamar civicias... (LTG, doc. 09, l.12-4) (40) ... me ordena fasa sciente a Vossa Senhoria que nodia 25 do prezente Janeiro do corrente anno se ade apr ezentar... (MSR, doc. 07, l. 04-05)
Entre as orações substantivas reduzidas, encontram-se orações: 1
objetivas diretas (que ocorrem em maior número no corpus):
(41) Protestamos ser constantes no depózito das nossas jóias entradas a qual se acha já em coffre... (LTG, doc. 02, l. 02-03)
2
subjetivas:
(42) ... sahio aprovado ficar omesmo §195 a ceito e não derrogado... (LTG, doc. 10, l. 05-06)
3
circunstanciais:
(43) ... enão se afastando o ditto Thezoureiro de multipllicar mais da Conta que marca aditta quantia por Estar comforme asignamoz... (MSR, doc. 14, l. 10-13)
4
completivas nominais:
(44) ... epor Achamos todos Corformes pretammos nossa Fremeza de o breservar e Faze obrecervar Nesta Valedoza Sidade da Bahia de todos o Santos... (MVS, doc. 03, l. 09-12)
As orações adjetivas restritivas apresentam-se desenvolvidas: 249
(45) ... e para constar mandou o Prezidente que selança-çe este termo [em que nos a signamos] (GMB, doc. 02, l. 06-08) (46) ... e juntamente oprojecto que seaprezentou em Meza... (JFO, doc. 04, l.08-09)
Nas orações adjetivas dos documentos, o relativo que ocorre exercendo as funções de:
SUJEITO:
(47) ... e ficou adiado para a primeira Reunião o Secretário aprezentar hum Termo, sobre os
Irmãos
que não tem pago os seus Mancais... (JFO, doc. 3, l.0307)
OBJETO DIRETO:
(48) ... etratemos a Rever o debito que se devia a Caza... (JFO, doc. 04, l. 06)
COMPLEMENTO NOMINAL:
(49) ... ficou marcado o Artigo quarenta e Nove ao que sedeu comprimento... (JFO, doc. 10, l. 03-04)
ADJUNTO ADVERBIAL:
(50) ... mandou o Prizidente lançar es te termo em que nos Assignamos. (GMB, doc. 01, l. 15-6)
COMPLEMENTO OBLÍQUO
(51) ... finalizaraõ o seos trabalho para o que fomos nomiados... (GMB, doc. 02, l. 04-06)
Na função de sujeito, o que aparece, uma única vez, preposicionado; talvez pelo fato de a oração adjetiva estar afastada do termo ao qual se refere:
(52) ... declaro que nafalta que possão ter sobre as festividade poderá o cofre Emprestar adita quantia ao Thezoureiro de que faltar sobre a Finita dos quinhentos reis... (MSR, doc. 14, l. 08-10)
O relativo o qual ocorre como sujeito ou objeto direto:
(53) ... hu progetto oqual será inda des Cotido... (MSR, doc. 03, l. 06-07)
250
(54) ... etratemos a Rever o debito que se devia a Caza, o qual mandou o Vis provedor cartiarsé aos ditos... (JFO, doc. 04, l. 06-07)
Funciona ainda como um adjunto adnominal com a acepção de ‘esta’, como nos exemplos (55) e (56) abaixo:
(55) ... Criaraõ aSua Comiçaõ de sinco mebro para sancionarem e Descutir os Esta tutos offerecido pello Irmão Fundador Manoel Victor Serra na qual Cumiçaõ Salvo aProvado os Irmãos Seguinte... (MSR, doc. 05, l. 04-8) (56) ... a qual Comicaõ honde sançionarem Cono titulo de Devoção Suciavel ... (MSR, doc. 05, l. 14-15)
O relativo quem não ocorre preposicionado, exercendo sempre a função de sujeito em relativas livres:
(57) O Secretario Luiz Teixeira Gomes não deu voto algum na reforma por ser quem fes areforma... (LTG, doc. 10, l. 23-25) (58) ... e tirando-çe sorte para se caber quem Prezidente e Seçretario, sahirão (GMB, doc. 01, l. 08-09)
O relativo cujo, na forma feminina plural, ocorre com a acepção de ‘nelas’, funcionando como um adjunto adverbial:
(59) ... estando conjuntos o Provedor e mais Mezarios tratemos dos Recebimentos dos Mencais ejuntamente das Asinatura do termos que tenha ficado adiado para esta Reunião; cujas continua por faltar ainda Asignatura de Algúns Irmoins... (JFO, doc. 04, l. 02-06)
Nota-se o emprego das formas: onde, aonde, em que, com a função de complemento circunstancial ou adjunto adverbial:
(60) ... e para esse fim aparecerão planos aonde se aprovou oprezente que foi impremido... (LTG, doc. 11, l. 06-07) (61) ... epor estarmos comforme mandou o sócios Adimins tradores que sefizesse estes Termo em que asig namoz... (MSR, doc. 06, l. 15-17)
251
(62) ... e continuouse os trabalhos de que de liberou para primeira Reunião se dis cutir hu Esclarecimento... (MSR, doc. 10, l. 04-06). (63) ... o outro sem juntamente pedir-se a Irmandade do Rozario onde estamos... (MSR, doc. 12, l. 07-08)
O onde apresenta-se com o valor de locativo nocional, em:
(64) ... no dia Soleno dafestividade de Nossa Senhora da Solidade dos Devalidos onde Seacha Colocada fizemos anova Meza Adminis tradora... (JFO, doc. 08, l. 02-5)
ou de locativo físico, como no exemplo (62), anteriormente citado. em que apresenta sempre o valor nocional, sendo empregado no encerramento das atas, referindo-se a termo ou termos, como no exemplo (65).
(65) ... mandou o Prezidente lançar es te termo em que nos Assignamos (GMB, doc. 01, l.156)
Ocorre também exercendo a função de um complemento oblíquo, em lugar de dos quais:
(66) ... efica adiado para a 4ª// do Corrente pellas Sete Oras datarde Comparecerem em hum estraordinario para o Comprimento dos desvalido em que estamos em Caregado sobre as nossas despoziçoins... (JFO, doc. 02, l. 13-5)
aonde ocorre sempre substituindo o onde e significando ‘lugar em que’, com o valor nocional, como no exemplo (60) citado anteriormente, ou com o valor locativo, como em:
(67) Protestamos ser constantes no depozito das nossas jóias entradas a qual se acha ja no coffre, e a onde deve estar o coffre depozitado... (LTG, doc. 02, l. 02-4) (68) Decidio-se por maior votto das favas oSeguinte Rozario de Santo Antônio a onde estamos conjuntos sahio com dezoito favas pretas e quatorze brancas... (LTG, doc. 02, l. 08-11)
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Em uma única ocorrência aonde parece ter a acepção de ‘lugar a que’ ou ‘lugar para o qual’:
(69) Seguio-se por enquanto para estar nas Cazas Particulares afim de o depois [?] para aonde for aprovado... (LTG, doc. 02, l. 21-2)
CONSIDERAÇÕES FINAIS É interessante observar, nas estruturas relativas, o predomínio da estrutura padrão; o relativo, quando exercendo funções preposicionadas, está sempre precedido da preposição, embora, em alguns casos, a preposição empregada não seja a canônica, isto é, a indicada pela tradição gramatical. Se, por um lado, os documentos apresentam sinais evidentes de um precário domínio da língua portuguesa por parte dos africanos, tais como a não observância da concordância verbal e nominal, a variação na ortografia, na seção das palavras e na pontuação, as impropriedades no emprego dos tempos verbais entre outros, podese afirmar que, por outro lado, demonstram já um certo conhecimento das normas adequadas para a elaboração dos documentos oficiais redigidos. Nota-se, nos vários autores, uma certa habilidade no uso dos vários processos de articulação de sentenças, o emprego de conectores variados, para expressar as diversas relações, e de estruturas relativas canônicas em lugar de estruturas cortadoras ou de estruturas com pronome lembrete, as quais poderiam fazer parte do seu desempenho lingüístico já que devem ter tido uma instrução precária da língua portuguesa. REFERENCIAS BARRETO, Therezinha. (1992). Conjunções: aspectos de sua constituição e funcionamento na história do português. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador. BARRETO, Therezinha. (1999). Gramaticalização das conjunções na história do português. 4 vols. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Salvador. BARRETO, Therezinha. (2004). Esboço de estudo multissistêmico do item conjuncional conforme. In: COSTA, Sônia Bastos Borba; MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. (Orgs.). Do português arcaico ao português brasileiro. Salvador: EDUFBA.
253
BRAGA, Maria Luíza. (2002). Complementos oracionais na função de objeto direto: um caso de gramaticalização. Campinas: Editora da UNICAMP. DIAS, Nilza Barrozo. (2004). Cláusulas apositivas “desgarradas” em português: estatuto sintático-discursivo. Veredas – Revista de Estudos Lingüísticos, Juiz de Fora, v. VIII, n. 1 e n. 2, jan./dez., p. 63-77. GIVÓN, Talmy. (1995). Functionalism and grammar. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company/John Benjamins North America. HERNANDES, Maria Célia Lima. (2004). Estágios da gramaticalização da noção de tempo – processos de combinação de orações. Veredas – Revista de Estudos Lingüísticos, Juiz de Fora, v. VIII, n. 1 e n. 2, jan./dez., p. 183-194. HOPPER, Paul; TRAUGOTT, Elisabeth C. (1993). Gramaticalization. Cambridge: Cambridge University Press. MEYER, Charles F. (1992). Apposition in contemporany english. Cambridge: Cambridge University Press. NOGUEIRA, Márcia Teixeira; LEITÃO, Renata Jorge. (2004). A oração substantiva apositiva: aspectos textual-discursivos. Veredas – Revista de Estudos Lingüísticos, Juiz de Fora, v. VIII, n. 1 e n. 2, jan./dez., p. 137-151. OLIVEIRA, Klebson. (2006). Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica de documentos e estudo lingüístico. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Salvador. VOTRE, Sebastião Josué et alii. (2004). Gramaticalização. Rio de Janeiro: UFRJ.
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CONCORDÂNCIA NOMINAL (CENAS DA VARIAÇÃO EM PALCOS DO SÉCULO XIX) Klebson OLIVEIRA (UFBA – PROHPOR / PRODOC - CAPES) Juliana SOLEDADE (UFBA – PROHPOR) Verônica de Souza SANTOS (PPGLL / UFBA - PROHPOR)
1º. ATO – CENA ÚNICA: ABERTURA Como fez perceber Mattos e Silva (1995, p. 74), coube ao lingüista norteamericano Anthony Julius Naro empreender, no Brasil, a partir da década de 70 do século XX, o que designou de “cruzada sociolingüística”. De fato, o lingüista referido cumpriu com maestria o seu papel de desbravador na implementação da Sociolingüística Quantitativa em centros de pesquisa brasileiros; basta que se leiam os resumos das dissertações e teses, por ele orientadas, apresentados no livro a ele dedicado, intitulado Anthony Julius Naro e a lingüística no Brasil: uma homenagem acadêmica, organizado por Sebastião Votre e Cláudia Roncarati e vindo a público no ano de 2008, para que se vejam os inúmeros fenômenos iluminados pelo seu trabalho, tanto no que diz respeito a fatores lingüísticos, quanto a fatores sociais, confirmando o insight de Paul Teyssier (1997[1982], p. 98), quando propalou “aos quatro cantos do mundo” que as divisões dialetais no Brasil são menos geográficas que socioculturais. Voltando aos fenômenos analisados por Naro ou por seus orientandos, sob a perspectiva da Teoria da Variação e Mudança, na linha laboviana, estão eles espalhados em diversas esferas: no âmbito da fonética/fonologia, da morfossintaxe e da sintaxe. E por falar em morfossintaxe, a variação de número dentro do sintagma nominal (doravante também SN) é aspecto dos mais “bem-resolvidos”, porque dos mais estudados, no conjunto de fenômenos lingüísticos variáveis em terras brasileiras1.
Para uma visão panorâmica dos trabalhos realizados sobre a concordância nominal em variadas regiões do Brasil, remete-se a Naro e Scherre (2007, p.45).
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Acontece, porém, que todos os trabalhos referentes à variação de número na concordância nominal apresentados por Naro e Scherre (2007, p. 45) são unificados por dois aspectos. O primeiro deles se refere aos corpora, todos esteados na linguagem oral, e o segundo tem a ver com o tempo histórico, pois privilegiam o sincrônico contemporâneo2. É exatamente por conta desses dois fios comuns às análises mencionadas que reside, por assim dizer, o ineditismo deste texto: é que não se sabe de estudos envolvendo a variação da concordância no sintagma nominal para sincronias de eras idas, passadas. As atas dos africanos, escritas ao longo do século XIX, vêm como que para suprir esta lacuna, uma vez que licenciam uma análise do fenômeno em questão, com algum aproveitamento do aparato metodológico da Sociolingüística Quantitativa. É esse, portanto, o principal objetivo: analisar a concordância de número dentro do sintagma nominal, tendo como alicerce documentos escritos por africanos na Salvador oitocentista. Mas o objetivo aqui proposto pode ser mais alongado e não é esse um aviso que se dê com rapidez. Sobre a variação da concordância de número no sintagma nominal já se falou que é dos fenômenos mais estudados no Brasil. Desse modo, o aproveitamento do que revelam tais estudos para o presente será irresistivelmente levado para o passado, sobretudo no que toca a grupos de fatores referentes às variáveis de cunho lingüístico, embora, é óbvio, somente comporão a presente análise algumas dessas variáveis, principalmente as mais controversas, por limites de espaço. Subjacente está a idéia, bastante difundida entre os lingüistas que abraçam a teoria laboviana, de que os princípios que regem o presente são os mesmos que operam no passado. Pois bem, colocou-se, com esta afirmação, mais um objetivo do trabalho em questão. Mas a produção sobre o assunto é farta e, inevitavelmente, há que se definirem os operadores bibliográficos com os quais este texto dialogará. A escolha pode ser múltipla, porém se elegeram três trabalhos: o primeiro é o de Scherre (1988), por ser obra-referência no assunto, uma vez que “vira pelo avesso” os mecanismos que regem o fenômeno da variação de número do sintagma nominal no português falado no Rio de Janeiro. Os dois outros trabalhos convocados são o de Lopes (2001) e o de Lembra-se que, atualmente, vários fenômenos lingüísticos, inclusive a variação na concordância nominal, vêm sendo investigados na língua escrita.
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Andrade (2003), e o que motivou essa opção é o fato de terem analisado o falar de comunidades localizadas na Bahia. Ainda como decorrência do espaço destinado ao trabalho, optar-se-á pelo que se convencionou chamar de análise atomística ou, em outra terminologia, mórfica, em que cada elemento flexionável do sintagma nominal é objeto de análise. É sabido que, além de outros aspectos, a variação de número no sintagma nominal está no centro de um debate que se pode resumir no binômio crioulização prévia x deriva natural, em que se movimentam pesquisadores para um ou outro lado. Este trabalho, nem de longe, nem de perto, nem no seu centro, nem na sua periferia, quer intrometer-se neste debate. Desse modo, alerta-se: quando se buscam exemplos da não-aplicação da concordância para o português europeu atual em Naro e Scherre (2007, p. 103-107), esse procedimento em nada se relaciona com a postura dos dois autores quanto às origens do português brasileiro; intenta-se tão-somente mostrar que a ausência da concordância no sintagma nominal dá o “ar da sua graça” no português falado em terras lusitanas.
2º. ATO – CENA 1: A CONCORDÂNCIA NO SN NO PORTUGUÊS BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO No português brasileiro contemporâneo, a concordância de número dentro do sintagma nominal pode-se exibir através de três possibilidades. Casos como os meus tios queridos ou todos aqueles estudantes exemplificam a primeira, que se traduz na inserção da marca de plural em todos os elementos do SN; caracteriza a segunda possibilidade a marcação de plural em alguns elementos, é o que revelam os exemplos acima mencionados, só que da seguinte forma: os meus tio querido e todos aqueles estudante, e flagra-se uma outra possibilidade, a terceira, que se reveste na marcação de plural num único elemento do SN, geralmente o que reside na primeira posição, mas também pode não ser: os meu tio querido, todos aquele estudante. O óbvio está ululante: a marcação de plural no SN é fenômeno variável no português brasileiro e o que diversos trabalhos contam sobre esse fato é que a variação não é aleatória, na medida em que, bem ao modo da Sociolingüística Quantitativa, há fatores lingüísticos e sociais que a regem. Que fatores são esses? 257
Mencionaram-se acima as “conversas” que se farão com três trabalhos que abraçaram, no seu escopo de estudo, a variação de número no SN no português brasileiro e serão eles os reveladores de quais fatores lingüísticos e sociais podem condicionar a variação do fenômeno aqui em análise. Ressalta-se que o presente texto, que tomará o arcabouço, não na sua plenitude, da Sociolingüística como lastro teórico e que, na análise dos documentos, se debruçará quase que exclusivamente sobre variáveis lingüísticas, não visitará, com a mesma intensidade, as variáveis sociais expostas por Scherre (1988), Lopes (2001) e Andrade (2003) como relevantes para a variação de número dentro do SN. Convoca-se, primeiramente, o trabalho de Scherre (1988). Mesmo contando com a existência de estudos precedentes, o trabalho de Scherre (1988), apresentado como tese de doutorado e intitulado Reanálise da concordância nominal em português, parece ter-se tornado, inquestionavelmente, um parâmetro para estudos posteriores que trouxeram para o seu centro o tema da concordância nominal. A autora pautou a sua análise em material lingüístico constituído de uma amostra de dados de fala de 48 indivíduos adultos residentes no município do Rio de Janeiro. Essa base de dados é parte integrante do Projeto Censo, de natureza coletiva, porque em seu seio gravitam diversos pesquisadores e os seus variados temas de investigação. Na elaboração dos grupos de fatores sociais a serem perqueridos, a autora o fez levando em consideração um modelo canônico na Sociolingüística que reparte as variáveis sociais em três categorias clássicas: anos de escolarização, sexo e faixa etária. Incorporou ainda à sua análise dados que passaram a compor uma quarta faixa etária, a de falantes entre 7 a 14 anos. Quanto aos grupos de fatores lingüísticos, que é o que interessa mais de perto a este trabalho, a autora prezou por uma minuciosa análise que dá conta, tanto no plano de uma abordagem atomística ou mórfica, como também sintagmática ou não-mórfica, dos mecanismos que envolvem o favorecimento ou não da concordância no corpus. Indo direto ao alvo, ou seja, partindo para as conclusões de Scherre (1988, p. 277-278) que estampam quais fatores condicionam ou não a variação da concordância no SN na perspectiva mórfica, assevera a autora que, nos seus dados, as seguintes variáveis exercem influência: saliência fônica com as suas dimensões Processos e 258
Tonicidade, relação entre os elementos não nucleares em função do núcleo e posição dos elementos nucleares, marcas precedentes em função da posição, contexto fonético/fonológico seguinte, função resumitiva do SN, formalidade dos substantivos e adjetivos, grau dos substantivos e adjetivos e animacidade dos substantivos. Feitas as análises sobre os dados, a autora pinta um quadro dentro do qual deixa translúcidas as situações em que a concordância ocorre com mais probabilidade: quando há mais saliência fônica na oposição singular/plural, quando os itens nucleares ocupam as primeiras e as terceiras posições do SN, quando os itens não nucleares estão antepostos ao núcleo do SN, quando os itens não são precedidos por qualquer elemento ou quando são precedidos por elementos marcados, quando o contexto seguinte é consonantal, com os traços [+surdo], [+velar] ou [-nasal] ou quando é uma pausa, quando o SN não é de função resumitiva e quando os itens lexicais são formais e são de grau normal e humanos. Basta que se invertam os contextos acima nomeados para que se consiga visualizar uma imagem daqueles que desfavorecem a concordância, ou seja, se há menos saliência fônica na oposição singular/plural, se os itens nucleares ocupam a segunda posição do SN, se itens não nucleares se encontram pospostos ao núcleo do SN, se os itens da terceira posição são precedidos por elementos não marcados formalmente, se o contexto fonológico seguinte é uma vogal ou uma consoante com os traços [+sonoro], [+labial], [+dental] ou [+nasal], se o SN é de função resumitiva e, por fim, se os itens lexicais são informais, diminutivos e não humanos, estar-se-á defronte de contextos inibidores na emergência da marcação de plural. Também apresentado como tese de doutorado é o trabalho de Lopes (2001), que recebeu o título de Concordância nominal, contexto lingüístico e sociedade. Como já foi acima anunciado, mesmo que ligeiramente, o trabalho investiga a variação da concordância de número no sintagma nominal na cidade de Salvador. A análise foi pautada em inquéritos com a fala de indivíduos portadores do que se convencionou chamar de Norma Urbana Culta – NURC –, ou seja, com as amostras de sujeitos plenamente escolarizados, o que quer dizer sujeitos que conseguiram, em sua trajetória de vida, um diploma de curso superior. A autora, na constituição do corpus sobre que fez a sua análise, incluiu amostras de linguagem oral de indivíduos possuidores da designada norma culta em dois intervalos temporais: a década de 70 259
e a de 90 do século XX. Mas não só indivíduos plenamente escolarizados fizeram parte da pesquisa de Lopes (2001). Adicionou ainda amostras de fala de indivíduos circunscritos no âmbito do que chamou de português popular, retiradas do banco de dados rotulado sob a sigla PEPP – Programa de Estudo do Português Popular de Salvador. Diferentemente de Scherre (1988) e Andrade (2003), Lopes (2001) analisou a variação da concordância somente na perspectiva atomística e os seus dados apontaram, quanto às variáveis lingüísticas ou estruturais, para as direções a seguir apresentadas. A quantidade de material fônico que opõe a forma singular à plural interferiu na variação da concordância e essa conclusão pode ser traduzida da seguinte maneira: as oposições mais salientes contribuem em índices maiores para a fixação da concordância, enquanto as oposições menos salientes a desfavorecem. Para o segundo fator relevante no fenômeno em análise, deixar-se-á que a própria Lopes (2001, p. 372) fale sobre ele:
A presença de determinados contextos antecedentes a elementos do sintagma nominal também interfere na concordância em itens subseqüentes. Assim, na segunda posição, é mais provável haver marca de concordância quando não há marca em itens de primeira posição, ou quando há numerais, do que quando há itens marcados. Outro dado também interessante é que, diferentemente do que se poderia imaginar, zero antecedente a elementos de terceira, quarta ou quinta posição provoca mais ausência de marca nesses elementos. E marca de plural, em elementos que estão nessas mesmas posições, leva a mais presença de marca.
Ainda se debruçando sobre o que os dados lhe mostraram, Lopes (2001, p. 372) percebeu que, ao se analisarem conjuntamente classe, posição linear e posição relativa, há uma tendência a serem mais alvo de marcação de plural os constituintes em adjacência ao núcleo, à sua esquerda. Fez notar ainda que os elementos não adjacentes, mas também à esquerda, têm grande probabilidade de serem marcados. Por fim, desfavorecendo a concordância a não mais poder estão os elementos à direita do núcleo e os elementos nucleares em segunda, terceira ou quarta posição. Como última variável estrutural julgada relevante pela autora, estão os elementos do sintagma que têm um contexto posterior de final de enunciação, que 260
recebem mais a marca de plural do que quando seguidos por consoante, vogal ou pausa interna, mostrando-se bastante desfavorecedor na aplicação da concordância o contexto de consoante sonora. No “frigir dos ovos”, quatro variáveis lingüísticas se mostraram mais representativas na variação da concordância de número no SN no estudo de Lopes (2001): a saliência fônica, o contexto antecedente, a classe, associada à posição linear e relativa e o contexto subseqüente ao elemento do sintagma. É hora de observar o que guarda o trabalho de Andrade (2003) a respeito do assunto. A comunidade de Helvécia, localizada no extremo sul da Bahia, ganhou relevância no cenário da Lingüística brasileira por apresentar indícios fortes de uma variedade do português bastante assemelhada às línguas crioulas. É remanescente de uma colônia que abrigou indivíduos de diversas nacionalidades européias e, ainda, muitos escravos – em número bastante superior em relação aos donos –, que por lá permaneceram, mesmo depois da falência das atividades comerciais desenvolvidas naquela localidade. Descoberta, na década de 60, por Carlota Ferreira, em ocasião em que a pesquisadora andava à busca de informantes para compor o Atlas prévio dos falares baianos, vem ganhando, dessa época para cá, estudos lingüísticos em diversos níveis gramaticais. De Andrade (2003) mereceu um estudo sobre a variação da concordância de número no SN, fruto da sua dissertação de mestrado, intitulada Um fragmento da constituição sócio-histórica do português do Brasil: variação na concordância nominal de número em um dialeto afro-brasileiro. No rastro do que fez Scherre (1988), Andrade, acima referida, também analisou a variação de número dentro do SN numa perspectiva atomística ou mórfica e também sintagmática ou não mórfica. Ao lado das variáveis sociais – faixa etária, sexo, escolaridade e estada fora da comunidade –, partiu a autora para a definição de variáveis lingüísticas, no plano mórfico, que poderiam condicionar a variação da concordância no SN na comunidade estudada. Dessa forma, elegeu, a priori, os seguintes fatores: posição linear do constituinte, posição do constituinte com referência ao núcleo do SN, classe gramatical do constituinte, saliência fônica, marcas precedentes ao elemento nominal analisado e tonicidade. As conclusões a que chegou Andrade (2003, p. 119-121) são que, dos diversos grupos de fatores por ela estabelecidos, se sobressai a 261
variável posição do constituinte com referência ao núcleo, e a conseqüência advinda desse grupo de fatores é que a primeira posição do elemento no SN é aquela que mais favorece a fixação da concordância. A saliência fônica também deu o seu quinhão no favorecimento ou não da variação da concordância no dialeto de Helvécia. Embora, explicita a autora, não haja, no dialeto, uma escala muito bem definida, notou-se que os constituintes tidos como mais perceptíveis fonologicamente são passíveis de receberem mais a marca da concordância do que os menos salientes do ponto de vista morfonológico, do tipo casa/casas. O último fator relevante na análise de Andrade (2003, p. 141-142), na abordagem atomística, é marcas precedentes ao elemento nominal analisado, que tem como principal aspecto determinante da marcação de plural a presença de um numeral imediatamente anterior ao constituinte em análise. Pelo que se viu nos três trabalhos resenhados, no que diz respeito ao estabelecimento de variáveis lingüísticas ou estruturais, há o consentimento para a ilação de que os mesmos fatores empregados para a análise de uma amostra podem, nos seus resultados, coincidir ou não com o que se extrai de outros trabalhos, seja na mesma ou em outras regiões3.
2º. ATO – CENA 2: A CONCORDÂNCIA NO SN NO PORTUGUÊS EUROPEU CONTEMPORÂNEO Durante muito tempo, foi alimentada, inclusive por lingüistas portugueses, a idéia de que, no português europeu, a aplicação da concordância, tanto nominal, quanto verbal, se dava de forma categórica. Naro e Scherre (2007, p. 103-107), buscando as origens do português brasileiro, desmontam esse mito e dizem ter a impressão de que a concordância variável pode ser encontrada em todo o território de Portugal. Para não ficar no plano das impressões, os dois autores vão à cata de caminhos que comprovem, de fato, haver alguma variação da concordância no SN no português europeu. Para mais sobre convergências e divergências em grupo de fatores em análise da concordância nominal, ver Andrade (2003, p. 18-43), que faz um excelente “estado da arte”.
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O primeiro caminho diz respeito ao levantamento de doze monografias elaboradas em Portugal, de caráter dialetológico e resultantes de trabalhos finais para a obtenção do grau de Licenciatura em Letras. De caráter descritivo, tais monografias se debruçam sobre o falar de diversas localidades portuguesas, rurais, sobretudo, enfocando aspectos lingüísticos residentes nos mais variados níveis gramaticais. Desse conjunto de doze trabalhos, somente seis dizem alguma coisa sobre a variação de número no SN4 e, para exemplificá-la, apresentam os autores mencionados (2007, p. 104-105) os seguintes dados: 1. Santos Deus. 2. Quando éramos criança. 3. Coma dos meus bolinhos, que foi fritinho só im azeite. 4. Estes todos sou melhor homens. 5. Todas bestidinhas d’iguais. 6. Tenho cinqüenta ê um ano. 7. só tem as raízes enterrado na carne. 8. ...é tud’muito agarrado, uns os ôtros. 9. A cedrêra é munto bom p’ra chás. 10. Calámos a rede, depois de ‘stá calado. 11. Nosso Senhori os faça feliz
A outra vereda investigada por Naro e Scherre (2007, p. 105-106) foi um corpus de pesquisa pessoal da professora-pesquisadora Maria Luísa Segura da Cruz, sobre a linguagem das comunidades de Nave de Haver, Odeleite e Aldeia de Samuel, e dele colheram a seguinte antologia:
4 As seis obras referidas são as seguintes: MOURA, Constaça da Silva Pires. (1960). Faia, aldeia do concelho de Sernacelhe – etnografia, linguagem e folclore. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação para Licenciatura em Filologia Românica. inédito; SILVA PEREIRA, Maria Palmira da. (1951). Fafe - Contribuição para o estudo da linguagem, etnografia e folclore do Concelho. Revista Portuguesa de Filologia. Casa do Castelo: Editora Coimbra. vol. IV; ALVES, Joana Lopes. (1993). A linguagem dos pescadores de Ericeira. Lisboa: Junta Distrital de Lisboa; MIRA, Maria Helena F. da Graça. (1954). Algumas contribuições para um estudo da fonética, morfologia, sintaxe e léxico da linguagem popular de Lisboa. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação em Filologia Românica. inédito; SARAMAGA DELGADO, Maria Carolina. (1970). O falar de Baleizão. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação de Licenciatura de Filologia Românica. inédito; RATINHO, Maria Filipe Mariano. Monte Gordo – estudo etnográfico e lingüístico. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras. Dissertação para Licenciatura em Filologia Românica. inédito.
