A PRESUNÇÃO DA CULTURA - ROY WAGNER

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1 República Federativa do Brasil - Governo Federal- Ministério da Educação Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Direito Bacharelado em Ciências do Estado Cidadania Cultural Prof. José Luiz Borges Horta Prof. João Paulo Medeiros Araújo e Prof. Gabriel Lago

MANUSCRITO DIGITAL- VERSÃO 18

A Presunção da Cultura Segundo Roy Wagner (Diálogo Resenhado Com o Capítulo I de A Invenção da Cultura, Sob a Ótica Ensaiada de uma Possível Ciência do Estado)

João Protásio Farias Domingues de Vargas Acadêmico de Ciências do Estado da UFMG Mat.: 2010-422958

Versões do Rascunho Digital: V1: 05/05/2012; v2 – 06/05/2012; v3 – 07/05/2012; v4 – 08/05/2012; v5 – 12/05/2012; V6- 14/05/2012; V7 – 15/05/2012; V8 – 16/05/2012; V9 – 17/05/2012; V10 – 19/05/2012; V11 – 20/05/2012; V12 – 21/05/2012; V13 – 22/05/2012; V14 – 24/05/2012; v15 – 25/05/2012; V16 – 26/05/2012; V17 – 28/05/2012; V18 – 28/05/2012; Forma de Citação: VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. A Presunção da Cultura Segundo Roy Wagner (Diálogo Resenhado com o Capítulo I de A invenção da Cultura, Sob a Ótica Ensaiada de uma Possível Ciência do Estado). Belo Horizonte/MG: Universidade Federal de Minas Gerais,

Faculdade de Direito, Curso Ciências do Estado, Disciplina: Cidadania Cultural, sob orientação do Prof. José Luiz Borges Horta e dos mestrandos em Direito João Paulo Medeiros Araújo e Gabriel Lago, 05 de maio de 2012. Artigo original digitado. Resumo: O texto é um diálogo resenhado com o Capítulo I, que trata da Presunção da Cultura, da obra A Invenção da Cultura, de Roy Wagner, pela tradução brasileira de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales, publicado pela Cosac Naify em 2010, do original norte-americano intitulado “The Invention of Culture”, publicado pela Editora da Universidade de Chicago em 1975, com edição revista e ampliada de 1981. O texto acompanha, paripassu, as três seções do desenvolvimento: a idéia de cultura, tornando a cultura visível e a invenção da cultura. Cada parágrafo é acompanhado de duas aproximações com a Ciência do Estado: uma pela ótica do estadólogo e, outra, pela do estadista. Palavras-Chave: invenção, cultura, presunção, estadologia, estadística, estadólogo, estadista, ciência do estado, analogia, obviação, consenso, antropologia, metodologia, epistemologia, trabalho de campo, analogia metodológica.


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Sumário

INTRODUÇÃO PARTE 1 – A IDÉIA DE CULTURA (1-11) PARTE 2 – TORNANDO A CULTURA VISÍVEL (12-27) PARTE 3 – A INVENÇÃO DA CULTURA (28-46) CONCLUSÃO (DO MÉTODO ANTROPOLÓGICO MÉTODO ESTADOLÓGICO-ESTADÍSTICO)

AO

FONTES DE PESQUISA ANEXO ÚNICO (PROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA) (1-101) ÍNDICE ANALÍTICO


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Introdução Wagner divide o primeiro capítulo I, intitulado A Presunção da Cultura, em três seções nominadas. A nossa indexação é apresentada da seguinte forma: 1 – A Idéia de Cultura (tens 1 a 11), 2 – Tornando a Cultura Visível (itens 12 a 27) e 3 – A Invenção da Cultura (itens 28 a 46). A resenha dialogada segue estas três divisões, precedida por esta introdução e encerrada com uma conclusão. A listagem de textos consultados para auxiliar no desenvolvimento é apresentada ao final, primando por hipertextos disponíveis na rede mundial de computadores. O uso prioritário do hipertexto se deve ao fato de que o presente texto será disponibilizado na internet e o leitor poderá alcançar cada um deles através do clique no link de cada referência posta. Pensamos que isso representa um “plus” para a pesquisa e socialização imediata das fontes utilizadas. O século XXI nos possibilita esta vantagem em relação aos antigos, limitados ao texto de papel impresso; não que o hipertexto seja mais importante do que o texto impresso; a vantagem é o acesso facilitado para a pesquisa imediata, enquanto a leitura é feita, afastando a demora de deslocamento para acesso aos textos mencionados, quase sempre postergadora da extensão da pesquisa a partir do próprio texto.

O Centro da atenção do Capítulo I é a de que a existência da cultura é uma presunção inarredável do pesquisador. Wagner vai explicar na seção primeira o sentido que dá ao termo “experienciar” (diferente de “experimentar”) na “idéia de cultura”; na segunda seção, vai explicar o sentido da expressão “choque cultural” e sua relação com o que ele denomina “tornar visível a cultura” estudada. Sem o “experienciamento” e sem o “choque” não se pode alcançar a “invenção”, que virá na terceira seção. A ocupação metodológica e técnica é patente no transcorrer do desenvolvimento do que veremos a seguir.

Seção

AS TRÊS SEÇÕES E OS ENFOQUES CENTRAIS Idéia Central Conexão Geral

I

A Idéia de Cultura

Experienciação

II

Tornando Visível a Cultura A Invenção da Cultura

Choque Cultural

III

Invenção

Experienciar é construir a idéia da experiência experimentando por si próprio Choque cultural é o contraste entre cultura observadora e cultura observada Inventar é criar e recriar a teoria que descreve a experiência de campo e o contraste cultural

O que buscamos na resenha deste capítulo é fazer quatro aproximações ou diálogos com a técnica, a metodologia e a teoria propostas por Wagner, segundo um tratamento analógico para o estudo da “cultura estatal”. Visa-se, por hipótese,


4 tratar o Estado como se fosse uma cultura estranha que o cientista do estado, enquanto estadólogo, propõe-se estudar. O Estado é imaginado como uma “tribo” tão estranha ao estadólogo quanto ele o é na experiência de campo, inserido corporal e mentalmente no campo do Estado. Cada uma das quatro aproximações diz respeito à: 1) aproximação com a idéia de cultura, 2) aproximação com a visibilidade da cultura, 3) aproximação com a invenção da cultura e 4) aproximação com a presunção da cultura, como síntese decorrente das análises das três primeiras. Acho que mostrar o plano geral da do livro completo de Roy Wagner, A Invenção da Cultura, de 1973 [1981], pode ajudar o leitora a situa-se melhor no conjunto do desenvolvimento empreendido e que não é objeto do presente estudo. Um quadro poderá dar melhor visibilidade e realce à divisão.

Divisão

DIVISÃO GERAL DO LIVRO “A INVENÇÃO DA CULTURA” – ROY WAGNER Título Idéia Abordagem Central

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Introdução

Avaliação geral

Conexão

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Capítulo I

A Presunção da Cultura

Presunção

3

Capítulo II

Cultura como Criatividade

Criatividade

4

Capítulo III

O Poder Invenção

5

Capítulo IV

A invenção do Eu

Identidade

6

Capítulo V

A Invenção da Sociedade

Sociedade

7

Capítulo VI

A invenção da Antropologia

Antropologia

8

Post Scriptum

O Problema da Indexação

Classificação

da

Invenção

Faz um apanhado geral da obra, liga-a com as suas demais obras, compara-a com a de outros autores e apresenta as conexões gerais que transitam no plano geral de sua concepção antropológica Diz que a cultura se presume e na falta desta presunção o que resta é a submissão de uma cultura sobre outra A cultura é produto da criatividade humana e onde houver humano haverá cultura desenvolvida grupalmente A invenção é produto do poder de inventar, de criar, de dar vida ao que antes não existia O “eu” humano é uma invenção da cultura para a identificação social dos integrantes, das coisas e dos deuses A sociedade é uma invenção da cultura, assim como o “eu” o é, para a identificação de grupos e totalidades distintivas Se a cultura se presume, ela é produto da criatividade que expressa o poder de inventar, inclusive do eu e da sociedade, então, ela também inventa a sua própria antropologia Datado de 2010, enfrenta o problema o problema metodológico da classificação dos objetos na antropologia

Como Wagner trata do “simbólico” na sua antropologia, não posso deixar de referir que o Autor cita Charles Sanders Peirce, o criador da Semiótica norteamericana, de cunho pragmaticista (diferente do “pragmatismo americano), ao tratar do Poder da Invenção, capítulo 4. Transcrevo um trecho da página 84: “As simbolizações convencionais são aquelas que se relacionam entre si no interior de um campo de discurso (linguagem e matemática são os exemplos óbvios) e formam "conjuntos" culturais, como sentenças, equações, kits de ferramentas, trajes


5 completos ou ruas de uma cidade. Elas generalizam ou coletivizam por meio de sua capacidade de conectar signos de uso comum em um padrão único. Mas podem fazê-lo apenas porque rotulam, ou codificam, os detalhes do mundo que ordenam. Todas as simbolizações convencionais, na medida em que são convencionais, têm a propriedade de "representar" ou denotar algo diferente delas mesmas. Essa é a noção tradicional de "símbolo", empregada por Charles Sanders Peirce e outros.” Wagner não cogita de Ciência do Estado, Estadologia ou Estadística e, muito menos, de estadólogo ou de estadista. Como é meu propósito, preciso fazer Wagner dizer algo sobre tais figuras de modo que possamos aproximar o conteúdo teórico da obra com a nossa finalidade prático-teórica, que é a de aprender com a antropologia cultural simbólica do autor para uso na Ciência do Estado. Daí que vamos abordar, em notas de rodapé, em rápida pincelada, duas aproximações por tópico, uma estadológica (estudo do Estado) e outra estadística (direção do Estado), comparando tais figuras como se fossem “Antropólogos do Estado” e “Agentes do Governo”, respectivamente, para usar as expressões de Wagner. Para facilitar a remissão de tais notas, optei pela numeração sequencializada, de 1 a 92, sem dar nenhum título-temático, já que segue o conteúdo do item de origem. O lugar de inserção ficou no final de cada tópico, mediante a sinalização do número da nota dentro de colchetes ( [1] ). A conclusão do texto sintetiza cada um dos tópicos desenvolvidos dentro das três partes do desenvolvimento, com o acréscimo de uma Síntese Paralela com a Ciência do Estado, valendo-se de dois neologismos: estadólogo e estadista como sujeitos próprios e singulares desta nova ciência em gestação. Esta síntese, em quatro parágrafos, não afasta o aprofundamento feito em cada uma das 92 aproximações feitas em rodapé, entretanto, dá uma idéia geral do que foi ali posto. Para distinguir a parte das aproximações e começar por separá-las do texto de Wagner, organizei um ANEXO ÚNICO onde consta cada uma das 92 aproximações, com nova formatação e acrescido do que foi posto como síntese na conclusão, seguindo a numeração sequencializada. Com isso se poderá apreciar este desenvolvimento sem a ligação imediata de sua origem. Penso que tal Anexo poderá, também, permitir a sua reprodução de modo facilitado, sem precisar reproduzir a resenha dialogada produzida. Lembro que alguma modificação redativa e pequenos acréscimos foram introduzidos em alguns itens, para melhor possibilitar o entendimento sem o item do texto de Wagner.

Agradeço a Gabriela Tomaz da Silva que se dispôs a ler os manuscritos com um olhar “estranho” e tecer suas observações a respeito do conteúdo, da forma e da grafia utilizados, inclusive das notas de aproximação com a Ciência do Estado, postas em rodapé. Agradeço, também, a Bruna Soeiro de Lima, que leu os manuscritos e formulou seus pontos de vista sobre a forma do desenvolvimento. Não posso deixar de agradecer, também, a Lucio Domingues de Medeiros, a Túlio 1

Mediante o uso das expressões, onde X e Y representam números cardinais sequenciados: “X APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA” e “Y – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA”. Sobre um uso futuro apenas de tais notas para a construção de um texto à parte, isso está sendo cogitado, porém, aqui, a função das mesmas é meramente “aproximativa”, de diálogo analógico ensaiado sobre o conteúdo posto por Wagner. É preciso dizer que, em inúmeras vezes, substituímos a palavra “antropólogo” por “estadólogo” e “estadista”, no sentido de que estes são, mais ou menos, consoante a analogia estabelecida, “antropólogo no Estado” e “antropólogo do Estado”, respectivamente.


6 Protásio de Lemos Domingues de Vargas, a Maria Alice Ferreira Pereira e a Rafael Arruda Leite que, em diversas circunstâncias, dispuseram-se a trocar idéias sobre alguns pontos desenvolvido aqui, principalmente sobre o “estranhamento” perante a Ciência do Direito em voga na atualidade brasileira. Agradeço a Celso de Magalhães Pinto - estudioso do Estado por dentro da máquina pública (no CCPC/MG, dentre outros órgãos) há quase meio século e por mais de trinta anos observador do Estado pela ótica do magistério jurídico (PUC/MG) e do Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito - com quem debati várias teses do pensamento de Wagner e sua aproximação como método para apreender o Estado concreto por um viés diferente do legado da Ciência do Direito. Entusiasticamente esperou pela conclusão deste texto visando a uma futura publicação em meio impresso. Ele acredita, como todos nós deste novo Curso Superior, que a Ciência do Estado é um complemento potente para auxiliar o Jurista a compreender melhor o Estado por uma ótica distinta e inatingível pela arte jurídica atual. Comungamos do mesmo ponto de vista sobre a intercomplementaridade das duas óticas de Estado. Agradeço a alguns colegas do Bacharelado em Ciências do Estado da UFMG, principalmente na pessoa do aprendiz de estadólogo e de estadista Caio Clímaco, atual Vice-Presidente do CACE – Centro Acadêmico de Ciências do Estado, que teve acesso a parte do rascunho do texto e acompanhou a gênese das idéias aqui postas, em vários debates particulares, e do sonho comum de sua importância para a “invenção” de um método de pesquisa e de estudo do Estado real, próprio para uma Ciência do Estado em formação, segundo o que estamos procurando hoje em dia para afirmar nossa identidade cultural diferenciada. Quem sabe a ANCE- Associação Nacional de Cientistas do Estado, que está em fase de gestação, possa somar na pesquisa através deste ponto de partida que sugerimos através do presente texto. Agradeço, por fim, a José Luiz Borges Horta, por ter incluído o texto de Roy Wagner na disciplina Cidadania Cultura, o que demonstra ampla visão, pois a tradução brasileira é de 2010 e nem há estudos aprofundados no Brasil sobre tal obra. E, também, por terem os monitores-mestrandos João Paulo Medeiros Araújo e Gabriel Lago se empenhado ao máximo para o debate em sala de aula, possibilitando-me fazer uma exposição oral da Introdução e do Primeiro Capítulo da obra, o que me incentivou obsessivamente para a produção de dois textos voluntários, sendo este o mais detalhado e aprofundado que consegui organizar e disponibilizar aos meus colegas e a todos quantos se interessarem pela temática da aproximação da Antropologia Cultural Simbólica com a construção de uma genuína Ciência do Estado, com grafia no singular, neste início de segunda década do século XXI, na UFMG.


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PARTE 1 – A IDÉIA DE CULTURA 1 – A CULTURA COMO OBJETO DA ANTROPOLOGIA: O HOMEM EM PERSPECTIVA CONCEITUAL2. Wagner parte de estipulação do que ele considera o objeto da antropologia Diz ele que a antropologia estuda o fenômeno do homem. O que este objeto contém ele explicita em uma enumeração exemplificativa: 1 – a mente do homem, 2 – seu corpo, 3 – sua evolução, 4 – origens, 5 – instrumentos, 6 – arte, 7 – grupos. Explicita que estes subgrupos contido no objeto não são estudados em si mesmos, mas sim estudados como elementos ou aspectos de um PADRÃO GERAL ou de um todo. O Autor coloca uma definição de antropologia que pode ser sinteticamente posta na seguinte proposição: antropologia estuda o fenômeno do homem como um padrão geral ou um todo. O que Wagner enumera são elementos ou aspectos do homem tido como padronização ou “tipo geral”, uma “medida” de comparação que serve para identificar tudo quanto se assemelha aos caracteres do padrão utilizado. O homem como fenômeno apresenta características gerais cujo conjunto é chamado de cultura. Daí que a cultura se torna o objeto da antropologia. Isso nos leva a uma nova proposição definitória mais precisa: antropologia é o estudo da cultura humana. Há apenas uma única cultura, a cultura humana; porém, os homens se agrupam em formações distintas no espaço geográfico e com história específica, quando, então, fala-se em culturas humanas, no plural, para referir culturas específicas dentro de um cultura geral humana; elas são sempre vistas por uma perspectiva determinada, a determinada pelo antropólogo observador. A palavra cultura é polissêmica, pois apresenta, diz Wagner, outras conotações e importantes ambiguidades, e que vai tradar disso adiante. O que importa reter aqui é que a definição conceitual que ele apresenta, como ele próprio diz, não é a única possível, mas aquela que ele, como antropólogo, através de sua perspectiva de observação, apresenta como sendo a que sua experiência lhe confere. Outro antropólogo definiria de maneira diferente e com outros elementos. Digamos que o conceito que ele apresenta é um conceito mínimo, entendendo que não se possa dizer menos do que isso, sob pena de não se poder singularizar o que seja a antropologia mediante um conceito. [3] 2

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27. 1 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. Para o estadólogo, cientista que estuda o Estado como objeto central de suas pesquisas, Estado é cultura e cultura é, também, Estado. Sempre que o estadólogo fala sobre o “Estado” está falando da “Cultura do Estado”, como estado como uma forma de cultura específica. Como cultura pressupõe o homem, a Estadologia estuda o Estado enquanto formação cultural humana, integrada por homens. Daí que busca um padrão geral de “Estado”, de um “modelo genérico” através do qual possa identificar diversos Estados específicos. Se a antropologia estuda o “fenômeno homem”; o estadólogo estuda o “fenômeno Estado do homem” e, nesta linha, do “homem estatal”. A palavra “Estado” apresenta, como a palavra “cultura”, 3


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2 – CONCEITO DE CULTURA E PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO4. Diz Wagner que o conceito de cultura se tornou tão associado ao pensamento antropológico que já é impossível dissociar este conceito de tal área de estudo. Isso o autoriza a definir o antropólogo de um modo quase jocoso: antropólogo é alguém que usa a palavra “cultura” habitualmente. Daí ele se valer de um argumento que chamo de argumento “quase teológico”. Como a antropologia se vale tanto do uso da palavra cultura, o seu processo de conhecimento se tornou dependente deste uso. O uso reiterado se tornou quase algo que se possa comparar a uma experiência de conversão. Wagner, nesta linha, radicaliza a comparação e redefine o antropólogo como sendo alguém que usa a palavra “cultura” com ESPERANÇA, com FÉ. Em outras palavras, o antropólogo só pode ser antropólogo se for antropólogo da cultura; se tirar a cultura de seu vocabulário, perde-se toda a sua esperança e fé no estudo que faz sobre o homem. Vou radicalizar a metáfora como síntese e dizer que o antropólogo é aquele que tem esperança na cultura, que tem fé na cultura. O pensamento antropológico é por excelência e somente pode haver antropologia da cultura; as demais variações são apenas espécies deste gênero. Mais simplificadamente, falar em antropologia é falar em cultura, mesmo que dentro desta palavra esteja posto o amplo horizonte da totalidade da vida e dos saberes humanos. [5] conotações e ambiguidades que precisam ser esclarecidas. O estadólogo só pode abordar o Estado sob determinadas perspectivas por ele próprio escolhidas, de modo que o que ele descreve como sendo o Estado precisa ser entendida como sendo apenas “uma” visão de Estado, aquela que sua experiência de pesquisa lhe possibilitou alcançar. Podemos dizer que a estadologia, através do estadólogo “de campo”, estuda: 1 – a “mentalidade” do Estado, 2 – o corpo do Estado, 3 – a evolução do Estado, 4 – origens do Estado, 5 – instrumentos do Estado, 6 – arte do Estado, 7 – grupos do Estado, dentre outros. 2 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista é o dirigente do Estado; sua tarefa não é apenas estudar o Estado, mas mudar, transformar o Estado através do exercício do poder de mando, munido de capacidade para modificar a situação atual. O estudo do Estado que o estadista faz tem a finalidade de conhecer o Estado para implementar mudanças; é um conhecimento “pragmático”; daí que o estadista é um estadólogo com poder de mando sobre o Estado, de dentro do Estado, como sendo, ele próprio, Estado. O conhecimento produzido pelo estadólogo é o conhecimento do estadista, porém, para este, isso é insuficiente; ele precisa desenvolver um conhecimento “tecnológico” sobre o Estado, com vista a um “vir-a-ser” do Estado a partir das mudanças que opera. O estadólogo pode estudar qualquer parte do Estado e ter uma visão geral do Estado, porém, o estadista só pode estudar uma parte específica do Estado, aquela que está dentro de sua “jurisdição” ou comando; o universo de ambos tem amplitude diferenciada; daí a sua intrínseca complementaridade. 4 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27-28. 5 3 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo é o estudioso da “cultura estatal” ou do “Estado enquanto forma cultural específica”. Ele usa tanto a palavra “Estado” que o seu uso se aproxima a um “auto” mais do que esperança, quase de “fé”; ele é o cientista que “tem esperança e fé no Estado”; até porque, para ele, não pode ter nada “fora” do Estado dentro do seu horizonte de estudo; e, quando se vê “fora” do Estado, põe-se apenas para poder ver os “contornos” do Estado, em uma perspectiva mais ampla, como quem observa do alto de uma colina o “vale do Estado”. O “pensamento estadológico”, por isso mesmo, é um pensamento que adota a “perspectiva do Estado” para olhar o próprio Estado. O estadólogo desenvolve um “olhar estadológico” para ver não apenas o Estado, mas tudo quanto está relacionado com o Estado. Isso não quer dizer que não haja nada “além” do Estado; dize-se apenas que, enquanto estadólogo, precisa estar centrado no seu objeto e ver os demais objetos pela perspectiva dele. 4 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista tem o olhar estadológico com um “plus”, o olhar de mando, de condução, de poder de transformar o Estado, um “olhar estadístico”, por assim dizer; não é o olhar que meramente contempla; é o olhar de um “artesão” que vê para produzir o próprio Estado. Não quero dizer que o olhar “pragmático” esteja alheio a um olhar “descritivo” ou mesmo “especulativo”, como do filósofo do Estado; quero dizer que no seu olhar predomina o “olhar da mudança” que ele próprio deve operar. Como o Estado não opera com apenas um estadista, mas com dezenas, centenas ou mesmo milhares deles, distribuídos em diversos “espaços” de poder de mando, sincronizados ou não e com variados graus de subordinação e coordenação, o estadista é parte de uma “comunidade de estadistas” que comanda o Estado,


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3 – A PERSPECTIVA LARGA E DE LONGO ALCANCE DO ANTROPOLÓGICO6. Wagner diz que a antropologia tem uma perspectiva que é especialmente grandiosa e de longo alcance. A perspectiva antropológica é larga e longa no sentido de amplitude de seu campo de observação para todos os lados. Está embutida aqui a idéia de um horizonte amplo do olhar multidirecional, que não pode ignorar nada que esteja dentro do campo de seu objeto, a cultura humana. Daí que a totalidade do fenômeno do homem exige comparação com outros fenômenos do universo a ele ligados, a exemplo da sociedades animais, das espécies vivas, uma vez que expressam fatos que dizem respeito à vida, à matéria, ao espaço e a tudo o mais que esteja relacionado com o homem, direta ou indiretamente. Mas, sustenta Wagner, esta amplitude de horizonte do olhar antropológico não pode se perder no todo sem ver o específico no todo; deve reduzir as suas ações e propósitos humanos ao NÍVEL DE SIGNIFICÂNCIA MAIS BÁSICO. A finalidade desta redução é examinar as ações e propósitos em termos universais, de modo a tentar compreendê-los. A redução antropológica de que fala Wagner, referindo-se a um nível básico de significado, implica na criação de modelos explicativos das compreensões atingidas pelo antropólogo. Ele explica que quando se fala que determinadas pessoas pertencem a culturas diferentes, está dizendo que fazem parte de um tipo de diferença muito básico dentro de uma variedade específica do fenômeno; vale dizer, distingue-se culturas dentro de cultura e se compara estas variações com o padrão cultural adotado. Wagner diz que a palavra cultura sofreu uma inflação considerável de significados, mas, é, como acima se apresentou, neste SENTIDO FORTE que ele a utiliza. [7] num determinado tempo e lugar, historicamente posta. Mais que o estadólogo, o estadista é um “reconvertido do Estado” (duplamente convertido – estudioso e operador); ele se torna a encarnação, a materialização do próprio Estado; é mais do que um “sacerdote do Estado”: é o “agente do Estado”, aquele através do qual o Estado “age”concretamente; por isso, não pode “reclamar do Estado”, pois equivaleria a reclamar de si mesmo; só ele tem o poder de fazer o Estado ser o que efetivamente é, e o que virá-a-ser, dentro do seu espaço de poder e mando, dentro de sua transitoriedade. 6 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27-28. 7 5 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. A estadologia tem um campo de observação que é ao mesmo tempo um horizonte longo e largo e isso torna do mesmo modo o olhar do estadólogo. Ele estuda a totalidade do fenômeno do Estado e esta perspectiva implica no estudo da totalidade do fenômeno do homem, pois o Estado é o próprio homem em sua organização diretiva da vida em comum. Nada pode ficar de fora do estudo estadológico, a menos que se perca parte do próprio fenômeno que estuda. Por isso, todos os campos de estudo “tangenciam” o campo do Estado e não podem ser ignorados pelo estadólogo. Como ele não pode estudar a “totalidade do Estado” se não começando pelas suas “partes”, pelas suas manifestações fragmentárias, precisa operar uma “redução estadológica” capaz de dar conta do específico antes de “reconstituir” o todo que seu alcance visual for capaz de atingir. Precisa atingir o “nível de significância mais básico” de compreensão do Estado antes de atingir o “nível de significância mais geral” ou universalizado. A “redução” de que se fala implica na construção de “modelos estadológicos” ou “modelos explicativos” que o estadólogo constrói dentro do quadro de compreensão pela observação, estudo e reflexão. Como não existe apenas “uma” única “cultura estatal” na variedade de Estados existentes, assim como não há “uma” única cultura dentro mesmo de um único Estado, o que o estadólogo constrói é um Padrão Estadológico que lhe serve como instrumento ou guia para novas pesquisas de seu objeto. É com base nesta “padrão” construído que o estadólogo observa e compara as diversas “culturas estatais”, descritas, na sua ciência, como “culturas estadológicas”. 6 – APROXIMAÇÃO


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4 – O ESTUDO AMPLO E BÁSICO DO HOMEM: EPISTEMÓLOGO, PSICÓLOGO E ANTROPÓLOGO8. Wagner coloca que a proposta da antropologia é a de estudar o homem em termos amplos e, ao mesmo tempo, básico (geral e particular). Isso implica em alcançar o homem por meio da noção de cultura tanto em termos de sua SINGULARIDADE quanto de sua DIVERSIDADE. Esta pretensão coloca uma questão peculiar para ESSA CIÊNCIA. Neste ponto, ele tece um comparativo tríplice entre a atividade do epistemólogo, do psicólogo e do antropólogo. Diz que o epistemólogo considera o SIGNIFICADO DO SIGNIFICADO; que o psicólogo PENSA COMO AS PESSOAS PENSAM. Já o antropólogo é obrigado a incluir a si mesmo e o seu próprio modo de ver em seu objeto de estudo; ele INVESTIGA A SI MESMO. Esta é a diferença que Wagner tece entre estas três áreas. Explica mais detidamente esta diferenciação afirmando o total de capacidade de uma pessoa é “cultura”; por isso, o antropólogo usa sua própria cultura para estudar outras culturas e, também, para estudar a cultura em geral. Esta reflexividade ampliativa da atividade antropológica coloca o antropólogo, ao mesmo tempo, como sujeito observador e como sujeito observado. Aparece aí uma cultura que observa outras culturas e, por isso mesmo, a cultura em geral. [9] ESTADÍSTICA. O estadista não é um estadólogo; sua função não é observar e construir “modelos explicativos”; a sua função é criar “modelos operacionais” ou modificativos do Estado; por isso, precisa das descrições emergentes dos “modelos estadológicos” para orientar a criação dos seus próprios modelos de ação. O “modelo estadístico”, por ser também um “padrão” inventado pelo estadista, é uma “redução” capaz de explicitar um “programa de ação” em suas partes mais básicas ou fundamentais. A “redução estadística” é um esquema de um “programa de governo”, tanto em sua fase prévia quanto implementada. Cada “coisa” observada no Estado foi produto de um “modelo estadístico” implementado por um determinado estadista no passado; esta tarefa de “descoberta” incumbe ao estadólogo; ao estadista incumbe inventar o seu próprio “modelo” ou “redução”, cuja base de significado é a transformação do Estado, por menor que ela seja, ainda que se limite à “mera conservação” do que já foi feito antes de sua chegada no comando. Como há uma “variedade” de culturas de Estado dentro do próprio Estado, a “cultura local” é a cultura do estadista que tem competência para o mando sobre aquele setor, parte, território ou circunscrição; ali está posto, sempre, um modelo estadístico que se torna e se apresenta como um “modelo estatal”, i.e., um modelo do próprio Estado, sem que se possa perceber, com o passar do tempo, a “marca pessoal” do estadista que o implementou. Com isso se quer dizer que o Estado é uma “construção coletiva”, de uma “comunidade de estadistas” que se sucedem, cada qual acrescendo a sua contribuição sobre as contribuições anteriores. Daí que, o olhar estadístico, quando “vê” a parte do Estado que comanda, vê apena uma “redução estatal”, a síntese de tudo quanto já foi construído até ali. 8 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28. 9 7 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo estuda o Estado como “cultura” tanto em sua singularidade quanto em sua generalidade; vê o “Estado em sua singularidade” (este Estado, aquela parte do Estado) e o “Estado em sua diversidade” (o Estado como um Estado dentre vários ou uma parte dentre várias do mesmo Estado). Nisso ele se diferencia do epistemólogo do Estado, que vê apenas o significado do significado do Estado, e do psicólogo do Estado, que vê apenas os pensamentos dos estadistas e funcionários do Estado. O estadólogo é obrigado a incluir a si próprio como parte do Estado que observa, uma vez que o Estado também é foi construído, de alguma forma, ainda que indiretamente, por ele, como parte do povo e da sociedade que inventou o seu próprio Estado. Na medida em que o estadólogo investiga o Estado, inevitavelmente, “investiga a si próprio”. Como também é cultura a “totalidade das capacidades de um pessoa”, o estadólogo usa sua própria cultura para investigar outras culturas, como a cultura do Estado, ele se “vê” como parte do Estado que observa; mesmo que estude o Estado de uma outra cultura que não a sua de origem, como um estrangeiro, mesmo assim, como homem, estuda, de certa forma, o seu próprio Estado, posto e integrado por ele próprio. O estadólogo é, sempre, de certa forma, o próprio Estado que observa, como uma cultura que observa outra cultura e que, por mais paradoxal que possa parecer, é, ainda assim, em graus diferenciados, a própria cultura humana observando a si própria. 8 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. Para o estadista a situação é ainda mais grave do que para o estadólogo. O estadista é, efetivamente, o próprio Estado observando a si próprio e modificando a si próprio, pois é ele que age como Estado e transforma-se. Por mais que o estadista possa se ver como sendo uma cultura “à parte”, distinta do Estado, enquanto estadista, é “parte” do Estado e somente pode ser visto como estadista na medida em que opera no, pelo e para o Estado. Ele não pensa o Estado como um epistemólogo ou como um psicólogo, ocupado com o sentido do sentido ou com o pensamento dos outros


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5 – CONSCIÊNCIA DA CULTURA - OBJETIVIDADE ABSOLUTA E OBJETIVIDADE RELATIVA: MÉTODO DE OBJETIVAÇÃO10. Wagner dá importância especial ao que chama de consciência da cultura e afirma que esta gera uma importante QUALIFICAÇÃO dos OBJETIVOS e do PONTO DE VISTA do ANTROPÓLOGO COMO CIENTISTA. Esta qualificação é posta como uma qualificação negativa: o antropólogo precisa RENUNCIAR à clássica pretensão racionalista da OBJETIVIDADE ABSOLUTA em favor de uma OBJETIVIDADE RELATIVA. A objetividade relativa é baseada nas características da própria cultura do antropólogo. Wagner diz que é evidente que o pesquisador deve ser tão IMPARCIAL QUANTO POSSÍVEL e que esta IMPARCIALIDADE é tanto possível quanto esteja CONSCIENTE dos seus pressupostos. Sustenta que há uma espécie de cegueira “natural” decorrente da própria situação do antropólogo como homem de sua própria cultura. Em suas palavras, “frequentemente assumimos os pressupostos básicos de nossa cultura como tão certos que nem nos apercebemos deles”. Este fato cultural é que leva a esta espécie de invisibilidade autocultural. Diante deste fato, para ALCANÇAR A OBJETIVIDADE ALMEJADA, o antropólogo precisa cumprir três tarefas, conforme posto no quadro abaixo. Distinguimos em passos e descrições conferindo um nome a cada um. Wagner não apresenta deste modo; é o modo como estamos observando a colocação do autor. O título do quadro também não está na obra.

Ord

MÉTODO DE OBJETIVAÇÃO RELATIVA DA COMPREENSÃO ANTROPOLÓGICA Passo Descrição

1

Tendências

2

Maneiras

3

Limitações

descobrir quais são as tendências de sua própria cultura; os pressupostos mais básicos da cultura de origem do antropólogo que são assumidos “automaticamente” Descobrir as maneiras pelas quais a sua cultura nos permite compreender uma outra Descobrir as limitações que isso impõe a tal compreensão

Diante desta espécie de método de objetivação consciente, conforme compreendo na fala de Wagner, fica patente a impossibilidade lógica de alcançar uma objetividade absoluta, pois isso implicaria exigir que o antropólogo não tivesse NENHUM VIÉS, o que implicaria em NENHUMA CULTURA. [11] estadistas, mas sim com o próprio “pensamento estadístico”, que tem a missão de operar mudanças consoante o programa (de governo, legislativo ou judiciário) que o conduziu ao papel de mando e condução do Estado, dentro de sua esfera de poder. O estadista, por ser um homem, também porta a sua própria “cultura” pessoal e deve utilizá-la para modificar a “cultura” do Estado que encontra no seu nicho de poder; as modificações que introduz com a sua cultura torna-se, a partir da materialização modificativa, em cultura do próprio Estado. É uma cultura que modifica outra cultura e, no ato de modificar, torna-se a própria outra cultura; a cultura do estadista é a cultura do Estado. 10 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28. 11 9 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo precisa adquirir uma “consciência do Estado” como sendo uma “consciência da cultura do Estado” com o objetivo de “estudar esta cultura” que tem diante de si e


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6 – ISONOMIA DE CULTURAS: FOCO NA RELATIVIDADE CULTURAL 12. A idéia de cultura coloca o PESQUISADOR em pé de igualdade com os seus objetos de estudo. Explica Wagner que tanto o objeto quanto o pesquisador pertencem a uma cultura específica. Isso implica em assumir a PRESUNÇÃO DE EQUIVALÊNCIA CULTURAL. A explicação dele é a seguinte. Chega-se a esta conclusão por dois fatos de ordem metodológica. Dada a importância deste ponto, vou colocá-las em um quadro ideográfico, repetindo que o título, categorias, termos e descrições são meus, a partir do que compreendi da escrita de Wagner.

PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DA EQUIVALÊNCIA CULTURAL Denominação Descrição 1

MANIFESTAÇÃO

toda cultura pode ser entendida como uma

que é distinta da sua “própria” cultura de origem. Temos aqui uma distinção qualificativa importante posta entre “objetivos” e “pontos de vistas” do estadólogo. O seu objetivo é se apropriar, pela observação, da cultura do Estado; os seus pontos de vista não são os do Estado, mas sim os seus sobre o que observa no Estado. Portanto, o que é “objetivo” no Estado é o que ele “vê” no Estado e não o que ele “pensa” sobre o que vê. Como ele somente pode “dizer” o que “vê” através do que “pensa” sobre o que vê, então, não pode tomar o que “pensa” como sendo uma objetividade absoluta do Estado que vê, mas apenas como sendo a “sua visão”, naquele momento de observação, dentro do acúmulo do que já apreendeu no que viu e pensou. A objetividade que o estadólogo pode alcançar é apenas uma objetividade relativa do Estado, sempre propensa a modificações pelo avanço de sua pesquisa e dentro dos limites do que pode alcançar. Como o que o estadólogo pensa é fruto de sua própria cultura, ele tende a não perceber que o que pensa é apenas o que ele pensa e não o que vê; parecelhe “natural” pensar do modo que pensa. Daí que há uma “invisibilidade” da cultura do estadólogo para si próprio; mas, ele precisa “desvendar” a sua cultura no contraste com a cultura que observa, a partir da outra cultura. O estadólogo precisa buscar alcançar o máximo de objetividade e de imparcialidade que conseguir, sempre consciente de que sua observação é a observação de uma cultura que observa uma cultura que lhe é “estranha” e que, justamente por isso, está sendo conhecida por ele. Há três passos para ele conseguir alcançar esta objetividade relativa. Primeiro, o estadólogo deve se dar conta de seus conceitos e de suas tendências para pensar o que vê no Estado; segundo, deve descobrir as tendências pelas quais a sua cultura pessoal tende a explicar a cultura do Estado que observa; terceiro, deve descobrir as limitações que esta sua cultura lhe impõe para compreender a cultura do Estado, de modo a poder rever os seus próprios pré-conceitos e criar conceitos mais congruentes com o que observa. Este “método de objetivação consciente” lhe permite o uso de sua própria cultura, auto-observada criticamente, como instrumento para observar e estudar mais objetivamente a cultura do Estado, a partir do próprio Estado. É impossível observar o Estado sem a cultura prévia do próprio estadólogo; sem esta o próprio Estado seria impensável, vez que implicaria na própria inexistência da cultura – a objetividade absoluta como impossibilidade lógica e existencial humana. 10 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também porta a sua própria cultura pessoal que ele traz para dentro do Estado e empresta a este o que dela usa para transformá-lo, tornando, no ato de transformação, a própria cultura do Estado. A objetividade do estadista é profundamente diferente da do estadólogo; enquanto este precisa fazer um esforço consciente para não misturar a sua cultura com a cultura do Estado, no intuito de melhor aprende com este, o estadista faz exatamente o contrário; ele precisa misturar a sua cultura com a do Estado para fazer emergir uma nova cultura, uma síntese da sua cultura com a síntese de todas as culturas já sintetizadas no Estado. O estadista é obrigatoriamente parcial e não pode nunca deixar de ser objetivo, pois é ele que move o Estado, que muda o Estado a partir de si próprio com os meios já disponíveis; a objetividade do estadólogo é também relativa, pois mudando a pessoa que exerce o papel de estadista, muda a cultura que interage com a cultura do Estado e o resultado, sempre, será uma cultura diferente da que seria com a presença de outro. Podemos dizer que a cultura do Estado é uma síntese da cultura de todos os estadistas que passaram pelo Estado e que cada estadista deixa a sua marca, como que um “tijolo” a mais no “muro” da construção coletiva; a saída do estadista do Estado implica na objetivação de sua cultura como cultura definitiva do Estado; o estadista como que “se aliena” no Estado para construí-lo. No tocante à chamada “cegueira natural” do estadista, é a mesma do estadólogo, mas só enquanto ele não souber distinguir a sua própria cultura das culturas anteriores e posteriores do Estado; do que era do estadista e que o Estado se apropriou como sendo seu e não mais daquele. 12 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28-29.


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ESPECÍFICA (OBJETIVIDADE) CLASSIFICAÇÃO ORDENATÓRIA (RELATIVIDADE)

manifestação específica ou um caso de fenômeno humano jamais se descobriu um método infalível para: a) classificar culturas diferentes e b) ordená-las em seus tipos naturais

Para dizer o óbvio da colocação em outras palavras, se não há um “método infalível”, todos os métodos são “falíveis” ou problemáticos, questionáveis, discutíveis. O que possam ser tipos naturais, postos por Wagner, até este ponto ainda não disse o que ele entende por tais. Por outro lado, penso eu, ainda falta responder ao questionamento do que acontece quando o antropólogo observa a sua própria cultura como se fosse “outra cultura”, se tais pressupostos ainda permanecem. Pode ser que haja o contraponto entre a cultura própria do antropólogo e a cultura própria do objeto observado para além de si. Diante destas observações metodológicas, Wagner aborda esta PRESUNÇÃO pela expressão RELATIVIDADE CULTURAL. Entendo aqui que a presunção de equivalência cultural decorre justamente do fato de que a observação antropológica implica, como se disse acima, em uma cultura observando outra cultura. [13] 7 – A COMBINAÇÃO DAS DUAS IMPLICAÇÕES DA IDÉIA DE CULTURA: RELAÇÃO INTELECTUAL DE COMPREENSÃO14. Wagner coloca que as duas implicações da idéia cultural (manifestação específica e classificação ordenatória), postas no quadro do item anterior, podem ser combinadas. Neste ponto, Wagner formula o que disse antes, conforme posto no quadro abaixo. Deixo claro que as 13

11 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo precisa se colocar diante de seu campo de observação do Estado como sendo um observador que porta uma cultura determinada que é distinta da cultura que observa; mais do que isso; como se tratam de duas culturas distintas, há uma “equivalência cultural” entre o que ele pensa que seja o Estado e o que o Estado concreto lhe mostra como sendo ele mesmo. Por mais que o estadólogo possa pensar que a sua cultura sobre o Estado é “superior” à cultura que observa no seu campo de Estado, fato é que ele precisa “igualar” tais culturas, ainda que de um modo presumido. O estadólogo estabelece a “presunção de isonomia cultural” como modo ou pressuposto para poder apreender e aprender com a nova cultura de Estado que tem diante de si; sem esta presunção da autonomia da cultura do Estado em relação à sua, ele não poderá atuar como estadólogo, ainda que possa estar “se pondo”, indebitamente, como um “estadista” que não é, pelo menos enquanto observador e estudioso do Estado. Temos aqui um método de estabelecer a equivalência cultural. Primeiro, o estadólogo observa o Estado como sendo uma “manifestação específica”, um “caso” do fenômeno Estado. Em segundo lugar, deve ter em mente que não há um “método infalível” para classificar as diferentes culturas estatais e para ordená-las em “tipos naturais” ou absolutos. Tudo quanto o estadista pode fazer é propor o seu método classificatório e ordenar as tipologias que conseguir especificar em seu campo de observação. Ao proceder deste modo, o estadólogo conseguirá alcançar uma “relatividade estatal” a partir da presunção da cultura estatal diferenciada em diversas observações. 12 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista precisa, também, como o estadólogo, presumir a existência cultural do Estado com autonomia em relação à sua própria visão de Estado, que a sua cultura pessoal porta; para isso, precisa observar o Estado como algo dado, posto, próprio, distinto do que ele pensa sobre tal. Isto implica em ver o setor que dirige como sendo uma parte, um caso do fenômeno geral do Estado e que tudo quanto vê, denomina, conceitua, tipifica e classifica, dentro de seus próprios métodos, nada mais é do que a sua própria contribuição para a compreensão do Estado e em função do que implementa as mudanças que entende necessárias dentro do seu “espaço” de mando. O estadista não é “pura ação”, assim como o estadólogo não é “pura cognição”; o que os diferencia é o papel, se é para “modificar” ou para “descrever” o Estado. Ainda que para modificar precise, antes descrever o que vê, descrever o que vai fazer e descrever como é que vai ficar o Estado depois da mudança, ou seja, planejar e acompanhar a execução do projeto de mudança, fato é que ele, também, depois de “feita a obra”, precise observá-la e “re-conhecê-la” como faria um estadólogo que não tivesse feito parte do processo objetivo de mudança do Estado. O estadista é o “homem da mudança”, mas, por isso mesmo, é, o tempo todo, também, o “homem da observação e do controle”. 14 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29.


14 categorias distintivas do quadro e os termos utilizados são meus, interpretando o discurso do autor.

AS DUAS IMPLICAÇÕES DA IDÉIA DE CULTURA Princípio Enunciado 1

2

OBJETIVIDADE CULTURAL (Objeto) RELATIVIDADE CULTURAL (Relação)

O fato de que nós mesmos pertencemos a uma cultura O fato de que devemos pressupor que todas as culturas são equivalentes

Wagner não utiliza a palavra princípio e nem a palavra enunciado, como posto no quadro acima, entretanto, pode-se assim chamá-los, dada a ênfase metodológica que ele utiliza na sua exposição. Por serem variáveis do fenômeno sempre presentes, podem ser tomadas como princípios antropológicos, na mesma linha da visão do autor. Esta constatação antropológica leva, segundo Wagner, a uma PROPOSIÇÃO GERAL concernente ao estudo da cultura: “a compreensão de uma cultura envolve a relação entre estas duas variáveis do fenômeno” (objeto e relação). A repetição ou recorrência do uso do termo “relativo” é sintomática, pois a idéia de relação é apropriada à CONCILIAÇÃO DE DUAS ENTIDADES ou PONTOS DE VISTAS EQUIVALENTES, mais do que o uso de noções como “análise” ou “exame”, uma vez que estas duas palavras apresentam, segundo ele, pretensões de objetividade absoluta. [15]

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13 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo vê o Estado como um “objeto” e se “relaciona” com ele através de seu ato de observação (sujeito-objeto). A “objetividade” emerge do fato de observar o Estado como objeto de estudo. Como o estadólogo está posto como “sujeito” que “olha” e se propõe “ver”, esta proposição indica uma “relação” de observação que vai do observador ao observado com a finalidade de “produzir” uma “descrição” do que é visto e “relatar” esta descrição a um público mediante atos verbais ou de escrita. Portanto, a produção do estadólogo é “relativa” ao que ele descreve como observação e “relativa” ao objeto que serve de base para suas observações. Esta relação (estadólogo-Estado), por ser primeira, conduz ou determina a forma da segunda relação (estadólogo-texto sobre o Estado). Daí que se pode dizer que há dois princípios envolvidos na atividade do estadólogo: o princípio da objetivação, derivada do fato de que ele faz parte de uma cultura que observa outra cultura e presume o que observa como sendo uma cultura “existente” tal como ele a descreve; e o princípio da relatividade, derivada do fato de que a cultura observada no Estado tem uma equivalência relativa com a cultura por ele utilizada para observá-la e sem a qual não teria condições para estabelecer a própria observação que implementa. A síntese destes dois princípios indica a presença, sempre, de uma cultura que observa outra cultura; há uma observação “intercultural” posta neste intercâmbio observativo. 14 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também está imerso nos princípios da objetivação e da relativização, pois ele, como pessoa, porta uma cultura própria que observa o Estado para implementar neste as mudanças que planeja, com vistas, no mínimo, a uma finalidade de “melhoria” ou de “aprimoramento” do próprio Estado. A “observação” estadística é uma “observação interventiva”, que se “mistura” à cultura do Estado; não se trata apenas de “olhar para ver”, mas de “olhar para modificar” o comportamento do Estado. Se o estadólogo apenas “se comunica sem intervir”, para intervir em outra cultura mediante o discurso que vier a produzir como relato do “visto”, o estadista “se comunica intervindo”; a sua intervenção é “no objeto” observado e não em outro objeto que lhe servirá de plateia ou audiência. Mesmo que a intervenção do estadista também possa ser usada depois como “relato” para outros grupos, este relato já será com o olhar do estadólogo e não mais do estadista, uma vez que representa o “estudo” e não o “ato modificativo”. A objetivação do ato interventivo e a relatividade da intervenção indicam culturas que se aproximam e se integram na especificidade do mando executado ou implementado na composição da nova realidade do Estado.


