Águas de Ninguém Viagem à porção mineira do rio São Francisco Bárbara ‘ | Felipe Chimicatti | Tarsila Costa
Agradecimentos As prefeituras das cidades de Três Marias, Andrequicé, Pirapora, São Romão, Januária, São João das Missões e Matias Cardoso visiPRODUÇÃO EDITORIAL
tadas durante pesquisa de campo, no mês de julho de 2009. As in-
Autores e organizadores Bárbara Camargo Felipe Chimicatti Tarsila Costa
formações, os atendimentos e encaminhamentos prestados foram
Leitura e revisão de texto Aurélio José da Silva PRODUÇÃO GRÁFICA Projeto gráfico Rafael Chimicatti Imagens Felipe Chimicatti
de grande valia.Aos entrevistados de cada uma destas localidades - anônimos e populares da comunidade ribeirinha do rio São Francisco -, que nos proveram com relatos e depoimentos ímpares que determinaram o teor crítico das narrativas elaboradas nas grandesreportagens do livro. A Rafael Bottaro que nos acompanhou durante pesquisa de campo para auxiliar nos trabalhos técnicos. Mais do que isso, sua companhia foi crucial para equilíbrio do grupo em vários momentos da viagem. A Rafael Chimicatti que assumiu o projeto gráfico do livro e a quem devemos seu formato e configuração. E, principalmente, ao rio, este vigoroso corpo d’água brasileiro.
Sumário PREFÁCIO 7 CAPÍTULO 1: O RIO SÃO FRANCISCO 9 O fascínio que as águas causaram 10 A geopolítica do São Francisco 12 O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens 13 CAPÍTULO 2: TRÊS MARIAS: AQUI O RIO CORRE GORDO, REPRESADO 15 Três Marias: aqui o rio corre gordo, represado 17 As dores do São Francisco na ótica de um dos pescadores: o seu Norberto 19 A pesca em Três Marias 25 Dos peixes e dos limites legais da pesca passando por lagoas marginais 28 Andrequicé e a confluência sertão, literatura: Manuel Nardi e João Guimarães Rosa 29 CAPÍTULO 3: PIRAPORA: TERMINAL SUL DA HIDROVIA SÃO FRANCISCO 33 Aportando em Pirapora 34 12 de julho, um passeio pela navegação 37 O processo de implantação dos vapores 42 Um país de rios não melhorados 44 O rio hoje: Solidão 46 Intervalo 49 Lourdes Barroso e os Franciscos 50 CAPÍTULO 4: BARRA DO GUACUÍ: O ENCONTRO DAS ÁGUAS E A HISTÓRIA PERDIDA 59 Falta de culto ao passado 61 A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí 61 Ruínas ao léu 64 Um ponto de dois rios 68
CAPÍTULO 5: SÃO ROMÃO: PERCEPÇÕES DISTANCIADAS DE UMA CIDADE À BEIRA-RIO 73 São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio 75 O patrimônio histórico ou a falta que ele faz 77 Os batuques que guardam história 79 CAPÍTULO 6: JANUÁRIA : OUTRAS HISTÓRIAS ALÉM DA BOA E VELHA CACHAÇA 87 Antes de Januária, Brejo do Amparo 88 O despontar de Januária até o ciclo da aguardente 88 A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana 92 A rapadura e arte de sobreviver dela 94 A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária 97 A Velha Januária e o rio de São Francisco, segundo Dona Maria e Senhor Binu 100 Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso 102 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono 103 CAPÍTULO 7: SÃO JOÃO DAS MISSÕES: resistência e luta xacriabá 107 O pó da terra vermelha são eles: Os Xacriabá 109 O índio do sertão 109 A apresentação do cerrado e os Xacriabá 112 Patrimônio Xacriabá 114 Os brasis que não vemos, e o sertão que temos 116 As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito 118 CAPÍTULO 8: MATIAS CARDOSO E O DELUBRUM MIRAE MAGNITUDINIS 123 Falta de reminiscência: a justificável borda do Estado 126 A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se erigir e possivelmente a próxima a ruir 132 Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba 135 REFERÊNCIAS 139 e 140
Prefácio
que o rio-mar dos indígenas que, com sua língua, consegue lidar mais legitimamente com a natureza, não guarda só investigação,
O rio São Francisco é maior que qualquer pretensão científica.
pois somos mais investigados por ele que o contrário. As mudan-
A ribeira é larga, as crenças que permeiam, de tão largas, sobre-
ças na perspectiva de mundo são notórias em menor viagem pelo
nadam o imaginário humano. Chegar às margens do Velho Chico
curso do Velho Chico: o retorno à rotina é diverso depois de co-
e ver a mitologia sertaneja não é coisa de cabloco sem instrução:
nhecer tamanha estrutura natural; os olhos passam a ver a vida de
acreditar nos causos é enfática sabedoria – seja por parte de quem
outra maneira, inadvertidamente.
for -, é o rio que conta suas estórias, é dele a voz premente que entoa a melodia das mais inauditas crenças – inauditas por não se
A concepção do livro
fazerem questionar. Assistir uma senhora negra, efusiva, legítima,
O aflorar do projeto nasceu a partir de uma tentativa jornalís-
de 90 anos descrever meticulosamente o cabloco d’água, trans-
tica de explorar o Vale de São Francisco em sua porção mineira.
forma-o em realidade, dá-lhe a carapaça que o sustenta enquanto
Como não poderia deixar de ser, optamos pela viagem de campo
lógica. Não é necessário recorrer a qualquer descrição naturalista
com duração de um mês, mais por uma tentativa vivaz de perce-
de século XIX ou a nenhum compêndio das ciências naturais para
ber as imediações humanas do rio. Foi Cabral, no entanto, que nos
saber que ele existe; existe e existe mais que qualquer engenhoca
deu acesso à importância hidrográfica de nosso país com seu es-
projetada por nosso racionalismo decadente.
sencial poema O Cão Sem Plumas no qual o eu – lírico – em uma
Quando partimos, no mês de julho, para uma viagem de campo
quebra acidental na narrativa poética brasileira – é o próprio rio
que se baseava em investigação, pesquisa, entrevistas e registros
Capibaribe. O rio narra suas aventuranças pelo sertão nordestino
fotográficos, tínhamos a menor das idéias do que se desvelaria.
até desaguar no mar; o rio trovador; o rio que prescruta, o rio que
A primeira cidade ribeirinha – Três Marias – já carregava a intensa
é metáfora visceral de nós mesmos:
correlação homem-rio: Não há maneira de separar os homens do fascinante correr das águas de um rio que corta cinco Estados. O nosso escopo primeiro era, sim, a degradação ambiental do rio São Francisco no decorrer de todos os anos, desde a chegada lusa à costa brasileira. Não obstante, falaríamos também da relação mítica que entorna tal degradação. A idéia inicial, meio que dissol-
A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.
vida nas águas calmas e turvas do Velho e gracioso Chico – o Opará,
A cidade que passa, embora seja feita de matizes de amor
em Tupi-Guarani: rio-mar –, foi entoada pela idéia oposta: a partir
de ribeira, é que também lhe corroí. São as cidades que dão ao
da cultura foi possível falar da degradação, e não o oposto. O rio
nosso rio sumariamente brasileiro a parcela forte de poluição, de
São Francisco é maior que qualquer pretensão científica. Parece
assoreamento, de desdém inveterado: “A cidade que é passada
7
pelo rio” lhe atravessa também como espada... Desta conclusão
As descobertas que o rio proporciona tangem para além de
poética – em conformidade à necessidade das águas, sobretudo
conhecimentos técnicos ou científicos; são de ordem existencial,
àqueles que com ela convivem -, é fato maior das cidades ribeiri-
e, apesar de todo o projeto ter partido da iniciativa pessoal, sem
nhas. Todos os ribeirinhos, sem qualquer exceção que seja, inda-
sequer algum auxílio monetário, os ganhos ficarão para toda a
gados sobre o rio noutros tempos, lamenta-se. Ali corriam vigoro-
vida, marcados pelo incessante ricochetear das águas de um rio
sas correntes de água, hoje enormemente comprometidas pelas
que não para de correr dentro de cada um de nós.
cidades. O afluente que carrega a poluição belo-horizontina, por exemplo, é o principal poluidor do Velho Chico: o rio das Velhas transporta o esgoto industrial para o oceano, agora, triste é ver o
Bárbara Camargo, Felipe Chimicatti, Tarsila Costa
encontro do Chico com o Velhas: os rios se machucam em razão
Belo Horizonte, 2009
de quem dele tanto necessita: nós mesmos. Outro ponto que determinou a escolha de rio São Francisco como objeto de estudo e, por conseguinte, de fascínio, foi o tão discutido projeto de transposição de suas águas. Apesar de nada abordarmos acerca da temática que, realmente se envereda por uma discussão demasiadamente técnica, foi a partir dela que passamos a nos interessar pelo São Francisco. Estudamos o seu curso, entendemos melhor suas articulações, bebemos na história de seus relatos. “O rio sem história” de Capistrano de Abreu – grande historiador brasileiro – é deveras um rio sem história formal: os documentos, em grande medida, inexistem. Agora, sua história vive impetuosa na arquitetura, na oralidade, nos prosaicos versos cotidianos de cada senhora que lava sua roupa há anos nas correntes, embora a escassez documental ainda deixe uma triste herança do descaso da coroa para com a atividade agropastoril – predominante no norte de Minas. Reportamo-nos ao norte mineiro, obviamente, pois nosso relato se interrompe em Matias Cardoso.
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O rio são francisco
Garcia D’ávila - homem este que será um dos grande agenciadores de uma enormidade de currais pelas margens do Opará; o Velho
Euclides da Cunha gostava de atribuir ao rio São Francisco o
Chico também foi o rio dos currais, sobretudo durante o perío-
cárater formador do país. Chegou a afirmar ser “o cerne vigoroso
do colonial: “Os currais viriam a se tornar os responsáveis pela
de nossa nacionalidade”. Vicente Licínio Cardoso – proeminen-
formação dos primeiros núcleos povoadores do vale e lançar as
te intelectual e historiador brasileiro – referia-se ao Velho Chico
sementes que desabrochariam nas cidades de hoje. O rio se torna
como a grande “estrada natural interior”, ou, ainda como gos-
então conhecido por rio dos currais”. 1
tava de propor, “o tablado geográfico brasileiro”. Capistrano de
Era dele que advinham os gêneros alimentícios que abas-
Abreu, meticuloso historiador dado à etnografia e a linguísta, já
taciam a região litorânea, em um primeiro momento, sendo em
dizia não haver fio de Ariadne comparável ao Rio.
seguida fornecidos víveres à região aurífera, em Minas Gerais. Fo-
Em 1501, as naus de Américo Vespúcio se defrontavam com o
ram esses processos, de modo geral, que determinaram os traços
suntuoso rio, nomeado pelos portugueses como Rio São Francisco
agro-pastoris da região que até os dias de hoje imperam. Mesmo
em razão da data de descobrimento – 04/10 - coincidir com o dia do
assim, o nordeste ainda teve imensas dificuldades de transitar sua
Santo de nome homônimo. Obviamente, o nome indígena do mes-
mercadoria pelo país. A coroa portuguesa, para se ter um ideia, du-
mo rio não permaneceu: o rio Opará (em Tupi-Guarani Rio-Mar)
rante o período da extração aurífera, proibiu o comércio da região
hoje figura somente na literatura de resistência, relembrando que
com a zona do ouro para remediar os contrabandos. No entanto, a
nessa época outros povos já haviam descoberto o Brasil há muito.
região do ouro padecia de crises imensas de fome porque nenhum
Entretanto, não tardou a surgir o que seria o primeiro núcleo po-
bandeirante das Minas queria investir esforços em algo além do
voador das margens do São Francisco – Penedo, localizado hoje
metal. É nesse sentido, inclusive, que se potencializa um dos tra-
no Estado de Alagoas. Segundo a historiografia da região, uma in-
ços mais marcantes do sertão: o compadrio e o coronelismo. A ad-
cursão bandeirante entre 1522 e 1545 fundara aquelas paragens,
ministração portuguesa desdenhou a região desde o início, crian-
embora a data precisa seja incerta: há ainda muito a se auferir da
do lacunas que se preencheram com a criação de uma organização
história são-franciscana; como disse Licíno, “o rio sem história”
política paralela. São inúmeras as matanças sertanejas no decurso
em razão da pouca ciência ou documentação que lhe recobre.
da história que se dissiparam no descaso das autoridades compe-
Em 1549, o Governador-Geral Tomé de Souza chega às terras
tentes, se é que elas eram suficientemente competentes a tais re-
brasileiras com várias incumbências, incluindo a missão de ex-
soluções. A figura do jagunço – recorrente na história sertaneja – é
plorar o rio e suas potencialidades. A coroa portuguesa lançava
somente mais uma assertiva da ausência do Estado. O Engenheiro
promissores olhares para suas águas, pois, de uma forma ou de
Teodoro Sampaio observou, no ano de 1879, uma situação desor-
outra, era o caminho mais seguro para o coração do país; além do
deira: os jagunços de um tal Neco conseguiram dissipar terror na
mais, não existiam estradas. Com Tomé de Souza, aporta no Brasil
região do sertão, expulsando agentes do poder público da cidade
9
para as imediações de Januária – no norte de Minas. “O estado de
estrangeira. Eles tiveram, certamente, motivações diferentes, embora
espírito do juiz de direito causava pena (...) o digno magistrado,
o fascínio pelo Opará e sua magnitude se estenda a todos os relatos. As
com as lágrimas nos olhos, viu nos afastar, como quem pedia uma
populações eram, por vezes, fadadas ao olhar etnocêntrico do estran-
esperança, o seu recurso supremo naquele passo difícil. Quanta
geiro em terras brasileiras, agora, o rio, esse sempre comoveu a todos
desgraça, quanta barbaría naqueles setões, santo Deus”!
2
O sertanejo são-franciscano, uma raça cobocla repleta de mis-
eles. Nessa alçada, não faltaram comparações: o Velho Chico já foi comparado ao Nilo, ao Niger, ao Reno e até mesmo Loire, em Orleans.
cigenação, é um misto de negros, indígenas e portugueses, exceto
Os pesquisadores de maior renome que usualmente são ci-
nas extremidades do Vale, onde Donald Pierson observou a predo-
tados nos trabalhos científicos, muito pela ordem dos resultados
minância da raça negra, relacionando sua existência ao cultivo da
obtidos bem como pela envergadura intelectual de cada qual, são:
3
cana. Ainda, o São Francisco foi utilizado como rota de escravos
Richard Burton (Inglês); Spix e Martius (Alemães), Sainte Hilaire
negros nas zonas açucareiras. Ademais, trata-se de um sujeito his-
(Francês); Teodoro Sampaio (brasileiro); Halfeld (alemão); Liais
tórico esse sertanejo, situado na confluência do processo de po-
(francês); dentre muitos outros. Fizeram eles várias observações
voação do país, tendo o São Francisco submetido o trânsito racial
sobre os modos de vida de sertanejos, sobre a geografia e a orga-
sobremaneira. Daí advém à particularidade do são-franciscano: é
nização sócio-politica, sobre o rio e seu desdobramento na vida de
sujeito único no país, sertanejo de traço forte e peculiaridade ím-
ribeira. É fundamental perceber que foi Richard Burton, um notá-
par. Geraldo Rocha, engenheiro e conhecedor do rio, afirmou:
vel inglês que falava aproximadamente 25 línguas e dialetos, que
(...) a entrosagem [do sertanejo] se deu, assim, fatalmente, entre os
atentou para o termo sertão:
aborígenes repelidos da costa para a região do nordeste e os pionei-
O termo sertão, segundo o viajante inglês Richard Burton, é a con-
ros dos currais e da mineiração com os primitivos escravos que os
tração do aumentativo “desertão”, muito usado na Africa e na Amé-
acompanhavam, cujos descendentes haviam conseguido a liberda-
rica do Sul. No Brasil, o tema é utilizado para se referir as regiões
de por serem filhos de índias livres.
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O rio São Francisco, a grosso modo, é o grande disseminador
semi-aridas do interior do Brasil pouco habitadas e com a prevalência do regime pastoril. 5
dos povos brasileiros, o grande fator desencadeador de nossa
Já de 1817 a 1820 estiveram nas margens do Velho Chico Dr.
miscigenação, caso não fosse ele nossa natural estrada, o proces-
Joahann Baptist von Spix (Zoólogo) e Dr. Carl Friedrich Philipp von
so de investida portuguesa seria assaz bem demorado.
Martius (Médico e Botânico). Escreveram o livro Viagem pelo Brasil,
O fascínio que as águas causaram
editado em 1823, em Munchen, na Alemanha. O estudo foi traduzido para o português somente em 1923. Sainte-Hilaire, ao seu turno,
Foram vários os visitantes que fizeram incursões científicas pelo
escreveu o livro Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e Pro-
Rio São Francisco, muito deles de notório renome e, por vezes, de origem
víncia de Goyaz. Foi empenhado naturalista que coletou por aqui
10
30.000 exemplares de plantas, de 7 mil espécies diferentes, das quais
que 2/3 da disponibilidade hídrica do nordeste. Três fatores - ainda
4. 500 eram desconhecidas. Sua viagem à cabeceira do Rio São Fran-
de acordo com o Caderno da Região Hidrográfica do São Francis-
cisco ocorreu em 1819. Teodoro Sampaio era brasileiro. Formou-se em
co, desenvolvido pelo Governo Federal no ano de 2006
engenharia civil, embora fosse também eximil desenhista. Empreen-
os maiores responsáveis pela pressão da qualidade das águas: a
deu viagem científica no ano de 1879 junto à comissão hidráulica lide-
crescente urbanização, a expansão industrial e a mecanização da
rada pelo americano Oville Derby. O percurso teve ínicio em Penedo e
agricultura.
6
– são
finalizou-se na chapada Diamantina. Teodoro era o único negro da co-
O Rio São Francisco é evidentemente o maior rio estritamente
missão, e naqueles tempos pós-escravidão conseguiu ingressar junto
brasileiro, ou seja, ele tem nascente e foz nas entrâncias do nosso
à comitiva muito em razão de sua vultosa capacidade e conhecimen-
próprio território. Nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais e de-
to, sobretudo junto à averiguação das condições de navegabilidade do
ságua entre Sergipe e Alagoas. Em razão disso, acostumou-se cha-
rio São Francisco. Halfeld foi um engenheiro alemão contratado pelo
mar o Velho Chico de “rio da unidade nacional”, muito em decorrên-
Governo Imperial para desenvolver estudos no Rio São Francisco, de
cia de ter sido ele, também, o grande meio de transporte nos tempos
Pirapora a foz. Realizou a pesquisa entre 1852 e 1854. Falece em Juiz de
de colonização, empreendido, inclusive, pelas bandeiras paulistas: o
Fora, local onde possuia um terreno particular. O mais interessante é
Velho Chico em 1501 já era conhecido pelos portugueses.
que Halfeld participou da batalha de Waterloo nas forças que comba-
A Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco apresenta 638.323
teram Napoleão Bonaparte. Liais, por sua vez, recebe a designação do
Km² (8% do território nacional) e abrange 503 municípios. Sua
Governo Imperial de estudar o Velho Chico da nascente a barra do Rio
imensidão abarca sete Estados brasileiros: Bahia (48,2%); Minas
das Velhas. O fascinante francês era astrônomo e trabalhou no Impé-
Gerais (36,9%); Pernambuco (10,8%); Alagoas (2,3%); Sergipe (1,1%);
rio a convite de Don Pedro II que, na ocasião, desvincunlou o Imperial
Goias (0,5%) e parte do Distrito Federal (0,2%). Para fins taxonômi-
Observatório – repartição a qual havia sido convidado – da Escola Mili-
cos, a região foi dividida em três grandes regiões, embora existam
tar: tratava-se de uma dos pedidos do francês para assumir o cargo.
outros recortes variando de acordo com a necessidade científica.
O fascínio de cada um deles, mesmo em suas particularida-
Existe, então, o Alto, o Médio e o Baixo São Francisco. A parte Alta
des, era o mesmo quando se falava da magnitude do Velho Chico,
localiza-se entre a Serra da Canastra – em sua nascente – e vai até
mais velho que o nome pode aludir, certamente: o São Francisco
a cidade de Pirapora; a parte Média situa-se entre Pirapora (MG)
foi o rio da unidade nacional depois de ter sido aos aborígenes o
e Paulo Afonso (BA); por fim, a parte Baixa vai de Paulo Afonso à
grande Opará, que, de tão grande, faz-se parecer mar...
foz, entre Sergipe e Alagoas.
A geo-política do São Francisco
Diferentemente do que se imagina, o problema da chuva na região não se detem na falta, mas sim, na irregularidade dos índi-
Em 1990, já havia desaparecido 66% das matas originais na
ces pluviométricos. “Por mais paradoxo que possa parecer, essa
bacia do Rio São Francisco, bacia essa que abrange nada mais do
região está sujeita a cheias frequentes dos rios intermitentes que
12
a integram”.
7
Isso quer dizer, portanto, que os valores medios
dos canaviais. Muitos escravos indígenas foram capturados nos
anuais das chuvas podem ocorrer em um só mês, proporcionando
primeiros anos de povoamento, como também foi observado por
assim uma escassez de água nos demais meses do ano. A região
Mata-Machado.
nordestina do rio, como se sabe, é a mais localizada no polígono
O rio São Francisco, apesar de momentos de grande isolamen-
das secas. Imperam ainda fortes interesses coronelistas na região
to, teve momentos efêmeros de expansão econômica. Durante a
que padece de uma eficaz administração pública – outro fator que
guerra da Independência e guerra de secessão norte-americana,
corrobora com a seca.
a região do vale exportou algodão para a Inglaterra, e, durante o
O relatório do governo aponta também para o problema do
período aurífero o vale rompeu com o isolamento econômico tão
assoreamento: uma das principais causas da degradação do rio.
manifesto nessas paragens até os dias de hoje. Mata-Machado
Como foi citado, boa parte da matas ciliares foi arrancada para fi-
também trata deste assunto em sua obra história do sertão noro-
nalidades várias, causando o desmoronamento das encontas para
este de Minas Gerais.
dentro do rio. Ainda, em razão da atividade agrícola, as nascentes
O vale, no decurso de sua história, passou por várias fases,
se degradam violentamente, contribuindo para a diminuição do
mas, um período que é importante ser rememorado é quando co-
fluxo de água.
meçaram a construir as barragens na década de 40: houve uma
A região, apesar dos inúmeros problemas de ordem ambien-
forte mudança da dinâmica das águas que corriam no Velho Chico
tal, é uma das maiores fontes geradoras de energia hídrica do
e o volume do rio, que antes era controlado pelas secas e enchen-
país, energia esta que é também exportada.
tes, passou a ser controlado pelo homem. Durante todo o seu
O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens.
percurso hoje é possível ouvir o quanto a construção das barragens afetou a vida dos peixes, do rio e da população ribeirinha. No século XX, são feitos inúmeros projetos desenvolvimentistas
De acordo com Bernardo Mata-Machado, na segunda me-
que, muitas vezes, sequer foram concluídos. Na porção nordesti-
tade do século XIX - além da cultura agropastoril que também
na, há barragens que simplesmente não foram concretizadas pelo
existia na zona açucareira nordestina e a lavoura cafeeira - a eco-
Governo, deixando ares de decadência.
nomia são-franciscana contava com algumas regiões de extração
A natureza foi o bem mais fiel para com o sertanejo desde
aurífera, como o município de Paracatu. Durante determinado
os primeiros anos de dominação territorial e política. Esta sempre
período, a mão-de-obra africana era utilizada ali, e em Januária,
tinha algo a oferece ao povo do sertão, mesmo com todas as di-
nos engenhos de cana. A estrutura escravocrata nesses lugares
ficuldades que foram aparecendo devido à intensa ação humana
demandava a atividade econômica do tráfico negreiro que, atra-
que este rio sofreu durante a construção de sua história.
vés das águas do rio São Francisco, trazia uma matriz étnica negra
Indaga-se, então, acerca dos prumos do Rio São Francisco:
bem marcante em alguns lugares do vale, sobretudo na região
Quais os rumos para o tão importante e histórico rio que desponta
13
nos projetos do Governo Federal: revitalização ou transposição? São, certamente, duas discussões distintas que o Governo Federal teima em entoar com o mesmo tom, infelizmente.
1
Citação extraida do livro São Francisco: o rio da unidade; a river
for unity, publicado em parceria entre a empresa Mercedes-Benz do Brasil com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. 2
Teodoro Sampaio. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina.
Expedição que originou o livro, realizada entre agosto de 1879 e janeiro de 1880. 3
Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Publicado
em 1972. 4
Geraldo Rocha. O Rio São Francisco: fator precípuo da existência
do Brasil. Publicado a primeira vez 1946. 5
Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-
nas Gerais. Publicado em 1991. 6
Caderno da Região Hidrográfica. Ministério do Meio Ambiente
(MMA). 2006. 7
Ibidem, pag 70.
14
Três Marias: aqui o rio corre gordo, represado
Felipe Chimicatti
“ São cinco povos no São Francisco - mineiros, baianos, sergipanos, alagoanos e pernambucanos, mas as mesmas características na luta e no sofrimento.” Norberto Soares
Três Marias acumulou no decurso de sua recente história uma
lizada”, pois para ele “em Minas, mais do que em qualquer outro
série de características peculiares: ali o Velho Chico corre gordo -
Estado, prevalecia à mesma mentalidade dos tempos da República
em formato de lago -, move-se calado em direção a Pirapora. Mas
Velha”. Por essa razão, JK “não queria construir estradinhas de
se esse rio falasse (de certa maneira fala, embora língua própria,
terra ou as ridículas casinhas de força, mas obras que atingissem
de verbetes naturais) – quer dizer – se ele falasse em português
o imaginário, o ego, a sensibilidade, a emoção das pessoas”. 1 Em
claro, sertanejo, falaria de histórias imemoráveis: falaria dos lusi-
1961 a barragem estava pronta e se fazia enquanto uma das maio-
tanos chegando às suas barbas em 1501, falaria dos cinco estados
res do gênero em todo mundo. O francês Allan Cullen, autor de
que singra, contando meticulosamente a brecha de terra na qual
um interessante livro escrito em 1964 - sobre a história das barra-
fileta, falaria de suas dores, obviamente, dizendo impetuoso dos
gens - chamado Rios Prisioneiros, escreveu o seguinte:
metais que lhe pesam o fundo, dos esgotos caídos sem tratamento, do homem e de sua mão de dois gumes: de carícia e de chibata, falaria dos seus cílios frondosos arrancados sem dó na moto serra de som agudo rasgado, falaria, ainda, da sua vivacidade, tentando ser extinta pelo tal assoreamento, aquele reflexo triste da terra que amontoa sobre sua lâmina de água; e sua calha vai se alargando e sua potência minguando, minguando, minguando... Se o rio falasse, bradaria. Inauguração da BR-040; construção da barragem de Três Marias – umas das maiores do gênero nas proximidades do seu tempo, represando água para gerar energia (e haja progresso!), controlar a vazão de um gigante (o Velho Chico), irrigar plantações e permitir navegabilidade; chegada da Companhia Mineira de Metais (CMM), hoje Votorantim Metais (VM); elevadíssimo capital especulativo; PIB per capta em 2007: R$ 42.000 (o 65º frente aos mais de 5.000 municípios brasileiros). Em Três Marias a história começou nas imediações do ano de
Para executá-la [a barragem] foi preciso erigir no local (...) uma verdadeira cidade, onde se pudesse abrigar uma população de cêrca de 10.000 pessoas. Assim foram construídos além das residências e alojamentos, todos os demais prédios para as instituições de uma cidade normal, tais como escola, hospital, cinema, igreja, armazéns, frigoríficos, clubes, etc. No auge da construção, trabalharam diretamente em Três Marias 4.000 pessoas aproximadamente, usando um parque de equipamentos dos maiores já empregados no Brasil, principalmente quanto a equipamento de terraplanagem e solda. As fases críticas da construção foram as de desvio do rio e a de fabricação e montagem de 2.069 metros de tubulação de aço de 6,60 metros de diâmetro. A tubulação foi toda fabricada no local, em instalações apropriadas que permitiram, em 11 meses, construir 298 secções de tubos, com 36 quilômetros de solda, inteiramente controlada por raio X. 2
1956, com Juscelino Kubtischeck, presidente brasileiro responsável
Na ocasião da construção, ainda foram atingidas pelas inun-
pela audaciosa campanha de enfiar 50 anos de progresso em cinco
dações sete cidades: Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras,
(antes o lugar era um vilarejo de nome Barreiro Grande). JK era
Pompeu, Martinho Campos, Abaeté e São Gonçalo do Abaeté. A
homem sisudo; dizia que Minas Gerais se constituía de “ilhas de
usina gera hoje 396 megawatts responsáveis por abastecer, em
rebeldia desenvolvimentista no mar morto da pasmaceira genera-
grande medida, o norte de Minas; tem 2.700 metros de extensão e
17
A barragem de Três Marias construída no ano de 1956, na gestão Juscelino Kubitscheck. Na época de sua construção se caracterizou enquanto uma das maiores do gênero em todo o mundo. Hoje é responsável pela geração de 396 megawatts que abastece, em maior medida, o norte de Minas.
75 metros de altura. Usualmente este grande lago que se formou
exatamente à margem, muito próxima das águas). Acontece que
é chamado de Mar de Minas - espécie de substituto à frustração
essa se mostrou imprópria, apresentando em pouco tempo vaza-
criada pela extensa territorialidade do Estado que não pode ver o
mentos residuais; e pior: foi construída em cima de três nascentes
mar, exceto no cume do Pico da Bandeira, no limite com o Espírito
e duas veredas. Agora a empresa esta em processo para constru-
Santo. Notadamente não é o bastante.
ção da terceira barragem – a barragem Murici. O rejeito ainda hoje
Os dores do São Francisco na ótica de um dos pescadores: o seu Norberto
está bem à margem do rio; o que o seu Norberto enfatizou como o “cartão postal negativo de Três Marias”. Para ele “o maior problema do rio se chama Votorantim metais”, entretanto, retirá-la de lá
Casa rústica de ribeira repleta de gente. Cabeça de dourado
é parte de uma grandiosa polêmica: as pessoas dependem da em-
empalhada na parede, retratos do mérito pesqueiro: aquela foto
presa e a cidade de certa maneira vive em torno da receita gerada
tirada com um peixe imenso, comum de se ver nas margens do
por ela. Para se ter uma idéia, a Votorantim esta presente em mais
rio, espécime em troféu. Seu Norberto Antônio, 59 anos, é um
três países: Estados Unidos, China e Peru; é a maior produtora
negro aprazível, de serenidade no olhar e tranqüilidade no falar.
de zinco da América Latina, está também entre as cinco maiores
Fala seguro do São Francisco porque o conhece profundamente.
produtoras do mundo. Emprega atualmente 3,5 mil pessoas e, em
É homem de foro político, já viajou para vários estados e países
2006, produziu 402,5 toneladas de zinco. E o seu Norberto nos
como o Canadá e a Itália; tudo através da relação com o rio. Quando
disse que no seu terreno não era possível furar um poço artesiano
indagado do atual estado do Velho Chico, entristece: “o rio sempre
em decorrência da contaminação do lençol freático.
sofreu, as coisas sempre foram tiradas dele”.
A empresa, por sua vez, afirma categoricamente que não é a
Atualmente, a região de Três Marias está perplexa por um fato
culpada. Diz ainda que ainda que a mortandade se estende acima
que vem se estendendo desde 2004: a mortandade dos peixes.
e abaixo da empresa no curso do rio (a montante e a jusante),
Aparecem mortos, sobrenadantes em lâmina de água, uma enor-
mostrando que, mesmo antes do peixe passar pela região de Três
midade deles anualmente. Tem épocas que se intensificam as
Marias, já se verificam eventuais mortes. Leonardo Mansur, asses-
mortes, tem épocas que diminuem. Entretanto, o peixe vem mor-
sor de comunicação da VM, disse que a mesma, antes das legisla-
rendo e para explicar melhor a condição das águas é preciso falar
ções ambientais, jogava sim o rejeito no rio, entretanto se tratava
da Votorantim Metais (VM). Sabe-se que a empresa, até 1983,
de uma política nacional, ou seja, um modus operandi das empre-
lançava seus rejeitos in natura no córrego Consciência, tributário
sas brasileiras. Agora que as resuluções existem, a VM cumpre
do Velho Chico. O rejeito, repleto de metais pesados (sobretudo
criteriosamente cada uma delas. Ainda desenvolve um montante
zinco), depositou-se no fundo do córrego, sendo vez ou outra re-
significativo de pesquisas para conseguir se desfazer da alcunha
volvido e lançado no rio por intermédio das chuvas. A empresa já
de culpada: acaba-se com o fato, acaba-se com a denúncia. A
construiu uma segunda barragem, longe da calha (a primeira ficava
construção da barragem Murici ainda está orçada em 300 milhões
19
Ponte da BR-040 que atravessa o Velho Chico no trecho de TrĂŞs Marias
de reais, obedece à determinação de 200 m de qualquer curso hídrico e ainda conta com duas camadas impermeabilizantes. Ela ainda tem vida útil de 20 anos para depósito do rejeito via rejeitoduto; uma espécie pastosa que será lançada até o deposito de rejeito por intermédio de uma tubulação específica. Acontece que qualquer metal pesado, de qualquer procedência, influi sobremaneira na qualidade da vida aquática. Ou seja, mesmo com políticas corretivas, o rio veio sofrendo ferozes empreitadas que lhe desregula a lógica biológica. Por mais que as empresas e as prefeituras tentem se isentar de uma pressuposta culpa, é inerente à atividade industrial a poluição. A mortandade, por mais que seja aspecto duvidoso e amplamente negado pela VM, existe, mesmo que no imaginário do cidadão ribeirinho. Eles falam disso todo o momento, eles acreditam que isso acontece, eles vêem os peixes mortos quando vão ao rio: a morte dos peixes, por mais nebuloso que possa parecer, é sem dúvida um sintoma do Velho Chico e, de sintomas, a sociedade também se torna enferma. A ciência simplesmente não tem dado conta da degradação do meio-ambiente... E isso é uma constatação mundial. A gerente de Gestão da qualidade do solo da Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente), Rosângela Gurgel Machado, enfatiza a complexidade da questão. Existem alguns estudos sobre contaminação dos solos e das águas, mas, de maneira geral eles dizem pouco acerca das medidas mais indicadas a serem tomadas. Por exemplo, com relação à remoção completa dos resíduos, não se sabe ao certo se é mais indicado retirá-los ou não. Caso se retire, as conseqüências podem ser mais impactantes do que deixá-los (apesar de não se saber ao certo). “Boa parte das retiradas residuais no Brasil atendeu fins quantitativos e não qualitativos”. Os rejeitos aumentam muito o volume das águas, mudando
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invariavelmente o curso dos rios, rios estes que por vezes cortam
ainda preliminares e não apontam para uma resposta. Uma per-
cidades; nestes casos se faz necessário remediar as enchentes.
cepção minha reiterada pela do técnico da VM - o biólogo João
Rosângela também afirma que, a partir da construção da barra-
Eudes - é que ao invés da população procurar um culpado, um
gem Murici – que esta em processo de licenciamento pela Feam
álibi para os problemas socioeconômicos, deveria se deter sobre
- o córrego Consciência será limpo. “Não faz sentido remover os
a busca de alternativas aos problemas eminentes; e isso vale para
resíduos antes da construção da barragem; os vazamentos conti-
todos os cidadãos brasileiros, afinal os recursos hídricos são desti-
nuariam”. Ela ainda faz menção ao comprometimento da empresa
nados à vida, e os esforços particulares influem sobremaneira em
com relação às designações do Estado. A Votorantim acompanha
sua conservação. Norberto, por exemplo, acredita na importância
“rigorosamente as condicionantes” e admite a existência de um
da educação ambiental a longo prazo. Mas certamente existem
problema de contaminação. A empresa ainda financia fortemente
medidas paliativas funcionais. Educar, entretanto, é o passo largo
o setor de pesquisa, embora em nosso gracioso sistema o lucro se
de envergadura eminente.
amontoe delicadamente sobre as condicionantes ambientais, há,
Por mais que a discussão mais pertinente se paute na recons-
aí, uma lógica inescrupulosa que garante um bom fio condutor à
trução da relação com o rio, ainda é impraticável perceber os
publicidade institucional – opinião minha, vale salientar.
altos índices de metais pesados nas águas do Velho Chico. Erida F.