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Informante do sexo masculino, analfabeto, de 65 anos: 1. E para a gente quando são pequenitos, quando se conhecem que botam os grelos pequenitos e é uma coisa muito boa (...) para comer a gente, para a gente! Quando são nabiças pequena, quando são nabiça(?) (...) É para as vacas, para os burros, para os porcos... para as pessoas estes agora que tenham já as rosas, este já não! Isso só é quando são pequenitos, quando são assim para a gente é que são bons, o mais não senhor. (...) (...) (...) A gente cá semeamos muito pra a gente ter o mantimento para os vivo, para a gente quando é preciso... são machos, são porcos, são cabras, é esta coisa toda, a gente tem que ter tudo...
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Informante do sexo masculino, analfabeto, de 88 anos: 2. (...) Tenho uma neta... que é engenhera... (Ent.: ah, sim?) Esta ta muito bem colocada (...) Ela é engenhera e ele... é engenhero também (...) (...) Engenhero de construção civili... Ela é engenhera... Eles são engenhero de construção civili (...) (...) (...) Tiveram aí, todos. Teve... Teve a mãe, o pai, e os netos. Neta é que não veio. (...) (...) (...) (...) (...) (...) Mas esta nossa praia aqui de Monte Gordo é mais limpa. E... É milhori. E pelo menos os estrangeiros. E nem só os estrangero(?) mesmo os portugueses dizem que esta praia aqui é milhori (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) (...) É tudo pessoal que não é... Aqui é todos... filhos da terra. (...) (...) (...) Há o Chico Simão. Dos que ta lá a fora. Não sei se há mais algum.
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Informante do sexo femenino, analfabeta, de 82 anos: 3. “(...) Isso é nas camisadas. As camisadas é do milho. No meu tempo (...) (...) Aquele
que encontrasse ia dar uma aperto de mão aos otus todo (hes.) ao rancho
Mesmo admitindo que ainda são desconhecidas a verdadeira extensão e a intensidade da variação na concordância em Portugal, sobretudo no português europeu não-padrão de épocas pretéritas, arriscam os autores a seguinte explicação para os casos acima enumerados (2007, p. 106):
Dos 15 casos de ausência de concordância nominal acima apresentados, 14 encontram-se na posição mais à direita, 11 deles à direita do núcleo nominal. Apenas o adjetivo melhor, em melhor homes (Silva Pereira, 1951, p. 161), encontra-se à esquerda do núcleo, contexto que desfavorece a variante zero de plural no português brasileiro. Além disso, 12 elementos apresentam oposição singular/plural menos saliente, do tipo ano/anos, enterrado/enterrados. Dois elementos – o substantivo Deus e o adjetivo feliz – encontram-se no meio da escala da saliência para a concordância nominal: Deus/Deuses e feliz/felizes. A oposição que envolve o adjetivo melhor – melhor/melhores –, apenas um caso, encontra-se
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no nível de saliência mais para o topo da escala... Portanto, apenas o caso de melhor, em melhor homes, apresenta menos chances de receber marca zero de plural no português brasileiro.
Os autores se alongam mais na explicação das estruturas estampadas anteriormente (SCHERRE & NARO, 2007, p. 106-107). Por exemplo, a construção Coma dos meus bolinhos, que foi fritinho só im azeite, que estampa a variante zero, tanto na forma verbal – foi –, quanto na forma nominal em grau diminutivo e ocupando a função sintática de predicativo – fritinho –, exibe o que os autores designam de contexto de variação ÓTIMO, uma vez que o constituinte fritinho se enquadra em um grupo de baixa saliência fônica – fritinho/fritinhos –, se apresenta em grau diminutivo e se localiza mais à direita na estrutura. No mais, ainda no que se refere à estrutura em questão, alertam os autores para o fato de que a forma fritinho é antecedida de outra, só que verbal, apresentando a variante zero. Nesse caso, entra em cena a força do paralelismo lingüístico no eixo sintagmático, que, por sua vez, leva a outro zero plural. Convocam ainda a força do paralelismo lingüístico no nível do sintagma para dar conta da estrutura Todas bestidinhas d’iguais, inesperada variante, porque carrega sobre si a marca explícita de plural no advérbio e isso se atribui ao fato de se localizar depois de dois constituintes – Todas e bestidinhas – que exibem explicitamente a marcação de plural. O contexto em que se apresenta a estrutura ...é tud’muito agarrado, uns os ôtros merece, segundo os autores, acima nomeados, um “bocadinho” de atenção, na medida em que, nessa construção, o elemento tudo marca sua presença e exerce função quase categórica na direção de inibir plurais nos elementos nominais que a ele se sucedem. No final das contas, dão os autores a entender, com a análise efetivada sobre os exemplos anteriormente ofertados, que a variação na concordância não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas é também encontradiço no português lusitano, tendo como idéia adicional, subjacente, que, também para a concordância nominal, as diferenças entre o português americano e o português europeu são uma questão de grau e não de tipo (NARO & SCHERRE, 2007, p. 65).
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2º. ATO – CENA 3: A CONCORDÂNCIA NO SN NO PORTUGUÊS AFRICANO CONTEMPORÂNEO Para logo, avisa-se que só se conseguiram, quanto ao aspecto em análise, informações sobre o português falado em Angola e, para abrir a discussão, colocamse as seguintes palavras de Barros (1998, p. 34):
há fortes semelhanças entre o Português Popular de Angola (PPA), o Português Popular do Brasil (PPB) e os crioulos de base lexical portuguesa, nomeadamente na estruturação silábica; na alternância entre o [l] e o [r]; na concordância nominal e verbal; na redução dos artigos, pronomes relativos, formas verbais e preposições; na utilização duma forma única para a designação de posse e existência.
No devir do seu texto, é intenção constante de Barros (1998, p. 35-44) a tentativa de apresentar o português popular angolano (PPA) como uma variedade lingüística em processo de crioulização e põe em evidência que tal processo provém de uma interferência das línguas da família banto, em que se expressa a maioria da população angolana, sobre o português popular africano. Dito de outra forma, a autora relaciona vários fenômenos presentes nas línguas da família banto que resvalam para o português popular africano e, dentre esses fenômenos, visíveis em diversos níveis gramaticais, localiza-se a variação de número dentro do sintagma nominal. O quadro abaixo tem como função primeira exibir a correlação entre aspectos lingüísticos caracterizadores das línguas da família banto e o seu efeito no português popular africano: AFINIDADES ENTRE AS LÍNGUAS ANGOLANAS DA FAMÍLIA BANTO E O PORTUGUÊS POPULAR DE ANGOLA NÍVEL FONÉTICO Não existem propriamente ditongos, mas certos Monotongação dos ditongos ei > ê e ou > ô agrupamentos de vogais que, pela pronúncia ou Ex: [pe’rera], [‘oru] contracção, dão origem a um som diferente Inexistência do fonema /r/ Alternância entre o [l] e o [r], que funcionam como alofones do mesmo fonema Ex: marvado/malvado Existência de africadas Existência de africadas Estrutura silábica rigorosamente CV Introdução de uma vogal epentética entre duas consoantes Ex: ‘folor’ [fu’lO], ‘ritimo’ [‘ritimu]
266
NÍVEL MORFOLÓGICO Generalização do pronome que como relativo universal, com o desaparecimento de cujo e onde Inexistência de artigos e distinção dos nomes em Regras de concordância variável classes, através de morfemas de natureza prefixal Não ocorrência da marcação redundante do diferentes, que determinam o número e regulam plural no interior do SN a concordância Ex: ‘Os amigos’ [uza>>migu] Ex: sing. – kuria (a comida) Plur. – makuria (as comidas) Formação do infinitivo por um prefixo e um Queda do –r final do infinitivo radical que termina sempre em a Ex: ‘eu quero comê’ Ex: kutanga (ler) Uso limitado de preposições Uso limitado de preposições Inexistência do conjuntivo Inexistência do conjuntivo Inexistência de pronomes relativos
NÍVEL SINTÁTICO Rigidez da ordem SVO, tanto nas declarativas, Rigidez na ordem dos constituintes da frase como nas interrogativas, daí as interrogativas em (SVO) –Q sem nenhum movimento Ex: Vais morar aonde? Fizeste o quê? Quadro 01 – Adaptado de Barros (1998, p. 41); nosso o destaque.
Está bem visível que, pelo ângulo da lente de Barros, já referida, a não aplicação da concordância de número dentro do SN é mais um fenômeno, dentre vários, devedor à influência das línguas da família banto sobre o português popular angolano. É na mesma direção que caminha o trabalho de Mingas (2000), que, aliás, só ligeiramente toca no assunto aqui em estudo. De qualquer sorte, “melhor que nada”! Segundo a autora, o seu texto tem como objetivo fazer uma abordagem descritiva das características de uma variedade da língua portuguesa em território africano, mais especificamente o português falado na capital de Angola: Luanda. Elegeu como corpus para compor a parte empírica do seu trabalho, obras de escritores angolanos e alguns números do Jornal de Angola. Além desses, recolheu – parece que assistematicamente – algumas frases orais através de inquéritos de observação e pede, a seguir, desculpas por não ter cooptado uma quantidade maior de informações provenientes da língua falada. Assim como Barros (1998), Mingas (2000, p. 67-68) atribui a variação da concordância no SN no português falado em Luanda A uma possível interferência do quimbundo, uma das línguas da família banto, e
267
qualifica de “desvio da norma” casos como Os pé me dói ao invés de Doem-me os pés e Vigia as criança em lugar de Vigia as crianças. Disso, conclui Mingas:
Pela análise dos exemplos é fácil constatar a ausência de acordo de número entre os actualizadores (os artigos definidos) e os nomes. Com efeito, para o locutor de kimbundu, a marca do plural (o morfema /s/ em português) acrescentado ao actualizador, é suficiente para indicar a pluralização do nome; é que a flexão dos nomes nas línguas bantu opera-se através da mudança do nominante prefixado à base do nominal e não sufixado, como em português.
2º. ATO – CENA 4: A CONCORDÂNCIA NO SN NA LÍNGUA DE PRETO Embora não tenha chegado a mais de 10% a população negra em quatro séculos de escravidão em Portugal, mesmo assim, não é desprezível a influência desse contingente em vários âmbitos da sociedade portuguesa escravocrata:
A integração do escravo negro-africano, logo chamado o preto, na vida urbana portuguesa, embora limitada às classes mais baixas – a dos trabalhadores do pesado, do pequeno comércio ambulante, de alguns sectores das atividades mesteirais e, na maioria, dos serviços domésticos –, alcançou em quase quatrocentos anos de presença contínua uma relevância sociocultural que se traduziria nos costumes, em especializações profissionais, na crendice religiosa, nas diversões (canto, danças e touradas), no teatro e, finalmente, na criação de um tipo absolutamente original de literatura: o folheto de cordel em ‘língua de preto’ (TINHORÃO, 1997, p. 107)
Importa, mais de perto, destrinchar um pouquinho mais sobre o que o autor, acima citado, chama de “língua de preto”. Consoante Tinhorão (1997, p. 269-270), a denominada “língua de preto” ou “fala guiné” constituiu-se historicamente em Portugal, a partir da segunda metade do século XV. Seria, por assim dizer, uma modalidade de dialeto crioulo ou português geral de origem africana, caracterizado por diferenças individuais na prática. A maneira particular como os escravos africanos da primeira geração falavam o português estava com destino certo, para além de instrumento de comunicação: servir à literatura para caracterizar a fala de negros, com o objetivo de obter resultados cômicos. Inicialmente a transcrição literária dessa modalidade do português falada pelos negros foi utilizada por poetas nas suas trovas sobre temas do
268
momento ainda na época dos primeiros carregamentos de escravos oriundos de África (TINHORÃO, 1997, p. 222). Tinhorão (1997), através de fontes as mais variadas possíveis – literatura de cordel, gazetas-a-mão, folhas volantes, relações, folhetos de humor, versos satíricos, almanaques de prognósticos, peças de teatro de várias épocas, entremezes também de épocas distintas, teatro popular das loas, comédias, paródias, espetáculos de feira e revistas do ano –, oferece sobejamente material para que se depreendam algumas características marcantes na língua de preto. O próprio autor (1997, p. 221-222) arrisca uma descrição lingüística:
A reprodução do português falado por africanos ainda sem o domínio tinha, entre as suas principais características fonéticas, morfológicas e sintácticas, a incapacidade de articular a consoante forte r (invariavelmente tornada fraca quando intervocálica – carro = caro –, ou abrandada quando terminação de palavra – andor = andoro; senhor = sioro); a transformação do d línguo-dental em r brando (todo = toro; dinheiro = rinheiro), o emprego do suara-bácti (Portugal = Purutugal); a troca do v inicial por b; a transformação dos ss e ç em z (disse = rise); equiparação de j e z (Jesus = Zezu ou Jeju); ensurdecimento do r e s finais e a imprecisão na determinação dos gêneros (meu dedo = mia dedo) e na concordância e emprego de pronomes (eu falo guiné = a mi fala guiné)
É estranho, espantoso mesmo, que o autor, nas inúmeras antologias que ilustram a “língua de preto”, não tenha colocado em destaque, na sua descrição acima transcrita, uma das características mais marcantes: a variação da concordância de número no sintagma nominal, como demonstra o exemplo abaixo, retirado da obra História curiosa e engraçada do preto e o bugio ambos no mato discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil, de 1789 (apud TINHORÃO, 1997, p. 326):
1.
Preto. Já non pore deixa de incriná os cabeça e confessá, que voso doutrina sá uns doutrina tão craro, e verdadeiro, que plá mim sã uns dimiraçon no sé platicada por toro o mundo. O trabaio a que voso obliga os Pleto, e os Blanco, sã uns trabaio a que ninguem se pore negá sem melecê huns cossa bom; porque os genia, e os incrinaçom do natureza a toro o gente move pala ere, e fola de trabalo ninguem pore vivê um satisfaçom. Mim agola sem trabaiá non poré conte, ainda que mim ter abominaçon a cativêro cruere de Blanco, de que sá forro; com turo non aglada a mim estar aqui sem nada fazê: evita vozo tanta pleguiça, os excesso de plodigo, e dos avarenta, que nozo poderemo toro assi ave os oira, e trinfá os indigência, e de turo quanto porre infellicitá.
269
Se aqui aparecela agola uns Blanco, que pole escrevê os maravioso doutrina, que voso platicá, e toro os gente ouvire cós oreia aberto, faria ere ao família toro do mundo um favoro, que meoro non pore imaginá. (nossos os grifos)
Esse aspecto, a variação da concordância de número no SN na designada língua de preto, salta aos olhos em diversos exemplos, sejam em formato de prosa, poesia ou diálogos, ofertados pelo autor. Vão, abaixo, alguns excertos que comprovam o que se disse, retirados, respectivamente, das obras Folha de ambas Lisboa – carta convite da festa religiosa-festiva do Rei Angola ao Rei Minas, de 1730; Os preto Astrologo Prognostico Diaro dos Quartos, Luas, e mais conjunções, e movimenta dos Astra, Com os sucessa Elementa dos Europa, nos que toca aos Meridiana dos Lisboa, Para os Anna de 1758 Composta Pelo Pay Daniel Os Preta çáfia natural dos Costa da Mina, de 1757 e da entremez Brites papagaia, de 1789:
2.
Seoro cumpadra Re Mina Zambiampu tatè: sabe vozo, que nossos fessa sà Domingo, e que vozo hade vir fazer os forgamenta; oya vussè cumpadra, que os May Zoana os fia dos pay Maulicia, e dos may Zozefa as biscondessa dos taraya: nos procissão hade vozo cantar o Zaramangoè, e traize vussè nos forfa que os pay Zozé nos fezo o cutambala, zuambala cuyè numas minueta; agora se vozo vem zangana se não zangana vussè homemo Zambiampum tatè muitos ano. (nossos os grifos)
3.
... esta necessidade me obrigou, já que não furtar as mias sioras outra cousa, furteilhe os livraria dos Astrologia de mim sioro defunto que era um grande Astrologo, e só comia de fazer os Repertoria, e como mim via, que ere ganhava com aquilo tantos dinheira, furteilhe não so os livra, mas os globa, os angula, os triangula, os compassa, os belestilha, e todos os artificia de fazer pronotica. (nossos os grifos)
4.
Ah mia Zaber, o preto Sempre se arembra de vozo; Só tu pode cá por dentro Fazer ao teu preto uns gozo; Venho do caiar uns casa De um Sioro Blanco Doutoro, E os obra ficou mal feita, Por conta do vozo amoro:
270
Não podia trabaiar, Porque os pleta me alembrava, E amoro como demônio, Parece que me tentava No meio do meio [meu] trabaio, Amoro, eu dizia, sape, Mas o amoro trape, trape: Trago aqui para vozo gasto, Todo o gimbo que ganhei, Fora os creto [crédito] do Tendero, Aonde tudo já paguei. (nossos os grifos)
Teria ecoado para o português europeu alguma ressonância dos traços que caracterizam a língua de preto, nos mesmos moldes em que Barros (1998) e Mingas (2000, p. 67-68) admitem ser possível a atribuição da variação da concordância no SN no português falado em Angola a uma possível interferência do quimbundo, uma das línguas africanas da família banto? Tinhorão (1997, p. 378) e suas palavras:
A constância das referências a uma língua de negros, em quase cinco séculos de história do teatro em Portugal, leva a imaginar que, se tal forma corrompida de falar o português de mistura com termos africanos chegou a constituir quase um dialeto na metrópole, alguma conseqüência deverá ter resultado de tal intercâmbio lingüístico. E, na verdade, embora a sintaxe portuguesa continuasse inatingida, pelo facto de as alterações da fala de negro se terem circunscrito sempre à fonética e à morfologia da língua de empréstimo, o léxico não deixaria de acusar, afinal, exemplos resultantes de tão longa troca cultural.
Ou seja: que o português europeu tenha absorvido, sobretudo no plano do léxico, empréstimos da língua portuguesa remodelada pelos negros parece claro na assertiva de Tinhorão; já quanto a um provável intercâmbio lingüístico na morfossintaxe, nomeadamente na marcação de número no sintagma nominal, a afirmação mostra-se obscurecida.
2º. ATO – CENA 5: a concordância no SN na aquisição da linguagem A varredura à cata de trabalhos que tratam da concordância de número no SN na aquisição da linguagem resultou pouco profícua. De qualquer sorte, conseguiu-se 271
um em que o eixo temático é a marcação de plural no SN, numa perspectiva longitudinal, na linguagem infantil (CAPELLARI & ZILLES, 2002) Embora exemplar único neste trabalho sobre o tema na aquisição da linguagem, o texto mencionado é prenhe de idéias fecundas e esclarecedoras e, portanto, não podem ser atiradas para longe. As autoras têm um propósito explícito, porém, para que seja bem entendido, há que se fazer um passeio no bosque de considerações anteriores enredadas no texto. Iniciam-no, tendo como operadores bibliográficos, dois artigos de Scherre (1996)5 e, deles, retiram três constatações: a primeira refere-se às palavras com plural metafônico, que, estando no topo da escala da saliência fônica, propiciam a retenção da marcação de número; a segunda tem a ver com SNs possuidores de algum elemento com carga semântica de plural, pelo que se apresentam, na maioria das vezes, sem a flexão formal de número; quanto à última observação, envolvem itens lexicais diminutivos e os tipicamente informais, que se particularizam por desfavorecerem a concordância. São as autoras mesmo que murmuram: “De acordo com o que já foi visto até o momento, podemos observar que vários são os trabalhos sobre a concordância de número na fala dos adultos. Porém no que se refere à fala das crianças, infelizmente, não dispomos de muitos trabalhos na área” (CAPELLARI & ZILLES, 2002, p. 194). De qualquer sorte, encontraram um: trata-se de um estudo levado a cabo por Lamprecht (1997)6. Nele, a autora coletou dados oriundos de 48 crianças, todas no denominado jardim de infância, entre 2;3 e 5;6 anos7, subdividindo-as em 6 faixas etárias. Desse procedimento, resultou um total de 2.639 contextos de plural, perfazendo a média de 55 por sujeito e o levantamento dos dados apontou baixas porcentagens de marcação do plural em todas as faixas etárias. 5 Referência completa: SCHERRE, Maria Marta Pereira (1996). Sobre a influência de três variáveis relacionadas na concordância nominal em português. In: SCHERRE, Maria Marta Pereira; SILVA, Gisele M. de Oliveira e (orgs.). Padrões sociolingüísticos: análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. p. 85-117; SCHERRE, Maria Marta Pereira (1996). Sobre a influência de variáveis sociais na concordância nominal em português. In: SCHERRE, Maria Marta Pereira; SILVA, Gisele M. de Oliveira e. (Orgs.). Padrões sociolingüísticos: análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. p. 239-264. 6 Referência completa: LAMPRECHT, Regina Ritter (1997). Aquisição da morfologia do plural por crianças bilíngües português-alemão. In: I ENCONTRO DO CELSUL – ANAIS. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, v. 1. p. 107-117. 7 Leia-se: 2 anos e 3 meses, 5 anos e 6 meses.
272
Após as informações acima expostas, passam Capellari e Zilles (2002) a exporem o seu próprio estudo sobre a marcação de plural no SN na linguagem infantil. O estudo longitudinal efetuado pelas autoras só foi possível por causa dos dados extraídos, em 18 entrevistas, da informante Carmela8. Foi interrogada pela primeira vez quando tinha 4;03 anos e, pela última, aos 8;05.019. Durante esse interregno, ela não tinha irmãos, ela estudava em escola particular, ela não tinha contato com nenhuma língua estrangeira, ela tinha um pai fotógrafo, ela tinha uma mãe relações-públicas, ela se enquadrava na categoria socioeconômica B10. Reunindo todos os dados de SNs plurais colhidos da fala de Carmela, apresentam as autoras a seguinte imagem:
NÚMERO E PERCENTUAL DE SNs PLURAIS POR ENTREVISTA NA FALA DE UMA CRIANÇA DOS 4 AOS 8 ANOS DE IDADE Entrevista (idade)
Total de SNs
SNs padrões
%
SNs não-padrões
%
4;07.11
01
0
0.0
01
100.0
5;02.02
05
0
0.0
05
100.0
5;03.00
06
0
0.0
06
100.0
5;08.01
01
0
0.0
01
100.0
5;09.29
04
04
100.0
0
0.0
6;03.05
08
03
37.5
05
62.5
6;05.15
05
02
40.0
03
60.0
6;07.16
02
0
0.0
02
100.0
6;09.10
11
04
36.4
07
63.6
7;01.27
05
02
40.0
03
60.0
7;04.13
01
0
0.0
01
100.0
Os dados de Carmela integram o Banco de Dados do projeto Desenvolvimento da Linguagem da Criança em Fase de Letramento – DELICRI. A coleta foi realizada durante o período de 1992 a 1996 em uma escola particular de Porto Alegre, denominada Escola Projeto 9 Leia-se 8 anos, 5 meses e 1 dia. 10 Para a categorização dos informantes em A, B ou C, o projeto DELICRI estipulou os seguintes critérios: CLASSE A: nível superior – escolaridade superior de pelo menos um dos pais; profissão liberal, professores de 3º grau, empresários, dirigentes; bairro de moradia considerado A na cidade; escola particular. CLASSE B: nível médio – escolaridade de 1º grau completo ou 2º grau; funcionário público, comerciante, técnico, bancário, escriturário, professor de escola secundária ou primária; bairro de moradia considerado de classe média; escola pública. CLASSE C: nível baixo – pais com 1º grau incompleto ou sem escolarização; empregado doméstico, pedreiro, faxineiro, motorista, serviços gerais; bairro considerado “pobre”; escola pública. 8
273
Entrevista (idade)
Total de SNs
7;07.16
16
7;10.22
34
8;01.15
20
8;05.01
07
TOTAL
126
SNs padrões
%
SNs não-padrões
%
06
37.5
10
62.5
22
64.7
12
35.3
05
25.0
15
75.0
02
28.6
05
71.4
50
40.0
76
60.0
Tabela 01 – adaptada de Capellari e Zilles (2002, p. 202); nossos os destaques.
A Tabela deixa ver que não há a emergência de SNs pluralizados nas entrevistas iniciais, o que só acontece a partir dos 5;09.29 anos e, de modo geral, quando começa a produzir os referidos SNs, a tendência que se exibe é um uso preferencial da regra variável de marcação de plural própria da língua falada, exceto em duas situações, que, acima, foram destacadas: é que, na ocasião de duas entrevistas – 5;09.29 e 7;10.22 anos –, Carmela produziu SNs com altos índices de sintagmas plurais padrões e, para explicar o inusitado, escrevem Capellari e Zilles (2002, p. 203):
A entrevista que corresponde à idade dos 5;09.29, como dissemos, apresenta 100% de plurais padrão (4 ocorrências). Todavia, o fato de terem sido produzidos em um discurso baseado em um texto escrito (Os três porquinhos) provavelmente explica esse resultado discrepante. A outra exceção refere-se à entrevista que corresponde à idade dos 7;10.22 anos. Esses SNs foram produzidos em situação de relato pessoal, mas nesse caso, a criança estava contando sobre um teatro de que ela participou na escola. Há, ainda, o fato de que esse teatro foi uma adaptação de um livro infantil e foi ela quem fez essa adaptação. Trata-se, portanto, de uma fala que toma por base, em certa medida, um texto escrito.
Quando se reportam, na citação acima colocada, à expressão situação de relato pessoal, direcionam as autoras para o conceito de contexto, que deve ser entendido da seguinte maneira: em cada entrevista, existem momentos em que a criança faz um relato pessoal e, em outros, conta uma historinha para quem a interroga. Dessa maneira, elaboraram duas situações de contextos: o já referido relato pessoal, em que se espera maior grau de informalidade na linguagem, e narrativa oral de historinha, em que se aguarda fala mais formal, sobretudo por se tratar de reprodução de histórias originalmente advindas de suporte escrito.
274
O maior número de SNs consoante aos cânones se localiza no contexto de contar histórias, o que aponta para uma inevitável influência do texto escrito padrão que, inclusive, pode ser memorizado. No relato pessoal, em que se discursa mais espontaneamente, predomina, como se observa, a marcação de plural não-canônica. No “frigir dos ovos”, o contexto discursivo parece dar a sua contribuição na influência do uso da regra padrão. Relembra-se que o principal objetivo do estudo das autoras é licenciar a constatação de que, quanto à marcação variável de plural, os fatores que condicionam para mais ou para menos o fenômeno na linguagem infantil sejam, talvez, os mesmos observáveis na fala adulta. E saber como procedem para acertar o alvo é aspecto para o qual se dará alguma atenção. Têm Capellari e Zilles (2002, p. 205) como cais de embarque uma antologia de sete sintagmas plurais produzidos por Carmela, quais sejam: 1) os pés todo embarrado (5;02.02), 2) um monte de coisa (5;03.00), 3) os três porquinhos (5;09.29), 4) umas ferinha [feira] (6;09.10), 5) uns hambúrgueri (7;01.27), 6) trinta reais (7;07, 16) e 7) milhares de borracha (8;01.15). No que se relaciona com o primeiro SN (os pés todo embarrado), a marca de plural se explicita nos dois primeiros constituintes. Acontece que o item todo, que modifica embarrado, parece quebrar a coesão sintagmática e isso justifica a carência do –s no último elemento. Para o entendimento do que está envolvido na falta de marcação do SN número 2 (um monte de coisas), que se repete com freqüência na linguagem da criança, buscam as autoras alicerces no trabalho de Simões (1992)11, que mostra, entre outras coisas, que a flexão do plural se relaciona à noção de nominais contáveis e não-contáveis. Exemplo de termo não-contável é monte, estampado na fala de Carmela. Nesse caso, não existe, por assim dizer, a individuação das coisas do monte, o que conduz ao não acionamento do morfema de plural no segmento posterior de coisa. Isto é, monte é o que chama Simões de um quantificador massivo e, por causa desse traço, a ausência da flexão se deve à falta de percepção de elementos contáveis para o reconhecimento do plural. Acrescente-se a isso a presença da preposição de, sugerindo fronteira entre constituintes sintáticos, Referência completa: SIMÕES, Luciene Juliano (1992). Aquisição da distinção semântica entre nominais contáveis e não-contáveis em língua portuguesa. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
11
275
além de ter valor partitivo, o que inibe, até mesmo na gramática do falante adulto, a ocorrência do plural. No caso do SN os três porquinhos, o de número 3, apresenta ele, segundo as autoras, um acontecimento com bastante significado, por ser o primeiro SN com marca formal de plural em todos os constituintes. Pode ter entrado em jogo o provável papel que o contato com o texto escrito desempenha na aplicação da regra de concordância de número. No sintagma 4 – umas feirinha –, em que o segundo elemento no diminuto encontra réplica em outros exemplos (os bonequinho, esses pãozinho), a ausência do –s reitera a proposta apresentada por Scherre, já mencionada, de que itens no diminutivo desfavorecem a concordância de número. Aliado a isso, há a sublinhar que os SNs com esta constituição foram colhidos em situação de fala espontânea. Os hambúrgueri, o SN 5, não foi considerado padrão, pelo feito de a criança não ter estampado na sua fala a forma singular, mas uma outra mais próxima do cânone, em que se verifica a colocação da vogal final esperada. Desse modo, o que estaria em cena é o caso de um apagamento de –s. Julgado certo o raciocínio, há que se admitir que, em algum momento da aquisição dessa criança, existiu o plural padrão, para que seja consentida a hipótese de ter sido apagado. Por outro lado, toda essa tentativa de explicar o havido no sintagma pode cair por terra, porque, segundo as autoras (2002, p. 207) pode tratar-se apenas de uma epêntese12. A ocorrência do sintagma número 6 – trinta reais – contrariou as expectativas das autoras, uma vez que, para SNs com numerais e reunidos outros casos semelhantes, seria esperada a expressão não-marcada trinta real. Há uma explicação, porém: é que o contexto em que foi produzido o referido sintagma faz pensar que se trata de um discurso reproduzido do pai da informante, manifestando-se sobre o dinheiro gasto por ela. Por fim, o último sintagma elencado: milhares de borracha, em que atuou como desfavorecedor da aplicação da regra o vocábulo milhares. Para além disso, o fato de estar inserta no sintagma a preposição de o torna menos coesivo. Com a análise dos sintagmas acima referenciados, acreditam Capellari e Zilles (2002, p. 212) que o exame dos dados de Carmela mostra muitos pontos em comum
O termo empregado pelas autoras é inadequado. Ao fenômeno que se caracteriza pela inserção de segmentos no final de vocábulos dá-se o nome de paragoge.
