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Produzido por Isley Borges da Silva Junior. Projeto "Candomblé em Crônicas: livro impresso e e-book sobre o culto dos orixás". Convênio no 070/2019.
Ensaio inédito de Ìyálorisà Cristina Ifatoki sobre os Odús
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Epifanias contra o Desencanto – Candomblé em crônicas Isley Borges, Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki) e Nasser Pena André Luís Gomes de Jesus (Ògúnkeyé) Luciana Nunes Carlos Gabriel Ferreira Carlos Gabriel Ferreira e Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki) Thiago Carvalho Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki) e Roberto Camargos Raissa Dantas Georges Dib Carlos Gabriel Ferreira Editora Subsolo www.editorasubsolo.com.br agenciaculturalsubsolo@gmail.com Uberlândia - Minas Gerais
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
SI586e Epifanias contra do Desencanto – Candomblé em crônicas Silva Junior, Isley Borges da; Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki), Maria Cristina Andrade; Pena, Nasser de Freitas 1ª edição – 88 págs. – Uberlândia, Minas Gerais - 2020 ISBN 978-65-88075-04-3 I. Religião e sociedade II. Crônicas CDD B869.4
CDU 2-67 Contatos www.acabaca.com.br projetoacabaca@gmail.com
Prefácio
EPIFANIAS DO (RE)ENCONTRO COM O EU-OUTRO André Luís Gomes de Jesus (Ògúnkeyé) Doutor em Teoria Literária pela Unesp, campus São José do Rio Preto Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidades da Universidade Estadual da Paraíba (PPGLI-UEPB)
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refaciar um livro é sempre um desafio complicado por inúmeras razões, mas a principal delas diz respeito ao fato de a leitura do texto prefaciado ter aberto dimensões e relações complexas no leitor-prefaciador. A partir daí, ele assume, então, um olhar enviesado e crítico sobre o que lê, buscando sentidos, intencionalidades, estratégias que foram tramadas pelo(s) sujeito(s)-autor(es) que, segundo o tão citado e pouco compreendido Jacques Derrida, deve(m) se conformar com a ideia de que, uma vez lançado no mar da publicidade, o seu texto estará à deriva de si. É desse lugar-deriva que olho para os textos de Epifanias contra o desencanto e me ponho a pensar no que são para mim enquanto leitor. Porém, além desse olhar de crítico-leitor, convive o olhar do leitor-ego que a partir da epifania do outro, imiscui-se no texto-alteridade para criar o seu próprio texto e sua própria epifania. E só há epifania por duas razões bem claras: a primeira delas, que eu chamaria de “mais neutra” tem a ver com esse encontro com a alteridade que tenta compreender o olhar-escrita do outro, o lugar do outro no mundo e entender, empaticamente, os porquês do texto,
de suas temáticas, de sua trama e de sua urdidura. A segunda forma de epifania se dá quando o leitor, ao se debruçar sobre a epifania-paixão do outro, encontra um espelho – enxergar-se é sempre essencial – e vê o reflexo de si e de sua própria
epifania, de seu próprio encontro, de sua relação com os temas propostos porque também fazem parte de sua experiência. Ambos são modos autênticos e produtivos de compreensão, mas como homem que pertence ao Candomblé preciso esclarecer que esta segunda forma de epifania é a que permeia a minha leitura e, por essa razão, me permito um pequeno aparte biográfico antes de chegar ao livro. A primeira vez que soube da existência do Candomblé foi por volta dos 11 ou 12 anos, graças à leitura de um livro, publicado pela Editora Três, sobre manifestações culturais/ folclóricas brasileiras. Eram dois volumes bonitos, bem ilustrados e que tinham um compromisso com a descrição detalhada de cada uma delas, de suas origens e de sua continuidade nos espaços geográficos onde eram realizadas. E, devido ao seu caráter descritivo, o livro as tratava, a partir de um olhar antropológico, como parte de crenças e tradições populares. Em outras palavras: todas e quaisquer manifestações ali descritas eram vistas como folclóricas. Lembro-me, com o olhar do homem que me tornei, de que o Candomblé era caracterizado como manifestação cultural “endógena” restrita a Bahia. Lembro-me, com o olhar do menino que eu era, da atração que as imagens dos orixás causaram no meu espírito e, de certo modo, eu soube desde aquele dia que ali estava algo que eu deveria buscar entender, que deveria buscar viver. Não que orixás fossem necessariamente um assunto novo para mim: eu nasci numa autêntica família preta católica-apostólica-um-
bandista-espírita, vi em muitos momentos manifestações variadas na minha casa; tinha no caboclo da minha mãe uma espécie de herói que vinha resolver as “tretas” espirituais que, vez em quando, aconteciam. Ouvi na infância que Ogum era guerreiro e que Iemanjá era mãe como mãe era a Nossa Senhora dos católicos. Ouvi pontos cantados em que os orixás eram tematizados. No entanto, o que se desenhava naquelas imagens e textos era algo completamente diferente do que eu tinha visto. Ao longo dos anos fui lendo acerca do culto e, com o olhar do homem-pesquisador eu entendi a existência do Candomblé como pura resistência. Todavia, o entendimento da resistência, a partir de uma experiência externa ao culto dos orixás, é sempre bem problemático e intelectualizado e pode, em certas circunstâncias, tornar aquele que vê a resistência do outro um simples observador- curioso que trata esse saber a partir do olhar para um objeto, ainda que tenha respeito pelo objeto. Foi com esse olhar – o da curiosidade e respeito – que entrei numa casa de Candomblé pela primeira vez sem entender nada do que ali ocorria e foi com esse olhar que, também, tive minha epifania numa quarta-feira de casa vazia, quando Oxóssi, o caçador, caçava/dançava num corpo de homem negro retinto que visitava a casa que nem minha era ainda. Fui caçado por Oxóssi. Ali, pela primeira, eu distingui o som dos três tambores e soube que eles estavam vivos e que me chamavam para um passeio pelo não-tempo da ancestralidade presentificada. Aceitei o convite e da epifania primeira
vieram tantas outras que me ensinaram a resistência por dentro da resistência – a Resistência Real. Soube, ainda, que toda e qualquer tentativa de vestir a experiência da entrega ao fluxo-tempo-orixalidade com a palavra do homem vai ser sempre uma experiência de incompletude, mas nem por isso essa tentativa deve ser tratada como uma desnecessidade. Fazer todo esse preâmbulo biográfico tem como objetivo mostrar duas relações bem distintas entre o livro da infância e esta experiência epifânica de dois “dofonitinhos curiosos” em seu encontro com “uma iyalorixá generosa”. Naquele, o olhar descritivo e seco colocava os ritos candomblecistas como folclore. Neste, a experiência ritual se torna coisa viva que mobiliza, perscruta e toca o íntimo dos humanos, colocando-os em contato com outra esfera de saber, com outros modos de ser-no-mundo que não este que nos é apresentado como único caminho possível. Talvez por essa razão a ideia de incompletude dos textos, abertos ao dialogismo, seja uma marca de cada uma das crônicas. Não se trata de esmiuçar o culto, não se trata de dar tônus de verdade ao que é dito, mas de apresentar o corte epifânico que as vivências no terreiro realizam em cada um dos autores e, também, em quem sequer procura refletir sobre as experiências cotidianas numa casa de Candomblé. Além disso, as crônicas, aqui contidas, parecem performar a sempre impossível capacidade de a palavra mobilizar sentidos fechados. Fica, desse modo, os inter-ditos. Há sempre o sitiamento dos significados que, no fundo, são completos no momento da vivência e se tornam sempre incompletos quando são transpostos para o formato de texto escrito. Em poucas e boas palavras a verdade é que cada qual tem suas próprias epifanias e algumas delas só terão sentidos se se abandona o olhar-pesquisa e se toma para si o olhar que engloba sentimento, razão e consciência da impermanência. Assumindo o olhar do crítico-técnico, é possível afirmar que todas as crônicas deste livro gravitam em torno do tema do encontro. O tema do encontro se faz presente desde a apresentação e se desdobra em pequenos estilhaços que produzem um mosaico de pequenos (re)encontros que tra-
