Caderno de Debates 02

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CADERNO DE DEBATES 2


CADERNO DE DEBATES 2 SÃO PAULO, NOVEMBRO 2017



ÍNDICE 5 APRESENTAÇÃO 9 GT COMBATE AO RACISMO E

PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

15 GT DEMOGRAFIA E MIGRANTES 31 GT ESTADO, DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO POPULAR

E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO

37 GT DE FEDERALISMO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 51 GT DE SEGURIDADE E PREVIDÊNCIA SOCIAL



APRESENTAÇÃO

PROJETO BRASIL POPULAR QUEM SOMOS? Diante da profunda crise política, econômica e social que o Brasil atravessa no último período, compreendeu-se como de suma importância criar um espaço para reunir as diferentes forças de esquerda e suas bases sociais, estimuladas pelo desafio de formular um projeto de desenvolvimento nacional que auxilie também na organização da luta de massas. É importante destacar, no entanto, não ser de hoje que homens e mulheres debatem um projeto de país. Entendemos que este é um debate permanente na vida dos povos e estratégico para os setores populares, o qual, diante do desmonte da nação, tornou-se urgente e dispõe de condições mais favoráveis a partir das necessidades concretas que atualmente se apresentam. A esquerda brasileira já formulou importantes contribuições sobre esse tema. Porém, historicamente, o processo de produção dessas reflexões não esteve combinado com o processo de articulação com movimentos populares e sindicais, resultando em formulações teóricas que, embora consistentes, contaram com pouca capacidade de enraizamento social. Diante disso, nas últimas décadas nossas formulações e estratégias não avançaram para a construção de um projeto de nação ou de um programa amplo, que transcendesse as medidas imediatas, as plataformas ou os programas eleitorais. Por isso, embora se trate de um tema com o qual temos permanente preocupação, não temos conseguido produzir formulações e estratégias unitárias de médio e longo prazos e que nos possibilite mobilizar força social em torno de uma proposta viável de desenvolvimento para o país. Nosso grupo entende ser fundamental que, em paralelo à formulação de propostas e análises, possamos reafirmar a necessidade de diálogo com as bases sociais e o compromisso e disponibilidade para o debate de ideias com o povo. Mobilizados por essa perspectiva, desde fevereiro de 2016 dedicamo-nos à tarefa de debater e formular o conteúdo programático de um projeto nacional, democrático e soberano para o país, e que represente uma oportunidade para a construção de uma nova hegemonia de forças construída a partir do diálogo junto ao povo brasileiro, construindo assim força social em torno dessas propostas.

O QUE QUEREMOS? Não estamos partindo do zero. Diversos setores têm refletido ao longo da história sobre propostas, estratégias e questões que apontam os problemas estruturais do

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APRESENTAÇÃO

Brasil e indicado caminhos para a sua superação. O programa que estamos construindo deve expressar estes acúmulos e reflexões, além de buscar estimular o acúmulo de força social em torno desses esforços. Fundamentalmente o que nos propomos a construir é um projeto para o Brasil que aponte para a superação de todas as formas de desigualdades, de exploração e de falta de liberdades. Portanto, um projeto que suscite rupturas com o passado escravocrata, colonial, patriarcal, ditatorial e antipopular e que responda a um presente de crise no qual essas dimensões estruturais da exploração e dominação e opressões são intensificadas. Acreditamos que a melhoria das condições objetivas de vida do povo brasileiro depende do modelo de desenvolvimento econômico, político, cultural e ambiental implantado, pois ele indicará como serão distribuídas as riquezas e a renda gerada por toda a sociedade. E que as bases para a construção desse projeto popular para o Brasil estão alicerçadas na construção de um Estado. Por isso definimos os seguintes temas como nossos paradigmas que guiarão nossas reflexões: Vida boa para todos/as: entender que a vida vale a pena ser vivida em todas as suas dimensões e que por isso devemos orientar as formas de produção dos bens, a reprodução social e os bens públicos para garantir a qualidade de vida de todos/as. Nessa perspectiva, é preciso pensar o ser humano em sua integralidade. Bens comuns: prezar pela garantia e soberania dos bens compartilhados pelas comunidades: natureza, ar, água, cultura e os espaços públicos. Igualdade e diversidade: devemos superar as condições de opressão, buscando engendrar novas relações sociais entre as pessoas. Democracia, Participação e autonomia: devemos refletir sobre qual o sentido público do Estado, retirando-o da condição de simples garantidor de direitos, para estabelecer como prioridade prestar serviços de qualidade ao povo. Devemos refletir também sobre como será exercido o poder pelo povo e sobre como será autonomia desse Estado. Soberania Nacional e Desenvolvimento: apontar um caminho para o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde os compromissos sociais submetam a lógica da economia de mercado. Além de formular um projeto nacional que possibilite ao nosso país crescer com soberania.

Esses paradigmas são referências gerais para o trabalho do grupo, e também para as discussões temáticas devendo ser considerados mesmo para elaborações mais específicas. Em processo cíclico de construção, os Grupos de Trabalhos Temático devem ao mesmo tempo em que partem deles para construir propostas, enriquecê-los com novas formulações.


APRESENTAÇÃO

MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DO PROJETO Partimos de um contexto histórico que leva a necessidade de um debate de projeto de país devido sua gravidade. Entendemos que a burguesia não possui um projeto nacional e utilizou esse contexto de crise econômica para provocar uma instabilidade política e impor um projeto neoliberal. Diante disso, a esquerda deve se debruçar para a produzir um projeto popular para o país. Portanto, precisamos recuperar a tradição civilizatória do pensamento humanista para construir um projeto de país e, com ele, uma alternativa de sociedade construída junto ao povo. Por esse motivo o método é tão importante quanto o resultado. Entendemos que o programa só cumprirá sua função se for uma produção coletiva que deve combinar conhecimento científico e militância social. Apenas dessa forma será ampliada nossa capacidade de mobilização: considerando o povo como protagonista das mudanças no país. Por isso, devemos constantemente checar nossa reflexão com a realidade e interpretar as contradições para a partir delas formularmos novas propostas. O método com o qual nos propomos a trabalhar é coletivo, dialógico e dialético. Capaz de envolver diversos setores, conjugando especificidades e especialidades, temas, regiões, naturezas diversas dos sujeitos, dialogando com a visão do todo e com a visão dos lugares desses sujeitos. O processo de construção será numa espiral crescente, partindo da produção de sínteses que serão retomadas para maior aprofundamento, possibilitando então novas sínteses. Temos dois desafios importantes: 1) produzir um projeto de nação; 2) transformar esse projeto em um instrumento do processo político pedagógico que estimule nosso povo a debater, criticar e formular novas questões; 3) formular sínteses coletivas a partir desse acumulo e criar força social em torno dessas propostas. Neste sentido, esse é um processo contínuo no tempo e na sua intencionalidade, um processo permanente de disputa de hegemonia de um projeto de nação na sociedade brasileira. Atualmente possuímos 30 grupos de trabalho temáticos (GTs) que possuem a tarefa prioritária de refletir sobre os temas estratégicos para a formulação de um projeto de país. Esses grupos de trabalho são constituídos por intelectuais comprometidos com o desenvolvimento do país; militantes dos movimentos populares que trazem o acumulo de propostas de cada movimento; trabalhadores com experiência na política pública com conhecimento em diversas áreas. Os GTs debatem e formulam propostas para que obtenhamos uma elaboração programática que possa posteriormente ser discutida pela sociedade, buscando com isso agregar força social e apontar para as bases de um projeto de país.

Além dos GTs, foram estabelecidos Eixos Temáticos. A discussão em eixos objetiva potencializar a transversalidade dos temas discutidos nos grupos e garantir que os documentos produzidos por eles tenham visibilidade e unidade programática.

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APRESENTAÇÃO

Não devemos ter a pretensão de dar solução para tudo, muito menos em nome de todos e todas, mas buscaremos agir em torno de um esforço coletivo e intelectual, para formular um projeto que sirva como referência para as lutas sociais e para o pensamento crítico brasileiro. Somar-se ao Projeto Brasil Popular é vislumbrar a esperança de construção coletiva das condições que irão possibilitar ao Brasil ser um país mais justo, soberano e democrático. Eixos Temáticos Direitos Cultura Educação Esporte Cidades Religião, Valores e Comportamento Saúde Coletiva Economia, Desenvolvimento e Distribuição de Renda Agricultura Biodiversidade e Meio Ambiente Demografia e Migrantes Desenvolvimento Regional Caatinga e Semiárido Ciência, Tecnologia e Inovação Economia Energia e petróleo Financeirização Logística e Transporte Mineração Reforma tributária Seguridade Social e Previdência Trabalho, Emprego e Renda Estado, Democracia e Soberania Popular Democratização da Justiça e Direitos Humanos Estado, Democracia, Participação Popular e Reforma Política Federalismo e Administração Pública Sistema de comunicação Relações Internacionais, Integração Regional e Defesa Segurança pública Igualdade, Diversidade e Autonomia Combate ao Racismo e Igualdade Racial Juventude LGBT Mulheres Povos Indígenas


GT DE COMBATE AO RACISMO E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL


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GT DE COMBATE AO RACISMO E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

CONTRIBUIÇÃO PARA O EIXO IGUALDADE, DIVERSIDADE E AUTONOMIA O Brasil tem uma enorme importância no cenário mundial como segundo país do mundo em população negra, atrás apenas da Nigéria, na África. Nas últimas décadas, o Brasil tornou-se uma das maiores economias do mundo, com forte crescimento econômico, queda do analfabetismo, população predominantemente urbana e diminuição das desigualdades. Proporcionalmente, o maior ou menor índice desse progresso afeta positiva ou negativamente a população negra, numa longa, persistente, cruel e brutal permanência da pobreza e da iniquidade racial e étnica, além das desigualdades de gênero. Entre essas assimetrias crônicas e de longa duração no Brasil, próprias de uma ordem social colonial e estruturada no escravismo, destacam-se a barbárie; a violência e a letalidade do Estado; a omissão e indiferença das elites brancas do país; o extermínio em massa da juventude negra; o baixíssimo padrão de habitabilidade da população pobre; a falta de saneamento básico; e as profundas desigualdades no acesso e tratamento à saúde, bem como aos conhecimentos valorizados na educação, que excluem os aportes culturais, científicos, tecnológicos e civilizatórios da África, da diáspora africana e de seus descendentes à humanidade e à sociedade brasileira. Portanto, os eixos estratégicos que orientam a reflexão e as ações coletivas do Projeto Brasil Popular devem estar conectados com o conjunto da Diáspora Negra, na sua inter-relação histórica, cultural e econômica com o continente africano. O Projeto Brasil Popular defende junto à sociedade civil brasileira, a adoção de medidas eficazes para promover o reconhecimento, a justiça, o desenvolvimento, a sustentabilidade e a vida do povo negro, de suas comunidades tradicionais e dos povos indígenas originários. O Projeto Brasil Popular percebe que a presença viva, dinâmica, e a importante contribuição civilizatória dada pelas e pelos afrodescendentes para nossas sociedades, impõe a proposição de medidas concretas para promover a sua plena inclusão nos direitos, que também depende do combate político ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia, à intolerância e a erradicação da pobreza.

MULHERES NEGRAS As mulheres negras engendram a sustentabilidade da vida da população negra no Brasil. É imperativo, do ponto de vista ético, que o Projeto Brasil Popular protagonize por meio do Movimento Negro e, em especial, do Movimento de Mulheres


GT DE COMBATE AO RACISMO E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

Negras, ações estratégicas relacionadas à produção de visibilidade e reconhecimento da força humanizadora das mulheres negras, com o consequente empoderamento cultural e político que lhes é devido. As mulheres negras recebem, em média, 50% da remuneração das mulheres brancas. Elas respondem por quase 70% das famílias com renda de até 1 salário mínimo. Para além das profundas disparidades econômicas entre os segmentos populacionais negros e brancos, por outro lado, é fundamental levar em conta que as mulheres negras, de maneira geral, são as guardiãs da sabedoria, fonte da produção do conhecimento agroecológico e são as principais mantenedoras da ciência do bem viver e dos laços psíquicos e afetivos que organizam as comunidades e sociedades tradicionais ou não-tradicionais, organizadoras das famílias negras e as principais sustentadoras da população negra em geral.

RAÇA E CLASSE: O MUNDO DO TRABALHO Desde os estudos referenciais sobre desigualdade racial no acesso ao trabalho e renda, realizados em fins da década de 1970 e nos anos 1980, verifica-se a persistência das maiores taxas de desemprego, ocupações precárias e/ou de baixo status e remuneração, como prevalentes para a população negra no Brasil. Apesar da melhora nas condições de vida desta população, vistas na diminuição da miséria e da pobreza, além da mobilidade ascendente, verificadas no breve ciclo de governos populares no país, ainda em 2015 observa-se na PNAD (IBGE) o quanto o “precariado” – trabalhadores/as mais precarizados/as, uma marca do mundo do trabalho brasileiro e não uma característica do capitalismo contemporâneo – é negro e negra (vide GEMAA, Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe, 2017). O Projeto Brasil Popular deve partir do entendimento de que a estruturação do padrão de superexploração da classe trabalhadora no país é tanto um legado do longo período de escravização formal, quanto também é atualizado no racismo. A racialização do trabalho desumaniza o/a trabalhador/a, não só na visão das classes dominantes, mas também para os próprios trabalhadores subalternizados. Tal processo dificulta a constituição das potencialidades do/a trabalhador/a enquanto sujeito. Portanto, o reconhecimento da dimensão racial da subordinação de classe e a construção de instrumentos para a sua superação são indispensáveis à emancipação de trabalhadoras e trabalhadores, do campo e da cidade.

JUVENTUDE NEGRA No que se refere à juventude negra, ao analisarmos o Mapa da Violência no Brasil publicado pelo Ministério da Justiça, se projetarmos um período de 10 anos, por exemplo entre 2012 e 2022; nos deparamos com um dado alarmante da realidade social brasileira, caso não priorizemos uma intervenção planejada para superar esta chaga e continue tamanho índice de mortalidade de jovens negros por arma de fogo

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GT DE COMBATE AO RACISMO E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

no país. Nos duzentos anos da chamada independência do Brasil, em 2022, teremos cerca de meio milhão (500 mil) jovens negros assassinados por arma de fogo. É também parte deste quadro de extermínio o encarceramento em massa da juventude negra. Conforme os dados descritos e analisados no Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil (Secretaria Nacional de Juventude, 2014), entre 2005 e 2012, a cada 100 mil habitantes negros acima de 18 anos havia 292 presos – enquanto a cada 100 mil brancos, 191 estavam encarcerados. O direito a uma vida segura, o que só pode ocorrer com a transformação completa do sentido atribuído à segurança pública – superando, por exemplo, o genocida paradigma da “guerra às drogas” –, faz-se urgente para que a morte violenta e a prisão não sejam mais o destino de milhares de jovens negros e negras. Contudo, essa violência letal se distribuiu de forma desigual: as vítimas são, sobretudo, jovens negros do sexo masculino, entre 15 e 24 anos, com baixa escolaridade. O Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) evidencia que a probabilidade de ser vítima de homicídio é mais do dobro para os negros em comparação com os brancos. Isso configura o que o Movimento Negro denomina de Genocídio do Povo Negro, através do extermínio em massa da juventude negra.

DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE O agravamento das questões ambientais, as mudanças climáticas e o uso irracional dos recursos naturais têm atingido significativamente os povos indígenas, as comunidades negras tradicionais e as populações pobres, submetendo-as a um quadro de injustiça ambiental alarmante. Temos assistido a um silencioso massacre dos povos originários e das comunidades quilombolas pelos grandes empreendimentos hidroelétricos e minerários. Em nome do desenvolvimento e do progresso são construídas barragens e usinas para produção de energia que espremem e asfixiam os povos indígenas e os territórios das comunidades tradicionais e quilombolas. A monocultura e o cultivo de pastos para boi e plantações mergulhadas no veneno estragam os alimentos e a terra. Matam as florestas, os animais, poluem os rios e derrubam nossas árvores. Fazendeiros, madeireiros e latifundiários roubam e saqueiam diuturnamente nossas terras e nosso futuro. O Projeto Brasil Popular compreende que desenvolvimento e sustentabilidade têm o mesmo sentido. Um não pode existir sem o outro, ambos têm uma relação de simbiose. Ou o desenvolvimento é sustentabilidade ou não é desenvolvimento. O capitalismo é o grande responsável pelas crises econômica, alimentar e ambiental. O modelo de produção e consumo capitalista é incompatível com a preservação


GT DE COMBATE AO RACISMO E PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

ambiental, como o uso coletivo das riquezas naturais e com a justiça social. Os verdadeiros responsáveis pela devastação das florestas, pela poluição dos rios, mares, pela degradação dos biomas e insustentabilidade urbana em todo planeta são os países imperialistas e colonialistas. Não somos responsáveis por tamanha espoliação dos seres humanos e da natureza. O Projeto Brasil Popular não comunga do princípio da responsabilidade comum, pois cabe aos países ricos o principal ônus da preservação. São nos países pobres e em desenvolvimento que encontramos a maioria dos povos vítimas da degradação ambiental, vítimas do racismo ambiental. Compreendemos os quilombos e as sociedade indígenas como verdadeiros territórios de resguardo da biodiversidade e escolas da diversidade cultural, portanto, tem o direito inalienável aos seus territórios.

COMUNICAÇÃO A distorção da imagem do homem e da mulher negra na televisão é reflexo das práticas de racismo existentes na sociedade brasileira, dos aspectos sócio históricos que entrelaçam a trajetória do povo negro no Brasil e resultado de uma política de invisibilidade planejada da população negra pelas grandes corporações midiáticas privadas pertencentes à meia dúzia de famílias que controlam todos os meios de comunicação, pelos interesses econômicos do mercado e de um desejo desenfreado e subjetivo das elites, que além de consolidar sua hegemonia política, buscam transformar, cotidianamente, o Brasil em uma nação branco-europeia. O racismo e a discriminação da Mídia operam a invisibilidade real nos meios de comunicação de massa, da televisão e da produção editorial, por meio da eliminação simbólica dos povos negros e indígenas do imaginário da nação. Portanto, a democratização dos meios de comunicação é uma exigência ética, democrática e pública para que a sociedade brasileira possa avançar na construção de políticas que promovam o desenvolvimento social e democrático inclusivo e sustentável. Isso significa ir para além do reconhecimento de que o Brasil é um país onde a diversidade étnico-racial e pluralidade cultural são marcas identitárias da nação. Isso significa produzir visibilidade positiva e reconhecimento da população negra como parte constitutiva da nação brasileira, que quer ter a sua representação simbólica nos meios de comunicação social.

LEGADO LIBERTÁRIO Não permitiremos que o racismo nos submeta a violência simbólica e física, que destrua o nosso legado ancestral e espiritual africano. Esse legado é libertário, ecológico e sagrado. A nossa emancipação será a tomada da consciência negra, dos nossos direitos enquanto sujeitos de nossa história. O Projeto Brasil Popular está irmanado a este compromisso e a esse legado.

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GT DE DEMOGRAFIA E MIGRANTES


GT DE DEMOGRAFIA E MIGRANTES

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PROJETO SOS BRASIL SOBERANO

ANTÔNIO TADEU RIBEIRO DE OLIVEIRA1 LUIZ ANTÔNIO PINTO DE OLIVEIRA

A proposta deste texto é tratar de duas dimensões da dinâmica populacional brasileira: a transição demográfica, de um lado, e o comportamento atual das migrações e da distribuição espacial da população, de outro.

1. TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA A transição demográfica, de forma bem resumida, é a passagem do momento em que se tem altos índices de natalidade, até chegarmos a um ponto no qual as taxas de natalidade e de mortalidade são pequenas, como observamos nos dias de hoje. A transição demográfica possui 4 etapas, como pode ser visto no Gráfico 1: Taxas altas de natalidade e mortalidade, produzindo pequeno crescimento populacional; Queda da taxa de mortalidade e taxa de natalidade ainda elevada, gerando forte crescimento populacional; Taxa de mortalidade baixa e queda da taxa de natalidade, levando a um ritmo menor de crescimento populacional; Taxas de mortalidade e natalidade baixas, acarretando pequeno crescimento populacional. (%0)

GRÁFICO 1 - EVOLUÇÃO DAS TAXAS BRUTAS DE NATALIDADE (TBN) E DE MORTALIDADE (TBM). BRASIL 1881-2010

50,0

TBN

45,0 40,0 35,0 30,0

TBM

25,0 20,0

Esterilização feminina

Antibióticos

15,0

Pílula

10,0 5,0 0,0 1. Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira e Luiz Antônio Pinto de Oliveira são demógrafos do IBGE.

1881

1890

1900

1910

1920

1930

1945

1955

1965

Fonte. Recenseamento do Brasil 1872-1920. Rio de Janeiro: Directoria Geral de Estatística, 1872-1930 e IBGÉE/DPE/COPIS. Censos Demográficos 1940/2010 e Projeção da População do Brasil por sexo e idade: 2000-2060

1975

1985

1995

2000

2010


GT DE DEMOGRAFIA E MIGRANTES

Fruto da transição demográfica, o chamado “bônus demográfico” ou “janela de oportunidades” ocorre quando a maior parte da população está em idade de trabalhar, aumentando o potencial de desenvolvimento do país. Isso acontece devido à queda no número de nascimentos, que gera o crescimento da população em idade ativa (15 a 64 anos), ao mesmo tempo em que a população idosa ainda não é muito grande. Consequentemente, diminui a proporção entre as pessoas que não deveriam trabalhar (menores de 15 anos e maiores de 65) e aquelas que deveriam estar no mercado de trabalho (15 a 64 anos). Ou seja, são poucos dependentes para muitos contribuintes. No momento, e até o final dos anos 2030, o país vai passar pela etapa do “bônus demográfico”. Ao contrário do que pregam os setores conservadores, inclusive para defenderem a urgência na reforma da previdência social, somente daqui a aproximadamente 40 anos chegaremos ao ponto no qual teremos o envelhecimento da população. Temos tempo para aproveitar o que resta do bônus e pensar com calma nas medidas necessárias ao enfrentamento dos desafios colocados pelo futuro envelhecimento da população. O Brasil, desde dos anos 80, atravessa essa etapa da sua dinâmica populacional conhecida como “bônus demográfico” ou “janela de oportunidade demográfica”. Num Estado que pensa uma sociedade inclusiva, essa fase da transição demográfica, com uma oferta grande de pessoas em idade de trabalhar, deveria impulsionar o desenvolvimento econômico e social, além de gerar riqueza, investimentos e o aumento da renda dos indivíduos. Favoreceria também a melhoria na qualidade da educação básica, sobretudo pelo fato da menor demanda por recursos para investimentos em infraestrutura física, em função do menor número de crianças. Como no início da abertura da “janela de oportunidades”, a população idosa ainda é relativamente pequena, e a pressão sobre os sistemas de proteção social, aí incluídas saúde e seguridade, não seria grande. O gráfico 2 ilustra bem essa relação entre, de um lado, os grupos de idade mais jovens e os mais idosos e, de outro, o grupo de idade entre 15 e 64 anos. A base onde estão as crianças é mais estreita que o grupo em idade de trabalhar, e o topo onde estão os idosos ainda não é tão grande. GRÁFICO 2 - PIRÂMIDE ETÁRIA - 2015

Mulheres

Homens

-15.000.000 -10.000.000 -5.000.000

0

Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060

5.000.000 10.000.000 15.000.000

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Contudo, até o presente momento, o bônus não foi aproveitado. Os gargalos estruturais, entre outros, na educação, saúde, saneamento básico, mercado de trabalho e infraestrutura produtiva, agravados pela implementação de um modelo de desenvolvimento neoliberal, contribuíram para inibir ainda mais a obtenção das vantagens oferecidas pela dinâmica populacional brasileira. A questão demográfica não fez parte da pauta de ações de nenhum dos governos contemporâneos. Quando surgia, o tema sempre esteve associado à dimensão previdenciária, num debate enviesado, que buscava jogar para os trabalhadores o problema do “deficit” até hoje não bem explicitado. Mas ainda resta uma brecha na “janela de oportunidades” que deve e pode ser aproveitada. A proporção entre o número de dependentes em relação ao de trabalhadores seguirá sua trajetória de queda até 2023. E apenas em 2037 é que essa proporção será tornará inferior entre os jovens do que entre os idosos (ou seja, o número de dependentes jovens em relação ao número de trabalhadores será menor do que o número de dependentes idosos. A população em idade ativa (PIA) apresentará tendência de crescimento até os anos 2040; e, em 2060, mesmo quando o volume da PIA estiver declinando, serão aproximadamente 131,4 milhões de pessoas, quase o dobro do observado em 1980 e próximo ao volume de 2010. O país deveria criar as condições econômicas e sociais para incorporar essa abundante oferta de mão de obra ao mercado de trabalho formal, inclusive liberando a força de trabalho feminina, muito limitada, sobretudo nos segmentos mais empobrecidos da sociedade, justamente pela baixa oferta de creches. Aumentar a formalização e as taxas de atividade seria um primeiro passo importante para gerar renda, investimentos e fortalecer o caixa da previdência social, assegurando um fôlego maior para planejar as demais medidas para enfrentar as questões relacionadas ao envelhecimento da população, seja no campo da educação, mercado de trabalho, saúde, previdência social, cuidados e atenção à pessoa idosa, entre outras.

1.1. O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO Graças às melhorias nas condições de vida, nossa população continuará envelhecendo, o que é um bom sinal. Por outro lado, com o fechamento da janela de oportunidades demográfica, planejar o tratamento das questões associadas ao envelhecimento, como as já apontadas (saúde, previdência social, cuidados e atenção à pessoa idosa), é essencial. Seguindo o ritmo normal, sem que nenhuma política populacional seja implementada, a população brasileira reduzirá de tamanho por volta dos meados da década de 2040 (Gráfico 3).


GT DE DEMOGRAFIA E MIGRANTES

GRÁFICO 3 - POPULAÇÃO RESIDENTE - BRASIL 2010-2060

(Pop. milhões)

Anos Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060

O número de pessoas idosas em 2060 será de aproximadamente 58,4 milhões; as crianças até 14 anos, 28,3 milhões; e aquelas em idade de trabalhar, como já mencionado, 131,4 milhões. A esperança de vida ao nascer (E0) aumentará para 81,2 anos, e o número médio de filho por mulher (TFT) cairá para uma taxa pouco superior a 1,5. O resultado disso será uma pirâmide etária completamente diferente da apresentada para 2015, como demonstra o Gráfico 4. GRÁFICO 4 - PIRÂMIDE ETÁRIA - 2060

Mulheres

Homens

-10.000.000 -5.000.000

0

5.000.000 10.000.000 15.000.000

Fonte: IBGE, Brasil, projeção da população por sexo e grupos e idade, 2.000-2060

Num país com o potencial, as riquezas e a dimensão do Brasil, parece necessário que políticas públicas sejam implementas para evitar que se confirme o quadro de redução populacional e o desequilíbrio da estrutura etária, com o aumento desproporcional de idosos. Quando acionam a dimensão demográfica, o principal argumento restringe-se ao envelhecimento populacional e aos ataques que estão tentando perpetrar com a nefasta proposta de reforma previdenciária. Como partem do princípio que a previdência so-

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GT DE DEMOGRAFIA E MIGRANTES

cial é deficitária nos dias de hoje, o iminente aumento da população idosa agravaria o problema, levando, no limite, ao esgotamento do orçamento público, que seria todo consumido com o pagamento de benefícios. No que diz respeito aos aspectos demográficos, essa forma de olhar a evolução populacional põe em relevo a dimensão negativa do envelhecimento, ignorando por completo o estágio da transição demográfica que proporciona o maior volume de pessoas em idade ativa (PIA). Como explicar que, após a retomada do crescimento da economia, que com altos e baixos seguiu até os anos 2010, exista um possível deficit entre arrecadação e despesa na parte da seguridade referente à previdência social? Olhando apenas o aspecto demográfico, a explicação viria da baixa formalização dessa força de trabalho, ou seja, no modelo de repartição tem que existir contribuição de quem está economicamente ativo para arcar com o pagamento daqueles já aposentados. Se essa contribuição é baixa ou nenhuma não há reforma que dê jeito, seja qual for o tempo de contribuição ou a idade mínima, o sistema vai quebrar! Enfim, se o desenvolvimento econômico não estiver atrelado ao desenvolvimento social, parece não existir muita saída. Nossos opositores não olham a dimensão da dinâmica populacional que é extremamente positiva e estratégica para o futuro do país. Não fora a miopia e a defesa cega do capital, o lado extremamente positivo da dinâmica populacional deveria ser incorporado pelos detentores do poder numa discussão séria sobre a reforma previdenciária. Outra distorção na apropriação da questão demográfica, de consequências trágicas, ocorre quando os arautos da reforma fazem comparações entre aspectos que não são comparáveis. Ao constatarem que o indicador esperança de vida ao nascer é profundamente desigual entre as diversas regiões do país, dado que as projeções oficiais apontam, por exemplo, que a expectativa média de vida de uma pessoa que nasceu no Maranhão, no ano de 2016, seria de 70,6 anos, ao passo que uma criança nascida no mesmo ano em Santa Catarina teria mais nove anos de vida, buscam como saída para implementar a comparação a utilização da expectativa média de vida aos 65 anos, indicador que apresenta diferenciais pequenos, dado que, uma vez superada as fases mais agudas de incidência de morbidades que ocorrem na infância e as mortes por causas violentas na fase adulta jovem, as expectativas de vida passam a convergir. O que se omite nessa comparação são as condições que cada um chega aos 65 anos de idade; em outras palavras, que a expectativa de vida saudável reservada a cada um desses segmentos estará determinada pela inserção social/laboral ao longo da vida. Assim, aqueles mais pobres, que enfrentaram trabalhos mais duros, tiveram menos acesso aos serviços de saúde e ao saneamento básico mesmo tendo chegado aos 65 anos terão pela frente uma quantidade de anos livres de problemas de saúde menor do que aqueles mais favorecidos. De forma semelhante, o paralelo que buscam traçar com os países desenvolvidos para justificar a idade mínima para a aposentadoria integral também é descabido. Estudos


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apontam que os anos de vida saudável na União Europeia, em 2014, seria de 8,6 anos, com a proporção de anos nessas condições variando de 19% a 81%. No Brasil, pesquisa de Szwarcwald et al. (2016), usando dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013, aponta que o número de anos de vida saudável esperado é de 2,8. Na nossa perspectiva, os caminhos alternativos possíveis, sempre pensando a evolução demográfica, passariam, em primeiro lugar, pela incorporação ao mercado de trabalho formal dessa gigantesca massa de trabalhadores disponível em idade ativa; pelo aproveitando da menor pressão exercida nas primeiras idades (crianças e jovens), investir na melhoria da qualidade da educação, desde a creche e pré-escola, de modo a proporcionar atividades econômicas intensivas em conhecimento; por aumentar as taxas de atividade, em particular, das mulheres, processo que seria favorecido com a oferta de creches. Essa lógica parte da premissa que o desenvolvimento econômico só faz sentido com inclusão social. O tempo demográfico ainda nos permite alguma “janela” para que se atue nessa perspectiva, de modo que as mudanças necessárias a serem propostas nas regras da previdência sejam realizadas num cenário de menor desigualdade social, com maior dinamismo econômico, possibilitando pensar com mais tranquilidade nos modelos de transição de um regime a outro no que tange às alterações na idade mínima para o acesso integral ao benefício. Para enfrentar a redução da mão de obra disponível e gerar recursos para tratar das demandas associadas à maior longevidade da sociedade brasileira, a única saída é investir em atividades econômicas intensivas em conhecimento e tecnologia que proporcionem o aumento nos índices de produtividade da força de trabalho, com uma estrutura ocupacional condizente com esse perfil desejado de trabalhadores. Isso implica enfrentar os gargalos na educação. Um outro movimento necessário para tratar diretamente das questões demográficas seria a promoção de amplo debate com a sociedade para discutir a pertinência de formulação de políticas populacionais, como, por exemplo, o incentivo à natalidade e à imigração internacional. Essas alternativas devem considerar as assimetrias regionais nos estágios da transição demográfica e a forma como a população se distribui no país.

