Águas de Ninguém: Viagem à porção mineira do Rio São Francisco

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Águas de Ninguém Viagem à porção mineira do rio São Francisco Bárbara ‘ | Felipe Chimicatti | Tarsila Costa




Agradecimentos As prefeituras das cidades de Três Marias, Andrequicé, Pirapora, São Romão, Januária, São João das Missões e Matias Cardoso visiPRODUÇÃO EDITORIAL

tadas durante pesquisa de campo, no mês de julho de 2009. As in-

Autores e organizadores Bárbara Camargo Felipe Chimicatti Tarsila Costa

formações, os atendimentos e encaminhamentos prestados foram

Leitura e revisão de texto Aurélio José da Silva PRODUÇÃO GRÁFICA Projeto gráfico Rafael Chimicatti Imagens Felipe Chimicatti

de grande valia.Aos entrevistados de cada uma destas localidades - anônimos e populares da comunidade ribeirinha do rio São Francisco -, que nos proveram com relatos e depoimentos ímpares que determinaram o teor crítico das narrativas elaboradas nas grandesreportagens do livro. A Rafael Bottaro que nos acompanhou durante pesquisa de campo para auxiliar nos trabalhos técnicos. Mais do que isso, sua companhia foi crucial para equilíbrio do grupo em vários momentos da viagem. A Rafael Chimicatti que assumiu o projeto gráfico do livro e a quem devemos seu formato e configuração. E, principalmente, ao rio, este vigoroso corpo d’água brasileiro.


Sumário PREFÁCIO 7 CAPÍTULO 1: O RIO SÃO FRANCISCO 9 O fascínio que as águas causaram 10 A geopolítica do São Francisco 12 O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens 13 CAPÍTULO 2: TRÊS MARIAS: AQUI O RIO CORRE GORDO, REPRESADO 15 Três Marias: aqui o rio corre gordo, represado 17 As dores do São Francisco na ótica de um dos pescadores: o seu Norberto 19 A pesca em Três Marias 25 Dos peixes e dos limites legais da pesca passando por lagoas marginais 28 Andrequicé e a confluência sertão, literatura: Manuel Nardi e João Guimarães Rosa 29 CAPÍTULO 3: PIRAPORA: TERMINAL SUL DA HIDROVIA SÃO FRANCISCO 33 Aportando em Pirapora 34 12 de julho, um passeio pela navegação 37 O processo de implantação dos vapores 42 Um país de rios não melhorados 44 O rio hoje: Solidão 46 Intervalo 49 Lourdes Barroso e os Franciscos 50 CAPÍTULO 4: BARRA DO GUACUÍ: O ENCONTRO DAS ÁGUAS E A HISTÓRIA PERDIDA 59 Falta de culto ao passado 61 A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí 61 Ruínas ao léu 64 Um ponto de dois rios 68


CAPÍTULO 5: SÃO ROMÃO: PERCEPÇÕES DISTANCIADAS DE UMA CIDADE À BEIRA-RIO 73 São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio 75 O patrimônio histórico ou a falta que ele faz 77 Os batuques que guardam história 79 CAPÍTULO 6: JANUÁRIA : OUTRAS HISTÓRIAS ALÉM DA BOA E VELHA CACHAÇA 87 Antes de Januária, Brejo do Amparo 88 O despontar de Januária até o ciclo da aguardente 88 A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana 92 A rapadura e arte de sobreviver dela 94 A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária 97 A Velha Januária e o rio de São Francisco, segundo Dona Maria e Senhor Binu 100 Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso 102 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono 103 CAPÍTULO 7: SÃO JOÃO DAS MISSÕES: resistência e luta xacriabá 107 O pó da terra vermelha são eles: Os Xacriabá 109 O índio do sertão 109 A apresentação do cerrado e os Xacriabá 112 Patrimônio Xacriabá 114 Os brasis que não vemos, e o sertão que temos 116 As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito 118 CAPÍTULO 8: MATIAS CARDOSO E O DELUBRUM MIRAE MAGNITUDINIS 123 Falta de reminiscência: a justificável borda do Estado 126 A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se erigir e possivelmente a próxima a ruir 132 Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba 135 REFERÊNCIAS 139 e 140


Prefácio

que o rio-mar dos indígenas que, com sua língua, consegue lidar mais legitimamente com a natureza, não guarda só investigação,

O rio São Francisco é maior que qualquer pretensão científica.

pois somos mais investigados por ele que o contrário. As mudan-

A ribeira é larga, as crenças que permeiam, de tão largas, sobre-

ças na perspectiva de mundo são notórias em menor viagem pelo

nadam o imaginário humano. Chegar às margens do Velho Chico

curso do Velho Chico: o retorno à rotina é diverso depois de co-

e ver a mitologia sertaneja não é coisa de cabloco sem instrução:

nhecer tamanha estrutura natural; os olhos passam a ver a vida de

acreditar nos causos é enfática sabedoria – seja por parte de quem

outra maneira, inadvertidamente.

for -, é o rio que conta suas estórias, é dele a voz premente que entoa a melodia das mais inauditas crenças – inauditas por não se

A concepção do livro

fazerem questionar. Assistir uma senhora negra, efusiva, legítima,

O aflorar do projeto nasceu a partir de uma tentativa jornalís-

de 90 anos descrever meticulosamente o cabloco d’água, trans-

tica de explorar o Vale de São Francisco em sua porção mineira.

forma-o em realidade, dá-lhe a carapaça que o sustenta enquanto

Como não poderia deixar de ser, optamos pela viagem de campo

lógica. Não é necessário recorrer a qualquer descrição naturalista

com duração de um mês, mais por uma tentativa vivaz de perce-

de século XIX ou a nenhum compêndio das ciências naturais para

ber as imediações humanas do rio. Foi Cabral, no entanto, que nos

saber que ele existe; existe e existe mais que qualquer engenhoca

deu acesso à importância hidrográfica de nosso país com seu es-

projetada por nosso racionalismo decadente.

sencial poema O Cão Sem Plumas no qual o eu – lírico – em uma

Quando partimos, no mês de julho, para uma viagem de campo

quebra acidental na narrativa poética brasileira – é o próprio rio

que se baseava em investigação, pesquisa, entrevistas e registros

Capibaribe. O rio narra suas aventuranças pelo sertão nordestino

fotográficos, tínhamos a menor das idéias do que se desvelaria.

até desaguar no mar; o rio trovador; o rio que prescruta, o rio que

A primeira cidade ribeirinha – Três Marias – já carregava a intensa

é metáfora visceral de nós mesmos:

correlação homem-rio: Não há maneira de separar os homens do fascinante correr das águas de um rio que corta cinco Estados. O nosso escopo primeiro era, sim, a degradação ambiental do rio São Francisco no decorrer de todos os anos, desde a chegada lusa à costa brasileira. Não obstante, falaríamos também da relação mítica que entorna tal degradação. A idéia inicial, meio que dissol-

A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.

vida nas águas calmas e turvas do Velho e gracioso Chico – o Opará,

A cidade que passa, embora seja feita de matizes de amor

em Tupi-Guarani: rio-mar –, foi entoada pela idéia oposta: a partir

de ribeira, é que também lhe corroí. São as cidades que dão ao

da cultura foi possível falar da degradação, e não o oposto. O rio

nosso rio sumariamente brasileiro a parcela forte de poluição, de

São Francisco é maior que qualquer pretensão científica. Parece

assoreamento, de desdém inveterado: “A cidade que é passada

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pelo rio” lhe atravessa também como espada... Desta conclusão

As descobertas que o rio proporciona tangem para além de

poética – em conformidade à necessidade das águas, sobretudo

conhecimentos técnicos ou científicos; são de ordem existencial,

àqueles que com ela convivem -, é fato maior das cidades ribeiri-

e, apesar de todo o projeto ter partido da iniciativa pessoal, sem

nhas. Todos os ribeirinhos, sem qualquer exceção que seja, inda-

sequer algum auxílio monetário, os ganhos ficarão para toda a

gados sobre o rio noutros tempos, lamenta-se. Ali corriam vigoro-

vida, marcados pelo incessante ricochetear das águas de um rio

sas correntes de água, hoje enormemente comprometidas pelas

que não para de correr dentro de cada um de nós.

cidades. O afluente que carrega a poluição belo-horizontina, por exemplo, é o principal poluidor do Velho Chico: o rio das Velhas transporta o esgoto industrial para o oceano, agora, triste é ver o

Bárbara Camargo, Felipe Chimicatti, Tarsila Costa

encontro do Chico com o Velhas: os rios se machucam em razão

Belo Horizonte, 2009

de quem dele tanto necessita: nós mesmos. Outro ponto que determinou a escolha de rio São Francisco como objeto de estudo e, por conseguinte, de fascínio, foi o tão discutido projeto de transposição de suas águas. Apesar de nada abordarmos acerca da temática que, realmente se envereda por uma discussão demasiadamente técnica, foi a partir dela que passamos a nos interessar pelo São Francisco. Estudamos o seu curso, entendemos melhor suas articulações, bebemos na história de seus relatos. “O rio sem história” de Capistrano de Abreu – grande historiador brasileiro – é deveras um rio sem história formal: os documentos, em grande medida, inexistem. Agora, sua história vive impetuosa na arquitetura, na oralidade, nos prosaicos versos cotidianos de cada senhora que lava sua roupa há anos nas correntes, embora a escassez documental ainda deixe uma triste herança do descaso da coroa para com a atividade agropastoril – predominante no norte de Minas. Reportamo-nos ao norte mineiro, obviamente, pois nosso relato se interrompe em Matias Cardoso.

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O rio são francisco

Garcia D’ávila - homem este que será um dos grande agenciadores de uma enormidade de currais pelas margens do Opará; o Velho

Euclides da Cunha gostava de atribuir ao rio São Francisco o

Chico também foi o rio dos currais, sobretudo durante o perío-

cárater formador do país. Chegou a afirmar ser “o cerne vigoroso

do colonial: “Os currais viriam a se tornar os responsáveis pela

de nossa nacionalidade”. Vicente Licínio Cardoso – proeminen-

formação dos primeiros núcleos povoadores do vale e lançar as

te intelectual e historiador brasileiro – referia-se ao Velho Chico

sementes que desabrochariam nas cidades de hoje. O rio se torna

como a grande “estrada natural interior”, ou, ainda como gos-

então conhecido por rio dos currais”. 1

tava de propor, “o tablado geográfico brasileiro”. Capistrano de

Era dele que advinham os gêneros alimentícios que abas-

Abreu, meticuloso historiador dado à etnografia e a linguísta, já

taciam a região litorânea, em um primeiro momento, sendo em

dizia não haver fio de Ariadne comparável ao Rio.

seguida fornecidos víveres à região aurífera, em Minas Gerais. Fo-

Em 1501, as naus de Américo Vespúcio se defrontavam com o

ram esses processos, de modo geral, que determinaram os traços

suntuoso rio, nomeado pelos portugueses como Rio São Francisco

agro-pastoris da região que até os dias de hoje imperam. Mesmo

em razão da data de descobrimento – 04/10 - coincidir com o dia do

assim, o nordeste ainda teve imensas dificuldades de transitar sua

Santo de nome homônimo. Obviamente, o nome indígena do mes-

mercadoria pelo país. A coroa portuguesa, para se ter um ideia, du-

mo rio não permaneceu: o rio Opará (em Tupi-Guarani Rio-Mar)

rante o período da extração aurífera, proibiu o comércio da região

hoje figura somente na literatura de resistência, relembrando que

com a zona do ouro para remediar os contrabandos. No entanto, a

nessa época outros povos já haviam descoberto o Brasil há muito.

região do ouro padecia de crises imensas de fome porque nenhum

Entretanto, não tardou a surgir o que seria o primeiro núcleo po-

bandeirante das Minas queria investir esforços em algo além do

voador das margens do São Francisco – Penedo, localizado hoje

metal. É nesse sentido, inclusive, que se potencializa um dos tra-

no Estado de Alagoas. Segundo a historiografia da região, uma in-

ços mais marcantes do sertão: o compadrio e o coronelismo. A ad-

cursão bandeirante entre 1522 e 1545 fundara aquelas paragens,

ministração portuguesa desdenhou a região desde o início, crian-

embora a data precisa seja incerta: há ainda muito a se auferir da

do lacunas que se preencheram com a criação de uma organização

história são-franciscana; como disse Licíno, “o rio sem história”

política paralela. São inúmeras as matanças sertanejas no decurso

em razão da pouca ciência ou documentação que lhe recobre.

da história que se dissiparam no descaso das autoridades compe-

Em 1549, o Governador-Geral Tomé de Souza chega às terras

tentes, se é que elas eram suficientemente competentes a tais re-

brasileiras com várias incumbências, incluindo a missão de ex-

soluções. A figura do jagunço – recorrente na história sertaneja – é

plorar o rio e suas potencialidades. A coroa portuguesa lançava

somente mais uma assertiva da ausência do Estado. O Engenheiro

promissores olhares para suas águas, pois, de uma forma ou de

Teodoro Sampaio observou, no ano de 1879, uma situação desor-

outra, era o caminho mais seguro para o coração do país; além do

deira: os jagunços de um tal Neco conseguiram dissipar terror na

mais, não existiam estradas. Com Tomé de Souza, aporta no Brasil

região do sertão, expulsando agentes do poder público da cidade

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para as imediações de Januária – no norte de Minas. “O estado de

estrangeira. Eles tiveram, certamente, motivações diferentes, embora

espírito do juiz de direito causava pena (...) o digno magistrado,

o fascínio pelo Opará e sua magnitude se estenda a todos os relatos. As

com as lágrimas nos olhos, viu nos afastar, como quem pedia uma

populações eram, por vezes, fadadas ao olhar etnocêntrico do estran-

esperança, o seu recurso supremo naquele passo difícil. Quanta

geiro em terras brasileiras, agora, o rio, esse sempre comoveu a todos

desgraça, quanta barbaría naqueles setões, santo Deus”!

2

O sertanejo são-franciscano, uma raça cobocla repleta de mis-

eles. Nessa alçada, não faltaram comparações: o Velho Chico já foi comparado ao Nilo, ao Niger, ao Reno e até mesmo Loire, em Orleans.

cigenação, é um misto de negros, indígenas e portugueses, exceto

Os pesquisadores de maior renome que usualmente são ci-

nas extremidades do Vale, onde Donald Pierson observou a predo-

tados nos trabalhos científicos, muito pela ordem dos resultados

minância da raça negra, relacionando sua existência ao cultivo da

obtidos bem como pela envergadura intelectual de cada qual, são:

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cana. Ainda, o São Francisco foi utilizado como rota de escravos

Richard Burton (Inglês); Spix e Martius (Alemães), Sainte Hilaire

negros nas zonas açucareiras. Ademais, trata-se de um sujeito his-

(Francês); Teodoro Sampaio (brasileiro); Halfeld (alemão); Liais

tórico esse sertanejo, situado na confluência do processo de po-

(francês); dentre muitos outros. Fizeram eles várias observações

voação do país, tendo o São Francisco submetido o trânsito racial

sobre os modos de vida de sertanejos, sobre a geografia e a orga-

sobremaneira. Daí advém à particularidade do são-franciscano: é

nização sócio-politica, sobre o rio e seu desdobramento na vida de

sujeito único no país, sertanejo de traço forte e peculiaridade ím-

ribeira. É fundamental perceber que foi Richard Burton, um notá-

par. Geraldo Rocha, engenheiro e conhecedor do rio, afirmou:

vel inglês que falava aproximadamente 25 línguas e dialetos, que

(...) a entrosagem [do sertanejo] se deu, assim, fatalmente, entre os

atentou para o termo sertão:

aborígenes repelidos da costa para a região do nordeste e os pionei-

O termo sertão, segundo o viajante inglês Richard Burton, é a con-

ros dos currais e da mineiração com os primitivos escravos que os

tração do aumentativo “desertão”, muito usado na Africa e na Amé-

acompanhavam, cujos descendentes haviam conseguido a liberda-

rica do Sul. No Brasil, o tema é utilizado para se referir as regiões

de por serem filhos de índias livres.

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O rio São Francisco, a grosso modo, é o grande disseminador

semi-aridas do interior do Brasil pouco habitadas e com a prevalência do regime pastoril. 5

dos povos brasileiros, o grande fator desencadeador de nossa

Já de 1817 a 1820 estiveram nas margens do Velho Chico Dr.

miscigenação, caso não fosse ele nossa natural estrada, o proces-

Joahann Baptist von Spix (Zoólogo) e Dr. Carl Friedrich Philipp von

so de investida portuguesa seria assaz bem demorado.

Martius (Médico e Botânico). Escreveram o livro Viagem pelo Brasil,

O fascínio que as águas causaram

editado em 1823, em Munchen, na Alemanha. O estudo foi traduzido para o português somente em 1923. Sainte-Hilaire, ao seu turno,

Foram vários os visitantes que fizeram incursões científicas pelo

escreveu o livro Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e Pro-

Rio São Francisco, muito deles de notório renome e, por vezes, de origem

víncia de Goyaz. Foi empenhado naturalista que coletou por aqui

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30.000 exemplares de plantas, de 7 mil espécies diferentes, das quais

que 2/3 da disponibilidade hídrica do nordeste. Três fatores - ainda

4. 500 eram desconhecidas. Sua viagem à cabeceira do Rio São Fran-

de acordo com o Caderno da Região Hidrográfica do São Francis-

cisco ocorreu em 1819. Teodoro Sampaio era brasileiro. Formou-se em

co, desenvolvido pelo Governo Federal no ano de 2006

engenharia civil, embora fosse também eximil desenhista. Empreen-

os maiores responsáveis pela pressão da qualidade das águas: a

deu viagem científica no ano de 1879 junto à comissão hidráulica lide-

crescente urbanização, a expansão industrial e a mecanização da

rada pelo americano Oville Derby. O percurso teve ínicio em Penedo e

agricultura.

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– são

finalizou-se na chapada Diamantina. Teodoro era o único negro da co-

O Rio São Francisco é evidentemente o maior rio estritamente

missão, e naqueles tempos pós-escravidão conseguiu ingressar junto

brasileiro, ou seja, ele tem nascente e foz nas entrâncias do nosso

à comitiva muito em razão de sua vultosa capacidade e conhecimen-

próprio território. Nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais e de-

to, sobretudo junto à averiguação das condições de navegabilidade do

ságua entre Sergipe e Alagoas. Em razão disso, acostumou-se cha-

rio São Francisco. Halfeld foi um engenheiro alemão contratado pelo

mar o Velho Chico de “rio da unidade nacional”, muito em decorrên-

Governo Imperial para desenvolver estudos no Rio São Francisco, de

cia de ter sido ele, também, o grande meio de transporte nos tempos

Pirapora a foz. Realizou a pesquisa entre 1852 e 1854. Falece em Juiz de

de colonização, empreendido, inclusive, pelas bandeiras paulistas: o

Fora, local onde possuia um terreno particular. O mais interessante é

Velho Chico em 1501 já era conhecido pelos portugueses.

que Halfeld participou da batalha de Waterloo nas forças que comba-

A Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco apresenta 638.323

teram Napoleão Bonaparte. Liais, por sua vez, recebe a designação do

Km² (8% do território nacional) e abrange 503 municípios. Sua

Governo Imperial de estudar o Velho Chico da nascente a barra do Rio

imensidão abarca sete Estados brasileiros: Bahia (48,2%); Minas

das Velhas. O fascinante francês era astrônomo e trabalhou no Impé-

Gerais (36,9%); Pernambuco (10,8%); Alagoas (2,3%); Sergipe (1,1%);

rio a convite de Don Pedro II que, na ocasião, desvincunlou o Imperial

Goias (0,5%) e parte do Distrito Federal (0,2%). Para fins taxonômi-

Observatório – repartição a qual havia sido convidado – da Escola Mili-

cos, a região foi dividida em três grandes regiões, embora existam

tar: tratava-se de uma dos pedidos do francês para assumir o cargo.

outros recortes variando de acordo com a necessidade científica.

O fascínio de cada um deles, mesmo em suas particularida-

Existe, então, o Alto, o Médio e o Baixo São Francisco. A parte Alta

des, era o mesmo quando se falava da magnitude do Velho Chico,

localiza-se entre a Serra da Canastra – em sua nascente – e vai até

mais velho que o nome pode aludir, certamente: o São Francisco

a cidade de Pirapora; a parte Média situa-se entre Pirapora (MG)

foi o rio da unidade nacional depois de ter sido aos aborígenes o

e Paulo Afonso (BA); por fim, a parte Baixa vai de Paulo Afonso à

grande Opará, que, de tão grande, faz-se parecer mar...

foz, entre Sergipe e Alagoas.

A geo-política do São Francisco

Diferentemente do que se imagina, o problema da chuva na região não se detem na falta, mas sim, na irregularidade dos índi-

Em 1990, já havia desaparecido 66% das matas originais na

ces pluviométricos. “Por mais paradoxo que possa parecer, essa

bacia do Rio São Francisco, bacia essa que abrange nada mais do

região está sujeita a cheias frequentes dos rios intermitentes que

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a integram”.

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Isso quer dizer, portanto, que os valores medios

dos canaviais. Muitos escravos indígenas foram capturados nos

anuais das chuvas podem ocorrer em um só mês, proporcionando

primeiros anos de povoamento, como também foi observado por

assim uma escassez de água nos demais meses do ano. A região

Mata-Machado.

nordestina do rio, como se sabe, é a mais localizada no polígono

O rio São Francisco, apesar de momentos de grande isolamen-

das secas. Imperam ainda fortes interesses coronelistas na região

to, teve momentos efêmeros de expansão econômica. Durante a

que padece de uma eficaz administração pública – outro fator que

guerra da Independência e guerra de secessão norte-americana,

corrobora com a seca.

a região do vale exportou algodão para a Inglaterra, e, durante o

O relatório do governo aponta também para o problema do

período aurífero o vale rompeu com o isolamento econômico tão

assoreamento: uma das principais causas da degradação do rio.

manifesto nessas paragens até os dias de hoje. Mata-Machado

Como foi citado, boa parte da matas ciliares foi arrancada para fi-

também trata deste assunto em sua obra história do sertão noro-

nalidades várias, causando o desmoronamento das encontas para

este de Minas Gerais.

dentro do rio. Ainda, em razão da atividade agrícola, as nascentes

O vale, no decurso de sua história, passou por várias fases,

se degradam violentamente, contribuindo para a diminuição do

mas, um período que é importante ser rememorado é quando co-

fluxo de água.

meçaram a construir as barragens na década de 40: houve uma

A região, apesar dos inúmeros problemas de ordem ambien-

forte mudança da dinâmica das águas que corriam no Velho Chico

tal, é uma das maiores fontes geradoras de energia hídrica do

e o volume do rio, que antes era controlado pelas secas e enchen-

país, energia esta que é também exportada.

tes, passou a ser controlado pelo homem. Durante todo o seu

O tráfico negreiro no vale, os períodos de isolamento e as barragens.

percurso hoje é possível ouvir o quanto a construção das barragens afetou a vida dos peixes, do rio e da população ribeirinha. No século XX, são feitos inúmeros projetos desenvolvimentistas

De acordo com Bernardo Mata-Machado, na segunda me-

que, muitas vezes, sequer foram concluídos. Na porção nordesti-

tade do século XIX - além da cultura agropastoril que também

na, há barragens que simplesmente não foram concretizadas pelo

existia na zona açucareira nordestina e a lavoura cafeeira - a eco-

Governo, deixando ares de decadência.

nomia são-franciscana contava com algumas regiões de extração

A natureza foi o bem mais fiel para com o sertanejo desde

aurífera, como o município de Paracatu. Durante determinado

os primeiros anos de dominação territorial e política. Esta sempre

período, a mão-de-obra africana era utilizada ali, e em Januária,

tinha algo a oferece ao povo do sertão, mesmo com todas as di-

nos engenhos de cana. A estrutura escravocrata nesses lugares

ficuldades que foram aparecendo devido à intensa ação humana

demandava a atividade econômica do tráfico negreiro que, atra-

que este rio sofreu durante a construção de sua história.

vés das águas do rio São Francisco, trazia uma matriz étnica negra

Indaga-se, então, acerca dos prumos do Rio São Francisco:

bem marcante em alguns lugares do vale, sobretudo na região

Quais os rumos para o tão importante e histórico rio que desponta

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nos projetos do Governo Federal: revitalização ou transposição? São, certamente, duas discussões distintas que o Governo Federal teima em entoar com o mesmo tom, infelizmente.

1

Citação extraida do livro São Francisco: o rio da unidade; a river

for unity, publicado em parceria entre a empresa Mercedes-Benz do Brasil com a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. 2

Teodoro Sampaio. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

Expedição que originou o livro, realizada entre agosto de 1879 e janeiro de 1880. 3

Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Publicado

em 1972. 4

Geraldo Rocha. O Rio São Francisco: fator precípuo da existência

do Brasil. Publicado a primeira vez 1946. 5

Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-

nas Gerais. Publicado em 1991. 6

Caderno da Região Hidrográfica. Ministério do Meio Ambiente

(MMA). 2006. 7

Ibidem, pag 70.

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Três Marias: aqui o rio corre gordo, represado

Felipe Chimicatti

“ São cinco povos no São Francisco - mineiros, baianos, sergipanos, alagoanos e pernambucanos, mas as mesmas características na luta e no sofrimento.” Norberto Soares



Três Marias acumulou no decurso de sua recente história uma

lizada”, pois para ele “em Minas, mais do que em qualquer outro

série de características peculiares: ali o Velho Chico corre gordo -

Estado, prevalecia à mesma mentalidade dos tempos da República

em formato de lago -, move-se calado em direção a Pirapora. Mas

Velha”. Por essa razão, JK “não queria construir estradinhas de

se esse rio falasse (de certa maneira fala, embora língua própria,

terra ou as ridículas casinhas de força, mas obras que atingissem

de verbetes naturais) – quer dizer – se ele falasse em português

o imaginário, o ego, a sensibilidade, a emoção das pessoas”. 1 Em

claro, sertanejo, falaria de histórias imemoráveis: falaria dos lusi-

1961 a barragem estava pronta e se fazia enquanto uma das maio-

tanos chegando às suas barbas em 1501, falaria dos cinco estados

res do gênero em todo mundo. O francês Allan Cullen, autor de

que singra, contando meticulosamente a brecha de terra na qual

um interessante livro escrito em 1964 - sobre a história das barra-

fileta, falaria de suas dores, obviamente, dizendo impetuoso dos

gens - chamado Rios Prisioneiros, escreveu o seguinte:

metais que lhe pesam o fundo, dos esgotos caídos sem tratamento, do homem e de sua mão de dois gumes: de carícia e de chibata, falaria dos seus cílios frondosos arrancados sem dó na moto serra de som agudo rasgado, falaria, ainda, da sua vivacidade, tentando ser extinta pelo tal assoreamento, aquele reflexo triste da terra que amontoa sobre sua lâmina de água; e sua calha vai se alargando e sua potência minguando, minguando, minguando... Se o rio falasse, bradaria. Inauguração da BR-040; construção da barragem de Três Marias – umas das maiores do gênero nas proximidades do seu tempo, represando água para gerar energia (e haja progresso!), controlar a vazão de um gigante (o Velho Chico), irrigar plantações e permitir navegabilidade; chegada da Companhia Mineira de Metais (CMM), hoje Votorantim Metais (VM); elevadíssimo capital especulativo; PIB per capta em 2007: R$ 42.000 (o 65º frente aos mais de 5.000 municípios brasileiros). Em Três Marias a história começou nas imediações do ano de

Para executá-la [a barragem] foi preciso erigir no local (...) uma verdadeira cidade, onde se pudesse abrigar uma população de cêrca de 10.000 pessoas. Assim foram construídos além das residências e alojamentos, todos os demais prédios para as instituições de uma cidade normal, tais como escola, hospital, cinema, igreja, armazéns, frigoríficos, clubes, etc. No auge da construção, trabalharam diretamente em Três Marias 4.000 pessoas aproximadamente, usando um parque de equipamentos dos maiores já empregados no Brasil, principalmente quanto a equipamento de terraplanagem e solda. As fases críticas da construção foram as de desvio do rio e a de fabricação e montagem de 2.069 metros de tubulação de aço de 6,60 metros de diâmetro. A tubulação foi toda fabricada no local, em instalações apropriadas que permitiram, em 11 meses, construir 298 secções de tubos, com 36 quilômetros de solda, inteiramente controlada por raio X. 2

1956, com Juscelino Kubtischeck, presidente brasileiro responsável

Na ocasião da construção, ainda foram atingidas pelas inun-

pela audaciosa campanha de enfiar 50 anos de progresso em cinco

dações sete cidades: Morada Nova de Minas, Biquinhas, Paineiras,

(antes o lugar era um vilarejo de nome Barreiro Grande). JK era

Pompeu, Martinho Campos, Abaeté e São Gonçalo do Abaeté. A

homem sisudo; dizia que Minas Gerais se constituía de “ilhas de

usina gera hoje 396 megawatts responsáveis por abastecer, em

rebeldia desenvolvimentista no mar morto da pasmaceira genera-

grande medida, o norte de Minas; tem 2.700 metros de extensão e

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A barragem de Três Marias construída no ano de 1956, na gestão Juscelino Kubitscheck. Na época de sua construção se caracterizou enquanto uma das maiores do gênero em todo o mundo. Hoje é responsável pela geração de 396 megawatts que abastece, em maior medida, o norte de Minas.


75 metros de altura. Usualmente este grande lago que se formou

exatamente à margem, muito próxima das águas). Acontece que

é chamado de Mar de Minas - espécie de substituto à frustração

essa se mostrou imprópria, apresentando em pouco tempo vaza-

criada pela extensa territorialidade do Estado que não pode ver o

mentos residuais; e pior: foi construída em cima de três nascentes

mar, exceto no cume do Pico da Bandeira, no limite com o Espírito

e duas veredas. Agora a empresa esta em processo para constru-

Santo. Notadamente não é o bastante.

ção da terceira barragem – a barragem Murici. O rejeito ainda hoje

Os dores do São Francisco na ótica de um dos pescadores: o seu Norberto

está bem à margem do rio; o que o seu Norberto enfatizou como o “cartão postal negativo de Três Marias”. Para ele “o maior problema do rio se chama Votorantim metais”, entretanto, retirá-la de lá

Casa rústica de ribeira repleta de gente. Cabeça de dourado

é parte de uma grandiosa polêmica: as pessoas dependem da em-

empalhada na parede, retratos do mérito pesqueiro: aquela foto

presa e a cidade de certa maneira vive em torno da receita gerada

tirada com um peixe imenso, comum de se ver nas margens do

por ela. Para se ter uma idéia, a Votorantim esta presente em mais

rio, espécime em troféu. Seu Norberto Antônio, 59 anos, é um

três países: Estados Unidos, China e Peru; é a maior produtora

negro aprazível, de serenidade no olhar e tranqüilidade no falar.

de zinco da América Latina, está também entre as cinco maiores

Fala seguro do São Francisco porque o conhece profundamente.

produtoras do mundo. Emprega atualmente 3,5 mil pessoas e, em

É homem de foro político, já viajou para vários estados e países

2006, produziu 402,5 toneladas de zinco. E o seu Norberto nos

como o Canadá e a Itália; tudo através da relação com o rio. Quando

disse que no seu terreno não era possível furar um poço artesiano

indagado do atual estado do Velho Chico, entristece: “o rio sempre

em decorrência da contaminação do lençol freático.

sofreu, as coisas sempre foram tiradas dele”.

A empresa, por sua vez, afirma categoricamente que não é a

Atualmente, a região de Três Marias está perplexa por um fato

culpada. Diz ainda que ainda que a mortandade se estende acima

que vem se estendendo desde 2004: a mortandade dos peixes.

e abaixo da empresa no curso do rio (a montante e a jusante),

Aparecem mortos, sobrenadantes em lâmina de água, uma enor-

mostrando que, mesmo antes do peixe passar pela região de Três

midade deles anualmente. Tem épocas que se intensificam as

Marias, já se verificam eventuais mortes. Leonardo Mansur, asses-

mortes, tem épocas que diminuem. Entretanto, o peixe vem mor-

sor de comunicação da VM, disse que a mesma, antes das legisla-

rendo e para explicar melhor a condição das águas é preciso falar

ções ambientais, jogava sim o rejeito no rio, entretanto se tratava

da Votorantim Metais (VM). Sabe-se que a empresa, até 1983,

de uma política nacional, ou seja, um modus operandi das empre-

lançava seus rejeitos in natura no córrego Consciência, tributário

sas brasileiras. Agora que as resuluções existem, a VM cumpre

do Velho Chico. O rejeito, repleto de metais pesados (sobretudo

criteriosamente cada uma delas. Ainda desenvolve um montante

zinco), depositou-se no fundo do córrego, sendo vez ou outra re-

significativo de pesquisas para conseguir se desfazer da alcunha

volvido e lançado no rio por intermédio das chuvas. A empresa já

de culpada: acaba-se com o fato, acaba-se com a denúncia. A

construiu uma segunda barragem, longe da calha (a primeira ficava

construção da barragem Murici ainda está orçada em 300 milhões

19


Ponte da BR-040 que atravessa o Velho Chico no trecho de TrĂŞs Marias



de reais, obedece à determinação de 200 m de qualquer curso hídrico e ainda conta com duas camadas impermeabilizantes. Ela ainda tem vida útil de 20 anos para depósito do rejeito via rejeitoduto; uma espécie pastosa que será lançada até o deposito de rejeito por intermédio de uma tubulação específica. Acontece que qualquer metal pesado, de qualquer procedência, influi sobremaneira na qualidade da vida aquática. Ou seja, mesmo com políticas corretivas, o rio veio sofrendo ferozes empreitadas que lhe desregula a lógica biológica. Por mais que as empresas e as prefeituras tentem se isentar de uma pressuposta culpa, é inerente à atividade industrial a poluição. A mortandade, por mais que seja aspecto duvidoso e amplamente negado pela VM, existe, mesmo que no imaginário do cidadão ribeirinho. Eles falam disso todo o momento, eles acreditam que isso acontece, eles vêem os peixes mortos quando vão ao rio: a morte dos peixes, por mais nebuloso que possa parecer, é sem dúvida um sintoma do Velho Chico e, de sintomas, a sociedade também se torna enferma. A ciência simplesmente não tem dado conta da degradação do meio-ambiente... E isso é uma constatação mundial. A gerente de Gestão da qualidade do solo da Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente), Rosângela Gurgel Machado, enfatiza a complexidade da questão. Existem alguns estudos sobre contaminação dos solos e das águas, mas, de maneira geral eles dizem pouco acerca das medidas mais indicadas a serem tomadas. Por exemplo, com relação à remoção completa dos resíduos, não se sabe ao certo se é mais indicado retirá-los ou não. Caso se retire, as conseqüências podem ser mais impactantes do que deixá-los (apesar de não se saber ao certo). “Boa parte das retiradas residuais no Brasil atendeu fins quantitativos e não qualitativos”. Os rejeitos aumentam muito o volume das águas, mudando

22



invariavelmente o curso dos rios, rios estes que por vezes cortam

ainda preliminares e não apontam para uma resposta. Uma per-

cidades; nestes casos se faz necessário remediar as enchentes.

cepção minha reiterada pela do técnico da VM - o biólogo João

Rosângela também afirma que, a partir da construção da barra-

Eudes - é que ao invés da população procurar um culpado, um

gem Murici – que esta em processo de licenciamento pela Feam

álibi para os problemas socioeconômicos, deveria se deter sobre

- o córrego Consciência será limpo. “Não faz sentido remover os

a busca de alternativas aos problemas eminentes; e isso vale para

resíduos antes da construção da barragem; os vazamentos conti-

todos os cidadãos brasileiros, afinal os recursos hídricos são desti-

nuariam”. Ela ainda faz menção ao comprometimento da empresa

nados à vida, e os esforços particulares influem sobremaneira em

com relação às designações do Estado. A Votorantim acompanha

sua conservação. Norberto, por exemplo, acredita na importância

“rigorosamente as condicionantes” e admite a existência de um

da educação ambiental a longo prazo. Mas certamente existem

problema de contaminação. A empresa ainda financia fortemente

medidas paliativas funcionais. Educar, entretanto, é o passo largo

o setor de pesquisa, embora em nosso gracioso sistema o lucro se

de envergadura eminente.

amontoe delicadamente sobre as condicionantes ambientais, há,

Por mais que a discussão mais pertinente se paute na recons-

aí, uma lógica inescrupulosa que garante um bom fio condutor à

trução da relação com o rio, ainda é impraticável perceber os

publicidade institucional – opinião minha, vale salientar.

altos índices de metais pesados nas águas do Velho Chico. Erida F.