tam de dar nova cor ao mundo desencantado em que vivemos. O encontro consigo mesmo é o tema de várias crônicas, sobretudo de “O momento do renascimento” em que o cronista dá um tom de reflexão acerca do momento único do encontro entre o ego e a cadeia de manifestações ancestrais amalgamadas no orixá que nasce. Há, ainda, o encontro com o outro-igual presente na crônica “Palmira de Oyá” em que Willians, omorixá iniciado pela iyalorixá que dá título à crônica, acaba por presentificá-la e, na palavra quase ingênua que afirma “na minha casa homem não faz roda”, estabelece uma relação de cumplicidade e proximidade com o narrador da crônica. Há, ainda, os pequenos incidentes cotidianos que permeiam a vida de quem se afirma candomblecista: o fio de miçangas na cidade da corda consagrada à Virgem de Nazaré, o xiré-samba-encontro em torno de Janaína na crônica de mesmo nome que tem no Rio malandro o seu cenário, o medo-ignorância do motorista que transporta os componentes do Circuito Exu e a própria desmistificação tanto do orixá-mensageiro quanto do abate-sacralização dos corpos-animais que serão consumidos no âmbito do terreiro. É importante mencionar que, além do tema, o que caracteriza os textos é a transparência que nos permite reconhecer narradores e autores, diferenciá-los e perceber que, mais do que a tentativa de escrever poeticamente, o livro se apresenta como esforço de apreensão da vivência de eus por meio da palavra, o que, aliás , é característico da crônica – gênero aqui mobilizado. Finalmente, é preciso destacar a beleza das ilustrações e do projeto gráfico do livro. O diálogo entre imagem e texto verbal se faz presente sem, no entanto, constituir aquela relação piegas em que imagem completa o texto ou vice-versa. Epifanias contra o desencanto é, enfim, mais um livro-feitiço que tenta trazer um olhar para o candomblé a partir de uma relação que parte do interior – do culto ou das pessoas que fazem parte do culto - o que, no fundo, bem sabemos, é o melhor modo de conhecer o que desconhecemos.
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Prรณlogo
A MACUMBA E OS SEUS ENCANTOS Isley Borges
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MACUMBA seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os ENCANTADORES DE CORPOS & PALAVRAS que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor MANEIRAS PLURAIS DE REEXISTÊNCIA pela RADICALIDADE DO ENCANTO, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de morte. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas (2018), de Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino
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pifanias contra o desencanto: candomblé em crônicas reúne crônicas que desvelam instantes epifânicos acerca do universo do candomblé e da cultura afro-brasileira: trata-se de fragmentos do cotidiano nos quais o candomblé e a cultura afro-brasileira nos tocaram, nos afetaram e possibilitaram algum
tipo de encanto, algum olhar mais demorado para as miudezas da vida. O título do livro encontrou a sua inspiração no texto do pedagogo Luiz Rufino, na edição da revista Cult sobre Filosofia e macumba, intitulado Batalha contra o desencanto: a encruza como chegada e na reportagem do babalaô e professor Luiz Antônio Simas, intitulada Axé contra o desencanto, que trata do mais recente lançamento de Nei Lopes, o livro Ifá Lucumí. Rufino questiona: “Mas, afinal, o que pode a macumba? Quais são suas implicações políticas e como seus praticantes, munidos de um amplo repertório de tecnologias ancestrais, batalham em um mundo assombrado pelo desencanto?”. Simas, em minha imaginação, responde: “(...) por prática do axé podemos entender aquela que elabora um modo de relacionamento com o real fundamentado na crença em uma energia vital — que reside em cada um, na coletividade, em objetos consagrados, alimentos, elementos da natureza, procedimentos rituais, na sacralização dos corpos pela dança, no diálogo dos corpos com o ritmo etc. — que deve ser constantemente potencializada, ofertada, restituída, trocada e transformada para que não se disperse”. Em síntese: a macumba pode tudo contra o desencanto, pois axé é conhecimento sobre as energias, axé é tecnologia ancestral. 20
Em Flecha no Tempo e em Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, obras de Luízes, a preocupação dos autores é pensar o mundo como espaço-tempo de encanto, desencanto e reencanto. Encanto, propiciado pelas energias ancestrais e vitais que regem a Terra. Desencanto, associado ao colonialismo e capitalismo, sendo o segundo uma espécie de continuidade do primeiro. Reencanto, pensado a partir de espaços como os terreiros, que incorporam artifícios da (re)territorialização dos povos negros da diáspora e engendram saberes de (re)encantamento da vida. “O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto”, afirmam os Luízes. As permanências do colonialismo na sociedade contemporânea, como o machismo, o racismo e as diversas intolerâncias, produzem um Brasil do desencanto, um país forjado no tensionamento das desigualdades sociais e étnicas. O racismo estrutural e epistêmico da sociedade brasileira marginalizou os saberes dos terreiros, das macumbas, impossibilitando que a cultura afro-brasileira fosse a base de um arcabouço teórico e metodológico para refletirmos sobres as questões de nosso país. O espaço do sagrado, encharcado de 24 22
significados, lugar de resistência, folhas, cantigas, culinária, coletividade, é lugar, por si só, educativo, pedagógico, epistêmico. Aprende-se não apenas uma religião, mas um modo de ver, de viver e de pensar. Seria importante e responsável pensarmos o Brasil enquanto terreiro. Deslocar os sentidos. Enfrentar as multifacetas do caminho, as encruzilhadas. Encarar os porões escravagistas contemporâneos. Combater o extermínio da juventude negra e a criminalização da pobreza. Deseducar as incongruências. Colocar o dedo na cara da intolerância religiosa e gritar: “respeito o seu amém, respeite o meu axé!”. O caminho, então, se desenha. Mostra-se, nítido. Encantado. As epifanias presentes neste livro, que revelam as miudezas do cotidiano encantado dos terreiros, pretendem ser patuás, amuletos contra o desencanto. Pretendem ser, ainda, um ebó, como propôs Luiz Rufino em sua Pedagogia das Encruzilhadas, uma intervenção que opera no invisível, colocando ali energia vital. As crônicas se iniciam por Exu, o primeiro a comer. Exu apresenta-se como o dono do caminho e das encruzilhadas. Ele é o guardião das possibilidades, pois todo caminho é multifacetado. A encruzilhada é o símbolo das possibilidades de escolha. Diz-se que 25 23