2. MIGRAÇÕES E DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POPULAÇÃO 2.1 MIGRAÇÕES INTERNAS No Brasil, pós anos 1980, passou-se a observar profundas alterações no comportamento do fenômeno migratório no Brasil, onde é possível destacar os seguintes aspectos: I) A inversão nas correntes principais nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro; II) A redução da atratividade migratória exercida pelo Estado de São Paulo; III) O aumento da retenção de população e da migração de retorno na Região Nordeste;

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IV) Os novos eixos de deslocamentos populacionais em direção às cidades médias no interior do país; V) O aumento da importância e diversificação dos deslocamentos pendulares; VI) O esgotamento e a seletividade na expansão da fronteira agrícola; VII) A migração de retorno para o Paraná; VIII) O fato de 14 das 27 Unidades da Federação caracterizarem-se como espaços de rotatividade migratória, ou seja, onde os volumes de entradas e saídas de migrantes se compensam; IX) A incerteza sobre o comportamento da mobilidade dos brasileiros na escala internacional, ressaltando-se a importância das migrações de retorno. Assim, nas últimas décadas, os movimentos internos de população têm se concentrado:

Numa faixa ao longo do litoral, quando se considera o número de centros urbanos, o tamanho populacional destes centros, bem como a localização dos principais nós difusores da rede de cidades; Em espaços onde a atividade agropecuária está cada vez mais vinculada ao processo geral de urbanização do território brasileiro, seja pela transformação de sua base técnica, seja por sua inserção nos complexos agroindustriais e na circulação de produtos e matérias primas; Como também para áreas de produção mineral. Seriam configurações que resultam de economias complexas, que articulam atividades agrícolas e industriais diversificadas, com infraestruturas sofisticadas para produção, armazenagem, distribuição e circulação de produtos e serviços. São, de modo geral, aglomerações urbanas, eixos de crescimento, áreas de agricultura moderna e de expansão agrícola e exploração mineral, centros urbanos isolados, entre outras formas. Este comportamento das migrações internas responderia à nova divisão internacional do trabalho, que estaria transferindo para os países periféricos etapas inferiores dos processos de produção, sendo reservadas aos países centrais etapas mais avançadas e o controle tecnológico e financeiro, cabendo aos primeiros um papel de complementariedade na produção mais geral (Marini, 2012). Todas essas transformações no âmbito econômico contaram com a efetiva participação do Estado, assegurando o maior controle da mão de obra ao regular o mercado de trabalho, e propiciando a infraestrutura necessária, embora precária, à realocação das atividades econômicas, como também praticando renúncia fiscal, de modo a incentivar e facilitar o acesso às novas locações. Do ponto de vista das migrações internas, essa aliança entre capital e Estado redirecionou ou, melhor dizendo, gerou novas rotas migratórias. E, ao precarizar e flexibilizar as relações de trabalho, também colocou em xeque, muitas das vezes, alguma


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possibilidade de mobilidade social envolvida na decisão de migrar. Brito (2008) assinala que a mobilidade espacial estaria mais associada à busca pela sobrevivência do que à concretização da mobilidade social. Um outro resultado dessa aliança entre Estado e capital, como demonstram as evidências empíricas, foi, por um lado, a maior imobilidade dos indivíduos e, por outro, movimentos em distâncias mais curtas. A combinação desses fatores levou, ao mesmo tempo, à estagnação e ao esvaziamento de alguns espaços, e à concentração de população em outros. A nossa proposta é buscar a redistribuição da população no território através da intervenção do Estado, não em aliança com capital, mas com vistas a gerar assentamentos e polos de desenvolvimento econômico e social inclusivos e sustentáveis, dotados de infraestruturas em saúde, educação, serviços públicos e lazer.

2.2 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS Nas décadas mais recentes, os movimentos internacionais de população oscilaram muito em relação ao sinal do saldo migratório. Nos anos 80 e 90, o que se assistiu foi a saída de brasileiros em volumes importantes, como jamais vistos anteriormente. Nesse período, a entrada de estrangeiros não compensava o número de partidas que se dirigiram, inicialmente, para os Estados Unidos e depois Europa (Portugal, Espanha, Itália e Reino Unido) e Japão. Os anos 2000 começaram ainda com saldo negativo. Já do meio para o final da década, o que se observou foi o retorno de brasileiros e a chegada de migrantes vindos da Europa, dos EUA e da China. Em grande medida, devido à crise econômica que atingiu principalmente os países capitalistas centrais, destino preferencial da emigração brasileira. Contribuíram também para o aumento do saldo migratório a imigração vinda dos países sul-americanos, facilitada pelo Acordo de Residência dos Países Membros ou Associados ao Mercosul; a migração haitiana, favorecida pela concessão de vistos humanitários; e, em menor medida, o acolhimento aos refugiados sírios, aos imigrantes africanos do Senegal, República Democrática do Congo, Gana e Angola e dos asiáticos com origem em Bangladesh. Esse cenário perdurou até 2014, momento que a crise econômica se instala no Brasil. A partir daí o que se tem observado é o aumento na saída de brasileiros, para os EUA e a Europa, e de estrangeiros, combinada à menor atração de imigrantes. Se por um lado, a recém aprovada Lei de Migração favorece enormemente a adoção de políticas de atração migratória, por outro lado será necessário que a economia do país ganhe novo dinamismo, de modo não só a tornar o país atrativo para os imigrantes como também a proporcionar uma maior retenção de brasileiros.

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No que diz respeito à questão migratória, começam a surgir manifestações racistas e preconceituosas, de alguns segmentos reacionários, os quais recentemente se descobriram mobilizados politicamente. Esses setores são contra a lei migratória, que foi recentemente aprovada, que se baseia nos direitos humanos, ao contrário do Estatuto do Estrangeiro fundado na segurança nacional. Alguns atos de hostilidades, dirigidos sobretudo contra os imigrantes negros ou sírios, ocorreram aqui ou acolá, mas ainda não se trata de nada muito preocupante, mas devemos estar atentos ao possível crescimento desse sentimento reacionário. São setores que, por ignorantes, querem surfar na onda xenófoba que assola a Europa. Contudo, não se dão conta que, em realidade, não passam de racistas e preconceituosos, dado que não manifestam nenhuma resistência aos imigrantes oriundos do Norte Global, ainda maioria em nosso país.

2.3 DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DA POPULAÇÃO Aqui optou-se por analisar a distribuição espacial da população a partir das Regiões de Articulação Urbana, cadeia hierarquizada de centros urbanos e suas áreas de influência, que refletem a acessibilidade e a capacidade de atendimento a demandas por bens e serviços de diferentes amplitudes e complexidades. Essas amplitudes e complexidades deram origem a três níveis de articulação: Ampliada, Intermediária e Imediata. Sem perder de mente a noção de relação hierárquica entre os níveis de articulação, nossa proposta para pensar as políticas de redistribuição da população no território passaria, fundamentalmente, pelas Regiões Imediatas de Articulação Urbana, dado que poderia ser aproveitada a característica indutora dos municípios polos dessas regiões na disseminação do desenvolvimento local. 2.3.1 Tendência de crescimento São 483 as Regiões Imediatas de Articulação Urbana. Elas se dividem em: a) Regiões que tendem à estabilidade populacional – São aquelas com ritmo menos intenso de crescimento. Representam a maioria das regiões (68,5%), o que favorece em muito o planejamento. Estão localizadas basicamente na faixa litorânea do Nordeste ao Sul e na região central do país. Nessas áreas, no âmbito da política de redistribuição da população pelo território, o Estado deveria atuar para induzir a emigração naqueles espaços mais densamente povoados, redirecionando parte da população para aquelas áreas indicadas como possíveis receptoras de migração. Para a população remanescente, deve ser assegurada a geração de trabalho, sobretudo no mercado formal. b) Regiões com tendência ao crescimento ou já com forte atração populacional – São aquelas com ritmo mais intenso de crescimento, comportamento observado em


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22,2% dessas áreas, que estão localizadas mais no Centro-Norte. Essas áreas crescem em função de taxas de natalidade ainda altas e muito por conta da migração, como visto anteriormente. Esses espaços necessitarão de planejamento urbano, ampliação e melhoria dos serviços públicos, além de políticas de inclusão social e formalização do mercado de trabalho. c) Regiões que tendem ao esvaziamento ou já são áreas de perda de população – São regiões com crescimento negativo. Tratam-se de poucos espaços, do ponto de vista quantitativo: apenas 45 Regiões, que representam 9,3% do total. Elas se espalham por todas as Grandes Regiões do país. De um modo geral, a causa dessa perda populacional está associada ao menor dinamismo econômico. A situação é mais crítica no Rio Grande do Sul, tendo em vista que o esvaziamento populacional decorre da combinação entre os aspectos econômicos e os fatores demográficos. Com a economia deprimida, os jovens emigram, deixando para trás as pessoas idosas. Isto faz com que a população fique ainda mais envelhecida, não gerando crianças e reduzindo as possibilidades de crescimento econômico. Nesses espaços, a tarefa do Estado é induzir o desenvolvimento da economia, buscando, ao máximo, sintonia com as vocações locais, de forma a estimular a atração populacional. 2.3.2 Estágio da transição demográfica Quando se analisa o estágio da transição demográfica nas Regiões de Articulação Urbana, é possível identificar que esses espaços acabam por refletir as assimetrias associadas às diferentes etapas desse processo no país (OLIVEIRA e O´NEILL, 2016), reproduzindo dentro de cada Grande Região geográfica diferenças internas. Nesse sentido, para melhor apreender o momento da distribuição espacial dessa transição, foi necessário criar algumas categorias que dessem conta de revelar o fenômeno nesse nível de desagregação. Os tipos 1 (Jovem), 2 (Adulto jovem) e 3 (Processo de envelhecimento), criados a partir das razões de dependência (relação entre o número de pessoas em idade ativa e o total de idosos e crianças, fora da idade para trabalhar), buscam identificar o estágio da transição em cada uma das Regiões de Articulação Urbana. Ou seja, apontam como se distribui a concentração de jovens, de adultos e de idosos nas diferentes regiões do país, de modo a orientar políticas públicas adequadas a cada uma delas, de acordo com o perfil da sua população. Nas Regiões Imediatas, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, a situação era a seguinte: Tipo 1 (jovem) – O tipo mais jovem aparecia em 46 das áreas investigadas, um pouco menos de 10% das regiões, todas situadas no Norte e no Nordeste.

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São espaços que ainda necessitam de investimento em educação básica, em função do elevado número de crianças e adolescentes. Na área de saúde, requerem preocupação especial com as questões ligadas aos cuidados materno-infantis. Além disso, planejar a indução do desenvolvimento econômico é fundamental não apenas para gerar empregos, mas também reter população. Tipo 2 (adulto jovem) – Essa faixa etária predomina em 236 das 483 Regiões Imediatas de Articulação Urbana, distribuídas por todas as Grandes Regiões, com maior participação relativa no Nordeste e Centro-Oeste. A maior parcela desses espaços atravessa o que poderia ser chamado de fase intermediária dessa etapa da transição, com o alargamento da população em idade ativa. Nessas áreas, a geração de empregos e a formalização da força de trabalho é primordial para o aproveitamento do que resta do bônus demográfico. Políticas orientadas para as questões de gênero também seriam importantes, sobretudo nas relações de trabalho. O investimento em ofertas de creche ajudaria a liberar a força de trabalho feminina. Tipo 3 (processo de envelhecimento) – Foi verificado em 201 Regiões Imediatas de Articulação Urbana, predominantemente no Sudeste e Sul, mas com alguma presença no Nordeste. No Centro-Oeste foi observado em apenas quatro das regiões, e no Norte não houve ocorrência nessa categoria. O importante a destacar é que mais de 40% das Regiões de Articulação nessa escala já caminhavam para uma etapa mais avançada da evolução demográfica, sinalizando tendência crescente no aumento da população idosa. São espaços que necessitam de intervenções mais imediatas na atenção aos cuidados e à saúde do idoso. Na área médica, a oferta de especialidades, equipamentos e profissionais de saúde voltados ao tratamento das doenças crônico-degenerativas e neoplasias malignas devem ser prioridades, bem como as questões relacionadas ao cuidado e integração do idoso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em síntese, a dinâmica populacional brasileira ainda permite, ao menos nos próximos 40 anos, aproveitar de uma abundante oferta de força de trabalho que pode contribuir para a geração de riqueza e renda, a ser distribuída por toda a sociedade; enfrentar com serenidade as questões relacionadas ao envelhecimento populacional, tais como, saúde, previdência e cuidados e atenção à pessoa idosa; além de pensar políticas estritamente populacionais, como o incentivo ao aumento das taxas de natalidade, à atração da migração internacional e à redistribuição da população no território.


