REVISTA No 7 - JUL/AGO 2020 ISSN: 2526-4354
A CIDADE PÓS-PANDEMIA MUSEUS E ARTISTAS SE REINVENTAM ENTREVISTA COM EDYR PROENÇA
NO ENSAIO FOTOGRÁFICO, O OLHAR NA QUARENTENA
FOTO: PAULA SAMPAIO
CRÔNICA INÉDITA DE MONIQUE MALCHER
PROJETO CIRCULAR
SUMÁRIO
MUSEUS, ESPAÇOS VIVOS ...................................................................................................................................................
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FLUXOS URBANOS NA PÓS-PANDEMIA ...........................................................................................................................
A ARTE NO AMBIENTE VIRTUAL ........................................................................................................................................ ENTREVISTA - A BELÉM DE EDYR AUGUSTO PROENÇA ........................................................................................... CRÔNICA - ACEROLAS TRISTES DE APARTAMENTO, POR MONIQUE MALCHER .............................................. FOTOGRAFIA - ENSAIO À LUZ DA QUARENTENA .......................................................................................................
O NOVO NORMAL
O
brasileiro costuma dizer que o ano no Brasil só inicia depois do Carnaval. Partindo deste princípio, e parafraseando um livro de Zuenir Ventura, 2020 poderia entrar para a história como o ano que não começou, já que por causa da pandemia do novo coronavírus, várias coisas precisaram ser canceladas por promover aglomerações. No meio cultural, programações e festividades foram suspensas, mas vários projetos mostram que há caminhos a seguir e se reinventaram, adaptando suas ações para a plataforma digital. O Circular Campina Cidade Velha, como um projeto que chama explicitamente as pessoas para a rua, precisou mudar completamente, até mesmo sua filosofia de ocupação em espaços públicos. A 30ª edição, em abril, e a 31ª, em junho, foram realizadas em ambiente virtual, em nossas redes sociais, onde todos os conteúdos que foram exibidos, permanecem à sua disposição. Outro fenômeno que vivenciamos foram as lives. Em pouco tempo elas tornaram-se rotina em nossas vidas. O aprendizado da utilização de tecnologia no fazer da arte e da comunicação tende a ser aprimorado por artistas, gestores, jornalistas e outros profissionais atentos a vislumbrar um futuro já tão presente. Por enquanto, a ordem é ficar em casa e esta nova edição da revista Circular digital foi toda produzida a distância, com fotos de arquivo enviadas pelos entrevistados, com quem falamos pelos meios digitais de comunicação. O mundo antes, durante e pós-pandemia é o tema central da publicação. Falamos com os artistas visuais Galvanda Galvão Flavya Mutran e Emmanuel Nassar e com o poeta e designer gráfico André Vallias sobre a arte e as novas plataformas de mercado e criação. As cidades pós-pandemia foram discutidas com Andrea Sanjad (editora), José Júlio Lima, Raul Ventura Neto e Juliano Ximenes Pontes (professores da FAU-UFPA). Falamos ainda com a arquiteta Roberta Rodrigues (FAU-UFPA) e o conselheiro Paulo Afonso dos Santos (da União Nacional por Moradia Popular do Pará), ambos integrantes do CDU. E como será que os museus estão se reinventando? Desde
2018, uma discussão vem aumentando e abrindo as ideias no meio da Museologia, em busca de um museu mais interativo e participativo na vida das pessoas. Este ano, o lema da Semana de Museus foi voltado à igualdade, à diversidade e à inclusão. O que fica dos debates e discussões acerca disso diante de uma nova realidade? Nossa reportagem também conversou com o professor do curso na UFPA, Tadeu Costa; com Maria Emília Sales, coordenadora de Comunicação e Extensão do Museu Emílio Goeldi, com a diretora do MEP, a historiadora Cássia da Rosa; com o diretor do SIM, o artista plástico e professor Armando Sobral; e com Janice Lima, professora e doutoranda de Artes e Comunicação. Você também vai conferir um papo descontraído com o escritor Edyr Proença, que narra como ninguém uma Belém, às vezes, invisível. Como ele encontra seus personagens e lida com eles no dia a dia da escrita? O autor do recém-lançado “BelHell” contabiliza na carreira, prêmios e aplausos da crítica. Dois de seus livros serão adaptados para o cinema. Outros já foram publicados na França. A literatura também se destaca nesta edição, com a crônica inédita de Monique Malcher, escritora paraense que acaba de lançar seu primeiro livro de crônicas, “Flor de gume”, e que vem encantando as páginas literárias da imprensa no Brasil. Por fim, trouxemos num ensaio fotográfico especial, as imagens captadas pela retina de quem passou a ver o mundo através da janela, seja de casa, do celular ou do computador. Jorane Castro, Izabela Leal, Lázaro Magalhães, Hellen Pompeu, Andrea Sanjad e Paula Sampaio nos brindam com retratos da vida e da natureza em meio à pandemia. Espero que vocês curtam a revista, divulguem, compartilhem e enviem suas sugestões, tendo como foco a arte, o patrimônio e suas transversalidades com temas do meio ambiente, sustentabilidade, política pública e cidadania. Luciana Medeiros Editora circularcomunica@gmail.com
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PROJETO CIRCULAR
MUSEU, ESPAÇO VIVO UNIVERSO DE CONHECIMENTO SOBRE O HOMEM E O SEU ENTORNO A SERVIÇO DA SOCIEDADE E DE SEU DESENVOLVIMENTO, OS MUSEUS VÊM, AO LONGO DOS ÚLTIMOS ANOS, PASSANDO POR UMA GRANDE TRANSFORMAÇÃO. Por NATÁLIA MELLO Fotos: CEDIDAS PELOS MUSEUS
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otimização dos fluxos informacionais no mundo e o importante apelo ao reconhecimento de povos e culturas tradicionais a fim de incluir e garantir não só a representatividade global, mas a individual de cada segmento social, tem sido um desafio ainda maior na era da revolução digital. Intramuros universitários, cursos, palestras, seminários, oficinas, visitas guiadas, rodas de conversas, são algumas das atividades desenvolvidas para atingir esse fim. Promovidas pelo curso de Museologia desde 2009, quando a Universidade Federal do Pará (UFPA) teve sua primeira turma dessa graduação, as atividades são, normalmente, oriundas de projetos de pesquisa e extensão. Essa atmosfera de imersão em um mundo científico é semeada ao longo do ano na UFPA, não somente durante a Semana dos Museus, que em 2020 teve como tema “Museus para a igualdade: diversidade e inclusão”. A programação é realizada desde 2003, sempre em maio, mês em que se comemora o Dia Internacional dos Museus (18). Na Universidade, ela é realizada para que exista um “diálogo permanente do Curso de Museologia da UFPA com o IBRAM, o ICOM,
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museus, grupos sociais e outras instituições para alinhar práticas pedagógicas às práticas museológicas capazes de oportunizar à sociedade um entendimento mais abrangente da ideia de museu e, sobretudo, capacitar egressos do curso para que em seu fazer museológico possam, de fato, atender às demandas sociais, especialmente as da região amazônica”, detalhou o professor do curso na UFPA, Tadeu Costa. Por ser a única graduação de Museologia da Região Norte do país, se faz ainda mais necessário seu protagonismo no que diz respeito às ações de potencialização dessa discussão sobre igualdade, diversidade e inclusão. Por isso, iniciativas mais horizontais na vida em sociedade são como linhas que dão forma ao desenho curricular da graduação. “São temas que estão no alicerce constitutivo desse importante pedaço de Brasil. A Amazônia é um território muito vasto e plural. São muitas Amazônias existentes e que devem ser consideradas”, analisa Tadeu, adicionando que o curso busca atuar “propondo disciplinas que possam discutir e aprofundar questões que corroborem para a formação do futuro profissional da Museologia, sempre com ênfase na Amazônia”, afirmou o docente. Para Tadeu, a representatividade é um dos grandes desafios para os museus no século XXI, em especial, os museus “clássicos”, “tradicionais” ou “normativos”, com alguns acervos e coleções sendo frutos de espólio, saques e lutas entre povos. “A história dos museus, sobretudo no Ocidente, é pautada na relação de poder, marcada por confrontos e conflitos”, lembra. Por isso, o professor universitário questiona: como o museu reapresenta esse acervo? E pondera: reordenar o discurso e reestruturar as narrativas com a sociedade passam por uma transformação entre emissor e receptor de informação – museu e público –, quando “não cabe mais simplesmente expor objetos, conforme critérios de segurança para mera contemplação do público. Não basta seguir critérios técnicos rigorosos de salvaguarda, se o objeto não pode sair da reserva técnica do museu e não pode ser visto pelo público. Não basta fazer uma exposição espetacular, com enorme sucesso de público, se quem está representado na exposição não tem acesso ao museu, ou seja, essas e tantas outras narrativas precisam ser revistas/repensadas”, pontua Tadeu. Para além dos museus tradicionais, Costa ressalta a já existência de outros tipos de museus,
pautados em ações participativas, colaborativas e socializadas. São os “museus de base comunitária”, criados em comunidades, bairros, até chamados de museu de sociedade ou de território, e também de ecomuseus. “São tipos de museus da chamada Nova Museologia que, sobretudo, desde a década de 70 do século XX, vem fazendo um trabalho social que vai muito além da representatividade (...). É o caso de museus em comunidades quilombolas, em comunidades indígenas, em comunidades ribeirinhas, em bairros, como o Ponto de Memória da Terra Firme, em Belém, e o Ecomuseu da Amazônia, que corresponde às áreas de Icoaraci, Caratateua [Outeiro], Cotijuba e Mosqueiro”, enumera, destacando que nesses museus, mais do que trabalhar a representatividade, trabalha-se pela legitimação do patrimônio material, imaterial e natural, a partir das histórias, memórias, saberes e fazeres dessa gente com o espaço que ocupa.