Outro problema complexo diz respeito ao lançamento de

Araújo Silva, pesquisadora da UFSCar, constatou em sua diligente

efluentes no rio, mesmo com a Estação de Tratamento de Esgoto

pesquisa – no período chuvoso - um percentual de zinco 22 vezes

(Ete) sendo inaugurada somente este ano. Toda a carga poluidora

acima do nível em que se esperam efeitos negativos ao ambiente

do esgoto da cidade recai sobre o córrego Barreiro Grande, outro

(18,466 mg/kg na foz do córrego Consciência), além da presença

tributário do Velho Chico. “Por vezes, a quantidade de esgoto é

elevada de cádmio e chumbo. Para se estipular esses valores foi

maior que a de rejeito industrial”, aponta Rosangela. A Ete, entre-

necessário lançar mão de um padrão internacional canadense,

tanto, será dedicada somente ao lixo residencial, sem dar aporte

pois no Brasil não existe resolução referente a esse tipo de análise

ao lixo industrial.

(SEL, Severe Effect Level, definido pelo Ministério de Meio Ambiente

Existem várias teses que tratam do tema dos metais. A Uni-

de Ontário - uma das províncias do país).

versidade Federal de São Carlos (UFSCar) fez alguns estudos na

Por mais que a ciência lance olhares diversos sobre a região,

região, embora à causa pontual da mortandade seja ainda hoje

repleta de condicionantes, a frustração da população parece pa-

nebulosa. É muito recorrente ouvir falar da instituição na região

decer com os peixes. A Cemig (Companhia Energética de Minas

de Três Marias. Roberto Rodrigues, Secretário de Meio Ambiente

Gerais), outra gigante no território de Três Marias, começou a

da cidade, disse-nos que existem ainda estudos de uma ONG ca-

desenvolver um interesse projeto na jurisdição estadual que se

nadense (World Fishery Trust) responsáveis por analisar o proble-

iniciou no município: o projeto Peixe Vivo. Segundo Marcelo

ma da ótica da genética molecular. Mesmo assim, os estudos são

Micherif, assessor de comunicação da empresa, a empreitada

24


se baseia no tripé: programas de conservação, pesquisa e envol-

cação formal e atingi suas próprias vidas de maneira pungente: o

vimento da comunidade. Atualmente a empresa abre parte de

peixe representa vida nestas paragens.

seus procedimentos técnicos à comunidade e realiza importantes peixamentos (assim como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, CODEVASF), ou seja, criação de peixes em cativeiro para repovoamento da ictiofauna. Infelizmente, essa mobilização dialógica entre empresa e cidadão ribeirinho se deu a partir uma terrível fatalidade: a mortandade de 2007. Houve um acidente nesse ano que matou aproximadamente cinco toneladas de peixes, tudo em razão de uma manobra equivocada da própria empresa. Ao fechar as comportas, a usina parou de verter água, formando uma espécie de bacia nas imediações da represa. Ali se acumulou um imenso número de peixes que não teve como sair; os peixes morreram por falta de oxigênio. Em seguida, numa ten-

A pesca em Três Marias Um detalhado relatório do Ibama acerca do desembarque pesqueiro na bacia hidrográfica do Rio São Francisco aponta: O custo do material, consumido para a pescaria (gelo, combustível) é apontado como alto; os equipamentos de pesca (redes, barco, motor) também custam caro, e por sua utilização freqüente e intensa, ou pelas próprias condições naturais, sofrem (...) um desgaste que contribui para diminuir ainda mais a rentabilidade da pesca. Outras dificuldades são citadas como maiores empecilhos à pesca, as leis, as restrições à atividade, e a fiscalização. 3

tativa de interromper a morte dos cardumes, a Cemig reabriu o

Sobremaneira, Três Marias ainda é uma das regiões mais privi-

vertedouro. Os peixes seguiram para a área da turbina seis que,

legiadas de toda a bacia do S.Francisco, seja em comparação com

em razão de um problema técnico, não pôde ser ligada; desta feita

qualquer outro dos quatro Estados que a compõem. Norberto

morreram mais toneladas. Foram encontrados peixes mortos a

disse-nos: “à medida que se vai descendo o rio, a tendência é a

40 quilômetros para baixo da represa. Seu Norberto só consegue

pesca ir se tornando mais precária”. Quão mais ao norte, mais es-

comparar a tragédia ao dia da construção da represa, em 1961,

sencial vai se tornando o correr do S. Francisco, mais necessária

onde “até onça morreu afogada”. Norberto diz ter visto peixes

se faz à água, necessária em ritmo de urgência, pois de demasiado

sobrenadantes descendo o rio durante uma noite e um dia inteiro.

seco o corpo perece, e isso se sente quando o sol penetra a epi-

Para cada metro quadrados de água, dois ou três peixes boiando.

derme e agride. De acordo com um estudo de Norma Valência, da

Aproximadamente metade dos peixes era da espécie dourado,

UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e de outros pesquisa-

bastante apreciada na região. Para Norberto, o dia mais triste da

dores: 50% das famílias dos pescadores do alto-médio S.Francisco

sua vida. A CEMIG recebeu a maior multa por danos ambientais de

têm renda per capta de até meio salário mínimo, na medida em

sua história, cinco milhões de reais. Para Micherif, “faltou diálogo

que somente 19% têm tem renda per capta de um salário mínimo

entre os ribeirinhos e a empresa até o ano de 2007”, no entanto, a

ou mais. Em relação à escolaridade, 28% nunca freqüentaram a

relação da empresa por ora parece mais transparente. Agora, no

escola, 65% têm até quatro anos de escolaridade e apenas 9% têm

imaginário dos pescadores, o problema técnico ultrapassa a expli-

escolaridade acima do antigo primário completo. O reflexo disso é

25


A pesca em Três Marias é, como nos disse o pescador Norberto, uma das mais privilegiadas de todaa Bacia do São Francisco. Na medida em que o rio vai atingindo suas cercanias nordestinas, a tendência é a atividade ir se tornando mais precária e cada vez mais essencial à vida de ribeira.


a conglomeração dos pescadores: usualmente eles se organizam

o peixe. Certamente o faz por lazer, embora não possa criticar

em grupos, nos bairros mais afastados. São figuras humildes que

o pescador que se enquadre nos parâmetros mínimos impostos

necessitam da pesca invariavelmente para a subsistência de suas

pelas legislaturas federais e estaduais.

famílias. Prova disso é que menos da metade dos pescadores -

Outra questão complexa diz respeito ao período de defeso:

ainda de acordo com o estudo de Valêncio publicado em 2001 - tra-

trata-se da época do ano – normalmente entre novembro e feve-

balha exclusivamente com a pesca. Normalmente desenvolvem

reiro (época de chuva), porém passível de ser determinado pelo

os mais variados ofícios para complementar a renda; ofícios como

órgão estadual competente – em que os peixes de piracema se

o de garçom, mecânico, entregador de gás, comerciante de peixe,

reproduzem. Piracema significa em tupi subida do peixe. Para

guia turístico para pesca amadora, pintor ou marceneiro.

4

isso, eles sobem vários quilômetros para se reproduzirem nas

Ainda a se aglutinar à constante labuta dos pescadores,

cabeceiras dos rios e, em detrimento do cansaço, tornam-se pro-

existem inúmeras forças contrárias ao exercício sustentável da

pensos à predação. Assim - na época de piracema - o pescador

profissão. Por exemplo, o truculento embate entre pescadores

licenciado nas respectivas Colônias dos Pescadores tem o direito

amadores e pescadores profissionais artesanais gera conflitos.

a um salário mínimo por mês pago pelo Ministério de Agricultura e

A categoria que não depende da pesca para subsistência ataca a

Pesca através do FAT (Fundo de Amparo ao trabalhador) durante

pesca profissional artesanal por julgá-la predatória. Parte dos pes-

a redução da atividade pesqueira. Marcelo Coutinho, gerente de

cadores profissionais, inclusive, evita a pesca nos finais de semana

fauna aquática e de pesca do IEF (Instituto Estadual de Florestas),

por não se sentir confortável. Segundo Mario Olindo Tallarico

responsável pela fiscalização da região de Três Marias, admite que

de Miranda, analista ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro de

o salário-desemprego tem que melhorar, entretanto não vê a ati-

Meio Ambiente), “dentre todos os motivos de diminuição do

vidade pesqueira na região enquanto ofício plenamente sustentá-

peixe e da atividade pesqueira, a pesca é a menos impactante”.

vel, longe disso: “só no ano passado apreendemos 14 quilômetros

Ainda acrescenta, “existem uma série de atividades muito mais

de rede e 700 kg de pescado fora das determinações legais”, en-

importantes para a depressão dos estoques pesqueiros do que a

fatiza. Marcelo ainda afirma que o órgão tem diversos problemas

pesca; a construção de barragens é a pior delas, a introdução de

de fiscalização e que parte dos pescadores age de maneira inco-

espécies exóticas, talvez seja a segunda pior”. O tucunaré, como

erente, recebendo o salário-desemprego sem exercer o ofício de

colocado por Tallarico, é um caso desses. Trata-se de uma espécie

pescador. Conta ainda que na última fiscalização foram apreendidas

de origem amazônica, ou seja, de outra bacia: não existem pres-

quatro armas de fogo. “Alguns pescadores extrapolam a permis-

sões biológicas para o controle desta espécie predadora no Velho

sividade da atividade acreditando estarem lucrando, mas, com

Chico. Outro ponto que provoca debate é dos equipamentos. Na

isso, acabam inibindo a sustentabilidade da pesca: pescam exem-

medida em que a pesca amadora critica a profissional, abaste-

plares repletos de ovos prontos para desovar” pontua. Marcelo

ce-se de equipamentos cada vez mais sofisticados para capturar

ainda acredita que a categoria é muita desunida: “eles vêem-se

27


enquanto concorrentes uns dos outros, lutando em uma compe-

- no período de cheias - os alevinos (filhotes desses peixes) se

tição inter-específica”. Hoje parte dos pescadores se comunica

encaminham para as lagoas marginais. As lagoas marginais são

por celular para informar os companheiros da fiscalização (vale

imensos berçários de peixes que em tempos de cheia se ligam ao

salientar que esses casos existem, mas não se pode em hipótese

rio pela inundação do mesmo; nos tempos de seca, no entanto,

alguma generalizá-los). A conscientização parece ser a saída mais

isolam-se dos rios. Esse isolamento constitui uma menor ameaça

eficiente, pois, as medidas paliativas surtem efeitos muito especí-

aos alevinos no período inicial da vida por razões ecossistêmicas

ficos. Recordo que, quando Norberto nos convidou a passear pelo

e, quando já estão suficientemente jovens, retornam ao rio por

rio em seu barco, alertou-nos das câmeras. Era necessário filmar

intermédio de outra cheia: daí decorre a importância da estabili-

e fotografar com parcimônia ou senão os pescadores poderiam

dade dos ciclos hidrológicos. Caso ocorram poucas cheias, a po-

se indignar. A determinação legal para o pescador que for pego

pulação dos peixes de piracema inevitavelmente diminui. Essas

pescando de forma irregular é clara: apreende-se o material pes-

lagoas estão desaparecendo por razões antrópicas: pastagens,

queiro e os peixes; em seguida aplica-se uma multa. Como boa

plantações de cana, uso indevido das suas águas para fins comer-

parte dos pescadores não tem conta em banco ou qualquer filia-

cias: tudo isso vai suprimindo a vida aquática no rio S. Francisco.

ção financeira formal, a multa entra para a dívida ativa e possivel-

A região de Três Marias à Pirapora ainda é o maior nascedouro e

mente nunca será paga: sequer coagi o infrator que, como disse

reduto de peixes do Velho Chico. Com o desaparecimento dessas

Marcelo, “volta ao mesmo lugar que foi apanhado para cometer

lagoas na região, os impactos se perpetram indefinidamente pelo

a mesma infração”.

curso da vida no rio.

Dos peixes e dos limites legais da pesca passando pelas lagoas marginais

Com relação às proibições, o IEF (Instituto Estadual de Florestas), responsável pela fiscalização da pesca, dispõe da legislação estadual pesqueira e, recorrentemente são criadas portarias

Dourado, cangati, cascudo-preto, corvina, curimatã-pacu,

para adequar a conjuntura pesqueira à legislação vigente. Existe,

acará, matrinxã, sarapó, piranha, traíra, tucunaré, surubim: das e 173

porém, a legislação federal destinada à pesca. Como explica

espécies catalogadas na porção mineira (12% do total encontrado no

Marcelo Coutinho, gerente de fauna aquática e de pesca do IEF, a

Brasil), certamente há predileções pesqueiras. No caso da porção

legislação estadual tende a ser mais restritiva que a federal, pois

mineira do Velho Chico, o dourado e o surubim são muito aprecia-

a federal não leva em conta as características particulares de cada

dos em detrimento dos demais peixes: seu elevado preço de venda

regionalidade. No caso de Minas Gerais, esta legislação estadual

5

atinge R$ 8,11/kg e R$10,10/kg , respectivamente, motiva a captura

existe e é mais restritiva. Para se ter uma idéia, hoje é proibida

por parte dos pescadores, obviamente por razões de lucratividade.

a pesca no rio Pandeiros, importante afluente do Velho Chico –

Como se sabe, ambos os peixes – como vários outros – são

um valioso berçário natural de peixes. A legislação federal não

peixes de piracema: necessitam subir o rio para desovar. Assim

contempla essa especificidade, embora a estadual o faça: uma

28


forma de setorizar as particularidades. Existe também o tamanho

nores curvas, nas menores turvas falanges de água que lhe en-

mínimo para captura dos peixes, variando de acordo com cada

tregam o peixe como alimento. O ribeirinho sabe dos perigos de

espécie. O dourado e o surubim têm limites de no mínimo 60 e 80

arriscar, mas, em despeito a isso, vê o centenário Chico acenar na

cm respectivamente. Os demais peixes têm limites na ordem de

sua mais suntuosa envergadura, de rio grande e brasileiro que é.

35 cm, aproximadamente.

Seus danos são nossos, sua clara forma de reivindicar pede cuida-

É proibido pescar a menos de 300 metros à montante e à ju-

dos sinceros, pois senão o “rio da unidade nacional” perderá seu

sante de barragens e usinas hidrelétricas (na época da piracema,

cerne vigoroso de único imenso corpo d’água brasileiro da cabeça

em 2008, a distância se estendeu para 1.000 metros); a menos de

aos pés.

200 metros de corredeiras, cachoeiras e confluência de rios (na piracema a distância também se estendeu para 1.000 metros) e nas lagoas marginais a pesca é proibida durante todo o ano. Ainda

Andrequicé e a confluência sertão,literatura: Manuel Nardi e João Guimarães Rosa

no período de defeso em 2008 foi proibido pescar a menos de 500

“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra

metros de raio da confluência e desembocadura de rios, lagoas,

doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se

canais e tubulações de esgotos.

condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.

Para esses fins, na piracema, a legislação estadual delimitou

Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava

para a represa de Três Marias um limite para a pesca de cinco

muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá,

quilos mais um exemplar, na medida em que fora da piracema o

o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei,

limite sobe para dez quilos mais um exemplar. É ainda proibido

umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declara-

reter peixes sem couro ou escama - ou seccionados - para que a

do, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu

fiscalização possa ser feita. Redes com tamanho inferior a 100 mm

tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e

também são proibidas no reservatório de Três Marias medida que

eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo

impede que os pequenos peixes sejam apanhados, postergando

o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim dizendo, meu cora-

a captura dos mesmos em fases mais adultas. Existem ainda licen-

ção bateu no compasso do mais certo (...) Sofri o grave frio dos

ças para a pesca desportiva, a despesca captura de espécimes

medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem,

para fins de manejo ou emergências ambientais -, pesca científica

depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.

e pesca subaquática. Todas as categorias precisam ser registradas

Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do

junto ao órgão competente, no caso de Minas Gerais, o IEF.

6

mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem

Mas, como gosta de dizer Norberto, “os guardiões do Velho

em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa

Chico somos nós”... O pescador é sim a carícia que perpassa pelo

água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,

azul do São Francisco e, como seu amante, conhece-o nas me-

rio a dentro — o rio. 7

29


Obra do artista João Wilson (à esquerda) que compõe o memorial Manuelzão, em Andrequicé. (Acima) detalhe da pedra inaugural do memorial. O museu foi noutros tempos a casa do próprio Manuel Nardi. Hoje o local compõe uma coletânea com as memórias do vaqueiro, sobretudo àquelas ligadas ao contato com João Guimarães Rosa.


João Guimarães Rosa, o mesmo qual havia dito, por ocasião

O município, desde então, vangloria-se desse elo histórico. Foi

do falecimento de um colega do curso de medicina, que “as pes-

criado em 2005 um interessante circuito turístico dedicado a João

soas não morrem, ficam encantadas”; deu ao sertão motivação

Guimarães Rosa, o primeiro do gênero onde a rota se baseia em li-

lírica. Esta mesma frase seria repetida 40 anos depois na ocasião

teratura, podendo ser trilhados os caminhos descritos pelo mineiro

da posse na Academia Brasileira de Letras. Três dias depois do dis-

de Cordisburgo em sua poética sertanejista. Compõem o circuito:

curso, no ano de 1967, João veio a falecer sozinho em seu aparta-

Araçaí, Buritizeiro, Cordisburgo, Corinto, Curvelo, Felixlândia, Ini-

mento em Copacabana, com 59 anos.

mutaba, Lassance, Morro da Garça, Pirapora, Presidente Juscelino,

Andrequicé, cidade pertencente ao município de Três Marias,

Três Marias e Várzea da Palma. Em Andrequicé - distrito de Três

ganhou notória visibilidade depois da estreita relação fundada

Marias - existe o Memorial Manuelzão, um museu sediado na casa

por Rosa e Manuel Nardi. A popularidade intelectual da obra de

em que Nardi morou durante a sua vida. Nele estão instrumentos

Guimarães foi tamanha que Manuelzão — personagem da litera-

do vaqueiro bem como cartas de Guimarães. A estrutura ainda pre-

tura rosiana — fundiu-se a Nardi: hoje praticamente são a mesma

servada da residência do curioso vaqueiro está à disposição dos visi-

pessoa. Os dois se conheceram na ocasião de uma cavalgada de

tantes. Convenientemente, todo ano acontece na cidade a Festa do

dez dias pelo sertão mineiro — da fazenda Sirga, em Três Marias

Manuelzão: um evento cultural que tende a conglomerar os turistas

à fazenda São Francisco, em Araçai. Venceram junto a um grupo

em torno da riqueza do sertão e das suas particularidades, partindo

de cavaleiros 240 quilometros com 198 cabeças de gado. Para

da obra de Rosa. A cidade é pequena, tranquila, repleta de verde e,

Manuelzão, certamente, uma caminhada agradável pelo ínvio

em suas imediações, existe uma série de veredas (vegetação alagada

sertão, para Rosa, uma descoberta repleta de percalços. Na pri-

típica do sertão, fundamental à vida ne região que ilustra o título de

meira manhã - como narra o próprio Nardi — Guimarães se abs-

uma das mais notórias obras do escritor: Grande sertão: veredas). Em

teve da dose de aguardente e da feijoada com toucinho e carne

decorrência da degradação ambiental, elas estão se perdendo, so-

seca servida logo pela manhã; nos dias subsequentes, o literato

bretudo em razão das plantações de eucalipto destinada a diversos

embarcou na alimentação, pois o sertão requeria uma energia que

fins, incluindo a atividade carvoeira. Manuel dizia “nada gosta de eu-

os pães com café e leite não poderiam dar. Guimarães ainda nutria

calipto”, e de certa maneira a destruição das veredas simboliza isso.

o particular hábito de trazer em suas mãos cadernetas que se en-

O curioso morador de Andrequicé morreu em 05/05/1997 —

chiam com o passar dos dias e, sempre vinham penduradas ao seu

exatos trinta anos depois de Guimarães — e deixou, além de uma

pescoço. Dali saíram as anotações que constituíram o substrato

admiração pela sua sinceridade sertaneja, um legado cultural que

de sua obra literária, incluindo a figura do Manuelzão. Seu inte-

notadamente não se encerra na obra literária de nenhum escritor,

resse inicial nessa cavalgada consistia em ouvir os “causos” dos

mas sim na diversidade da identidade cultural do povo brasileiro: A

trovadores sertanejos, coisa que Manuelzão ficou encarregado de

obra de Rosa é um fascinante olhar sobre isso, uma das razões de

providenciar na região; contadores de estórias.

sua profundidade. Em momento nenhum ela se propõe a inventar

31


um universo novo e inesperado, antes pelo contrário, propõem-se

endereço: www.almg.gov.br/revistalegis/revista33/maria33.pdf

recriá-lo e recontá-lo pela ótica de um erudito que soube transitar

2

magistralmente pelo reino da palavra — seja ela oral ou escrita. Guimarães - para se deixar registrado — disse a uma prima por ocasião de uma entrevista que possuia as seguintes aptidões linguísticas: Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração. 8 Formado em medicina, deu-se à diplomacia quanto antes pôde. Morou em diversos países, incluindo a Alemanha do período nazista. Foi um facilitador da fuga de diversos judeus em conjunto com sua segunda esposa - Aracy Moebius de Carvalho -, sendo homenageados os dois em Israel no ano 1985: o nome do casal foi dado ao bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso à Jerusalém. Falar de Andrequicé sem falar de João Guimarães Rosa — o João Rosa, como usualmente o chamava Manuel Nardi — é de-

Rios Prisioneiros: (a história das barragens). Allan Cullen.

1964, p. 195-196. 3

Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da

Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag 45. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/ arquivos/IBAMA001.pdf 4

Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais.

(Org) Hugo Pereira Godinho e Alexandre Lima Godinho. O artigo citado foi: A precarização do trabalho no território das águas: limitações atuais ao exercício da pesca profissional no alto-médio São Francisco produzido pelos pesquisadores Norma Valêncio, Alessandro Leme, Rodrigo Martins, Sandro Mendonça, Juliano Gonçalves, Maria Mancuso, Isabel Mendonça e Silvana Felix. 5

Estatísticas de Desembarque Pesqueiro: Censo Estrutural da

Pesca em 2006. IBAMA em parceria com outros orgãos. pag 46. Disponível no endereço: http://www.sfrancisco.bio.br/ arquivos/IBAMA001.pdf 6

Para mais informações a respeito das determinações legais da

pesca bem como dos critérios da emissão da carteira de pescador, o site do IEF dispõe de tais diretrizes legais: http://www.ief. mg.gov.br/pesca.

sapropriar a riqueza da história tão grande de uma cidade tão

7

pequena que não deixa a literatura morrer, pois, como já dizia

Terceira Margem do Rio. Coleção Folha de Grandes Escritores Bra-

Proust, a única vida plenamente vivida é a literatura.

sileiros. 2008. p. 36-42. 8

1

Maria Elisabete Gontijo dos Santos. Revista da Assembleia Legis-

lativa de Minas Gerais. Edição novembro de 2008. Disponível no

32

Primeiras Estórias. João Guimarães Rosa. Extraído do conto a

Extraído da biografia do autor no site http://www.releituras.

com/guimarosa_bio.asp


Pirapora: terminal sul da hidrovia São Francisco

“ Remando vão remadores barca de grande alegria; o patrão que a guiava filho de Deus se dizia; anjos eram os remeiros, que remavam à porfia. Estandarte de esperança, Oh quão bem que parecia! O mastro da fortaleza como cristal reluzia; a vela, com fé cosida, todo o mundo esclarecia; a ribeira mui serena, que nenhum vento bulia ” Gil Vicente

Bárbara Camargo


No dia 11 de julho deixamos, por volta das 14 horas, a recôn-

começamos a entender de forma taciturna e gradativa, desde

dita Andrequicé, rodeada por veredas, e seguimos para Pirapora

Três Marias, por meio da impressionante figura de Sr. Norberto,

onde nos aportamos no mesmo dia. Digo ´aportar` porque apesar

que o rio só pode ser entendido na sua completude pela história

de estarmos de carro, o reencontro com o rio todas às vezes que

do seu povo – barranqueiro. O homem são-franciscano. É nele que

chegávamos a uma cidade do roteiro, nos causava a impressão de

reside a importância simbólica deste oceânico rio genuinamente

que estávamos atracando em um novo porto. Era como se estivés-

brasileiro. Não existe outra forma de ler o São Francisco, senão

semos viajando em uma expedição por água e não por terra. O rio

esta: ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável. Não

dificilmente saia da cabeça, mesmo quando não o víamos correr

adianta discorrer somente sobre seus problemas físicos. O emblema

pelas margens das estradas que passávamos. O primeiro clarão

do rio é também cultural; histórico. E Pirapora, por sorte, coinci-

de lembrança que tenho de Pirapora é a visão do São Francisco,

dência ou força maior, nos introduziu de vez nestas narrações.

na Avenida Beira Rio da cidade. A luz vespertina de sol refletida na

Fez vir a calhar à necessidade de busca por estas estórias e fatos,

água e algumas embarcações atoladas na areia da praia de água

que se tornaram o carro-chefe da pesquisa. Inclusive, os aconteci-

doce. Não me lembro do aspecto da entrada da cidade. Nem do

mentos que vamos narrar a seguir me fazem lembrar uma epifania

percurso até chegarmos a ‘Beira do Rio’, onde pedimos a primeira

do personagem Manuelzão, de Guimarães Rosa: “Pois minhamen-

informação, ainda de dentro do carro. A primeira memória é esta:

te: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a

O rio. A luz imperativa do sol entrando infrene pelas janelas de vidro

gente ouvia contada, a narração dos outros (...). Muito maior do que

do carro, e a primeira indagação que fizemos a uma pessoa local:

quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a

- Oi? Licença... Boa tarde! Amigo, onde tem uma pousada ba-

maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo

rata que a gente possa ficar? Depois disso, me lembro vagamente

trabalho empatoso, (...) sem soberania de sossego. A vida não larga,

deste homem com quem conversávamos se aproximando do carro

mas a vida não farta”.

parado, levantando o braço e apontando para alguma direção,

Anotei esta filosofia sertaneja no diário de viagem, durante

que não me preocupei em deter. Enquanto ele informava para o

a visita que fizemos ao museu Manoel Nardi, em Andrequicé. A

resto do grupo o que acabáramos de perguntar, eu me distraí, e

frase que estava exposta ao lado de algum utensílio do museu –

passei a observar somente a movimentação tranqüila do local e

não lembro-me qual -, protegido por aquelas redomas de vidro

o espelho d’água do São Francisco, a minha esquerda. Tudo que

fez total sentido quando a comparei à nossa própria viagem. Sabí-

veio na seqüência deste diálogo tornou-se fonte de pesquisa. As

amos desde a gênese do nosso projeto, que a incursão pelo sertão

informações sobre Pirapora que chegaram até nós, ao longo da

mineiro atrás do rio seria um trabalho ‘empatoso’. Seria um mês

nossa estada, foram profusas. Conhecemos personagens emble-

na estrada. Sem sossego. Bem como sabíamos da grandeza do rio

máticos, em apenas quatro dias de visita e nós, que procurávamos

que escolhemos investigar. Mas aquilo tudo que ia surgindo – os

o cerne dos problemas do rio, principalmente pelo viés ambiental,

relatos surpresa, os personagens extraordinários, não deixariam

34


O Velho Chico em seu percurso no trecho de Pirapora. A região é uma das mais propícias à navegação e, em outros tempos, foi imprescindível rota de transporte. “Não existe outra forma de ler o São Francisco senão ouvir a narração dos outro que tornam este rio afável”.

35


A fumaça que emerge do Benjamim Guimarães, vapor que singrou por muitos anos o Velho Chico. Hoje a embarcação se reduz unicamente aos passeios turísticos. Muito da devastação das margens do rio está associada a atividade dos vapores que em outros tempos navegavam o S. Francisco


nada daquilo fartar, nos cansar. Porque quando ouvíamos aquelas

- 30 reais. Não, não é o dia todo. Acho que são umas três horas.

narrações, o mundo (o rio) se tornava maior do que o previsto.

- E, a gente tem que fazer reserva, ou nós podemos comprar

Maior do que qualquer estafa que nossas delimitações físicas e

o passaporte lá mesmo?

psicológicas quisessem pregar. A viagem tornava-se de fato o quê

- Pode ser lá mesmo. Mas normalmente o pessoal reserva

viemos reportar: a grandeza do São Francisco.

porque vem muita gente conhecer o vapor.

Depois de termos rodado por Pirapora à procura de hospedagem a preços módicos, naquele fim de tarde de 11 de julho, - a pousada que o homem da avenida Beira Rio nos indicou não servia (era ainda cara para o nosso bolso) -, finalmente, conseguimos nos instalar em um hotel na avenida Pio XII. Enquanto aguardávamos na recepção a liberação dos quartos, reparei que na mesa onde ficava o televisor havia uma réplica (mediana), talhada em madeira, do vapor Benjamin Guimarães. O Benjamin é uma relíquia dos tempos áureos da navegação no rio São Francisco. Um tesouro

Depois disso dei um sorriso de agradecimento, finalizando a conversa. Neste momento, dois de nós quatro chegaram com o restante das malas que ainda estavam no carro. O dono do hotel chegou também com as chaves. - Nós podíamos acordar amanhã bem cedo e tentar ‘pegar’ o vapor. O que vocês acham? Ajudando uns aos outros, seguimos pelo corredor do hotel adentro, com as malas nas mãos e nas costas, discutindo a idéia de irmos conferir o vapor na manhã seguinte: dia 12 de julho.

ambulante: é o único barco movido a lenha no mundo ainda em funcionamento. Já transportou o exército brasileiro para o litoral norte do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, soube também, por meio de pesquisa, que até Virgulino Ferreira Lima – o nosso Lampião – consta na ‘biografia’ do vapor. O cangaceiro teria armado, no início do século passado, uma emboscada para saquear o vapor que seguia abarrotado de cargas para Juazeiro. A própria âncora almirantada do vapor é peculiar: a mais antiga em atividade. - O Benjamin é único em muitas coisas...

Dia 12 de Julho. Um passeio pela navegação Por volta das oito e meia da manhã, chegamos à avenida São Francisco - no cais de Pirapora. Próximo ao local onde está o Comando da Marinha. A entrada que dá acesso ao vapor situase bem em frente ao prédio abandonado da extinta Companhia de Navegação do São Francisco (Franave). Já era grande a movimentação. Aqueles que não embarcavam no vapor – ali na beira - deviam estar ali somente para ouvir o apito do Benjamin 1, e ver a

- Recepcionista, onde fica o vapor Benjamin Guimarães aqui

saída magistral daquele ancião das águas são-franciscana que nos

em Pirapora?

levaria para dar um passeio de 18 quilômetros rio acima, naquela

- Não é longe não. Ele fica na avenida São Francisco...

manhã de domingo, dentro de alguns instantes.

Amanhã mesmo tem passeio.