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Deve ser ressaltado que, uma vez incentivada a migração, será gerado um efeito inercial que alimentará novos fluxos, seja por estímulos das redes sociais estabelecidas, seja por pedidos de reunificação familiar. Em relação à política de redistribuição populacional, é uma dimensão na qual nosso acúmulo é pequeno e precisamos investir. Já possuímos um diagnóstico a respeito da distribuição espacial da população, o qual combina aspectos econômicos e aspectos relacionados à transição demográfica, identificando espaços de expansão e de esvaziamento populacional. Os estudos devem avançar na identificação das vocações daquelas áreas deprimidas e também na formulação de políticas que não só estabeleçam propostas para o desenvolvimento econômico, mas também assegurem a plena integração da população, garantindo pleno acesso aos serviços públicos básicos, como saúde, educação e transporte, além de moradia decente, cultura e lazer. Neste ponto, nosso desafio será convencer a sociedade que não se está apresentando mais uma política de colonização de eficácia duvidosa, como foram o “Exército da Borracha” e a “Marcha para o Oeste”, de Getúlio Vargas, ou aquelas praticadas pelos governos militares, que visavam ocupar o centro-norte do país. Em suma, pensar o Brasil não pode estar descolado de um projeto mais amplo de nação, um projeto que vise alcançar o desenvolvimento econômico e social inclusivo de todos os segmentos da sociedade brasileira. E isso inclui desafios demográficos que devem ser enfrentados.

REFERÊNCIAS BRITO, F. A transição demográfica e desigualdades sociais no Brasil. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 25, n.1, p. 5-26, 2008. MARINI, Ruy M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2012 (Coleção Pátria Grande I). OLIVEIRA, A.T.R, O´NEILL, M.M. Dinâmica demográfica e distribuição espacial da população: o acesso aos serviços de saúde. In: Gadelha, P. et al (Orgs) Brasil Saúde Amanhã: população, economia e gestão. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. SZWARCWALD, C.L. et al. Inequalities in healthy life expectancy by Brazilian geographic regions: findings from the National Health Survey, 2013. Journal for Equity in Health (2016) 15:141 DOI 10.1186/s12939-016-0432-7. Disponível em https:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5112675/. Acesso em: 28/03/2017, às 14:50h.

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GLOSSÁRIO TAXA BRUTA DE NATALIDADE (TBN) Número de nascidos vivos, por mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA BUTA DE MORTALIDADE (TBM) Número total de óbitos, por mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA LÍQUIDA DE MIGRAÇÃO (TLM) Mede a intensidade com que o saldo migratório incide sobre a população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

TAXA DE FECUNDIDADE TOTAL (TFT) Número médio de filhos nascidos vivos, tidos por uma mulher ao final do seu período reprodutivo, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

ESPERANÇA DE VIDA AO NASCER (E0) Número médio de anos de vida esperados para um recém-nascido, mantido o padrão de mortalidade existente na população residente, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

POPULAÇÃO EM IDADE ATIVA (PIA) É o segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA TOTAL (RDT) Razão entre o segmento etário da população definido como economicamente dependente (os menores de 15 anos de idade e os de 60 e mais anos de idade) e o segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA DE JOVENS (RDJ) Razão entre o segmento etário da população mais jovem (menores de 15 anos de idade) definido como economicamente dependente, e o segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

RAZÃO DE DEPENDÊNCIA DE IDOSOS (RDI) Razão entre o segmento etário da população mais idoso (60 e mais anos de idade) definido como economicamente dependente e o segmento etário potencialmente


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produtivo (entre 15 e 59 anos de idade), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.

REGIÃO DE ARTICULAÇÃO URBANA São modelos concretos de diferenciação espacial do fenômeno urbano sob a perspectiva das redes, mas, simultaneamente, identificando as áreas de influência dos centros segundo sua atuação e capacidade de polarização, podendo assim ser vistas, do ponto de vista metodológico, como um modelo híbrido.

REGIÕES IMEDIATAS DE ARTICULAÇÃO (RIM) Foram identificadas a partir da subdivisão das Regiões Intermediárias. São regiões formadas em torno de Centros sub-regionais e Centros de zona, de atuação abaixo dos de Capital regional e com centralidades definidas, também, conforme a intensidade e presença de atividades e produtos de menor complexidade. As Regiões Imediatas possuem, de maneira geral, tamanho populacional e áreas menores que as de nível Intermediário e suas ligações refletem a acessibilidade e capacidade em atender a demandas de amplitude mais restritas.

TIPO 1 (JOVEM) Para as áreas com razão de dependência dos jovens igual ou maior a 50%.

TIPO 2 (ADULTO JOVEM) Regiões com razão de dependência de jovens menor que 50% e razão de dependência de idosos menor que 12,5%.

TIPO 3 (PROCESSO DE ENVELHECIMENTO) Regiões com razão de dependência de idosos igual ou maior que 12,5%.

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ELEMENTOS ESTRATÉGICOS PARA NORTEAR O DEBATE DO GTESTADO, DEMOCRACIA, P ARTICIPAÇÃO POPULAR E REFORMA DO SISTEMA POLÍTICO A democracia ateniense, a original, era um governo de homens pobres, em defesa dos interesses desses homens pobres. Quem assim a definiu foi Aristóteles. Ela excluía as mulheres e os escravos, mas não era o governo dos senhores de escravos. Pelo contrário: os senhores de escravos e de terras eram adversários da democracia. O que fez da democracia grega um fenômeno absolutamente original foi o fato de que ela separou o exercício do poder político da propriedade da riqueza, colocando-o nas mãos dos trabalhadores manuais, que dela fizeram uso para se preservar dos avanços dos grandes proprietários sobre os seus direitos. A participação popular foi decisiva, por exemplo, para manter a propriedade fundiária limitada e para impedir a escravidão por dívida. Essa associação direta entre participação política ampliada e defesa dos interesses dos mais pobres constituiu o núcleo duro da democracia já em sua origem. Podemos considerar que o aprofundamento dessa relação (ampliação do poder político e defesa dos interesses dos oprimidos) é exatamente o que caracteriza o processo de afirmação permanente da democracia. E podemos também afirmar que democracia não é algo acabado. Democracia é processo: é a inclusão permanente de novos segmentos oprimidos em novos processos de tomada de decisão, sempre acompanhada pelo enfrentamento e a redução dos elementos de opressão aos quais esses segmentos estão submetidos. Pensar assim significa, evidentemente, deixar em segundo plano a concepção liberal da democracia, que é fundada na ideia da separação entre as massas e o exercício do poder e na afirmação de um conjunto de privilégios econômicos e sociais garantidos por lei. Aquilo que há de efetivamente democratizante, nas democracias modernas, foi introduzido de fora do sistema propriamente dito. Fundamentalmente, a democracia se faz sentir nas sociedades capitalistas ocidentais com base na combinação entre voto universal e direitos sociais. Ou seja, a combinação da ampliação da participação política com a construção de mecanismos de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras contra a hiperexploração por parte do capital.

1. Sobre o tema, por todos: BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 2 ROBERT, Philipe. El ciudadano, el delito y el Estado. Barcelona: Atelier, 2003, p. 30.

No Brasil, esse processo se deu de forma sempre contraditória, marcada por avanços e recuos. Ele esteve no centro das lutas sociais que culminaram no golpe de 1964, e ganhou forte impulso a partir do final da década de 70, quando um amplo conjunto de movimentos sociais, na luta pelo fim da ditadura, transformou o tema da participação política num dos elementos centrais que deram sentido às grandes lutas de massas da década de 80. A democracia participativa e/ou democracia direta tornou-se um dos


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fundamentos constitutivos desses movimentos. As prefeituras conquistadas pelo PT (partido mais identificado com esses movimentos) e seus aliados, desde o final dos anos 80, foram caracterizadas pela adoção de diferentes formas de consulta e participação popular, tais como o orçamento participativo. Mais tarde, nos governos federais petistas, as conferências nacionais cumpririam papel semelhante, ainda que com poder de decisão reduzido. Por outro lado, os defensores do projeto neoliberal tiveram sempre muita consciência de que a imposição de seu programa só poderia ser garantida através da redução dos elementos democráticos presentes nos sistemas políticos ocidentais. No Brasil, podemos citar como exemplos desse cerceamento a Lei de Responsabilidade Fiscal e a autonomia operacional do Banco Central, bem como a PEC do teto de gastos, aprovada pelo governo golpista de Michel Temer. A “proteção” da política macroeconômica e da política monetária, nos anos 90, contra a influência popular estabelecida através do voto direto, constitui uma forma clara de redução dos espaços democráticos que haviam sido conquistados através das lutas da década anterior e encontravam-se previstos na Constituição. Para as elites, em especial o capital financeiro, é fundamental impedir que a vontade popular interfira no gerenciamento da macroeconomia, uma vez que os interesses populares (a expansão do emprego, por exemplo) entram em conflito direto com a os interesses dessas elites (contenção dos gastos públicos e juros altos, por exemplo). Depois dos pequenos avanços observados nos governos federais petistas, o que estamos presenciando, com Michel Temer na Presidência, é um retorno ao processo de fechamento dos espaços de influência democrática sobre a distribuição da riqueza. É o que se observa, por exemplo, com o congelamento de gastos públicos. Nessa conjuntura de ofensiva conservadora, a construção de um projeto democratizante para o Estado brasileiro precisa ser pensada em dois movimentos estratégicos distintos e combinados. O primeiro movimento é reativo, voltado para a preservação dos elementos democráticos presentes no arcabouço institucional existente. Os seguintes itens devem ser destacados, nesse sentido: 1. Lutar para reverter a PEC dos gastos, que retira dos governantes eleitos a capacidade de tomar iniciativa política nos campos orçamentário e fiscal. (Ao congelar os gastos, a PEC impediu que políticas voltadas para a resolução dos problemas do povo possam ser implementadas, especialmente no que diz respeito aos gastos com saúde e educação). 2. Enfrentar eventuais iniciativas voltadas para o aprofundamento da autonomia do Banco Central. (Somente aquelas pessoas que receberam mandato do povo, através

3 BINDER, Alberto. Política de seguridad y control de la criminalidad. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2010, p. 12. 4 BINDER, Alberto. Política de seguridad …, cit., p. 45. 5 DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.


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do voto, devem ter o direito de tomar decisões sobre a moeda e a taxa de juros; a vontade popular busca sempre o desenvolvimento e o emprego). Barrar qualquer iniciativa destinada a esvaziar a autoridade da Presidência da República em favor do Congresso Nacional. (É fundamental garantir a decisão soberana do voto popular, tal como está previsto no resultado do plebiscito de 1993, que rejeitou o parlamentarismo). Garantir a realização de eleições presidenciais em 2018 e impedir manobras que restrinjam a participação de candidaturas do campo popular. Lutar contra o desmonte dos mecanismos institucionais de participação popular. Associar sempre as lutas colocadas pela conjuntura, por exemplo as reforma da previdência e trabalhista, com a luta pela necessária reforma democrática do sistema político.

O segundo movimento é afirmativo e passa pela retomada da pauta democrático-participativa construída pelos movimentos sociais, dos anos 70 aos 90, e pelo combate às iniciativas antidemocráticas posteriores à aprovação da Constituição de 1988: 1. Afirmação dos mais diversos tipos de mecanismos participativos e de democracia direta. 2. Esses mecanismos devem ser pautados pela diversidade e devem significar um avanço efetivo na superação de todos os tipos de opressão social; devem ser igualitários em termos de gênero, de raça, de etnia, de orientação sexual, etc. e devem garantir o acesso das camadas sociais subalternas aos processos de tomada de decisões políticas. 3. Isto significa reafirmar da importância de conselhos e conferências e do estabelecimento de outras formas concretas de controle social; para isso é necessário uma avaliação profunda destes mecanismos. 4. Esse resgate passa, ainda, pelo aprimoramento da democracia representativa, tendo como elemento central uma reforma política que garanta uma representação mais efetiva da vontade popular, que enfrente as subrepresentações (trabalhadores/as, mulheres, negros/as, juventudes, etc) e o fim da influencia do poder econômico nas decisões públicas, através da restrição de todas as formas de financiamento privado das campanhas eleitorais. 5. Reversão dos mecanismos de restrição da vontade popular, estabelecidos no período anterior de ofensiva neoliberal, tais como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a autonomia operacional do Banco Central. 6. Um profundo processo de refundação do Estado, refundação alicerçada na soberania popular e na perspectiva da construção do poder popular. 7. Articular a reforma do sistema político com as discussões sobre a democratização da informação e da comunicação e a democratização do sistema de justiça. 8. Pensar a democratização da política e sua relação com a democratização da economia.


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Esses dois movimentos podem e devem ocorrer de maneira combinada e articulada, no mesmo período de tempo, levando em conta, no entanto, a correlação de forças, como critério para a configuração da pauta prioritária em cada momento. É fundamental, ainda, que ambos os movimentos sejam compreendidos como partes de uma estratégia mais ampla, voltada para o aprofundamento permanente e radical da democracia, entendida como controle popular sobre as decisões políticas e sobre a economia.

6 Há quem defenda a necessidade de um sistema institucional de gestão dos confitos, ou seja, um conjunto de regras, instancias, procedimentos, agências e agrupamento de pessoas cuja atividade e função se vincula à busca de soluções à atividade de administrar conflitos. Por todos: BINDER, Alberto. Política de seguridad …, cit., p. 22.



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PREPARANDO A CENA

Texto elaborado a partir das discussões e documentos produzidos pelo Núcleo Celso Daniel de Administração Pública do Partido dos Trabalhadores.

Nos últimos anos, ocorreram importantes transformações na estrutura econômica, política e social brasileira, tornadas possíveis graças à recuperação da capacidade do Estado de planejar e agir, sobretudo em cooperação entre os entes da Federação. Essa recuperação permitiu que o crescimento econômico fosse orientado à redução das desigualdades sociais e regionais, em um ambiente de retomada do investimento público e de maior protagonismo estatal na indução do investimento privado, assim como de fortalecimento do mercado interno. Para que aquelas transformações ocorressem, foi decisivo o esforço de melhoria da capacidade de gestão do Estado brasileiro, o que incluiu diversas iniciativas, desde o fortalecimento das carreiras típicas do Estado, como a valorização e o aumento do contingente de servidores públicos, as inovações normativas que aumentaram a transparência e o controle social _como a Lei de Acesso à Informação, o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o Regime Diferenciado de Contratação para obras e serviços –, passando por novos arranjos institucionais, como o consórcio público, bem como ações de inclusão, como a busca ativa para qualificação do Cadastro Único das Políticas Sociais, entre outras iniciativas inovadoras, especialmente na área da gestão da saúde e da educação. Apesar desses avanços, temas relacionados ao Pacto Federativo ou à Administração Pública não entraram na agenda política do País, e por isso não foram devidamente discutidos e sistematizados, dificultando o reconhecimento das transformações verificadas nos governos Lula e Dilma e assim limitando o potencial de mudança a elas associado. Lamentavelmente, o Estado brasileiro ainda funciona a partir de mecanismos com fortes marcas conservadoras, que impedem a ação governamental de alcançar sua plena efetividade. É por isso um Estado apartado das camadas mais pobres da sociedade, pouco permeável à necessária apropriação pelo cidadão. Para que o Brasil possa aprofundar esse projeto político, no qual o Estado possui papel central para o desenvolvimento nacional e cada cidadão se sente parte ativa, é necessário avançar nas transformações do arcabouço institucional, o que demanda novas formas de se fazer e se pensar o Estado.