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), órgão sucessor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DEMU-IPHAN) Conselho Internacional de Museus (ICOM)
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MUSEU GOELDI RESSIGNIFICA A ACESSIBILIDADE Fundado em 1866, o Museu Paraense Emílio Goeldi chega aos seus 154 anos ressignificando muito do que foi praticado nesse mais de um século e meio de funcionamento. Falar de inclusão em tempos de pandemia, por exemplo, é buscar conversar não somente com um público que possui alguma necessidade especial para acessar a ciência produzida pela instituição para a sociedade, mas sim tornar esses conteúdos acessíveis a todos. Em sua maioria, com a oferta de atividades presenciais, muito por ser sede de uma pequena mostra da Amazônia em seu espaço em plena Avenida Magalhães Barata, centro de Belém, o time de pesquisadores e colaboradores do espaço passou a trabalhar para se reinventar nesse novo contexto de normal. “Utilizamos o parque como laboratório para o público escolar, as nossas exposições são todas presenciais, a gente ainda é muito presencial, o Museu em si, e nós fomos pegos de surpresa. Com isso, tivemos que começar a pensar nesse
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mundo digital para atender também aos nossos visitantes, que estão ávidos. Recebemos mensagens diárias perguntando quando abriremos as portas novamente”, revela Maria Emília Sales, coordenadora de Comunicação e Extensão do Museu Emílio Goeldi. Com página no Facebook, Instagram, Twitter e até Youtube, é preciso ser mais digital. As oficinas e as visitas guiadas, principais atrações do espaço, por exemplo, passam a ser uma promessa de surpresa para os usuários – os pesquisadores seguem trabalhando para encontrar formas de realizar esses passeios de maneira virtual. Quanto ao acervo, o Museu vem tentando colocar o material que dispõe nas plataformas de acervo científico. As obras raras podem ser acessadas no BHL Bio Diversity Heritage Library, um site que contém todas as publicações de referência sobre biodiversidade. “Todas as nossas obras de coleções de obras raras estão nessa base, assim como nossos boletins de ciências naturais. Temos obras de 1800, 1700, algumas em alta resolução”, detalha Bia, como é conhecida por todos no Goeldi.
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Prédio Eduardo Galvão está sendo construído com equipamentos e condições necessárias para que o Museu possa expor o acervo em salas especiais e temperaturas adequadas
Tivemos que começar a pensar nesse mundo digital para atender também aos nossos visitantes, que estão ávidos. Recebemos mensagens diárias perguntando quando abriremos as portas novamente”. — MARIA EMÍLIA SALES
As bases de Etnografia e Arqueologia demandam outro processo, pois como são espécimes, peças, precisam ser digitalizadas em 3D. Sobre a inclusão dos povos nas suas pesquisas, Bia garante que a participação da comunidade é uma prerrogativa, principalmente na área das Ciências Humanas. “As comunidades são participativas não só como objeto da pesquisa, mas como parte integrante da pesquisa, de quem detém aquele conhecimento. A inclusão é uma coisa que sempre temos em mente”. A geóloga, que atua há cerca de dez anos no Museu, reforça: uma das intenções do Goeldi é continuar a fazer a divulgação da ciência produzida intramuros para a sociedade. “Desde o início, o Museu sempre trabalhou nessas duas vertentes, tanto na científica e divulgação, quanto na inclusão. Quanto à igualdade, é um conceito que a gente vem perseguindo”, conclui Bia.
ACERVO DISPONÍVEL Herbário Disponível no Global Plant e no Reflora Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes Disponível em: http://portal.iphan.gov. br/uploads/publicacao/ mapaetnohistorico2ed2017.pdf
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Fundamental na construção de uma política de acessibilidade e representatividade dos povos paraenses, o Sistema Integrado de Museus e Memoriais (SIM) enxerga a questão de evidenciar nossa diversidade por duas lentes: faltam museus com representatividade das culturas originárias ou os que representam essas culturas não se veem legitimados nas narrativas evidenciadas nos museus? “Há, de fato, a ausência de um museu com perfil específico que contemple nossas culturas originárias, ainda que o Goeldi tenha excelência no campo dos estudos em Etnografia e um acervo grandioso e procure diversificar suas mostras no espaço da Rocinha” (...). Quanto ao segundo enfoque, temos consciência das narrativas cansadas que nossos espaços promovem e que podem ser reestruturadas”, avalia o diretor do SIM, o artista plástico e professor Armando Sobral. No âmbito estadual, o SIM, pertencente à Secretaria de Estado de Cultura (Secult), é responsável por algumas das principais unidades museológicas de Belém – Museu de Arte Sacra (MAS), Museu de Gemas (Espaço São José Liberto), Casa das 11 Janelas, Forte do Presépio, Museu do Círio, Museu da Imagem e do Som, Museu do Estado do Pará (MEP), Memorial da Navegação e Memorial do Porto. Uma das iniciativas que deve contemplar esse cenário de representatividade dos povos amazônidas é o Museu dos Povos Originários da Amazônia, localizado na Casa da Mata, no Utinga. Armando lembra que, assim como outros projetos, esse foi um afetado pela pandemia – sua inauguração, prevista para este ano de 2020, foi adiada, em função dos investimentos precisarem ser redirecionados à saúde. “Existe a consciência de que devemos urgentemente rever as curadorias das exposições permanentes (...). Nossa meta em um futuro próximo é proporcionar espaços mais dinâmicos e representativos para a comunidade”, projeta o diretor, destacando a atuação do Museu do Marajó, que integra hoje o SIM, além dos museus de Monte Alegre e de Parauapebas. “O museu, enquanto ideia, nos permite refletir e gerar ações afirmativas nas próprias comunidades, e não expropriá-las na forma de vitrines expositivas”. O artista plástico e professor não acredita em um retorno à atmosfera social de antes. Para ele,
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FOTO: LENO MARTINS
CULTURAS ORIGINÁRIAS, REPRESENTAÇÃO E LEGITIMIDADE
Temos consciência das narrativas cansadas que nossos espaços promovem e que podem ser reestruturadas.” — ARMANDO SOBRAL, DIRETOR DO SIM
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Se faz necessário rever sua expografia e promover debates constantes.” — CÁSSIA DA ROSA, DIRETORA DO MEP
o novo conceito de normal é uma incógnita pra todos, mas ele também vê o momento como uma possibilidade de transformação. “O tempo é de revisão, nosso conhecimento passado, épocas e comportamentos, atitudes”, reflete. E a mudança já começou: a programação de palestras e debates da Semana dos Museus deste ano foi substituída por um formato de lives e seminários gravados que foram postados nas redes sociais da Secult. Nesta edição, Armando destaca a inclusão da proposta “Museu é Ideia”, para pensar o museu como território além dos modelos tradicionais. “Tal perspectiva nos permitiu incluir ecomuseus, quilombolas, comunidades indígenas e ribeirinhas, paisagens culturais e naturais no âmbito dos debates propostos”.