Outro problema complexo diz respeito ao lançamento de
Araújo Silva, pesquisadora da UFSCar, constatou em sua diligente
efluentes no rio, mesmo com a Estação de Tratamento de Esgoto
pesquisa – no período chuvoso - um percentual de zinco 22 vezes
(Ete) sendo inaugurada somente este ano. Toda a carga poluidora
acima do nível em que se esperam efeitos negativos ao ambiente
do esgoto da cidade recai sobre o córrego Barreiro Grande, outro
(18,466 mg/kg na foz do córrego Consciência), além da presença
tributário do Velho Chico. “Por vezes, a quantidade de esgoto é
elevada de cádmio e chumbo. Para se estipular esses valores foi
maior que a de rejeito industrial”, aponta Rosangela. A Ete, entre-
necessário lançar mão de um padrão internacional canadense,
tanto, será dedicada somente ao lixo residencial, sem dar aporte
pois no Brasil não existe resolução referente a esse tipo de análise
ao lixo industrial.
(SEL, Severe Effect Level, definido pelo Ministério de Meio Ambiente
Existem várias teses que tratam do tema dos metais. A Uni-
de Ontário - uma das províncias do país).
versidade Federal de São Carlos (UFSCar) fez alguns estudos na
Por mais que a ciência lance olhares diversos sobre a região,
região, embora à causa pontual da mortandade seja ainda hoje
repleta de condicionantes, a frustração da população parece pa-
nebulosa. É muito recorrente ouvir falar da instituição na região
decer com os peixes. A Cemig (Companhia Energética de Minas
de Três Marias. Roberto Rodrigues, Secretário de Meio Ambiente
Gerais), outra gigante no território de Três Marias, começou a
da cidade, disse-nos que existem ainda estudos de uma ONG ca-
desenvolver um interesse projeto na jurisdição estadual que se
nadense (World Fishery Trust) responsáveis por analisar o proble-
iniciou no município: o projeto Peixe Vivo. Segundo Marcelo
ma da ótica da genética molecular. Mesmo assim, os estudos são
Micherif, assessor de comunicação da empresa, a empreitada
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se baseia no tripé: programas de conservação, pesquisa e envol-
cação formal e atingi suas próprias vidas de maneira pungente: o
vimento da comunidade. Atualmente a empresa abre parte de
peixe representa vida nestas paragens.
seus procedimentos técnicos à comunidade e realiza importantes peixamentos (assim como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, CODEVASF), ou seja, criação de peixes em cativeiro para repovoamento da ictiofauna. Infelizmente, essa mobilização dialógica entre empresa e cidadão ribeirinho se deu a partir uma terrível fatalidade: a mortandade de 2007. Houve um acidente nesse ano que matou aproximadamente cinco toneladas de peixes, tudo em razão de uma manobra equivocada da própria empresa. Ao fechar as comportas, a usina parou de verter água, formando uma espécie de bacia nas imediações da represa. Ali se acumulou um imenso número de peixes que não teve como sair; os peixes morreram por falta de oxigênio. Em seguida, numa ten-
A pesca em Três Marias Um detalhado relatório do Ibama acerca do desembarque pesqueiro na bacia hidrográfica do Rio São Francisco aponta: O custo do material, consumido para a pescaria (gelo, combustível) é apontado como alto; os equipamentos de pesca (redes, barco, motor) também custam caro, e por sua utilização freqüente e intensa, ou pelas próprias condições naturais, sofrem (...) um desgaste que contribui para diminuir ainda mais a rentabilidade da pesca. Outras dificuldades são citadas como maiores empecilhos à pesca, as leis, as restrições à atividade, e a fiscalização. 3
tativa de interromper a morte dos cardumes, a Cemig reabriu o
Sobremaneira, Três Marias ainda é uma das regiões mais privi-
vertedouro. Os peixes seguiram para a área da turbina seis que,
legiadas de toda a bacia do S.Francisco, seja em comparação com
em razão de um problema técnico, não pôde ser ligada; desta feita
qualquer outro dos quatro Estados que a compõem. Norberto
morreram mais toneladas. Foram encontrados peixes mortos a
disse-nos: “à medida que se vai descendo o rio, a tendência é a
40 quilômetros para baixo da represa. Seu Norberto só consegue
pesca ir se tornando mais precária”. Quão mais ao norte, mais es-
comparar a tragédia ao dia da construção da represa, em 1961,
sencial vai se tornando o correr do S. Francisco, mais necessária
onde “até onça morreu afogada”. Norberto diz ter visto peixes
se faz à água, necessária em ritmo de urgência, pois de demasiado
sobrenadantes descendo o rio durante uma noite e um dia inteiro.
seco o corpo perece, e isso se sente quando o sol penetra a epi-
Para cada metro quadrados de água, dois ou três peixes boiando.
derme e agride. De acordo com um estudo de Norma Valência, da
Aproximadamente metade dos peixes era da espécie dourado,
UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e de outros pesquisa-
bastante apreciada na região. Para Norberto, o dia mais triste da
dores: 50% das famílias dos pescadores do alto-médio S.Francisco
sua vida. A CEMIG recebeu a maior multa por danos ambientais de
têm renda per capta de até meio salário mínimo, na medida em
sua história, cinco milhões de reais. Para Micherif, “faltou diálogo
que somente 19% têm tem renda per capta de um salário mínimo
entre os ribeirinhos e a empresa até o ano de 2007”, no entanto, a
ou mais. Em relação à escolaridade, 28% nunca freqüentaram a
relação da empresa por ora parece mais transparente. Agora, no
escola, 65% têm até quatro anos de escolaridade e apenas 9% têm
imaginário dos pescadores, o problema técnico ultrapassa a expli-
escolaridade acima do antigo primário completo. O reflexo disso é
25
A pesca em Três Marias é, como nos disse o pescador Norberto, uma das mais privilegiadas de todaa Bacia do São Francisco. Na medida em que o rio vai atingindo suas cercanias nordestinas, a tendência é a atividade ir se tornando mais precária e cada vez mais essencial à vida de ribeira.
a conglomeração dos pescadores: usualmente eles se organizam
o peixe. Certamente o faz por lazer, embora não possa criticar
em grupos, nos bairros mais afastados. São figuras humildes que
o pescador que se enquadre nos parâmetros mínimos impostos
necessitam da pesca invariavelmente para a subsistência de suas
pelas legislaturas federais e estaduais.
famílias. Prova disso é que menos da metade dos pescadores -
Outra questão complexa diz respeito ao período de defeso:
ainda de acordo com o estudo de Valêncio publicado em 2001 - tra-
trata-se da época do ano – normalmente entre novembro e feve-
balha exclusivamente com a pesca. Normalmente desenvolvem
reiro (época de chuva), porém passível de ser determinado pelo
os mais variados ofícios para complementar a renda; ofícios como
órgão estadual competente – em que os peixes de piracema se
o de garçom, mecânico, entregador de gás, comerciante de peixe,
reproduzem. Piracema significa em tupi subida do peixe. Para
guia turístico para pesca amadora, pintor ou marceneiro.
4
isso, eles sobem vários quilômetros para se reproduzirem nas
Ainda a se aglutinar à constante labuta dos pescadores,
cabeceiras dos rios e, em detrimento do cansaço, tornam-se pro-
existem inúmeras forças contrárias ao exercício sustentável da
pensos à predação. Assim - na época de piracema - o pescador
profissão. Por exemplo, o truculento embate entre pescadores
licenciado nas respectivas Colônias dos Pescadores tem o direito
amadores e pescadores profissionais artesanais gera conflitos.
a um salário mínimo por mês pago pelo Ministério de Agricultura e
A categoria que não depende da pesca para subsistência ataca a
Pesca através do FAT (Fundo de Amparo ao trabalhador) durante
pesca profissional artesanal por julgá-la predatória. Parte dos pes-
a redução da atividade pesqueira. Marcelo Coutinho, gerente de
cadores profissionais, inclusive, evita a pesca nos finais de semana
fauna aquática e de pesca do IEF (Instituto Estadual de Florestas),
por não se sentir confortável. Segundo Mario Olindo Tallarico
responsável pela fiscalização da região de Três Marias, admite que
de Miranda, analista ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro de
o salário-desemprego tem que melhorar, entretanto não vê a ati-
Meio Ambiente), “dentre todos os motivos de diminuição do
vidade pesqueira na região enquanto ofício plenamente sustentá-
peixe e da atividade pesqueira, a pesca é a menos impactante”.
vel, longe disso: “só no ano passado apreendemos 14 quilômetros
Ainda acrescenta, “existem uma série de atividades muito mais
de rede e 700 kg de pescado fora das determinações legais”, en-
importantes para a depressão dos estoques pesqueiros do que a
fatiza. Marcelo ainda afirma que o órgão tem diversos problemas
pesca; a construção de barragens é a pior delas, a introdução de
de fiscalização e que parte dos pescadores age de maneira inco-
espécies exóticas, talvez seja a segunda pior”. O tucunaré, como
erente, recebendo o salário-desemprego sem exercer o ofício de
colocado por Tallarico, é um caso desses. Trata-se de uma espécie
pescador. Conta ainda que na última fiscalização foram apreendidas
de origem amazônica, ou seja, de outra bacia: não existem pres-
quatro armas de fogo. “Alguns pescadores extrapolam a permis-
sões biológicas para o controle desta espécie predadora no Velho
sividade da atividade acreditando estarem lucrando, mas, com
Chico. Outro ponto que provoca debate é dos equipamentos. Na
isso, acabam inibindo a sustentabilidade da pesca: pescam exem-
medida em que a pesca amadora critica a profissional, abaste-
plares repletos de ovos prontos para desovar” pontua. Marcelo
ce-se de equipamentos cada vez mais sofisticados para capturar
ainda acredita que a categoria é muita desunida: “eles vêem-se
27
enquanto concorrentes uns dos outros, lutando em uma compe-
- no período de cheias - os alevinos (filhotes desses peixes) se
tição inter-específica”. Hoje parte dos pescadores se comunica
encaminham para as lagoas marginais. As lagoas marginais são
por celular para informar os companheiros da fiscalização (vale
imensos berçários de peixes que em tempos de cheia se ligam ao
salientar que esses casos existem, mas não se pode em hipótese
rio pela inundação do mesmo; nos tempos de seca, no entanto,
alguma generalizá-los). A conscientização parece ser a saída mais
isolam-se dos rios. Esse isolamento constitui uma menor ameaça
eficiente, pois, as medidas paliativas surtem efeitos muito especí-
aos alevinos no período inicial da vida por razões ecossistêmicas
ficos. Recordo que, quando Norberto nos convidou a passear pelo
e, quando já estão suficientemente jovens, retornam ao rio por
rio em seu barco, alertou-nos das câmeras. Era necessário filmar
intermédio de outra cheia: daí decorre a importância da estabili-
e fotografar com parcimônia ou senão os pescadores poderiam
dade dos ciclos hidrológicos. Caso ocorram poucas cheias, a po-
se indignar. A determinação legal para o pescador que for pego
pulação dos peixes de piracema inevitavelmente diminui. Essas
pescando de forma irregular é clara: apreende-se o material pes-
lagoas estão desaparecendo por razões antrópicas: pastagens,
queiro e os peixes; em seguida aplica-se uma multa. Como boa
plantações de cana, uso indevido das suas águas para fins comer-
parte dos pescadores não tem conta em banco ou qualquer filia-
cias: tudo isso vai suprimindo a vida aquática no rio S. Francisco.
ção financeira formal, a multa entra para a dívida ativa e possivel-
A região de Três Marias à Pirapora ainda é o maior nascedouro e
mente nunca será paga: sequer coagi o infrator que, como disse
reduto de peixes do Velho Chico. Com o desaparecimento dessas
Marcelo, “volta ao mesmo lugar que foi apanhado para cometer
lagoas na região, os impactos se perpetram indefinidamente pelo
a mesma infração”.
curso da vida no rio.
Dos peixes e dos limites legais da pesca passando pelas lagoas marginais
Com relação às proibições, o IEF (Instituto Estadual de Florestas), responsável pela fiscalização da pesca, dispõe da legislação estadual pesqueira e, recorrentemente são criadas portarias
Dourado, cangati, cascudo-preto, corvina, curimatã-pacu,
para adequar a conjuntura pesqueira à legislação vigente. Existe,
acará, matrinxã, sarapó, piranha, traíra, tucunaré, surubim: das e 173
porém, a legislação federal destinada à pesca. Como explica
espécies catalogadas na porção mineira (12% do total encontrado no
Marcelo Coutinho, gerente de fauna aquática e de pesca do IEF, a
Brasil), certamente há predileções pesqueiras. No caso da porção
legislação estadual tende a ser mais restritiva que a federal, pois
mineira do Velho Chico, o dourado e o surubim são muito aprecia-
a federal não leva em conta as características particulares de cada
dos em detrimento dos demais peixes: seu elevado preço de venda
regionalidade. No caso de Minas Gerais, esta legislação estadual
5
atinge R$ 8,11/kg e R$10,10/kg , respectivamente, motiva a captura
existe e é mais restritiva. Para se ter uma idéia, hoje é proibida
por parte dos pescadores, obviamente por razões de lucratividade.
a pesca no rio Pandeiros, importante afluente do Velho Chico –
Como se sabe, ambos os peixes – como vários outros – são
um valioso berçário natural de peixes. A legislação federal não
peixes de piracema: necessitam subir o rio para desovar. Assim
contempla essa especificidade, embora a estadual o faça: uma
28
forma de setorizar as particularidades. Existe também o tamanho
nores curvas, nas menores turvas falanges de água que lhe en-
mínimo para captura dos peixes, variando de acordo com cada
tregam o peixe como alimento. O ribeirinho sabe dos perigos de
espécie. O dourado e o surubim têm limites de no mínimo 60 e 80
arriscar, mas, em despeito a isso, vê o centenário Chico acenar na
cm respectivamente. Os demais peixes têm limites na ordem de
sua mais suntuosa envergadura, de rio grande e brasileiro que é.
35 cm, aproximadamente.
Seus danos são nossos, sua clara forma de reivindicar pede cuida-
É proibido pescar a menos de 300 metros à montante e à ju-
dos sinceros, pois senão o “rio da unidade nacional” perderá seu
sante de barragens e usinas hidrelétricas (na época da piracema,
cerne vigoroso de único imenso corpo d’água brasileiro da cabeça
em 2008, a distância se estendeu para 1.000 metros); a menos de
aos pés.
200 metros de corredeiras, cachoeiras e confluência de rios (na piracema a distância também se estendeu para 1.000 metros) e nas lagoas marginais a pesca é proibida durante todo o ano. Ainda
Andrequicé e a confluência sertão,literatura: Manuel Nardi e João Guimarães Rosa
no período de defeso em 2008 foi proibido pescar a menos de 500
“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra
metros de raio da confluência e desembocadura de rios, lagoas,
doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se
canais e tubulações de esgotos.
condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.
Para esses fins, na piracema, a legislação estadual delimitou
Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava
para a represa de Três Marias um limite para a pesca de cinco
muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá,
quilos mais um exemplar, na medida em que fora da piracema o
o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei,
limite sobe para dez quilos mais um exemplar. É ainda proibido
umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declara-
reter peixes sem couro ou escama - ou seccionados - para que a
do, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu
fiscalização possa ser feita. Redes com tamanho inferior a 100 mm
tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e
também são proibidas no reservatório de Três Marias medida que
eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo
impede que os pequenos peixes sejam apanhados, postergando
o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim dizendo, meu cora-
a captura dos mesmos em fases mais adultas. Existem ainda licen-
ção bateu no compasso do mais certo (...) Sofri o grave frio dos
ças para a pesca desportiva, a despesca captura de espécimes
medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem,
para fins de manejo ou emergências ambientais -, pesca científica
depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.
e pesca subaquática. Todas as categorias precisam ser registradas
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do
junto ao órgão competente, no caso de Minas Gerais, o IEF.
6
mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem
Mas, como gosta de dizer Norberto, “os guardiões do Velho
em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa
Chico somos nós”... O pescador é sim a carícia que perpassa pelo
água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,
azul do São Francisco e, como seu amante, conhece-o nas me-
rio a dentro — o rio. 7
29
Obra do artista João Wilson (à esquerda) que compõe o memorial Manuelzão, em Andrequicé. (Acima) detalhe da pedra inaugural do memorial. O museu foi noutros tempos a casa do próprio Manuel Nardi. Hoje o local compõe uma coletânea com as memórias do vaqueiro, sobretudo àquelas ligadas ao contato com João Guimarães Rosa.
João Guimarães Rosa, o mesmo qual havia dito, por ocasião
O município, desde então, vangloria-se desse elo histórico. Foi
do falecimento de um colega do curso de medicina, que “as pes-
criado em 2005 um interessante circuito turístico dedicado a João
soas não morrem, ficam encantadas”; deu ao sertão motivação
Guimarães Rosa, o primeiro do gênero onde a rota se baseia em li-
lírica. Esta mesma frase seria repetida 40 anos depois na ocasião
teratura, podendo ser trilhados os caminhos descritos pelo mineiro
da posse na Academia Brasileira de Letras. Três dias depois do dis-
de Cordisburgo em sua poética sertanejista. Compõem o circuito:
curso, no ano de 1967, João veio a falecer sozinho em seu aparta-
Araçaí, Buritizeiro, Cordisburgo, Corinto, Curvelo, Felixlândia, Ini-
mento em Copacabana, com 59 anos.
mutaba, Lassance, Morro da Garça, Pirapora, Presidente Juscelino,
Andrequicé, cidade pertencente ao município de Três Marias,
Três Marias e Várzea da Palma. Em Andrequicé - distrito de Três
ganhou notória visibilidade depois da estreita relação fundada
Marias - existe o Memorial Manuelzão, um museu sediado na casa
por Rosa e Manuel Nardi. A popularidade intelectual da obra de
em que Nardi morou durante a sua vida. Nele estão instrumentos
Guimarães foi tamanha que Manuelzão — personagem da litera-
do vaqueiro bem como cartas de Guimarães. A estrutura ainda pre-
tura rosiana — fundiu-se a Nardi: hoje praticamente são a mesma
servada da residência do curioso vaqueiro está à disposição dos visi-
pessoa. Os dois se conheceram na ocasião de uma cavalgada de
tantes. Convenientemente, todo ano acontece na cidade a Festa do
dez dias pelo sertão mineiro — da fazenda Sirga, em Três Marias
Manuelzão: um evento cultural que tende a conglomerar os turistas
à fazenda São Francisco, em Araçai. Venceram junto a um grupo
em torno da riqueza do sertão e das suas particularidades, partindo
de cavaleiros 240 quilometros com 198 cabeças de gado. Para
da obra de Rosa. A cidade é pequena, tranquila, repleta de verde e,
Manuelzão, certamente, uma caminhada agradável pelo ínvio
em suas imediações, existe uma série de veredas (vegetação alagada
sertão, para Rosa, uma descoberta repleta de percalços. Na pri-
típica do sertão, fundamental à vida ne região que ilustra o título de
meira manhã - como narra o próprio Nardi — Guimarães se abs-
uma das mais notórias obras do escritor: Grande sertão: veredas). Em
teve da dose de aguardente e da feijoada com toucinho e carne
decorrência da degradação ambiental, elas estão se perdendo, so-
seca servida logo pela manhã; nos dias subsequentes, o literato
bretudo em razão das plantações de eucalipto destinada a diversos
embarcou na alimentação, pois o sertão requeria uma energia que
fins, incluindo a atividade carvoeira. Manuel dizia “nada gosta de eu-
os pães com café e leite não poderiam dar. Guimarães ainda nutria
calipto”, e de certa maneira a destruição das veredas simboliza isso.
o particular hábito de trazer em suas mãos cadernetas que se en-
O curioso morador de Andrequicé morreu em 05/05/1997 —
chiam com o passar dos dias e, sempre vinham penduradas ao seu
exatos trinta anos depois de Guimarães — e deixou, além de uma
pescoço. Dali saíram as anotações que constituíram o substrato
admiração pela sua sinceridade sertaneja, um legado cultural que
de sua obra literária, incluindo a figura do Manuelzão. Seu inte-
notadamente não se encerra na obra literária de nenhum escritor,
resse inicial nessa cavalgada consistia em ouvir os “causos” dos
mas sim na diversidade da identidade cultural do povo brasileiro: A
trovadores sertanejos, coisa que Manuelzão ficou encarregado de
obra de Rosa é um fascinante olhar sobre isso, uma das razões de
providenciar na região; contadores de estórias.
sua profundidade. Em momento nenhum ela se propõe a inventar
31
um universo novo e inesperado, antes pelo contrário, propõem-se
endereço: www.almg.gov.br/revistalegis/revista33/maria33.pdf
recriá-lo e recontá-lo pela ótica de um erudito que soube transitar
2
magistralmente pelo reino da palavra — seja ela oral ou escrita. Guimarães - para se deixar registrado — disse a uma prima por ocasião de uma entrevista que possuia as seguintes aptidões linguísticas: Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração. 8 Formado em medicina, deu-se à diplomacia quanto antes pôde. Morou em diversos países, incluindo a Alemanha do período nazista. Foi um facilitador da fuga de diversos judeus em conjunto com sua segunda esposa - Aracy Moebius de Carvalho -, sendo homenageados os dois em Israel no ano 1985: o nome do casal foi dado ao bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso à Jerusalém. Falar de Andrequicé sem falar de João Guimarães Rosa — o João Rosa, como usualmente o chamava Manuel Nardi — é de-
Rios Prisioneiros: (a história das barragens). Allan Cullen.
1964, p. 195-196. 3
Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da
Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag 45. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/ arquivos/IBAMA001.pdf 4
Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais.
(Org) Hugo Pereira Godinho e Alexandre Lima Godinho. O artigo citado foi: A precarização do trabalho no território das águas: limitações atuais ao exercício da pesca profissional no alto-médio São Francisco produzido pelos pesquisadores Norma Valêncio, Alessandro Leme, Rodrigo Martins, Sandro Mendonça, Juliano Gonçalves, Maria Mancuso, Isabel Mendonça e Silvana Felix. 5
Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da
Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag 46. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/ arquivos/IBAMA001.pdf 6
Para mais informações a respeito das determinações legais da
pesca bem como dos critérios da emissão da carteira de pescador, o site do IEF dispõe de tais diretrizes legais: http://www.ief. mg.gov.br/pesca.
sapropriar a riqueza da história tão grande de uma cidade tão
7
pequena que não deixa a literatura morrer, pois, como já dizia
Terceira Margem do Rio. Coleção Folha de Grandes Escritores Bra-
Proust, a única vida plenamente vivida é a literatura.
sileiros. 2008. p. 36-42. 8
1
Maria Elisabete Gontijo dos Santos. Revista da Assembleia Legis-
lativa de Minas Gerais. Edição novembro de 2008. Disponível no
32
Primeiras Estórias. João Guimarães Rosa. Extraído do conto a
Extraído da biografia do autor no site http://www.releituras.
com/guimarosa_bio.asp
Pirapora: terminal sul da hidrovia São Francisco
“ Remando vão remadores barca de grande alegria; o patrão que a guiava filho de Deus se dizia; anjos eram os remeiros, que remavam à porfia. Estandarte de esperança, Oh quão bem que parecia! O mastro da fortaleza como cristal reluzia; a vela, com fé cosida, todo o mundo esclarecia; a ribeira mui serena, que nenhum vento bulia ” Gil Vicente
Bárbara Camargo
No dia 11 de julho deixamos, por volta das 14 horas, a recôn-
começamos a entender de forma taciturna e gradativa, desde
dita Andrequicé, rodeada por veredas, e seguimos para Pirapora
Três Marias, por meio da impressionante figura de Sr. Norberto,
onde nos aportamos no mesmo dia. Digo ´aportar` porque apesar
que o rio só pode ser entendido na sua completude pela história
de estarmos de carro, o reencontro com o rio todas às vezes que
do seu povo – barranqueiro. O homem são-franciscano. É nele que
chegávamos a uma cidade do roteiro, nos causava a impressão de
reside a importância simbólica deste oceânico rio genuinamente
que estávamos atracando em um novo porto. Era como se estivés-
brasileiro. Não existe outra forma de ler o São Francisco, senão
semos viajando em uma expedição por água e não por terra. O rio
esta: ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável. Não
dificilmente saia da cabeça, mesmo quando não o víamos correr
adianta discorrer somente sobre seus problemas físicos. O emblema
pelas margens das estradas que passávamos. O primeiro clarão
do rio é também cultural; histórico. E Pirapora, por sorte, coinci-
de lembrança que tenho de Pirapora é a visão do São Francisco,
dência ou força maior, nos introduziu de vez nestas narrações.
na Avenida Beira Rio da cidade. A luz vespertina de sol refletida na
Fez vir a calhar à necessidade de busca por estas estórias e fatos,
água e algumas embarcações atoladas na areia da praia de água
que se tornaram o carro-chefe da pesquisa. Inclusive, os aconteci-
doce. Não me lembro do aspecto da entrada da cidade. Nem do
mentos que vamos narrar a seguir me fazem lembrar uma epifania
percurso até chegarmos a ‘Beira do Rio’, onde pedimos a primeira
do personagem Manuelzão, de Guimarães Rosa: “Pois minhamen-
informação, ainda de dentro do carro. A primeira memória é esta:
te: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a
O rio. A luz imperativa do sol entrando infrene pelas janelas de vidro
gente ouvia contada, a narração dos outros (...). Muito maior do que
do carro, e a primeira indagação que fizemos a uma pessoa local:
quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a
- Oi? Licença... Boa tarde! Amigo, onde tem uma pousada ba-
maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo
rata que a gente possa ficar? Depois disso, me lembro vagamente
trabalho empatoso, (...) sem soberania de sossego. A vida não larga,
deste homem com quem conversávamos se aproximando do carro
mas a vida não farta”.
parado, levantando o braço e apontando para alguma direção,
Anotei esta filosofia sertaneja no diário de viagem, durante
que não me preocupei em deter. Enquanto ele informava para o
a visita que fizemos ao museu Manoel Nardi, em Andrequicé. A
resto do grupo o que acabáramos de perguntar, eu me distraí, e
frase que estava exposta ao lado de algum utensílio do museu –
passei a observar somente a movimentação tranqüila do local e
não lembro-me qual -, protegido por aquelas redomas de vidro
o espelho d’água do São Francisco, a minha esquerda. Tudo que
fez total sentido quando a comparei à nossa própria viagem. Sabí-
veio na seqüência deste diálogo tornou-se fonte de pesquisa. As
amos desde a gênese do nosso projeto, que a incursão pelo sertão
informações sobre Pirapora que chegaram até nós, ao longo da
mineiro atrás do rio seria um trabalho ‘empatoso’. Seria um mês
nossa estada, foram profusas. Conhecemos personagens emble-
na estrada. Sem sossego. Bem como sabíamos da grandeza do rio
máticos, em apenas quatro dias de visita e nós, que procurávamos
que escolhemos investigar. Mas aquilo tudo que ia surgindo – os
o cerne dos problemas do rio, principalmente pelo viés ambiental,
relatos surpresa, os personagens extraordinários, não deixariam
34
O Velho Chico em seu percurso no trecho de Pirapora. A região é uma das mais propícias à navegação e, em outros tempos, foi imprescindível rota de transporte. “Não existe outra forma de ler o São Francisco senão ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável”.
35
A fumaça que emerge do Benjamim Guimarães, vapor que singrou por muitos anos o Velho Chico. Hoje a embarcação se reduz unicamente aos passeios turísticos. Muito da devastação das margens do rio está associada a atividade dos vapores que em outros tempos navegavam o S. Francisco
nada daquilo fartar, nos cansar. Porque quando ouvíamos aquelas
- 30 reais. Não, não é o dia todo. Acho que são umas três horas.
narrações, o mundo (o rio) se tornava maior do que o previsto.
- E, a gente tem que fazer reserva, ou nós podemos comprar
Maior do que qualquer estafa que nossas delimitações físicas e
o passaporte lá mesmo?
psicológicas quisessem pregar. A viagem tornava-se de fato o quê
- Pode ser lá mesmo. Mas normalmente o pessoal reserva
viemos reportar: a grandeza do São Francisco.
porque vem muita gente conhecer o vapor.
Depois de termos rodado por Pirapora à procura de hospedagem a preços módicos, naquele fim de tarde de 11 de julho, - a pousada que o homem da avenida Beira Rio nos indicou não servia (era ainda cara para o nosso bolso) -, finalmente, conseguimos nos instalar em um hotel na avenida Pio XII. Enquanto aguardávamos na recepção a liberação dos quartos, reparei que na mesa onde ficava o televisor havia uma réplica (mediana), talhada em madeira, do vapor Benjamin Guimarães. O Benjamin é uma relíquia dos tempos áureos da navegação no rio São Francisco. Um tesouro
Depois disso dei um sorriso de agradecimento, finalizando a conversa. Neste momento, dois de nós quatro chegaram com o restante das malas que ainda estavam no carro. O dono do hotel chegou também com as chaves. - Nós podíamos acordar amanhã bem cedo e tentar ‘pegar’ o vapor. O que vocês acham? Ajudando uns aos outros, seguimos pelo corredor do hotel adentro, com as malas nas mãos e nas costas, discutindo a idéia de irmos conferir o vapor na manhã seguinte: dia 12 de julho.
ambulante: é o único barco movido a lenha no mundo ainda em funcionamento. Já transportou o exército brasileiro para o litoral norte do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, soube também, por meio de pesquisa, que até Virgulino Ferreira Lima – o nosso Lampião – consta na ‘biografia’ do vapor. O cangaceiro teria armado, no início do século passado, uma emboscada para saquear o vapor que seguia abarrotado de cargas para Juazeiro. A própria âncora almirantada do vapor é peculiar: a mais antiga em atividade. - O Benjamin é único em muitas coisas...
Dia 12 de Julho. Um passeio pela navegação Por volta das oito e meia da manhã, chegamos à avenida São Francisco - no cais de Pirapora. Próximo ao local onde está o Comando da Marinha. A entrada que dá acesso ao vapor situase bem em frente ao prédio abandonado da extinta Companhia de Navegação do São Francisco (Franave). Já era grande a movimentação. Aqueles que não embarcavam no vapor – ali na beira - deviam estar ali somente para ouvir o apito do Benjamin 1, e ver a
- Recepcionista, onde fica o vapor Benjamin Guimarães aqui
saída magistral daquele ancião das águas são-franciscana que nos
em Pirapora?
levaria para dar um passeio de 18 quilômetros rio acima, naquela
- Não é longe não. Ele fica na avenida São Francisco...
manhã de domingo, dentro de alguns instantes.
Amanhã mesmo tem passeio.