Quem viaja pelo Médio e Baixo São Francisco2 certamente

- E que horas são estes passeios?

ouve relatos mais cedo ou mais tarde, sobre como outrora a po-

- Cedo. Acho que por volta das nove da manhã.

pulação que morava em cidades margeadas pelo rio, desde Minas

- E... Quanto é o passeio? Dura o dia todo?

até Alagoas, recebia e se despedia com festa das barcas que o

37


rio trazia. Lembra-me as histórias que já li sobre os remeiros, que

do Vale do São Francisco’. Assim, eu, já dentro do vapor - vendo

faziam o comércio ao longo do São Francisco, antes de surgirem

lá do alto - aquelas pessoas se amontoarem ao longo do barranco

os vapores, e como a população ribeira gostava de ver a chegada

onde estava estacionado o portentoso Benjamin, tive a impressão

e a partida destas embarcações.

de estar revivendo, ainda que vagamente, o resquício daquela cul-

Os remeiros viviam do leva e traz de mercadorias para os vila-

tura barranqueira. Dos moradores que vinham correndo ver o que

rejos e províncias ao longo do São Francisco, sobretudo, durante

o rio trazia ao soar de uma corneta, de um apito ou para se despe-

os idos dos séculos XVIII e XIX. Levavam e traziam, sobretudo,

dir do barco que se soltava rio a fora. Pode ter sido só impressão,

rapadura, sal, café, cachaça, querosene e roupa em canoas e

mas aquelas pessoas ali paradas, esperando a saída do vapor, não

3

ajoujos , antes do transporte de carga em larga escala se sofis-

deviam ser somente turistas que não conseguiram um bilhete

ticar com os vapores. Preza a história que quando os remeiros

de embarque, e que por isso tiveram de dar meia volta. Eram mo-

se aproximavam de um vilarejo, apitavam uma corneta feita de

radores. Pessoas locais, observando, por simples prazer, aquele

chifre de boi para avisar que estavam chegando, e, os primeiros

personagem, aquele patrimônio histórico, prestes a iniciar outra

a aparecerem nas margens do rio e a entrarem nas barcas eram

jornada pelo rio. Parecia haver, de fato, um gesto de aporte ao

os comerciantes. Corriam para disputar os víveres, vestimentas

vapor, ao São Francisco. Ao mesmo tempo, era enternecedor ver

e artefatos que os barqueiros traziam. E, logo atrás, vinham os

lá do alto – do último andar do vapor - a vastidão do rio. Como era

4

políticos e os letrados, como conta Wilson Lins , em busca de

largo aquele trecho em Pirapora. No cenário, passageiros ainda

informações sobre as outras bandas do rio, do mundo. Em vista

em terra esperavam a liberação do fiscal de bordo para entrada

disso, os remeiros não eram recebidos com festejos unicamente

no Benjamin. Alguns cavalos pastavam próximos as beiras do cais.

por trazer o quê comer e vestir aos ribeirinhos. Eles transporta-

Chatas e outras embarcações estavam paradas do outro lado do

vam também as boas novas de outras terras. Eram os repórteres

rio. O foguista já aquecia a casa de maquinário... Lançava toras

daquele período. Com a inauguração da era dos vapores e o des-

de lenha na caldeira. A despenseira preparava os copos do bar

baratamento dos barqueiros essa popularidade se transferiu para

onde são servidas as bebidas, e o capitão, Pedro Feitosa, baiano

a tripulação das embarcações a vapor. Os tripulantes passaram a

de Juazeiro (que recusou um convite do Santos Futebol Clube,

ser os notórios do São Francisco, e uma relação estreita entre a

para seguir carreira no rio) já aguardava no seu posto, próximo ao

guarnição dos barcos e a população ribeirinha se deu. Em razão

timão, o momento de dar partida. - Como teria sido esse quadro

de, comumente, prestarem serviços a essa gente das vilas e fa-

50, 80 anos atrás? Quantas pessoas, flagrantes e histórias aquele

zendas. Trazendo e mandando recados. Levando e buscando en-

barco deve ter consignado? Um passageiro comentou de soslaio,

comendas. Indo e vindo de viagens, durante aproximadamente

enquanto eu fotografava no corredor do vapor, que durante muito

um século – tempo pelo qual perduraram os vapores no Velho rio.

tempo os vapores trouxeram muita gente refugiada do nordeste.

É daí que vem a importância dos barcos na vida social do ‘Homem

Passageiros de segunda classe. Que amontoados dividiam o espaço

38


O capitão Pedro Feitoso, baiano de Juaziro, sob o comando de Benjamin Guimarães. Trata-se do último barco a vapor da flotilha do rio São Francisco, que em outros tempos já contabilizou aprozimadamente 30 barcos. No entanto, foi somente em 2004 que a embarcação retornou ao Velho Chico.


(à esquerda) Benjamin Guimarães atracado, em fotografia noturna. (No topo da página) O foguista responsável por alimentar a fornalha do vapor. (Acima) Fotografia do barco em contraste com o rio, ao fundo: soberba paisagem.


com as cargas, companhia de léguas. - Sem o conforto daquela

mente era aquela porção sertaneja. Tudo era indício. E a viagem

viagem que gozamos numa manhã de sol. Este incidente que o

estava só começando...

desconhecido relembrou, quase numa espécie de pensamento

O Benjamin Guimarães é o último vapor da flotilha de aproxima-

em voz alta, refere-se a “descida geral. Descida do sertão e subida

damente 30 barcos que o rio São Francisco já teve, no auge de sua

6

do rio” , nos anos de 1920.

navegação. O primeiro a ser lançado foi o vapor Saldanha Marinho,

Em 1925 houve um intenso trânsito de nordestinos para o sul

inaugurado em 1871. Milagrosamente ele ainda existe. Mas o vapor

e sudeste do país. E, fora, justamente, graças ao rio São Francisco

que devia estar em algum museu ou coisa afim foi relegado à função

e seus vapores que aquele povo da seca Graciliana se deslocou

quixotesca de abrigar um restaurante na orla fluvial de Juazeiro, na

para as terras de promissão do país – para as fazendas cafeeiras e

Bahia. O próprio Benjamin Guimarães já experimentou a negligên-

as áreas industriais de São Paulo -, além de seguirem para outras

cia, permanecendo atracado no porto da extinta Franave, durante

localidades do sul e sudeste do Brasil onde o desenvolvimento

anos. Em 1995, a Capitania dos Portos de Minas Gerais o interditou

grassava, em detrimento do norte e nordeste. Regiões estan-

alegando problemas estruturais no casco e na caldeira, o quê estaria

cadas e marginalizadas do plano político “ordem e progresso”.

comprometendo a segurança da navegação do vapor. A reforma e

Pirapora nesta época foi, inclusive, o ponto final e também de

a restauração que poderiam ter acontecido, então, a curto e médio

partida daqueles flagelados que chegavam a busca de uma vida

prazos, sofreram uma delonga de uma década e somente em agos-

mais próspera. A cidade funcionava como uma espécie de posto

to de 2004 o Benjamin foi liberado da inércia em que se encontrava,

de inspeção de migrantes, no qual um grupo de médicos recebia

no porto da Franave, e autorizado a voltar às suas atividades. Três

aquela gente em uma “central” para triagem. Muitos não chega-

anos depois, a Franave – responsável por mais de quatro décadas

vam ao destino final - morriam durante a viagem por subnutrição,

pelo transporte de cargas no rio - é liquidada e suas instalações de-

diarréia e outras enfermidades banais. Os migrantes mais aptos a

sativadas em função de dívidas e prejuízos que o órgão acumulou

ingressarem no mercado eram despachados via férrea. Em com-

nos últimos anos do seu funcionamento. Obrigando a estatal a se

pensação, os retirantes que ficavam para receber tratamento mé-

desfazer de seus bens, inclusive do vapor, que foi repassado a Pre-

dico, permaneciam em um refúgio próximo a estação ferroviária

feitura de Pirapora como parte do Patrimônio Histórico do Municí-

de Pirapora, que servia ao porto da cidade. De tal sorte que de

pio. Assim, durante este meio tempo – entre a reforma e o repasse

lá mesmo – desta estação que ligava Pirapora a Belo Horizonte

-, ficara o Benjamin: estagnado e inutilizado no cais da Companhia

e ao Rio de Janeiro - partiam, rumo ao desconhecido. Depois de

de Navegação, que não tardaria a se extinguir. Dois emblemas da

‘recuperados’. Aqueles que morriam durante o percurso eram dei-

navegação fluvial do São Francisco sendo consumidos pela ação do

xados nas margens do rio, onde ocorriam os enterros.

tempo e pela inépcia dos órgãos públicos responsáveis. Aliás, desde

- Como fazia calor naquele dia! Olhei em volta e a profusão de coisas que via acontecer me dava pistas de quão fértil historica-

a tentativa de instauração dos vapores nas águas do São Francisco tudo tem sido uma mixórdia política de primeira grandeza.

41


O processo de implantação dos vapores Os vapores surgiram de uma iniciativa do governo imperial que queria utilizar o rio São Francisco e seus afluentes através de novas formas de navegação que não fossem mais aquelas rudimentares que os remeiros e barqueiros – aquela brava gente brasileira -, praticavam com seus ajoujos e canoas, a duras penas. Dom Pedro e seus contemporâneos queriam interligar e ocupar o interior brasileiro - isolado do litoral -, por meio de recursos mais avançados e eficazes que permitissem uma movimentação econômica mais expressiva no país. Para viabilizar esse plano, estu-

político e botânico. Carlos Krauss. William Milnor Roberts e Benjamin Franklin de Albuquerque Lima. Todos célebres estudiosos do rio São Francisco, que empreenderam viagens de exploração em datas e regiões distintas, do Vale são-franciscano, á mando da monarquia brasileira, para estabelecerem as condições para navegação. Halfeld foi o primeiro estudioso a produzir complexos relatórios sobre as inadequações do rio e, de certa forma, o primeiro a arruinar as expectativas do governo. Visto que, apesar de ter proposto melhorias para os trechos acidentados e encachoeirados que observou durante a expedição que partiu de Pirapora e foi até a foz – Alagoas -, entre 1852 a 1854, a principal conclusão

diosos, sobretudo, engenheiros de outras nacionalidades foram

que o engenheiro chegou foi a de que o trecho ideal para a nave-

contratados, em meados do século XIX, para estudar as caracte-

gação de barcos a vapor no São Francisco se circunscrevia a um

rísticas físicas do rio em cada uma de suas porções - alta, média

trecho menor do se esperava, que vai de Pirapora até Juazeiro,

e baixa. E com base nestes estudos se esperava propostas de

na Bahia. Menos da metade do curso total do rio. Realidade não

soluções para os eventuais empecilhos que fossem constatados

quista do ponto de vista político-econômico pelo governo. Afinal,

no curso do rio durante as expedições de reconhecimento. O go-

o rio não desemboca no mar em Juazeiro, e sim, a 720 km mais

verno conjeturava chegar a um parecer sobre as condições de navegação no São Francisco, que ele tentava aprimorar, sobretudo, com a implantação de embarcações movidas à vapor - o que havia de mais moderno até então – na segunda metade do século XIX, auge da Revolução Industrial. No entanto, é patente o fato de que o governo imperial só incentivaria esta empreitada - daria concessões e subsídios a empresas particulares para explorarem a navegação no rio - se houvesse justificativas técnicas plausí-

ao norte, em Piaçabuçu, Alagoas. O que comprometia, sobremaneira, o plano de integrar comercialmente o São Francisco, através do plano de escoamento de produtos agrícolas até o litoral, de onde seriam distribuídos para o mercado consumidor interno e também da Europa. Para piorar, a construção de estradas de ferro no Brasil, que poderia ser uma alternativa de transporte naquele momento, ligando o restante do trecho não navegável

veis que mostrassem a coerência e a viabilidade das obras e dos

até o mar, ainda era muito incipiente. Portanto, não havia como

planos de modernização, inclusive, o de trazer os tão almejados

compensar, nem mesmo a médio prazo, os trechos sem condição

vapores para navegar o rio. Assim surgiu Heinrich Halfeld - o en-

de navegação. O engenheiro, sem outra idéia indistinta, propõe

genheiro alemão que confeccionou os primeiros estudos científi-

então a abertura de um canal artificial paralelo ao curso normal do

cos que o São Francisco obteve. O francês Emmanuel Liais, também

rio que ligaria Santa Maria da Boa Vista (com grande vocação para

42


o cultivo de grãos), em Pernambuco, ao Pão de Açúcar. Medidas arquiteturais que mostram, inclusive, o quão remoto, de certa maneira é o projeto de transposição do São Francisco, hoje já em fase de concretização na parte nordeste do Brasil. Uma obra megalomaníaca, diga-se de passagem, de eficácia dúbia e, potencialmente catastrófica do ponto de vista ambiental se for mal gerida. Aliás, é problemática a síndrome de “obra faraônica” dos governos brasileiros. Porque, por aqui, as ‘pirâmides de Gizé’ ou ficam pela metade ou desmoronam antes do tempo. Mas, retornando ao São Francisco da época do Império, e ao desfecho da proposta de Halfeld – o tal canal não vingou, obviamente. Era uma obra absurdamente cara e “impraticável”, e o governo resistiu à tentação de tornar o rio navegável a qualquer custo. Foi aí que os monarcas, sem outra saída, re-vislumbraram a construção de estradas de ferro que ligariam alguns municípios nordestinos até o são Francisco. Este plano, também, faliu a médio prazo porque as empresas que se dispuseram a participarem do negócio não tinham recursos suficientes para cumprir as metas. O que levou o governo a retomar, por volta de 1868, os planos mirabolantes de desobstrução do rio, que consistiam em estratégias grosseiras como retirada de pedras do São Francisco, acabando com cachoeiras e comportas naturais – essenciais para a perenidade do rio. O autor de um destes projetos o engenheiro Carlos Krauss, garantiu ao governo, nesta época, que as obras como aquela da desobstrução, e também da construção de uma estrada de ferro ligando Jatobá na Bahia até Piranhas no Alagoas, eram, daquela vez, viáveis e com custos suportáveis. Estes pareceres positivos acabaram criando um apaziguamento e uma confiança de que “as obras se acertariam”, fazendo com que a era de investimentos na navegação no São Francisco


fosse inaugurada, finalmente. No entanto, apesar das confiantes

advieram unicamente de trapalhadas políticas, conforme defen-

avaliações que Krauss e, também, Milnor Roberts, engenheiro

dem historiadores e estudiosos do assunto. Como o episódio da

norte-americano, transmitiram ao governo, incentivando até par-

construção das estradas de ferro. Quando o governo imperial,

ticulares a empregarem capitais na navegação, o fato é que a rea-

finalmente, conseguiu empréstimo da Inglaterra – a juros exorbi-

lidade não era como idealizavam. Muitos erros foram cometidos.

tantes! – para arquitetar as vias férreas no vale do São Francisco,

E muitas obras deram prejuízos constantes. Inclusive, antes de

falhas de planejamento crassas ocorreram. Falhas estas, provo-

haver esta retomada de investimentos, chegou-se até a acreditar

cadas propositalmente, em alguns casos. Juazeiro, por exemplo,

que os rios brasileiros eram imprestáveis para à navegação, es-

foi transformada deliberadamente em um porto, apesar de serem

pecialmente o Velho Chico. Sendo necessário muito dispêndio de

conhecidas as objeções técnicas para esta decisão. E não foi por

dinheiro e engenhosidade para tornar-lo navegável. O que levou

causa do conselho (equivocado) do engenheiro Halfeld – que anos

o governo a negligenciar as vias fluviais durante muito tempo, em

antes havia apregoado que Juazeiro era o último ponto navegável

função das tentativas frustradas de viabilizá-las. O surgimento

do rio -, portanto, potencialmente um porto. Mas, sim, por causa

e a duração dos vapores foram, enfim, uma espécie de milagre.

de vaidades políticas, que impuseram que as estradas de ferro li-

Além das dificuldades naturais, pouco de realmente funcional e

gando a parte média á baixa do rio começassem ali, em Juazeiro.

estratégico foi edificado para atender a navegação. Mesmo de-

Quando na verdade os vapores deveriam ir ao encontro das es-

pois de todas as expedições de reconhecimento, mapeamentos

tradas de ferro até no máximo, Sento Sé - 198 quilômetros acima

e sugestões de regularização do leito empreendidas. Parece até

de Juazeiro - onde bancos de areia, trazidos pela força da corren-

que algumas delimitações não foram reconhecidas e, sim, igno-

teza já entulhavam o rio comprometendo uma navegação segura

radas. Houve erros de cálculo e de estimativa e obras caríssimas

e tranqüila. Esta determinação, prejudicial, que veio a mando de

se tornaram máquinas de déficits. E a tentativa de combinação

Fernandes Cunha, que os livros de histórias se referem apenas

entre transporte ferroviário e fluvial no São Francisco se tornou

como “um Conselheiro de Juazeiro”, e que lembra os tempos de

um projeto sem pulso.

violência política na figura de um coronel intransigente, obrigou

“ Um país de rios não melhorados” É certo que o próprio São Francisco imputava alguns obstáculos naturais a navegação, e hoje esta dificuldade está mais acen-

os vapores – quando finalmente foram implantados - a vencerem trechos de difícil tráfego, toda vez que eram incumbidos de levar ou buscar coisas e pessoas em Juazeiro - um porto simulado... Fruto de um capricho partidário.

tuada com o assoreamento multiplicado. Mas, é certo igualmen-

Juazeiro nunca deveria ter sido transformado no “terminal”

te que os problemas perpassavam e ainda continuam perpassar

do São Francisco. Pois, era e ainda é um grande areal, inibidor de

pelo famigerado imbróglio político. Falo isto, porque, algumas

vapores. Assim como Pirapora (encachoeirada e de fundo móvel),

decisões que comprometeram mais tarde o êxito da navegação,

também, não deveria ter se transformado no porto sede-sul do

44


rio. Esta imposição obrigou os vapores a serem mais rasos, com 7

causa desta má administração dos serviços de navegação que

pouco calado , comprometendo a capacidade de transportarem

vapores como Benjamin Guimarães surgiram. Sobretudo até os

um maior volume de carga, sobretudo, de forma segura. Não obs-

anos 1930, quando particulares – empresários – enfastiados da

tante, o frete do transporte foi ás alturas, porque para sulcar as

ineficiência das companhias de viação que operavam na época, e,

águas do São Francisco naquela porção baiana, vencendo obstá-

também, interessados em ampliar a distribuição regional de suas

culos, era necessária muita potência. Lenha como combustível,

mercadorias, por outros meios que não fossem no lombo de uma

o que encarecia a condução. Na época de seca, - sofrimento! -,

mula ou em um carro de boi, adquiriram estes barcos para cobrir

porque esta ‘potência’ tinha que ser dobrada, triplicada, quando

a demanda de transporte de suas empresas, que faltava. O Benja-

era possível navegar. Encalhes eram comuns. Os naufrágios, tam-

min, por exemplo, foi comprado da Amazon River Plate & Co pela

bém. A história registra dezena: em 1932, próximo a Xique-Xique

empresa de Júlio Mourão Guimarães, um industrial que tinha uma

o vapor Costa Pereira sucumbiu. Em 1943 o desastre acometeu

fábrica de “rendas e tiras bordadas” – a Santa Clara, em Pirapora.

o vapor Cordeiro Miranda. Dois anos depois, a 137 quilômetros

O vapor chegou aàcidade desmontado, por volta de 1925 e veio

de Pirapora foi o vapor Fernão Dias. Afundaram ainda os vapores

lá do Norte do nosso país porque, na época da compra, presta-

Afonso Arinos (1946); Governador Valadares (1959 e 1966); Para-

va serviços aos rios da bacia amazônica. Apesar de ser originário

catuzinho (1960), Wenceslau Braz (1968)... Desta somatória de

dos Estados Unidos – Mississipi, onde também já navegara. Aliás,

acidentes, obstruções de canal, inadequações de infra-estrutura

vamos interromper a história rapidamente para pontuar uma

e má administração, à decadência da navegação foi sendo traça-

coincidência intrigante.

da, comprometendo a função econômica para a qual os vapores

O rio Mississipi está para o São Francisco, como o Vale do

vieram: escoamento da produção brasileira. Que não era parca.

Tenesse está para o Vale do São Francisco aqui no Brasil. Ambos

Muito pelo contrário. Apesar das dificuldades, eram fartos os

os rios quebrantaram sonhos de navegação, impuseram gran-

entre portos do Brasil, no início do século passado. Havia muito o

des provações. A diferença é que o Mississipi considerado um rio

quê transportar: “por toda a parte, em tempo de exportar, vêm-

“catastrófico”10, extremamente caudaloso, foi curado dos seus

se fardos de algodão [grande fonte de renda das comunidades

desníveis naturais e a economia do Vale, antes pelas inundações

agropastoris do semi-árido], fumo, couros expostos ao tempo,

periódicas e violentas que castigavam plantações e povoados, foi

9

a espera de lugar a bordo” . Mas, “na maior parte das cidades,

recuperada. Através de um esforço conjugado entre particulares

não haviam portos estáveis; em nenhuma existia serviços de

e órgãos públicos que investiram em planos técnicos científicos

9

carga, descarga e armazenagem” . Nem mesmo embarcações

continuamente. Aqui, o nosso rio da Unidade Nacional ficou en-

suficientes. E, quando houve uma mudança de governo – mo-

tregue simplesmente à sorte, depois de um período. Relegado à

narquia para república - o rio já estava entregue a decadência.

lembrança e a ação de poucos... Em tal grau que foram iniciati-

Os projetos já estavam estancados no meio. Inclusive, foi por

vas particulares que fizeram com que a frota de vapores no São

45


Francisco crescesse. Como aquela de Júlio Mourão, que adquiriu

outra empresa, que mais tarde fez um trato com o governo baia-

o Benjamin: o nome é uma homenagem ao patriarca da família

no. Os políticos baianos, todavia, impuseram uma condição para

a qual pertencia a firma. O vapor foi usado durante muitos anos

dar aquela cobrertura: a navegação deveria acontecer em outros

para transportar as matérias-primas da fábrica – comporta 90

pontos que não fosse o rio das Velhas – que já era muito difícil em

toneladas – e permaneceu com esta funcionalidade – cargueira

1879. Mas, também, no trecho baiano do rio São Francisco, inclusi-

- durante muitos anos, mesmo depois do vapor ter sido transferi-

ve em dois de seus afluentes que interessava para a região: Gran-

do para a Franave, órgão estatal. Sendo que somente mais tarde,

de (350 km) e Corrente (160 km). Para cumprir esta incumbência,

depois que a Prefeitura de Pirapora assumiu seu controle, é que o

o governo concedeu à empresa outro vapor, o “Presidente Dan-

Benjamin veio a se tornar o que conhecemos hoje: um transporte

tas”, o segundo que chegou ao São Francisco. Porém, os prejuízos

exclusivamente de pessoas, que a população ribeirinha dá alcunha

eram muitos. A manutenção muito cara e o retorno econômico in-

de “gaiola”, com funcionalidade turística. O empresário chegou

suficiente para cobrir os gastos. Falida então, a “Viação do Brasil”

até a abrir uma companhia de navegação fluvial: a Julião Mourão

passa a ser totalmente administrada pelo Estado da Bahia – maior

Guimarães, e, para isso, adquiriu outros vapores, menos ilustres,

acionista da empresa, na época. O que deu origem a Empresa

mas não menos importantes como o gaiola Francisco Bispo, bati-

Viação do São Francisco, a “baiana”, que até 1917 era a única com-

zado com o nome de um mecânico, que segundo o empresário,

panhia de navegação detentora de licença para exploração fluvial.

era – o melhor do Vale São Francisco. Os irmãos Nascimento, pro-

Nesta época a companhia já acumulava onze vapores. Com a que-

prietários da empresa Nascimento e Cia, também, com sede em

bra deste monopólio, outras empresas se organizaram, dando ori-

Pirapora, adquiriram, por sua vez, o vapor “Antônio Nascimento”,

gem inclusive, a companhia estatal de Navegação Mineira do São

para escoar a produção da fazenda da família – Fazenda Prata.

Francisco - “a mineira”. Mais tarde, na década de 1960, surgiria,

O nome fazia alusão ao líder da família que foi, inclusive, um dos

então, a Companhia de Navegação do São Francisco (Franave),

fundadores da cidade.

junção destas duas companhias – mineira e baiana, ao Governo

O fato é que a navegação a vapor não só teve sua frota inicialmente ampliada pelas mãos de particulares, como também começou a partir da iniciativa privada. O governo só outorgava as concessões para exploração fluvial de trechos do rio São Fran-

Federal, mais uma terceira companhia fundada em Pirapora - a Companhia Indústria e Viação.

O rio hoje: Solidão

cisco. O Saldanha Marinho, o primeiro de todos os vapores, sur-

Depois de transcorridos mais de 100 anos desde os primeiros

giu também da iniciativa de particulares. Era propriedade de um

planos de navegação, o rio continua praticamente inexplorado,

grupo financeiro ajustado com o governo imperial para explorar

com outros agravantes. A emergência do transporte rodoviário

o rio das Velhas, denominada Banco Viação do Brasil. Mas, em

no Brasil e o desaparecimento dos barcos a vapor fizeram com

razão dos prejuízos, a companhia acabou sendo incorporada a

que as atividades hidroviárias do São Francisco fossem refreadas

46


O patio da AHSFRA (Administração da Hidrovia do São Francisco), nas imediações de Pirapora. A precariedade e a ociosidade das estruturas é rigoroso retrato da realidade de navegação são-franciscana nos dias de hoje.


drasticamente e o rio passou a sofrer um abandono descomunal.

ali, estagnados. Na condição de sucata, quando poderiam estar

Ilógico. Afinal, o São Francisco representa, hoje, talvez a forma

auxiliando no escoamento da produção do estado, despachando,

mais econômica de ligação entre o nordeste e o centro do sul do

por exemplo, algumas das toneladas de granéis que Minas produz

país, e tem uma capacidade fenomenal de transporte estimada

e que nordeste consome. Milho, por exemplo. Ou, quem sabe, re-

em 2,5 milhões de toneladas de carga, anualmente. No entanto,

tirando, talvez, contêineres de gipsita12 de alguma embarcação

em decorrência das carências e das disfunções que acometem a

recém-chegada de Pernambuco, via São Francisco. Mas, ali, em

hidrovia são-franciscana, como falta de portos adequados, falta

atividade mesmo, só algumas cabras que passavam por nós com

de regularidade no transporte, de embarcações mercantes ade-

desapego e serenidade, pastando sem pressa o gramado seco do

quadas, este modal de transporte perdeu em competitividade

porto, enquanto observávamos a paradeira local. E o silêncio que

para outros meios, como o rodoviário, e agoniza com a falta de

paraiva denunciava a ausência crônica de políticas e verbas, que

políticas públicas que explore adequadamente suas potencialida-

há anos passam longe do rio. Flávia nos contou que a AHSFRA,

des, através de investimentos pontuais que melhorem a logística

que faz o monitoramento das condições hídricas do rio São Fran-

do rio. A própria extinção da Franave, órgão que se responsabili-

cisco e dos seus afluentes, com o patrocínio da Companhias das

zava pelo transporte de cargas entre Pirapora e Juazeiro, trecho

Docas do Maranhão (Codomar), estatal que administra outras

que conjuga quase mil e quatrocentos quilômetros de hidrovia, é

sete vias hidroviárias no país, já passou por boicotes e repasses di-

prova do descaso para com as estruturas que prestavam e ainda

minutos que comprometeram seriamente o trabalho da empresa

prestam serviços ao rio e sociedade.

no rio. Em 2007, por exemplo, a verba prevista não foi repassada,

A Administração da Hidrovia do São Francisco (AHSFRA) que

apesar de na época, a empresa ter feito uma previsão de gastos,

herdou o patrimônio da Franave, e que hoje se encarrega – com

com base em um plano de trabalho, na ordem de 11 milhões de

grande dificuldade – de manter a navegabilidade do rio, também,

reais. Este ano (2009), somente quatro dos onze milhões previs-

entre Pirapora e Juazeiro, é outra prova cabal de como o São

tos, chegaram ao caixa do órgão. “Temos então de nos adaptar e

Francisco e o próprio transporte náutico como um todo continua

trabalhamos a margem das condições ideais. Com o que recebe-

a ser negligenciado no Brasil. Andando pelo pátio da AHSFRA,

mos”. Além destas restrições e volatilidades financeiras, outros

enquanto conversávamos com a Chefe do Núcleo de Operações

problemas de ordem política infringem a AHSFRA: o contrato com

- Flávia Oliveira -, pudemos testemunhar a ociosidade das ativida-

a Codomar rescinde no final deste ano, e até o momento da nossa

des hidroviárias no rio São Francisco. No porto, que parecia fan-

visita, os empregados não sabiam se a empresa continuaria a fun-

11

tasma - chatas, empurradores, cábreas , sobrenadavam quietas e

cionar em 2010. Em caso de negativa, fica a pergunta: - Quem se

irresolutas o rio parado... E o entardecer só tornava o panorama

responsabilizará pela sinalização, balizamento13, dragagem do rio

mais taciturno. Aqueles instrumentos que poderiam, em outras

caso a AHSFRA seja desativada? De novo, silêncio. E se a resposta

circunstâncias, estar movimentando o porto de Pirapora estavam,

existe, ela não nos foi passada. “A grande briga, luta de nós da

48


AHSFRA é para que a esfera pública abrace a causa da hidrovia,

e destino por terra, consumindo quase sete vezes menos combus-

inclusive a integrando com outros meios de transporte”. “Mas

tível e emitindo zero de monóxido de carbono na atmosfera, por

isso é briga de leões”. Há muitas questões institucionais envol-

menos da metade do preço. Resumindo, a hidrovia do São Fran-

vidas. Desde empecilhos ambientais até falta de iniciativa públi-

cisco “tem potencial para alavancar as economias e diminuir cus-

ca. A carga tributária sob este transporte, também, é alta. Além

tos de transporte das empresas instaladas nas regiões por onde

disso, nos últimos anos, o governo gastou em média somente 15

passa”, como pontua relatório da Antaq, assinado pelo gerente

milhões dos 150 milhões necessários para manutenção e amplia-

de Desenvolvimento e Regulação da Navegação Interior, Adalberto

ção do sistema hidroviário do Brasil, que está estancado. Segundo

Tokarski. No entanto, o rio que hoje poderia estar contribuindo

a Agência Nacional de Transportes Aqüaviários (Antaq) o Brasil,

para unificar a integração nacional, opera a um percentual ínfimo

transporta somente 13% da sua produção pelas águas. O rio São

da sua capacidade, algo em torno de 1%. Pior, a navegação no São

Francisco transporta somente irrisórias 3.300 toneladas. Ao passo

Francisco continua a ser efetuada por particulares, em pequenas

que o volume de cargas que circulam anualmente no rio Mississi-

embarcações, e mesmo assim, somente na porção baiana do rio.

pi, Estados Unidos, chega a 22. 500 toneladas.