Exu caminha por todo o mundo aplicando as suas trapaças, para se explicar que esta energia está em todo lugar e pode, vez ou outra, nos pregar peças: “cada escolha, uma renúncia”, assim diz o ditado popular. Escolher é muito difícil: gera dúvidas, questionamentos sobre a nossa essência e sobre o nosso caráter. Pois Exu é isto mesmo, as muitas possibilidades de caminhar que testam a retidão do nosso agir sobre o mundo. A partir de Exu, o xirê vai se desenrolando e os textos dão conta de infinitos particulares que encantam: destinos, renascimento, morte, samba, miçangas, fé e riso. Epifanias contra o desencanto: candomblé em crônicas é finalizado em um momento de reflexões sobre uma pandemia global que acometeu um mundo desencantado. Estamos vivenciando um instante de pausa. O mundo de agora, da pandemia, já não é mais o mundo de antes: conhecemos quem é contra a ciência, quem governa mal, que não é solidário, quem se importa com o(s) outro(s). Nos terreiros, nas macumbas, aprende-se sobre pausas. Pausas são sempre desafiadoras, pois colocam-nos diante de nós mesmos, das nossas escolhas, das nossas verdades, das nossas (in)certezas. Pausas revelam a nossa pequeneza diante da terra, orixá Onilé. A terra come, a terra necessita de alimento. Em época de desequilíbrio, desigualdades sociais e degradação ambiental o que alimenta a terra são as guerras, as pandemias, os naufrágios, as quedas de aviões, horrores que nos evidenciam a importância da humanidade. É difícil aprender com a terra, pois a sua cobrança fere frontalmente o nosso ego, o nosso desejo de fazer planos. A pausa é uma estratégia, uma tecnologia do tempo. A crônica, do latim chronica, quer dizer relato do tempo, registro dos acontecimentos. 26 24
As tradições orais traduzem a sua memória ancestral através dos relatos, das conversas, dos ensinamentos, que transmutam-se em mitos e ritos. Desse agir ancestral, fundamentado na contação de histórias, talvez, tenham se originado as primeiras crônicas da humanidade. Pedrinhas miudinhas do cotidiano que contam, em sonho ou em consciência, a matéria-prima ideal para a feitura de uma arma, a melhor estratégia para a morte da caça, o modo mais diplomático de se dizer algo ou, ainda, a importância de um bom caráter, do conhecimento que leva à sabedoria e da alegria: ensinamentos, tecnologias de nossos ancestrais, energias que comungam com a nossa energia primordial, a de nosso orí. O que são os orixás, o viver coletivo, os saberes coletivos, senão, encantamentos? A ciência encantada das macumbas ensina, ainda, que a palavra e o som são energias universais, capazes de transmutar ocorrências. São estes os conhecimentos ancestrais guardados por orikis, oríns e adurás. Os versos poéticos, as cantigas e as rezas, por meio do ofó, atravessam o aiyé e chegam ao orún, como mensagens aos deuses. Percebe-se, então, que os terreiros, as macumbas e os candomblés oferecem instrumental de encantamentos para pensarmos a individualidade e a coletividade, para pensarmos a ciência e as epistemologias. Em abril de 2019, quisemos apresentar a nossa cabaça encantada, cheia de feitiços capazes de questionar Educação, Comunicação e Jornalismo Cultural. A Cabaça abriga, neste contexto, sete projetos-encanto sobre a cultura afro-brasileira. Epifanias contra o desencanto: candomblé em crônicas é mais um dos encantos, mais uma das magias, mais um dos feitiços fruto do encontro de dois dofonitinhos curiosos e uma iyalorixá muito generosa. 27 25
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As DIVINDADES ORGANIZADORAS do universo, detentoras dos desígnios dos destinos, (RE)ENCANTAM O MUNDO com a sua HERANÇA ANCESTRAL
Ìyálorisà Cristina Ifatoki 31 29
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prendemos desde cedo a recortar o tempo, observar que, para o nosso bem estar, fazer escolhas nos permite a liberdade de conhecer e entender a natureza, seus fenômenos, o acesso ao pré-existente, às divindades, aos
ancestrais, instigando o questionamento das origens de todas as coisas. Aprendemos, ainda, a fazer comparações entre culturas e estudá-las por meio da observação, da experiência, da pesquisa. Podemos observar inúmeras coincidências e encontrarmos algumas lógicas, mas não conseguiremos chegar a nenhuma conclusão de verdade absoluta, pois esta ninguém a detém. Possuímos dois lados distintos: um que nos concebe a questão ancestral, e isto vale para todos, até mesmo para quem não questiona a sua origem material e espiritual; e outro, que diz respeito ao processo que cada indivíduo vivencia na sua educação, assim como as suas condições sociais. Atingir a fase adulta nos garante alguns privilégios, como o de olhar para nós mesmos, o de nos permitirmos conhecer todas as coisas que nos cercam, e o de compreender que, no curso das vivências, o processo da experimen30
tação e do aprendizado leva-nos a distinguir o que nos propicia bem estar, satisfação pessoal, alegrias, ensinamentos sobre o que deveríamos escolher, desejar e pensar. Tanto na infância quanto na adolescência, possuímos uma competência que transcende a natureza do instinto. Ela cria, inventa, inova e intervém na nossa própria essência. Diante do olhar acerca do mundo, começamos a perguntar para os adultos o porquê de todas as coisas, em um jogo de especulações e análises repleto de questionamentos. As capacidades de pensar, organizar e conceituar o mundo e a natureza estão presentes em nosso DNA. Temos conhecimento de diversas construções
cosmogônicas
dos povos que habitam a Terra e que organizaram as sociedades e regeram as diversidades culturais. A Filosofia Africana, especialmente a Iorubá, em sua visão cosmogônica organiza o 31
pré-existente
(Deus
Supremo) a partir da elaboração dos destinos dos habitantes deste mundo. Tais destinos referem-se aos dezesseis odús (destinos), que servem para personificar os que vivenciariam o mundo. Os odús recebem deste mesmo pré-existente divindades energéticas que são capazes de direcionar os desígnios de determinado ser humano e de toda a natureza que vive no àiyé (Terra). Os seres foram diferenciados de acordo com sua essência (terra, água, fogo e ar) e genética (ligação ancestral). Assim, Olodumarè, o Deus Supremo, cria os primeiros seres divinizados (orixás), tornando-os guardiões dos fenômenos do mundo e dos quatro elementos principais que se correlacionam entre si. A mitologia da oralidade africana (Iorubá) explica que dos dezesseis odús principais concebem-se os primeiros orixás, e, para a elaboração do ser humano, a essência comportamental dos orixás os permearia no mundo. Os seres divinizados (orixás), os ancestrais, a natureza (reino animal, vegetal e mineral) e o ser humano seriam os componentes universais. Orunmilá-Ifá, 34
Senhor do Dia, incumbido de transmitir os desígnios de todos os seres, nomeou deuses e os religou à natureza. Relacionaram-se a esta organização os mitos, como forma de aprendizagem e compreensão deste mundo. A cosmogonia Iorubá, a partir de Olodumarè, organiza o mundo em quatro dias e em cada dia cria quatro odús - as divindades organizadoras do mundo - a partir dos quatro principais elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Tais energias, correlacionadas, criam todas as demais que habitam o planeta Terra: Terra: Irosun, Obará, Eji-laxeborá, Iká-orí; Água: Eji-Okô, Oxê, Ossá, Eji-Ologbon; Fogo: Okanran, Eta-Ogundá, Odí, Owanrín; Ar: Ejí-Oníle, Ofún, Ogbê-Ogundá, Aláfia. Pensar Olodumarè e a criação do mundo traduz uma lógica na organização dos quatro elementos e de seus quatro odús relacionados. No primeiro dia da criação temos dois odús ligados ao fogo e, no quarto dia, dois odús ligados ao ar, dimensionando o princípio e o fim existencial do ser. Quanto aos orixás, temos Exú, como o princípio da vida ligado ao elemento fogo, assim como Oxalá, ligado ao ar e simbolizando o último suspiro da vida. A filosofia de Orunmilá Ifá possui um modus de divinação que revela aos seus consulentes o seu odú (o destino, os caminhos designados pelas escolhas individuais, mas que envolvem a essência e a ancestralidade), 35