O FORTALECIMENTO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA O Brasil está organizado como um Estado Federal, mas como uma Federação muito peculiar no mundo, pois é a única que reconheceu os municípios (nível local) como entes federativos na sua Constituição. A República Federativa do Brasil é, portanto, formada pela união indissolúvel dos 26 estados, 5.568 municípios e o Distrito Federal.


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Além disso, o Brasil adotou um modelo federativo cooperativo, onde muitas competências são comuns, ou seja, devem ser exercidas de forma conjunta pelas diferentes esferas de governo. Essa característica trouxe, por um lado, enormes avanços democráticos com a ampliação de serviços e o aperfeiçoamento dos canais de controle e participação social, que contribuíram para a nossa, ainda precária, democratização, uma vez que o município está mais próximo do cidadão e é capaz de atender às especificidades de cada região. Por outro lado, também trouxe mais complexidade às nossas relações federativas, pois a concertação das políticas públicas nacionais precisa ser feita entre três diferentes níveis de governo, todos autônomos entre si. No entanto, falta à Federação brasileira instrumentos adequados à coordenação das políticas públicas no território, seja na perspectiva intersetorial, bem como intergovernamental. No Brasil, a capacidade dos níveis maiores de governo induzir estratégias e comportamentos das demais esferas federativas, sobretudo dos governos locais, baseia-se quase que exclusivamente na transferência de recursos financeiros (“spending power”). As regiões metropolitanas são grandes exemplos desse deficit de cooperação federativa. Dentre os desafios que as regiões metropolitanas enfrentam, estão a fragilidade dos aspectos políticos, financeiros e institucionais da gestão metropolitana, que vêm impedindo que haja um pacto social e territorial nessas regiões: em cada Estado foram adotados critérios e modelos distintos; na maior parte das Regiões Metropolitanas o órgão gestor é estadual, as estruturas de paridade com municípios ainda são teóricas; os fundos metropolitanos e outros instrumentos de financiamento do desenvolvimento regional são praticamente inexistentes. A superação dos desafios das grandes metrópoles brasileiras passa pela integração das políticas setoriais no território e pela integração do território em si, nas suas diversas escalas: intraurbana, regional e nacional. O que só vai acontecer, considerando a atual Constituição federativa, por meio da articulação dos três níveis de governo em estruturas de governança metropolitana. O Governo Lula inaugurou uma nova relação com estados e municípios. Uma relação mais republicana, que não tomou os vínculos partidários como critérios de decisão para a articulação federativa, e foi capaz de qualificar as relações intergovernamentais e pactuar políticas públicas de forma institucional, considerando cada município como parceiro estratégico do desenvolvimento do país. Merecem destaque, de um lado, a criação do Ministério das Cidades, que unificou num mesmo órgão as políticas de desenvolvimento urbano (habitação, saneamento, transporte e planejamento urbano), facilitando o apoio do Governo federal a estas funções municipais de forma integrada, e, de outro, a criação do Comitê de Articulação Federativa (CAF), uma instância permanente de diálogo e pactuação entre o Governo Federal e os municípios, diretamente vinculada à Presidência da República.

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Essa nova relação ganhou densidade ao longo de 13 anos (2003 - 2015) e produziu ganhos efetivos, principalmente para os municípios, como a ampliação da base tributária própria, com revisão da lei do Imposto sobre Serviços (ISS)1; a transferência aos municípios da arrecadação integral do Imposto Territorial Rural (ITR)2; o aumento de mais 2% da parcela do Fundo de Participação dos Municípios (FPM)3; o repasse direto do Salário Educação e a criação do Simples Nacional, que unificou os tributos das médias e pequenas empresas. Com essas e outras medidas, registrou-se um aumento das transferências de recursos federais para os municípios desde 2003. Segundo dados da Secretaria de Tesouro Nacional4, tivemos um crescimento real de 76% do FPM na última década. Além disso, foram implementadas durante os Governos Lula e Dilma diversas políticas sociais e benefícios previdenciários que transferiram recursos diretamente ao cidadão, como é o caso do Bolsa Família e da política de aumento do salário mínimo, que contribuíram significativamente para dar sustentabilidade econômica às regiões menos desenvolvidas do país, oferecendo dignidade aos brasileiros e brasileiras e minimizando demandas sociais na porta dos prefeitos e prefeitas. O diálogo com os municípios também contribuiu para aprovar diversas leis que favoreceram os investimentos públicos e privados nos territórios. Alguns exemplos: o parcelamento das dívidas previdenciárias, a Lei dos Consórcios Públicos, a Lei das Parcerias Públicas Privadas (PPP), a Política Nacional de Saneamento, o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e, mais recentemente, a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

1. A arrecadação do ISS aumentou, em média, 11,9%, em termos reais, de 2004 a 2012, e 2,1%, de 2013 em relação a 2012. (Fonte: MultiCidades, 2013). 2. Já existem mais de 1.500 municípios conveniados com a Receita Federal do Brasil. (Fonte: RFB, 2013). 3. 1% pela EC 55/2007, e mais 1% pela EC 84/2014. (Fonte: Constituição Federal/88) 4. Em valores nominais, o montante de recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), descontada a parcela do FUNDEB, passou de aproximadamente R$ 21,32 bilhões, em 2004, para R$ 64,15 bilhões, em 2014. Se considerarmos a inflação medida pelo IPCA de dezembro de 2014, houve aumento real de aproximadamente 76%, de 2014 em relação a 2004, no montante de recursos repassados pela União aos Municípios, a título de FPM.( Fonte: STN/MF)

Com o mesmo objetivo, foram fortalecidos e ampliados os sistemas nacionais como o Sistema Único de Saúde - SUS, o Sistema Único de Assistência Social - SUAS, o Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS, o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, o Sistema Nacional de Cultura - SNC etc. que adotam um modelo de gestão compartilhada das políticas públicas por meio de comissões tripartites e controle social. Estados e municípios foram respeitados como parceiros estratégicos das políticas nacionais e do projeto nacional de desenvolvimento do país. No entanto, a Federação brasileira ainda é muito desigual. Essa desigualdade se expressa entre as regiões do País, sobretudo na dicotomia norte-sul. Mas não só. O universo dos municípios brasileiros também é marcado por grandes diferenças em relação a densidade demográfica; dinâmica econômica; indicadores sociais; arrecadação tributária; e capacidade técnica e gerencial de suas administrações públicas: 70% dos municípios têm menos de 20 mil habitantes e abrigam apenas 18,2% da população brasileira. Os 283 municípios com mais de 100 mil habitantes acumulam aproximadamente 70% de toda a renda do País, enquanto os 3.915 municípios com até 20 mil habitantes representam menos de 10% da renda nacional.


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Por isso, qualquer proposta de Reforma Federativa deve levar em conta o enfrentamento dessas desigualdades e o papel na União na redistribuição equitativa dos recursos no território nacional, bem como, incentivar instrumentos de cooperação federativa e solidariedade territorial, como os consórcios públicos e colegiados regionais ou setoriais. Nesse sentido, são inúmeras as propostas de repartição das receitas públicas, todas sob o argumento da concentração dos recursos pela União. É inegável a concentração oriunda do regime militar e da criação das chamadas contribuições nos anos 90, mas também é importante ressaltar o papel dos investimentos federais estratégicos que impulsionaram o crescimento do País e o eficiente combate à desigualdade. Sem uma estratégia nacional e os correspondentes recursos para isso, o País não teria atingido os níveis de inclusão social e geração de renda alcançados. Em inúmeras situações é possível afirmar que a centralização de atividades e competências na União podem surtir bons efeitos, como, por exemplo, nas compras governamentais de bens e serviços comuns em grandes escalas, como material escolar, medicamentos, dentre outros. Ou, ainda, na elaboração de projetos de engenharia e aquisição de equipamentos que podem ser padronizados (computadores, ambulâncias etc.). Noutros casos, a descentralização pode ser o melhor caminho, abrindo caminho para a inovação e a criatividade no desenvolvimento local, a exemplo do orçamento participativo, projetos de economia solidária e incentivo as micro e pequenas empresas, em especial, à agricultura familiar. Em suma, há casos em que convém concentrar competências na União, há casos em que é melhor descentralizar competências para os Estados ou para os municípios. O importante é que essa escolha seja fruto de um pacto, que respeite as autonomias dos entes da Federação e fortaleça a cooperação federativa, seja por meio de um sistema nacional com participação da União, Estados e Municípios, por meio de consórcios públicos, ou quaisquer outros mecanismos de articulação regional. Não há, portanto, como prescrever um único modelo de gestão para todas as áreas, sendo necessário que cada política setorial amadureça e apresente propostas de arranjo federativo adequadas às suas necessidades. Para isso, é fundamental, no entanto, ampliar os instrumentos jurídicos e administrativos disponíveis para que as regras administrativas não restrinjam as possibilidades a cada uma das políticas ou a cada um dos entes federativos. Assim, a Lei dos Consórcios Públicos foi uma inovação importante, mas é preciso ampliar o gradiente de instrumentos, de modo a poder ofertar aos gestores também outras estruturas de administração indireta e de entidades paraestatais.

Enfim, são necessárias novas estratégias de pactuação federativa que favoreçam a cooperação federativa e que acelerem o fortalecimento dos Estados e, em especial, dos Municípios. Também é preciso aumentar os repasses automáticos aos entes sub-

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nacionais em termos de proporção da arrecadação da União. Trata-se de combater uma visão negativa de desconfiança dos governos locais, dotando-os dos recursos e instrumentos necessários para atender às demandas locais. Assim, ao invés de impor controles a priori para o gasto, deve-se oferecer aos prefeitos e governadores mais flexibilidade para suas escolhas políticas, exigindo, por outro lado, maior responsabilidade pelos resultados, perante aos cidadãos e órgãos de controle. Para tanto, o sistema político e os mecanismos de difusão de informações precisam ser reformados para estimular a população a rejeitar nas urnas os maus gestores e aprovar aqueles que atenderam suas expectativas. Busca-se que o Governo Federal deixe gradualmente de atuar de maneira tutelar e com o viés de controle e que passe a articular políticas públicas em harmonia com a autonomia política dos entes subnacionais, respeitando as realidades de cada localidade. Por isso, faz-se necessária uma repactuação da Federação brasileira sob as seguintes bases: aprofundamento dos ganhos acumulados nos Governos Lula e Dilma pelos estados e municípios; fortalecimento dos instrumentos de cooperação federativa e sistemas nacionais das políticas setoriais, como o SUS; descentralização de recursos e competências, que possibilite mudanças graduais e mais profundas e o compromisso com a redução das desigualdades regionais e sociais. A partir dessas bases, o item central para o ajustamento do pacto federativo no Brasil é a reforma tributária. É preciso destacar não apenas a necessidade de progressividade, mas também a simplificação do sistema e a centralização do processo de arrecadação e de sua fiscalização. Defende-se, portanto, a existência de três tributos: um sobre a propriedade (imóveis, automóveis, embarcações, dinheiro etc); um sobre a renda (salários, honorários, dividendos, lucros etc); e outro sobre o valor agregado (comércio, e circulação de mercadorias, indústria, serviços etc). Os tributos poderiam ser cobrados pelos níveis maiores (algo a ser estudado e pactuado, com vistas à eficiência e à redução de personalismos) e, do montante arrecadado, deveria-se ampliar o percentual de compartilhamento com os entes subnacionais. Outra necessidade em linha com a política de aumento do salário mínimo já implementada nos governos Lula e Dilma é a elevação dos pisos nacionais, a exemplo de policiais e professores – que impacta no sentido de garantir padrão mínimo de qualidade dos serviços públicos por meio do estabelecimento de um piso nacional que valorize esses profissionais. Ademais, a transferência de recursos para que Estados e municípios possam pagar pisos nacionais mais altos, do ponto de vista econômico, funciona como mecanismo de redução de desigualdades e de ampliação do consumo, vez que possuem alto fator multiplicativo. Assim, esse é um tema que deve estar presente na discussão da Administração Pública quanto aos arranjos federativos. Diferenças regionais podem ser compensadas na forma de complementos aos pisos, nos moldes do que ocorre com o Bolsa Família, em que cada Estado ou município pode conceder um complemento aos seus respectivos beneficiários.


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Evidentemente, qualquer mudança no pacto federativo brasileiro deve ter em vista a necessidade de uma pactuação política com ampla participação das populações envolvidas, assentada em princípios éticos, que coloquem a solidariedade, a promoção da igualdade, a inclusão social e a sustentabilidade sócio-ambiental, como pilares da política tributária e da reconstrução de amplas capacidades estatais e das instâncias de construção coletiva como diretoras da política institucional e dos processos decisórios nacionais. Não se trata, portanto, de propor soluções a priori para a articulação federativa em cada uma das políticas públicas existentes ou demandadas pela população, mas de suspender pressupostos fixados no Estado por uma lógica neoliberal que orienta práticas e normas estatais a atuações tímidas e concentradoras. Trata-se, assim, de reacender um debate federativo capaz de levar as esperanças de um país mais justo, solidário e sustentável a cada uma das localidades brasileiras – cada uma com sua distinta realidade social – e elevar os sentidos de nação soberana e de autodeterminação popular como base das ações coletivas do país, o que está cada vez mais ameaçado no mundo, e mais acentuadamente no Brasil pós-golpe.