15 8 – O “EXPERENCIAMENTO” ANTROPOLÓGICO – IDEOLOGIA OU CIÊNCIA? DIÁLOGO COM HERÓDOTO16. Wagner diz que o antropólogo “EXPERIENCIA” seu objeto de estudo de algum modo; e este modo de experienciamento ocorre através do universo dos próprios significados do antropólogo. Ele se vale dessa experiência carregada de significados para COMUNICAR UMA COMPREENSÃO aos membros de sua própria cultura. O antropólogo só consegue comunicar essa compreensão se, e somente se, o seu RELATO FIZER SENTIDO nos termos da sua cultura, para quem ele está comunicando. Em outras palavras, o antropólogo observa uma cultura diferente da sua e relata suas observações aos membros da sua cultura, do seu meio de origem. Este comunicado só tem sentido se a comunicação for feita de modo a ser compreendida pelo seu auditório. Daí que há uma tradução da cultura alheia em termos da cultura comum originária do antropólogo. Wagner não usa estes termos, mas é o que ele está querendo dizer, na linguagem do grupo de que faço parte, no Brasil, para me tornar mais inteligível – para me valer da própria concepção colocada no texto pelo autor. Wagner diz que se as teorias e descobertas do antropólogo “representarem” FANTASIAS DESENFREADAS, dificilmente poderíamos falar de um RELACIONAMENTO ADEQUADO ENTRE CULTURAS. É neste ponto que ele coloca os exemplos das ANEDOTAS DE HERÓDOTO e das HISTÓRIAS DE VIAJANTES DA IDADE MÉDIA, tidas, por ele, como fantasiosas. A conclusão de Wagner, neste ponto é a de que se pode produzir mais ideologia do que ciência mediante uma “antropologia” que 1) jamais ultrapasse os limiares de suas próprias convenções e que 2) deseje investir sua imaginação num mundo de experiência. Em outras palavras, a fantasia antropológica é uma ideologia antropológica que contempla os preconceitos convencionais com a imaginação que substitui a efetiva experiência da observação. É como a afirmação antropofágica de que “comunista come criancinha” colocada pelo imaginário estatal norteamericano dos anos 50 em diante, durante a guerra fria, cuja função era criar e alimentar um estigma mediante uma imaginação conduzida como autojustificação cultural de um povo diante da postura de outro ou de grupos contrapostos de cultura diferentes. [17] 16

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29. 15 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo, como o antropólogo, “não faz experimentos”, como um físico em seu laboratório, que reproduz fenômenos da natureza em condições idealizadas. O estadólogo só pode “experienciar” a cultura que observa imerso nela. O conceito “experienciar” indica uma “experiência participante, envolvida, interativa”, sem distanciamentos capazes de ocultar a presença do estadólogo. Os agentes do Estado e estadistas percebem a presença do estadólogo que os observa e atua “como se fosse” um deles, mas a sua função não é a de “produzir o Estado” mediante mudanças por ele implementadas e sim a de “observar o Estado” mediante o olhar descritivo de suas próprias interações. O estadólogo é um “estranho no Estado” que é integrado de modo passageiro e por isso é “aceito” como tal pelos “nativos”, em maior ou menor grau de aceitação. As teorias e descobertas feitas pelo estadólogo visam “descobrir” o Estado tal como ele se apresenta e não produzir “fantasias” sobre o Estado. Na media em que substitui a observação objetiva pela fantasia, produz o que podemos chamar de FANTASIA ESTADOLÓGICA, pois “descaracteriza” a observação mediante “adulteração” da realidade posta. Como o olhar do estadólogo é carregado de uma cultura diferente que está na base ou origem de sua própria formação anterior, este olhar, se não for controlado para que possa ver a nova cultura como uma cultura objetiva e diferenciada da sua, com características próprias e que ensejam explicações novas sobre os fenômenos observados, então, pode o estadólogo não conseguir “descobrir” a nova cultura, mas apenas produzir um “arremedo” de cultura orientada por pré-conceitos que não puderam ser superados pelo “experienciamento” implementado no próprio campo de observação do Estado. Esta fantasia 17


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9 – AS CONDIÇÕES DA EXPERIÊNCIA – QUANTITATIVA E QUALITATIVA: ARQUEÓLOGO, SOCIÓLOGO E ANTROPÓLOGO CULTURAL OU SOCIAL18. Neste ponto do texto, Wagner começa a trazer à cena central do desenvolvimento a questão da experiência de campo do antropólogo. Ele levanta a questão de saber o quanto de experiência é necessário. Ele se pergunta (a enumeração é minha): “É preciso que (1) o antropólogo seja ADOTADO por uma tribo, (2) fique íntimo de chefes e reis ou (3) se case no seio de uma família típica? Ou basta que (4) ele veja slides, (5) estude mapas e (6) entreviste nativos?”

Wagner coloca que o pesquisador sempre pretende saber o máximo possível sobre o seu objeto de estudo, mas que, na prática, a resposta a esta questão depende de muitos fatores, dentre eles; 1) depende do tempo e 2) do dinheiro disponíveis, 3) depende da abrangência e 4) dos propósitos do empreendimento. Portanto, a pesquisa depende de condições prévias que condicionam a própria produção do saber antropológico; isto porque este saber só pode ser produzido sob a condição de disponibilidade de tempo, de financiamento, de extensão do empreendimento e da finalidade buscada pelo antropólogo. Wagner distingue pesquisador quantitativo, como o arqueólogo e o sociólogo, do pesquisador qualitativo, como é o antropólogo, com base na estadológica produz uma espécie de IDEOLOGIA ESTADOLÓGICA, que consiste em uma explicação descontextualizada da cultura do Estado observada, mas que é afirmada como emergente do próprio campo de observação. Tanto a fantasia quanto a ideologia estadológicas podem ser produto da “orientação” ou “finalidade” do estadólogo em campo; se a sua finalidade em campo é “detonar” (para usar um termo de gíria brasileira ainda em voga) o Estado que observa, então, a sua ideologia é consciente e propositada para “convencer” outros “plenários” sobre uma realidade que não existe, mas que é apresentada como existente; mas, pode ser que seja uma atitude “ingênua”, produzida pela “inconsciência” e “despreparo técnico” do estadólogo. Em qualquer dos dois casos, não estamos diante da produção da Ciência do Estado ou Estadologia, mas sim diante de uma posição política determinada de contraposição. 16 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, por ter a finalidade de mudar o estado, ao contrário do estadólogo, que precisa estar afastado da fantasia e da ideologia para produzir ciência, ele próprio age mediante uma concepção ideológica determinada; é a sua “fantasia de Estado” ou “ideologia de Estado” que pretende implementar na mudança do Estado atual. O estadista não tem isenção; ele é obrigado a tomar posição e a sua “utopia”, “sonho” ou “desejo” ou “visão de futuro” do Estado dita o que “deve-vir-a-ser” o Estado. A ideologia estadística é motor de mudança do Estado. É esta ideologia do estadista que pode ser contraposta pela ideologia do estadólogo, no ato de observação, em que abandona a posição de cientista e se torna um “político” de oposição ao que observa no seu campo de Estudo. O olhar contraposto é o olhar típico do estadista “recém chegado no Estado”, munido de poder para operar mudanças; e, se não tiver este olhar contraposto, tudo quanto pode fazer é “dar continuidade” ao que está “posto”; toda a mudança constitui, aqui, na “anti-mudança”, na “conservação”, na “manutenção do status quo ante”. Se é negativa, do ponto de vista da Ciência do Estado, a posição do estadólogo que se posiciona ideologicamente diante do que vê, perdendo a objetividade relativa de sua posição de mero observador científico, a posição do estadista já é positiva do ponto de vista da mesma ciência, uma vez que se trata do próprio Estado agindo por si mesmo através do estadista no comando. O estadista, ao perceber a posição ideológica do estadólogo, tentando intervir modificativamente no campo de observação, tem toda a legitimidade para “excluí-lo” do campo e negá-lo o direito de observar o Estado por ele dirigido, já que é um “estranho” que não tem o direito de “agir no” Estado a partir da posição que lhe permitiu “estar” no Estado; houve uma ruptura do “PACTO OBSERVATIVO” por parte do estadólogo, pois deixou de ser estadólogo e se tornou, naquele campo, um “estadista ilegítimo”. 18 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29-30.


17 distinção entre tipos diferentes de rigor de pesquisa. Amostragem, evidência, estimativa e desvio indicam pesquisa quantitativa; profundidade e abrangência de entendimento indicam pesquisa qualitativa. Dada a importância, organizei um quadro sinótico desta passagem.

TIPOS DIFERENTES DE RIGOR NO COMPROMETIMENTO DO PESQUISADOR PESQUISA QUANTITATIVA E NA PESQUISA QUALITATIVA 1

Tipo de Pesquisa Quantitativa

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Qualitativa

Tipo de Rigor Amostragem, evidência, estimativa e desvio do objeto observado profundidade e abrangência de entendimento da cultura estuda

Ciência Arqueologia e Sociologia Antropologia Cultural ou Social

No primeiro caso, afirma que o arqueólogo lida com “indícios” de uma cultura; que o sociólogo “mede” seus resultados; ambos procuram OBTER UMA AMOSTRA ADEQUADA, encontrar evidências suficientes para que suas estimativas não sejam muito desviadas. Por outro lado, o antropólogo cultural ou social, diz ele, ainda que possa também recorrer a AMOSTRAGENS, está COMPROMETIDO COM UM TIPO DIFERENTE DE RIGOR. Este outro tipo de rigor é baseado na profundidade e abrangência de seu entendimento da cultura estudada. [19] 19

17 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. É legítimo ao estadólogo se perguntar “o quanto de experiência é necessário” para que ele se torne um estadólogo no sentido denotativo e otimizado do termo profissional. Para tanto, é inevitável se comparar com o sociólogo, com o arqueólogo e com o antropólogo. Para atingir um “quantitativo de experiência”, ele se pergunta o que é necessário para atingi-la: 1) ser “adotado” por um setor do Estado; 2) fique “intimo” do estadista; 3) case com uma filha do estadista; ou basta que ele fique distanciado da “tribo do Estado”, do campo efetivo do Estado real, e 4) veja “slides” sobre o Estado, 5) estude “mapas” do Estado e 6) “entreviste” alguns funcionários do Estado? Uma, algumas ou todas estas “estratégias” devem ou podem ser usadas pelo estadólogo? Para o estadólogo “saber o máximo possível sobre o Estado” ele precisa, antes de tudo, ter consciência de suas “dependências pessoais”, que servem de “pressuposto objetivo efetivador” de sua própria atuação no campo de observação, tais como: 1) tempo disponível (duração), 2) dinheiro disponível (financiamento) 3) abrangência pretendida (extensão), 4) propósitos do “empreendimento” de campo (finalidade); 5) equipamentos disponíveis (instrumentos técnicos de observação). A “capacidade de observação” do estadólogo depende destas “questões prévias” e que condicionam a execução de sua pesquisa e, consequentemente, o produto dela emergente (a extensão e a profundidade do relatório de pesquisa – o saber produzido). O estadólogo, ainda que se distinga de outros profissionais, tem atividades em comum com o arqueólogo, na medida em que busca “indícios” do Estado passado; com o sociólogo, na busca de “amostragem” do Estado presente; com o antropólogo, na busca “abrangência”. Mesmo que o estadólogo se utilize de mecanismos como “amostragem”, “evidência”, “indício”, “estimativa” e “desvio”, que caracterizam a “pesquisa objetiva”, o centro de sua atividade tende mais para a “pesquisa qualitativa”, que prima pela “abrangência e profundidade” da “cultura estatal” observada, de modo a “encontrar” o “Estado real, vivo, concreto, “pulsante”, “do momento atual”, que é alcançado mediante uma “imersão” pessoal na própria cultura do Estado, de modo a poder vê-lo “de dentro” e “por dentro”. O rigor científico do estadólogo é um “rigor diferente”, que não fica adstrito, exclusivamente, ao “metro”, mas, mais abrangentemente, à “impressão” que obtém e que é capaz de verter em conhecimento objetivo relativizado à visão que lhe esteve disponível durante o “experienciamento”. Sem integrar a pesquisa “quantitativa” com a “qualitativa” em sua pesquisa, o estadólogo corre o risco de se tornar outro pesquisador, mas menos um estadólogo diante do seu campo de observação. 18 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista se vale do conhecimento do estadólogo para entender e compreender o Estado no setor em que exerce o seu poder de mando; sem tais saberes, que pode ser produzido por ele mesmo, enquanto estadólogo, ou pode pesquisá-lo na produção por este feita; o que não pode é o estadista ficar “cego” para o Estado diante de sua incapacidade científica para enxergá-lo em óticas distintas daquela que ele dispõe com a cultura que aporta. Daí que é aconselhável que o estadista “contrate” estadólogos para aconselhá-lo no conhecimento do Estado e para perspectivar as mudanças que pretende implementar. Entendo que é insuficiente contratar sociólogo, antropólogo, arqueólogo para “desvendar” o Estado que tem diante de sua frente e que “reclama” a sua atuação de estadista; ele precisa contratar especialistas cujo objeto central e único de estudo é o Estado. Mesmo que o estadista seja, também, um cientista do Estado, um estadólogo, as limitações de sua experiência sempre aparecem diante da insubsistência de seus conhecimentos sobre a parte do Estado que lhe foi atribuída para o exercício do poder, pois os estadólogos também se especializam em “setores” do Estado; é


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10 – O TRABALHO DO PESQUISADOR DE CAMPO: SINAL DE “IGUALDADE INVISÍVEL” ENTRE CULTURAS20. Wagner sustenta que o centro nevrálgico da antropologia é a cultura; por isso o termo é tão abrangente e constitui uma verdadeira obsessão para o antropólogo. Isso decorre pelo fato de que a cultura estudada constitui um universo de pensamento e ação tão singular quanto a própria cultura do antropólogo. O antropólogo – diz Wagner - precisa criar uma relação entre tais entidades e, para que alcance isso, é necessário que ele conheça ambas as culturas simultaneamente, a sua e a do outro, para que possa 1) apreender o caráter relativo de sua cultura 2) mediante a formulação concreta da outra. Há um trabalho paulatino na construção da relação antropólogo-cultura específica durante o CURSO DO TRABALHO DE CAMPO. Nisso, o antropólogo se torna o ELO ENTRE CULTURAS, por força da sua VIVÊNCIA EM AMBAS. Esta vivência entre culturas (que podemos chamar bicultural) produz um conhecimento e uma competência que o antropólogo MOBILIZA ao DESCREVER e EXPLICAR a cultura estudada. Daí que, diz Wagner, a cultura, no sentido de vivência e competência mobilizadas, traça ou apresenta um SINAL DE IGUALDADE INVISÍVEL entre o conhecedor e o conhecido, entre o que vem a conhecer a si próprio (a cultura do observador) e o que constitui uma comunidade de conhecedores (a cultura estudada). Ao que parece, há uma inversão na ordem de aparição cultural na mente do observador de campo. Ao observar a cultura observada, dá-se conta de sua própria cultura, resultado no choque cultural. Entendo, ainda que não conste explicitamente, pelo menos nesta parte do texto de Wagner, que a cultura anterior do observador é uma CULTURA OBSERVANTE, que observa a CULTURA OBSERVADA, através do observador. A IGUALDADE CULTURAL (alteridade cultural equivalente – diria eu) resulta justamente do contraste estabelecido entres os diversos “traços culturais” (Wagner não usa este termo aqui) observados e comparados. O “dar-se conta” da própria cultura de origem é o ponto alto nesta primeira seção do capítulo 1 da obra: daí a VISIBILIDADE que é estabelecida e que antes não estava presente para o observador. Seria interessante especular aqui a inserção do sentido do termo “síntese cultural resultante”, mas não sabemos, até aqui, se Wagner trabalha com a categoria preciso estabelecer “escolhas” dos profissionais mais adequados para os fins modificativos que tem em mente; ou, até, para saber, quais são os problemas existentes, quais são as soluções apontadas; quais são as experiências já implementadas, as que deram e as que não deram “certo”. Não pode o estadista ficar adstrito aos “informes” dos funcionários locais do Estado, pois a ótica deles, inobstante serem importantes, não são suficientes para um saber totalizante. Tornar os “funcionários” do quadro permanente, devido à “sua experiência” local, em “conselheiros-mór do estadista” pode tornar o estadista dependente da “cultura local” e impedir que ele veja para além do que está posto no discurso funcional tradicional, o que vai se refletir na formulação de propostas modificativas e seu implemento “funcional”; isto porque o estadista precisa aportar “de fora” o que será “acrescido” ao Estado, como contribuição de sua própria atuação como dirigente temporário. Nada obsta que, também, possa dispor da visão daqueles outros profissionais, formando uma “equipe multidisciplinar de consultores” para um “aconselhamento” mais abalizado; porém, a “responsabilidade” pela decisão será sempre do estadista e ele responde pelas limitações de suas próprias escolhas. 20 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 30.


19 de análises e sínteses. Podemos cogitar de que o resultado teórico do campo, o Relatório do Antropólogo, seja, na verdade, uma síntese de duas culturas (do observador e do campo), e não uma descrição “objetiva” e única do próprio campo. Daí que seria uma “invenção” da cultura do outro a partir da própria, já que não pode se desvencilhar da sua própria para olhar a do outro. As concepções antropológicas de “representação” (Mallinovski) e de “interpretação” (Lévi-Satrauss) não são postas aqui, mas sim a de “simbolização” (Wagner), que, ao que parece, sintetizam de modo diferenciado as duas outras, pois simbolizar é interpretar representando algo. Daí que o texto antropológico é uma invenção que simboliza o observado dentro de dois contextos culturais – pelo menos é como estou compreendendo, até aqui, a concepção de Wagner . O quadro abaixo explicita a idéia de Wagner, sob a ótica que estou usando aqui:

ANTROPÓLOGO COMO ELO ENTRE DUAS CULTURAS Cultura Observada (Ponto Atual)

Observador (Elo Atual)

Cultura Observante (Ponto Posterior)

A CULTURA DA COMUNIDADE DE CONHECEDORES (Cultura Estudada) (objetiva)

ANTROPÓLOGO (Vivencia as duas culturas) (simboliza)

A CULTURA DE ORIGEM DO ANTROPÓLOGO (Cultura do Observador) (Interpreta)

A cultura observada é “objetiva” para o antropólogo a partir da cultura observante ou “interpretadora”; daí que o pesquisador, ao se colocar entre as duas culturas, torna-se um elo “intercultural” capaz de “simbolizar” esta síntese na sua produção intelectual emergente da sua observação. [21] 21

19 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo estuda o Estado como uma “cultura estatal”, que se apresenta como um conjunto de pensamentos e de ações de um grupo homogêneo de pessoas que ele observa. Aqui aparecem duas culturas em cena: a cultura do estadólogo e a cultura do Estado. O estadólogo usa a sua cultura de origem como instrumento de interpretação da cultura do Estado. Como ele precisa “entender” e “compreender” o Estado a partir do próprio Estado, mas não pode se desvencilhar do que já sabe sobre o Estado, então o estadólogo se torna um “elo” entre as duas culturas e vai em busca da construção de uma “síntese intercultural” que expressa tanto o seu aporte anterior quanto o aporte posteriormente incrementado ao anterior. O saber novo que adquire é diferente do que sabia antes, pois tem novas agregações que modificam e dão nova síntese ao que já sabia. O saber produzido pelo estadólogo de campo é um saber que “simboliza” o seu objeto pela ótica da interpretação usada; esta simbolização não indica apenas que a cultura dele interpreta a cultura do Estado, mas sim que ele muda a própria interpretação anterior por uma nova que emerge de seus estudos. Há um sinal de “igualdade invisível” e pressuposta entre as duas culturas postas em “jogo” pelo estadólogo; se esta igualdade não for pressuposta, o estadólogo pode correr o risco de produzir mais ideologia do que ciência. 20 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista é também um elo entre duas culturas. Digamos que a cultura de origem do estadista seja chamada de “cultura da sociedade civil” e que a cultura do Estado seja chamada de “cultura estatal”; quando ele chega no Estado, só dispõe da cultura da sociedade para interpretar o Estado; mas, como ele “entra” para dentro do Estado, tornando-se um seu “integrante”, então, ele mesmo se torna “parte do Estado” e seus atos são observados, pelo estadólogo, como sendo “atos de Estado”. Assim, mesmo sendo o estadista um elo entre a sociedade e o Estado, a cultura da sociedade se torna, através dele, a cultura do próprio Estado; mas, não ocorre uma simples “transposição cultural”, pois o estadista muda os traços culturais que aporta para “adaptá-los” à realidade do Estado, dentro das circunstâncias históricas do próprio Estado. Por mais que o estadista pense que “conhece melhor o Estado” de fora, é de dentro que ele passa efetivamente a conhecê-lo e este novo saber modifica o anterior. Na medida em que o estadista transforma a sua própria concepção de Estado, transforma-se de cultura da sociedade em cultura do Estado. Esta “ambivalência” de ser, ao mesmo tempo, Estado e Sociedade, só pode ser sintetizada de modo simbólico nos próprios atos modificativos ou de mando no Estado como do Estado. Digamos que o estadólogo é o sujeito pesquisador que observa o estadista na construção do Estado; e que o estadista é objeto de observação e de


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11 – A INVENÇÃO DA “CULTURA” PELO ANTROPÓLOGO: VERBOS “EXPERIENCIAR”,“VISIBILIZAR” E “REINVENTAR”22. Wagner, diante de tais observações e conclusões, afirma que de fato, pode-se dizer que o antropólogo “inventa” a cultura que ele acredita estar estudando. Isso decorre do fato de que a “relação” estabelecida, por consistir em seus próprios atos e experiências, parece “mais real” do que as coisas que ela, a experiência, “relaciona”. Há aqui, uma imersão cultural – para usar um termo da moda no Brasil dos tempos atuais que torna ao antropólogo o seu próprio objeto de conhecimento enquanto se relaciona com os sujeitos da cultura estudada: ele se observa se relacionando e produz conhecimento desta auto-observação relacionada. Por isso, parece, para ele, a sua vivência como mais real do que o que é capaz de relacionar a partir de suas vivências, pois ele vive na cultura estudada. Wagner faz uma advertência de grande importância após tais afirmações sobre a experiência do trabalho de campo do antropólogo. Ele diz que esta explicação que ele deu somente se justifica se compreendermos A INVENÇÃO DA CULTURA COMO UM PROCESSO QUE OCORRE DE FORMA OBJETIVA, POR MEIO DUPLO DE OBSERVAÇÃO E APRENDIZADO e não como uma espécie de fantasia. Sustenta que ao experienciar uma nova cultura, o pesquisador 1) identifica novas potencialidades e possibilidades de VIVER A VIDA, e, por isso, 2) pode efetivamente passar ele próprio por uma MUDANÇA DE PERSONALDADE. Com isso, A CULTURA ESTUDADA SE TORNA “VISÍVEL” E, SUBSEQUENTEMENTE, “PLAUSÍVEL”, para ele próprio. Wagner explica melhor a afirmação dizendo que o antropólogo 1) apreende como uma ENTIDADE DISTINTA, 2) uma maneira de fazer as coisas e, depois, como 3) uma maneira segundo a qual ele próprio poderia fazer as coisas. É deste modo que o antropólogo de campo, pela primeira vez, compreende, na intimidade de seus próprios erros e êxitos, o que é “cultura”. Antes disso, diz Wagner, pode-se dizer que ele NÃO TINHA NENHUMA CULTURA, já que cultura em que crescemos nunca é realmente “visível”. A partir de agora, ela, a cultura, é tomada como dada e as suas pressuposições são percebidas como autoevidentes. Wagner, no final da primeira parte deste capítulo I, afirma que é apenas mediante uma INVENÇÃO desta ordem que o SENTIDO ABSTRATO DE CULTURA PODE SER APREENDIDO. E isso serve, também, para muitos outros conceitos. É apenas, por meio do CONTRASTE EXPERIENCIADO que sua cultura se torna “visível” para si próprio. No ATO DE INVENTAR OUTRA CULTURA, o antropólogo 1) INVENTA A SUA PRÓPRIA e acaba por 2) inventar a própria noção de cultura – finaliza o autor.

pesquisa do estadólogo. A diferença é que o estadista só age dentro de sua esfera limitada de poder e de mando, enquanto o estadólogo pode ver todas as esferas de poder e de mando, colocando cada uma em seu devido lugar, dentro de um quadro geral que “retrata” (representa e interpreta) o Estado como um todo dotado de significação; este “retrato total’ representado e interpretado é um “símbolo da cultura do Estado” e sem o qual o estadista fica cego para operar no espaço menor de sua competência efetiva durante o seu mandato. 22 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 30-31.


21 Se atentarmos para esta finalização de Roy Wagner, dizendo que ao se inventar a própria cultura termina-se por inventar a própria noção de cultura, bem como para a denominação temática dos títulos da seção idéia de cultura e do capítulo, a presunção da cultura, veremos que a cultura se presume pelo fato de que ela e a sua idéia são invenções do próprio homem. [23]

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21 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo “INVENTA O ESTADO”, não no sentido de que é ele que “constrói” o Estado real, mas sim que a sua narrativa do Estado é uma invenção, uma criação sua, que emerge de sua pesquisa, segundo seus pontos de vista sobre o que observou. Mas, a sua observação não é como a do sociólogo ou do politólogo, que olha “de fora” o Estado, pois o estadólogo “entra para dentro” do Estado como um observador-participante, que atua “com” o Estado, mas sem ser “parte” do Estado; ele interage com os “nativos” do Estado na atuação destes, mas sua tarefa principal é observar e relatar; quem “faz” o Estado é o nativo, o estadista. À medida em que ele observa a cultura do Estado, o que descobre confronta o que já sabia sobre o Estado e isso gera um CHOQUE CULTURAL, que podemos chamar um choque estadológico, que é o primeiro passo para que o estadólogo “introjetar-se” na nova cultura e mudar a sua própria concepção de Estado. Esta mudança de concepção que o estadólogo sofre se apresenta quase que como uma mudança de personalidade, pois ele se torna “como se fosse” um nativo do Estado, assumindo os traços culturais do Estado. Uma visão mais atrasada, maniqueísta, preconceituosa e antiga poderia qualificar esta transformação da personalidade como uma “lavagem cerebral”, porém, é apenas uma mudança cultura efetiva que a pessoa sofre a partir da uma espécie de “aculturação”. Isto porque a atuação do estadólogo não é apenas de uma observação, mas sim, também, de um aprendizado; o estadólogo aprende “como é ser” um nativo do Estado e, também, como “vir a ser” um estadista. O estadólogo, neste “ritual de passagem” torna visível para si a sua cultura anterior sobre Estado e, ao mesmo tempo, torna visível para si a nova cultura do Estado, que lhe era desconhecida. É como se o estadólogo, antes deste processo de “conversão”, não tivesse nenhuma cultura sobre o Estado e a partir de agora passa a ter uma, que emerge de sua própria experiência no Estado. Com isso, o estadólogo inventa a sua própria cultura anterior (que se torna visível para si) e inventa a nova cultura (que também se torna visível para si. O estadólogo apreende o Estado em processo como: 1) uma entidade distinta, 2) uma maneira de fazer as coisas e, depois, como 3) uma maneira segundo a qual ele próprio poderia fazer as coisas. Em outras palavras, o Estado é visto como “entidade”, “modo de fazer as coisas” e “modo de ele próprio fazer as coisas por si mesmo”. O estadólogo se torna como se fosse nativo do Estado; está preparado para se tornar parte do Estado, um estadista. 22 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista é um “salto” de qualidade do estadólogo no Estado e para o Estado; o estadista é o estadólogo anterior que se transformou em “elemento” do Estado. O estadista, de início, ao estudar o Estado para modificá-lo, sofre o mesmo processo do estadólogo, acima descrito; depois, integrado como parte do Estado, opera a transformação do Estado, eis que dotado de poder para o mando. O futuro do estadólogo é o estadista, porém, enquanto estadólogo, nada pode mudar no Estado; apenas pode apreendê-lo, estudá-lo e produzir conhecimento sobre o Estado. A intervenção transformadora é um “plus”, um “salto” para além da mera “contemplação”, para tornar o Estado atuante por si mesmo, através dos atos modificativos que aplica. Se, para o estadólogo, o Estado é uma “entidade distinta”, para o estadista, o Estado já uma mesma e única entidade que age através dos seus próprios atos; o estadista é o Estado em atuação, pois os seus atos são interpretados como sendo os atos do próprio Estado; o subjetivo da ação pessoal do estadista é objetivado no ação coletiva do Estado; o múltiplo do estadista se torna o uno do Estado. Aqui ele já não tem mais o problema do choque cultural, pois já o superou, integrando-se como Estado, pensando como Estado e agindo com Estado; o estadista e o Estado são uma coisa única, uma só entidade indissociável, enquanto durar o seu mandato.


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PARTE 2 – TORNANDO A CULTURA VISÍVEL Introito. Esta segunda seção trata do “trabalho de campo” do antropólogo inserido, corporalmente, em uma cultura que lhe é estranha e que ele se propõe estudá-la, mergulhando na convivência cotidiana dos seus integrantes. Sustenta que a cultura estudada se torna visível à medida em que se torna visível, para si, a própria cultura do antropólogo acampado. 12 – O “COMEÇAR DO ZERO” NO “TRABALHO DE CAMPO”: UM PARTICIPANTE DE QUE COMEÇA SUA INVENÇÃO DA CULTURA ESTUDADA24. Wagner sustenta que mesmo que o antropólogo tenha précompreensões sobre o trabalho de campo e sobre a cultura a que se propõe estudar (advindas: 1) do que ouviu sobre o trabalho de campo, 2) sobre as descrições de outras cultura, 3) sobre as experiências de outros pesquisadores que ele possa ter lido), fato é que o antropólogo de campo, quando chega no campo pela primeira vez, tende a sentir-se solitário e desamparado. Estes dois tipos de sentimentos, SOLIDÃO e DESAMPARO, são, de certa forma, inafastáveis e imprescindíveis, no início da construção do experienciamento. O antropólogo em campo novo pode até saber algo sobre as pessoas que veio estudar, diz Wagner, e, mais, pode até saber falar a língua delas, mas, mesmo assim, permanece o fato de que, como pessoa, ele tem de COMEÇAR DO ZERO. O antropólogo é pessoa e isso deve sempre ser enfatizado - assim como as pessoas que ele veio estudar. Como pessoa que é, é como que um PARTICIPANTE que COMEÇA SUA INVENÇÃO DA CULTURA ESTUDADA. Na sua Introdução, Wagner explicou o sentido que dá para a palavra “invenção”, que é a dos retóricos antigos, no sentido de “construção do discurso”, e não no sentido de “imaginação da realidade”; o antropólogo trabalha com a realidade posta, pois ele próprio está inserido dentro do seu campo de estudo, como se fosse um nativo diferente no local. A invenção é do discurso sobre a cultura que observa25. 24

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 31. Wagner diz, na p. 19 da Introdução à obra “A Invenção da Cultura”, que usa o termo invenção é bastante tradicional, como no caso de “invenção” da música, referindo-se a um componente positivo e esperado da vida humana. O termo já era usado neste sentido desde o tempo dos retóricos romanos e foi mantido até o início da filosofia moderna. Na INVENÇÃO DIALÉTICA, RODOLPHUS AGRÍCOLA, humanista do século XV, usa o termo invenção como uma parte da dialética. Ele faz uma analogia com um PROPOSITUS que pode ser julgado ao chegar a uma conclusão; era um uso como se fosse uma hipótese científica da atualidade que é submetida a julgamento ao ser testada. Wagner não diz, mas podemos acrescentar que a inventio era o cerne do pensamento dialético medieval e era sempre acompanhada da propositio ou proposição que sustentava um ponto de vista a ser debatido e testado neste debate (disputatio) em que se procurava defendê-la ou refutá-la. O realce aqui – que faço eu, pois Wagner está longe de cogitar diretamente disso - é para a palavra 25


23 Wagner diz que o antropólogo de campo novo dispõe apenas do que ele até então “experimentou” como cultura, que é uma abstração acadêmica, que é uma coisa um tanto paradoxal, pois é, ao mesmo tempo tão DIVERSA e tão MULTIFACETADA quanto MONOLÍTICA. Isso torna difícil o APODERAR-SE dela ou VISUALIZÁ-LA. Diz que enquanto o antropólogo não PUDER “VER” essa cultura EM TORNO DE SI, ela será de pouco conforto ou utilidade. A idéia de uma cultura “diversa multifacetada monolítica” é impenetrável ao olhar inicial; a cegueira que se estabelece só pode ser rompida através da assunção da capacidade de ver a cultura em torno de si, imerso nela. A utilidade da cultura estudada aparece com a visualização que o antropólogo consegue alcançar, imerso na própria cultura. Não é de fora que ele poderá alcançar esta capacidade visual, já que a mera abstração acadêmica não lhe possibilita este resultado, ainda que seja útil como uma pré-compreensão, único conhecimento prévio disponível ao chegar no campo de estudo. [26] 13 – OS PROBLEMAS DO PESQUISADOR INICIANTE DE CAMPO: O PESQUISADOR É TAMBÉM PESQUISADO 27. Por tais razões é que os PROBLEMAS IMEDIATOS que aparecem em campo não são de ordem acadêmica ou intelectual, mas sim problemas práticos e estes possuem causas evidentes. O pesquisador recém chegado, em geral, está desorientado e aturdido e apresenta PARTICIPANTE, o que nos remete, de imediato, ao método qualitativo da PESQUISA PARTICIPANTE, cuja forma mais conhecida, no Brasil, é a PESQUISA-AÇÃO, desenvolvida, principalmente, por Michel Thiollent. Alguns hipertextos foram disponibilizados na lista das fontes dum outro texto, complementar ao atual, que disseca a Introdução, parágrafo por parágrafo. 26 23 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo, mesmo que tenha algum conhecimento prévio sobro o novo campo de Estado que vai estudar, mesmo assim ele, quando chega a campo, pela primeira vez, fica “meio perdido” (para usar uma expressão tipicamente brasileira), tendendo a se sentir meio “solitário” e “desamparado”; estes sentimentos são corriqueiros, inevitáveis e imprescindíveis, para o início da construção do experienciamento, com uma adaptação mínima. Os modos de conhecimento prévio do estadólogo são três: 1 – teve acesso relatos verbais sobre o campo do Estado para onde irá realizar sua pesquisa; 2 – aprendeu alguma coisa sobre outros campos similares do Estado; 3 – leu sobre a experiência de outros estadólogos no mesmo campo ou em campos similares do estado. Tudo isso é apenas conhecimento abstrato, como ocorre com o saber “acadêmico”. É necessário enfatizar que o estadólogo é uma “pessoa”, assim como todos os integrantes do campo, os funcionários “lato sensu”, os “nativos do Estado”. Trata-se de pessoa lidando com pessoas. Mesmo que o estadólogo saiba falar a “linguagem do Estado”, no “dialeto” do setor ou campo, ele, sempre, vai, de alguma forma, “começar do zero”. Ele se torna uma pessoa participante que vai começar a inventar a cultura estudada. Esta invenção é a “invenção de um discurso”, de uma “fala que descreve e discorre sobre o que observa”, em geral materializado em forma de “relatório de pesquisa”. A sua atitude em campo é a de “um nativo diferente”, para quem olha de fora, pois ele está no campo, mas não faz parte orgânica dele; tem função específica e passageira. A experiência de campo do estadólogo é um tanto paradoxal, pois, em sendo “diversificada” e “multifacetada”, ainda assim é vista como “monolítica”, no sentido de que esta diversidade forma uma unidade, um bloco específico daquele campo de estágio. Daí a dificuldade inicial de aproximar-se, visualizar e apoderar-se dos conteúdos disponíveis. 24 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista chega no seu campo de Estado como “chefe”, como alguém munido de poder para mandar e reclamar obediência aos seus comandos. Entretanto, mesmo empoderado, ele chega, pela primeira vez, como chega o estadólogo; tem que começar do “zero”, mas do “seu zero” ou marco inicial. Precisa construir uma série de saberes a partir da observação atenta e do registro da memória do que vê, de modo a poder estudar, minuciosamente, tudo quanto há ali. O campo do estadista é, de início, monolítico, aparentemente impenetrável, mas, aos poucos, vai percebendo as diferenças e as facetas disponíveis ao seu acesso; com isso, o que era monolítico, torna-se múltiplo, visto por uma miríade de detalhes com sentido próprio. Mesmo assim, esta análise não desfaz o campo como monolítico para os de fora, que precisariam fazer esta “travessia” para se apropriar e conhecer, por dentro, o Estado. A vantagem do estadista é que ele se impõe no campo; o estadólogo precisa de “favores” para permanecer ali, em geral, do próprio “estadista local” (o “chefe” da “tribo” do Estado). A interação participativa é necessária tanto para o estadólogo quanto para o estadista; para este é “imperativa”, uma vez que não há como “mandar” sem interagir com quem tem o dever de executar ordens. O estadólogo observa, de perto, de dentro, todo este processo de mando e obediência, de formulação, de execução e de avaliação das ordens dadas. 27 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 31-32.


24 dificuldades para se instalar e fazer contatos. Wagner exemplifica isso da seguinte forma. Diz que, 1) se está sendo construída uma casa para ele, o trabalho sofre todo tipo de atraso; 2) se contrata assistentes e intérpretes, eles não aparecem; 3) quando reclama dos atrasos e deserções, ouve as habituais desculpas esfarrapadas; 4) as respostas para suas perguntas são dadas com mentiras óbvias e deliberadas; 5) cães latem para ele e 6) crianças perseguemno pelas ruas. Wagner diz que todas estas circunstâncias desagradáveis ocorrem e podem ser facilmente explicadas com base no próprio campo. As pessoas, geralmente, se sentem desconfortáveis com um estranho em seu meio; pior ainda por ser um forasteiro que pode muito bem ser um louco ou perigoso, ou, diz ele, as duas coisas juntas. Por isso, frequentemente, criam dificuldades como uma forma de “defesa”, cuja finalidade é mantê-lo a uma certa distância; ou, pelo menos, retardá-lo, “enquanto ele é contemplado e examinado mais detidamente”. Isso mostra que o pesquisador também é pesquisado pelos pesquisados; há, aqui, uma dupla observação de duas vias; o observador é observado enquanto observa. O campo é vivo e atuante; o pesquisador é tão estranho para o campo quanto o campo o vê como tal. [28] 14 – COMO LIDAR COM OS PROBLEMAS: A CORTESIA COMO BASE DE UMA ARTE ELABORADA29. Wagner diz que estes “atrasos”, “defesa” e “esquivos” que o pesquisador sofre não são necessariamente hostis, ainda que possam sêlo. Tais distanciamentos são ocorrências comuns nos estágios iniciais da pesquisa de campo e representam um prenúncio daquilo que pode vier a ser um envolvimento pessoal mais íntimo como 1) uma amizade ou 2) um caso amoroso. Wagner apresenta aqui uma advertência ao pesquisador neófito. Diz que a familiaridade excessiva, nesta fase inicial de relacionamento, pode minar o

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25 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. Os problemas iniciais que o estadólogo sofre no campo são, em geral, para se instalar e para fazer contatos. Ele tem autorização do estadista local para estar no campo e realizar sua pesquisa, entretanto, não recebe adesão imediata dos funcionários e nem sabe onde as coisas de que precisa estão; pode ser que os funcionários nem tenham sido treinados para recepcionar e aproximar o estadólogo. Nem sempre há um estadista disponível para “fazer um tour” com ele pelos setores, apresentá-lo, pessoalmente, às chefias imediatas e mais distanciadas, explicando o que ele vai fazer nos lugares que visitar. As resistências funcionais que encontra se devem ao fato de que ele é um estranho no ninho e pode ser visto, inicialmente, como alguém que esteja, até, “espionando” os setores, ou “avaliando” o trabalho dos “nativos” locais, para “dedurá-los” aos chefes superiores. Daí, muitas vezes, retardarem a sua tarefa, mas nem sempre é de “má-fé”; ocorre durante o tempo de “adaptação” tanto do estadólogo quanto dos “nativos do Estado”. Ele precisa “cavar o seu espaço”, como se diz na gíria brasileira, de modo a se fazer aceito e a integrar os grupos, mediante interações amistosas, de modo a angariar não só a “confiança”, como também a “ajuda” dos demais para poder realizar a sua pesquisa. Some-se a isso o fato de que há uma incerteza sobre o que o estadólogo vai escrever sobre o que observa, que pode, no imaginário local, ser prejudicial aos interesses dos mesmos. 26 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista já não tem os mesmos problemas do estadólogo; ele chega já com credenciais de mando, legalizado e legitimado para comandar o setor do Estado, o seu campo de atuação diretiva. Mas, tanto o estadista quanto os “nativos” remanescentes do campo, na troca de chefias, precisam se adaptar uns com os outros, de modo a que se possa “tocar” o trabalho dentro do planejamento e cronograma estipulados pelo novo comando. Ainda que os subordinados tenham de obedecer às ordens do chefe, o exercício do mando deve ser amistoso, pois pode gerar “assédio moral” e dificultar até mesmo a sua permanência no setor do Estado, mediante “reclamações” feitas pelos locais contra os métodos que estão sendo implementados. O estadista precisa ter um certo “jogo de cintura” (outra gíria brasileira), uma certa “capacidade de manejo” para poder exercitar-se e permanecer no cargo; isto porque, mesmo que o estadista tenha poder de mando, sempre existe um outro estadista com hierarquia superior à dele, exceto, é claro, no “topo” hierárquico, onde os “coletivos” poderosos podem determinar a sua permanência ou exclusão. 29 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 32.


25 RESPEITO MÚTUO das partes envolvidas. A preocupação é a de manter a viabilidade do campo de pesquisa. Porém, diz ele, os seres humanos, em todas as sociedades, são mais PERCEPTIVOS do que podemos supor. A vida em uma pequena comunidade tende a ser muito mais íntima do que pode imaginar o recém-chegado. Daí que o uso da antiga “solução” para os problemas de contatos humanos chamada CORTESIA, em situações deste tipo, torna-se a base de uma ARTE ELABORADA. Wagner dá um conselho prático. Diz que a coisa mais gentil que o PESQUISADOR AFLITO pode fazer, nesta fase inicial, é, pelo menos, IMAGINAR QUE SEUS ANFITRIÕES ESTÃO SENDO CORTESES30. Este fazer de conta proposto indica um modo psicológico receptivo que evita uma atitude hostil, por parte do pesquisador “acuado”, ao interpretar, para si, as atitudes do campo como sendo de hostilidade à sua pessoa. É um modo que tem efeitos precisos no comportamento reflexivo e que vai influir na facilidade ou dificuldade iniciais e, até mesmo, na própria permanência ou não do antropólogo no campo que escolheu. Sem superar esta fase inicial, o experienciamento fica dificultado ou mesmo, por fim, inviabilizado. [31]

30

A idéia de cortesia aqui pode muito bem ser ligada com os resultados de pesquisa feitos por NORBERT ELIAS, no livro O Processo Civilizador – Uma História dos Costumes, que tem tradução brasileira pela Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1990, do original alemão Über den Prozzess der Zivilisation, de 1939, pubicado pela Haus zun Falken, em Basel, na antiga Alemanha Oriental. O enfoque pode ser buscado principalmente no capítulo I, que trata da Sociogênese dos Conceitos de “Civilização” e “Cultura”, em que enfoca o uso destes dois termos pelos franceses e ingleses, por um lado, e pelos alemães, por outro. A palavra “cortesia”, na pesquisa de Elias, diz respeito aos costumes da corte imperial, da elite detentora do poder político de mando no Estado. O sentido dado ao termo, no texto de Wagner, pelo menos na tradução, é a de maneiras educadas. 31 27 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo aflito nos primeiros dias de campo tende a ver certa hostilidade em sua recepção pelos “nativos” do Estado, entretanto, isso pode ser visto por outra ótica, como sendo resultado apenas da “surpresa” e do “desconhecimento” por parte deles. É preciso que ele se entrose no campo, gerando relações mais profundas, que pode gerar tanto amizades quanto, por vezes, casos amorosos. É preciso que o estadista fique atento para evitar o excesso de intimidade, de modo a não perder o seu foco na pesquisa e evitar a perda do respeito, que seria deletéria para a sua permanência no campo. O estadólogo neófito tem que cultivar o respeito mútuo e o primeiro e mais importante caminho é o do comportamento cortes, de modo que possa obter a simpatia dos “nativos” do Estado. A cortesia se torna mais do que um método necessário; torna-se uma necessidade comunicativa para poder realizar o seu intento. Daí que ele precisa refletir sobre as suas atitudes e sobre o resultado delas nas interações cotidiana, de modo a não ferir suscetibilidades que podem se tornar impeditivas ou bloqueadoras para o acesso a informações mais substanciais. Os funcionários podem dificultar de modo eficaz a pesquisa e o resultado pode até ser desastroso para o estadólogo, dependendo do grau de desagregação que ele possa gerar no seu campo de pesquisa. Ele nunca pode esquecer de que é um “transeunte curioso” para os locais e que precisa romper com as barreiras, com o “gelo” local, como se diz noutra gíria brasileira. 28 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, só porque dispõe de poder de mando, não quer dizer que, no início de suas atividades no campo do Estado sob sua direção não possa se tornar um estadista aflito, eis que neófito naquele lugar. Por isso, o método da cortesia no tratamento com os funcionários é fundamental, de modo que possa conseguir uma cumplicidade de adesão ao seu projeto de direção. Sem a cortesia, a sua vida no local pode ser muito difícil e, dependendo do grau de desagregação que introduzir no campo, pode até por em risco a sua permanência no comando. Afinal de contas, o estadista também tem que prestar contas a algum superior, seja ele quem for na cadeia hierárquica ascendente; sem falar nos mecanismos de controle externo e interno, ainda há o controle social feito por parte da mídia, que condiciona, sempre, a opinião pública. O estadista nunca exerce um poder absoluto e a relatividade de seu poder implica muito na avaliação de inúmeros setores e pessoas fazem de sua atuação e dos resultados que apresenta com o seu trabalho. Podemos dizer que a coisa mais gentil que o estadista pode fazer, logo de início, no novo campo de mando, é imaginar que os funcionários estão sendo corteses e que a gentileza impera em todos os contatos ocorridos; este tipo de pensamento pode aliviar o estadista aflito, mesmo que seja insuficiente, mais adiante, para resolver os problemas que enfrentará pela frente.


26 15 – OS PRIMEIROS CONTATOS “FORASTEIRO-NATIVO”: HOSTILIDADE, RISO E AMIZADE32. Wagner diz que esses primeiros contados são marcados três fatos: 1) estremecimentos por mal entendidos e 2) mascaramentos por formalidades e 3) abrandamentos por cortesias. O estremecimento, mascaramento e abrandamento são, segundo Wagner, necessários que ocorram. Isso se deve a que o mero fato de ser humano e de estar num lugar, por si só, gera DEPENDÊNCIAS. Ele exemplifica as dependências mais triviais e até ridículas como 1) realizar as necessidades biológicas de evacuação, 2) fazer um fogão funcionar e 3) lidar com um “senhorio” ou “anfitrião”. Estas dependências são o grosso das relações sociais do principiante. Wagner diz que as dependências propiciam A ÚNICA “PONTE” DISPONÍVEL para que haja EMPATIA entre o forasteiro e o nativo. São elas que humanizam o forasteiro ao tornar seus problemas tão imediatamente compreensíveis que qualquer um poderia se identificar com ele. Por este modo empático, o riso e a ternura surgem facilmente nessas ocasiões; porém, diz ele, não substituirão o companheirismo e a compreensão mais íntimos e profundos, elementos importantes e necessários da vida em qualquer cultura. Adverte que um relacionamento que se baseie na simplificação de si mesmo ao mínimo essencial não leva a lugar algum, exceto se o antropólogo esteja disposto a assumir, permanentemente, o PAPEL DE IDIOTA DA ALDEIA. Em outras palavras, o antropólogo deve transformar o riso e a ternura iniciais de identificação empática em formas de companheirismo e compreensão para que possa sobreviver com dignidade no seu trabalho de campo; ele deve evitar se tornar o BOBO DA ALDEIA, pois, sem o respeito do local, não conseguirá ir em frente na sua pesquisa. Deve superar a fase hostil pela fase empática e, desta, passar para a fase integrativa, de maior aprofundamento nas relações sociais de campo. Dada a importância, organizei um quadro sinóptico que reorganiza em fases o que Wagner está nos sugerindo como método inicial de campo.

AS TRÊS FASES INICIAIS DO CONTATO DE CAMPO

32

Fase

Descrição

Sentido

1

Fase de hostilidade

O pesquisador é hostilizado pelos nativos, como um forasteiro temeroso.

2

Fase de empatia

O pesquisador é objeto de riso e ternura por parte dos nativos, por suas dependências triviais.

3

Fase de integração

O pesquisador se torna amigo e companheiro dos

Os nativos percebem o antropólogo como um estranho na tribo e tendem a dificultar a sua permanência no local, como forma de defesa. Os nativos, conhecendo um pouco melhor o antropólogo, passam a percebê-lo como parecido, com necessidades ou dependências comuns a eles, tais como comer, evacuar, ser guiado; parece-se com um bobo da tribo. Os nativos passam a recepcionar o antropólogo em seu meio social,

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 32-33.