O que acaba criando, inclusive, confusões em torno da capacidade

Embora sejam necessárias obras caras de engenharia para

de navegação da porção mineira do São Francisco. É recorrente a

corrigir os acidentes naturais e aprimorar a logística de escoa-

idéia de que a parte mineira não é navegável. O que não é de se

mento do rio São Francisco, que pode ajudar junto às outras hi-

estranhar... A desativação e o não usufruto do rio, por aqui fazem

drovias a promover o desenvolvimento do mercado interno no

parecer que o Velho Chico, de fato, adormeceu pra sempre. Por-

Brasil, tão relegado em detrimento da economia de exportação,

tanto, porque transpô-lo e não revitalizá-lo? Regularizá-lo? É o pas-

é patente, os benefícios que o transporte hidroviário traz á longo

sado assombrando o presente. Comprometendo o futuro.

prazo. A própria manutenção das hidrovias, que a AHSFRA realiza, é muito simples e barata. No entanto, permanece, inexplicavel-

Intervalo

mente, esta mentalidade retrógada, que lembra nossos monar-

Dia 13 de julho, emergimos do plano onírico das águas do São

cas de outrora, de que mais vale gastar alguns milhões de reais

Francisco, depois de termos embarcado no vapor, e resolvemos

de dois em dois anos em operações “Tapa Buracos”, país á fora,

desbravar em terra outros arcabouços históricos de Pirapora.

do que despender alguns bilhões de uma única vez com um meio

Fomos á procura da Secretaria de Cultura. O órgão funciona na

de transporte prático e barato. Estudos da Agência Nacional das

antiga estação ferroviária da cidade – aquela, que abrigou migran-

Águas (ANA) mostra as vantagens já manifestas do modal hidro-

tes nordestinos, no início do século XX. A linha, de 1910, está de-

viário. O transporte, por exemplo, de fertilizantes – hoje, feito no

sativada. Truncada. Não leva mais a nenhum daqueles lugares que

país, quase que inteiramente, por caminhão, poderia ser efetua-

costumava rumar. A locomotiva, a movimentação do embarque e

do, pela hidrovia são-franciscana, considerando a mesma origem

desembarque de pessoas, a fumaça do motor a vapor inebriando

49


a plataforma, o apito do trem, se resumiram a algumas reminis-

eis que aparece Lourdes, respondendo ao chamado. Lourdes é

cências do passado. Mas o prédio da estação, de arquitetura de

dona de um semblante sereno; uma fala mansa de sotaque baia-

época, ainda resiste. Abriga cinco secretarias em uma, além de um

no, - herança do seu estado natal, apesar de morar a quarenta

centro de apoio ao turista. Neste dia, fazia um calor entristecedor

anos em Pirapora. Sua compleição, de idade, apesar da vaidade

e a vegetação nas imediações – gramado escasso - estava seco

visível – unhas feitas, cabelo estrategicamente penteado, jóias

e amarelado. A paisagem estava árida e antiga ferrovia, naque-

nas mãos, - mostrava que aquela pessoa que nos recebia com

las circunstâncias, lembrava mais um posto de cidade faroeste.

uma naturalidade chocante guardava lembranças insuperáveis. É

Quando entramos, uma mulher se encarregou de nos atender. –

uma senhora nostálgica, que enxerga sua vida como um grande

Boa tarde. Devemos procurar quem na cidade para conversarmos

sonho que não volta mais. Sabe de cor suas peripécias, embora

sobre a cultura local? Num gesto providencial, a mulher recorreu á

tenha perdido várias vezes o fio da meada dos casos que relata-

agenda de trabalho e conferiu alguns catálogos para responder à

va durante a entrevista, mas, não era esquecimento. Ela parecia

indagação, em seguida, um homem de sobrenome Brasil, que pas-

estar revivendo, simplesmente, algumas cenas e em vez de nos

sava provavelmente para se servir um café, se dispôs, também, a

contar, preferia senti-las, em silêncio, interrompendo, então, o re-

ajudar. Em consonância com a mulher, iam discutindo se fulano ou

lato. Como se não houvesse ninguém a observando, esperando a

beltrano poderia ser útil, até que por fim, entraram em consenso

continuidade do enredo. Quando se confundia, pedia desculpas e

sobre alguns contatos e de forma breve descreveram quem eram

prontamente respondíamos que não tinha o menor problema. E

aquelas pessoas. Uma dessas ‘figuras’ vivera oito anos, exilada,

não tinha mesmo. Estávamos ao dispor da sua história. A parede

em vapores, durante o regime militar. Sobressaltados, saímos do

de sua sala estava repleta de fotos e cada canto da casa era um

prédio, em silêncio, debaixo de um sol alucinante pensando na-

memorial vivo, pulsante. E ela era herdeira de uma época singular

quelas histórias que tínhamos que ir buscar. O nome de uma delas

do rio São Francisco: testemunha especial da navegação a vapor.

era Lourdes Barroso...Lourdes Barroso e os Franciscos

Sobretudo, representante da força altiva que o rio tem na vida de

Descemos do carro e conferimos a numeração: estava cor-

infindáveis pessoas deste rico sertão. Depois das idas e vindas na

reto. Lourdes Barroso morava ali. Do portão de grade já tivemos

lembrança, conseguimos entender, enfim, o quê Lourdes queria

16

um prelúdio do encontro. Carranca na varanda. Uma pintura

explicar. Sua vida foi mesmo uma real ficção.

do vapor Benjamin Guimarães dependurada ao lado da porta de

Década de 1950, Bahia. Lourdes era apenas uma menina que

entrada. Logo abaixo, uma escultura mediana do santo São Fran-

gostava de cantar músicas de Ângela Maria, quando um circo che-

cisco de Assis, talhada em madeira, e, no canto esquerdo, uma

gou à sua interiorana cidade natal, e pôs á prova sua vontade de

mesa repleta de ferramentas artesanais. Batemos então as pal-

mostrar a voz. Ela que já amanhecia melodiosa, cantando para

mas como quem quer chamar alguém, - havia campainha, mas

quem quisesse ouvir, acabou chamando a atenção da trupe que

preferimos usar o método interiorano, que soa mais cortês -, e

estava instalada próxima a sua casa e recebeu um convite informal

50


para que fosse se apresentar, se sentisse á vontade. Apesar das convenções machistas dizerem “não, isso não é coisa que moça de família faça”, e de ganhar um NÃO bem repreensivo da mãe, Lourdes não resistiu ao seu ímpeto de menina predestinada e acabou investindo na travessura. Passou a pular a janela de casa para ir até o circo e, sob luzes e tendas, imitar as divas da música brasileira da época. Apanhava todas as vezes que ousava, e foram várias. Como castigo: palmatória e correiadas. Mas a gratidão pelas alegrias que aquela “brincadeira” lhe proporcionava, deviam falar mais alto do que os membros condoídos depois de uma surra. Lourdes não cedia, e as represálias eram em vão. Foi aí, por causa do falatório na cidade, e da preocupação dos pais em torno de suas atuações, que Lourdes recebeu a visita providencial de seu padrinho - um delegado – que vai imprimir a primeira grande virada na sua vida, ao convencê-la a se tornar uma cantora profissional, longe do amadorismo em praça pública. Aconselhou-a para tanto a ir para a orquestra sinfônica de Serrinha, e iniciar, assim, uma carreira artística, de forma oficiosa. O que de fato lhe foi frutífero... Depois da experiência na orquestra, foi parar em Salvador com ajuda do pai, e lá começou se expandir artisticamente. Conseguiu contrato com as rádios Cultura e Exlcesior, para quem fez muitos shows. O Teatro ‘Das cinco’, do antigo Hotel Bahia e a boate Clock da cidade também testemunharam suas performances. E, Lourdes que atendia a princípio por ‘Lourdes Gonçalves’ – um nome artístico formal - acabou se transformando na “Cigarra Boêmia de Serrinha”, tamanha singularice. Foi neste período, - em que se popularizou na cidade soteropolitana - que surgiu na vida dela, já com vinte e poucos anos, um tenente baiano chamado Dr. Waldir Pires, que lhe fez um convite inusitado: cantar em comícios. O pedido que vinha por intermédio


de Pires era, na verdade, uma solicitação de um oficial disfarçado,

Dias de apreensão e desnorteio transcorreram até que a situ-

que se identificava como Dr. Rubens. Sem avistar nenhum impedi-

ação se complicou, e Lourdes foi informada que deveria partir de

mento, e com um cachê atraente Lourdes concordou em assumir a

Serrinha, em definitivo. Pois, corria risco de vida. Pessoas ligadas a

tarefa, apesar de não imaginar que aquela tomada de decisão repre-

ela armaram, então, um esquema para que fosse embora, aconse-

sentaria mais tarde um divisor de águas na sua vida. A sua segunda

lhando-a seguir para Juazeiro onde deveria se juntar à Companhia

grande virada. Mas, até que as coisas não começassem a perturbar,

de Teatro de Juazeiro, que lhe daria retaguarda até o vapor São

Lourdes viveu em relativa tranqüilidade, apesar das atribulações

Francisco, no porto da cidade. Para qual cidade Lourdes deveria ir

que aquele seu novo emprego lhe impunha: passou a viajar conti-

depois disso, ela não deixou claro. Mas o fato é que ela obedeceu,

nuamente pelo interior da Bahia fazendo os tais showmícios. Esteve

e embarcou no vapor. Era novembro e o natal de 1964 seria longe

em Pituba, Ondina, Itapoã, Estela Mares, Euclides da Cunha, Urucuia,

de casa. Foi neste episódio que o rio São Francisco introduziu-se,

Araci... Até que, recebeu uma nova incumbência: de madrugada, á

em definiivo, na sua vida, e Serrinha começou a cindir-se do seu

surdina, deveria pregar em postes, panfletos políticos partidários.

futuro. É que nos próximos sete anos que se sucederiam àquela

Para tanto, lhe enviariam dinheiro e material, via trem, e as orien-

fuga, a Cigarra Boêmia não teria mais residência fixa. A terra firme

tações seriam repassadas durante reuniões secretas e combinadas.

passaria a ser as águas do rio São Francisco, e os vapores seu refú-

Assim, mais uma vez Lourdes acatou. Fazia o trabalho sem nenhuma

gio. O regime militar começava... O exílio para ela também, apesar

desconfiança, na mais cândida inocência de que aquilo não era pérfi-

de não ter sido quase nada trágico. Talvez o momento mais es-

do e não havia com o que se preocupar. Pagava inclusive a garotada

tarrecedor que Lourdes viveu foi naquela primeira viagem como

local para lhe ajudar com a enfadonha tarefa de pregar panfletos.

refugiada, a bordo do vapor São Francisco, quando, durante o

Era véspera do golpe militar de 1964, e Lourdes seguia trabalhando,

percurso, um capanga que, também, embarcou disfarçado como

quando, enfim, ouviu do seu superior, da boca de ‘Dr. Rubens’, uma

ela, tentou obrigá-la a saltar do vapor em um ponto próximo a

advertência confusa, mas que a fez atinar pela primeira vez para a

Xique-Xique (Bahia) para dar-lhe um fim. Lourdes se desesperou.

gravidade do esquema que participava: - “Quando dermos o golpe,

Sozinha e com medo de contar seu dilema a um desconhecido,

não se importe, pois sua família não sofrerá nada”. Sobressaltada

passou a se trancar na cabine do quarto do vapor e a faltar nos

com o que tinha ouvido, Lourdes voltou para casa, em Serrinha, e

horários de refeição, pois estava na mira do capanga. Foi quando,

contou o que lhe tinham dito. Para sua surpresa ficara sabendo que

os passageiros mais próximos, notando o isolamento repentino de

algumas pessoas estavam atrás de seu paradeiro, também. Á esta

Lourdes, passaram a procurá-la e a insistir que contasse o que es-

altura, revistas, panfletos e todo o material que ela guardava em

tava, afinal, acontecendo. – Eu chorava muito, e não respondia.

casa, usado durante as viagens e apresentações foram queimados

Não queria contar. Até que o comandante em pessoa – Francis-

pelo pai, quando descobriram a enrascada. - Abrimos uma vala no

co Barroso Lopes – foi acionado, aparecendo em seu aposento.

fundo do quintal da casa e papai incendiou tudo...

Conseguiu arrancar a verdade que estava sufocando Lourdes.

52


Mandou a tripulação fazer o cerco ao capanga e colocá-lo para

Francisco Biquiba Dy Lafluente Guarany17 – o insuperável mestre das

fora, mesmo ele estando armado. Era o fim da intimação sobre

carrancas – durante uma de suas viagens por Santa Maria da Vitória,

ela, mas, o começo de um romance que perdurou 30 anos... - Lour-

Bahia. Foi a primeira vez que Lourdes presenciava a arte de talhar

des se enamorou pelo capitão durante o restante da viagem, e até

em madeira apesar do contato com mestre ter sido duro e breve.

a década de 70 viveu dentro dos vapores, atrás de Francisco, seu

Biquiba fora ríspido e impaciente quanto algumas curiosidades téc-

marido, e do rio. Naquela primeira viagem foi para Pirapora, mas

nicas que Lourdes lhe apresentou. Chegou até a explicar para ela

não desembarcou na cidade. Seu destino seria até o fim da dita-

que a carranca era ‘mistura do homem com o animal’, mas, nada

dura as rotas de cada vapor que embarcava: Engenheiro Alfred,

mais que isso. No entanto, a austeridade de Biquiba não ressentiu

Antônio Nascimento... Sempre trilhando os passos de seu coman-

Lourdes. Pelo contrário, a concisão do ‘mestre’ acabou por incen-

dante. Mas isto, nem de longe, se torou aborrecimento. – Apesar

tivá-la, indiretamente, a procurar pelos seus próprios métodos um

dos anos de chumbo, estava apaixonada e era livre. Além disso, a

modo de fazer aquilo (as antigas figuras de proa). – Eu senti que

vida nos vapores não era de todo mal. Á noite, vez por outra, fazia

conseguiria fazer aquilo, e depois daquele encontro ficou obcecada

pequenos shows nos barcos, para alegrar a si própria e aos passa-

por fazer algo parecido e, nos vapores, passou a insistir na tal arte.

geiros. Barroso tinha um violão, e ás vezes, a tripulação se reunia

Em aprimorar formas e traços, em uma espécie de autodidatismo.

para contar as estórias das águas do São Francisco, ao anoitecer.

Foi aí que começou a enxergar de forma diferente aquelas toras de

Sobre os cavalos pampas d’água e da mulher dos cabelos verdes...

madeira macia que eram queimadas nas caldeiras que alimentavam

Ela mesma nos jurou já ter visto o vapor encantado em Juazeiro.

os vapores. Passou a tentar esculpir um e outro pedaço que tira-

Segundo esta lenda, o vapor aparece á noite, belamente ilumina-

va da pilha de lenha. O capitão Barroso, por sua vez, passou a lhe

do, nas proximidades de um porto, mas nunca chega ao cais. E de-

presentear com ferramentas mais adequadas para o trabalho que

pois de alguns minutos de aparição, some no breu da noite. A tal

Lourdes dificilmente largava, fazendo nascer na Cigarra Boêmia seu

aparição seriam os fantasmas das vítimas dos trágicos naufrágios

lado carranqueiro que hoje toda Pirapora e o país conhecem. Aliás,

que ocorreram no rio São Francisco. Lourdes disse que se arrepia

Lourdes àquela altura da história, não era mais Lourdes Gonçalves

até hoje com o que viu, e esta confissão confirma o quanto ela já

– a cigarra, e sim, Lourdes Barroso – a carranqueira. No princípio,

estava imersa naquele mundo são-franciscano.

passou a comercializar as carrancas dentro dos próprios vapores,

O fato é que com o passar do tempo dona Cigarra encontrou

o único espaço que tinha para desenvolver o ofício e expor suas

também uma forma de gerar renda e passou a fazer trocas comer-

peças. Mas depois, com o fim do regime militar, Lourdes rearranjou

ciais com os passageiros. Comprava produtos da terra nos vapores

seu trabalho em Pirapora, onde acabou fixando residência com Bar-

e em seguida revendia nas feiras de algumas das cidades em que

roso, que também não era de lá. - No início não gostei da cidade...

passava. Com o lucro que conseguia das vendas, pagava suas des-

Só havia mato e uma igreja. Também sofri muito com o preconcei-

pesas nos vapores. Foi assim até que, dois anos depois, conheceu

to das pessoas que implicavam com o fato de eu não ser casada,

53


(À esquerda) Lourdes enquanto cantava a melodia de Cartola figurando a frente de um dos seus retratos de moça. (No topo da página) Ela e seu capitão, Francisco Barroso Lopes. (Acima) Pintura do vapor Benjamin Guimarães em óleo, feita por ela.


apesar de viver com Barroso. Mas com o tempo, Lourdes adotou

de uma Lourdes de voz rouca e entristecida ouvimos “Meu sonho era

Pirapora. Até porque a população precursora, que contribuiu para

cantar, mas hoje não posso mais”. Hoje, com mais de seis décadas de

o aumento demográfico da cidade, era composta, sobretudo, de

vida, tenta adaptar com forte depressão o ritmo de seu corpo, mais

seus conterrâneos – os baianos. A própria criação da companhia

cansado e ligeiramente delimitado ao seu espírito que ainda continua

Navegação Mineira do São Francisco, em 1925, explica grande parte

buliçoso, juvenil, melodioso. Refém daquelas memórias vivazes, pre-

desta história, pois, foi com o surgimento da empresa, que ribeiri-

sas em um corpo envelhecido. Para passar o tempo, borda pedrarias

nhos da Bahia e Pernambuco vieram para Pirapora (porto sul do

nas roupas de diva que tem no seu guarda-roupa – lembra o tempo

São Francisco) para as lides fluviais: “os baianos e pernambucanos

dos palcos. Borda, também, na roupa dos filhos e netos, dois deles

possuíam uma longa tradição como navegantes. Essa cultura, que en-

também chamados Francisco. Pinta quando tem vontade. - O colorido

volvia o conhecimento do rio e das condições ambientais da região,

quadro do vapor Benjamin Guimarães na entrada da porta de sua casa

foi fundamental para a segurança das embarcações que as empresas

é obra desse passatempo. Esculpe quando tem inspiração. Mas, estes

mineiras adquiriram em grande número até os anos 40”.

18

afazeres são soluções paliativas que não dão cabo a sua inquietude

Por isso, quem viaja pela cidade nota com estranheza o forte so-

frente ao passado, constantemente presente. Cultiva lembranças em

taque baiano em terra mineira. – É difícil ter uma família em Pirapora

fotografias, miudezas e mobílias de uma época que não se apaga. Mas

que não tenha o baiano no meio, como disse Lourdes, que depois que

que infelizmente não volta. Mostrou-nos um bracelete que o saudoso

se afixou na cidade, acabou assumindo sua carreira como carranquei-

capitão Barroso a presenteou certa vez. Entristecia... Pedimos a ela,

ra, o que lhe proporcionou renda e reconhecimento. Com o dinheiro

então, para que cantasse. Sem hesitar, Lourdes aceitou o microfone

das vendas de suas carrancas – e nenhuma é igual á outra, visto que,

da câmera que o grupo lhe ofereceu, e de forma providencial soltou

Lourdes não trabalha com peças em série -, comprou a casa que hoje

com rouquidão o primeiro verso de uma música de Cartola que arre-

mora. O nome do ex-proprietário era também Francisco. Mas, apesar

matava, de forma lindamente triste, a dor pelo término de uma histó-

da gratidão por tudo que as carrancas lhe proporcionaram, inclusive,

ria – de Franciscos - que de tão peculiar parece fictícia:

o prestígio pelo trabalho que desenvolveu, ela guarda certa mágoa quanto ao fato de ter sido tolhida do desejo de continuar com a carreira de cantora, que o marido lhe prometeu que iria retomar, mas que nunca aconteceu de fato. Tinha esperanças de ir para o Rio de Janeiro, e lá grassar carreira solo. Ali mesmo, em Pirapora, teve chance de

Volto ao jardim Com a certeza que devo chorar Pois bem sei que não queres voltar Para mim

retomar, chegando até a compor uma música para ser cantada com

Devias vir

Sá e Guarabira, quando a dupla esteve na cidade: ‘Distância’. Mas não

Para ver os meus olhos tristonhos

pôde comparecer em função do veto de Barroso, fazendo com que

E, quem sabe, sonhavas meus sonhos

a “distância”, segundo ela, ficasse, de fato, cada vez mais distante. E

Por fim

55


As carrancas, figuras esculpidas na madeira, eram usadas na proa das barcas para ornamentar e assustar maus espíritos - poder mágico que os navegantes acreditavam que ela tinha. Curiosamente, as carrancas no Ocidente só se desenvolveram no rio São Francisco, no seu curso médio e surgiram por volta de 1875/1880. Os barqueiros são-franciscanos acreditavam que elas os protegiam contra os seres míticos que acreditavam ter no rio, como o cabloco d’água. Com o fim das barcas, elas se tornaram artigo de decoração, souvenir das cidades ribeirinhas, como Pirapora. A própria força do nome indica sua forma bruta -mistura de homem e bicho. Também são chamadas de figura de proa, cara-de-pau e leão-de-barca

56


57


12 ¹

“Além da natural economia de palavras, é importante ressaltar

que o uso da abreviado dos nomes denota intimidade e afetividade para com os vapores a exemplo dos velhos ferroviários que amam suas locomotivas. “Assim, aquelas embarcações eram tratadas como “gente de família”, especialmente entre os vaporzei-

Designação de várias máquinas para levantar grandes pesos,

especialmente um tripé, formado por três pontaletes unidos no topo, com roldana ou cadernal e cordas. (Dicionário Michaelis, 1998-2009) 13, 14

História do sertão noroeste de Minas Gerais (1690-1930). Ber-

ros”. (NEVES. 1999, p. 43)

nardo Mata-Machado, 1991, p.135.

²

15

O Médio São Francisco: de Pirapora, MG á Santana do Sobradi-

“Continuador da tradição dos grandes escultores populares do

nho, BA, com 1328 km de navegação franca. Baixo São Francis-

século XVIII, Francisco Biquiba Guarany, autor da maior parte das

co: de Santana do Sobradinho ao Oceano Atlântico, com 748 km.

carrancas que já vi” (PARDAL, 2006, p. XXXI)

(PARDAL, 2006, p.26-28)

16

3

Junção de várias canoas amarradas umas as outras, com um ta-

buado por cima, servindo de piso. (LINS, 1983). 4

O médio São Francisco: uma sociedade de pastores guerreiros.

3a ed., definitiva 5

Peça disposta em todo o comprimento do casco no plano diame-

tral e na parte mais baixa do navio: constitui a “espinha dorsal” e é a parte mais importante do navio, a que suporta os maiores esforços. (Arte Naval p. 09 1-52 a.) 6

Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 34.

7

É a distância vertical entre a superfície da água e a parte mais

baixa do navio naquele ponto. (Arte Naval p. 72 2-60) 8, 9 10

LACERDA, Carlos. 1937, p. 119-20

O Médio São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros.

Wilson Lins, 1983, p. 145. 11

Minério Sulfato de cálcio hidratado, que se cristaliza no sistema

monoclínico; gesso. (Dicionário Michaelis, 1998-2009)

58

Pirapora: ensaio de tempos idos. Zazoni Neves, 1999, p. 36.


Barra do Guacuí: o encontro das águas e a história perdida

Bárbara Camargo

“Quando se visita [...] Guacuí, sente-se repassar ante os olhos, os restos indeléteveis de um painel antigo. A alma cívica se volta quase de joelhos para um Passado, no Presente esquecido. No cenário tranquilo, evocativo de grandes meditações, renascem como por milagre, figuras revividas de audazes bandeirantes, de sertanistas e dos humildes anônimos nordestinos que subiram o Rio São Francisco. Como marcos permanentes na paisagem, apenas o Rio das Velhas, presente para todo o sempre na íntegra de suas águas diminutas, ao caudal lendário do Rio São Francisco, espinha dorsal, mediterrânea que deu origem ao Brasil. É crime, grave crime o presente esquecer o passado”. Simeão Pires



Chegamos a Barra do Guacuí, no início da noite de 14 de julho, depois

por onde passou, fundando arraiais como o de Sumidouro, hoje

que encerramos nossa atribulada visita a Pirapora. No entanto, só

Pedro Leopoldo. Outras histórias envolvendo Barra do Guacuí –

fomos conhecer seus segredos na manhã seguinte - dia 15. Foram

que já foi vila e município, mas que hoje é jurisdição de Várzea

menos de 24 horas no lugarejo... Tempo suficiente para entender a

da Palma –, são também, praticamente desconhecidas. Como o

peculiaridade do distrito e perceber o severo abandono dos restos

episódio que conta que Barra teria sido cogitada para ser a nova

de um mosaico histórico que ainda teima em resistir.

capital de Minas Gerais.

Falta de culto ao passado

Todavia, apesar da monta cívica deste distrito e de se tratar de um lugarejo de no máximo cinco longas vias, o que o torna

Quem passa pela placa rodoviária na BR-365, que indica a en-

relativamente fácil de ser vasculhado, não é fácil fazer o levanta-

trada de Barra do Guacuí, a 23 quilômetros ao norte de Pirapora, não

mento de sua historicidade. Juntar as peças de seu quebra-cabe-

consegue conceber que naquele pequeno distrito está enterrado

ça: incompleto. As informações são assustadoramente escassas,

os restos de um passado, que congrega bandeirantes como Fernão

quando inexistentes. Raras foram as explicações que consegui-

Dias, índios Cariris, grandes fazendeiros baianos do século XVIII e

mos in loco. E uma vez que se chega aos pontos lendários do dis-

jesuítas. Ou ainda, que ali acontece um encontro de águas... O rio

trito, só resta o exercício da observação. Imaginar e pressupor.

São Francisco se entrecruza naquele ponto com o rio das Velhas

Pois, não há alguém ou coisa alguma que demarque ou explique

– seu maior afluente em extensão! No entanto, não há nenhuma

o patrimônio que está defronte de quem passa. Cheguei a pensar,

demarcação ou placa, por mais rudimentar que seja para informar

inclusive, que este capítulo resultaria em um ensaio unicamente

os desavisados sobre as coisas substanciosas que se escondem

sobre ‘ausências’. No entanto, aprofundando na pesquisa, foi

naquele arraial, - preterido em um norte já esquecido.

possível obter alguns dados sobre Guacuí, e o que era completa

A entrada da cidade também deixa a desejar. Nenhuma indicação dentro do distrito facilita a procura de visitantes pelos marcos histórico que lá estão: a impactante Igreja de Pedra e também

‘ausência’ se transformou em uma breve história...

A frugal história de ocupação de Barra do Guacuí

a de Bom Jesus do Matozinhos... O encontro dos rios... Pistas,

O nome Guacuí vem da palavra Guaimihy-Uaimii 1 e significa

talvez, do antigo e transviado cemitério de Guacuí, onde estaria

Rio das Velhas no dialeto indígena. No entanto, não está claro se é

enterrado os restos mortais de Fernão Dias, e de seu genro, Ma-

no linguajar dos Tupi-Guaranis ou dos índios Cariris, que vieram do

noel Borba Gato – dois grandes desbravadores que participaram

Ceará para esta região - entre Pirapora e Barra do Guacuí-durante

juntos da Bandeira de 1674 que arroteou este grande território de

o século XVII, em busca de caça e pesca, abundantes naquela épo-

Minas Gerais em busca de prata e esmeraldas. Inclusive, o início

ca, por estas paragens.

desta bandeira não foi muito longe dali: começou na cabeceira do

No entanto, o arraial foi fundado mesmo por Manoel de Bor-

Rio das Velhas – em Ouro Preto, e deixou rastros permanentes

ba Gato, em 16792, por conta daquela bandeira de 1674 que visava

61


encontrar esmeraldas e prata por estas bandas do norte de Minas.

Os rios vadeando mais temidos

Guacuí – antigo arraial das Porteiras - foi escolhido porque ali, a

Em jangadas, canoas, balsas, pontes,

localização permitia aos bandeirantes que tivessem fácil acesso

Sofrendo calmas, padecendo frios

à navegação tanto via rio das Velhas, que levaria até as serras e

Por montes, campos, serras, vales, rios. 5

minas onde seriam procuradas as preciosidades, quanto via rio São Francisco - que interligava o arraial até Bahia e Pernambuco, de onde vinham mercadorias (couro e sal) e a quem o território, nesta época, pertencia. Visto que, até meados do século XVIII o sistema político em vigência no Brasil remontava a época do início da colonização e a região norte-mineira era divida em duas partes: as porções localizadas na margem direita do São Francisco - de responsabilidade da Bahia, e as porções á margem esquerda do rio pertencentes às capitanias de Pernambuco. Barra do Guacuí, por exemplo, foi até 1778 3, povoado subordinado do arcebispo da Bahia. “Aqui o que se deve reter de fundamental é a articulação entre o São Francisco e as cidades da Bahia e de Pernambuco, verdadeiras cabeças de ponte do processo colonizador”. 4 Sendo inclusive, esta, a grande importância, legado, da bandeira de Fernão Dias para esta porção do país: substituíram-se, pela primeira vez, as rotas das expedições no país até aquele momento, direcionadas somente para o sul, pelas marchas para o norte, que passaram a desbravar territórios incógnitos do sertão (interior brasileiro). Fundaram-se vilas e aos poucos o retrógado sistema de capitanias foi se pulverizando, em função da movimentação e organizações geopolíticas que passaram a existir em Minas e no resto do Brasil com outras bandeiras:

62

Preza a lenda que Fernão Dias, morto por enfermidades durante esta bandeira, estaria enterrado em Barra do Guacuí, depois de seu corpo ter naufragado no Rio das Velhas enquanto era levado para São Paulo, onde deveria ter sido sepultado. Porém, túmulo teria sido abandonado, segundo o historiador Simeão Ribeiro Pires6. Conta-se que Fernão Dias chegou a receber em praça pública um monumento em sua homenagem, mas não há documentário que comprove a eventualidade, pois, não haviam escrivães na época, e os registros da cidade datam somente a partir de 1843. Manoel Borba Gato também teria sido enterrado em Guacuí, segundo boatos. Dizem que certa vez encontraram no antigo cemitério, onde só haviam restos das muretas e uma remota cruz, a inscrição ‘MBG’ – possivelmente, iniciais de Manoel Borba Gato. No entanto, são apenas rumores, de uma terra sem confirmação. Neste mesmo período – entre os séculos XVII e XVIII – padres jesuítas também teriam feito suas andanças por Guacuí, e de certa forma ‘contribuído’, deixando como rastro as, hoje, cortejadas e características obras arquitetônicas desta ordem religiosa na cidade. Herança do tempo das ‘cruzadas’ pelo Brasil. De busca e conquista de “paraísos”. Ainda que fosse pela força catequizadora. A Igreja da Pedra ou de Nossa Senhora de Matozinhos é o testemunho desses momentos que os parcos documentários não

Parte enfim para os serros pretendidos,

dão conta de aclarar ou rememorar com precisão o que, ao certo,

Deixando a Pátria transformada em fontes,

teria ocorrido naquelas conturbadas centúrias, que ficaram para

Por termos nunca usados, nem sabidos,

sempre enterradas no passado. Grandes fazendeiros baianos vieram,

Cortando matos, e arrasando montes;

da mesma forma, se estabelecer por ali. No Médio São Francisco de



forma geral. E ao longo do rio assentaram seus currais. Na época,

deveria estar o telhado do templo. A impressão que se tem é a de

buscavam expandir a criação de gado, até então extensiva – e

que as raízes desceram, e não que subiram brotadas do chão. O

que necessitava de grandes espaços para a pastagem, o que de

que é muito provável que tenha acontecido. Afinal, a gameleira é

forma intuitiva acabaram encontrando nos chapadões norte-mi-

uma árvore parasita que nasce de outra já existente e pode brotar

neiro. Além disso, tinham interesse em adquirir com facilidade o

em situações das mais adversas. Inclusive, no topo de uma ruína,

sal para seu gado, que era transportado pelo rio São Francisco, e

se sustentando provisoriamente de outro vegetal. Desde que seja

mais adiante, aspiraram a proximidade dos centros aurífero e dia-

semeada, tarefa que algum pássaro, abelha ou o próprio vento,

mantífero, que dali a pouco, entrariam em efervescência, depois

pode ter executado ao germinar com a semente ou o pólen da

que o rush do ouro foi inaugurado pelos paulistas. Afinal, nestas

gameleira outra planta qualquer, que já vivia lá no alto das pedras

regiões necessitada de víveres, teriam um mercado consumidor

da igreja e que com o tempo acabou por se desenvolver, buscan-

promissório.

do por fim o solo distante. Engenhosidade do acaso. Inclusive,

O fato é que Barra do Guacuí, que era um entreposto relativa-

é interessante notar outro fortuito: a ligação que as gameleiras

mente importante até meados do século XIX, acabou não prospe-

têm com o plano místico-religioso. Nos rituais afro-brasileiros a

rando como deveria, sobretudo, em função das grandes epidemias

árvore é considerada uma espécie de ‘planta-deus’ e suas folhas

de malária que assolavam constantemente a população na época das

são utilizadas no preparo de uma efusão sagrada para os cerimo-

cheias, o que acabou afastando negociantes e moradores. E que

niais sagrados. Para alguns povos da Antiguidade, a morte de uma

com o passar do tempo, acabou por ruir suas chances de se emanci-

gameleira era um indicativo de maus presságios, e na Índia, é co-

par e deixar de ser somente terra de lendas e de destroços esqueci-

mum a presença de gameleiras próximas aos templos budistas,

dos... Como sua mais simbólica construção: a Igreja da Pedra.

por serem consideradas sagradas.

Ruínas ao léu

Independente do misticismo envolto nesta planta e de qual for a denotação que queiram dar àquela gameleira na Igreja da

Manhã de 15 de julho. Estacionamos o carro na sombra de

Pedra, alegórica ou não, o fato é que, naquele templo, a árvore

uma árvore e saímos em direção ao porta-malas para pegarmos

tem uma função simbólica flagrante: ela preenche literalmente

os equipamentos. Conferi minha bolsa, peguei a câmera fotográ-

uma lacuna arquitetônica do passado. A igreja que foi construída,

fica e quando, finalmente, fitei a Igreja da Pedra: magnetismo...

no século XVII, por escravos, provavelmente sob supervisão de

O que havia acontecido ali? Enquanto caminhava em direção

jesuítas, foi abandonada ainda em construção. A nave, por exem-

aquelas ruínas fui reparando a estranha beleza daquilo. Era uma

plo, não chegou a ser erguida. Isto porque, freqüentemente, nas

robusta Gameleira no topo de uma construção secular. As raízes

épocas de chuvas, o rio das Velhas – hoje diminuto, inundava o

enervadas e grossas da árvore tomaram conta de toda a parede

local e o infestava de malária - “febre pútrida e intermitente”. 7 O

posterior da igreja e, a copa, imperiosa, se abriu lá no alto, onde

que acabou obrigando a população, doente e castigada, a migrar

64



A gameleira e a Igreja da Pedra: a frondosa árvore brotou no topo das ruínas desta construção que remonta três séculos de existência. A igreja foi abandonada antes de ser concluída e, ainda hoje, encontra-se enjeitada, não fosse a presença vivaz da planta que dela se apoderou. Trata-se de uma edificação jesuíta.


para terrenos mais elevados e a fundar novo povoado: Várzea da

confusa quanto ao tempo real daquela circunstância – século XXI

Palma. Casas e construções em Guacuí foram deixadas, inclusive

ou século XVII? -, tamanha vivacidade e caracterização da igreja.

a Igreja da Pedra, ainda inconclusa. Assim, apesar da gameleira

Lá mora Luís - Lula, um homem de meia idade e de sotaque

ter apenas três décadas de idade – a Igreja tem mais de trezentos

nordestino, que, no início, ficou meio cabreiro com a minha apro-

anos, pois foi edificada entre 1650 e 1679

8

(não se sabe a data

ximação. Chamei-o para conversar e uma das poucas coisas que

ao certo) -, é cabal a sustança que a árvore forja dar, hoje, as ruí-

me disse a respeito foi que, era ele quem mantinha os restos da

nas do templo, feito somente de pedras e argamassa de cal. Está

igreja em relativa segurança e limpeza, além de ter relembrado

evidente a presente simbiose entre aquela obra e a natureza. As

alguns casos de tentativa de saque.

raízes estão esparramadas por toda parte, e onde ainda resta pe-

– Queriam levar o quê exatamente, Luís?, perguntei.

dra sob pedra, há tentáculo da gameleira. Onde ela ainda não al-

– As portas! Ameacei atirar uma pedra em um enxame que

cançou, está tentando alcançar... Por isso, se o Departamento de

tem aí dentro, e a pessoa acabou desistindo. Deu-se por vencida.

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não dá a devida impor-

Já tentaram até tirar as pedras... Levantei as sobrancelhas surpre-

tância aquele suntuoso elo de um passado remoto com o presen-

sa, como quem acaba de se encabular com um disparate. - Que tipo

te, ao léu e à deleite das intempéries e do tempo, aquela frondosa

de pessoa rouba a porta carcomida de uma ruína, pensei. O enxa-

gameleira assumiu a diligência. Resolveu cuidar em definitivo.

me, que por sua vez Luís se referia, era de uma espécie de abelha

Em Várzea da Palma, onde foram edificadas as igrejas do novo

indígena sem ferrão, que existe ali, próximo a gameleira. E que,

povoado, uma delas inclusive em substituição a da Igreja Pedra,

curiosamente - do seu modo - auxilia na defesa da igreja (natureza

o desmazelo com os bens nacionais também vigora. Em 1879, o

providencial?). Este tipo de abelha, de cor preta, prega um susto

geógrafo e historiador Teodoro Sampaio que estudou a navegação

em quem se aproxima. Pois, grudam – digo por observação da ex-

no Rio São Francisco, já observara o comprometedor estado das

periência alheia – no cabelo do ‘intruso’ e lá ficam zunindo até ser

Igrejas do município: “A obra, interior, seria, porém, digna de ad-

encontrada e removida. O que atemoriza, embora não pique. Esta

miração e de todo apreço, [...] se não fora o muito estrago e a

abelha é conhecida como ‘torce cabelo’ apesar de Luís, ter me dito,

péssima conservação da belíssima arquitetura. [...] o vigário, coi-

que aquilo que azucrinava quem ousasse ameaçar o tesouro que

tado, não tinha a mínima esperança de ver as coisas melhorarem;

habitavam, era o ‘bicho Inhê’... Depois, divagou outra informação

9

encontrara-as assim, assim haviam de ficar...”. E ficaram mesmo.

relapsa: - As folhas da gameleira caem entre setembro e outubro...