INICIATIVAS ESTADUAIS: Gratuidade para idosos e portadores de necessidades especiais, estudantes e professores. Portaria 051 – 2o domingo do mês ocorre o Domingo da Acessibilidade e Inclusão, quando os equipamentos do SIM contam com a presença de intérpretes de Libras, bem como audiodescrição nas exposições permanentes, além de estender o regime de gratuidade.
MEP BUSCA NOVAS ESTRATÉGIAS Enquanto Museu do Estado do Pará (MEP), onde as obras de artistas contemporâneos ganham vida por entre os corredores do emblemático Palácio Lauro Sodré, ele é um dos prin-
cipais canais de dissociação das políticas desenvolvidas pelo SIM. Embora se vislumbre um caminhar em direção a uma maior democratização de conteúdos divulgados nesses espaços e sua ocupação por parte de um público mais diverso, a direção do Museu reconhece a falta de diversidade nos acervos da instituição e, em consequência disso, a falta de voz a alguns discursos. “Por isso, se faz necessário rever sua expografia e promover debates constantes”, declara a diretora do MEP, Cássia da Rosa, que reforça: desde 2019, o Museu está viabilizando uma melhor adequação dos museus do SIM, para que possam se apresentar como museus livres de barreiras físicas, sensoriais, intelectuais e atitudinais. Com a chegada súbita da pandemia, Cássia diz que também foi preciso se reinventar e traçar novas estratégias de reaproximação do público, sobretudo no ambiente virtual. A instituição produziu, até o momento, um vídeo sobre a preservação do patrimônio arqueológico, exibido, inclusive, durante a primeira edição do Circular Digital, realizada em abril. Além disso, o Museu deve produzir novos vídeos de divulgação dos acervos, dentro do Projeto do Sistema Integrado de Museus, denominado “Bora pro Museu”.
MEMÓRIA E ARTE CONTEMPORÂNEA Na capital, o Museu de Arte de Belém (Mabe) abriga mais de 1.500 obras de um acervo considerado contemporâneo. Pinturas, esculturas, gravuras, fotos, desenhos e outros arquétipos de artistas locais, nacionais e estrangeiros narram, em uma perspectiva atemporal e por meio de uma experiência em grande parte visual, o período áureo da borracha vivenciado na cidade especialmente no início do século XX. O prédio que abriga o Museu foi construído na segunda metade do século XX para ser sede da Prefeitura Municipal, e é tombado pelo poder público nas instâncias federal, estadual e
municipal. Segundo a direção do espaço, devido à obra de restauração iniciada antes da pandemia do coronavírus “chegar” a Belém, o Mabe já vinha se reinventando. Com a necessidade de fechar as portas, o trabalho de pesquisa, inventário e elaboração de projetos para reabertura após a reforma foi intensificado. “A obra prevê a ampliação do museu dentro do palácio, que ganha mais salas de exposição e aumento e adequação da reserva técnica. Além disso, inclui um projeto de acessibilidade física (...). Intensificamos também a alimentação da plataforma digital que ampliará o público virtual do museu”, detalha Janice Lima, diretora do Mabe. Na entrevista com a reportagem do Circular, a também professora e doutoranda de Artes e Comunicação, propõe uma reflexão importante sobre a abrangência das desigualdades que dão forma ao patchwork que é esse tecido social. “Ao usar o termo “diversidade” sem especificar que diversidade é essa, tanto o ICOM quanto o IBRAM deixam implícito que podemos presumir que se trata dos diferentes códigos, grupos étnicos, crenças, classes, gêneros, dentre outros, presentes em uma nação, e ao mesmo tempo, que estes dialogam com os códigos culturais de outras nações ou países. Entretanto, (...) eles propõem que os museus alcancem a igualdade, observando a diversidade e realizando a inclusão dos excluídos”, explica. Dito isso, a diretora reforça: na capital vem sendo feito um trabalho de valorização da representatividade, que já pode ser conferido pelo público, como é o caso da exposição das pinturas do artista indígena Feliciano Lana e das cerâmicas produzidas em Icoaraci, que replicam cerâmicas arqueológicas originárias de povos indígenas extintos da Amazônia, além da fotografia de diversos fotógrafos que revelam as desigualdades sociais presentes na região. É dessa ocupação que Tadeu fala. Os povos amazônidas precisam se apropriar desses espaços para legitimar sua representação. Para equilibrar essa balança, o professor da UFPA sugere até mesmo a revisão do quadro de funcionários dos museus, para inclusão de pessoas de diferentes grupos sociais. “Ter uma equipe de profissionais mais diversa, mais horizontal, o que certamente vai favorecer o diálogo entre o museu e a sociedade. Essas medidas são necessárias para que se tornem frequentes as práticas de inclusão e acessibilidade de público nesse tipo de museu”, enfatiza. n
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FLUXOS URBANOS NA PÓS-PANDEMIA O FUTURO DAS CIDADES NO PÓS-PANDEMIA É UMA DAS QUESTÕES MAIS DISCUTIDAS HOJE PELOS ESPECIALISTAS EM ARQUITETURA E URBANISMO EM TODO O MUNDO.
Por WANDERSON LOBATO Fotos CLAUDIO FERREIRA E OTAVIO HENRIQUES
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epois de mais de quatro meses do anúncio do primeiro caso registrado de paciente com a covid19 no país, as cidades brasileiras começam novamente a voltar às ruas. E mesmo neste período de quase normalidade, novas condutas para frequentar espaços públicos apontam que nossa relação com a cidade não será a mesma daqui para frente, mesmo depois que a pandemia passar com a descoberta de uma vacina. “Toda vez que um acontecimento dessa ordem, que é natural e, ao mesmo tempo, é tão real, e que nos chama pra vida, a gente tende a pensar melhor algumas coisas”, reflete a editora Andrea Sanjad. De fato, a pandemia têm nos feito pensar sobre o modelo de desenvolvimento das nossas cidades. Ficou visível para todos o quanto vivemos em uma sociedade desigual, em que para uns é possível seguir em isolamento, trabalhando em casa, e para muitos, não há alternativa a não ser sair para o trabalho, o que significa se expor aos mesmos problemas de falta de infraestrutura urbana, como a de transporte, e que agora potencializam o contágio. “O que nós estamos vendo é a fragilidade de nossa forma de vida, de nossas escolhas. A cidade é o nosso corpo. Aqui como a gente habita, de acordo com a organização que a gente estabelece, a cidade reflete essa organização ou reflete a nossa omissão”, completa Sanjad. Com uma população de quase 1,5 milhão de habitantes, Belém vive grandes contradições que refletem o modelo de desenvolvimento da cidade nas últimas décadas. Apesar de estarmos na região da maior floresta tropical do mundo, apenas 22.3% dos domicílios possuem arborização. Além disso, mais de 60% das residências em Belém não possuem urbanização adequada, como a presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio, atestam dados do IBGE (2010).