27 nativos, conquistando o respeito inicial deles mediante relações ocasionais

estabelecendo relações mais íntimas de amizade e de companheirismo, ainda superficiais.

Devo advertir, novamente, que o quadro acima tem divisão em fases, descrição e sentido, além do título, que eu próprio “inventei” a partir da fala do autor, segundo a minha leitura. [33]

16 – APRENDER COM OS NATIVOS: EXPECTATIVAS DE RECIPROCIDADE34. Wagner entende que os contatos iniciais não são satisfatórios e que é necessário desenvolvê-los e transformá-los em amizades mais substanciais. Mas, isso não é fácil de se alcançar nas fases iniciais de campo. O fato de o antropólogo estar só e por saber que, se quiser aprender algo sobre as pessoas e seu modo de vida, terá de APRENDER COM ELAS. Sustenta que em todas as sociedades humanas, relações casuais são apenas um prelúdio aceitável, mas insuficientes; mesmo assim, constituem a base para relacionamentos mais íntimos. Por esta razão, diz Wagner, assim que esteja na fase dos simples gracejos, o antropólogo empreende algo mais ambicioso como a conquista da amizade nativa. Porém, de pronto, começa a experimentar CONTRADIÇÕES EM SUAS EXPECTATIVAS MAIS BÁSICAS sobre como as pessoas deveriam conduzir os seus assuntos. Estas contradições experimentadas de conduta humana observada na relação antropólogo-nativo, diz Wagner, não resolve problemas, nesta fase inicial, e que geram desconforto como, por exemplo: 1) coisas abstratas como ideias e pontos de vista, 2) proximidade física, 3) rapidez dos movimentos, 4) gestos. Wagner, neste ponto, é um tanto pessimista. Ele diz que mesmo que o antropólogo esteja bem-intencionado e que, sentindo-se culpado pelos “erros” 33

29 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo em campo se torna dependente em quase tudo dos funcionários locais e tende a “reclamar” por auxílio o tempo todo, pelo menos de início, gerando certos “atritos”, “discrepâncias” ou inconvenientes, inclusive para o próprio serviço que está sendo executado, pois precisam parar e dar atenção para o estranho. Como esta dependência é inevitável, ela deve ser instrumentalizada pelo estadólogo de modo a transformá-la em uma “ponte de contato” com cada um com que interage, gerando, com isso, empatia local. Este é o primeiro passo para o campo “dar certo”. É preciso que a dependência gere uma certa identificação com ele, pois todos passam por dificuldades no início em lugares estranhos. Esta identificação empática deve ser transformada em compreensão e em companheirismo depois, com em geral acontece. O estadólogo precisa ser uma “boa pessoa” para ser aceito e ajudado em sua pesquisa. Daí que se pode ver a existência de três fases iniciais: fase hostil, fase empática e fase integrativa; é a partir desta última, praticamente, que começa, efetivamente, a pesquisa do estadólogo, com a tranquilidade necessária para aprofundar as suas observações e estudos. 30 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, mesmo com poder de mando, também passa pelas fases hostil, empática e integrativa, pois ele é visto, de início, com apreensão e afastamento, passando para uma identificação e compreensão até chegar na fase de companheirismo integrativo, formando uma equipe unida em torno dos projetos do novo chefe. O estadista nunca pode perder o respeito do grupo que comanda; se isso acontece, para manter o “pulso firme” (como diz a gíria brasileira), ele tende a se tornar rude e perder toda a confiança, levando a solapar a execução dos seus planos. Um estadista nunca governa sozinho e precisa descentralizar as tarefas mais complexas, atribuindo competências específicas a diversos subordinados, tornando-se dependente da confiança e dos resultados que estes conseguem implementar. A cortesia é a “arma” estadística mais eficiente de que pode dispor para conseguir adesão ao seu comando no campo do Estado; e ela deve ser usada o tempo todo, para gerar e manter adesões, de gente que “vista a camiseta” (outra gíria brasileira) do chefe. Isto é importante, pois sem a gentileza fica difícil de distinguir um chefe autoritário de um chefe democrático ou, em outra faceta, do desleixado (“laissez-feare”). 34 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 33.


28 que já cometeu, redobre os seus esforços para estabelecer amizades, tudo o que conseguirá é apenas AUMENTAR MAIS AS SUAS DIFICULDADES. Sustenta que as expectativas do antropólogo no início de campo podem ser: 1) que os laços de amizade sejam envolventes, como ocorre em pequenas comunidades; 2) que se espere que um amigo desempenhe, ao mesmo tempo, papéis de confidente, parente, credor e sócio; 3) que haja excessiva expectativa de reciprocidade, como uma espécie de hospitalidade “competitiva”; ou mesmo 4) que se espere fortemente que os amigos sejam solidários em disputas funcionais. Tudo isso pode se acabar em frustrações iniciais que se acumulam na experiência de campo. [35]

17 – AS CONTRADIÇÕES NOS SENTIMENTOS DO PESQUISADOR: A CONDIÇÃO SOCIAL DE PESSOA DIMINUÍDA36. Wagner diz que estas frustrações iniciais se acumulam e que isso é comum acontecer, pois os padrões de amizades são variados em muitos aspectos da vida social. Isso leva o pesquisador a SENTIR A EFETIVIDADE DE SUA CONDIÇÃO DE PESSOA DIMINUÍDA no meio social em que se encontra. Diz, ainda, que é de pouco consolo imaginar, com base no adágio “mais vale uma incompreensão honesta do que uma amizade falsa”, que as pessoas possam estar tentando “agradar” o estranho ou tornar a sua vida mais fácil.

35

31 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo de campo iniciante está na situação, como diz a gíria brasileira, de quem “está no mato sem cachorro”, desnorteado. Se ele quiser aprender alguma coisa, terá que aprender alguma coisa sobre as pessoas que fazem o Estado, terá de aprender com elas; para tanto, precisa se aproximar e fazer amizades. Nestas tentativas, o estadólogo desajeitado comete muitos erros que precisa concertar e rápido. Muitas vezes, ao tentar acertar, amplia o seu acervo negativo e suas dificuldades em fazer amizades. As razões iniciais dos desacertos são até pueris e dizem respeito aos preconceitos do próprio estadólogos, como contraste de idéias abstratas (crença em outros deuses), pontos de vista descabidos (afirmações contraditórias), falta de costume com a proximidade física (chegam perto de mais do corpo), movimentos rápidos (parecem traiçoeiros), gestos inusitados (simbologias estranhas), dentre outras coisas; mas é o estadólogo que não aceita a diferença e tende a defender o seu modo de ver e de agir contra os costumes locais. As expectativas mais otimistas do estadólogo, para angariar cooperação nativa do Estado, é estabelecer laços mais consistentes de amizade de modo que possa ser aceito e incorporado como se fosse um “igual”, podendo dispor da proteção e da satisfação de seus interesses e necessidades dentro e através do próprio grupo em que está inserido. Entretanto, estas expectativas nem sempre se realizam e, muitas vezes, o fracasso vem de modo irremediável e o próprio estadólogo sente necessidade vital de abandonar o campo de pesquisa e desistir de sua condição de “aprendiz de feiticeiro”. 32 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, mesmo que se perceba em condição semelhante à do estadólogo, está em melhor posição, pois, ao dispor de poder de mando, este fato restringe a manifestação livre dos integrantes do novo grupo do Estado em que ele passa a se inserir para comandar. Como pode impor os seus pontos de vista e crenças, calando os subordinados, o estadista não tem acesso o real pensamento de seus interlocutores, mas, nem por isso deixa de perceber as resistências veladas e os contrastes de orientações e visões de Estado existente no local, de modo a “medir” o grau de dificuldade que terá para conseguir cooperação para implementar os seus projetos de modificação do Estado no local. Se o estadista tentar “dar uma de bonzinho”, como diz a expressão brasileira, nem por isso deixará de cometer erros no início, mas tem que aprender cedo com seus erros de modo a evitá-los com o menor custo social local. Com isso se quer dizer que o estadista, mesmo que prefira “ser temido a ser amado”, como colocava Machiavel no renascentismo político italiano, precisará de uma boa parcela dos que expressam amor para que possa controlar todos os que optaram pelo temor, pois as resistências vêm, quase sempre, destes, ainda que as traições só venham daqueles. O que importa é que o estadista não amplie as dificuldades mais do que já tem; ele tem pouco tempo para implementar seus projetos e “fazer a diferença” no local; se ficar detido nas “picuinhas” de relacionamentos tangenciais às metas, poderá fazer de tudo, menos se tornar um “bom estadista” no seu campo de poder. Se tiver funcionário subalterno competindo com ele, deve aprender a lidar com este “atleta” desde logo e o principal meio é o de ampliar o seu espaço, aproximando-o de si, dando-lhe funções especiais e controlando os seus passos diante dos olhos de todos. Isto também constitui um modo de se relacionar com amizade centrada nos planos de Estado eleitos para o local. 36 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 33-34.


29 Wagner é sórdido nesta passagem de pessimismo. Ele diz que mesmo que o forasteiro seja 1) bem intencionado, que 2) mantenha reserva e que 3) faça de tudo para não demonstrar sua frustração, vai acabar achando extremamente desgastante a tensão de tentar, como saída 1) preservar seus pensamentos e expectativas e, ao mesmo tempo, 2) respeitar os pensamentos e expectativas da população local. O pesquisador pode SE SENTIR INADEQUADO ou mesmo achar que seus ideais de tolerância e de relatividade acabaram por enredá-lo numa situação além do seu controle. Estas contradições verificadas nos sentimentos do pesquisador são comuns nesta fase inicial e a sensação de perda do controle do campo ocorre inevitavelmente, pois ele procura explicações tanto na sua conduta quanto na dos nativos, sem conhecer profundamente nem a sua e nem a dos observados. Este sentimento tem nome próprio na concepção de Wagner, como veremos no próximo item. [37] 18 – O PRIMEIRO CHOQUE CULTURAL: A PERDA E O RESGATE DO EU DO ANTROPÓLOGO38. Wagner trata o choque cultural como sendo um SENTIMENTO que é conhecido pelos antropólogos. Trata-se de uma SITUAÇÃO

37

33 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo é um ser humano, do mesmo modo que os “nativos do Estado” são seres humanos; a diferença é que estes estão no seu habitat e aquele está deslocado do seu. Por isso, por ser “o diferente” no campo de Estado em que se encontra em uma “situação diminuída” de início, mas só de início, naquele meio social. E isso se agrava um pouco mais à medida em que o estadólogo se dá conta de sua condição humana menor do que a imagem que ele tinha de si mesmo no seu habitat de origem. Como tudo lhe é diferente, viver naquele local pode se tornar insuportável muitas vezes; e não adianta tentar preservar suas crenças anteriores, pensamentos e expectativas contrapostas a tudo que encontra no local; ele não vai - e nem pode - tentar “mudar” o pensamento e comportamento dos nativos; por mais difícil que seja, terá de respeitar o modo de vida que encontra ali, diante dos olhos e terá de viver nela. O estadólogo terá de “dançar conforme a música”, como diz uma gíria brasileira. Esta situação de “esquizofrenia social” tem a sua duração, psicologicamente longa, no início, ainda que não no tempo do relógio. Diante deste quadro “negativo”, o estadólogo sente-se inadequado para a sua tarefa e a sensação de que não vai conseguir se torna cada dia mais evidente em suas reflexões; parece que todas as suas tentativas “dão em nada”; sente-se incapacitado e impotente para penetrar na cultura monolítica do Estado no campo que escolheu para pesquisar. Ele está a um passo da desistência. E é aqui que se encontra o ponto mais crítico e definitório do futuro de sua permanência na “comunidade estatal” que escolheu para pesquisar. A “crise estadológica” começou a se instalar na vida do estadólogo. 34 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também tem crises e passa pelos mesmos sentimentos de contradição, incompreensão, inadequação, incapacidade e impotência para mudar o Estado no seu campo de mando, na fase inicial de assunção do cargo ou função de Estado. A crise desta figura estatal eu chamo de “crise estadística”, que é parecida, mas com características distintas da “crise estadológica”. Enquanto esta é uma crise de acesso ao saber, aquela é uma crise de acesso à mudança. Um quer conhecer o Estado; apenas isso. O outro quer mudar o Estado, pois pressupõe que já conheça o Estado o suficiente para estabelecer o que deve “ficar” o que deve “sair” do cenário real do Estado. Tendo em vista estas finalidades distintas, o tipo de crise que cada um enfrenta tem que ser, no mínimo, diferente. O estadista se torna, obrigatoriamente, um nativo; o campo de mando é o seu habitat natural e a sua finalidade é modificar o Estado, seja para “melhorá-lo”, “adequá-lo”, “torná-lo melhor funcional” ou outra finalidade politicamente orientada; a resposta das mudanças também são relatadas a um outro habitat, a sociedade que criou aquele Estado e de onde o estadista provém. O estadólogo quer se parecer um nativo do Estado, mergulhar na sua cultura, mas a sua finalidade é estudar melhor este habitat estranho e produzir conhecimento para relatar a pessoas que não fazem parte dali. Tanto o estadista quanto o estadólogo “prestam contas” de suas atividades para “gente de fora” do campo do Estado e, para tanto, precisam “sobreviver” no campo do Estado. Mudar o Estado implica em mudar as práticas das pessoas que fazem o Estado no seu dia a dia e isso não é fácil de conseguir sem estabelecer um “choque”, uma “crise” de maior ou menor proporção; para mudar este quadro, precisa, de certa forma, “mudar as pessoas” que fazem o Estado ser como ele é; seja mudando suas práticas, seja substituindo o quadro por outro, mediante remanejamentos e, até mesmo, demissões. O “ser do Estado” é o “ser das pessoas do Estado”; mudando as pessoas ou suas práticas, muda o próprio Estado. Daí que o Estado está sempre se “renovando” e o estadista é o principal agente de tais mudanças. Ele é o “homem da crise”, o “homem do choque”, tanto por estabelecê-la quanto por sofrê-la dentro do seu próprio campo de mando. 38 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 34.


30 VIVENCIADA EM CAMPO. A descrição do choque cultural que ocorre nele, antropólogo, ocorre assim:

1) a CULTURA LOCAL se manifesta, primeiro, por meio de sua (do antropólogo) própria INADEQUAÇÃO; 2) contra o pano de fundo de seu novo ambiente, foi ele, o antropólogo, que SE TORNOU “VISÍVEL”; 3) o antropólogo, como pessoa que é, fica DEPRIMIDO E ANSIOSO, podendo A) fechar-se em si mesma ou B) agarrar qualquer oportunidade para se comunicar com os outros; 4) os antropólogos, como pessoas, DEPENDEM DA PARTICIPAÇÃO DOS OUTROS em suas vidas e da SUA PRÓPRIA PARTICIPAÇÃO na vida dos outros; 5) o SUCESSO e a AFETIVIDADE de sua condição de pessoa se baseia nesta participação e na habilidade de manter a COMPETÊCIA CONTROLADA NA COMUNICAÇÃO com os outros; 6) daí que o choque cultural é UMA PERDA DO EU em virtude da PERDA DESSES SUPORTES (participação e habilidade de controle da comunicação garantidores de sucesso e afetividade); 7) o antropólogo, como pessoa, precisa ESTABELECER ALGUM CONTROLE SOBRE A SITUAÇÃO, tendo em vista que se encontra - não em um outro segmento de uma mesma cultura já conhecida - mas sim noutra cultura, completamente diferente da sua, o que torna mais urgente e mais duradoura a necessidade de implementar esta competência de controle da comunicação. Se o antropólogo “perde o eu” neste processo, ao final, ocorre o “resgate do eu”, com a superação.

Wagner dá como exemplos da situação de choque cultural em paralelo com a sua sociedade: 1) o calouro que entra na faculdade, 2) o recruta no exército; 3) qualquer pessoa que se veja na circunstância de ter de viver num ambiente “novo” ou estranho. Nestes exemplos, calouros e recrutas se encontram num outro segmento de sua própria cultura, o que já não acontece com o antropólogo em campo, que se encontra imerso em uma outra e nova cultura, totalmente diferente da sua, e precisa aprender com ela para viver, conviver e produzir a sua própria visão da cultura observada. Dada a importância deste trecho que teoriza sobre a concepção de Wagner de CHOQUE CULTURAL, um quadro sinótico pode ajudar a visualizar melhor a idéia, sempre com o ponto de vista contributivo agregador que possamos


31 estabelecer. Do que compreendi, pode-se extrair sete situações ou fases do choque cultural, que vai desde o seu surgimento até a sua superação.

DESCRIÇÃO DAS SITUAÇÕES OU FASES DO CHOQUE CULTURAL DO ANTROPÓLOGO Situação Descrição Sentido 1 INADEQUAÇÃO

2 VISIBILIDADE

3 DEPRESSÃO

4 PARTICIPAÇÃO

5 DESCONTROLE

6 CHOQUE CULTURAL

7 ACEITAÇÃO CONTROLADA

a cultura local se manifesta por meio de sua própria inadequação

no pano de fundo de seu novo ambiente, só o antropólogo se tornou “visível” para si e para os outros fica deprimido e ansioso, podendo fechar-se em si mesmo ou agarrar qualquer oportunidade para se comunicar pessoas, dependem da participação dos outros em suas vidas

o sucesso e a afetividade de sua condição de pessoa se baseia na participação e na habilidade

o choque cultural é uma perda do eu em virtude da perda desses suportes

o antropólogo, como pessoa, precisa e pode conseguir estabelecer algum controle sobre a sua situação no campo

A nova cultura local mostra ao antropólogo o quanto ele é inadequado para viver, conviver e observar o campo, bem como o quanto a cultura local é inadequada para ele viver e produzir nela; o antropólogo se percebe inadequado no campo. Ao buscar ver a nova cultura, o antropólogo percebe apenas que somente ele é que se tornou visível para si e para o seu campo de observação, que permanece opaco para ele; o antropólogo percebe que somente ele é visível e os outros são invisíveis a ele no campo. Esta constatação torna o antropólogo deprimido e ansioso, pois ele tende a se fechar em si mesmo e/ou agarrar-se a qualquer oportunidade para se comunicar com os outros, mesmo diante de todas as dificuldades encontradas; o antropólogo fica em estado de fuga e/ou ansioso em campo. Como o antropólogo é pessoa como as outras, ele depende da participação dos outros e os outros dependem se sua participação na vida deles (interdependência interativa), sem o que o trabalho de campo fica inviabilizado; a depressão e a ansiedade demonstra a necessidade de participação no campo. O antropólogo tem dois suportes básicos, como qualquer pessoa: a participação e a habilidade de controlar a sua comunicação com os outros; estas habilidades possibilitam o sucesso e a afetividade nas trocas entre eles; a redução da participação ou a falta de habilidade geram um descontrole do antropólogo em campo. Na ausência de tais suportes básicos, ocorre o choque cultural, caracterizado por uma perda do eu, pelo antropólogo; ele perde-se de si mesmo, não se reconhecendo mais como sendo ele próprio; o antropólogo está totalmente perdido no campo. Para superar o choque cultural é necessário que o antropólogo estabeleça o controle sobre a situação de comunicação com o seu campo de estudo, reabilitando-se a dar continuidade ao seu trabalho, dando-se conta das diferenças culturais de sua origem e do campo em que se encontra; o antropólogo inventa ou recupera o seu controle comunicativo no campo, dentro das regras o campo.

É claro que podemos ver aí, também, apenas explicações de uma mesma coisa em vez de “fases” ou “situações”; optei por “situações” por me parecer haver um “crescendo” de tomada de consciência do pesquisador, tanto de si quanto do seu campo, como forma de superação do choque cultural. Sem dúvida que Wagner dá um toque sócio-psicológico para a sua descrição e explicações. As três categorias usadas no quadro (situação, descrição e sentido) são “invenções”


32 minhas, bem como os títulos dados às situações e a redações que ali constam, mas a base é do texto, bem como a sequencia posta. [39]

19 – O SEGUNDO CHOQUE CULTURAL: O CHOQUE DA ALDEIA 40. Wagner diz que não há apenas o choque cultural do antropólogo, pois também acontece o choque cultural da aldeia diante do antropólogo. Os DOIS CHOQUES CULTURAIS ocorrem de modo concomitante e são interdependentes. As pessoas com quem o antropólogo foi trabalhar experimentam problemas similares ao do antropólogo, “embora não exatamente do mesmo modo”. A descrição de Wagner pode ser feita da seguinte forma: 1 – os nativos se deparam com um forasteiro excêntrico, intrometido, de aparência curiosa e estranhamente ingênuo vivendo entre elas; 2 – o forasteiro é alguém como uma criança que não para de fazer perguntas e que precisa ser ensinado acerca de tudo; 39

35 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo neófito passa por sete estágios psicossociológicos no campo do Estado, tentando estudar a nova cultura em que se depara imerso para fins de estudo e de descrição relatável para fora do campo. Primeiro, na situação de inadequação, ele se percebe na cultura estranha como um ser inadequado para o que já está posto no campo e que pode inviabilizar a sua intenção de conhecimento interativo. Segundo, na situação de visibilidade, o estadólogo somente consegue se ver em contraste com a outra cultura, percebendo que a cultura estranha é invisível ao seu olhar; é como se fosse um “estranho no ninho”. Terceiro, na situação de depressão, o estadólogo fica deprimido e tende a um sentimento alternativo de “fechar-se em si mesmo” (fuga) ou de “comunicar-se a qualquer custo” (ansiedade). Quarto, na situação de participação, o estadólogo se dá conta de que tem necessidade de participar das atividades locais para poder se entrosar e levar em frente a sua pesquisa e o trecho de sua vida naquela situação de convivência. Quinto, na situação de descontrole, o estadólogo percebe a sua incapacidade para estabelecer contatos significativos com os “nativos”; por perceber a necessidade de controlar a sua participação, principalmente a de ordem comunicativa, percebe-se perdido no contexto da nova cultura, sem encontrar os rumos adequados de sua própria inserção. Sexto, na situação de choque cultural, o estadólogo começa a se confundir no campo, pois percebe que a sua cultura de origem é insuficiente e inadequada para estabelecer participação comunicativa de sucesso e, por outro lado, não sabe como inventar uma habilidade que faça superar o quadro de sua debilidade comunicativa; com isso, ele passa a desconhecer a si próprio (perda do eu) como sendo ele mesmo, no processo em que se encontra; é aqui que ocorre o CHOQUE CULTURAL com toda a sua força no estadólogo. Sétimo, por fim, na situação de aceitação controlada, o estadólogo, vivenciando o CHOQUE CULTURAL ESTADOLÓGICO, ele “reage” e tenta assumir o controle da sua situação em campo, dirigindo a sua participação e a sua comunicação com os “nativos”, de modo a poder “adaptar-se” (aceitação do Estado como ela é) ao campo e estudar a cultura local; com isso, supera o choque cultural e assume-se como estadólogo em campo com uma “missão” específica que exige boa convivência com todos e integração funcional com o meio em que se encontra. Nesta última fase, o estadólogo consegue “sobreviver” no campo e torna viável a sua pesquisa. A CRISE CULTURAL ESTADOLÓGICA inicial é a expressão que talvez possa descrever melhor a situação dele no início de campo. 36 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também passa pelas mesmas sete fases do estadólogo em campo, no início de seu ingresso, no setor do Estado que vai dirigir. Ele se percebe inadequado para o cargo, tem dificuldade para visualizar o que está diante de seus olhos, pois não tem olhos adequados para ver tudo o que há; com isso, deprime-se com facilidade, com sentimentos de fuga e de afoitamento. O estadista se dá contra logo que precisa participar no novo mundo em que se encontra para comandar e que o descontrole inicial ali posto precisa ser superado. Mas, a situação de descontrole se torna desesperadora para o estadista iniciante e ele tende a perder os seus próprios referenciais teóricos anteriores de Estado, em não se reconhecer mais como ele era antes, entrando em crise cultural, com o choque experimentado na nova situação, tornando-se, verdadeiramente “perdido” em campo. É o CHOQUE CULTURAL ESTADÍSTISTICO. Por fim, como só a participação interativa e a comunicação adequada poderá solucionar, ele pode estabelecer um controle do campo a partir de si, para o seu intento, recuperando a capacidade de contatar e de se comunicar. Com tal superação, o estadista se torna consciente de seu papel e de sua finalidade no Estado, superando a CRISE CULTURAL ESTADÍSTICA em que se encontrava no início. 40 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 34-35.


33 3 – o forasteiro é alguém que, como uma criança, é propenso a se meter em encrencas; 4 – os nativos levantam defesas contra o forasteiro, dificultando e retardando a sua atuação; 5 – o forasteiro se torna objeto de curiosidade e encaixase em muitos estereótipos ambíguos como um forasteiro “perigoso” ou como um “ocidental traiçoeiro”; 6 – a comunidade experimenta um “leve” choque com sua presença e se torna autoconscientes dos atos do forasteiro; 7 – o “controle” é muito importante tanto para o forasteiro quanto para os nativos; o problema do forasteiro é controlar a sua aceitação pelos nativos; o problema dos nativos é “simplesmente controlar o forasteiro”. De posse desta descrição, podemos construir um segundo quadro, agora do choque cultural da tribo, dos nativos ou do campo de atuação do antropólogo. Os critérios utilizados no quadro anterior servem para o novo.

DESCRIÇÃO DAS SITUAÇÕES OU FASES DO CHOQUE CULTURAL DA TRIBO OU DOS NATIVOS Situação Descrição Sentido 1 ESTRANHAMENTO

2 IRRITAÇÃO

3 CONFLITO

4 RESISTÊNCIA

5 DISCRIMINAÇÃO

6 CHOQUE CULTURAL

Deparam-se com um forasteiro vivendo entre elas o forasteiro é alguém como uma criança que pergunta o tempo todo e precisa ser ensinada sobre tudo, irritando o ambiente.

Os nativos percebem que há um intruso no ninho, vivendo entre eles, um forasteiro observado como intrometido, de aparência estranha e ingênuo; o antropólogo é estranhado pelo campo. O forasteiro age como uma criança que não sabe nada, que faz muitas pergunta e que precisa ser ensinado sobre todas as coisas; o antropólogo irrita o campo.

o forasteiro é alguém que, como uma criança, é propenso a se meter em encrencas;

O forasteiro tem uma tendência a se meter em encrencas como uma criança grande; o antropólogo gera conflitos no campo.

os nativos levantam defesas contra o forasteiro

Os nativos, numa atitude defensiva, geram dificuldades para o forasteiro, dificultando e retardando a sua atuação; o antropólogo sofre resistências no campo. O forasteiro é visto com curiosidade e seu comportamento leva à sua classificação em estereótipos de medo, passando a ser tido como perigoso e traiçoeiro; o antropólogo sofre discriminação no campo.

o forasteiro se torna objeto de curiosidade e encaixase em muitos estereótipos ambíguos como um forasteiro “perigoso” ou como um “ocidental traiçoeiro”; Os nativos experimentam um choque com sua presença

Os nativos sofrem, também, um choque cultural diante da presença do forasteiro, que é resultado das fases anteriores de deterioração crescente da convivência; o antropólogo gera um choque


34 7 ACEITAÇÃO CONTROLADA

o problema dos nativos é “simplesmente controlar o forasteiro”.

cultural no campo. Os nativos se tornam autoconscientes dos atos do forasteiro e superam o choque cultural com o aumento do conhecimento sobre o forasteiro e tentam controlar os atos do forasteiro; o antropólogo é aceito pelo campo.

Os títulos dados às sete situações são minhas, assim como a descrição e o sentido, com base na escrita de Wagner; mesmo que este não coloque desta forma o que ocorre “do lado da tribo”, o quadro segue os passos por ele descritos e serve, para a cultura brasileira, de parâmetros mais esclarecedores do processo experimentado pelo coletivo local. Isso tudo é comum na “nossa” experiência cotidiana de observação dos que ingressam nos grupos mais ou menos fechados. [41]

20 – A SOLUÇÃO PARA OS CHOQUES CULTURAIS: AMPLIAÇÃO DA CONVIVÊNCIA – MISSIONÁRIO DA CULTURA42. Wagner sustenta que a solução para todos os envolvidos reside nos ESFORÇOS DO ANTROPÓLOGO para lidar com o choque cultural e seus efeitos mais imediatos: a frustração e o desamparo. A solução implica em controle aquisitivo de habilidades especiais de dois tipos: 1) habilidade na língua nativa e 2) habilidade nos modos de vida locais. Wagner, neste ponto, pergunta-se: e não são os nativos os especialistas nos seus próprios modos de vida locais? Portanto, não há outro caminho senão seguir estas duas trilhas. Em sendo implementadas estas duas habilidades, diz ele, as pessoas do local passam a ter a oportunidade de fazer o que lhe compete, que é 1) controlar o forasteiro, como que 2) domesticando-o em sua própria cultura. Com isso, podemos acrescer, resolve-se, também, o problema do choque cultural da tribo. Dada a importância do tema sobre a solução dos problemas oriundos do choque cultural, merece um quadro sinótico de visualização mais imediata. As categorias distintivas da solução em duas habilidades decorrem do texto, mas os 41

37 - APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo é comparável, aqui, ao antropólogo, pois ele quer ingressar na cultura local apenas para conhecê-la e produzir a invenção da cultura em forma de narrativa a ser contata e explicada teoricamente para a sua cultura de origem. Ele não quer mudar a vida da cultura dos integrantes do Estado; quer, antes, tornar-se como que tornar-se um deles, ainda que temporariamente, para melhor compreender a totalidade do que acontece ali, como, por que e para que acontece daquele modo que experiência. Por isso, o choque cultural do estadólogo somente pode ser superado pelos mesmos meios aquisitivos de novas habilidades: aprender a falar a linguagem codificada do Estado e aprender a se portar segundo os hábitos locais, pois as resistências culturais sempre acontecem de início. E o Estado também supera o seu choque cultural com a presença do estadólogo adquirindo a habilidade de domesticar o estadólogo (que é um forasteiro) para, logo, poder controlá-lo melhor dentro do seu próprio meio, de modo que ele não represente nenhum perigo para o Estado. Podemos chamar este fenômeno de choque estadológico. 38 - APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. Diferentemente do estadólogo, que se parece com o antropólogo, o estadista se parece mais com o missionário e outros emissários, pois a sua função é a de estudar, mas, sim, modificar o Estado. Daí que o conflito cultural tende a vir a acontecer; mesmo que tenha poderes para impor as mudanças que julgue necessárias, as oposições internas acontecem e as execuções das ordens muitas vezes ficam desvirtuadas e o resultado é diferente do planejado pelo estadista. Podemos chamar este fenômeno de choque estadístico. Se o estadista está em campo para aprender a cultura do Estado e não para mudá-la mediante a definição de um novo norte de políticas públicas, então, vale o que dissemos acima para o estadólogo, uma vez que é nesta condição que se encontra em campo: aprendendo como os estadistas mandam nos seus nichos de poder. 42 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35.


35 termos são meus, explicitando uma compreensão da solução posta no texto, neste preciso local e nos itens anteriormente abordados.

HABILIDADES NECESSÁRIAS PARA A SUPERAÇÃO DOS DOIS CHOQUES CULTURAIS Tipo de Choque Primeira Habilidade Segunda Habilidade 1 2

Choque Cultural Antropólogo Choque Cultural Tribo

do da

Adquirir habilidade de falar a língua da tribo Adquirir a habilidade de domesticar o forasteiro

Adquirir a habilidade de seguir os modos de vida local Adquirir a habilidade de controlar o forasteiro

As habilidades 1 e 2 para o choque do antropólogo estão explícitas em Wagner, assim como parte da habilidade 2 do choque da tribo. Explico melhor. O autor não usa o termo “aquisição de habilidade” quando se refere à tribo, mas, sim, diretamente, sobre o controle do forasteiro. Entendo que assim como o antropólogo tem que inventar as duas habilidades, o mesmo acontece com a própria tribo, pois, pode ser que não consiga chegar ao ponto de tal empreendimento, por dificuldades de variadas ordens, tanto por parte do antropólogo quanto por parte do coletivo da tribo. De qualquer sorte, parece-me, que ambos os choque são superados concomitantemente, uma vez que eles são interinfluentes; ao aprender a falar a língua da tribo, esta passa a domesticá-lo mediante atos de comunicação e, por falar a mesma língua, o antropólogo aprende e segue os costumes locais, o que ocorre, também, mediante mecanismos de educação e controle por parte dos interlocutores da tribo. É uma via de duas mãos, como se diz no Brasil. No tocante à distinção feita no Brasil, no âmbito das ciências pedagógicas, se se trata de “instrução” ou de “educação” o processo de aculturamento do antropólogo e da tribo para a convivência, Wagner não a coloca. Penso que ao falar em “habilidade”, não está se referindo a “instrução”, mas sim a educação mesmo, pois o mecanismo de controle por parte da tribo está presente e é exigido na e para a convivência local. A segunda parte da abordagem do mesmo parágrafo trata da comparação das experiências do antropólogo com as dos MISSIONÁRIOS e de outros EMISSÁRIOS da sociedade ocidental. Wagner sustenta que tais experiências diferem principalmente por duas causas: 1) por causa dos papéis assumidos por eles e 2) por causa do modo de compreender a situação. Os missionários e emissários ocidentais são levados, motivados pelas duas causas acima apontadas, a interpretar suas deficiências como fruto da INADEQUAÇÃO PESSOAL, que é de dois tipos: 1) inadequação pessoal do missionário ou emissária, que pode até ficar LOUCO, e 2) inadequação pessoal da tribo, que leva à qualificação dos seus integrantes como dotados de ESTUPIDÊS E INDOLÊNCIA. Neste último caso, os missionários e emissários reforçam suas próprias AUTOIMAGENS ELITISTAS. Vê—se, aqui, que há um segundo tipo de choque cultural da tribo, que Wagner não classifica explicitamente e coloca-o apenas pelo lado negativo do fracasso dos missionários e emissários ocidentais. Trata-se de um tipo extremo de choque cultural que pode levar à loucura e ao banimento dos ocidentais, tornando


36 inviável o ingresso ou a permanência na cultura local, pois, ao que parece, o CONFLITO CULTURAL acontece. Wagner não usa o conceito, pelo menos aqui, de conflito cultural, mas podemos usá-lo para melhor explicitar a idéia e suas consequências nefastas para os missionários e emissários ocidentais. Wagner faz um excurso em nota de rodapé para falar sobre um tal de reverendo KENNETH MESPLAY. Entendo que é importante explicitar aqui esta digressão, pois ela complementa o entendimento acima posto, bem como mostra a influência da atividade dos missionários e emissários na aceitação do trabalho do próprio antropólogo. Diz ele que o reverendo, tendo sido encarregado de uma escola e de outros serviços em KARIMUI, onde Wagner fez trabalho de campo, fazia uma avaliação da influência dos antropólogos nos integrante da tribo onde ele ensinava. Afirmava que as aldeias onde um antropólogo tenha vivido: 1) revelava padrões distintos de lidar com os europeus, 2) a frequência escolar diminui e 3) as pessoas se mostravam mais segura de si, dentre outras características. Wagner, depois desta narrativa, afirma que um antropólogo é algo como que um “MISSIONÁRIO DA CULTURA” e, como todo bom missionário, acredita na coisa que inventa e, mais do que isso, acredita que pode angariar um grupo substancial de adeptos em seus esforços para inventar a cultura. Vejo aqui a distinção de entrelinhas posta e sublinhada nos propósitos; enquanto o antropólogo somente quer adesão para inventar a cultura nativa (construir uma narrativa descritiva compreensiva), o missionário e outros emissários querem adesão para transformar a cultura nativa. [43] 21 – A OBJETIFICAÇÃO DA CULTURA: O PSICANALISTA E O XAMÃ44. Wagner não usa aqui o termo “objetivar”, com é corrente no Brasil, mas sim 43

39 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo presencia os dois choques culturais causados pela sua presença no campo de pesquisa: o seu e o do Estado. Como os dois choques ocorrem ao mesmo tempo, há uma solução única para a superação de ambos, a ampliação da convivência. O estadólogo precisa adquirir duas habilidades para superar o seu próprio choque cultural: habilidade de falar a língua nativa do Estado e habilidade para se portar segundo os costumes locais do Estado. O Estado precisa adquirir duas habilidades para superar o seu próprio choque cultural: habilidade em “domesticar” o estadólogo em suas próprias regras culturais locais, e habilidade em “controlar” o estadólogo nas atividades desenvolvidas pelo estadólogo no seu campo. Para tanto, é preciso que o estadólogo consiga convencer os nativos do Estado de que ele não é nem um “missionário religioso” que vai competir com as crenças locais para ensinar outras, bem como convencer os nativos do Estado de que ele não é um “espião” dos escalões superiores do governo do Estado, capaz de trazer insegurança para aqueles com quem interage ou observa. Ainda que o estadólogo se diferencie de do missionário e do espião, que querem mudar a realidade do campo a partir de uma força externa ao campo, fato é que ele, pelas suas características, é uma espécie de “missionário da cultura”, no sentido de que vem para descrever e, com isso, inventar, a Cultura do Estado nos escritos que vai produzir com suas observações, ampliando a visão de mundo com o que agrega a partir da cultura local estudada. 40 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista já não tem melhor sorte, pois ele tem maior aproximação com o “missionário religioso” e com o “espião do governo” do que com o estadólogo, pois a sua missão é transformar o Estado, promover as mudanças que julga necessárias para o “melhor” funcionamento da “tribo” local; para isso, “mexe” com a vida funcional de cada um dos nativos e “bagunça” a tradição ou hábito de comportamento cultuado até antes de sua chegada. Porém, o estadista precisa convencer os nativos de que não vai mudar suas crenças e nem “delatar” os nativos para superiores hierárquicos; ele veio para se tornar um nativo e para dirigi-los no próprio processo de mudança, em parte decidido fora dali e em parte decidido dentro do próprio campo, com a participação de todos os nativos, mediante um trabalho em equipe, cujo sucesso depende do empenho coordenado de todos os ‘internos” da cultura do Estado naquele setor determinado. O destino do estadista é comungado com o destino dos outros nativos, uma vez que, para todos os fins, depois de sua chegada, torna-se “outro” nativo e, como tal, age na invenção prática da cultura do Estado, em regime de corresponsabilidade e de cumplicidade com todos os demais. 44 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35.


37 “objetificar”; mesmo que parecidos os termos, os sentidos são diferentes; no primeiro, mostra-se algo como sendo algo “objetivo”; no segundo, mostra-se algo como sendo subjetivo, do antropólogo, mas que é por ele “tornado objetivo” conscientemente, de modo que a coisa é fica objetiva por conta da atuação do observador; é como se a coisa fosse objetiva, mas é uma invenção do próprio antropólogo na construção do discurso descritivo ou narrativo. Wagner diz que a antropologia ensina a objetificar aquilo a que o antropólogo está se ajustando como “cultura”, mais ou menos como acontece com o PSICANALISTA e o XAMÃ, que exorcizam as ansiedades do paciente ao objetificar a sua fonte. Daí que, uma vez que a nova situação tenha sido OBJETIFICADA COMO “CULTURA”, torna-se possível dizer que o PESQUISADOR ESTÁ “APRENDENDO” aquela cultura; isso ocorre do mesmo modo como uma pessoa, diz Wagner, aprende a jogar cartas. O diálogo aqui é com os efeitos do choque cultural do antropólogo, que supera a sua ansiedade tornando visível, para si, a fonte da mesma e começa a aprender a nova cultura a partir da superação do seu próprio choque. A analogia com o jogo de cartas não mereceu explicação por parte do autor, porém, podemos inferir que a identificação e superação do choque cultural é a aprendizagem do próprio jogo cultural, onde cada jogada influi na vez e na jogada dos outros que fazem parte do jogo. O JOGO CULTURAL não aparece, pelo menos aqui, na fala de Wagner. Aproveitando esta mesma “educação da antropologia”, Wagner sustenta que, se a objetificação das fontes da ansiedade ocorre ao mesmo tempo que o aprendizado antropológico, então pode-se, a fortiori, dizer que o pesquisador de campo está “inventando” a cultura. Isto porque a objetificação é uma invenção do antropólogo ao superar o seu choque cultural e, como tal, a cultura por ele objetificada a partir do choque também só pode ser um invenção dele. [45]

22 – OBJETIFICAÇÃO E APRENDIZADO: EXTENSÃO E PREDISPOSIÇÃO CULTURAIS46. Wagner diz que a distinção feita acima, entre “objetificação” e “aprendizagem” é crucial, entretanto, somente no sentido de um modo como o

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41) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo precisa objetificar as causas do seu choque cultural para supra-lo e este caminho se assemelha com um jogo de cartas, pois a objetificação superativa das causas do choque leva a influir nas jogadas dos demais interlocutores, levando-os, também, a superar o seu próprio choque cultural. O estadólogo inventa a superação e, por inventá-la, inventa a própria cultura que passa descrever experienciando-a. O jogo do estadólogo é marcadamente passivo (submisso). O estadólogo objetifica a cultura ao mesmo tempo em que a apreende e aprende com ela. Ele é um pesquisador de campo e é nesta condição que ele entra, permanece e sai do Jogo do Estado. 42) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista supera o seu choque cultural descobrindo as causas do mesmo, porém, diferentemente do estadólogo, não as verifica em si, pois detém o poder de mando e deve impor as mudanças do Estado segundo o seu plano de ação; por isso, a causa do choque cultural está nos integrantes da tribo, que precisam se adaptar às mudanças impostas hierarquicamente. O estadólogo ao superar o seu choque cultural e ao experienciar a superação do choque cultural do Estado, mediante a objetificação tanto de seus planos quanto do costume local, está “inventando” uma nova cultura local, segundo novas regras de experienciamento. O jogo do estadista é marcadamente ativo (autoritativo; no sentido de que “exerce autoridade”; não no sentido de “autoritário” ou “antidemocrático”), no sentido do uso da autoridade. O estadista “objetifica” a cultura ao mesmo tempo em que a apreende, assim como o estadólogo.Ele é um ativador de campo e é nesta condição que ele entra, permanece e sai do Jogo do Estado. 46 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35-36.


38 antropólogo vem a COMPREENDER e a EXPLICAR a situação que experiencia, mas não para além disso. Daí decorrem dois sentidos. O primeiro sentido. Aqui o autor introduz uma expressão nova e cheia de significados: a CRENÇA DO PESQUISADOR. Wagner diz que a “crença na situação nova como sendo uma entidade concreta” implica em 1) entender a situação como uma “coisa” que tem regras, 2) que funciona de uma certa maneira e 3) que pode ser aprendida. É justamente esta crença do pesquisador de que a nova situação - com que está lidando - é uma ENTIDADE CONCRETA, o que vai ajudá-lo e encorajá-lo em seus esforços para enfrentá-la. O segundo sentido. Wagner diz que num outro sentido, muito importante, o antropólogo NÃO ESTÁ APRENDENDO A CULTURA do modo como o faria uma criança nativa. Isto porque ele ABORDA A SITUAÇÃO como um ADULTO que efetivamente internalizou a sua própria cultura de origem antes de chegar ao campo. Daí que se torna visível que os seus esforços para compreender aqueles que está estudando irão brotar de suas habilidades para produzir significado no âmbito de sua própria cultura, que não é a dos nativos. Isto porque o antropólogo está estudando a nova cultura 1) para tornar essas pessoas e suas condutas plenas de significado 2) para comunicar esse conhecimento aos outros de sua própria cultura e não para os nativos estudados. A explicação de Wagner neste ponto é complexa e exige redobrada atenção. Diz ele que, por causa desta finalidade voltada para fora da cultura estudada, o que quer que o antropólogo “aprenda” com os sujeitos que estuda somente pode assumir a forma de uma EXTENSÃO ou de SUPERESTRUTURA construída “sobre” e “com” aquilo que ele já sabe, trazido de sua cultura de origem. O antropólogo vai “participar” da cultura estudada 1) não da maneira como um nativo o faz, mas como alguém que está, simultaneamente, 1) envolvido em seu próprio mundo de significados de origem e que 2) esses significados de origem também farão parte na cultura estuda. Em outras palavras, Wagner diz que o antropólogo vai colocar significados de sua cultura na cultura estudada, pois somente pode atribuir significado à nova cultura mediante os significados que aporta de sua própria cultura. É neste ponto que Wagner retoma o conceito OBJETIVIDADE RELATIVA. Afirma que o conjunto de predisposições culturais, que um forasteiro traz consigo para o campo de estudo, é o que FAZ TODA A DIFERENÇA em sua compreensão daquilo que ESTÁ “LÁ”. Em outras palavras, o aporte cultural do antropólogo faz a diferença sobre a sua própria “invenção” da cultura que estuda; variando o aporte, varia a invenção. Tem-se antropólogos e antropólogos segundo a cultura que cada um traz consigo de onde vem, inclusive a teórica antropológica. [47] 47

Wagner não usa o termo “pré-compreensão”, mas vou usá-lo aqui por ser o seu uso habitual no Brasil dos últimos anos. 43) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo traz para o campo de observação do Estado toda a sua bagagem cultural, de vida e teórica apreendida na sua ciência, e que esse aporte vai condicionar o tipo e o conteúdo da “invenção” da cultura que ele vai produzir a partir de sua experiência no campo. As suas predisposições culturais – podemos dizer a sua pré-compreensão de Estado – condicionam a sua visão e vivência em campo e a partir do campo. O que ele aprende de novo no campo do Estado é como uma extensão ou superestrutura do que já sabe. Ele não é uma “tabula rasa” quando chega no Estado. Em outras palavras, o estadólogo chega no campo com a “cabeça feita”, em parte, mas aberto a novas aprendizagens. 44) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também traz para o campo do Estado toda a sua bagagem teórica e cultural e a aplica nas suas decisões; mesmo que aprenda no campo novos modos de tratamento do que


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23 – A CULTURA COMO “MULETA” DO ANTROPÓLOGO: PROCEDER “COMO SE FOSSE COISA”48. Wagner retoma o contraponto entre OBJETIVIDADE ABSOLUTA e OBJETIVIDADE RELATIVA. Mas, segundo entendi do texto, ele, apesar de sustentar a superioridade teórica da segunda sobre a primeira, faz concessão à primeira. Diz que se a cultura fosse uma “coisa” absoluta, objetiva, então “aprender” uma cultura se daria da mesma forma para todas as pessoas, tanto nativos como antropólogos, tanto adultos quanto crianças. Entende que isso não ocorre na realidade, pois as pessoas têm todo tipo de PREDISPOSIÇÕES e INCLINAÇÕES. Por isso, a NOÇÃO DE CULTURA como ENTIDADE OBJETIVA, inflexível, tem apenas uma única utilidade: servir como uma espécie de “MULETA”. Esta muleta seria uma espécie de meio para AUXILIAR o antropólogo de sua invenção e entendimento. Para essa finalidade auxiliar, e – diz Wagner – para muitos outros propósitos em antropologia - é necessário PROCEDER “COMO SE” a cultura existisse na qualidade de uma “COISA MONOLÍTICA”. Porém, diz ele, para o PROPÓSITO DE DEMONSTRAR de que modo um antropólogo obtém sua compreensão de UM OUTRO POVO, é necessário PERCEBER QUE A CULTURA É UMA “MULETA”. Wagner é contrário à noção de objetividade absoluta, por sua impossibilidade, entretanto, como meio auxiliar para o antropólogo inventar a cultura e o seu entendimento sobre a cultura, pode-se ver a cultura como se fosse uma coisa, como algo objetivo e monolítio, mas que esse uso é uma mera muleta; porém, esse modo de ver a cultura é insuficiente para compreender como um antropólogo compreende um outro povo; neste caso, é preciso perceber a própria noção de “cultura” “coisificada” como sendo apenas uma muleta. Em outras palavras, a “cultura” como “coisa” é uma “muleta” teórica para o antropólogo descrever a cultura que não é a sua, mas do povo que estuda; na realidade ela é uma “invenção” do próprio antropólogo. [49] pretende fazer, trata-se a nova aprendizagem apenas de incremento ao que já aportou ao chegar no Estado. A diferença toda está justamente na sua cultura pretérita de lidar com o Estado, o que vai facilitar ou dificultar o seu sucesso de atuação na cultura local em que está inserido com poder de mando. O modo como avalia as condições e os resultados de suas implementações é condicionado pela sua pré-compreensão, agregada ao que aprende no próprio novo campo do Estado. Em outras palavras, o estadista ao entrar no campo do Estado já está com “a cabeça feita” anteriormente, quase que totalmente, ainda que possa, também, estar aberto a algumas modificações no curso interativo, em grau menor do que o estadólogo, pois a sua finalidade é distinta; não é descrever o Estado, mas modificar o Estado. 48 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36. 49 45) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo pode ver o Estado como uma “coisa”, porém, o Estado é apenas uma “invenção” descritiva do que ele observa; trata-se de um “instrumento de trabalho” e não algo existente na realidade; o Estado não é o que o estadólogo descreve, pois este só pode descrever o que ele pensa enquanto observa o que vê. Para que se possa compreender o Estado-coisa que o estadólogo descreve é preciso entender que tal descrição é apenas uma “muleta” teórica usada para facilitar o seu próprio ato de descrevê-lo; o Estado como realidade objetiva absoluta não existe, uma vez que cada observador tende a observá-lo do seu próprio modo, levando em conta a sua própria cultura aportada no ato de observar. 46) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também pensa que o Estado é uma “coisa” que ele tem diante de si, entretanto, trata-se apenas de uma “muleta” usada por ele para melhor descrever o que olha ou “inventar” a descrição do que vê; para compreender o modo de atuação do estadista é preciso pensar o Estado como coisa como sendo apenas esta muleta por ele estudado, mas não na realidade. O uso “absoluto” da cultura do Estado é apenas um “meio teórico”, pois a cultura concreta apresenta apenas uma objetividade realtiva ao olhar do estadistas, comparável com as conclusões de outros olhares. Porém, as decisões do estadista no ato de


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24 – O ATO DE INVENÇÃO DA CULTURA: USO DA ANALOGIA E “VIRAR NATIVO”50. Wagner, a partir deste ponto do texto, define mais claramente o seu pensamento, pelo menos para a minha compreensão, que pode ser estendida, de certa forma, à cultura brasileira, “lato sensu”. Diz ele que a relação que o antropólogo constrói entre DUAS CULTURAS emerge deste seu ATO DE INVENÇÃO. Explica que o antropólogo OBJETIFICA ESSAS CULTURA e, em consequência desta objetificação construída, ele CRIA TAIS CULTURAS PARA SI. Em outras palavras, quem sabe mais claras, pode-se dizer que a “construção cultural para si” é dupla e resulta da relação construída “entre” as duas culturas, a sua e a da tribo. Este ato de invenção é o uso que faz de significados por ele já conhecidos ao construir uma representação compreensível do seu objeto de estudo. Usar significados conhecidos é ato inventivo deste mesmo uso: uma invenção teórica que emerge da prática antropológica em campo. Aqui Wagner retoma o conceito de REPRESENTAÇÃO, que é tradicional na antropologia, porém, neste ponto, não se detém em mostrar como ele concebe a mesma, não indo além de afirmar que tal representação é “compreensível”, i.e., capaz de possibilitar a compreensão do objeto representado por um terceiro que tem acesso à descrição da representação feita. Diz Wagner que o resultado do “ato de invenção” é uma ANALOGIA ou um CONJUNTO DE ANALOGIAS que “TRADUZ” um grupo de significados básicos “em um outro”. Essas analogias produzidas pelo antropólogo participam, ao mesmo tempo, de ambos os SISTEMAS DE SIGNIFICADOS, da mesma maneira que seu criador. Ponto alto aqui é a ligação de ANALOGIA TRADUTORA e SISTEMAS DE SIGNIFICADOS; cada cultura é compreendida analogicamente a partir de uma outra (leio a outra a partir da minha – o que é feito tanto pelo antropólogo quanto pelos observadores da tribo) e cada cultura apresenta-se como um sistema de significados no uso analógico. O acesso a uma outra cultura depende de um meio analógico cuja ponte é o próprio antropólogo que porta, por si, um sistema prévio que serve de “padrão” comparativo de observação. Wagner sustenta que há uma consideração básica, simples e a mais importante. Ela consiste em afirmar que o antropólogo 1) não pode simplesmente a) “aprender” uma nova cultura e b) “situá-la” ao lado daquela que ele já conhece; ele deve, antes, 2) “ASSUMI-LA” de modo a experimentar uma TRANSFORMAÇÃO do seu próprio universo. Diz ele que, na perspectiva do trabalho de campo, 1) “VIRAR NATIVO” é tão inútil quanto permanecer no aeroporto ou no hotel para 2) “FABRICAR HISTÓRIAS” sobre os nativos. Em nenhum dos dois casos não haverá possibilidade de uma “significativa relação (invenção) de culturas”. Daí que, para o autor, virar nativo impossibilita a aprendizagem efetiva da outra cultura; é ingênuo pensar o contrário, pois todo “esforço para conhecer” outra cultura deve, no mínimo, começar modificação do Estado são verificáveis, não como “coisas”, mas como “se fossem coisas”, já que o olhar é sempre marcado pela subjetividade de quem olha. Estadistas e estadólogos atuam do mesmo modo, com objetividade apenas relativa no tocante à cultura que têm diante de si e sobre a qual atuam, seja para descrevêla, seja para modificá-la segundo um plano prévio. 50 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36-37.