assim como, também, a combinação binária dos seus 256 omodús, através do seu colar (instrumento de divinação) opelè Ifá, mesmo também através do merindilogun (jogo de búzios) e ikins (côcos de dendê). Os relatos acontecem em versos poéticos, revelando ao seu consulente os seus desígnios na Terra. Um dos compromissos sacerdotais de quem pratica a Filosofia Africana está ligado à ética. Podemos dizer que a oralidade iorubana possui mecanismos que permitem ao indivíduo vencer o desafio do tempo para não perder a sua essência. Importante salientar: falamos de coletivos africanos, possuidores de historiadores oficiais hereditários, elaboradores de narrativas, lendas, orikis (poemas rituais da tradição iorubá) ricas em códigos de linguagem para preservarem suas memórias coletivas. É papel do sacerdote, da liderança religiosa, cuidar da individualidade de cada um, propiciando o equilíbrio coletivo. A individualidade humana dar-se-á pelo orí, diferenciando todos os seres, sem distinção de etnia, ou qualquer outra referência identitária ou aparência. Na oralidade Iorubá, o ser humano é constituído pelos seguintes elementos: orí ara (corpo físico), habitado por ojiji (essência espiritual), okan (coração), responsável pela inteligência, pelo pensamento e pela ação e emí (a respiração ou sopro divino) elemento que retorna após a morte do ser e é o agente no processo da criação. Orí em iorubá tem muitos significados. O sentido literal é cabeça física, símbolo da cabeça interior (orí inú), orixá pessoal de cada ser humano, divindade que chega no àiyé com o ser humano, sendo o 36
mais importante orixá da individualidade humana, conhecedor das necessidades de cada ser. Possui os recursos adequados e os indicadores para este indivíduo se adequar e organizar sua experiência terrena. Debruçar sobre a Filosofia Africana Iorubá e buscar entender odús, orixás e ancestrais concede ao ser dinâmica e força, algo que em tempos de globalização permite-nos sair do eixo eurocêntrico como única ordem filosófica mundial. Isto propicia a esta Filosofia adentrar espaços de disputas epistêmicas e de narrativas, por meio de uma memória coletiva que reconhece a oralidade como trajetória ancestral para leituras e interpretações do mundo.
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stá aí uma divindade que gera polêmica: Exu. A polêmica talvez tenha a sua origem no processo de associação ao demônio a que fora submetida pelas religiões cristãs. A tradição oral africana, felizmente, não reduz o mundo em bem e mal, deuses e demônios. Esta é uma compreensão essencialmente cristã. Os sociólogos da religião, sobretudo
Max Weber, em capítulo de sua grande obra Economia e Sociedade, nos explicam que variadas são as formas de se resolver a problemática da teodiceia. Essa problemática diz respeito àquele questionamento: como um deus bom e justo pode ter criado um mundo reple-
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to de injustiças? Cristãos buscam a resposta a esta questão por meio do dualismo. O dualismo afirma que o bem e o mal são coexistentes no mundo e que as coisas boas, positivas, foram criadas ou influenciadas pelo divino, por Deus, e as coisas negativas, ruins, teriam sido criadas ou influenciadas pelo diabo, pelos demônios. Exu, divindade iorubá relacionada à dinâmica da vida e ao poder da comunicação entre os homens e os deuses, a partir do sincretismo próprio de religiões brasileiras - como a Umbanda - foi associado ao diabo cristão. Tal sincretização, ainda no contexto atual no qual é possível encontrar inúmeros materiais suficientemente embasados em teorias e vivências sobre a cultura afro-brasileira, ainda coloca medo em muita gente que acredita que Exu é uma energia negativa, diabólica, que pode prejudicar as pessoas. Meados de 2019 aprovamos um projeto no âmbito da Diretoria de Culturas da universidade. O nome do projeto: Circuito EXU. Viagens para quatro cidades da regiões mineiras do Triângulo e Alto Paranaíba. Projeto fi40
nanciado pela universidade. Transporte garantido: veículo e motorista. Uma querida amiga, que tem acesso à garagem onde ficam os veículos da universidade, flagrou dias antes da viagem, uma conversa entre dois motoristas: - Amanhã tem viagem… O nome do projeto, Circuito EXU. - Que coisa estranha! - Pois é… Onde já se viu esse nome? - Toma cuidado, viu, não deve ser coisa boa! A conversa flagrada, imediatamente relatada, não causou espanto - nem à amiga, nem a mim. Eis que no dia seguinte estava lá, na entrada da universidade, o motorista, aguardando a equipe já no interior do veículo. Entro, sozinho: - Então o senhor tem medo de Exu? - Ave Maria, quem te falou isso? - Exu me contou! O motorista, apreensivo, permaneceu calado durante toda a viagem. Calado e tenso. Pareceu-me que tentava não se mexer no banco. 41
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as religião? Não podia ser alguma coisa mais atrativa, menos complicada? Por que foi parar aí? Você segue alguma? Então quer dizer que você acha mesmo isso importante? Questionam a todo momento o motivo de igrejas brotarem do chão limpo, sem terem elas razão para ser. Balbuciam por entre os cômodos onde é que foi parar a moral, os bons costumes, onde já se viu menina de roupa curta dessa idade, gente demorar tanto pra morrer, pobre entrar na universidade? Onde já se viu? No Brasil! Beirando o Carnaval, a proposta é de abstinência sexual… Tantos problemas, tantas questões, tanta morte e desigualdade e a saída proposta é o recalque do desejo? Que disparate! Um país tão pluricultural, multicultural, multifacetado, diverso, diversamente possível, um grande universo de possibilidade, um grande laboratório experimental, um país cordial… Cordial, esta palavra que quer indicar quando uma coisa vem do coração. Como pode o Brasil, logo o Brasil, essa vasta terra de dimensões continentais com gente de todas as cores, músicas de todos os ritmos, gostos de todas as dores. Existem coisas que só por aqui acontecem. 44
Por que no Brasil tem gente invadindo terreiro? Negro no morro morrendo, tanta igreja e esgoto a céu aberto? Por que no Brasil, o país da diversidade, tem Secretário Especial da Cultura se inspirando em discurso nazista, que quer limitar cultura a valores cristãos? Porque no Brasil, a nação da paz, que tem inúmeros Cristos de braços abertos, quem vence a eleição é o Messias de arma na mão? Ainda bem que onde não chega o Estado, chega a religião. Pensa como seria se assim não fosse? Um país que tem santo e orixá, terreiro, tenda, capela, igreja, rancho, barraco, um país n’onde até a sala vira local para incorporação. Onde a água benta fica é em cima da televisão. Como pode? Como pode este país ainda entortar os olhos pra alguma oração? Não, aqui não! Aqui protege-se de Macabéa a Lampião. Ela, com medo da cidade. Dele, ninguém tem medo não. Não, aqui não! Aqui protege-se político dono de helicóptero cheio de cocaína e mata-se trabalhador com 80 tiros sem qualquer explicação. Mata-se vereadora negra, lésbica, eleita democraticamente: Marielles, Malês. Aqui, o pastor mundial batiza índio com as águas do Xingu. E grava tudo, depois mostra, que é para esfregar na cara de todo mundo que índio também merece ter religião, que índio é gente boa, que precisa abrir os braços pra tal civilização. “Índio é humano como a gente, tem coração”. “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. Palavras do presidente. Mas quando ele descer, o índio, virá impávido, apaixonante, tranquilo e infalível e dirá que cada um aqui na Terra vale a pena, a mais pequenina, de seu cocar. E se tornarem a me perguntar o porquê dessa tal religião, responderei como ele mesmo, Guimarães Rosa, certa vez respondeu: que religião serve é para desendoidecer. 45