Quem viaja pelo Médio e Baixo São Francisco2 certamente
- E que horas são estes passeios?
ouve relatos mais cedo ou mais tarde, sobre como outrora a po-
- Cedo. Acho que por volta das nove da manhã.
pulação que morava em cidades margeadas pelo rio, desde Minas
- E... Quanto é o passeio? Dura o dia todo?
até Alagoas, recebia e se despedia com festa das barcas que o
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rio trazia. Lembra-me as histórias que já li sobre os remeiros, que
do Vale do São Francisco’. Assim, eu, já dentro do vapor - vendo
faziam o comércio ao longo do São Francisco, antes de surgirem
lá do alto - aquelas pessoas se amontoarem ao longo do barranco
os vapores, e como a população ribeira gostava de ver a chegada
onde estava estacionado o portentoso Benjamin, tive a impressão
e a partida destas embarcações.
de estar revivendo, ainda que vagamente, o resquício daquela cul-
Os remeiros viviam do leva e traz de mercadorias para os vila-
tura barranqueira. Dos moradores que vinham correndo ver o que
rejos e províncias ao longo do São Francisco, sobretudo, durante
o rio trazia ao soar de uma corneta, de um apito ou para se despe-
os idos dos séculos XVIII e XIX. Levavam e traziam, sobretudo,
dir do barco que se soltava rio a fora. Pode ter sido só impressão,
rapadura, sal, café, cachaça, querosene e roupa em canoas e
mas aquelas pessoas ali paradas, esperando a saída do vapor, não
3
ajoujos , antes do transporte de carga em larga escala se sofis-
deviam ser somente turistas que não conseguiram um bilhete
ticar com os vapores. Preza a história que quando os remeiros
de embarque, e que por isso tiveram de dar meia volta. Eram mo-
se aproximavam de um vilarejo, apitavam uma corneta feita de
radores. Pessoas locais, observando, por simples prazer, aquele
chifre de boi para avisar que estavam chegando, e, os primeiros
personagem, aquele patrimônio histórico, prestes a iniciar outra
a aparecerem nas margens do rio e a entrarem nas barcas eram
jornada pelo rio. Parecia haver, de fato, um gesto de aporte ao
os comerciantes. Corriam para disputar os víveres, vestimentas
vapor, ao São Francisco. Ao mesmo tempo, era enternecedor ver
e artefatos que os barqueiros traziam. E, logo atrás, vinham os
lá do alto – do último andar do vapor - a vastidão do rio. Como era
4
políticos e os letrados, como conta Wilson Lins , em busca de
largo aquele trecho em Pirapora. No cenário, passageiros ainda
informações sobre as outras bandas do rio, do mundo. Em vista
em terra esperavam a liberação do fiscal de bordo para entrada
disso, os remeiros não eram recebidos com festejos unicamente
no Benjamin. Alguns cavalos pastavam próximos as beiras do cais.
por trazer o quê comer e vestir aos ribeirinhos. Eles transporta-
Chatas e outras embarcações estavam paradas do outro lado do
vam também as boas novas de outras terras. Eram os repórteres
rio. O foguista já aquecia a casa de maquinário... Lançava toras
daquele período. Com a inauguração da era dos vapores e o des-
de lenha na caldeira. A despenseira preparava os copos do bar
baratamento dos barqueiros essa popularidade se transferiu para
onde são servidas as bebidas, e o capitão, Pedro Feitosa, baiano
a tripulação das embarcações a vapor. Os tripulantes passaram a
de Juazeiro (que recusou um convite do Santos Futebol Clube,
ser os notórios do São Francisco, e uma relação estreita entre a
para seguir carreira no rio) já aguardava no seu posto, próximo ao
guarnição dos barcos e a população ribeirinha se deu. Em razão
timão, o momento de dar partida. - Como teria sido esse quadro
de, comumente, prestarem serviços a essa gente das vilas e fa-
50, 80 anos atrás? Quantas pessoas, flagrantes e histórias aquele
zendas. Trazendo e mandando recados. Levando e buscando en-
barco deve ter consignado? Um passageiro comentou de soslaio,
comendas. Indo e vindo de viagens, durante aproximadamente
enquanto eu fotografava no corredor do vapor, que durante muito
um século – tempo pelo qual perduraram os vapores no Velho rio.
tempo os vapores trouxeram muita gente refugiada do nordeste.
É daí que vem a importância dos barcos na vida social do ‘Homem
Passageiros de segunda classe. Que amontoados dividiam o espaço
38
O capitão Pedro Feitoso, baiano de Juaziro, sob o comando de Benjamin Guimarães. Trata-se do último barco a vapor da flotilha do rio São Francisco, que em outros tempos já contabilizou aprozimadamente 30 barcos. No entanto, foi somente em 2004 que a embarcação retornou ao Velho Chico.
(à esquerda) Benjamin Guimarães atracado, em fotografia noturna. (No topo da página) O foguista responsável por alimentar a fornalha do vapor. (Acima) Fotografia do barco em contraste com o rio, ao fundo: soberba paisagem.
com as cargas, companhia de léguas. - Sem o conforto daquela
mente era aquela porção sertaneja. Tudo era indício. E a viagem
viagem que gozamos numa manhã de sol. Este incidente que o
estava só começando...
desconhecido relembrou, quase numa espécie de pensamento
O Benjamin Guimarães é o último vapor da flotilha de aproxima-
em voz alta, refere-se a “descida geral. Descida do sertão e subida
damente 30 barcos que o rio São Francisco já teve, no auge de sua
6
do rio” , nos anos de 1920.
navegação. O primeiro a ser lançado foi o vapor Saldanha Marinho,
Em 1925 houve um intenso trânsito de nordestinos para o sul
inaugurado em 1871. Milagrosamente ele ainda existe. Mas o vapor
e sudeste do país. E, fora, justamente, graças ao rio São Francisco
que devia estar em algum museu ou coisa afim foi relegado à função
e seus vapores que aquele povo da seca Graciliana se deslocou
quixotesca de abrigar um restaurante na orla fluvial de Juazeiro, na
para as terras de promissão do país – para as fazendas cafeeiras e
Bahia. O próprio Benjamin Guimarães já experimentou a negligên-
as áreas industriais de São Paulo -, além de seguirem para outras
cia, permanecendo atracado no porto da extinta Franave, durante
localidades do sul e sudeste do Brasil onde o desenvolvimento
anos. Em 1995, a Capitania dos Portos de Minas Gerais o interditou
grassava, em detrimento do norte e nordeste. Regiões estan-
alegando problemas estruturais no casco e na caldeira, o quê estaria
cadas e marginalizadas do plano político “ordem e progresso”.
comprometendo a segurança da navegação do vapor. A reforma e
Pirapora nesta época foi, inclusive, o ponto final e também de
a restauração que poderiam ter acontecido, então, a curto e médio
partida daqueles flagelados que chegavam a busca de uma vida
prazos, sofreram uma delonga de uma década e somente em agos-
mais próspera. A cidade funcionava como uma espécie de posto
to de 2004 o Benjamin foi liberado da inércia em que se encontrava,
de inspeção de migrantes, no qual um grupo de médicos recebia
no porto da Franave, e autorizado a voltar às suas atividades. Três
aquela gente em uma “central” para triagem. Muitos não chega-
anos depois, a Franave – responsável por mais de quatro décadas
vam ao destino final - morriam durante a viagem por subnutrição,
pelo transporte de cargas no rio - é liquidada e suas instalações de-
diarréia e outras enfermidades banais. Os migrantes mais aptos a
sativadas em função de dívidas e prejuízos que o órgão acumulou
ingressarem no mercado eram despachados via férrea. Em com-
nos últimos anos do seu funcionamento. Obrigando a estatal a se
pensação, os retirantes que ficavam para receber tratamento mé-
desfazer de seus bens, inclusive do vapor, que foi repassado a Pre-
dico, permaneciam em um refúgio próximo a estação ferroviária
feitura de Pirapora como parte do Patrimônio Histórico do Municí-
de Pirapora, que servia ao porto da cidade. De tal sorte que de
pio. Assim, durante este meio tempo – entre a reforma e o repasse
lá mesmo – desta estação que ligava Pirapora a Belo Horizonte
-, ficara o Benjamin: estagnado e inutilizado no cais da Companhia
e ao Rio de Janeiro - partiam, rumo ao desconhecido. Depois de
de Navegação, que não tardaria a se extinguir. Dois emblemas da
‘recuperados’. Aqueles que morriam durante o percurso eram dei-
navegação fluvial do São Francisco sendo consumidos pela ação do
xados nas margens do rio, onde ocorriam os enterros.
tempo e pela inépcia dos órgãos públicos responsáveis. Aliás, desde
- Como fazia calor naquele dia! Olhei em volta e a profusão de coisas que via acontecer me dava pistas de quão fértil historica-
a tentativa de instauração dos vapores nas águas do São Francisco tudo tem sido uma mixórdia política de primeira grandeza.
41
O processo de implantação dos vapores Os vapores surgiram de uma iniciativa do governo imperial que queria utilizar o rio São Francisco e seus afluentes através de novas formas de navegação que não fossem mais aquelas rudimentares que os remeiros e barqueiros – aquela brava gente brasileira -, praticavam com seus ajoujos e canoas, a duras penas. Dom Pedro e seus contemporâneos queriam interligar e ocupar o interior brasileiro - isolado do litoral -, por meio de recursos mais avançados e eficazes que permitissem uma movimentação econômica mais expressiva no país. Para viabilizar esse plano, estu-
político e botânico. Carlos Krauss. William Milnor Roberts e Benjamin Franklin de Albuquerque Lima. Todos célebres estudiosos do rio São Francisco, que empreenderam viagens de exploração em datas e regiões distintas, do Vale são-franciscano, á mando da monarquia brasileira, para estabelecerem as condições para navegação. Halfeld foi o primeiro estudioso a produzir complexos relatórios sobre as inadequações do rio e, de certa forma, o primeiro a arruinar as expectativas do governo. Visto que, apesar de ter proposto melhorias para os trechos acidentados e encachoeirados que observou durante a expedição que partiu de Pirapora e foi até a foz – Alagoas -, entre 1852 a 1854, a principal conclusão
diosos, sobretudo, engenheiros de outras nacionalidades foram
que o engenheiro chegou foi a de que o trecho ideal para a nave-
contratados, em meados do século XIX, para estudar as caracte-
gação de barcos a vapor no São Francisco se circunscrevia a um
rísticas físicas do rio em cada uma de suas porções - alta, média
trecho menor do se esperava, que vai de Pirapora até Juazeiro,
e baixa. E com base nestes estudos se esperava propostas de
na Bahia. Menos da metade do curso total do rio. Realidade não
soluções para os eventuais empecilhos que fossem constatados
quista do ponto de vista político-econômico pelo governo. Afinal,
no curso do rio durante as expedições de reconhecimento. O go-
o rio não desemboca no mar em Juazeiro, e sim, a 720 km mais
verno conjeturava chegar a um parecer sobre as condições de navegação no São Francisco, que ele tentava aprimorar, sobretudo, com a implantação de embarcações movidas à vapor - o que havia de mais moderno até então – na segunda metade do século XIX, auge da Revolução Industrial. No entanto, é patente o fato de que o governo imperial só incentivaria esta empreitada - daria concessões e subsídios a empresas particulares para explorarem a navegação no rio - se houvesse justificativas técnicas plausí-
ao norte, em Piaçabuçu, Alagoas. O que comprometia, sobremaneira, o plano de integrar comercialmente o São Francisco, através do plano de escoamento de produtos agrícolas até o litoral, de onde seriam distribuídos para o mercado consumidor interno e também da Europa. Para piorar, a construção de estradas de ferro no Brasil, que poderia ser uma alternativa de transporte naquele momento, ligando o restante do trecho não navegável
veis que mostrassem a coerência e a viabilidade das obras e dos
até o mar, ainda era muito incipiente. Portanto, não havia como
planos de modernização, inclusive, o de trazer os tão almejados
compensar, nem mesmo a médio prazo, os trechos sem condição
vapores para navegar o rio. Assim surgiu Heinrich Halfeld - o en-
de navegação. O engenheiro, sem outra idéia indistinta, propõe
genheiro alemão que confeccionou os primeiros estudos científi-
então a abertura de um canal artificial paralelo ao curso normal do
cos que o São Francisco obteve. O francês Emmanuel Liais, também
rio que ligaria Santa Maria da Boa Vista (com grande vocação para
42
o cultivo de grãos), em Pernambuco, ao Pão de Açúcar. Medidas arquiteturais que mostram, inclusive, o quão remoto, de certa maneira é o projeto de transposição do São Francisco, hoje já em fase de concretização na parte nordeste do Brasil. Uma obra megalomaníaca, diga-se de passagem, de eficácia dúbia e, potencialmente catastrófica do ponto de vista ambiental se for mal gerida. Aliás, é problemática a síndrome de “obra faraônica” dos governos brasileiros. Porque, por aqui, as ‘pirâmides de Gizé’ ou ficam pela metade ou desmoronam antes do tempo. Mas, retornando ao São Francisco da época do Império, e ao desfecho da proposta de Halfeld – o tal canal não vingou, obviamente. Era uma obra absurdamente cara e “impraticável”, e o governo resistiu à tentação de tornar o rio navegável a qualquer custo. Foi aí que os monarcas, sem outra saída, re-vislumbraram a construção de estradas de ferro que ligariam alguns municípios nordestinos até o são Francisco. Este plano, também, faliu a médio prazo porque as empresas que se dispuseram a participarem do negócio não tinham recursos suficientes para cumprir as metas. O que levou o governo a retomar, por volta de 1868, os planos mirabolantes de desobstrução do rio, que consistiam em estratégias grosseiras como retirada de pedras do São Francisco, acabando com cachoeiras e comportas naturais – essenciais para a perenidade do rio. O autor de um destes projetos o engenheiro Carlos Krauss, garantiu ao governo, nesta época, que as obras como aquela da desobstrução, e também da construção de uma estrada de ferro ligando Jatobá na Bahia até Piranhas no Alagoas, eram, daquela vez, viáveis e com custos suportáveis. Estes pareceres positivos acabaram criando um apaziguamento e uma confiança de que “as obras se acertariam”, fazendo com que a era de investimentos na navegação no São Francisco
fosse inaugurada, finalmente. No entanto, apesar das confiantes
advieram unicamente de trapalhadas políticas, conforme defen-
avaliações que Krauss e, também, Milnor Roberts, engenheiro
dem historiadores e estudiosos do assunto. Como o episódio da
norte-americano, transmitiram ao governo, incentivando até par-
construção das estradas de ferro. Quando o governo imperial,
ticulares a empregarem capitais na navegação, o fato é que a rea-
finalmente, conseguiu empréstimo da Inglaterra – a juros exorbi-
lidade não era como idealizavam. Muitos erros foram cometidos.
tantes! – para arquitetar as vias férreas no vale do São Francisco,
E muitas obras deram prejuízos constantes. Inclusive, antes de
falhas de planejamento crassas ocorreram. Falhas estas, provo-
haver esta retomada de investimentos, chegou-se até a acreditar
cadas propositalmente, em alguns casos. Juazeiro, por exemplo,
que os rios brasileiros eram imprestáveis para à navegação, es-
foi transformada deliberadamente em um porto, apesar de serem
pecialmente o Velho Chico. Sendo necessário muito dispêndio de
conhecidas as objeções técnicas para esta decisão. E não foi por
dinheiro e engenhosidade para tornar-lo navegável. O que levou
causa do conselho (equivocado) do engenheiro Halfeld – que anos
o governo a negligenciar as vias fluviais durante muito tempo, em
antes havia apregoado que Juazeiro era o último ponto navegável
função das tentativas frustradas de viabilizá-las. O surgimento
do rio -, portanto, potencialmente um porto. Mas, sim, por causa
e a duração dos vapores foram, enfim, uma espécie de milagre.
de vaidades políticas, que impuseram que as estradas de ferro li-
Além das dificuldades naturais, pouco de realmente funcional e
gando a parte média á baixa do rio começassem ali, em Juazeiro.
estratégico foi edificado para atender a navegação. Mesmo de-
Quando na verdade os vapores deveriam ir ao encontro das es-
pois de todas as expedições de reconhecimento, mapeamentos
tradas de ferro até no máximo, Sento Sé - 198 quilômetros acima
e sugestões de regularização do leito empreendidas. Parece até
de Juazeiro - onde bancos de areia, trazidos pela força da corren-
que algumas delimitações não foram reconhecidas e, sim, igno-
teza já entulhavam o rio comprometendo uma navegação segura
radas. Houve erros de cálculo e de estimativa e obras caríssimas
e tranqüila. Esta determinação, prejudicial, que veio a mando de
se tornaram máquinas de déficits. E a tentativa de combinação
Fernandes Cunha, que os livros de histórias se referem apenas
entre transporte ferroviário e fluvial no São Francisco se tornou
como “um Conselheiro de Juazeiro”, e que lembra os tempos de
um projeto sem pulso.
violência política na figura de um coronel intransigente, obrigou
“ Um país de rios não melhorados” É certo que o próprio São Francisco imputava alguns obstáculos naturais a navegação, e hoje esta dificuldade está mais acen-
os vapores – quando finalmente foram implantados - a vencerem trechos de difícil tráfego, toda vez que eram incumbidos de levar ou buscar coisas e pessoas em Juazeiro - um porto simulado... Fruto de um capricho partidário.
tuada com o assoreamento multiplicado. Mas, é certo igualmen-
Juazeiro nunca deveria ter sido transformado no “terminal”
te que os problemas perpassavam e ainda continuam perpassar
do São Francisco. Pois, era e ainda é um grande areal, inibidor de
pelo famigerado imbróglio político. Falo isto, porque, algumas
vapores. Assim como Pirapora (encachoeirada e de fundo móvel),
decisões que comprometeram mais tarde o êxito da navegação,
também, não deveria ter se transformado no porto sede-sul do
44
rio. Esta imposição obrigou os vapores a serem mais rasos, com 7
causa desta má administração dos serviços de navegação que
pouco calado , comprometendo a capacidade de transportarem
vapores como Benjamin Guimarães surgiram. Sobretudo até os
um maior volume de carga, sobretudo, de forma segura. Não obs-
anos 1930, quando particulares – empresários – enfastiados da
tante, o frete do transporte foi ás alturas, porque para sulcar as
ineficiência das companhias de viação que operavam na época, e,
águas do São Francisco naquela porção baiana, vencendo obstá-
também, interessados em ampliar a distribuição regional de suas
culos, era necessária muita potência. Lenha como combustível,
mercadorias, por outros meios que não fossem no lombo de uma
o que encarecia a condução. Na época de seca, - sofrimento! -,
mula ou em um carro de boi, adquiriram estes barcos para cobrir
porque esta ‘potência’ tinha que ser dobrada, triplicada, quando
a demanda de transporte de suas empresas, que faltava. O Benja-
era possível navegar. Encalhes eram comuns. Os naufrágios, tam-
min, por exemplo, foi comprado da Amazon River Plate & Co pela
bém. A história registra dezena: em 1932, próximo a Xique-Xique
empresa de Júlio Mourão Guimarães, um industrial que tinha uma
o vapor Costa Pereira sucumbiu. Em 1943 o desastre acometeu
fábrica de “rendas e tiras bordadas” – a Santa Clara, em Pirapora.
o vapor Cordeiro Miranda. Dois anos depois, a 137 quilômetros
O vapor chegou aàcidade desmontado, por volta de 1925 e veio
de Pirapora foi o vapor Fernão Dias. Afundaram ainda os vapores
lá do Norte do nosso país porque, na época da compra, presta-
Afonso Arinos (1946); Governador Valadares (1959 e 1966); Para-
va serviços aos rios da bacia amazônica. Apesar de ser originário
catuzinho (1960), Wenceslau Braz (1968)... Desta somatória de
dos Estados Unidos – Mississipi, onde também já navegara. Aliás,
acidentes, obstruções de canal, inadequações de infra-estrutura
vamos interromper a história rapidamente para pontuar uma
e má administração, à decadência da navegação foi sendo traça-
coincidência intrigante.
da, comprometendo a função econômica para a qual os vapores
O rio Mississipi está para o São Francisco, como o Vale do
vieram: escoamento da produção brasileira. Que não era parca.
Tenesse está para o Vale do São Francisco aqui no Brasil. Ambos
Muito pelo contrário. Apesar das dificuldades, eram fartos os
os rios quebrantaram sonhos de navegação, impuseram gran-
entre portos do Brasil, no início do século passado. Havia muito o
des provações. A diferença é que o Mississipi considerado um rio
quê transportar: “por toda a parte, em tempo de exportar, vêm-
“catastrófico”10, extremamente caudaloso, foi curado dos seus
se fardos de algodão [grande fonte de renda das comunidades
desníveis naturais e a economia do Vale, antes pelas inundações
agropastoris do semi-árido], fumo, couros expostos ao tempo,
periódicas e violentas que castigavam plantações e povoados, foi
9
a espera de lugar a bordo” . Mas, “na maior parte das cidades,
recuperada. Através de um esforço conjugado entre particulares
não haviam portos estáveis; em nenhuma existia serviços de
e órgãos públicos que investiram em planos técnicos científicos
9
carga, descarga e armazenagem” . Nem mesmo embarcações
continuamente. Aqui, o nosso rio da Unidade Nacional ficou en-
suficientes. E, quando houve uma mudança de governo – mo-
tregue simplesmente à sorte, depois de um período. Relegado à
narquia para república - o rio já estava entregue a decadência.
lembrança e a ação de poucos... Em tal grau que foram iniciati-
Os projetos já estavam estancados no meio. Inclusive, foi por
vas particulares que fizeram com que a frota de vapores no São
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Francisco crescesse. Como aquela de Júlio Mourão, que adquiriu
outra empresa, que mais tarde fez um trato com o governo baia-
o Benjamin: o nome é uma homenagem ao patriarca da família
no. Os políticos baianos, todavia, impuseram uma condição para
a qual pertencia a firma. O vapor foi usado durante muitos anos
dar aquela cobrertura: a navegação deveria acontecer em outros
para transportar as matérias-primas da fábrica – comporta 90
pontos que não fosse o rio das Velhas – que já era muito difícil em
toneladas – e permaneceu com esta funcionalidade – cargueira
1879. Mas, também, no trecho baiano do rio São Francisco, inclusi-
- durante muitos anos, mesmo depois do vapor ter sido transferi-
ve em dois de seus afluentes que interessava para a região: Gran-
do para a Franave, órgão estatal. Sendo que somente mais tarde,
de (350 km) e Corrente (160 km). Para cumprir esta incumbência,
depois que a Prefeitura de Pirapora assumiu seu controle, é que o
o governo concedeu à empresa outro vapor, o “Presidente Dan-
Benjamin veio a se tornar o que conhecemos hoje: um transporte
tas”, o segundo que chegou ao São Francisco. Porém, os prejuízos
exclusivamente de pessoas, que a população ribeirinha dá alcunha
eram muitos. A manutenção muito cara e o retorno econômico in-
de “gaiola”, com funcionalidade turística. O empresário chegou
suficiente para cobrir os gastos. Falida então, a “Viação do Brasil”
até a abrir uma companhia de navegação fluvial: a Julião Mourão
passa a ser totalmente administrada pelo Estado da Bahia – maior
Guimarães, e, para isso, adquiriu outros vapores, menos ilustres,
acionista da empresa, na época. O que deu origem a Empresa
mas não menos importantes como o gaiola Francisco Bispo, bati-
Viação do São Francisco, a “baiana”, que até 1917 era a única com-
zado com o nome de um mecânico, que segundo o empresário,
panhia de navegação detentora de licença para exploração fluvial.
era – o melhor do Vale São Francisco. Os irmãos Nascimento, pro-
Nesta época a companhia já acumulava onze vapores. Com a que-
prietários da empresa Nascimento e Cia, também, com sede em
bra deste monopólio, outras empresas se organizaram, dando ori-
Pirapora, adquiriram, por sua vez, o vapor “Antônio Nascimento”,
gem inclusive, a companhia estatal de Navegação Mineira do São
para escoar a produção da fazenda da família – Fazenda Prata.
Francisco - “a mineira”. Mais tarde, na década de 1960, surgiria,
O nome fazia alusão ao líder da família que foi, inclusive, um dos
então, a Companhia de Navegação do São Francisco (Franave),
fundadores da cidade.
junção destas duas companhias – mineira e baiana, ao Governo
O fato é que a navegação a vapor não só teve sua frota inicialmente ampliada pelas mãos de particulares, como também começou a partir da iniciativa privada. O governo só outorgava as concessões para exploração fluvial de trechos do rio São Fran-
Federal, mais uma terceira companhia fundada em Pirapora - a Companhia Indústria e Viação.
O rio hoje: Solidão
cisco. O Saldanha Marinho, o primeiro de todos os vapores, sur-
Depois de transcorridos mais de 100 anos desde os primeiros
giu também da iniciativa de particulares. Era propriedade de um
planos de navegação, o rio continua praticamente inexplorado,
grupo financeiro ajustado com o governo imperial para explorar
com outros agravantes. A emergência do transporte rodoviário
o rio das Velhas, denominada Banco Viação do Brasil. Mas, em
no Brasil e o desaparecimento dos barcos a vapor fizeram com
razão dos prejuízos, a companhia acabou sendo incorporada a
que as atividades hidroviárias do São Francisco fossem refreadas
46
O patio da AHSFRA (Administração da Hidrovia do São Francisco), nas imediações de Pirapora. A precariedade e a ociosidade das estruturas é rigoroso retrato da realidade de navegação são-franciscana nos dias de hoje.
drasticamente e o rio passou a sofrer um abandono descomunal.
ali, estagnados. Na condição de sucata, quando poderiam estar
Ilógico. Afinal, o São Francisco representa, hoje, talvez a forma
auxiliando no escoamento da produção do estado, despachando,
mais econômica de ligação entre o nordeste e o centro do sul do
por exemplo, algumas das toneladas de granéis que Minas produz
país, e tem uma capacidade fenomenal de transporte estimada
e que nordeste consome. Milho, por exemplo. Ou, quem sabe, re-
em 2,5 milhões de toneladas de carga, anualmente. No entanto,
tirando, talvez, contêineres de gipsita12 de alguma embarcação
em decorrência das carências e das disfunções que acometem a
recém-chegada de Pernambuco, via São Francisco. Mas, ali, em
hidrovia são-franciscana, como falta de portos adequados, falta
atividade mesmo, só algumas cabras que passavam por nós com
de regularidade no transporte, de embarcações mercantes ade-
desapego e serenidade, pastando sem pressa o gramado seco do
quadas, este modal de transporte perdeu em competitividade
porto, enquanto observávamos a paradeira local. E o silêncio que
para outros meios, como o rodoviário, e agoniza com a falta de
paraiva denunciava a ausência crônica de políticas e verbas, que
políticas públicas que explore adequadamente suas potencialida-
há anos passam longe do rio. Flávia nos contou que a AHSFRA,
des, através de investimentos pontuais que melhorem a logística
que faz o monitoramento das condições hídricas do rio São Fran-
do rio. A própria extinção da Franave, órgão que se responsabili-
cisco e dos seus afluentes, com o patrocínio da Companhias das
zava pelo transporte de cargas entre Pirapora e Juazeiro, trecho
Docas do Maranhão (Codomar), estatal que administra outras
que conjuga quase mil e quatrocentos quilômetros de hidrovia, é
sete vias hidroviárias no país, já passou por boicotes e repasses di-
prova do descaso para com as estruturas que prestavam e ainda
minutos que comprometeram seriamente o trabalho da empresa
prestam serviços ao rio e sociedade.
no rio. Em 2007, por exemplo, a verba prevista não foi repassada,
A Administração da Hidrovia do São Francisco (AHSFRA) que
apesar de na época, a empresa ter feito uma previsão de gastos,
herdou o patrimônio da Franave, e que hoje se encarrega – com
com base em um plano de trabalho, na ordem de 11 milhões de
grande dificuldade – de manter a navegabilidade do rio, também,
reais. Este ano (2009), somente quatro dos onze milhões previs-
entre Pirapora e Juazeiro, é outra prova cabal de como o São
tos, chegaram ao caixa do órgão. “Temos então de nos adaptar e
Francisco e o próprio transporte náutico como um todo continua
trabalhamos a margem das condições ideais. Com o que recebe-
a ser negligenciado no Brasil. Andando pelo pátio da AHSFRA,
mos”. Além destas restrições e volatilidades financeiras, outros
enquanto conversávamos com a Chefe do Núcleo de Operações
problemas de ordem política infringem a AHSFRA: o contrato com
- Flávia Oliveira -, pudemos testemunhar a ociosidade das ativida-
a Codomar rescinde no final deste ano, e até o momento da nossa
des hidroviárias no rio São Francisco. No porto, que parecia fan-
visita, os empregados não sabiam se a empresa continuaria a fun-
11
tasma - chatas, empurradores, cábreas , sobrenadavam quietas e
cionar em 2010. Em caso de negativa, fica a pergunta: - Quem se
irresolutas o rio parado... E o entardecer só tornava o panorama
responsabilizará pela sinalização, balizamento13, dragagem do rio
mais taciturno. Aqueles instrumentos que poderiam, em outras
caso a AHSFRA seja desativada? De novo, silêncio. E se a resposta
circunstâncias, estar movimentando o porto de Pirapora estavam,
existe, ela não nos foi passada. “A grande briga, luta de nós da
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AHSFRA é para que a esfera pública abrace a causa da hidrovia,
e destino por terra, consumindo quase sete vezes menos combus-
inclusive a integrando com outros meios de transporte”. “Mas
tível e emitindo zero de monóxido de carbono na atmosfera, por
isso é briga de leões”. Há muitas questões institucionais envol-
menos da metade do preço. Resumindo, a hidrovia do São Fran-
vidas. Desde empecilhos ambientais até falta de iniciativa públi-
cisco “tem potencial para alavancar as economias e diminuir cus-
ca. A carga tributária sob este transporte, também, é alta. Além
tos de transporte das empresas instaladas nas regiões por onde
disso, nos últimos anos, o governo gastou em média somente 15
passa”, como pontua relatório da Antaq, assinado pelo gerente
milhões dos 150 milhões necessários para manutenção e amplia-
de Desenvolvimento e Regulação da Navegação Interior, Adalberto
ção do sistema hidroviário do Brasil, que está estancado. Segundo
Tokarski. No entanto, o rio que hoje poderia estar contribuindo
a Agência Nacional de Transportes Aqüaviários (Antaq) o Brasil,
para unificar a integração nacional, opera a um percentual ínfimo
transporta somente 13% da sua produção pelas águas. O rio São
da sua capacidade, algo em torno de 1%. Pior, a navegação no São
Francisco transporta somente irrisórias 3.300 toneladas. Ao passo
Francisco continua a ser efetuada por particulares, em pequenas
que o volume de cargas que circulam anualmente no rio Mississi-
embarcações, e mesmo assim, somente na porção baiana do rio.
pi, Estados Unidos, chega a 22. 500 toneladas.