41 por um ato de invenção; no caso, o “ASPIRANTE A NATIVO” só conseguiria ingressar num mundo criado por ele mesmo, como faria um ESQUIZOFRÊNICO ou, como Wagner já tratou antes, na sua Introdução, do apócrifo pintor chinês que, perseguido por credores, pintou um ganso na parede, montou nele e fugiu voando. Pelo que entendi, Wagner diz que uma cultura só é penetrável, de fora, através de uma outra cultura e esta relação estabelecida é sempre “entre culturas”, de modo que o que ingressa estabelece uma ponte “intercultural” que permite que seja inventada a cultura por conhecer, à medida que conhece. O antropólogo não pode virar um nativo, mesmo que o quisesse, por impossibilidade formativa originária; por mais que ele se esforce, tudo que conseguirá será ter uma vida dividida ou psicótica. E o mundo que ele pensa ter ingressado é apenas o mundo que ele criou entre as duas culturas, mas não na cultura mesma. Aqui, parece-me, que Wagner sustenta uma espécie de imanência cultural originária da qual o sujeito não consegue se desvencilhar nunca e que somente através da sua cultura de origem é que consegue dar visibilidade às outras culturas que observa; não pode, por mais que queira, tornar-se outro nativo; e nem precisa, pois o antropólogo já possui, como os nativos que observa, uma cultura de origem, onde é um nativo ou nato. A definição de origem da tribo pelo nascimento e formação inicial fica patente no pensamento de Wagner, mas ele, neste ponto do texto, não trata da “aculturação”, voluntária ou involuntária, pelo menos não diretamente. [51] 25 – A CULTURA É TORNADA VISÍVEL PELO CHOQUE CULTURAL: A CONCRETIZAÇÃO INVENTIVA52. Wagner é explícito, nestes últimos parágrafos da segunda seção do capítulo I, ao afirmar que É O CHOQUE CULTURAL QUE TORNA A CULTURA VISÍVEL, tanto a sua quanto a do novo campo de observação. E isso se torna possível por duas razões: 1) pelo ato de submeter-se a situações que excedem a COMPETÊNCIA INTERPESSOAL ORDINÁRIA e 2) e pelo ato de 51

47) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo não deve procurar tornar-se um NATIVO DO ESTADO, pois ele vem de uma outra cultura e somente através desta é que pode observar e compreender o Estado. Para que possa alcançar esta compreensão, ele precisa assumir a nova cultura do Estado e experimentar uma transformação em si mesmo, que não significa o abandono de sua cultura de origem, mas sim uma imersão em uma nova cultura para vivenciá-la como experienciamento. A cultura de origem do estadólogo é um sistema de significados equivalente ao sistema de significados da cultura do Estado na qual ele mergulha em campo de observação. O estadólogo não muda a cultura do Estado, mas influi nela, levemente, com a sua presença observante, não com base no que ele pensa do que observa, mas sim com base no que os nativos pensam a partir de sua presença observadora. A passividade do estadólogo não é, portanto, de todo inerte, mas não influi, como o estadista, na mudança do estado a partir de sua própria concepção de “tribo”. Agora, o estadólogo pode já ter conhecimento de outras experiências de campo em outras tribos do Estado e este aporte vai servir para compor o uso analógico de tais experiências para compreender as novas, em outras tribos. Podemos chamar a isso de “experiência intercultural estatal”. 48) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. Isso serve também para o estadista, porém, com a diferença de que este dispõe de poder para mudar a cultura do Estado dentro de sua competência ou âmbito “territorial” de poder, dentro dos limites impostos pela constituição da própria tribo local, podendo, inclusive, mudar um pouco esta própria constituição. Mas, ele precisa ter consciente que ele nunca será um nativo do Estado, mas somente alguém “de fora” que está transitoriamente “dentro”, por mais duradoura que seja esta duração. Se imaginarmos a cultura do estadista como sendo a da “sociedade” que instituiu o Estado, então, é com o sistema de significados da Sociedade que ele irá compreender o sistema de significados do Estado e, nesta relação Sociedade-Estado, irá experimentar uma transformação nos próprios significados que aportou antes de chegar no Estado. Pode-se falar aqui de uma cultura mista que o estadista constrói e que se torna, tendo em vista as marcas que deixa pelo uso do poder de mando no Estado, a própria cultura do Estado, durante a sua estada e até que ela seja mudada por outro dirigente que venha a substituí-lo. O uso analógico de experiências de Estado, como dirigente, servem como incremento para os atos de mando em outros setores ou tribos do Estado. 52 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 37.


42 objetificar a DISCREPÂNCIA como uma ENTIDADE. Esta “entidade” é “delineada” por meio de uma CONCRETIZAÇÃO INVENTIVA desta mesma entidade após à EXPERIÊNCIA INICIAL. Isso quer dizer que somente depois do choque cultural é que o antropólogo passa a ver a nova cultura como uma entidade capaz de ser por ele descrita mediante uma concretização que ele próprio inventa para si. Para o antropólogo, diz Wagner, esse “delineamento” comumente segue as EXPECTATIVAS ANTROPOLÓGICAS no tocante ao que a cultura e a DIFERENÇA CULTURAL deveriam ser para ele. Uma vez ocorrida esta concretização, o antropólogo adquire uma CONSCIÊNCIA INTENSIFICADA dos 1) TIPOS DE DIFERENÇAS e 2) TIPOS DE SIMILARIDADES implicadas pelo termo “cultura” e começa a usá-los cada vez mais como uma CONSTRUÇÃO EXPLANATÓRIA (“constructo explanatório”). A transformação que sofre o antropólogo no campo, como foi colocado acima, por Wagner, é retomada aqui de modo melhor descrito. Diz que o antropólogo 1) começa a ver seu próprio modo de vida em nítido relevo 2) contra o pano de fundo das outras “culturas” que ele conhece. Daí que o antropólogo pode tentar, conscientemente, objetificá-lo. Estes esforço de objetivação deve ser feito, diz Wagner, mesmo que ele esteja “ALI”, diante dos olhos do antropólogo, por implicação, ao menos, nas “analogias que ele já criou”. Ao que parece, estas analogias criadas são compulsórias e surgem no próprio ato de observação do antropólogo; decorre daí que a invenção é, também, inevitável, como um dado da cognição humana; o sujeito não pode evitar a comparação analógica para compreender o que vê. Wagner diz que a INVENÇÃO DAS CULTURAS por parte do antropólogo, e das culturas em geral, muitas vezes, começa com a INVENÇÃO DE UMA CULTURA PARTICULAR; e esta invenção particularizada, por força do PROCESSO DE INVENÇÃO, ao mesmo tempo, “É E NÃO É” a PRÓPRIA CULTURA DO INVENTOR. Esta aparente contradição ou paradoxo de “ser e não ser” ao mesmo tempo, implica que a cultura inventada é, em parte, a própria cultura do antropólogo posta em analogia com a cultura observada; apresenta elementos desta na construção feita. [53]

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49) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo delineia a cultura do Estado que observa a partir de sua própria cultura aportada no momento da observação, mediante analogias culturais que resultam na construção descritiva da cultura que tem diante dos olhos, que é uma “cultura particular”; de posse de tais experiências de construção analógica, o estadólogo pode inventar a compreensão das culturas em geral do Estado, por generalização. O processo de invenção apresenta resultados que são e não são, ao mesmo tempo, a própria cultura do estadólogo, enquanto “inventor daquela cultura”. Outro estadólogo poderá inventar “outra cultura” com base no mesmo campo de observação. O estadólogo, no momento em que ocorre o choque cultural, vê em relevo a sua própria cultura em contraste com a nova cultura observada e emerge deste contraste as analogias comparativas que permitem compreender a nova cultura como distinta da sua. 50) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista apresenta processo semelhante ao do estadólogo, com a diferença de que ele está na outra cultura com a finalidade de modificá-la e o que implementa é parte de sua própria cultura e parte da cultura já existente no Estado, de modo que há uma síntese entre as duas culturas no ato de invenção da mudança. O processo de mudança operado “para fora” pelo estadista é comparável analogicamente ao processo de mudança operado “para dentro” pelo estadólogo. Por isso, o estadista, antes de tudo, precisa passar pelo processo do estadólogo, como estágio inicial de assunção da nova cultura do Estado, antes de começar a operar as mudanças do Estado no seu âmbito de poder. É fácil ver que mudando o estadista, muda o tipo de mudança que é operada no Estado, devido à diferenciação cultural de origem do próprio Estadista e da situação em que se encontra a cultura do Estado quando ele chega.


43 26 – UM PONTO DE CONEXÃO ENTRE DOIS MODOS DE VIDA: O “NATIVO METAFÓRICO” - ESTRANHEZA E INTERPOSIÇÃO54. Estes dois últimos parágrafos da segunda seção da Presunção da Cultura tratam da “estranheza profissional” do antropólogo. Wagner afirma que há uma PECULIAR SITUAÇÃO do antropólogo em campo dado o fato de participar, simultaneamente, de DOIS UNIVERSOS DE SIGNIFICAÇÃO E AÇÃO DISTINTOS. Isso exige duas posturas. Primeiro, exige que ele se relacione com seus objetos de pesquisa como se fosse um FORASTEIRO que tenta “aprender” e “adentrar” um modo de vida diferente do seu. Segundo, exige, ao mesmo tempo em que se relaciona com a sua própria cultura como se fosse uma espécie de NATIVO METAFÓRICO. Diz o autor que, para AMIGOS OS GRUPOS, o antropólogo é um ESTRANHO PROFISSIONAL, pois parece uma pessoa que 1) se mantém a certa distância de suas duas vidas a fim de GANHAR PERSPECTIVA. Tal “estranheza” e o caráter “interposto” de são motivo de muitos equívocos e exageros por parte daqueles com quem ele entra em contato, nos dois lados. Por um, no grupo de sua própria sociedade de origem, imaginam que ele “virou nativo”; por outro, no grupo de seu campo de estudo, os nativos, muitas vezes, acham que ele é um “espião” ou “agente do governo”. Wagner diz que, em tais situações, por mais perturbadoras que possam ser tais suspeitas, elas são menos importantes do que o IMPACTO DA SITUAÇÃO sobre o próprio antropólogo. Na medida em que ele funciona como uma espécie de PONTE ou uma PONTE DE CONEXÃO ENTRE DOIS MODOS DE VIDA, o antropólogo cria, para si mesmo, a ilusão de transcendê-los. Esta tentativa explica muito do PODER que a antropologia tem sobre seus CONVERTIDOS, pois a sua MENSAGEM DE EVANGELIZAÇÃO atrai pessoas que DESEJAM SE EMANCIPAR DE SUAS CULTURAS. Note-se que o autor aproxima a prática antropológica do caráter de atuação abnegada religiosa, onde o antropólogo se torna quase como que um missionário e, a antropologia, com que um credo. A situação de ponte entre dois mundos gera o estranhamento tanto na ida quanto no retorno do antropólogo de campo, gerando “incompreensões” de ambos os lados. A luta do antropólogo, então, é a de convencer os de sua cultura de que ele permaneceu o mesmo e, os da outra cultura, que ele se tornou como eles? Wagner, até aqui, não nos forneceu uma resposta clara para esta pergunta. Mas, dá uma pista, ao referir-se, an passant, aos que querem se desfazer de suas próprias culturas, que não são, obviamente, por pressuposto, os antropólogos, pois estes precisam afirmar a sua própria cultura de origem como instrumento de trabalho. [55] 54

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38. 51) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo, com a experiência de campo no Estado, também sofre as incompreensões de duas tribos; torna-se duplamente estranho. Por um lado, torna-se um estranho à sociedade de origem, pois está impregnado de Estado, quando a ela retorna; por outro, é tido como um estranho pela tribo do Estado, pois ele vem do lado de “lá”, e pode ser um espião ou agente dos escalões superiores. Como um “antropólogo do Estado”, o estadólogo exerce, no seu atuar, uma função de ponte entre as duas culturas que ele porta e aporta. De Um lado ele já é um estranho; de outro, torna-se estanho paulatinamente, à medida em que mergulha na cultura de estudo. Isto torna o estadólogo uma síntese intercultural viva que se desloca entre espaços culturais diversos, impregnando tais espaços com as experiências que adquire e difunde. Mas, por mais nativo do Estado que ele posa parecer, sempre terá as marcas da cultura da sociedade de origem.Temos aqui, por analogia, um “estadólogo metafórico“ 52) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, cuja função não é estudar, mas mudar o Estado, também sofre as mesmas distinções do estadólogo, com a diferença de que ele possui o poder de mando para impor mudanças no comportamento dos nativos subordinados. À medida que mergulha no seu nicho de poder, também sofre influências do meio local em suas 55


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27 – A “EMANCIPAÇÃO” DO ANTROPÓLOGO: EXPERIÊNCIA DA CULTURA – ESCAPE E CONTROLE56. Wagner diz, por fim, que “uma EMANCIPAÇÃO pode, efetivamente, vir a acontecer”. Há esta possibilidade, porém, não é certa. Quer dizer, nem todo antropólogo a alcança. Duas razões concorrem para esta emancipação do antropólogo dos problemas que seu ofício lhe acarreta nas duas culturas, a nova e a de origem: 1) pelo fato de o pesquisador ter conseguido “ESCAPAR” de sua cultura de origem e 2) pela circunstância de ter encontrado um novo e poderoso “CONTROLE” sobre sua própria invenção sobre a cultura de estudo. A segunda razão é mais forte do que a primeira para influir na emancipação, diz o autor. Para Wagner, a EXPERIÊNCIA DA CULTURA é 1) dotada de uma FORMIDÁVEL REALIDADE DE DIFICULDADES nela envolvidas e 2) confere ao pensamento e aos sentimentos do antropólogo aquela CONVICÇÃO “que a CONFIRMAÇÃO DA CRENÇA parece sempre proporcionar aos seus adeptos”. Daí que, ao que parece, o autor compara a experiência antropológica à conversão religiosa, mediante a aceitação de um novo credo, de uma nova visão de mundo, do mundo da cultura, não só das duas envolvidas, mas, também, das culturas humanas em geral; e se trata de um credo por ele próprio criado a partir de sua própria experiência de vida. [57]

práticas ao ponto de transformar-se, cada vez mais, em um “igual” ao local de atuação; e causa igual estranheza aos de sua origem, quando retorna a ela para relatar as suas experiências no exercício do cargo, função ou atividade. Em outras palavras, o estadista influencia o novo meio com a nova cultura que aporta e sofre influência do meio encontrado no próprio uso de sua cultura de origem, gerando uma espécie de novo “caldo” cultura. A interinfluência cultural parece nítida em tais experiências de atuação. Temos aqui, também por analogia, um “estadista metafórico”, pois o que ele pensa, sente e passa a dizer já causa estranheza em seus iguais, cujas culturas, compradas, já se parecem muito estranhas, irreconhecíveis entre si. 56 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38. 57 53) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo escapa de sua cultura de origem e controla a invenção da nova cultura que observa ao descrevê-la com base na sua própria experiência de campo. Com isso, ele consegue superar tanto o estranhamento dos seus “iguais” quanto dos seus “diferentes”, tornando-se mais desigual àqueles e mais igual a esses. O estadólogo consegue emancipar-se de ambas as culturas, através de seus pensamentos e sentimentos pautados por uma convicção em suas próprias descobertas. Tal experiência no campo de Estado pode ser comparada a uma conversão religiosa que confere uma nova iluminação sobre a realidade cultura, da sua, da dos observados e da cultura estatal como um todo. 54) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista passa pelos mesmos caminhos do estadólogo, sempre com a diferença de que ele possui o poder de mando-obediência necessários para operar as mudanças que deve realizar no comando do Estado. Mas, mesmo com este poder, ele padece de incompreensões nos dois campos e pode se emancipar de tais situações mediante a aceitação de sua própria invenção como uma realização cultural efetiva. Esta crença em sua própria invenção lhe confere emancipação justamente pelo controle que dispõe sobre suas próprias realizações modificativas do Estado. Como o estadólogo, o estadista é uma ponte entre dois mundos, o de sua origem e o novo, fontes de incompreensões e desapontamentos dos quais pode se desvencilhar com base no que realiza no novo campo e no que aporta para o campo de origem sobre o que fez alhures.


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PARTE 3 – A INVENÇÃO DA CULTURA

28 – “COMO SE” HOUVESSE CULTURA: SENTIDO GERAL E SENTIDO PARTICULAR58. Wagner inicia a terceira seção do capítulo I (A Presunção da Cultura) pela partícula clássica do “COMO SE”, que explicita, sempre, a idéia de “presunção” ou sentido “figurativo” levado a sério. Afirma, em primeiro lugar, que “a antropologia é o estudo do homem “como se’ houvesse cultura. Daí que a cultura, sempre, em se falando de homem, presume-se como existente concretamente. Diz que a antropologia “ganha a vida” por meio da INVENÇÃO DA CULTURA, em dois sentidos: tanto em sentido geral quanto em sentido particular. O sentido geral da invenção da cultura diz respeito ao CONCEITO; o sentido particular da invenção diz respeito à “invenção de CULTURAS PARTICULARES”. Em outras palavras, o gênero está no conceito; a espécie está no particular. Parece-me aqui que a noção de conceito que ele utiliza é aristotélica, formada pelo “gênero próximo” e pela “diferença específica”. Wagner afirma que a antropologia existe por meio da idéia de cultura e esta se tornou o seu idioma geral, 1) uma maneira de falar sobre as coisas, 2) de compreendê-las, 3) de lidar com elas. Daí que é “incidental” (no sentido de “incidir sobre”) se questionar se as culturas existem, já que elas se presumem existentes. As culturas existem justamente por duas razões: 1) em razão do fato de terem sido inventadas e 2) em razão da efetividade dessa invenção. [59]

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38-39. 55 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. A Estadologia é o estudo da sociedade “como se” houvesse Estado. Presume-se que exista o Estado e que ele exista como uma instituição de sua própria sociedade. A Estadologia pode ser entendida em sentido geral, enquanto “conceito”, e em sentido particular, enquanto um “Estado particular” ou em uma “parcela do Estado”, como uma repartição específica, um ente federativo, por exemplo. A Estadologia “existe por meio” do Estado. Estado, para ela, é: 1) seu idioma geral, 2) uma maneira de falar sobre as coisas, 3) de compreendê-las, 4) de lidar com elas. O homem e seus agregados são impensáveis sem o Estado por eles instituídos, por mais rudimentar, ineficiente e aparentemente inexistente que possa parecer ao olhar; presume-se que ele sempre esteja presente de uma forma ou de outra. O estadólogo percebe o Estado como um ente existente, concreto, expresso pelos atos dos sujeitos que se manifestam em nome dele, como se fossem ele, ali, diante dos seus olhos. 56 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. A Estadística presume, também, como existente o Estado e, neste ponto, tudo o que foi dito acima serve aqui, com a diferença de que se lá o estadólogo apenas observa o Estado, aqui, o Estadista modifica o Estado, age “como se” fosse o Estado, age “em nome do Estado”, mobiliza-se “como” Estado. O estadista já não vê o Estado “ali”, mas sim “aqui”, manifestado por ele mesmo, como a encarnação do próprio Estado se manifestando através dos seus atos. De certa forma, o estadólogo é o próprio Estado, ainda que não a sua totalidade “corporal”, mas a parcela que se expressa dentro de um determinado âmbito de competência ou de exercício do poder de mando. 59


46 29 – O MOMENTO DA INVENÇÃO: CRIATIVIDADE HUMANA E ARTE CRIATIVA60. Wagner diz que a invenção não ocorre necessariamente no curso do trabalho de campo. Ela ocorre sempre que houver um CONJUNTO DE CONVENÇÕES “alienígena” ou “estrangeiro” em contato com um sujeito. É o que denomino, trazido do direito internacional privado, de elemento de “estraneidade”. Dados dois sujeitos, sendo perceptível as diferenças de comportamento, a invenção da caracterização da cultura estranha já começa a ocorrer no sujeito que observa. O trabalho de campo, diz Wagner, é apenas um exemplo particularmente instrutivo. Isso porque ele desenvolve aquele tipo de relação a partir da SITUAÇÃO DE CAMPO e dos PROBLEMAS PESSOAIS dela derivados. Prova de que a invenção da cultura não se dá apenas em campo é que a muitos antropólogos nunca fizeram trabalho de campo e, para muitos que já o fizeram, tratou-se apenas de um caso particular da invenção da cultura, mesmo que seja altamente instrutivo. Essa invenção, sustenta Wagner, faz parte do fenômeno mais geral da CRIATIVIDADE HUMANA, com a diferença de que ela transforma a mera PRESSUPOSIÇÃO DA CULTURA numa ARTE CRIATIVA. Em outras palavras, diz o autor que a invenção da cultura pelo antropólogo decorre da própria faculdade humana de criatividade, entretanto, a diferença, no caso, é apenas a de que o antropólogo, além de pressupor a cultura como algo existente, transforma essa pressuposição em uma arte criativa. O próprio texto de Wagner, que estamos resenhando de modo comentado aqui é exemplo desta criatividade artística do antropólogo; isso pode ser visto se se aplicar a sua concepção antropológica ao próprio produto inventivo e que estamos lendo e debatendo neste momento. Ademais, o próprio ato de ler e de debater, por escrito, também se insere dentro deste ponto, o de arte criativa, pois não precisamos estar em campo ou dele decorrer para inventarmos a cultura mediante produtos elaborados a partir dela. Não basta a cultura ser pressuposta, é preciso alcançar a arte criativa para que se tenha uma invenção da cultura. [61]

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39. 57 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo para inventar a cultura de estado não precisa estar ou ter estado em campo; se tiver estado ou estiver, melhor, pois a sua instrução será bem maior. Também não basta pressupor a existência da cultura; é necessário transformar esta pressuposição em arte criativa, i.e., em invenção que desenvolva a cultura. Qualquer um pode inventar a cultura, pois esta invenção faz parte da capacidade criativa humana. De certa forma, quanto mais experienciar observar o Estado de perto, dentro dele, melhor para a criação da cultura do que foi observado; se estiver sem esta possibilidade, as limitações são postas pelas descrições já feitas e disponíveis ao interessado, i.e., mediante fonte de segunda mão. A situação de campo do estadólogo é a mais indicada para a invenção. Ademais, é a presença de um sujeito do Estado o que caracteriza a presença do olhar para o Estado; mas é preciso que haja esta relação entre o estadólogo e o agente do Estado. 58 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. Tem um ditado popular no Brasil que diz que “quem manda, melhor faz”; para saber fazer melhor é preciso já ter feito e, para que tenha chegado a isso, precisa estar a campo no Estado, fazendo o próprio Estado, por dentro, acontecer. O Estadista é quem faz o Estado acontecer por dentro. Para poder mandar, portanto, é preciso ter alguma experiência de mando, por menor que ela seja, ainda que colhida fora do Estado. O papel do estadista é mandar, pois sem o mando não há como mudar o Estado, o comportamento dos agentes capazes de executar ordens modificativas da realidade. A ordem é uma invenção do estadólogo que se apresenta como uma ordem do próprio Estado para si próprio, como se ele se autoconstruísse a partir de si mesmo, pelos seus integrantes. O conteúdo do mando se materializa na realidade do estado e, portanto, ao inventar a realidade, inventa o Estado, a própria cultura do Estado. O elemento estranho no Estado, portanto, é o estadista e não o quadro funcional permanente, pois este está sempre ali; aquele vem e vai, é passageiro, temporário; já entra com tempo certo máximo de permanência no exercício do cargo. Se o estadólogo é o estranho no Estado, por ser um observador externo, o estadista também o é, mas por ser um ordenador interno; aquele observa o que este faz acontecer com os demais “nativos”; estes observam a observação daquele; os dois grupos criam a cultura de um modo diferenciado, consoante os papéis que desempenham no Estado. 61


47 30 – O “JOGO DE FAZ-DE-CONTA”: A DUPLA INVENÇÃO DA CULTURA OBSERVADA PELO ANTROPÓLOGO62. Wagner diz que o antropólogo DENOMINA A SITUAÇÃO de campo como “cultura” por três razões básicas: 1) para poder compreendê-la em termos mais familiares, 2) para saber lidar com sua experiência e controlá-la e 3) para verificar em que isso afeta sua compreensão da cultura em geral. Dada a importância das razões de denominação da situação de campo, pelo antropólogo, como cultura, organizou um quadro sinótico parar melhor visualização. As categorias “momentos”, “finalidade” e “sentido” são “invenções” descritivas minhas, na tentativa de “familiarizar-me” melhor com as descrições de Wagner.

TRÊS RAZÕES DA DENOMINAÇÃO DA SITUAÇÃO DE CAMPO COMO CULTURA Momentos Finalidade Sentido 1

COMPREENSÃO

Para compreender mais facilmente

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CONTROLE

Para saber experienciar e controlar

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VERIFICAÇÃO

Para verificar a afetação de sua compreensão geral

O antropólogo usa o termo cultura para poder compreendê-la em termos mais familiares e particularizados Com isso, aprende a lidar com a sua própria experiência e passar a controlar a própria cultura observada Podendo, a partir disso, verificar em que a experiência e o controle afetam em sua compreensão da cultura em geral

Efetivamente, vejo que há uma subordinação do momento seguinte ao anterior, num crescente avanço de “domínio” da situação de campo e da própria amplitude da compreensão geral da cultura. O grau de generalização fica claro ao partir da compreensão da cultura particular, passar pelo “manejo” (experienciar e controlar) e chegar na compreensão da cultura em geral. A noção de momento ou de fase fica patente na descrição de Wagner; daí a pertinência do quadro posto. Mas, há uma contrapartida para tudo isso. Wagner diz que o antropólogo, quer ele saiba ou não, quer tenha a intenção ou não, o seu ato “seguro” de TORNAR O ESTRANHO FAMILIAR sempre TORNA O FAMILIAR UM POUCO ESTRANHO. Aqui ocorre um paradoxo, segundo o que observo da fala de Wagner, pois ele diz que “quanto mais familiar se torna o estanho, ainda mais estranho parecerá o familiar”. O jogo de palavras indica que o estranho é a cultura da pesquisa e familiar é a cultura do antropólogo que ele aporta para o campo; quanto mais ele torna familiar a cultura estranha, mais estranha vai se tornando a sua própria cultura de origem. Diz ele que se trata de uma ESPÉCIE DE JOGO, como um JOGO DE FINGIR, em que se finge que as ideias e convenções de outros povos são as mesmas que as do antropólogo, em um sentido genérico; faz isso PARA VER O QUE ACONTECE quando ele “joga com” seus próprios conceitos por intermédio da vida e das ações dos outros. Em outras palavras, para usar uma expressão mais corriqueira no Brasil, trata-se de um JOGO DE FAZ DE CONTA. O antropólogo finge que os nativos são iguais a ele, que sentem e agem como ele, para ver qual é o 62

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39.


48 resultado que extrai disso. Parece-me aqui uma TÉCNICA DE CAMPO inicial, de “tentativa-e-erro”, em busca da invenção de uma técnica ou método adequado, emergente do próprio campo, para lidar com os sujeitos nativos. Wagner arremata dizendo que à medida em que o antropólogo usa a noção de cultura para controlar sua experiência em campo, essas experiências, por sua vez, PASSAM A CONTROLAR A SUA PRÓPRIA NOÇÃO DE CULTURA. O antropólogo fica impregnado com a aprendizagem de sua própria experiência que a própria experiência passa a controlar e a definir a sua própria noção de cultura. Em outras palavras, a experiência de campo faz “evoluir” a definição anterior de cultura do próprio antropólogo. Daí que, diz Wagner, o antropólogo INVENTA “UMA CULTURA” para as pessoas e estas pessoas INVENTAM “A CULTURA” PARA ELE. É O JOGO DE INVENÇÕES DA CULTURA, como posso chamar esta situação em que antropólogo e nativos inventam, um para o outro, a cultura de cada qual. Efetivamente, o antropólogo descreve (inventa) o comportamento dos nativos (invenção natural deles) como sendo “uma cultura deles”, mas, são os nativos que estabelecem (inventam) o conteúdo do que o antropólogo descreve como sendo “a cultura deles”. Dada a complexidade, merece um segundo quadro de imagem. As categorias criadas, os termos e descrições são meus a partir do que entendi do que Wagner disse, sem me ater à letra de sua abordagem.

O MOMENTO DA DUPLA INVENÇÃO DA CULTURA Momentos Descrição Sentido 1

INVENÇÃO DA CULTURA PELOS NATIVOS

Os nativos apresentam um comportamento social inventado por eles próprios no seu jogo de relações entre si

2

INVENÇÃO DA CULTURA PELO ANTROPÓLOGO

O antropólogo observa o comportamento dos nativos segundo seus métodos de observação e de descrição

Os nativos criam a sua própria cultura “natural” mediante a trama de suas relações; esta criação serve de campo de observação para o antropólogo; a cultura inventada pelos nativos é o conteúdo da cultura inventada pelo antropólogo em suas descrições A invenção da cultura pelo antropólogo é uma invenção que se dá sobre a invenção da cultura feita pelos nativos, de modo que a invenção do pesquisador é uma cultura ditada por outra cultura, uma invenção sobre outra invenção.

Podemos dizer que a cultura inventada pelo antropólogo é uma sobrecultura, resultante de uma sobreinvenção, pois se trata de uma cultura inventada sobre a invenção da cultura por outros; a cultura inventada pelo antropólogo é uma cultura simbólica, descritiva, científica; a cultura inventada pelos nativos é uma cultura real, existencial, “natural”. A cultura inventada pelos nativos independe da cultura inventada pelo antropólogo, que pode até ser muito diferente de como ele a descreve; porém, a cultura descrita pelo antropólogo depende da cultura da tribo,


49 pois se apresenta como uma descrição do que acontece na tribo e que foi presenciado com a participação, em campo, do próprio antropólogo. [63] 31 – O ENTENDIMENTO ANTROPOLÓGICO DE CAMPO: A METAMORFOSE CULTURAL QUE O ANTROPÓLOGO SOFRE64. Wagner trata aqui da EXPERIÊNCIA DO PESQUISADOR como sendo 1) uma experiência que se organiza em torno da cultura e 2) esta experiência é controlada pela cultura. Decorre daí que a invenção do pesquisador vai conservar uma RELAÇÃO SIGNIFICATIVA com o próprio modo de vida e de pensamento de sua cultura de origem, que é diferente do modo de vida e de pensamento da cultura dos nativos que pesquisa. Por esta razão distintiva, a experiência do pesquisador PASSA A ENCARNAR UMA ESPÉCIE DE METAMORFOSE, por um ESFORÇO DE MUDANÇA CONTÍNUA E PROGRESSIVA das formas e possibilidades de cultura. Este “esforço de mudança” ocorre por causa da PREOCUPAÇÃO EM COMPREENDER OUTROS POVOS. Wagner diz que NÃO SE PODE USAR ANALOGIAS para revelar as idiossincrasias de outros estilos de vida sem usar tais estilos como “controles” na rearticulação do próprio estilo de vida da cultura de origem do antropólogo. Daí que o ENTENDIMENTO ANTROPOLÓGICO se torna 1) uma espécie de “INVESTIMENTO” das idéias e do estilo de vida da cultura do antropólogo, no sentido mais amplo possível, e 2) os “ganhos” deste investimento a serem obtidos têm implicações correspondentes de longo alcance. Quanto mais se investe, mais se ganha, acrescento eu, na mesma moeda. O resultado, segundo Wagner, é o seguinte: a “cultura” (de origem) que o antropólogo vivencia é ameaçada, criticada, contraexemplificada pelas “culturas” (observadas) que o antropólogo inventa; em contrapartida, as “culturas” (observadas) que o antropólogo inventa sofre os mesmos resultados pela incidência da “cultura” originária dele. O resultado, ao que parece, é uma deformação cultural inventada pelo antropólogo; daí o “conselho” de Wagner para não se usar analogias interculturais antropólogonativos. [65] 63

59 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo, como o antropólogo, passa pelos três estágios do uso denominativo da situação de campo como cultura do Estado. Primeiro, ele usa o termo para melhor compreender em particular o que observa no Estado; depois, usa-o para experienciar e controlar as relações que estabelece no campo do Estado; por fim, usa o termo para ver como as fases anteriores afetam a sua compreensão da cultura do Estado em geral. O estadólogo se coloca no lugar nos agentes do Estado para ver como ele apreende o que observa, fazendo de conta que é um agente do Estado, porém, sem sê-lo; é um faz de conta, uma técnica usada para facilitar a compreensão do campo por parte do estadólogo. Por outro lado, o Estado inventa a cultura como que e de modo independente do olhar do estadólogo; porém, a cultura inventada pelo estadólogo é dependente da cultura inventada pelo Estado. Digamos que a cultura inventada pelo estadólogo é uma cultura de segunda ordem e, a do Estado, uma cultura de primeira ordem. 60 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. Com o estadista ocorre quase do mesmo modo que para o estadólogo, pois ele passa pelos mesmos três estágios (compreensão, controle e verificação) para poder interagir de modo eficiente e eficaz em seu ambiente de exercício de poder de mando, fatos estes que modificam a sua própria compreensão do Estado em geral. O estadista também entre no jogo do faz-de-conta, pois se coloca no lugar nos “nativos” locais do Estado para compreender e melhor lidar com eles. O estadista inventa a noção de cultura do lugar do Estado que dirige, mas esta invenção decorre do que ele observa que é feito no próprio local, pelos outros e por ele. Em outras palavras, os funcionários do quadro efetivo inventam, com ele, “a cultura” do Estado (real); e o estadista, por sua vez, inventa “uma cultura” do Estado (simbólica) que descreve o local. 64 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39-40. 65 61 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo em campo para estudar o Estado aporta a sua própria cultura consigo e este aporte interfere em suas observações da cultura posta. Ele não deve usar analogias com experiências culturais anteriores para estudar a nova cultura estatal. Deve estudar a nova cultura por ela mesma, aprendendo as idiossincrasias dos modos e estilos de vida do local, e usar o que dela advém para a sua própria explicação. Deste modo, o estadólogo sofre uma espécie de metamorfose cultural, pois passa a ver a nova cultura por ela mesma. Se usar analogias, vai fazer a sua cultura anterior se sobrepor à cultura observada,


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32 – ESTUDO ANTROPOLÓGICO: A INCONSCIÊNCIA DA INTENÇÃO SIMBÓLICA - ANALOGIA COM O PINTOR E A PINTURA66. Wagner, a partir deste parágrafo da seção, passa a estabelecer aproximações comparativas entre a antropologia e as belas artes, entre o trabalho do antropólogo e o trabalho do artista. Trata-se de um contato que o autor estabelece entre a ciência e a arte, como um recurso didático para mostrar as equivalências entre a atuação do cientista e a atuação do artista. Neste ponto, a analogia é enfatizada na relação do pintor com a sua pintura. O termo-chave por ele usado é a representação. Diz Wagner que o estudo antropológico é a REPRESENTAÇÃO DE UMA OUTRA CULTURA. Este estudo ou representação não é uma mera “descrição” do objeto, do mesmo modo que a pintura não “descreve” meramente aquilo que figura. Tanto no caso do estudo antropológico quanto do estudo pictural há uma SIMBOLIZAÇÃO que está conectada com a INTENÇÃO INICIAL do antropólogo ou do artista de REPRESENTAR O SEU OBJETO. Sustenta que O CRIADOR não pode estar CONSCIENTE dessa sua INTENÇÃO SIMBÓLICA ao perfazer os detalhes de sua invenção. Diz que se estiver consciente, isso 1) anularia o EFEITO NORTEADOR DO SEU “CONTROLE” e 2) tornaria sua INVENÇÃO AUTOCONSCIENTE. Um estudo antropológico ou uma obra de arte autoconsciente, diz Wagner, com todas as letras, é MANIPULADO POR SEU AUTOR até o ponto em que 1) ele diz exatamente o que queria dizer e 2) exclui aquele tipo de EXTENSÃO ou AUTOTRANSFORMAÇÃO que se chama de “aprendizado” ou “expressão”. Em outras palavras, o estudo antropológico deve ser inconsciente de sua intenção observadora, no sentido de não centrar a atenção no ato de observação (vendo-se observar), mas no conteúdo da observação (objeto observado). O observador deve esquecer-se de si no objeto que observa, mergulhar nele sem se ver. Como o pintor que não deve ficar pensando nos seus gestos de observação e pincelagem, mas sim concentrar-se no objeto observado e no objeto recriado na tela. Ao centrar sua atenção em si, o observador “observa o que pensa” e “não

deturpando as suas observações e conclusões. Neste jogo de contrastes culturais, quanto mais ele observa a nova cultura pela sua cultura de origem, mais a cultura nova se torna ameaçada, criticada; e quanto mais observa a sua cultura de origem pela cultura nova, mais a originária sofrerá desta instabilidade. O segredo é não estabelecer comparações culturais e deixar que a cultura nova se explique por si mesma, com os seus próprios referenciais. Porém, a cultura inventada pelo estadólogo irá, sempre, de alguma forma, influir na invenção de sua cultura de origem e vice-versa. O entendimento estadológico muda com a vivência na cultura de campo que observa; ele já não voltará o mesmo para a sua cultura de origem.62 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista aporta uma cultura inventada em suas experiências anteriores, dentro e fora do Estado. À medida que mergulha na cultura nova do Estado, vai perdendo os referenciais de sua cultura anterior, de modo que sofre uma espécie de metamorfose cultural, pela impregnação da nova cultura, do modo e estilo de vida local. Se estabelecer analogias de sua cultura anterior com a atual e quiser espelhar a nova pela antiga, poderá inviabilizar o seu próprio trabalho criativo de uma nova cultura a partir do uso do poder que dispõe para estabelecer mudanças no local; vai descaracterizar o local e destruir a cultura anterior. O melhor a fazer é adaptar as mudanças à cultura local de modo a fazê-las funcionais e eficientes. À medida que muda a cultura local, esta mudança vai influir na sua própria cultura de origem. As mudanças implementadas levam a “implicações de longo alcance” na própria noção de cultura estatal que o estadista aportava ao chegar em seu novo posto de comando. O entendimento estadístico muda com a nova experiência de campo; ele se transforma em um outro estadista, diferente daquele anterior à experiência em que mergulha. 66 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 40.


51 pensa o que observa”; o resultado disso é uma adulteração consciente do objeto que descreve. É claro que a técnica de arte que Wagner tem em mente aqui é a antiga, do pintor-retratista, e não a se pode considerar típica da arte moderna (ou pósmoderna); daí falar em “aprendizado” junto com “expressão” – o expressionismo. Isso ficará mais claro nos parágrafos seguintes. O tipo de técnica que põe na analogia é a do antropólogo-retratista, daquele que descreve “exatamente” o que vê, sem se preocupar com o resultado do que vai aparecer em sua observação. Penso que é uma técnica de objetivação que dispensa o subjetivo do pesquisador, pois exige dele uma intenção inconsciente. Mas, faz sentido, pois, se o antropólogo em campo não se esquecer que é um pesquisador, terá mais dificuldades para se entrosar no meio posto no campo, dificultando ou impossibilitando o seu trabalho de observador. Ele precisa misturar-se no campo, como o pintor se mistura na sua própria pintura, esquecendo-se de si como pintor. [67] 33 – A INVENÇÃO É “CONTROLADA”: IMAGEM DA REALIDADE E IMAGINAÇÃO DO CIENTISTA68. Wagner segue na mesma linha do parágrafo anterior, tecendo um desenvolvimento mais explícito de sua idéia comparativa entre o cientista e o artista. Diz que o entendimento humano tem necessidade do que lhe é externo, objetivo, seja de uma técnica, como na “arte não objetiva”, seja de “objetos de pesquisa palpáveis”. Aqui tem uma passagem que pode gerar dubiedade na compreensão do leitor. Eu entendi assim. O cientista ou o artista, ao forçar a sua imaginação a seguir o contorno do objeto, as conformações detalhadas de um objeto externo e imprevisível, a invenção daí decorrente adquire uma CONVICÇÃO que de outra forma não se imporia a ele. O termo “analogia” usado por Wagner, naquele contexto escrito, eu entendi, para uma compreensão dentro da cultura brasileira, como um acompanhar integralmente o objeto com a reprodução simultânea dele na mente; em suma, a analogia aqui está entre o trabalho da mente que representa o objeto e a atenção que segue, com os órgãos sensoriais atentos, o objeto externo. A representação é análoga ao objeto que representa; a imaginação reconstrói o objeto exatamente como ele é percebido, sem deturpá-lo. 67

63 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo no seu campo de pesquisa deve se esquecer de si como observador e mergulhar em suas observações, de modo a conviver com o ambiente em que se encontra, evitando, assim, a condução dos resultados de sua pesquisa. Esta inconsciência de sua intenção pesquisador é uma técnica par obter melhores resultados e centrar a atenção no conteúdo da observação. Se não se esquecer de si, pode adulterar os resultados de sua pesquisa e dizer mais o que quer do que o que emerge de sua própria observação. Esta “isenção” do estadólogo é importante, pois a sua “intenção simbólica” ou de invenção da cultura estadológica tem que ser fiel ao que ocorre ali e só buscar elementos de explicação no próprio meio observado. Ele deve retratar o estado como ele é e não como o estadólogo gostaria que fosse. 64 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. A postura do estadista em campo é quase a mesma que a do estadólogo, com a diferença de que, além de observar e descrever o que vê, deve mudar o campo e voltar a descrever o que vê como mudança por ele implementada. Nesta segunda fase, em que opera a mudança na postura do campo, ele deve estar consciente, sim, do que pretende implementar, de sua intenção modificativa; não pode estar inconsciente do que quer fazer e do controle do que realmente fez. O trânsito entre a observação ausente e a observação engajada é crucial para a atividade do estadista, sem o que ficará como mero expectador de si no meio, sem conduzir o processo de modificação do Estado segundo o projeto de mudança por ele arquitetado. Podemos comparar aqui com a atitude do pintor moderno, que não retrata, mas que transforma a realidade na pintura que idealiza; só que esta pintura é a própria realidade, o próprio “modelo” configurado a seu modo, segundo o seu projeto de realidade futura. 68 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 40.


52 Wagner continua sua explanação desta idéia de objetividade da representação antropológica dizendo que a INVENÇÃO É “CONTROLADA” 1) pela IMAGEM DE REALIDADE e pela FALTA DE CONSCIÊNCIA DO CRIADOR sobre o FATO DE ESTAR CRIANDO. Acho que ele está falando de uma criação inconsciente do antropólogo, enquanto está em processo criativo, em processo interativo. Acrescenta que a IMAGINAÇÃO DO ANTROPÓLOGO e, também, muitas vezes, todo o AUTOGERENCIAMENTO dela decorrente, é COMPELIDA a enfrentar a nova situação. Wagner retoma aqui a questão do CHOQUE CULTURAL e afirma que tal qual ocorre no choque, a imaginação é frustrada em sua situação inicial e, por isso mesmo, levada a inventar uma solução; sem a frustração não ocorre a solução. [69] 34 – A METODOLOGIA DA INVENÇÃO DA “CULTURA” EM CAMPO: REFINAMENTO DA INVENÇÃO E A METÁFORA DO SALTO COM VARA70. Chegamos no ponto alto da teoria de Wagner e ele consegue sintetizar, com grande clareza, o que entende por “invenção” da cultura feita pelo antropólogo. Diz ele o que o pesquisador de campo inventa é O SEU PRÓPRIO ENTENDIMENTO. Descreve, de modo tríplice, o “entendimento inventado”. Descrita a NATUREZA DA “INVENÇÃO DA CULTURA” como “INVENÇÃO DO PRÓPRIO ENTENDIMENTO SOBRE A CULTURA OBSERVADA”, Wagner passa a descrever um MÉTODO ANTROPOLÓGICO de tratamento da invenção

As analogias que o antropólogo cria são 1) extensões de suas próprias noções e 2) extensões das noções de sua cultura, que 3) são transformadas por suas experiências da situação de campo. Diz que o antropólogo utiliza as analogias transformadas pela experiência de campo como uma espécie de “ALAVANCA”, tal qual um atleta de salto com vara faz para arremessar-se para o alto, com a finalidade de CATAPULTAR SUA COMPREENSÃO para além dos limites impostos por pontos de vista prévios.