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te repreendo, Exú! Esse é um discurso comum. Ouvi ontem enquanto passava os canais da televisão aberta. A repreensão e censura dos corpos já é algo banal. Não se pode sequer emprestar seu corpo para ser montado por uma entidade em paz. Exú já deve estar cansado de ser porcamente representado nestes palcos televisivos. Se ainda houvesse uma pesquisa, talvez a atuação fosse mais fiel. Entenderiam a diferença entre o catiço e o orixá. Perceberiam que essa relação de Exú com o diabo cristão não passa de uma lorota. O diabo pra gente de candomblé não existe, pasmem. Se ainda houvesse uma pesquisa talvez se chegasse à conclusão de que isso não se faz. Só que aí não teria show no palco da fé. Não teria audiência. Não teria a quem culpar pela falta de políticas públicas em um estado de extrema desigualdade social e com baixa distribuição de renda. É claro que a grande causa dos seus problemas é a macumba feita em nome de Exú e entregue na encruzilhada com farofa, cachaça e frango preto. Seu parceiro ou sua parceira te traíram porque alguém fez uma amarração com uma pombo-gira “babadeira” para eles, com champanhe e tudo. Seria absurdo pensar que a sua relação está em frangalhos porque o amor pode acabar, porque o sistema patriarcal e machista esgota as mulheres (“esgota” poderia ser trocado por “diminui”, “violenta”, “mata”), porque a monogamia não dá conta das expectativas sexuais das pessoas, ou, mais absurdo ainda, seria pensar que traíram porque quiseram. Você está desempregado porque fizeram, ironicamente, um “trabalho” para você. Não é porque o desemprego está altíssimo, porque a exigência do mercado só aumenta, porque a automação do trabalho substitui a mão de obra humana por máquinas. Isso é balela! A culpa mesmo é de Exú e sua gangue de orixás. 47
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Até figurativamente, um bode. Mas não se preocupem. O nosso Estado já tem várias políticas públicas para exterminar o tinhoso e os seus seguidores. Começando pelo extermínio do povo negro e pobre nas favelas, pelas batidas policiais recorrentes nos centros de umbanda e candomblé, pela demonização dos símbolos e divindades. Mas não conte só com o Estado. Você pode também armar sua quadrilha e atacar terreiros, bater em mães e pais de santo. Violar seus bens sacralizados, botar fogo em tudo. Enquanto isso, a representação do mal continua vigorando em televisão aberta com concessão pública. Onde já se viu, bispo dirigindo orixá? Com certeza, aqui no Brasil.
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PRO nasser pena
A
VO C çÃ
o chegar, a primeira coisa é rodar a quartinha de água fresca na cabeça e despachar
na rua. Esfrio o corpo en-
quanto observo o ambiente
já pensando no que tenho que fazer. Trabalho de casa não acaba, sempre tem louça na pia, bicho pra alimentar, chão pra limpar.
Preparo o banho, cantando, rezando. Aos poucos vou me concentrando em mim mesmo. O som da minha respiração está mais alto nos meus ouvidos.
A água fria e verde, folhas maceradas, folhas para acalmar a cabeça. O choque da temperatura, a cantiga terminam de mudar a frequência. Estou presente. Banho tomado e começa a procissão das bênçãos. Meus mais velhos, minhas iyás e meus babás, o cumprimento dos irmãos. O mais novo beija a mão primeiro. Já tem café da hora. Serviço também. Arregaço as mangas, dobro as calças e a dinâmica começa. Embrenho na mata, pedindo licença, e busco as mais belas folhas. Tem que pilar um cará, lavar o alguidar. Chegaram 54 48
CA ÃO
poucas pessoas ainda. Tem gente que acha que é só festa, já viu como é… O galinheiro está parecendo um chiqueiro, vamos em equipe dar um jeito. Mais um café pra ajudar na disposição. O cheiro do dendê vem da cozinha. - Já foram 7 acarás, faltam dois. É a instrução de quem está montando o ebó. Tudo é contado. Aqui a gente não desperdiça nada. De longe o chiado dos búzios, o barulho da queda. Muitas vezes definitiva. A gente ri entre uma fofoca e um causo. Logo abafados por algum mais velho com mais uma tarefa. O trabalho é duro, mas a gente não cansa. O dia vai se esmaecendo, a comida está pronta, os bichos separados. Silêncio. Agora posso escutar até o meu coração. O toque do adjá quebra a fina camada de calmaria. Rum, Rumpì e Lè, os atabaques cantam. Nós cantamos. Nós dançamos. É uma festa. De repente, meu corpo se movimenta num ímpeto próprio. O ato, a performance da sala. Estou suado e de volta. Coloca na água fervendo que é mais fácil de arrancar as penas. O banquete foi servido. Nós comemos e rimos. Hoje eu durmo aqui, no chão da minha casa. Deitado, estico as pernas e me questiono sobre declarações que vi nas redes sociais: - Tem cor a fé no orixá? 49 55
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u estava com os olhos fixos nos olhos dela. Ora verdes, ora azuis, não é preciso definir a tonalidade. Nesse dia, eu conheci a força de uma matriarca, de uma liderança feminina, de uma Iyá. Era impossível desviar o olhar. No meio da estória de um orixá, de uma explicação sobre o orí, e até mesmo um odu, para o espanto das pessoas de bem, lá estava a Filosofia. Soprada em meus ouvidos atentos com o poder do ofó. Magia. Aí vão me dizer que fui enganado. Afinal, “mãe e pai de santo são tudo trambiqueiro”. Acontece que eu não estava pedindo meu amor em três dias, nem desejando maus agouros para os que por mim não têm apreço. A ciência não fugia à discussão, pelo contrário, era fio condutor. Mas não era a ciência que eu conheci nos livros da quinta, sexta, sétima… Esta a tudo separa, compartimentaliza. Aquela não. Tudo é um. A natureza, o pensamento, a fé, a tecnologia e as relações sociais se es56 50
tabelecem em conjunto. Quem cuida da natureza, cuida da sua comunidade, cuida das suas divindades, cuida de si mesmo. Eu vi o quanto poderia aprender nesse dia. Aprendi que a dúvida tem sua vez na religião, a vez do questionamento. Sem medo, sem receio de perguntar a quem sabe mais, a quem viveu mais. Assim, um dia poderia contar o que aprendi aos meus mais novos e, eles, aos deles, e assim por diante. Mas nunca tive a oportunidade de aprender sobre isso na escola. Junto à tentativa de apagamento da história dos negros e povos africanos, também tentam apagar sua forma de compreender o mundo, sua filosofia. Aliás, a história do apagamento do povo negro, muitas vezes se confunde com uma política de estado. A partir desse dia, estabeleci compromisso comigo mesmo. O olhar mais atento ao invisível. Os ouvidos mais sensíveis ao canto dos pássaros. O coração justo e o orí frio. Chega de rimar amor e dor.