O que acaba criando, inclusive, confusões em torno da capacidade
Embora sejam necessárias obras caras de engenharia para
de navegação da porção mineira do São Francisco. É recorrente a
corrigir os acidentes naturais e aprimorar a logística de escoa-
idéia de que a parte mineira não é navegável. O que não é de se
mento do rio São Francisco, que pode ajudar junto às outras hi-
estranhar... A desativação e o não usufruto do rio, por aqui fazem
drovias a promover o desenvolvimento do mercado interno no
parecer que o Velho Chico, de fato, adormeceu pra sempre. Por-
Brasil, tão relegado em detrimento da economia de exportação,
tanto, porque transpô-lo e não revitalizá-lo? Regularizá-lo? É o pas-
é patente, os benefícios que o transporte hidroviário traz á longo
sado assombrando o presente. Comprometendo o futuro.
prazo. A própria manutenção das hidrovias, que a AHSFRA realiza, é muito simples e barata. No entanto, permanece, inexplicavel-
Intervalo
mente, esta mentalidade retrógada, que lembra nossos monar-
Dia 13 de julho, emergimos do plano onírico das águas do São
cas de outrora, de que mais vale gastar alguns milhões de reais
Francisco, depois de termos embarcado no vapor, e resolvemos
de dois em dois anos em operações “Tapa Buracos”, país á fora,
desbravar em terra outros arcabouços históricos de Pirapora.
do que despender alguns bilhões de uma única vez com um meio
Fomos á procura da Secretaria de Cultura. O órgão funciona na
de transporte prático e barato. Estudos da Agência Nacional das
antiga estação ferroviária da cidade – aquela, que abrigou migran-
Águas (ANA) mostra as vantagens já manifestas do modal hidro-
tes nordestinos, no início do século XX. A linha, de 1910, está de-
viário. O transporte, por exemplo, de fertilizantes – hoje, feito no
sativada. Truncada. Não leva mais a nenhum daqueles lugares que
país, quase que inteiramente, por caminhão, poderia ser efetua-
costumava rumar. A locomotiva, a movimentação do embarque e
do, pela hidrovia são-franciscana, considerando a mesma origem
desembarque de pessoas, a fumaça do motor a vapor inebriando
49
a plataforma, o apito do trem, se resumiram a algumas reminis-
eis que aparece Lourdes, respondendo ao chamado. Lourdes é
cências do passado. Mas o prédio da estação, de arquitetura de
dona de um semblante sereno; uma fala mansa de sotaque baia-
época, ainda resiste. Abriga cinco secretarias em uma, além de um
no, - herança do seu estado natal, apesar de morar a quarenta
centro de apoio ao turista. Neste dia, fazia um calor entristecedor
anos em Pirapora. Sua compleição, de idade, apesar da vaidade
e a vegetação nas imediações – gramado escasso - estava seco
visível – unhas feitas, cabelo estrategicamente penteado, jóias
e amarelado. A paisagem estava árida e antiga ferrovia, naque-
nas mãos, - mostrava que aquela pessoa que nos recebia com
las circunstâncias, lembrava mais um posto de cidade faroeste.
uma naturalidade chocante guardava lembranças insuperáveis. É
Quando entramos, uma mulher se encarregou de nos atender. –
uma senhora nostálgica, que enxerga sua vida como um grande
Boa tarde. Devemos procurar quem na cidade para conversarmos
sonho que não volta mais. Sabe de cor suas peripécias, embora
sobre a cultura local? Num gesto providencial, a mulher recorreu á
tenha perdido várias vezes o fio da meada dos casos que relata-
agenda de trabalho e conferiu alguns catálogos para responder à
va durante a entrevista, mas, não era esquecimento. Ela parecia
indagação, em seguida, um homem de sobrenome Brasil, que pas-
estar revivendo, simplesmente, algumas cenas e em vez de nos
sava provavelmente para se servir um café, se dispôs, também, a
contar, preferia senti-las, em silêncio, interrompendo, então, o re-
ajudar. Em consonância com a mulher, iam discutindo se fulano ou
lato. Como se não houvesse ninguém a observando, esperando a
beltrano poderia ser útil, até que por fim, entraram em consenso
continuidade do enredo. Quando se confundia, pedia desculpas e
sobre alguns contatos e de forma breve descreveram quem eram
prontamente respondíamos que não tinha o menor problema. E
aquelas pessoas. Uma dessas ‘figuras’ vivera oito anos, exilada,
não tinha mesmo. Estávamos ao dispor da sua história. A parede
em vapores, durante o regime militar. Sobressaltados, saímos do
de sua sala estava repleta de fotos e cada canto da casa era um
prédio, em silêncio, debaixo de um sol alucinante pensando na-
memorial vivo, pulsante. E ela era herdeira de uma época singular
quelas histórias que tínhamos que ir buscar. O nome de uma delas
do rio São Francisco: testemunha especial da navegação a vapor.
era Lourdes Barroso...Lourdes Barroso e os Franciscos
Sobretudo, representante da força altiva que o rio tem na vida de
Descemos do carro e conferimos a numeração: estava cor-
infindáveis pessoas deste rico sertão. Depois das idas e vindas na
reto. Lourdes Barroso morava ali. Do portão de grade já tivemos
lembrança, conseguimos entender, enfim, o quê Lourdes queria
16
um prelúdio do encontro. Carranca na varanda. Uma pintura
explicar. Sua vida foi mesmo uma real ficção.
do vapor Benjamin Guimarães dependurada ao lado da porta de
Década de 1950, Bahia. Lourdes era apenas uma menina que
entrada. Logo abaixo, uma escultura mediana do santo São Fran-
gostava de cantar músicas de Ângela Maria, quando um circo che-
cisco de Assis, talhada em madeira, e, no canto esquerdo, uma
gou à sua interiorana cidade natal, e pôs á prova sua vontade de
mesa repleta de ferramentas artesanais. Batemos então as pal-
mostrar a voz. Ela que já amanhecia melodiosa, cantando para
mas como quem quer chamar alguém, - havia campainha, mas
quem quisesse ouvir, acabou chamando a atenção da trupe que
preferimos usar o método interiorano, que soa mais cortês -, e
estava instalada próxima a sua casa e recebeu um convite informal
50
para que fosse se apresentar, se sentisse á vontade. Apesar das convenções machistas dizerem “não, isso não é coisa que moça de família faça”, e de ganhar um NÃO bem repreensivo da mãe, Lourdes não resistiu ao seu ímpeto de menina predestinada e acabou investindo na travessura. Passou a pular a janela de casa para ir até o circo e, sob luzes e tendas, imitar as divas da música brasileira da época. Apanhava todas as vezes que ousava, e foram várias. Como castigo: palmatória e correiadas. Mas a gratidão pelas alegrias que aquela “brincadeira” lhe proporcionava, deviam falar mais alto do que os membros condoídos depois de uma surra. Lourdes não cedia, e as represálias eram em vão. Foi aí, por causa do falatório na cidade, e da preocupação dos pais em torno de suas atuações, que Lourdes recebeu a visita providencial de seu padrinho - um delegado – que vai imprimir a primeira grande virada na sua vida, ao convencê-la a se tornar uma cantora profissional, longe do amadorismo em praça pública. Aconselhou-a para tanto a ir para a orquestra sinfônica de Serrinha, e iniciar, assim, uma carreira artística, de forma oficiosa. O que de fato lhe foi frutífero... Depois da experiência na orquestra, foi parar em Salvador com ajuda do pai, e lá começou se expandir artisticamente. Conseguiu contrato com as rádios Cultura e Exlcesior, para quem fez muitos shows. O Teatro ‘Das cinco’, do antigo Hotel Bahia e a boate Clock da cidade também testemunharam suas performances. E, Lourdes que atendia a princípio por ‘Lourdes Gonçalves’ – um nome artístico formal - acabou se transformando na “Cigarra Boêmia de Serrinha”, tamanha singularice. Foi neste período, - em que se popularizou na cidade soteropolitana - que surgiu na vida dela, já com vinte e poucos anos, um tenente baiano chamado Dr. Waldir Pires, que lhe fez um convite inusitado: cantar em comícios. O pedido que vinha por intermédio
de Pires era, na verdade, uma solicitação de um oficial disfarçado,
Dias de apreensão e desnorteio transcorreram até que a situ-
que se identificava como Dr. Rubens. Sem avistar nenhum impedi-
ação se complicou, e Lourdes foi informada que deveria partir de
mento, e com um cachê atraente Lourdes concordou em assumir a
Serrinha, em definitivo. Pois, corria risco de vida. Pessoas ligadas a
tarefa, apesar de não imaginar que aquela tomada de decisão repre-
ela armaram, então, um esquema para que fosse embora, aconse-
sentaria mais tarde um divisor de águas na sua vida. A sua segunda
lhando-a seguir para Juazeiro onde deveria se juntar à Companhia
grande virada. Mas, até que as coisas não começassem a perturbar,
de Teatro de Juazeiro, que lhe daria retaguarda até o vapor São
Lourdes viveu em relativa tranqüilidade, apesar das atribulações
Francisco, no porto da cidade. Para qual cidade Lourdes deveria ir
que aquele seu novo emprego lhe impunha: passou a viajar conti-
depois disso, ela não deixou claro. Mas o fato é que ela obedeceu,
nuamente pelo interior da Bahia fazendo os tais showmícios. Esteve
e embarcou no vapor. Era novembro e o natal de 1964 seria longe
em Pituba, Ondina, Itapoã, Estela Mares, Euclides da Cunha, Urucuia,
de casa. Foi neste episódio que o rio São Francisco introduziu-se,
Araci... Até que, recebeu uma nova incumbência: de madrugada, á
em definiivo, na sua vida, e Serrinha começou a cindir-se do seu
surdina, deveria pregar em postes, panfletos políticos partidários.
futuro. É que nos próximos sete anos que se sucederiam àquela
Para tanto, lhe enviariam dinheiro e material, via trem, e as orien-
fuga, a Cigarra Boêmia não teria mais residência fixa. A terra firme
tações seriam repassadas durante reuniões secretas e combinadas.
passaria a ser as águas do rio São Francisco, e os vapores seu refú-
Assim, mais uma vez Lourdes acatou. Fazia o trabalho sem nenhuma
gio. O regime militar começava... O exílio para ela também, apesar
desconfiança, na mais cândida inocência de que aquilo não era pérfi-
de não ter sido quase nada trágico. Talvez o momento mais es-
do e não havia com o que se preocupar. Pagava inclusive a garotada
tarrecedor que Lourdes viveu foi naquela primeira viagem como
local para lhe ajudar com a enfadonha tarefa de pregar panfletos.
refugiada, a bordo do vapor São Francisco, quando, durante o
Era véspera do golpe militar de 1964, e Lourdes seguia trabalhando,
percurso, um capanga que, também, embarcou disfarçado como
quando, enfim, ouviu do seu superior, da boca de ‘Dr. Rubens’, uma
ela, tentou obrigá-la a saltar do vapor em um ponto próximo a
advertência confusa, mas que a fez atinar pela primeira vez para a
Xique-Xique (Bahia) para dar-lhe um fim. Lourdes se desesperou.
gravidade do esquema que participava: - “Quando dermos o golpe,
Sozinha e com medo de contar seu dilema a um desconhecido,
não se importe, pois sua família não sofrerá nada”. Sobressaltada
passou a se trancar na cabine do quarto do vapor e a faltar nos
com o que tinha ouvido, Lourdes voltou para casa, em Serrinha, e
horários de refeição, pois estava na mira do capanga. Foi quando,
contou o que lhe tinham dito. Para sua surpresa ficara sabendo que
os passageiros mais próximos, notando o isolamento repentino de
algumas pessoas estavam atrás de seu paradeiro, também. Á esta
Lourdes, passaram a procurá-la e a insistir que contasse o que es-
altura, revistas, panfletos e todo o material que ela guardava em
tava, afinal, acontecendo. – Eu chorava muito, e não respondia.
casa, usado durante as viagens e apresentações foram queimados
Não queria contar. Até que o comandante em pessoa – Francis-
pelo pai, quando descobriram a enrascada. - Abrimos uma vala no
co Barroso Lopes – foi acionado, aparecendo em seu aposento.
fundo do quintal da casa e papai incendiou tudo...
Conseguiu arrancar a verdade que estava sufocando Lourdes.
52
Mandou a tripulação fazer o cerco ao capanga e colocá-lo para
Francisco Biquiba Dy Lafluente Guarany17 – o insuperável mestre das
fora, mesmo ele estando armado. Era o fim da intimação sobre
carrancas – durante uma de suas viagens por Santa Maria da Vitória,
ela, mas, o começo de um romance que perdurou 30 anos... - Lour-
Bahia. Foi a primeira vez que Lourdes presenciava a arte de talhar
des se enamorou pelo capitão durante o restante da viagem, e até
em madeira apesar do contato com mestre ter sido duro e breve.
a década de 70 viveu dentro dos vapores, atrás de Francisco, seu
Biquiba fora ríspido e impaciente quanto algumas curiosidades téc-
marido, e do rio. Naquela primeira viagem foi para Pirapora, mas
nicas que Lourdes lhe apresentou. Chegou até a explicar para ela
não desembarcou na cidade. Seu destino seria até o fim da dita-
que a carranca era ‘mistura do homem com o animal’, mas, nada
dura as rotas de cada vapor que embarcava: Engenheiro Alfred,
mais que isso. No entanto, a austeridade de Biquiba não ressentiu
Antônio Nascimento... Sempre trilhando os passos de seu coman-
Lourdes. Pelo contrário, a concisão do ‘mestre’ acabou por incen-
dante. Mas isto, nem de longe, se torou aborrecimento. – Apesar
tivá-la, indiretamente, a procurar pelos seus próprios métodos um
dos anos de chumbo, estava apaixonada e era livre. Além disso, a
modo de fazer aquilo (as antigas figuras de proa). – Eu senti que
vida nos vapores não era de todo mal. Á noite, vez por outra, fazia
conseguiria fazer aquilo, e depois daquele encontro ficou obcecada
pequenos shows nos barcos, para alegrar a si própria e aos passa-
por fazer algo parecido e, nos vapores, passou a insistir na tal arte.
geiros. Barroso tinha um violão, e ás vezes, a tripulação se reunia
Em aprimorar formas e traços, em uma espécie de autodidatismo.
para contar as estórias das águas do São Francisco, ao anoitecer.
Foi aí que começou a enxergar de forma diferente aquelas toras de
Sobre os cavalos pampas d’água e da mulher dos cabelos verdes...
madeira macia que eram queimadas nas caldeiras que alimentavam
Ela mesma nos jurou já ter visto o vapor encantado em Juazeiro.
os vapores. Passou a tentar esculpir um e outro pedaço que tira-
Segundo esta lenda, o vapor aparece á noite, belamente ilumina-
va da pilha de lenha. O capitão Barroso, por sua vez, passou a lhe
do, nas proximidades de um porto, mas nunca chega ao cais. E de-
presentear com ferramentas mais adequadas para o trabalho que
pois de alguns minutos de aparição, some no breu da noite. A tal
Lourdes dificilmente largava, fazendo nascer na Cigarra Boêmia seu
aparição seriam os fantasmas das vítimas dos trágicos naufrágios
lado carranqueiro que hoje toda Pirapora e o país conhecem. Aliás,
que ocorreram no rio São Francisco. Lourdes disse que se arrepia
Lourdes àquela altura da história, não era mais Lourdes Gonçalves
até hoje com o que viu, e esta confissão confirma o quanto ela já
– a cigarra, e sim, Lourdes Barroso – a carranqueira. No princípio,
estava imersa naquele mundo são-franciscano.
passou a comercializar as carrancas dentro dos próprios vapores,
O fato é que com o passar do tempo dona Cigarra encontrou
o único espaço que tinha para desenvolver o ofício e expor suas
também uma forma de gerar renda e passou a fazer trocas comer-
peças. Mas depois, com o fim do regime militar, Lourdes rearranjou
ciais com os passageiros. Comprava produtos da terra nos vapores
seu trabalho em Pirapora, onde acabou fixando residência com Bar-
e em seguida revendia nas feiras de algumas das cidades em que
roso, que também não era de lá. - No início não gostei da cidade...
passava. Com o lucro que conseguia das vendas, pagava suas des-
Só havia mato e uma igreja. Também sofri muito com o preconcei-
pesas nos vapores. Foi assim até que, dois anos depois, conheceu
to das pessoas que implicavam com o fato de eu não ser casada,
53
(À esquerda) Lourdes enquanto cantava a melodia de Cartola figurando a frente de um dos seus retratos de moça. (No topo da página) Ela e seu capitão, Francisco Barroso Lopes. (Acima) Pintura do vapor Benjamin Guimarães em óleo, feita por ela.
apesar de viver com Barroso. Mas com o tempo, Lourdes adotou
de uma Lourdes de voz rouca e entristecida ouvimos “Meu sonho era
Pirapora. Até porque a população precursora, que contribuiu para
cantar, mas hoje não posso mais”. Hoje, com mais de seis décadas de
o aumento demográfico da cidade, era composta, sobretudo, de
vida, tenta adaptar com forte depressão o ritmo de seu corpo, mais
seus conterrâneos – os baianos. A própria criação da companhia
cansado e ligeiramente delimitado ao seu espírito que ainda continua
Navegação Mineira do São Francisco, em 1925, explica grande parte
buliçoso, juvenil, melodioso. Refém daquelas memórias vivazes, pre-
desta história, pois, foi com o surgimento da empresa, que ribeiri-
sas em um corpo envelhecido. Para passar o tempo, borda pedrarias
nhos da Bahia e Pernambuco vieram para Pirapora (porto sul do
nas roupas de diva que tem no seu guarda-roupa – lembra o tempo
São Francisco) para as lides fluviais: “os baianos e pernambucanos
dos palcos. Borda, também, na roupa dos filhos e netos, dois deles
possuíam uma longa tradição como navegantes. Essa cultura, que en-
também chamados Francisco. Pinta quando tem vontade. - O colorido
volvia o conhecimento do rio e das condições ambientais da região,
quadro do vapor Benjamin Guimarães na entrada da porta de sua casa
foi fundamental para a segurança das embarcações que as empresas
é obra desse passatempo. Esculpe quando tem inspiração. Mas, estes
mineiras adquiriram em grande número até os anos 40”.
18
afazeres são soluções paliativas que não dão cabo a sua inquietude
Por isso, quem viaja pela cidade nota com estranheza o forte so-
frente ao passado, constantemente presente. Cultiva lembranças em
taque baiano em terra mineira. – É difícil ter uma família em Pirapora
fotografias, miudezas e mobílias de uma época que não se apaga. Mas
que não tenha o baiano no meio, como disse Lourdes, que depois que
que infelizmente não volta. Mostrou-nos um bracelete que o saudoso
se afixou na cidade, acabou assumindo sua carreira como carranquei-
capitão Barroso a presenteou certa vez. Entristecia... Pedimos a ela,
ra, o que lhe proporcionou renda e reconhecimento. Com o dinheiro
então, para que cantasse. Sem hesitar, Lourdes aceitou o microfone
das vendas de suas carrancas – e nenhuma é igual á outra, visto que,
da câmera que o grupo lhe ofereceu, e de forma providencial soltou
Lourdes não trabalha com peças em série -, comprou a casa que hoje
com rouquidão o primeiro verso de uma música de Cartola que arre-
mora. O nome do ex-proprietário era também Francisco. Mas, apesar
matava, de forma lindamente triste, a dor pelo término de uma histó-
da gratidão por tudo que as carrancas lhe proporcionaram, inclusive,
ria – de Franciscos - que de tão peculiar parece fictícia:
o prestígio pelo trabalho que desenvolveu, ela guarda certa mágoa quanto ao fato de ter sido tolhida do desejo de continuar com a carreira de cantora, que o marido lhe prometeu que iria retomar, mas que nunca aconteceu de fato. Tinha esperanças de ir para o Rio de Janeiro, e lá grassar carreira solo. Ali mesmo, em Pirapora, teve chance de
Volto ao jardim Com a certeza que devo chorar Pois bem sei que não queres voltar Para mim
retomar, chegando até a compor uma música para ser cantada com
Devias vir
Sá e Guarabira, quando a dupla esteve na cidade: ‘Distância’. Mas não
Para ver os meus olhos tristonhos
pôde comparecer em função do veto de Barroso, fazendo com que
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
a “distância”, segundo ela, ficasse, de fato, cada vez mais distante. E
Por fim
55
As carrancas, figuras esculpidas na madeira, eram usadas na proa das barcas para ornamentar e assustar maus espíritos - poder mágico que os navegantes acreditavam que ela tinha. Curiosamente, as carrancas no Ocidente só se desenvolveram no rio São Francisco, no seu curso médio e surgiram por volta de 1875/1880. Os barqueiros são-franciscanos acreditavam que elas os protegiam contra os seres míticos que acreditavam ter no rio, como o cabloco d’água. Com o fim das barcas, elas se tornaram artigo de decoração, souvenir das cidades ribeirinhas, como Pirapora. A própria força do nome indica sua forma bruta -mistura de homem e bicho. Também são chamadas de figura de proa, cara-de-pau e leão-de-barca
56
57
12 ¹
“Além da natural economia de palavras, é importante ressaltar
que o uso da abreviado dos nomes denota intimidade e afetividade para com os vapores a exemplo dos velhos ferroviários que amam suas locomotivas. “Assim, aquelas embarcações eram tratadas como “gente de família”, especialmente entre os vaporzei-
Designação de várias máquinas para levantar grandes pesos,
especialmente um tripé, formado por três pontaletes unidos no topo, com roldana ou cadernal e cordas. (Dicionário Michaelis, 1998-2009) 13, 14
História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Ber-
ros”. (NEVES. 1999, p. 43)
nardo Mata-Machado, 1991, p.135.
²
15
O Médio São Francisco: de Pirapora, MG á Santana do Sobradi-
“Continuador da tradição dos grandes escultores populares do
nho, BA, com 1328 km de navegação franca. Baixo São Francis-
século XVIII, Francisco Biquiba Guarany, autor da maior parte das
co: de Santana do Sobradinho ao Oceano Atlântico, com 748 km.
carrancas que já vi” (PARDAL, 2006, p. XXXI)
(PARDAL, 2006, p.26-28)
16
3
Junção de várias canoas amarradas umas as outras, com um ta-
buado por cima, servindo de piso. (LINS, 1983). 4
O médio São Francisco: uma sociedade de pastores guerreiros.
3a ed., definitiva 5
Peça disposta em todo o comprimento do casco no plano diame-
tral e na parte mais baixa do navio: constitui a “espinha dorsal” e é a parte mais importante do navio, a que suporta os maiores esforços. (Arte Naval p. 09 1-52 a.) 6
Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 34.
7
É a distância vertical entre a superfície da água e a parte mais
baixa do navio naquele ponto. (Arte Naval p. 72 2-60) 8, 9 10
LACERDA, Carlos. 1937, p. 119-20
O Médio São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros.
Wilson Lins, 1983, p. 145. 11
Minério Sulfato de cálcio hidratado, que se cristaliza no sistema
monoclínico; gesso. (Dicionário Michaelis, 1998-2009)
58
Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 36.
Barra do Guacuí: o encontro das águas e a história perdida
Bárbara Camargo
“Quando se visita [...] Guacuí, sente-se repassar ante os olhos, os restos indeléteveis de um painel antigo. A alma cívica se volta quase de joelhos para um Passado, no Presente esquecido. No cenário tranquilo, evocativo de grandes meditações, renascem como por milagre, figuras revividas de audazes bandeirantes, de sertanistas e dos humildes anônimos nordestinos que subiram o Rio São Francisco. Como marcos permanentes na paisagem, apenas o Rio das Velhas, presente para todo o sempre na íntegra de suas águas diminutas, ao caudal lendário do Rio São Francisco, espinha dorsal, mediterrânea que deu origem ao Brasil. É crime, grave crime o presente esquecer o passado”. Simeão Pires
Chegamos a Barra do Guacuí, no início da noite de 14 de julho, depois
por onde passou, fundando arraiais como o de Sumidouro, hoje
que encerramos nossa atribulada visita a Pirapora. No entanto, só
Pedro Leopoldo. Outras histórias envolvendo Barra do Guacuí –
fomos conhecer seus segredos na manhã seguinte - dia 15. Foram
que já foi vila e município, mas que hoje é jurisdição de Várzea
menos de 24 horas no lugarejo... Tempo suficiente para entender a
da Palma –, são também, praticamente desconhecidas. Como o
peculiaridade do distrito e perceber o severo abandono dos restos
episódio que conta que Barra teria sido cogitada para ser a nova
de um mosaico histórico que ainda teima em resistir.
capital de Minas Gerais.
Falta de culto ao passado
Todavia, apesar da monta cívica deste distrito e de se tratar de um lugarejo de no máximo cinco longas vias, o que o torna
Quem passa pela placa rodoviária na BR-365, que indica a en-
relativamente fácil de ser vasculhado, não é fácil fazer o levanta-
trada de Barra do Guacuí, a 23 quilômetros ao norte de Pirapora, não
mento de sua historicidade. Juntar as peças de seu quebra-cabe-
consegue conceber que naquele pequeno distrito está enterrado
ça: incompleto. As informações são assustadoramente escassas,
os restos de um passado, que congrega bandeirantes como Fernão
quando inexistentes. Raras foram as explicações que consegui-
Dias, índios Cariris, grandes fazendeiros baianos do século XVIII e
mos in loco. E uma vez que se chega aos pontos lendários do dis-
jesuítas. Ou ainda, que ali acontece um encontro de águas... O rio
trito, só resta o exercício da observação. Imaginar e pressupor.
São Francisco se entrecruza naquele ponto com o rio das Velhas
Pois, não há alguém ou coisa alguma que demarque ou explique
– seu maior afluente em extensão! No entanto, não há nenhuma
o patrimônio que está defronte de quem passa. Cheguei a pensar,
demarcação ou placa, por mais rudimentar que seja para informar
inclusive, que este capítulo resultaria em um ensaio unicamente
os desavisados sobre as coisas substanciosas que se escondem
sobre ‘ausências’. No entanto, aprofundando na pesquisa, foi
naquele arraial, - preterido em um norte já esquecido.
possível obter alguns dados sobre Guacuí, e o que era completa
A entrada da cidade também deixa a desejar. Nenhuma indicação dentro do distrito facilita a procura de visitantes pelos marcos histórico que lá estão: a impactante Igreja de Pedra e também
‘ausência’ se transformou em uma breve história...
A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí
a de Bom Jesus do Matozinhos... O encontro dos rios... Pistas,
O nome Guacuí vem da palavra Guaimihy-Uaimii 1 e significa
talvez, do antigo e transviado cemitério de Guacuí, onde estaria
Rio das Velhas no dialeto indígena. No entanto, não está claro se é
enterrado os restos mortais de Fernão Dias, e de seu genro, Ma-
no linguajar dos Tupi-Guaranis ou dos índios Cariris, que vieram do
noel Borba Gato – dois grandes desbravadores que participaram
Ceará para esta região - entre Pirapora e Barra do Guacuí-durante
juntos da Bandeira de 1674 que arroteou este grande território de
o século XVII, em busca de caça e pesca, abundantes naquela épo-
Minas Gerais em busca de prata e esmeraldas. Inclusive, o início
ca, por estas paragens.
desta bandeira não foi muito longe dali: começou na cabeceira do
No entanto, o arraial foi fundado mesmo por Manoel de Bor-
Rio das Velhas – em Ouro Preto, e deixou rastros permanentes
ba Gato, em 16792, por conta daquela bandeira de 1674 que visava
61
encontrar esmeraldas e prata por estas bandas do norte de Minas.
Os rios vadeando mais temidos
Guacuí – antigo arraial das Porteiras - foi escolhido porque ali, a
Em jangadas, canoas, balsas, pontes,
localização permitia aos bandeirantes que tivessem fácil acesso
Sofrendo calmas, padecendo frios
à navegação tanto via rio das Velhas, que levaria até as serras e
Por montes, campos, serras, vales, rios. 5
minas onde seriam procuradas as preciosidades, quanto via rio São Francisco - que interligava o arraial até Bahia e Pernambuco, de onde vinham mercadorias (couro e sal) e a quem o território, nesta época, pertencia. Visto que, até meados do século XVIII o sistema político em vigência no Brasil remontava a época do início da colonização e a região norte-mineira era divida em duas partes: as porções localizadas na margem direita do São Francisco - de responsabilidade da Bahia, e as porções á margem esquerda do rio pertencentes às capitanias de Pernambuco. Barra do Guacuí, por exemplo, foi até 1778 3, povoado subordinado do arcebispo da Bahia. “Aqui o que se deve reter de fundamental é a articulação entre o São Francisco e as cidades da Bahia e de Pernambuco, verdadeiras cabeças de ponte do processo colonizador”. 4 Sendo inclusive, esta, a grande importância, legado, da bandeira de Fernão Dias para esta porção do país: substituíram-se, pela primeira vez, as rotas das expedições no país até aquele momento, direcionadas somente para o sul, pelas marchas para o norte, que passaram a desbravar territórios incógnitos do sertão (interior brasileiro). Fundaram-se vilas e aos poucos o retrógado sistema de capitanias foi se pulverizando, em função da movimentação e organizações geopolíticas que passaram a existir em Minas e no resto do Brasil com outras bandeiras:
62
Preza a lenda que Fernão Dias, morto por enfermidades durante esta bandeira, estaria enterrado em Barra do Guacuí, depois de seu corpo ter naufragado no Rio das Velhas enquanto era levado para São Paulo, onde deveria ter sido sepultado. Porém, túmulo teria sido abandonado, segundo o historiador Simeão Ribeiro Pires6. Conta-se que Fernão Dias chegou a receber em praça pública um monumento em sua homenagem, mas não há documentário que comprove a eventualidade, pois, não haviam escrivães na época, e os registros da cidade datam somente a partir de 1843. Manoel Borba Gato também teria sido enterrado em Guacuí, segundo boatos. Dizem que certa vez encontraram no antigo cemitério, onde só haviam restos das muretas e uma remota cruz, a inscrição ‘MBG’ – possivelmente, iniciais de Manoel Borba Gato. No entanto, são apenas rumores, de uma terra sem confirmação. Neste mesmo período – entre os séculos XVII e XVIII – padres jesuítas também teriam feito suas andanças por Guacuí, e de certa forma ‘contribuído’, deixando como rastro as, hoje, cortejadas e características obras arquitetônicas desta ordem religiosa na cidade. Herança do tempo das ‘cruzadas’ pelo Brasil. De busca e conquista de “paraísos”. Ainda que fosse pela força catequizadora. A Igreja da Pedra ou de Nossa Senhora de Matozinhos é o testemunho desses momentos que os parcos documentários não
Parte enfim para os serros pretendidos,
dão conta de aclarar ou rememorar com precisão o que, ao certo,
Deixando a Pátria transformada em fontes,
teria ocorrido naquelas conturbadas centúrias, que ficaram para
Por termos nunca usados, nem sabidos,
sempre enterradas no passado. Grandes fazendeiros baianos vieram,
Cortando matos, e arrasando montes;
da mesma forma, se estabelecer por ali. No Médio São Francisco de
forma geral. E ao longo do rio assentaram seus currais. Na época,
deveria estar o telhado do templo. A impressão que se tem é a de
buscavam expandir a criação de gado, até então extensiva – e
que as raízes desceram, e não que subiram brotadas do chão. O
que necessitava de grandes espaços para a pastagem, o que de
que é muito provável que tenha acontecido. Afinal, a gameleira é
forma intuitiva acabaram encontrando nos chapadões norte-mi-
uma árvore parasita que nasce de outra já existente e pode brotar
neiro. Além disso, tinham interesse em adquirir com facilidade o
em situações das mais adversas. Inclusive, no topo de uma ruína,
sal para seu gado, que era transportado pelo rio São Francisco, e
se sustentando provisoriamente de outro vegetal. Desde que seja
mais adiante, aspiraram a proximidade dos centros aurífero e dia-
semeada, tarefa que algum pássaro, abelha ou o próprio vento,
mantífero, que dali a pouco, entrariam em efervescência, depois
pode ter executado ao germinar com a semente ou o pólen da
que o rush do ouro foi inaugurado pelos paulistas. Afinal, nestas
gameleira outra planta qualquer, que já vivia lá no alto das pedras
regiões necessitada de víveres, teriam um mercado consumidor
da igreja e que com o tempo acabou por se desenvolver, buscan-
promissório.
do por fim o solo distante. Engenhosidade do acaso. Inclusive,
O fato é que Barra do Guacuí, que era um entreposto relativa-
é interessante notar outro fortuito: a ligação que as gameleiras
mente importante até meados do século XIX, acabou não prospe-
têm com o plano místico-religioso. Nos rituais afro-brasileiros a
rando como deveria, sobretudo, em função das grandes epidemias
árvore é considerada uma espécie de ‘planta-deus’ e suas folhas
de malária que assolavam constantemente a população na época das
são utilizadas no preparo de uma efusão sagrada para os cerimo-
cheias, o que acabou afastando negociantes e moradores. E que
niais sagrados. Para alguns povos da Antiguidade, a morte de uma
com o passar do tempo, acabou por ruir suas chances de se emanci-
gameleira era um indicativo de maus presságios, e na Índia, é co-
par e deixar de ser somente terra de lendas e de destroços esqueci-
mum a presença de gameleiras próximas aos templos budistas,
dos... Como sua mais simbólica construção: a Igreja da Pedra.
por serem consideradas sagradas.
Ruínas ao léu
Independente do misticismo envolto nesta planta e de qual for a denotação que queiram dar àquela gameleira na Igreja da
Manhã de 15 de julho. Estacionamos o carro na sombra de
Pedra, alegórica ou não, o fato é que, naquele templo, a árvore
uma árvore e saímos em direção ao porta-malas para pegarmos
tem uma função simbólica flagrante: ela preenche literalmente
os equipamentos. Conferi minha bolsa, peguei a câmera fotográ-
uma lacuna arquitetônica do passado. A igreja que foi construída,
fica e quando, finalmente, fitei a Igreja da Pedra: magnetismo...
no século XVII, por escravos, provavelmente sob supervisão de
O que havia acontecido ali? Enquanto caminhava em direção
jesuítas, foi abandonada ainda em construção. A nave, por exem-
aquelas ruínas fui reparando a estranha beleza daquilo. Era uma
plo, não chegou a ser erguida. Isto porque, freqüentemente, nas
robusta Gameleira no topo de uma construção secular. As raízes
épocas de chuvas, o rio das Velhas – hoje diminuto, inundava o
enervadas e grossas da árvore tomaram conta de toda a parede
local e o infestava de malária - “febre pútrida e intermitente”. 7 O
posterior da igreja e, a copa, imperiosa, se abriu lá no alto, onde
que acabou obrigando a população, doente e castigada, a migrar
64
A gameleira e a Igreja da Pedra: a frondosa árvore brotou no topo das ruínas desta construção que remonta três séculos de existência. A igreja foi abandonada antes de ser concluída e, ainda hoje, encontra-se enjeitada, não fosse a presença vivaz da planta que dela se apoderou. Trata-se de uma edificação jesuíta.
para terrenos mais elevados e a fundar novo povoado: Várzea da
confusa quanto ao tempo real daquela circunstância – século XXI
Palma. Casas e construções em Guacuí foram deixadas, inclusive
ou século XVII? -, tamanha vivacidade e caracterização da igreja.
a Igreja da Pedra, ainda inconclusa. Assim, apesar da gameleira
Lá mora Luís - Lula, um homem de meia idade e de sotaque
ter apenas três décadas de idade – a Igreja tem mais de trezentos
nordestino, que, no início, ficou meio cabreiro com a minha apro-
anos, pois foi edificada entre 1650 e 1679
8
(não se sabe a data
ximação. Chamei-o para conversar e uma das poucas coisas que
ao certo) -, é cabal a sustança que a árvore forja dar, hoje, as ruí-
me disse a respeito foi que, era ele quem mantinha os restos da
nas do templo, feito somente de pedras e argamassa de cal. Está
igreja em relativa segurança e limpeza, além de ter relembrado
evidente a presente simbiose entre aquela obra e a natureza. As
alguns casos de tentativa de saque.
raízes estão esparramadas por toda parte, e onde ainda resta pe-
– Queriam levar o quê exatamente, Luís?, perguntei.
dra sob pedra, há tentáculo da gameleira. Onde ela ainda não al-
– As portas! Ameacei atirar uma pedra em um enxame que
cançou, está tentando alcançar... Por isso, se o Departamento de
tem aí dentro, e a pessoa acabou desistindo. Deu-se por vencida.
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não dá a devida impor-
Já tentaram até tirar as pedras... Levantei as sobrancelhas surpre-
tância aquele suntuoso elo de um passado remoto com o presen-
sa, como quem acaba de se encabular com um disparate. - Que tipo
te, ao léu e à deleite das intempéries e do tempo, aquela frondosa
de pessoa rouba a porta carcomida de uma ruína, pensei. O enxa-
gameleira assumiu a diligência. Resolveu cuidar em definitivo.
me, que por sua vez Luís se referia, era de uma espécie de abelha
Em Várzea da Palma, onde foram edificadas as igrejas do novo
indígena sem ferrão, que existe ali, próximo a gameleira. E que,
povoado, uma delas inclusive em substituição a da Igreja Pedra,
curiosamente - do seu modo - auxilia na defesa da igreja (natureza
o desmazelo com os bens nacionais também vigora. Em 1879, o
providencial?). Este tipo de abelha, de cor preta, prega um susto
geógrafo e historiador Teodoro Sampaio que estudou a navegação
em quem se aproxima. Pois, grudam – digo por observação da ex-
no Rio São Francisco, já observara o comprometedor estado das
periência alheia – no cabelo do ‘intruso’ e lá ficam zunindo até ser
Igrejas do município: “A obra, interior, seria, porém, digna de ad-
encontrada e removida. O que atemoriza, embora não pique. Esta
miração e de todo apreço, [...] se não fora o muito estrago e a
abelha é conhecida como ‘torce cabelo’ apesar de Luís, ter me dito,
péssima conservação da belíssima arquitetura. [...] o vigário, coi-
que aquilo que azucrinava quem ousasse ameaçar o tesouro que
tado, não tinha a mínima esperança de ver as coisas melhorarem;
habitavam, era o ‘bicho Inhê’... Depois, divagou outra informação
9
encontrara-as assim, assim haviam de ficar...”. E ficaram mesmo.
relapsa: - As folhas da gameleira caem entre setembro e outubro...