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PENSAR NA CIDADE NA PÓS-PANDEMIA É imprescindível encarar esta realidade. Na verdade, as cidades que existem dentro da cidade. Como exemplo, podemos citar a preocupação para que os espaços públicos sejam mais amplos, as calçadas mais largas e as ruas com mais ciclofaixas. Um padrão de urbanização que já existe para uma parcela da população. Mas existe a outra cidade, que não possui as condições básicas de infraestrutura e nem retaguarda de política pública capaz de fazer frente à situação que vivemos hoje. “Não quer dizer que o pós-pandemia também não sirva para que políticas públicas sejam retomadas, obras paradas sejam concluídas, além de uma espécie de uma nova concepção dos novos projetos. É aí que as lições da cidade formal são importantes para tratar desta outra parte da cidade”, afirma José Júlio Lima, professor e coordenador do programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-UFPA). Trabalhando em casa, fazendo orientações de mestrado e de doutorado e trabalhos de conclusão de curso, além de participar de reuniões virtuais da FAU, ele chama a atenção para outro ponto que também ficou evidente neste período de home office: a inclusão digital. “Isso é uma questão importante aqui na Região Norte. Municípios inteiros que não tem internet de qualidade. A cidade no pós-pandemia vai depender muito desse sistema”, lembra o professor.
INVESTIMENTOS E PLANEJAMENTO Realmente, com a maioria dos municípios mais pobres do país, a Região Norte carrega ainda mais dificuldades para promover intervenções de fôlego que são necessárias para as áreas precárias da cidade. Raul Ventura Neto, professor da FAU-UFPA, lembra que a repartição tributária é muito injusta para o município, que acaba não tendo capacidade de investimento com recursos próprios. Aqui no Pará, o governo do estado também é afetado, principalmente pela Lei Kandir, que isenta a cobrança de ICMS em produtos de exportação, prejudicando profundamente a arrecadação no estado. “Isso significa que a gente depende muito dos repasses do governo federal. O município que é mais afetado nesse sentido. Se as obras de urbanização de áreas precárias não tiverem aporte do governo federal, o município não pode fazer muita coisa”.
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Ventura Neto ainda lembra que, em Belém, nas últimas quatro gestões municipais, o pouco que se teve para fazer políticas de urbanização e algum nível de planejamento urbano foram mal aproveitados. Nesse cenário, pensar na eleição de novos integrantes do Legislativo e Executivo municipal, que acontece este ano pode trazer alguma esperança para mudanças, mas “a depender do tamanho do problema daqui pra frente, infelizmente, mesmo no contexto do próximo prefeito, ele também vai tá saindo com “pires na mão” pedindo ajuda do governo federal. Se o governo federal estiver tratando isso como gripezinha, infelizmente, a gente vai estar num cenário muito sério”.
TENDÊNCIAS DE CONSUMO Mesmo preocupado com “o exercício de futurologia” ao falar da cidade no pós-pandemia
Os planos de urbanização de áreas precárias nunca foram executados. E plano não custa dinheiro, a Prefeitura possui bons técnicos. Não tem vontade política”. — ANDREA SANJAD - EDITORA
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Juliano Ximenes Pontes, professor da FAU-UFPA, chama a atenção para o choque econômico que deve acontecer, provocando mudanças e fortalecendo cadeias de distribuição de logística, que agrega transporte, armazenamento e comunicação. Cita como exemplo a Amazon, empresa de comércio eletrônico transnacional, “que se capitalizou muitíssimo na pandemia”. Resultado de uma tendência do nosso consumo ser intermediado por essas empresas, prescindindo cada vez mais do contato pessoal. “Isso, ao que parece, vai demandar essa logística e traz uma série de complicações, desemprega muita gente, adoece muita gente. Precariza os entregadores, por exemplo, e você acaba, sem querer, reforçando um segmento de trabalhadores vulnerabilizados já hoje”, analisa. Pontes ainda destaca que, a depender do comportamento da pandemia, devemos ter diferentes
tipos de impacto pelo distanciamento das pessoas. Uma delas diz respeito ao turismo, como a virtualização da experiência nos centros históricos. “Recurso interessante, mas ao mesmo tempo traz vários problemas, por exemplo, essa desestruturação dos empreendimentos traz perda de empregos e reforço perigoso à ideia da leitura do patrimônio histórico pela via da imagem reificada. Da imagem pela imagem, a ideia do consumo estritamente formal, um formalismo vazio do patrimônio histórico”. Situação que, inevitavelmente, traz consigo um elitismo, um dos maiores problemas quando se fala em políticas de valorização dos centros históricos. “É a ideia da gentrificação, da expulsão das populações destes locais. Por que é elitista? Porque você não entra em contato com a diversidade de agentes, com as histórias das pessoas, com a cara de caboclos, de indígenas”, completa.
VERDE QUE TE QUERO Outra questão levantada pelo pesquisador é percebida por todos nós, principalmente na época do verão amazônico: a falta de áreas verdes na cidade. “Com uma cidade mais arborizada, você teria uma cidade menos quente, você teria também menos doenças respiratórias, menos doenças dermatológicas. Você teria um corpo menos vulnerável para essa doença e outras. Um momento desse pandêmico oportuniza essa reflexão como a cidade deveria ser”, completa. Talvez perceber que o desenvolvimento desenfreado nos fez chegar onde estamos hoje e que apenas um repensar na forma em como vivemos e nos relacionamos com o meio ambiente nos permitirá uma vida longa e saudável.
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PLANO DIRETOR DE BELÉM Em Belém, desde 2019, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (CDU), formado por representantes da sociedade civil e do poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário), vinha discutindo a revisão do Plano Diretor de Belém. O Plano é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana dos municípios com mais de 20 mil habitantes, criado pelo chamado Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01). Aqui, foi instituído em 2008 com previsão de revisão a cada dez anos, conforme determina a legislação federal. Roberta Rodrigues, professora da FAU-UFPA, é uma das integrantes do Conselho. Ela conta que no início de junho, durante reunião virtual com os conselheiros, apresentou, junto com o Laboratório das Cidades, uma série de medidas de baixo custo que poderiam ser tomadas de imediato pela Prefeitura de Belém para garantir o distanciamento social para quem necessitava sair do isolamento para o trabalho. Ações baseadas na metodologia do chamado Urbanismo Tático, como ciclofaixas temporárias, vias só para pedestres e pontos de acesso à água. “Colocamos isso em discussão, mas parece que não foi uma coisa que eles ficaram interessados”, lamentou. Além disso, por conta de uma certa pressa da Prefeitura de Belém, atropelando a necessária participação popular na revisão do Plano, o Ministério Público do Estado (MPPA) expediu recomendação para a suspensão do processo de revisão enquanto durar o estado de emergência em razão da pandemia. A iniciativa surgiu após a Prefeitura apresentar um cronograma de retomada das atividades de revisão do Plano Diretor, com a previsão de apresentação de minuta final para o Conselho no dia 23 de junho e de finalização do documento para encaminhamento e aprovação da Lei à Câmara Municipal no dia 26 do mesmo mês. “Não seria mais uma revisão, mas sim uma atualização do Plano Diretor. Mas no regimento interno do CDU foram criadas as câmaras técnicas e uma delas é justamente a de revisão do Plano, mas essa questão não tinha sequer passado pela câmara técnica”, completa Paulo Afonso dos
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Não seria mais uma revisão, mas sim uma atualização do Plano Diretor. Mas no regimento interno do CDU foram criadas as câmaras técnicas e uma delas é justamente a de revisão do Plano, mas essa questão não tinha sequer passado pela câmara técnica”. — PAULO AFONSO
Santos, da União Nacional por Moradia Popular do Pará, também integrante do Conselho. Junto com a Associação dos Amigos do Patrimônio de Belém (APBel) e a OAB-PA, as entidades civis entraram com a representação junto ao Ministério Público, que expediu a recomendação, uma vez que “a deliberação e aprovação da proposta de revisão do Plano Diretor não seria antecedida das necessárias discussões com a sociedade civil, quer por meio de consultas, audiências públicas, ou de reuniões com a comunidade”, destaca o MPPA. n
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A ARTE NO AMBIENTE VIRTUAL A ARTE E A CULTURA DIGITAL JÁ FLERTAM HÁ ALGUM TEMPO, MAS A PROLIFERAÇÃO DE UM VÍRUS ALTAMENTE CONTAGIOSO TRANSFORMOU AS RELAÇÕES DE FORMA IRREVERSÍVEL.