12
276
com o que a literatura revela sobre o fenômeno variável da concordância de número no SN na fala de adultos.
2º. ATO – CENA 6: A CONCORDÂNCIA NO SN NA LINGUAGEM ESCRITA Tal qual aconteceu na busca de operadores bibliográficos que tratam da variação da concordância no SN na aquisição da linguagem, também para a apreensão do fenômeno na linguagem escrita os resultados não foram dos mais animadores. Mas Maria Tereza Borges da Costa (2008), essa escreveu um pequeno texto em que procura esclarecer o aspecto na escrita de alunos do ensino fundamental e médio residentes no município de Ribeira do Pombal, no Estado da Bahia. Constituiu um corpus formado por 40 produções escritas; destas, 20 foram produzidas por alunos da 8ª série do ensino fundamental da rede particular e 20 por alunos da 3ª série do ensino médio da rede pública. Justifica assim a constituição do corpus:
A escolha da 8ª. série e da 3ª. série não foi aleatória, pois se justifica pelo fato de se tratar de séries finais de ciclos escolares, tendo, portanto, os alunos que participaram de cada um dos ciclos um contato mais íntimo com a Gramática Normativa (COSTA, 2008, p. 568).
Para a análise dos resultados foram observadas, segundo a autora, duas variáveis lingüísticas de importância capital para o entendimento da variação de concordância de número no SN: saliência fônica e posição, observando, adicionalmente, as seguintes variáveis não lingüísticas: anos de escolarização, sexo e faixa etária. Fazendo a apreciação dos textos para a coleta de dados, retirou um total de 180 ocorrências dentro do SN, sendo 86 pertencentes às amostras da 3ª série e 94 às da 8ª série. Para a verificação do aspecto relacionado à saliência fônica, elaborou a autora uma escala de oito níveis em função de alterações morfofonêmicas e da tonicidade da base dos itens regulares. Chegou aos seguintes resultados:
277
Falantes Todos os falantes
Falantes da 8ª. série
Falantes da 3ª. série
Plural duplo
Fatores
06/06 = 100%
04/04 = 100%
02/02 = 100%
-l
06/08 = 75%
03/04 = 75%
03/04 = 75%
-ão
09/09 = 100%
05/05 = 100%
04/04 = 100%
/R/
02/02 = 100%
01/01 = 100%
01/01 = 100%
/S/
06/08 = 75%
02/03 = 66%
04/05 = 80%
Plural regular de base oxítona
04/06 = 66%
02/03 = 66%
02/03 = 66%
Plural regular de base proparoxítona
22/30 = 73%
12/16 = 75%
10/14 = 71%
Plural regular de base paroxítona
87/111 = 78%
45/58 = 77%
42/53 = 79%
142/180 = 79%
74/94 = 79%
68/86 = 80%
TOTAL DE DADOS
Tabela 02 – Costa (2008, p. 569)
Dizendo que os índices em amostra na Tabela ratificam as pesquisas feitas por Naro e Scherre (1996)13 neste mesmo campo de investigação lingüística, observa a autora que, quanto maior o grau de saliência fônica, isto é, tanto mais saliente o item nominal, as marcas de plural são favorecidas; em oposição, os itens menos salientes favorecem para menos a presença dessas marcas. No quesito variável posição, guardem-se os resultados a que chegou a autora:
Falantes Fatores Elemento nominal à esquerda do núcleo Elemento nominal à direita do núcleo Núcleo na posição 1 (mais à esquerda) Núcleo na posição 2 Núcleo nas demais posições TOTAL DE DADOS Tabela 03 – Costa (2008, p. 569)
Todos os falantes
Falantes da 8ª. série
Falantes da 3ª. série
51/58 = 88%
24/28 = 85%
27/30 = 90%
56/77 = 72%
28/38 = 73%
28/39 = 71%
11/13 = 85%
05/06 = 83%
06/07 = 86%
05/08 = 62% 18/24 = 75% 141/180 = 78%
03/05 = 60% 13/17 = 76% 73/94 = 77%
02/03 = 66% 05/07 = 71% 68/86 = 79%
13 Referência completa: SCHERRE, M. Marta Perreira; NARO, Anthony Julius (1996). A concordância de número no português do Brasil: um caso típico de variação inerente. In: HORA, Demerval da. (Org.). Diversidade lingüística no Brasil. João Pessoa: Idéia. p. 93-114; SCHERRE, M. Marta Pereira (1996). Sobre a influência de três variáveis relacionadas na concordância nominal do português. In: SILVA, Giselle M. de Oliveira; SCHERRE, M. Marta Pereira. (Orgs.). Padrões sociolingüísticos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. p. 85-117.
278
Com a palavra, Costa (2008, p. 569):
A partir da observação dos resultados obtidos na tabela, pode-se dizer que, em relação aos elementos não nucleares, o que importa é a sua posição em relação ao núcleo, no qual se verifica um favorecimento maior no que diz respeito às marcas explícitas quando a posição ocupada pelo elemento é à esquerda do núcleo e, um desfavorecimento, quando a posição é à direita do núcleo. Já quando a observação é feita no elemento nuclear, o favorecimento de marcas explícitas dar-se-á de acordo à linearidade, ou seja, estando linearmente mais à esquerda na construção sintagmática observaremos mais marcas explícitas, caso contrário há um desfavorecimento, entretanto, mesmo nas demais posições, quanto mais à esquerda, maior o aparecimento de marcas explícitas.
Veja-se que o trabalho de Costa (2008) se volta para a questão da variação da concordância de número do SN na língua escrita, ao mesmo tempo em que encontra pontos em comum, no que diz respeito aos condicionamentos, com os trabalhos de Naro e Scherre, já mencionados, que abraçam outros dados, os da língua falada. Isso indica que língua oral e língua escrita, mesmo que esta modalidade seja mais monitorada, não se afastam quando o assunto em pauta são os fatores que favorecem ou não a aplicação canônica das regras de concordância. Tira-se proveito disso, na medida em que o que se encontrará para os dados retirados dos documentos dos africanos, de fato, pode estar espelhando cenas da aplicação da concordância no SN na linguagem oral dos oitocentos.
3º. ATO – ABERTURA Retiraram-se das atas dos africanos 559 constituintes passíveis de receber a concordância de número dentro do SN e é chegada a hora de ver o que eles têm a dizer sobre a variação nos oitocentos. Antes de mais, dados ou não, que se fixem os seguintes sobreavisos: a análise se configurará como atomística, em que cada elemento passível de receber a marca da concordância será analisado separadamente; não se pretende intrometer-se na discussão crioulização prévia x deriva natural; não se utilizará o programa VARBRUL com todo o seu refinamento, na medida em que são poucos os dados e, mesmo assim, apresentam-se enviesados em certas circunstâncias que serão descritas no seu devido tempo e, por fim, elencam-se as variáveis que serão levadas em conta. Na esfera de um trabalho com este feitio, exemplificar a não mais 279
poder é fundamental, já que se trata de uma análise que caminha mais por uma trilha descritivo-interpretativista. Para os fatores que estiverem em voga, buscar-se-ão, se os dados assim o permitirem, 10 exemplos que estampam itens com concordância e mais 10 para mostrar aqueles que não a possuem. No âmbito das variáveis lingüísticas, fixou-se como dependente a realização ou não da marca de concordância; quanto às independentes, elegeram-se saliência fônica, em suas três dimensões, quais sejam: oposição de material fônico singular x plural, tonicidade e número de sílabas, seguidas por marcas precedentes; posição linear do constituinte e posição do constituinte em relação ao núcleo. Duas variáveis não lingüísticas terminam por compor o cenário: redator da ata e presença/ausência do constituinte em fórmulas. Em uma primeira imagem, global, exibe-se que, dos 559 constituintes analisados, 422 (75%) obtiveram a marcação de plural, ao passo que 137 (25%) não receberam a marca. Está-se diante, portanto, de altos índices de marcação de plural, o que, à primeira vista, se deve ao fato de tratar-se de textos escritos e, ainda, bastante formais, como são as atas. Mas é bom que fique claro que os índices referentes aos constituintes sem marcação formal de plural não são desprezíveis, inclusive por causa dos motivos acenados acima: linguagem escrita e tradição discursiva de contornos bem definidos.
Gráfico 01
280
3º. ATO – CENA 1: a saliência fônica Conforme já anunciado, a saliência fônica foi desmembrada em três eixos. O primeiro deles alude à diferença de oposição de material fônico no singular e no plural. Os estudos que tratam da variação da concordância no sintagma nominal afirmam ser essa dimensão uma das mais importantes no favorecimento ou não da marca de plural. Espera-se que constituintes que fazem o plural com menos material fônico, ou seja, com oposição singular/plural menos saliente, sejam menos receptivos às marcas de plural. Por outro lado, se a oposição singular / plural se caracteriza pelo aumento de substância fônica, tem-se um forte condicionador a manutenção do morfema. Elaborou-se, com base nos estudos já citados, uma escala para a saliência fônica com sete fatores, em que figuram o plural metafônico, palavras terminadas em /l/, palavras terminadas em –ão irregular, palavras terminadas em –ão regular, palavras terminadas em /R/, palavras terminadas em /S/ e, finalmente, palavras com marcação de plural regular, aquelas em que só se acrescenta o –s. Quanto às palavras que fazem o plural metafônico, o corpus revelou 5 dados; destes, 4 (80.0%) apresentaram-se com a marcação de plural – dos NOVOS Estatutos (MSR, 07, 15.01.1845), dos NOVOS Administradores (MSR, 15, 11.10.1835), todos CORPOS da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), do NOVOS Adremenetador (MVS, 08, 16.10.1835) – e apenas 1 (20.0%) permaneceu no singular – o NOVO Estatutos (MSR, 08, 02.02.1834). Os vocábulos terminados em /l/ somam 15, sendo que, destes, 12 (80.0%) obedeceram ao cânone – nos Seus MENCAIS (JFO, 02, 01.11.1835), os MENCAIS (JFO, 03, 17.04.1836), os Seus MENCAIS (JFO, 03, 17.04.1836), dos MENSAES (LTG, 06, 16.11.1832), Meza MENSAES (LTG, 08, 02.02.1833), dos ACTUÁES Mezarios (LTG, 09, 24.03.1833), do MENCAES (MC, 02, 02.05.1841), os ATUAES Soçio Administradores (MSR, 04, 07.09.1834), suas Contas MENSAES (MSR, 11, 19.07.1835), os titulos LEGAES (MSR, 12, 02.08.1835) –, ao passo que 3 (20.0%) não – ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), da despozicoens GERAL (JFO, 02, 01.11.1835), QUALQUER Mezarios (LTG, 08, 02.02.1833).
281
Apenas 2 vocábulos terminados em –ão se exibem no corpus e, nos 2 casos (100.0%), receberam eles a marcação de plural – da DESPOZICOENS Geral (JFO, 02, 01.11.1835), as nossás DESPOZIÇOINS (JFO, 02, 01.11.1835). 15 ocorrências são relativas às palavras terminadas em –ão regular, no entanto há aqui um enviesamento, na medida em que todos os casos dizem respeito a um mesmo item lexical: irmão. De qualquer sorte, pluralizaram-se 11 (73.0%) – os IRMÃOS (JFO, 03, 17.04.1836), Algúns IRMOINS (JFO, 04, 05.06.1836), todos os Nossós IRMO-INS (JFO, 12, 02.10.1842), todos IRMÃOS congratulados (LTG, 04, 16.09.1832), Senhores IRMAÕS (LTG, 09, 24.03.1833), dos falecidos IRMÃOS (LTG, 12, 28.10.1833), todos IRMÃOS Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), os IRMÃOS Seguinte (MSR, 05, 01.11.1834), todos IRMÃOS (MSR, 07, 15.01.1835), aos quatros IRMÃOS (MSR, 15, 11.10.1835); já os 4 sobrantes (27.0%) – dos IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), os IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), dos IRMÃO (MSR, 03, 23.07.1834), Illustríssimos Senhor IRMÃO Soçio (MSR, 07, 15.01.1835) – ficaram “a ver navios”. Vai uma nota para uma forma que, mesmo marcada, recebe morfema à margem do padrão: todos os Nossós IRMO-INS (JFO, 12, 02.10.1842). 33 formas terminadas em /R/ apresentam-se no corpus, no entanto as formas marcadas, que se conta em 26 (79.0%) – dos PROVEDORES (JFO, 01, 18.10.1835), Actual ADEMINISTRADORES (JFO, 01, 18.10.1835), todos PODERES (LTG, 01, 10.09.1832), cazas PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), dos DIFFINIDORES (LTG, 05, 23.09.1832), os primeiro FUNDADORES (MSR, 02, 23.02.1834), os atuaes Soçio ADMINISTRADORES (MSR, 04, 07.09.1834), o SENHORES (MSR, 13, 06.06.1835), do SENHORES DEVEDORES (MSR, 15, 11.10.1835), CORES pretas (MVS, 03, 29.03.1835) – resplandecem muito mais que as não-marcadas, 7 no total (21.0%) – os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), os Juiz FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), Illustrissimos SENHOR Irmão Soçio (MSR, 07, 15.01.1835), o Mais Mezario DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834), Mais ADEMINITADOR (MVS, 07, 07.07.1835), do Novos ADREMENETADOR (MVS, 08, 16.10.1835), mais ADEMINITADOR (MVS, 15, 11.10.1835). Somadas as 3 ocorrências (43.0%) marcadas – dos tres MEZES (LTG, 14, 04.10.1835), dos tres MEZES (LTG, 15, 08.10.1835), cinco MEZES (MSR, 15, 282
11.10.1835) – mais as 4 (57.0%) que não acolheram o morfema de plural – os JUIZ Fundador (MSR, 02, 23.02.1834), os JUIZ (MSR, 04, 07.09.1834), Os JUIZ (MSR, 06, 07.01.1835), tres MEZ trabralha (MVS, 07, 07.07.1835)14 –, os vocábulos finalizados em /S/ contam 7. Por último, contabilizaram-se as marcas de plural ou ausência delas nos itens regulares e os resultados apontaram para um total de 482. Desse número, 364 (76.0%) acolheram a marcação – OS quartoze DIAS (GMB, 01, 14.11.1834), o SEOS trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), AS duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), do NOSSOS ESTATUTOS (JFO, 02, 01.11.1835), DAS NOSSAS JÓIAS (LTG, 02, 16.09.1832), Coffre do Senhor DOS MARTIRIOS (LTG, 02, 16.09.1832), AS murta (MC, 02, 02.05.1841), Bahia de TODOS OS SANTOS (MSR, 01, 23.02.1834), OS ESTATUTOS offerecido (MSR, 05, 01.11.1834), a LEIS (MVS, 04, 05.04.1835) –, ao passo que não se pode dizer o mesmo para as demais 118 ocorrências (24.0%) – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), os NOMIADO (GMB, 01, 14.11.1834), Aos dezoito DIA (JFO, 01, 18.10.1835), todos os mais MOVIMENTO TENDENDE (JFO, 06, 14.08.1836), MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833), Loteria de mil Belhetes EMPRESSO (LTG, 11, 04.08.1833), PELA 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), as EMENDA OFERECIDA (MSR, 08, 08.02.1834), O DITO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), Chiolos LIVER (MVS, 03, 29.03.1835). A Tabela abaixo intenta compactar, no quesito oposição singular x plural no eixo da saliência fônica, todos os índices que acima foram espalhados:
SALIÊNCIA FÔNICA – DIFERENÇA DE MATERIAL FÔNICO SINGULAR/PLURAL FATOR Plural metafônico /l/ -ão irregular -ão regular /R/ /S/ Regulares (terminados em vogal, oral ou nasal, ou ditongos fônicos TOTAL Tabela 04 14
DADOS 05 15 02 15 33 07 482
C/ CONC. 04 12 02 11 26 03 364
559
422
% 80.0 80.0 100.0 73.0 79.0 43.0 76.0
S/ CONC. 01 03 00 04 07 04 118
% 20.0 20.0 0.0 27.0 21.0 57.0 24.0
75.0
137
25.0
Leia-se três meses de trabalho.
283
Revestindo-se apenas as percentagens referentes à presença ou ausência do morfema de plural para um gráfico, chega-se a seguinte imagem:
Gráfico 02
E ela é bem nítida no sentido de deixar claro que em 6 fatores (plural metafônico, palavras terminadas em /l, palavras terminadas em –ão irregular, palavras terminadas em –ão regular, palavras terminadas em /R/ e em vocábulos que fazem o plural apenas com o acréscimo do –s) imperam para mais os índices de concordância. A situação só se inverte com os vocábulos finalizados em –s. A julgar pelas percentagens, inclusive comparadas entre si, a escala de saliência fônica, na dimensão maior ou menor oposição de substância fônica entre o singular e o plural, parece não se aplicar, de modo geral, aos dados em questão. A outra dimensão ligada à saliência fônica se circunscreve à tonicidade dos vocábulos. Nesse quesito, nomearam-se 4 variáveis para analisar como se comportam em relação à variação da concordância no SN: monossílabos átonos, oxítonos e monossílabos tônicos, paroxítonos e proparoxítonos. Os monossílabos átonos se fizeram presentes no corpus em 193 ocorrências, em que 166 (86.0%) acolheram o morfema de plural – OS quartoze dias (GMB, 01, 14.11.1834), Devoçaõ de Nossa Senhora da Solidade DOS Desvalidos (JFO, 01, 18.10.1835), todos OS mais moVimento tendende (FJO, 06, 14.08.1836), a Votacaõ DAS nossas Irmaã (JFO, 09, 30.10.1836), AS cartas de regeite (LTG, 05, 23.09.1832), 284
OS mais mezarios reunidos (LTG, 06, 16.11.1832), OS filhos (LTG, 10, 21.04.1833), Bahia de todos OS Santos (MSR, 01. 23.02.1834), AS quantias pertencente (MSR, 15, 11.10.1835), AOS onze Dia do Mez de outubro (MVS [MSR, 15, 11.10.1835]) –, enquanto 27 (14.0%) não o recebem – O seos trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), DA despozicoens Geral (JFO, 02, 01.11.1835), DO nossos deveres (JFO, 08, 02.10.1836), O pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), A suas Somas (MSR, 15, 11.10.1835), DO Senhores Devedores (MSR, 15, 11.10.1835), O Mais Mezario Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834), Nossa Senhora do Ruzario DO 15 Misterio (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de todos O Santos (MVS, 03, 29.03.1835), A Leis (MVS, 04, 05.04.1835). Em número de 139 se conta os oxítonos e monossílabos tônicos, dentre os quais 105 (76.0%) atendem ao cânone – o SEOS trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), nos Seus MENCAIS (JFO, 02, 01.11.1835), Comprimento dos DEVERES (JFO, 07, 04.09.1836),
nas
Cazas
PARTECULARES
(LTG,
02,
16.09.1832),
os
dous
DIFFINIDORES (LTG, 06, 16.11.1832), os primeiro FUNDADORES (MSR, 02, 23.02.1834), o socios ADIMINSTRADORES (MSR, 06, 07.01.1835), nos DIAS asima dito (MSR, 09. 05.07.1835), cinco MEZES (MSR, 15, 11.10.1835), CORES pretas (MVS, 03, 29.03.1835) – já os 34 casos sobrantes (24.0%) não – Aos dezoito DIA (JFO, 01, 18.10.1835), ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), os IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), os JUIZ FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), o Mais Mezario DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834), A Vinte Nove DIA do Mez de Março (MVS, 03, 29.03.1835), Mais ADEMINITADOR (MVS, 07, 07.07.1835), tres MEZ trabralha (MVS, 07, 07.07.1835), Aos onze DIA do Mez de outubro (MVS [MSR, 15, 11.10.1835]). Quanto às palavras paroxítonas, elas são as que mais prevalecem na amostra, perfazendo um total de 220 ocorrências. Desse número, 146 (66.0%) obtiveram por partes das mãos a concordância plural – as duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), do NOSSOS ESTATUTOS (JFO, 02, 01.11.1835), dezenove BRANCAS (LTG, 02, 16.09.1832), TODOS Irmãos CONGRATULADOS (LTG, 04, 16.09.1832), aos TRABALHOS (LTG, 15, 08.10.1835), o POGETOS OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), TODOS Irmãos Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), doZe VOTOZ (MSR, 285
03, 23.07.1834), prunanamine VONDADES (MVS, 03, 29.03.1835), CHIOLOS Liver (MVS, 03, 29.03.1835). Ficaram carentes do morfema de plural 74 casos (34.0%) – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), dos DESVALIDO (JFO, 02, 01.11.1835), vinte huma BRANCA (LTG, 02, 16.09.1832), MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833), mil BILHETE (LTG, 14, 04.10.1835), PELA 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), as MURTA (MC, 02, 02.05.1841), os PRIMEIRO fundadores (MSR, 02, 23.02.1834), as EMENDA OFERECIDA (MSR, 08, 08.02.1834), o Mais MEZARIO Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834. São pouquíssimos os vocábulos com o padrão proparoxítono no corpus, apenas 7. 5 (71.0%) foram pluralizados – dos DEVITOS (FJO, 05, 10.07.1836), ILLUSTRÍSSIMOS Senhor Irmão Soçio (MSR, 07, 15.01.1835), os TITULOS Legaes (MSR, 12, 02.08.1835), dos CREDITOS (MSR, 13, 06.06.1835), o NUMEROS de cinco (MSR, 15, 11.10.1835) –, ficando 2 (29.0%) sem a marca de número – dos CAPÍTULO (LTG, 09, 24.03.1833), PRUNANAMINE Vondades (MVS, 03, 29.03.1835). Guardem-se, reunidos numa Tabela, todos os índices a que se fizeram referências acima e, logo a seguir, um Gráfico a querer dar uma boa visualização das percentagens. SALIÊNCIA FÔNICA – TONICIDADE FATOR Monossílabos átonos Oxítonos e monossílabos tônicos Paroxítonos Proparoxítonos TOTAL Tabela 05
DADOS 193 139
C/ CONC. 166 105
% 86.0 76.0
S/ CONC. 27 34
% 14.0 24.0
220 07 559
146 05 422
66.0 71 75.0
74 02 137
34.0 29.0 25.0
286
Gráfico 03
O que de mais imediato se faz notar no Gráfico é que, trazendo para o âmbito das considerações um fator como a tonicidade dos constituintes analisados, se pode falar, de certo modo, em um abismo a separar vocábulos que acolhem a marca da concordância, disparados à frente em todos os fatores vistos, daqueles que não atendem ao padrão, com evidente desvantagem numérica. Por fim, atrelada à saliência fônica está o número de sílabas do vocábulo. Nessa direção, fez uma repartição tripartida dos fatores em monossílabos, dissílabos e três ou mais sílabas. Os vocábulos monossilábicos representam-se em 263 casos, em que 218 (83.0%) se pluralizaram – OS quartoze dias (GMB, 01, 14.11.1834), OS feito desta Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836), AOS quatro dias do mes de Setembro (JFO, 07, 04.09.1836), AOS 16 dias do mez de Setembro de1832 (LTG, 04, 16.09.1832), AS 7 horas da manha (LTG, 15, 08.10.1835), AS emendas (MSR, 07, 15.01.1835), NOS dias asima dito (MSR, 09, 05.07.1835), CORES pretas (MVS, 03, 29.03.1835), mais AS Contas (MSR, 13, 06.06.1835), a LEIS (MVS, 02, 19.02.1834) –, enquanto que 45 (17.0%) não atenderam ao cânone – Aos dezoito DIA (JFO, 01, 18.10.1835), Aos dezacete DIA (JFO, 03, 17.04.1836), O pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841), O socios Adiminstradores (MSR, 06, 07.01.1835), A suas Somas (MSR, 15, 11.10.1835), AO dois DIA do Mez de Fevereiro (MVS, 01, 02.02.1834), O Mais Mezario Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834), Nossa Senhora do 287
Ruzario DO 15 Misterio (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de todos O Santos (MVS, 03, 29.03.1835). Em relação a palavras com 2 sílabas, 147 foram anotadas no corpus, sendo que, destas, conta-se em 112 (76.0%) as que receberam o morfema de plural – as duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), as NOSSÁS despoziçoins (JFO, 02, 01.11.1835), das CONTAS (FJO, 05, 10.07.1836), das NOSSAS JÓIAS (LTG, 02, 16.09.1832), CAZAS parteculares (LTG, 02, 16.09.1832), TODOS IRMÃOS Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), doZe VOTOZ (MSR, 03, 23.07.1834), dos MEMBROS (MSR, 15, 11.10.1835), TODOS CORPOS da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de TODOS o SANTOS (MVS, 03, 29.03.1835). 34 ocorrências (24.0%), ao contrário, ficaram despidas da marcação – os FEITO desta Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836), a Votacaõ das nossas IRMAÃ (JFO, 09, 30.10.1836), Vinte BRANCA (LTG, 02, 16.09.1832), PELA 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), mais MEMBRO da Junta (MSR, 01, 23.02.1834), Os JUIZ (MSR, 06, 07.01.1835), o NOVO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), o DITO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), as MEZA (MSR, 09, 05.07.1835), Chiolos LIVER (MVS, 03, 29.03.1835). Com três ou mais sílabas, a amostra estampa 149 ocorrências; pluralizadas, 92 (62.0%) – dos PROVEDORES (JFO, 01, 18.10.1835), Devoçaõ de Nossa Senhora da Solidade dos DESVALIDOS (JFO, 01, 18.10.1835), da DESPOZICOENS Geral (JFO, 02, 01.11.1835), Coffre dos ROZARIOS (LTG, 02, 16.09.1832), nas Cazas PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), todos Irmãos CONGRATULADOS (LTG, 04, 16.09.1832), Capella dos Quinze MISTERIOS (LTG, 09, 24.03.1833), o POGETOS OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), os ESTATUTOS offerecido (MSR, 05, 01.11.1834), PRUNANAMINE VONDADES (MVS, 03, 29.03.1835); não pluralizadas, 57 (38.0%) – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), o seos TRABALHO (GMB, 02, 29.12.1834), mais MEZARIO desta devoção (JFO, 02, 01.11.1835), das ASINATURA (JFO, 04, 05.06.1836), das mais PRESTADA do dito Tezoureiro (FJO, 06, 14.08.1836), todos os mais MOVIMENTO TENDENDE (FJO, 06, 14.08.1836), Loteria de mil Belhetes EMPRESSO (LTG, 11, 04.08.1833), os TRABALHO (LTG, 13, 03.05.1835), os Juiz FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), mais dous REQUERIMENTO do fiscar (MSR, 11, 19.07.1835). 288
Os índices organizados em uma Tabela oferecem a seguinte imagem sobre o número de sílabas, analisado no eixo da saliência fônica: SALIÊNCIA FÔNICA – NÚMERO DE SÍLABAS FATOR Monossílabos Dissílabos Três ou mais sílabas TOTAL Tabela 06
DADOS 263 147 149 559
C/ CONC. 218 112 92 422
% 83.0 76.0 62.0 75.0
S/ CONC. 45 35 57 137
% 17.0 24.0 38.0 25.0
Como se pode sublinhar, tanto através da Tabela acima, como do Gráfico abaixo, em que se privilegiaram as percentagens, parece não importar muito a variável número de sílabas do vocábulo, na medida em que a marcação do morfema de plural é alta, seja em palavras monossilábicas, dissilábicas ou naquelas com três ou mais sílabas. É bem verdade que parece haver uma curva descendente em relação a esse eixo: quanto menor o número de sílabas do vocábulo, maiores as chances de acolherem a informação de plural; de outro lado, se com três ou mais sílabas, os índices de constituintes que não se revestem da forma pluralizada ganham percentagens maiores.