Hoje, cento e trinta anos depois, a situação é a mesma. Não há

Enquanto ouvi essa digressão, olhei para o topo da igreja contra a

conservação do que restou, e ninguém responde pelas edifica-

luz do sol, com os olhos semicerrados, e pensei: talvez tenham sido

ções. Por essa razão me senti sobressaltada quando percebi mo-

aquelas abelhas “indígenas” que polinizaram essa gameleira...

vimento na casa ao lado da igreja. Aliás, se não fosse esta casa a

Momentos depois, já sozinha e, sentada próxima a cruz, pen-

margem e os postes de iluminação em frente às ruínas, eu ficaria

sei de novo, desta vez mais desolada: onde anda, afinal, a historio-

67


grafia desta terra? Guacuí, deveras, deveria ser um dos pontos da

cebe efluentes pútridos e industriais de vertedouros vindos dos

inexistente “Estrada Colonial” do norte de Minas Gerais.

ribeirões Arrudas, do Onça, da Mata – todos tributários, alta-

Um ponto de dois rios Depois de vasculharmos a Igreja da Pedra, migramos, por volta de meio dia, para a vizinhança do templo, um pouco mais ao norte, onde acontece a confluência do rio das Velhas com o rio São Fran-

mente poluídos. O ápice de sua degradação se dá em Santa Luzia, quando já se congrega grande nível de toxidade, tamanha carga de poluentes recebidos. Depois, aos poucos, quando começa a entrar na porção média de sua bacia, e a contribuição negativa de seus afluentes vai diminuindo, a água começa a se depurar. Nesta parte

cisco. O calor era assaz. No momento em que chegamos, alguns

já entrecorta as cidades de Curvelo, Corinto... Até que por fim, en-

pescadores estavam reunidos na beira do Velhas discutindo coisas

contra sua Baixa porção e se extingui em Várzea da Palma (Barra do

da lida pesqueira, próximos a alguns capões e arvoredos. Porém,

Guacuí), onde se funde com o seu receptor: o rio São Francisco.

não demorou muito para que concluíssemos que do ponto onde

Pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os

estávamos não era ainda possível avistar a junção das águas. Além

rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um as-

disso, a idéia desde o início era observarmos a região por água e

pecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais

não por terra. Tratamos, então, de prosear com alguns homens

moroso. E é esse descompasso das aparências entre os dois rios

locais e conseguimos negociar com um deles, nossa ida de lancha

que facilita a observância do fenômeno da junção das águas, que

até o ponto onde pudesse ser vistas as águas do rio das Velhas de-

depois de certo ponto, se tornam um só feixe líquido em busca

sembocando no rio São Francisco. Oito reais fora o preço que ele

da foz, em Alagoas. Apesar da poluição grotesca do Velhas con-

nos cobrara por cabeça. Partimos então barco adentro...

tribuir, sobremaneira, para que suas águas tenham aquela apa-

O Rio das Velhas nasce em Ouro Preto, próximo a uma área

rência infetuosa, a explicação para sua coloração reside, também,

de preservação ambiental. Cristalino, passa pelos municípios de

no fato de seu leito correr sob um terreno composto de minério

São Bartolomeu, Acuruí e até a confluência com o rio Itabirito, a

férreo, que geralmente, quando pulverizado em água, desprende

qualidade de sua água é desejável. Passado este ponto, sua trans-

uma tonalidade avermelhada. Embora, esta pigmentação ferrosa

formação se inicia. À medida que seu curso avança pela área cen-

da água tenha se camuflado, nos últimos anos, em um marrom

tral do Estado, emissões de esgoto vão sendo despejadas em seu

escuro, conseqüência do alto índice de poluição acumulada no rio,

leito. As quantidades só aumentam com a aproximação da região

e que acabou por tirá-lo da brilhosa posição de ‘rio do Ciclo do

metropolitana de Belo Horizonte – a principal responsável pela

Ouro’– em função das descobertas de aluvião que Manoel Borba

degradação do rio, apesar de corresponder a somente 10% da área

Gato e Garcia Rodrigues fizeram durante pesquisas pelo Velhas e

territorial da bacia do Velhas. Em Sabará, recebe uma carga bruta

seus afluentes -, imputando-o a pejorativa categoria de água pútrida,

de esgoto in natura, sem qualquer tipo de tratamento prévio. Mas

de doenças, mau-cheiro e mortandade. Richard Burton 10, ficaria

é em Belo Horizonte que o Velhas se deteriora por completo: re-

no mínimo decepcionado se visse o atual estado do Velhas, que

68


Encontro das águas: “pela coloração e pela viscosidade das águas já se nota: os rios também têm tipificação. O Velhas é avermelhado, tem um aspecto barrento e denso... O São Francisco é menos turvo e mais moroso”. A pesca na intercessão das águas é evidentemente bastante recorrente.


Ponto de dois rios: nesta localidade o Rio São Francisco (ao fundo) se entrecruza com o Rio das Velhas, seu maior afluente em extensão e seu maior agente poluidor: é da região metropolita de Belo Horizonte é de onde advém a maior carga poluidora de toda a Bacia do São Francisco. A coloração é bem distinta


outrora descrevera-o como um rio de empolgante piscosidade, no

que o projeto de recuperação da bacia do Rio das Velhas foi posto

qual bastaria submergir um balde em suas águas para pegar, pelo

em vigor, em 2003. Nesse ano, empreendeu-se uma viagem para

menos, uma dúzia de peixes. Realidade bem diferente da atual

monitorar as áreas de degradação do rio, desde sua cabeceira até

que não é nada agradável de ser vista. Se antes o Velhas era si-

a foz, em Guacuí, perfazendo 801 quilômetros de travessia, e re-

nônimo de abastança, hoje a bacia é considerada uma das mais

sultou em estudos e planos de ação para reverter desgaste eco-

degradadas do estado, inclusive a maior tributária de poluição do

lógico do corpo d’água, hoje postos em prática. Dessa expedição

rio São Francisco. Apesar de sua importância sócio-econômica ser

de 29 dias, surgiu, também, a meta do projeto: “navegar, pescar e

indiscutível: concentra 4,5 milhões de pessoas no entorno de seus

nadar no Rio das Velhas até 2010”, atualmente, amplamente difun-

761 quilômetros de extensão, e sua bacia é a mais próspera das

dida pelo Estado em função dos resultados que vem sendo observa-

sub-bacias do Rio São Francisco – tem o maior Produto Interno

dos. Inclusive, um dos grandes feitos do Projeto foi ter conseguido

Bruto. Tendo sido, inclusive, o desenvolvimento econômico não-

inculcar suas metas no plano de políticas públicas do Estado, que até

sustentável dos 51 municípios que entrecruza, o maior algoz de

então se abstinha da responsabilidade. E, no presente, a Copasa e

sua decadência ambiental. Principalmente, nos últimos 30 anos.

Governo estadual integram a bandeira Meta 2010 – Revitalização

Quando sua riqueza natural foi ceifada pela mentalidade do de-

do Rio das Velhas. Entre as medidas prioritárias atuais de despolui-

senvolvimento a todo custo.

ção da bacia estão a construção de Estação de Tratamento de Es-

Atualmente, graças a uma iniciativa pioneira de alunos do curso

goto (ETE), em Santa Luzia e Pedro Leopoldo, e também a inten-

de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, que deram

sificação do tratamento de esgoto do ribeirão Arrudas e da Onça,

origem ao Projeto Manuelzão em 1997, a poluição mitigou e hou-

que devem ser construídas em 2010, quando análises da qualidade

ve uma melhora na qualidade da água do rio Velhas que chega

da água do Velhas serão feitas de novo, para que se estude a via-

ao São Francisco em comparação a uma década atrás. Em função

bilidade de enquadrar suas águas ao nível que estudiosos da área

deste progresso, tem sido até noticiada a volta de algumas espé-

classificaram como “dois”, ou seja, que podem ser utilizadas para

cies de peixes, então desaparecidas pelo comprometimento das

plantio de hortaliças e frutas, criação de peixes, para o lazer e ao

condições naturais do rio, como o mantrixã, dourado e piau. No

abastecimento domiciliar. Depois, é claro, de ser tratada.

entanto, é patente o fato de que o volume de coisas a serem feitas

Três canoístas que integram a equipe de mobilização do Pro-

para reestruturar e revitalizar o Velhas seja ainda tão grande quan-

jeto Manuelzão: Erik Wagner, Rafael Bernardes e Ronald Guerra

to todas as emissões de esgoto doméstico e industrial que o rio

adiantaram parte deste processo de reavaliação do rio, viajando

recebeu nas últimas décadas. O que nas palavras do secretário de

de caiaque pelo Velhas, um mês antes da nossa incursão, em ju-

Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, José

lho, pelo São Francisco. E apesar de terem concluído o que já era

Carlos Carvalho, se resume em “tratar o rio como uma coisa efe-

esperado: que “as ações de revitalização não podem parar” 11, ou

tiva”. Premissa, que ao que parece, vem sendo cumprida desde

nas palavras do Apolo Heringer 12 “a meta não está assegurada”,

71


notaram um avanço considerável tanto na organização da po-

avariado? Talvez tenhamos testemunhado, sem saber, o indício da

pulação ribeirinha em torno do Velhas como nas próprias con-

recuperação de duas hidrovias históricas tão pormenorizadas em

dições ambientais da bacia. Contaram para a revista Manuelzão

suas grandezas.

13

que chegaram até a consumir o peixe do rio – do baixo Velhas -, apesar de terem tomado as devidas precauções, como a avaliação do aspecto do peixe por dentro e por fora. Engraçado notar que embarcamos na mesma aventura dos canoístas quando, na noite que chegamos a Guacuí, onde o Velhas se encerra, pedimos em um boteco local (o único) - peixe para o

1

(CASAL, 1945-47)

2

Miliet de SAINT-ADOLPH, Dicionário Gráfico

3

VIEIRA NETO. 1982, p.84

4

NEVES, Z. 1998, p.32

5

Oitava 35 do poema “Descobrimento das Esmeraldas” de

‘jantar’. O dono do estabelecimento nos serviu um tipo de pescado que nenhum de nós ainda havia experimentado: a corvina, espécie que muitos pescadores e funcionários de secretarias de

1629, publicada pelo pseudônimo de Diogo Grasson Tinoco,

meio ambiente disseram, durante a pesquisa, estar em extinção.

cujo real do autor é desconhecido.

Se o peixe veio do Velhas, nunca saberemos apesar de ser prová-

6

Raízes de Minas, p. 95-96.

vel que tenha vindo, pois, mesmo com notificações como as do

7

VIEIRA NETO. 1982, p. 80

8

Estimativa da Prefeitura Municipal de Pirapora

9

O Rio São Francisco e a Chapada Diamantinense, p. 147.

Instituto Estadual de Floresta (IEF) que, vez ou outra baixa portaria proibindo a pesca na região, entre Jequitibá e Barra do Guacuí, pescadores continuam pescando, como pudemos flagrar nas adjacências do encontro das águas. O fato é que aquele peixe acompanhado de limão e mandioca frita, foi o melhor que comemos durante toda a viagem – e foram mais de 900 quilômetros percorridos! Talvez ele tenha vindo mesmo, da rede de algum daqueles insistentes pescadores... Ou não. Se, veio, e estava contaminado será um eterno mistério como tantas outras coisas são em Guacuí, morada do Velhas. O fato é que nenhum de nós se sentiu mal depois daquela simples, mas, deleitosa refeição. Muito pelo contrário. Se o peixe deixou algum resquício em nós, foi a nostalgia de um afável sabor. E a dúvida de um momento vital para a bacia do Velhas: estaria mesmo o Velhas se recuperando? Trazendo animosidade e alento também para o São Francisco, igualmente tão

72

10

Richard Burton foi, entre outras coisas, escritor e explorador

que viajou pelo Rio São Francisco. 11

Revista Manuelzão n˚52, ano 12, julho de 2009, p. 14-17.

12

Apolo Heringer é o idealizador do Projeto Manuelzão e o de-

poimento foi retirado da Revista Manuelzão n˚53, ano 12, setembro de 2009, p. 3 13

Baixo Velhas se circunscreve a confluência do Rio das Velhas

com o Rio Paraúna até a foz no Rio São Francisco (Guimarães, 1953)


São Romão: percepções distanciadas de uma cidade à beira-rio

Tarsila Costa

“O saber deve ser como um rio, cujas águas doces, grossas, copiosas, transbordem do indivíduo, e se espraiem, estancando a sede dos outros. Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades”. Gilberto Freyre



Lembro-me do dia que chegamos a São Romão como se fosse

não documentados. Portanto, faz-se necessário traçar uma linha

hoje - dia 16/07/09 - quarta-feira. Era o começo de uma tarde bem

entre a imaginação e alguns fatos que são recontados por meio

quente, senti aquele inverno sertanejo quando observei na balsa

de historiadores e da memória social dos são romanenses para

as pessoas de blusa de frio. Na chegada à margem são romanense,

que possamos ter um panorama situacional da cidade. Para se ter

dirigi-me a um butequim, perguntei se alguém sabia onde havia

idéia, a secretária de cultura da atual gestão, Cândida Dionísia do

um hotel de preço modesto. Uma senhora de feição bem turva

Nascimento, declarou: “registro da história, documentação nos

disse não saber; olhei para outras pessoas do bar e todos balan-

não temos praticamente nada”. Ela ainda afirmou que se podem

çaram a cabeça afirmando o desconhecimento de um hotel na ci-

encontrar alguns documentos históricos em Uberaba e Portugal.

dade. Até que um rapaz gritou lá do fundo do bar: “Sobe essa rua

As impressões da Coroa no século XVII sobre o sertão mineiro

aí a direita que perto da rodoviária tem um hotel”. Agradeci e me

são bem alegóricas, embora correspondessem de certa dose de

retirei do lugar, começara ali nossa imersão num espaço repleto

veracidade. De acordo com o trecho da obra de Romeiro Botelho

de histórias.

utilizado no Inventário de Proteção do Acervo Cultural, feito pela

Quem chega pela estrada de Ibiaí avista uma cidade que quando olhada de longe parece uma ilha. Três rios cortam a vila: o Velho Chico, Paracatu e o Urucuia. Para chegar a São Romão vindo por ibiaí é necessário pegar uma balsa que atravessa o Velho Chico. Tive a impressão durante a travessia até a outra margem que o tempo escorria junto com aquelas águas, tive o sentimento que estava indo para um lugar que transgredia a lógica linear do tempo urbano. Podia ver as pessoas da cidade observando quem vinha com a balsa; mas não tinham uma feição alegre, e o rio São Francisco com certeza já tinha trazido muitas alegrias e tristezas em suas águas para aquela gente. O município de São Romão guarda um acervo histórico diverso na tradição oral que alguns poucos moradores daqui ainda guardam em suas memórias e recontam para manterem viva a história tão mal documentada dessas paragens. Para quem chega

Prefeitura de São Romão: Essa região era denominada sertão das Minas. Era uma área que além de contar com uma população que não estava inserida nas engrenagens da economia mineradora – geralmente índios bravos, facinorosos, bandoleiros, vadios e quilombolas – não possuía ouro. Nos primeiros relatos sobre a região aurífera, em fins do século XVII, o sertão aparece como lugar inóspito, de difícil acesso, cortado por rios caudalosos e intransponíveis, envolto em matas fechadas e escuras. Entretanto o povoamento rápido e intenso, acelerado nos primeiros anos oitocentistas, resultou na territorialização do sertão. Para as autoridades, o sertão afigurava-se-lhes como lugar de revolta e motim, cenário por excelência da insubmissão política, espécie de terra sem lei que resistia à implantação do poder e da ordem. Nele imperavam potentados. (Botelho, Romeiro, 2003:271)

de fora querendo descobrir mais sobre a emblemática transversal

A história desse antigo entreposto comercial que fazia o elo co-

do tempo que se instalou na história do município, pode ficar

mercial entre os sertões e o litoral no século XVIII é mais antiga do

confuso com as várias versões que gravitam entorno de fatos

que as fachadas mal-tratadas e casas antigas derrubadas presentes

75


e ausentes nesta cidade. Conflitos e contendas marcaram a data

com o Inventário, a região pouco sofria com os tributos impostos

em que São Romão foi fundada enquanto arraial. Os índios nati-

pela Coroa. Os pobres nessa época, segundo a historiadora Carla

vos caiapós e a bandeira de Manoel Francisco Toledo travaram in-

Maria Junho de Anastásia, eram chamados de arraia-miúda e re-

tenso conflito, datado em 23 de outubro de 1719. Segundo Telêmaco

sistiram a pagar a taxa, o que culminou em outro violento capítulo

William Dias Palma, artista plástico e morador do munícipio, “São

da história de São Romão com inúmeros mortos e feridos. Mas o

Romão antes dos portugueses era habitado por índios caiapós;

povo sertanejo que se envolveu em tal conflito não queria apenas

aqui tinha a aldeia Guaíba. Então para os portugueses coloniza-

a liberação da taxa, queria a soberania da região dos sertões. Estes

rem o Brasil central, a única via era o rio São Francisco. Eles [os

movimentos buscavam a libertação da política vigente: na época

portugueses] tiveram que matar os índios, foi a maior matança

foram denominados “motins do sertão”. O trecho da dissertação

do Rio São Francisco; posteriormente a essa matança fundou-se o

de mestrado de Carla Maria, intitulado a sedição de 1736, ilustra o

arraial de Santo Antônio da Manga, o nome São Romão foi dado

contexto dos chamados “motins do sertão do São Francisco”:

à ilha após o extermínio”. Ainda, os índios que não foram mortos foram expulsos de suas terras, como datado no Inventário do patrimônio da cidade. Segundo a biblioteca digital do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a causa de tal nome foi em razão de ser o santo do dia. O sangue indígena derramado foi celebrado pela Igreja nesse dia, pelo fato dos bandeirantes terem conseguido tomar a ilha. A aldeia dos Guaíbas é localizada numa ilha que segundo o IBGE dividia o grande rio em dois braços. Como já foi dito a única via de acesso aos sertões era o Rio São Francisco, e, junto com suas águas, metais preciosos, pro-

Em 6 de julho de 1736, os amotinados, mais de 900 homens, vindos das beiras do São Francisco, de “baixo e de cima”, entraram em São Romão, exigindo que o governador aliviasse a capitação. Caso contrário, voltariam, no prazo de 33 dias, e dali, partiriam armados para as minas (...) Após o prazo de 33 dias, os amotinados seguiram para São Romão, liderados por Pedro Cardoso, investido do cargo de procurador do povo (...) A pretexto do chamado dos moradores das minas, os amotinados pretendiam conquistar Sabará e chegar até Vila Rica(...)”(Anastásia Apud Botelho, Romeiro, 2003:206).

dutos agropastoris, descia o sangue indígena do povo sertanejo.

Depois de uma série de revoltas, a coroa reprimiu mais uma vez

A primeira metade do século XVII foi palco para violentos embates

com toda força que poderia, matando os que se manifestaram contra

entre o povo do sertão e a Coroa no alto do Vale do São Francisco.

a taxa e, em seguida, implementou o sistema de capitação. Após o

Após o massacre indígena, mais um conflito trouxe o dissabor

ocorrido, parece que foi selada uma paz com ares de um passado san-

para os são romanenses. Em 1736 houve outro conflito no arraial.

grento, um passado de lutas e rebeliões. Certo estranhamento pelos

A população se rebelou com a coroa devido à tarifa de captação

forasteiros parece ser cultivado até os dias de hoje no imaginário co-

que havia sido implantada pelos portugueses; parecia que os são

letivo do povo de São Romão, embora a história não seja uma lacu-

romanenses resistiam à dominação do império, não apenas por

na que se encerre em si mesma: em todos os lugares há pessoas que

valentia, mas, conta-se que a pobreza era farta por aqui. De acordo

transgridem com a mentalidade do espaço tempo que se encontram.

76


O patrimônio histórico ou a falta que ele faz Telêmaco nasceu e foi criado na cidade de São Romão, e, um pouco mais tarde foi morar na capital Baiana, Salvador, onde resi-

casa azul que se localiza na avenida Newton Gonçalves Pereira, não muito longe da beira-rio. Na parte superior da parede frontal ainda é possível ver o brasão da república. Conta-se por aqui que a ali era uma casa da moeda instalada pela Coroa. Telêmaco

diu quinze anos. Segundo o artista, quando chegou a Salvador era

desmentiu, dizendo que naquela casa morava uma família, nada

viciado em álcool e cigarro, embora tenha abandonado esses vícios

mais. O artista parece ser um trovador nessas bandas. A antiga

ao descobrir sua paixão pela pintura. Na ocasião da conversa, escu-

cadeia, fundada em 1880, localizada na praça dos fróis, segundo

tava Led Zeppelin. Havia ainda vários quadros na sua varanda, qua-

Telêmaco, também não abrigou o assassino do marido da famosa

dros produzidos na sua estadia em Salvador retratando a própria

proprietária de muitas terras, Joaquina de Pompeu. Essa é a his-

cidade. As crianças se enlaçavam curiosas entorno dos quadros

tória que povoa o imaginário dos moradores de São Romão. Telê-

que ele colocara para fora; elas discutiam as pinturas que gostavam

maco conta outra história: “Joaquina de Pompéu não frequentou

mais ou menos e algumas obras que pareciam formas mais abstra-

São Romão. O que houve é que teve uma Joaquina de Rafael, uma

tas. Telêmaco mostrou uma série que fez sobre os vendedores de

fazendeira de Ribeirão da Conceição, de riachinho. Ela mandou

cafezinho de Salvador; falou do campeonato que havia entre eles

matar o genro dela, só que ele era de uma família de Paracatu;

onde o carrinho mais belo era premiado, falou da época que morou

a família dele então jurou que ia se vingar. Prenderam-na. Então

na parte antiga da cidade e de um episódio que o marcou profun-

era Joaquina do Rafael, o pessoal veio com a história de Joaquina

damente: a casa em que morava pegou fogo e ele perdeu muitas

do Pompeu e era Joaquina do Rafael”. Ainda se conta que na An-

coisas. Disse que havia ficado muito angustiado de ter perdido um

tiga Cadeia, atual casa da cultura, havia um porão onde os presos

caderno de anotações sobre a sua vida que carregava com ele pra

eram colocados. No local havia forcas entre outros acessórios que

todos os lugares. O quadro sobre os 500 anos do Brasil chamou

marcam a opressão e o sofrimento dos que passaram pela antiga

muito minha atenção. No desenho da bandeira brasileira não des-

cadeia. Não se vê hoje em dia nem esses acessórios nem mesmo

pontava o escrito ordem e progresso, antes, um negro sangrando

o porão: esse foi soterrado segundo o plano de inventário da ci-

sentado no centro do losango amarelo; embaixo um prato onde o

dade, por volta de 1930, numa tentativa de apagar um passado de

sangue escorria, servindo de alimento aos insetos e ratos.

sofrimento e opressão. Diz-se, ainda de acordo com o inventário,

Telêmaco falou sobre a intolerância racial em São Romão, a

que sacas de sal foram colocadas no antigo porão com o objetivo

não valoração da cultura e história dos são romanenses e do pró-

de esfriar o local, “Aos poucos os presos sentiam os efeitos no or-

prio poder público local. Ele nos mostrou uma foto antiga da cida-

ganismo: inchavam, ficavam pálidos e sem ar, até virem a falecer”.

de com as casas que a compunham outrora. Estas tinham fortes

Este sal encontrado nos porões da antiga cadeia chegou a São

característica da arquitetura portuguesa; hoje restam poucas edi-

Romão, segundo Mata-Machado, no período colonial, no século

ficações dessas que estavam na foto. Falou inclusive sobre uma

XVII, devido ao município ter sido um dos portos distribuidores de

77


Uma das obras de TelĂŞmaco William Dias Palma


sal da época. Ainda Mata Machado diz que a farinha de mandio-

tem o olhar cerrado, e, quando fala do seu batuque e dos seus

ca, a rapadura, a cachaça e o peixe eram produtos fornecidos ao

antepassados, é possível ver a relação de cuidado que tem com a

pessoal que trabalhava nas minas. O sertão mineiro, ou os Gerais,

herança cultural que herdou dos seus antecessores. No chamado

abasteciam as minas com sua produção agropastoril.

batuque de Ernestina, guiado por ela, acontecem festejos, can-

Há tantas histórias nesses sertões, que quando vejo a capital

tos e danças folclóricas como o bumba-meu-boi, caboclo e o São

do Estado de Minas Gerais, pergunto-me, onde estão os Gerais?

Gonçalo, realizados em seu terreiro desde os seus sete anos. Os

Infelizmente só percebo os mineiros recontando eternamente a

instrumentos usados no batuque são de confecção própria: ron-

Inconfidência Mineira.

cador, caixa, tambor. Com a trança amarrada e o lenço na cabeça

Os batuques que guardam história

ela fala que já plantou e colheu nessa terra; muito brava, ela diz que no dia em que morrer quer que pegue todo o seu batuque e

A formação racial diversa dos são romanenses é presente na

enterre com ela: ”Não quero deixar nada pra essa cidade”, protesta.

cor morena e negra que pode ser percebida nos moradores, em-

Dona Maria diz que as manifestações de seu povo não são valori-

bora já fosse percebido por Donald Pierson na década de 50, du-

zadas, nem pela população, nem pela prefeitura. Diz também que

rante pesquisa feita para a produção do livro “O homem do Vale

São Romão é uma cidade muito racista. Apesar de tudo isso, dona

do São Francisco”. Ele notou grande participação africana nas ex-

Maria nunca saiu da cidade e seus antepassados foram todos en-

tremidades do Vale, principalmente onde havia o plantio de cana-

terrados ali. É como se fosse muito ruim ficar nesta situação de

de-açúcar. Outras observações interessantes foram feitas sobre

descaso, mas pior seria ficar longe de suas raízes. Pareceu-me que

São Romão, quando Teodoro Sampaio passou por aqui por volta

há uma relação de necessidade entre dona Maria e São Romão,

de 1890. O antigo arraial ainda se chamava Vila Risonha de Santo

embora ambos não tenham percebido isso. D. Maria representa a

Antônio da Manga de São Romão. Ele observou uma grande tris-

cultura negra da cidade com seus cantos, suas histórias, seu com-

teza no povoado, além da pobreza e da feiúra que levou com suas

portamento, sua oralidade. Não queria se filiar ao inventário do

impressões etnocêntricas da vila.

patrimônio histórico de São Romão por se julgar abandonada pela

De negros tristes, restaram algumas histórias como a de dona

administração pública. Daqui alguns anos, quando dona Maria se

Maria da Conceição Gomes de Moura, mais conhecida como dona

for e enterrar consigo todo seu batuque, parte importante da his-

Maria do Batuque. Senhora de 81 anos, mora na antiga parte da

tória de São Romão mais uma vez irá se perder.

cidade, que de antiga atualmente apenas possui algumas poucas

Ela conversava e tentava nos olhar, embora tivesse muita di-

casas com características portuguesas: a Igreja do Rosário, a an-

ficuldade em razão de sua limitada visão. Não há como esquecer

tiga cadeia e um antigo pé de Tamarindo. Mostrando que algum

dona Maria dançando a dança do xién (determinação de xien), se

dia, em algum tempo que não foi documentado, a coroa portu-

coçando e se batendo para fazer menção à coceira que esse bicho

guesa tentou instalar-se de maneira eficaz por aqui. Dona Maria

dá quando gruda no cabelo: “Ô xien bicho danado”, ela dançava e

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cantava celebrando um passado que faz parte da história de São

nômades ou aldeados, de escravos fugidos, infestavam as mar-

Romão e que indiscutivelmente faz parte da história do povo bra-

gens do grande rio, assaltando caravanas e contrabandeando

sileiro, povo este que possui uma matriz negra marcante. Há mui-

ouro. Um mar populacional desaguava da Bahia de Todos os Santos

tas histórias que foram soterradas pelo tempo devido o descaso

em direção ao centro das Minas, movidos pelas promessas de

com o patrimônio. No entorno da casa de Dona Maria, encontra-

pedras preciosas e riqueza fácil, além do que, nesses sertões não

se um patrimônio largado, esquecido. A Igreja de Nossa Senhora

havia fiscalização intensa da coroa. É possível imaginar quantas ri-

do Rosário está pintada por fora, mas no inventário do patrimô-

quezas eram escoadas pelo São Francisco nessa época e quantos

nio cultural se diz que muitas imagens e adereços se perderam:

conflitos, roubos e saques eram travados nessas terras, sobretu-

roubos, descuidos podem ser uma das razões dos monumentos

dono auge da extração aurífera. Mais especificamente no norte de

estarem assim.

Minas era fomentada a atividade agropastoril. O fluxo de pessoas

Quando olho para dona Maria vejo-a, por ora, como esses pa-

e mercadorias motivadas pelas descobertas trouxe os negros, ban-

trimônios mal-preservados e desvalorizados. Há, todavia, uma re-

deirantes, portugueses para as terras interioranas do Brasil que

lação entre ela e esse contexto de desamor com a própria história

outrora fora dos índios; muitos fugiam da costa brasileira, que, a

e cultura. Dona Maria resiste, toda vez que reúne sua banda e fes-

partir do século XVI já estava colonizada pelos portugueses.

teja sua cultura em seu terreiro. Os cantos afro-brasileiros toma-

No processo de povoamento dos sertões, vários arraiais co-

ram forma num belo trabalho produzido pelo músico Rafael Duarte,

meçaram a aparecer devido ao fluxo de pessoas e produtos que

intitulado: “Batuquim vai abaixo, vai não”, no ano de 2007. Dona

passavam pelo Rio. Esses arraiais não se formavam e permaneciam

Maria do Batuque é o maior símbolo de resistência cultural de São

fixos - muitos desapareciam -, perdiam o fórum de Vila porque as

Romão, a história deverá justiça a tanto esquecimento.

pessoas em determinado tempo simplesmente iam embora em

Quando se caminha pela parte antiga, há alguns vestígios histó-

decorrência das condições gerais de sobrevivência. Teodoro Sam-

ricos como a igreja Nossa Senhora do Rosário, símbolo importante

paio quando passou por aqui se sentiu intrigado com o apareci-

da colonização portuguesa datada no século XVII. Outras casas de

mento de determinadas vilas, mesmo sob condições precárias. Ele

estilo português ainda são possíveis de se ver. Estas casas destruídas

refletia que algumas cidades nas quais chegou não havia ninguém:

ou depredadas atestam uma história que remonta nosso processo

o biólogo se sentiu impressionado com a situação de instabilidade

de colonização, embora antes dos portugueses chegarem aqui com

que o povo sertanejo estava entregue. Segundo Telêmaco, como

suas bandeiras em busca de pedras preciosas e poder no século XVII,

o desenvolvimento e com o nascimento de outros povoados e

nas margens do grande opará - ou rio-mar (nome em tupi guarani do

vilas na região, a cidade entrou em decadência. Algumas famílias

Velho Chico) - os índios Caiapós já estivessem aqui.

brancas foram embora, evadindo da cidade. Chegou-se ao ponto

São Romão era um arraial que abrigava forasteiros de toda

de São Romão, em 1873, perder o fórum de Vila. Ainda não havia

sorte. Segundo a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, índios

funcionários para trabalharem na comarca, denominada enquanto

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Os padrões de conservação do patrimônio em São Romão, como em boa parte do norte de Minas, praticamente inexistem. As herenças históricas passam por reformas aleatórias sem a conservação da estrutura original, perdendo a maior parte das características arquitetônicas: a memória se perde com a forma; e São Romão é uma das cidades mais antigas de todo o Vale do Sâo Francisco. O Governo Federal não está, certamente



Cabeça do São Francisco. Com o desenvolvimento de São José da

2009 - alcançou R$213,51 reais. Para a população de São Romão

Pedra dos Angicos, atual cidade São Francisco, São Romão perdeu

isso já é caro, mas ao que parece, a cesta básica em São Romão

a importância econômica, sobretudo pelo fato de outras alternati-

não é uma necessidade essencial. Há um luxo capcioso nesses

vas de vias serem criadas para suprir as necessidades dos lugares

preços; mas quando falamos de necessidade por aqui, temos que

que havia atividades de mineração, como a abertura da estrada

considerar que a população vive, ainda, praticamente de subsis-

para o Rio de Janeiro. Descentrou-se, a partir daí, a necessidade

tência, vista na pecuária, na agricultura e em alguns poucos servi-

de abastecimento de mercadorias vindas do vale para as regiões

ços. O caráter histórico dessa ausência de serviços foi observado

de atividades de mineração.

por Teodoro Sampaio quando passou pelo Vale no século XIX:

Em relação à densidade demográfica de São Romão, há um

“vive-se com pouco por aqui (...) vive-se de brisa”.

dado curioso: se observarmos a tabela sobre o número de pes-

É interessante acompanhar a trajetória histórica dessa cidade

soas que habitam no município desde 1991, veremos que a popu-

que em 1831 foi elevada e nomeada de Vila Risonha de Santo Antônio

lação está decrescendo. Se em 1991 havia 14.562 habitantes, no

da manga de São Romão depois de tantos conflitos e problemas,

ano 2000 o censo realizado pelo IBGE calculou 7.783 habitantes.

sendo em seguida reduzida a um simples distrito de Angicos. Foi

Já no ano de 2007 houve um pequeno crescimento populacional

em 1923 que se emancipou enquanto município, embora sofra de

- foram registradas 9.080 pessoas. Muitas pessoas migraram da

lá pra cá constantes tentativas de apagar sua própria história. De

zona rural para zona urbana de São Romão, embora a cidade pa-

alguma herança do patrimônio indígena em São Romão restou a

deça de uma verdadeira estrutura comercial. O que, segundo uma

ilha dos Caiapós e alguns artefatos que até hoje - quando se fazem

são romanense de mais ou menos 10 anos, é muito ruim para a

obras no município - são achados pelos moradores, que, em sua

economia das famílias da cidade. Rememoro-me da indignação da

maioria, não guardam nem em suas memórias e nem em algum

pequenina em relação aos altos preços dos produtos: “Imagina

espaço público, se não vendem aos antiquários ou apreciadores.

que o quilo da carne aqui é R$15,00, o gás está saindo a R$50,00, o

Júlio César, segundo reportagem feita no jornal Hoje em Dia, o

caderno brochura está R$4,00, o lápis R$0,20. Para complementar

baiano nascido em Petrolina (BA) chegou a São Romão menino e

a indignação da preocupada garotinha, disse que uma calça jeans

sempre tentou cuidar do patrimônio de sua cidade. Em uma casa

está saindo a R$100,00. “Não tem como comprar nada aqui, quan-

alugada em Ceilândia do Sul, Distrito Federal, Júlio guarda um

do precisamos de algo compramos fora” palpita. O Produto In-

acervo de 2800 peças. São artefatos indígenas, algemas, até um

terno Bruto (PIB) per capta de São Romão é de R$4.269,00 reais,

baú cheio de moedas de prata e cobre da época do Brasil colônia

embora o rendimento médio mensal de um são romanense seja

que, segundo ele, foi descoberto quando a prefeitura realizou al-

de R$306,42. De acordo com o Departamento Intersidical de Esta-

gumas obras de asfaltamento na cidade.

tística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE, a cesta básica - tendo

É necessário ter muita imaginação para desvendar o que ocor-

como referência a cidade de Belo Horizonte e o mês de agosto de

reu por aqui, mas há uma aura que acompanha São Romão e que

83


(Esquerda) Cartaz afixado logo na entrada da prefeitura da cidade. (Acima) Garoto assistindo às obras do artista local Telêmaco William Dias Palmas. São Romão é tão histórica quanto isolada no vale do São Francisco. (Direita) Garotos em primeiro plano com outra obra de Telêmaco ao fundo, só que agora retratando os vendedores de cafezinho em Salvador.