Por NATÁLIA MELLO Fotos: CEDIDAS PELOS ARTISTAS
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o Pará, alguns artistas começam a experimentar a linguagem digital no final dos anos 1990, mas é nos anos 2000 que ela se destaca. O Salão Xumucuís de Arte Digital demonstra bem esse movimento da produção artística paraense. Em três edições, realizadas em 2011, 2013 e 2014, o evento reuniu dezenas de artistas do estado e de outras regiões do país – cerca de 80, propondo um novo conceito de interação com a arte, em que “as produções contemporâneas transcendem o espaço expositivo convencional e se integram e transformam o cotidiano”. Acontece que mesmo para os artistas que enveredaram por esse caminho, o processo de virtualidade foi potencializado com a reclusão, propensa para a criação e descoberta de novas possibilidades, seja na área da gestão pública, educacional quanto na produção artística. “Certamente isso está atuando na mudança de comportamento no meio institucional das artes: museus, galerias, escolas, etc.”, diz o poeta e designer gráfico, André Vallias, um dos primeiros a trabalhar com a chamada poesia digital nos anos 1990 e um dos primeiros criadores de sites de cultura, no Brasil, na mesma época.
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Grande parte do trabalho é o seu conceito. Quem compra ou experimenta ele presencialmente está levando uma espécie de souvenir do conceito, uma prova de vida talvez”. — ANDRÉ VALLIAS
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FOTO: BEL PEDROSA
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FOTO: CHRISTINA RUFATTO
O campo é de mais dúvidas que certezas, é utopia acreditar no acesso irrestrito à internet. É um fator de exclusão social mais do que imaginamos”. — FLAVYA MUTRAN
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Sobre o assunto, o artista plástico Emmanuel Nassar pontua que “a interação e ampliação da rede de comunicação se potencializou neste período”, dividindo algumas opiniões com André. Mas Nassar pondera: “A arte continua sendo o que sempre foi na sua essência: liberdade de observar e arriscar. Mudam os meios e continuam os desafios”, acredita. O artista plástico possui uma carreira consolidada no estado e fora dele, atualmente residindo em Belém. Para André, ser artista (no sentido amplo) é, acima de tudo, trabalhar com linguagem e uma multiplicidade de códigos. “A questão da imaterialidade na arte é anterior ao processo digital e já se explicita na arte conceitual das décadas de 1960/1970”. E é exatamente neste ponto que se cria um diálogo de mesma língua com Emmanuel, que não vê no digital uma substituição para a matéria da arte. “Grande parte do trabalho é o seu conceito. Quem compra ou experimenta ele presencialmente está levando uma espécie de souvenir do conceito, uma prova de vida talvez. São vários níveis de percepção e identificação”, analisa o artista.
SUSTENTABILIDADE O toque, o contato direto, a sensibilidade despertada por uma obra vista a olho nu ainda provoca outro tipo de impacto no apreciador de arte. Em termos de monetarização, Nassar diz ver o mercado das artes ainda muito ancorado na unicidade do objeto artístico material, mas relata a existência de diversos campos que provocam uma espécie de curto-circuito nesse modo de entender a arte, por exemplo, o das performances. André, assim como Emmanuel, seguiu produzindo na pandemia. O processo de materialização da arte, para ele, produz um resultado eficaz no que se refere ao retorno financeiro, desde que o artista se conecte com a sua essência. As mudanças são facilmente percebidas pela classe artística, que tenta acompanhar esse atropelo de transformações. É como vê esse processo, a doutora em Artes Visuais, Flavya Mutran. A arquiteta coloca em pauta não a dificuldade para se estabelecer em um ambiente digital, mas a viabilidade financeira dos conteúdos artísticos.
“Muito tem se falado em reinventar setores da economia criativa, mas é difícil saber até agora o que de fato é solução e o que é falácia disfarçada de empreendedorismo cultural”, avalia. Com a democratização da internet, as produções normalmente são acessadas de maneira gratuita, então a pergunta é: como transformar os canais digitais em fonte de renda? “A pandemia acelerou um processo de mudança de regime de trabalho e condições de troca de bens que já estava em curso desde o final da primeira década dos anos 2000, mas talvez essas mudanças ainda vinham a passos mais lentos”, explica Flavya. Ela acrescenta dizendo que “o campo é de mais dúvidas que certezas, é utopia acreditar no acesso irrestrito à internet. É um fator de exclusão social mais do que imaginamos”. A maior crise com o coronavírus, para a artista, se deu para os setores que dependem do contato humano direto em aglomeração, o que inclui a área da educação, projetos culturais que envolvem mediação com o público, festivais, shows, feiras, encontros e bienais de arte. “Tudo isso está temporariamente suspenso ou extinto, sabe-se lá por quanto tempo (...). A pandemia está em curso e no Brasil, a subnotificação e o descaso com o setor cultural é algo ainda mais nebuloso”, destaca. O discurso de Flavya sobre esse processo é permeado de indagações. “Quem e como vamos sustentar as produções artísticas na atual conjuntura social, com ou sem pandemia?”. Parece não haver muitas respostas. A realidade nacional ou regional é dramática, segundo ela, dada à suspensão de diversos investimentos de fomento à produção artística, e o curioso, ainda de acordo com a artista, é que essa falta de investimento, que já havia mesmo antes da pandemia, não impediu que estes agentes culturais fossem os primeiros a gerar uma nova forma de entretenimento às pessoas no momento que passamos. “Se há uma área de conhecimento humano que se transforma mais rápido que um vírus, esse campo certamente é o da arte. Mas ao contrário do vírus, ela salva e liberta as pessoas. Meu temor, no entanto, é que o acesso à arte brasileira seja cada vez mais difícil por falta de recursos e estímulos à sua produção”, lamenta Flavya.
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COMUNICAÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA Professor e pesquisador de Arte Contemporânea, John Fletcher observa na pandemia a manifestação de novos comportamentos de comunicação. Lives, reuniões on-line, plataformas de interação profissional. Para ele, há um barateamento das interlocuções por meio dessas ferramentas e o momento é de testar sua eficácia, já que podem ser usadas para gerar uma maior participação de público em determinados contextos de limitação geográfica. A produção de John, em tempos de isolamento, tem sido mais uma resposta ao momento vivenciado. Ao participar de algumas lives, ele as percebeu como canais para tratar de temas urgentes e ainda para fortalecer laços, sejam pessoais ou profissionais. “Penso que as políticas culturais devem ser defendidas e fortalecidas a partir desta realidade na qual estamos. Somos constantemente atacados por um governo que é contra a cultura, a arte, o conhecimento, as diferenças. Nossos esforços e forças devem ser direcionados para lutar pelo que é nosso de direito, para ampliar o pouco que atinge muitas e muitos cidadãos”, argumenta. Fletcher coloca outro ponto a favor do trabalho artístico on-line e fortemente atual: a sustentabilidade. “Trabalhar com catálogos virtuais é ambientalmente mais consciente. Ainda vivemos um processo de travessia de textos, livros e catálogos físicos para o digital. Pelo menos, na dimensão privada, essa pode ser uma pauta cada vez mais defendida”, acrescenta. Em se tratando da virtualidade, o professor parece acreditar bastante no potencial do mundo on-line para a arte. Em sua entrevista, ele enumera serviços de streaming que possibilitaram uma ampliação do mercado audiovisual e projeta que o mesmo deve ocorrer com o mercado da arte.