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65 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo deve abandonar a sua imaginação criativa e partir para descrever o objeto que tem diante de si, envolvendo-se nele e procurando as soluções para os problemas a partir do próprio envolvimento com a realidade do campo de observação; não deve “importar” soluções. A mente do estadólogo deve estar no objeto, acompanhando todos os detalhes do objeto, atentamente, para criar representações exatas do objeto observado. Com isso, o estadólogo controla a sua invenção da cultura estatal que observa mediante a imagem da realidade e a inconsciência de sua invenção, deixando como que “o objeto falar por si mesmo” através do estadólogo, ausente o máximo possível de si mesmo. A sua imaginação deve ser a imagem do objeto e não uma imaginação que substitua o objeto real. Com isso, o estadólogo buscará soluções para os problemas que observa no próprio campo. 66 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista tem um comportamento parecido em sua fase de tomada de conhecimento do campo, porém, na fase de tomada de decisão que implique em mudança do próprio campo, por dever de ofício, sua postura deve mudar. A sua imaginação criativa tem lugar para conformar a realidade que precisa ser mudada; nisso difere do estadólogo, pois não pode o estadista ter uma atitude passiva; tem que dar as ordens para a ação se realizar. A solução para os problemas do campo devem ser buscadas no próprio campo, porém, pode importar soluções a partir de outras experiências bem sucedidas; ele não pode se isolar no campo e esquecer-se do mundo “lá fora”, pois o Estado é um complexo de pessoas e equipamentos em dinamismo diuturno e as políticas públicas precisam se sincronizar com planos de hierarquias mais amplas. O choque cultura do estadista só ocorre de início; é a superação do choque cultural dele que leva a provocar o choque cultural da tribo, por sua própria ação interventiva; os nativos do Estado é que precisam se adaptar e implementar as mudanças comandadas. 70 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 40-41.


53 Nesta passagem, lembro eu, de ARQUIMEDES: “dá-me uma alavanca e erguerei o mundo”. Wagner sustenta que se o antropólogo pretende que suas analogias não sejam de modo algum “analogias”, mas uma descrição objetiva da cultura, então ele deve concentrar esforços para refiná-las de modo a aproximá-las cada vez mais de sua experiência. Quando o antropólogo de campo 1) encontra discrepância entre a) sua própria invenção e b) a “cultura” nativa tal como vem a conhecê-la, então, ele 2) deve alterar e retrabalhar sua invenção até que suas analogias pareçam a) mais apropriadas ou b) mais “acuradas”. Wagner diz que se esse processo é prolongado, como ocorre no decurso do trabalho de campo, o uso da idéia de “cultura” pelo antropólogo acaba por adquirir uma FORMA ARTICULADA E SOFISTICADA. Gradualmente, diz ele, o objeto de estudo, o ELEMENTO OBJETIFICADO que serve como “controle” para sua invenção, é INVENTADO POR MEIO DE ANALOGIAS que 1) incorporam articulações cada vez mais abrangentes, de modo que 2) um CONJUNTO DE IMPRESSÕES é recriado como um CONJUNTO DE SIGNIFICADOS. O quadro abaixo descreve o método acima posto em forma de seis princípios ou passos metodológicos. A enumeração, intitulação e categorias (princípios, formulações descritivas e de sentido) são minhas, a partir do que entendi da fala de Wagner. Dei a denominação de MÉTODO ANALÓGICO pelo fato de o autor referir que a invenção da cultura se dá por meio da invenção, refinamento e significação de analogias.

OS SEIS PRINCÍPIOS DO MÉTODO ANALÓGICO DE ROY WAGNER Princípios Descrição 1

OBJETIFICAÇÃO (OBJETIVAR)

2

MODELAGEM (MODELAR)

3

ALAVANCAGEM (CATAPULTAR)

4

5

APROXIMAÇÃO (APROXIMAR)

REVISÃO (REVISAR)

Sentido

Diante de uma nova experiência de campo, o antropólogo cria analogias provisórias na tentativa de atribuir sentido particular ao que observa à volta de si

O antropólogo inventa o seu entendimento sobre a cultura observada através de analogias por ele estabelecidas

As analogias criadas pelo antropólogo são extensões de suas próprias noções e das noções de sua cultura, que são transformadas por suas experiências da situação de campo. o antropólogo utiliza as analogias transformadas pela experiência de campo como uma espécie de “ALAVANCA”, para CATAPULTAR SUA COMPREENSÃO para além dos limites impostos por pontos de vista prévios. se o antropólogo pretende que suas analogias não sejam de modo algum “analogias” em sentido figurado, mas uma descrição objetiva da cultura, então ele deve concentrar esforços para refiná-las de modo a aproximá-las cada vez mais de sua experiência. Quando o antropólogo de campo encontra discrepância entre sua própria invenção e a “cultura” nativa tal como vem a conhecê-la, então, ele deve alterar e retrabalhar sua

as analogias criadas a partir do uso das extensões de noções anteriores são transformadas com base em suas novas experiências de campo usa o resultado anterior para alavancar a sua compreensão para além dos limites impostos pelas sua pré-compreensão

concentra esforços para aproximar e refinar a sua nova compreensão com o objeto concreto da experiência

Em caso de discrepância entre a sua nova compreensão e o objeto compreendido, deve avaliá-la e melhorá-la até alcançar perfeita


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6

7

ARTICULAÇÃO (ARTICULAR)

GENERALIZAÇÃO (GENERALIZAR)

invenção até que suas analogias pareçam mais apropriadas ou mais “acuradas”. se esse processo é prolongado, como ocorre no decurso do trabalho de campo, o uso da idéia de “cultura” pelo antropólogo acaba por adquirir uma FORMA ARTICULADA E SOFISTICADA. Gradualmente, o objeto de estudo, o ELEMENTO OBJETIFICADO que serve como “controle” para sua invenção, é INVENTADO POR MEIO DE ANALOGIAS que incorporam articulações cada vez mais abrangentes, de modo que um CONJUNTO DE IMPRESSÕES é recriado como um CONJUNTO DE SIGNIFICADOS.

adequação A idéia de cultura usada deve evoluir de modo a adquirir, paulatinamente, uma forma articulada e sofisticada no decurso da observação O objeto é inventado por meio de analogias que incorporam articulações abrangentes capazes de transformar o conjunto de impressões do antropólogo em um conjunto de novos significados

Estes sete princípios extraídos da explanação de Wagner, como disse acima, constituem a minha contribuição interpretativa, pois o autor não usa o termo princípio e nem coloca uma ordem nos modos de sua colocação. Achei que os termos OBJETIFICAÇÃO, MODELAGEM, ALAVANCAGEM, APROXIMAÇÃO, REVISÃO, ARTICULAÇÃO e GENERALIZAÇÃO são adequados para darem uma idéiasintética do sentido exposto, a par da descrição de Wagner. Mais abaixo vou explicar como Wagner opera a distinção de duas classes destes sete princípios. Por ora, vou apenas distingui-los. Os princípios do método analógico wagneriano pode ser distinto em Princípios Secundários e em Princípios Principais. Os secundários são três: objetificação (1), aproximação (4) e revisão (5). Os Princípios Principais são: modelagem (2), alavancagem (3), articulação (6) e generalização (7). Nada obsta que possamos chamar tais distinções, respectivamente, em princípios gerais e princípios especiais. É de se observar que o quadro de princípios começa pelo secundário e este intercala dois grupos de principais, indicando que os princípios secundários ou gerais constituem como que “ duas pontes” entre 1) o que há de “anterior ao método” e a “objetificação” que principia o novo método, bem como, 2) entre a “alavancagem” e a “articulação”. Nesta segunda ponte, os princípios da aproximação e revisão é que levam a alavancagem à articulação e à generalização; portanto, não podem ser desprezados nunca. Na primeira ponte, é a objetificação que se coloca entre o que vem antes do método e a modelagem ou modelização operada pelo antropólogo. [71]

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67 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O Estadólogo, primeiro, diante do seu objeto estranha de observação, no campo em que está inserido, inventa metáforas à base do caldo de cultura que já aporta de seu meio de origem, que é agregado às suas idéias sobre o que vê. Segundo, elabora a sua criação com base em suas novas experiências. Terceiro, alavanca a sua elaboração de modo a alcançar novas e mais sofisticadas experiências. Quarto, aproxima a sua alavancagem para testar a congruência com a realidade observada. Quinto, revisa a sua aproximação para ter certeza de que “bate” com a realidade posta; sexto, articula a sua revisão com articulações cada vez mais amplas e sofisticadas. Por fim, em sétimo lugar, generaliza a sua articulação de modo a tornar as suas impressões pessoais em sistemas de significados com amplas generalizações. É deste modo, seguindo estes passos, que o estadólogo “inventa” a cultura do Estado que observa e está apto a difundi-la como sendo “a cultura” nativa estatal que observou e descreveu cientificamente. 68 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista procede do mesmo modo que o estadólogo, com a diferença de que ele não observa os atos dos nativos do Estado em sua criatividade autônoma, mas sim observa o seu ato e os atos dos nativos implementando as suas ordens, de modo a poder chegar a conclusões finais similares, como sendo, tudo aquilo, atividade da “cultura” nativa do Estado naquele local em que exerce a sua competência ou poder de mando.


55 35 – OS EFEITOS DA INVENÇÃO DA CULTURA: MODELO, CONTROLE, REPRESENTADOR E EDUCADOR - POR QUE VALE A PENA ESTUDAR OUTROS POVOS 72. Wagner sustenta que o EFEITO da invenção é tão profundo quanto inconsciente. Explica que 1) cria-se o objeto no ato de tentar representálo mais objetivamente e, ao mesmo tempo, 2) cria-se – por meio das EXTENSÕES ANALÓGICAS - as idéias e formas por meio das quais o objeto é inventado. Temos aqui, portanto, duas criações simultâneas: a CRIAÇÃO DO OBJETO e a CRIAÇÃO DAS IDÉIAS E FORMAS. O objeto é criado por meio da OBJETIFICAÇÃO e as idéias e formas são criadas por meio da EXTENSÃO ANALÓGICA. Wagner diz que o antropólogo sempre trabalha com controles, assim como o artista. O controle, de ambos, é o seu MODELO. Há uma espécie de MODELAGEM construída como instrumento de trabalho, que ocorre logo depois da objetificação. Feito o objeto, agrega-se experiências nele e se cria um modelo que serve de controle para as experiências posteriores. O modelo do artista é o MOLDE UTILIZADO para sua criação, que pode ser uma pessoa que “pousa” para que ele “a pinte”; para o antropólogo, o modelo é a “o ambiente” do campo estudado (a cultura estudada), que surge por força de uma REPRESENTAÇÃO que ele cria do que vê diante dos seus olhos (objetificação). Não se trata de um “ideal”, mas sim de uma “forma viva” que servirá de “guia” para os trabalhos que se seguirão. Segue-se, portanto, à “objetificação”, a “modelagem” e, como vimos acima, só depois, a “alavancagem”. Wagner sustenta que o modelo utilizado (do verbo “forçar” – como em “forçar a barra”) força o RERPESENTADOR (aquele que cria a representação em sua mente) a correspondê-lo às IMPRESSÕES que ele tem sobre o objeto real; o modelo está submetido ao dinamismo da experiência e se conforma ao que emerge desta experiência; o modelo não conforma a realidade; é ele que é conformado pela realidade experienciada pelo antropólogo ou artista. As impressões do antropólogo se alteram à medida que ELE VÊ MAIS E MAIS, ABSORTO EM SUA TAREFA. O autor diz que esta ABSORÇÃO NA TAREFA é o que permite o alargamento da visão (ver mais e mais) e, com isso, o aperfeiçoamento do seu modelo de representação cultural, que é paulatinamente construído à medida que o antropólogo evolui em suas investigações. Um “bom artista” ou um “bom cientista” – diz Wagner – TORNA-SE UMA PARTE SEPARADA DE SUA CULTURA; isto porque 1) ele se desenvolve mediante MODOS INUSITADOS e 2) leva adiante suas idéias mediante transformações que outros talvez jamais experimentem. A exigência de modos inusitados e de transformações experimentadas, caracterizadores da presença da CULTURA APARTADA que tipifica o “bom” pesquisador, merece alguma reflexão mais adiante, principalmente pelo fato de que ele coloca acento aqui em uma distinção que é, no mínimo, problemática e exclusiva. Antes, para dar maior visibilidade à idéia, um quadro explicita-a.

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 41.


56 ELEMENTOS CARACTERIZADORES DO “BOM” PESQUISADOR DE CAMPO Característica Descrição Sentido 1 MODOS INUSITADOS 2 TRANSFORMAÇÃO EXPERIMENTADA

3 CULTURA APARTADA

Ele se mediante inusitados

desenvolve modos

Leva adiante suas idéias mediante transformações que outros talvez jamais experimentem Torna-se uma parte separada de sua cultura

O pesquisador de campo apresenta modos singulares e imprevisíveis de desempenhar o seu trabalho, segundo as condições da realidade do próprio campo O pesquisador de campo se transforma e transforma a sua própria compreensão da cultura à medida que experiencia o campo de estudo. Estes dois elementos, somados, atribuem ao pesquisador de campo como que uma cultura apartada de sua cultura de origem e de sua cultura de estudo; tona-se “sui generis”.

Este “bom” pesquisador, como o “bom” artista, na visão wagneriana, assim caracterizados, é o que torna os artistas comparáveis a “EDUCADORES”, pois eles experimentam transformações em si mesmos e transformam o que veem em cultura, indo da cultura singular à cultura geral. Diz ele que “temos algo – um desenvolvimento de nossos pensamentos – a aprender com eles”. Aqui podemos dizer, com clareza, que o desenvolvimento do antropólogo é um desenvolvimento no seu MODO DE PENSAR; aquele modo inusitado é um modo de pensamento que é APRENDIDO COM OS NATIVOS. Por fim, Wagner afirma que é justamente pelo fato de que o antropólogo aprende algo novo com os nativos é que VALE A PENA ESTUDAR OUTROS POVOS, pois o resultado, no final das contas, de tudo isso, é que “toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura”. Há uma espécie de reenvio cultural neste ponto do pensamento wagneriano, pois a cultura nova remete à cultura velha ou originária dele; experimentar outra cultura é experimentar a própria cultura – na outra. Parece, mas não tenho certeza, que Wagner está cogitando, aqui, de uma renovação cultural que ocorre com este trânsito intercultural operado pelo antropólogo de campo. A “extensão analógica”, parece-me, é o “ponto de guinada” do método que ele criou, de onde resulta o modelo de controle de todas as atividades de campo e que constitui o cerne da atividade do antropólogo de campo. A tradição chega somente no primeiro passo metodológico ou primeiro princípio; depois, tudo fica por conta do antropólogo e sua “invenção” cultural. Esta é a “grande sacada de Wagner”, vamos dizer assim – para usar um termo de gíria brasileira generalizada. [73] 73

69 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo de campo chega em campo com sua bagagem cultural e parte dela para construir as suas experiências. Ele usa o que sabe e o que sua cultura anterior lhe legou como instrumentos analógicos para estudar a nova cultura, como preparação para o segundo e decisivo passo, que é a de inventar extensões analógicas capazes de lhe fornecer um MODELO DE CONTROLE de campo, com base no qual vai trabalhar todas as suas observações futuras no campo.É uma espécie de “PROTÓTIPO” que vai sendo paulatinamente aperfeiçoado com os conhecimentos emergentes de suas novas experiências de campo, até chegar ao ponto em que o modelo construído se torna apto a ser articulado amplamente com outros modelos culturais de modo a possibilitar conclusões generalizantes ou de sentido geral, tanto sobre a cultura estatal local quanto de todas as culturas estatais, incluindo a própria de origem do estadólogo. Deste modo, por aprender com a nova cultura é que ele pode ser comparado a um educador, vez que, ao estudar uma nova cultura, acaba por revelar e transformar a sua própria cultura nativa. Daí que o estadólogo se torna, ele próprio, uma espécie de cultura apartada, “sui generis”. 70 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O processo do estadista é o mesmo, com a diferença essencial – sempre por mim enfatizada – de que o papel dele é a de mudar a cultura estatal local e não apenas observar e descrever o seu espaço de mando. Ele muda o Estado


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36 - OBJETO DE ESTUDO COMO “CONTROLE” NA CRIAÇÃO: APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO – ARTICULAÇÃO E SIGNIFICAÇÃO74. Wagner continua a explicação de seu método, mas, não como método, e sim como algo decorrente da própria atividade experimentada pelo antropólogo de campo, retomando a comparação do cientista com o artista, da ciência com a arte. Diz que os OBJETOS DE ESTUDO a que se dedica o observador, tanto nas artes quanto nas ciências, podem ser vistos como “CONTROLES” NA CRIAÇÃO da própria cultura do observador; não da dos nativos, mas da própria dele, de sua origem. O “APRENDIZADO” (princípio da modelagem) do antropólogo e o “DESENVOLVIMENTO” (princípio da alavancagem) operado por ele sempre levam adiante a “ARTICULAÇÃO” (princípio da articulação) e o “MOVIMENTO SIGNIFICATIVO DAS IDÉIAS” (princípio da generalização) que orientam o próprio antropólogo75. A pergunta que não quer calar é: por que Wagner enfatizou aqui os princípios 2 (modelagem), 3 (alavancagem) e 6 (articulação), 7 (generalização), deixando de lado os princípios 1 (objetificação), 4 (aproximação) e 5 (revisão)? Penso que não é porque eles sejam secundários, mas sim pelo fato de que os deixados de fora são “secundários” e não “principais”. Vejo aqui nesta distinção de dois grupos de categorias algo que emerge da própria abordagem wagneriana. Os princípios principais mostram o “plus” do método em relação aos demais métodos, vez que os princípios secundários são comuns a todos os métodos de controle de criação: todos objetificam, aproximam e revisam, porém, só aquele é que modeliza, catapulta, articula e generaliza. Wagner parte aqui para exemplos analógicos com a ARTE DA PINTURA, que vai ocupar o centro descritivo dos próximos parágrafos até o final do capítulo primeiro. Na linha já anunciada anteriormente, o autor tenta comparar “a arte do cientista em campo” com “a arte do artista em campo”, no ato de “invenção” da cultura, interagindo com o seu objeto de estudo e de criação. Diz que vai usar a pintura como “exemplo” tanto quanto como “controle” de “uma discussão que necessariamente tendeu à abstração”. Esta afirmação merece uma interpretação simples: é para dizer que tanto o “exemplo” (analogia) quanto o “controle” (objeto) tendem a se tornar abstratos e que esta TENDÊNCIA À ABSTRAÇÃO é “necessária”, i.e., é “compulsória”, que não tem como se evitar e que nem se deve evitar, sob pena de não se construir a ciência. Efetivamente, com a generalização simbólica, abstrai-se o contexto de origem e cria-se formas que podem ser usadas em contextos muito distintos, possibilitando, assim, o uso do no seu pequeno espaço de poder e, ao mesmo tempo, é mudado, no desenvolvimento de seus próprios pensamentos sobre o Estado. O estadista se transforma à medida que transforma o Estado. Esta transformação bilateral, que o distingue do estadólogo, é o centro nevrálgico de seu próprio papel funcional em toda e qualquer atividade de cultura estatal. Mesmo que o estadista não mude nada no local onde aporta com poder de mando, a sua simples presença, substitutiva do dirigente anterior ou instituída em primeiro dirigente de órgão novo, já constitui uma mudança na cultura local, pois mudou a configuração de um dos elementos principais, a do “timoneiro” – por assim dizer. 74 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 41/42. 75 As intercalações que colocamos com o título do que chamamos de “princípios metodológicos wagnerianos, entre parênteses, repito, emergem da minha própria compreensão do texto; a leitura desatenta e desarticulada do escrito de Wagner não possibilita “ver” a presença de tais distinções teóricas.


58 MODELO TEÓRICO em situações muito diferenciadas. De certo modo, o aporte cultural inicial do antropólogo, quando chega em campo, composto por suas idéias e as de sua cultura de origem, demarcam o início do próprio método por ele descrito, e que depois sofre os “beneficiamentos” elaborativos agregados pelas novas experiências de observação e interação com a cultura nova. O exemplo que Wagner vai usar é baseado na obra do pintor holandês PIETER BRUEGEL, O VELHO. Segundo ele, trata-se da obra de um pintor que 1) “teve tanto interesse pelo homem em geral e por seus estilos de vida” que 2) pode ser, ele próprio, chamado de antropólogo. [76] 37 – O ESTILO DE FIGURAÇÃO DO REALISMO FLAMENGO: A PINTURA DO SÉCULO XV77. Wagner vai falar aqui sobre o pintor quinhentista flamengo BRUEGEL. Diz que, como ocorre em todos os exemplos históricos, o contexto da vida e da obra do pintor é COMPLEXO, dotado de muitas influências entrelaçadas. Em função desta complexidade, para qualquer discussão, é necessário operar uma SIMPLIFICAÇÃO. Em outras palavras, focar alguns aspectos e ignorar os demais, sem o que a discussão se torna extensa demais ou interminável, acrescento eu. É com base nesta SIMPLIFICAÇÃO DISCURSIVA DA COMPLEXIDADE que Wagner vai discorrer sobre a tradição da pintura na qual Bruegel estava inserido no século XV da nossa Era. Wagner diz que, em termos artísticos, é fundamental considerar a tradição de pintura que se desenvolveu nos Países Baixos e no Ducado de Borgonha no início do século XV em diante. Esta tradição contrastava com a arte renascentista da Itália e, por vezes, nitria-se dela. Os primeiros mestres desta tradição forma JAN VAN EYCK, ROGIER VAN DER WEIDEN e HANS MEMLINC.

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71 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo aprende a criar modelos e a usar estes modelos para catapultar novas experiências até o ponto de estabelecer articulações tão amplas que permitam generalizações significativas sobre o Estado, a partir da sua experiência de observação no campo do Estado. Estas “etapas” são permeadas por duas pontes. A primeira ponte é estabelecida pela “objetificação”, que põe em contato as experiências anteriores do estadólogo com a “modelagem” que ele inventa como instrumento de trabalho para suas experiências de campo. A segunda ponte ocorre por meio da “aproximação” e “revisão”, que constituem instâncias de “controle” do modelo para poder estabelecer as articulações ampliadas e generalizar o seu modelo explicativo para toda a cultura do Estado como um todo. O estadólogo pode se valer de “exemplos” e de “controles” em sua experiência de campo; os exemplos são aproximações com outras experiências vivenciadas por outros observadores; os “controles” são os modelos que ele constrói para observar o campo de estudo e melhor descrever o seu mecanismo de funcionamento. Pode-se encontrar um “estadólogo” no campo das artes plásticas, por exemplo, na obra de um pintor, desenhista ou chargista, quando ela retrata agentes do Estado ou o Estado em geral. 72 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, como o estadólogo, também cria seus “modelos de ação” para implementar mudanças no campo do Estado. Para tanto, os seus métodos de mando (uso do poder) seguem o mesmo curso, com uma objetificação que articula o seu método com os métodos que aprendeu anteriormente ou que já existiam no órgão que passa a dirigir, e que servem de “metáforas analógicas” para a construção do seu próprio modelo de exercício do poder. De posse do seu próprio modelo de mando, o estadista catapulta este modelo para implementar outras mudanças no seu campo; porém, sempre precisa estar atento para fazer “aproximações” e “revisões” no seu modelo, segundo os resultados da experiência de implementação. Com isso alcança um aprimoramento do método de ação capaz de levar a uma articulação dele com outros métodos e ações mais amplos e externos, conseguindo, a partir daí, alcançar um grau de generalização teórica que lhe permita “ver” o Estado como um todo e “ver” as mudanças por ele operada no contexto mais amplo da totalidade do Estado. Não pode ignorar exemplos exteriores, inclusive advindos do campo da arte, como as da pintura, do desenho, da charge, que retratam outros estadistas atuando na direção do Estado, pois, como se disse acima, o que muda no estadólogo é justamente a sua capacidade de desenvolver os seus próprios pensamentos para melhor agir no Estado. 77 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 42.


59 Estes pintores desenvolveram um ESTILO DE FIGURAÇÃO que era baseado em três características: 1) na PERSPECTIVA, 2) no REALISMO GRÁFICO e 3) na INTENSIDADE DO DETALHE. Diz Wagner que A FORÇA DESTA ARTE residia em seis aspectos: 1) na MATERIZALIZAÇÃO DE CENAS, 2) em TEMAS RELIGIOSOS IDEALZADOS, 3) sob FORMAS AS MAIS CONVINCENTES possíveis, em que 4) CADA QUADRO É UM ESTUDO DA COMPLEXIDADE; devido 5) ao EXCEPCIONAL CONTROLE DO ARTISTA SOBRE A “APARÊNCIA” E A ‘TEXTURA de objetos familiares, 6) os TEMAS GANHAVAM “VIDA” E PRESENCIALIDADE. Mostram estes aspectos quadros como A Crucificação, a Virgem e o Menino, dentre outros, em que aparecem 1) o lampejo de luz no metal polido, 2) as dobras da pele ou do tecido, 3) os precisos contornos de folhas ou galhos. Um quadro sinótico vai dar maior visibilidade às características e aspectos do REALISMO FLAMENGO QUINHENTISTA. Os critérios distintivos, ordenação, descrição e sentido ficam por minha conta no quadro. A razão do quadro não é despropositada, pois Wagner sustenta que é possível ver antropologia na pintura flamenga devido justamente ao realismo das cenas cotidianas descritas pelo pintor, que se coloca como se fosse um antropólogo observando a vida de sua própria época e objetificando estes cenários no realismo da pintura que realizavam. Podemos generalizar esta observação para buscar aspectos antropológicos nas cenas retratadas por qualquer arte moderna, como a fotografia, o audiovisual, a música, o monumento, dentre outros meios artísticos.

CARACTERÍSTICAS E ASPECTO DA PINTURA DO REALISMO FLAMENGO QUINHENTISTA 1

2

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Aspectos Materialização de Cenas Temas religiosos idealizados Formas convincentes

4

Estudo da complexidade

5

Controle da aparência e textura

6

Vida e presencialidade

Descrição As cenas descrevem a vida dos homens em diversos cenários da vida cotidiana As cenas enfocam temas religiosos que não existem no cotidiano das pessoas as descrições apresentam formas que confirmam a realidade das cenas descrita Cada quadro apresenta uma variedade ampla de cenas cotidianas no espaço da tela Cada cena é rigorosamente controlada em sua aparência descritiva e na textura da imagem retratada As cenas da vida descritas no quadro como que ganham vida e presença diante do observador

Sentido O artista materializa no quadro cenas da vida cotidiana em perspectivas variadas As cenas compostas com um realismo gráfico incorporam temas religiosos em um perfil idealizado As formas das cenas pintadas se mostram convincentes com intensidade no detalhe Cada quadro é um verdadeiro estudo da complexidade da própria vida cotidiana em variados aspectos dentro de um mesmo plano de tela O pintor apresenta um excepcional controle sobre a aparência e a textura das cenas retratadas Cada quadro dá vida e presencialidade à cenas retratadas, como o lampejo de luz no metal polido, as dobras da pele e da roupa, os precisos contornos de folhas e galhos

Wagner vê na pintura realista flamenga quinhentista, um meio antropológico de observação distanciada e, ao mesmo tempo, resgatada do tempo passado para o presente. Assim, pode observar, pelos olhos do pintor, a cultura da época retratada. Com o uso deste meio artístico, o antropólogo tem


60 acesso a culturas já inacessíveis, como ocorre com os contos nativos sobre o seu passado histórico, que se mantém vivo pela oralidade de geração em geração. Eu vejo nas descrições e enfoques de Wagner um método sobre o que observar na arte a que tem acesso o antropólogo. Daí que o quadro se apresenta útil para especificar os aspectos que podem ser observados. [78]

38 – O RETRATO DA CONDIÇÃO HUMANA DE ÉPOCA: O USO CARICATURAL DE HIERONYMUS BOSCH79. Wagner afirma que, na medida em que esse estilo geral se consolidou, propiciou uma base para novos desenvolvimentos. Diz que 1) o excepcional DOMÍNIO DO DETALHE e 2) a convincente habilidade de SIMULAR A REALIDADE 3) ampliaram o LEQUE DE INVENÇÕES possíveis do artista. As palavras “domínio”, “simulação” e “invenção” são recorrentemente utilizadas por Wagner na sua concepção antropológica e as utiliza para descrever a arte da pintura sob o próprio olhar antropológico; não apenas do contexto da imagem do quadro, mas, também, do contexto da obra e do contexto do artista que produziu a obra de arte. Diz que os pintores flamengos de princípios e meados do século XV enriqueceram sua própria concepção do Evangelho e dos seus conterrâneos ao recriá-lo com realidade, ao encenar personagens e mensagens bíblicas com posturas da vida cotidiana. Com isso materializaram o Evangelho com gestos humanos locais, possibilitando ver a cena religiosa como realidade posta. Esta – podemos dizer primeira etapa – deu lugar a sucessores artistas que 1) utilizaram esta técnica para 2) esquadrinhar e ampliar toda 3) a sua visão de mundo. Um exemplo disso é HIERONYMUS BOSCH, que apresenta o uso alegórico na criação da caricatura moral na pintura. Este pintor dominou todo o gênero e foi além dele mediante a combinação do realismo da pintura flamenga com ALEGORIAS FANTÁSTICAS DA CONDIÇÃO HUMANA. Este pintor apresenta em seus quadros 1) vermes e pássaros em trajes humanos, 2) atrocidades e objetos estranhamente justapostos. Com isso, Bosch usa o realismo dos mestres anteriores como INSTRUMENTO PARA A PURA CARICATURA. Wagner arremata que foi desta forma, a mais radical possível, que o CARÁTER E A DIFERENCIAÇÃO MORAL foram introduzidos no âmbito da FIGURAÇÃO REALISTA. [80] 78

73 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo de campo pode utilizar a arte nativa do Estado para observar o passado do próprio Estado, mediante análise antropológica da arte retratada. Deste modo, o estadólogo tem acesso ao passado do campo, já inacessível diretamente. Estas obras de arte não precisam estar postas dentro do espaço do Estado observado, podendo ser buscado em outros lugares, como museus, pinacotecas, galerias, bibliotecas ou mesmo residências particulares; em suma, onde a pesquisa encontrá-las. E não há necessidade de utilizar apenas um tipo de arte; deve se valer de todos os disponíveis. 74 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadólogo, para exercer o poder de mando, precisa conhecer o presente e o passado da parte do Estado onde passa a exercer o seu poder de mando; portanto, deve fazer-se, antes de tudo, estadólogo; conhecida a tradição local, pode adequar melhor as suas ordens de modo a criar condições mais precisas de efetividade, sem violentar a imagem que o próprio órgão ou setor construiu para si ao longo de sua existência. Um destes meios de acesso ao passado é através dos meios artísticos positivos existentes sobre o campo de sua atuação. 79 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 42. 80 75 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo pode ver na arte e nos seus desdobramentos a expressão da crítica, dos agentes do Estado e da sociedade sobre aqueles, de modo a conhecer melhor a própria condição humana posta na realidade do passado de seu campo de pesquisa. A caricatura é um dos meios que retrata a visão social dos agentes do Estado e dos próprios estadistas que dirigiram a parte do Estado


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39 – OS TRAÇOS ANTROPOLÓGICOS NA OBRA DE BRUEGEL: CARICATURA E IRONIA SIMBÓLICA81. Wagner afirma que Bruegel segue o rumo da tradição da pintura flamenga quinhentista, na vertente de Bosch, porém, com variação diferenciada. É, nas palavras dele, uma deriva análoga do realismos anterior, embora um tanto diferente. A obra de Bruegel 1) conservou a força da alegoria, 2) incluindo o procedimento irônico de 3) tratar temas profanos em 4) detalhes intrincados. Entretanto, moderou sua caricatura em relação a Bosch, que recorria ao fantástico. A caricatura e a ironia simbólica de Bruegel são alcançadas mediante a figuração detalhada 1) dos camponeses flamengos e 2) de seus costumes. A figuração detalhada exige 1) uma caracterização penetrante que 2) implica longa observação. Diz Wagner que o contraste entre essa temática e os aspectos que Bruegel escolheu ilustrar geraram uma ironia e uma força explicativa que não é diferente da usada pela antropologia, que também objetifica suas visões por meio dos costumes dos outros. Finaliza Wagner dizendo que tanto na arte de Bruegel quanto na atividade de campo do antropólogo A VIDA DO POVO é descrita, explicada, tornada plausível. Mas, é no processo que a obra como um todo vai significar algo mais do que mera descrição ou compreensão de um povo. Em outras palavras, o artista e o antropólogo observam o povo e seus costumes para descrevê-los e explicá-los de modo plausível, cada qual com um meio ou instrumento próprio para fazê-lo; mas, o significado do produto desta descrição, a obra, no processo criativo, é algo mais do que a mera descrição e compreensão que apresenta. O que é este “plus” da obra será revelado logo a seguir. [82] posta em seu campo de observação. Com isso, alcança não apenas o dado concreto do presente, mas a tradição do passado que sempre se revela com grande dificuldade e distorção através da memória disponível. Nada obsta que o próprio estadólogo utilize, ele próprio, se dispuser de tal habilidade, da arte pictórica para reproduzir os contextos de realidade que observa, a exemplo da criação alegorias como a caricatura de figuras públicas postas diante do seu olhar. Também pode se associar a quem tenha tais habilidades para efetuar criações que expressem o conteúdo de suas observações. 76 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista pode reconhecer na arte um meio de visibilidade do passados de outros Estadistas e até mesmo o modo como ele próprio é visto no presente pelos demais agentes do Estado e da sociedade que o colocou no poder. A crítica moral retratada na arte se torna meio de conhecimento capaz de influir nas diretrizes e nas características do seu próprio modo de exercer o poder na parcela do Estado que está sob sua direção. O estadista pode contratar artistas para retratar realidades de seu campo de poder; modernamente, pode se valer de fotografias e de filmes que mostrem a realidade do Estado dentro de sua competência, tanto do que encontra quanto do que pretende fazer para melhorá-la ou do que já fez neste sentido, de modo a contrastar as realidades e dar visibilidade ao seu trabalho no Estado. Esta prática constitui até um dever do estadistas, pois ele deve prestar contas à sociedade sobre a utilidade de seu mandato no Estado. 81 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 42/43. 82 77 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo tem em comum com o artista o mesmo objeto de estudo: o povo e seus costumes, no caso, através do Estado que ele próprio cria e faz funcionar, seja todo ele ou parte dele, em diversas épocas e espaços físicos. Ambos descrevem, explicam e tentam dar um sentido para o que vivenciam, mediante uma caracterização penetrante que resulta de longa observação. O estadólogo objetifica sua visão de Estado por meio dos costumes dos outros. Pode-se dizer que “cada povo tem o Estado que estabelece”, em contraponto à visão antiga que propunha no lugar do estabelecimento, o merecimento, indicando uma distinção essencial entre Povo e Estado ou governo, a indicar que o estadista não tinha origem no povo, mas sim outra origem, que poderia ser até de um outro povo. O estadólogo observa o povo no poder do Estado como sendo o próprio povo, através dele, a se observar no Estado, através de representantes que ele instituiu. Em outras palavras, estadólogo é um do povo observando outros do povo mandando no Estado, os estadistas. 78 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, ou pós-estadólogo com poder de mando, tem que implementar as mudanças no Estado para o povo, mediante a observação das diretrizes dispostas pelo povo através das leis que cria e impõe a si próprio. Em outras palavras, o povo dirige o Estado através do estadista e a vontade do povo é materializada nas leis, através dos seus representantes eleitos para dirigir o Estado. A


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40 – APREENSÃO ARTÍSTICA DOS COSTUMES LOCAIS NA PINTURA DE BRUEGEL: PROVÉRBIOS E ALEGORIAS - A RESSIMBOLIZAÇÃO ALEGÓRICA83. Wagner tenta dar palavras para o sentimento transmitido pela obra de Bruegel que expressem o sentido captado pelo seu olhar posto nas cenas da vida observada. Diz que os esboços de Bruegel indicam que ele eras fascinado pelas circunstâncias da vida entre os camponeses de seu país, tais como suas roupas, suas casas, seus hábitos e divertimentos. Com isso, extraiu um DELEITE ARTÍSTICO da GEOMETRIA de suas formas, acentuadas pelas POSTURAS CARACTERÍSTICAS de suas labutas e recreações, além de harmonizar o todo da composição com uma RARA PERCEPÇÃO DA INTIMIDADE entre o camponês e a paisagem. Wagner afirma que a significância desta magnífica APREENSÃO ARTÍSTICA dos costumes locais se torna evidente, na obra de Bruegel, mediante outra fascinação do artista, a sua OBSESSÃO POR PROVÉRBIOS E ALEGORIAS. Diz que “provérbio” e “campesinato” são dois aspectos do mesmo interesse artístico. Isto porque os provérbios fazem parte da SABEDORIA POPULAR do campesinato, e que são compreensíveis em seus termos. Por outro lado, a REPRESENTAÇÃO DE CAMPONESES, segundo os estilos, temas e gêneros da pintura flamenga, CRIA ALEGORIAS ao apresentar os temas tradicionais sob FORMA ALEGÓRICA. Com esta representação criativa em forma alegórica, Bruegel HUMANIZA a própria forma alegórica. Por isso, diz Wagner, a alegoria veio a ser a forma sob a qual o significado dos quadros de Bruegel foi concebido e transmitido. Wagner diz que, assim como se dá com o antropólogo, a sua invenção de idéias e temas familiares num meio exótico produz uma AUTOMÁTICA EXTENSÃO ANALÓGICA de seu próprio universo. Pelo fato de tais idéias e temas permanecerem reconhecíveis, a TRANSFORMAÇÃO DELAS NO PROCESSO termina por corporificar um TIPO DE RESSIMBOLIZAÇÃO que Wagner chama de ALEGORIA, que é uma ANALOGIA COM UMA SIGNIFICAÇÃO INCISIVA. Para tentar esclarecer esta passagem do pensamento de Wagner, eu entendi que a alegoria é uma analogia, mas uma analogia distinta, uma alegoria que porta uma “significação incisiva”. Uma significação “incide” sobre a analogia feita. A alegoria é justamente a analogia que sofre a incidência de uma significação específica. Daí que a alegoria é um tipo de resimbolização, ou seja, de uma simbolização do simbolizado. Como se trata de duas simbolizações, a primeira é o símbolo que retrata a vida do povo, através da pintura; a outra é a significação que incide sobre aquele retrato, dando-lhe um novo significado, no caso, um significado alegórico, figurado. A pintura, por retratar a realidade, a realidade retratada não é a vontade do estadista, que também é a vontade do povo, para ser implementada, tem que se tornar, de alguma forma, lei. Os planos de governo se tornam conteúdo de leis que o estadista implementa com o seu poder de mando dentro do espaço de sua competência. Assim como o artista realista recria a realidade na sua pintura, o estadista recria a realidade, só que na própria realidade, que, por sua vez, pode ser retratada na pintura. Em outras palavras, o estadista faz a história e a história que faz é a história do seu próprio povo exercendo o poder através dele. Daí que os costumes do povo também se refletem nos costumes do Estado em seus variados aspectos de atuação diferenciada. Não atua apenas um estadista no Estado, mas milhares deles, espalhados pelo território e misturados ao povo, pois ele também faz parte do povo, do mesmo modo que milhares de artistas retratam variadas realidades distintas do povo ao longo do tempo em suas variadas manifestações artísticas. 83 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 43.


63 mesma realidade que foi retratada, mas uma realidade figurativa que é análoga ao seu objeto. Daí que toda alegoria se torna uma analogia com um significado especial. Para facilitar o entendimento, imagine o leitor que dispõe de uma pintura de um quadro diante do mesmo cenário que a pintura retrata, podendo comparar o retrato da pintura com o cenário original que foi usado como modelo para a produção da obra. O quadro é uma simbolização da realidade que está além dele; este é o primeiro símbolo. Agora imagine que o pintor tenha modificado o próprio cenário na pintura de modo a evidenciar alguns detalhes mais do que outros; ao comparar, vê-se a diferença do realce distintivo posto no quadro. Esta “distorção” ou “modificação” é um segundo símbolo. A distorção feita ressimboliza (presença de duas simbolizações) a realidade retratada dando-lhe um significado que incide sobre a própria realidade, através do quadro. É isso que Wagner chama de ALEGORIA ou “analogia com uma significação incidente”. A caricatura é o exemplo típico de ressimbolização do tipo alegórico. [84] Dada a importância deste desenvolvimento de Wagner, merece um quadro sinótico que dê maior visualização à ressimbolização ou alegoria analógica. O título dado ao quadro, os títulos das categorias e os termos usados para descrever e simbolizar são meus, a partir do que entendi do desenvolvimento feito pelo autor.

O PROCESSO DE RESSIMBOLIZAÇÃO DA REALIDADE – DA ANALOGIA À ALEGORIA Simbolização 1 ANALOGIA 84

Descrição Primeira simbolização que descreve a realidade observada e o produto

Sentido A imagem mental ou discursiva apresenta identidade com o objeto, de modo que a imagem corresponde a uma cópia fiel do objeto;

79 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo observa uma parte do Estado e representa, na sua mente, esta parte observada. Esta representação mental é uma simbolização da realidade do Estado; não é o Estado mesmo, pois este está lá, fora da mente do estadólogo. A imagem mental do estadólogo é um símbolo do Estado. Pressupõe-se que seja um símbolo “fiel”. Esta representação mental, ao ser descrita no papel, tem os mesmos pressupostos de fidelidade com o que foi observado em campo. Este é um critério de cientificidade. Porém, pode ser que o estadólogo queira modificar esta imagem mental de modo a realçar coisas, fatos, setores, em detrimento de outros que também observou; este realce feito numa parte do todo da imagem é uma forma de nova simbolização, pois é o estadólogo que opera o realce que não existe na realidade observada. Esta é uma segunda simbolização que ele opera. Por ser uma simbolização dentro de uma outra simbolização, diz-se que o estadólogo operou uma ressimbolização do Estado, ainda que só de uma parte dele. Dependendo do grau da “distorção” operada pelo estadólogo, ele pode terminar por descrever uma Alegoria do Estado, uma CARICATURA DO ESTADO, e não o Estado mesmo. Isto ocorreu justamente porque o estadólogo operou uma “analogia com uma significação incidente”. A alegoria feita está no campo da ARTE e não no campo da CIÊNCIA. Ainda que seja difícil não operar tais distorções, é preciso que o estadólogo faça um esforço permanente para reavaliar suas imagens mentais e descrever com a máxima fidelidade o que observou. A ideologia é uma das “significações incisivas” que gera a alegoria no lugar da analogia científica. 80 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista observa o campo do Estado onde opera mudanças do mesmo modo que o estadólogo o faz; ele olha e vê o antes, o durante e o depois das transformações por ele operadas. A imagem mental que cria de cada uma destas fases de mudanças tende a ser uma “cópia” fiel do que ocorreu; por isso, é uma representação da realidade, uma analogia da própria realidade. Porém, ele pode “distorcer” esta representação mediante a incidência de uma significação de modo a apresentar como sendo representação fiel o que na verdade é uma representação distorcida pela ideologia utilizada. Em outras palavras, ele pode terminar vendo o que não está posto, ou descrevendo o que não aconteceu na realidade. O estadista pode fazer esta distorção consciente ou inconscientemente; por isso, precisa ele reavaliar sempre as suas “descrições” da realidade para corrigir as distorções ou, se for o caso, para mantê-las como estipula a sua própria vontade orientada pela ideologia que aporta. A visão da realidade do estadista tem que ser a da mera simbolização; se usar ressimbolizações, pode ser que seja com vista a algum efeito que ele pretende obter mediante a distorção por ele operada no discurso que retrata “aquela” realidade (alegoria). De qualquer sorte, ele dispõe, sempre, destas duas possibilidades analógicas.


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2 ALEGORIA

descritivo é análogo ao que retrata; o símbolo criado é uma analogia da realidade descrita Segunda simbolização que distorce a primeira simbolização para dar um novo significado ao simbolizado; é “uma analogia com uma significação incisiva” ou alegoria.

o símbolo da realidade é fiel à realidade que simboliza; o símbolo é uma analogia da realidade dada A imagem mental ou discursiva apresenta uma desidentidade com o objeto, de modo que a imagem não corresponde a uma cópia fiel do objeto; o símbolo da realidade foi modificado pela incidência de uma nova significação, mudando o sentido da primeira simbolização; a segunda simbolização é uma alegoria da realidade; não a retrata; operou-se uma ressimbolização da realidade.

Daí poder-se entender o que Wagner pretende ao dizer que “a invenção, pelo antropólogo, de idéias e temas familiares num meio exótico produz uma AUTOMÁTICA EXTENSÃO ANALÓGICA de seu universo”. A extensão analógica é a primeira simbolização posta no quadro; e ela é “automática” pelo fato de que é “compulsória” para a mente humana; não há como “evitar” esta extensão que aporta o universo do antropólogo para dentro da imagem do que observa. O que ele “vê” é orientado pelas analogias que estabelece com o que ele “já viu” antes. O antropólogo não percebe a “incidência” do seu universo sobre as imagens que ele produz a partir do que vê. Daí que a simbolização por ele feita já está posta com uma significação incisiva oriunda de sua cultura de origem. A simbolização por ele produzida começa já ressimbolizada, alegórica. O processo de correção desta “distorção” se dá pela aplicação do método que descrevemos alguns itens acima, mediante uma “aproximação” e uma “revisão” antes de estabelecer as “articulações” e “generalizações”. Digamos que é “natural” a “caricaturização” da nova cultura, num primeiro momento de “objetificação” operada por esta “distorção” da realidade, justamente por ela mesma ser ainda desconhecida. Se ela não for corrigida de pronto, a fase da “modelagem” poderá ficar comprometida, influindo na “catapultagem” que daí decorre. 41 – O TIPO PARTICULAR DE ANTROPOLOGIA DE BRUEGEL: DIÁLOGO DA PINTURA COM O TEATRO DE SHAKESPEARE85. O período de vida do pintor Bruegel (1525-1569) é quase contemporâneo ao do teatrólogo William Shakespeare (1564-1616). Wagner vai estabelecer uma contraponto entre a pintura flamenga e o teatro inglês do século XVI. Começa dizendo que o “gume” (ponto alto) do “tipo particular de antropologia” de Bruegel é mais visível em algumas de suas CENAS DE RUA que retratam temas religiosos. Os quadros por ele produzidos EVOCAM DRAMAS quase contemporâneos de Shakespeare, por três razões. Primeiro, na universalidade de sua visão; segundo, na sua intenção de generalizar a vida humana; terceiro, por fazê-lo por meio da caracterização de sua imensa variedade. Atente-se que Wagner se vale aqui de três categorias: “universalidade da visão”, “generalização da vida” e “caracterização da variedade”. Wagner compara a obra pictórica com a obra literária. A semelhança, diz Wagner, é realçada pelo fato de que o HUMANISMO de AMBOS OS ARTISTAS serve, frequentemente, como três meios referentes ao exótico: 1) MEIO PARA COMPREENDER, 2) MEIO PARA INTERPRETAR e 3) MEIO PARA APRENDER 85

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 43/44.