CAMINHOS PARA UMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À ESQUERDA O Estado brasileiro é historicamente marcado por uma dominação escravocrata, oligárquica, patriarcal, machista e insensível a pleitos das classes populares. Mais recentemente, foi moldado para assegurar o cumprimento das diretrizes do Consenso de Washington, prevendo que funções públicas – como saúde, educação, regulação das relações de trabalho, e fomento da produção agrícola e industrial – se submeteriam ao protagonismo da iniciativa privada. Nessa linha, após a ditadura militar e um período de superinflação que aprofundaram as desigualdades já enormes, o Brasil, marcado por arranha-céus e iates de um lado e miséria e fome do outro, passou no governo FHC por uma reforma gerencial que enxergava o Estado como algo intrinsecamente negativo que deveria se limitar a um conjunto mínimo de funções executadas com técnicas de gestão empresarial. Tratava-se de alienar ainda mais as classes populares da gestão dos recursos nacionais. Para isso, a reforma promoveu a terceirização de serviços públicos e um amplo programa de privatizações de estatais, atrofiando a capacidade estatal para a promoção do desenvolvimento, com a desvalorização de servidores públicos e a precarização de seus instrumentos e condições de trabalho, atrofiando com isso a capacidade estatal para a promoção do desenvolvimento. Como resultado desse processo, forjou-se um Estado orientado para o “não fazer”, burocratizado em seus procedimentos, cheio de controles que travam qualquer impulso transformador, autoritário em seus métodos, eficientíssimo em preservar o status quo e solapar direitos individuais e sociais, além de obliterar os objetivos constitucionais. A

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precariedade da gestão assim forjada era consciente, e serviu para converter o Estado brasileiro no escritório de gerenciamento de negócios privados que extrapolavam as fronteiras nacionais. A reforma do Estado levada a cabo por FHC e Bresser se deu sob o solo “fértil” do senso comum absorvido pela opinião pública, ou opinião publicada fortemente privatizada, numa simbiose estratégica entre os oligopólios midiáticos nacionais e internacionais num quadrante histórico em que a imposição do neoliberalismo ao mundo era um “comando central”. Assim, os valores e representações do neoliberalismo “coincidiram” com os da sociedade. Os elementos da narrativa da história brasileira semeada no imaginário coletivo tais como, por exemplo, a representação da corrupção endêmica na vida pública como principal problema nacional deram sentido à delapidação do patrimônio público e das capacidades estatais. Em outras palavras, as condições objetivas e subjetivas para a reforma neoliberal do Estado estavam plenamente colocadas. Havia ali uma hegemonia estabelecida para esta “dimensão administrativa” – que aliena ainda mais as camadas populares das estruturas sociais que lhes dizem respeito, sobretudo o Estado, mas também a educação, o banco, o mercado, a segurança alimentar - da estruturação do neoliberalismo no Brasil que se manteve mesmo após a mudança de governo, uma vez que alguns de seus pilares centrais não foram ainda mexidos, especialmente o sistema político, a política fiscal e a mídia. É verdade que os governos Lula e Dilma ousaram enfrentar vários dos nós críticos do Estado brasileiro – planejamento e orçamento participativo, cotas raciais, ProUni, Fies, Bolsa Família, PAC, RDC, fortalecimento do SUS e do SUAS, políticas para as mulheres, Pronatec -e inúmeros outros exemplos podem ser apontados. Contudo, também é verdade que muitos dos gestores destes governos incorporaram princípios neoliberais, sobrevalorizaram os receituários do mercado para a solução dos problemas da administração pública, e reforçaram, muitas vezes, estruturas do Estado resistentes à transformação social. Não disputamos como deveríamos os métodos de seleção e formação de servidores públicos, não conseguimos alterar os fundamentos de uma política econômica orientada para interesses rentistas e do mercado de capitais estrangeiro; não aprofundamos a reforma agrária; não alteramos significativamente as normas de gestão orçamentária e financeira; não disputamos as reformas políticas, tributária, do judiciário, dos meios de comunicação etc. Em 2016, a democracia brasileira sofreu um golpe de Estado parlamentar-jurídico-midiático. A presidenta Dilma foi deposta por meio de um processo de impeachment articulado entre parcelas das burocracias estatais (ministros do STF, procurador-geral e procuradores do Ministério Público, policiais federais e auditores do TCU), os grandes meios de comunicação cartelizados, e partidos políticos de centro-direita que, apoiados pelo grande capital nacional (e.g. FIESP, FEBRABAN) e internacional (e.g. Koch Brothers), ousaram pôr abaixo o princípio da soberania do voto popular.


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Dentre outros aspectos, o golpe irrompido em 2016 revela a fragilidade das gestões à esquerda na disputa interna das burocracias e até de parcela da população. Aumentamos salários e benefícios, realizamos concursos públicos, valorizamos os servidores em geral, mas não fomos capazes de politizá-los, de vaciná-los contra o poder midiático. Por outro lado, grande parte da população brasileira, que tanto se beneficiou das gestões capitaneadas pelo PT à frente do governo federal, ficou apática para defender a presidenta Dilma diante do golpe – deixou-se abater ou contaminar por um barulho da elite que havia perdido as eleições. A crise econômica, juntamente com a manipulação de informações promovida, sobretudo, pelos grandes meios de comunicação, mas também por agentes da oposição nas redes sociais, foi capaz de desmobilizar a massa popular que elegeu Lula e Dilma quatro vezes consecutivas para governar o país. Num Estado capitaneado pela esquerda por 13 anos havia - e há - atores poderosos: servidores concursados e ocupantes de cargos altos no executivo, nos órgãos de controle, no judiciário e no parlamento, que utilizaram regras da gestão orçamentária e financeira, leis, normas e ritos de processos administrativos, legislativos e judiciários, tudo para fazer política antipopular. As circunstâncias parecem reforçar a urgência de uma maior reflexão da esquerda brasileira sobre o Estado e suas entranhas, seus ritos e procedimentos internos, sua constituição e orientação ideológica, suas possibilidades e limites. Em primeiro lugar, é necessário elaborar um modo de concepção, desenho, execução, monitoramento e avaliação de políticas públicas em que a construção coletiva, para além da mera participação, não seja uma característica marginal, mas central, imprescindível e fator de distinção das políticas de esquerda. Para isso, é necessário estimular a cultura do debate na sociedade e reencantar os partidos e as pessoas em torno das decisões coletivas, assim como avançar no desenho e implantação de mecanismos que promovam sua efetividade, de modo que ela seja, de fato, método de governo. A conquista do poder não deve ser para concentrá-lo, mas para distribuí-lo, sobretudo aos historicamente alijados. Em segundo, é preciso dar atenção remoção das travas à ação estatal colocadas pelas elites, sobretudo sob a ideologia neoliberal, e estabelecer condições para a implantação de arranjos que viabilizem a execução e aprimoramento das políticas voltadas à garantia de direitos, à promoção da inclusão social e à redução de desigualdades. De fato, apesar das melhorias alcançadas nos últimos anos, a Administração Pública no país ainda é marcada pelo emaranhado de mecanismos que emperram a ação do Estado e afastam-no da influência popular. O excesso de burocracia e a lógica de controle do gasto público são incapazes de combater eficazmente a corrupção e ainda geram ineficiência. É necessário alterar as estruturas e instrumentos herdados para ampliar a capacidade de implantação de um projeto político de esquerda. Deve-se definitivamente romper com a visão do Estado como

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mal necessário e situá-lo como agente central no projeto de desenvolvimento do país, novamente legitimado como coordenador, regulador, planejador e executor das intervenções econômicas e sociais. Para isso, é crucial ressignificar o conceito de reforma do Estado, desfazendo as associações quase espontâneas a choques de gestão e redução de gastos, que guiam parte das forças de oposição. Um ponto central para a reconstrução de ideais de esquerda é a melhoria da percepção do Estado. Valorizar o coletivo em detrimento do individual, a cooperação em detrimento da concorrência, e a comunidade em detrimento da propriedade privada. Para tanto, é preciso que as pessoas possam identificar os lados positivos da ação estatal. Isso pode ser feito, sobretudo, pela prestação de serviços públicos de alta qualidade. Entendendo que há limites impostos pelas restrições orçamentárias e financeiras, é preciso atentar para possibilidades de criação de alguns nichos de excelência, progressivamente ampliados, na prestação de serviços que criem um sentimento na população de identificação e defesa do público. A ideia central é quebrar a cadeia que leva à associação espontânea do serviço público como algo precário, de qualidade inferior. Acreditamos que o desenho de políticas e arranjos federativos também deve considerar esse aspecto em sua formulação, a ser tratada caso a caso, em cada uma das políticas setoriais e na elaboração de qualquer plataforma de governo. Finalmente, é preciso ampliar a capacidade das equipes dirigentes em conduzir a máquina pública incorporando os fundamentos do projeto democrático e popular que nos orienta. Essa deve ser uma preocupação constante dos governos orientados pela autodeterminação popular. Isso requer uma formação que contribua para a mobilização articulada e complexa de diferentes conhecimentos, habilidades e atitudes, por parte dos dirigentes eleitos e suas equipes. O desafio está em promover o desenvolvimento das competências necessárias à atuação no nível diretivo de órgãos públicos, preparando indivíduos para gerir situações complexas e tomar decisões que envolvam, simultaneamente, as racionalidades técnica e política, pluralidades de perspectivas sobre cada tema, e a busca de resultados no enfrentamento de problemas sociais, primando pelo senso de urgência e usando como meio a condução do aparato público. As diversas gestões consideradas bem-sucedidas dos partidos de esquerda, nos três níveis da federação, são um indicativo de que há quadros de esquerda com graus elevados de capacidade de governo, apesar das críticas quanto a atitudes autoritárias, colonizadas ou elitizadas que podem demonstrar certo déficit de introjeção dos princípios da autodeterminação popular. Entretanto, é imprescindível considerar que muito foi feito, e que há muito por fazer nos espaços onde a esquerda brasileira já governa, e que há uma necessidade crescente de quadros qualificados nas comunidades, na execução de serviços públicos, nos cargos de gestão, nas assessorias legislativas e judiciárias e nos cargos políticos, de fiscalização e magistratura, que sejam capazes de compreender, engajar-se, e garantir a implementação do nosso projeto político de emancipação popular.


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No campo da Administração Pública, propomos a construção de uma agenda de debates com especialistas, beneficiários e representantes da população em geral. Sem a pretensão de esgotar todos os aspectos referentes à Administração Pública, segue abaixo uma lista preliminar de itens a serem debatidos:

Competências federativas e arranjos inter-federativos; Parcerias com as organizações da sociedade civil; Mecanismos de participação social na gestão; Mecanismos de articulação e coordenação (intra e inter setoriais) de políticas públicas; Oferta e qualidade dos serviços públicos; Força de trabalho no setor público (recrutamento e seleção, formação, avaliação, remuneração, mobilidade, etc.); Planejamento, Orçamento, Finanças Públicas e seus instrumentos (LOA, LDO, PPA, LRF, Leis 4.320/64 e 10.180/01 e DL 200/67, entre outros); Órgãos de controle interno e externo; Contratações (uso do poder de compra, arranjos com setor privado, etc.); Autonomia da administração indireta; Administração do patrimônio; Logística, TI, bases de dados.

Embora possua elementos em comum, a administração pública não é igual à administração de uma empresa privada. Assim, a simples transposição de técnicas e procedimentos empregados neste tipo de organização para a esfera pública tende a apresentar resultados frustrantes, ou até desastrosos. Diferentemente da empresa privada, cujo objetivo central e inquestionável é aumentar seu lucro o máximo possível, o governo opera em um ambiente em que interesses divergentes e mesmo contraditórios se digladiam, e onde a hierarquia de valores e objetivos da organização pública não são claros nem pré-definidos. A escolha desses valores e objetivos, a mediação de atores sociais, a construção de consensos e busca de apoios, a priorização de interesses e a forma como isso é feito, são elementos cruciais que determinam o funcionamento do aparato governamental, mas que simplesmente inexistem na empresa privada. Por isso, para fazer as escolhas políticas e para ser capaz de perseguir os objetivos de um governo com eficiência é necessário aplicar métodos específicos ao setor público, métodos que, inclusive, vinculem a própria noção de eficiência na gestão e a responsabilidade com a coisa pública e interesses coletivos aos objetivos para os quais ela é direcionada. A orientação pelo lucro – ou para uma única dimensão da vida coletiva –– no âmbito do Estado é incompatível com uma ética verdadeiramente cidadã. Por isso, é importante que as esquerdas que realmente pleiteiam ocupar posições de liderança para construções coletivas, a partir do Estado e da sociedade civil, para promover o combate às desigualdades e construir um Brasil justo e solidário, plural e cidadão, não caiam no canto da sereia de “mercadores de soluções de mercado” para problemas que, em geral, envolvem questões sociais muito mais complexas. É preciso ter claro que o uso de técni-

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cas e ferramentas de gestão “importadas” do meio empresarial é possível e pode ajudar, mas devem ser sempre aplicados com enorme senso crítico e sensibilidade política, e sempre com flexibilidade para que se ajustem às contingências da esfera pública. Daí advém o porquê de refutarmos o chamado “choque de gestão” como processo e como conceito. Uma boa administração pública medida pelo uso de modernas técnicas gerenciais não pode se ater à contabilidade, ao corte de cargos e funções, e à aplicação das ferramentas da moda na Administração de Empresas. A administração pública –e, portanto, qualquer choque de gestão governamental – não pode ser um fim em si mesmo. Uma boa administração se mede pela capacidade de promover o bem-estar da população, pelo incremento das igualdades, pela ampliação de direitos, em suma, pela capacidade de ampliar a segurança, a saúde, a educação e a qualidade de vida a cada vez mais pessoas, e produzir um ambiente coletivo que seja acolhedor e sustentável para esta e para as próximas gerações. Nesse ponto, convém recordar as palavras do nosso companheiro Marcelo Déda5: [...] nós vivemos num país que às vezes repercute aquilo que já foi no passado, o chamado pensamento único dos teóricos de uma globalização excludente. É o que eu chamo de fetichização da Gestão. Tem alguns que já defenderam antes o divórcio da economia da política, que hoje defendem o divórcio da gestão da política, como se a gestão fosse auto-justificável, como se a vida, como se o espaço público fosse uma sala de cirurgia, perfeitamente isenta de qualquer germe, anódina. A vida pública é a vida do conflito, é a vida da disputa. A ferramenta de gestão é indispensável. Ela é fundamental, mas atrás da ferramenta tem que haver a política, porque a política é o ato de escolher. Se a política é ruim, não há Fundação Getúlio Vargas, não há MIT, não há prêmio Nobel de economia que seja capaz de produzir uma teoria de gestão que transforme uma política ruim em política boa, que transforme uma visão de mundo excludente numa visão compartilhada, que abra mão da concentração de renda em benefício da distribuição dos benefícios para todos os habitantes de um espaço político de uma Nação. Nesse sentido, acreditamos que o desafio do planejamento e da gestão pública é criar as

condições para efetivar os direitos sociais inscritos na Constituição de 1988, e ir além. Para tanto, será fundamental, a um só tempo, enxergar e revelar os gargalos sociais. Como disse nosso Presidente Lula, “colocar os pobres para dentro do orçamento é possível”. Por isso é fundamental a implementação de políticas capazes de atender de modo especial os mais pobres e promover a redução das desigualdades sociais.

5. Trecho do discurso do ex-governador Marcelo Déda realizado no lançamento de novas ações do Brasil Sem Miséria, no dia 19 de fevereiro de 2013, no Palácio do Planalto.

Nas últimas eleições presidenciais, mas também em grande parte das eleições estaduais e municipais, houve um embate claro entre dois projetos políticos diferentes. Enquanto nós defendemos que os desafios do país passam pela ampliação das conquistas sociais que viabilizam o crescimento com redução de desigualdades, os principais adversários afirmavam que o principal problema do Brasil era a ineficiência da gestão pública. A forma rasa com a qual posicionaram o debate sobre a gestão cumpriu o objetivo de


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esconder do público o problema do financiamento e fazer crer que as gestões voltadas aos interesses populares seriam menos eficientes, menos profissionais ou menos éticas. Diante disso, é importante saber conduzir o debate sobre a gestão pública, revelando os problemas que enfrentamos e a necessidade de respaldo popular para que avancemos, desmistificando o fetiche em torno do assunto, valorizando as soluções construídas coletivamente e de forma plural e propondo novos horizontes (de sonho e esperança) inspirados nas administrações da esquerda brasileira, latino-americana e mundial dos últimos anos, mas ressaltando, ainda, a necessidade de respaldo popular e construção coletiva de programas, projetos, métodos e práticas de governo, e de preparar as comunidades e os servidores públicos para os desafios dos mandatos e jurisdições.