TRANSFORMAÇÃO CONSTANTE O fio que tece o caminho da produção artística é constante transformação. Essa afirmativa também é compartilhada pela fotógrafa e pesquisadora Galvanda Galvão, que acredita em uma revolução permanente no universo de
criação artística. Entretanto, ela fundamenta uma base para o conceito de arte: não reproduzir ao avesso, independente de tecnologias e transformações sociais. Galvanda afirma que poucos artistas experimentam esta ousadia permanente, o risco. Entre outros projetos, ela cita Cidade em Frestras, como um modo inquieto que constitui uma pré-visão, um desejo de alcançar o outro pela arte; e ainda o Circular, um projeto que também ocupa as ruas com arte, mas que precisou se reinventar neste período de pandemia. “Algumas ações dentro do Circular conseguem tocar este mistério. Lembro, especialmente, as ações no Porto do Sal, onde há esta integração aberta às diferenças”. São essas peculiaridades de linguagens e formas amazônidas que, para a artista, devem ser visíveis pela arte. “A subjetividade é a lâmina, a voz da rua”. Sobre o mercado impiedoso que devora essa subjetividade, Galvanda vai contra a mercantilização da arte enquanto produto. “A arte tem lugar por não haver lugar”, conclui. Em tempos de pandemia ou não, na era da informação ou não, “a arte é a riqueza cultural de uma nação, é o que nos identifica (...). Seja qual for a definição que se tenha para a área cultural durante e pós-pandemia, ela deve necessariamente olhar para as especificidades dos artistas, produtores, professores e críticos de arte, colecionadores, instituições, museus, galerias, cinema, público”, complementa Flavya Mutran. n
Penso que as políticas culturais devem ser defendidas e fortalecidas a partir desta realidade na qual estamos.” — JOHN FLETCHER
SAIBA MAIS Emmanuel Nassar @emmanuelnassar www.galeriamillan.com.br www.emmanuelnassar.com André Vallias @a_vallias www.andrevallias.com www.erratica.com.br Flavya Mutran flavyamutran.com.br Galvanda Galvão @galvaogalvanda
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ENTREVISTA
EDYR AUGUSTO PROENÇA
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A BELÉM DE EDYR AUGUSTO PROENÇA AUTOR DE VÁRIOS LIVROS DE POESIA, DE TEATRO, CRÔNICAS E ROMANCES, QUE ESTÃO FAZENDO O PARAENSE NASCIDO EM BELÉM SER RECONHECIDO NÃO SÓ AQUI NO PAÍS. Por WANDERSON LOBATO Foto: DIVULGAÇÃO
O que você sente falta mesmo é dos amigos, daquele clima. Não tem internet que resolva. Tá faltando é o abraço dos amigos, a conversa”.
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eus últimos livros têm sido publicados na França, com sucesso, depois que “Os Éguas”, que lá saiu com o título de “Belém”, recebeu, em 2015, o prêmio Caméléon de melhor romance estrangeiro, da Université Jean Moulin Lyon III. Depois vieram “Moscow”, “Casa de Caba” e “Pssica”. Todos tendo a realidade paraense como um componente a mais da história. Agora, em 2020, “Belhell” traz novamente a escrita urgente de Edyr. Uma narrativa que impõe uma leitura frenética, em que os fatos vão se sucedendo de forma rápida, assim como parece ser a vida dos personagens que “estão sempre em ritmo de urgência. Uma urgência que precisam resolver”, nos conta Edyr nesta entrevista.
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PROJETO CIRCULAR
O nome do livro alude ao apelido da capital paraense unida ao termo “hell”, que em inglês significa inferno. Surgido mais como referência ao calor da cidade, na trama parece retratar o submundo por onde transitam os personagens, envoltos em assassinatos, jogatina e violência. “Pssica”, cuja história se desenvolve em torno do tráfico de mulheres, teve seus direitos comprados pela 02 Filmes, uma das maiores produtoras do país, responsável por filmes reconhecidos, como Cidade de Deus, e será o primeiro longa-metragem dirigido por Quico Meirelles, filho do cineasta Fernando Meireles, um entusiasta de Edyr Augusto. “Ao ler o romance ‘Pssica’, há alguns anos, tomei um choque. Fascinado, li sem parar todos os livros do autor e ainda comprei os direitos de ‘Pssica’ para uma adaptação para o cinema”, conta o cineasta na apresentação de “BelHell”. Nesta entrevista, Edyr fala sobre esses tempos de pandemia, reflete sobre o novo livro e faz duras críticas a Belém, na verdade, aos seus governantes. “Somos uma cidade com um cinturão de pobreza absoluta envolta da cidade. Sem emprego, educação, cultura sem nada”.
COMO ESTÃO SENDO OS TEUS DIAS NESTE PERÍODO DE ISOLAMENTO SOCIAL? Edyr Augusto: Esse negócio de ter de ficar em casa eu já vinha fazendo isso. Porque recentemente eu me aposentei. Aí que eu mudei, porque minha vida inteira eu passei na rua, no escritório, trabalhando. E quando veio a pandemia eu já estava assim. Essa coisa de tudo fechado, também deu uma mudada na minha vida. Você vive mais dentro da casa. Pra mim foi maravilhoso, afora estar com minha mulher, eu também pude ler mais, ouvir mais música, ver mais filme.
SENTE FALTA DE ALGO?
Gente que passa o final de semana, que viaja e passa seus dias na Europa e Estados Unidos e que não traz nada de bom pra cidade, só traz pra si. É uma cidade triste neste sentido”. 22
Edyr Augusto: O que você sente falta mesmo é dos amigos, daquele clima. Não tem internet que resolva. Tá faltando é o abraço dos amigos, a conversa. Sinto muita falta da rua. Morei uma vida inteira ali na Presidente Vargas. Aquele entorno todo com os personagens. Muitos estão nos meus livros. Aquilo fazia um mundo pra mim e isso sinto falta muito, muito.
VOCÊ COSTUMA DIZER QUE GOSTA MUITO DE OUVIR AS PESSOAS QUE VOCÊ ENCONTRA NO DIA A DIA. COMO ISSO AJUDA NA SUA PRODUÇÃO? Edyr Augusto: Ali você conversa com todos, viram seus amigos. Os caras percebem que você é do entorno. Eles te contam as vidas, vivem um dia de cada vez. São pessoas que tem uma sensibilidade forte para os seus problemas. O escritor vai ficando com tudo isso na cabeça.
E A SUA ESCRITA TEM ESSA CARACTERÍSTICA DE SER UMA LEITURA DE FÔLEGO. TEM A VER COM OS PERSONAGENS? Edyr Augusto: O meu tipo de literatura é realista. Os personagens estão sempre em ritmo de urgência. Uma urgência que precisam resolver. Quando a gente escreve, é um ofício solitário. Você escreve, eles estão ali contigo. Todas aquelas pessoas estão ali te cutucando, pedindo pra entrar no livro, pra colocá-las aqui e ali. Você cria essa multidão, essa turma que tá ali falando, dizendo. Os personagens são sempre um amálgama de muita gente que você conhece. Um fala de um jeito, outro fala de outro. Um procede daquela maneira. E você vai somando essas coisas. E constitui um personagem. E eles ficam sempre lá falando, pedindo pra participar da história. Neste último livro, “Belhell”, um personagem me enganou. Eu não tinha pensado em algo que aconteceu com ele. Não era meu plano. Isso não era para acontecer. Aí, de repente, ele tomou uma direção que eu não tinha pensado. Ele já tinha me dado uma indicação que eu não percebi. E quando ele tomou essa direção, eu disse: deixa ir com ele. Foi o “zás” final pra terminar o livro.