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jamais será apagada: a maioria das histórias desta cidade veio trazida pelo Rio São Francisco. Olhar para suas águas é como se olhar para uma espécie de espelho turvo que mostra no seu reflexo sua atual condição: um passado repleto de histórias e de vestígios emblemáticos que se encontram ameaçado pelo descaso e abandono da população e da administração pública federal e estadual.

1

Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura

local. O documento não possui paginação. 2

Disponível no site do IBGE, www.ibge.gov.br

3

Carla Maria Junho Anastasia. A sedição de 1736: estudo compa-

rativo entre a zona dinâmica da mineração e a zona marginal do sertão agro-pastoril do São Francisco. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado, DCP-UFMG, 1983. 4

Plano de Inventário de São Romão. 2007. Cedido pela prefeitura

local. O documento não possui paginação. 1

Bernardo Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de Mi-

nas Gerais. Publicado em 1991, p.37 5

Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. 1972.

6

Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

2002. 7

Disponível no endereço www.dieese.gov.br

8

Teodoro Sampaio. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina.

2002, p.47.

86


Januária: outras histórias além da boa e velha cachaça

Bárbara Camargo

“À Januária eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças — a vinte-e-seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas de umburana”. João Guimarães Rosa


Antes de Januária, Brejo do Amparo

com a região das minas e, também, com o nordeste, outro mercado

Antes de Januária constar no mapa de Minas Gerais, em 1860, e ficar conhecida por sua velha e boa cachaça, um povoado chamado Brejo do Amparo já existia há quase 200 anos. E foi este distrito, ainda hoje rural, que deu origem a Januária. Este lugarejo, que exala cheiro de rapadura, está localizado a cinco quilômetros de distância do rio São Francisco, na parte alta, e foi um dos pedaços de terra que os bandeirantes granjearam no sertão brasileiro, no século XVII. Nesta época, aqueles que não se

consumidor, então, importante. O local foi escolhido por causa das ótimas condições de plantio que o terreno apresentava. Era fértil e naturalmente irrigado, com uma água salinizada - daí vem o nome brejeiro e a designação ‘Salgado’ -, e foi esta fertilidade que impeliu o bandeirante português Manuel Pires Maciel2 a fundar o vilarejo e a iniciar as atividades campesinas tão requisitadas nesse tempo: criação de animais e a produção dos derivados da cana, como açúcar. Pires instalou, inclusive, um engenho movido por água, que dizem ter sido o primeiro do tipo no sertão, e já

aventuravam nas expedições à procura de gemas e de quinhões

em 1670, as pioneiras instalações do Salgado produziam os pri-

de ouro, fundavam fazendas nas margens do rio São Francisco

meiros litros da cachaça que, séculos depois, correria fama pelo

para criar gado e roça a fim de abastecer a população das minera-

país inteiro. A produção do brejo prosperou tanto, que no século

ções, recém-descobertas. Visto que, essas minas geratrizes sacia-

XVIII, despontava como “o maior empório comercial entre o Alto

vam somente o capricho de seus desbravadores com suas rique-

e o Médio São Francisco”3, tamanha demanda e produção de suas

zas minerais, e mais nada. Pois, neste período das bandeiras, não

iguarias. E foi o escoamento massivo destas mercadorias que o

havia ainda nas cercanias, cultivo de frutas e hortaliças que pudesse

povoado do Salgado produzia, por intermédio do São Francisco, o

abastecer o povoado, que ao redor das minas, ia se formando. A

grande progenitor de Januária.

natureza por estas bandas ainda era virgem. Daí, estas incursões em busca, também, de terras que tivessem potencial para o plantio e para o pasto, provendo, assim, sustento para esta região au-

O despontar de Januária até o novo ciclo da aguardente

rífera que inchava sem controle. Esta fase, inclusive, é conhecida

Cachaça, rapadura, garapa... Estas e outras provisões saíam

como “Ciclo do Gado” e o São Francisco como o “rio dos Currais”,

constantemente do Brejo do Salgado no lombo de burros e carros

pois, de suas margens, tomadas por fazendeiros, despachava-se,

de boi e seguiam para a margem mais próxima do rio São Francisco,

além de alimentos, animais para montaria e serviços pesados.

onde a estrada desembocava. Lá, à beira rio, eram estocadas e ne-

1

O “rio São Francisco tornara-se despensa das Minas” , neste

gociadas com barqueiros e sertanistas, e foi esta movimentação

momento. Dessas fazendas mandava-se, principalmente, carne

constante de embarque e desembarque de cargas, sempre em um

seca, rapadura e peixe, e Brejo do Amparo, que nos primórdios

mesmo ponto, que acabou por regularizar um porto, um ‘depósito

chamava-se Brejo do Salgado, foi um desses domínios fundados

de mercadorias’ na riba do Velho Chico: o ‘Porto do Salgado’, pri-

por bandeirantes que queriam se enriquecer fazendo intercâmbio

meiro codinome de Januária. Simultaneamente, com o desenrolar

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Foto hist贸rica adquirida junto ao acervo da cacha莽aria Claudionor


O cais de Januária em fotografia de decada de 40. Sabe-se pela historiografia da região que o porto foi fator precípuo para formação do povoado.


dos anos e com a intensificação dessas atividades comerciais, fora

questiona-se a razão de querer homenageá-lo mudando seu nome

se ajustando ali, novos moradores atraídos pelas facilidades que o

para o feminino e não deixando como no original. Mas, seja qual

escambo, naquela informal beira portuária, ia dispondo. E o ‘porto’,

for o motivo da denominação Januária ter vindo a calhar, o fato

que foi durante certo tempo somente o escoadouro de produtos

é que o município experimentaria, dali a pouco, outros episódios

do Salgado, cresceu em importância, passando a ter, igualmente,

determinantes para a sua história como o início da navegação a

um núcleo povoador. Esta monta que o Porto alcançou contribuiu

vapor no rio São Francisco, por volta de 1870; a eclosão do ciclo

para que os dois lugarejos - o Brejo e o Porto – fossem transformados

da borracha, em 1900, e o próprio começo da industrialização da

em uma só jurisdição em 1811, quando se unificaram na condição

cachaça, na década de 1920. Estes ciclos econômicos, só para citar

de distrito, até que, em 7 de outubro de 1860, o distrito se tornou

alguns, imprimiram mudanças cruciais na trajetória de Januária.

município. Inclusive, o Brejo passa a ser um bairro (Bairro Alto) da, então, nova cidade: Januária.

O surgimento dos vapores, por exemplo, fez com que as atividades portuárias da cidade se intensificassem, sobremodo, uma

Este nome (Januária), que nada tem a ver com os nomes an-

vez que o volume de carga transportado se agigantou com a che-

teriores – Brejo e Porto do ‘Salgado’ – tem três versões explicativas

gada de embarcações de maior porte que faziam escalas cada vez

para sua origem, e nenhuma delas parece fazer muito sentido,

mais freqüentes e fartas, destacando ainda mais a importância

segundo os próprios historiadores. A primeira conta sobre uma

mercantil da cidade na região. Inclusive, o cais que foi construído

suposta ex-escrava, chamada Januária, que teria se tornado po-

em Januária, chamado Coronel Rocha, foi resultado desta era de

pular no povoado por ter criado, próximo ao porto, uma ‘casa’ de

ouro do porto. Tinha como ornamento duas pilastras de estilo

bebedeira e de prostituição conhecida dos navegantes que viviam

clássico que simbolizavam a entrada da cidade para aqueles que

a zanzar. Acontece que, nesta época, como explica o pesquisador

chegavam do rio. Pareciam dois totens de um portal para o Novo

4

e conterrâneo de Januária, Antônio Emílio Pereira , era pratica-

Mundo e era orgulho dos antigos moradores da cidade que, hoje,

mente impossível que uma pessoa de cor preta fosse homena-

lamentam sua derrubada.

geada, ainda mais nestas condições envolvendo um escravo e a

O ciclo da borracha, por sua vez, foi outra atividade que im-

balbúrdia. A outra hipótese, também, pouco provável, conta que

primiu novas alterações na cidade. Mormente, na paisagem local,

o nome teria sido uma honorificação à princesa Januária, irmã de

que sofreu uma degradação ímpar com o início da extração do

Dom Pedro II, que nunca esteve na cidade e nunca teve nenhum

látex da mangaba e da maniçoba, duas plantas nativas da caatin-

vínculo com a região. Além disso, no período em que o município

ga, que tinham em exuberância nas margens do rio São Francisco,

foi homologado, ela só tinha 11 anos de idade e nenhuma influência

na faixa de Januária. A intensidade da exploração iniciada em

política. A terceira hipótese para o nome da cidade versa sobre

1900, fez com que a cidade ganhasse o título de “Manaus Sertaneja”

Januário Cardoso, sertanista que dominou, no século XVII e XVIII,

tamanha produção láctea do município que perdurou até 1918,

a região do norte de Minas. Daí a suposta referência. Entretanto,

quando a atividade sofreu um decurso em função do aumento da

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oferta de látex no mundo e, também, pela falta de políticas públi-

o engarrafamento da aguardente e a rotulação das garrafas com

cas que regularizasse a atividade na região. E é no término deste

marcas de procedência que vão surgir para qualificar os tipos de

ciclo, que surge outra prática laboral, desta vez, mais expressiva

cachaça fabricados no local. O primeiro engarrafador de Januá-

para o município no âmbito econômico e cultural, que vai aduzir

ria foi Abílio Magalhães, que lançou a marca ‘Januária Crystal’ em

provas da verdade de que Januária é a terra da cachaça. Era o co-

1925. Três anos depois, surgiu uma marca semelhante - a ‘Janu-

meço do engarrafamento da bebida, até então inédita, que vai

ária’, que mais tarde, vai ser substituída pelo nome ‘Claudionor’

criar distintivos nas bebidas, antes inexistentes, e desencadear,

– nome do proprietário da marca, em função da maneira como os

por isso, uma corrida entre os produtores pelo título de melhor

consumidores se referiam a cachaça nos balcões dos estabeleci-

aguardente do local.

mentos: - vou querer uma ‘Januária’ do ‘Claudionor’. Além disso,

A transformação da cachaça, curtida nas dornas de umburana Se durante os séculos XVIII e XIX o fornecimento de aguar-

o aparecimento de outras cachaças nas prateleiras dos mercadinhos, empórios e botecos da cidade, dali adiante, faria com que fosse preciso, de fato, distinguir com exatidão qual das (XXXX) ‘Januária’ desejava-se beber.

dente fora providência de apenas alguns fazendeiros da bucólica

Esta preocupação em personalizar a bebida foi uma decisão

Brejo do Amparo, que processavam de forma artesanal nos seus

indiscutivelmente oportuna e providencial, pois, trouxe para o

rústicos engenhos, cana de primeira qualidade como a caiana,

setor a concorrência e a busca por novas formas de customização

rosa, manteiga e java, também usada para produzir a famosa ra-

da aguardente, o que desencadeou o aumento da qualidade das

padura que adoçava o cafezinho dos moradores da zona rural, em

bebidas produzida na região. O ofício da destilação se consagrou

meados da década de 1920, a transformação da cachaça ganha

em Januária, transformando-a tradicionalmente na “terra da velha

novas técnicas e passa a ser do interesse de muitos. Isto ocorreu

e boa cachaça”. Não é à toa que a cidade consta como sinônimo

porque, neste período, a exportação da cachaça januarense eclo-

de cachaça no dicionário da língua portuguesa. Além, é claro, de

diu, alcançando cifras antes nunca vistas, como a de 1917, que che-

ter outras célebres notificações alusivas a iguaria do município,

gou a casa dos 450 mil litros. Todavia, a venda da bebida era feita

como a peculiar descrição de Guimarães Rosa sobre a cachaça e

a granel, o que barateava seu custo e eximia os produtores da ne-

os vapores em Januária, eternizada em Grande Sertão Veredas,

cessidade de identificar sua iguaria, já que era vendida em tonéis,

obra bela e copiosa de 1956, dita na voz de Riobaldo5: “À Januária

fosse para um país da Ásia ou para tropeiros e comerciantes locais.

eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente espe-

E foi esta disparidade entre a grande requisição do mercado pela

rando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos

cachaça produzida em Januária e seu baixo valor de compra, o que

alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças — a vinte-e-

despertou os produtores para a necessidade de encontrar meios

seis cheirosa — tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas

de diferenciar sua produção e tirar proveito disso. A solução foi

de umburana” .

92

6


A Umburana, também conhecida como cerejeira, é uma ár-

de Salinas. O declínio das vendas de garrafas e doses com proce-

vore típica da caatinga nordestina, mas que, também, ocorre em

dência de Januária se acentuou e a categoria viu anos de tradição

outras faixas florestais do país e no norte da Argentina. Tem uma

ser pulverizados pela ação de ‘meia dúzia’ de gananciosos. Alguns

madeira de gosto adocicado e de cheiro marcante, que lembra a

dos centenários alambiques do Brejo do Amparo tiveram de ser

fragrância da baunilha. Com ela costuma-se fabricar tonéis de ca-

desativados com a diminuição da demanda, e antigos produtores

chaça por conta destas características que acabam beneficiando a

tiveram de sair da zona rural e procurar outras atividades no cen-

aguardente quando curtida neste tipo de dorna. Inclusive, a “cor

tro urbano de Januária.

queimada” da cachaça, descrita por Guimarães Rosa, é justamen-

Atualmente, mesmo tendo transcorrido mais de três déca-

te a tonalidade que madeiras como a umburana imprimem à bebi-

das desde o início da sinistra prática de adulteração, a artimanha

da no processo de envelhecimento. Ainda que alguns fabricantes

ainda continua a acometer o ramo da cachaçaria na cidade, como

usem outros artifícios, como o melado, para dar à bebida, além

ponderou o Secretário de Turismo de Januária, Antônio Vidal

desta coloração dourada, um sabor distinto. E foram estas combi-

Júnior, durante uma visita que fizemos a Prefeitura. Segundo

nações de ingredientes no processo de transformação, às vezes,

ele, aproveitadores de plantão compram cachaça de qualidade

nem sempre decorosas, que comprometeram mais tarde – na dé-

dos pequenos produtores, que repassam a preços bem módicos,

cada de 1970 -, este avanço anterior, com falsificações e com a

e as vende para o nordeste com rótulo de cachaça caribenha, a

introdução do alambique inoxidável.

preços quadruplicados. Esse tipo de violação deriva-se da falta

Neste período, - cinqüenta anos depois da grande reforma do

de percepção empresarial e de mercado do pequeno produtor,

processo artesanal da cachaça -, houve uma tentativa grosseira

que entrega sua mercadoria a preços baixos, além de ser desti-

de enriquecimento ilícito por parte de alguns produtores que pas-

tuído de qualquer tipo de suporte publicitário e de logística que

saram a misturar cachaças mais baratas, de qualidade inferior à

ajude na comercialização correta de seu produto artesanal – o

cachaça local. De mais a mais, houve, igualmente, a introdução do

mais estimado pelos consumidores. Pois a cachaça, ao contrário

alambique de aço, como parte de um plano que visava industrializar

da pinga, demanda um preparo mais cuidadoso para se chegar às

a fabricação da cachaça - ampliar a escala da produção. Os res-

características ideais de consumo como ter aroma suave, – que

ponsáveis por este plano pernicioso intencionavam o aumento de

não agrida o olfato-, coloração transparente ou rosada e dou-

seus lucros no compasso da produção em série. Contudo, não se

rada, como gracejou Guimarães, além de um gosto amaneirado. O

preocuparam com a manutenção da qualidade do produto, o que

gosto do álcool deve ser suprimido no envelhecimento, visto que,

foi fatal para o ramo. Com o tempo, os consumidores notando a

não é normal o degustador sentir queimação nos olhos e na boca

discrepante diferença entre o que costumavam pedir nos balcões

ao ingeri-la, fazendo-o com que sinta vontade de expelir o que

e o que passaram a beber, migraram para marcas de outras loca-

acabou de experimentar. Portanto, sua industrialização deve ser

lidades, também produtoras de boa cachaça, como o município

ponderada. Visto que, a cachaça é como qualquer outra bebida

93


destilada e precisa ser confeccionada em etapas meticulosas para

A medida faz parte do programa da Companhia Nacional

resultar em boas safras. Ao contrário da pinga, por exemplo, que

de Abastecimento (Conab), que compra a produção agrícola de

é feita, basicamente, só da moagem da cana, tendo-se, somente,

pequenos produtores para incentivar a permanência do homem

a preocupação em retirar o primeiro suco da tritura, considerado

no campo. Uma estratégia sustentável que beneficia, a princípio,

tóxico. Apesar dos desavisados inferirem que os dois tipos tratam-se

todos os envolvidos: as entidades que recebem este suplemento

da mesma coisa.

nutricional, o governo que compra produtos de qualidade a cus-

A rapadura e a arte de sobreviver dela

tos relativamente baixos, e o produtor, que recebe a verba, e de certa forma acaba gerando renda para a comunidade local. Apesar,

A rapadura, por sua vez, especialidade primogênita do antigo

de serem justamente os produtores quem menos tira proveito

Brejo do Amparo, que ficou ofuscada pela fabricação de cachaça, tem,

nesta cadeia, como ponderou Vicente – hoje, presidente de uma

hoje, uma produção reminiscente no município. Apesar de o municí-

cooperativa dos produtores de cana de açúcar e derivados. “Os

pio ter algumas dezenas de produtores, tivemos conhecimento de

impostos são altos, a mão de obra é cara, o produto é muito ba-

apenas um fabricante que processa o doce na cidade de forma legal e

rato e a fiscalização do Ministério do Trabalho, rigorosa. Impõe

cooperada – o Vicente da rapadura – como é conhecido na praça. Seu

regulamentos que não podemos manter”.

engenho está localizado numa das vielas de chão batido do bucólico

No caso de Vicente, seu empreendimento é todo mantido em

Bairro Alto de Januária, vulgo, Brejo do Amparo, e quando lá chega-

família, com exceção de alguns empregados sazonais, que execu-

mos para conhecer o processamento da tal rapadura que remonta o

tam o serviço bruto durante o período de safra. Como conduzir

tempo colonial, o cheiro e o vapor vindos dos grandes tachos onde

os robustos bois de carga que trazem, na carroça, as frações de

se cozinhava a garapa embeveciam toda a instalação, inclusive, a vi-

cana para serem moídas, como parte do processo de fabricação.

zinhança. O próprio Brejo do Amparo é um lugar muito sinestésico.

Parte desta cana que Vicente transforma em rapadura, ele mesmo

Aqui e ali se vê plantações de cana, ranchos, corredores de árvores

cultiva. A outra porção é fornecida por outros agricultores da

entrelaçadas, flor de mato no meio da vegetação selvagem e o cheiro

região que são pagos em rapadura, em troca da matéria-prima.

doce de alecrim e garapa paira no ar do lugarejo, que hoje, em nada

Esses por sua vez vendem o doce para o governo, que compra nas

mais lembra um brejo. Se é que já foi parecido. Mas, retornando ao

cooperativas agrícolas do Brasil este, e outros tipos de produto.

engenho e a rapadura que Vicente, um homem de meia idade e de

Sendo que, o lucro de Vicente fica circunscrito ao excedente da

poucas palavras, produz, o processo é todo artesanal e sua produção

sua produção. Ou seja, aquilo que ele não permuta com outros

é comprada pelo Governo Federal, com recursos do Ministério do

produtores para pagar a cana que processou, ele mesmo vende

Desenvolvimento e Combate à Fome, através de uma cooperativa. O

para empresas de alimento. Cada unidade de doce é vendida a 14

doce é repassado pelo governo para entidades e escolas públicas de

centavos, e mensalmente é produzida, em média, uma tonelada e

todo país para ser servido como sobremesa na merenda.

meia de rapadura. Considerando que metade de sua produção é

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Processo de feitura da rapadura. Uma das partes do processo consiste em fermentar a garapa, como ilustrado na fotografia ao lado. (Página seguinte) Rapadura pronta para o consumo. Januária é tradicional nos confecção de gêneros derivados da cana.



repassada a cooperativa, sobrando somente a outra metade para

criou o Plano de valorização da economia da Amazônia, o Banco

venda, a renda líquida de Vicente não deve ultrapassar mil reais.

do Nordeste e infra-estrutura para áreas totalmente desprovidas

- Mas não é muito pouco? Com muita hombridade, Vicente me res-

dela, como a Bahia, que recebeu a hidrelétrica de Paulo Afonso,

pondeu de forma lacônica seu impasse: “Não tive muita escolha,

no rio São Francisco. Com a chegada de JK à presidência, em 1956,

a nossa região norte mineira é muito pobre. Porém, me dedico

a mania do ‘novo’ só veio a calhar com seu plano de metas desen-

a atividade com toda a garra possível. E, apesar das vantagens

volvimentistas. E o efeito desta tendência fez sentir-se de várias

serem poucas, me sinto satisfeito em saber que os produtos que

formas pelo país.

faço são saudáveis e alimenta o homem com qualidade. Além do

Em Januária, o mote foi o conjunto arquitetônico da cidade,

mais, é a produção de rapadura e cachaça que vem, de geração

que, vai sofrer danos irreparáveis em função do vislumbre pelas

em geração, sustentando o povo de Januária e do Brejo do Amparo,

coisas frescas e inovadas, que vão sentenciar algumas constru-

ainda que de maneira humilde”.

ções centenárias como ultrapassadas e arcaicas, portanto, descar-

A utopia da modernidade que varreu memórias de Januária

táveis. Fazendo com que peculiares edificações da cidade, principalmente as religiosas, fossem demolidas para dar espaço a uma arquitetura de gosto moderno. Em 1970, esta prática de descons-

No final da década de 1950, começava a ser erguida a nova

trução na cidade chegou a seu ápice, e, lendo o livro comemo-

capital do Brasil. E, Brasília era a consumação de uma onda pro-

rativo do centenário do município – Januária: 1860-1960 -, pude

gressista no país Era principalmente, utopia dos gentílicos do

perceber boquiaberta, o quanto aquela crença de progresso pre-

sertão, povo que esperançava um milagre transformador, que

ponderava. Neste livro, fica evidente como a população de Janu-

colocasse sua terra - o cerrado, o interior do Brasil -, no eixo do

ária, e também, do Norte de Minas debitou suas esperanças neste

desenvolvimento, pela primeira vez, depois de 450 anos de esque-

novo movimento econômico que despontou no Brasil: “O Norte

cimento em detrimento do litoral, sempre priorizado. E Juscelino

de Minas se transformará num imenso laboratório onde o gênio e

Kubitscheck foi o homem de vanguarda que concretizou as preces

a audácia do sertanejo, fecundarão uma área das mais promissoras

da gente sertaneja esquecida. Tão esquecida que prometeu com-

e férteis do nosso território. O homem daqui que esteve sempre li-

pensar 50 anos de atraso em cinco de progresso. Construiu em

gado ao rio São Francisco, sentirá, agora, ao acenar da terra [...] o

mil dias o novo centro político do Brasil, consolidando o chavão

caminho que vem e vai até Brasília, como roteiro de novas entradas,

“marcha para diante”, iniciado pelo governo de Getúlio Vargas,

de nova era, e da integração nacional”7.

um ufanista incorrigível. E a ‘modernidade’ - ideologia introduzida

Assim, muitas ações de desmonte de construções históricas,

por Vargas começava a se consolidar como palavra de ordem. Coi-

cheia de memórias foram justificadas: - era pelo progresso. E Janu-

sas antes inimagináveis, para regiões deslembradas como a Ama-

ária, subordinada as ações indiscriminadas de seus dirigentes po-

zônia e o interior do nordeste foram feitas. Vargas, por exemplo,

líticos, fortemente inclinados ao plano de modernização, acabou

97


perdendo parte de suas edificações que poderiam estar compondo,

dia em que foi celebrada a última missa. “Não se prestou infor-

atualmente, o acervo patrimonial do município, tão carente desta

mação aos fiéis sobre o paradeiro das imagens e dos belíssimos

caracterização. Quem visita a cidade e conversa com antigos mo-

púlpitos”10. As lousas sepulcrais, bem como os restos mortais

radores, logo ressente a falta que estas construções fazem para

dos clérigos que estavam enterrados ali, sumiram. Inclusive, os

a comunidade, justamente, pelo fato de elas representarem um

do padre que fundou a igreja – Cônego Levínio -, também, impor-

elo com os tempos findos da cidade, porém jubilosos, como o

tante por suas prestezas políticas na cidade, em razão de ter sido

período dos vapores e das festas religiosas em torno dos santu-

ele quem realizou os trâmites do período imperial para o republi-

ários demolidos. A desfiguração do cais da cidade, por exemplo,

cano, na Câmara de Januária. Assim, a população testemunhou

o maior emblema do período portuário, é uma dessas reclama-

inexpressiva a derrubada morosa da igreja, que levou meses para

ções. Perdeu suas colunas, sua principal feição, tendo sido, inclu-

ser concluída. Visto que, naquela época, a demolição era pratica-

sive, registrado no livro do centenário uma apelação que pedia,

mente manual. A igreja iria completar 100 anos na ocasião e, tinha

na época, a volta das pilastras: “assim, vai, aqui, a solicitação que

chegado até a receber reformas nas suas torres, em decorrência

todos os januarenses [...] fazem ao prefeito de Januária: promover

de sua importância, que se esvaiu com a vinda da premissa pelo

a reconstituição imediata das duas artísticas colunas, que tanto em-

novo, que estacionou na mentalidade das pessoas do período. No

9

belezam a cidade” . Além disso, a demolição de outros marcos de

seu lugar foi construída outra, com linhas e traços mais contem-

Januária – edificações religiosas da história da colonização do São

porâneos: geométrica, sem ornamentos, monótona e estéril, que

Francisco - causou um abalo moral nos moradores, que não en-

mais lembra um prédio de repartição pública. Eu mesma não a re-

tendiam a intransigência das medidas, que sempre eram tomadas

conheci enquanto igreja enquanto estive na cidade.

sem consulta prévia à população. Em 1940, a Capela colonial, que

Outra história desta arquitetura de destruição, que afroxou a

ficava de frente para o rio e fazia parte do conjunto urbanístico,

fé dos januarenses, desiludidos com a violação de seus bens de es-

junto ao cais e seus pilares na entrada da cidade, foi derrubada a

timação, foi o aniquilamento da Igreja de Santa Cruz, cuja data de

mando do intendente Roberto Fonseca, que recebeu a incumbência

sua inauguração é imprecisa. Esta capelinha atendia a população

de construir uma praça no lugar. Neste tempo, os prefeitos não

de pescadores que morava na margem do rio São Francisco, e em

eram eleitos democraticamente e, sim, diretamente pelo gover-

torno dela realizavam-se cerimônias católicas e confraternizações

nador do estado. E esta era uma demanda vinda das políticas de

daquela gente humilde e devota. Mas, em 1972, foi desmontada,

renovação de Vargas a todos seus subalternos.

sem nenhum pedido de opinião da comunidade, para dar lugar

Mais tarde, por volta de 1968, foi a vez da Matriz de Nossa

a uma quadra poliesportiva e um grupo escolar. A perda foi tão

Senhora do Amparo ir ao chão. Em 1972, a antiga catedral de

sentida que duas senhoras acabaram por se tornar personagens

Nossa Senhora das Dores, inaugurada em 1833, com dinheiro do

conhecidas do município, por conta de suas investidas contra a

povo, começou a ser demolida em plena semana santa, no mesmo

afronta que marcou a história local. Uma delas é Dona Meiru que

98


“Há comunidades onde se formou sólida consciência de preservação, que se transmitiu para o poder público e os empresários locais. Em outras cidades ocorreu o inverso; a população, a iniciativa privada e o poder público parecem irmanados no descaso e mesmo na agressão ao patrimônio cultural, que vai se desfazendo” Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relatório de Participação Técnica. Campanha Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição Engenheiro Halfeld. 2002


depois da demolição passou a pedir, de porta em porta, qualquer

cuspirem nos pedaços do cruzeiro, que a esta altura, eram trata-

tipo de quantia para construção de uma nova igreja, em uma loca-

das como mero entulho. - A cruz é uma madeira santa.

lidade próxima a da antiga – na vila dos pescadores. Tirou, inclusive,

Desolada, então, ao ver, aquela afronta durante o desman-

durante todo o processo de arrecadação, dinheiro da sua própria

telamento da capelinha, disse a um dos homens responsáveis

e mirrada pensão, para o custeio da promessa, que foi uma res-

pela demolição, que se pudesse levaria para casa o que restara da

posta arremetida contra a injúria que sentiu. E conseguiu. Con-

cruz. O funcionário, sem avistar nenhum problema e cujo nome

sumou seu projeto, depois de muita labuta e esmola. A outra figu-

ela ainda recorda – Roca -, pôs, á vista disso, o toco no seu ombro

ra é Dona Maria do Binu, que, apesar da similaridade dos nomes,

para que ela o levasse embora e guardasse do modo que achasse

nada têm em comum; nenhum parentesco ou vínculo com Dona

mais direito e digno. – E este resto de cruz te ajuda, hoje, Dona

Meiru, a não ser o desmonte da igreja. Fato nuclear que afetou

Maria? “Ajuda! A cruz me ajuda pela fé que eu tenho. Sem a fé

a vida de ambas. Dona Maria do Binu, outra brava senhora, fez,

nada vale”. Romeira há 25 anos e devota de Nossa da Aparecida,

também, algo notável no ensejo do desmonte da Igreja de Santa

Dona Maria só parece ter perdido as esperanças na melhora do

Cruz. Arrastou sozinha, até sua casa, um pedaço do corpulento

rio São Francisco. “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima

cruzeiro que havia sido estraçalhado durante a demolição e que

de tudo tenho saudade do meu rio”. Seu marido, Sr. Benedito, o

ia para o desterro.

pescador mais antigo de Januária, também desacreditou do aviva-

A Velha Januária e o rio de São Francisco segundo dona Maria e Senhor Binu

mento do rio que já quase não palpita mais. Aos 99 anos, com uma robustez física e uma memória assombrosa, Sr. Binu lamenta que o São Francisco não seja mais o rião que era.

O pedaço de madeira que dona Maria do Binu, uma senhora

- Esse rio era estreito e fundo, mas com a desmatação foi se-

franzina de 93 anos de idade, guarda até hoje é parte do braço

cando... E tinha muntiu peixe! Todo ano, na época de chuva, tinha

da enorme cruz que vigiava o frontispício da capela. Só este toco

arribação de peixe neste rio. Primeiro vinha as ribadas de piaba,

deve pesar prováveis 35 quilos, e, atualmente, fica escorada na

vocês conhecem piaba? Depois vinham as de piau e surubim. Dava

parede do quarto de Dona Maria, que, também, tem Madalena

para ver as levas de surubim subindo o rio com os bigodes para

no nome. Na ocasião em que o trouxe para sua diminuta casa de

fora d’água. Esta ribada que Sr. Binu se referiu durante a conversa

pau a pique, já tinha 56 anos de idade, o que deve ter sido uma ta-

que tivemos com o casal, na pequena sala do gracioso casebre, é

refa custosa. Quando a questionamos sobre o motivo praticar tal

o período em que os peixes migram pelo rio em busca de lugares

sacrilégio, Dona Maria respondeu com lisura que fora o estado na

favoráveis para habitar. Neste ciclo, que perdura de abril a julho –

qual a cruz se encontrava, no meio daquela ‘pauzada’, das ruínas

época chuvosa – os peixes se movimentam em bando, na casa dos

daquilo que tinha sido a casa de reza que freqüentara, o que havia

milhares, e cardumes de cinco, seis mil animais são vistos. Sendo

a comovido. Segundo ela, dava pena ver as pessoas sentarem,

que, de dezembro a março, os peixes se reproduzem, e não há

100


(Acima) Senhor Binu (um dos mais antigos pescadores de Januária) e Dona Maria: “Tenho saudade da Velha Januária, mas acima de tudo tenho saudade do meu rio”. O rio de São Francisco. (À direita) Dona Maria do Binu e o pedaço do cruzeiro da Igreja de Santa Cruz, demolida em 1972. A capela atendia a população de pescadores que morava na margem do rio São Francisco.


pesca. Somente de agosto a outubro, quando a água está límpida e

que pescavam e plantavam às margens do rio de São Francisco.

os peixes parados no nicho encontrado, é que está no momento de

Tinham canteiros de cebola, alho, feijão, milho e tudo era roçado

os pescadores garantirem sua safra. Mas tudo isso, acabou, segun-

nas terras à margem do rio, altamente férteis, em função do pe-

do Sr. Binu, que só largou as redes e varas aos 80 anos de idade.

ríodo de cheias que adubava os terrenos para o posterior cultivo.