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GT DE SEGURIDADE E PREVIDÊNCIA SOCIAL1 A proteção à velhice é um direito humano assegurado por convenções internacionais. Trata-se de requisito para que a vida possa ser vivida em todas as suas dimensões, pensando o ser humano na sua integralidade. O artigo 25 da clássica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 reza o seguinte: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. A partir da década de 1950, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) pôs em marcha uma “segunda geração”2 de instrumentos visando a ampliar e difundir a Seguridade Social como um direito universal. Um dos mais importantes é certamente a Convenção nº 102 (1952), que estabelece “Normas Mínimas para a Seguridade Social”. Em 1966, a visão da seguridade social como “direito humano” também foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc).·.Posteriormente, esse mesmo direito foi estendido, por meio de diversos instrumentos jurídicos internacionais e regionais, para outros segmentos vulneráveis e objeto de discriminação3. 1. Baseado em Previdência: Reformar para Excluir? (http:// plataformapoliticasocial.com.br/ previdencia-reformar-para-excluircompleto/) e Por um Brasil Justo e Democrático, volume II (http:// plataformapoliticasocial.com.br/porum-brasil-justo-e-democratico-2/). 2. () Destacam-se, especialmente, as Convenções: 102, de 1952 (norma mínima de seguridade social); 103, de 1953 (proteção à maternidade); 162, de 1962 (igualdade de tratamento); 121, de 1964 (acidentes de trabalho e doenças ocupacionais); 128, de 1967 (aposentadoria por idade, por invalidez e pensão por morte); 130, de 1969 (assistência à saúde); 157, de 1982 (conservação de direitos); e, 168, de 1988 (fomento do emprego e prevenção do desemprego). 3. () Ver especialmente os seguintes instrumentos promulgados pela ONU: Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (Resolução 34/180 de dezembro de 1979); Convenção sobre os direitos das crianças (Resolução 44/25 de novembro de 1989); Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (Resolução 2106 de dezembro de 1965); e Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e de seus familiares (Resolução 45/158 de dezembro de 1990).

Ademais, a longevidade é desejável. A queda da mortalidade, que é a causa da maior longevidade da população brasileira, é claramente fenômeno positivo e importante indicador de bem-estar. O fato de o brasileiro viver mais mostra que, apesar das desigualdades ainda existentes, as condições de vida melhoraram no país nas últimas décadas.

Enfim, a longevidade é desejável e o envelhecimento não é “o fim do mundo”. O gasto previdenciário aumentará inexoravelmente, mas isso também não é “o fim do mundo”. Como se sabe, democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa questão no século passado, sem destruir a proteção social, e hoje gastam, em regra, mais que o dobro em Previdência, como proporção do PIB, na comparação com o Brasil. Nesse sentido, por que tratar como “catástrofe” o aumento da expectativa de vida, tão dedicadamente buscado em todo o mundo? A Previdência e a Seguridade social são os principais mecanismos de proteção social do Brasil. A Constituição de 1988 institui a Seguridade Social, conceito clássico que resulta da construção histórica dos chamados regimes de Estado de Bem-Estar Social. Originado na Alemanha do final do século 19 e desenvolvido na Europa no pós-Segunda Guerra, a proteção social passou a ser vista como um direito da cidadania, e os direitos sociais passaram a ser “universais”. Na Constituição, prevaleceu o princípio da “Seguridade Social”, em que todos têm direito mesmo sem ter contri-


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buído monetariamente, ante o princípio do “Seguro Social”, em que só tem direito quem paga. Instituiu-se a forma clássica de financiamento tripartite entre empregados, empregadores e Estado (através de impostos gerais pagos por toda a sociedade). Este modelo está consagrado por convenções e declarações internacionais de organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU). Em linha com as diretrizes consagradas internacionalmente, a Seguridade Social brasileira é, ao mesmo tempo, o mais importante mecanismo de proteção social do País e poderoso instrumento do desenvolvimento. Parte do sistema de Seguridade Social, a Previdência tem por função garantir a cobertura de uma renda substitutiva nos casos de ocorrência de eventos de resultem em incapacidade laboral dos trabalhadores. A Constituição de 1988 criou um sistema universal, estendendo aos trabalhadores rurais os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos. O papel central que cumpre a Previdência Social no sistema brasileiro de proteção social, com a repercussão no mercado interno de consumo de massas vital para o ciclo recente de crescimento econômico. Os benefícios de Previdência e Assistência asseguram uma renda mínima para milhões de brasileiros: em 2015, o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) mantinha 28,3 milhões de benefícios diretos, sendo que os aposentados viviam em famílias com mais 2,5 membros. Em média, estima-se que indiretamente sejam favorecidos outros 70,7 milhões de brasileiros. Ou seja, o RGPS beneficia 99 milhões de pessoas, quase a metade da população do país! Seguindo o mesmo raciocínio, mas agregando o Benefício de Proteção Continuada (BPC) e o Seguro Desemprego, somam-se outros 40 milhões de beneficiados, direta e indiretamente, por transferências da Seguridade. Ou seja, em 2015 transferiu-se renda para 140,6 milhões de indivíduos, cujos benefícios são próximos do piso do salário mínimo. A maioria dos idosos brasileiros está protegida. No Brasil 82% dos idosos brasileiros tem proteção na velhice, contando, ao menos, com as transferências de renda da Previdência e do BPC. A Previdência fomenta a agricultura familiar e combate o êxodo rural. A aposentadoria e as pensões para os trabalhadores rurais funcionam como seguro agrícola fomentando a agricultura familiar e contribuindo para fixar a população ao campo. A proporção de jovens que permanece no campo, por exemplo, aumentou de 60% na década de 1980, para 85% na década passada, ou seja, junto com a vigência dos benefícios da Previdência aos trabalhadores rurais pós 1988. A Previdência promove a economia regional. As transferências da Previdência ativam a economia local, sendo a principal fonte de transferência de recursos para 70% dos municípios brasileiros.

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O papel redistributivo nos municípios mais pobres A Previdência Social reduz as desigualdades regionais, pois se observa que, quanto mais baixo é o PIB do município, maior é a importância dos montantes pagos em benefícios para a economia local. Ou seja, os benefícios previdenciários promovem também o desenvolvimento municipal. A Previdência reduz a desigualdade da renda. Entre 2003 e 2012, houve significativa redução do índice de Gini, de 0,581 para 0,527. Segundo o IPEA, quase 30% desta queda decorreu do pagamento de aposentadorias e pensões pelo Estado. A Previdência e a Assistência Social reduzem a pobreza. Em 2014, apenas 8,76% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda menor ou igual a ½ salário mínimo. Caso não houvesse a Previdência e o BPC, o percentual de idosos pobres aos 75 anos superaria 65% do total. Sem a Previdência e a Assistência Social a pobreza extrema seria muito maior. Em 2014, apenas 0,5% da população de 60 anos ou mais estava em situação de extrema pobreza. Sem a Previdência, o BPC e as pensões, mais de 55% dos idosos viveria em situação de pobreza extrema.

1. A PREVIDÊNCIA SOCIAL EM FACE DA HEGEMONIA LIBERAL E O ESTADO MÍNIMO A partir do final dos anos de 1970, a ideologia neoliberal ganha expressão no cenário internacional. Esse movimento criou condições favoráveis para a ruptura dos compromissos selados nos “anos dourados” de capitalismo regulado. Essa ascensão inicia-se nos anos 1960, quando as teses de Hayek e Milton Friedman e de tantos outros começaram a ganhar espaço nas universidades norte-americanas. O decisivo da passagem da teoria para a prática ocorreu com a chegada ao poder das forças liberal-conservadoras, a partir da vitória eleitoral de Thatcher (Reino Unido, 1979), Reagan (EUA, 1980) e Kohl (Alemanha, 1982). No plano econômico, a estratégia de ajustamento imposta aos países subdesenvolvidos era complementada pela adoção de um conjunto de reformas liberais do Estado, voltadas para a liberação financeira e comercial, desregulação dos mercados, privatização das empresas estatais e mitigação da influência dos Estados Nacionais. No campo político, o capitalismo minou as bases da democracia liberal representativa, ocorrendo uma ampla submissão da sociedade civil e do Estado à economia. O “ataque” aos sindicatos e aos direitos trabalhistas foi um dos núcleos da ofensiva dos mercados. A revanche dos mercados voltou-se ainda contra o Estado de Bem-estar, atacado em favor do ideário do Estado Mínimo, que representa a negação daquele: focalização


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versus universalização; assistência versus direitos; seguro social versus seguridade social; mercantilização versus serviços públicos; contratos flexíveis versus direitos trabalhistas e sindicais. Neste cenário, procurou-se impor a focalização “nos mais pobres” como a única política social possível. Poucos percebem a funcionalidade desses programas para o ajuste macroeconômico, pois são relativamente mais baratos (0,5% do PIB) que políticas universais (Previdência Social, por exemplo, 8% do PIB). A tática ideológica enaltece as supostas virtudes desses programas, que visavam pavimentar o caminho para as reformas que desconstruíssem as políticas universais. Além do ajuste fiscal, a estratégia abre as portas para a privatização dos serviços. Ao Estado cabe somente cuidar dos “pobres” (aqueles que recebem até dois dólares por dia). Os que estão “acima” dessa arbitrária “linha de pobreza” (a “nova” classe média?), precisam buscar no mercado privado os serviços sociais que necessitam. O Chile foi o laboratório do paradigma liberalizante para os países subdesenvolvidos. Com base na experiência chilena, no início da década de 1990, a privatização foi imposta para setores essenciais como previdência, saúde, saneamento e transporte público. Em alguns países (como o Chile), a educação também foi privatizada. No Brasil, a redemocratização e as reformas da proteção social coincidiram com o esgotamento do “Estado Nacional Desenvolvimentista”. Este cenário abriu brechas para que se formasse “o grande consenso favorável às políticas de ajuste e às reformas propugnadas pelo Consenso de Washington”4 ( No campo econômico, houve uma opção “passiva” pelo modelo liberal, ou seja, as elites dirigentes foram conquistadas pela convicção de que “não há outro caminho possível”. As bases materiais e financeiras do Estado foram destruídas em consequência das privatizações, do baixo crescimento, dos juros elevados e do endividamento crescente. A selvagem abertura financeira e comercial expôs a indústria à competição desigual, que provocou internacionalização e destruição das cadeias produtivas de setores estratégicos. No campo da cidadania social, os valores do Estado de Bem-estar, inscritos na Carta de 1988, eram incompatíveis com a agenda do Estado Mínimo. A conservação do status quo social passava a exigir a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social”. A previdência e a Seguridade social foi um dos focos privilegiados dessa investida. A Desvinculação de Receitas da União (DRU), criada em 1993, capturou recursos constitucionais asseguradas ao setor. As isenções fiscais concedidas para grupos econômicos e de famílias de alta renda também minaram essas bases financeiras. Recursos da Seguridade Social também têm sido aplicados em outras finalidades não previstas pela Constituição.

Os governos optaram por descumprir princípios fundamentais da organização e do orçamento da seguridade social e dos mecanismos que asseguram o controle social sobre os rumos das políticas de saúde, previdência e assistência social:

4. FIORI, J. L. (1993). Ajuste, transición y gobernabilidad: el enigma brasilero, mar. Washington: BID, mimeo.


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O poder público não organizou a Seguridade Social, como rezam os artigos 165, 194, 195 da Constituição (e o artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). O Executivo jamais apresentou e executou o Orçamento da Seguridade Social (art. 195) rigorosamente como reza a Carta Magna. O Executivo jamais instituiu o Conselho Nacional da Seguridade Social, mecanismo de controle social previsto no art. 194. Desde 1989, o Ministério da Previdência não considera a previdência como parte Seguridade Social. Interpreta que as contribuições dos empregadores e trabalhadores urbanos devem ser suficientes para custear os benefícios previdenciários urbanos e rurais. Nenhum centavo da Contribuição Sobre o Lucro Liquido (CSLL) e da Constribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), criadas em 1988 para financiar a Seguridade Social (artigo 195 da CF) sãp contabilizados como receita da Previdência Social. Com a globalização financeira nas últimas décadas, a desigualdade de renda tem aumentado continuamente na maioria das economias avançadas e nas principais economias de mercados emergentes, especialmente na Ásia e no Leste Europeu. Estudo realizado pela a OXFAM revela que os recursos acumulados pelo o 1% mais rico do planeta subiram de 44% do total de recursos mundiais em 2009 para 48% em 2014. Recentemente, os alertas sobre a “explosão da desigualdade” passaram a influenciar até mesmo organismos como o Banco Mundial e o FMI. A criação de uma sociedade mais igualitária requer que a gestão macroeconômica crie um ambiente favorável para a redução contínua da desigualdade, como objetivo de longo prazo. Não obstante, o arcabouço institucional adotado pelos organismos internacionais desde os anos 1990, consubstanciado no chamado tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superavit fiscal e regime de metas de inflação) vai na contramão desse propósito e tem por objetivo maior preservar a riqueza financeira. Posicionamento recente do próprio FMI reconhece os erros das políticas de “austeridade” receitadas para enfrentar a crise da Europa. Após a crise de 2008, esse “estado da arte” da teoria monetária entre os economistas da ordem passou a ser revisto. A própria ortodoxia internacional já o trata como o “velho consenso”. A revisão vem sendo implantada por diversos países antes mesmo da crise internacional. Já no Brasil, a radicalização do projeto liberal a partir do golpe de 2016 (OK), derrotado nas últimas quatro eleições, representa uma oportunidade para que os detentores da riqueza concluam um serviço iniciado há trinta anos. O propósito é levar ao extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990. A ideia é “privatizar tudo o que for possível”, tanto na infraestrutura econômica quanto na infraestrutura social. Está em curso o reforço extremo das políticas de “austeridade” e da arquitetura institucional do “tripé” macroeconômico.


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Outro propósito é a destruição do Estado Social e a implantação do Estado Mínimo Liberal. Os porta-vozes do mercado argumentam que a crise fiscal decorre da trajetória “insustentável” de aumento dos gastos públicos desde 1993, por conta dos direitos sociais consagradas pela Carta de 1988. Para essa corrente, “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”. Este processo de destruição do Estado Social pela asfixia financeira está sendo encenado, em seis atos principais: A ampliação da desvinculação constitucional de recursos para o gasto social (ampliação de 20% para 30% do percentual de impostos da Desvinculação de Receitas da União); O “Novo Regime Fiscal” (PEC 55) cria, por 20 anos, um teto para crescimento das despesas vinculado à inflação, com o propósito de reduzir a despesa primária do governo federal de cerca de 20% para 12% do PIB entre 2017 e 2036, aproximando o Brasil do patamar de gastos realizados por diversos países africanos; Na prática, o “Novo Regime Fiscal” acaba com as vinculações constitucionais de recursos para educação e saúde; A Reforma da Previdência Social que tem por propósito exterminar o direito humano de proteção à velhice; A reforma trabalhista, cujo propósito é fazer com que esses direitos retrocedam ao estágio em que estavam antes da Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943; e, A Reforma Tributária que não corrige a injustiça fiscal e embute ameaças de desmonte das bases de financiamento das políticas sociais conquistadas pela Constituição de 1988.