VOCÊ TEM ALGUMAS OBRAS COM OS DIREITOS VENDIDOS PARA ADAPTAÇÃO PARA O CINEMA. COMO É ISSO PRA VOCÊ? Edyr Augusto: Eu já tenho três livros vendidos. “Selva Concreta”, para uma série de TV; “Pssica” e “Casa de Caba”, para o cinema. Eu compreendo o cinema como uma outra linguagem. Não estou preocupado.
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Estive em São Paulo antes da pandemia, conversando com o diretor do filme e o roteiro já está pronto. Mas há mudanças porque facilita o filme. O cinema é outra história, uma história baseada no meu livro. Não tenho problema com isso. Uma coisa é você ler o livro, outra é você ver o filme.
MUDANDO UM POUCO DE ASSUNTO, BELÉM NESTA PANDEMIA. COMO VOCÊ ESTÁ VENDO ESSA SITUAÇÃO? Edyr Augusto: Somos uma cidade abandonada, que há muitos anos não tem um bom prefeito. É uma cidade com diferenças sociais brutais. Gente muito rica, gente muito pobre e isso é um grande problema. Nós temos uma elite ruim que só quer saber de si. Elite que mora em coberturas e tem carros, mas quando vai pra rua pisa na lama. Gente que passa o final de semana, que viaja e passa seus dias na Europa e Estados Unidos e que não traz nada de bom pra cidade, só traz pra si. É uma cidade triste neste sentido. Não vejo nada que possa acontecer de bom. E tenho estado muito preocupado com os jovens. Não estamos prometendo nada para os jovens. O melhor que podem fazer é ir embora porque não há nada por vir. Somos uma cidade com um cinturão de pobreza absoluta em volta da cidade. Sem emprego, educação, cultura, sem nada. E acho que vamos amargar muito com essa pandemia.
VOCÊ ESTÁ ESCREVENDO UM NOVO LIVRO? COMO ESTÁ SENDO SUA PRODUÇÃO? Edyr Augusto: É meio caos. Vou lançar depois dessa pandemia meu quarto livro de crônicas, resultado do que vinha escrevendo em um jornal. Pedi a um amigo para fazer uma compilação e já está pronto. “Crônicas da Cidade Morena”, volume 4. Tô esperando passar esse temporal pra poder lançar. Também tenho um conto que foi publicado na revista Granta, edição de Portugal (considerada uma das mais importantes revistas literárias do mundo). Escrevi há pouco para o jornal da Biblioteca Pública do Paraná, se chama “Cândido”. Também participo de uma coletânea, uma produção pensada pelo Marcelo Damaso. E, curiosamente, escrevi o primeiro capítulo do que pode ser o próximo livro, mas tá lá dormindo. Depois vou voltar lá pra ver se ainda está interessante. n
Os personagens são sempre um amálgama de muita gente que você conhece. Um fala de um jeito, outro fala de outro. Um procede daquela maneira. E você vai somando essas coisas. E eles ficam sempre lá falando, pedindo pra participar da história”. 23
CRÔNICA
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MONIQUE MALCHER*
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ACEROLAS TRISTES DE APARTAMENTO
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s mulheres reunidas para o chorar criaram uma canção que os passarinhos tão metidos pararam a vida e as construções para ouvir. A torneira instalada no quintal, a menina pequena tomava banho com os braços entrelaçados um no outro, dando pulinhos de frio, e a menina maior jogando a cuia na cabeça da inquieta. O xampu de criança que pode pegar no olho, mas mesmo assim não se deixa pegar, porque não se confia em química. A pequena esfrega cada parte do corpo enquanto a maior diz que ela não sabe tomar banho direito. A torneira atrevida esguichando água por todos os cantos, não era igual a dos apartamentos do centro. A menina crescida, com boletos e preocupações de tiara, sente falta das torneiras que no choro precisavam de retalhos dos seus vestidos para domar a água. O coador do choro das mulheres. Durante o banho, a mão da menina maior tirava a sujeira das dobras dos pequenos braços da menina pequena. As acerolas caíam de monte e a garotinha tão minúscula sentia a grandiosidade do cheiro de todas e o próprio, da colônia de alfazema que ganhou da mãe, vidro tão bonito com a camponesa de chapéu enorme colhendo algodão. E escapava da irmã, escapava pelada, recém-cheirosa, antes do abraço da toalha felpuda com barra de crochê, para catar as acerolas e as colocar no pote de plástico com a inicial da mãe em hidrocor. Precaução para parente não roubar e quem sabe devolver lavada. Acerolas que sobram, que elas doavam aos vizinhos, frutas que riam escandalosas quando se despiam as torneiras. Peladas. Menina e torneira. Água por todos os lados repousavam em cada acerola com trilha sonora do riso da menina pequena e o grito da irmã mais velha. Volta aqui, Vivi! Hoje a menina crescida veste camadas e camadas de roupa e tristeza. Hoje a menina
crescida traz triste as acerolas tristes de supermercado para casa, que nascem com venenos. Lava tudo com bicarbonato e muito sabão, chora na frente da pia brilhante e perfeita do apartamento da doca. Liga o gravador, não tem com quem conversar. A luz vermelha diz que está ouvindo, está gravando. Ela senta na poltrona laranja e desabafa. Minha irmã mais velha está doente desse vírus que se espalhou pelo mundo, soube que se isolou no quarto enquanto as filhas deixam sua refeição na porta, que ela abre rápido. São duas semanas para esperar essa maldição ir embora. Dizem que foram profecias, outros dizem que a história se repete, mas eu sei que é algo que não aceito, que não quero lidar, mas preciso orar para que passe. Porque se não passar não tem leito, não tem esperança, não tem santa. A santa tá sobrecarregada. Quando você me dava banho antes da mamãe chegar do trabalho eu sentia e você sentia, era você minha mãe, mesmo que fossemos crianças com pouca diferença nas idades. E só quando o portão de madeira rangia, mamãe voltava, você era criança de novo. Um pote para cada uma, eu gostava das minhas acerolas com açúcar por cima, sempre gostei de tudo muito doce. E o mundo é tão azedo, que me destrói a cada colherada.
* Monique Malcher é escritora e colagista nascida em Santarém, interior do Pará, mas viveu grande parte da vida em Belém (1988), hoje reside em São Paulo. “Flor de Gume” é seu livro de estreia pela Pólen Livros com edição de Jarid Arraes, mas a escritora é conhecida pelas publicações independentes de zines e uma newsletter semanal. É mestra em Antropologia (UFPA) e doutoranda interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC) pesquisando literatura e quadrinhos produzi-
Desliga o gravador. Sozinha no apartamento gelado, com móveis e coisas inúteis que antes via grande utilidade, pedindo pelo correios roupas que não vai usar. Toma um dramin, deita na king-size, liga o ar-condicionado. Desmaia ou adormece, não faz diferença. Lembra que no quintal só precisava da irmã, da água, da torneira nua e das acerolas. As mulheres reunidas para o chorar não podem velar o corpo que grita em silêncio: vem aqui, Vivi, vem aqui pra eu te secar!
dos por mulheres. No momento, é responsável pela curadoria da coletânea “Trama das Águas”, da Monomito Editorial, que será publicada ainda em 2020, reunindo 30 escritoras paraenses. Acredita que a literatura é um dos caminhos possíveis para aguentar o caos e matar a saudade do que ainda não veio.