Gráfico 04
289
3º. ATO – CENA 2: marcas precedentes A variável marcas precedentes analisa o item em questão, relacionando-o com o anterior, com vistas a verificar se exerce alguma influência no que diz respeito à marcação de plural. Dessa maneira, foi essa variável desmembrada em quatro fatores: ausência de elemento anterior, ausência de marca imediatamente precedente, presença de marca formal imediatamente precedente e, por fim, presença de marca semântica imediatamente precedente. A ausência de elemento anterior atingiu 223 dados. Desse número, 189 (85.0%) foram pluralizadas – AS duas Mezas Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), PELLAS Sete Oras da tarde (JFO, 02, 01.11.1835), TODOS poderes (LTG, 01, 10.09.1832), CAZAS parteculares (LTG, 02, 16.09.1832), DOS Irmão (MC, 02, 02.05.1841), Bahia de TODOS os Santos (MSR, 01, 23.02.1834), FOLHETOS enpreço (MSR, 03, 23.07.1834), SUAS Contas mensaes (MSR, 11, 19.07.1835), TODOS Corpos da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), CORES pretas (MVS, 03, 29.03.1835). As 34 ocorrências restantes (15.0%) não receberam o morfema de plural – O seos trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), DO Nossos estatutos (JFO, 02, 01.11.1835), O pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841), O socios Adiminstradores (MSR, 06, 07.01.1835), O novo Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), DO Senhores Devedores (MSR, 15, 11.10.1835), O Mais Mezario Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834), Nossa Senhora do Ruzario DO 15 Misterio (MVS, 03, 29.03.1835). Quanto à ausência de marca imediatamente precedente, colheram-se no corpus 40 casos; a maior parte, 29 (72.0%), foi alvo da marcação canônica – o SEOS trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), da DESPOZICOENS Geral (JFO, 02, 01.11.1835), Meza MENSAES (LTG, 08, 02.02.1833), o POGETOS oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), os primeiro
FUNDADORES
(MSR,
02,
23.02.1834),
os
atuaes
Soçio
ADMINISTRADORES (MSR, 04, 07.09.1834), as nossa IRMÃS (MSR, 12, 02.08.1835), seu MENSAES (MSR, 15, 11.10.1835), prunanamine VONDADES (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de todos o SANTOS (MVS, 03, 29.03.1835) – e somente 11 ocorrências (28.0%) não se pluralizaram – todos os mais moVimento 290
TENDENDE (FJO, 06, 14.08.1836), os Juiz FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), Illustríssimos Senhor IRMÃO Soçio (MSR, 07, 15.01.1835), Illustríssimos Senhor Irmão SOÇIO (MSR, 07, 15.01.1835), o NOVO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), as Emenda OFERECIDA (MSR, 08, 08.02.1834), o DITO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), nos dias asima DITO (MSR, 09, 05.07.1835), o Mais Mezario DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834), Mais Mezario REONIDO (MVS, 08, 16.10.1835). Estão no caso de ter como antecedentes vocábulos com a presença de marca formal 172 ocorrências, dentre as quais 120 (70.0%) se pluralizaram – Possé dos BEINS (JFO, 01, 18.10.1835), do Nossos ESTATUTOS (JFO, 02, 01.11.1835), estes PODERES (LTG, 01, 10.09.1832), Coffre do Rozário das PORTAS do Carmo (LTG, 02, 16.09.1832), todos IRMÃOS congratulados (LTG, 04, 16.09.1832), dos requezitos COSTUMADOS (LTG, 14, 04.10.1835), todos IRMÃOS Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), dos THEZOUREIROS (MSR, 14, 13.10.1835), todos CORPOS da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), Cores PRETAS (MVS, 03, 29.03.1835) –, ao passo que 52 (30.0%) não tiveram o mesmo comportamento – os NOMIADO (GMB, 01, 14.11.1834), o seos TRABALHO (GMB, 02, 29.12.1834), as duas Mezas REUNIDA (JFO, 01, 18.10.1835), da despozicoens GERAL (JFO, 02, 01.11.1835), Nossa Senhora da Solidade dos DESVALIDO (LTG, 09, 24.03.1833), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833),
todos
Irmãos
PRINCIPIANTE
(MSR,
02,
23.02.1834),
dos
PERTENCENTE Bilhetes (MSR, 15, 11.10.1835), Chiolos LIVER (MVS, 03, 29.03.1835), do Novos ADREMENETADOR (MVS, 08, 16.10.1835). 124 ocorrências têm como antecedente imediato a presença de vocábulos com marca semântica. 84 (68.0%) receberam regularmente a marca de plural – Os quartoze DIAS (GMB, 01, 14.11.1834), as duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), pellas Sete ORAS da tarde (JFO, 02, 01.11.1835), Aos dez DIAS do mez de Setembro (LTG, 01, 10.09.1832), dezoito FAVAS pretas (LTG, 02, 16.09.1832), Mais MEZARIOS (LTG, 05, 23.09.1832), Cincoenta TOXAS assezas (LTG, 12, 28.10.1833), mais ADMINISTRADORES da Devocaõ (MSR, 06, 07.01.1835), mais AS Contas (MSR, 13, 06.06.1835), Aos quartos DIAS do Mez de outubro de 1835 (MVS [LTG, 14, 04.10.1835]); já 40 dados (32.0%) permaneceram em suas formas singulares – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), mais MEZARIO 291
desta devoção (JFO, 02, 01.11.1835), Aos dezacete DIA (JFO, 03, 17.04.1836), das mais PRESTADA do dito Tezoureiro (FJO, 06, 14.08.1836), Oito VOTO (JFO, 13, 27.11.1842), Aos dezeceis DIA do mez de Novembro de1832 (LTG, 06, 16.11.1832), mil BILHETE (LTG, 14, 04.10.1835), pela 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), mais dous REQUERIMENTO do fiscar (MSR, 11, 19.07.1835), o Mais MEZARIO Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834). A Tabela a seguir resume os números coligidos para marcas precedentes: MARCAS PRECEDENTES FATOR Ausência de elemento anterior Ausência de marca imediatamente precedente Presença de marca formal imediatamente precedente Presença de marca semântica imediatamente precedente TOTAL Tabela 07
DADOS 223 40
C/ CONC. 189 29
% 85.0 72.0
S/ CONC. 34 11
% 15.0 28.0
172
120
70.0
52
30.0
124
84
68.0
40
32.0
559
422
75.0
137
25.0
O Gráfico abaixo mostra que, em termos percentuais, as maiores chances de aplicação da regra canônica da concordância ocorrem com mais freqüência quando nenhum elemento antecede ao analisado. Se há a ausência de marca imediatamente precedente, a percentagem de concordância ficou em torno de 72.0%. Os dados parecem indicar que tanto faz se a marca imediatamente precedente seja formal ou semântica, visto que as percentagens que afastam uma da outra não se estampam com relevância: a diferença ficou em torno de 2.0%.
292
Gráfico 05
3º. ATO – CENA 3: posição linear do constituinte A variável posição examina a posição linear do constituinte dentro do sintagma nominal. Desse modo, em um sintagma do tipo todos os Nossós Irmo-ins (JFO, 12, 02.10.1842), todos ocupa a primeira posição, os a segunda, Nossós a terceira e Irmo-ins a quarta. Desmembrou-se esta variável em cinco posições: a 1ª, a 2ª, a 3ª, a 4ª e a 5ª Dizem os que se debruçaram sobre o tema que, observando-se tão-somente a variável posição linear, é de se esperar que os elementos em 1ª posição retenham a marca de plural mais que nas outras. Na 1ª posição, 222 ocorrências foram encontradas. 189 (85.0%) reteve a marca de plural - OS quartoze dias (GMB, 01, 14.11.1834), AOS dezoito dia (JFO, 01, 18.10.1835), TODOS poderes (LTG, 01, 10.09.1832), AS cartas de regeite (LTG, 05, 23.09.1832), SENHORES Irmaõs (LTG, 09, 24.03.1833), FOLHETOS enpreço (MSR, 03, 23.07.1834), SUAS Contas mensaes (MSR, 11, 19.07.1835), DOS Creditos (MSR, 13, 06.06.1835), Valedoza Sidade da Bahia de TODOS o Santos (MVS, 03, 29.03.1835), AOS onze Dia do Mez de outubro (MVS [MSR, 15, 11.10.1835]), mas ocorreu, contudo, que, nesta mesma posição, 33 dados ficassem carentes do morfema – O seos trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), DO Nossos estatutos (JFO, 02, 01.11.1835), PELA 8 ora da Menha (MC, 01, 21.10.1834), O 293
pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841), O novo Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), O dito Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), AO dois dia do Mez de Fevereiro (MVS, 01, 02.02.1834), A Leis (MVS, 02, 19.02.1834). Na 2ª. posição foram encontrados 202 casos; dentre estes, 147 (73.0%) foram marcados com o morfema de plural – dos PROVEDORES (JFO, 01, 18.10.1835), mais MEZARIOS (JFO, 01, 18.10.1835), Actual ADEMINISTRADORES (JFO, 01, 18.10.1835), todos PODERES (LTG, 01, 10.09.1832), das NOSSAS jóias (LTG, 02, 16.09.1832), cazas PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), do MENCAES (MC, 02, 02.05.1841), Bahia de todos OS Santos (MSR, 01, 23.02.1834), dos DEVOTOZ de Nossa Senhora (MSR, 03, 23.07.1834), Cores PRETAS (MVS, 03, 29.03.1835) –, ficando 55 (27.0%) órfãos desse mesmo morfema – dos DESVALIDO (JFO, 02, 01.11.1835), os FEITO desta Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836), Vinte BRANCA (LTG, 02, 16.09.1832), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), mais MEMBRO da Junta (MSR, 01, 23.02.1834), os PRIMEIRO fundadores (MSR, 02, 23.02.1834), folhetos ENPREÇO (MSR, 03, 23.07.1834), sinco MEBRO (MSR, 05, 01.11.1834), as EMENDA oferecida (MSR, 08, 08.02.1834), dos PERTENCENTE Bilhetes (MSR, 15, 11.10.1835). Na 3ª posição, flagraram-se 122 constituintes. Pluralizaram-se 80 (66.0%) – as duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), dos Seus DEVERES (JFO, 02, 01.11.1835), todos os NOSSÓS Irmo-ins (JFO, 12, 02.10.1842), todos Irmãos CONGRATULADOS (LTG, 04, 16.09.1832), os dous DIFFINIDORES (LTG, 06, 16.11.1832), Cincoenta Toxas ASSEZAS (LTG, 12, 28.10.1833), dos tres MEZES (LTG, 15, 08.10.1835), o pogetos OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), as oito ORAS da manhã (MSR, 06, 07.01.1835), do Senhores DEVEDORES (MSR, 15, 11.10.1835). Do contrário, ou seja, sem a marca explícita de plural, somam 42 (34.0%) os constituintes – o seos TRABALHO (GMB, 02, 29.12.1834), da despozicoens GERAL (JFO, 02, 01.11.1835), Aos dezeceis DIA do mez de Novembro de1832 (LTG, 06, 16.11.1832), Loteria de mil Belhetes EMPRESSO (LTG, 11, 04.08.1833), os Juiz FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), mais dous REQUERIMENTO do fiscar (MSR, 11, 19.07.1835), as quantias PERTENCENTE (MSR, 15, 11.10.1835), Ao deNove DIA do Mez de Feverero (MVS, 02, 19.02.1834), Nossa Senhora do Ruzario do 15 MISTERIO (MVS, 03, 29.03.1835), do Novos ADREMENETADOR (MVS, 08, 16.10.1835). 294
11 elementos encontraram um lugar de seu na 4ª posição: 5 (45.0%) acolheram o morfema de plural – Aos os trinta DIAS (JFO, 09, 30.10.1836), todos os Nossós IRMO-INS (JFO, 12, 02.10.1842), os mais mezarios REUNIDOS (LTG, 06, 16.11.1832), os mais mezarios REUNIDOS (LTG, 07, 16.11.1832), os atuaes Soçio ADMINISTRADORES (MSR, 04, 07.09.1834); 6 (55.5%) manifestaram-se na sua forma singular – as duas Mezas REUNIDA (JFO, 01, 18.10.1835), todos os mais MOVIMENTO tendende (FJO, 06, 14.08.1836), as mais Coizas TENDENTE (JFO, 07, 04.09.1836), Illustríssimos Senhor Irmão SOÇIO (MSR, 07, 15.01.1835), nos dias asima DITO (MSR, 09, 05.07.1835), o Mais Mezario DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834). Por fim, apenas 2 casos se localizam na 5ª posição: 1 dado (50.0%) foi para o plural – todos Corpos da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835) – e o outro (50.0%) permaneceu no singular – todos os mais moVimento tendende (FJO, 06, 14.08.1836). A seguir, uma imagem dos índices reunidos numa Tabela:
POSIÇÃO LINEAR DO CONSTITUINTE FATOR
DADOS
C/ CONC.
%
S/ CONC.
%
1ª. posição
222
189
85.0
33
15.0
2ª. posição
202
147
73.0
55
27.0
3ª. posição
122
80
66.0
42
34.0
4ª. posição
11
05
45.0
06
55.0
5ª. posição
02
01
50.0
01
50.0
559
422
75.0
137
25.0
TOTAL Tabela 08
Faz perceber a Tabela, e também o Gráfico abaixo, que a 1ª posição é percentualmente a mais marcada, seguida pela 2ª, pela 3ª, pela 5ª e, por fim, pela 4ª Contudo, há de se avaliarem com cautela as duas últimas posições em função do número de constituintes nelas inseridos: na 4ª posição, têm-se 11 elementos, ao passo que, na 5ª, apenas 2. De qualquer sorte, parecem deixar claro os números que, no
295
tocante aos dados aqui avaliados, as primeiras posições, em ordem decrescente, são as mais marcadas em termos percentuais.
Gráfico 06
Palavras de Scherre (1988, p. 157):
Com relação ao fato de os determinantes apresentarem menos marcas na primeira posição, é importante observar que neste caso os determinantes não marcados se encontram inseridos numa estrutura sintagmática bastante peculiar, ou seja, ocorrem nas seqüências do tipo [artigo ou demonstrativo + possessivo + substantivo] (casa do meus pais).
A autora, para explicar esse comportamento, acorre ao estudo de Silva, intitulado O estudo da regularidade dos possessivos no português do Rio de Janeiro15. Afirma o estudo referido que o falante tende a não analisar a contração do tipo no e po como dois morfemas: preposição e artigo. Segundo Scherre (1988, p. 164), os seus dados indicam que o falante pode estar analisando esta contração como uma preposição, portanto como uma categoria que não se flexiona e não apresenta marcas de plural. Esta possibilidade de reanálise, continua Scherre, atrás referida, parece tão Referência completa: SILVA, Giselle Machiline de Oliveira e (1982). O estudo da regularidade dos possessivos no português do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
15
296
forte que se estende aos artigos diante de possessivos precedidos de preposição que não apresentam contração e mesmo àqueles não precedidos de preposição. Aconteceu também situação semelhante nos dados de Carmela, estudados por Capellari e Zilles (2002): aminhas, daminhas. A explicação das autoras, entretanto, vai por outro caminho. Elas apostam em uma hipótese de que, nesses casos, pode estar havendo um processo assimilatório entre o artigo e o possessivo. Desse modo, o que estaria acontecendo não é uma marcação na segunda posição, uma vez que a marca permaneceria na primeira, só que assimilada. Seja como for, o que os dados aqui analisados mostram é que, em relação à ausência de marcação de plural na 1ª posição, os elementos não flexionados não se localizam, na maioria dos casos, em uma estrutura sintagmática peculiar, pelo contrário, espraiam-se por estruturas de constituição variada:
Estruturas em que não se marcou o plural na 1ª posição do sintagma: •
[ART + SUBST]: A Leis (MVS, 02, 19.02.1834), A Leis (MVS, 04, 05.04.1835)
•
[ADJ + SUBST]: ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), O Senhores (MSR, 13, 06.06.1835)
•
[INDEF + SUBST]: QUALQUER Mezários (LTG, 08, 02.02.1833)
•
[SUBST + ADJ]: MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833)
•
[POSS + SUBST]: SEU mensaes (MSR, 15, 11.10.1835)
•
[ART + POSS + SUBST]: O seos trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), A suas Somas (MSR, 15, 11.10.1835)
•
[ART + SUBST + ADJ]: O pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), O socios Adiminstradores (MSR, 06, 07.01.1835)
•
[ART + ADJ + SUBST]: O novo Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), O dito Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834)
•
[ART + ADV + SUBST]: O Mais Mezario (MVS, 02, 19.02.1834), O Mais Mezario (MVS[LTG, 14, 04.10.1835])
16
•
[ART + SUBST + X16]: O numeros de cinco (MSR, 15, 11.10.1835)
•
[PREP + ART + SUBST]: DO termos (JFO, 04, 05.06.1836), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841)
•
[PREP + ADJ + SUBST]: PRUNANAMINE Vondades (MVS, 03, 29.03.1835)
•
[ART + ADV + SUBST + ADJ]: O Mais Mezario Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834)
Sintagma preposicionado.
297
•
[PREP + ART + SUBST + ADJ]: DA despozicoens Geral (JFO, 02, 01.11.1835), DO Senhores Devedores (MSR, 15, 11.10.1835)
•
[PREP + ART + POSS + SUBST]: DO Nossos estatutos (JFO, 02, 01.11.1835), DO nossos deveres (JFO, 08, 02.10.1836), DO Nossós Estatuto (JFO, 12, 02.10.1842)
•
[PREP + ART + NUM + SUBST]: Nossa Senhora do Ruzario DO 15 Misterio (MVS, 03, 29.03.1835)
•
[PREP + ART + NUM + SUBST + X]: PELA 8 ora da Menha (MC, 01, 21.10.1834), AO dois dia do Mez de Fevereiro (MVS, 01, 02.02.1834), AO deNove dia do Mez de Feverero (MVS, 02, 19.02.1834), AO Cinco dia do Mez de Abril (MVS, 04, 05.04.1835), AO Cinco dia do Mez de Abril (MVS, 04, 05.04.1835)
•
[PREP + ART + ART + SUBST]: PELLA as fatas (MC, 02, 02.05.1841)
•
[PREP + ART + ADJ + SUBST]: DO Novos Adremenetador (MVS, 08, 16.10.1835)
3º. ATO – CENA 4: posição do constituinte em relação ao núcleo Para esta variável, foram convocados 7 fatores: constituintes pré-nucleares em 1ª posição, constituintes pré-nucleares em 2ª e demais posições, constituintes nucleares em 1ª posição, constituintes nucleares em 2ª posição, constituintes nucleares em 3ª e demais posições, constituintes pós-nucleares em 1ª posição e constituintes pós-nucleares em 2ª e demais posições. A presente variável permite a observação da freqüência de marcas de plural no elemento analisado, considerando a sua posição em relação ao núcleo. A hipótese que move a utilização dessa variável é a de que elementos antepostos ao núcleo sejam mais favoráveis à marcação de plural do que os itens subseqüentes. Os constituintes pré-nucleares em 1ª posição somam 213 na amostra; 181 formas (85.0%) pluralizaram-se – OS nomiado (GMB, 01, 14.11.1834), ALGÚNS Irmoins (JFO, 04, 05.06.1836), ESTES termo (JFO, 08, 02.10.1836), TODOS Irmãos congratulados (LTG, 04, 16.09.1832), SENHORES Irmaõs (LTG, 09, 24.03.1833), AS murta (MC, 02, 02.05.1841), SUAS Contas mensaes (MSR, 11, 19.07.1835), SUAS Gavettas (MSR, 12, 02.08.1835), TODOS Corpos da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de TODOS o Santos (MVS, 03, 29.03.1835). A marca explícita de plural não perpassou por 32 ocorrências (15.0%) – O seos trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), ACTUAL aDeministradores (JFO, 01, 18.10.1835), DO nossos deveres (JFO, 08, 02.10.1836), QUALQUER Mezários (LTG, 08, 02.02.1833), O pogetos 298
oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), SEU mensaes (MSR, 15, 11.10.1835), DO Senhores Devedores (MSR, 15, 11.10.1835), O Mais Mezario Dreminitador (MVS, 01, 02.02.1834), A Leis (MVS, 02, 19.02.1834), Nossa Senhora do Ruzario DO 15 Misterio (MVS, 03, 29.03.1835). Já em 2ª e demais posições, flagraram-se 33 constituintes pré-nucleares, dentre os quais 26 (79.0%) acolheram o morfema de plural – nos SEUS Mencais (JFO, 02, 01.11.1835), do NOSSOS estatutos (JFO, 02, 01.11.1835), as NOSSÁS despoziçoins (JFO, 02, 01.11.1835), a Votacaõ das NOSSAS Irmaã (JFO, 09, 30.10.1836), dos ACTUÁES Mezarios (LTG, 09, 24.03.1833), dos FALECIDOS Irmãos (LTG, 12, 28.10.1833), dos NOVOS Estatutos (MSR, 07, 15.01.1835), mais AS Contas (MSR, 13, 06.06.1835), dos NOVOS Administradores (MSR, 15, 11.10.1835), do NOVOS Adremenetador (MVS, 08, 16.10.1835) –, ao passo que 7 (21.0%) ficou dele carecente – os PRIMEIRO fundadores (MSR, 02, 23.02.1834), Illustríssimos SENHOR Irmão Soçio (MSR, 07, 15.01.1835), o NOVO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), o DITO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), as NOSSA Irmãs (MSR, 12, 02.08.1835), dos PERTENCENTE Bilhetes (MSR, 15, 11.10.1835), Valedoza Sidade da Bahia de todos O Santos (MVS, 03, 29.03.1835). Constituintes nucleares em 1ª posição totalizam 6. Deste número, 5 receberam a flexão de plural – TODOS Reunidos (JFO, 08, 02.10.1836), CAZAS parteculares (LTG, 02, 16.09.1832), FOLHETOS enpreço (MSR, 03, 23.07.1834), CHIOLOS Liver (MVS, 03, 29.03.1835), CORES pretas (MVS, 03, 29.03.1835) – e para apenas 1 caso (17.0%) isso não ocorreu – MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833). Número bastante significativo diz respeito aos constituintes nucleares quando em 2ª posição: no corpus, eles perfazem a soma de 165 ocorrências. Atenderam ao cânone 119 formas (72.0%) – dos PROVEDORES (JFO, 01, 18.10.1835), da DESPOZICOENS Geral (JFO, 02, 01.11.1835), Senhor dos MARTIRIOS (LTG, 02, 16.09.1832), dezoito FAVAS pretas (LTG, 02, 16.09.1832), todos IRMÃOS Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), mais ADMINISTRADORES da Devocaõ (MSR, 06, 07.01.1835), Livro dos TERMOS (MSR, 07, 15.01.1835), Suas GAVETTAS (MSR, 12, 02.08.1835), todos CORPOS da Devoçaõ, Reonidos (MVS, 03, 29.03.1835), a LEIS (MVS, 04, 05.04.1835). Despidas da flexão de plural estão 46 casos (28.0%) – dos 299
DESVALIDO (JFO, 02, 01.11.1835), os FEITO desta Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), mil BILHETE (LTG, 14, 04.10.1835), dos IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), as MURTA (MC, 02, 02.05.1841), Os JUIZ (MSR, 06, 07.01.1835), as EMENDA oferecida (MSR, 08, 08.02.1834), tres MEZ trabralha (MVS, 07, 07.07.1835), 5 ATIGO (MVS, 07, 14.06.1835). 104 ocorrências exibem constituintes nucleares em 3ª e demais posições. Receberam marca de plural 74 elementos (71.0%) – Os quartoze DIAS (GMB, 01, 14.11.1834), as duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), do Nossos ESTATUTOS (JFO, 02, 01.11.1835), Aos dez DIAS do mez de Setembro (LTG, 01, 10.09.1832), os mais MEZARIOS reunidos (LTG, 06, 16.11.1832), Bahia de todos os SANTOS (MSR, 01, 23.02.1834), os primeiro FUNDADORES (MSR, 02, 23.02.1834), dos Pertencente BILHETES (MSR, 15, 11.10.1835), dos novos ADMINISTRADORES (MSR, 15, 11.10.1835), Valedoza Sidade da Bahia de todos o SANTOS (MVS, 03, 29.03.1835). Carecendo do morfema de plural ficaram 30 itens (29.0%) – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), o seos TRABALHO (GMB, 02, 29.12.1834), Aos dezacete DIA (JFO, 03, 17.04.1836), todos os mais MOVIMENTO tendende (FJO, 06, 14.08.1836), a Votacaõ das nossas IRMAÃ (JFO, 09, 30.10.1836), pela 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), nos Qinze MISTERIO (MSR, 06, 07.01.1835), mais dous REQUERIMENTO do fiscar (MSR, 11, 19.07.1835), Ao Cinco DIA do Mez de Abril (MVS, 04, 05.04.1835), do Novos ADREMENETADOR (MVS, 08, 16.10.1835). Considerando-se os constituintes pós-nucleares, aqueles localizados na 1ª posição se estampam em 37 na amostra, dentre os quais 16 (43.0%) se revestiram da forma plural – todos REUNIDOS (JFO, 08, 02.10.1836), cazas PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), dezoito favas PRETAS (LTG, 02, 16.09.1832), todos Irmãos CONGRATULADOS (LTG, 04, 16.09.1832), os mais mezarios REUNIDOS (LTG, 07, 16.11.1832), mais Menbros ADMINISTRADORES (LTG, 15, 08.10.1835), o pogetos OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), os atuaes Soçio ADMINISTRADORES (MSR, 04, 07.09.1834), suas Contas MENSAES (MSR, 11, 19.07.1835), Cores PRETAS (MVS, 03, 29.03.1835), ao passo que 21 (57.0%) permaneceram na sua forma singular – as duas Mezas REUNIDA (JFO, 01, 18.10.1835), da despozicoens GERAL (JFO, 02, 300
01.11.1835), todos os mais moVimento TENDENDE (FJO, 06, 14.08.1836), mais mezários REUNIDO (LTG, 11, 04.08.1833), Loteria de mil Belhetes EMPRESSO (LTG, 11, 04.08.1833), os Juiz FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), folhetos ENPREÇO (MSR, 03, 23.07.1834), os Estatutos OFFERECIDO (MSR, 05, 01.11.1834), os trabalho DETERMINADO (MSR, 15, 11.10.1835), Mais Mezario REONIDO (MVS, 08, 16.10.1835). Apenas 1 elemento foi encontrado ocupando a 2ª e demais posições e foi para o plural – todos Corpos da Devoçaõ, REONIDOS (MVS, 03, 29.03.1835). Guardem-se os índices reunidos na Tabela vindoura:
POSIÇÃO DO CONSTITUINTE EM RELAÇÃO AO NÚCLEO FATOR Constituintes pré-nucleares em 1ª posição Constituintes pré-nucleares em 2ª e demais posições Constituintes nucleares em 1ª posição Constituintes nucleares em 2ª posição Constituintes nucleares em 3ª e demais posições Constituintes pós-nucleares em 1ª posição Constituintes pós-nucleares em 2ª e demais posições TOTAL Tabela 09
DADOS 213 33
C/ CONC. 181 26
% 85.0 79.0
S/ CONC. 32 07
% 15.0 21.0
06 165 104
05 119 74
83.0 72.0 71.0
01 46 30
17.0 28.0 29.0
37 01
16 01
43.0 100.0
21 0
57.0 0.0
559
422
75.0
137
25.0
A Tabela aponta para um fato incontestável, mas que não é nenhuma novidade nos estudos sobre variação de concordância: os constituintes pré-nucleares parecem exibir tendências a reterem a marca de plural mais que os constituintes pósnucleares. Observe-se que, mesmo havendo a variação da concordância nos constituintes pré-nucleares localizados em 1ª, 2ª e demais posições, os índices referentes à retenção exibem para mais a marca explícita da concordância. Dá-se exatamente o contrário com os constituintes pós-nucleares em 1ª posição: a falta de marca explícita de plural ultrapassa os itens em que o morfema se manifesta. Os constituintes nucleares fazem pouca aparição na primeira posição do sintagma nominal, mesmo assim tendem a assimilar a marca de plural; já na 2ª, 3ª e demais posições, o que se pode colocar em relevo é que a variação na concordância é 301
maior, mesmo que prevaleçam altos índices referentes à retenção da marca. Tudo isso revela o Gráfico a seguir:
Gráfico 7
3º. ATO – CENA 5: redator do documento O que motivou a inclusão de uma variável não lingüística, desfronhada em 6 fatores – Gregório Manuel Bahia (GMB), José Fernandes do Ó (JFO), Luís Teixeira Gomes (LTG), Manuel da Conceição (MC), Manuel do Sacramento e Conceição Rosa (MSR) e Manuel Vítor Serra (MVS) –, neste estudo? A paleografia italiana, em um artigo clássico de Petrucci (1978), reconhece, para qualquer tempo histórico, a imersão de um indivíduo na cultura escrita através de uma visão tripartida quanto às características físicas da execução caligráfica. Os escreventes com competência gráfica elementar ou de base se manifestam por apresentarem traçado muito descuidado, incapacidade de alinear perfeitamente as letras num regramento ideal, tendência a dar às letras um aspecto desenquadrado, uso de módulos grandes, emprego de letras maiúsculas do alfabeto, mesmo no meio da palavra, abreviaturas escassas, bem como a falta de ligação entre os caracteres das palavras e, por fim, rigidez e falta de leveza ao conjunto do texto. Concorda-se, entretanto, com Marquilhas (2000, p. 238-239), quando diz que as características supracitadas não precisam, necessariamente, ser cumulativas ou equilibradas, e também quando afirma que a presença rara ou não de abreviaturas e 302
o emprego de letras maiúsculas ou minúsculas se inserem em outro nível de análise que em nada tem a ver com as propriedades físicas do objeto escrito e, desse modo, não se relacionam com maior ou menor destreza no processo de execução caligráfica. Do lado oposto às mãos com competência gráfica elementar, estão as ‘in pura’, no dizer de Petrucci (1978), reconhecendo-se-lhes as seguintes características: escrita tecnicamente bem executada, cercada de detalhes, identificáveis, sobretudo, em filetes enfeitados junto às letras; módulo pequeno, produzido com muita segurança e perícia, respeitando a relação entre o corpo da letra e as hastes, sejam elas descendentes ou ascendentes. Distinguem-se ainda pelo limitado número de abreviações e, quanto aos ligamentos entre letras, prezam pela espontaneidade, fruto de uma escolha estética. Entre esses extremos – mãos com competência gráfica elementar ou de base e mãos ‘in pura’ –, assentam-se as ‘in usual’, que registram maior fluidez na escrita, traçado mais regular do que os do primeiro grupo, módulo menor da letra e melhor alinhada, uso de abreviações e de ligamentos. De modo geral, é uma escrita de quem não ficou relegado ao nível elementar, mas que é usada por necessidades de trabalho ou, então, por quem, tendo um bom modelo, o repete de maneira diligente sem necessariamente precisar de um exercício constante. Esse grupo se destaca pela heterogeneidade, abraçando, por vezes, características afetas tanto à primeira, quanto à terceira facção. Vamos encontrar representantes nesses 3 níveis de competência gráfica: elementar, ‘in pura’ e usual, como demonstram, respectivamente, as figuras seguintes, contudo tem-se a impressão – o flagrante das características afetas a cada um dos níveis envolve, em alguma medida, um quê de subjetividade – de que prevalecem as estacionadas no nível de competência gráfica usual.