2. A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O PROJETO NACIONAL DE CARÁTER POPULAR O equilíbrio financeiro da Previdência Social não requer a criação de novos impostos e tributos, no curto prazo. Basta que os artigos 194 e 195 da Constituição de 1988 sejam cumpridos, fato que nunca ocorreu desde 1989. Apenas em 2015, com esse descumprimento deixou-se de contabilizar nas contas da Seguridade Social, como “contribuição do governo”, a arrecadação proveniente da Cofins (R$202 bilhões), da CSLL (R$61 bilhões) e do PIS-Pasep (R$53 bilhões). Nesse mesmo ano, a Seguridade Social também deixou de contar com R$157 bilhões por conta das desonerações tributárias (incluída a isenção da contribuição patronal para a Previdência) e de uma parte dos R$61 bilhões por conta das Desvinculações das Receitas da União (DRU). Dessa forma, o equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo requer, simplesmente, que a Constituição da República seja cumprida no que diz respeito à

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organização da Seguridade Social e ao Orçamento da Seguridade Social. Além disso, é preciso instituir o Conselho Nacional da Seguridade Social, previsto no parágrafo único do artigo 194 da Constituição Federal, jamais implantado. Será preciso também enfrentar a questão do suposto “deficit” pela alteração da forma de contabilização das contas do RGPS considerando, nos termos dos artigos 194 e 195 da Constituição, os recursos da Cofins, da CSLL e parte do PIS/Pasep como contribuição do governo para o financiamento da Previdência. Será preciso, além disto, extinguir a Desvinculação das Receitas da União (DRU), criada em 1994 e renovada continuamente e acabar com as renúncias tributárias que incidem sobre o Orçamento da Seguridade Social. Esses mecanismos subtraem anualmente da Seguridade Social aproximadamente R$60 bilhões e R$160 bilhões, respectivamente. Também será preciso extinguir as desonerações patronais sobre a folha de pagamento e as isenções previdenciárias para entidades filantrópicas, que implicaram subtração de receitas de R$25 bilhões e R$11 bilhões, respectivamente, em 2015. O mesmo se coloca no tocante ao setor de agronegócios que desde 1997 recebeu isenção fiscal e deixou de contribuir para a Previdência Rural (nos últimos oito anos as empresas exportadoras do setor deixaram de recolher aproximadamente R$32 bilhões para a seguridade social). Será preciso ainda alterar a forma de contabilização das renúncias previdenciárias adotada pelo governo que, como mencionado, não considera as essas renúncias fiscais como parte da receita da Previdência Social. Propõe-se a promulgação de legislação específica que inclua a rubrica “transferências da União para compensação de renúncias previdenciárias” como fonte de receita da Previdência Social. A melhoria da fiscalização interna da Previdência Social poderia ampliar consideravelmente a arrecadação. Essa melhoria requer a recriação do Ministério da Previdência Social e, sobretudo, a maior determinação da Receita Federal do Brasil. A fragilidade fiscalizatória é observada pelo fato de que, entre 2011 e 2015, o estoque da Dívida Ativa previdenciária passou de R$185,8 bilhões para R$350,7 bilhões, montante quase quatro vezes maior que o alegado “rombo” da Previdência de R$85 bilhões; e apenas 0,32% do montante total da dívida foram recuperados. A melhoria da fiscalização da Previdência Social, em conjunto com a inspeção do trabalho, também pode reduzir significativamente a sonegação das contribuições previdenciárias. Cerca de R$90 bilhões deixaram de ser arrecadado pela Previdência em 2015 por conta de fraudes praticadas pelos empregadores (vínculo empregatício não reconhecido, sobretudo).


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3. ASPECTOS RELACIONADOS À POLÍTICA MACROECONÔMICA Ao isolar a “crise da previdência” e associá-la exclusivamente ao “excesso” de despesas, deixa-se de considerar as decisões de política macroeconômica que afetam drasticamente as receitas da Previdência e da Seguridade Social. Nesse sentido, há alternativas que passam pela revisão de decisões equivocadas de política macroeconômica. O crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência, pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas. A recessão deprime as receitas e o inverso ocorre com o crescimento. Nesse sentido, o financiamento previdenciário reflete fatores externos ao setor, relacionados à política econômica e ao mercado de trabalho. O equilíbrio não pode depender apenas dos cortes de gastos e regressão de direitos. O crescimento econômico também é requisito para a inclusão dos trabalhadores informais, potencializando as receitas previdenciárias. Em 2014, 37,7% da população ocupada não estava coberta por algum dos regimes de Previdência Social. São quase cinco milhões de trabalhadores que estão fora do sistema, não contribuem para a Previdência e não terão proteção na velhice. O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência também podem ser alcançados pelo reforço da capacidade financeira do Estado obtido pela maior equidade na contribuição das classes de maior renda. A primeira alternativa é reduzir a taxa de juros que transferiu para os detentores da riqueza R$503 bilhões em 2015 (superior ao gasto previdenciário nesse ano). O descolamento do Brasil com o restante do mundo (onde se pratica juros reais negativos) é patente. O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo requer a revisão das desonerações tributárias. Em 2015, o total das desonerações foi de R$282 bilhões (4,9% do PIB). Isso significa que, anualmente, o governo federal todo ano abre mão e deixa de arrecadar cerca de um quarto das suas receitas. É importante sublinhar que mais da metade das renúncias de receita do governo federal (56% do total) são feitas com recursos da Seguridade Social. O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo também requer a realização de reforma tributária. Diversos analistas apontam que a estrutura de tributação é extremamente perversa com os mais pobres e a classe média e benevolente com os mais ricos. Há, portanto, uma ampla gama de medidas que poderiam ser adotadas para ampliar a arrecadação sobre a renda e o patrimônio. Com a reforma tributária que corrija a injustiça fiscal seria possível, simultaneamente, ampliar a arrecadação, retomar o crescimento, preservar o Estado Social e reduzir as desigualdades.

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O ajuste fiscal e o equilíbrio financeiro da Previdência Social também requer o decidido combate à sonegação de impostos. Estudos internacionais apontam que o Brasil é vice-campeão mundial em sonegação de impostos (13,4% do PIB). Análises do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional revelam que a sonegação em 2015 atingiu R$452,9 bilhões, 23,0% da arrecadação tributária e 7,70% do PIB. É um valor que, em 2015, representa mais de quatro vezes o déficit primário da União e mais de cinco vezes o suposto “déficit” da Previdência. Portanto, apenas o enfrentamento da questão dos juros, das desonerações e da sonegação pode viabilizar, para o governo, um espaço para economizar parcela significativa dos cerca de R$1,26 trilhão por ano transferido para as camadas de maior renda, tornando desnecessária a economia de R$67,8 bilhões por ano, que supostamente se obteria com a reforma da Previdência hoje em estudos. O equilíbrio financeiro da Previdência Social no longo prazo, bem como o ajuste fiscal, também requer o decidido empenho do governo no sentido de recuperar o brutal estoque de recursos do cidadão que foram capturados pelos sonegadores de impostos. A frouxidão legal e fiscalizatória no combate à sonegação conduzem ao estoque da Dívida Ativa da União que chega a incríveis R$1,8 trilhão, superando a arrecadação federal de 2015 (R$1,3 trilhão). Estudos revelam que apenas 135 pessoas físicas e jurídicas devem mais de R$370 bilhões ao fisco. O mais grave, é que recuperação desse dinheiro é lenta: somente 1% da dívida é resgatado anualmente. É contraditório que o governo, ao invés de cumprir o seu papel constitucional de cobrar os tributos devidos à sociedade, optou, mais uma vez (dezembro de 2016) por instituir o “Programa de Regularização Tributária”, um novo programa de parcelamento dos débitos em até 96 meses, no padrão “Refis”, para empresas e pessoas físicas que devem impostos que venceram até 30 de novembro de 2016. Na mesma perspectiva, editou a Medida Provisória, permitindo que produtores rurais inscritos em Dívida Ativa da União liquidem o saldo devedor com bônus entre 60% a 95%. Também é digno de nota, que o governo e Congresso articulam perdão de multas e a transferência de bens dos contribuintes a empresas de telefonia que, segundo informa auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União, o valor total pode passar de 100 bilhões de reais. Por fim, a sustentação financeira da Previdência requer, sobretudo, que se enfrentem as profundas inconsistências do regime macroeconômico e fiscal brasileiro. A crônica desigualdade brasileira se reflete até mesmo nas categorias usadas para classificar os gastos do governo. Convencionou-se que o chamado gasto “primário” (que beneficia a maioria da população de menor renda) seria ruim; e que o chamado gasto “nominal” (que beneficia os detentores da riqueza financeira) não teriam qualquer implicação para as contas públicas. Estabeleceu-se que os gastos sociais seriam a raiz do desajuste fiscal brasileiro. E que cortar esses gastos primários seria pré-requisito para a redução dos gastos financeiros.


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Ocorre que a realidade aponta exatamente na direção contrária. O déficit nominal no Brasil mais que triplicou, de 3,0% do PIB em 2013 para 10,3% do PIB em 2015, quase o triplo da média mundial de 3,7% do PIB. Como consequência, a dívida bruta aumentou de 56% do PIB (dezembro de 2013) para 70% do PIB em junho de 2016. Assim, em apenas dois anos e meio, a dívida bruta aumentou 14 pontos percentuais do PIB, o que equivale a quase dois anos de despesas previdenciárias. Esse resultado decorre, fundamentalmente, da conta de juros, que saltou de 4,7% do PIB em 2013 para 8,5% do PIB em 2015. Nesse ano, o déficit nominal cresceu 10.3% pontos percentuais do PIB. O déficit das contas primárias (não financeiras) contribuiu com apenas 1,9 pontos percentuais do PIB nesse acréscimo do déficit nominal. O restante (8,5 pontos percentuais do PIB) decorreu da política de altos juros. Nesse sentido, equilíbrio financeiro da Previdência no longo prazo também depende de que sejam superadas as enormes inconsistências do regime macroeconômico brasileiro. É preciso desatar o nó da gestão macroeconômica, se o verdadeiro objetivo for equacionar os problemas fiscais. A ideia que se disseminou no Brasil, de que ao governo só compete controlar os gastos primários, não havendo nenhum limite para os custos financeiros, deve ser revista, para não ficarmos eternamente transferindo riqueza pública para os detentores da riqueza privada.

4. FORÇAS POPULARES E ENERGIAS SOCIAIS TRANSFORMADORAS E CRIADORAS QUE DEVEMOS MOBILIZAR PARA VIABILIZAR A REALIZAÇÃO DO PROJETO NESSA ÁREA A crise do Estado Nacional Desenvolvimentista nos anos de 1980 encerra um ciclo iniciado na década dos 30, no qual o Estado cumpriu as tarefas fundamentais num país de industrialização tardia. O caso brasileiro é considerado um dos mais bem-sucedidos de realização do projeto latino-americano de desenvolvimento nacional, nos termos defendidos pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). Nesta etapa, havia esforços do campo progressista na formulação de um projeto de país que enfrentasse e superasse o subdesenvolvimento em suas diversas dimensões. Em meados do Século XX, essas ações concentraram-se na transição da economia primária-exportadora para a “industrialização pesada”. Em linha com os propósitos da CEPAL, destacam-se os esforços de Celso Furtado em torno das chamadas “Reformas de Base” (Plano Trienal, 1963/65). Nos anos de 1970, o próprio regime militar (1964/85) empreendeu medidas no sentido de adequar a estrutura produtiva à realidade da 3ª Revolução Industrial (II Plano Nacional de Desenvolvimento, 1975/79). A última iniciativa consistente neste sentido ocorreu em 1982 com o documento “Esperança e Mudança”, elaborado pelo MDB.

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FRAGMENTAÇÃO DA LUTA POLÍTICA A redemocratização do país nos anos de 1980 abriu espaço para a emergência dos movimentos sociais. Entretanto, esse fato extremamente positivo teve como elemento colateral adverso o crescente abandono da visão mais ampla relacionada à superação do subdesenvolvimento político, econômico e social. Na ausência da ação mobilizadora dos partidos, observa-se a fragmentação das pautas em torno de questões setoriais específicas. Em geral, perdeu-se a perspectiva de que pouco poderá ser feito em termos setoriais na ausência de um projeto de transformação. A interdição do debate sobre o desenvolvimento não ocorreu, evidentemente, devido unicamente à fragmentação dos movimentos sociais (que, como se sabe, tem por natureza tratar de temas também setoriais ou específicos).

ETAPA ATUAL DA CONCORRÊNCIA CAPITALISTA O fator determinante é que esse processo ocorreu simultaneamente a hegemonia da concorrência capitalista desregulada sob o comando do capital financeiro e da ideologia neoliberal que mitigou o papel da democracia na representação dos interesses gerais da sociedade; esvaziou a esfera pública ante os valores do individualismo e da meritocracia; enfraqueceu os Estados Nacionais que perderam a capacidade de coordenar projetos de transformação. Forjaram-se cultura e ideologia retrógradas em relação ao desenvolvimento. Em síntese, em função desses fatores, a fragmentação da luta política do campo progressista tem prevalecido ante o debate de temas estruturais. “Os partidos estão desengonçados, os movimentos sociais fracionados, os sindicatos aquém do espaço que lhes cabe”, alerta a professora Maria da Conceição Tavares5. Com raras exceções, perdeu-se a perspectiva de que o encaminhamento de muitas dessas pautas segmentadas depende de que sejam superados constrangimentos estruturais políticos, econômicos e sociais pensados na ótica de um novo projeto de transformação.

5. Maria da Conceição Tavares. “Resistir para avançar. O resto é arrocho”. Entrevista a Saul Leblon, Carta Maior, 11/06/2014. http:// www.cartamaior.com.br/?/Editorial/ Maria-da-Conceicao-Tavares-Resistirpara-avancar/31125

Nunca é demais repetir que cada ponto percentual de aumento da taxa de juros básicos da economia é uma meta a menos do Plano Nacional de Educação que deixará de ser cumprida; que não se fará reforma agrária no Brasil sem que as mazelas do sistema político e da mercantilização do voto sejam enfrentados – como evidenciadas na eleição da bancada do agronegócio com mais de duas centenas de representantes; que, em apenas um dia, os direitos trabalhistas e sindicais conquistados no Século XX foram destruídos sem que houvesse mobilização, à altura da gravidade da situação, por parte dos diversos movimentos sociais, enredados em seus labirintos específicos e tópicos; e, que as Reformas Previdenciária e Tributária, que tramitam no Congresso Nacional, não enfrentem a oposição ferrenha desses movimentos, mesmo que essas reformas representem o ultimo suspiro do Estado Social conquistado em 1988 e aperfeiçoados posteriormente.


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DESAFIOS PARA O SÉCULO XX A diversidade e a complexidade dos temas estruturais a serem enfrentados pressupõem a formulação de uma agenda de transformação. No Brasil do Século XXI, a formulação de um projeto dessa natureza coloca novos desafios ao pensamento estruturalista. É preciso que também se enfrentem as múltiplas faces da desigualdade social brasileira. Isso requer, necessariamente, o resgate da democracia e da política, o reforço do papel do Estado e a gestão macroeconômica voltada para esse objetivo. Nesse cenário os movimentos sociais, sindicatos e partidos progressistas são as forças populares e energias sociais transformadoras e criadoras que devemos mobilizar para viabilizar a realização do projeto nessa área. Entretanto, para isso, será preciso um esforço no sentido de que essas instituições deixem de restringir o seu campo de atuação as suas respectivas “caixas” setoriais específicas e passem a ampliar a sua atuação e mobilização política em torno de uma pauta mais ampla proporcionada por um projeto de país.

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