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PROJETO CIRCULAR
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ENSAIO FOTOGRÁFICO
ENSAIO À LUZ DA QUARENTENA
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fotografia, quem diria, ganhou novos horizontes, mesmo com o isolamento social. Ainda que dentro de casa, os profissionais da luz se reinventaram. E nós todos, passamos a olhar o mundo diferente. Nos debruçamos sobre as janelas das redes sociais e também ficamos mais atentos aos espetáculos da natureza, que estavam sempre ali para serem vistos através de nossas próprias janelas. Do mesmo modo, olhamos para dentro de nós e de nossas casas. Na quarentena, as pessoas evidenciaram aquilo que importava para elas, brincaram on-line e experimentaram a fotografia de vários ângulos e novas plataformas. Acompanhamos algumas postagens e, respeitando o isolamento social, convidamos profissionais de várias áreas para compor este ensaio fotográfico, trazendo ainda suas reflexões sobre esses momentos em que estivemos iguais no mundo todo. E não é que eles toparam? A cineasta Jorane Castro, por exemplo, experimentou a fotografia dentro de casa, a partir de suas janelas, autorre-
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tratos e até webencontros. A poeta Izabela Leal desacelerou. A lua foi a inspiração para a editora Andrea Sanjad. Hellen Pompeu, professora e atriz, aprendeu a ver molduras nas paisagens. “A janela do residencial onde moramos virou, por muitos dias desses meses, a única e maior fresta para se olhar o mundo, além dos celulares, da TV e do desktop do computador”, diz o jornalista Lázaro Magalhães. A fotógrafa Paula Sampaio fotografou sua mãe. “Estamos há mais de três meses, minha mãe (80) e eu (54), caminhando todos os dias de manhã entre a sala e o quarto”, reflete. A pandemia trouxe desafios para todos e, a partir dela, a maneira de lidar com o mundo vai se transformando com novos aprendizados. É preciso estar atento e forte! Que a arte e a poesia estejam sempre a nos acompanhar. Agora te convidamos para fruir do olhar de nossos convidados e se inspirar com as inquietações que eles transformaram em imagens. Luciana Medeiros
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PROJETO CIRCULAR
ANDREA SANJAD
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LUAS DE MARÇO “A lua anda devagar mas atravessa o mundo.” “Não é da luz que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre. Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra.” Mia Couto, na epígrafe do livro “Contos do nascer da Terra”. “A quarentena me levou a considerar, sem pressa, esse fascínio que o luar exerce sobre nós. Instituí que as conversas depois do jantar seriam na varanda e acabei fotografando as fases da lua desde março”. Andrea Sanjad Editora @andreasanjad
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PAULA SAMPAIO
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MÃE “Junho de 2020. Estamos há mais de três meses, minha mãe (80) e eu (54), caminhando todos os dias de manhã entre a sala e o quarto. Marcamos o compasso do nosso exercício diário no espaço quadrado das lajotas brancas. O sol passa rasteiro aqui. Na porta de entrada olhamos a rua e molhamos as plantas que estão crescendo como nunca, em meio ao silêncio pesado de uma paisagem de muitas dores, cortado pelas sirenes das ambulâncias e pelo canto de muitos pássaros que agora vivem por aqui. Estamos bem, só um pouco tontas e confundindo os dias da semana. Cozinhamos juntas (mas a fome é pequena), assistimos às novelas e filmes (falando com os personagens para animar). Às vezes o sono custa a chegar e lembramos de um tempo (parece tão distante!) de caminhadas na praça e missa aos domingos na igreja do bairro. Temos nos abraçado mais”. Paula Sampaio Fotógrafa @paulasampaio564
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PROJETO CIRCULAR
HELLEN POMPEU
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PELA JANELA “A fotografia nunca foi a nossa pretensão, a harmonia sim. Confinados em um pequeno apartamento, olhar o pôr-do-sol, através da janela, tornou-se uma satisfação. Passamos a contemplá-lo e a fotografá-lo, quase que diariamente. De repente, a chuva, as nuvens, as flores... também começaram a ficar emolduradas”. Hellen Pompeu Professora, doutora em Linguística e atriz
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PROJETO CIRCULAR
IZABELA LEAL
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NO TEMPO CERTO “Observar as sombras que se movem lentamente, desenham formas, esboçam registros fugazes sobre as paredes. O azul da tarde cria camadas, texturas, profundidades. Aprender a ler essa outra grafia, câmera-olho em busca de um espaço imprevisto. Um banho de sol na cama, momento consagrado ao corpo para inventar um novo modo de estar presente. Desacelerar.” Izabela Leal Poeta @izabelaleal
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PROJETO CIRCULAR
JORANE CASTRO
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DENTRO DE CASA
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TODO DIA “Fiz um retrato da quarentena. Cheguei a enumerar algumas fotos pelo dia de isolamento e todas elas foram postadas no stories no Instagram, com exceção das que foram feitas dentro de casa”, explica. Jorane Castro Cineasta @jorane_
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JORANE CASTRO
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PAISAGENS
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JORANE CASTRO
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SELFIES
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PROJETO CIRCULAR
JORANE CASTRO
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WEB ENCONTROS
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PROJETO CIRCULAR
LÁZARO MAGALHÃES
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(...) “A janela do residencial onde moramos virou, por muitos dias desses meses, a única e maior fresta para se olhar o mundo, além dos celulares, da TV e do desktop do computador. E as fotos foram surgindo da surpresa. Porque é chocante que, da dura moldura de concreto imposta ao horizonte, da curta rua ladeada de blocos de prédios, gramíneas cimentadas e carros estacionados da vizinhança, e do celular deitado à mesa, se fizesse um espaço-porto de pontos de fuga vários, ao sabor do ânimo, do humor, das tristezas e das vitórias, do revés e das alegrias de cada dia. Da alma radiante à noite solitária, da tristeza cinzenta e chuvosa à esperança do broto novo na janela: eis a gente janela adentro, olhando pro nosso corpo lá estendido, janela afora. Janelas são a invenção da necessidade. E essas, de se espiar ao mesmo tempo lá pra fora e cá para dentro? Trouxeram no turno de ócio integral. Entregaram nos intervalos do regime do trabalho e dos afetos remotos. Daí que essa janela, esse intervalo, não se abria só para fora, nem para dentro, mas também no “entre coisas”.
O isolamento mostrou uma outra vidraça, pouco translúcida na correria do antes. A vítrea existência de urgência passou a exigir não só gel, mas limpa-vidros, paninho de tirar as marcas de dedos e a poeira. Um esforço para romper a preguiça e subir na cadeira. Para levantar para arredar as cortinas blackout. Entre o silêncio lava-louças e a bagunça reordenada ao regime de lives: entre meus colegas de trabalho, meus amigos e minha cadeira. Entre eu e minha companheira, entre meus sorrisos e meus filhos, entre eu, minha mãe, minha irmã e meu pai. Entre eu e o que eu odeio. E no entre das minhas coisas, cá esquecidas, do meu lado. Do caderno de anotações e do livro da gaveta, ao CD com músicas e fotos empoeirado. A música que andava dentro de mim. O verso abandonado. Onde estava eu, afinal, se não aqui? Na pequena parte do novo normal da arte, que também é esperança, cabe o quadrado da nova janela: lá está no horizonte algo daquele outro lugar chamado esperança - que também é arte, que também é parte, que também é inexplorado marte”. Lázaro Magalhães Jornalista e músico
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REVISTA CIRCULAR Edição 7
ISSN
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EXPEDIENTE EDIÇÃO: Luciana REVISÃO: Léa
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Alvarenga
TEXTOS: Natália
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