303
Figura 01 – Documento escrito por Manuel da Conceição: competência gráfica elementar
304
Figura 02 – Documento escrito por José Fernandes do Ó: competência gráfica “in usual”
305
Figura 03 – Documento escrito por Luís Teixeira Gomes: competência gráfica “in pura”
306
Explicado o motivo por ter-se levado em consideração cada mão individualmente, a análise da variação da concordância de número no sintagma nominal revelou os seguintes resultados: Gregório Manuel Bahia totalizou, em seus documentos, 11 constituintes passíveis de receberem a flexão da concordância de número; fê-lo em 7 (64.0%) – OS quartoze DIAS (GMB, 01, 14.11.1834), Nossa Senhora do Rozario DOS quinze Misterio (GMB, 01, 14.11.1834), OS nomiado (GMB, 01, 14.11.1834), AOS vinte noue DIAS (GMB, 02, 29.12.1834), o SEOS trabalho (GMB, 02, 29.12.1834), mas, em 4 ocorrências, a marca de plural não deu o “ar de sua graça” – Nossa Senhora do Rozario dos quinze MISTERIO (GMB, 01, 14.11.1834), os NOMIADO (GMB, 01, 14.11.1834), O seos TRABALHO (GMB, 02, 29.12.1834). 139 constituintes foram legados pelos documentos escritos por José Fernandes do Ó. O autor atendeu ao cânone em 108 ocorrências (78.0%) – AOS dezoito dia (JFO, 01, 18.10.1835), DOS PROVEDORES (JFO, 01, 18.10.1835), Devoçaõ de Nossa Senhora da Solidade DOS DESVALIDOS (JFO, 01, 18.10.1835), NOS SEUS MENCAIS (JFO, 02, 01.11.1835), AS NOSSÁS DESPOZIÇOINS (JFO, 02, 01.11.1835), AOS dezacete dia (JFO, 03, 17.04.1836), mais MEZARIOS (JFO, 04, 05.06.1836), DOS RECEBIMENTOS (JFO, 04, 05.06.1836), ALGÚNS IRMOINS (JFO, 04, 05.06.1836), DOS DEVITOS (JFO, 05, 10.07.1836) –, enquanto 31 (22.0%) ficaram nuas das vestes da concordância – as duas Mezas REUNIDA (JFO, 01, 18.10.1835), DO Nossos estatutos (JFO, 02, 01.11.1835), os FEITO desta Reuniaõ (JFO, 04, 05.06.1836), os TRATO (JFO, 05, 10.07.1836), das mais PRESTADA do dito Tezoureiro (FJO, 06, 14.08.1836), estes TERMO (JFO, 08, 02.10.1836), Aos trezé DIA do mes de Novembro (JFO, 10, 13.11.1836), DO Nossós ESTATUTO (JFO, 12, 02.10.1842), as CONTA (JFO, 12, 02.10.1842), Oito VOTO (JFO, 13, 27.11.1842). Luís Teixeira Gomes assume a responsabilidade de 144 casos. Dentro desse número, pluralizou 130 itens (90.0%) – AOS dez DIAS do mez de Setembro (LTG, 01, 10.09.1832), DAS NOSSAS JÓIAS (LTG, 02, 16.09.1832), Coffre DOS ROZARIOS (LTG, 02, 16.09.1832), CAZAS PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), honze PRETAS (LTG, 02, 16.09.1832), NAS CAZAS PARTECULARES (LTG, 02, 16.09.1832), OS TRABALHOS (LTG, 02, 16.09.1832), AOS 16 DIAS do mez de 307
Setembro de1832 (LTG, 04, 16.09.1832), AS CARTAS de regeite (LTG, 05, 23.09.1832), AS doze HORAS (LTG, 06, 16.11.1832) – e apenas 14 (10.0%) não acolheram a marca de plural – vinte huma BRANCA (LTG, 02, 16.09.1832), Aos dezeceis DIA do mez de Novembro de1832 (LTG, 06, 16.11.1832), QUALQUER Mezários (LTG, 08, 02.02.1833), MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), dos CAPÍTULO (LTG, 09, 24.03.1833), mais mezários REUNIDO (LTG, 11, 04.08.1833), Loteria de mil Belhetes EMPRESSO (LTG, 11, 04.08.1833), os TRABALHO (LTG, 13, 03.05.1835), mil BILHETE (LTG, 14, 04.10.1835). Manuel do Sacramento e Conceição Rosa foi quem legou o maior número de itens passíveis de pluralizar-se: 197. Pluralizou, de fato, 151 ocorrências (77.0%) – Bahia de TODOS OS SANTOS (MSR, 01, 23.02.1834), OS Juiz Fundador (MSR, 02, 23.02.1834), TODOS IRMÃOS Principiante (MSR, 02, 23.02.1834), AOS Vinte DIÁS domez de Julho (MSR, 03, 23.07.1834), DOS DEVOTOZ de Nossa Senhora (MSR, 03, 23.07.1834), OS ATUAES Soçio ADMINISTRADORES (MSR, 04, 07.09.1834), OS ESTATUTOS offerecido (MSR, 05, 01.11.1834), AS oito ORAS da manhã (MSR, 06, 07.01.1835), AS EMENDAS da Cumicaõ (MSR, 06, 07.01.1835), DOS NOVOS ESTATUTOS
(MSR, 07, 15.01.1835). As 46 ocorrências sobrantes (23.0%) restaram
no singular – mais MEMBRO da Junta (MSR, 01, 23.02.1834), os JUIZ FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), os PRIMEIRO fundadores (MSR, 02, 23.02.1834), os Irmãos SEGUINTE (MSR, 05, 01.11.1834), estes TERMO (MSR, 06, 07.01.1835), Nossa Senhora do Rozário dos 15 MISTÉRIO (MSR, 07, 15.01.1835), O DITO Estatutos (MSR, 08, 08.02.1834), nos dias asima DITO (MSR, 09, 05.07.1835), as NOSSA Irmãs (MSR, 12, 02.08.1835), os TRABALHO DETERMINADO (MSR, 15, 11.10.1835). Manuel da Conceição registrou 17 itens, dentre os quais 8 (47.0%) foram para o plural – o POGETOS OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), DOS Irmão (MC, 02, 02.05.1841), do MENCAES (MC, 02, 02.05.1841), AS murta (MC, 02, 02.05.1841), OS Irmão (MC, 02, 02.05.1841), pella AS FATAS (MC, 02, 02.05.1841) –; já 9 (53.0%), esses permaneceram no singular – mais MEZARIO (MC, 01, 21.10.1834), PELA 8 ORA da Menha (MC, 01, 21.10.1834), O pogetos oferecidos (MC, 01, 21.10.1834), dos IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841), as MURTA (MC, 02, 02.05.1841), os IRMÃO (MC, 02, 02.05.1841), PELLA as fatas (MC, 02, 02.05.1841). 308
51 ocorrências foram registradas pelas mãos de Manuel Vítor Serra. O autor levou para o plural 18 (35.0%) – a LEIS (MVS, 02, 19.02.1834), TODOS CORPOS da Devoçaõ, REONIDOS (MVS, 03, 29.03.1835), prunanamine VONDADES (MVS, 03, 29.03.1835), Senhora da Sollidade DOS DEVALIDOS (MVS, 03, 29.03.1835), CHIOLOS Liver (MVS, 03, 29.03.1835), CORES PRETAS (MVS, 03, 29.03.1835), Valedoza Sidade da Bahia de TODOS o SANTOS (MVS, 03, 29.03.1835), AOS sete dia do Mez de Junho de1835 (MVS, 07, 07.07.1835), do NOVOS Adremenetador (MVS, 08, 16.10.1835), AOS quartos DIAS do Mez de outubro de 1835 (MVS[LTG, 14, 04.10.1835]) – e deixou no singular 33 (65.0%) – O dois DIA do Mez de Fevereiro (MVS, 01, 02.02.1834), O Mais MEZARIO DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834), AO deNove DIA do Mez de Feverero (MVS, 02, 19.02.1834), O Mais MEZARIO (MVS, 02, 19.02.1834), A Leis (MVS, 02, 19.02.1834), A Vinte Nove DIA do Mez de Março (MVS, 03, 29.03.1835), PRUNANAMINE Vondades (MVS, 03, 29.03.1835), Chiolos LIVER (MVS, 03, 29.03.1835), tres MEZ trabralha (MVS, 07, 07.07.1835), Mais MEZARIO REONIDO (MVS, 08, 16.10.1835). Vejam-se os índices reunidos na Tabela abaixo, mas é o Gráfico que se lhe segue que licencia, de forma mais clara, algumas conclusões: REDATOR DA ATA DADOS
C/ CONC.
%
S/ CONC.
%
Gregório Manuel Bahia
FATOR
11
07
64.0
04
36.0
José Fernandes do Ó
139
108
78.0
31
22.0
Luís Teixeira Gomes
144
130
90.0
14
10.0
Manuel do S. Conceição Rosa
197
151
77.0
46
23.0
Manuel da Conceição
17
08
47.0
09
53.0
Manuel Vítor Serra
51
18
35.0
33
65.0
559
422
75.0
137
25.0
TOTAL Tabela 10
309
Gráfico 08
Salta aos olhos, primeiramente, que nenhum autor escapou da variação da concordância de número nos seus textos. Luís Teixeira Gomes se destaca por ser a mão que estampa os índices mais altos de formas pluralizadas, seguido por Manuel do Sacramento e Conceição Rosa e José Fernandes do Ó. Enfeixa essas mãos, adicionando também a de Gregório Manuel Bahia, o fato de que, para mais ou para menos, todas mantiveram os números referentes à retenção da marca de plural maiores dos que aqueles em que a marca não se explicitou. Em situação oposta, encontram-se Manuel da Conceição e Manuel Vítor Serra. Para esses dois autores, abrir mão do morfema de plural no total dos constituintes “bateu mais forte”, daí o Gráfico, quando chega à zona em que residem, se inverter. Outro aspecto a ser sublinhado, mesmo que de leve e que mereça pesquisa mais sistemática, é a correspondência que pode ser feita entre execução caligráfica e variação na concordância nominal. Observe-se a relação que há entre o produto gráfico saído das mãos de Luís Teixeira Gomes, classificado como “in pura”, e os baixíssimos índices referentes à ausência da marca de concordância. Por outro lado, Manuel da Conceição e Manuel Vítor Serra, mãos estacionadas em competência gráfica elementar, inverteram em relação aos outros autores, como já foi dito, os percentuais de concordância, que caminharam para o não.
310
3º. ATO – CENA 6: Presença / ausência do constituinte em fórmula Barbosa (2006, p. 762), quando o assunto é a formação de corpora em função de uma história lingüística do português brasileiro, assim se manifesta:
Alguns dentre eles [os corpora] são mais que significativos, são representativos, pois apresentam a qualidade de escrita de um grupo sociocultural de determinada época – seja escrita cotidiana ou especial. Dessa forma, o texto de um negro alfabetizado no século XVIII é significativo por conta da quase impossibilidade de ser encontrado material como esse. Contudo, mesmo que achado, esse material não representaria, necessariamente, a linguagem de negros da época: poderia estar repleto de fórmulas e padrões lusos. Em contrapartida, textos de uma tradição discursiva européia de contornos bem fixados, como os de atas, podem ser representativos de uma dada comunidade de negros se eles reúnem aspectos do contexto de vida dessa mesma comunidade que os produziu com regularidade. Mapeando-se as fórmulas lusas repetidas pela mão do negro alfabetizado, separamos os trechos de escrita cotidiana onde marcas da linguagem do grupo desse redator podem transparecer. (nosso o negrito)
Contudo, para contrapor essa opinião, vai-se dar um “pulinho” no português arcaico e observar o que Martins (2001, p. 30) revela sobre o seu estudo a respeito da sintaxe dos clíticos em Documentos portugueses do noroeste e da região de Lisboa – da produção primitiva ao século XVI:
...ao arrepio da ideia de que os textos não-literários, nomeadamente notariais, são discursivamente pobres, caracteristicamente repetitivos e carregados de fórmulas e construções cristalizadas, o estudo que realizei [sobre a sintaxe dos clíticos] mostrou que a cristalização sintáctica destes textos é apenas aparente. Neles a colocação dos clíticos muda até em fórmulas que “não mudam”. Tomemos um exemplo que mostra bem o carácter variável da fórmula legal no discurso notarial. As donas do mosteiro de Chelas usavam reunir-se na sala do cabido para outorgar contratos de diversos tipos. Ao longo de dois séculos não mudam este procedimento, tornado requisito legal, nem os tabeliães encarregados de formalizar os actos mudam no essencial a forma de dele dar testemunho escrito. No entanto, a partir de meados do século XV, tendo em conta os documentos que edito, as donas de Chelas deixam de reunir-se ‘ao som de campa tanjuda’, passando a fazê-lo ‘ao som de campa tanjida’; a cláusula jurídico-literária mantém-se, mas muda a forma do particípio passado. (da autora o negrito)
E de que lado estão os dados coligidos nesse estudo? Dos 559 constituintes analisados, 156 (28.0%) residem em fórmulas, como as que se seguem na antologia abaixo:
311
• Os quar toze dias do Meis de Nouenbro / do anno de mil outo sen tro e trinta e qu- / artro haxando-çe Reonido na Caza da- / Meza de Nossa Senhora do Rozario dos quinze / Misterio, (GMB, 01, 18.10.1835) •
Aos dezoito dia do mez de Outubro deMil / eoito Centos etrinta e Cinco perante as duas Mezas Reuni- / da dos Provedores emais Mezarios da Devoçaõ de Nossa Se / nhora da Solidade dos Desvalidos... (JFO, 01, 18.10.1835)
•
Aoprimeiro dia do Mez de Novembro demil eoito Cento e / trita eCinco estando o Provedor emais Mezario desta devo / caõ aSentamos... (JFO, 01.11.1835)
•
Aos vinte tres dias do mez deSetembro demil / oito centos etrinta e dous prezentes o Juiz Funda / dor e Mais Mezarios Leo-se as cartas deregeite / dos Diffinidores (LTG, 05, 23.09.1832)
•
Aos Vintes hum de mes de outubro / de1834 estando o Juis emais / mezario emeza Compreta
•
Aos vinte trez dias domez de Fevereiro / demil eóito sento e trinta e quatro nesta / Leal e
(MC, 21.10.1834)
Valeroza Cidade de São Salvador Bahia / de to dos os Santos
Estanto em Junta, e meza / da
Devocaõ de Nossa Senhora da Solidade do Desvalido (MSR, 01, 23.02.1834) • Aos Vinte trez dias do mes de Fevereiro de 1834 / Estand o prezidente os Juiz Fundador e Prezidente / da Junta de liberou aJunta que to dos Irmãos / Princi piante... (MSR, 02, 23.02.1834) • Ao dois dia do Mez de Fevereiro Anno de1834 / Estando Juis e o Mais Mezario Dreminitador / de Roguemos... (MVS, 01, 02.02.1834) • A Vinte Nove dia do Mez de Março de 1835 / Estanto todos Corpos da Devoçaõ, Reonidos /
Aprovamos prunanamine Vondades oprez / ente Comprimiço ... (MVS, 03, 29.03.1835)
Pelo que indicam os dados, mora toda razão ao lado de Martins (2001): as fórmulas não constituem lugares de resistência à variação lingüística. Dos 156 itens instalados nas fórmulas, 111 (71.0%) receberam a marca de plural – OS quartoze DIAS (GMB, 01, 14.11.1834), mais MEZARIOS (JFO, 01, 18.10.1835), AOS dez DIAS do mez de Setembro (LTG, 01, 10.09.1832), Mais MEZARIOS (LTG, 05, 23.09.1832), dous DIFFINIDORES (LTG, 07, 16.11.1832), Bahia de TODOS OS SANTOS (MSR, 01, 23.02.1834), AOS Sette DIAS do mez de setembro (MSR, 04, 07.09.1834), mais ADMINISTRADORES da Devocaõ (MSR, 06, 07.01.1835), Nossa Senhora da Solidade DOS DESVALIDOS (MSR, 06, 07.01.1835), Valedoza Sidade da Bahia de TODOS o SANTOS (MVS, 03, 29.03.1835). 45 itens (29.0%), ao contrário, permaneceram em sua forma singular – Aos dezoito DIA (JFO, 01, 18.10.1835), mais 312
MEZARIO REUNIDO (FJO, 06, 14.08.1836), Aos vinte hum DIA do mez de Abril de1833 (LTG, 10, 21.04.1833), os DEFFINIDOR (LTG, 11, 04.08.1833), os JUIZ FUNDADOR (MSR, 02, 23.02.1834), Illustríssimos SENHOR IRMÃO SOÇIO (MSR, 07, 15.01.1835), O Mais MEZARIO DREMINITADOR (MVS, 01, 02.02.1834), AO deNove DIA do Mez de Feverero (MVS, 02, 19.02.1834), Aos sete DIA do Mez de Junho de1835 (MVS, 07, 07.07.1835). Ausentes das fórmulas estão 403 constituintes: 311 (77.0%) se pluralizaram – AS duas MEZAS Reunida (JFO, 01, 18.10.1835), Possé DOS BEINS (JFO, 01, 18.10.1835), PELLAS Sete ORAS da tarde (JFO, 02, 01.11.1835), AS NOSSÁS DESPOZIÇOINS (JFO, 02, 01.11.1835), DAS FAVAS (LTG, 02, 16.09.1832), Coffre do Rozário DAS PORTAS do Carmo (LTG, 02, 16.09.1832), o POGETOS OFERECIDOS (MC, 01, 21.10.1834), do MENCAES (MC, 02, 02.05.1841), pella AS FATAS (MC, 02, 02.05.1841), doZe VOTOZ (MSR, 03, 23.07.1834); 92 (23.0%) não – DA despozicoens GERAL (JFO, 02, 01.11.1835), as CONTA do Ex Tezoureiro (FJO, 06, 14.08.1836), MEZA Mensaes (LTG, 08, 02.02.1833), mil BILHETE (LTG, 14, 04.10.1835), DO Mencaes (MC, 02, 02.05.1841), os atuaes SOÇIO Administradores (MSR, 04, 07.09.1834), sinco MEBRO (MSR, 05, 01.11.1834), as MEZA (MSR, 09, 05.07.1835), as quantias PERTENCENTE (MSR, 15, 11.10.1835), Chiolos LIVER (MVS, 03, 29.03.1835). Julga-se ter-se feito já, em relação à variável presença / ausência do constituinte em fórmula, todos os comentários necessários, de modo que a Tabela e o Gráfico abaixo têm como função aclarar, em termos percentuais, o que foi narrado:
PRESENÇA OU AUSÊNCIA DO CONSTITUINTE NA FÓRMULA FATOR
DADOS
C/ CONC.
%
S/ CONC.
%
Presença
156
111
71.0
45
29.0
Ausência
403
311
77.0
92
23.0
TOTAL
559
422
75.0
137
25.0
Tabela 11
313
Gráfico 09
CAI O PANO De certo modo, as conclusões mais relevantes em relação à variação da concordância nominal no SN já foram espalhadas ao longo deste trabalho, pelo que se vão apenas tecer algumas ligeiras considerações. Os textos dos africanos, escritos ao longo de duas décadas do século XIX, se mostraram uma preciosa fonte a servir de base empírica para mostrar que, nos oitocentos, a variação no âmbito da concordância nominal já acontecia e, pelo que tudo indica, de forma sistemática, já que, levando para o passado alguns fatores que regem a concordância no presente, houve consonância com o que se observa nos estudos da concordância nominal em tempos que correm. Julga-se que este trabalho, e tudo o que foi feito nele, se reveste em uma boa contribuição para os estudos de concordância nominal no português brasileiro, na medida em que, se no presente os estudos voltados para o tema são por demais numerosos, para outras sincronias, já não se pode dizer o mesmo. Espera-se o estímulo por parte de outros pesquisadores em buscar novos corpora que possam elucidar, contribuindo com essa escavação inicial, outras cenas da variação da concordância nominal em palcos de séculos passados.
314
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315
TINHORÃO, José Ramos. (1988). Os negros em Portugal: uma presença silenciosa. 2. ed. Lisboa: Caminho. VOTRE, Sebastião; RONCARATI, Cláudia. (2008). Anthony Julius Naro e a Lingüística no Brasil: uma homenagem acadêmica. Rio de Janeiro: 7 Letras.
316
CONCORDÂNCIA VERBAL Alan N. BAXTER (Universidade de Macau)
INTRODUÇÃO Uma das primeiras referências lingüísticas à variação na concordância sujeitoverbo no português brasileiro (doravante PB) foi feita no século XIX pelo dialetólogo Adolfo Coelho (1880-1886 [1967, p. 43]). Amplamente observada em estudos de variedades do PB rural, nos quais atinge a maior parte do paradigma da flexão de pessoa e número, há evidências de que, em épocas passadas, em algumas vertentes afro-brasileiras e ameríndias, essa variação atingiu todo o paradigma verbal (BAXTER, 1997). Contudo, a variação mais amplamente observada no PB, em geral, é aquela que afeta a terceira pessoa do plural (doravante <P6>), como nos exemplos (1), com concordância, e (2), sem concordância:
(1) …Cumé que eles VIVEM lá fora?... (SCHERRE & NARO, 2006, p. 108) (2) …Eles VIVE∅ dizeno isso… (ibid.)
O presente capítulo contempla a variação <P6> em documentos da primeira metade do século XIX, escritos, entre 1832 e 1842, por africanos, membros da Sociedade Protetora dos Desvalidos. 1. CONTEXTO DO TEMA DA VARIAÇÃO <P6> O fenômeno da reduzida morfologia de Pessoa /Número (doravante, P/ N) no verbo do PB e a variação na concordância verbal <P6> são temas de uma série de investigações variacionistas inspiradas nos trabalhos pioneiros de NARO & LEMLE (1976) e NARO (1981) sobre o PB do Rio de Janeiro. Dessa maneira, a variação <P6> conta com uma vasta documentação em contextos urbanos (por exemplo, GUY, 1981; NARO & SCHERRE, 1991; ANJOS, 1999; SCHERRE & NARO, 2006) e rurais (por 317
exemplo, BORTONI-RICARDO, 1985; NINA, 1980; SILVA, 2003, 2005). Por outro lado, a concordância sujeito-verbo também é tema de uma série de trabalhos teóricos (DUARTE, 1993; GALVES, 1993; COSTA & GALVES, 2002; COSTA & FIGUEIREDO SILVA, 2006, dentre outros). Desenvolvido a partir de análises de dados urbanos da cidade do Rio de Janeiro, o trabalho fulcral de NARO (1981), além de contribuir com uma matriz metodológica já clássica, concluiu que a variação <P6> estava sendo orientada por questões de saliência fonológica, envolvendo dois fatores fundamentais: o contraste morfofonológico S3::P6 no verbo e a posição/realização do sujeito. No verbo, os contrastes morfofonológicos mais marcados favoreciam a concordância, enquanto que os menos salientes a desfavoreciam. Além disso, o sujeito anteposto e adjacente ao verbo e o sujeito não-realizado também eram fortes favorecedores da concordância. A conclusão do Naro relativamente à diacronia da variação é bem conhecida: corresponderia a uma mudança em curso, no sentido da perda da flexão de concordância. Porém, em contrapartida, Guy (1981), também a partir de dados do Rio de Janeiro, mas refletindo sobre a sócio-história demográfica do Brasil, interpretou os fatos sob outro ponto de vista: a variação seria o reflexo de um processo de aquisição da morfologia de P/N. Desse modo, o trabalho de Guy provocou um ressurgimento do histórico debate sobre os motivos da reduzida morfologia flexional em variedades populares e rurais do PB. A variação seria uma continuação da deriva latina ou um produto dos contatos lingüísticos ocorridos na história da implantação do português no território brasileiro?1 Nas décadas de 1980 e 1990, com os avanços nas áreas de estudo de aquisição lingüística, teoria sintática e sociolingüística, as investigações sobre os contatos lingüísticos evoluíram muito. Ao mesmo tempo, a base de dados foi ampliada e, no Brasil, além de focalizar outros centros urbanos, começaram-se a aplicar os mesmos paradigmas de análise a variedades rurais e a variedades com diferentes precedentes sócio-históricos e étnicos. Por um lado, foram abertas outras fronteiras, com a Em realidade, uma das maiores forças propulsoras da deriva latina seriam os diversos contatos lingüísticos, processos de aquisição L2 e L1 e bilingüismo, implicados na expansão e declínio do Império Romano e na história posterior dos seus antigos territórios.