O casal que pescou durante 10 anos ininterruptos no rio

Ciclo totalmente regrado pela natureza, cabendo somente aos

Pandeiros – um dos 36 afluentes do São Francisco, considerado

camponeses semear. Mas como disse Dona Maria “tudo que é bo-

um berçário de peixes, por suas águas abrigarem a reprodução e

nito só passa uma vez”. E é com razão sua nostalgia. O rio de que

11

o desenvolvimento de 70% da ictiofauna do médio São Francisco -,

tem saudade trazia freqüentemente muitas alegrias. Vivia movi-

não comem surubim há uma década, apesar de morarem na riba

mentado de vapores, barcas, lanchas. As vazantes12 eram certas.

do São Francisco, ao lado do antigo cais de Januária. A fartura de

Sua cidade tinha grandes folguedos e o peixe tinha em abundân-

outrora, que dava ao pescador alimento fácil para o seu prato,

cia. Muita fartura – barracas vendendo cana e peixe frito -, e ‘sua’

perdeu-se com a míngua do rio, e os petrechos de pesca que Sr.

igrejinha estava no lugar onde devia estar até hoje. Na vila dos

Binu ainda guarda em um latão de óleo antigo, porém, bem con-

pescadores, onde reside. Nela ia constantemente agradecer os

servado, tornaram-se objetos de memória, de um tempo em que

proventos que o rio e a terra davam. Agradecer pela vida. No pre-

o São Francisco, ainda era o Novo Chico. De dentro deste recipiente

sente momento, imagino que Dona Maria deva rezar por outras

Sr. Binu tirou, entre outras coisas, uma manjubeira, rede usada

causas. Pela melhora do assoreamento do rio – que chora de tanta

para capturar peixes de pequeno porte que servem como isca

saudade. Pela volta dos peixes, pela tranqüilidade perdida...

para os maiores. Mostrou-nos a variedade de anzóis, que eram usados em cada tipo de pesca. O surubim, por exemplo, espécie grande e sagaz, requer um gancho mais reforçado. Para pegar

Patrimônio e identidade: o norte de Minas precisa disso

peixes de hábitos noturnos, o surubim é um deles, os anzóis is-

É indispensável dizer o quanto a demolição de edificações

cados eram lançados à noite, na água, e retirados somente no dia

exemplares do patrimônio de Januária, na década de 70, trouxe

seguinte, pela manhã, quando se conferia as surpresas ou a falta

prejuízos a história local. Embora essas ausências não sejam a única

delas. Mostrou-nos seu candeeiro, “que iluminava meio mundo”

razão que explica a falta de interesse da comunidade pelos seus

durante as pescarias, na beira do rio. Fico imaginando a falta que

bens históricos. A pesquisadora e historiadora Ana Alaíde Amaral,

isso não devia fazer sob o céu estrelado do sertão, refletido na

que há algum tempo desenvolve trabalhos na área de educação

água, à luz do luar. O próprio latão era do tempo da pesca, onde

patrimonial, nos explicou durante uma entrevista a beira rio, que

armazenava a comida que levava para a jornada.

a falta de preservação e de acervo histórico que ressentimos na ci-

Foi arrebatador ver a alegria do casal de velhos quase cente-

dade é um problema mais complexo, que atinge toda a região do

nários desterrar da memória suas histórias de pastores guerreiros,

Norte de Minas, para não falarmos do assunto em nível nacional.

102


Alaíde lembrou que a raiz desta deficiência está na própria

permita as pessoas criar relações simbólicas”. Ou seja, o norte de

história de colonização do estado. Enquanto a elite culta, de ori-

Minas precisa contar suas histórias para seu povo, que não a co-

gem européia, colonizou a região das Minas, que tinha intrínseca

nhece e que por isso não a aprecia.

à sua cultura e a seus costumes o apreço pelo registro documen-

Recuperar o tempo perdido e preservar o pouco que sobra é

tal, a parte Gerais do estado foi colonizada pela elite financeira do

uma demanda urgente. E, de fato, o que restou é ínfimo e está em

país. Por fazendeiros e sertanistas da época colonial que tinham

um ritmo de degradação assustador. Além disso, são escassos os

outras premissas e valores, que passavam ao largo das questões

registros e estudos dos patrimônios locais. A catedral de Nossa

culturais. Suas preocupações se circunscreviam, sobretudo, a seus

Senhora das Dores, por exemplo, aquela que começou a ser de-

latifúndios e as contendas econômicas. Portanto, a organização

molida em plena semana santa, não tem nenhuma descrição ofi-

social em torno da cultura sertaneja praticamente inexistiu. Não

cial sobre suas características arquitetônicas e históricas. O único

se preocupavam com a preservação de referências simbólicas do

relato que se tem do seu interior foi feito por um viajante, Paulo

ponto de vista histórico. Com a coletividade em prol de identidade.

Japyassen, em 1956. Mesmo a Igreja de Nossa senhora do Rosário,

Era cada um por si, e essa mentalidade de desapego ao patrimô-

um marco fundante do povoamento na região, tem raríssimas in-

nio se estendeu ao longo dos séculos. Prova disso é a diferença

formações historiográficas sobre sua existência.

entre o nível de preservação das cidades mineradoras, como Ouro Preto, e a de uma cidade do norte do estado. Quando relatamos a pesquisadora, o quanto estávamos atônitos com o abandono

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário: outro emblema de abandono

da igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Brejo do Amparo, pro-

A igreja de Nossa Senhora do Rosário, é um casario colonial

vavelmente uma das construções mais antigas de Minas Gerais,

da época dos bandeirantes e foi erguida no meio da mata do Brejo

Alaíde consentiu dizendo que isto é um reflexo desta herança cul-

do Amparo. Na sua fachada está estampada uma pintura com a

tural errônea, que menosprezou a importância da história na vida

data de 1688, ainda que historiadores aleguem que seja muito

social. “As pessoas só valorizam aquilo que conhecem. Se não

pouco provável que esta datação esteja correta. Dois registros

existem políticas públicas que auxiliem no reavivamento destas

falam de sua inauguração em 1744, e esta diferença de mais de

memórias que estão impregnadas nas antigas construções, que

50 anos entre a primeira e a segunda data teria sido uma trapaça

auxilie a sociedade a se identificar com esta história, não existe

de época. Questões políticas e religiosas que aqui não cabe aden-

ressonância. E o indivíduo não consegue olhar para aquele bem

trar. Quando lá chegamos, dia 24 de julho, o sol estava a pino, e o

público como uma coisa que lhe pertence. Por isso não há esti-

silêncio era ensurdecedor. Barulho mesmo só da vegetação que

ma e apreço. O patrimônio histórico só é interessante quando a

mexia com o vento e da meia dúzia de bois que pastavam enfas-

comunidade consegue usufruir dele. E para que isso aconteça é

tiados próximo ao cemitério da igreja, soltando mugidos de vez

preciso que haja uma linguagem que faça esta intermediação, que

em quando, quebrando a monotonia circunscrita.

103


“Sua conservação até os nossos dias se deve mais a uma feliz casualidade do que qualquer esforço oficial nesse sentido”. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG


A construção está visivelmente arruinada, e o bucolismo do

nais na tarefa de resguardar o templo de Nossa Senhora do

lugar só nos faz ter mais compaixão da igreja, que fica fechada,

Rosário. Visto que, o avançado estágio de deterioração das portas

com resignação, em conseqüência do seu estado precário. Os fes-

invalidou a utilidade das fechaduras, por isso, as portas laterais só

tejos de época, que aconteciam no seu interior, como as missas

ficam semifechadas. Quando perguntamos o por quê de ela ter

em comemoração ao dia da padroeira da cidade – Nossa Senhora

as ‘chaves’, e não algum órgão de política pública cultural, Dona

das Dores -, e que coincide com o aniversário de Januária, - no

Conceição disse com uma voz sóbria, em tom de conformação,

dia 7 de outubro -, atualmente, são realizadas do lado de fora, no

que a igreja há décadas é mantida somente pela população. Por

adro da igreja, por falta de segurança de suas estruturas. Mas,

sua família, mais exatamente, que tinha vínculo com os párocos

fora estas ocasiões, a paróquia tricentenária que só foi tombada,

locais. À prefeitura de Januária, já tinha encaminhado quatro pe-

em 1989, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artís-

didos formais, para que a executiva assumisse a proteção da igre-

tico de Minas Gerais (Iepha/MG), fica sozinha, entregue a própria

ja que, freqüentemente, sofre com a ação de vândalos. Inclusive,

sorte e à divina providência. Embora haja uma guardiã local que

na própria conservação da igreja que está esmaecendo. Mas, até

tenta com todas as suas limitações cuidar do que resta. Até o

hoje, não obteve retorno.

sino da igreja, que pesava 300 quilos, foi roubado com destreza

Atualmente, Dona Conceição vive só, numa casa cercada de

por saqueadores de peças sacras e históricas. O nome desta in-

pomar e não tem condição de fazer nada pela igreja. Nem a capina,

formal tutora é Maria Conceição. Dona Maria Conceição. Era ela,

nem a limpeza artificial da construção que está tomada de sujeira.

conforme nos disseram alguns moradores locais, quem guardava

Quando lá voltamos para fotografar o feitio interno da igreja, se-

as chaves do patrimônio. Quem deveríamos procurar se quisés-

guindo as orientações de dona Maria que pediu que, depois que

semos conhecer o interior da igreja do Rosário. Todavia, nós que

terminássemos o trabalho, a fechássemos novamente com o de-

não tínhamos qualquer informação sobre o paradeiro da senhora,

vido cuidado, ficamos embasbacados com a decadência. Quando

decidimos ir até o local e fazer os registros somente do lado de

empurramos a porta e vi, ao som do primeiro ranger, o feixe de

fora, e mais tarde, se houvesse tempo, tentaríamos localizá-la

luz invadir a igreja, desnuda, senti uma consternação enorme.

para terminarmos de vasculhar a avelhantada, porém, notória

Lá dentro não há mais bancos, nem imagens sagradas. Somente

igreja por dentro. E, assim foi feito. Ficamos circundando a igreja

campas e ripas carcomidas e despregadas. Rachaduras. Falta de

do lado de fora procurando bons ângulos, pistas escondidas, sem

reboco. E um aviso pregado na porta frontal, com os seguintes

sabermos que a igreja, na realidade, estava aberta como viemos

dizeres: “Não rabisque as paredes. Não acenda velas próximo às

saber em seguida, quando finalmente encontramos Dona Maria,

portas da igreja. Não a destrua. Este patrimônio é seu. Preserve-o.

em um sítio próximo dali.

Grato.” Quando finalmente terminamos de fotografá-la, todos em

A senhora que apesar dos reumatismos, tem uma aparência

silêncio, foi entristecedor cerrar suas portas. Submetê-la a escuridão

saudável e serena, nos disse que as chaves não são mais funcio-

novamente. Era como se estivéssemos largando um enfermo ao

105


desamparo e à solidão. Usurpando de uma débil construção re-

6

ligiosa que pedia misericórdia. A última memória que guardo do

Nova Aguilar, 1994, vol. II, p. 478

seu interior, antes de fechar a última porta, são algumas flores

7

Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.61

8

Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.59

nhei. Uma é de Paulo Barreto e diz o seguinte: “cada povo que

9

Januária: 1860-1960. Imprensa Oficial, p.109

pretenda ser mais do que uma aglomeração humana, deve ter

10

ressequidas dentro de um vaso, que me fez lembrar – murcha de comiseração - duas filosofias que resumem aquilo que testemu-

seu patrimônio histórico”. Arthur Schopenhauer, por sua vez, completa o raciocínio com a assertiva: “se [...] um povo não conhece a sua história está limitado ao presente da atual geração. Esse povo

Grande Sertão: Veredas. In: Guimarães Rosa: Ficção Completa.

PEREIRA, Antônio Emílio. Memorial Januária: terra, rios e

gente, p. 413 11

Em ecologia e ciência pesqueira, chama-se ictiofauna o con-

não compreende nem sua própria existência [...] muito menos pode

junto das espécies de peixes que existem numa determinada

antecipar coisa alguma sobre o futuro”. É aí, que reside o aflitivo

região biogeográfica.

atraso do Norte de Minas, pensei comigo. A razão para aquela de-

12

cadência. Saímos então em direção ao carro, sem olhar para trás. E,

des, à medida que o nível das águas vai baixando. Terreno

fomos embora, pensando taciturnos nos erros passados, na inglória

baixo e úmido; largos vales ao longo dos rios do interior; baixa

do presente, por estas cercanias, que já atestou tão importantes

próxima às aguadas e lagoas em geral; todas as terras baixas e

acontecimentos, hoje, arruinados.

planas, alagadas temporariamente, quando recebem as águas

Cultura que se faz no leito dos rios e nas margens dos açu-

das enchentes dos rios. (Dicionário Michaelis, 1998-2009) 1

Ribeiro, Ricardo Ferreira. O Rio Santo Verde, artigo do estado

de Minas de 01-12-2001 2

Por volta de 1690 a 1705, fundaram-se os povoados sob o poder

dos Cardosos e experimentaram rápido desenvolvimento 3

ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes, p.67

4

Memorial Januária: terra, rios e gente, 2004.

5

Riobaldo é o narrador da obra Grande Sertão: Veredas, de

João Guimarães Rosa, quem ausculta as particularidades e características do sertão brasileiro, onde vive e morre.

106


São João das Missões: resistência e luta Xacriabá

Tarsila Costa

“ (...)o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios.Depois,queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” Darcy Ribeiro



O pó da terra vermelha são eles: Os Xacriabá

gura guaranesca do índio. O índio sertanejo obviamente é diferente

Data da chegada: 28/07/2009

do índio litorâneo. Contudo, há um povo que coexiste nesta terra há muito tempo. Registros confirmam que por volta do ano 1531 que

Chegamos meio-dia a São João das Missões. Antes de chegar

os Xacriabá já estavam aqui. E mesmo hoje, no ano 2009, eles ainda

ao município, já havia algumas anotações em meu diário sobre os

lutam para se manterem em sua própria terra. Durante a estada dos

Xacriabá, mas de maneira muito catequizada, sempre enfatizando o

Xacriabá nesta região do noroeste mineiro, inúmeras vezes eles ti-

papel dos jesuítas, principalmente com a imposição cultural que este

veram conflitos contra bandeirantes, índios ou fazendeiros.

povo foi submetido há tempos. O nome do município já nos con-

Apesar de não estarem na beira do rio São Francisco, eles

cede algumas pistas do que houve por aqui, ao saber da existêcia

têm a ciência de saber que seus antepassados estiveram ali. Os

forte da presença dos jesuítas e de suas diretrizes religiosas na vida

Xacriabá tentam resgatar algumas perdas que tiveram de seu

indígena nesta região no século XVIII: este traço perdura e mistura

universo cultural na conflituosa trajetória de lutas que remonta a

as crenças índigenas com o catolicismo pregado pelos missionários

história desses índios sertanejos.

de outrora.

Segundo a obra Documentar para Preservar 1, o território dos

À imagem de um santo achada por um índio durante este pe-

Xacriabá atualmente é concentrado no norte de Minas. Possui

ríodo foi dado o nome de São João dos Índios. Em seguida, mis-

uma extensão de 52.660 hectares e se localiza as margens do rio

sionários jesuítas receberam a notícia da tal imagem achada, e a

Itacarambizinho, embora os Xacriabá antes de virem para essa re-

colocaram na igreja de Matias Cardoso – construída pelo trabalho

gião estivessem localizados em várias áreas do vale do Tocantins,

forçado dos índios. Mas, segundo reza a lenda por aqui, a imagem

Goiás e às margens do São Francisco. Na época do contato com os

voltava sempre para o mesmo local que havia sido encontrada.

portugueses, de acordo com a obra Documentar para Preservar,

Desta maneira, os jesuítas pensaram que ali havia ocorrido um mi-

“os indígenas existentes na região dos rios Carinhanha e São Fran-

lagre e ordenaram a feitura de outra capela para o santo denomi-

cisco se dispersaram por várias regiões”. 2

nado São João. Hoje é possível vê-la na igreja de São João Batista, no centro do município de São João das Missões. Neste mesmo

O índio do sertão

lugar, há a biblioteca municipal, farmácia, e algumas poucas lojas;

No século XVI, quando portugueses adentraram o vale em

acontecia também uma feira no dia que chegamos, mas era algo

busca de pedras preciosas e de mão de obra escrava, foi deixado

bem reduzida, embora houvesse de verduras até cds pirateados

um antigo registro datado entre os anos de 1553 e 1555 de índios

sendo comercializado naquele espaço.

que já habitavam a região do norte de Minas, como citado no re-

Diferentemente do que se pensa, quando se chega aqui nos

latório da pesquisadora Ana Flávia Santos. 3 Segundo trechos do

dias de hoje, a vida indígena edênica, que povoa o imaginário bra-

relatório, os escritos do padre jesuíta João Aspicuelta Navarro,

sileiro de índios nús, é uma simples alegoria. Tampouco, existe a fi-

Capitão da entrada de Francisco Bruzza de Espinoza, desbravador

109



(Pagina anterior à esquerda) Rosalvo - Cacique da aldeia Itapicuru. Além de amistoso, foi ele quem cedeu os depoimentos mais passionais ligados à condição indígena. Seu orgulho e sinceridade são traços fortes de sua personalidade. (Pagina anterior à direita) Josué de Carvalho, zelador da igreja matriz de São João Batista, no município de São João das Missões. Ele segura a histórica estatua de São João dos Índios. A imagem faz parte do acervo da Igreja que, de maneira geral, tem escassos padrões de conservação. Algumas centenas de anos adormecem nesta estatua e, mesmo assim, qualquer um pode tocá-la e levantá-la do chão, basta pedir. (À direita) Ipê amarelo: parte do patrimônio natural dos Xacriabá; indubtavelmente a maior riqueza desse povo é a natureza.


das regiões do interior da Bahia e do norte de Minas: (...) no outro dia fomos e passamos muitos despovoados especialmente um de vinte e três jornadas por entre uns índios que chamam Tapuyas, que é uma geração de índios bestiaes e feros, porque andam pelo bosque, como manadas de veados (...).4

de São Caetano e xixá são essencialmente desse bioma, embora a ação do homem na natureza, nesse caso, venha aumentando progressivamente a extinção de várias espécies. Falando da fauna do cerradinho, os animais que compõem este cenário são: veado, cutia, tatu, onça, coelho, raposa, tamanduá, gambá, seriema, entre outros bichos. Para os povos indígenas, todas essas árvores, frutas

Esses adjetivos eram calcados na moral essencialista cristã

e bichos são importante patrimônio natural que deve ser preservado,

que pautava a vida do império português na época. Mas, tratando

em razão de ser da natureza que se extrai o alimento, matérias

da maneira como os índios sertanejos se relacionavam com a terra,

para confeccionarem seus artesanatos, água limpa dos rios e la-

há de entender que não havia uma definição de demarcação terri-

goas. É como colocou o cacique da Aldeia Itapicuru, Rosaldo Fiúza

torial para esses povos baseada na propriedade privada, situação

da Silva: “acabou até a alegria da gente, porque a alegria nossa é

que foi mudando devido aos intensos conflitos em razão da terra.

entrar dentro da mata. Somos pó da terra”.

Segundo o supervisor do meio-ambiente do município, Adailton José de Santana, essa é uma das características do povo Xacriabá;

Disse esta frase de uma maneira extremamente consciente; tinha um brilho nos olhos, de quem sente cada palavra que fala.

ainda falou de alguns problemas referentes à terra, recorrentes

A reserva Xacriabá está no município de São João das Missões

na região. Contudo, tratarei desta questão mais a frente. Antes,

e confesso que é um pouco difícil seccionar a cidade da reserva.

gostaria de apresentar o cerrado e sua atual condição. Penso que

O território é dividido em 32 aldeias. São elas: Brejo Mata Fome,

é um bom ponto de partida para entendermos um pouco sobre

Barreiro Preto, Sumaré I, Sumaré II, Sumaré III, Forges, Sapé, Itapi-

a história Xacriabá, entendendo que a natureza é um patrimônio

curu, Caatinguinha, Barra do Sumaré, Itacarambizinho, Imbaúba,

supremo para os povos indígenas.

Morro Fachado, Vargens, Riacho dos Buritis (antigo defuntos), Pindaíba, Riachinho, Prata, Peruaçu, Santa Cruz, São Domingos,

Apresentação do cerrado e os Xacriabá A variedade da fauna e flora do cerrado engana os olhos de quem pensa que nessa terra não há diversidade natural. São pés de pequi, aroeira, juá, jurema, braúna, pau-d`arque numa vegetação nativa que infelizmente se encontra bem desmatada, muito em razão da criação de gado e da agricultura, apesar do esforço da população local e das lideranças em revitalizar o espaço e o território Xacriabá. A mata seca e a vereda são partes da vegetação nativa. As frutas cagaita, cabeça de negro, jabuticaba, maracujá, melão

112

Rancharia, Custódia, Pedrinha, Riachão, Possões, Olhos d´água, Riacho do Brejo, Boqueirão, Furado dos Patos, Furado do Meio e Caatinguinha de Rancharia. Ainda, existem aldeias limítrofes com os seguintes municípios: Manga, Miravânia, Montalvânia, Januária e Itacarambi. Há aldeias que se localizam nas proximidades do município de São João das Missões e outras ficam mais distantes. O povo Xacriabá tenta atualmente resgatar sua cultura. Construir um espaço onde as relações sociais possam criar seus modos de expressão, e, modos de pensar: trata-se de algo essen-


Os Xacriabá hoje se encontram bastante descaracterizados, embora haja uma forte resistência contra esse processo – resistência essa que tenta resgatar inclusive o dialeto indígena. Em maior parte são católicos, encontram dificuldades em perpetrarem seus aspectos culturais e, ao que parece, estão em constante luta em direção aos seus direitos. A miscigenação desse povo é traço elementar: em seus traços estão índios, brancos e negros de forma bastante perceptível.


cial à formação cultural de um povo. Os povos indígenas brasileiros,

com a jurema para iniciar a apresentação do Toré. Há ainda a crença

muito além de questões sobre sua língua, danças e crenças, dife-

na onça cabocla, a Iaiá. Os Xacriabá acreditam que além de Iaiá pro-

renciavam-se: sinal manifesto mostrando que mais do que haver

teger o seu território de invasores, ela também cuida da natureza e

uma diversidade entre esses povos havia uma comparação entre

do povo Xacriabá. Segundo a obra Xacriabá, documentar para pre-

os mesmos. A declaração de Carlos Fausto em sua obra Os índios

servar, a Iaiá Cabocla é uma das guardiãs do território deles.

Antes do Brasil, descreve que: Os Tupi-Guarani do litoral chamavam os povos do sertão de Tapuia e os descreviam como gente bárbara, desprovida de aldeia, agricultura, canoa, rede e cerâmica5.

Patrimônio Xacriabá Deixando de lado um pouco da racionalidade que calca a sociedade ocidental, é muito difícil não considerar que essas lendas

Essa observação não levava em consideração que o povo Xa-

representam uma trajetória histórica de um povo que luta pela sua

criabá - o qual constitui a família lingüística Gê 6, subdivisão akwê

terra e pela sua cultura, desde o século XVI, quando os portugueses

- tinha uma organização social bem distinta dos índios do litoral.

chegaram ao Vale do São Francisco. A luta desse povo se encontra

De acordo com a associação Carlos Ubialli e o Instituto Ekos:

muito na figura de lendas como Iaiá, ou em acessórios como fuso8

Os povos de língua e cultura Jê, diferentemente dos Tupi, vivem, em geral, na região dos cerrados. Possuem não somente uma língua totalmente diferente da dos Tupi como, também, mitos, crenças e organização social próprias. Os povos Jê manifestam sua cultura de forma mais explícita e visível. Os numerosos ritos a serem realizados e respeitados, aparecem com mais clareza que nos povos Tupi7

e a roda de fiar linha. Alves de Barros explica na obra Xacriabá (Documentar para Preservar) que o fuso era muito importante, embora na atualidade, não se use mais tal técnica. Ela coloca que há pouco tempo atrás se usavam roupas feitas no fuso e na roda. Outros bens materiais também compõem a cultura deste povo: a tapera (casa indígena), a olaria, o forno de queimar telha, o engenho com suas engrenagens puxadas pelos bois que produziam

Boa parte dessas manifestações se perdeu em sua plenitude,

garapa para fazer rapadura e a oficina de fazer farinha. Alimento

ou seja, os índios foram bastante descaracterizados, mas, há ainda

este, que não somente está diariamente presente no prato dos ín-

a preservação de certos rituais religiosos, como o Toré - dança con-

dios, mas também na culinária das famílias brasileiras. Todos esses

siderada sagrada pelos Xacriabá. Segundo o índio Xacriabá João

artefatos são patrimônios que constituem a cultura Xacriabá.

Gomes de Oliveira (intimamente conhecido como João Zoropa),

Os patrimônios naturais também são tão importantes quanto os

quando a comunidade indígena quer apresentar o Toré, precisam

bens culturais, móveis ou imóveis, bens emocionais ou bens intelec-

pedir autorização para os pajés. João disse ainda que quando rea-

tuais. Tudo o que é produzido por eles tem a natureza como matéria-

lizam determinados rituais, os não-índios não podem participar. O

prima, e, mais do que isso, é na natureza que este povo guarda muita

Toré tem música, reza e alguns objetos como o cachimbo, maracá,

de suas lendas e histórias. Inclusive, havia índios que dormiam nas

fumo e borduna. Além desses artefatos, há uma bebida preparada

cavernas do território Xacriabá. Por exemplo, na aldeia Imbaúba, há

114


A família de Hilário junto a João Zoropa demonstrando um dos rituais sagrados Xacriabá: o Toré. Eles possuem uma variedade de rituais, embora nem todos possam ser contemplados pelos não-indígenas. Há uma preservação dos cultos, como nos foi dito.


uma gruta que um senhor com o nome de Roberto adorava repousar

Os brasis que não vemos, e o sertão que temos

tranquilamente. Dizia que o clima era mais fresco do que em sua própria casa: a gruta possui 1,5 metros de altura e 1 metro de largura e há

A prefeitura do município de São João das Missões tem como

um pé de gameleira bem perto da entrada. Um problema manifesto

prefeito, hoje, um índio Xacriabá. Seu nome é José Nunes de Olivei-

que percebi por meio da entrevista com o Cacique Domingos, e com

ra e o vice-prefeito é João Pereira da Silva, eleito no ano de 2004.

outros índios, é que na maioria das vezes que se referiam aos bens

José Nunes alcançou 2.736 eleitores, algo equivalente a 45,3% de

naturais, sempre falavam de seu péssimo estado de conservação, do

um contingente eleitoral que é composto de 6.039 eleitores, em-

desmatamento e de lagoas que simplesmente secaram.

bora a população do município seja de 10.769 habitantes 9.

Um bom exemplo para ilustrar essa situação pode ser visto

Aqui em São João das Missões o sistema político mostra uma

na Aldeia dos Pindaíbas. Diz-se que a lagoa que havia lá era usada

faceta interessante: as chamadas minorias étnicas, quando bem

tanto pelos animais quanto pela população para finalidades diver-

organizadas e informadas sobre seus direitos, conseguem usu-

sas: banho, lavar roupas e louças. Conta-se que até cinco anos atrás

fruir e utilizar de uma parcela desse sistema de representação po-

não havia nem uma gota de água nesta lagoa, Adailton José Santa-

lítica. E mais do que isso, conseguem trazer parceiros tantos para

na, supervisor de meio-ambiente do munícipio, disse que depois do

pesquisas, quanto parceiros para programas assistenciais básicos.

cercamento a lagoa voltou a ter água, apesar de deixar bem claro

Bom exemplo é o papel exercido pela Funasa (Fundação Nacio-

que é pouca água. Já a lagoa da aldeia Rancharia também, segundo

nal do Índio) - instituição que é responsável por ações ligadas ao

Adailton, está em péssimas condições, bem assoreada. O supervisor

saneamento ambiental em todos os municípios brasileiros e tam-

ainda coloca que a atual situação da lagoa afeta a fauna que antes

bém atende a população indígena, oferecendo atenção integral à

coabitava naquele local: a lagoa está poluída e há muito lixo ao seu

saúde: é um subgrupo do SUS (Sistema Único de Saúde), mas foi

redor. Há uma curiosa história sobre essa lagoa que, de acordo com

criado para atender minorias.

relato de um morador da reserva, em determinada época, quando

Em entrevista com Marcos Aurélio Fulgêncio Malacco, médi-

ocorriam obras para fazer o asfalto, o prefeito que estava em exercí-

co epidemologista - responsável pelo SIASI (Sistema de Informa-

cio permitiu que a firma responsável por fazer as vias pavimentadas

ção da Atenção a Saúde Indígena) Distrital - ele atribuiu os bons

pudessem secar a lagoa, chegando a gerar energia elétrica para tra-

resultados do trabalho desenvolvido pela Funasa na reserva à boa

balhar período diurno e noturno. A água da lagoa foi usada para a

organização dos Xacriabá: “Os Xacriabá é o povo indígena mais

geração de energia da respectiva empresa. Foi feito ainda um aterro

bem organizado do estado de Minas Gerais”, reitera. Para exem-

ao redor dela que, desta maneira, aumentava cada vez mais. Antô-

plificar um pouco desta organização interna, ele afirmou que na

nio - o cacique da aldeia Rancharia – chegou a ir à Brasília denunciar

reserva Xacriabá há três reuniões antes dos assuntos serem leva-

tal ação de degradação que na época tinha o aval da admnistração

dos às representações políticas: uma ocorre entre as lideranças

pública local.

(os caciques de cada aldeia), a segunda com os subsecretários das

116


Fotomontagem de Domingos Nunes de Oliveira: Cacique Geral Xacriabá. Seu pai - Rosalino Gomes de Oliveira – foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987 em razão de um embate por terra. Jagunços eram enviados a mando de fazendeiros da região para fazerem acerto de contas; uma prática que, sem sombra de dúvida, atacou o orgulho indígena sobremaneira. “O acerto de contas hoje diminuiu bastante, mas o preconceito contra os indígenas ainda existe”, protesta.


lideranças que escutam a população que vive em cada aldeia, e, a última, é organizada uma assembléia geral, onde eles conseguem finalmente colocar em votação suas demandas. Malacco comemora mostrando dados que apontam para uma situação interessante. No ano de 2008, os Xacriabá tiveram apenas uma morte infantil, enquanto na tribo indígena dos Maxakali, também no estado de Minas Gerais - no mesmo ano - foram registradas a morte de 30 crianças, com o agravante de que a população dos Maxakali correspondem a mais ou menos 1000 habitantes. O médico ainda afirma que depois do decreto feito em 1999 pela

As Histórias sobre as terras Xacriabá não passaram na novela das oito Domingos Nunes de Oliveira é o cacique geral das 32 aldeias que compõem a reserva Xacriabá. Ele conta um passado sombrio que povoou essas terras: O ex-cacique geral, Rosalino Gomes de Oliveira, pai de Domingos, foi assassinado em 12 de fevereiro de 1987. De acordo com Domingos, a homologação das terras indígenas naquelas bandas foi à razão da morte de Rosalino e de mais dois índios.

Presidência da República, onde houve a transferência da respon-

Seu Rosaldo Fiúza da Silva - cacique da aldeia de Itapicuru - diz

sabilidade da saúde indígena para a Funasa - o que antes era feito

que as duas outras vítimas eram seu irmão e cunhado. Ele ainda

pela Funai (Fundação Nacional do Índio) de maneira bem desorga-

conta que sua irmã no momento do ataque fora baleada, e, ela

nizada - aconteceram melhoras no atendimento à população Xa-

estava na ocasião com sua criança no colo. O irmão que já havia

criabá. Muito em razão de a Funasa conseguir digitalizar os dados

sido baleado e esfaqueado; antes de morrer disse-lhe para ir em-

e, assim, passar a conhecer os problemas respectivos de cada po-

bora senão os pistoleiros o matariam também. Rosalvo conta que

voação indígena. Ele lembra que, antigamente, havia apenas um

na época dos conflitos, especificamente na década de 80, os ja-

posto de saúde na Aldeia Brejo Mata fome; hoje existem postos na

gunços vinham a mando dos fazendeiros da região. Eles chega-

aldeia de Itapicuru, Sumaré, Sumaré 3, Rancharia e Pindaíba.

vam às terras indígenas, montados em caminhões com armas e

Mallaco ainda disse que as mortes na reserva Xacriabá geralmen-

foguetes, dando tiros para o alto para assustar os índios. Muitos

te ocorrem em razão de doenças infecciosas e parasitárias. Ele reitera

índios com medo abandonavam a região, largavam sua terra. Ro-

que as enfermidades respiratórias e circulatórias também necessitam

salvo ainda colocou que nessa época os conflitos foram intensos:

de atenção especial, pois um número considerável de indígenas já

“tivemos uma batalha muito dura, mas se não a fizéssemos, as

morreu em razão delas. Malacco durante a conversa falou sobre uma

coisas estariam iguais”, relembra. Ele nos contou que, neste perí-

situação que merece atenção especial: há um número apreciável de

odo, passavam pessoas a mando dos fazendeiros com fichas para

suicídio entre os Xacriabá. As causas ainda não são sabidas. Mas, senti

denominarem o povo indígena que habitava a região enquanto

um incomodo perturbador neste médico que desde 1983 trabalha para

posseiros. Seu Rosalvo diz que não preencheu a ficha em razão de

a melhora da saúde indígena. Infelizmente não entrarei mais profun-

não se considerar posseiro. Muito antes seus antepassados já es-

damente neste assunto por ser uma situação pouco explorada ainda,

tavam nessas terras. Ele disse que muitos índios assinaram a ficha

mas, confesso-lhes que este fato também me intrigou bastante.

enquanto posseiros por pura falta de informação.