Homenagem à composição “Mora na Filosofia” (1955) por Monsueto e Arnaldo Passos. Monsueto Campos de Menezes nasceu na Favela da Praia do Pinto, no Rio de Janeiro, em 1924. Sem uma explicação definitiva, na madrugada do dia 11 de maio de 1969, a favela foi consumida por chamas. Sabe-se que a comunidade estava na meta prioritária das políticas de remoção de favelas do Governo Militar. 57 51
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BAHIA ESTAÇÃO PRIMEIRA DO BRASIL Ainda jovem, junto a uma turma de amigas, fora consultar os búzios de um compadre da filha mais velha de Dona Canô. Mais por diversão do que por fé, naquele dia Bethânia descobrira que seria mundialmente famosa. Para isso, era preciso que fizesse uma oferta às águas de Iemanjá. Não levara o jogo a sério e não fizera a oferenda – não por própria iniciativa e vontade. Em suas férias de janeiro decidira aproveitar o mar. Não deu outra: o anel de prata desenhado por ela mesma, pelo qual tinha considerável apreço, foi arrancado pelas ondas. Dera assim, mesmo que sentindo-se tomada, o seu presente à Deusa da Lucidez. Após o episódio, nos primórdios de 1965, recebera o convite para integrar, no Rio de Janeiro, o espetáculo de resistência Opinião. E quem se esquece da novíssima baiana de coque e camisa cantando “Carcará, pega, mata e come!”?
MANGUEIRA ESTAÇÃO PRIMEIRA DE BETHÂNIA Em 2018, uma das mais, se não a mais, tradicionais escolas de samba cariocas decide homenagear Bethânia – a ainda menina Berré, dos olhos de Iansã. Bethânia revela insegurança, receio, espanto, mas logo rende-se à Jamelão e ao Rio Vermelho. Vê-se, na avenida, uma reverência não apenas à cantora, mas, sobretudo, ao orixá que lhe guiou até ali. Na comissão de frente quem vem é Iansã, Oyá, rodando sua enorme saia vermelha, seu bustiê carmim, chacoalhando seu florim, forjando a sua espada e dando espaço para que a vida de sua filha seja contada. Em seguida, elementos cênicos estampam Maria e o Menino Jesus, também fundamentais a uma filha de Oyá que respeita a pluralidade da religiosidade brasileira, que tem “Jesus, Maria e José e todos os pajés em sua companhia”. 59 53
O MITO DE IANSÃ NO RITO DE MARIA Waly Salomão, poeta baiano e amigo de Maria, saberia, talvez, explicar a íntima relação entre um orixá e seu filho. Em poema intitulado “Linha de Fronteira” diz: “Agora, entre o meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu”. Em outras palavras, as de Mãe Menininha do Gantois, a pessoa vai se tornando cada dia mais parecida com o orixá que a rege. E isso faz todo o sentido, pois como já afirmara o importante estudioso das religiões Mircea Eliade, “o homem só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses”. Oyá-Bethânia, uma amálgama de mitos e ritos que ganhara o carnaval carioca deste ano graças a sua linha de fronteira rompida, graças à sua gloriosa imitação de uma guerreira vermelha como sangue.
MANGUEIRA E BETHANIA NINANDO GENTE GRANDE 2019: ano eleito pela Estação Primeira de Bethânia, a Mangueira, para (re)contar a História. “Desde 1.500 tem mais invasão do que descobrimento”. “Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”. “Eu quero um país que não está no retrato”. Bethânia, a intérprete do Brasil que saúda sempre que pode os poetas populares, que destaca em sua interpretação os interiores do Brasil, que orgulha-se de seu fevereiro em Santo Amaro (“Trabalhei o ano inteiro na estiva de São Paulo só pra passar fevereiro em Santo Amaro”), que louva Nossa Senhora e Iansã, não poderia ser porta-voz de uma história oficial. Tornou-se, então, representante da história do morro. 60 54
A VERDADEIRA FACE DE JESUS, FILHO DE MARIA E DE MANGUEIRA Em 2020, olhando para a frente mas não esquecendo do que ficou para trás, a Estação Primeira quer falar do Jesus da Gente. O samba-enredo, a partir da voz narrativa do Menino, questiona: “Mas será que todo povo entendeu o meu recado?”. Falando dos profetas intolerantes, a Mangueira atinge o ponto principal do debate sobre a intolerância religiosa, que por meio da “guerra contra o diabo” neopentecostal, mata a essência humana e amorosa de Jesus Cristo, apontando o dedo para os orixás, voduns, inkisis e entidades, riquezas ancestrais da cultura afro-brasileira. Um cutuque na favela (para garantir a revolução): “Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha nem Messias de arma na mão!”.
ONDE O RIO É MAIS BAIANO? A Bahia, a primeira estação do Brasil, quando vê o esplendor da primeira estação do Rio de Janeiro, a Mangueira, só pode enxergar a sua verdadeira face: aquela que coloca um orixá, junto com Jesus e Maria, esplêndidos, na Sapucaí. Uma espécie de reza, magia contra a intolerância.
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ua do Rezende com a André Cavalcanti. Centro sujo do Rio. Fim de tarde de sábado. As pessoas andam com pressa, como se quisessem sair, rápido, dali. Na calçada, alheia ao ritmo frenético da estreiteza das ruas, Janaína comemora o seu aniversário. Como ela, estavam dois negros retintos - um velho, outro jovem - com camisas muito bem passadas. Mais um pandeirista e uma bela mulher, que comandava todos os homens. O samba, o pagode, o batuque confundiam-se com as buzinas e com as súplicas por um prato de comida. Parei na porta, espreitando, como quem chega com dúvidas se devia ter chegado. Logo, somem as dúvidas. Pausa para ir ao balcão comprar cerveja. Quando retorno sou convidado a sair, em romaria, até o Bar do Neves.