65 com o EXÓTICO. Em outras palavras, o humanismo é usado como meio tripolo de compreensão, interpretação e aprendizagem sobre o exótico. Wagner sustenta que SHAKESPEARE usou a variedade, o esplendor e a espiritualidade da VIDA ELIZABETANA como uma espécie de SEMENTEIRO PARA ANALOGIAS em suas incursões: 1) na Roma antiga, 2) na Veneza contemporânea, 3) na Dinamarca medieval. Aduz que o RETRATO QUE FEZ DE SEUS HABITANTES como INGLESES METAFÓRICOS, estima Wagner, certamente RENDEU CARICATURAS que deliciaram seus contemporâneos. Aqui se observa a presença da ANALOGIA, da METÁFORA e da CARICATURA na obra do teatrólogo inglês dos séculos XVI e XVII; tudo isso ocorreu pelo fato de ter usado fatos da vida de sua época como uma espécie de “pequena lavoura para multiplicação de sementes” (sementeiro). Entendo que “sementeiro de analogias” é uma espécie de “multiplicação de analogias” feitas a partir da experiência de vida do “sementeador”. Tal qual Bruegel retratou o povo flamengo como “flamengos metafóricos”, colocando os modos flamengos nos modos bíblicos, Shakespeare retratou o povo inglês como “ingleses metafóricos”, só que colocando os modos ingleses no povo romano, no povo italiano, no povo dinamarquês. É como se estes fossem aqueles; esta troca realizou uma metáfora em forma de caricatura; operou a resimbolização de que Wagner falou no item anterior. [86]

42 – O POVO BÍBLICO TORNADO FLAMENGO: A CONTEXTUALIZAÇÃO DESCONTESTUALIZADORA DE BRUEGEL87. Wagner vai explicar o processo criativo dos cenários da pintura de Bruegel a partir de dois quadros: 1) O

86

81 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo pode ver o Estado como uma “cultura exótica”, algo estranho para si e que precisa ser conhecida. Assim, ele pode usar o seu campo de observação de modo tripolo: como meio de compreensão do Estado, como meio de interpretação do Estado e como meio de aprendizagem sobre o Estado. O estadólogo também pode implementar três atitudes a partir do campo de estudo: universalizar a sua da visão do Estado, generalizar os modos de vida no Estado e caracterizar a variedade de coisas e atividades do Estado. Com a experiência de observação do Estado, pode construir uma espécie de “sementeiro de analogias” sobre o Estado, de modo a poder retratar os “habitantes do Estado” tanto como efetivamente são quanto, por um meio artístico, estabelecer analogias caricaturais que permitam realçar, ideologicamente, aspectos do Estado por ele julgado importantes, mas sempre ciente de que opera não através da ciência, mas da arte, para produzir um tipo de “Estado metafórico”. Ademais, o estadólogo também pode procurar conhecer o estado através do teatro, no conteúdo das peças produzidas pela sociedade sobre o seu Estado, tanto do presente quanto do passado. Portanto, o estadólogo observa o Estado não apenas “dentro” dele, mas, também e, quem sabe até, principalmente, “fora” dele, na sociedade que o instituiu. O estadólogo precisa estar atento aos detalhes do Estado, para poder apreender as minúcias de tudo quanto “aparece” em seu campo de observação; isto porque é a partir do detalhe que pode ser construída a síntese da totalidade das coisas e momentos de “aparição” do Estado real. 82 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista também opera no Estado usando-o, e também a si próprio, como meio de compreensão, de interpretação e de aprendizagem sobre o próprio Estado, de modo que possa, também, produzir universalizações, generalizações e caracterizações das variedades de objetos encontrados no Estado e que materializam-no como se fosse uma “coisa” tangível. O estadista “manipula” o Estado através do próprio Estado, como os meios disponíveis neste, que são recursos materiais e recursos humanos, tendo em vista os fins postos nas mudanças por ele estabelecidas. O estadista trabalha com o “Estado real” e não com o “Estado metafórico”; por isso, suas representações ou analogias precisam estar constantemente sendo revisadas, de modo a evitar tanto o erro de avaliação da situação do presente quanto o erro de planejamento e de execução das mudanças que vai implementar. Ver como a sociedade vê o Estado é um modo de observar o próprio Estado no olhar que vem de fora dele, com um tipo de objetificação diferenciada da que pode ser produzida a partir de dentro dele. Também o Estadista precisa estar atento a todos os detalhes do Estado, tanto do que é produzido pelos outros quanto pelo que é produzido por ele próprio no Estado; assim, poderá ter o “controle” completo de tudo quanto “acontece” no Estado sob o seu comando, dentro de seu território ou espaço de mando. Sem o detalhe, o estadista está “cego” e não conseguirá ver o conjunto concreto, justamente pela falta do detalhamento prévio que lhe “fugiu” da observação. 87 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44.


66 recenseamento em Belém e 2) O massacre dos inocentes. Os povoados bíblicos são retratados são comunidades flamengas da época, em todos os seus aspectos. Assim, podem ser reconhecidos nos quadros os eventos bíblicos em si, como a 1) chegada de Maria e José a Belém para o censo e 2) o intento dos soldados de Herodes para assassinar o menino Jesus. As descrições são típicas: 1) Maria veste um manto azul e está montada num burrico, 2) José carrega uma serra de carpinteiro, 3) um censo está sendo realizado, 4) os soldados estão assediando o populacho. No entanto, diz Wagner, 1) a aldeia está coberta de neve nas duas cenas, 2) as pessoas se vestem como camponeses setentrionais, 3) os telhados são altos e íngremes, 4) as árvores estão podadas, 5) a paisagem é típica dos Países Baixos. Diz que todos estes detalhes serviram - e poderiam servir de base para “explicar” os esforços do pintor - para 1) tornar familiares os eventos bíblicos, 2) torná-los críveis e 3) torná-los reconhecíveis a quem observar o quadro (a audiência do quadro). Vê-se que Bruegel usa um tema religioso colocado fora de lugar, fora do contexto plausível das cenas relatadas na Bíblia, uma vez que 1) não neva em Belém, 2) os telhados das casas da época não poderiam ser altos e íngremes, 3) as pessoas não se vestiam com as roupas de camponeses do norte europeu, 4) as árvores não poderiam ser a mesmas e nem podadas, 5) a própria paisagem não poderia ser aquela retratada nos quadros. Com este modo, Bruegel contextualizou o tema bíblico, mas descontextualizou o cenário bíblico; colocou na cena bíblica o povo da época do pintor. Houve uma “contextualização descontestualizadora”, segundo o termo que uso aqui. Não é apenas uma “contextualização descontextualizada”, em aparente paradoxo, mas uma contextualização que aponta para uma visível descontextualização; é a cena no passado encenada no presente; é o sagrado materializado no humano. [88]

43 – O ÍMPETO INTERPRETATIVO E A “TRADUÇÃO”: O USO DE “MODELOS” ANALÓGICOS E A INTERPRETAÇÃO NO PROCESSO89. Wagner 88

83 –APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo tem que estar atento para dois tipos de contextos: o “contexto temático” e o “contexto cênico” da realidade retratada pela observação. Ao “encenar” um tema, pode reproduzir a cena do próprio contexto de sua época quanto pode produzir uma cena da realidade atual que materializa, simbolicamente, o tema. Em outras palavras, uma descrição escrita feita do Estado em um livro tem que ser vista dentro do contexto da obra, em primeiro lugar e, só depois, dentro do contexto do leitor ou estadólogo. A intercontextualização pode gerar distorções que impeçam o estadólogo de ver o Estado real, operadas pelos “óculos” das descrições de suas leituras. Em outras palavras, o estadólogo não pode fazer contextualizações descontextualizadoras do Estado, pois isso levará a produzir uma alegoria do Estado e não uma metáfora científica do Estado, um retrato da realidade observada por meio de relatos escritos. 84 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista é, antes de tudo, um estadólogo que adquiriu o poder de mando, que não se limita a observar o Estado, mas está munido de poderes para mudar o Estado, para transformá-lo. Portanto, as idéias que tem do Estado devem ser produzidas a partir da própria observação do Estado no lugar e no tempo onde o estadista está; não adianta ele ficar pensando no Estado que “leu” em obras de estudo teórico, pois tais obras retratam o Estado segundo a observação do escritor, em um tempo passado e em outro lugar que não o do estadista. Podem auxiliar, mas, também, podem prejudicar a compreensão, a interpretação e aprendizagem sobre o Estado real, concreto, visível, posto “ali”. Não pode ver o Estado atual como sendo o Estado do passado ou o Estado de um outro país; tem que fazer um esforço para ver o Estado tal qual ele é e está posto, por mais difícil que possa se apresentar o processo de “descoberta” deste Estado real. Sem este “controle” de realidade, o estadista está fadado ao fracasso na direção do Estado; não agirá como estadista e nem como estadólogo, mas sim como um artista que “inventa” um Estado irreal. 89 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44/45.


67 trata aqui da “interpretação antropológica”. Diz que há um ímpeto interpretativo, mas que este ímpeto vai bem mais fundo do que a mera “tradução”. Isso acontece justamente porque “a analogia sempre retém o potencial da alegoria”. Em outras palavras, a analogia está ligada à interpretação e a tradução está ligada à alegoria; mas, a interpretação, sempre, retém o potencial da tradução. Isso faz com que a alegoria seja uma espécie de interpretação, mas a interpretação não é, necessariamente, uma alegoria. Para produzir uma alegoria é preciso interpretar por meio de uma analogia. Wagner sustenta que Bruegel, 1) ao “exibir figuras bíblicas num ambiente contemporâneo”, também sugeria 2) “o julgamento de sua própria sociedade flamenga em termos bíblicos”. Nesta linha de “exibição” e “sugestão”, conexas, Bruegel apresentava um duplo significado em um mesmo plano pictórico. O significado de “O recenseamento em Belém” é duplo: 1) que “Jesus nasceu do homem, em um ambiente humilde, tal como as pessoas vivem hoje” e que 2) “se Maria e José chegassem a uma cidade flamenga, ainda teriam de se alojar num estábulo”. No quadro “O massacre dos inocentes”, também o sentido é duplo: 1) retrata os soldados de Herodes determinados a assassinar o menino Jesus; que 2) as tropas espanholas dos Habsburgos estavam devastando os Países Baixos, com finalidades igualmente nefastas. Este DUPLO SENTIDO encontrado por Wagner como posto na obra pictórica de Bruegel pode ser comparado à distinção entre contexto denotado e contexto conotado; mas, Wagner não usa esta distinção linguística no seu texto. O quadro “denota” a cena bíblica em pose contemporânea, mas “conota” uma realidade contemporânea subjacente que se “encaixa” na cena denotada; a denotação se torna um sinal de indicação ou índice da conotação. Também, Wagner, neste ponto, não vai usar estas categorias semióticas de explicitação. Ao finalizar, Wagner tira uma conclusão antropológica de suma importância. Diz que tanto na arte quanto na antropologia, os elementos que o artista e o antropólogo são obrigados a USAR COMO “MODELOS” ANALÓGICOS para 1) a interpretação ou para a 2) explicação dos seus temas, são, eles mesmos, INTERPRETADOS NO PROCESSO. Em outras palavras, todo elemento é um modelo analógico de interpretação e explicação de tema; e a interpretação destes mesmos elementos ou modelos só pode ser feita no próprio processo de uso dos mesmos pelo artista ou antropólogo. Ao que parece, o uso de modelos analógicos já produz a sua própria interpretação no processo de uso; uso e interpretação ocorrem concomitantemente no processo de sua ocorrência. [90] 90

85 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo é obrigado a usar elementos como “modelos” analógicos para interpretar e para explicar os temas de sua observação do Estado. Estes elementos ou modelos analógicos somente podem ser interpretados no próprio processo da ocorrência da observação. O estadólogo observa o Estado através de modelos analógicos e interpreta o conteúdo de sua observação no próprio processo de observação. Isto quer dizer que observar e interpretar acontecem concomitantemente; é impossível observar sem interpretar ou interpretar sem observar; o processo é comum a ambas as atitudes do estadólogo. Toda descrição do Estado pode ser comparada a uma obra de arte e a sua interpretação comporta, ao menos, sempre, dois sentidos: um expresso e um subjacente, denotado e conotado, onde o explícito indica ou sinaliza o implícito. Comumente se diz “ler nas entrelinhas, segundo uma expressão antiga da cultura brasileira. O estadólogo diz, mas o que diz não é apenas o “dito”; ele também diz para “além” do meramente dito; ele aponta para outras direções que estão posta indiretamente no discurso que descreve o Estado. Extrair o sentido “oculto” na descrição do Estado constitui uma arte própria do ímpeto interpretativo, que vai mais fundo do que a mera “tradução” do que está posto; ademais, “a analogia sempre retém o potencial da alegoria”, no sentido de que todo denotado pode vier a ser conotado. 86 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, mais do que o estadólogo, precisa estar atento ao texto e ao contexto do que observa e dos resultados do que produz com suas


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44 – CENTRO DE GRAVIDADE ALEGÓRICO NO DESENVOLVIMENTO DA PINTURA FLAMENGA: DIÁLOGO COM PETER RUBENS, REMBRANDT E VERMEER91. Wagner diz que poderia prosseguir na consideração do desenvolvimento da pintura flamenga a partir de um determinado ponto: 1) do uso da pincelada por Peter Rubens para criar uma arte impressionística que joga com as expectativas do observador; 2) ou das obras “soberbamente abrangentes de mestres” como REMBRANDT ou VEEMER. Diz que, à medida em que A TRADIÇÃO SE DESENVOLVEU, mudou o seu CENTRO DE GRAVIDADE ALGÓRICO; moveu-se 1) da delineação da própria tela para 2) a relação entre artista (ou observador) e quadro; e, daí, 3) para um meio de comunicação altamente sofisticado. Wagner diz que à medida que o CONTEÚDO EXPRESSIVO DA PINTURA foi sendo cada vez mais CLARAMENTE FOCALIZADO no ATO DE PINTAR, SIMBOLIZADO 1) na ênfase na pincelada, 2) na escolha do tema, dentre outros, os artistas PASSARAM A SE DAR CONTA de uma certa AUTOPERCEPÇÃO. Afirma que Rembrandt foi colecionador de arte e Vermeer foi negociante de quadros; estas duas atividades se tornaram apropriadas em razão do intenso envolvimento pessoal, quase confessional, que ligava esses homens de arte a todos os aspectos de seu trabalho. Sustenta, por fim, que um TANTO DE SI MESMOS era criado por meio da RELAÇÃO DA PINTURA. O que me parece importante nesta passagem do texto diz respeito à sequência: 1) mudança do centro de gravidade alegórico, 2) à autopercepção do artista e 2) à criação de si mesmo por meio da relação da pintura. No primeiro caso, Wagner afirma que o centro de gravidade se moveu da tela para a relação artista-tela e daí para o meio de comunicação. Com isso quer, segundo se pode depreender, dizer que há, também, um centro de gravidade na antropologia que parte do campo de observação para a relação observador-campo e, por fim, para a o meio de comunicação da observação, tudo isso num crescendo de complexidade e sofisticação. No segundo caso, que diz respeito à cognição do artista, Wagner sustenta que o foco no ato de pintar, à medida que foi simbolizado na pincelada e no tema, emergente do conteúdo expressivo da pintura, levou ao surgimento de uma autopercepção pelo artista, como que a uma autoconsciência artística. No terceiro caso, como decorrência dos dois anteriores, o artista passa a criar, na relação da pintura, um tanto do próprio artista; como se ele criasse de si a própria pintura, como no caso do autorretrato, num voltar-se para si mesmo como objeto ou tema de sua própria arte.

intervenções modificativas do Estado. A sua leitura denota o que vê, mas, embutido nela, vem, também, um sentido conotado que aponta para além do que está meramente dito. Também precisa estar atento para a leitura feita pelos outros, pois o duplo sentido sempre está presente e só se alcança o segundo sentido através de uma “salto” baseado no primeiro. Cada leitura apresenta como elemento um “modelo analógico” que serve para interpretar e para explicar, mas tais modelos só podem ser interpretados no próprio processo de uso dos mesmos; em outras palavras, o uso do modelo só pode ser interpretado durante o processo de seu próprio uso; ação e interpretação ocorrem ao mesmo tempo; agir é interpretar mediante modelos e interpretar é agir mediante modelos. A analogia aqui está entre o contexto de realidade e o contexto de pensamento do intérprete. O estadista não pode dissociar estes dois processos, sem perder o senso da própria realidade que tem diante de si. Descobre-se o encoberto a partir do descoberto. 91 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45.


69 Estes três momentos parecem sucessivos e dependentes do anterior, passando da mudança do centro de gravidade para a consciência de si até chegar na arte de si mesmo. [92] 45 – ANTROPOLOGIA AUTOPERCEPTIVA E AUTOCONSCIENTE: O RETORNO A NÓS MESMOS93. Wagner já se prepara para os dois últimos parágrafos do capítulo I, que enfoca a Presunção da Cultura, dentro do terceiro enfoque, a Invenção da Cultura. Começa se perguntando se as observações feitas no campo da arte podem ser aproximadas do campo da antropologia, no tocante ao alto grau de AUTOCONHECIMENTO. Pergunta-se se é possível uma ANTROPOLOGIA AUTOPERCEPTIVA ou mais do que autoconsciente. Diz que assim como a arte da pintura de Rubens e de Vermeer, uma ciência deste tipo: 1) teria de se basear num entendimento introspectivo de suas próprias operações e capacidades; 2) teria de desdobrar a relação entre técnica e temática como a) um meio de extrair autoconhecimento do entendimento de outros e b) vice-versa: extrair entendimento do autoconhecimento dos outros; e, por fim, 3) teria de tornar a seleção e o uso de analogias e “modelos” explicativos, provenientes da própria cultura do antropólogo, óbvios e compreensíveis, como parte da extensão simultânea a) do próprio entendimento do antropólogo e b) da apreensão de outros entendimentos.

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87 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo precisa observar no Estado três estágios. Em primeiro lugar está a mudança do centro de gravidade alegórico, que vai do Estado para a relação estadólogo-Estado e daí para o meio de comunicação do Estado. Em segundo lugar está o pensamento do estadólogo, cujo foco pode estar na ação simbólica do estadólogo, no tema do Estado ou outro, até chegar a uma autopercepção do estadólogo como tal, que lhe permita ver o Estado e para além do Estado. Em terceiro lugar está na consciência da criação, pelo próprio estadólogo, de um tanto de si mesmo, na sua relação com o Estado. Em outras palavras, estadólogo parte de uma objetificação do Estado a partir do seu campo de observação ou estudo e vai, aos poucos, tomando consciência do seu próprio trabalho e na contribuição que dá, a partir de si mesmo, para a invenção do Estado a partir do seu ato de percepção de si, do Estado e do que está além do Estado. 88 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista passa pelos mesmos estágios do estadólogo. Parte da objetificação do Estado mediante seus atos de mudança operados no Estado e vai se dando conta, paulatinamente, à medida que muda o Estado, de si mesmo como estadista até concluir que a construção do Estado por ele operada é um tanto de si mesmo que é dado e posto no Estado; é o seu pensamento de si e do Estado que é implementado nas mudanças do Estado. O estadista e o Estado parecem fazer parte de um todo único e indistinto, de início, mas que se diferencia no próprio processo de mudança do Estado. Ademais, o estadista nunca é eterno no poder do Estado; ele é passageiro e deixa, sempre, a marca da sua presença, pois o Estado se tornou um tanto de sua própria presença durante o exercício do seu mandato. Na verdade, a máxima de Luiz XIV “O Estado Sou Eu” mostra apenas o primeiro passo da objetificação indistintiva estadista-Estado; a evolução que distingue os dois decorre de um processo de consciência do próprio estadista e da sua maturidade como governante. 93 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45/46.


70 Com isso, diz Wagner, o antropólogo teria 1) de APRENDER A EXTERNALIZAR NOÇÕES como “LEI NATURAL”, “LÓGICA” ou mesmo “CULTURA”, como Rembrandt fez com seu próprio comportamento e caráter em seus autorretratos. 2) E, mais do que isso, vendo tais noções como quem vê os conceitos de outros povos, o antropólogo teria de APREENDER OS SEUS PRÓPRIOS SIGNIFICADOS de um ponto de vista mais genuinamente relativo.

A complexidade da proposta de Wagner merece um quadro sinótico que dê uma visualização completa do que ali consta.

PRINCÍPIOS DE UM MÉTODO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA ANTROPOLOGIA Princípio ENTENDIMENTO INTROSPECTIVO

Descrição basear-se num entendimento introspectivo de suas próprias operações e capacidades;

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DESDOBRAMENTO DO ENTENDIMENTO

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EXTENSÃO SIMULTÂNEA

4

EXTERNALIZAÇÃO FIDEDIGNA

5

VISÃO E APREENSÃO RELATIVIZADAS

desdobrar a relação entre técnica e temática como um meio de extrair autoconhecimento do entendimento dos outros e de extrair entendimento do autoconhecimento dos outros; tornar a seleção e o uso de analogias e modelos explicativos, que são provenientes da própria cultura do antropólogo, mais óbvios e compreensivos, como sendo parte da extensão simultânea do próprio entendimento do antropólogo e da apreensão de entendimento dos outros; aprender a externalizar noções como “lei natural”, “lógica” e “cultura” como quem procede na invenção de um autorretrato fiel ao modelo; ver essas suas próprias noções como quem vê os conceitos de outros antropólogos, tentando apreender os seus próprios significados de um ponto de vista mais genuinamente relativo.

1

Sentido Antropólogo precisa voltar-se para dentro de si e conhecer as suas próprias ações e capacidades de atuação no conhecimento do campo de estudo O antropólogo precisa desdobrar a relação técnica-temática como instrumento de extração de entendimentos provenientes de fontes diversas O antropólogo precisa tornar mais óbvios e compreensivos a seleção e uso de analogias e modelos de explicação, tomados como parte da extensão simultânea do seu próprio entendimento e da apreensão do entendimentos de outros O antropólogo precisa aprender a externalizar suas noções teóricas como quem inventa um autorretrato fiel ao modelo de si mesmo Por fim, o antropólogo tem que ver as suas próprias noções teóricas como quem vê os conceitos formulados pelos outros, e apreender o significado que dá a partir de um ponto de vista relativista (que sabe ser relativo a si com base nos outros, sem descartar outros pontos de vista)


71 É bom repetir que o título do quadro, como princípios de um método para a construção de uma nova antropologia, assim como o títulos dos princípios, a descrição e o sentido, no uso das palavras, tudo isso é por minha conta; só a idéia do conteúdo está em Wagner. A procedência do quadro indica a minha leitura a partir da fala do autor. [94] 46 – ESTUDO DA CULTURA É CULTURA: O TEÓRICO E O ÉTICO SIMULTANEAMENTE NA AUTOREFLEXÃO ANTROPOLÓGICA95 Wagner redige o último parágrafo do capítulo em forma de uma síntese conclusiva que já prepara a transição para o capítulo II. Diz Wagner que O ESTUDO DA CULTURA É CULTURA. Para ele, uma ANTROPOLOGIA que almeje 1) ser consciente e 2) desenvolver seu senso de objetividade relativa precisa 3) ajustar-se ao fato de que o estudo da cultura é cultura. Uma antropologia que tenha aquelas duas pretensões “precisa se avir96 com esse fato”, de que “o estudo da cultura é cultura”. Sem tal reconhecimento, a antropologia não pode alcançar a pretensão de autoconsciência e objetividade relativa. Emerge deste contexto de conclusão que o que chamo aqui de “nova antropologia” proposta por ele tem que ser, ao mesmo tempo, CONSCIENTE, RELATIVA E CULTURAL.

A autorreflexividade impera nesta parte do texto. Wagner afirma, com todas as letras, que “o estudo da cultura é, na verdade, o estudo da nossa cultura”. E explica:

1) opera por meio das nossas formas; 2) cria em nossos termos; 3) toma emprestado nossas palavras e conceitos, para elaborar significados; e, além de tudo isso, 94

89 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. O estadólogo tem de: 1) basear-se num entendimento introspectivo de suas próprias operações e capacidades; 2) desdobrar a relação entre técnica de Estado e temática de Estado como um meio de extrair autoconhecimento do entendimento dos outros e de extrair entendimento do autoconhecimento dos outros; 3) tornar mais óbvios e compreensivos a seleção e o uso de analogias e modelos explicativos, que são provenientes da própria cultura do estadólogo , como sendo parte da extensão simultânea do próprio entendimento do estadólogo e da apreensão de entendimento de outros estadólogos; 4) aprender a externalizar noções como “lei natural”, “lógica” e “Estado” como quem procede na invenção de um autorretrato; 5) ver essas suas próprias noções como quem vê os conceitos de outros estadólogos, tentando apreender os seus próprios significados de um ponto de vista mais genuinamente relativo. 90 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista tem que fazer um esforço para proceder do mesmo modo que o estadólogo, tanto no tocante ao conhecimento da situação atual do Estado quanto de suas propostas de mudanças e da imagem de realidade futura que pode formular em sua especulação reflexiva; isto, na antecedência ao ato de mudança; durante a aplicação da mudança, deve proceder de novo, aplicando o mesmo método; e, num terceiro momento, após ter implementado as mudanças, deve voltar a aplicar o método, de modo que possa sempre e reiteradamente dar-se conta de si mesmo no processo de mudança do Estado, de modo que o Estado não reflita apenas o seu pensamento, mas o conjunto de todos os pensamentos a que teve acesso o estadista para implementar as mudanças que pretende e faz. Com isso, o estadista se tornará um melhor estadista em cada nova mudança que opera no Estado. 95 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 46. 96 O verbo “avir”, na língua brasileira, significa “por de acordo”, “ajustar”, “conciliar”, “apaziguar”, “combinar”, “arranjar-se”, “haver-se”, “entender-se”, “acomodar-se”. O “desavir” indica o antônimo.


72 4) nos recria mediante nossos esforços.

Wagner diz que todo EMPREENDIMENTO ANTROPOLÓGICO, a partir de tais afirmações, situa-se numa ENCRUZILHADA; pode escolher entre:

1) uma EXPERIÊNCIA ABERTA E DE CRIATIVIDADE MÚTUA, na qual a “cultura” geral é criada por meio das “culturas” que criamos com o uso desse conceito; ou 2) uma IMPOSIÇÃO DE NOSSAS PRECONCEPÇÕES sobre outros povos.

PRÓPRIAS

Daí Wagner aborda o que ele chama de PASSO CRUCIAL. Ele caracteriza esse Passo como sendo, simultaneamente, ético e teórico. Descreve assim: “O PASSO CRUCIAL consiste em PERMANECER FIEL às implicações de nossa PRESUNÇÃO DA CULTURA”. Explica a formulação do passo crucial. Diz que, 1) se nossa cultura é criativa, 2) então as “culturas” que estudamos, assim como outros casos desse fenômeno, também têm ser classificadas como “cultura”, em pé de igualdade com a nossa. Mostra a consequência que ocorre em caso de não assumir o que posso chamar de igualdade cultural relativa:

1) toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, 2) negando-lhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, 3) usamos essas pessoas e seu modo de vida e 4) as tornamos subservientes a nós.

Como conclusão da conclusão ou arremate final, Wagner diz que, se CRIATIVIDADE e INVENÇÃO emergem como as QUALIDADES SALIENTES DA CULTURA, então é para elas que o nosso foco deve voltar-se agora – Cultura como Criatividade. [97] 97

91 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA. Parafraseando, em parte, Wagner, o estadólogo pode dizer que “estudo do Estado é Cultura”, assim como estudo da cultura é cultura”. Uma Ciência do Estado que pretenda ser, ao mesmo tempo, consciente e com senso de objetividade relativa, precisa assumir o fato de que estudo do Estado é cultura. Daí que ela precisa ser consciente, objetivamente relativa e culturalizada. Em nova paráfrase, o estadólogo pode afirmar que “o estudo do Estado é, na verdade, o estudo do nosso Estado, da nossa Cultura de Estado”. O estudo do Estado opera por meio das nossas formas, cria com nossos termos, toma emprestado nossas palavras e nossos conceitos para elaborar seus significados e, por fim, recria-nos (nós, os estadólogos) mediante os nossos próprios esforços. A terceira paráfrase que o estadólogo pode fazer é afirmar que a Estadologia se situa permanentemente em uma encruzilhada e tem que fazer opções. Ou se coloca como uma experiência aberta e de criatividade mútua, na qual o Estado em geral é criado por meio dos “Estados” que criamos com o uso desse conceito, ou se torna uma imposição de nossas próprias preconcepções ou


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Conclusão (Do Método Antropológico ao Método EstadológicoEstadístico)

Conclusões da Parte 1 – A idéia de cultura 1 - A cultura humana é o objeto da antropologia, na qual o homem é posto em perspectiva conceitual a partir da organização do seu próprio modo de vida (1). O conceito de cultura que se inventa exibe a concepção e o alcance do pensamento antropológico que lhe embasa a existência (2). Mesmo que seja possível uma perspectiva larga e de longo alcance para o antropológico, isso só se consegue através da insistência e persistência no trabalho de campo; não se alcança em gabinete e pela leitura de livros (3). Daí tornar-se necessário um estudo amplo e básico do homem por uma perspectiva que não fique centrada no homem do passado remoto (arqueologia), nos recônditos do pensamento do pensamento (psicologia), nem na crítica das possibilidades da ciência (epistemologia), mas sim preconceitos sobre outros Estados. A quarta paráfrase que o estadólogo tem que fazer consiste em afirmar que a Estadologia tem de permanecer fiel às implicações da nossa PRESUNÇÃO DO ESTADO. Se não o fizer – e aqui vai a quinta paráfrase – não poderá assumir a igualdade relativa dos Estados, terá de negar a criatividade dos povos para formar o seu próprio Estado e passará a usar tais Estados e povos como subservientes ao nosso Estado e ao nosso povo. Por fim, como sexta e última paráfrase, o estadólogo terá de afirmar que a criatividade e a invenção são as qualidades salientes da cultura de um povo. O Estado é, portanto, uma Criatividade do seu próprio povo. 92 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA. O estadista, como já se disse repetidas vezes, é, antes de tudo, um estadólogo com poder para modificar o Estado. Neste sentido, tudo quanto se disse acima serve para este. O estudo do Estado é cultura; mas, também, a própria modificação do Estado pelo estadista. Deve assumir que Estado é Cultura; que há uma cultura do Estado. Para o estadista também há a presunção do Estado para todo e qualquer povo, como cultura dele próprio. O estadista é parte do seu próprio povo e, na medida em que dirige o Estado, representa o próprio povo dirigindo o seu próprio Estado. Sem a presunção do Estado e da igualdade entre os povos para construir os seu próprio estado, negando-lhe a sua própria criatividade, então, esta negação tem a finalidade de tornar aquele povo subserviente, assim como o seu próprio Estado. É o que ocorre nas Ditaduras decorrentes de golpes ou de guerras de conquista (seja de que tipo for), em que se destrói o Estado posto para se impõe outro em seu lugar, negando-se ao seu povo a criatividade de seu próprio Estado. Isto em uma perspectiva externa. Em uma perspectiva interna, o estadista precisa reconhecer a presunção do Estado em outras esferas de poder, como ocorre em uma federação ou em uma confederação; ou, mesmo quando o Estado é unitário, nos diversos segmentos desconcentrados ou descentralizados, com maior ou menor autonomia decisória. O estadista reconhece que o Estado é múltiplo e uno, ao mesmo tempo, segundo a concepção do povo que o estabelece. Uma parte do Estado é o Estado uno naquela parte onde o estadista exerce a competência para o mando capaz de modificá-lo, de transformá-lo. Como instrumento do Estado, o estadista é o próprio Estado animado, pelo seus dirigentes. A vontade do estadista não é a vontade pessoal dele, mas sim do próprio Estado posta através das leis que regem o Estado; se a vontade do estadista precisa ser implementada, antes de tudo ele precisa tornar a sua vontade a vontade do próprio Estado através das leis, “lato sensu”, do próprio Estado. Um plano de governo de um estadista se torna lei do Estado, cujo concurso de aprovação passa por diversos segmentos de poder composto por diversos representantes do próprio povo. Em outras palavras, o povo é o Estado e o Estado é o povo. O estadista é o povo criando o seu próprio Estado. Esta é a criatividade do Estado.


74 no homem vivo do presente (antropologia) (4). A consciência da cultura leva a uma objetificação relativa das culturas particulares e o método seguido, mesmo que almeje, só pode estar dentro de uma perspectiva de relação entre sujeitos observadores e objetos observados (5). 2 – Existe uma igualdade entre as cultura que emerge da experiência de campo, não apenas em uma perspectiva generalizante, mas, principalmente, entre a cultura do antropólogo e a cultura nova que passa a observar como objeto de estudo, pois ele se torna um elo entre as duas culturas imbricadas (6). A combinação intercultural necessária que ocorre no trabalho de campo leva à formação de uma idéia de cultura que é fruto de uma relação intelectual de compreensão (7). O “experienciamento” do antropólogo em campo não é uma “experiência” no sentido laboratorial físico-matemático de condicionamento idealizado, mas sim de participação imersa na cultura estranha, colocando em foco a distinção entre o que é ideologia e o que é ciência na prática implementada; o produto não é uma fantasia ou romance, mas sim um relato vivencial que objetiva a cultura estudada mediante um relato de experiência “in loco” (8). 3 – As condições da experiência em campo se apresentam tanto em aspectos quantitativos quanto qualitativos, porém, os métodos de pesquisa quantitativos, como os do arqueólogo e do sociólogo, são insuficientes para exprimir a cultura vivenciada, que só pode ser compreendida e, portanto, expressa de modo qualitativo (9). Isto porque o antropólogo usa a sua própria cultura de origem para estudar a cultura dos outros povos, percebendo, a partir do contraste comparativo, que existe uma “igualdade invisível” entre elas (10). O que o antropólogo inventa é um relato da cultura estudada mediante o seu próprio experienciamento e no intento de tornar visível a sua e a outra culturas, reinventando-as no modo como e no conteúdo dos seus relatos (11).

Conclusões da Parte 2 – Tornando a cultura visível 4 – O antropólogo, sempre, em campo novo de estudos, começa do “zero” a sua participação naquela cultura específica e tudo de que dispõe são précompreensões herdadas de sua cultura de origem, que nem sempre ajudam na compreensão da outra (12). Daí que enfrenta grandes problemas que vão desde as coisas mais simples até dúvidas existenciais que revisam a totalidade do sentido do seu próprio trabalho; ele se dá conta que não está sozinho e que ao pesquisar, também é pesquisado pelos nativos (13). Dentre todos os métodos utilizáveis para ganhar a confiança e se entrosar no meio social do campo, a cortesia se torna o principal (14). Mesmo que ensaie seus modos de cortesia, os primeiros contados levam-no a uma situação de forasteiro hostilizado, risível e de difícil penetração para formar as amizades necessárias iniciais para realizar o seu trabalho (15). Ele percebe que a sua experiência anterior, inobstante útil, é insuficiente para lidar com o campo, tornando-se necessário aprender tudo de novo com os nativos, primando por uma expectativa de reciprocidade (16). 5 – O pesquisador em campo experimenta sentimentos contraditórios diante da percepção de sua condição social humana inicialmente diminuída diante dos


75 nativos (17). Esta diminuição humana leva-o a uma situação de estar totalmente perdido num campo estranho e aparentemente impenetrável à sua compreensão, sofrendo um CHOQUE CULTURAL (18). Porém, o choque cultural do antropólogo também corresponde a um choque cultural da própria aldeia com a sua presença estranha e aparentemente perigosa (19). Os dois tipos de choques culturais ocorrentes bilaterais são necessários e se superam mediante a ampliação transparente da convivência entre as duas culturas, cada qual primando pelo seu próprio tipo de controle sobre o outro (20). Tanto a aldeia quanto o antropólogo objetificam a cultura que observam no outro, não apenas como uma espécie de exorcismo cultural, como se poderia pensar, a partir da perspectiva do psicanalista ou do xamã, mas, principalmente, pela apreensão das relações como um JOGO CULTURAL em que cada membro participa de uma atitude a partir da expectativa e da efetiva atuação do outro, gerando uma interdependência na geração de todos os resultados (21). O antropólogo objetiva em si um aprendizado que não ocorre como uma criança nativa aprende a sua própria cultura de origem, mas sim a de alguém que aprende uma segunda cultura, estranha e que tem dificuldades de aprendizagem ou de “re-alfabetização” nesta extensão “superestruturada” posta e sobreposta à sua própria cultura nativa (22). 6 – A cultura de origem do antropólogo é um fato inafastável e o modo que aprendeu de objetivar as coisas é uma espécie de “muleta” que usa para entender e compreender todas as coisas; entretanto, mesmo que as coisas não sejam absolutamente objetivas, o uso é útil para o início de suas atividades (23). O ato de invenção da cultura nativa pelo antropólogo começa pelo uso analógico do seu conceito antigo de cultura para o estudo da cultura nova, entretanto, para chegar a isso, não precisa “virar nativo”; basta que observe atentamente como os nativos inventam a sua própria cultura e como a interpretam pelos seus próprios pensamentos (24). As duas culturas “em jogo” só se tornam visíveis entre si a partir do experimento do CHOQUE CULTURAL; a partir daí se torna possível a invenção, para si, da cultura do outro, ainda que ambas as leituras sejam relativamente instransponíveis (25). Tratam-se de “dois mundos de significados” profundamente diferentes e o antropólogo se torna a ponte entre eles e o meio de presencialidade do seu para os outros; a estranheza de sua presença é a mesma estranheza da presença dos nativos para a cultura posta; daí que o antropólogo se torna uma espécie de “nativo metafórico”, tanto para si quanto para a tribo, pois ele atua “como se fosse”, mas não o é; só na comparação “parece” como tal (26). O antropólogo experiencia uma espécie de “emancipação” de sua cultura de origem pela “adoção” da cultura estranha, em que escapa de uma e entra no controle da outra; há uma espécie de “conversão simbólica” entre culturas que permite a permanência e conclusão do trabalho de campo para a invenção da cultura estudada (27).

Conclusões da Parte 3 – A invenção da cultura 7 – O antropólogo, superada a fase inicial de adaptação na tribo de seu campo de estudo, percebe o sentido geral de cultura que porta e o sentido particular de cultura que tem diante de si, tendo de presumir que o sentido particular é subsumido no sentido geral; daí que esse “como se” torna possível a mudança inclusive do próprio sentido geral, que é alargado pelos novos estudos (28). O


76 momento da invenção da cultura nova se dá por meio de uma criatividade humana e esta arte criativa é tanto do pesquisador quanto dos sujeitos pesquisados, cada qual com a sua própria invenção (29). Este “jogo de faz-de-conta” da dupla invenção da cultura leva a um incremento necessário do experienciamento bilateral observadorobservado, fazendo emergir o que realmente é e acontece no campo de estudo (30). O entendimento antropológico diferenciado – e esta é a grande contribuição profissional – leva o estudioso em campo a sofrer uma metamorfose cultural que transforma até mesmo o sentido conceitual de cultura que aportava ao chegar no campo; ele se enriquece de traços culturais que levam-no muito além dos entendimentos anteriores (31). A convivência com os nativos possibilita a “pensar como se” fosse um nativo, porém, sem perder a sua condição de pesquisador em campo; mas, ele “se esquece de si” e “embarca”, inconscientemente, na intenção simbólica local e passa a agir como todos os outros agem; há uma analogia entre a positivação dos resultados da pesquisa com a arte do pintor ao retratar a realidade em seus quadros; ambos tentam descrever, a seu modo, a realidade observada; arte e ciência se encontram na tentativa de transpor a realidade para um novo meio simbólico (32). 8 – Ainda que a invenção da cultura pelo antropólogo seja um invento seu submetido a controles metodológicos, a transposição da “intuição sensível” para o “discurso intelectivo” expressa o contraste entre a imagem de realidade e a imaginação do cientista nesta transposição, cuja objetividade, por isso mesmo, só pode ser relativa à subjetividade experienciada pelo próprio cientista (33). Pode-se ver um método antropológico proposto por Wagner que apresenta sete fases ou princípios: 1 – objetificação (objetivar), 2 – modelagem (modelar), 3 – alavancagem (catapultar), 4 – aproximação (aproximar), 5 – revisão (revisar), 6 – articulação (articular) e 7 – generalização (generalizar); o centro metodológico se encontra nos segundo-terceiro e sexto-sétimo passos, em que ocorre a criação de um modelo de controle que permite saltos qualitativos e de articulação ampliativa generalizadora com contextos mais amplos de compreensão e inserção dos novos conhecimentos (34). O antropólogo cria uma representação da cultura estudada mediante um modelo que cria como se fosse o retrato dela e que permite o controle de suas experiências em campo; esta modelagem de controle que “representa” coloca-o na posição de “educador” capaz de transmitir conhecimentos de um povo para outro e, com isso, ampliar o próprio conhecimento do homem pelo homem; esta é a razão pela qual vale a pena estudar outras culturas que não a nossa (35). O objeto de estudo do antropólogo serve de controle para a sua própria invenção da cultura, segundo o método apresentado, de modo que o aprendizado amplia o próprio desenvolvimento do observador e da sua cultura de origem mediante articulações capazes de generalizações crescentes (36). 9 – A idéia de “descrição antropológica” pode ser aproximada à idéia de “figuração pictórica” experimentada pelo realismo gótico flamengo do século XV, na medida em que retrata a sociedade de seu tempo e a transmite para o futuro, permitindo ao presente o “resgate” de modos de vida de sociedades em épocas remotas (37). O retrato da condição humana da ‘sociedade renascentista flamenga como símbolo de época permite uma ressimbolização mediante a caricaturização operada a partir da obra de Bosch (38). A vida do povo na ironia caricatural de Bruegel permite ver no retrato de cenas o retrato moral e político apreendido pelo artista olhando antropologicamente a sua época de vida de modo a legar à posteridade a situação cultural em que estava imerso e da crítica que estabelece ao


77 que vê (39). A ressimbolização alegórica de Bruegel apreende os costumes locais mediante provérbios da época cujo olhar antropológico emerge como uma retrato multifacetado de uma realidade que parte da analogia para desembocar na alegoria, inventando a cultura mediante no uso da pintura como meio de expressão (40). O retrato que Bruegel pinta da realidade que vive pode ser comparada ao retrato alegórico que Shakespeare em usas peças de teatro, descontextualizando a realidade para recontextualizá-la criticamente (41). Bruegel coloca a cena religiosa cristã encarnada na vida das pessoas concretas para informar quanto para reformar a realidade vista, denunciando, por meio de metáforas, o que entende que deva ser mudado nas práticas sociais de seu tempo (42). 10 – Há um duplo sentido no uso de modelos analógicos capazes de permitir tanto a expressão da realidade quanto a interpretação do que expressa, onde o denotado serve de meio para o conotado por meio de “sinais” que indicam um a partir do outro (43). O centro de gravidade alegórico no desenvolvimento da pintura flamenga se desloca do objeto para o sujeito, da cena pintada para a pintura do artista que pinta a si próprio, como ocorre na experiência de Rubens, Rembrandt e Vermmer; o artista se vê no ato de criação de sua própria arte (44). A ausência de uma autoconsciência e de uma autopercepção no ato criativo da pintura é similar à da “arte do antropólogo” ao configurar o seu texto descritivo; ele percebe o seu objeto, mas só se percebe no seu objeto depois que já objetivou a cultura no que dela inventou; pode-se entrever cinco passos da pintura que se pode aproximar da antropologia: 1 – entendimento introspectivo, 2 – desdobramento do entendimento, 4 – extensão simultânea, 5 – externalização fidedigna e 6 – visão e apreensão da realidade (45). Daí que se pode pleitear, como ápice, uma antropologia que veja a si mesma no ato de sua própria criação pelo trabalho antropológico, onde o teórico e o ético se encontram autoreflexivamente; para que isso se torne possível é preciso que o antropólogo tenha uma postura aberta na sua observação e afaste a imposição de sua própria cultura na interpretação da cultura observada; esta encruzilhada só é superada pela consciência de que toda a cultura por ele retratada é apenas uma cultura presumida por ele, através da síntese entre a sua cultura de origem e a cultura de estudo; para tanto, precisa reconhecer a autonomia dos povos na invenção de sua própria cultura, de modo a evitar de usar os povos nativos como instrumentos para satisfação dos interesses de uma cultura estranha que a submete aos seus próprios caprichos; em outras palavras, o antropólogo não é o baluarte da escravidão, mas da libertação dos povos que estuda (46).

Conclusões da Síntese Paralela de Ciência do Estado 11 - O estadólogo pode ser comparado com o antropólogo e o setor do Estado que ele estuda é o seu campo de pesquisa presencial, participativo, interativo e de imersão observativa. O Estado só pode ser visto como uma cultura diferenciada que o estadólogo estuda para fins de melhor compreendê-lo e explicálo tal como ele é ou se parece no presente observativo do pesquisador. 12 – O estadólogo visa a conhecer e descrever o Estado; o estadista visa a modificar o Estado mediante o poder de mando de que dispõe para tal, dentro de


78 seu campo de competência legal. O estadista vê o estadólogo como um estranho na tribo do Estado com a finalidade de estudar temporariamente o Estado; o estadólogo vê o estadista como nativo do Estado e objeto de seus estudos. O Estado é comparável a uma “tribo” exótica, a “tribo do Estado”, com sua “aldeia do Estado”, com seus “nativos do Estado”, com seus “costumes do Estado”. As “leis do Estado” são apenas uma descrição do que a tribo deve ser, mas isso não quer dizer que a tribo seja exatamente como a lei prescreve, uma vez que cada “local” interpreta a lei a seu modo e dentro de suas próprias tradições de Estado. A lei é um “indício” para estudo da tribo do Estado, porém, o papel do estadólogo é a de ver a tribo real, concreta, e compará-la com a tribo virtual, ideal, posta pelos textos legais. Mesmo que a lei seja obrigatória para toda a tribo do Estado, posto que criada por ela mesma, o modo de concretização varia de local para local, de tempo para tempo e de nativos para nativos. 13 – o papel do estadista pressupõe a introjeção do papel do estadólogo, i.e., antes de mandar na tribo, deve conhecer muito bem a tribo. Como isso nem sempre acontece, o estadista precisa se fazer estadólogo, principalmente no início, mas, também, ao longo do exercício do cargo, eis que não tem a formação técnica necessária para entender a totalidade do Estado na particularidade do setor ou campo em que exerce o seu poder de mando. Para tanto, pode contratar o estadólogo para lhe aconselhar sobre o Estado e melhorar o exercício do seu poder de mando. Quanto mais o estadólogo estuda o estadista no campo do Estado, tanto mais tende a negar a si próprio e a se tornar o seu próprio objeto: o estadólogo tende a se transformar em estadista. 14 – O método antropológico de Wagner aplicado à Ciência do Estado revela a possibilidade da criação de um método antropo-estadológico de estudo do Estado, ou simplesmente, MÉTODO ESTADOLÓGICO, através do qual o estadólogo e o estadista se valem da metodologia legada pela antropologia cultural ou simbólica para descrever e para modificar o Estado. A finalidade do estudo do estadólogo é inventar a cultura do Estado para que o estadista possa melhor e mais facilmente transformá-lo segundo as diretrizes ou propostas que a sua sociedade de origem lhe incumbiu; por isso, o estadólogo precisa estar imerso em seu campo de estudo, para ver o Estado real, sem o que não poderá aconselhar o estadista em sua tarefa de direção do Estado. 15 - Por isso o estadista tende a aceitar bem o estadólogo no seu meio, mesmo sendo um estranho, pois é ele que poderá mostrar justamente o que aquele não consegue ver; o estadista não tem o olhar desarmado do estadólogo e nem pode ter, pois ele, por ter o dever de modificar o Estado, está, desde logo, comprometido com uma visão de Estado que justifica justamente o seu poder de mando no local em que está posto. O estadólogo, por ter uma visão ampla e singular de todos os meandros do Estado, pode dispor de um horizonte teórico e prático mais amplo do que o estadista e, mais do que isso, pode produzir conhecimento, tanto teórico quanto prático, para o ensino de futuros estadólogos e de futuros estadistas, melhorando, sempre, a Ciência do Estado.


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Fontes de Pesquisa

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ANEXO ÚNICO APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA

1 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA98. Para o estadólogo, cientista que estuda o Estado como objeto central de suas pesquisas, Estado é cultura e cultura é, também, Estado. Sempre que o estadólogo fala sobre o “Estado” está falando da “Cultura do Estado”, como estado como uma forma de cultura específica. Como cultura pressupõe o homem, a Estadologia estuda o Estado enquanto formação cultural humana, integrada por homens. Daí que busca um padrão geral de “Estado”, de um “modelo genérico” através do qual possa identificar diversos Estados específicos. Se a antropologia estuda o “fenômeno homem”; o estadólogo estuda o “fenômeno Estado do homem” e, nesta linha, do “homem estatal”. A palavra “Estado” apresenta, como a palavra “cultura”, conotações e ambiguidades que precisam ser esclarecidas. O estadólogo só pode abordar o Estado sob determinadas perspectivas por ele próprio escolhidas, de modo que o que ele descreve como sendo o Estado precisa ser entendida como sendo apenas “uma” visão de Estado, aquela que sua experiência de pesquisa lhe possibilitou alcançar. Podemos dizer que a estadologia, através do estadólogo “de campo”, estuda: 1 – a “mentalidade” do Estado, 2 – o corpo do Estado, 3 – a evolução do Estado, 4 – origens do Estado, 5 – instrumentos do Estado, 6 – arte do Estado, 7 – grupos do Estado, dentre outros. 2 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA99. O estadista é o dirigente do Estado; sua tarefa não é apenas estudar o Estado, mas mudar, transformar o Estado através do exercício do poder de mando, munido de capacidade para modificar a situação atual. O estudo do Estado que o estadista faz tem a finalidade de conhecer o Estado para implementar mudanças; é um conhecimento “pragmático”; daí que o estadista é um estadólogo com poder de mando sobre o Estado, de dentro do Estado, como sendo, ele próprio, Estado. O conhecimento produzido pelo estadólogo é o conhecimento do estadista, porém, para este, isso é insuficiente; ele precisa desenvolver um conhecimento “tecnológico” sobre o Estado, com vista a um “vir-a-ser” do Estado a partir das mudanças que opera.