1
318
garimpagem de dados variáveis no português europeu (doravante PE) (NARO & SCHERRE, 2000) e com o surgimento de estudos sobre as variedades de português L2 e L1 no continente africano (ROUGÉ, 1992, 2008; BAXTER, 2001, 2004; INVERNO, 2006; CABRAL, 2005; MENDES, 1985; GARTNER, 1996a, 1996b; FIGUEIREDO, 2007; GONÇALVES, 1996, 2004), que prometem contribuir bastante para esse debate. Nas últimas três décadas, estudos sobre variedades do PB mais além dos centros urbanos (EMMERICH, 1983; BAXTER, 1992; LUCCHESI, 2000, dentre outros) vieram reforçar a idéia de que a variação na concordância sujeito-verbo estaria ligada, em determinados momentos e em certos setores da sociedade, a questões de aquisição lingüística em contextos de contato. Em estudos sobre os processos de aquisição, é constatado que a 3ª pessoa singular (doravante <P3>) do verbo tem o papel de default ou forma sub-especificada, tanto na aquisição de L1 (DAVIDSON & GOLDRICK, 2003; FERDINAND, 1996; GRINSTEAD ,1998a, 1998b; RADFORD & PLOENNING-PACHECO, 1995; RUBINO & PINE, 1998; SIMÕES & STOEL-GAMMON, 1979), quanto na aquisição de L2 (ANDERSON, 2002, p. 91; CLEMENTS, 2003; BRUYN DE GARAVITO, 2003; McCARTHY, 2006; PARADIS, 2004). Nesse papel, a flexão de <P3> coexiste em variação com as outras flexões de pessoa e número até o momento da eventual fixação dessas. Também é observada a variável generalização da 3ª pessoa singular do verbo junto a outras pessoas-números em variedades de português da África (BAXTER, 2002, p. 18-19; GONÇALVES & STROUD, 1998, p. 123; MENDES, 1985, p. 149-151; ROUGÉ, 1992, 2008). Relativamente à prevalência da variação <P6> observada no PB, a flexão <P6> é atestada como uma aquisição tardia na aquisicição da L1 (RUBINO & PINE, 1998) e em situações de aquisição por contato lingüístico, e com forte input de dados da L2 adquirida pelo contato (ROUGÉ, 2008). No âmbito dos estudos variacionistas sobre a <P6> no PB, consideramos que dois trabalhos se destacam como especialmente interessantes para a maior compreensão da história dessa variável: Vieira (1995), sobre a fala de doze comunidades de pescadores do norte fluminense, e Silva (2003, 2005), sobre três comunidades afro-brasileiras rurais no estado da Bahia, comunidades que têm um passado não muito remoto no qual estavam presentes dados de L2. 319
No estudo de Vieira (1995), a freqüência média de concordância <P6> é da ordem de 38%, e uma análise por faixa etária revelou um perfil aquisicional na comunidade, sendo os falantes mais jovens os que mais utilizam a concordância. Silva (2003), por sua vez, encontrou freqüências de concordância <P6> ainda mais baixas em três comunidades afro-brasileiras rurais, todas elas também com perfis etários de aquisição da regra: Cinzento (13%), Helvécia (16%) e Rio de Contas (24%). São resultados que contrastam com aqueles observados em contextos urbanos, mesmo com analfabetos: 48% no caso do estudo de Naro (1981) no Rio de Janeiro. Em um outro estudo, contemplando analfabetos e pouco escolarizados de João Pessoa, Anjos (1999) registrou freqüências de 30% e 35%, respectivamente2. Por outra parte, nos estudos urbanos que contemplam falantes escolarizados, as freqüências são mais altas: no Rio de Janeiro, registram-se 73% em 1980 e 84%, em 2000 (SCHERRE & NARO, 2006); em Florianópolis, registram-se 79% (MONGUILHOT, 2001) e, em João Pessoa, registram-se 74% (ANJOS, 1999). Esse contínuo parece ir ao encontro da hipótese de que a variação no paradigma verbal tenha fortes origens em processos de aquisição (LUCCHESI, 2001, 2006). A breve discussão, neste capítulo, será orientada a partir dessa perspectiva. 2. OS DADOS E O SEU ESTUDO: VALOR HISTÓRICO E DIFICULDADES DE PROCEDIMENTO Um dos principais motivos pelo interesse lingüístico dos dados das atas da Sociedade Protetora dos Desvalidos (doravante, SPD) radica no simples fato de esses textos de um registro formal conterem variáveis morfossintáticas que são comuns no PB hoje em dia. Entre essas variáveis, figura a da concordância sujeito-verbo <P6>, sublinhada nos exemplos seguintes:
(3) Aos vinte tres dias do mez deSetembro demil /oito centos etrinta e dous prezentes o Juiz Funda /dor e Mais Mezarios Leo-se as cartas deregeite/ dos Diffinidores Joze deSouza
Sousa (2002, 2004), nos seus estudos sobre a <P6> com falantes urbanos escolarizados de Salvador, registrou uma freqüência geral de concordância <P6> de 50% entre pessoas com escolaridade fundamental (de 1 a 5 anos). Ao mesmo tempo, o seu estudo também registrou um robusto perfil aquisicional.
2
320
Santos - Caetano da Cunha - /Manoel Jose Giló - Francisco Candido: 3sahiraõ por /todos dito apalavra nullo té que por suas livre von / tade venha ser Irmae)ns [documento escrito por Luís Teixeira Gomes]
(4) Aos dezanove días domez de Julho de1835 / Estan émeza o Viz Provedor emais Mezario fezse cha /mada e compareceu todos e Continuou-se os traba /lhos … [documento escrito por Manuel do Sacramento e Conceição Rosa] (5) Aos Cinco dias domez de Junho de mil e Oito Centos /E trinta e Ceis estando Comjuntos o Provedor e mais Mezari /os tratemos dos Recebimentos dos Mencais ejuntamente das Asi - / natura do termos que tinha ficado adiado para esta Reuniaõ [documento escrito por José Fernandes do Ó]
Mais importante ainda é o fato de encontrarmos essa variação em textos redigidos por africanos que falavam o português como L2, representantes de um setor da comunidade que, nas décadas de 1830 e 1840, ainda seria bastante numeroso. Na perspectiva da lingüística de contato (Contact Linguistics), esse setor da população teria a capacidade de contribuir para a introdução de variações paramêtricas no português aprendido pelos seus descendentes. Apesar do grande interesse desse material, cabe sublinhar certas limitações no que concerne ao seu estudo. Em primeiro lugar, além do pequeno número de dados a serem considerados, estamos diante de materiais escritos que representam a competência dos autores de uma maneira bastante indireta (MAYNOR, 1988), pois os dados dos Desvalidos provêm de um estilo muito formal, sujeito a uma monitoração reforçada. Tratando-se de dados urbanos, provenientes de representantes especiais do setor afro-brasileiro, seria natural que a força da norma culta estivesse sempre presente. São condicionantes que poderiam levar a um reforço da concordância3.
3 Desconhecemos os contextos em que os autores desses documentos adquiriram o português. Na maioria dos casos, o africano aprendeu o português como adulto, um fato que tem importantes implicações para o processo de aquisição de L2 e para a qualidade do português L2 aprendido. É notória a dificuldade do adulto para decodificar e adquirir a morfologia flexional da língua-alvo – uma caraterística psicolingüística do aprendiz adulto (DeGRAFF, 1999, p. 517). Aliás, na L2, quase sempre há influências da língua L1 (GASS, 1996; WINFORD, 2003, p. 209-216), assim como também há inovações que não se originam nem na língua L1, nem na língua-alvo do processo de aquisição (WINFORD, 2003, p. 219-230).
321
As perguntas centrais que surgem em torno dos dados dos Desvalidos dizem respeito às comparações entre o perfil de variação neles presente e o perfil de variação observado em vertentes do PB atual. Portanto, os temas que orientam a discussão seguinte são aqueles já tradicionais nas investigações sobre a variável <P6> no PB falado, nomeadamente:
(i)
Saliência fônica
(ii)
Realização e posição do sujeito
(iii)
Concordância plural no sujeito
(iv)
Indicação plural no sujeito
(v)
Tipo de verbo
(vi)
Caraterização semântica do verbo
Tendo dito isso, cabe alertar o leitor para a natureza preliminar e precária da discussão que se segue, porque os dados de <P6> disponíveis são muito poucos: uns escassos 52 verbos! Será que com tão poucos dados se pode tirar algum proveito científico? Acreditamos que sim, embora o minúsculo tamanho da amostra não permita uma análise estatística de confiança.
2.1. SALIÊNCIA FÔNICA Esta variável, que contempla a saliência da oposição singular/plural do verbo, foi introduzida nas análises do PB por Naro e Lemle (1976), para avaliar a hipótese de que os verbos com uma maior oposição morfofonológica singular/plural apresentariam um maior grau de concordância sujeito-verbo. Inicialmente, no presente trabalho, foram contemplados os seis fatores da Tabela 1, à semelhança de Naro (1981), Bortoni (1985, p. 203) e Guy (1981, p. 260)4:
4
A classificação apresentada na Tabela 1 é a adotada pelo Projeto Vertentes www.vertentes.ufba.br.
322
Tabela 1: Saliência fônica da flexão <P6> (em contraste com <P3>)
<P6> com alteração fora da sílaba tônica
(1) Nasalização sem envolver qualidade (conhece/conhecem, consegue/conseguem, sabe/sabem) Î a 3ª pessoa do singular termina em “e” (2) Nasalização com mudança de qualidade (ganha/ganham, era/eram, gosta/gostam) Î a 3ª pessoa do singular termina em “a” (3) Acréscimo de segmento no plural (diz/dizem, quer/querem, sai/saem, vê/vêem) Î acréscimo silábico (4) Ditongação e/ou mudança na qualidade (tá/tão, vai/vão)
<P6> com alteração dentro (5) Acréscimo de segmento com supressão da semivogal do da sílaba tônica singular ou mudança de tonicidade (bateu/bateram, viu/viram, foi/foram, disse/disseram) (6) Envolve acréscimo e mudança de raiz, que pode ser completa (veio/vieram, é/são,)
Contudo, a distribuição numérica muito limitada dos dados nos obrigou a amalgamar fatores, para constituir somente dois: se a alternância envolve ou não uma mudança fora da sílaba tônica ou dentro dela. A Tabela 2 apresenta a distribuição encontrada: Tabela 2: Saliência fônica versus concordância <P6> Contraste morfofonológico Concordância <P6> - No de dados Fora da sílaba tônica 13/20 Dentro da sílaba tônica 26/32
% 65% 81%
As freqüências desses dados limitados parecem apontar na mesma direção que as tendências globais observadas em outros estudos do efeito da saliência do contraste <P3>/<P6> no PB. Em todos esses estudos, a partir dos trabalhos clássicos de Naro (1981, p. 77), Guy (1981, p. 260) e Bortoni-Ricardo (1985, p. 205), a maior divisão na hierarquia de saliência está na tonicidade: todos os verbos mais salientes requerem na <P6> uma alteração morfofonológica na sílaba tônica, enquanto que os verbos menos salientes todos requerem na <P6> o acréscimo de um segmento nasal fora da sílaba tônica (ANJOS, 1999, p. 79; MONGUILHOT, 2002, p. 194; VIEIRA, 1995, p. 79; SILVA, 2005, p. 274)5. Na perspectiva da aquisição do português como L2, um outro fator fonológico que poderia exercer um efeito em todos os casos de <P6> é a nasalização. O segmento nasal pode apresentar ao aprendiz
5
323
2.2. REALIZAÇÃO E POSIÇÃO DO SUJEITO A realização do sujeito, em termos de presença e posição relativamente ao verbo, é um fator condicionante sobre a concordância sujeito-verbo observado em muitas línguas (CORBETT, 2006, p. 180-181; p. 199-200), sendo que anteposição do sujeito favorece a concordância. Um outro fator muitas vezes observado, em estudos cognitivos, como condicionante do processos de concordância é a proximidade entre o SN sujeito e o verbo (VIGLIOCCO et alii, 1996; BOCK & EBERHARD, 1993). Nos estudos sobre <P6> no PB, a importância dessa variável foi detectada no trabalho pioneiro de Lemle & Naro (1977) e se tornou uma constante em estudos subseqüentes. Na presente discussão, com base no estudo de Silva (2003), a variável realização e posição do sujeito contemplou, num primeiro momento, sete fatores:
i.
Sujeito anteposto e adjacente ao verbo
ii.
Sujeito com relativa anteposto ao verbo
iii.
Sujeito retomado por pronome relativo anteposto ao verbo
iv.
Sujeito com Sprep anteposto ao verbo
v.
Sujeito não realizado
vi.
Sujeito imediatamente posposto
vii.
Sujeito posposto separado por um ou mais constituintes
Novamente, devido à exigüidade de dados em alguns casos, foi necessário simplificar a análise e amalgamar esses fatores em três, como se vê na Tabela 3:
Tabela 3: Realização e posição do sujeito versus concordância <P6> Realização e posição do sujeito Concordância <P6> % No de dados Sujeito anteposto ao verbo 21/27 78% Sujeito não realizado 7/10 70% Sujeito posposto ao verbo 10/14 71%
diversos graus de dificuldade de incorporação, a depender do repertório fonológico da L1 do indivíduo e da sua capacidade aquisicional como aprendiz adulto. Entre as línguas africanas presentes em Salvador no século XIX, muitas línguas não-banto, por exemplo, o iorubá e o ewe, possuem vogais nasais. Em contrapartida, o haussá (língua chádica) e as línguas do ramo banto (que correspondem a aproximadamente 25% das línguas africanas presentes nesse período (ANDRADE, 1988, p. 104) não as possuem (WILLIAMSON, 1973; HAJEK, 2008).
324
A anteposição do sujeito registra mais concordância, enquanto que o sujeito não realizado e o sujeito posposto registram menos, com freqüências semelhantes. De certa forma, a maior freqüência de <P6> com sujeitos antepostos parece ir ao encontro dos resultados registrados em todos os estudos de <P6> nas últimas três décadas, nos quais esse fator é o mais favorável à concordância. Além disso, o sujeito não realizado, na maioria dos estudos anteriores, é um fator também favorável6, enquanto que o sujeito posposto é consistentemente desfavorável à concordância. Se as freqüências registradas na Tabela 3 realmente constituem uma diferença significativa, talvez imposta pelo estilo formal dos documentos, é impossível dizer, sem acesso a um maior número de dados. Os poucos dados disponíveis também dificultam um comentário sólido sobre o efeito da distância entre o núcleo nominal e o verbo ou sobre o efeito da proximidade de elementos pluralizadores. A Tabela 4 visou a diferenciar a distribuição do sujeito simples e do sujeito complexo (que inclui aqui os fatores (ii), (iii) e (iv) dos sete fatores acima).
Tabela 4: Sujeito anteposto (simples/complexo) versus realização da concordância <P6> % Realização e posição do sujeito Concordância <P6> No de dados Sujeito simples anteposto e adjacente ao verbo 9/10 90% Sujeito complexo anteposto ao verbo 12/17 71%
Parece que o tamanho do SN, a sua complexidade e a distância entre o núcleo nominal e o verbo poderiam afetar negativamente a freqüência de concordância <P6>, à semelhança dos efeitos de distância linear observados por Naro (1981, p. 80), Bortoni (1985, p. 205), Vieira (1995), Monguilhot (2001) e, recentemente, por Silva (2005, p. 280-285). Infelizmente, não podemos aventurar além de hipóteses.
Contudo, no estudo de Silva (2005, p. 264), o sujeito apagado é levemente desfavorável à concordância.
6
325
2.3. CONCORDÂNCIA E NATUREZA DA INDICAÇÃO PLURAL NO SN SUJEITO Guy (1981, p. 249-254) explorou, em dados urbanos do Rio de Janeiro, o efeito sobre a concordância sujeito-verbo do grau de marcação de plural no SN sujeito, e de sujeitos com substantivos singulares em conjunção. Os resultados do seu estudo apontam para o favorecimento da <P6> apenas por sujeitos com concordância plural interna plena e também por sujeitos cuja pluralidade é indicada apenas pelo discurso. Posteriormente, o potencial efeito condicionante da concordância plural no sujeito, em relação à concordância no verbo, foi abordado em diversos trabalhos, entre os quais Scherre e Naro (1991), Vieira (1995), Anjos (1999), Naro e Scherre (1999), Monguilhot (2001) e, mais recentemente, Silva (2005). Nesses trabalhos, detecta-se um paralelismo entre a presença da concordância de plural no sujeito e a presença da flexão concordante no verbo. Por outra parte, esse efeito pode ser interpretado também em termos da coesão da estrutura total (LUCCHESI, 2000, p. 143), que considera a co-ocorrência de concordâncias um resultado da aquisição não só da flexão da língua-alvo (uma
variedade de português com flexão
morfossintática), mas também a aquisição de uma dimensão sintática dessa flexão, ou seja: a regra de concordância inter-sintagmática da língua-alvo. A idéia coincide com o modelo de aquisição e desenvolvimento morfossintático proposto por Peinemann (1998): a expansão na dimensão morfossintática inter-sintagmática da flexão só ocorre quando a dimensão intra-sintagmática for cristalizada (PLAG, 2008). O presente trabalho seguiu os procedimentos metodológicos de Silva (2003, 2005), nos seus estudos sobre a fala de comunidades afrobrasileiras baianas. Dessa maneira, optamos por constituir duas variáveis em relação à indicação de plural no SN. Em um primeiro momento, foi avaliado o efeito da simples presença ou ausência da concordância plena no SN sujeito. Na Tabela 5, a distribuição dos dados por esses dois fatores parece estar na direção da tendência amplamente observada em estudos anteriores (por exemplo, VIEIRA, 1995; SILVA, 2003, 2005): ou seja, a tendência de que a presença da concordância no sintagma nominal seja um fator favorecedor da concordância sujeito-verbo. Contudo, e à diferença desses estudos, nos quais a ausência da concordância no sujeito tende a desfavorecer a concordância sujeito326
verbo, os dados considerados aqui só apresentam uma pequena diferença numérica e de freqüência na marcação de <P6> com e sem sujeito com concordância plural interna. Novamente, sem acesso a um maior número de dados, é problemático aventurar além dessas observações preliminares.
Tabela 5: Concordância plural no sujeito versus concordância <P6> Concordância PL no sujeito Concordância <P6> % No de dados Com concordância PL 17/21 81% Sem concordância PL 17/22 77%
Em um segundo momento, foi investigada a distribuição do tipo de indicação de plural no sujeito, relativamente à realização de <P6>. Inicialmente, foram considerados os fatores (i) a (iv) tratados por Silva (2003, p. 90), com o acréscimo do fator <sujeito composto por SNs singulares>:
i.
Indicação mórfica do plural
ii.
Plural indicado com numeral
iii.
Plural indicado pela semântica do lexema
iv.
Plural indicado por quantificador
v.
Sujeito composto por SNs singulares
Contudo, devido a lacunas na distribuição dos dados, foram amalgamados os plurais indicados por numerais e quantificadores, e eliminou-se o fator (iii), o plural indicado pela semântica do lexema. A Tabela 6 apresenta a distribuição dos valores numéricos e as freqüências obtidas: Tabela 6: Natureza da indicação PL no sujeito versus concordância <P6> Natureza da indicação PL no sujeito Indicação mórfica Numeral ou quantificador Sujeito composto por SNs singulares
Concordância <P6> No de dados 22/31 8/10 9/11
% 71% 80% 82%
Silva (2003) não analisou o sujeito composto, mas, no estudo de Guy (1981, p. 253), esse fator (tratado junto com a concordância total no SN, a concordância parcial 327
e o sujeito plural indicado pelo discurso) foi bastante inibidor (31% de concordância <P6>, com um peso relativo de .24). No presente caso, os dados são muito poucos, mas a maior freqüência da concordância <P6> com sujeitos com numeral ou quantificador, por um lado, e com sujeitos compostos, por outro, podia ser um indicador de um efeito semântico de pluralidade no sujeito. Novamente, é uma distribuição difícil de interpretar. Um outro perfil interessante está na diferença de freqüências de <P6> com os sujeitos plurais com indicação plural mórfica e aqueles com um numeral/ quantificador. Embora ambos registrem freqüencias de <P6> bastante altas, enquanto que, no estudo de Silva (2003, p. 160), por exemplo, registram freqüencias de <P6> baixas (12% e 17%, respectivamente) e pesos relativos praticamente neutros (.47 e .52, respectivamente), nos dois casos, o SN com quantificador/numeral registra a maior freqüência de <P6>.
2.4. O TIPO DE VERBO Scherre et alii (2007) discutem o efeito do tipo de verbo, uma questão levantada em trabalhos gerativistas, que apontam para a possibilidade de a distinção tripartida de verbos intransitivos inacusativos (chegar, morrer, nascer ...), intransitivos não-inacusativos (trabalhar, nadar, dançar ...) e transitivos (fazer, falar, dar…) exercer uma influência na concordância sujeito-verbo. Os estudos de tipologia comparada sobre os sistemas de concordância também apontam para os possíveis efeitos condicionantes por parte de determinadas classes de verbos, mas em termos das interrelações superpostas e interativas entre os papéis temáticos, as relações gramaticais, e ainda as funções comunicativas dos argumentos (CORBETT, 2006, p. 185-204). Analisando dados de dois corpora substanciais do Rio de Janeiro das décadas de 1980 e 2000 e de um corpus de um idioleto maranhense, Scherre et alii (2007) chegam à conclusão de que as caraterísticas do verbo, classificados sob uma perspectiva gerativista ou sob uma perspectiva tradicional, não demonstram um efeito estatisticamente relevante sobre a variação de <P6>. Porém, algumas pesquisas 328
efetuadas com dados de outras comunidades, por exemplo, Monguilhot (2001), Monguilhot & Coelho (2002) e Silva (2003), revelam que as caraterísticas da estruturação e semântica argumental do verbo efetivamente condicionam a concordância <P6>. Para a avaliação da distribuição do tipo de verbo nos dados dos Desvalidos, adotou-se inicialmente a seguinte classificação, utilizada pelo Projeto Vertentes:
a.
Transitivo
b. Locativo c.
Intransitivo
d. Inacusativo e.
Ligação
f.
Modal
g. Voz passiva h. Auxiliar i.
Ergativo
Contudo, neste caso também, o tamanho mínimo da amostra e o fato de alguns fatores não estarem representados levaram a uma simplifição do grupo, resultando em apenas três fatores, apresentados na Tabela 7:
Tabela 7: Tipo de verbo versus concordância <P6> Tipo de verbo Concordância <P6> No de dados Transitivo 15/19 ‘Auxiliar’ (auxiliar, passiva e modal) 14/17 ‘Intransitivo’ (inacusativo e não inacusativo) 9/11
% 80% 82% 80%
Dos 11 dados de verbos intransitivos, oito são inacusativos. Se as freqüências pouco diferenciadas desses fatores realmente indicam que esse grupo talvez não tenha muita relevância, é difícil de avaliar, sem a possibilidade de ter acesso a um maior número de dados.
329
2.5. CARATERIZAÇÃO SEMÂNTICA DO SUJEITO Em todos os estudos da concordância <P6> desde o final da década de 1970, a animacidade do SN sujeito tem se relevado como um fator significativo, que tende a favorecer a concordância (SCHERRE et alii, 2007, p. 284-285). Nos estudos de tipologia comparada, a animacidade, junto com o papel temático de agente, é um umportante fator condicionante da concordância e pode funcionar como tal, independentemente do papel temático (CORBETT, 2006, p. 190-193). A Tabela 8 apresenta as proporções da distribuição da distinção [± humano] no corpus dos Desvalidos:
Tabela 8: Animacidade do sujeito versus concordância <P6> Animacidade do SN sujeito Concordância <P6> % No de dados +humano 33/40 83% -humano 6/12 50%
Certamente o SN sujeito humano, nesse corpus, contém proporcionalmente mais casos de concordância, mas também é verdade que há bastante mais sujeitos humanos (79% dos sujeitos) no corpus do que sujeitos não-humanos (21%). Pensamos que cabe levar em conta que a própria natureza temática dos textos induz a um maior uso de sujeitos humanos. Mesmo assim, esse perfil encontra um paralelo em outros estudos do PB e é apoiado pelos estudos tipológicos sobre a concordância. O recente estudo de Monguilhot (2002), com dados urbanos de Florianópolis, detectou um peso relativo de .65 no efeito de condicionamento da <P6> por sujeitos humanos antepostos ao verbo e um peso de .25 no caso do sujeito [-humano]. Contudo, numa análise prévia, no seu estudo da concordância <P6> em comunidades afro-brasileiras rurais, Silva (2003, p. 169) detectou um efeito relativamente leve para essa variável: o sujeito [+humano] registrou apenas uma freqüência de 17%, com um peso relativo de .52 (ou
330
seja, quase neutro), enquanto que o sujeito [-humano] registrou apenas 10% de concordância, com um peso relativo de .407. Concluímos que a diferença de freqüências de <P6> na Tabela 5 é sedutora pela maior força do fator [+humano], embora o baixo número de dados não nos permita uma conclusão sólida.
CONCLUSÕES Neste capítulo, examinamos dados provenientes de documentos do arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos, numa tentativa de detectar indícios do perfil da variação na concordância sujeito-verbo no português falado por africanos em Salvador, nas décadas de 1830 e 1840. Devido à exigüidade dos dados, e sem podermos recorrer a uma análise estatística mais apurada, nos limitamos a uma avaliação da sua distribuição numérica e freqüencial, em termos de um conjunto de fatores lingüísticos amplamente estudados em investigações sobre a <P6> no PB. Com base nos resultados da análise de dados provenientes de textos formais escritos por exescravos, chegamos à conclusão de que vários dos fatores lingüísticos que orientam a variação <P6> no PB atual parecem encontrar paralelos nesses dados. Neste sentido, detectam-se vários fios sugestivos:
¾ A saliência morfofonológica do contraste <P3>/<P6>: a freqüência de <P6> é maior em sílabas tônicas (81%) do que em sílabas átonas (65%); ¾ A posição e o estatuto do sujeito em relação ao verbo: a freqüência de <P6> com sujeito anteposto (78%) é maior do que nos casos de sujeito posposto (71%) ou apagado (70%); ¾ A distância entre o (núcleo do) sujeito e o verbo: a <P6> aparece mais com sujeitos simples antepostos ao verbo do que com sujeitos complexos;
Anjos (1999, p. 116) registra resultados semelhantes a esses, com pesos relativos de .51 e .42 por sujeito [+humano] e [-humano], respectivamente.
7
331
¾ Paralelismo entre concordância de número no SN sujeito e presença de <P6>: o efeito parece existir, mas o número de dados não dá uma resposta clara. Porém, há mais freqüência de <P6> quando o sujeito contém um quantificador/numeral ou um SN composto de dois SNs simples do que quando o plural no SN é só mórfico; ¾ O tipo de verbo (intransitivo inacusativo, intransitivo não-inacusativo e transitivo) não parece exercer uma influência diferencial sobre a <P6>; ¾ Animacidade do sujeito: há mais freqüência de <P6> com sujeitos [+humano] (83%) do que com os sujeitos [-humano] (50%).
É evidente que, para validar as observações preliminares deste capítulo, será fundamental ampliar e enriquecer a base de dados por meio de investigações nos arquivos de outras irmandades negras na Bahia, nomeadamente em Salvador e no Recôncavo. Em simultâneo, será imprescindível explorar dados que não sejam de procedência expressamente afro-brasileira, para ter uma base de comparação e controle. Contudo, e apesar das limitações dos dados escritos avaliados aqui, parece que alguns padrões do atual perfil de variação em torno da concordância <P6> já existiam no português falado como segunda língua por africanos em Salvador nas décadas de 1830 e 1840. REFERÊNCIAS ANDERSON, Roger. (2002). The dimensions of pastness. In: SALABERRY, Rafael; SHIRAI, Yasuhiro. (Orgs.). The L2 acquisition of tense-aspect morphology. Amsterdam: John Benjamins Publishing Co. p. 79-105. ANJOS, Sandra Espínola. (1999). Um estudo variacionista da concordância verbo-sujeito na fala dos pessoenses. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. ANDRADE, Maria. José de S. (1988). A mão de obra escrava em Salvador, 1811 – 1860. São Paulo: Corrupio. BAXTER, A. N. (1992). A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do Estado da Bahia. In: D'ANDRADE,
332
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337
VARIAÇÃO TER/HAVER Rosa Virgínia MATTOS E SILVA (UFBA – PROHPOR – CNPq) Américo Venâncio Lopes MACHADO FILHO (UFBA – PROHPOR)
INTRODUÇÃO Os verbos ter e haver têm sido tema recorrente nos trabalhos sobre mudança lingüística, nomeadamente nos que se concentram no período mais recuado da história da língua portuguesa. A observação diacrônica do fenômeno de variação e mudança, a que se sujeitaram e ainda se submetem esses verbos, tem demonstrado uma vitalidade crescente de ter em relação a haver, que começa a predominar nas estruturas de posse, já no século XVI e, a partir de então, emerge como verbo existencial na obra pedagógica do primeiro gramático prescritivo da língua portuguesa. O trabalho de Mattos e Silva (2002), intitulado Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI: usos e teoria em João de Barros, revela-se bastante sugestivo sobre a questão. Na perspectiva de avaliação do fenômeno no português brasileiro, recentemente, Eleutério (2003) observou documentos notariais do século XVII, como tema de sua Tese de Doutoramento defendida na Universidade do Rio de Janeiro, e demonstrou que ter, em seu corpus, 'é o verbo mais usado, tendo status prototípico como verbo de posse e como auxiliar de tempos compostos'. Haver, por seu turno,
ocorre em todos os tipos de estruturas; residualmente, como posse e na posição auxiliar; categoricamente, nas expressões modais; majoritariamente, nas existenciais canônicas, nas expressões lexicalizadas e nas construções verbo + por (ELEUTÉRIO, 2003, p. 238).
Rastrear o comportamento desses verbos em variação na primeira metade do século XIX no Brasil e compará-lo a outros períodos históricos da língua é, pois, objetivo central deste trabalho, que, por privilegiar a observação mais direta quanto possível do chamado português geral brasileiro, provável antecedente histórico do português vernáculo contemporâneo hoje em uso no Brasil, elegeu como corpus o 338
material recentemente editado por Oliveira (2003), do espólio histórico da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), de Salvador da Bahia, sobretudo relativo à escrita de negros forros alfabetizados ou semi-alfabetizados que a compunham. A questão da história da escolarização no Brasil tem, como se sabe, reiteradamente se resumido à negligência secular de diversos governos que, em maior ou menor grau, têm contribuído para a constituição de uma grande massa de analfabetos no País. No século XIX, na Bahia, conquanto o estatuto de "alfabetizado" pudesse ser atribuído a 43,1% dos homens livres e a 29,9% das mulheres da cidade do Salvador, segundo o Censo de 1872, apenas 62, entre 167.824 escravos na Bahia, "sabiam ler e escrever" (Oliveira, 2003, p. 92-97), isto é, 0,036% do total. Ademais, a legislação desse período proibia explicitamente que escravos tivessem acesso à escola formal. Ser negro e alfabetizado parecia, então, uma conjugação – se não impossível –, certamente bastante improvável naquela época. Cenário que de certa maneira se mantém se considerados os mais altos níveis de escolarização no Brasil ainda hoje. Não obstante, alguns poucos o conseguiram naquele tempo, de alguma forma. É a esses que se voltam as atenções neste trabalho.