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O banheiro do Bar do Neves tem um cheiro de gente, um cheiro de centro do Rio, um cheiro que preenche o espaço de humanidade, como se estivesse, todas as pessoas que já utilizaram o mictório. - Janaína, o teu nome é nome de divindade. Você sabia? - Certamente. É nome forte, nome de água. O pandeirista me interrompe. - Janaína, Iemanjá, mamãe. Já eu, filho de Ogum com Iansã. Continuamos a celebração do aniversário de Janaína, nesta velha cidade nova. Todos no Bar do Neves estão no clima de Janaína. Uma senhora à beira da porta, como estava eu na esquina da Rezende com a André Cavalcanti, espreitando, diz, no meu ouvido. - Olhando daqui, parece que vocês são todos amigos há anos! Como dela discordar? O que enxergava por entre a bruma de mistérios trazida pelas cervejas, era exatamente amizade antiga. Em instantes, o repertório muda. De “O bêbado e a equilibrista” para agueré, ramunha, ilu. “A música é a língua materna de deus”, como disse Mia Couto. E no Centro mandingueiro da Mulata Velha, os deuses cantam e dançam, refazendo o seu xirê e abrindo brechas no mundo inteiro. 63
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u não conheço Mãe Palmira de Oyá. Nunca a vi. Nem por foto. Fico imaginando: será tão esguia como a palmeira? A palmeira Palmira, de folhas flabemiformes, verde-azuladas, frutos globosos marrons comestíveis depois de assados, muito produtiva, belíssima! Será, assim, Mãe Palmira de Oyá? Como dança em seu barracão, qual é o seu perfume, o que gosta de comer, como conta histórias, como lida com as crianças. São questões que figuram quando penso e imagino Mãe Palmira de Oyá. Este nome chegou a mim duas vezes. Ambas no Rio de Janeiro. Quatorze de novembro de 2018. No Amarelinho da Cinelândia, comendo bobó de camarão, Luiz, professor e amigo, me relata ser muito próximo de Stella, conhecida e respeitada pesquisadora sobre o candomblé afro-brasileiro. Filha de Mãe Palmira de Oyá, dofonitinha de Logun, como a própria contara em entrevista Global. Seis de novembro de 2019. Descendo do Uber na rua Ubaldino do Amaral, Lapa, no imóvel que aluguei para estadia no Rio. Encontro Willians. Alguém que eu supunha ser estrangeiro. A impessoalidade das conversas virtuais me levou a esta conclusão. Conclusão errada. Papo vai, papo vem, Willians, brasileiríssimo, diz ser filho de Mãe Palmira de Oyá, há mais de vinte anos, filho de Xangô. Revelou até a qualidade do santo. - Lá em casa, homem não faz roda. - Na minha também não, respondi. Ocorreu ali uma compreensão toda íntima. Será Mãe Palmira de Oyá como os ventos? Atravessa mundos sem pedir licença? Faz precipitar raios no auge de sua fúria? Empreende voos jamais pensados? O que guarda e o que revela Mãe Palmira de Oyá? Quantas perguntas tenho para Mãe Palmira de Oyá… Quais memórias tem de Mesquita? Quais memórias tem de Oyó? 65 59
er liderança religiosa não é para qualquer um. Além do caminho para poder ocupar essa posição, são muitos os perrengues que se passa. Pense só, ter que coordenar e conciliar pessoas totalmente diversas, que mantém seus vínculos pela religião. Afinal, no contexto brasileiro, são pouquíssimas as comunidades familiares. Aqui, o Ilê pode ser em Minas Gerais e se ter irmãos em São Paulo, Paraíba ou até mesmo em outros países. Mas existe um momento onde todo mundo pega para si a atribuição dos pais e mães de santo. É o “bingorixá”. Sabe quando entram membros novos para a comunidade e começa aquele alvoroço? Nesse momento, pode apostar, estão cantando na cabeça de todo mundo os búzios mentais. O conhecimento sobre o oráculo e os odús é pouco útil para essa técnica. Aqui os elementos são outros. Inicia-se por uma boa avaliação física e comportamental dos novatos, em busca de uma consonância com padrões preestabelecidos dos iniciados em certas divindades, o que é conhecido como arquétipo do orixá. Não existe comprovação alguma de que esse método funciona, mas para a dinâmica do “bingorixá” ele é fundamental. Os elementos podem ser sutis, como a capacidade de persuasão (ou de inventar bem uma mentira), a organização ou desorganização com o espaço, o excesso ou a falta de fome, bem como de massa corporal, e por aí vai. Eu mesmo, quando pisei pela primeira vez no coletivo em que renasci, recebi o decreto: É de Xangô! Estavam errados. Mas há quem mantenha a aposta até o final e até duvide do oráculo, afinal o orixá só estará definido, de fato, no processo da iniciação. Tudo se encerra quando a caída dos búzios, a caída real, dá o veredito. Até lá, resta se conformar e esperar a chegada de mais uma vítima dos búzios mentais. 66 60
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FIO DAS miçangas
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em exitar, ela toca no fio de contas. O meu olhar reprova a atitude.
- Ah, desculpe! Não pode co-
locar a mão, né? - Não pode. A sua mão vai cair. - Deus me livre, está amarrado! - Sim. é um fio encerado. Está amarrado. É o que garante que as miçangas fiquem juntas, formando o fio. - Mas e a minha mão, vai mesmo cair? - Lógico! Será castigada por Exu pela sua inconveniência. Fim de papo. Chego no hotel onde estou hospedado. É sexta-feira. Hotel Regente, centro de Belém, Pará. Quando me dirijo ao mensageiro para perguntar alguma banalidade, sou indagado. - O senhor deveria ter vindo na época do Círio. É lindo demais. Mas é no final do ano, outubro. - E o que tem de bom no Círio?, pergunto, como se não soubesse nada
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sobre a festa.
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- Muita gente vai na procissão. Todo mundo quer botar a mão na corda! É uma disputa!
O Círio de Nazaré é uma demonstração de fé a Nossa Senhora de Nazaré. As pessoas seguem a romaria apegados a uma corda. Ainda de madrugada, é feita uma vigília na Catedral da Sé, local onde fica a imagem peregrina. A corda de 400 metros é dividida em cinco estações e dois núcleos. Em meados da caminhada a corda é cortada e fieis disputam os pedaços do símbolo da fé. A corda mobiliza sentimentos muito distintos daqueles relacionados ao fio das miçangas. Na corda, todos querem botar as mãos. No fio de miçangas, associam o toque a algo que pode alimentar o negativo. Ambos são objetos sacralizados, mas pertencentes a religiões diferentes. Aquele pertencente a uma religião de preservação cultural afro-brasileira gera uma espécie de terror, enquanto a corda do Círio produz um êxtase coletivo: quem possui um pedaço dela ladrilha os caminhos divinos, algo que remete ao poder das indulgências. Expliquei ao mensageiro, então, tirando o fio de miçangas brancas do pescoço, fio de Oxalá, fio de misericórdia, que tenho uma corda só pra mim. Tenho uma corda exclusiva, só pra mim. Não tem 400 metros, mas é como se tivesse. Ele respondeu, sem titubear. É, cada um se amarra na corda que pode. 69 63
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E
le foi escolhido de pequeno. Pouco depois de ter desmamado. Os critérios foram importantes no momento da seleção. Ser saudável, vistoso, um cordeiro promissor. A partir daí ele seria cuidado com esmero.
Água fresca para beber, alimento sempre que necessário. Toda semana alguém cuidava de limpar o seu espaço. Tédio não existia, afinal, ganhava apelido e brincava até ficar exausto com as crianças da família. A farra era garantida. Um animal estimado e cuidado por uma grande família. Se o tempo virasse, era-lhe improvisado um abrigo. No calor, um banho para refrescar. Se algum outro animal arisco o atacasse, eram separados. A cada dia que passava ele crescia saudável vivendo sua vida pacata. O tempo passava até o momento de cumprir o seu propósito. A chegada do grande dia, dia do orô. Ali, aquele ser, elemento da natureza, tornaria-se alimento para uma divindade e para uma família. Engana-se quem pensa ou propaga que os animais de axé são maltratados e abatidos cruelmente. A realidade é o contrário. Diferente da lógica dos abatedouros. É uma relação de troca e subsistência. Tirar qualquer vida, tem seu peso, e sabemos disso. Próximo ao grande momento, o banho, que o purificava. O laço de pano fino, engomado e bem passado era cuidadosamente colocado em seu tronco. Cantou-se, dançou-se, louvou-se e agradeceu-se.
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Orixás dançavam gratos ao alimento oferecido. Os atabaques vibraram indicando o momento do clímax. Ali se cumpriu um destino, garantindo que a energia da natureza fosse repassada em seu ciclo. Estava feito o sacrofício.