Hoje, cento e trinta anos depois, a situação é a mesma. Não há
Enquanto ouvi essa digressão, olhei para o topo da igreja contra a
conservação do que restou, e ninguém responde pelas edifica-
luz do sol, com os olhos semicerrados, e pensei: talvez tenham sido
ções. Por essa razão me senti sobressaltada quando percebi mo-
aquelas abelhas “indígenas” que polinizaram essa gameleira...
vimento na casa ao lado da igreja. Aliás, se não fosse esta casa a
Momentos depois, já sozinha e, sentada próxima a cruz, pen-
margem e os postes de iluminação em frente às ruínas, eu ficaria
sei de novo, desta vez mais desolada: onde anda, afinal, a historio-
67
grafia desta terra? Guacuí, deveras, deveria ser um dos pontos da
cebe efluentes pútridos e industriais de vertedouros vindos dos
inexistente “Estrada Colonial” do norte de Minas Gerais.
ribeirões Arrudas, do Onça, da Mata – todos tributários, alta-
Um ponto de dois rios Depois de vasculharmos a Igreja da Pedra, migramos, por volta de meio dia, para a vizinhança do templo, um pouco mais ao norte, onde acontece a confluência do rio das Velhas com o rio São Fran-
mente poluídos. O ápice de sua degradação se dá em Santa Luzia, quando já se congrega grande nível de toxidade, tamanha carga de poluentes recebidos. Depois, aos poucos, quando começa a entrar na porção média de sua bacia, e a contribuição negativa de seus afluentes vai diminuindo, a água começa a se depurar. Nesta parte
cisco. O calor era assaz. No momento em que chegamos, alguns
já entrecorta as cidades de Curvelo, Corinto... Até que por fim, en-
pescadores estavam reunidos na beira do Velhas discutindo coisas
contra sua Baixa porção e se extingui em Várzea da Palma (Barra do
da lida pesqueira, próximos a alguns capões e arvoredos. Porém,
Guacuí), onde se funde com o seu receptor: o rio São Francisco.
não demorou muito para que concluíssemos que do ponto onde
Pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os
estávamos não era ainda possível avistar a junção das águas. Além
rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um as-
disso, a idéia desde o início era observarmos a região por água e
pecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais
não por terra. Tratamos, então, de prosear com alguns homens
moroso. E é esse descompasso das aparências entre os dois rios
locais e conseguimos negociar com um deles, nossa ida de lancha
que facilita a observância do fenômeno da junção das águas, que
até o ponto onde pudesse ser vistas as águas do rio das Velhas de-
depois de certo ponto, se tornam um só feixe líquido em busca
sembocando no rio São Francisco. Oito reais fora o preço que ele
da foz, em Alagoas. Apesar da poluição grotesca do Velhas con-
nos cobrara por cabeça. Partimos então barco adentro...
tribuir, sobremaneira, para que suas águas tenham aquela apa-
O Rio das Velhas nasce em Ouro Preto, próximo a uma área
rência infetuosa, a explicação para sua coloração reside, também,
de preservação ambiental. Cristalino, passa pelos municípios de
no fato de seu leito correr sob um terreno composto de minério
São Bartolomeu, Acuruí e até a confluência com o rio Itabirito, a
férreo, que geralmente, quando pulverizado em água, desprende
qualidade de sua água é desejável. Passado este ponto, sua trans-
uma tonalidade avermelhada. Embora, esta pigmentação ferrosa
formação se inicia. À medida que seu curso avança pela área cen-
da água tenha se camuflado, nos últimos anos, em um marrom
tral do Estado, emissões de esgoto vão sendo despejadas em seu
escuro, conseqüência do alto índice de poluição acumulada no rio,
leito. As quantidades só aumentam com a aproximação da região
e que acabou por tirá-lo da brilhosa posição de ‘rio do Ciclo do
metropolitana de Belo Horizonte – a principal responsável pela
Ouro’– em função das descobertas de aluvião que Manoel Borba
degradação do rio, apesar de corresponder a somente 10% da área
Gato e Garcia Rodrigues fizeram durante pesquisas pelo Velhas e
territorial da bacia do Velhas. Em Sabará, recebe uma carga bruta
seus afluentes -, imputando-o a pejorativa categoria de água pútrida,
de esgoto in natura, sem qualquer tipo de tratamento prévio. Mas
de doenças, mau-cheiro e mortandade. Richard Burton 10, ficaria
é em Belo Horizonte que o Velhas se deteriora por completo: re-
no mínimo decepcionado se visse o atual estado do Velhas, que
68
Encontro das águas: “pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um aspecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais moroso”. A pesca na intercessão das águas é evidentemente bastante recorrente.
Ponto de dois rios: nesta localidade o Rio São Francisco (ao fundo) se entrecruza com o Rio das Velhas, seu maior afluente em extensão e seu maior agente poluidor: é da região metropolita de Belo Horizonte é de onde advém a maior carga poluidora de toda a Bacia do São Francisco. A coloração é bem distinta
outrora descrevera-o como um rio de empolgante piscosidade, no
que o projeto de recuperação da bacia do Rio das Velhas foi posto
qual bastaria submergir um balde em suas águas para pegar, pelo
em vigor, em 2003. Nesse ano, empreendeu-se uma viagem para
menos, uma dúzia de peixes. Realidade bem diferente da atual
monitorar as áreas de degradação do rio, desde sua cabeceira até
que não é nada agradável de ser vista. Se antes o Velhas era si-
a foz, em Guacuí, perfazendo 801 quilômetros de travessia, e re-
nônimo de abastança, hoje a bacia é considerada uma das mais
sultou em estudos e planos de ação para reverter desgaste eco-
degradadas do estado, inclusive a maior tributária de poluição do
lógico do corpo d’água, hoje postos em prática. Dessa expedição
rio São Francisco. Apesar de sua importância sócio-econômica ser
de 29 dias, surgiu, também, a meta do projeto: “navegar, pescar e
indiscutível: concentra 4,5 milhões de pessoas no entorno de seus
nadar no Rio das Velhas até 2010”, atualmente, amplamente difun-
761 quilômetros de extensão, e sua bacia é a mais próspera das
dida pelo Estado em função dos resultados que vem sendo observa-
sub-bacias do Rio São Francisco – tem o maior Produto Interno
dos. Inclusive, um dos grandes feitos do Projeto foi ter conseguido
Bruto. Tendo sido, inclusive, o desenvolvimento econômico não-
inculcar suas metas no plano de políticas públicas do Estado, que até
sustentável dos 51 municípios que entrecruza, o maior algoz de
então se abstinha da responsabilidade. E, no presente, a Copasa e
sua decadência ambiental. Principalmente, nos últimos 30 anos.
Governo estadual integram a bandeira Meta 2010 – Revitalização
Quando sua riqueza natural foi ceifada pela mentalidade do de-
do Rio das Velhas. Entre as medidas prioritárias atuais de despolui-
senvolvimento a todo custo.
ção da bacia estão a construção de Estação de Tratamento de Es-
Atualmente, graças a uma iniciativa pioneira de alunos do curso
goto (ETE), em Santa Luzia e Pedro Leopoldo, e também a inten-
de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, que deram
sificação do tratamento de esgoto do ribeirão Arrudas e da Onça,
origem ao Projeto Manuelzão em 1997, a poluição mitigou e hou-
que devem ser construídas em 2010, quando análises da qualidade
ve uma melhora na qualidade da água do rio Velhas que chega
da água do Velhas serão feitas de novo, para que se estude a via-
ao São Francisco em comparação a uma década atrás. Em função
bilidade de enquadrar suas águas ao nível que estudiosos da área
deste progresso, tem sido até noticiada a volta de algumas espé-
classificaram como “dois”, ou seja, que podem ser utilizadas para
cies de peixes, então desaparecidas pelo comprometimento das
plantio de hortaliças e frutas, criação de peixes, para o lazer e ao
condições naturais do rio, como o mantrixã, dourado e piau. No
abastecimento domiciliar. Depois, é claro, de ser tratada.
entanto, é patente o fato de que o volume de coisas a serem feitas
Três canoístas que integram a equipe de mobilização do Pro-
para reestruturar e revitalizar o Velhas seja ainda tão grande quan-
jeto Manuelzão: Erik Wagner, Rafael Bernardes e Ronald Guerra
to todas as emissões de esgoto doméstico e industrial que o rio
adiantaram parte deste processo de reavaliação do rio, viajando
recebeu nas últimas décadas. O que nas palavras do secretário de
de caiaque pelo Velhas, um mês antes da nossa incursão, em ju-
Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, José
lho, pelo São Francisco. E apesar de terem concluído o que já era
Carlos Carvalho, se resume em “tratar o rio como uma coisa efe-
esperado: que “as ações de revitalização não podem parar” 11, ou
tiva”. Premissa, que ao que parece, vem sendo cumprida desde
nas palavras do Apolo Heringer 12 “a meta não está assegurada”,
71
notaram um avanço considerável tanto na organização da po-
avariado? Talvez tenhamos testemunhado, sem saber, o indício da
pulação ribeirinha em torno do Velhas como nas próprias con-
recuperação de duas hidrovias históricas tão pormenorizadas em
dições ambientais da bacia. Contaram para a revista Manuelzão
suas grandezas.
13
que chegaram até a consumir o peixe do rio – do baixo Velhas -, apesar de terem tomado as devidas precauções, como a avaliação do aspecto do peixe por dentro e por fora. Engraçado notar que embarcamos na mesma aventura dos canoístas quando, na noite que chegamos a Guacuí, onde o Velhas se encerra, pedimos em um boteco local (o único) - peixe para o
1
(CASAL, 1945-47)
2
Miliet de SAINT-ADOLPH, Dicionário Gráfico
3
VIEIRA NETO. 1982, p.84
4
NEVES, Z. 1998, p.32
5
Oitava 35 do poema “Descobrimento das Esmeraldas” de
‘jantar’. O dono do estabelecimento nos serviu um tipo de pescado que nenhum de nós ainda havia experimentado: a corvina, espécie que muitos pescadores e funcionários de secretarias de
1629, publicada pelo pseudônimo de Diogo Grasson Tinoco,
meio ambiente disseram, durante a pesquisa, estar em extinção.
cujo real do autor é desconhecido.
Se o peixe veio do Velhas, nunca saberemos apesar de ser prová-
6
Raízes de Minas, p. 95-96.
vel que tenha vindo, pois, mesmo com notificações como as do
7
VIEIRA NETO. 1982, p. 80
8
Estimativa da Prefeitura Municipal de Pirapora
9
O Rio São Francisco e a Chapada Diamantinense, p. 147.
Instituto Estadual de Floresta (IEF) que, vez ou outra baixa portaria proibindo a pesca na região, entre Jequitibá e Barra do Guacuí, pescadores continuam pescando, como pudemos flagrar nas adjacências do encontro das águas. O fato é que aquele peixe acompanhado de limão e mandioca frita, foi o melhor que comemos durante toda a viagem – e foram mais de 900 quilômetros percorridos! Talvez ele tenha vindo mesmo, da rede de algum daqueles insistentes pescadores... Ou não. Se, veio, e estava contaminado será um eterno mistério como tantas outras coisas são em Guacuí, morada do Velhas. O fato é que nenhum de nós se sentiu mal depois daquela simples, mas, deleitosa refeição. Muito pelo contrário. Se o peixe deixou algum resquício em nós, foi a nostalgia de um afável sabor. E a dúvida de um momento vital para a bacia do Velhas: estaria mesmo o Velhas se recuperando? Trazendo animosidade e alento também para o São Francisco, igualmente tão
72
10
Richard Burton foi, entre outras coisas, escritor e explorador
que viajou pelo Rio São Francisco. 11
Revista Manuelzão n˚52, ano 12, julho de 2009, p. 14-17.
12
Apolo Heringer é o idealizador do Projeto Manuelzão e o de-
poimento foi retirado da Revista Manuelzão n˚53, ano 12, setembro de 2009, p. 3 13
Baixo Velhas se circunscreve a confluência do Rio das Velhas
com o Rio Paraúna até a foz no Rio São Francisco (Guimarães, 1953)
São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio
Tarsila Costa
“O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas, transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos outros. Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades”. Gilberto Freyre
Lembro-me do dia que chegamos a São Romão como se fosse
não documentados. Portanto, faz-se necessário traçar uma linha
hoje - dia 16/07/09 - quarta-feira. Era o começo de uma tarde bem
entre a imaginação e alguns fatos que são recontados por meio
quente, senti aquele inverno sertanejo quando observei na balsa
de historiadores e da memória social dos são romanenses para
as pessoas de blusa de frio. Na chegada à margem são romanense,
que possamos ter um panorama situacional da cidade. Para se ter
dirigi-me a um butequim, perguntei se alguém sabia onde havia
idéia, a secretária de cultura da atual gestão, Cândida Dionísia do
um hotel de preço modesto. Uma senhora de feição bem turva
Nascimento, declarou: “registro da história, documentação nos
disse não saber; olhei para outras pessoas do bar e todos balan-
não temos praticamente nada”. Ela ainda afirmou que se podem
çaram a cabeça afirmando o desconhecimento de um hotel na ci-
encontrar alguns documentos históricos em Uberaba e Portugal.
dade. Até que um rapaz gritou lá do fundo do bar: “Sobe essa rua
As impressões da Coroa no século XVII sobre o sertão mineiro
aí a direita que perto da rodoviária tem um hotel”. Agradeci e me
são bem alegóricas, embora correspondessem de certa dose de
retirei do lugar, começara ali nossa imersão num espaço repleto
veracidade. De acordo com o trecho da obra de Romeiro Botelho
de histórias.
utilizado no Inventário de Proteção do Acervo Cultural, feito pela
Quem chega pela estrada de Ibiaí avista uma cidade que quando olhada de longe parece uma ilha. Três rios cortam a vila: o Velho Chico, Paracatu e o Urucuia. Para chegar a São Romão vindo por ibiaí é necessário pegar uma balsa que atravessa o Velho Chico. Tive a impressão durante a travessia até a outra margem que o tempo escorria junto com aquelas águas, tive o sentimento que estava indo para um lugar que transgredia a lógica linear do tempo urbano. Podia ver as pessoas da cidade observando quem vinha com a balsa; mas não tinham uma feição alegre, e o rio São Francisco com certeza já tinha trazido muitas alegrias e tristezas em suas águas para aquela gente. O município de São Romão guarda um acervo histórico diverso na tradição oral que alguns poucos moradores daqui ainda guardam em suas memórias e recontam para manterem viva a história tão mal documentada dessas paragens. Para quem chega
Prefeitura de São Romão: Essa região era denominada sertão das Minas. Era uma área que além de contar com uma população que não estava inserida nas engrenagens da economia mineradora – geralmente índios bravos, facinorosos, bandoleiros, vadios e quilombolas – não possuía ouro. Nos primeiros relatos sobre a região aurífera, em fins do século XVII, o sertão aparece como lugar inóspito, de difícil acesso, cortado por rios caudalosos e intransponíveis, envolto em matas fechadas e escuras. Entretanto o povoamento rápido e intenso, acelerado nos primeiros anos oitocentistas, resultou na territorialização do sertão. Para as autoridades, o sertão afigurava-se-lhes como lugar de revolta e motim, cenário por excelência da insubmissão política, espécie de terra sem lei que resistia à implantação do poder e da ordem. Nele imperavam potentados. (Botelho, Romeiro, 2003:271)
de fora querendo descobrir mais sobre a emblemática transversal
A história desse antigo entreposto comercial que fazia o elo co-
do tempo que se instalou na história do município, pode ficar
mercial entre os sertões e o litoral no século XVIII é mais antiga do
confuso com as várias versões que gravitam entorno de fatos
que as fachadas mal-tratadas e casas antigas derrubadas presentes
75
e ausentes nesta cidade. Conflitos e contendas marcaram a data
com o Inventário, a região pouco sofria com os tributos impostos
em que São Romão foi fundada enquanto arraial. Os índios nati-
pela Coroa. Os pobres nessa época, segundo a historiadora Carla
vos caiapós e a bandeira de Manoel Francisco Toledo travaram in-
Maria Junho de Anastásia, eram chamados de arraia-miúda e re-
tenso conflito, datado em 23 de outubro de 1719. Segundo Telêmaco
sistiram a pagar a taxa, o que culminou em outro violento capítulo
William Dias Palma, artista plástico e morador do munícipio, “São
da história de São Romão com inúmeros mortos e feridos. Mas o
Romão antes dos portugueses era habitado por índios caiapós;
povo sertanejo que se envolveu em tal conflito não queria apenas
aqui tinha a aldeia Guaíba. Então para os portugueses coloniza-
a liberação da taxa, queria a soberania da região dos sertões. Estes
rem o Brasil central, a única via era o rio São Francisco. Eles [os
movimentos buscavam a libertação da política vigente: na época
portugueses] tiveram que matar os índios, foi a maior matança
foram denominados “motins do sertão”. O trecho da dissertação
do Rio São Francisco; posteriormente a essa matança fundou-se o
de mestrado de Carla Maria, intitulado a sedição de 1736, ilustra o
arraial de Santo Antônio da Manga, o nome São Romão foi dado
contexto dos chamados “motins do sertão do São Francisco”:
à ilha após o extermínio”. Ainda, os índios que não foram mortos foram expulsos de suas terras, como datado no Inventário do patrimônio da cidade. Segundo a biblioteca digital do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a causa de tal nome foi em razão de ser o santo do dia. O sangue indígena derramado foi celebrado pela Igreja nesse dia, pelo fato dos bandeirantes terem conseguido tomar a ilha. A aldeia dos Guaíbas é localizada numa ilha que segundo o IBGE dividia o grande rio em dois braços. Como já foi dito a única via de acesso aos sertões era o Rio São Francisco, e, junto com suas águas, metais preciosos, pro-
Em 6 de julho de 1736, os amotinados, mais de 900 homens, vindos das beiras do São Francisco, de “baixo e de cima”, entraram em São Romão, exigindo que o governador aliviasse a capitação. Caso contrário, voltariam, no prazo de 33 dias, e dali, partiriam armados para as minas (...) Após o prazo de 33 dias, os amotinados seguiram para São Romão, liderados por Pedro Cardoso, investido do cargo de procurador do povo (...) A pretexto do chamado dos moradores das minas, os amotinados pretendiam conquistar Sabará e chegar até Vila Rica(...)”(Anastásia Apud Botelho, Romeiro, 2003:206).
dutos agropastoris, descia o sangue indígena do povo sertanejo.
Depois de uma série de revoltas, a coroa reprimiu mais uma vez
A primeira metade do século XVII foi palco para violentos embates
com toda força que poderia, matando os que se manifestaram contra
entre o povo do sertão e a Coroa no alto do Vale do São Francisco.
a taxa e, em seguida, implementou o sistema de capitação. Após o
Após o massacre indígena, mais um conflito trouxe o dissabor
ocorrido, parece que foi selada uma paz com ares de um passado san-
para os são romanenses. Em 1736 houve outro conflito no arraial.
grento, um passado de lutas e rebeliões. Certo estranhamento pelos
A população se rebelou com a coroa devido à tarifa de captação
forasteiros parece ser cultivado até os dias de hoje no imaginário co-
que havia sido implantada pelos portugueses; parecia que os são
letivo do povo de São Romão, embora a história não seja uma lacu-
romanenses resistiam à dominação do império, não apenas por
na que se encerre em si mesma: em todos os lugares há pessoas que
valentia, mas, conta-se que a pobreza era farta por aqui. De acordo
transgridem com a mentalidade do espaço tempo que se encontram.
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O patrimônio histórico ou a falta que ele faz Telêmaco nasceu e foi criado na cidade de São Romão, e, um pouco mais tarde foi morar na capital Baiana, Salvador, onde resi-
casa azul que se localiza na avenida Newton Gonçalves Pereira, não muito longe da beira-rio. Na parte superior da parede frontal ainda é possível ver o brasão da república. Conta-se por aqui que a ali era uma casa da moeda instalada pela Coroa. Telêmaco
diu quinze anos. Segundo o artista, quando chegou a Salvador era
desmentiu, dizendo que naquela casa morava uma família, nada
viciado em álcool e cigarro, embora tenha abandonado esses vícios
mais. O artista parece ser um trovador nessas bandas. A antiga
ao descobrir sua paixão pela pintura. Na ocasião da conversa, escu-
cadeia, fundada em 1880, localizada na praça dos fróis, segundo
tava Led Zeppelin. Havia ainda vários quadros na sua varanda, qua-
Telêmaco, também não abrigou o assassino do marido da famosa
dros produzidos na sua estadia em Salvador retratando a própria
proprietária de muitas terras, Joaquina de Pompeu. Essa é a his-
cidade. As crianças se enlaçavam curiosas entorno dos quadros
tória que povoa o imaginário dos moradores de São Romão. Telê-
que ele colocara para fora; elas discutiam as pinturas que gostavam
maco conta outra história: “Joaquina de Pompéu não frequentou
mais ou menos e algumas obras que pareciam formas mais abstra-
São Romão. O que houve é que teve uma Joaquina de Rafael, uma
tas. Telêmaco mostrou uma série que fez sobre os vendedores de
fazendeira de Ribeirão da Conceição, de riachinho. Ela mandou
cafezinho de Salvador; falou do campeonato que havia entre eles
matar o genro dela, só que ele era de uma família de Paracatu;
onde o carrinho mais belo era premiado, falou da época que morou
a família dele então jurou que ia se vingar. Prenderam-na. Então
na parte antiga da cidade e de um episódio que o marcou profun-
era Joaquina do Rafael, o pessoal veio com a história de Joaquina
damente: a casa em que morava pegou fogo e ele perdeu muitas
do Pompeu e era Joaquina do Rafael”. Ainda se conta que na An-
coisas. Disse que havia ficado muito angustiado de ter perdido um
tiga Cadeia, atual casa da cultura, havia um porão onde os presos
caderno de anotações sobre a sua vida que carregava com ele pra
eram colocados. No local havia forcas entre outros acessórios que
todos os lugares. O quadro sobre os 500 anos do Brasil chamou
marcam a opressão e o sofrimento dos que passaram pela antiga
muito minha atenção. No desenho da bandeira brasileira não des-
cadeia. Não se vê hoje em dia nem esses acessórios nem mesmo
pontava o escrito ordem e progresso, antes, um negro sangrando
o porão: esse foi soterrado segundo o plano de inventário da ci-
sentado no centro do losango amarelo; embaixo um prato onde o
dade, por volta de 1930, numa tentativa de apagar um passado de
sangue escorria, servindo de alimento aos insetos e ratos.
sofrimento e opressão. Diz-se, ainda de acordo com o inventário,
Telêmaco falou sobre a intolerância racial em São Romão, a
que sacas de sal foram colocadas no antigo porão com o objetivo
não valoração da cultura e história dos são romanenses e do pró-
de esfriar o local, “Aos poucos os presos sentiam os efeitos no or-
prio poder público local. Ele nos mostrou uma foto antiga da cida-
ganismo: inchavam, ficavam pálidos e sem ar, até virem a falecer”.
de com as casas que a compunham outrora. Estas tinham fortes
Este sal encontrado nos porões da antiga cadeia chegou a São
característica da arquitetura portuguesa; hoje restam poucas edi-
Romão, segundo Mata-Machado, no período colonial, no século
ficações dessas que estavam na foto. Falou inclusive sobre uma
XVII, devido ao município ter sido um dos portos distribuidores de
77
Uma das obras de TelĂŞmaco William Dias Palma
sal da época. Ainda Mata Machado diz que a farinha de mandio-
tem o olhar cerrado, e, quando fala do seu batuque e dos seus
ca, a rapadura, a cachaça e o peixe eram produtos fornecidos ao
antepassados, é possível ver a relação de cuidado que tem com a
pessoal que trabalhava nas minas. O sertão mineiro, ou os Gerais,
herança cultural que herdou dos seus antecessores. No chamado
abasteciam as minas com sua produção agropastoril.
batuque de Ernestina, guiado por ela, acontecem festejos, can-
Há tantas histórias nesses sertões, que quando vejo a capital
tos e danças folclóricas como o bumba-meu-boi, caboclo e o São
do Estado de Minas Gerais, pergunto-me, onde estão os Gerais?
Gonçalo, realizados em seu terreiro desde os seus sete anos. Os
Infelizmente só percebo os mineiros recontando eternamente a
instrumentos usados no batuque são de confecção própria: ron-
Inconfidência Mineira.
cador, caixa, tambor. Com a trança amarrada e o lenço na cabeça
Os batuques que guardam história
ela fala que já plantou e colheu nessa terra; muito brava, ela diz que no dia em que morrer quer que pegue todo o seu batuque e
A formação racial diversa dos são romanenses é presente na
enterre com ela: ”Não quero deixar nada pra essa cidade”, protesta.
cor morena e negra que pode ser percebida nos moradores, em-
Dona Maria diz que as manifestações de seu povo não são valori-
bora já fosse percebido por Donald Pierson na década de 50, du-
zadas, nem pela população, nem pela prefeitura. Diz também que
rante pesquisa feita para a produção do livro “O homem do Vale
São Romão é uma cidade muito racista. Apesar de tudo isso, dona
do São Francisco”. Ele notou grande participação africana nas ex-
Maria nunca saiu da cidade e seus antepassados foram todos en-
tremidades do Vale, principalmente onde havia o plantio de cana-
terrados ali. É como se fosse muito ruim ficar nesta situação de
de-açúcar. Outras observações interessantes foram feitas sobre
descaso, mas pior seria ficar longe de suas raízes. Pareceu-me que
São Romão, quando Teodoro Sampaio passou por aqui por volta
há uma relação de necessidade entre dona Maria e São Romão,
de 1890. O antigo arraial ainda se chamava Vila Risonha de Santo
embora ambos não tenham percebido isso. D. Maria representa a
Antônio da Manga de São Romão. Ele observou uma grande tris-
cultura negra da cidade com seus cantos, suas histórias, seu com-
teza no povoado, além da pobreza e da feiúra que levou com suas
portamento, sua oralidade. Não queria se filiar ao inventário do
impressões etnocêntricas da vila.
patrimônio histórico de São Romão por se julgar abandonada pela
De negros tristes, restaram algumas histórias como a de dona
administração pública. Daqui alguns anos, quando dona Maria se
Maria da Conceição Gomes de Moura, mais conhecida como dona
for e enterrar consigo todo seu batuque, parte importante da his-
Maria do Batuque. Senhora de 81 anos, mora na antiga parte da
tória de São Romão mais uma vez irá se perder.
cidade, que de antiga atualmente apenas possui algumas poucas
Ela conversava e tentava nos olhar, embora tivesse muita di-
casas com características portuguesas: a Igreja do Rosário, a an-
ficuldade em razão de sua limitada visão. Não há como esquecer
tiga cadeia e um antigo pé de Tamarindo. Mostrando que algum
dona Maria dançando a dança do xién (determinação de xien), se
dia, em algum tempo que não foi documentado, a coroa portu-
coçando e se batendo para fazer menção à coceira que esse bicho
guesa tentou instalar-se de maneira eficaz por aqui. Dona Maria
dá quando gruda no cabelo: “Ô xien bicho danado”, ela dançava e
79
cantava celebrando um passado que faz parte da história de São
nômades ou aldeados, de escravos fugidos, infestavam as mar-
Romão e que indiscutivelmente faz parte da história do povo bra-
gens do grande rio, assaltando caravanas e contrabandeando
sileiro, povo este que possui uma matriz negra marcante. Há mui-
ouro. Um mar populacional desaguava da Bahia de Todos os Santos
tas histórias que foram soterradas pelo tempo devido o descaso
em direção ao centro das Minas, movidos pelas promessas de
com o patrimônio. No entorno da casa de Dona Maria, encontra-
pedras preciosas e riqueza fácil, além do que, nesses sertões não
se um patrimônio largado, esquecido. A Igreja de Nossa Senhora
havia fiscalização intensa da coroa. É possível imaginar quantas ri-
do Rosário está pintada por fora, mas no inventário do patrimô-
quezas eram escoadas pelo São Francisco nessa época e quantos
nio cultural se diz que muitas imagens e adereços se perderam:
conflitos, roubos e saques eram travados nessas terras, sobretu-
roubos, descuidos podem ser uma das razões dos monumentos
dono auge da extração aurífera. Mais especificamente no norte de
estarem assim.
Minas era fomentada a atividade agropastoril. O fluxo de pessoas
Quando olho para dona Maria vejo-a, por ora, como esses pa-
e mercadorias motivadas pelas descobertas trouxe os negros, ban-
trimônios mal-preservados e desvalorizados. Há, todavia, uma re-
deirantes, portugueses para as terras interioranas do Brasil que
lação entre ela e esse contexto de desamor com a própria história
outrora fora dos índios; muitos fugiam da costa brasileira, que, a
e cultura. Dona Maria resiste, toda vez que reúne sua banda e fes-
partir do século XVI já estava colonizada pelos portugueses.
teja sua cultura em seu terreiro. Os cantos afro-brasileiros toma-
No processo de povoamento dos sertões, vários arraiais co-
ram forma num belo trabalho produzido pelo músico Rafael Duarte,
meçaram a aparecer devido ao fluxo de pessoas e produtos que
intitulado: “Batuquim vai abaixo, vai não”, no ano de 2007. Dona
passavam pelo Rio. Esses arraiais não se formavam e permaneciam
Maria do Batuque é o maior símbolo de resistência cultural de São
fixos - muitos desapareciam -, perdiam o fórum de Vila porque as
Romão, a história deverá justiça a tanto esquecimento.
pessoas em determinado tempo simplesmente iam embora em
Quando se caminha pela parte antiga, há alguns vestígios histó-
decorrência das condições gerais de sobrevivência. Teodoro Sam-
ricos como a igreja Nossa Senhora do Rosário, símbolo importante
paio quando passou por aqui se sentiu intrigado com o apareci-
da colonização portuguesa datada no século XVII. Outras casas de
mento de determinadas vilas, mesmo sob condições precárias. Ele
estilo português ainda são possíveis de se ver. Estas casas destruídas
refletia que algumas cidades nas quais chegou não havia ninguém:
ou depredadas atestam uma história que remonta nosso processo
o biólogo se sentiu impressionado com a situação de instabilidade
de colonização, embora antes dos portugueses chegarem aqui com
que o povo sertanejo estava entregue. Segundo Telêmaco, como
suas bandeiras em busca de pedras preciosas e poder no século XVII,
o desenvolvimento e com o nascimento de outros povoados e
nas margens do grande opará - ou rio-mar (nome em tupi guarani do
vilas na região, a cidade entrou em decadência. Algumas famílias
Velho Chico) - os índios Caiapós já estivessem aqui.
brancas foram embora, evadindo da cidade. Chegou-se ao ponto
São Romão era um arraial que abrigava forasteiros de toda
de São Romão, em 1873, perder o fórum de Vila. Ainda não havia
sorte. Segundo a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, índios
funcionários para trabalharem na comarca, denominada enquanto
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Os padrões de conservação do patrimônio em São Romão, como em boa parte do norte de Minas, praticamente inexistem. As herenças históricas passam por reformas aleatórias sem a conservação da estrutura original, perdendo a maior parte das características arquitetônicas: a memória se perde com a forma; e São Romão é uma das cidades mais antigas de todo o Vale do Sâo Francisco. O Governo Federal não está, certamente
Cabeça do São Francisco. Com o desenvolvimento de São José da
2009 - alcançou R$213,51 reais. Para a população de São Romão
Pedra dos Angicos, atual cidade São Francisco, São Romão perdeu
isso já é caro, mas ao que parece, a cesta básica em São Romão
a importância econômica, sobretudo pelo fato de outras alternati-
não é uma necessidade essencial. Há um luxo capcioso nesses
vas de vias serem criadas para suprir as necessidades dos lugares
preços; mas quando falamos de necessidade por aqui, temos que
que havia atividades de mineração, como a abertura da estrada
considerar que a população vive, ainda, praticamente de subsis-
para o Rio de Janeiro. Descentrou-se, a partir daí, a necessidade
tência, vista na pecuária, na agricultura e em alguns poucos servi-
de abastecimento de mercadorias vindas do vale para as regiões
ços. O caráter histórico dessa ausência de serviços foi observado
de atividades de mineração.
por Teodoro Sampaio quando passou pelo Vale no século XIX:
Em relação à densidade demográfica de São Romão, há um
“vive-se com pouco por aqui (...) vive-se de brisa”.
dado curioso: se observarmos a tabela sobre o número de pes-
É interessante acompanhar a trajetória histórica dessa cidade
soas que habitam no município desde 1991, veremos que a popu-
que em 1831 foi elevada e nomeada de Vila Risonha de Santo Antônio
lação está decrescendo. Se em 1991 havia 14.562 habitantes, no
da manga de São Romão depois de tantos conflitos e problemas,
ano 2000 o censo realizado pelo IBGE calculou 7.783 habitantes.
sendo em seguida reduzida a um simples distrito de Angicos. Foi
Já no ano de 2007 houve um pequeno crescimento populacional
em 1923 que se emancipou enquanto município, embora sofra de
- foram registradas 9.080 pessoas. Muitas pessoas migraram da
lá pra cá constantes tentativas de apagar sua própria história. De
zona rural para zona urbana de São Romão, embora a cidade pa-
alguma herança do patrimônio indígena em São Romão restou a
deça de uma verdadeira estrutura comercial. O que, segundo uma
ilha dos Caiapós e alguns artefatos que até hoje - quando se fazem
são romanense de mais ou menos 10 anos, é muito ruim para a
obras no município - são achados pelos moradores, que, em sua
economia das famílias da cidade. Rememoro-me da indignação da
maioria, não guardam nem em suas memórias e nem em algum
pequenina em relação aos altos preços dos produtos: “Imagina
espaço público, se não vendem aos antiquários ou apreciadores.
que o quilo da carne aqui é R$15,00, o gás está saindo a R$50,00, o
Júlio César, segundo reportagem feita no jornal Hoje em Dia, o
caderno brochura está R$4,00, o lápis R$0,20. Para complementar
baiano nascido em Petrolina (BA) chegou a São Romão menino e
a indignação da preocupada garotinha, disse que uma calça jeans
sempre tentou cuidar do patrimônio de sua cidade. Em uma casa
está saindo a R$100,00. “Não tem como comprar nada aqui, quan-
alugada em Ceilândia do Sul, Distrito Federal, Júlio guarda um
do precisamos de algo compramos fora” palpita. O Produto In-
acervo de 2800 peças. São artefatos indígenas, algemas, até um
terno Bruto (PIB) per capta de São Romão é de R$4.269,00 reais,
baú cheio de moedas de prata e cobre da época do Brasil colônia
embora o rendimento médio mensal de um são romanense seja
que, segundo ele, foi descoberto quando a prefeitura realizou al-
de R$306,42. De acordo com o Departamento Intersidical de Esta-
gumas obras de asfaltamento na cidade.
tística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE, a cesta básica - tendo
É necessário ter muita imaginação para desvendar o que ocor-
como referência a cidade de Belo Horizonte e o mês de agosto de
reu por aqui, mas há uma aura que acompanha São Romão e que
83
(Esquerda) Cartaz afixado logo na entrada da prefeitura da cidade. (Acima) Garoto assistindo às obras do artista local Telêmaco William Dias Palmas. São Romão é tão histórica quanto isolada no vale do São Francisco. (Direita) Garotos em primeiro plano com outra obra de Telêmaco ao fundo, só que agora retratando os vendedores de cafezinho em Salvador.