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27.


82 O estadólogo pode estudar qualquer parte do Estado e ter uma visão geral do Estado, porém, o estadista só pode estudar uma parte específica do Estado, aquela que está dentro de sua “jurisdição” ou comando; o universo de ambos tem amplitude diferenciada; daí a sua intrínseca complementaridade. 3 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA100. O estadólogo é o estudioso da “cultura estatal” ou do “Estado enquanto forma cultural específica”. Ele usa tanto a palavra “Estado” que o seu uso se aproxima a um “auto” mais do que esperança, quase de “fé”; ele é o cientista que “tem esperança e fé no Estado”; até porque, para ele, não pode ter nada “fora” do Estado dentro do seu horizonte de estudo; e, quando se vê “fora” do Estado, põe-se apenas para poder ver os “contornos” do Estado, em uma perspectiva mais ampla, como quem observa do alto de uma colina o “vale do Estado”. O “pensamento estadológico”, por isso mesmo, é um pensamento que adota a “perspectiva do Estado” para olhar o próprio Estado. O estadólogo desenvolve um “olhar estadológico” para ver não apenas o Estado, mas tudo quanto está relacionado com o Estado. Isso não quer dizer que não haja nada “além” do Estado; dize-se apenas que, enquanto estadólogo, precisa estar centrado no seu objeto e ver os demais objetos pela perspectiva dele. 4 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA101. O estadista tem o olhar estadológico com um “plus”, o olhar de mando, de condução, de poder de transformar o Estado, um “olhar estadístico”, por assim dizer; não é o olhar que meramente contempla; é o olhar de um “artesão” que vê para produzir o próprio Estado. Não quero dizer que o olhar “pragmático” esteja alheio a um olhar “descritivo” ou mesmo “especulativo”, como do filósofo do Estado; quero dizer que no seu olhar predomina o “olhar da mudança” que ele próprio deve operar. Como o Estado não opera com apenas um estadista, mas com dezenas, centenas ou mesmo milhares deles, distribuídos em diversos “espaços” de poder de mando, sincronizados ou não e com variados graus de subordinação e coordenação, o estadista é parte de uma “comunidade de estadistas” que comanda o Estado, num determinado tempo e lugar, historicamente posta. Mais que o estadólogo, o estadista é um “reconvertido do Estado” (duplamente convertido – estudioso e operador); ele se torna a encarnação, a materialização do próprio Estado; é mais do que um “sacerdote do Estado”: é o “agente do Estado”, aquele através do qual o Estado “age”concretamente; por isso, não pode “reclamar do Estado”, pois equivaleria a reclamar de si mesmo; só ele tem o poder de fazer o Estado ser o que efetivamente é, e o que virá-a-ser, dentro do seu espaço de poder e mando, dentro de sua transitoriedade. 5 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA102. A estadologia tem um campo de observação que é ao mesmo tempo um horizonte longo e largo e isso torna do mesmo modo o olhar do estadólogo. Ele estuda a totalidade do fenômeno do 100 101 102

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27-28. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27-28. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 27-28.


83 Estado e esta perspectiva implica no estudo da totalidade do fenômeno do homem, pois o Estado é o próprio homem em sua organização diretiva da vida em comum. Nada pode ficar de fora do estudo estadológico, a menos que se perca parte do próprio fenômeno que estuda. Por isso, todos os campos de estudo “tangenciam” o campo do Estado e não podem ser ignorados pelo estadólogo. Como ele não pode estudar a “totalidade do Estado” se não começando pelas suas “partes”, pelas suas manifestações fragmentárias, precisa operar uma “redução estadológica” capaz de dar conta do específico antes de “reconstituir” o todo que seu alcance visual for capaz de atingir. Precisa atingir o “nível de significância mais básico” de compreensão do Estado antes de atingir o “nível de significância mais geral” ou universalizado. A “redução” de que se fala implica na construção de “modelos estadológicos” ou “modelos explicativos” que o estadólogo constrói dentro do quadro de compreensão pela observação, estudo e reflexão. Como não existe apenas “uma” única “cultura estatal” na variedade de Estados existentes, assim como não há “uma” única cultura dentro mesmo de um único Estado, o que o estadólogo constrói é um Padrão Estadológico que lhe serve como instrumento ou guia para novas pesquisas de seu objeto. É com base nesta “padrão” construído que o estadólogo observa e compara as diversas “culturas estatais”, descritas, na sua ciência, como “culturas estadológicas”. 6 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA103. O estadista não é um estadólogo; sua função não é observar e construir “modelos explicativos”; a sua função é criar “modelos operacionais” ou modificativos do Estado; por isso, precisa das descrições emergentes dos “modelos estadológicos” para orientar a criação dos seus próprios modelos de ação. O “modelo estadístico”, por ser também um “padrão” inventado pelo estadista, é uma “redução” capaz de explicitar um “programa de ação” em suas partes mais básicas ou fundamentais. A “redução estadística” é um esquema de um “programa de governo”, tanto em sua fase prévia quanto implementada. Cada “coisa” observada no Estado foi produto de um “modelo estadístico” implementado por um determinado estadista no passado; esta tarefa de “descoberta” incumbe ao estadólogo; ao estadista incumbe inventar o seu próprio “modelo” ou “redução”, cuja base de significado é a transformação do Estado, por menor que ela seja, ainda que se limite à “mera conservação” do que já foi feito antes de sua chegada no comando. Como há uma “variedade” de culturas de Estado dentro do próprio Estado, a “cultura local” é a cultura do estadista que tem competência para o mando sobre aquele setor, parte, território ou circunscrição; ali está posto, sempre, um modelo estadístico que se torna e se apresenta como um “modelo estatal”, i.e., um modelo do próprio Estado, sem que se possa perceber, com o passar do tempo, a “marca pessoal” do estadista que o implementou. Com isso se quer dizer que o Estado é uma “construção coletiva”, de uma “comunidade de estadistas” que se sucedem, cada qual acrescendo a sua contribuição sobre as contribuições anteriores. Daí que, o olhar estadístico, quando 103

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84 “vê” a parte do Estado que comanda, vê apena uma “redução estatal”, a síntese de tudo quanto já foi construído até ali. 7 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA104. O estadólogo estuda o Estado como “cultura” tanto em sua singularidade quanto em sua generalidade; vê o “Estado em sua singularidade” (este Estado, aquela parte do Estado) e o “Estado em sua diversidade” (o Estado como um Estado dentre vários ou uma parte dentre várias do mesmo Estado). Nisso ele se diferencia do epistemólogo do Estado, que vê apenas o significado do significado do Estado, e do psicólogo do Estado, que vê apenas os pensamentos dos estadistas e funcionários do Estado. O estadólogo é obrigado a incluir a si próprio como parte do Estado que observa, uma vez que o Estado também é foi construído, de alguma forma, ainda que indiretamente, por ele, como parte do povo e da sociedade que inventou o seu próprio Estado. Na medida em que o estadólogo investiga o Estado, inevitavelmente, “investiga a si próprio”. Como também é cultura a “totalidade das capacidades de um pessoa”, o estadólogo usa sua própria cultura para investigar outras culturas, como a cultura do Estado, ele se “vê” como parte do Estado que observa; mesmo que estude o Estado de uma outra cultura que não a sua de origem, como um estrangeiro, mesmo assim, como homem, estuda, de certa forma, o seu próprio Estado, posto e integrado por ele próprio. O estadólogo é, sempre, de certa forma, o próprio Estado que observa, como uma cultura que observa outra cultura e que, por mais paradoxal que possa parecer, é, ainda assim, em graus diferenciados, a própria cultura humana observando a si própria. 8 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA105. Para o estadista a situação é ainda mais grave do que para o estadólogo. O estadista é, efetivamente, o próprio Estado observando a si próprio e modificando a si próprio, pois é ele que age como Estado e transforma-se. Por mais que o estadista possa se ver como sendo uma cultura “à parte”, distinta do Estado, enquanto estadista, é “parte” do Estado e somente pode ser visto como estadista na medida em que opera no, pelo e para o Estado. Ele não pensa o Estado como um epistemólogo ou como um psicólogo, ocupado com o sentido do sentido ou com o pensamento dos outros estadistas, mas sim com o próprio “pensamento estadístico”, que tem a missão de operar mudanças consoante o programa (de governo, legislativo ou judiciário) que o conduziu ao papel de mando e condução do Estado, dentro de sua esfera de poder. O estadista, por ser um homem, também porta a sua própria “cultura” pessoal e deve utilizá-la para modificar a “cultura” do Estado que encontra no seu nicho de poder; as modificações que introduz com a sua cultura torna-se, a partir da materialização modificativa, em cultura do próprio Estado. É uma cultura que

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85 modifica outra cultura e, no ato de modificar, torna-se a própria outra cultura; a cultura do estadista é a cultura do Estado. 9 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA106. O estadólogo precisa adquirir uma “consciência do Estado” como sendo uma “consciência da cultura do Estado” com o objetivo de “estudar esta cultura” que tem diante de si e que é distinta da sua “própria” cultura de origem. Temos aqui uma distinção qualificativa importante posta entre “objetivos” e “pontos de vistas” do estadólogo. O seu objetivo é se apropriar, pela observação, da cultura do Estado; os seus pontos de vista não são os do Estado, mas sim os seus sobre o que observa no Estado. Portanto, o que é “objetivo” no Estado é o que ele “vê” no Estado e não o que ele “pensa” sobre o que vê. Como ele somente pode “dizer” o que “vê” através do que “pensa” sobre o que vê, então, não pode tomar o que “pensa” como sendo uma objetividade absoluta do Estado que vê, mas apenas como sendo a “sua visão”, naquele momento de observação, dentro do acúmulo do que já apreendeu no que viu e pensou. A objetividade que o estadólogo pode alcançar é apenas uma objetividade relativa do Estado, sempre propensa a modificações pelo avanço de sua pesquisa e dentro dos limites do que pode alcançar. Como o que o estadólogo pensa é fruto de sua própria cultura, ele tende a não perceber que o que pensa é apenas o que ele pensa e não o que vê; parece-lhe “natural” pensar do modo que pensa. Daí que há uma “invisibilidade” da cultura do estadólogo para si próprio; mas, ele precisa “desvendar” a sua cultura no contraste com a cultura que observa, a partir da outra cultura. O estadólogo precisa buscar alcançar o máximo de objetividade e de imparcialidade que conseguir, sempre consciente de que sua observação é a observação de uma cultura que observa uma cultura que lhe é “estranha” e que, justamente por isso, está sendo conhecida por ele. Há três passos para ele conseguir alcançar esta objetividade relativa. Primeiro, o estadólogo deve se dar conta de seus conceitos e de suas tendências para pensar o que vê no Estado; segundo, deve descobrir as tendências pelas quais a sua cultura pessoal tende a explicar a cultura do Estado que observa; terceiro, deve descobrir as limitações que esta sua cultura lhe impõe para compreender a cultura do Estado, de modo a poder rever os seus próprios préconceitos e criar conceitos mais congruentes com o que observa. Este “método de objetivação consciente” lhe permite o uso de sua própria cultura, auto-observada criticamente, como instrumento para observar e estudar mais objetivamente a cultura do Estado, a partir do próprio Estado. É impossível observar o Estado sem a cultura prévia do próprio estadólogo; sem esta o próprio Estado seria impensável, vez que implicaria na própria inexistência da cultura – a objetividade absoluta como impossibilidade lógica e existencial humana.

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86 10 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA107. O estadista também porta a sua própria cultura pessoal que ele traz para dentro do Estado e empresta a este o que dela usa para transformá-lo, tornando, no ato de transformação, a própria cultura do Estado. A objetividade do estadista é profundamente diferente da do estadólogo; enquanto este precisa fazer um esforço consciente para não misturar a sua cultura com a cultura do Estado, no intuito de melhor aprende com este, o estadista faz exatamente o contrário; ele precisa misturar a sua cultura com a do Estado para fazer emergir uma nova cultura, uma síntese da sua cultura com a síntese de todas as culturas já sintetizadas no Estado. O estadista é obrigatoriamente parcial e não pode nunca deixar de ser objetivo, pois é ele que move o Estado, que muda o Estado a partir de si próprio com os meios já disponíveis; a objetividade do estadólogo é também relativa, pois mudando a pessoa que exerce o papel de estadista, muda a cultura que interage com a cultura do Estado e o resultado, sempre, será uma cultura diferente da que seria com a presença de outro. Podemos dizer que a cultura do Estado é uma síntese da cultura de todos os estadistas que passaram pelo Estado e que cada estadista deixa a sua marca, como que um “tijolo” a mais no “muro” da construção coletiva; a saída do estadista do Estado implica na objetivação de sua cultura como cultura definitiva do Estado; o estadista como que “se aliena” no Estado para construí-lo. No tocante à chamada “cegueira natural” do estadista, é a mesma do estadólogo, mas só enquanto ele não souber distinguir a sua própria cultura das culturas anteriores e posteriores do Estado; do que era do estadista e que o Estado se apropriou como sendo seu e não mais daquele. 11 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA108. O estadólogo precisa se colocar diante de seu campo de observação do Estado como sendo um observador que porta uma cultura determinada que é distinta da cultura que observa; mais do que isso; como se tratam de duas culturas distintas, há uma “equivalência cultural” entre o que ele pensa que seja o Estado e o que o Estado concreto lhe mostra como sendo ele mesmo. Por mais que o estadólogo possa pensar que a sua cultura sobre o Estado é “superior” à cultura que observa no seu campo de Estado, fato é que ele precisa “igualar” tais culturas, ainda que de um modo presumido. O estadólogo estabelece a “presunção de isonomia cultural” como modo ou pressuposto para poder apreender e aprender com a nova cultura de Estado que tem diante de si; sem esta presunção da autonomia da cultura do Estado em relação à sua, ele não poderá atuar como estadólogo, ainda que possa estar “se pondo”, indebitamente, como um “estadista” que não é, pelo menos enquanto observador e estudioso do Estado. Temos aqui um método de estabelecer a equivalência cultural. Primeiro, o estadólogo observa o Estado como sendo uma “manifestação específica”, um “caso” do fenômeno Estado. Em segundo lugar, deve ter em mente que não há um “método infalível” para classificar as diferentes culturas estatais e para ordená-las em “tipos naturais” ou absolutos. Tudo quanto o estadista pode 107 108

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28-29.


87 fazer é propor o seu método classificatório e ordenar as tipologias que conseguir especificar em seu campo de observação. Ao proceder deste modo, o estadólogo conseguirá alcançar uma “relatividade estatal” a partir da presunção da cultura estatal diferenciada em diversas observações. 12 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA109. O estadista precisa, também, como o estadólogo, presumir a existência cultural do Estado com autonomia em relação à sua própria visão de Estado, que a sua cultura pessoal porta; para isso, precisa observar o Estado como algo dado, posto, próprio, distinto do que ele pensa sobre tal. Isto implica em ver o setor que dirige como sendo uma parte, um caso do fenômeno geral do Estado e que tudo quanto vê, denomina, conceitua, tipifica e classifica, dentro de seus próprios métodos, nada mais é do que a sua própria contribuição para a compreensão do Estado e em função do que implementa as mudanças que entende necessárias dentro do seu “espaço” de mando. O estadista não é “pura ação”, assim como o estadólogo não é “pura cognição”; o que os diferencia é o papel, se é para “modificar” ou para “descrever” o Estado. Ainda que para modificar precise, antes descrever o que vê, descrever o que vai fazer e descrever como é que vai ficar o Estado depois da mudança, ou seja, planejar e acompanhar a execução do projeto de mudança, fato é que ele, também, depois de “feita a obra”, precise observá-la e “re-conhecê-la” como faria um estadólogo que não tivesse feito parte do processo objetivo de mudança do Estado. O estadista é o “homem da mudança”, mas, por isso mesmo, é, o tempo todo, também, o “homem da observação e do controle”. 13 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA110. O estadólogo vê o Estado como um “objeto” e se “relaciona” com ele através de seu ato de observação (sujeitoobjeto). A “objetividade” emerge do fato de observar o Estado como objeto de estudo. Como o estadólogo está posto como “sujeito” que “olha” e se propõe “ver”, esta proposição indica uma “relação” de observação que vai do observador ao observado com a finalidade de “produzir” uma “descrição” do que é visto e “relatar” esta descrição a um público mediante atos verbais ou de escrita. Portanto, a produção do estadólogo é “relativa” ao que ele descreve como observação e “relativa” ao objeto que serve de base para suas observações. Esta relação (estadólogo-Estado), por ser primeira, conduz ou determina a forma da segunda relação (estadólogo-texto sobre o Estado). Daí que se pode dizer que há dois princípios envolvidos na atividade do estadólogo: o princípio da objetivação, derivada do fato de que ele faz parte de uma cultura que observa outra cultura e presume o que observa como sendo uma cultura “existente” tal como ele a descreve; e o princípio da relatividade, derivada do fato de que a cultura observada no Estado tem uma equivalência relativa com a cultura por ele utilizada para observá-la e sem a qual não teria condições para estabelecer a própria observação que implementa. A síntese destes dois princípios indica a presença, sempre, de uma cultura que observa outra cultura; há uma observação “intercultural” posta neste intercâmbio observativo. 109 110

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 28-29. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29.


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14 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA111. O estadista também está imerso nos princípios da objetivação e da relativização, pois ele, como pessoa, porta uma cultura própria que observa o Estado para implementar neste as mudanças que planeja, com vistas, no mínimo, a uma finalidade de “melhoria” ou de “aprimoramento” do próprio Estado. A “observação” estadística é uma “observação interventiva”, que se “mistura” à cultura do Estado; não se trata apenas de “olhar para ver”, mas de “olhar para modificar” o comportamento do Estado. Se o estadólogo apenas “se comunica sem intervir”, para intervir em outra cultura mediante o discurso que vier a produzir como relato do “visto”, o estadista “se comunica intervindo”; a sua intervenção é “no objeto” observado e não em outro objeto que lhe servirá de plateia ou audiência. Mesmo que a intervenção do estadista também possa ser usada depois como “relato” para outros grupos, este relato já será com o olhar do estadólogo e não mais do estadista, uma vez que representa o “estudo” e não o “ato modificativo”. A objetivação do ato interventivo e a relatividade da intervenção indicam culturas que se aproximam e se integram na especificidade do mando executado ou implementado na composição da nova realidade do Estado. 15 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA112. O estadólogo, como o antropólogo, “não faz experimentos”, como um físico em seu laboratório, que reproduz fenômenos da natureza em condições idealizadas. O estadólogo só pode “experienciar” a cultura que observa imerso nela. O conceito “experienciar” indica uma “experiência participante, envolvida, interativa”, sem distanciamentos capazes de ocultar a presença do estadólogo. Os agentes do Estado e estadistas percebem a presença do estadólogo que os observa e atua “como se fosse” um deles, mas a sua função não é a de “produzir o Estado” mediante mudanças por ele implementadas e sim a de “observar o Estado” mediante o olhar descritivo de suas próprias interações. O estadólogo é um “estranho no Estado” que é integrado de modo passageiro e por isso é “aceito” como tal pelos “nativos”, em maior ou menor grau de aceitação. As teorias e descobertas feitas pelo estadólogo visam “descobrir” o Estado tal como ele se apresenta e não produzir “fantasias” sobre o Estado. Na media em que substitui a observação objetiva pela fantasia, produz o que podemos chamar de FANTASIA ESTADOLÓGICA, pois “descaracteriza” a observação mediante “adulteração” da realidade posta. Como o olhar do estadólogo é carregado de uma cultura diferente que está na base ou origem de sua própria formação anterior, este olhar, se não for controlado para que possa ver a nova cultura como uma cultura objetiva e diferenciada da sua, com características próprias e que ensejam explicações novas sobre os fenômenos observados, então, pode o estadólogo não conseguir “descobrir” a nova cultura, mas apenas produzir um “arremedo” de cultura orientada por pré-conceitos que não

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29.


89 puderam ser superados pelo “experienciamento” implementado no próprio campo de observação do Estado. Esta fantasia estadológica produz uma espécie de IDEOLOGIA ESTADOLÓGICA, que consiste em uma explicação descontextualizada da cultura do Estado observada, mas que é afirmada como emergente do próprio campo de observação. Tanto a fantasia quanto a ideologia estadológicas podem ser produto da “orientação” ou “finalidade” do estadólogo em campo; se a sua finalidade em campo é “detonar” (para usar um termo de gíria brasileira ainda em voga) o Estado que observa, então, a sua ideologia é consciente e propositada para “convencer” outros “plenários” sobre uma realidade que não existe, mas que é apresentada como existente. Mas, pode ser que seja uma atitude “ingênua”, produzida pela “inconsciência” e “despreparo técnico” do estadólogo. Em qualquer dos dois casos, não estamos diante da produção da Ciência do Estado ou Estadologia, mas sim diante de uma posição política determinada de contraposição. 16 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA113. O estadista, por ter a finalidade de mudar o estado, ao contrário do estadólogo, que precisa estar afastado da fantasia e da ideologia para produzir ciência, ele próprio age mediante uma concepção ideológica determinada; é a sua “fantasia de Estado” ou “ideologia de Estado” que pretende implementar na mudança do Estado atual. O estadista não tem isenção; ele é obrigado a tomar posição e a sua “utopia”, “sonho” ou “desejo” ou “visão de futuro” do Estado dita o que “deve-vir-a-ser” o Estado. A ideologia estadística é motor de mudança do Estado. É esta ideologia do estadista que pode ser contraposta pela ideologia do estadólogo, no ato de observação, em que abandona a posição de cientista e se torna um “político” de oposição ao que observa no seu campo de Estudo. O olhar contraposto é o olhar típico do estadista “recém chegado no Estado”, munido de poder para operar mudanças; e, se não tiver este olhar contraposto, tudo quanto pode fazer é “dar continuidade” ao que está “posto”; toda a mudança constitui, aqui, na “antimudança”, na “conservação”, na “manutenção do status quo ante”. Se é negativa, do ponto de vista da Ciência do Estado, a posição do estadólogo que se posiciona ideologicamente diante do que vê, perdendo a objetividade relativa de sua posição de mero observador científico, a posição do estadista já é positiva do ponto de vista da mesma ciência, uma vez que se trata do próprio Estado agindo por si mesmo através do estadista no comando. O estadista, ao perceber a posição ideológica do estadólogo, tentando intervir modificativamente no campo de observação, tem toda a legitimidade para “excluí-lo” do campo e negá-lo o direito de observar o Estado por ele dirigido, já que é um “estranho” que não tem o direito de “agir no” Estado a partir da posição que lhe permitiu “estar” no Estado; houve uma ruptura do “PACTO OBSERVATIVO” por parte do estadólogo, pois deixou de ser estadólogo e se tornou, naquele campo, um “estadista ilegítimo”. 113

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29.


90 17 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA114. É legítimo ao estadólogo se perguntar “o quanto de experiência é necessário” para que ele se torne um estadólogo no sentido denotativo e otimizado do termo profissional. Para tanto, é inevitável se comparar com o sociólogo, com o arqueólogo e com o antropólogo. Para atingir um “quantitativo de experiência”, ele se pergunta o que é necessário para atingi-la: 1) ser “adotado” por um setor do Estado; 2) fique “intimo” do estadista; 3) case com uma filha do estadista; ou basta que ele fique distanciado da “tribo do Estado”, do campo efetivo do Estado real, e 4) veja “slides” sobre o Estado, 5) estude “mapas” do Estado e 6) “entreviste” alguns funcionários do Estado? Uma, algumas ou todas estas “estratégias” devem ou podem ser usadas pelo estadólogo? Para o estadólogo “saber o máximo possível sobre o Estado” ele precisa, antes de tudo, ter consciência de suas “dependências pessoais”, que servem de “pressuposto objetivo efetivador” de sua própria atuação no campo de observação, tais como: 1) tempo disponível (duração), 2) dinheiro disponível (financiamento) 3) abrangência pretendida (extensão), 4) propósitos do “empreendimento” de campo (finalidade); 5) equipamentos disponíveis (instrumentos técnicos de observação). A “capacidade de observação” do estadólogo depende destas “questões prévias” e que condicionam a execução de sua pesquisa e, consequentemente, o produto dela emergente (a extensão e a profundidade do relatório de pesquisa – o saber produzido). O estadólogo, ainda que se distinga de outros profissionais, tem atividades em comum com o arqueólogo, na medida em que busca “indícios” do Estado passado; com o sociólogo, na busca de “amostragem” do Estado presente; com o antropólogo, na busca “abrangência”. Mesmo que o estadólogo se utilize de mecanismos como “amostragem”, “evidência”, “indício”, “estimativa” e “desvio”, que caracterizam a “pesquisa objetiva”, o centro de sua atividade tende mais para a “pesquisa qualitativa”, que prima pela “abrangência e profundidade” da “cultura estatal” observada, de modo a “encontrar” o “Estado real, vivo, concreto, “pulsante”, “do momento atual”, que é alcançado mediante uma “imersão” pessoal na própria cultura do Estado, de modo a poder vêlo “de dentro” e “por dentro”. O rigor científico do estadólogo é um “rigor diferente”, que não fica adstrito, exclusivamente, ao “metro”, mas, mais abrangentemente, à “impressão” que obtém e que é capaz de verter em conhecimento objetivo relativizado à visão que lhe esteve disponível durante o “experienciamento”. Sem integrar a pesquisa “quantitativa” com a “qualitativa” em sua pesquisa, o estadólogo corre o risco de se tornar outro pesquisador, mas menos um estadólogo diante do seu campo de observação. 18 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA115. O estadista se vale do conhecimento do estadólogo para entender e compreender o Estado no setor em que exerce o seu poder de mando; sem tais saberes, que pode ser produzido por ele mesmo, enquanto estadólogo, ou pode pesquisá-lo na produção por este feita; o que não 114 115

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29-30. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 29-30.


91 pode é o estadista ficar “cego” para o Estado diante de sua incapacidade científica para enxergá-lo em óticas distintas daquela que ele dispõe com a cultura que aporta. Daí que é aconselhável que o estadista “contrate” estadólogos para aconselhá-lo no conhecimento do Estado e para perspectivar as mudanças que pretende implementar. Entendo que é insuficiente contratar sociólogo, antropólogo, arqueólogo para “desvendar” o Estado que tem diante de sua frente e que “reclama” a sua atuação de estadista; ele precisa contratar especialistas cujo objeto central e único de estudo é o Estado. Mesmo que o estadista seja, também, um cientista do Estado, um estadólogo, as limitações de sua experiência sempre aparecem diante da insubsistência de seus conhecimentos sobre a parte do Estado que lhe foi atribuída para o exercício do poder, pois os estadólogos também se especializam em “setores” do Estado; é preciso estabelecer “escolhas” dos profissionais mais adequados para os fins modificativos que tem em mente; ou, até, para saber, quais são os problemas existentes, quais são as soluções apontadas; quais são as experiências já implementadas, as que deram e as que não deram “certo”. Não pode o estadista ficar adstrito aos “informes” dos funcionários locais do Estado, pois a ótica deles, inobstante serem importantes, não são suficientes para um saber totalizante. Tornar os “funcionários” do quadro permanente, devido à “sua experiência” local, “conselheiros-mór do estadista” pode tornar o estadista dependente da “cultura local” e impedir que ele veja para além do que está posto no discurso funcional tradicional, o que vai se refletir na formulação de propostas modificativas e seu implemento “funcional”; isto porque o estadista precisa aportar “de fora” o que será “acrescido” ao Estado, como contribuição de sua própria atuação como dirigente temporário. Nada obsta que, também, possa dispor da visão daqueles outros profissionais, formando uma “equipe multidisciplinar de consultores” para um “aconselhamento” mais abalizado; porém, a “responsabilidade” pela decisão será sempre do estadista e ele responde pelas limitações de suas próprias escolhas. 19 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA116. O estadólogo estuda o Estado como uma “cultura estatal”, que se apresenta como um conjunto de pensamentos e de ações de um grupo homogêneo de pessoas que ele observa. Aqui aparecem duas culturas em cena: a cultura do estadólogo e a cultura do Estado. O estadólogo usa a sua cultura de origem como instrumento de interpretação da cultura do Estado. Como ele precisa “entender” e “compreender” o Estado a partir do próprio Estado, mas não pode se desvencilhar do que já sabe sobre o Estado, então o estadólogo se torna um “elo” entre as duas culturas e vai em busca da construção de uma “síntese intercultural” que expressa tanto o seu aporte anterior quanto o aporte posteriormente incrementado ao anterior. O saber novo que adquire é diferente do que sabia antes, pois tem novas agregações que modificam e dão nova síntese ao que já sabia. O saber produzido pelo estadólogo de campo é um saber que “simboliza” o seu objeto pela ótica da 116

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92 interpretação usada; esta simbolização não indica apenas que a cultura dele interpreta a cultura do Estado, mas sim que ele muda a própria interpretação anterior por uma nova que emerge de seus estudos. Há um sinal de “igualdade invisível” e pressuposta entre as duas culturas postas em “jogo” pelo estadólogo; se esta igualdade não for pressuposta, o estadólogo pode correr o risco de produzir mais ideologia do que ciência. 20 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA117. O estadista é também um elo entre duas culturas. Digamos que a cultura de origem do estadista seja chamada de “cultura da sociedade civil” e que a cultura do Estado seja chamada de “cultura estatal”; quando ele chega no Estado, só dispõe da cultura da sociedade para interpretar o Estado; mas, como ele “entra” para dentro do Estado, tornando-se um seu “integrante”, então, ele mesmo se torna “parte do Estado” e seus atos são observados, pelo estadólogo, como sendo “atos de Estado”. Assim, mesmo sendo o estadista um elo entre a sociedade e o Estado, a cultura da sociedade se torna, através dele, a cultura do próprio Estado; mas, não ocorre uma simples “transposição cultural”, pois o estadista muda os traços culturais que aporta para “adaptá-los” à realidade do Estado, dentro das circunstâncias históricas do próprio Estado. Por mais que o estadista pense que “conhece melhor o Estado” de fora, é de dentro que ele passa efetivamente a conhecê-lo e este novo saber modifica o anterior. Na medida em que o estadista transforma a sua própria concepção de Estado, transforma-se de cultura da sociedade em cultura do Estado. Esta “ambivalência” de ser, ao mesmo tempo, Estado e Sociedade, só pode ser sintetizada de modo simbólico nos próprios atos modificativos ou de mando no Estado como do Estado. Digamos que o estadólogo é o sujeito pesquisador que observa o estadista na construção do Estado; e que o estadista é objeto de observação e de pesquisa do estadólogo. A diferença é que o estadista só age dentro de sua esfera limitada de poder e de mando, enquanto o estadólogo pode ver todas as esferas de poder e de mando, colocando cada uma em seu devido lugar, dentro de um quadro geral que “retrata” (representa e interpreta) o Estado como um todo dotado de significação. Este “retrato total’ representado e interpretado é um “símbolo da cultura do Estado” e sem o qual o estadista fica cego para operar no espaço menor de sua competência efetiva durante o seu mandato. 21 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA118. O estadólogo “INVENTA O ESTADO”, não no sentido de que é ele que “constrói” o Estado real, mas sim que a sua narrativa do Estado é uma invenção, uma criação sua, que emerge de sua pesquisa, segundo seus pontos de vista sobre o que observou. Mas, a sua observação não é como a do sociólogo ou do politólogo, que olha “de fora” o Estado, pois o estadólogo “entra para dentro” do Estado como um observador-participante, que atua “com” o Estado, mas sem ser “parte” do Estado; ele interage com os 117 118

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93 “nativos” do Estado na atuação destes, mas sua tarefa principal é observar e relatar; quem “faz” o Estado é o nativo, o estadista. À medida em que ele observa a cultura do Estado, o que descobre confronta o que já sabia sobre o Estado e isso gera um CHOQUE CULTURAL, que podemos chamar um choque estadológico, que é o primeiro passo para que o estadólogo “introjetar-se” na nova cultura e mudar a sua própria concepção de Estado. Esta mudança de concepção que o estadólogo sofre se apresenta quase que como uma mudança de personalidade, pois ele se torna “como se fosse” um nativo do Estado, assumindo os traços culturais do Estado. Uma visão mais atrasada, maniqueísta, preconceituosa e antiga poderia qualificar esta transformação da personalidade como uma “lavagem cerebral”, porém, é apenas uma mudança cultura efetiva que a pessoa sofre a partir da uma espécie de “aculturação”. Isto porque a atuação do estadólogo não é apenas de uma observação, mas sim, também, de um aprendizado; o estadólogo aprende “como é ser” um nativo do Estado e, também, como “vir a ser” um estadista. O estadólogo, neste “ritual de passagem” torna visível para si a sua cultura anterior sobre Estado e, ao mesmo tempo, torna visível para si a nova cultura do Estado, que lhe era desconhecida. É como se o estadólogo, antes deste processo de “conversão”, não tivesse nenhuma cultura sobre o Estado e a partir de agora passa a ter uma, que emerge de sua própria experiência no Estado. Com isso, o estadólogo inventa a sua própria cultura anterior (que se torna visível para si) e inventa a nova cultura (que também se torna visível para si. O estadólogo apreende o Estado em processo como: 1) uma entidade distinta, 2) uma maneira de fazer as coisas e, depois, como 3) uma maneira segundo a qual ele próprio poderia fazer as coisas. Em outras palavras, o Estado é visto como “entidade”, “modo de fazer as coisas” e “modo de ele próprio fazer as coisas por si mesmo”. O estadólogo se torna como se fosse nativo do Estado; está preparado para se tornar parte do Estado, um estadista. 22 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA119. O estadista é um “salto” de qualidade do estadólogo no Estado e para o Estado; o estadista é o estadólogo anterior que se transformou em “elemento” do Estado. O estadista, de início, ao estudar o Estado para modificá-lo, sofre o mesmo processo do estadólogo, acima descrito; depois, integrado como parte do Estado, opera a transformação do Estado, eis que dotado de poder para o mando. O futuro do estadólogo é o estadista, porém, enquanto estadólogo, nada pode mudar no Estado; apenas pode apreendê-lo, estudá-lo e produzir conhecimento sobre o Estado. A intervenção transformadora é um “plus”, um “salto” para além da mera “contemplação”, para tornar o Estado atuante por si mesmo, através dos atos modificativos que aplica. Se, para o estadólogo, o Estado é uma “entidade distinta”, para o estadista, o Estado já uma mesma e única entidade que age através dos seus próprios atos; o estadista é o Estado em atuação, pois os seus atos são interpretados como sendo os atos do próprio Estado; o subjetivo da ação pessoal do 119

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94 estadista é objetivado no ação coletiva do Estado; o múltiplo do estadista se torna o uno do Estado. Aqui ele já não tem mais o problema do choque cultural, pois já o superou, integrando-se como Estado, pensando como Estado e agindo com Estado; o estadista e o Estado são uma coisa única, uma só entidade indissociável, enquanto durar o seu mandato. 23 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA120. O estadólogo, mesmo que tenha algum conhecimento prévio sobro o novo campo de Estado que vai estudar, mesmo assim ele, quando chega a campo, pela primeira vez, fica “meio perdido” (para usar uma expressão tipicamente brasileira), tendendo a se sentir meio “solitário” e “desamparado”; estes sentimentos são corriqueiros, inevitáveis e imprescindíveis, para o início da construção do experienciamento, com uma adaptação mínima. Os modos de conhecimento prévio do estadólogo são três: 1 – teve acesso relatos verbais sobre o campo do Estado para onde irá realizar sua pesquisa; 2 – aprendeu alguma coisa sobre outros campos similares do Estado; 3 – leu sobre a experiência de outros estadólogos no mesmo campo ou em campos similares do estado. Tudo isso é apenas conhecimento abstrato, como ocorre com o saber “acadêmico”. É necessário enfatizar que o estadólogo é uma “pessoa”, assim como todos os integrantes do campo, os funcionários “lato sensu”, os “nativos do Estado”. Trata-se de pessoa lidando com pessoas. Mesmo que o estadólogo saiba falar a “linguagem do Estado”, no “dialeto” do setor ou campo, ele, sempre, vai, de alguma forma, “começar do zero”. Ele se torna uma pessoa participante que vai começar a inventar a cultura estudada. Esta invenção é a “invenção de um discurso”, de uma “fala que descreve e discorre sobre o que observa”, em geral materializado em forma de “relatório de pesquisa”. A sua atitude em campo é a de “um nativo diferente”, para quem olha de fora, pois ele está no campo, mas não faz parte orgânica dele; tem função específica e passageira. A experiência de campo do estadólogo é um tanto paradoxal, pois, em sendo “diversificada” e “multifacetada”, ainda assim é vista como “monolítica”, no sentido de que esta diversidade forma uma unidade, um bloco específico daquele campo de estágio. Daí a dificuldade inicial de aproximar-se, visualizar e apoderar-se dos conteúdos disponíveis. 24 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA121. O estadista chega no seu campo de Estado como “chefe”, como alguém munido de poder para mandar e reclamar obediência aos seus comandos. Entretanto, mesmo empoderado, ele chega, pela primeira vez, como chega o estadólogo; tem que começar do “zero”, mas do “seu zero” ou marco inicial. Precisa construir uma série de saberes a partir da observação atenta e do registro da memória do que vê, de modo a poder estudar, minuciosamente, tudo quanto há ali. O campo do estadista é, de início, monolítico, aparentemente impenetrável, mas, aos poucos, vai percebendo as diferenças e as facetas disponíveis ao seu 120 121

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95 acesso; com isso, o que era monolítico, torna-se múltiplo, visto por uma miríade de detalhes com sentido próprio. Mesmo assim, esta análise não desfaz o campo como monolítico para os de fora, que precisariam fazer esta “travessia” para se apropriar e conhecer, por dentro, o Estado. A vantagem do estadista é que ele se impõe no campo; o estadólogo precisa de “favores” para permanecer ali, em geral, do próprio “estadista local” (o “chefe” da “tribo” do Estado). A interação participativa é necessária tanto para o estadólogo quanto para o estadista; para este é “imperativa”, uma vez que não há como “mandar” sem interagir com quem tem o dever de executar ordens. O estadólogo observa, de perto, de dentro, todo este processo de mando e obediência, de formulação, de execução e de avaliação das ordens dadas. 25 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA122. Os problemas iniciais que o estadólogo sofre no campo são, em geral, para se instalar e para fazer contatos. Ele tem autorização do estadista local para estar no campo e realizar sua pesquisa, entretanto, não recebe adesão imediata dos funcionários e nem sabe onde as coisas de que precisa estão; pode ser que os funcionários nem tenham sido treinados para recepcionar e aproximar o estadólogo. Nem sempre há um estadista disponível para “fazer um tour” com ele pelos setores, apresentá-lo, pessoalmente, às chefias imediatas e mais distanciadas, explicando o que ele vai fazer nos lugares que visitar. As resistências funcionais que encontra se devem ao fato de que ele é um estranho no ninho e pode ser visto, inicialmente, como alguém que esteja, até, “espionando” os setores, ou “avaliando” o trabalho dos “nativos” locais, para “dedurá-los” aos chefes superiores. Daí, muitas vezes, retardarem a sua tarefa, mas nem sempre é de “má-fé”; ocorre durante o tempo de “adaptação” tanto do estadólogo quanto dos “nativos do Estado”. Ele precisa “cavar o seu espaço”, como se diz na gíria brasileira, de modo a se fazer aceito e a integrar os grupos, mediante interações amistosas, de modo a angariar não só a “confiança”, como também a “ajuda” dos demais para poder realizar a sua pesquisa. Some-se a isso o fato de que há uma incerteza sobre o que o estadólogo vai escrever sobre o que observa, que pode, no imaginário local, ser prejudicial aos interesses dos mesmos. 26 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA123. O estadista já não tem os mesmos problemas do estadólogo; ele chega já com credenciais de mando, legalizado e legitimado para comandar o setor do Estado, o seu campo de atuação diretiva. Mas, tanto o estadista quanto os “nativos” remanescentes do campo, na troca de chefias, precisam se adaptar uns com os outros, de modo a que se possa “tocar” o trabalho dentro do planejamento e cronograma estipulados pelo novo comando. Ainda que os subordinados tenham de obedecer às ordens do chefe, o exercício do mando deve ser amistoso, pois pode gerar “assédio moral” e dificultar até mesmo a sua permanência no setor do Estado, mediante “reclamações” feitas pelos locais contra os métodos que estão sendo implementados. O estadista precisa 122 123

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96 ter um certo “jogo de cintura” (outra gíria brasileira), uma certa “capacidade de manejo” para poder exercitar-se e permanecer no cargo; isto porque, mesmo que o estadista tenha poder de mando, sempre existe um outro estadista com hierarquia superior à dele, exceto, é claro, no “topo” hierárquico, onde os “coletivos” poderosos podem determinar a sua permanência ou exclusão. 27 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA124. O estadólogo aflito nos primeiros dias de campo tende a ver certa hostilidade em sua recepção pelos “nativos” do Estado, entretanto, isso pode ser visto por outra ótica, como sendo resultado apenas da “surpresa” e do “desconhecimento” por parte deles. É preciso que ele se entrose no campo, gerando relações mais profundas, que pode gerar tanto amizades quanto, por vezes, casos amorosos. É preciso que o estadista fique atento para evitar o excesso de intimidade, de modo a não perder o seu foco na pesquisa e evitar a perda do respeito, que seria deletéria para a sua permanência no campo. O estadólogo neófito tem que cultivar o respeito mútuo e o primeiro e mais importante caminho é o do comportamento cortes, de modo que possa obter a simpatia dos “nativos” do Estado. A cortesia se torna mais do que um método necessário; torna-se uma necessidade comunicativa para poder realizar o seu intento. Daí que ele precisa refletir sobre as suas atitudes e sobre o resultado delas nas interações cotidiana, de modo a não ferir suscetibilidades que podem se tornar impeditivas ou bloqueadoras para o acesso a informações mais substanciais. Os funcionários podem dificultar de modo eficaz a pesquisa e o resultado pode até ser desastroso para o estadólogo, dependendo do grau de desagregação que ele possa gerar no seu campo de pesquisa. Ele nunca pode esquecer de que é um “transeunte curioso” para os locais e que precisa romper com as barreiras, com o “gelo” local, como se diz noutra gíria brasileira. 28 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA125. O estadista, só porque dispõe de poder de mando, não quer dizer que, no início de suas atividades no campo do Estado sob sua direção não possa se tornar um estadista aflito, eis que neófito naquele lugar. Por isso, o método da cortesia no tratamento com os funcionários é fundamental, de modo que possa conseguir uma cumplicidade de adesão ao seu projeto de direção. Sem a cortesia, a sua vida no local pode ser muito difícil e, dependendo do grau de desagregação que introduzir no campo, pode até por em risco a sua permanência no comando. Afinal de contas, o estadista também tem que prestar contas a algum superior, seja ele quem for na cadeia hierárquica ascendente; sem falar nos mecanismos de controle externo e interno, ainda há o controle social feito por parte da mídia, que condiciona, sempre, a opinião pública. O estadista nunca exerce um poder absoluto e a relatividade de seu poder implica muito na avaliação de inúmeros setores e pessoas fazem de sua atuação e dos resultados que apresenta com o seu trabalho. Podemos dizer que a coisa mais gentil que o estadista pode fazer, logo de início, no novo campo de mando, é imaginar que os funcionários estão sendo corteses e que a gentileza impera em todos os contatos ocorridos; este tipo de 124 125

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97 pensamento pode aliviar o estadista aflito, mesmo que seja insuficiente, mais adiante, para resolver os problemas que enfrentará pela frente. 29 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA126. O estadólogo em campo se torna dependente em quase tudo dos funcionários locais e tende a “reclamar” por auxílio o tempo todo, pelo menos de início, gerando certos “atritos”, “discrepâncias” ou inconvenientes, inclusive para o próprio serviço que está sendo executado, pois precisam parar e dar atenção para o estranho. Como esta dependência é inevitável, ela deve ser instrumentalizada pelo estadólogo de modo a transformá-la em uma “ponte de contato” com cada um com que interage, gerando, com isso, empatia local. Este é o primeiro passo para o campo “dar certo”. É preciso que a dependência gere uma certa identificação com ele, pois todos passam por dificuldades no início em lugares estranhos. Esta identificação empática deve ser transformada em compreensão e em companheirismo depois, com em geral acontece. O estadólogo precisa ser uma “boa pessoa” para ser aceito e ajudado em sua pesquisa. Daí que se pode ver a existência de três fases iniciais: fase hostil, fase empática e fase integrativa; é a partir desta última, praticamente, que começa, efetivamente, a pesquisa do estadólogo, com a tranquilidade necessária para aprofundar as suas observações e estudos. 30 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA127. O estadista, mesmo com poder de mando, também passa pelas fases hostil, empática e integrativa, pois ele é visto, de início, com apreensão e afastamento, passando para uma identificação e compreensão até chegar na fase de companheirismo integrativo, formando uma equipe unida em torno dos projetos do novo chefe. O estadista nunca pode perder o respeito do grupo que comanda; se isso acontece, para manter o “pulso firme” (como diz a gíria brasileira), ele tende a se tornar rude e perder toda a confiança, levando a solapar a execução dos seus planos. Um estadista nunca governa sozinho e precisa descentralizar as tarefas mais complexas, atribuindo competências específicas a diversos subordinados, tornandose dependente da confiança e dos resultados que estes conseguem implementar. A cortesia é a “arma” estadística mais eficiente de que pode dispor para conseguir adesão ao seu comando no campo do Estado; e ela deve ser usada o tempo todo, para gerar e manter adesões, de gente que “vista a camiseta” (outra gíria brasileira) do chefe. Isto é importante, pois sem a gentileza fica difícil de distinguir um chefe autoritário de um chefe democrático ou, em outra faceta, do desleixado (“laissezfeare”). 31 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA128. O estadólogo de campo iniciante está na situação, como diz a gíria brasileira, de quem “está no mato sem cachorro”, desnorteado. Se ele quiser aprender alguma coisa, terá que aprender alguma coisa sobre as pessoas que fazem o Estado, terá de aprender com elas; para tanto, 126 127 128

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 32-33. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 32-33. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 33


98 precisa se aproximar e fazer amizades. Nestas tentativas, o estadólogo desajeitado comete muitos erros que precisa concertar e rápido. Muitas vezes, ao tentar acertar, amplia o seu acervo negativo e suas dificuldades em fazer amizades. As razões iniciais dos desacertos são até pueris e dizem respeito aos preconceitos do próprio estadólogos, como contraste de idéias abstratas (crença em outros deuses), pontos de vista descabidos (afirmações contraditórias), falta de costume com a proximidade física (chegam perto de mais do corpo), movimentos rápidos (parecem traiçoeiros), gestos inusitados (simbologias estranhas), dentre outras coisas; mas é o estadólogo que não aceita a diferença e tende a defender o seu modo de ver e de agir contra os costumes locais. As expectativas mais otimistas do estadólogo, para angariar cooperação nativa do Estado, é estabelecer laços mais consistentes de amizade de modo que possa ser aceito e incorporado como se fosse um “igual”, podendo dispor da proteção e da satisfação de seus interesses e necessidades dentro e através do próprio grupo em que está inserido. Entretanto, estas expectativas nem sempre se realizam e, muitas vezes, o fracasso vem de modo irremediável e o próprio estadólogo sente necessidade vital de abandonar o campo de pesquisa e desistir de sua condição de “aprendiz de feiticeiro”. 32 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA129. O estadista, mesmo que se perceba em condição semelhante à do estadólogo, está em melhor posição, pois, ao dispor de poder de mando, este fato restringe a manifestação livre dos integrantes do novo grupo do Estado em que ele passa a se inserir para comandar. Como pode impor os seus pontos de vista e crenças, calando os subordinados, o estadista não tem acesso o real pensamento de seus interlocutores, mas, nem por isso deixa de perceber as resistências veladas e os contrastes de orientações e visões de Estado existente no local, de modo a “medir” o grau de dificuldade que terá para conseguir cooperação para implementar os seus projetos de modificação do Estado no local. Se o estadista tentar “dar uma de bonzinho”, como diz a expressão brasileira, nem por isso deixará de cometer erros no início, mas tem que aprender cedo com seus erros de modo a evitá-los com o menor custo social local. Com isso se quer dizer que o estadista, mesmo que prefira “ser temido a ser amado”, como colocava Machiavel no renascentismo político italiano, precisará de uma boa parcela dos que expressam amor para que possa controlar todos os que optaram pelo temor, pois as resistências vêm, quase sempre, destes, ainda que as traições só venham daqueles. O que importa é que o estadista não amplie as dificuldades mais do que já tem; ele tem pouco tempo para implementar seus projetos e “fazer a diferença” no local; se ficar detido nas “picuinhas” de relacionamentos tangenciais às metas, poderá fazer de tudo, menos se tornar um “bom estadista” no seu campo de poder. Se tiver funcionário subalterno competindo com ele, deve aprender a lidar com este “atleta” desde logo e o principal meio é o de ampliar o seu espaço, aproximando-o de si, dando-lhe funções especiais e controlando os seus passos diante dos olhos de todos. Isto também constitui um modo de se relacionar com amizade centrada nos planos de Estado eleitos para o local. 129

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99 33 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA130. O estadólogo é um ser humano, do mesmo modo que os “nativos do Estado” são seres humanos; a diferença é que estes estão no seu habitat e aquele está deslocado do seu. Por isso, por ser “o diferente” no campo de Estado em que se encontra em uma “situação diminuída” de início, mas só de início, naquele meio social. E isso se agrava um pouco mais à medida em que o estadólogo se dá conta de sua condição humana menor do que a imagem que ele tinha de si mesmo no seu habitat de origem. Como tudo lhe é diferente, viver naquele local pode se tornar insuportável muitas vezes; e não adianta tentar preservar suas crenças anteriores, pensamentos e expectativas contrapostas a tudo que encontra no local; ele não vai - e nem pode tentar “mudar” o pensamento e comportamento dos nativos; por mais difícil que seja, terá de respeitar o modo de vida que encontra ali, diante dos olhos e terá de viver nela. O estadólogo terá de “dançar conforme a música”, como diz uma gíria brasileira. Esta situação de “esquizofrenia social” tem a sua duração, psicologicamente longa, no início, ainda que não no tempo do relógio. Diante deste quadro “negativo”, o estadólogo sente-se inadequado para a sua tarefa e a sensação de que não vai conseguir se torna cada dia mais evidente em suas reflexões; parece que todas as suas tentativas “dão em nada”; sente-se incapacitado e impotente para penetrar na cultura monolítica do Estado no campo que escolheu para pesquisar. Ele está a um passo da desistência. E é aqui que se encontra o ponto mais crítico e definitório do futuro de sua permanência na “comunidade estatal” que escolheu para pesquisar. A “crise estadológica” começou a se instalar na vida do estadólogo. 34 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA131. O estadista também tem crises e passa pelos mesmos sentimentos de contradição, incompreensão, inadequação, incapacidade e impotência para mudar o Estado no seu campo de mando, na fase inicial de assunção do cargo ou função de Estado. A crise desta figura estatal eu chamo de “crise estadística”, que é parecida, mas com características distintas da “crise estadológica”. Enquanto esta é uma crise de acesso ao saber, aquela é uma crise de acesso à mudança. Um quer conhecer o Estado; apenas isso. O outro quer mudar o Estado, pois pressupõe que já conheça o Estado o suficiente para estabelecer o que deve “ficar” o que deve “sair” do cenário real do Estado. Tendo em vista estas finalidades distintas, o tipo de crise que cada um enfrenta tem que ser, no mínimo, diferente. O estadista se torna, obrigatoriamente, um nativo; o campo de mando é o seu habitat natural e a sua finalidade é modificar o Estado, seja para “melhorá-lo”, “adequá-lo”, “torná-lo melhor funcional” ou outra finalidade politicamente orientada; a resposta das mudanças também são relatadas a um outro habitat, a sociedade que criou aquele Estado e de onde o estadista provém. O estadólogo quer se parecer um nativo do Estado, mergulhar na sua cultura, mas a sua finalidade é estudar melhor este habitat estranho e produzir conhecimento para relatar a pessoas que não fazem parte dali. Tanto o estadista 130 131

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 33-34. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 33-34.