118


Já no relatório sobre identidade e pesquisa da antropóloga Ana Flávia Moreira Santos, a situação do preenchimento das tais fichas é tratada de outra maneira.

branco” trouxe a perdura de impressões alegóricas sobre este povo que se estendeu até os dias de hoje. Para se entender o ponto de partida dessa identidade pejora-

A partir da década de 70 é possível observar que grupos de posseiros, dentro da área, se posicionavam contra a intervenção da Funai (Fundação Nacional do Índio), interessados em obter a regularização fundiária de suas posses. A tensão que se instala entre uns (posseiros) e outros (índios) torna-se insuportável, na medida em que os primeiros são identificados como aliados dos fazendeiros (...) Na década de 80, os enfrentamentos diretos, envolvendo Xacriabá e 10

posseiros, passam a ser constantes”.

Em seguida, a pesquisadora faz uma interessante reflexão acerca de um depoimentos de um indígena:

tiva sobre os povos indígenas é fundamental contar o início dos problemas relativos a terra. O bandeirante Mathias Cardoso foi bem conhecido pela maneira austera e sanguínária com que dominou aos povos indígenas que encontrou pela frente em sua missão de dominação do alto-médio vale do São Francisco no fim do século XVII. Daquelas terras sertanejas que já eram muito importantes em razão das criações de gado - a pedido do Governador da Província - Mathias Cardoso seguiu a caçar índios. Observe a colocação extraída do Laudo Antropológico de Maria Hilda Paraíso presente no relatório da pesquisadora Ana Flávia: Seguindo seu caminho de destruição, Matias Cardoso, após atacar e

(...) mais eu estive pençano sobre isto que muito deles sendos pos-

escravizar os Arayo, Kiriri, Pimenteira, Piacú, Janduí e Icó, voltou-se

seiros pobres mais tenho muitos nos matratado torcendo pelos gri-

para atacar a aldeia de Tapiraçaba, onde construiu com concurso do

leiros. Outros não queres ser índios por cer uma classe baixa e pobre

trabalho escravo dos índios, sua fazenda, com a capela localizada

e outros só quere o Estado para dividir as terras para vender para

sobre a área antiga da aldeia.(...) Os Xacriabá se organizam e quei-

eles e por isto eu não poço se defender eles e mesmo os outros não

mam a sede da fazenda, que é reconstruída pelo filho de Matias

são de acordo (...).

11

Na análise dela, a situação de os índios assinarem enquanto

Cardoso, Januario Cardoso de Almeida, sob nome de Nossa Senhora do Amparo do Brejo Salgado. 12

tais correspondia um certo retorno, um espécie de atraso. Segundo

Os conflitos entre bandeirantes e índios continuaram levando

ela, é como se fosse “retornar a um estágio primitivo”. Entenden-

os Xacriabá a se deslocarem para o rio Urucuia. Contudo, por volta

do-se que eles se viam desta maneira pejorativa pelo fato de, his-

da segunda década do século XVIII, os Xacriabá tiveram proble-

toricamente, serem marginalizados e tidos como uma espécie de

mas com os índios Kaiapó. Fato este que os levou a se aliarem a Ja-

raça inferior. Além da representação de desordeiros e facínoras

nuário Cardoso para combatê-los. Após consecutivos conflitos da

que os acompanhava, eram tidos também marginilazados, muito

bandeira de Januário Cardoso aliada aos Xacriabá contra os Kaia-

por resistir à dominação desde os tempos coloniais. A dura resis-

pó, foi doada uma parte da terra que eram demarcadas pelos rios

tência dos povos indígenas à imposição da cultura do “homem

Itacarambi, Peruaçu, São Francisco e pela Serra Geral e Boa Vista.

119



Hoje a terra dos Xacriabá corresponde a apenas um terço

Há de se entender que nem as lutas contra dominadores de

comparada à doação atestada na carta que Januário Cardoso re-

suas terras não os tiraram daqui, nem o período de seca que se

digiu em 1728. Abaixo, um trecho da carta do proóprio Januário

estende de março a setembro fez com que eles desistam de sua

Cardoso:

terra. É normal por aqui, nos períodos de seca, os índios irem tra-

deministrador dos Indios da Missão do Snr. S. João do Riaxo do Itacaramby Ordena a Cap. M. Mandante Domingos Dias ajunte todos os indios tanto maxos como femias q~andarem por fóra pª ad-missão com zello e cuidado os que forem rebeldes fará prender com cautella para hirem para ad-Missão Copio e Christão e zello Mandando lhe ensinar se Doutrina pellos os q~ mais soberem os doutrinatos que vivão bem e se cazem os Mancebados não tendo empedimento ou avendo empedimento fazendo se caze com outro q~ não tenha empedimento fazendo os trabalhar pª terem qi comer, e não furtarem e o que for rebelde a esta Doutrina (entrelinhas e sublinhado) que expendo neste papel os prenderá e castigará como merecer sua culpa... [porque] tenho ordi de quem podi para castigar e prendellos etirar o abuso de serem Bravos. 13 Esta carta diz muito. Não apenas sobre como eram vistos os índios ao olhar do “homem branco”, mas do problema relacionado a

balhar no interior de São Paulo, Goiás e do Mato Grosso - o que os coloca na condição de índios retirantes. Mas, quando a seca termina e a chuva começa a chegar molhando suas terras, lagos e rios, eles retornam. Mesmo sabendo, como coloca o índio João Gomes de Oliveira, que o que falta aqui é água. O vínculo com a terra se mostra ainda maior do que todas essas dificuldades vistas na trajetória do povo Xacriabá. E a insatisfação de estar longe do Rio São Francisco também é notória. Rosaldo Fiúza, cacique da aldeia Itapicuru fala de um sonho: “a preocupação nossa é só chegar à beira dele [O Velho Chico]. Estamos afastados dele. Na época do coronelismo fomos nos espalhando por não ter havido espaço para nós”. Gostaria de terminar este breve relato com uma frase que ouvi bastante na reserva indígena e que se transformou em uma bandeira de luta: “Os Xacriabá não foram criados hoje, somos um povo muito antigo”.

terra que até hoje vivem os Xacriabás. A questão agrária no Brasil para os povos indígenas continua a ser o espaço onde despontam

1

problemas que esbarram na concentração fundiária, seja na refor-

Vitor Ribeiro. 2005.

ma agrária que não têm a merecida atenção ou no direito à terra

2

que os povos nativos e as minorias étnicas têm. Segundo João Zoropa, o objetivo dos Xacriabá é voltar para a margem do rio São

(Org) Alenice Baeta, Henrique Piló, Vitor Moura, Ésio Rubbioli,

Documentar e Preservar. (Org) Alenice Baeta, Henrique Piló,

Vitor Moura, Ésio Rubbioli, Vitor Ribeiro. 2005, p.15. 3

Xacriabá: Identidade e História. 1994.

antepassados estavam lá, e que conflitos com a ordem vigente e

4

Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

com fazendeiros, desde o século XVII até o século XX, foi a razão

p.4.

Francisco. Ele tem a ciência de saber que há tempos atrás seus

pela qual se distanciaram do velho Chico.

121


5

Carlos Fausto. 2000, p.62.

6

Na literatura Xacriabá é usual perceber essa família linguistíca

grafada enquanto Gê ou Jê. Há uma variação que não parece seguir uma lógica específica. 7

Artigo disponívelno endereço: http://www.combonianosbne.

org/PgAnteriores/Povos/indios_MA_1.html 8

Instrumento para fiar à roca. Pelos Xacriabá era usado para tecer

roupas. 9

Informação disponível no site do IBGE (Instituto Brasileiro de Ge-

ografia e Estatística): www.ibge.gov.br 10

Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

p.18. 11

Transcrição literal de um indígena.

12

Ana Flavia Moreira Santos. Xacriabá: Identidade e História. 1994,

p.5 13

Ibdem

122


Matias Cardoso e o delubrum mirae magnitudinis

Felipe Chimicatti

“Um povo que não conhece a sua história está limitado ao presente da atual geração; esse povo não compreende nem sua geração; esse povo não compreende nem sua própria natureza e existência, na impossibilidade em que se acha de relacioná-las com o passado que as explica; muito menos pode antecipar coisa alguma sobre o futuro. Somente a história pode dar a um povo a consciência de si mesmo”. Schopenhaeur



À primeira vista se tratava tão somente de uma igreja suntuosa

tamanho modesto – cerca de um metro – que era seu assento nas

erguida arguta no centro da praça principal de Matias Cardoso –

missas de antigamente. Conta ela que há muitos anos atrás era

cidade mineira limítrofe com o Estado da Bahia. Ao seu redor des-

necessário levar o próprio assento, caso contrário, à missa deveria

pontava casas antigas que oscilavam seus estados de conservação,

ser assistida de pé. O assento, pelo que foi dito, era um elemento

embora a maior parte tenda, infelizmente, à ruína ou à descaracte-

de distinção social. Dono Rita morava exatamente de frente para

rização dos traços arquitetônicos. Novamente, como em boa parte

o adro da Igreja matriz, a alguns passos da entrada.

das cidades são-franciscanas visitadas, a igreja apontava seu adro

Todavia, o instante mais avassalador da visita à cidade se con-

em direção ao Velho Chico, postando-se frontalmente aos viajan-

teve no deslumbrar mais detido dessa mesma igreja. Nada poderá

tes de outros tempos que, certamente, empreendiam o meio flu-

se igualar a distinção assombrosa de perceber tamanha enver-

vial com mais regularidade que os demais; os olhos de Deus ainda

gadura histórica delegada ao ostracismo público generalizado: a

miram o ininterrupto correr das águas são-franciscanas.

edificação não possui a data precisa de sua construção, mas se

A receptividade da população matiense é aspecto assaz curio-

estima que seja do final do século XVII, de acordo com uma telha

so: sentem-se bastante inclinados em dialogar – muito por se lo-

encontrada com o ano de 1703 grafado nela. Logo, a partir daí,

calizarem na borda da dobra geográfica – e, na maior parte das

estima-se algo na ordem do ano de 1673 para a construção. No

vezes, mostram interesse exacerbado pela razão da visita à ci-

entanto, uma recente teoria partindo de um documento histórico

dade. O turismo naquelas bandas é parco e pouco habitual, perce-

localizado na Bahia deu à matriz de Nossa Senhora da Conceição

bido, sobretudo, pela estruturas desconservadas e pelo pequeno

o ano de fundação no dia 8 de dezembro de 1695, jogando por

número de estabelecimentos declinado ao pernoite. Ficamos na

terra a teoria originária a partir da telha. De qualquer maneira,

pensão da Dona Rita: uma senhora mais idosa com hábitos católi-

uma construção de envergadura histórica mais pungente que a

cos e uma nostalgia impecável. Em seu estabelecimento, que nos

maior parte das igrejas mineiras, datada do final do século XVII,

custou à módica quantia de R$ 10 por noite, pode-se adentrar pro-

ruindo penosamente frente a sua capacidade histórica de retratar

fundamente na estrutura familiar do interior desta ribeira. A casa

a origem das Minas Gerais como um todo. Outrora, a igreja fez

conserva todos os móveis e toda a estrutura intacta, só que inte-

parte da capitania da Bahia, quando sequer existia o Estado de

ressantemente se trata de uma pensão. A sensação que se tem

Minas Gerias; e seus traços fulgurais são relíquias de um remoto

é que se todos os hóspedes deixassem a casa, ela se tornaria em

passado abandonado.

um lar conservador radicado no catolicismo mineiro. Dona Rita –

A sua estrutura, no mais prosaico dos adjetivos, consiste num

senhora muito agradável repleta de histórias – guarda algumas

afronta à história e à memória regional das Minas Gerais como um

antiguidades bastante particulares, como um imenso filtro do co-

todo. Seu adro está carcomido pelo tempo, faltando ruir; a nave,

meço do século que abasteceu de água filtrada sua pensão por

dilacerada, guarda uma estruturação mal tratada; o altar também

algum tempo. Agora, o objeto mais curioso era uma cadeira de

foi notadamente saqueado – e isso é ilustrado em grande parte

125


das literaturas históricas; as ripas madeiradas que compõem o

pode se perguntar: por quais razões existem diferentes caminhos

teto, em razão do tempo, vão se contraindo, destruindo as pintu-

para uma só origem? Em primeiro lugar, todas as cidades do norte

ras originais que nelas despontam; as escadas de madeira rangem

mineiro passam por processos de degradação histórica que se ve-

em qualquer menor esforço: quanto mais escorre o tempo, mais

rificam, por exemplo, nas vastas incertezas digressivas de toda a

volátil se faz à estrutura física da primeira igreja do Estado; e o Go-

porção mineira do vale do São Francisco: remontar o passado do

verno Federal e Estadual só olham para as Minas, distendendo os

norte de Minas é tarefa de adivinhação, em muitos casos. Os his-

Gerais da sua importância histórica; os Gerais do gado e da agricul-

toriadores tendem a partir de flutuantes hipóteses, pois a confir-

tura, não do ouro. Pedro Cristóvão, professor de matemática e pes-

mação oficiosa dos ocorridos é demasiadamente incerta e quase

quisador autônomo da história da região, lamenta-se fortemente

nada documental. Somente para se ter uma idéia da parca noção

do descaso. “Os Gerais são tão discriminados que só serviu para

de passado da região, transcrevo aqui uma passagem datada do

compor o nome. Quem nasce em Mato-Grosso é mato-grossense;

começo do século XX - do livro de Wilson Lins - chamado O Médio

quem nasce em Rio Grande é rio-grandense; quem nasce em Minas

São Francisco: Uma Sociedade de Pastores Guerreiros:

Gerais é mineiro”, protesta. Ele ainda pontua: “não tivemos um governador do Estado que saiu das Gerais”. O descaso político é acintoso. As pessoas parecem viver num espaço obtuso delegado à corrosão pelo tempo. Matias Cardoso é berço das Minas Gerais e, mesmo assim, esse berço está largado ao esquecimento por parte da porção mineira, ligada ao período aurífero: prova disso é a (des) estrutura da primeira igreja construída no Estado, mesmo que nos tempos da capitania baiana em que o mapa geopolítico do Brasil era bem diferente: e os processos de restauração, como bem se sabe, são cada vez mais difíceis à medida que o tempo passa.

(...) Para chegarmos a esse inventário, tivemos que recorrer a vários arquivos particulares, pois, devido às lutas entre famílias rivais e às constantes inundações do São Francisco, os cartórios das cidades ribeirinhas estão reduzidos às mais constrangedoras inutilidades. Por isto, poucos documentos existem para orientar as incursões do curioso nos assuntos históricos que se proponha a conhecer fatos relacionados com a formação dos latifúndios no São Francisco. 1 O relato, embora com seus quase cem anos de procedência, é ainda atual. As pessoas de ribeira desconhecem as próprias

Não obstante, para entender um pouco melhor a importância

origens históricas e, a despeito do que disse Euclides da Cunha,

do município para a formação do Estado - e porque não dizer do

referindo-se ao rio como “o cerne vigoroso de nossa naciona-

país - é necessário uma sucinta digressão histórica.

lidade” 2, a história parece se deparar com o hipotético desco-

Faltosa reminiscência: a justificável borda do Estado Existem várias hipóteses para a fundação do município de Matias Cardoso de acordo com a historiografia da região. O leitor

126

nhecimento de suas raízes, muito em razão do pequeno estímulo científico delegado à região. Para um rio que serviu de fator geográfico preponderante na descoberta do interior do país – o grande rio genuinamente brasileiro – a atenção delegada a ele é demasiadamente econômica.


João Batista de Almeida, pesquisador da região e doutor em

traço “agropastoril, estratificada, com predomínio do compadrio e

antropologia pela UNB (Universidade de Brasília), lança mão de

organização política baseada na ordem privada” perpassou pelos

três hipóteses para a gênese: o município de Matias Cardoso, na

“séculos isolada das regiões mais desenvolvidas do país e manteve

primeira delas, foi fundado pelo intrépido bandeirante Mathias

um ritmo de crescimento lento e retardatário”; 5 tudo em razão da

Cardoso de Almeida. O perspicaz colono tinha como objetivo de

administração pública da coroa, leviana e avarenta o suficiente para

suas bandeiras a captura e venda de indígenas para o mercado

em 1711 proibir terminantemente as trocas comerciais entre o norte

escravista (durante algum tempo os índios foram mão-de-obra

de Minas Gerais e a região do ouro. Em razão desse descaso admi-

escrava no vale do São Francisco, a despeito do litoral, que em-

nistrativo, de acordo com João Batista, tentou-se por 36 vezes criar

preendeu largamente a mão-de-obra de escravos negros vindos

um Estado próprio para a bacia do São Francisco – diferentes dos

da África). Em uma de suas andanças pelo sertão, parou e fundou

demais já existentes. Em 1873, por exemplo, o projeto teve bastan-

o respectivo município, denominado na ocasião por Morrinhos.

te fôlego nas discussões. O Estado são-franciscano compreenderia

Ao que parece, uma das vertentes historiográficas registrou que

territórios de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, teria como capital

“desde antes de 1664 esse bandeirante paulista andava com seus

Vila da Barra (BA): a nova província ainda daria a União quatro de-

companheiros pelo sertão do São Francisco”.

3

putados e dois senadores. A comissão de estatística em seu parecer

A segunda hipótese consta que o arraial de Morrinhos fora

favorável julgou que a nova administração provincial chegaria mais

fundado por um tal de Domingo Dias do Prado. Em razão de uma

eficazmente aos cidadãos são-franciscanos; que exerceria influên-

enchente no arraial fundado por Mathias, o seu filho – Januário

cia positiva sobre a prosperidade, segurança e integridade do Im-

Cardoso – fixou residência no município fundado por volta de

pério Brasileiro e que levaria aos 240.000 habitantes o progresso.

1600, levando toda a sua genealogia para aquelas bandas.

O projeto, mesmo tenazmente debatido, foi levado ao Senado que,

A terceira hipótese – aventando ser a mais nebulosa – diz res-

em instância superior, o vetou. Hoje, inclusive, existe em tramitação

peito à fundação da cidade por negros. A partir de uma enchente,

na câmara dos deputados um novo projeto para separar o norte de

a população migrou para a cidade que hoje é Januária. Os negros

Minas proposto pelo deputado federal Romeu Queiroz (PPS-MG).

que não se dispuseram a ir, ficaram na localidade e imprimiram

Tudo parte da necessidade de auto-afirmação de um povo acostu-

suas características culturais à cidade. Pedro Cristóvão – cito isso

mado a ser esquecido. Provavelmente, a região do Brasil que mais

para nortear o leitor – no seu relato misturou as três hipóteses em

tentou se distender de sua jurisdição: há realmente algo de sintomá-

4

tico nisso. Isso mostra, em outras medidas, que a região sempre

A localidade na qual o sertão norte-mineiro se encontra –

se sentiu marginalizada frente ao Estado. No caso de Minas Gerais,

como um terceiro lugar; sequer mineiro ou baiano – gera uma

por exemplo, não é raro ouvir isso que a capital mineira da porção

série de conveniências socioculturais, decerto. Contudo, gera tam-

são-franciscana irá se permutar a Montes Claros. Trata-se de uma

bém um descaso administrativo. Por se tratar de uma economia de

espécie de necessidade de afirmar tamanha marginalização.

uma só; o que pode gerar uma quarta, embora também incerta.

127


Destas três hipóteses a ciência de que a localidade foi também, assim como boa parte do sertão norte-mineiro, um entreposto comercial no qual passavam as mercadorias e as valiosas quantias metalistas. Inclusive a criação da estrada que interligava Minas-Rio de Janeiro consiste um fator preponderante para a crise norte-mineira. Tanto é que, “a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cresceu e desenvolveu-se tanto que, em 1763, reunia todos os elementos para poder roubar a situação de Capital administrativa do Brasil”. 6 Boa parte dos contrabandos usava o rio S.Francisco como a principal via de escoamento. Fizeram-se bastante na região dos Gerais, afinal, naquele sem fim de terras agrestes a fiscalização da coroa era escassa. Na medida em que a coroa portuguesa cobrava a lancinante quantias do quinto na região aurífera em um monopólio ostensivo, o sertão pouco importava à administração portuguesa e, se importava, fazia-se por motivos de abastecimento; os incentivos agropastoris eram de ordem privada, para se ter uma idéia. A região foi a que abasteceu em gêneros alimentícios a região aurífera por algum tempo. Os Gerais, por se tratar de uma região até hoje basicamente agropastoril –, não impediu que a vertiginosa procura por ouro padecesse sem alimento, pois, nas paragens do ouro, os caboclos não queriam saber de mais nada além de procurar o grande Eldorado brasileiro. Ainda a se avultar a isso, a coroa mantinha os estúpidos privilégios a extração metalista. A região de Mariana chegou, inclusive, a ser acometida por intensos ciclos de fome, tendo a população local que se deslocar da região para não morrer de fome. Já em 1711 o comércio com o norte mineiro fora proibido, comércio esse que se constitui com muito mais agilidade que os demais: tudo por razões financeiras. O tráfico de ouro era inconcebível à coroa e a forma proposta de

128



(Páginas anteriores) Pintura que compõe o teto da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e fotomontagem da edificação. Hoje, ao fundo, ergue-se uma rigorosa antena das telecomunicações. As paisagens ao redor vão mudando na medida em que a igreja vão se deteriorando. (À esquerda) Detalhe da edificação que, como consta na documentação histórica, foi restaurada em 1913 pelo Cônego Maurício Gaspar.


Um dos retratos que remete ao precário estado de conservação da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. As precárias condições estão para além da palavra ou da imagem. Precisa-se ver para crer tamanho descaso. Trata-se de uma das igrejas mais antigas do país largada pelo patrimônio histórico.


se abortá-lo foi isolando toda uma região, amputando-lhe o de-

arquitetônica da igreja, hoje ela se torna cada vez mais precária.

senvolvimento; elementos fundamentais para se entender a ad-

Ainda, segundo o pesquisador João Batista, “se a igreja está de pé

ministração exploratória da coroa portuguesa no Brasil.

até hoje, seguramente, é a população que não deixa ela cair”. De

Segundo João Batista, a igreja bem como o município de Matias

acordo com ele, até algum tempo os próprios moradores pinta-

Cardoso – fundamentais para se entender a conjuntura histórica

vam a igreja, o que foi posteriormente proibido pelo Iphan. Acho

de Minas Gerais – não fazem parte do patrimônio mineiro. Ela

inclusive difícil achar adjetivos bastantes à descrição da ruína

sequer consta na lista de cidades históricas de Minas Gerais. “O

dessa edificação, pois, para além de “precária” ou “violentas in-

norte de Minas só começou a ser estudado por nós, da Universi-

filtrações” só imagino em substituição “estado de emergência”.

dade Estadual do Norte de Minas, agora”, reforça. Ele se refere ao

Richard Burton – um auspicioso gênio inglês – que correu o rio São

tempo em que lecionava e pesquisava pela instituição. No atual

Francisco da nascente à foz no século XIX assim escreveu sobre a

momento o pesquisador está atuante na Fundação Darcy Ribeiro,

cidade de Matias Cardoso, na ocasião Morrinhos:

no Rio de Janeiro. E realmente; poucos estudos existem sobre a região, sobretudo estudos mais recentes.

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a primeira do Estado a se eregir e possivelmente a próxima a ruir Pude ter acesso, em consulta ao acervo do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a duas pequenas pastas com informações da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, tombada pelo patrimônio histórico federal em 1954. Pude perceber dentro dessas duas pastas algumas fotografias antigas, em preto

(...) O lado oriental da praça é ocupado pela Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Morrinhos, que deu nome ao lugar. É um ‘delubrum mirae magnitudinis’, que goza de grande fama, o que leva os forasteiros a perguntar como isso aconteceu (...) Tivemos alguma dificuldade em encontrar as chaves; afinal, apareceu o sacristão, com o ‘rabo’ habitual. O interior estava em pior estado que o exterior: no teto faltavam algumas das tábuas de cedro que o cobriam, o coro estava em ruínas – em geral é onde a decadência começa – e os púlpitos estavam, igualmente, na eminência de cair (...). 7

e branco, com a estrutura já carcomida e um conjunto de plantas

O tal Burton, figura fascinante - somente para fins de contex-

do ano de 1981 que aponta as precariedades da edificação. Nelas

tualização – era admirado por viagens, o que não o impediu de

despontam observações da seguinte ordem: “painéis em tabuado

exercer cargos burocráticos, sendo ele célebre cônsul britânico,

liso em estado precário”; “revestimento em madeira com tábuas

atuando inclusive em Santos, no Brasil. Foi ele quem traduziu para

deterioradas e despregadas”; “púlpitos em madeira almofadada

o português o Kama Sutra e as Mil e uma Noites, além de ter em-

atacados por insetos xilófagos e com peças despregadas”; “re-

preendido uma sólida viagem da nascente do São Francisco à foz,

vestimento com violentas infiltrações”. As observações de 1981

de canoa, no século XIX. Assim como Guimarães Rosa, detinha

apontavam uma necessidade urgente de reestruturação da base

elevados conhecimentos lingüísticos, totalizando por volta de 25

132


idiomas e dialetos conhecidos. Foi explorador intrépido da África

Além dessas atrocidades, constam na tradição oral dois casos

e do Oriente Médio em um tempo onde não se podia usar a pa-

de queima completa dos arquivos da igreja. Em 1700 é contado

lavra turismo na mesma acepção de hoje. Sua obra é importante

pelos mais idosos que o pároco queimou toda a documentação

leitura sobre o Brasil dos tempos de Império. Ele certamente ficou

da igreja em um acesso desconhecido. No século XIX consta no-

admirado com a proporção de tamanha arquitetura em meio a um

vamente uma queima dos arquivos sacros; embora tudo isso se

povoado tão modesto, provavelmente, a razão pela qual lança

afigure na tradição oral. 8

mão da faustosa adjetivação em latim.

Marcos Cambraia, assessor de comunicação do Iphan, disse

Voltando: mesmo no século XIX Burton já verificava a precária

ser também uma das atribuições do pároco da igreja se deter em

estruturação da edificação do século XVII. Sabe-se, entretanto,

possíveis meios para manter a igreja conservada. É possível hoje,

que um cônego chamado Maurício Gaspar empreendeu, em 1913,

por exemplo, recorrer à lei de incentivo federal (Lei Rouanet) ou ao

uma restauração na igreja. Certamente muito dela hoje é fruto

Pronac (Programa Nacional de Apoio a Cultura) para captar verba

desta obra. Houve um outra reforma, embora não tenha passado

junto às empresas através do abatimento fiscal. Oras, a grande in-

de uma tentativa, no ano de 1989: as obras ficaram pela metade.

dagação que não pode deixar de ser feita é: Por que razão uma em-

Pouco se sabe sobre as reformas e sobre as mudanças empre-

presa privada, ou estatal que seja, investiria na restauração de uma

endidas. O visível é que mesmo reformada há quase cem anos, a

cidade que pouquíssimo tem de turístico? A cidade já conseguiu

igreja demanda outra reestruturação.

ter a restauração aprovada e o crédito financeiro liberado pela lei,

O histórico de expropriação da Igreja de Nossa Senhora da

no entanto, a captação da verba sempre é inexistente. As empre-

Conceição não se limita unicamente ao descaso corrosivo do Estado.

sas simplesmente não investem. O pior é que uma igreja do porte

Um pároco de São Romão, no início do século XX, levou para a sua

da matriz de Matias Cardoso não deveria passar por esse tipo de

paróquia os candelabros de prata e os ostensórios de ouro que

triagem: trata-se da primeira igreja de todo o Estado de Minas Gerias;

existiam desde os tempos das bandeiras de Mathias Cardoso de

uma reminiscência viva pronta a recontar sua história.

Almeida após a missa da comemoração do Divino que fora convi-

A questão da não conservação, todavia, serve muito para

dado a celebrar. Outro padre, de Januária, transferiu para a sede

apontar a já tratada distensão do norte de Minas com relação à re-

da paróquia - na ocasião de sua visita a igreja – a imagem do Se-

gião aurífera. João Batista de Almeida, integrante do movimento

nhor dos Passos e da Nossa Senhora das Dores, relíquias históricas

Catrumano 9, diz que os Gerais – habitualmente reconhecidos en-

da edificação. A imagem do Senhor Morto só não foi levada por-

quanto sertão, e não enquanto pertencente às Minas Gerais – só

que a população literalmente se armou de paus, pedras e foices,

vai se fazer notar na medida em que a população local “reconhecer

impedindo o transporte da peça. Em 1940, outro padre de Januária

que ela não foi só ouro, que ela foi também gado e agricultura”,

teria vendido um sobrado que dizem ter pertencido a Januário

propõe. Para ele a Igreja de Nossa Senhora da Conceição revela

Cardoso, no entanto, vendeu a um particular.

muito bem essa constituição. Mas a luta pelo reconhecimento não

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se encerra no coração desse povo tão rico culturalmente e tão

privado e público. E, em algum sentido, existe força econômica

afundado em políticas públicas que não querem ver o que a história

por lá nos dias de hoje. O Projeto Jaíba é responsável por levar

insite em mostrar.

água para essas plantações durante todo o ano, produzindo gêne-

Com relação ao estilo da igreja - estilo esse que Burton adjetivou

ros agricultáveis ininterruptamente de janeiro a janeiro. São canais

com deslumbre – muito historiadores investem na possibilidade da

que deslocam a água direto dos rios S.Francisco, Verde Grande,

estilística jesuítica. João Batista lança opinião contrária: “Ao que me

Gurutuba, Jequitaí e das Velhas, e, literalmente passando em meio

parece aquela igreja nunca seria jesuítica; não existe registro histó-

às propriedades, geram para as empresas capacidade produtiva

rico dos jesuítas no norte de Minas”, enfatiza. Narra ainda que nos

anual para a fruticultura e a produção de grãos. É impressionante

anos 80 foi encontrada em uma das eventuais obras que eram fei-

notar que hoje, no Vale do São Francisco, são produzidos até vi-

tas na edificação uma adaga de estilo árabe. Arrisca ele que a igreja

nhos de boa qualidade, vale esse que antes se mostrava inapto à

tenda mais a esse estilo do que propriamente ao jesuítico. De qual-

agricultura em razão das constantes secas.

quer maneira, encerra-se como outro enigma do norte mineiro que padece sem esclarecimentos por parte dos estudiosos.

Agricultura em meio à seca: uma das proporções do Projeto Jaíba

Shiguetushi Kojima – descendente de japonês e empreendedor do projeto Jaíba – está trabalhando há dez anos com o método de irrigação. Sua empresa chamada Água da Prata exporta frutas para Alemanha e Portugal, produzindo por mês 200 toneladas de frutas. “A exportação paga melhor – cerca de 50% a mais que

Em meio ao sertão matiense, de terra seca, sol e luminosidade

importação, apesar de serem mais criteriosos”, explica. Ele ainda

implacáveis, existe o projeto responsável por fornecer água para

esclarece a quantidade de água que é gasta por dia: “são aproxi-

as plantações durante todo o ano. Quem nos apresentou às plan-

madamente 1.000 m³ de água/dia em cada lote de 50 hectares”. A

tações ligadas ao projeto Jaíba foi um Pernambucano amistoso de

irrigação de sua plantação é praticamente toda computadorizada,

olhos azuis de apelido Caboclo. Seu semblante de longe se parecia

prescrevendo através de um software a quantidade de água ideal

com o de um caboclo, mas, como na lógica dos apelidos adormece

para as frutas em cada ocasião do ano, basta informar a respeito

sempre um sarcasmo desmedido, detive-me em sua postura cor-

das chuvas e das proporções pluviais: coisas na ordem dos índices

dial. O Jaíba, como estava tratando, constitui-se enquanto o maior

pluviométricos. A plantação de Kojima trabalha basicamente com

projeto público de irrigação em área contínua da América Latina.

mangas, tendo mais saída para a do tipo Palmer, embora esteja

Nesse sentido, o norte de Minas Gerais tem parte de suas atribula-

agora no início da implantação da cultura abacateira. Quando in-

ções empresariais sanadas, muito em razão de ser um projeto que

dagado a respeito dos subsídios, Kojima se lamenta dizendo que

se adequou muito bem ao agronegócio. A implementação deste

já foram melhores.

braço agroindustrial no norte de Minas tem, a princípio, a neces-

O projeto Jaíba nasceu em plena ditadura militar, no ano de

sidade de desenvolver uma região sempre esquecida pelo capital

1975, apesar de sua articulação ter começado a ser projetada na

135



década de 50: trata-se de uma parceria entre Governo do Estado e

7

a União, representados, respectivamente por Ruralminas (Secreta-

1977, p.220

ria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Codevasf

8

(Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba). Foram arqueadas quatro fases para o projeto e se estima que, ao final da empreitada, tenham-se implantados 100.000 hectares de perímetro irrigado. Trata-se de um projeto produtivo, principalmente durante a entressafra dos mercados internacionais, uma vez que o projeto tem produção anual. Entretanto, constitui-se majoritariamente de um projeto de latifúndios. A fase de recolocação dos ribeirinhos que plantavam as margens do Velho Chico – a primeira fase – teve um êxito regular. Alguns casos prosperaram outros não, mas, o projeto teve seu maior êxito no sentido do agronegócio. 1

Wilson Lins. 1983, p.31

2

Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de

Minas Gerais. 1991, p.19 3

Afonso Taunay. História Geral das Bandeiras Paulistas. 1948,

p.45 4

De acordo com a tese de doutoramento João Batista de Almeida

intitulado: Mineiros e Baianeiros: Englobamento, Exclusão e Resistência obtida em 2003. 5

Bernardo da Mata Machado. A História do Sertão Noroeste de

Minas Gerais. 1991, p.19 6

Ibidem

Richard Burton. Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.

João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: Englobamento,

Exclusão e Resistência. 2003, p. 185 9

Catrumano é um movimento político que tenta resgatar a diver-

sidade e pluralidade do norte de Minas – tão rico culturalmente. Trata-se de uma tentativa de fortalecer a imagem do norte-mineiro no cenário nacional. Catrumano é uma palavra que foi dita pelo botânico francês Saint-Hilaire na ocasião de sua visita a Minas Gerais. De acordo com ele, tudo o que aquele povo fazia era por intermédio da montaria; tratava-se um povo cavaleiro, munido de quatro mãos – aludindo às patas dos eqüinos.


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“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...’ E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo (...) Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”.

João Guimarães Rosa, extraído do conto a Terceira Margem

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