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jamais será apagada: a maioria das histórias desta cidade veio trazida pelo Rio São Francisco. Olhar para suas águas é como se olhar para uma espécie de espelho turvo que mostra no seu reflexo sua atual condição: um passado repleto de histórias e de vestígios emblemáticos que se encontram ameaçado pelo descaso e abandono da população e da administração pública federal e estadual.
1
Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura
local. O documento não possui paginação. 2
Disponível no site do IBGE, www.ibge.gov.br
3
Carla Maria Junho Anastasia. A sedição de 1736: estudo compa-
rativo entre a zona dinâmica da mineração e a zona marginal do sertão agro-pastoril do São Francisco. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado, DCP-UFMG, 1983. 4
Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura
local. O documento não possui paginação. 1
Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-
nas Gerais. Publicado em 1991, p.37 5
Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. 1972.
6
Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.
2002. 7
Disponível no endereço www.dieese.gov.br
8
Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.
2002, p.47.
86
Januária: outras histórias além da boa e velha cachaça
Bárbara Camargo
“À Januária eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças — a vinte-e-seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas de umburana”. João Guimarães Rosa
Antes de Januária, Brejo do Amparo
com a região das minas e, também, com o nordeste, outro mercado
Antes de Januária constar no mapa de Minas Gerais, em 1860, e ficar conhecida por sua velha e boa cachaça, um povoado chamado Brejo do Amparo já existia há quase 200 anos. E foi este distrito, ainda hoje rural, que deu origem a Januária. Este lugarejo, que exala cheiro de rapadura, está localizado a cinco quilômetros de distância do rio São Francisco, na parte alta, e foi um dos pedaços de terra que os bandeirantes granjearam no sertão brasileiro, no século XVII. Nesta época, aqueles que não se
consumidor, então, importante. O local foi escolhido por causa das ótimas condições de plantio que o terreno apresentava. Era fértil e naturalmente irrigado, com uma água salinizada - daí vem o nome brejeiro e a designação ‘Salgado’ -, e foi esta fertilidade que impeliu o bandeirante português Manuel Pires Maciel2 a fundar o vilarejo e a iniciar as atividades campesinas tão requisitadas nesse tempo: criação de animais e a produção dos derivados da cana, como açúcar. Pires instalou, inclusive, um engenho movido por água, que dizem ter sido o primeiro do tipo no sertão, e já
aventuravam nas expedições à procura de gemas e de quinhões
em 1670, as pioneiras instalações do Salgado produziam os pri-
de ouro, fundavam fazendas nas margens do rio São Francisco
meiros litros da cachaça que, séculos depois, correria fama pelo
para criar gado e roça a fim de abastecer a população das minera-
país inteiro. A produção do brejo prosperou tanto, que no século
ções, recém-descobertas. Visto que, essas minas geratrizes sacia-
XVIII, despontava como “o maior empório comercial entre o Alto
vam somente o capricho de seus desbravadores com suas rique-
e o Médio São Francisco”3, tamanha demanda e produção de suas
zas minerais, e mais nada. Pois, neste período das bandeiras, não
iguarias. E foi o escoamento massivo destas mercadorias que o
havia ainda nas cercanias, cultivo de frutas e hortaliças que pudesse
povoado do Salgado produzia, por intermédio do São Francisco, o
abastecer o povoado, que ao redor das minas, ia se formando. A
grande progenitor de Januária.
natureza por estas bandas ainda era virgem. Daí, estas incursões em busca, também, de terras que tivessem potencial para o plantio e para o pasto, provendo, assim, sustento para esta região au-
O despontar de Januária até o novo ciclo da aguardente
rífera que inchava sem controle. Esta fase, inclusive, é conhecida
Cachaça, rapadura, garapa... Estas e outras provisões saíam
como “Ciclo do Gado” e o São Francisco como o “rio dos Currais”,
constantemente do Brejo do Salgado no lombo de burros e carros
pois, de suas margens, tomadas por fazendeiros, despachava-se,
de boi e seguiam para a margem mais próxima do rio São Francisco,
além de alimentos, animais para montaria e serviços pesados.
onde a estrada desembocava. Lá, à beira rio, eram estocadas e ne-
1
O “rio São Francisco tornara-se despensa das Minas” , neste
gociadas com barqueiros e sertanistas, e foi esta movimentação
momento. Dessas fazendas mandava-se, principalmente, carne
constante de embarque e desembarque de cargas, sempre em um
seca, rapadura e peixe, e Brejo do Amparo, que nos primórdios
mesmo ponto, que acabou por regularizar um porto, um ‘depósito
chamava-se Brejo do Salgado, foi um desses domínios fundados
de mercadorias’ na riba do Velho Chico: o ‘Porto do Salgado’, pri-
por bandeirantes que queriam se enriquecer fazendo intercâmbio
meiro codinome de Januária. Simultaneamente, com o desenrolar
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Foto hist贸rica adquirida junto ao acervo da cacha莽aria Claudionor
O cais de Januária em fotografia de decada de 40. Sabe-se pela historiografia da região que o porto foi fator precípuo para formação do povoado.
dos anos e com a intensificação dessas atividades comerciais, fora
questiona-se a razão de querer homenageá-lo mudando seu nome
se ajustando ali, novos moradores atraídos pelas facilidades que o
para o feminino e não deixando como no original. Mas, seja qual
escambo, naquela informal beira portuária, ia dispondo. E o ‘porto’,
for o motivo da denominação Januária ter vindo a calhar, o fato
que foi durante certo tempo somente o escoadouro de produtos
é que o município experimentaria, dali a pouco, outros episódios
do Salgado, cresceu em importância, passando a ter, igualmente,
determinantes para a sua história como o início da navegação a
um núcleo povoador. Esta monta que o Porto alcançou contribuiu
vapor no rio São Francisco, por volta de 1870; a eclosão do ciclo
para que os dois lugarejos - o Brejo e o Porto – fossem transformados
da borracha, em 1900, e o próprio começo da industrialização da
em uma só jurisdição em 1811, quando se unificaram na condição
cachaça, na década de 1920. Estes ciclos econômicos, só para citar
de distrito, até que, em 7 de outubro de 1860, o distrito se tornou
alguns, imprimiram mudanças cruciais na trajetória de Januária.
município. Inclusive, o Brejo passa a ser um bairro (Bairro Alto) da, então, nova cidade: Januária.
O surgimento dos vapores, por exemplo, fez com que as atividades portuárias da cidade se intensificassem, sobremodo, uma
Este nome (Januária), que nada tem a ver com os nomes an-
vez que o volume de carga transportado se agigantou com a che-
teriores – Brejo e Porto do ‘Salgado’ – tem três versões explicativas
gada de embarcações de maior porte que faziam escalas cada vez
para sua origem, e nenhuma delas parece fazer muito sentido,
mais freqüentes e fartas, destacando ainda mais a importância
segundo os próprios historiadores. A primeira conta sobre uma
mercantil da cidade na região. Inclusive, o cais que foi construído
suposta ex-escrava, chamada Januária, que teria se tornado po-
em Januária, chamado Coronel Rocha, foi resultado desta era de
pular no povoado por ter criado, próximo ao porto, uma ‘casa’ de
ouro do porto. Tinha como ornamento duas pilastras de estilo
bebedeira e de prostituição conhecida dos navegantes que viviam
clássico que simbolizavam a entrada da cidade para aqueles que
a zanzar. Acontece que, nesta época, como explica o pesquisador
chegavam do rio. Pareciam dois totens de um portal para o Novo
4
e conterrâneo de Januária, Antônio Emílio Pereira , era pratica-
Mundo e era orgulho dos antigos moradores da cidade que, hoje,
mente impossível que uma pessoa de cor preta fosse homena-
lamentam sua derrubada.
geada, ainda mais nestas condições envolvendo um escravo e a
O ciclo da borracha, por sua vez, foi outra atividade que im-
balbúrdia. A outra hipótese, também, pouco provável, conta que
primiu novas alterações na cidade. Mormente, na paisagem local,
o nome teria sido uma honorificação à princesa Januária, irmã de
que sofreu uma degradação ímpar com o início da extração do
Dom Pedro II, que nunca esteve na cidade e nunca teve nenhum
látex da mangaba e da maniçoba, duas plantas nativas da caatin-
vínculo com a região. Além disso, no período em que o município
ga, que tinham em exuberância nas margens do rio São Francisco,
foi homologado, ela só tinha 11 anos de idade e nenhuma influência
na faixa de Januária. A intensidade da exploração iniciada em
política. A terceira hipótese para o nome da cidade versa sobre
1900, fez com que a cidade ganhasse o título de “Manaus Sertaneja”
Januário Cardoso, sertanista que dominou, no século XVII e XVIII,
tamanha produção láctea do município que perdurou até 1918,
a região do norte de Minas. Daí a suposta referência. Entretanto,
quando a atividade sofreu um decurso em função do aumento da
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oferta de látex no mundo e, também, pela falta de políticas públi-
o engarrafamento da aguardente e a rotulação das garrafas com
cas que regularizasse a atividade na região. E é no término deste
marcas de procedência que vão surgir para qualificar os tipos de
ciclo, que surge outra prática laboral, desta vez, mais expressiva
cachaça fabricados no local. O primeiro engarrafador de Januá-
para o município no âmbito econômico e cultural, que vai aduzir
ria foi Abílio Magalhães, que lançou a marca ‘Januária Crystal’ em
provas da verdade de que Januária é a terra da cachaça. Era o co-
1925. Três anos depois, surgiu uma marca semelhante - a ‘Janu-
meço do engarrafamento da bebida, até então inédita, que vai
ária’, que mais tarde, vai ser substituída pelo nome ‘Claudionor’
criar distintivos nas bebidas, antes inexistentes, e desencadear,
– nome do proprietário da marca, em função da maneira como os
por isso, uma corrida entre os produtores pelo título de melhor
consumidores se referiam a cachaça nos balcões dos estabeleci-
aguardente do local.
mentos: - vou querer uma ‘Januária’ do ‘Claudionor’. Além disso,
A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana Se durante os séculos XVIII e XIX o fornecimento de aguar-
o aparecimento de outras cachaças nas prateleiras dos mercadinhos, empórios e botecos da cidade, dali adiante, faria com que fosse preciso, de fato, distinguir com exatidão qual das (XXXX) ‘Januária’ desejava-se beber.
dente fora providência de apenas alguns fazendeiros da bucólica
Esta preocupação em personalizar a bebida foi uma decisão
Brejo do Amparo, que processavam de forma artesanal nos seus
indiscutivelmente oportuna e providencial, pois, trouxe para o
rústicos engenhos, cana de primeira qualidade como a caiana,
setor a concorrência e a busca por novas formas de customização
rosa, manteiga e java, também usada para produzir a famosa ra-
da aguardente, o que desencadeou o aumento da qualidade das
padura que adoçava o cafezinho dos moradores da zona rural, em
bebidas produzida na região. O ofício da destilação se consagrou
meados da década de 1920, a transformação da cachaça ganha
em Januária, transformando-a tradicionalmente na “terra da velha
novas técnicas e passa a ser do interesse de muitos. Isto ocorreu
e boa cachaça”. Não é à toa que a cidade consta como sinônimo
porque, neste período, a exportação da cachaça januarense eclo-
de cachaça no dicionário da língua portuguesa. Além, é claro, de
diu, alcançando cifras antes nunca vistas, como a de 1917, que che-
ter outras célebres notificações alusivas a iguaria do município,
gou a casa dos 450 mil litros. Todavia, a venda da bebida era feita
como a peculiar descrição de Guimarães Rosa sobre a cachaça e
a granel, o que barateava seu custo e eximia os produtores da ne-
os vapores em Januária, eternizada em Grande Sertão Veredas,
cessidade de identificar sua iguaria, já que era vendida em tonéis,
obra bela e copiosa de 1956, dita na voz de Riobaldo5: “À Januária
fosse para um país da Ásia ou para tropeiros e comerciantes locais.
eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente espe-
E foi esta disparidade entre a grande requisição do mercado pela
rando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos
cachaça produzida em Januária e seu baixo valor de compra, o que
alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças — a vinte-e-
despertou os produtores para a necessidade de encontrar meios
seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas
de diferenciar sua produção e tirar proveito disso. A solução foi
de umburana” .
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A Umburana, também conhecida como cerejeira, é uma ár-
de Salinas. O declínio das vendas de garrafas e doses com proce-
vore típica da caatinga nordestina, mas que, também, ocorre em
dência de Januária se acentuou e a categoria viu anos de tradição
outras faixas florestais do país e no norte da Argentina. Tem uma
ser pulverizados pela ação de ‘meia dúzia’ de gananciosos. Alguns
madeira de gosto adocicado e de cheiro marcante, que lembra a
dos centenários alambiques do Brejo do Amparo tiveram de ser
fragrância da baunilha. Com ela costuma-se fabricar tonéis de ca-
desativados com a diminuição da demanda, e antigos produtores
chaça por conta destas características que acabam beneficiando a
tiveram de sair da zona rural e procurar outras atividades no cen-
aguardente quando curtida neste tipo de dorna. Inclusive, a “cor
tro urbano de Januária.
queimada” da cachaça, descrita por Guimarães Rosa, é justamen-
Atualmente, mesmo tendo transcorrido mais de três déca-
te a tonalidade que madeiras como a umburana imprimem à bebi-
das desde o início da sinistra prática de adulteração, a artimanha
da no processo de envelhecimento. Ainda que alguns fabricantes
ainda continua a acometer o ramo da cachaçaria na cidade, como
usem outros artifícios, como o melado, para dar à bebida, além
ponderou o Secretário de Turismo de Januária, Antônio Vidal
desta coloração dourada, um sabor distinto. E foram estas combi-
Júnior, durante uma visita que fizemos a Prefeitura. Segundo
nações de ingredientes no processo de transformação, às vezes,
ele, aproveitadores de plantão compram cachaça de qualidade
nem sempre decorosas, que comprometeram mais tarde – na dé-
dos pequenos produtores, que repassam a preços bem módicos,
cada de 1970 -, este avanço anterior, com falsificações e com a
e as vende para o nordeste com rótulo de cachaça caribenha, a
introdução do alambique inoxidável.
preços quadruplicados. Esse tipo de violação deriva-se da falta
Neste período, - cinqüenta anos depois da grande reforma do
de percepção empresarial e de mercado do pequeno produtor,
processo artesanal da cachaça -, houve uma tentativa grosseira
que entrega sua mercadoria a preços baixos, além de ser desti-
de enriquecimento ilícito por parte de alguns produtores que pas-
tuído de qualquer tipo de suporte publicitário e de logística que
saram a misturar cachaças mais baratas, de qualidade inferior à
ajude na comercialização correta de seu produto artesanal – o
cachaça local. De mais a mais, houve, igualmente, a introdução do
mais estimado pelos consumidores. Pois a cachaça, ao contrário
alambique de aço, como parte de um plano que visava industrializar
da pinga, demanda um preparo mais cuidadoso para se chegar às
a fabricação da cachaça - ampliar a escala da produção. Os res-
características ideais de consumo como ter aroma suave, – que
ponsáveis por este plano pernicioso intencionavam o aumento de
não agrida o olfato-, coloração transparente ou rosada e dou-
seus lucros no compasso da produção em série. Contudo, não se
rada, como gracejou Guimarães, além de um gosto amaneirado. O
preocuparam com a manutenção da qualidade do produto, o que
gosto do álcool deve ser suprimido no envelhecimento, visto que,
foi fatal para o ramo. Com o tempo, os consumidores notando a
não é normal o degustador sentir queimação nos olhos e na boca
discrepante diferença entre o que costumavam pedir nos balcões
ao ingeri-la, fazendo-o com que sinta vontade de expelir o que
e o que passaram a beber, migraram para marcas de outras loca-
acabou de experimentar. Portanto, sua industrialização deve ser
lidades, também produtoras de boa cachaça, como o município
ponderada. Visto que, a cachaça é como qualquer outra bebida
93
destilada e precisa ser confeccionada em etapas meticulosas para
A medida faz parte do programa da Companhia Nacional
resultar em boas safras. Ao contrário da pinga, por exemplo, que
de Abastecimento (Conab), que compra a produção agrícola de
é feita, basicamente, só da moagem da cana, tendo-se, somente,
pequenos produtores para incentivar a permanência do homem
a preocupação em retirar o primeiro suco da tritura, considerado
no campo. Uma estratégia sustentável que beneficia, a princípio,
tóxico. Apesar dos desavisados inferirem que os dois tipos tratam-se
todos os envolvidos: as entidades que recebem este suplemento
da mesma coisa.
nutricional, o governo que compra produtos de qualidade a cus-
A rapadura e a arte de sobreviver dela
tos relativamente baixos, e o produtor, que recebe a verba, e de certa forma acaba gerando renda para a comunidade local. Apesar,
A rapadura, por sua vez, especialidade primogênita do antigo
de serem justamente os produtores quem menos tira proveito
Brejo do Amparo, que ficou ofuscada pela fabricação de cachaça, tem,
nesta cadeia, como ponderou Vicente – hoje, presidente de uma
hoje, uma produção reminiscente no município. Apesar de o municí-
cooperativa dos produtores de cana de açúcar e derivados. “Os
pio ter algumas dezenas de produtores, tivemos conhecimento de
impostos são altos, a mão de obra é cara, o produto é muito ba-
apenas um fabricante que processa o doce na cidade de forma legal e
rato e a fiscalização do Ministério do Trabalho, rigorosa. Impõe
cooperada – o Vicente da rapadura – como é conhecido na praça. Seu
regulamentos que não podemos manter”.
engenho está localizado numa das vielas de chão batido do bucólico
No caso de Vicente, seu empreendimento é todo mantido em
Bairro Alto de Januária, vulgo, Brejo do Amparo, e quando lá chega-
família, com exceção de alguns empregados sazonais, que execu-
mos para conhecer o processamento da tal rapadura que remonta o
tam o serviço bruto durante o período de safra. Como conduzir
tempo colonial, o cheiro e o vapor vindos dos grandes tachos onde
os robustos bois de carga que trazem, na carroça, as frações de
se cozinhava a garapa embeveciam toda a instalação, inclusive, a vi-
cana para serem moídas, como parte do processo de fabricação.
zinhança. O próprio Brejo do Amparo é um lugar muito sinestésico.
Parte desta cana que Vicente transforma em rapadura, ele mesmo
Aqui e ali se vê plantações de cana, ranchos, corredores de árvores
cultiva. A outra porção é fornecida por outros agricultores da
entrelaçadas, flor de mato no meio da vegetação selvagem e o cheiro
região que são pagos em rapadura, em troca da matéria-prima.
doce de alecrim e garapa paira no ar do lugarejo, que hoje, em nada
Esses por sua vez vendem o doce para o governo, que compra nas
mais lembra um brejo. Se é que já foi parecido. Mas, retornando ao
cooperativas agrícolas do Brasil este, e outros tipos de produto.
engenho e a rapadura que Vicente, um homem de meia idade e de
Sendo que, o lucro de Vicente fica circunscrito ao excedente da
poucas palavras, produz, o processo é todo artesanal e sua produção
sua produção. Ou seja, aquilo que ele não permuta com outros
é comprada pelo Governo Federal, com recursos do Ministério do
produtores para pagar a cana que processou, ele mesmo vende
Desenvolvimento e Combate à Fome, através de uma cooperativa. O
para empresas de alimento. Cada unidade de doce é vendida a 14
doce é repassado pelo governo para entidades e escolas públicas de
centavos, e mensalmente é produzida, em média, uma tonelada e
todo país para ser servido como sobremesa na merenda.
meia de rapadura. Considerando que metade de sua produção é
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Processo de feitura da rapadura. Uma das partes do processo consiste em fermentar a garapa, como ilustrado na fotografia ao lado. (Página seguinte) Rapadura pronta para o consumo. Januária é tradicional nos confecção de gêneros derivados da cana.
repassada a cooperativa, sobrando somente a outra metade para
criou o Plano de valorização da economia da Amazônia, o Banco
venda, a renda líquida de Vicente não deve ultrapassar mil reais.
do Nordeste e infra-estrutura para áreas totalmente desprovidas
- Mas não é muito pouco? Com muita hombridade, Vicente me res-
dela, como a Bahia, que recebeu a hidrelétrica de Paulo Afonso,
pondeu de forma lacônica seu impasse: “Não tive muita escolha,
no rio São Francisco. Com a chegada de JK à presidência, em 1956,
a nossa região norte mineira é muito pobre. Porém, me dedico
a mania do ‘novo’ só veio a calhar com seu plano de metas desen-
a atividade com toda a garra possível. E, apesar das vantagens
volvimentistas. E o efeito desta tendência fez sentir-se de várias
serem poucas, me sinto satisfeito em saber que os produtos que
formas pelo país.
faço são saudáveis e alimenta o homem com qualidade. Além do
Em Januária, o mote foi o conjunto arquitetônico da cidade,
mais, é a produção de rapadura e cachaça que vem, de geração
que, vai sofrer danos irreparáveis em função do vislumbre pelas
em geração, sustentando o povo de Januária e do Brejo do Amparo,
coisas frescas e inovadas, que vão sentenciar algumas constru-
ainda que de maneira humilde”.
ções centenárias como ultrapassadas e arcaicas, portanto, descar-
A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária
táveis. Fazendo com que peculiares edificações da cidade, principalmente as religiosas, fossem demolidas para dar espaço a uma arquitetura de gosto moderno. Em 1970, esta prática de descons-
No final da década de 1950, começava a ser erguida a nova
trução na cidade chegou a seu ápice, e, lendo o livro comemo-
capital do Brasil. E, Brasília era a consumação de uma onda pro-
rativo do centenário do município – Januária: 1860-1960 -, pude
gressista no país Era principalmente, utopia dos gentílicos do
perceber boquiaberta, o quanto aquela crença de progresso pre-
sertão, povo que esperançava um milagre transformador, que
ponderava. Neste livro, fica evidente como a população de Janu-
colocasse sua terra - o cerrado, o interior do Brasil -, no eixo do
ária, e também, do Norte de Minas debitou suas esperanças neste
desenvolvimento, pela primeira vez, depois de 450 anos de esque-
novo movimento econômico que despontou no Brasil: “O Norte
cimento em detrimento do litoral, sempre priorizado. E Juscelino
de Minas se transformará num imenso laboratório onde o gênio e
Kubitscheck foi o homem de vanguarda que concretizou as preces
a audácia do sertanejo, fecundarão uma área das mais promissoras
da gente sertaneja esquecida. Tão esquecida que prometeu com-
e férteis do nosso território. O homem daqui que esteve sempre li-
pensar 50 anos de atraso em cinco de progresso. Construiu em
gado ao rio São Francisco, sentirá, agora, ao acenar da terra [...] o
mil dias o novo centro político do Brasil, consolidando o chavão
caminho que vem e vai até Brasília, como roteiro de novas entradas,
“marcha para diante”, iniciado pelo governo de Getúlio Vargas,
de nova era, e da integração nacional”7.
um ufanista incorrigível. E a ‘modernidade’ - ideologia introduzida
Assim, muitas ações de desmonte de construções históricas,
por Vargas começava a se consolidar como palavra de ordem. Coi-
cheia de memórias foram justificadas: - era pelo progresso. E Janu-
sas antes inimagináveis, para regiões deslembradas como a Ama-
ária, subordinada as ações indiscriminadas de seus dirigentes po-
zônia e o interior do nordeste foram feitas. Vargas, por exemplo,
líticos, fortemente inclinados ao plano de modernização, acabou
97
perdendo parte de suas edificações que poderiam estar compondo,
dia em que foi celebrada a última missa. “Não se prestou infor-
atualmente, o acervo patrimonial do município, tão carente desta
mação aos fiéis sobre o paradeiro das imagens e dos belíssimos
caracterização. Quem visita a cidade e conversa com antigos mo-
púlpitos”10. As lousas sepulcrais, bem como os restos mortais
radores, logo ressente a falta que estas construções fazem para
dos clérigos que estavam enterrados ali, sumiram. Inclusive, os
a comunidade, justamente, pelo fato de elas representarem um
do padre que fundou a igreja – Cônego Levínio -, também, impor-
elo com os tempos findos da cidade, porém jubilosos, como o
tante por suas prestezas políticas na cidade, em razão de ter sido
período dos vapores e das festas religiosas em torno dos santu-
ele quem realizou os trâmites do período imperial para o republi-
ários demolidos. A desfiguração do cais da cidade, por exemplo,
cano, na Câmara de Januária. Assim, a população testemunhou
o maior emblema do período portuário, é uma dessas reclama-
inexpressiva a derrubada morosa da igreja, que levou meses para
ções. Perdeu suas colunas, sua principal feição, tendo sido, inclu-
ser concluída. Visto que, naquela época, a demolição era pratica-
sive, registrado no livro do centenário uma apelação que pedia,
mente manual. A igreja iria completar 100 anos na ocasião e, tinha
na época, a volta das pilastras: “assim, vai, aqui, a solicitação que
chegado até a receber reformas nas suas torres, em decorrência
todos os januarenses [...] fazem ao prefeito de Januária: promover
de sua importância, que se esvaiu com a vinda da premissa pelo
a reconstituição imediata das duas artísticas colunas, que tanto em-
novo, que estacionou na mentalidade das pessoas do período. No
9
belezam a cidade” . Além disso, a demolição de outros marcos de
seu lugar foi construída outra, com linhas e traços mais contem-
Januária – edificações religiosas da história da colonização do São
porâneos: geométrica, sem ornamentos, monótona e estéril, que
Francisco - causou um abalo moral nos moradores, que não en-
mais lembra um prédio de repartição pública. Eu mesma não a re-
tendiam a intransigência das medidas, que sempre eram tomadas
conheci enquanto igreja enquanto estive na cidade.
sem consulta prévia à população. Em 1940, a Capela colonial, que
Outra história desta arquitetura de destruição, que afroxou a
ficava de frente para o rio e fazia parte do conjunto urbanístico,
fé dos januarenses, desiludidos com a violação de seus bens de es-
junto ao cais e seus pilares na entrada da cidade, foi derrubada a
timação, foi o aniquilamento da Igreja de Santa Cruz, cuja data de
mando do intendente Roberto Fonseca, que recebeu a incumbência
sua inauguração é imprecisa. Esta capelinha atendia a população
de construir uma praça no lugar. Neste tempo, os prefeitos não
de pescadores que morava na margem do rio São Francisco, e em
eram eleitos democraticamente e, sim, diretamente pelo gover-
torno dela realizavam-se cerimônias católicas e confraternizações
nador do estado. E esta era uma demanda vinda das políticas de
daquela gente humilde e devota. Mas, em 1972, foi desmontada,
renovação de Vargas a todos seus subalternos.
sem nenhum pedido de opinião da comunidade, para dar lugar
Mais tarde, por volta de 1968, foi a vez da Matriz de Nossa
a uma quadra poliesportiva e um grupo escolar. A perda foi tão
Senhora do Amparo ir ao chão. Em 1972, a antiga catedral de
sentida que duas senhoras acabaram por se tornar personagens
Nossa Senhora das Dores, inaugurada em 1833, com dinheiro do
conhecidas do município, por conta de suas investidas contra a
povo, começou a ser demolida em plena semana santa, no mesmo
afronta que marcou a história local. Uma delas é Dona Meiru que
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“Há comunidades onde se formou sólida consciência de preservação, que se transmitiu para o poder público e os empresários locais. Em outras cidades ocorreu o inverso; a população, a iniciativa privada e o poder público parecem irmanados no descaso e mesmo na agressão ao patrimônio cultural, que vai se desfazendo” Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relatório de Participação Técnica. Campanha Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição Engenheiro Halfeld. 2002
depois da demolição passou a pedir, de porta em porta, qualquer
cuspirem nos pedaços do cruzeiro, que a esta altura, eram trata-
tipo de quantia para construção de uma nova igreja, em uma loca-
das como mero entulho. - A cruz é uma madeira santa.
lidade próxima a da antiga – na vila dos pescadores. Tirou, inclusive,
Desolada, então, ao ver, aquela afronta durante o desman-
durante todo o processo de arrecadação, dinheiro da sua própria
telamento da capelinha, disse a um dos homens responsáveis
e mirrada pensão, para o custeio da promessa, que foi uma res-
pela demolição, que se pudesse levaria para casa o que restara da
posta arremetida contra a injúria que sentiu. E conseguiu. Con-
cruz. O funcionário, sem avistar nenhum problema e cujo nome
sumou seu projeto, depois de muita labuta e esmola. A outra figu-
ela ainda recorda – Roca -, pôs, á vista disso, o toco no seu ombro
ra é Dona Maria do Binu, que, apesar da similaridade dos nomes,
para que ela o levasse embora e guardasse do modo que achasse
nada têm em comum; nenhum parentesco ou vínculo com Dona
mais direito e digno. – E este resto de cruz te ajuda, hoje, Dona
Meiru, a não ser o desmonte da igreja. Fato nuclear que afetou
Maria? “Ajuda! A cruz me ajuda pela fé que eu tenho. Sem a fé
a vida de ambas. Dona Maria do Binu, outra brava senhora, fez,
nada vale”. Romeira há 25 anos e devota de Nossa da Aparecida,
também, algo notável no ensejo do desmonte da Igreja de Santa
Dona Maria só parece ter perdido as esperanças na melhora do
Cruz. Arrastou sozinha, até sua casa, um pedaço do corpulento
rio São Francisco. “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima
cruzeiro que havia sido estraçalhado durante a demolição e que
de tudo tenho saudade do meu rio”. Seu marido, Sr. Benedito, o
ia para o desterro.
pescador mais antigo de Januária, também desacreditou do aviva-
A Velha Januária e o rio de São Francisco segundo dona Maria e Senhor Binu
mento do rio que já quase não palpita mais. Aos 99 anos, com uma robustez física e uma memória assombrosa, Sr. Binu lamenta que o São Francisco não seja mais o rião que era.
O pedaço de madeira que dona Maria do Binu, uma senhora
- Esse rio era estreito e fundo, mas com a desmatação foi se-
franzina de 93 anos de idade, guarda até hoje é parte do braço
cando... E tinha muntiu peixe! Todo ano, na época de chuva, tinha
da enorme cruz que vigiava o frontispício da capela. Só este toco
arribação de peixe neste rio. Primeiro vinha as ribadas de piaba,
deve pesar prováveis 35 quilos, e, atualmente, fica escorada na
vocês conhecem piaba? Depois vinham as de piau e surubim. Dava
parede do quarto de Dona Maria, que, também, tem Madalena
para ver as levas de surubim subindo o rio com os bigodes para
no nome. Na ocasião em que o trouxe para sua diminuta casa de
fora d’água. Esta ribada que Sr. Binu se referiu durante a conversa
pau a pique, já tinha 56 anos de idade, o que deve ter sido uma ta-
que tivemos com o casal, na pequena sala do gracioso casebre, é
refa custosa. Quando a questionamos sobre o motivo praticar tal
o período em que os peixes migram pelo rio em busca de lugares
sacrilégio, Dona Maria respondeu com lisura que fora o estado na
favoráveis para habitar. Neste ciclo, que perdura de abril a julho –
qual a cruz se encontrava, no meio daquela ‘pauzada’, das ruínas
época chuvosa – os peixes se movimentam em bando, na casa dos
daquilo que tinha sido a casa de reza que freqüentara, o que havia
milhares, e cardumes de cinco, seis mil animais são vistos. Sendo
a comovido. Segundo ela, dava pena ver as pessoas sentarem,
que, de dezembro a março, os peixes se reproduzem, e não há
100
(Acima) Senhor Binu (um dos mais antigos pescadores de Januária) e Dona Maria: “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima de tudo tenho saudade do meu rio”. O rio de São Francisco. (À direita) Dona Maria do Binu e o pedaço do cruzeiro da Igreja de Santa Cruz, demolida em 1972. A capela atendia a população de pescadores que morava na margem do rio São Francisco.
pesca. Somente de agosto a outubro, quando a água está límpida e
que pescavam e plantavam às margens do rio de São Francisco.
os peixes parados no nicho encontrado, é que está no momento de
Tinham canteiros de cebola, alho, feijão, milho e tudo era roçado
os pescadores garantirem sua safra. Mas tudo isso, acabou, segun-
nas terras à margem do rio, altamente férteis, em função do pe-
do Sr. Binu, que só largou as redes e varas aos 80 anos de idade.
ríodo de cheias que adubava os terrenos para o posterior cultivo.