1. BREVE RESGATE HISTÓRICO SOBRE A TRAJETÓRIA DE TER E HAVER Ferreira (2001[1980]: 04) afirma que inicialmente habere (haver) tinha um uso bastante difundido no latim, desempenhando 'um papel mais importante na expressão oral e escrita que o herdado pelas línguas românicas'.1 Seu uso cada vez mais freqüente fez com que seu conteúdo informacional diminuísse, engendrando a necessidade de 'uma outra unidade lingüística' que viesse a dar conta dos contextos antes por ele assumidos. Tener (ter) que 'a princípio, não se aplicava senão à expressão concreta de um conceito, começa a se estender às noções abstratas, isto é, avança sobre o campo semântico de habere' (FERREIRA, 2001[1980], p. 04-05).2
Original: (...) un rôle très important dans l'expression orale et ècrite que les langues romanes ont héritée. 2 Original: (...) ne s'applquant au début qu'à l'expression d'um concept, commence à s'étendre aussi à des notion abstraites, soit, il gagne le champ sémantique de habere. 1
339
A antiga história de variação desses verbos que já se registrava no próprio latim continua uma deriva deveras interessante na história da língua portuguesa. Nos primórdios do português arcaico, isto é, no período em que surgem os primeiros textos escritos, no século XIII,3 o verbo ter, como demonstrou Mattos e Silva (1999-2000), começa a despontar discretamente como verbo de posse em face de haver, representando, na análise da autora, 30% das ocorrências em estruturas em que o complemento representa semanticamente uma propriedade adquirível material (PAM), isto é, objetos materiais externos ao possuidor, e 15% em estruturas de posse, cujo complemento expressa propriedades adquiríveis imateriais (PAI), relacionadas no geral à moral, à espiritualidade etc. Já no ano de 1500, essa relação entre os dois verbos se inverte, passando ter a representar 89% das estruturas de posse PAM e 55% das de PAI. Haver, por seu turno, variava desde cedo com ser, avançando sobre seu campo semântico, assumindo progressivamente as construções existenciais, que no século XVI já se definiriam em seu favor, 'sendo haver o verbo existencial selecionado, nunca ser', nos documentos quinhentistas observados por Mattos e Silva (2002, p. 158). Não obstante, o confronto entre ter e haver eclode mais uma vez nesse mesmo período, quando o primeiro já aponta timidamente no contexto das estruturas existenciais, antes conquistadas por haver a ser. Na composição do chamado tempo composto, a predominância de haver em relação a ter era evidente nos inícios do período arcaico, conquanto as construções ser + particípio passado sejam, em relação a haver, ainda mais freqüentes. Entrementes, desde cedo já se detecta a presença de ter na composição dessa estrutura. No Foro Real e nas Cantigas Maria construções ter + particípio passado são atestadas, como procurou comprovar Mattos e Silva (1996b: 08). Alguns desses dados serão adiante retomados no confronto com o levantamento do corpus em análise.
Essa taxionomia é a adotada pelo Programa para a História da Língua Portuguesa (PROHPOR), embora dados recentes tenham apontado para a possibilidade de recuo inicial para 1175 do primeiro registro escrito em língua portuguesa. É, entretanto, ainda uma questão em aberto.
3
340
2. OS DADOS ENCONTRADOS NA DOCUMENTAÇÃO ESCRITA PELOS NEGROS DA SPD Com base na identificação dos informantes realizada por Oliveira (2003), levantaram-se os dados consoante sua origem, ou seja, africanos, brasileiros, prováveis brasileiros e prováveis africanos; destes últimos, contudo, não se detectaram ocorrências. Foram as seguintes as estruturas observadas: existencial, de posse – considerando a representação semântica do complemento: se de propriedade inerente (PI), propriedade adquirível imaterial (PAI), propriedade adquirível material (PAM) –, tempo composto, construção modal (futuridade/obrigatoriedade), construção lexicalizada.
2.1. OCORRÊNCIAS DE TER E HAVER EM DOCUMENTOS ESCRITOS POR AFRICANOS POR TIPO DE ESTRUTURA Entre os documentos produzidos por africanos, além de em dois contextos opacos, que permitem mais de uma interpretação, registram-se 16 ocorrências de ter e haver, nas seguintes estruturas:
Estrutura Existencial
i)
NEFS: 512-5134 – setamos o seguinte - Primeiro, que nos dias dezeceis sedo que caia em dias de servisso cabe aver Missa no Domingo e mediato.
ii)
NEFS: 545 – Aos cinco dias do Mez de Julho de1835 estando o Viz Provedor eos mais Membros sefez a chamada e que naõ houve fal ta e Continuouse os trabalhos.
iii)
NEFS: 548 – eseguio-se os trabalhos efica aguiados para na Dominga 13 doCorrente a Ver nova Reuniaõ para setratar da Festa emais as Contas da 4a. e 5a Lotaria.
iv)
NEFS: 554 – Ovimos o Requirimento do nosso Irmaõ Thezoureiro Dani el Correia que foi a tedido que Ovesse Missa no dia 18 de outubro para aposso do Novos Adremenetador.
4
A identificação do documento apresentada corresponde à proposta por Oliveira 2003.
341
Estrutura de posse (propriedade adquirível imaterial – PAI)
v)
NEFS: 526 – Estand o prezidente os Juiz Fundador e Prezidente da Junta de liberou aJunta que to dos Irmaõs Princi piante aes ta Devocaõ tenhaõ o termo de D[o]finidores aquelles que merecer Unanim amente Popular epara que Conste passou oprezidente.
vi)
NEFS: 549 – Nota Bene deClaro que nafalta que possaõ ter sobre as festividade poderá o Cofre Emprestar adita quantia ao Thezoureiro de que faltar sobre a Finta dos 500 reis.
Estrutura de tempo composto
vii)
NEFS: 524-525 – em Concideraçaõ do que sereprezentou Contra o- Irmaõ Ex Escrivam Luiz Teixeira Gomes o Progetto- Emprenço Ferindo o milin dre da Soçiedade damesma Devocaõ e que autorizou a Junta afacul tar a Meza de pois de ter es corrido o es co tinio man dar im primir huma Satisfacaõ ao Publico.
viii)
NEFS: 528 – os Juiz emais Soçio Ex deliberow a fazerem meza e Lavrar a Por taria do Nosso Thezoureiro o Irmaõ Daniel Correa por ter a Vido nesta Devocaõ huma grande Relaxacaõ entre os a tuaes Soçio.
ix)
NEFS 563 – estando o Provedor emais Me- zarios a recebemos os Mencais eficou adiado para a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum Termo, Sobré os Irmãos que naõ tem pago os Seus Mencais.
x)
NEFS 564: – estando Comjuntos o Provedor e mais Mezari os tratemos dos Recebimentos dos Mencais ejuntamente das Asi - natura do termos que tinha ficado adiado para esta Reuniaõ.
xi)
NEFS 570: – estando Reunida a Mezá Auctual, pará Comprimento do Termo Antecedente oque estava digó que ficou marcadó o Ar- tigo quarenta e Nové ao que Sedeu Comprimento juntamente ó Artigó Nove ficando Suspençó Vinte etrez. Irmoins por- Estremadós, ea Comiçaõ Nomeadá epor ter preenchido, estes deveres, ficou marcadó apossé pará para treze de Dezembro.
Estrutura modal (futuridade)
xii)
NEFS 534: – que nodia 25 do prezente Janeiro do Corrente anno se ade a- pr ezentar as émendas dos novos Estatu tos.
xiii)
NEFS 534: – as émendas dos novos Estatu tos que nos hade Reger pos ta pella Comi çaõ para isso Criada.
342
xiv)
NEFS 608: – aILustre Miza athe areforma do- nosso Compremisio Igiga do Mencaes da Deuocaõ as murta que os Irmão tiuerem de Comprir pagar elle ficara res- ponca vel pella as fatas do andamento des ta de uo caõ.
Estrutura modal (obrigatoriedade)
xv)
NEFS 557-558: – ejuntamente na 1a. Reuniaõ aprezentar qual quer hum Irmaõ a Sua Instruçaõ ou tabella deRejime para por elles entre Nós Carculado Óficar afirmado o que havemos Seguir é juntamente fica o Secretario participado aes Crever atodo qual quer hum Irmão que Seacha atrazado, nos Seus Men cais.
Estrutura lexicalizada
xvi)
NEFS 517: – e aceito o que por nos for sancionado; enaõ terá lugar a reclamar civicias
2.2. OCORRÊNCIAS DE TER E HAVER EM DOCUMENTOS ESCRITOS POR BRASILEIROS POR TIPO DE ESTRUTURA Afora duas ocorrências que permitiriam dupla interpretação, em função de contexto opaco, foram identificados os seguintes registros de ter e haver, nesses documentos:
Estrutura existencial
xvii)
NEFS 667-669: – Nota Bene Reçebeuse o Imventario na forma do Cus tu me, e o balanço que fica para ser izaminado na Meza seguinte por naõ haver tempo.
xviii)
NEFS 684-685: – por esta se açhar de posse deste dever atres annos enaõ ter dado Compri mento aos seus deveres
Estrutura de posse (propriedade adquirível imaterial – PAI)
xix)
NEFS 609-611: – para tomar conheçimento nos delexo da Meza ea Comisaõ, auturizada para suspender a Meza quando conheçer dis lexo no seu andamento, logo - naõ tem aComisaõ jus prezentemente para empedir os feitos.
343
Estrutura de posse (propriedade adquirível material – PAM)
xx)
NEFS 684-685: – foraõ per duados da Multa que lhe hera Com petivel pella mahioria devotos por Similhante a Buzo que queriaõ introduzir no sagrado Ar tigo 48; e 49 das mesmas dispuzicoens geraes esó ti veraõ çinco Votos contra nesta parte.
Estrutura de tempo composto
xxi)
NEFS 600-601: – sendo os ditos pinhores outra vez Remo vido para o Comvento daSoli dade aSim como dinheiros eomais Rendimentos por Ser lugar mais Seguro e ter estado athe oprezente.
xxii)
NEFS 604: – Em acto de Meza deuse comprimento atudo quanto fico u aguiado nariuniaõ de 8 de novembro e fica adiado afalta dos Irmãos que tem continuado a fazer fal tas enaõ Comprirem con seus deveres.
xxiii)
NEFS 604: – para na 1a. Riuniaõ se discutir nas faltas e Serem es tremados os ditos Irmãos em Vertude do ARtigo 49 dadispozicaõ geral, tendo feito aduaçaõ a esta deVoçaõ de huma Imagem de Santo Cris to.
xxiv)
NEFS 606-607: – que todos os Irmãos que deve ou que deora en dia nte dever qualquer Cota ou multa por falta de deveres que naõ tiver pago en tempo conpe tente dos seus mençaes se discontará.
xxv)
NEFS 609-611: – para empedir os feitos que a Meza prezente tem ex zecutado.
xxvi)
NEFS 609-611: – em qualificar os nossos Irmãos que per tenderem entrarem nadita devoçaõ athe o tem po prefixo emque marca o Artigo 8 que asima temos exposto, tombem acrese que sobre o Protesto feito contra aMeza naõ concordou o Prizidente damesma.
xxvii)
NEFS 684-685: – a çhando-se o Irmão Provedor emas Irmão em Meza estaordinaria deuse Comprimento o que ficou aguiado, Sobre a Re prezentaçaõ do Irmão Serafim dos Anjos contra aComissaõ da Imenda da reforma do Prezente comprimisio por esta se açhar de posse deste dever atres annos enaõ ter dado Compri mento aos seus deveres.
Estrutura modal (futuridade)
xxviii) NEFS 637-638: – Nota que de de ora en dien te todo Irmão que querere En trar ha de dar quatro mil res de Cla rando menos os que ja requereiro
344
xxix)
NEFS 602-603: – estando oIrmão Provedor emais Irmãos que foram a Cortados naõ compariçindo amaior parte deuse Com primento aoque tinha aporpor o Nosso Irmão Provedor e ficou asentado por maioria devotos a todos Irmãos para darem to dos omezes ou Como milhor lhe comvier.
Estrutura lexicalizada
xxx)
NEFS 667-669: – que os Irmãos que estando a Meza aberta seretirar sem Liçença da Meza, por huma argente Çircuns tançia que tenha depreçizaõ, incorerá na mesma pena.
xxxi)
NEFS 684-685: – Nota Bene só hove de deferença 3#200 que foi do troco contra o cofre.
2.3. OCORRÊNCIAS DE TER E HAVER EM DOCUMENTOS ESCRITOS POR PROVÁVEIS BRASILEIROS POR TIPO DE ESTRUTURA A par de quatro contextos opacos, que permitiriam diversa interpretação, foram os seguintes os dados levantados:
Estrutura existencial
xxxii)
NEFS 579: – e passou-se a executar eo Irmão Thezoureiro Atual tomou conta do que havia como consta do Livro de Inventario a folha 1a. eaSinou do que se fes este termo.
xxxiii) NEFS 589-590: – Asim como a Missa atual eos Irmãos que se reuniraõ na mesma ocaziaõ de terminaraõ todos em Huma só voz, sem que houve se outro acordo que se desse excuçaõ ao termo do Estraordi- nario. xxxiv)
NEFS 693: – epor passar de Ora ficaraõ adiadas asrepre zentaçoens a Saber huma do Irmão Manoel da Conceicam e outra do Ex Irmão Luiz Thexeira para ter o Competente provimento na1a Dominga do mes de Fevereiro.
Estrutura de posse (propriedade adquirível imaterial – PAI)
xxxv)
NEFS 622-623: – estes nosso atraso es- pera oprovedor este comprimento nesta re- uniaõ vindora e quando haja amesma falta será feito este trabalho pela mesa.
xxxvi)
NEFS 653-654: – ficando de hora em diante os mençaes dos nossos Irmaos em duzentos e quarenta reis os quaes teraõ prinçipio de Janeiro de 1845 atte Janeiro de1846.
345
Estrutura de posse (propriedade adquirível material – PAM)
xxxvii) NEFS 661-663: – e quando essa falte ou apessôa que o tem em sua companhia naõ queira mais con servar em sua Casa entaõ poderá ser reco- lhido a o Hospital e pagas as despezas diarias xxxviii) NEFS 645-646: – apareseu deMais que dehoie em- diente que todos os Irmaõns que
tiverem os Seus Pinhores poderã esta devoçaõ dar, digo Receber ahum por Sento ao mês.
Estrutura de tempo composto
xxxix) NEFS 660-661: – que d’ora emdiante se continuase com o so- corro do nosso Irmão Jose Romaõ Soares Gadelha que se havia suspendido assim como fica a diado aextremaçaõ para a primeira Reuniaõ. xl)
NEFS 659-660: – e rezolveo o Seguinte - que a extremaçaõ que se tinha tratado para nesta dacta ser realizado ficava de memhum effeito por hoje.
xli)
NEFS 622-623: – Aos dois dias do mes de Abril de mil e oito centos e quarenta etreis tendo se acor- dado unanimamente atoda a devoçaõ para as horas marcada por hum termo de ser reunir-se enossos feitos das 9 horas.
xlii)
NEFS 622-623: – será feito este trabalho pela mesa enaõ teraõ Vossa Senhoria reclamaçaõ
xliii)
NEFS 583-585: – e deusecomprimento aoprepa- ratorio do Altar da nossa Padroeira por
pois tem faltado com os seus deverés.
maioria absolu- ta de vottos que determinou na mesma finta em que havia marcado de 2#reis cada Irmão e Irmã. xliv)
NEFS 576: – ficando adiada para aprimeira reuniaõ outro sim ficando asistremacons dedodos Irmaõ eIrmã que tiuerem emcurido no Artigo 49 naprimeira reuniaõ.
xlv)
NEFS 576: – por asim há- ver detriminado ameza por maioria abusu- luta deuotos edispois deserem istremados naõ serem adimitidos.
xlvi)
NEFS 578-579: – estando oProuedor imais Mezarios leuse otermo emque ficou aguiado onosso Irmão Tizo- zeiro tem dado Comprimento nopreparato- rio doaltar etambem esta recebendo as fintas.
346
Estrutura modal (futuridade)
xlvii)
NEFS 627-628: – nesta ocasiaõ sera cha-a do o Irmão Secratario Joze Fernandes do Ó para deter- minar aforma que se á dé faser achapá e juntamente na maoria de voto abrice o-a cento do nosso Irmão Manoel Claudo.
Estrutura lexicalizada
xlviii)
NEFS 561-562: – he feita as dividas Conferencia hove a ca- da hum Irmaõ a quantia de sento he quarenta reis A cabando he por Istar Conforme heu que fiz he subriquivi.
xlix)
NEFS 694: – etaõ bem foi despaxado a reprezen taçaõ do Irmão Manoel da Conceiçaõ com o despacho seguintes Não tem lugar ao seu tempo sera deferido.
2.4. A DESCRIÇÃO DOS DADOS O levantamento das ocorrências no corpus está apresentado no Quadro 1, abaixo:
Informantes Africanos Estrutura Verbo TER HAVER Existencial – 04 Posse PAI 02 – PAM – – Tempo composto 05 – Modal Futuridade 01 02 Obrigatoriedade – 01 Lexicalizada 01 – Quadro 1: Ocorrências de ter e haver no corpus.
Como
se
pode
depreender
na
Brasileiros TER HAVER – 02 01 – 01 – 07 – 01 01 – – 01 01
observação
atenta
Prováveis brasileiros TER HAVER 01 02 01 01 02 – 05 03 – 01 – – 01 01
aos
dados
acima
esquematizados, os contextos em que ter e haver se encontram em variação se referem às estruturas existencial, de posse do tipo PAI, de tempo composto, modal (futuridade) e em construções lexicalizadas. A maior incidência da variação se dá nos documentos escritos por prováveis brasileiros, em que não há qualquer ocorrência de haver em estruturas de posse do tipo PAM e em construções modais de valor semântico de futuridade.
347
Note-se que africanos e brasileiros apresentam um comportamento bastante similar de uso, nomeadamente na exclusividade de emprego de haver em estruturas existenciais e de ter em estruturas de tempo composto. A prototipicidade de ter como verbo de posse e auxiliar de tempo composto atestada por Eleutério (2003), no século XVII, conquanto seja em parte corroborada pelos dados dos africanos e brasileiros, são ao fim e ao cabo desconfirmadas pelos resultados extraídos dos prováveis brasileiros, em que se verifica que, em 37,5% dos casos, o tempo composto é marcado por haver, percentagem que é ainda mais representativa se confrontada à estrutura de posse do tipo PAI, correspondente a 50% das ocorrências. Isso de certa forma indica que a difusão de ter, iniciada no português arcaico nas construções de posse do tipo PAM e que posteriormente atingiu as estruturas do tipo PAI e PI, não se havia concluído ainda no século XIX, ao menos nos dados apresentados. No tocante ao emprego desse verbos em estruturas existenciais, Callou e Avelar (2000), analisando dados do NURC/RJ – 70/90, demonstram que ter e haver na fala culta carioca apresentam uma diferença de freqüência significativa no intervalo de duas décadas, representando, respectivamente, 63% e 37%, nos anos 70, e 76% e 24%, em 90, no total de ocorrências, o que sugere uma mudança em progresso, ao menos para os falantes do Rio de Janeiro. Confrontando esses dados aos do presente trabalho, observa-se que ter já despontava como existencial em 33,33% dos casos atestados nos documentos escritos por prováveis brasileiros, mas não chega a ocorrer uma única vez nos outros dados. Aliás, a possibilidade de ter funcionar em estruturas existenciais remonta ao século XVI, 'quando entra na cena da língua portuguesa' (MATTOS E SILVA, 2002a, p. 139), pela douta mão de seu primeiro gramático prescritivo, João de Barros, assim como pela tinta de um dos escrivãos de Dom João III, em carta datada de 1557 (cf. MATTOS E SILVA, 2002b, p. 156). Nas expressões modais, a variação ocorre nos textos escritos por africanos e por brasileiros. Nestes, embora ter selecione a preposição a + infinitivo e haver, a preposição de + infinitivo, o contexto de variação é evidente. Nos documentos 348
produzidos por africanos, a preposição selecionada por ambos os verbos é de. Notese que em ambos os casos apresentam valor semântico de futuridade, o que denuncia um novo contexto de variação, já que na Carta de Caminha, do século XV, observada por Mattos e Silva (1996b), esses dois verbos comportavam-se em distribuição complementar face aos valores de futuridade e obrigatoriedade que poderiam nessas estruturas representar. Veja-se que Eleutério (2003) não registra, no século XVII, em seu corpus, uma ocorrência sequer de ter em estruturas dessa natureza, atribuindo ao verbo haver emprego categórico nessas situações, sobretudo no de futuridade. Por fim, quanto às chamadas estruturas lexicalizadas – que parecem restar mais propriamente ao âmbito da fraseologia e dos idiomatismos –, não se poderia caracterizá-las como fenômeno de variação, já que se trata de construções formulares, emanadas de uma tradição pragmática de uso, às vezes cunhada no próprio condicionamento da língua, ou quiçá resultados de empréstimos ou decalques lingüísticos. Não obstante, servem a esse fim ambos os verbos no corpus analisado, sem predomínio muito significativo de um ou de outro, mas com relativa expressão para o verbo ter, que diferentemente nas construções identificadas por Eleutério (2003, p. 205) que, no século XVII, “são, em sua maioria, compostas por haver", no cômputo geral ter, nos dados aqui analisados, representaria 60% dessas estruturas.
CONCLUINDO No geral, pôde-se depreender, pelos resultados desta breve investigação, que os verbos ter e haver parecem confirmar, também na Bahia oitocentista, notadamente na escrita de africanos, falantes L2 de língua portuguesa, e de afro-descendentes nativos, a longa trajetória de variação que não parece se esgotar entre esses predicadores. Após séculos de disputa, o verbo ter, embora tenha progressivamente avançado sobre haver e – em algumas estruturas – conquistado o espaço antes a este reservado, vê-se quase sempre diante de uma fênix fabulosa que insiste em sobreviver além das cinzas. Milroy (2003, p. 146) retoma uma questão de grande repercussão entre os estudos sobre variação e mudança lingüística que se refere ao fato de por que a 349
"variação em alguns casos leva a mudança, mas em outros não?",5 já que, como se sabe, "a língua é inerentemente variável",6 não dependendo, como pensavam alguns, de qualquer "homogeneidade" ou de qualquer alegada "recomposição estrutural" em seu sistema, senão o funcionalmente requerido. Há de se considerar que nem sempre bastam as interpretações intralingüísticas sobre determinados fenômenos, mas "há situações em que é necessário aduzir explicações sociais"7 (MILROY, 2003, p. 156) para determinados comportamentos lingüísticos. Isso tem levado a Lingüística moderna a avançar além de seus domínios tradicionais de análise, quase sempre centrados na Fonologia, Morfologia e Sintaxe, para os âmbitos da Pragmática e do Discurso. Por vezes, é a escolha do utente da língua, nomeadamente na prática social do letramento, que faz com que a tradição reacenda determinadas realizações ou estruturas cujos dados na fala não seriam minimamente robustos para tal fim, mas cujo prestígio na escrita é suficiente para que em determinados registros se mantenha uma dada tradição. Este breve trabalho descritivo-comparativo sobre os verbos ter e haver é o início de uma investigação mais ampla a ser empreendida pelo grupo de pesquisa PROHPOR sobre esses novos dados. Quiçá análises futuras possam vir a esclarecer um pouco mais sobre a questão. REFERÊNCIAS: CALLOU, Dinah; AVELAR, Juanito (2000). Sobre ter e haver em construções existenciais: variação e mudança no português do Brasil. Gragoatá, n. 9, p. 85-100. ELEUTÉRIO, Sílvia (2003). A variação ter/haver: documentos notariais do século XVII. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. FERREIRA, José de Azevedo (2001[1980]). Les verbes haber-tener et l'emploi de l'anaphorique y dans le libro de los Gatos. In: ______. Estudos de história da língua portuguesa: obra dispersa. Braga: Universidade do Minho. p. 3-25.
Original: (...) variation lead to change in some cases, but not in others? Original: (...) Language is inherently variable. 7 Original: (...) there are some situations in which it is necessary to adduce social explanations (...). 5 6
350
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (2002a). Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI: usos e teoria em João de Barros. In: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia; MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. (Orgs.). O português quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador: EDUFBA. p. 119-142. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (2002b). A variação ser/estar e haver/ter nas Cartas de D. João III entre 1540 e 1553: comparação com os usos coetâneos de João de Barros. In: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia; MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. (Orgs.). O português quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador: EDUFBA. p. 143-160. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1999-2000). A variação ser/estar e haver/ter em 1540. Revista portuguesa de filologia, v. XXIII, p. 71-96. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1996a). A variação 'haver'/'ter'. In: ______. (Org.). A carta de Caminha: testemunho lingüístico de 1500. Salvador: EDUFBA. p. 181-193. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1996b). A emergência do tempo composto na história da língua portuguesa. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO DE LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA DA AMÉRICA LATINA. v. XI, Las Palmas. Anais... (inédito). MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1987). Ser, estar, jazer, andar no português trecentista. Arquivos do Centro Cultural Português, v. XXIII. p. 31-45. MILROY, James (2003). The social context for language change. In: HICHEY, Raymond. (Org.). Motives for language change. Cambridge University Press. p. 141-157. OLIVEIRA, Klebson (2003). Textos escritos por africanos e afro-descendentes na Bahia do século XIX: fontes do nosso latim vulgar? Dissertação de Mestrado. Universidade Federal da Bahia, Salvador. VERGER, Pierre (1987). Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. Dos séculos XVII a XIX. 3. ed. São Paulo: Corrupio.