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Diplomacia NASSER PENA
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morte. Começo assim porque não há como fugir dela. Eufemismo algum diminui sua consequência definitiva. A primeira experiência que me recordo é da infân-
cia. Cresci em uma cidade pequena e lá era comum dar de lembrança um pintinho, bem amarelinho, nos aniversários das crianças. Eu ganhei o meu e o amei profundamente, por cerca de uma hora, até ele morrer. Ele morreu (foi morto, assassinado) sufocado em minhas mãos pequenas e sem coordenação. Afeto também mata. Depois de nosso primeiro contato, nossa relação se tornou mais próxima. Afinal, ela sempre ronda. Eu adorava comparecer aos velórios, comer os biscoitos, broas e bolos que serviam neles. Era fascinante ver um cortejo fúnebre, seguir a procissão até o momento do adeus final. Um dia ela chegou mais perto. Levou um primo meu. A nossa guerra foi declarada. E eu passei a desprezá-la. A maldizê-la e a negá-la. O tempo passou e, com ele, as mudanças. Aconteceu o meu renascimento. O contato com a ancestralidade. A iniciação. E, mesmo ali, cercado das minhas divindades, de quem me guarda, ela estava presente. Apresentava-se como Ikú, mas era a mesma senhora que eu conheci outras vezes. Aquela que chega e nos separa de quem amamos. Ela era a mesma e eu era outro. Pude reencontrá-la em outra ocasião. Quando a mãe da minha irmã, dofona de Omolu, se encontrava abatida por uma doença cruel. Seu corpo já não mais aguentava o peso de uma vida inteira acentuado por uma enfermidade. Minha irmã, no auge de uma crise, abraçou-a e disse que ela poderia seguir seu caminho, que aqui ficaria tudo bem. Poucos minutos depois, Ikú cumpriu o seu propósito. A dor existiu e ainda existe, a saudade não vai desaparecer. Nesse dia eu aprendi. Rompi com meu rancor ao entender que somos natureza e para ela devemos retornar. Desde o sopro de Oxalá que inunda as narinas, enche os pulmões e se torna motor da vida, até o último suspiro, o privilégio de viver me foi concedido. Não desprezo mais a morte. Nossa relação se tornou diplomática e respeitosa. Ela cumpre sua função e eu a minha. Que eu possa cumprir o meu propósito sem ser levado de volta à terra. 69 75
P
ermita que ele aconteça. É necessário falar pouco, em tom sutil, quase inaudível, pois o momento do renascimento é frágil como um vaso de cristal ou a pétala de uma rosa. No momento do renascimento, nenhuma pergunta é respondida. Não há tempo para respostas. As respostas, quase sempre, trazem um conforto ilusório de sabedoria. Muitos se juntam em torno deste momento, observando-o como o resultado de muitos e longos processos. Antes dele, o que existe é incerteza: concretizar-se-ia o momento do renascimento? Quando, afinal, ele virá? O momento do renascimento é esperado como se espera pela visita de um amigo querido, com quem se tinha uma convivência íntima, mas que foi embora há anos. Espera-se por esse momento, pois é ele que (re)afirma o poder do útero, o poder da maternidade, o poder feminino. Cuidado! Silêncio! Vá devagar com o momento do renascimento, pois ele pode escorregar por entre os dedos. O momento do renascimento é negro, totalmente breu, salpicado de pintinhas brancas, azuis e vermelhas.
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O momento do renascimento, caso fosse ele um animal, seria uma galinha d’Angola; caso fosse uma folha, seria a folha da Colônia, que refresca todas as cabeças; caso fosse um minério seria o ouro, riqueza do ventre da Terra. 71
O momento do renascimento é como um vaso de cristal, uma pétala de rosas ou um bebê. É preciso muito cuidado. Este momento não é daqueles que podem ser encarados de frente, olhando olhos nos olhos. O momento do renascimento pede cabeça baixa, olhar voltado para o chão, para a terra, que é a matéria essencial da vida. Ele não tolera as obviedades. Tudo nele possui um quê de novidade, de surpresa, de espanto. E, até, de exasperação. Ele necessita de uma ambiência sonora: ramunha, agueré, ilú ou barravento? Qual o toque capaz de propiciar o momento do renascimento? Qual a música capaz de embalar a sensibilidade de um vaso de cristal, de uma pétala de rosas ou de um bebê? As quatro estações de Vivaldi? A sinfonia número nove de Beethoven? Ou o samba carioca da rua André Cavalcanti e do Bar do Neves? Preserve este momento, o momento do renascimento. Contemple-o, pois ele nunca se repetirá. Esta é a maior das impossibilidades do momento do renascimento. Logo, logo o momento do renascimento começará a se transformar em uma outra coisa: em um bebê, em uma pétala de rosas ou em um vaso de cristal, talvez. Não importa muito a transmutação. O que importa é a certeza de que, em breve, o momento do renascimento deixará de ser o momento do renascimento. 72
Este texto tem como inspiração a crônica “Ao momento presente”, do escritor Caio Fernando Abreu, publicada em 11 de março de 1987, no O Estado de São Paulo.
Epílogo
ALEGRIA É UM BEM COLETIVO NASSER PENA
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GALHOS tomaram conta da FACHADA. O PORTÃO DE GRADES ENFERRUJADAS ARRANHA O chão. a cicatriz recente na cerâmica, em forma de SEMICÍRCULO revelou que OUTROS JÁ PASSARAM por aqui. rodaram água na cabeça e jogaram na rua. DESPACHARAM. deixaram pra para trás. o véu do espaço-tempo foi rompido ao cruzar
AS FOLHAS DE MARIWÔ. o tempo perdeu o lastro das horas, passou a ser medido pela sombra do pé de IROKO, pelo brilho da lua refletido nos OLHOS DA CORUJA.
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Orís tocam o chão em SAUDAÇÃO AOS MAIS VELHOS. O desassossego do peito deságua em gotas salgadas,
MOLHA A TERRA. Poça, riacho e rio. Nascerão akokos e tetereguns. Cascas de ovos se ROMPERÃO. Pássaros cantarão para quem pode ouvir. A COBRA morderá o SEU RABO. A RODA voltará a girar. Nenhuma PIPOCA foi em vão.
ESTAMOS, DE NOVO, EM CASA.
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Autores
isley borges Jornalista da ADUFU Seção Sindical, pesquisador e produtor cultural. Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Filho do Ilê Ebgé Ifá e Membro do Centro Cultural Oré. Descobre a cultura afro-brasileira todos os dias, e se encanta por ela.
nasser pena Escritor, produtor cultural e estudante de jornalismo pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É dofonitinho de Airá e folha da árvore ancestral. Busca criar, experimentar, mas sempre respeitando as trilhas abertas por seus mais velhos.
Ìyálorisà Cristina Ifatoki Artista Plástica (IARTE) e Professora Especialista em Cultura Africana, Cultura Afro-brasileira e Educação para as relações étnico-raciais e Educação em Direitos Humanos (FACED), pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É ìyálòrìṣà e arteeducadora no Centro Cultural Orè – Egbé Ilè Ifá (CECORÈ), em Uberlândia – MG. Atua em diversas comissões, projetos e espaços deliberativos sobre a cultura afro-brasileira. É Articuladora Política de Minas Gerais no Coletivo de Entidades Negras (CEN).
Carlos Gabriel Ferreira Comunicólogo e, por aventura, designer gráfico. Também mestre em Tecnologias, Comunicação e Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em que aprofundou os conhecimentos sobre infância e gênero.
Ficha Técnica
Autoria: Isley Borges, Nasser Pena, Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki) e Carlos Gabriel Ferreira. Consultoria especializada: Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki) e Roberto Camargos. Design gráfico: Carlos Gabriel Ferreira Ilustrações: Carlos Gabriel Ferreira e Maria Cristina Andrade Florentino (Ialorixá Cristina Ifatoki). Revisão: Luciana Nunes editoração: Thiago Carvalho e Robisson Sete - Editora Subsolo Gestão Administrativa: Raissa Dantas Textos para Divulgação: Georges Dib Gerenciamento de redes sociais: Carlos Gabriel Ferreira e Gabriel Rodrigues Financiamento: Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC) da Prefeitura Municipal de Uberlândia. Convênio no 070/2019.
1a Edição
Dezembro, 2020