O casal que pescou durante 10 anos ininterruptos no rio
Ciclo totalmente regrado pela natureza, cabendo somente aos
Pandeiros – um dos 36 afluentes do São Francisco, considerado
camponeses semear. Mas como disse Dona Maria “tudo que é bo-
um berçário de peixes, por suas águas abrigarem a reprodução e
nito só passa uma vez”. E é com razão sua nostalgia. O rio de que
11
o desenvolvimento de 70% da ictiofauna do médio São Francisco -,
tem saudade trazia freqüentemente muitas alegrias. Vivia movi-
não comem surubim há uma década, apesar de morarem na riba
mentado de vapores, barcas, lanchas. As vazantes12 eram certas.
do São Francisco, ao lado do antigo cais de Januária. A fartura de
Sua cidade tinha grandes folguedos e o peixe tinha em abundân-
outrora, que dava ao pescador alimento fácil para o seu prato,
cia. Muita fartura – barracas vendendo cana e peixe frito -, e ‘sua’
perdeu-se com a míngua do rio, e os petrechos de pesca que Sr.
igrejinha estava no lugar onde devia estar até hoje. Na vila dos
Binu ainda guarda em um latão de óleo antigo, porém, bem con-
pescadores, onde reside. Nela ia constantemente agradecer os
servado, tornaram-se objetos de memória, de um tempo em que
proventos que o rio e a terra davam. Agradecer pela vida. No pre-
o São Francisco, ainda era o Novo Chico. De dentro deste recipiente
sente momento, imagino que Dona Maria deva rezar por outras
Sr. Binu tirou, entre outras coisas, uma manjubeira, rede usada
causas. Pela melhora do assoreamento do rio – que chora de tanta
para capturar peixes de pequeno porte que servem como isca
saudade. Pela volta dos peixes, pela tranqüilidade perdida...
para os maiores. Mostrou-nos a variedade de anzóis, que eram usados em cada tipo de pesca. O surubim, por exemplo, espécie grande e sagaz, requer um gancho mais reforçado. Para pegar
Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso
peixes de hábitos noturnos, o surubim é um deles, os anzóis is-
É indispensável dizer o quanto a demolição de edificações
cados eram lançados à noite, na água, e retirados somente no dia
exemplares do patrimônio de Januária, na década de 70, trouxe
seguinte, pela manhã, quando se conferia as surpresas ou a falta
prejuízos a história local. Embora essas ausências não sejam a única
delas. Mostrou-nos seu candeeiro, “que iluminava meio mundo”
razão que explica a falta de interesse da comunidade pelos seus
durante as pescarias, na beira do rio. Fico imaginando a falta que
bens históricos. A pesquisadora e historiadora Ana Alaíde Amaral,
isso não devia fazer sob o céu estrelado do sertão, refletido na
que há algum tempo desenvolve trabalhos na área de educação
água, à luz do luar. O próprio latão era do tempo da pesca, onde
patrimonial, nos explicou durante uma entrevista a beira rio, que
armazenava a comida que levava para a jornada.
a falta de preservação e de acervo histórico que ressentimos na ci-
Foi arrebatador ver a alegria do casal de velhos quase cente-
dade é um problema mais complexo, que atinge toda a região do
nários desterrar da memória suas histórias de pastores guerreiros,
Norte de Minas, para não falarmos do assunto em nível nacional.
102
Alaíde lembrou que a raiz desta deficiência está na própria
permita as pessoas criar relações simbólicas”. Ou seja, o norte de
história de colonização do estado. Enquanto a elite culta, de ori-
Minas precisa contar suas histórias para seu povo, que não a co-
gem européia, colonizou a região das Minas, que tinha intrínseca
nhece e que por isso não a aprecia.
à sua cultura e a seus costumes o apreço pelo registro documen-
Recuperar o tempo perdido e preservar o pouco que sobra é
tal, a parte Gerais do estado foi colonizada pela elite financeira do
uma demanda urgente. E, de fato, o que restou é ínfimo e está em
país. Por fazendeiros e sertanistas da época colonial que tinham
um ritmo de degradação assustador. Além disso, são escassos os
outras premissas e valores, que passavam ao largo das questões
registros e estudos dos patrimônios locais. A catedral de Nossa
culturais. Suas preocupações se circunscreviam, sobretudo, a seus
Senhora das Dores, por exemplo, aquela que começou a ser de-
latifúndios e as contendas econômicas. Portanto, a organização
molida em plena semana santa, não tem nenhuma descrição ofi-
social em torno da cultura sertaneja praticamente inexistiu. Não
cial sobre suas características arquitetônicas e históricas. O único
se preocupavam com a preservação de referências simbólicas do
relato que se tem do seu interior foi feito por um viajante, Paulo
ponto de vista histórico. Com a coletividade em prol de identidade.
Japyassen, em 1956. Mesmo a Igreja de Nossa senhora do Rosário,
Era cada um por si, e essa mentalidade de desapego ao patrimô-
um marco fundante do povoamento na região, tem raríssimas in-
nio se estendeu ao longo dos séculos. Prova disso é a diferença
formações historiográficas sobre sua existência.
entre o nível de preservação das cidades mineradoras, como Ouro Preto, e a de uma cidade do norte do estado. Quando relatamos a pesquisadora, o quanto estávamos atônitos com o abandono
A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono
da igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Brejo do Amparo, pro-
A igreja de Nossa Senhora do Rosário, é um casario colonial
vavelmente uma das construções mais antigas de Minas Gerais,
da época dos bandeirantes e foi erguida no meio da mata do Brejo
Alaíde consentiu dizendo que isto é um reflexo desta herança cul-
do Amparo. Na sua fachada está estampada uma pintura com a
tural errônea, que menosprezou a importância da história na vida
data de 1688, ainda que historiadores aleguem que seja muito
social. “As pessoas só valorizam aquilo que conhecem. Se não
pouco provável que esta datação esteja correta. Dois registros
existem políticas públicas que auxiliem no reavivamento destas
falam de sua inauguração em 1744, e esta diferença de mais de
memórias que estão impregnadas nas antigas construções, que
50 anos entre a primeira e a segunda data teria sido uma trapaça
auxilie a sociedade a se identificar com esta história, não existe
de época. Questões políticas e religiosas que aqui não cabe aden-
ressonância. E o indivíduo não consegue olhar para aquele bem
trar. Quando lá chegamos, dia 24 de julho, o sol estava a pino, e o
público como uma coisa que lhe pertence. Por isso não há esti-
silêncio era ensurdecedor. Barulho mesmo só da vegetação que
ma e apreço. O patrimônio histórico só é interessante quando a
mexia com o vento e da meia dúzia de bois que pastavam enfas-
comunidade consegue usufruir dele. E para que isso aconteça é
tiados próximo ao cemitério da igreja, soltando mugidos de vez
preciso que haja uma linguagem que faça esta intermediação, que
em quando, quebrando a monotonia circunscrita.
103
“Sua conservação até os nossos dias se deve mais a uma feliz casualidade do que qualquer esforço oficial nesse sentido”. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG
A construção está visivelmente arruinada, e o bucolismo do
nais na tarefa de resguardar o templo de Nossa Senhora do
lugar só nos faz ter mais compaixão da igreja, que fica fechada,
Rosário. Visto que, o avançado estágio de deterioração das portas
com resignação, em conseqüência do seu estado precário. Os fes-
invalidou a utilidade das fechaduras, por isso, as portas laterais só
tejos de época, que aconteciam no seu interior, como as missas
ficam semifechadas. Quando perguntamos o por quê de ela ter
em comemoração ao dia da padroeira da cidade – Nossa Senhora
as ‘chaves’, e não algum órgão de política pública cultural, Dona
das Dores -, e que coincide com o aniversário de Januária, - no
Conceição disse com uma voz sóbria, em tom de conformação,
dia 7 de outubro -, atualmente, são realizadas do lado de fora, no
que a igreja há décadas é mantida somente pela população. Por
adro da igreja, por falta de segurança de suas estruturas. Mas,
sua família, mais exatamente, que tinha vínculo com os párocos
fora estas ocasiões, a paróquia tricentenária que só foi tombada,
locais. À prefeitura de Januária, já tinha encaminhado quatro pe-
em 1989, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artís-
didos formais, para que a executiva assumisse a proteção da igre-
tico de Minas Gerais (Iepha/MG), fica sozinha, entregue a própria
ja que, freqüentemente, sofre com a ação de vândalos. Inclusive,
sorte e à divina providência. Embora haja uma guardiã local que
na própria conservação da igreja que está esmaecendo. Mas, até
tenta com todas as suas limitações cuidar do que resta. Até o
hoje, não obteve retorno.
sino da igreja, que pesava 300 quilos, foi roubado com destreza
Atualmente, Dona Conceição vive só, numa casa cercada de
por saqueadores de peças sacras e históricas. O nome desta in-
pomar e não tem condição de fazer nada pela igreja. Nem a capina,
formal tutora é Maria Conceição. Dona Maria Conceição. Era ela,
nem a limpeza artificial da construção que está tomada de sujeira.
conforme nos disseram alguns moradores locais, quem guardava
Quando lá voltamos para fotografar o feitio interno da igreja, se-
as chaves do patrimônio. Quem deveríamos procurar se quisés-
guindo as orientações de dona Maria que pediu que, depois que
semos conhecer o interior da igreja do Rosário. Todavia, nós que
terminássemos o trabalho, a fechássemos novamente com o de-
não tínhamos qualquer informação sobre o paradeiro da senhora,
vido cuidado, ficamos embasbacados com a decadência. Quando
decidimos ir até o local e fazer os registros somente do lado de
empurramos a porta e vi, ao som do primeiro ranger, o feixe de
fora, e mais tarde, se houvesse tempo, tentaríamos localizá-la
luz invadir a igreja, desnuda, senti uma consternação enorme.
para terminarmos de vasculhar a avelhantada, porém, notória
Lá dentro não há mais bancos, nem imagens sagradas. Somente
igreja por dentro. E, assim foi feito. Ficamos circundando a igreja
campas e ripas carcomidas e despregadas. Rachaduras. Falta de
do lado de fora procurando bons ângulos, pistas escondidas, sem
reboco. E um aviso pregado na porta frontal, com os seguintes
sabermos que a igreja, na realidade, estava aberta como viemos
dizeres: “Não rabisque as paredes. Não acenda velas próximo às
saber em seguida, quando finalmente encontramos Dona Maria,
portas da igreja. Não a destrua. Este patrimônio é seu. Preserve-o.
em um sítio próximo dali.
Grato.” Quando finalmente terminamos de fotografá-la, todos em
A senhora que apesar dos reumatismos, tem uma aparência
silêncio, foi entristecedor cerrar suas portas. Submetê-la a escuridão
saudável e serena, nos disse que as chaves não são mais funcio-
novamente. Era como se estivéssemos largando um enfermo ao
105
desamparo e à solidão. Usurpando de uma débil construção re-
6
ligiosa que pedia misericórdia. A última memória que guardo do
Nova Aguilar, 1994, vol. II, p. 478
seu interior, antes de fechar a última porta, são algumas flores
7
Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.61
8
Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.59
nhei. Uma é de Paulo Barreto e diz o seguinte: “cada povo que
9
Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.109
pretenda ser mais do que uma aglomeração humana, deve ter
10
ressequidas dentro de um vaso, que me fez lembrar – murcha de comiseração - duas filosofias que resumem aquilo que testemu-
seu patrimônio histórico”. Arthur Schopenhauer, por sua vez, completa o raciocínio com a assertiva: “se [...] um povo não conhece a sua história está limitado ao presente da atual geração. Esse povo
Grande Sertão: Veredas. In: Guimarães Rosa: Ficção Completa.
PEREIRA, Antônio Emílio. Memorial Januária: terra, rios e
gente, p. 413 11
Em ecologia e ciência pesqueira, chama-se ictiofauna o con-
não compreende nem sua própria existência [...] muito menos pode
junto das espécies de peixes que existem numa determinada
antecipar coisa alguma sobre o futuro”. É aí, que reside o aflitivo
região biogeográfica.
atraso do Norte de Minas, pensei comigo. A razão para aquela de-
12
cadência. Saímos então em direção ao carro, sem olhar para trás. E,
des, à medida que o nível das águas vai baixando. Terreno
fomos embora, pensando taciturnos nos erros passados, na inglória
baixo e úmido; largos vales ao longo dos rios do interior; baixa
do presente, por estas cercanias, que já atestou tão importantes
próxima às aguadas e lagoas em geral; todas as terras baixas e
acontecimentos, hoje, arruinados.
planas, alagadas temporariamente, quando recebem as águas
Cultura que se faz no leito dos rios e nas margens dos açu-
das enchentes dos rios. (Dicionário Michaelis, 1998-2009) 1
Ribeiro, Ricardo Ferreira. O Rio Santo Verde, artigo do estado
de Minas de 01-12-2001 2
Por volta de 1690 a 1705, fundaram-se os povoados sob o poder
dos Cardosos e experimentaram rápido desenvolvimento 3
ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes, p.67
4
Memorial Januária: terra, rios e gente, 2004.
5
Riobaldo é o narrador da obra Grande Sertão: Veredas, de
João Guimarães Rosa, quem ausculta as particularidades e características do sertão brasileiro, onde vive e morre.
106
São João das Missões: resistência e luta Xacriabá
Tarsila Costa
“ (...)o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios.Depois,queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” Darcy Ribeiro
O pó da terra vermelha são eles: Os Xacriabá
gura guaranesca do índio. O índio sertanejo obviamente é diferente
Data da chegada: 28/07/2009
do índio litorâneo. Contudo, há um povo que coexiste nesta terra há muito tempo. Registros confirmam que por volta do ano 1531 que
Chegamos meio-dia a São João das Missões. Antes de chegar
os Xacriabá já estavam aqui. E mesmo hoje, no ano 2009, eles ainda
ao município, já havia algumas anotações em meu diário sobre os
lutam para se manterem em sua própria terra. Durante a estada dos
Xacriabá, mas de maneira muito catequizada, sempre enfatizando o
Xacriabá nesta região do noroeste mineiro, inúmeras vezes eles ti-
papel dos jesuítas, principalmente com a imposição cultural que este
veram conflitos contra bandeirantes, índios ou fazendeiros.
povo foi submetido há tempos. O nome do município já nos con-
Apesar de não estarem na beira do rio São Francisco, eles
cede algumas pistas do que houve por aqui, ao saber da existêcia
têm a ciência de saber que seus antepassados estiveram ali. Os
forte da presença dos jesuítas e de suas diretrizes religiosas na vida
Xacriabá tentam resgatar algumas perdas que tiveram de seu
indígena nesta região no século XVIII: este traço perdura e mistura
universo cultural na conflituosa trajetória de lutas que remonta a
as crenças índigenas com o catolicismo pregado pelos missionários
história desses índios sertanejos.
de outrora.
Segundo a obra Documentar para Preservar 1, o território dos
À imagem de um santo achada por um índio durante este pe-
Xacriabá atualmente é concentrado no norte de Minas. Possui
ríodo foi dado o nome de São João dos Índios. Em seguida, mis-
uma extensão de 52.660 hectares e se localiza as margens do rio
sionários jesuítas receberam a notícia da tal imagem achada, e a
Itacarambizinho, embora os Xacriabá antes de virem para essa re-
colocaram na igreja de Matias Cardoso – construída pelo trabalho
gião estivessem localizados em várias áreas do vale do Tocantins,
forçado dos índios. Mas, segundo reza a lenda por aqui, a imagem
Goiás e às margens do São Francisco. Na época do contato com os
voltava sempre para o mesmo local que havia sido encontrada.
portugueses, de acordo com a obra Documentar para Preservar,
Desta maneira, os jesuítas pensaram que ali havia ocorrido um mi-
“os indígenas existentes na região dos rios Carinhanha e São Fran-
lagre e ordenaram a feitura de outra capela para o santo denomi-
cisco se dispersaram por várias regiões”. 2
nado São João. Hoje é possível vê-la na igreja de São João Batista, no centro do município de São João das Missões. Neste mesmo
O índio do sertão
lugar, há a biblioteca municipal, farmácia, e algumas poucas lojas;
No século XVI, quando portugueses adentraram o vale em
acontecia também uma feira no dia que chegamos, mas era algo
busca de pedras preciosas e de mão de obra escrava, foi deixado
bem reduzida, embora houvesse de verduras até cds pirateados
um antigo registro datado entre os anos de 1553 e 1555 de índios
sendo comercializado naquele espaço.
que já habitavam a região do norte de Minas, como citado no re-
Diferentemente do que se pensa, quando se chega aqui nos
latório da pesquisadora Ana Flávia Santos. 3 Segundo trechos do
dias de hoje, a vida indígena edênica, que povoa o imaginário bra-
relatório, os escritos do padre jesuíta João Aspicuelta Navarro,
sileiro de índios nús, é uma simples alegoria. Tampouco, existe a fi-
Capitão da entrada de Francisco Bruzza de Espinoza, desbravador
109
(Pagina anterior à esquerda) Rosalvo - Cacique da aldeia Itapicuru. Além de amistoso, foi ele quem cedeu os depoimentos mais passionais ligados à condição indígena. Seu orgulho e sinceridade são traços fortes de sua personalidade. (Pagina anterior à direita) Josué de Carvalho, zelador da igreja matriz de São João Batista, no município de São João das Missões. Ele segura a histórica estatua de São João dos Índios. A imagem faz parte do acervo da Igreja que, de maneira geral, tem escassos padrões de conservação. Algumas centenas de anos adormecem nesta estatua e, mesmo assim, qualquer um pode tocá-la e levantá-la do chão, basta pedir. (À direita) Ipê amarelo: parte do patrimônio natural dos Xacriabá; indubtavelmente a maior riqueza desse povo é a natureza.
das regiões do interior da Bahia e do norte de Minas: (...) no outro dia fomos e passamos muitos despovoados especialmente um de vinte e três jornadas por entre uns índios que chamam Tapuyas, que é uma geração de índios bestiaes e feros, porque andam pelo bosque, como manadas de veados (...).4
de São Caetano e xixá são essencialmente desse bioma, embora a ação do homem na natureza, nesse caso, venha aumentando progressivamente a extinção de várias espécies. Falando da fauna do cerradinho, os animais que compõem este cenário são: veado, cutia, tatu, onça, coelho, raposa, tamanduá, gambá, seriema, entre outros bichos. Para os povos indígenas, todas essas árvores, frutas
Esses adjetivos eram calcados na moral essencialista cristã
e bichos são importante patrimônio natural que deve ser preservado,
que pautava a vida do império português na época. Mas, tratando
em razão de ser da natureza que se extrai o alimento, matérias
da maneira como os índios sertanejos se relacionavam com a terra,
para confeccionarem seus artesanatos, água limpa dos rios e la-
há de entender que não havia uma definição de demarcação terri-
goas. É como colocou o cacique da Aldeia Itapicuru, Rosaldo Fiúza
torial para esses povos baseada na propriedade privada, situação
da Silva: “acabou até a alegria da gente, porque a alegria nossa é
que foi mudando devido aos intensos conflitos em razão da terra.
entrar dentro da mata. Somos pó da terra”.
Segundo o supervisor do meio-ambiente do município, Adailton José de Santana, essa é uma das características do povo Xacriabá;
Disse esta frase de uma maneira extremamente consciente; tinha um brilho nos olhos, de quem sente cada palavra que fala.
ainda falou de alguns problemas referentes à terra, recorrentes
A reserva Xacriabá está no município de São João das Missões
na região. Contudo, tratarei desta questão mais a frente. Antes,
e confesso que é um pouco difícil seccionar a cidade da reserva.
gostaria de apresentar o cerrado e sua atual condição. Penso que
O território é dividido em 32 aldeias. São elas: Brejo Mata Fome,
é um bom ponto de partida para entendermos um pouco sobre
Barreiro Preto, Sumaré I, Sumaré II, Sumaré III, Forges, Sapé, Itapi-
a história Xacriabá, entendendo que a natureza é um patrimônio
curu, Caatinguinha, Barra do Sumaré, Itacarambizinho, Imbaúba,
supremo para os povos indígenas.
Morro Fachado, Vargens, Riacho dos Buritis (antigo defuntos), Pindaíba, Riachinho, Prata, Peruaçu, Santa Cruz, São Domingos,
Apresentação do cerrado e os Xacriabá A variedade da fauna e flora do cerrado engana os olhos de quem pensa que nessa terra não há diversidade natural. São pés de pequi, aroeira, juá, jurema, braúna, pau-d`arque numa vegetação nativa que infelizmente se encontra bem desmatada, muito em razão da criação de gado e da agricultura, apesar do esforço da população local e das lideranças em revitalizar o espaço e o território Xacriabá. A mata seca e a vereda são partes da vegetação nativa. As frutas cagaita, cabeça de negro, jabuticaba, maracujá, melão
112
Rancharia, Custódia, Pedrinha, Riachão, Possões, Olhos d´água, Riacho do Brejo, Boqueirão, Furado dos Patos, Furado do Meio e Caatinguinha de Rancharia. Ainda, existem aldeias limítrofes com os seguintes municípios: Manga, Miravânia, Montalvânia, Januária e Itacarambi. Há aldeias que se localizam nas proximidades do município de São João das Missões e outras ficam mais distantes. O povo Xacriabá tenta atualmente resgatar sua cultura. Construir um espaço onde as relações sociais possam criar seus modos de expressão, e, modos de pensar: trata-se de algo essen-
Os Xacriabá hoje se encontram bastante descaracterizados, embora haja uma forte resistência contra esse processo – resistência essa que tenta resgatar inclusive o dialeto indígena. Em maior parte são católicos, encontram dificuldades em perpetrarem seus aspectos culturais e, ao que parece, estão em constante luta em direção aos seus direitos. A miscigenação desse povo é traço elementar: em seus traços estão índios, brancos e negros de forma bastante perceptível.
cial à formação cultural de um povo. Os povos indígenas brasileiros,
com a jurema para iniciar a apresentação do Toré. Há ainda a crença
muito além de questões sobre sua língua, danças e crenças, dife-
na onça cabocla, a Iaiá. Os Xacriabá acreditam que além de Iaiá pro-
renciavam-se: sinal manifesto mostrando que mais do que haver
teger o seu território de invasores, ela também cuida da natureza e
uma diversidade entre esses povos havia uma comparação entre
do povo Xacriabá. Segundo a obra Xacriabá, documentar para pre-
os mesmos. A declaração de Carlos Fausto em sua obra Os índios
servar, a Iaiá Cabocla é uma das guardiãs do território deles.
Antes do Brasil, descreve que: Os Tupi-Guarani do litoral chamavam os povos do sertão de Tapuia e os descreviam como gente bárbara, desprovida de aldeia, agricultura, canoa, rede e cerâmica5.
Patrimônio Xacriabá Deixando de lado um pouco da racionalidade que calca a sociedade ocidental, é muito difícil não considerar que essas lendas
Essa observação não levava em consideração que o povo Xa-
representam uma trajetória histórica de um povo que luta pela sua
criabá - o qual constitui a família lingüística Gê 6, subdivisão akwê
terra e pela sua cultura, desde o século XVI, quando os portugueses
- tinha uma organização social bem distinta dos índios do litoral.
chegaram ao Vale do São Francisco. A luta desse povo se encontra
De acordo com a associação Carlos Ubialli e o Instituto Ekos:
muito na figura de lendas como Iaiá, ou em acessórios como fuso8
Os povos de língua e cultura Jê, diferentemente dos Tupi, vivem, em geral, na região dos cerrados. Possuem não somente uma língua totalmente diferente da dos Tupi como, também, mitos, crenças e organização social próprias. Os povos Jê manifestam sua cultura de forma mais explícita e visível. Os numerosos ritos a serem realizados e respeitados, aparecem com mais clareza que nos povos Tupi7
e a roda de fiar linha. Alves de Barros explica na obra Xacriabá (Documentar para Preservar) que o fuso era muito importante, embora na atualidade, não se use mais tal técnica. Ela coloca que há pouco tempo atrás se usavam roupas feitas no fuso e na roda. Outros bens materiais também compõem a cultura deste povo: a tapera (casa indígena), a olaria, o forno de queimar telha, o engenho com suas engrenagens puxadas pelos bois que produziam
Boa parte dessas manifestações se perdeu em sua plenitude,
garapa para fazer rapadura e a oficina de fazer farinha. Alimento
ou seja, os índios foram bastante descaracterizados, mas, há ainda
este, que não somente está diariamente presente no prato dos ín-
a preservação de certos rituais religiosos, como o Toré - dança con-
dios, mas também na culinária das famílias brasileiras. Todos esses
siderada sagrada pelos Xacriabá. Segundo o índio Xacriabá João
artefatos são patrimônios que constituem a cultura Xacriabá.
Gomes de Oliveira (intimamente conhecido como João Zoropa),
Os patrimônios naturais também são tão importantes quanto os
quando a comunidade indígena quer apresentar o Toré, precisam
bens culturais, móveis ou imóveis, bens emocionais ou bens intelec-
pedir autorização para os pajés. João disse ainda que quando rea-
tuais. Tudo o que é produzido por eles tem a natureza como matéria-
lizam determinados rituais, os não-índios não podem participar. O
prima, e, mais do que isso, é na natureza que este povo guarda muita
Toré tem música, reza e alguns objetos como o cachimbo, maracá,
de suas lendas e histórias. Inclusive, havia índios que dormiam nas
fumo e borduna. Além desses artefatos, há uma bebida preparada
cavernas do território Xacriabá. Por exemplo, na aldeia Imbaúba, há
114
A família de Hilário junto a João Zoropa demonstrando um dos rituais sagrados Xacriabá: o Toré. Eles possuem uma variedade de rituais, embora nem todos possam ser contemplados pelos não-indígenas. Há uma preservação dos cultos, como nos foi dito.
uma gruta que um senhor com o nome de Roberto adorava repousar
Os brasis que não vemos, e o sertão que temos
tranquilamente. Dizia que o clima era mais fresco do que em sua própria casa: a gruta possui 1,5 metros de altura e 1 metro de largura e há
A prefeitura do município de São João das Missões tem como
um pé de gameleira bem perto da entrada. Um problema manifesto
prefeito, hoje, um índio Xacriabá. Seu nome é José Nunes de Olivei-
que percebi por meio da entrevista com o Cacique Domingos, e com
ra e o vice-prefeito é João Pereira da Silva, eleito no ano de 2004.
outros índios, é que na maioria das vezes que se referiam aos bens
José Nunes alcançou 2.736 eleitores, algo equivalente a 45,3% de
naturais, sempre falavam de seu péssimo estado de conservação, do
um contingente eleitoral que é composto de 6.039 eleitores, em-
desmatamento e de lagoas que simplesmente secaram.
bora a população do município seja de 10.769 habitantes 9.
Um bom exemplo para ilustrar essa situação pode ser visto
Aqui em São João das Missões o sistema político mostra uma
na Aldeia dos Pindaíbas. Diz-se que a lagoa que havia lá era usada
faceta interessante: as chamadas minorias étnicas, quando bem
tanto pelos animais quanto pela população para finalidades diver-
organizadas e informadas sobre seus direitos, conseguem usu-
sas: banho, lavar roupas e louças. Conta-se que até cinco anos atrás
fruir e utilizar de uma parcela desse sistema de representação po-
não havia nem uma gota de água nesta lagoa, Adailton José Santa-
lítica. E mais do que isso, conseguem trazer parceiros tantos para
na, supervisor de meio-ambiente do munícipio, disse que depois do
pesquisas, quanto parceiros para programas assistenciais básicos.
cercamento a lagoa voltou a ter água, apesar de deixar bem claro
Bom exemplo é o papel exercido pela Funasa (Fundação Nacio-
que é pouca água. Já a lagoa da aldeia Rancharia também, segundo
nal do Índio) - instituição que é responsável por ações ligadas ao
Adailton, está em péssimas condições, bem assoreada. O supervisor
saneamento ambiental em todos os municípios brasileiros e tam-
ainda coloca que a atual situação da lagoa afeta a fauna que antes
bém atende a população indígena, oferecendo atenção integral à
coabitava naquele local: a lagoa está poluída e há muito lixo ao seu
saúde: é um subgrupo do SUS (Sistema Único de Saúde), mas foi
redor. Há uma curiosa história sobre essa lagoa que, de acordo com
criado para atender minorias.
relato de um morador da reserva, em determinada época, quando
Em entrevista com Marcos Aurélio Fulgêncio Malacco, médi-
ocorriam obras para fazer o asfalto, o prefeito que estava em exercí-
co epidemologista - responsável pelo SIASI (Sistema de Informa-
cio permitiu que a firma responsável por fazer as vias pavimentadas
ção da Atenção a Saúde Indígena) Distrital - ele atribuiu os bons
pudessem secar a lagoa, chegando a gerar energia elétrica para tra-
resultados do trabalho desenvolvido pela Funasa na reserva à boa
balhar período diurno e noturno. A água da lagoa foi usada para a
organização dos Xacriabá: “Os Xacriabá é o povo indígena mais
geração de energia da respectiva empresa. Foi feito ainda um aterro
bem organizado do estado de Minas Gerais”, reitera. Para exem-
ao redor dela que, desta maneira, aumentava cada vez mais. Antô-
plificar um pouco desta organização interna, ele afirmou que na
nio - o cacique da aldeia Rancharia – chegou a ir à Brasília denunciar
reserva Xacriabá há três reuniões antes dos assuntos serem leva-
tal ação de degradação que na época tinha o aval da admnistração
dos às representações políticas: uma ocorre entre as lideranças
pública local.
(os caciques de cada aldeia), a segunda com os subsecretários das
116
Fotomontagem de Domingos Nunes de Oliveira: Cacique Geral Xacriabá. Seu pai - Rosalino Gomes de Oliveira – foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987 em razão de um embate por terra. Jagunços eram enviados a mando de fazendeiros da região para fazerem acerto de contas; uma prática que, sem sombra de dúvida, atacou o orgulho indígena sobremaneira. “O acerto de contas hoje diminuiu bastante, mas o preconceito contra os indígenas ainda existe”, protesta.
lideranças que escutam a população que vive em cada aldeia, e, a última, é organizada uma assembléia geral, onde eles conseguem finalmente colocar em votação suas demandas. Malacco comemora mostrando dados que apontam para uma situação interessante. No ano de 2008, os Xacriabá tiveram apenas uma morte infantil, enquanto na tribo indígena dos Maxakali, também no estado de Minas Gerais - no mesmo ano - foram registradas a morte de 30 crianças, com o agravante de que a população dos Maxakali correspondem a mais ou menos 1000 habitantes. O médico ainda afirma que depois do decreto feito em 1999 pela
As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito Domingos Nunes de Oliveira é o cacique geral das 32 aldeias que compõem a reserva Xacriabá. Ele conta um passado sombrio que povoou essas terras: O ex-cacique geral, Rosalino Gomes de Oliveira, pai de Domingos, foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987. De acordo com Domingos, a homologação das terras indígenas naquelas bandas foi à razão da morte de Rosalino e de mais dois índios.
Presidência da República, onde houve a transferência da respon-
Seu Rosaldo Fiúza da Silva - cacique da aldeia de Itapicuru - diz
sabilidade da saúde indígena para a Funasa - o que antes era feito
que as duas outras vítimas eram seu irmão e cunhado. Ele ainda
pela Funai (Fundação Nacional do Índio) de maneira bem desorga-
conta que sua irmã no momento do ataque fora baleada, e, ela
nizada - aconteceram melhoras no atendimento à população Xa-
estava na ocasião com sua criança no colo. O irmão que já havia
criabá. Muito em razão de a Funasa conseguir digitalizar os dados
sido baleado e esfaqueado; antes de morrer disse-lhe para ir em-
e, assim, passar a conhecer os problemas respectivos de cada po-
bora senão os pistoleiros o matariam também. Rosalvo conta que
voação indígena. Ele lembra que, antigamente, havia apenas um
na época dos conflitos, especificamente na década de 80, os ja-
posto de saúde na Aldeia Brejo Mata fome; hoje existem postos na
gunços vinham a mando dos fazendeiros da região. Eles chega-
aldeia de Itapicuru, Sumaré, Sumaré 3, Rancharia e Pindaíba.
vam às terras indígenas, montados em caminhões com armas e
Mallaco ainda disse que as mortes na reserva Xacriabá geralmen-
foguetes, dando tiros para o alto para assustar os índios. Muitos
te ocorrem em razão de doenças infecciosas e parasitárias. Ele reitera
índios com medo abandonavam a região, largavam sua terra. Ro-
que as enfermidades respiratórias e circulatórias também necessitam
salvo ainda colocou que nessa época os conflitos foram intensos:
de atenção especial, pois um número considerável de indígenas já
“tivemos uma batalha muito dura, mas se não a fizéssemos, as
morreu em razão delas. Malacco durante a conversa falou sobre uma
coisas estariam iguais”, relembra. Ele nos contou que, neste perí-
situação que merece atenção especial: há um número apreciável de
odo, passavam pessoas a mando dos fazendeiros com fichas para
suicídio entre os Xacriabá. As causas ainda não são sabidas. Mas, senti
denominarem o povo indígena que habitava a região enquanto
um incomodo perturbador neste médico que desde 1983 trabalha para
posseiros. Seu Rosalvo diz que não preencheu a ficha em razão de
a melhora da saúde indígena. Infelizmente não entrarei mais profun-
não se considerar posseiro. Muito antes seus antepassados já es-
damente neste assunto por ser uma situação pouco explorada ainda,
tavam nessas terras. Ele disse que muitos índios assinaram a ficha
mas, confesso-lhes que este fato também me intrigou bastante.
enquanto posseiros por pura falta de informação.