351
POSFÁCIO Charlotte GALVES (UNICAMP – CNPq) Na tese em que dá a conhecer os textos que são o objeto deste livro, Klebson Oliveira escreve: De fato, por razões históricas, dir-se-á, mas só a princípio, que um dos méritos do corpus constituído é consentir aproximações do que teria sido o português popular do passado, porque, como diz Mattos e Silva (2001a e 2002a), foram os africanos e afro-descendentes os seus mais prováveis usuários, contudo já se fizeram insinuações para dizer que o corpus, talvez, também espelhe variedades do português culto. De todo modo, diz-se que afirmações desse tipo, qualquer uma delas, só podem ser comprovadas quando uma edição como a que se apresentará cumpre o seu objetivo primeiro, ou seja, que seja estudada, no que toca à língua ali presente, por outros que, como disse Castro (1996, p. 136-137), se desviem pelos mesmos caminhos. (OLIVEIRA, 2006, p. 214-215) [grifo meu, CG]
Os capítulos que precedem este POSFÁCIO constituem uma primeira resposta ao desafio lançado por Oliveira. “Desviando-se pelo mesmo caminho”, eles destrincham, descrevem e analisam em detalhe parte do corpus por ele editado: os documentos (em grande maioria atas, e doravante chamados Atas) escritos por aqueles que ele identificou como africanos, ou seja, aqueles que, nascidos na África e vindos de lá como escravos, conseguiram alforria no Brasil e, além de aprenderem o português para se comunicarem no dia-a-dia, se dedicaram à tarefa de escrever, em português, os textos relativos ao funcionamento da Irmandade que eles fundaram. Frente ao mapa traçado pelos diversos caminhos trilhados pelos autores deste livro, podemos agora confirmar a veracidade das hipóteses e 'insinuações' levantadas, antes que fossem analisados, na sua complexidade, os documentos estudados aqui. Estamos, de fato, em frente de testemunhos do português popular do passado, bem próximo do português popular de muitos outros documentos, passados e presentes. Mas é verdade que os mesmos textos espelham 'variedades do português culto'. Esta dupla face é, a meu ver, o legado maior desses documentos, porque eles apontam para uma dupla competência, adquirida em situações diferentes e com objetivos distintos. Uma diz respeito à oralidade quotidiana e encerra nela a questão das origens do português brasileiro (PB) coloquial moderno. A outra deriva da 352
capacidade dos seis autores do corpus em análise de se apropriarem da língua culta do discurso das Atas. O que surpreende o leitor moderno é a co-existência, nos mesmos textos, desses dois níveis lingüísticos distintos e – se pensarmos em termos normativos – antagônicos. Mas certamente a norma não é uma questão para os nossos falantes/escritores africanos, recém-saídos da escravidão, na Bahia oitocentista. A questão para eles é constituir a língua num real instrumento de comunicação. E, sem dúvida, o fazem com eficiência. Neste POSFÁCIO, entendido como ponto de fechamento, mas também, se bem sucedido, como um ponto de abertura, queria, com base nos capítulos que o precedem, problematizar essa dupla competência instanciada nas Atas e, tomando essa questão como base, articular minha reflexão em torno de dois temas:
(i) a questão das origens do PB, uma vez que estamos frente à escrita de uma comunidade que é uma das formadoras da variante brasileira: a africana; (ii) a natureza do sujeito nulo, focalizando a forte ambigüidade gramatical que o caracteriza, como reveladora da instabilidade criada pela sobreposição das competências lingüísticas encerradas nos textos em análise. 1. A DUPLA COMPETÊNCIA LINGÜÍSTICA SUBJACENTE ÀS ATAS
Os documentos estudados neste livro fogem às expectativas comuns sobre a produção escrita. Encontra-se, com efeito, neles o que nos aparece como uma contradição. Por um lado, como enfatizado em vários capítulos, a sintaxe das Atas é perfeitamente condizente com a sintaxe portuguesa padrão da época. Encontramos uma colocação de clíticos clássica (Capítulo 5), uma sintaxe de regência quase impecável, do ponto de vista da norma (cf. Capítulo 3 – voltaremos, porém, a esse ponto na Seção 2 abaixo), construções hoje obsoletas na língua corrente, como a expressão do passivo com o pronome se (Capítulo 4), um uso do sujeito nulo bem mais próximo do português clássico do que do português brasileiro do século XXI (Capítulo 2) e, enfim, períodos complexos, contendo orações subordinadas 353
completivas, adjuntas e relativas variadas e também, em sua grande maioria, compatíveis com o padrão normativo da época (Capítulos 6 e 7). Por outro lado, observamos, em alguns aspectos, um desempenho profundamente desviante em relação a esse padrão. Nessa categoria se encontram os fenômenos relativos à concordância, tanto nominal quanto verbal (Capítulos 8 e 9), fenômenos esses que têm sido relacionados ao processo de crioulização ou semi-crioulização (cf. COELHO, 18801886; GUY, 1981; BAXTER & LUCCHESI, 1999) ou, de um ponto de vista de uma teoria mais ampla do contato lingüístico, à transmissão irregular (LUCCHESI, 2002) ou aprendizagem imperfeita (KROCH, 2001). Convivem, assim, nas Atas, um domínio da norma quase sem falhas, quando consideramos certos aspectos da sintaxe, e um desvio reiterado dessa mesma norma, quando se trata de concordância nominal e verbal. A contradição só se desfaz se assumirmos que temos duas dimensões autônomas, que são fruto de duas aprendizagens independentes. A aprendizagem do vernáculo popular, usado na vida quotidiana, e a aprendizagem de uma sintaxe escrita convencional. Dessas aprendizagens diferentes, emergem duas competências distintas, mas não antagônicas, no ato da escrita das Atas, já que, ao que parece, não constituem um objeto regido pela norma gramatical vigente nos textos ‘cultos’. Sua eficiência não se mede pela obediência a uma norma gramatical, mas pelo preenchimento de funções pragmáticas essenciais ao bom funcionamento e à preservação da Irmandade. 2. A QUESTÃO DAS ORIGENS DO PB: O PAPEL DAS LÍNGUAS AFRICANAS Na citação que abre este POSFÁCIO, Oliveira discute a relevância do corpus por ele editado para os estudos históricos do português brasileiro. O que será que esse corpus nos diz sobre as origens do PB? Essa é uma questão em filigrana em todos os estudos reunidos aqui. Os autores dos textos analisados neste livro são africanos. Eles são, portanto, com toda certeza, falantes nativos de outras línguas que não o português, e falantes de português como segunda língua. Como diz Oliveira: “Os documentos saídos de mãos africanas, talvez, possam permitir aproximações das 354
variedades do português falado como segunda língua” (op. cit., p. 214). Podemos acrescentar ... o português falado como segunda língua por africanos ... o que nos leva à indagação sobre a influência que essas línguas africanas possam ter tido no desenvolvimento de uma nova variante do português em terras brasileiras. Como enfatizado acima, grande parte dos estudos reunidos aqui declaram uma certa impossibilidade em detectar nos textos o germe das características sintáticas do PB moderno. No domínio da sintaxe, só um tópico permite estabelecer, sem dúvida, essa filiação: é a concordância, nominal e verbal (cf. Capítulos 8 e 9), tão reiteradamente apontada como sendo a assinatura do contato, e dos seus efeitos mais drásticos, como a crioulização. Um outro aspecto, mais dificilmente apreensível pelo seu caráter ambíguo,
nos traz alguma informação: o uso do sujeito nulo e do
pronome se (Capítulos 2 e 4). Depois dos Capítulos 8 e 9, pouco resta a dizer sobre a questão da concordância, senão, talvez, que uma abordagem sintática da concordância nominal – explicitamente deixada de lado no Capítulo 8 - ressaltaria ainda mais o fenômeno da ausência de concordância explícita. Não fiz nenhuma quantificação a esse respeito, mas me parece que são pouquíssimos os sintagmas nominais em que a marca de concordância apareça em todos os constituintes. Ou seja, os africanos dominam mais a morfologia da concordância (75% das palavras plurais são pluralizadas) do que a sintaxe da concordância. Retomarei, na próxima seção, a questão dos sujeitos nulos. Queria agora apontar para um dos fenômenos discutido no Capítulo 3: a expressão do dativo. Os autores enfatizam dois aspectos dessa expressão, a predominância da preposição a sobre a preposição para e a quase ausência de construções de duplo dativo, presentes em certos dialetos brasileiros, como o dialeto da Zona da Mata (SCHERR, 1996) e o dialeto de Helvécia (BAXTER & LUCCHESI, 1996). Eles apontam um único caso dessa construção:
(1) em uertude de dar Compimento o pogetos oferecidos a deuocaõ... (MC, 01, 21.10.1834)
355
Note-se que, nesta mesma frase, o complemento de oferecidos, verbo que subcategoriza um argumento dativo, aparece numa forma que pode ser interpretada como uma forma não dativa. Como discutido pelos autores do capítulo, a ausência de crase torna ambígua as ocorrências em que o complemento é feminino. Se fossem computadas essas ocorrências como realização de dativos sem preposição, talvez pudéssemos considerar que a construção de duplo objeto é de fato presente nos textos de maneira bastante robusta. Observemos, por exemplo, a frase sublinhada no seguinte trecho:
(2) Fca para de cutir o Requiremento seguuin<te> / do Vizitador Joze Fernandez do Ó / do Vis Porvedor Manoel da Comceiçam, / do Fcal queAprezentor a Meza oprogeto / Com 5 Atigo <Sahio Nolo> estar Comfoner para / 1a Domingos do Mez
Manoel Victo /
Secretário (MVS, 07, 14.06.1835)
Dois outros dados não ambíguos merecem menção:
(3) ejuntamente na 1a. Reuniaõ aprezentar Ø qual quer hum Irmão a Sua Instruçaõ ou tabella deRejime (JFO, 02, 01.11.1835) (4) fica multado aqual quer Mezários quefalte assistencia de Meza Mensaes pagaraõ de cada falta servindo esse dinheiro para os mulimentos eu tencilios para devocaõ social. (LTG, 08, 02.02.1833)
Se interpreto adequadamente a primeira frase, qualquer hum irmão é o complemento dativo de apresentar, sem preposição. Na segunda, a preposição a parece introduzir o argumento interno do particípio passado multado. Essa correlação entre ausência de preposição introduzindo os complementos dativos e uso da preposição a para introduzir os complementos diretos é também uma das características sintáticas observadas em documentos que integram o acervo do Arquivo Caculo Cacahenda1, também escritos por africanos, porém na África – mais exatamente, em Angola –, e editados recentemente num volume que integra a série intitulada Africae Monumenta: a apropriação da escrita pelos africanos (cf. TAVARES &
1
Caculo Cacahenda é o nome de uma importante linhagem de chefes africanos.
356
MADEIRA, 2002). A comparação entre os dois corpora se impõe. Muda o lugar e muda possivelmente a língua materna – de um lado, quicongo e quimbundo2, do outro lado, não sabemos, ao certo, se do grupo banto, ou de uma família aparentada ou não. Mas há muitas semelhanças. Os documentos escritos em Angola são, em grande maioria, de natureza jurídico-administrativa, o que acrescenta um forte elemento de semelhança. Em relação à regência verbal, encontramos as seguintes construções (os exemplos datam, respectivamente, de 1850 e 1846):
(5) ficando os Reos responcaves de pagarem
o Aucttor, a quantia de vinti e seis mil
duzentos e sincoenta (op. cit., p. 153) (6) tendo tambem Captivado a Sebastião Amazengo (op. cit., p. 142)
Em (5), o complemento dativo de pagar, o Aucttor, aparece sem a preposição a. Em (6), o objeto direto Sebastião Amazengo é introduzido pela preposição a3. Essa variação na marcação dos argumentos é também um traço do português africano moderno (cf. GONÇALVES, 2004 e GONÇALVES & CHIMBUNTANE, 2004, para o português falado como segunda língua em Moçambique) e está relacionada com o fenômeno do duplo objeto, também típico do português africano e, como já mencionado, presente em certos dialetos brasileiros, bem como o uso do clítico lhe como complemento de objeto direto, também presente em alguns dialetos brasileiros. O uso das preposições em geral é, aliás, um dos aspectos do português brasileiro mais susceptível de ter sido influenciado pelo contato com línguas faladas pelos africanos no Brasil. Os estudos que precedem este POSFÁCIO não tratam explicitamente dessa questão, a não ser a respeito das orações relativas (Capítulo 6), que apresentam um único caso de uso desviante de preposição nas construções de pied-piping, em que a preposição em é usada no lugar da preposição de:
Como informado por Ana Paula Tavares na introdução da obra referida. Uma possível interpretação do uso da preposição a no português africano do século XIX seria o fato que isso era um construção freqüente no português clássico. Contudo, encontramos esse mesmo fenômeno no final do século XX na fala de moçambicanos aprendendo português como segunda língua em contexto formal de aprendizagem, ou seja, com base no português europeu moderno, que perdeu essa construção.
2 3
357
(7) Comparecerem em hum estraordinario para o Comprimento dos desvalido em que estamos em Caregado (JFO, 02, 13.11. 1836)
Numa rápida busca a outros usos da preposição em no corpus, achei o seguinte dado:
(8) eseguio-se os trabalhos efica aguiados para na / Dominga 13 doCorrente a Ver nova Reuniaõ para setratar / da Festa emais as Contas da 4a e 5a Lotaria (MSR, 13, 06.09.1835)
O que chama atenção nesse dado é o uso concomitante de para e de em. Esse fenômeno é raro, uma vez que só se encontra uma vez no conjunto das Atas. Mas ele faz eco ao que se encontra nas produções de moçambicanos falando português como segunda língua, nos nossos dias, como ilustrado no exemplo a seguir (cf. GONÇALVES & CHIMBUTANE, 2004, p. 9):
(9) voltou para no Maputo
No seu artigo, Gonçalves e Chimbuntane (2004) estudam a expressão do locativo. Eles explicam que, nas línguas banto, o locativo não é expresso por preposição, mas por um afixo no nome. Os sintagmas locativos são, portanto, nominais e não preposicionais. Isso explica a co-ocorrência de em, reanalisado como afixo nominal, com a preposição para, que indica a direção. Na frase de Manuel do Sacramento e Conceição Rosa, as preposições em e para não têm valor locativo, mas temporal, porém a mesma análise pode explicar a mesma co-ocorrência, se em é analisado pelo autor como um afixo no sintagma nominal a dominga, e não como uma preposição. Podemos indagar o porquê da raridade desse fenômeno no corpus em análise4. Vejo dois. Primeiro, a raridade da expressão da direcionalidade. Uma rápida busca mostra que as ocorrências de para são exclusivamente temporais e finais. Nas Atas, Encontrei um outro caso, um pouco diferente, mas passível da mesma análise: ejuntamente aopiniaõ da aprezentaçaõ do Irmaõ Ex-cecretario Marco Jozé do Ro-zario, pello Capitulo apontado pello no Seu memo Requerimento epor esta Comforme cv mandou passar este pormim, em falta do Secretario (JFO, 11, 10.07.1842). 4
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não se fala de lugares aonde se vai, só se fala de lugares em que se realizam atividades. Segundo, é importante notar que a co-existência de duas preposições locativas não se manteve no português brasileiro. Parece ser uma característica do português falado como segunda língua por africanos, que não se implantou no português falado como língua materna no Brasil, pelo menos nos dialetos de que temos notícia. A sua raridade nas Atas pode então decorrer também da competência dos falantes. Apesar de não terem nascido no Brasil, tudo leva a pensar que são fluentes em português e que sua 'interlíngua' já não comporta, ou pouco comporta, esse tipo de construções. Dito de outra maneira, como enfatizado por vários autores dos ensaios apresentados neste livro, e retomando os termos de Baxter e Lucchesi (1999), os redatores das Atas já não estão na fase inicial da aprendizagem do português. Isso é coerente com a sua capacidade de aprender um registro diferenciado e não é absolutamente contraditório com a sua sintaxe variável de concordância, uma vez que esta, como mostrado nos Capítulos 8 e 9, se aproxima bastante daquela que encontramos hoje em dia no português popular5. As Atas constituem assim um elemento valiosíssimo na reconstituição do puzzle das origens africanas do PB, ao trazerem mais uma peça da convergência entre português popular de um lado, e português falado e escrito por africanos, no Brasil e na África. Com mais segurança podemos, ao sair deste livro, afirmar com Mattos e Silva (2004) e com Lobo e Oliveira (2007) que africanos e afro-descendentes foram “os formatadores” do português popular brasileiro. Poder-se-ia contra-argumentar que a referida convergência só tem sido mostrada, do lado africano, para o domínio banto. Ora, faltam-nos informações sobre a origem étnica e lingüística dos autores das Atas. A sua ligação com a Revolta dos Malês (cf. Oliveira, 2003) os situaria mais no grupo de africanos oriundos de regiões – falantes de línguas de outras famílias – em que se expandiu a religião muçulmana. É, aliás, possível que sua alfabetização inicial tenha sido em árabe. Nos primórdios de uma moderna lingüística comparativa afro-brasileira, os estudos tem se concentrado essencialmente no domínio banto, seja porque os dados do português falado, ou Note-se também que não há menção, no Capítulo 8, de discordância de gênero, traço também típico da aprendizagem do português por africanos, aparentemente ausente das atas.
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escrito, na África, são de falantes de línguas maternas dessa família, seja porque é prioritariamente com essa família – que tem uma tradição de descrição e análise lingüísticas muito forte – que se têm lançado as bases de uma lingüística contrastiva português/línguas africanas. É claro que ainda há muito que fazer, tanto no sentido de aprofundar a lingüística contrastiva línguas banto/português, quanto no de estender os estudos a outros domínios lingüísticos africanos6. Mas seja qual for a língua materna dos fundadores da Irmandade, encontramos, nas suas produções escritas, vestígios de fenômenos já repertoriados em outras produções de africanos falando o português como língua segunda, e fenômenos presentes no português brasileiro moderno. Uma possível explicação para isso, independentemente das suas línguas maternas, é que eles teriam encontrado na Salvador da primeira metade do século XIX um português popular já amplamente moldado pela presença das línguas africanas – em particular as da família banto –, que eles vão contribuir a reforçar e a transmitir às gerações seguintes, já brasileiras. Na última parte deste POSFÁCIO, queria focalizar um dos fenômenos do português brasileiro mais discutidos, sob diversos pontos de vista e diversos quadros teóricos, o fenômeno do sujeito nulo. Dado que a sua análise envolve forçosamente uma abstração maior, por se tratar de categoria ‘vazia’, sem realização lexical, esse tópico nos permitirá retomar a questão da competência dos autores africanos das Atas. 3. O SUJEITO NULO DAS ATAS: AMBIGÜIDADE DA REFERÊNCIA E DA SINTAXE Este livro testemunha bem a centralidade da questão do sujeito nulo nos estudos sintáticos do português brasileiro: dos dez ensaios reunidos aqui, quatro, de alguma maneira, tratam do assunto. São eles o Capítulo 2 sobre o sujeito, o 1 sobre o tópico, o 4 sobre o apagamento de se, e, em menor grau, 9 sobre a concordância sujeito-verbo. Não se podia fechar o livro sem voltar a esse assunto.
A complexidade do assunto pode ser conferida, entre outros estudos, em Bonvini (2008) e Pessoa de Castro (2005).
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Em primeiro lugar, chama a atenção a alta freqüência de sujeitos não realizados nas Atas: entre 68% e 93%, conforme as pessoas; 69% e 100%, conforme o contexto sintático, e 71% e 97%, conforme o caráter mais ou menos formular dos enunciados (cf. Capítulo 2). Esse último número chama particularmente a atenção, porque isto significa que, nas partes em que o discurso está menos preso ao linguajar jurídico representativo desse tipo de textos, o pronome só é usado em 3% das ocorrências, duas em número absoluto. Surge uma outra questão: qual seria a razão da maior freqüência de pronomes nos trechos formulares? Parece-me que a resposta está nos fechamentos das Atas, em que os pronomes de primeira pessoa, eu e nós, são de fato focalizados, inclusive pela presença da conjunção que, como se pode verificar no seguinte exemplo e em tantos outros nas Atas:
(10) Eu que esta subscrevi (MSR, 09, 05.07.1835).
Observe-se que, neste contexto, o pronome não poderia ser apagado. Portanto, não há variação possível. Na ausência de que, não é tão claro, mas podemos afirmar que a primeira pessoa recebe geralmente uma ênfase ou um contraste pouco compatível com o sujeito nulo, como se vê no exemplo a seguir:7 Vale aqui retomar a citação de Martins feita por Oliveira no Capítulo 8, em que a autora argumenta a respeito da relevância das partes formulares dos textos jurídicos para o estudo da mudança. Até onde eu saiba, não dispomos de um estudo comparativo das fórmulas de abertura e fechamento de documentos oficiais em português no tempo e no espaço. Fiz uma pequena busca em textos de que disponho, verificando que, em outros documentos escritos no Brasil, o uso de que é ambíguo entre pronome relativo e marcador de foco. Observe-se, por exemplo, o seguinte trecho, retirado de documentos judiciais redigidos no Ceará no século XIX (cf. XIMENES, 2006); infelizmente a edição não traz nenhuma informação sobre os escrivães desses autos: (i) e para constar mandou , odito Juis fazer esteauto emque aSignou denome inteiro pela Querelante não Saber esCrever, eeu Joséde Barros Corrêa Escrivão que o escrevj (op. cit., p. 69, l. 90-92) Nesse mesmo contexto encontramos, embora mais marginalmente, variantes sem que: (ii) mandou odito Menistro fazer este Auto em que Com odito quei-xozo, etestemunhas assinou, que por estas não saber Escrever o fizerão de Crus, eeuJoão Jozé daCosta Escrivam o escrevj (op. cit. p.181, l. 58-59 ) O primeiro exemplo permite a interpretação de que há dois assinantes do auto, o juiz e o escrivão que o escreveu. Nesse caso, que recebe naturalmente a interpretação relativa. Mas a ausência de que no segundo exemplo mostra que a última oração pode ser interpretada como independente, para informar quem escreveu o auto, independentemente da assinatura do mesmo. Nos documentos do Arquivo Caculo Cacahenda, escritos por africanos na África, encontramos também um uso recorrente de que, com a mesma ambigüidade, sendo que, em muitos casos, a interpretação de focalização é mais plausível, como no exemplo seguinte: 7
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(11) mandou o Provedor lavra es|te termo eeu Como Secretario ofis
cv
eSu|bré escrevi, etc.
[JFO, 05, 10.07.1936].
O segundo aspecto do sujeito nulo que merece destaque é a questão da sua interpretação. O que está em jogo é a natureza da categoria vazia. Será a do português europeu, legitimada e identificada pela flexão verbal rica, ou a do português brasileiro moderno, língua de flexão mais pobre, já que perdeu a forma de 2a pessoa e tem tendência a substituir a 1a pessoa do plural pela forma pronominal a gente, além da tendência mais ou menos forte, conforme os dialetos, a não realizar a flexão de 3a pessoa do plural? A convivência de dois registros no discurso das Atas tem como corolário um comportamento que pode ser caracterizado como misto no que diz respeito ao uso dos pronomes e à morfologia verbal. Por um lado, a primeira pessoa do plural – seja com o pronome nós ou com sujeito nulo, é muito presente nos textos quando se trata de fazer referencia à Irmandade, e não é nenhuma vez substituída por a gente. Isso aponta para uma língua de morfologia rica. Por outro lado, quando o sujeito é anteposto, não há concordância do verbo em 22% dos casos, e, em 29%, quando o sujeito é posposto. Isso aponta para uma língua de morfologia pobre. O que dizer então do sujeito nulo? O Capítulo 1 sugere que a sua interpretação depende do tópico e que estaríamos já frente a uma língua não de sujeito nulo, como o italiano, mas de tópico nulo, como o chinês. Condizente com essa interpretação é o fato de os textos apresentarem também objetos nulos, típicos desse tipo de línguas (a freqüência de objetos nulos com valor anafórico ou dêitico também é apresentada e (iii) E eu Lourenço Gonsalves da Rocha Escrivão que a escrevi e em Sse assignei (TAVARES & MADEIRA, 2002, p. 117) Na busca preliminar que fiz nesse corpus, não achei casos de fechamento referente ao escrivão sem uso de que. Nos documentos paulistas do século XVII editados por Megale e Toledo Neto, que pode ser interpretado como pronome relativo: (iv) Eal não disse, eseasinou Com odito Senhor eeu o padre Antonio Rapozo que oescrevy (op. cit., p. 259, l. 1477) Note-se, porém, que a conjunção de coordenação foi acrescentada na edição. Enfim, um olhar rápido aos documentos notariais do século XIII ao XVI, editados por Ana Maria Martins, mostra que o uso do que nessas fórmulas é exclusivamente para introduzir uma oração relativa. Aparece tipicamente numa relação de lista de testemunhas, dentre as quais a última é o tabelião que escreveu o auto. Como primeira conclusão, podemos aventar a hipótese de que o pronome relativo que dos autos portugueses é copiado e em parte reanalisado no Brasil, e possivelmente na África, como um marcador de foco. Só uma análise baseada num estudo exaustivo e quantificado dos dados disponíveis nos permitirá confirmar essa hipótese.
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discutida no Capítulo 3). No caso do português, as coisas são de fato mais complicadas, já que o próprio português europeu é uma língua de objeto nulo, apesar de este sofrer restrições maiores do que em PB, como mencionado no Capítulo 3 (cf. também RAPOSO 1986 & GALVES, 1989). Um dos argumentos apresentados para sustentar que o sujeito nulo das Atas é legitimado por um tópico nulo se encontra nas construções de natureza formular, exemplificadas pela oração sublinhada do seguinte excerto:
(12) Aos deis dia domes de Julho de1842 estando prezente o Pro- / vedor emais Mezarios fesse aReuniaõ do Costume eficou adi- / ado, o andamento do Comprimissó Sendo descutido pello an- / ticipado de Capitulo a Capitulo, ejuntamente aopiniaõ /da aprezentaçaõ do Irmaõ Ex-cecretario Marco Jozé do Ro- /zario, pello Capi tulo apontado pello no Seu memo Reque / rimento epor esta Comforme mandou passar este pormim, / em falta do Secretario -
Jozé Fernandes do Ó (JFO, 11, 10.07.1842)
O sujeito nulo do verbo mandar receberia sua interpretação de um tópico nulo que, por sua vez, acharia sua referência, no contexto: o Provedor. Concordo com essa possibilidade, mas é preciso ressaltar que a mesma interpretação seria disponível numa língua na qual é a morfologia verbal que legitima o sujeito nulo, o contexto favorecendo a interpretação de que quem mandou foi quem tem autoridade para isso. Nos documentos editados por Ximenes (2006), até onde pude verificar, o sujeito de mandar é sempre explicitado, apresentando uma variação pouco diversificada em torno do seguinte modelo8:
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Deque paraconstar mandou dito ministro fazer este auto (op. cit., p. 88, l. 191-192)
Um estudo mais aprofundado se impõe para comparar as diversas realizações brasileiras e portuguesas desse tipo de fórmulas. No estado atual do nosso conhecimento sobre o assunto, a presença do sujeito nulo nas Atas dos africanos pode tanto ser interpretada em consonância com a alta freqüência de sujeitos nulos nos
É interessante notar que a variação no caso se encontra na presença versus ausência do artigo definido o precedendo dito juiz ou dito ministro.
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textos, ou seja, como um sujeito nulo pronominal do português europeu, quanto no sentido da análise proposta no Capítulo 1. Estamos, de fato, diante de uma grande ambigüidade, favorecida pela coexistência dos dois registros. Note-se que uma outra interpretação ainda é possível, perfeitamente compatível com a proposta do Capítulo 1 de que se trata de uma língua em que o sujeito nulo é identificado pelo tópico, já que o elemento de concordância verbal é fraco (a esse respeito, cf. também GALVES, 1987). Seria a atribuição de uma referência indeterminada ao sujeito de mandar, equivalente a mandou-se. Essa interpretação é proposta no Capítulo 4, que estuda a omissão do pronome se nas Atas. Mas vale observar que um dos enunciados citados nesse capítulo como tendo omissão de se podia também ser interpretado com uma referência definida, no caso de 1a pessoa do singular (‘mandou ... que este eu fizesse’):
(14) mandou o Prezidente e mais Membro da Junta que este ø fizese (MSR, 01, 23.02.1834)
Essa interpretação é favorecida pela continuação do fechamento da Ata:
(15) e para Constar mandou o Prezidente e mais / Membro da Junta que este fizese e asig ase / Como -
Escrivam da Junta (MSR, 01, 23.02.1834)
Também a posição pré-verbal do objeto não é um argumento definitivo para atribuir a essas orações um se apagado, uma vez que encontramos a mesma ordem com o verbo na primeira pessoa do singular:
(16) epor estar / mos Com for me mandou a Junta que se Lavrase / este Termo Como Sacratário que este fiz e a signei (MSR, 08, 08.02.1835)
Exemplos como (17), por outro lado, fazem fortemente pender a balança na direção do português brasileiro moderno. Nesse caso, parece não haver dúvida de
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que se trata de um sujeito nulo indeterminado, que, num caso, até co-ocorre com se na oração coordenada9:
(17) Aos 2 dias do Mes de Outubro estando o Proved[or] emais me- / zarios estando em Corpo de Meza fes o inventario naforma / da lei, e Seachou tudo Com forme o estabalicimento do Nossós / Estatuto (JFO, 12, 02.10.1842)
Para concluir, podemos dizer que, enquanto em outros aspectos da sintaxe, o desempenho lingüístico dos autores das Atas parece ser relacionado de maneira exclusiva à gramática do vernáculo ou à gramática padrão, o sujeito nulo se apresenta como muito ambíguo em relação à gramática que o produz. Ou seja, a dualidade de gramáticas que observamos quando contrapomos, por exemplo, a colocação de clíticos e a concordância nominal, se manifesta no interior da sintaxe do sujeito nulo, deixando a impressão de que os redatores operam com as duas gramáticas ao mesmo tempo. À GUISA DE CONCLUSÃO ... OU DE INTRODUÇÃO Saímos deste livro sabendo mais, e perguntando mais. Sabemos mais, porque tivemos acesso, pela primeira vez, a um riquíssimo produto da aprendizagem do português como segunda língua por africanos, na Bahia do século XIX. Perguntamos mais, porque os caminhos traçados aqui traçam naturalmente caminhos futuros a serem seguidos com novos documentos. Desempenhando o papel de advocatus diaboli, sugeri algumas problematizações. Dos dez capítulos do livro, só o último, dedicado à variação ter/haver, enveredou já pelas Atas escritas pelos brasileiros que fizeram ofício de escrivães na
A recorrência do sujeito nulo indeterminado com o verbo fazer na forma fez pode ser também devida à dificuldade para um ouvido africano em fazer a diferença entre fez e fez-se. Se é verdade, esperamos encontrar mais casos de omissão de se num contexto em que o pronome é normalmente enclítico. Considerando as ocorrências apresentadas nos exemplos 59-69 do Capítulo 4, isso se verifica se, como argumentado acima, as ocorrências com a forma no subjuntivo fizesse – desencadeadoras de próclise – podem ser interpretadas como tendo sujeito determinado (eu). Note-se que esse argumento só vale na medida em que as Atas apresentam uma sintaxe padrão de colocação de clíticos para a época. O Capítulo 4 mostra que é o caso.
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SPD. A expectativa agora é grande de que todas as análises propostas aqui sejam aplicadas à escrita dos que vieram depois na SPD, já nascidos em terra brasileira, e que, por hipótese, já têm o português como língua materna. Dessa comparação, deverá surgir mais compreensão do que faz a especificidade dos documentos dos africanos, e, por sua vez, eles nos permitirão entender melhor a escrita e a fala dos seus descendentes. Neste POSFÁCIO, sugeri outros contrapontos, que devem compor, com as Atas dos africanos e dos brasileiros e com outros tantos documentos a serem descobertos ainda (ou redescobertos), um imenso e diversificado conjunto de dados, cuja análise comparativa nos fornecerá, com certeza, muitas chaves para a história da constituição do português brasileiro, bem como, de modo mais geral, para a teoria do contato lingüístico.
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Este livro foi publicado no formato 17x24cm Com a fontes Times New Roman no corpo do texto e títulos Miolo em papel 75 g/m2 Tiragem 500 exemplares Impresso no setor de reprografia da EDUFBA Impressão de capa e acabamento: ESB Serviços Gráficos
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