118
Já no relatório sobre identidade e pesquisa da antropóloga Ana Flávia Moreira Santos, a situação do preenchimento das tais fichas é tratada de outra maneira.
branco” trouxe a perdura de impressões alegóricas sobre este povo que se estendeu até os dias de hoje. Para se entender o ponto de partida dessa identidade pejora-
A partir da década de 70 é possível observar que grupos de posseiros, dentro da área, se posicionavam contra a intervenção da Funai (Fundação Nacional do Índio), interessados em obter a regularização fundiária de suas posses. A tensão que se instala entre uns (posseiros) e outros (índios) torna-se insuportável, na medida em que os primeiros são identificados como aliados dos fazendeiros (...) Na década de 80, os enfrentamentos diretos, envolvendo Xacriabá e 10
posseiros, passam a ser constantes”.
Em seguida, a pesquisadora faz uma interessante reflexão acerca de um depoimentos de um indígena:
tiva sobre os povos indígenas é fundamental contar o início dos problemas relativos a terra. O bandeirante Mathias Cardoso foi bem conhecido pela maneira austera e sanguínária com que dominou aos povos indígenas que encontrou pela frente em sua missão de dominação do alto-médio vale do São Francisco no fim do século XVII. Daquelas terras sertanejas que já eram muito importantes em razão das criações de gado - a pedido do Governador da Província - Mathias Cardoso seguiu a caçar índios. Observe a colocação extraída do Laudo Antropológico de Maria Hilda Paraíso presente no relatório da pesquisadora Ana Flávia: Seguindo seu caminho de destruição, Matias Cardoso, após atacar e
(...) mais eu estive pençano sobre isto que muito deles sendos pos-
escravizar os Arayo, Kiriri, Pimenteira, Piacú, Janduí e Icó, voltou-se
seiros pobres mais tenho muitos nos matratado torcendo pelos gri-
para atacar a aldeia de Tapiraçaba, onde construiu com concurso do
leiros. Outros não queres ser índios por cer uma classe baixa e pobre
trabalho escravo dos índios, sua fazenda, com a capela localizada
e outros só quere o Estado para dividir as terras para vender para
sobre a área antiga da aldeia.(...) Os Xacriabá se organizam e quei-
eles e por isto eu não poço se defender eles e mesmo os outros não
mam a sede da fazenda, que é reconstruída pelo filho de Matias
são de acordo (...).
11
Na análise dela, a situação de os índios assinarem enquanto
Cardoso, Januario Cardoso de Almeida, sob nome de Nossa Senhora do Amparo do Brejo Salgado. 12
tais correspondia um certo retorno, um espécie de atraso. Segundo
Os conflitos entre bandeirantes e índios continuaram levando
ela, é como se fosse “retornar a um estágio primitivo”. Entenden-
os Xacriabá a se deslocarem para o rio Urucuia. Contudo, por volta
do-se que eles se viam desta maneira pejorativa pelo fato de, his-
da segunda década do século XVIII, os Xacriabá tiveram proble-
toricamente, serem marginalizados e tidos como uma espécie de
mas com os índios Kaiapó. Fato este que os levou a se aliarem a Ja-
raça inferior. Além da representação de desordeiros e facínoras
nuário Cardoso para combatê-los. Após consecutivos conflitos da
que os acompanhava, eram tidos também marginilazados, muito
bandeira de Januário Cardoso aliada aos Xacriabá contra os Kaia-
por resistir à dominação desde os tempos coloniais. A dura resis-
pó, foi doada uma parte da terra que eram demarcadas pelos rios
tência dos povos indígenas à imposição da cultura do “homem
Itacarambi, Peruaçu, São Francisco e pela Serra Geral e Boa Vista.
119
Hoje a terra dos Xacriabá corresponde a apenas um terço
Há de se entender que nem as lutas contra dominadores de
comparada à doação atestada na carta que Januário Cardoso re-
suas terras não os tiraram daqui, nem o período de seca que se
digiu em 1728. Abaixo, um trecho da carta do proóprio Januário
estende de março a setembro fez com que eles desistam de sua
Cardoso:
terra. É normal por aqui, nos períodos de seca, os índios irem tra-
deministrador dos Indios da Missão do Snr. S. João do Riaxo do Itacaramby Ordena a Cap. M. Mandante Domingos Dias ajunte todos os indios tanto maxos como femias q~andarem por fóra pª ad-missão com zello e cuidado os que forem rebeldes fará prender com cautella para hirem para ad-Missão Copio e Christão e zello Mandando lhe ensinar se Doutrina pellos os q~ mais soberem os doutrinatos que vivão bem e se cazem os Mancebados não tendo empedimento ou avendo empedimento fazendo se caze com outro q~ não tenha empedimento fazendo os trabalhar pª terem qi comer, e não furtarem e o que for rebelde a esta Doutrina (entrelinhas e sublinhado) que expendo neste papel os prenderá e castigará como merecer sua culpa... [porque] tenho ordi de quem podi para castigar e prendellos etirar o abuso de serem Bravos. 13 Esta carta diz muito. Não apenas sobre como eram vistos os índios ao olhar do “homem branco”, mas do problema relacionado a
balhar no interior de São Paulo, Goiás e do Mato Grosso - o que os coloca na condição de índios retirantes. Mas, quando a seca termina e a chuva começa a chegar molhando suas terras, lagos e rios, eles retornam. Mesmo sabendo, como coloca o índio João Gomes de Oliveira, que o que falta aqui é água. O vínculo com a terra se mostra ainda maior do que todas essas dificuldades vistas na trajetória do povo Xacriabá. E a insatisfação de estar longe do Rio São Francisco também é notória. Rosaldo Fiúza, cacique da aldeia Itapicuru fala de um sonho: “a preocupação nossa é só chegar à beira dele [O Velho Chico]. Estamos afastados dele. Na época do coronelismo fomos nos espalhando por não ter havido espaço para nós”. Gostaria de terminar este breve relato com uma frase que ouvi bastante na reserva indígena e que se transformou em uma bandeira de luta: “Os Xacriabá não foram criados hoje, somos um povo muito antigo”.
terra que até hoje vivem os Xacriabás. A questão agrária no Brasil para os povos indígenas continua a ser o espaço onde despontam
1
problemas que esbarram na concentração fundiária, seja na refor-
Vitor Ribeiro. 2005.
ma agrária que não têm a merecida atenção ou no direito à terra
2
que os povos nativos e as minorias étnicas têm. Segundo João Zoropa, o objetivo dos Xacriabá é voltar para a margem do rio São
(Org) Alenice Baeta, Henrique Piló, Vitor Moura, Ésio Rubbioli,
Documentar e Preservar. (Org) Alenice Baeta, Henrique Piló,
Vitor Moura, Ésio Rubbioli, Vitor Ribeiro. 2005, p.15. 3
Xacriabá: Identidade e História. 1994.
antepassados estavam lá, e que conflitos com a ordem vigente e
4
Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,
com fazendeiros, desde o século XVII até o século XX, foi a razão
p.4.
Francisco. Ele tem a ciência de saber que há tempos atrás seus
pela qual se distanciaram do velho Chico.
121
5
Carlos Fausto. 2000, p.62.
6
Na literatura Xacriabá é usual perceber essa família linguistíca
grafada enquanto Gê ou Jê. Há uma variação que não parece seguir uma lógica específica. 7
Artigo disponívelno endereço: http://www.combonianosbne.
org/PgAnteriores/Povos/indios_MA_1.html 8
Instrumento para fiar à roca. Pelos Xacriabá era usado para tecer
roupas. 9
Informação disponível no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Ge-
ografia e Estatística): www.ibge.gov.br 10
Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,
p.18. 11
Transcrição literal de um indígena.
12
Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,
p.5 13
Ibdem
122
Matias Cardoso e o delubrum mirae magnitudinis
Felipe Chimicatti
“Um povo que não conhece a sua história está limitado ao presente da atual geração; esse povo não compreende nem sua geração; esse povo não compreende nem sua própria natureza e existência, na impossibilidade em que se acha de relacioná-las com o passado que as explica; muito menos pode antecipar coisa alguma sobre o futuro. Somente a história pode dar a um povo a consciência de si mesmo”. Schopenhaeur
À primeira vista se tratava tão somente de uma igreja suntuosa
tamanho modesto – cerca de um metro – que era seu assento nas
erguida arguta no centro da praça principal de Matias Cardoso –
missas de antigamente. Conta ela que há muitos anos atrás era
cidade mineira limítrofe com o Estado da Bahia. Ao seu redor des-
necessário levar o próprio assento, caso contrário, à missa deveria
pontava casas antigas que oscilavam seus estados de conservação,
ser assistida de pé. O assento, pelo que foi dito, era um elemento
embora a maior parte tenda, infelizmente, à ruína ou à descaracte-
de distinção social. Dono Rita morava exatamente de frente para
rização dos traços arquitetônicos. Novamente, como em boa parte
o adro da Igreja matriz, a alguns passos da entrada.
das cidades são-franciscanas visitadas, a igreja apontava seu adro
Todavia, o instante mais avassalador da visita à cidade se con-
em direção ao Velho Chico, postando-se frontalmente aos viajan-
teve no deslumbrar mais detido dessa mesma igreja. Nada poderá
tes de outros tempos que, certamente, empreendiam o meio flu-
se igualar a distinção assombrosa de perceber tamanha enver-
vial com mais regularidade que os demais; os olhos de Deus ainda
gadura histórica delegada ao ostracismo público generalizado: a
miram o ininterrupto correr das águas são-franciscanas.
edificação não possui a data precisa de sua construção, mas se
A receptividade da população matiense é aspecto assaz curio-
estima que seja do final do século XVII, de acordo com uma telha
so: sentem-se bastante inclinados em dialogar – muito por se lo-
encontrada com o ano de 1703 grafado nela. Logo, a partir daí,
calizarem na borda da dobra geográfica – e, na maior parte das
estima-se algo na ordem do ano de 1673 para a construção. No
vezes, mostram interesse exacerbado pela razão da visita à ci-
entanto, uma recente teoria partindo de um documento histórico
dade. O turismo naquelas bandas é parco e pouco habitual, perce-
localizado na Bahia deu à matriz de Nossa Senhora da Conceição
bido, sobretudo, pela estruturas desconservadas e pelo pequeno
o ano de fundação no dia 8 de dezembro de 1695, jogando por
número de estabelecimentos declinado ao pernoite. Ficamos na
terra a teoria originária a partir da telha. De qualquer maneira,
pensão da Dona Rita: uma senhora mais idosa com hábitos católi-
uma construção de envergadura histórica mais pungente que a
cos e uma nostalgia impecável. Em seu estabelecimento, que nos
maior parte das igrejas mineiras, datada do final do século XVII,
custou à módica quantia de R$ 10 por noite, pode-se adentrar pro-
ruindo penosamente frente a sua capacidade histórica de retratar
fundamente na estrutura familiar do interior desta ribeira. A casa
a origem das Minas Gerais como um todo. Outrora, a igreja fez
conserva todos os móveis e toda a estrutura intacta, só que inte-
parte da capitania da Bahia, quando sequer existia o Estado de
ressantemente se trata de uma pensão. A sensação que se tem
Minas Gerias; e seus traços fulgurais são relíquias de um remoto
é que se todos os hóspedes deixassem a casa, ela se tornaria em
passado abandonado.
um lar conservador radicado no catolicismo mineiro. Dona Rita –
A sua estrutura, no mais prosaico dos adjetivos, consiste num
senhora muito agradável repleta de histórias – guarda algumas
afronta à história e à memória regional das Minas Gerais como um
antiguidades bastante particulares, como um imenso filtro do co-
todo. Seu adro está carcomido pelo tempo, faltando ruir; a nave,
meço do século que abasteceu de água filtrada sua pensão por
dilacerada, guarda uma estruturação mal tratada; o altar também
algum tempo. Agora, o objeto mais curioso era uma cadeira de
foi notadamente saqueado – e isso é ilustrado em grande parte
125
das literaturas históricas; as ripas madeiradas que compõem o
pode se perguntar: por quais razões existem diferentes caminhos
teto, em razão do tempo, vão se contraindo, destruindo as pintu-
para uma só origem? Em primeiro lugar, todas as cidades do norte
ras originais que nelas despontam; as escadas de madeira rangem
mineiro passam por processos de degradação histórica que se ve-
em qualquer menor esforço: quanto mais escorre o tempo, mais
rificam, por exemplo, nas vastas incertezas digressivas de toda a
volátil se faz à estrutura física da primeira igreja do Estado; e o Go-
porção mineira do vale do São Francisco: remontar o passado do
verno Federal e Estadual só olham para as Minas, distendendo os
norte de Minas é tarefa de adivinhação, em muitos casos. Os his-
Gerais da sua importância histórica; os Gerais do gado e da agricul-
toriadores tendem a partir de flutuantes hipóteses, pois a confir-
tura, não do ouro. Pedro Cristóvão, professor de matemática e pes-
mação oficiosa dos ocorridos é demasiadamente incerta e quase
quisador autônomo da história da região, lamenta-se fortemente
nada documental. Somente para se ter uma idéia da parca noção
do descaso. “Os Gerais são tão discriminados que só serviu para
de passado da região, transcrevo aqui uma passagem datada do
compor o nome. Quem nasce em Mato-Grosso é mato-grossense;
começo do século XX - do livro de Wilson Lins - chamado O Médio
quem nasce em Rio Grande é rio-grandense; quem nasce em Minas
São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros:
Gerais é mineiro”, protesta. Ele ainda pontua: “não tivemos um governador do Estado que saiu das Gerais”. O descaso político é acintoso. As pessoas parecem viver num espaço obtuso delegado à corrosão pelo tempo. Matias Cardoso é berço das Minas Gerais e, mesmo assim, esse berço está largado ao esquecimento por parte da porção mineira, ligada ao período aurífero: prova disso é a (des) estrutura da primeira igreja construída no Estado, mesmo que nos tempos da capitania baiana em que o mapa geopolítico do Brasil era bem diferente: e os processos de restauração, como bem se sabe, são cada vez mais difíceis à medida que o tempo passa.
(...) Para chegarmos a esse inventário, tivemos que recorrer a vários arquivos particulares, pois, devido às lutas entre famílias rivais e às constantes inundações do São Francisco, os cartórios das cidades ribeirinhas estão reduzidos às mais constrangedoras inutilidades. Por isto, poucos documentos existem para orientar as incursões do curioso nos assuntos históricos que se proponha a conhecer fatos relacionados com a formação dos latifúndios no São Francisco. 1 O relato, embora com seus quase cem anos de procedência, é ainda atual. As pessoas de ribeira desconhecem as próprias
Não obstante, para entender um pouco melhor a importância
origens históricas e, a despeito do que disse Euclides da Cunha,
do município para a formação do Estado - e porque não dizer do
referindo-se ao rio como “o cerne vigoroso de nossa naciona-
país - é necessário uma sucinta digressão histórica.
lidade” 2, a história parece se deparar com o hipotético desco-
Faltosa reminiscência: a justificável borda do Estado Existem várias hipóteses para a fundação do município de Matias Cardoso de acordo com a historiografia da região. O leitor
126
nhecimento de suas raízes, muito em razão do pequeno estímulo científico delegado à região. Para um rio que serviu de fator geográfico preponderante na descoberta do interior do país – o grande rio genuinamente brasileiro – a atenção delegada a ele é demasiadamente econômica.
João Batista de Almeida, pesquisador da região e doutor em
traço “agropastoril, estratificada, com predomínio do compadrio e
antropologia pela UNB (Universidade de Brasília), lança mão de
organização política baseada na ordem privada” perpassou pelos
três hipóteses para a gênese: o município de Matias Cardoso, na
“séculos isolada das regiões mais desenvolvidas do país e manteve
primeira delas, foi fundado pelo intrépido bandeirante Mathias
um ritmo de crescimento lento e retardatário”; 5 tudo em razão da
Cardoso de Almeida. O perspicaz colono tinha como objetivo de
administração pública da coroa, leviana e avarenta o suficiente para
suas bandeiras a captura e venda de indígenas para o mercado
em 1711 proibir terminantemente as trocas comerciais entre o norte
escravista (durante algum tempo os índios foram mão-de-obra
de Minas Gerais e a região do ouro. Em razão desse descaso admi-
escrava no vale do São Francisco, a despeito do litoral, que em-
nistrativo, de acordo com João Batista, tentou-se por 36 vezes criar
preendeu largamente a mão-de-obra de escravos negros vindos
um Estado próprio para a bacia do São Francisco – diferentes dos
da África). Em uma de suas andanças pelo sertão, parou e fundou
demais já existentes. Em 1873, por exemplo, o projeto teve bastan-
o respectivo município, denominado na ocasião por Morrinhos.
te fôlego nas discussões. O Estado são-franciscano compreenderia
Ao que parece, uma das vertentes historiográficas registrou que
territórios de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, teria como capital
“desde antes de 1664 esse bandeirante paulista andava com seus
Vila da Barra (BA): a nova província ainda daria a União quatro de-
companheiros pelo sertão do São Francisco”.
3
putados e dois senadores. A comissão de estatística em seu parecer
A segunda hipótese consta que o arraial de Morrinhos fora
favorável julgou que a nova administração provincial chegaria mais
fundado por um tal de Domingo Dias do Prado. Em razão de uma
eficazmente aos cidadãos são-franciscanos; que exerceria influên-
enchente no arraial fundado por Mathias, o seu filho – Januário
cia positiva sobre a prosperidade, segurança e integridade do Im-
Cardoso – fixou residência no município fundado por volta de
pério Brasileiro e que levaria aos 240.000 habitantes o progresso.
1600, levando toda a sua genealogia para aquelas bandas.
O projeto, mesmo tenazmente debatido, foi levado ao Senado que,
A terceira hipótese – aventando ser a mais nebulosa – diz res-
em instância superior, o vetou. Hoje, inclusive, existe em tramitação
peito à fundação da cidade por negros. A partir de uma enchente,
na câmara dos deputados um novo projeto para separar o norte de
a população migrou para a cidade que hoje é Januária. Os negros
Minas proposto pelo deputado federal Romeu Queiroz (PPS-MG).
que não se dispuseram a ir, ficaram na localidade e imprimiram
Tudo parte da necessidade de auto-afirmação de um povo acostu-
suas características culturais à cidade. Pedro Cristóvão – cito isso
mado a ser esquecido. Provavelmente, a região do Brasil que mais
para nortear o leitor – no seu relato misturou as três hipóteses em
tentou se distender de sua jurisdição: há realmente algo de sintomá-
4
tico nisso. Isso mostra, em outras medidas, que a região sempre
A localidade na qual o sertão norte-mineiro se encontra –
se sentiu marginalizada frente ao Estado. No caso de Minas Gerais,
como um terceiro lugar; sequer mineiro ou baiano – gera uma
por exemplo, não é raro ouvir isso que a capital mineira da porção
série de conveniências socioculturais, decerto. Contudo, gera tam-
são-franciscana irá se permutar a Montes Claros. Trata-se de uma
bém um descaso administrativo. Por se tratar de uma economia de
espécie de necessidade de afirmar tamanha marginalização.
uma só; o que pode gerar uma quarta, embora também incerta.
127
Destas três hipóteses a ciência de que a localidade foi também, assim como boa parte do sertão norte-mineiro, um entreposto comercial no qual passavam as mercadorias e as valiosas quantias metalistas. Inclusive a criação da estrada que interligava Minas-Rio de Janeiro consiste um fator preponderante para a crise norte-mineira. Tanto é que, “a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cresceu e desenvolveu-se tanto que, em 1763, reunia todos os elementos para poder roubar a situação de Capital administrativa do Brasil”. 6 Boa parte dos contrabandos usava o rio S.Francisco como a principal via de escoamento. Fizeram-se bastante na região dos Gerais, afinal, naquele sem fim de terras agrestes a fiscalização da coroa era escassa. Na medida em que a coroa portuguesa cobrava a lancinante quantias do quinto na região aurífera em um monopólio ostensivo, o sertão pouco importava à administração portuguesa e, se importava, fazia-se por motivos de abastecimento; os incentivos agropastoris eram de ordem privada, para se ter uma idéia. A região foi a que abasteceu em gêneros alimentícios a região aurífera por algum tempo. Os Gerais, por se tratar de uma região até hoje basicamente agropastoril –, não impediu que a vertiginosa procura por ouro padecesse sem alimento, pois, nas paragens do ouro, os caboclos não queriam saber de mais nada além de procurar o grande Eldorado brasileiro. Ainda a se avultar a isso, a coroa mantinha os estúpidos privilégios a extração metalista. A região de Mariana chegou, inclusive, a ser acometida por intensos ciclos de fome, tendo a população local que se deslocar da região para não morrer de fome. Já em 1711 o comércio com o norte mineiro fora proibido, comércio esse que se constitui com muito mais agilidade que os demais: tudo por razões financeiras. O tráfico de ouro era inconcebível à coroa e a forma proposta de
128
(Páginas anteriores) Pintura que compõe o teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e fotomontagem da edificação. Hoje, ao fundo, ergue-se uma rigorosa antena das telecomunicações. As paisagens ao redor vão mudando na medida em que a igreja vão se deteriorando. (À esquerda) Detalhe da edificação que, como consta na documentação histórica, foi restaurada em 1913 pelo Cônego Maurício Gaspar.
Um dos retratos que remete ao precário estado de conservação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. As precárias condições estão para além da palavra ou da imagem. Precisa-se ver para crer tamanho descaso. Trata-se de uma das igrejas mais antigas do país largada pelo patrimônio histórico.
se abortá-lo foi isolando toda uma região, amputando-lhe o de-
arquitetônica da igreja, hoje ela se torna cada vez mais precária.
senvolvimento; elementos fundamentais para se entender a ad-
Ainda, segundo o pesquisador João Batista, “se a igreja está de pé
ministração exploratória da coroa portuguesa no Brasil.
até hoje, seguramente, é a população que não deixa ela cair”. De
Segundo João Batista, a igreja bem como o município de Matias
acordo com ele, até algum tempo os próprios moradores pinta-
Cardoso – fundamentais para se entender a conjuntura histórica
vam a igreja, o que foi posteriormente proibido pelo Iphan. Acho
de Minas Gerais – não fazem parte do patrimônio mineiro. Ela
inclusive difícil achar adjetivos bastantes à descrição da ruína
sequer consta na lista de cidades históricas de Minas Gerais. “O
dessa edificação, pois, para além de “precária” ou “violentas in-
norte de Minas só começou a ser estudado por nós, da Universi-
filtrações” só imagino em substituição “estado de emergência”.
dade Estadual do Norte de Minas, agora”, reforça. Ele se refere ao
Richard Burton – um auspicioso gênio inglês – que correu o rio São
tempo em que lecionava e pesquisava pela instituição. No atual
Francisco da nascente à foz no século XIX assim escreveu sobre a
momento o pesquisador está atuante na Fundação Darcy Ribeiro,
cidade de Matias Cardoso, na ocasião Morrinhos:
no Rio de Janeiro. E realmente; poucos estudos existem sobre a região, sobretudo estudos mais recentes.
A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se eregir e possivelmente a próxima a ruir Pude ter acesso, em consulta ao acervo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a duas pequenas pastas com informações da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, tombada pelo patrimônio histórico federal em 1954. Pude perceber dentro dessas duas pastas algumas fotografias antigas, em preto
(...) O lado oriental da praça é ocupado pela Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Morrinhos, que deu nome ao lugar. É um ‘delubrum mirae magnitudinis’, que goza de grande fama, o que leva os forasteiros a perguntar como isso aconteceu (...) Tivemos alguma dificuldade em encontrar as chaves; afinal, apareceu o sacristão, com o ‘rabo’ habitual. O interior estava em pior estado que o exterior: no teto faltavam algumas das tábuas de cedro que o cobriam, o coro estava em ruínas – em geral é onde a decadência começa – e os púlpitos estavam, igualmente, na eminência de cair (...). 7
e branco, com a estrutura já carcomida e um conjunto de plantas
O tal Burton, figura fascinante - somente para fins de contex-
do ano de 1981 que aponta as precariedades da edificação. Nelas
tualização – era admirado por viagens, o que não o impediu de
despontam observações da seguinte ordem: “painéis em tabuado
exercer cargos burocráticos, sendo ele célebre cônsul britânico,
liso em estado precário”; “revestimento em madeira com tábuas
atuando inclusive em Santos, no Brasil. Foi ele quem traduziu para
deterioradas e despregadas”; “púlpitos em madeira almofadada
o português o Kama Sutra e as Mil e uma Noites, além de ter em-
atacados por insetos xilófagos e com peças despregadas”; “re-
preendido uma sólida viagem da nascente do São Francisco à foz,
vestimento com violentas infiltrações”. As observações de 1981
de canoa, no século XIX. Assim como Guimarães Rosa, detinha
apontavam uma necessidade urgente de reestruturação da base
elevados conhecimentos lingüísticos, totalizando por volta de 25
132
idiomas e dialetos conhecidos. Foi explorador intrépido da África
Além dessas atrocidades, constam na tradição oral dois casos
e do Oriente Médio em um tempo onde não se podia usar a pa-
de queima completa dos arquivos da igreja. Em 1700 é contado
lavra turismo na mesma acepção de hoje. Sua obra é importante
pelos mais idosos que o pároco queimou toda a documentação
leitura sobre o Brasil dos tempos de Império. Ele certamente ficou
da igreja em um acesso desconhecido. No século XIX consta no-
admirado com a proporção de tamanha arquitetura em meio a um
vamente uma queima dos arquivos sacros; embora tudo isso se
povoado tão modesto, provavelmente, a razão pela qual lança
afigure na tradição oral. 8
mão da faustosa adjetivação em latim.
Marcos Cambraia, assessor de comunicação do Iphan, disse
Voltando: mesmo no século XIX Burton já verificava a precária
ser também uma das atribuições do pároco da igreja se deter em
estruturação da edificação do século XVII. Sabe-se, entretanto,
possíveis meios para manter a igreja conservada. É possível hoje,
que um cônego chamado Maurício Gaspar empreendeu, em 1913,
por exemplo, recorrer à lei de incentivo federal (Lei Rouanet) ou ao
uma restauração na igreja. Certamente muito dela hoje é fruto
Pronac (Programa Nacional de Apoio a Cultura) para captar verba
desta obra. Houve um outra reforma, embora não tenha passado
junto às empresas através do abatimento fiscal. Oras, a grande in-
de uma tentativa, no ano de 1989: as obras ficaram pela metade.
dagação que não pode deixar de ser feita é: Por que razão uma em-
Pouco se sabe sobre as reformas e sobre as mudanças empre-
presa privada, ou estatal que seja, investiria na restauração de uma
endidas. O visível é que mesmo reformada há quase cem anos, a
cidade que pouquíssimo tem de turístico? A cidade já conseguiu
igreja demanda outra reestruturação.
ter a restauração aprovada e o crédito financeiro liberado pela lei,
O histórico de expropriação da Igreja de Nossa Senhora da
no entanto, a captação da verba sempre é inexistente. As empre-
Conceição não se limita unicamente ao descaso corrosivo do Estado.
sas simplesmente não investem. O pior é que uma igreja do porte
Um pároco de São Romão, no início do século XX, levou para a sua
da matriz de Matias Cardoso não deveria passar por esse tipo de
paróquia os candelabros de prata e os ostensórios de ouro que
triagem: trata-se da primeira igreja de todo o Estado de Minas Gerias;
existiam desde os tempos das bandeiras de Mathias Cardoso de
uma reminiscência viva pronta a recontar sua história.
Almeida após a missa da comemoração do Divino que fora convi-
A questão da não conservação, todavia, serve muito para
dado a celebrar. Outro padre, de Januária, transferiu para a sede
apontar a já tratada distensão do norte de Minas com relação à re-
da paróquia - na ocasião de sua visita a igreja – a imagem do Se-
gião aurífera. João Batista de Almeida, integrante do movimento
nhor dos Passos e da Nossa Senhora das Dores, relíquias históricas
Catrumano 9, diz que os Gerais – habitualmente reconhecidos en-
da edificação. A imagem do Senhor Morto só não foi levada por-
quanto sertão, e não enquanto pertencente às Minas Gerais – só
que a população literalmente se armou de paus, pedras e foices,
vai se fazer notar na medida em que a população local “reconhecer
impedindo o transporte da peça. Em 1940, outro padre de Januária
que ela não foi só ouro, que ela foi também gado e agricultura”,
teria vendido um sobrado que dizem ter pertencido a Januário
propõe. Para ele a Igreja de Nossa Senhora da Conceição revela
Cardoso, no entanto, vendeu a um particular.
muito bem essa constituição. Mas a luta pelo reconhecimento não
133
se encerra no coração desse povo tão rico culturalmente e tão
privado e público. E, em algum sentido, existe força econômica
afundado em políticas públicas que não querem ver o que a história
por lá nos dias de hoje. O Projeto Jaíba é responsável por levar
insite em mostrar.
água para essas plantações durante todo o ano, produzindo gêne-
Com relação ao estilo da igreja - estilo esse que Burton adjetivou
ros agricultáveis ininterruptamente de janeiro a janeiro. São canais
com deslumbre – muito historiadores investem na possibilidade da
que deslocam a água direto dos rios S.Francisco, Verde Grande,
estilística jesuítica. João Batista lança opinião contrária: “Ao que me
Gurutuba, Jequitaí e das Velhas, e, literalmente passando em meio
parece aquela igreja nunca seria jesuítica; não existe registro histó-
às propriedades, geram para as empresas capacidade produtiva
rico dos jesuítas no norte de Minas”, enfatiza. Narra ainda que nos
anual para a fruticultura e a produção de grãos. É impressionante
anos 80 foi encontrada em uma das eventuais obras que eram fei-
notar que hoje, no Vale do São Francisco, são produzidos até vi-
tas na edificação uma adaga de estilo árabe. Arrisca ele que a igreja
nhos de boa qualidade, vale esse que antes se mostrava inapto à
tenda mais a esse estilo do que propriamente ao jesuítico. De qual-
agricultura em razão das constantes secas.
quer maneira, encerra-se como outro enigma do norte mineiro que padece sem esclarecimentos por parte dos estudiosos.
Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba
Shiguetushi Kojima – descendente de japonês e empreendedor do projeto Jaíba – está trabalhando há dez anos com o método de irrigação. Sua empresa chamada Água da Prata exporta frutas para Alemanha e Portugal, produzindo por mês 200 toneladas de frutas. “A exportação paga melhor – cerca de 50% a mais que
Em meio ao sertão matiense, de terra seca, sol e luminosidade
importação, apesar de serem mais criteriosos”, explica. Ele ainda
implacáveis, existe o projeto responsável por fornecer água para
esclarece a quantidade de água que é gasta por dia: “são aproxi-
as plantações durante todo o ano. Quem nos apresentou às plan-
madamente 1.000 m³ de água/dia em cada lote de 50 hectares”. A
tações ligadas ao projeto Jaíba foi um Pernambucano amistoso de
irrigação de sua plantação é praticamente toda computadorizada,
olhos azuis de apelido Caboclo. Seu semblante de longe se parecia
prescrevendo através de um software a quantidade de água ideal
com o de um caboclo, mas, como na lógica dos apelidos adormece
para as frutas em cada ocasião do ano, basta informar a respeito
sempre um sarcasmo desmedido, detive-me em sua postura cor-
das chuvas e das proporções pluviais: coisas na ordem dos índices
dial. O Jaíba, como estava tratando, constitui-se enquanto o maior
pluviométricos. A plantação de Kojima trabalha basicamente com
projeto público de irrigação em área contínua da América Latina.
mangas, tendo mais saída para a do tipo Palmer, embora esteja
Nesse sentido, o norte de Minas Gerais tem parte de suas atribula-
agora no início da implantação da cultura abacateira. Quando in-
ções empresariais sanadas, muito em razão de ser um projeto que
dagado a respeito dos subsídios, Kojima se lamenta dizendo que
se adequou muito bem ao agronegócio. A implementação deste
já foram melhores.
braço agroindustrial no norte de Minas tem, a princípio, a neces-
O projeto Jaíba nasceu em plena ditadura militar, no ano de
sidade de desenvolver uma região sempre esquecida pelo capital
1975, apesar de sua articulação ter começado a ser projetada na
135
década de 50: trata-se de uma parceria entre Governo do Estado e
7
a União, representados, respectivamente por Ruralminas (Secreta-
1977, p.220
ria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Codevasf
8
(Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba). Foram arqueadas quatro fases para o projeto e se estima que, ao final da empreitada, tenham-se implantados 100.000 hectares de perímetro irrigado. Trata-se de um projeto produtivo, principalmente durante a entressafra dos mercados internacionais, uma vez que o projeto tem produção anual. Entretanto, constitui-se majoritariamente de um projeto de latifúndios. A fase de recolocação dos ribeirinhos que plantavam as margens do Velho Chico – a primeira fase – teve um êxito regular. Alguns casos prosperaram outros não, mas, o projeto teve seu maior êxito no sentido do agronegócio. 1
Wilson Lins. 1983, p.31
2
Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de
Minas Gerais. 1991, p.19 3
Afonso Taunay. História Geral das Bandeiras Paulistas. 1948,
p.45 4
De acordo com a tese de doutoramento João Batista de Almeida
intitulado: Mineiros e Baianeiros: Englobamento, Exclusão e Resistência obtida em 2003. 5
Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de
Minas Gerais. 1991, p.19 6
Ibidem
Richard Burton. Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.
João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: Englobamento,
Exclusão e Resistência. 2003, p. 185 9
Catrumano é um movimento político que tenta resgatar a diver-
sidade e pluralidade do norte de Minas – tão rico culturalmente. Trata-se de uma tentativa de fortalecer a imagem do norte-mineiro no cenário nacional. Catrumano é uma palavra que foi dita pelo botânico francês Saint-Hilaire na ocasião de sua visita a Minas Gerais. De acordo com ele, tudo o que aquele povo fazia era por intermédio da montaria; tratava-se um povo cavaleiro, munido de quatro mãos – aludindo às patas dos eqüinos.
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“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo (...) Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”.
João Guimarães Rosa, extraído do conto a Terceira Margem
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