100 quanto o estadólogo “prestam contas” de suas atividades para “gente de fora” do campo do Estado e, para tanto, precisam “sobreviver” no campo do Estado. Mudar o Estado implica em mudar as práticas das pessoas que fazem o Estado no seu dia a dia e isso não é fácil de conseguir sem estabelecer um “choque”, uma “crise” de maior ou menor proporção; para mudar este quadro, precisa, de certa forma, “mudar as pessoas” que fazem o Estado ser como ele é; seja mudando suas práticas, seja substituindo o quadro por outro, mediante remanejamentos e, até mesmo, demissões. O “ser do Estado” é o “ser das pessoas do Estado”; mudando as pessoas ou suas práticas, muda o próprio Estado. Daí que o Estado está sempre se “renovando” e o estadista é o principal agente de tais mudanças. Ele é o “homem da crise”, o “homem do choque”, tanto por estabelecê-la quanto por sofrê-la dentro do seu próprio campo de mando. 35 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA132. O estadólogo neófito passa por sete estágios psicossociológicos no campo do Estado, tentando estudar a nova cultura em que se depara imerso para fins de estudo e de descrição relatável para fora do campo. Primeiro, na situação de inadequação, ele se percebe na cultura estranha como um ser inadequado para o que já está posto no campo e que pode inviabilizar a sua intenção de conhecimento interativo. Segundo, na situação de visibilidade, o estadólogo somente consegue se ver em contraste com a outra cultura, percebendo que a cultura estranha é invisível ao seu olhar; é como se fosse um “estranho no ninho”. Terceiro, na situação de depressão, o estadólogo fica deprimido e tende a um sentimento alternativo de “fechar-se em si mesmo” (fuga) ou de “comunicar-se a qualquer custo” (ansiedade). Quarto, na situação de participação, o estadólogo se dá conta de que tem necessidade de participar das atividades locais para poder se entrosar e levar em frente a sua pesquisa e o trecho de sua vida naquela situação de convivência. Quinto, na situação de descontrole, o estadólogo percebe a sua incapacidade para estabelecer contatos significativos com os “nativos”; por perceber a necessidade de controlar a sua participação, principalmente a de ordem comunicativa, percebe-se perdido no contexto da nova cultura, sem encontrar os rumos adequados de sua própria inserção. Sexto, na situação de choque cultural, o estadólogo começa a se confundir no campo, pois percebe que a sua cultura de origem é insuficiente e inadequada para estabelecer participação comunicativa de sucesso e, por outro lado, não sabe como inventar uma habilidade que faça superar o quadro de sua debilidade comunicativa; com isso, ele passa a desconhecer a si próprio (perda do eu) como sendo ele mesmo, no processo em que se encontra; é aqui que ocorre o CHOQUE CULTURAL com toda a sua força no estadólogo. Sétimo, por fim, na situação de aceitação controlada, o estadólogo, vivenciando o CHOQUE CULTURAL ESTADOLÓGICO, ele “reage” e tenta assumir o controle da sua situação em campo, dirigindo a sua participação e a sua comunicação com os “nativos”, de modo a poder “adaptar-se” (aceitação do Estado como ela é) ao campo e estudar a cultura local. 132

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101 Com isso, supera o choque cultural e assume-se como estadólogo em campo com uma “missão” específica que exige boa convivência com todos e integração funcional com o meio em que se encontra. Nesta última fase, o estadólogo consegue “sobreviver” no campo e torna viável a sua pesquisa. A CRISE CULTURAL ESTADOLÓGICA inicial é a expressão que talvez possa descrever melhor a situação dele no início de campo. 36 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA133. O estadista também passa pelas mesmas sete fases do estadólogo em campo, no início de seu ingresso, no setor do Estado que vai dirigir. Ele se percebe inadequado para o cargo, tem dificuldade para visualizar o que está diante de seus olhos, pois não tem olhos adequados para ver tudo o que há; com isso, deprime-se com facilidade, com sentimentos de fuga e de afoitamento. O estadista se dá contra logo que precisa participar no novo mundo em que se encontra para comandar e que o descontrole inicial ali posto precisa ser superado. Mas, a situação de descontrole se torna desesperadora para o estadista iniciante e ele tende a perder os seus próprios referenciais teóricos anteriores de Estado, em não se reconhecer mais como ele era antes, entrando em crise cultural, com o choque experimentado na nova situação, tornando-se, verdadeiramente “perdido” em campo. É o CHOQUE CULTURAL ESTADÍSTISTICO. Por fim, como só a participação interativa e a comunicação adequada poderá solucionar, ele pode estabelecer um controle do campo a partir de si, para o seu intento, recuperando a capacidade de contatar e de se comunicar. Com tal superação, o estadista se torna consciente de seu papel e de sua finalidade no Estado, superando a CRISE CULTURAL ESTADÍSTICA em que se encontrava no início. 37 - APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA134. O estadólogo é comparável, aqui, ao antropólogo, pois ele quer ingressar na cultura local apenas para conhecê-la e produzir a invenção da cultura em forma de narrativa a ser contata e explicada teoricamente para a sua cultura de origem. Ele não quer mudar a vida da cultura dos integrantes do Estado; quer, antes, tornar-se como que tornar-se um deles, ainda que temporariamente, para melhor compreender a totalidade do que acontece ali, como, por que e para que acontece daquele modo que experiência. Por isso, o choque cultural do estadólogo somente pode ser superado pelos mesmos meios aquisitivos de novas habilidades: aprender a falar a linguagem codificada do Estado e aprender a se portar segundo os hábitos locais, pois as resistências culturais sempre acontecem de início. E o Estado também supera o seu choque cultural com a presença do estadólogo adquirindo a habilidade de domesticar o estadólogo (que é um forasteiro) para, logo, poder controlá-lo melhor dentro do seu próprio meio, de modo que ele não represente nenhum perigo para o Estado. Podemos chamar este fenômeno de choque estadológico.

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 34. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 34-35.


102 38 - APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA135. Diferentemente do estadólogo, que se parece com o antropólogo, o estadista se parece mais com o missionário e outros emissários, pois a sua função é a de estudar, mas, sim, modificar o Estado. Daí que o conflito cultural tende a vir a acontecer; mesmo que tenha poderes para impor as mudanças que julgue necessárias, as oposições internas acontecem e as execuções das ordens muitas vezes ficam desvirtuadas e o resultado é diferente do planejado pelo estadista. Podemos chamar este fenômeno de choque estadístico. Se o estadista está em campo para aprender a cultura do Estado e não para mudá-la mediante a definição de um novo norte de políticas públicas, então, vale o que dissemos acima para o estadólogo, uma vez que é nesta condição que se encontra em campo: aprendendo como os estadistas mandam nos seus nichos de poder. 39 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA136. O estadólogo presencia os dois choques culturais causados pela sua presença no campo de pesquisa: o seu e o do Estado. Como os dois choques ocorrem ao mesmo tempo, há uma solução única para a superação de ambos, a ampliação da convivência. O estadólogo precisa adquirir duas habilidades para superar o seu próprio choque cultural: habilidade de falar a língua nativa do Estado e habilidade para se portar segundo os costumes locais do Estado. O Estado precisa adquirir duas habilidades para superar o seu próprio choque cultural: habilidade em “domesticar” o estadólogo em suas próprias regras culturais locais, e habilidade em “controlar” o estadólogo nas atividades desenvolvidas pelo estadólogo no seu campo. Para tanto, é preciso que o estadólogo consiga convencer os nativos do Estado de que ele não é nem um “missionário religioso” que vai competir com as crenças locais para ensinar outras, bem como convencer os nativos do Estado de que ele não é um “espião” dos escalões superiores do governo do Estado, capaz de trazer insegurança para aqueles com quem interage ou observa. Ainda que o estadólogo se diferencie de do missionário e do espião, que querem mudar a realidade do campo a partir de uma força externa ao campo, fato é que ele, pelas suas características, é uma espécie de “missionário da cultura”, no sentido de que vem para descrever e, com isso, inventar, a Cultura do Estado nos escritos que vai produzir com suas observações, ampliando a visão de mundo com o que agrega a partir da cultura local estudada. 40 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA137. O estadista já não tem melhor sorte, pois ele tem maior aproximação com o “missionário religioso” e com o “espião do governo” do que com o estadólogo, pois a sua missão é transformar o Estado, promover as mudanças que julga necessárias para o “melhor” funcionamento da “tribo” local; para isso, “mexe” com a vida funcional de cada um dos nativos e

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 34-35. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35.


103 “bagunça” a tradição ou hábito de comportamento cultuado até antes de sua chegada. Porém, o estadista precisa convencer os nativos de que não vai mudar suas crenças e nem “delatar” os nativos para superiores hierárquicos; ele veio para se tornar um nativo e para dirigi-los no próprio processo de mudança, em parte decidido fora dali e em parte decidido dentro do próprio campo, com a participação de todos os nativos, mediante um trabalho em equipe, cujo sucesso depende do empenho coordenado de todos os ‘internos” da cultura do Estado naquele setor determinado. O destino do estadista é comungado com o destino dos outros nativos, uma vez que, para todos os fins, depois de sua chegada, torna-se “outro” nativo e, como tal, age na invenção prática da cultura do Estado, em regime de corresponsabilidade e de cumplicidade com todos os demais. 41) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA138. O estadólogo precisa objetificar as causas do seu choque cultural para supra-lo e este caminho se assemelha com um jogo de cartas, pois a objetificação superativa das causas do choque leva a influir nas jogadas dos demais interlocutores, levando-os, também, a superar o seu próprio choque cultural. O estadólogo inventa a superação e, por inventá-la, inventa a própria cultura que passa descrever experienciando-a. O jogo do estadólogo é marcadamente passivo (submisso). O estadólogo objetifica a cultura ao mesmo tempo em que a apreende e aprende com ela. Ele é um pesquisador de campo e é nesta condição que ele entra, permanece e sai do Jogo do Estado. 42) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA139. O estadista supera o seu choque cultural descobrindo as causas do mesmo, porém, diferentemente do estadólogo, não as verifica em si, pois detém o poder de mando e deve impor as mudanças do Estado segundo o seu plano de ação; por isso, a causa do choque cultural está nos integrantes da tribo, que precisam se adaptar às mudanças impostas hierarquicamente. O estadólogo ao superar o seu choque cultural e ao experienciar a superação do choque cultural do Estado, mediante a objetificação tanto de seus planos quanto do costume local, está “inventando” uma nova cultura local, segundo novas regras de experienciamento. O jogo do estadista é marcadamente ativo (autoritativo; no sentido de que “exerce autoridade”; não no sentido de “autoritário” ou “antidemocrático”), no sentido do uso da autoridade. O estadista “objetifica” a cultura ao mesmo tempo em que a apreende, assim como o estadólogo.Ele é um ativador de campo e é nesta condição que ele entra, permanece e sai do Jogo do Estado. 43) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA140. O estadólogo traz para o campo de observação do Estado toda a sua bagagem cultural, de vida e teórica apreendida 138 139 140

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35-36.


104 na sua ciência, e que esse aporte vai condicionar o tipo e o conteúdo da “invenção” da cultura que ele vai produzir a partir de sua experiência no campo. As suas predisposições culturais – podemos dizer a sua pré-compreensão de Estado – condicionam a sua visão e vivência em campo e a partir do campo. O que ele aprende de novo no campo do Estado é como uma extensão ou superestrutura do que já sabe. Ele não é uma “tabula rasa” quando chega no Estado. Em outras palavras, o estadólogo chega no campo com a “cabeça feita”, em parte, mas aberto a novas aprendizagens. 44) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA141. O estadista também traz para o campo do Estado toda a sua bagagem teórica e cultural e a aplica nas suas decisões; mesmo que aprenda no campo novos modos de tratamento do que pretende fazer, trata-se a nova aprendizagem apenas de incremento ao que já aportou ao chegar no Estado. A diferença toda está justamente na sua cultura pretérita de lidar com o Estado, o que vai facilitar ou dificultar o seu sucesso de atuação na cultura local em que está inserido com poder de mando. O modo como avalia as condições e os resultados de suas implementações é condicionado pela sua pré-compreensão, agregada ao que aprende no próprio novo campo do Estado. Em outras palavras, o estadista ao entrar no campo do Estado já está com “a cabeça feita” anteriormente, quase que totalmente, ainda que possa, também, estar aberto a algumas modificações no curso interativo, em grau menor do que o estadólogo, pois a sua finalidade é distinta; não é descrever o Estado, mas modificar o Estado. 45) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA142. O estadólogo pode ver o Estado como uma “coisa”, porém, o Estado é apenas uma “invenção” descritiva do que ele observa; trata-se de um “instrumento de trabalho” e não algo existente na realidade; o Estado não é o que o estadólogo descreve, pois este só pode descrever o que ele pensa enquanto observa o que vê. Para que se possa compreender o Estado-coisa que o estadólogo descreve é preciso entender que tal descrição é apenas uma “muleta” teórica usada para facilitar o seu próprio ato de descrevê-lo; o Estado como realidade objetiva absoluta não existe, uma vez que cada observador tende a observá-lo do seu próprio modo, levando em conta a sua própria cultura aportada no ato de observar. 46) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA143. O estadista também pensa que o Estado é uma “coisa” que ele tem diante de si, entretanto, trata-se apenas de uma “muleta” usada por ele para melhor descrever o que olha ou “inventar” a descrição do que vê; para compreender o modo de atuação do estadista é preciso pensar o Estado como coisa como sendo apenas esta muleta por ele estudado, mas não na realidade. O uso “absoluto” da cultura do Estado é apenas um “meio teórico”, pois a

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 35-36. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36.


105 cultura concreta apresenta apenas uma objetividade realtiva ao olhar do estadistas, comparável com as conclusões de outros olhares. Porém, as decisões do estadista no ato de modificação do Estado são verificáveis, não como “coisas”, mas como “se fossem coisas”, já que o olhar é sempre marcado pela subjetividade de quem olha. Estadistas e estadólogos atuam do mesmo modo, com objetividade apenas relativa no tocante à cultura que têm diante de si e sobre a qual atuam, seja para descrevê-la, seja para modificá-la segundo um plano prévio. 47) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA144. O estadólogo não deve procurar tornar-se um NATIVO DO ESTADO, pois ele vem de uma outra cultura e somente através desta é que pode observar e compreender o Estado. Para que possa alcançar esta compreensão, ele precisa assumir a nova cultura do Estado e experimentar uma transformação em si mesmo, que não significa o abandono de sua cultura de origem, mas sim uma imersão em uma nova cultura para vivenciá-la como experienciamento. A cultura de origem do estadólogo é um sistema de significados equivalente ao sistema de significados da cultura do Estado na qual ele mergulha em campo de observação. O estadólogo não muda a cultura do Estado, mas influi nela, levemente, com a sua presença observante, não com base no que ele pensa do que observa, mas sim com base no que os nativos pensam a partir de sua presença observadora. A passividade do estadólogo não é, portanto, de todo inerte, mas não influi, como o estadista, na mudança do estado a partir de sua própria concepção de “tribo”. Agora, o estadólogo pode já ter conhecimento de outras experiências de campo em outras tribos do Estado e este aporte vai servir para compor o uso analógico de tais experiências para compreender as novas, em outras tribos. Podemos chamar a isso de “experiência intercultural estatal”. 48) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA145. Isso serve também para o estadista, porém, com a diferença de que este dispõe de poder para mudar a cultura do Estado dentro de sua competência ou âmbito “territorial” de poder, dentro dos limites impostos pela constituição da própria tribo local, podendo, inclusive, mudar um pouco esta própria constituição. Mas, ele precisa ter consciente que ele nunca será um nativo do Estado, mas somente alguém “de fora” que está transitoriamente “dentro”, por mais duradoura que seja esta duração. Se imaginarmos a cultura do estadista como sendo a da “sociedade” que instituiu o Estado, então, é com o sistema de significados da Sociedade que ele irá compreender o sistema de significados do Estado e, nesta relação Sociedade-Estado, irá experimentar uma transformação nos próprios significados que aportou antes de chegar no Estado. Pode-se falar aqui de uma cultura mista que o estadista constrói e que se torna, tendo em vista as marcas que deixa pelo uso do poder de mando no Estado, a 144 145

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36-37. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 36-37.


106 própria cultura do Estado, durante a sua estada e até que ela seja mudada por outro dirigente que venha a substituí-lo. O uso analógico de experiências de Estado, como dirigente, servem como incremento para os atos de mando em outros setores ou tribos do Estado. 49) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA146. O estadólogo delineia a cultura do Estado que observa a partir de sua própria cultura aportada no momento da observação, mediante analogias culturais que resultam na construção descritiva da cultura que tem diante dos olhos, que é uma “cultura particular”; de posse de tais experiências de construção analógica, o estadólogo pode inventar a compreensão das culturas em geral do Estado, por generalização. O processo de invenção apresenta resultados que são e não são, ao mesmo tempo, a própria cultura do estadólogo, enquanto “inventor daquela cultura”. Outro estadólogo poderá inventar “outra cultura” com base no mesmo campo de observação. O estadólogo, no momento em que ocorre o choque cultural, vê em relevo a sua própria cultura em contraste com a nova cultura observada e emerge deste contraste as analogias comparativas que permitem compreender a nova cultura como distinta da sua. 50) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA147. O estadista apresenta processo semelhante ao do estadólogo, com a diferença de que ele está na outra cultura com a finalidade de modificá-la e o que implementa é parte de sua própria cultura e parte da cultura já existente no Estado, de modo que há uma síntese entre as duas culturas no ato de invenção da mudança. O processo de mudança operado “para fora” pelo estadista é comparável analogicamente ao processo de mudança operado “para dentro” pelo estadólogo. Por isso, o estadista, antes de tudo, precisa passar pelo processo do estadólogo, como estágio inicial de assunção da nova cultura do Estado, antes de começar a operar as mudanças do Estado no seu âmbito de poder. É fácil ver que mudando o estadista, muda o tipo de mudança que é operada no Estado, devido à diferenciação cultural de origem do próprio Estadista e da situação em que se encontra a cultura do Estado quando ele chega. 51) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA148. O estadólogo, com a experiência de campo no Estado, também sofre as incompreensões de duas tribos; torna-se duplamente estranho. Por um lado, torna-se um estranho à sociedade de origem, pois está impregnado de Estado, quando a ela retorna; por outro, é tido como um estranho pela tribo do Estado, pois ele vem do lado de “lá”, e pode ser um espião ou agente dos escalões superiores. Como um “antropólogo do Estado”, o estadólogo exerce, no seu atuar, uma função de ponte entre as duas culturas que ele porta e aporta.

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 37. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 37. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38.


107 De Um lado ele já é um estranho; de outro, torna-se estanho paulatinamente, à medida em que mergulha na cultura de estudo. Isto torna o estadólogo uma síntese intercultural viva que se desloca entre espaços culturais diversos, impregnando tais espaços com as experiências que adquire e difunde. Mas, por mais nativo do Estado que ele posa parecer, sempre terá as marcas da cultura da sociedade de origem.Temos aqui, por analogia, um “estadólogo metafórico“ 52) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA149. O estadista, cuja função não é estudar, mas mudar o Estado, também sofre as mesmas distinções do estadólogo, com a diferença de que ele possui o poder de mando para impor mudanças no comportamento dos nativos subordinados. À medida que mergulha no seu nicho de poder, também sofre influências do meio local em suas práticas ao ponto de transformar-se, cada vez mais, em um “igual” ao local de atuação; e causa igual estranheza aos de sua origem, quando retorna a ela para relatar as suas experiências no exercício do cargo, função ou atividade. Em outras palavras, o estadista influencia o novo meio com a nova cultura que aporta e sofre influência do meio encontrado no próprio uso de sua cultura de origem, gerando uma espécie de novo “caldo” cultura. A interinfluência cultural parece nítida em tais experiências de atuação. Temos aqui, também por analogia, um “estadista metafórico”, pois o que ele pensa, sente e passa a dizer já causa estranheza em seus iguais, cujas culturas, compradas, já se parecem muito estranhas, irreconhecíveis entre si. 53) APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA150. O estadólogo escapa de sua cultura de origem e controla a invenção da nova cultura que observa ao descrevê-la com base na sua própria experiência de campo. Com isso, ele consegue superar tanto o estranhamento dos seus “iguais” quanto dos seus “diferentes”, tornando-se mais desigual àqueles e mais igual a esses. O estadólogo consegue emancipar-se de ambas as culturas, através de seus pensamentos e sentimentos pautados por uma convicção em suas próprias descobertas. Tal experiência no campo de Estado pode ser comparada a uma conversão religiosa que confere uma nova iluminação sobre a realidade cultura, da sua, da dos observados e da cultura estatal como um todo. 54) APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA151. O estadista passa pelos mesmos caminhos do estadólogo, sempre com a diferença de que ele possui o poder de mando-obediência necessários para operar as mudanças que deve realizar no comando do Estado. Mas, mesmo com este poder, ele padece de incompreensões nos dois campos e pode se emancipar de tais situações mediante a aceitação de sua própria invenção como uma realização cultural efetiva. Esta crença em sua própria invenção lhe confere emancipação justamente pelo controle que dispõe sobre suas próprias realizações modificativas do Estado. 149 150 151

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38.


108 Como o estadólogo, o estadista é uma ponte entre dois mundos, o de sua origem e o novo, fontes de incompreensões e desapontamentos dos quais pode se desvencilhar com base no que realiza no novo campo e no que aporta para o campo de origem sobre o que fez alhures. 55 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA152. A Estadologia é o estudo da sociedade “como se” houvesse Estado. Presume-se que exista o Estado e que ele exista como uma instituição de sua própria sociedade. A Estadologia pode ser entendida em sentido geral, enquanto “conceito”, e em sentido particular, enquanto um “Estado particular” ou em uma “parcela do Estado”, como uma repartição específica, um ente federativo, por exemplo. A Estadologia “existe por meio” do Estado. Estado, para ela, é: 1) seu idioma geral, 2) uma maneira de falar sobre as coisas, 3) de compreendê-las, 4) de lidar com elas. O homem e seus agregados são impensáveis sem o Estado por eles instituídos, por mais rudimentar, ineficiente e aparentemente inexistente que possa parecer ao olhar; presume-se que ele sempre esteja presente de uma forma ou de outra. O estadólogo percebe o Estado como um ente existente, concreto, expresso pelos atos dos sujeitos que se manifestam em nome dele, como se fossem ele, ali, diante dos seus olhos. 56 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA153. A Estadística presume, também, como existente o Estado e, neste ponto, tudo o que foi dito acima serve aqui, com a diferença de que se lá o estadólogo apenas observa o Estado, aqui, o Estadista modifica o Estado, age “como se” fosse o Estado, age “em nome do Estado”, mobiliza-se “como” Estado. O estadista já não vê o Estado “ali”, mas sim “aqui”, manifestado por ele mesmo, como a encarnação do próprio Estado se manifestando através dos seus atos. De certa forma, o estadólogo é o próprio Estado, ainda que não a sua totalidade “corporal”, mas a parcela que se expressa dentro de um determinado âmbito de competência ou de exercício do poder de mando. 57 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA154. O estadólogo para inventar a cultura de estado não precisa estar ou ter estado em campo; se tiver estado ou estiver, melhor, pois a sua instrução será bem maior. Também não basta pressupor a existência da cultura; é necessário transformar esta pressuposição em arte criativa, i.e., em invenção que desenvolva a cultura. Qualquer um pode inventar a cultura, pois esta invenção faz parte da capacidade criativa humana. De certa forma, quanto mais experienciar observar o Estado de perto, dentro dele, melhor para a criação da cultura do que foi observado; se estiver sem esta possibilidade, as limitações são postas pelas descrições já feitas e disponíveis ao interessado, i.e., mediante fonte de segunda mão. A situação de campo do estadólogo é a mais indicada para a invenção. Ademais, é a presença de um sujeito 152 153 154

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38-39. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 38-39. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39.


109 do Estado o que caracteriza a presença do olhar para o Estado; mas é preciso que haja esta relação entre o estadólogo e o agente do Estado. 58 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA155. Tem um ditado popular no Brasil que diz que “quem manda, melhor faz”; para saber fazer melhor é preciso já ter feito e, para que tenha chegado a isso, precisa estar a campo no Estado, fazendo o próprio Estado, por dentro, acontecer. O Estadista é quem faz o Estado acontecer por dentro. Para poder mandar, portanto, é preciso ter alguma experiência de mando, por menor que ela seja, ainda que colhida fora do Estado. O papel do estadista é mandar, pois sem o mando não há como mudar o Estado, o comportamento dos agentes capazes de executar ordens modificativas da realidade. A ordem é uma invenção do estadólogo que se apresenta como uma ordem do próprio Estado para si próprio, como se ele se autoconstruísse a partir de si mesmo, pelos seus integrantes. O conteúdo do mando se materializa na realidade do estado e, portanto, ao inventar a realidade, inventa o Estado, a própria cultura do Estado. O elemento estranho no Estado, portanto, é o estadista e não o quadro funcional permanente, pois este está sempre ali; aquele vem e vai, é passageiro, temporário; já entra com tempo certo máximo de permanência no exercício do cargo. Se o estadólogo é o estranho no Estado, por ser um observador externo, o estadista também o é, mas por ser um ordenador interno; aquele observa o que este faz acontecer com os demais “nativos”; estes observam a observação daquele; os dois grupos criam a cultura de um modo diferenciado, consoante os papéis que desempenham no Estado. 59 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA156. O estadólogo, como o antropólogo, passa pelos três estágios do uso denominativo da situação de campo como cultura do Estado. Primeiro, ele usa o termo para melhor compreender em particular o que observa no Estado; depois, usa-o para experienciar e controlar as relações que estabelece no campo do Estado; por fim, usa o termo para ver como as fases anteriores afetam a sua compreensão da cultura do Estado em geral. O estadólogo se coloca no lugar nos agentes do Estado para ver como ele apreende o que observa, fazendo de conta que é um agente do Estado, porém, sem sê-lo; é um faz de conta, uma técnica usada para facilitar a compreensão do campo por parte do estadólogo. Por outro lado, o Estado inventa a cultura como que e de modo independente do olhar do estadólogo; porém, a cultura inventada pelo estadólogo é dependente da cultura inventada pelo Estado. Digamos que a cultura inventada pelo estadólogo é uma cultura de segunda ordem e, a do Estado, uma cultura de primeira ordem. 60 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA157. Com o estadista ocorre quase do mesmo modo que para o estadólogo, pois ele passa pelos mesmos três estágios (compreensão, controle e verificação) para poder interagir de modo eficiente e eficaz

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110 em seu ambiente de exercício de poder de mando, fatos estes que modificam a sua própria compreensão do Estado em geral. O estadista também entre no jogo do faz-de-conta, pois se coloca no lugar nos “nativos” locais do Estado para compreender e melhor lidar com eles. O estadista inventa a noção de cultura do lugar do Estado que dirige, mas esta invenção decorre do que ele observa que é feito no próprio local, pelos outros e por ele. Em outras palavras, os funcionários do quadro efetivo inventam, com ele, “a cultura” do Estado (real); e o estadista, por sua vez, inventa “uma cultura” do Estado (simbólica) que descreve o local. 61 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA158. O estadólogo em campo para estudar o Estado aporta a sua própria cultura consigo e este aporte interfere em suas observações da cultura posta. Ele não deve usar analogias com experiências culturais anteriores para estudar a nova cultura estatal. Deve estudar a nova cultura por ela mesma, aprendendo as idiossincrasias dos modos e estilos de vida do local, e usar o que dela advém para a sua própria explicação. Deste modo, o estadólogo sofre uma espécie de metamorfose cultural, pois passa a ver a nova cultura por ela mesma. Se usar analogias, vai fazer a sua cultura anterior se sobrepor à cultura observada, deturpando as suas observações e conclusões. Neste jogo de contrastes culturais, quanto mais ele observa a nova cultura pela sua cultura de origem, mais a cultura nova se torna ameaçada, criticada; e quanto mais observa a sua cultura de origem pela cultura nova, mais a originária sofrerá desta instabilidade. O segredo é não estabelecer comparações culturais e deixar que a cultura nova se explique por si mesma, com os seus próprios referenciais. Porém, a cultura inventada pelo estadólogo irá, sempre, de alguma forma, influir na invenção de sua cultura de origem e vice-versa. O entendimento estadológico muda com a vivência na cultura de campo que observa; ele já não voltará o mesmo para a sua cultura de origem. 62 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA159. O estadista aporta uma cultura inventada em suas experiências anteriores, dentro e fora do Estado. À medida que mergulha na cultura nova do Estado, vai perdendo os referenciais de sua cultura anterior, de modo que sofre uma espécie de metamorfose cultural, pela impregnação da nova cultura, do modo e estilo de vida local. Se estabelecer analogias de sua cultura anterior com a atual e quiser espelhar a nova pela antiga, poderá inviabilizar o seu próprio trabalho criativo de uma nova cultura a partir do uso do poder que dispõe para estabelecer mudanças no local; vai descaracterizar o local e destruir a cultura anterior. O melhor a fazer é adaptar as mudanças à cultura local de modo a fazê-las funcionais e eficientes. À medida que muda a cultura local, esta mudança vai influir na sua própria cultura de origem. As mudanças implementadas levam a “implicações de longo alcance” na própria noção de cultura estatal que o estadista aportava ao 158 159

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39-40. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 39-40.


111 chegar em seu novo posto de comando. O entendimento estadístico muda com a nova experiência de campo; ele se transforma em um outro estadista, diferente daquele anterior à experiência em que mergulha. 63 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA160. O estadólogo no seu campo de pesquisa deve se esquecer de si como observador e mergulhar em suas observações, de modo a conviver com o ambiente em que se encontra, evitando, assim, a condução dos resultados de sua pesquisa. Esta inconsciência de sua intenção pesquisador é uma técnica par obter melhores resultados e centrar a atenção no conteúdo da observação. Se não se esquecer de si, pode adulterar os resultados de sua pesquisa e dizer mais o que quer do que o que emerge de sua própria observação. Esta “isenção” do estadólogo é importante, pois a sua “intenção simbólica” ou de invenção da cultura estadológica tem que ser fiel ao que ocorre ali e só buscar elementos de explicação no próprio meio observado. Ele deve retratar o estado como ele é e não como o estadólogo gostaria que fosse. 64 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA161. A postura do estadista em campo é quase a mesma que a do estadólogo, com a diferença de que, além de observar e descrever o que vê, deve mudar o campo e voltar a descrever o que vê como mudança por ele implementada. Nesta segunda fase, em que opera a mudança na postura do campo, ele deve estar consciente, sim, do que pretende implementar, de sua intenção modificativa; não pode estar inconsciente do que quer fazer e do controle do que realmente fez. O trânsito entre a observação ausente e a observação engajada é crucial para a atividade do estadista, sem o que ficará como mero expectador de si no meio, sem conduzir o processo de modificação do Estado segundo o projeto de mudança por ele arquitetado. Podemos comparar aqui com a atitude do pintor moderno, que não retrata, mas que transforma a realidade na pintura que idealiza; só que esta pintura é a própria realidade, o próprio “modelo” configurado a seu modo, segundo o seu projeto de realidade futura. 65 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA162. O estadólogo deve abandonar a sua imaginação criativa e partir para descrever o objeto que tem diante de si, envolvendo-se nele e procurando as soluções para os problemas a partir do próprio envolvimento com a realidade do campo de observação; não deve “importar” soluções. A mente do estadólogo deve estar no objeto, acompanhando todos os detalhes do objeto, atentamente, para criar representações exatas do objeto observado. Com isso, o estadólogo controla a sua invenção da cultura estatal que observa mediante a imagem da realidade e a inconsciência de sua invenção, deixando como que “o objeto falar por si mesmo” através do estadólogo, ausente o 160 161 162

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112 máximo possível de si mesmo. A sua imaginação deve ser a imagem do objeto e não uma imaginação que substitua o objeto real. Com isso, o estadólogo buscará soluções para os problemas que observa no próprio campo. 66 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA163. O estadista tem um comportamento parecido em sua fase de tomada de conhecimento do campo, porém, na fase de tomada de decisão que implique em mudança do próprio campo, por dever de ofício, sua postura deve mudar. A sua imaginação criativa tem lugar para conformar a realidade que precisa ser mudada; nisso difere do estadólogo, pois não pode o estadista ter uma atitude passiva; tem que dar as ordens para a ação se realizar. A solução para os problemas do campo devem ser buscadas no próprio campo, porém, pode importar soluções a partir de outras experiências bem sucedidas; ele não pode se isolar no campo e esquecer-se do mundo “lá fora”, pois o Estado é um complexo de pessoas e equipamentos em dinamismo diuturno e as políticas públicas precisam se sincronizar com planos de hierarquias mais amplas. O choque cultura do estadista só ocorre de início; é a superação do choque cultural dele que leva a provocar o choque cultural da tribo, por sua própria ação interventiva; os nativos do Estado é que precisam se adaptar e implementar as mudanças comandadas. 67 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA164. O Estadólogo, primeiro, diante do seu objeto estranha de observação, no campo em que está inserido, inventa metáforas à base do caldo de cultura que já aporta de seu meio de origem, que é agregado às suas idéias sobre o que vê. Segundo, elabora a sua criação com base em suas novas experiências. Terceiro, alavanca a sua elaboração de modo a alcançar novas e mais sofisticadas experiências. Quarto, aproxima a sua alavancagem para testar a congruência com a realidade observada. Quinto, revisa a sua aproximação para ter certeza de que “bate” com a realidade posta; sexto, articula a sua revisão com articulações cada vez mais amplas e sofisticadas. Por fim, em sétimo lugar, generaliza a sua articulação de modo a tornar as suas impressões pessoais em sistemas de significados com amplas generalizações. É deste modo, seguindo estes passos, que o estadólogo “inventa” a cultura do Estado que observa e está apto a difundi-la como sendo “a cultura” nativa estatal que observou e descreveu cientificamente. 68 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA165. O estadista procede do mesmo modo que o estadólogo, com a diferença de que ele não observa os atos dos nativos do Estado em sua criatividade autônoma, mas sim observa o seu ato e os atos dos nativos implementando as suas ordens, de modo a poder chegar a conclusões finais

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113 similares, como sendo, tudo aquilo, atividade da “cultura” nativa do Estado naquele local em que exerce a sua competência ou poder de mando. 69 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA166. O estadólogo de campo chega em campo com sua bagagem cultural e parte dela para construir as suas experiências. Ele usa o que sabe e o que sua cultura anterior lhe legou como instrumentos analógicos para estudar a nova cultura, como preparação para o segundo e decisivo passo, que é a de inventar extensões analógicas capazes de lhe fornecer um MODELO DE CONTROLE de campo, com base no qual vai trabalhar todas as suas observações futuras no campo. É uma espécie de “PROTÓTIPO” que vai sendo paulatinamente aperfeiçoado com os conhecimentos emergentes de suas novas experiências de campo, até chegar ao ponto em que o modelo construído se torna apto a ser articulado amplamente com outros modelos culturais de modo a possibilitar conclusões generalizantes ou de sentido geral, tanto sobre a cultura estatal local quanto de todas as culturas estatais, incluindo a própria de origem do estadólogo. Deste modo, por aprender com a nova cultura é que ele pode ser comparado a um educador, vez que, ao estudar uma nova cultura, acaba por revelar e transformar a sua própria cultura nativa. Daí que o estadólogo se torna, ele próprio, uma espécie de cultura apartada, “sui generis”. 70 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA167. O processo do estadista é o mesmo, com a diferença essencial – sempre por mim enfatizada – de que o papel dele é a de mudar a cultura estatal local e não apenas observar e descrever o seu espaço de mando. Ele muda o Estado no seu pequeno espaço de poder e, ao mesmo tempo, é mudado, no desenvolvimento de seus próprios pensamentos sobre o Estado. O estadista se transforma à medida que transforma o Estado. Esta transformação bilateral, que o distingue do estadólogo, é o centro nevrálgico de seu próprio papel funcional em toda e qualquer atividade de cultura estatal. Mesmo que o estadista não mude nada no local onde aporta com poder de mando, a sua simples presença, substitutiva do dirigente anterior ou instituída em primeiro dirigente de órgão novo, já constitui uma mudança na cultura local, pois mudou a configuração de um dos elementos principais, a do “timoneiro” – por assim dizer. 71 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA168. O estadólogo aprende a criar modelos e a usar estes modelos para catapultar novas experiências até o ponto de estabelecer articulações tão amplas que permitam generalizações significativas sobre o Estado, a partir da sua experiência de observação no campo do Estado. Estas “etapas” são permeadas por duas pontes.

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114 A primeira ponte é estabelecida pela “objetificação”, que põe em contato as experiências anteriores do estadólogo com a “modelagem” que ele inventa como instrumento de trabalho para suas experiências de campo. A segunda ponte ocorre por meio da “aproximação” e “revisão”, que constituem instâncias de “controle” do modelo para poder estabelecer as articulações ampliadas e generalizar o seu modelo explicativo para toda a cultura do Estado como um todo. O estadólogo pode se valer de “exemplos” e de “controles” em sua experiência de campo; os exemplos são aproximações com outras experiências vivenciadas por outros observadores; os “controles” são os modelos que ele constrói para observar o campo de estudo e melhor descrever o seu mecanismo de funcionamento. Pode-se encontrar um “estadólogo” no campo das artes plásticas, por exemplo, na obra de um pintor, desenhista ou chargista, quando ela retrata agentes do Estado ou o Estado em geral. 72 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA169. O estadista, como o estadólogo, também cria seus “modelos de ação” para implementar mudanças no campo do Estado. Para tanto, os seus métodos de mando (uso do poder) seguem o mesmo curso, com uma objetificação que articula o seu método com os métodos que aprendeu anteriormente ou que já existiam no órgão que passa a dirigir, e que servem de “metáforas analógicas” para a construção do seu próprio modelo de exercício do poder. De posse do seu próprio modelo de mando, o estadista catapulta este modelo para implementar outras mudanças no seu campo; porém, sempre precisa estar atento para fazer “aproximações” e “revisões” no seu modelo, segundo os resultados da experiência de implementação. Com isso alcança um aprimoramento do método de ação capaz de levar a uma articulação dele com outros métodos e ações mais amplos e externos, conseguindo, a partir daí, alcançar um grau de generalização teórica que lhe permita “ver” o Estado como um todo e “ver” as mudanças por ele operada no contexto mais amplo da totalidade do Estado. Não pode ignorar exemplos exteriores, inclusive advindos do campo da arte, como as da pintura, do desenho, da charge, que retratam outros estadistas atuando na direção do Estado, pois, como se disse acima, o que muda no estadólogo é justamente a sua capacidade de desenvolver os seus próprios pensamentos para melhor agir no Estado. 73 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA170. O estadólogo de campo pode utilizar a arte nativa do Estado para observar o passado do próprio Estado, mediante análise antropológica da arte retratada. Deste modo, o estadólogo tem acesso ao passado do campo, já inacessível diretamente. Estas obras de arte não precisam estar postas dentro do espaço do Estado observado, podendo ser buscado em outros lugares, como museus, pinacotecas, galerias, bibliotecas ou mesmo residências particulares; em suma, onde a pesquisa

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115 encontrá-las. E não há necessidade de utilizar apenas um tipo de arte; deve se valer de todos os disponíveis. 74 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA171. O estadólogo, para exercer o poder de mando, precisa conhecer o presente e o passado da parte do Estado onde passa a exercer o seu poder de mando; portanto, deve fazer-se, antes de tudo, estadólogo; conhecida a tradição local, pode adequar melhor as suas ordens de modo a criar condições mais precisas de efetividade, sem violentar a imagem que o próprio órgão ou setor construiu para si ao longo de sua existência. Um destes meios de acesso ao passado é através dos meios artísticos positivos existentes sobre o campo de sua atuação. 75 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA172. O estadólogo pode ver na arte e nos seus desdobramentos a expressão da crítica, dos agentes do Estado e da sociedade sobre aqueles, de modo a conhecer melhor a própria condição humana posta na realidade do passado de seu campo de pesquisa. A caricatura é um dos meios que retrata a visão social dos agentes do Estado e dos próprios estadistas que dirigiram a parte do Estado posta em seu campo de observação. Com isso, alcança não apenas o dado concreto do presente, mas a tradição do passado que sempre se revela com grande dificuldade e distorção através da memória disponível. Nada obsta que o próprio estadólogo utilize, ele próprio, se dispuser de tal habilidade, da arte pictórica para reproduzir os contextos de realidade que observa, a exemplo da criação alegorias como a caricatura de figuras públicas postas diante do seu olhar. Também pode se associar a quem tenha tais habilidades para efetuar criações que expressem o conteúdo de suas observações. 76 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA173. O estadista pode reconhecer na arte um meio de visibilidade do passados de outros Estadistas e até mesmo o modo como ele próprio é visto no presente pelos demais agentes do Estado e da sociedade que o colocou no poder. A crítica moral retratada na arte se torna meio de conhecimento capaz de influir nas diretrizes e nas características do seu próprio modo de exercer o poder na parcela do Estado que está sob sua direção. O estadista pode contratar artistas para retratar realidades de seu campo de poder; modernamente, pode se valer de fotografias e de filmes que mostrem a realidade do Estado dentro de sua competência, tanto do que encontra quanto do que pretende fazer para melhorá-la ou do que já fez neste sentido, de modo a contrastar as realidades e dar visibilidade ao seu trabalho no Estado. Esta prática constitui até um dever do estadistas, pois ele deve prestar contas à sociedade sobre a utilidade de seu mandato no Estado.

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116 77 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA174. O estadólogo tem em comum com o artista o mesmo objeto de estudo: o povo e seus costumes, no caso, através do Estado que ele próprio cria e faz funcionar, seja todo ele ou parte dele, em diversas épocas e espaços físicos. Ambos descrevem, explicam e tentam dar um sentido para o que vivenciam, mediante uma caracterização penetrante que resulta de longa observação. O estadólogo objetifica sua visão de Estado por meio dos costumes dos outros. Pode-se dizer que “cada povo tem o Estado que estabelece”, em contraponto à visão antiga que propunha no lugar do estabelecimento, o merecimento, indicando uma distinção essencial entre Povo e Estado ou governo, a indicar que o estadista não tinha origem no povo, mas sim outra origem, que poderia ser até de um outro povo. O estadólogo observa o povo no poder do Estado como sendo o próprio povo, através dele, a se observar no Estado, através de representantes que ele instituiu. Em outras palavras, estadólogo é um do povo observando outros do povo mandando no Estado, os estadistas. 78 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA175. O estadista, ou pós-estadólogo com poder de mando, tem que implementar as mudanças no Estado para o povo, mediante a observação das diretrizes dispostas pelo povo através das leis que cria e impõe a si próprio. Em outras palavras, o povo dirige o Estado através do estadista e a vontade do povo é materializada nas leis, através dos seus representantes eleitos para dirigir o Estado. A vontade do estadista, que também é a vontade do povo, para ser implementada, tem que se tornar, de alguma forma, lei. Os planos de governo se tornam conteúdo de leis que o estadista implementa com o seu poder de mando dentro do espaço de sua competência. Assim como o artista realista recria a realidade na sua pintura, o estadista recria a realidade, só que na própria realidade, que, por sua vez, pode ser retratada na pintura. Em outras palavras, o estadista faz a história e a história que faz é a história do seu próprio povo exercendo o poder através dele. Daí que os costumes do povo também se refletem nos costumes do Estado em seus variados aspectos de atuação diferenciada. Não atua apenas um estadista no Estado, mas milhares deles, espalhados pelo território e misturados ao povo, pois ele também faz parte do povo, do mesmo modo que milhares de artistas retratam variadas realidades distintas do povo ao longo do tempo em suas variadas manifestações artísticas. 79 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA176. O estadólogo observa uma parte do Estado e representa, na sua mente, esta parte observada. Esta representação mental é uma simbolização da realidade do Estado; não é o Estado mesmo, pois este está lá, fora da mente do estadólogo. A imagem mental do estadólogo é um símbolo do Estado. Pressupõe-se que seja um símbolo “fiel”. Esta representação 174 175 176

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117 mental, ao ser descrita no papel, tem os mesmos pressupostos de fidelidade com o que foi observado em campo. Este é um critério de cientificidade. Porém, pode ser que o estadólogo queira modificar esta imagem mental de modo a realçar coisas, fatos, setores, em detrimento de outros que também observou; este realce feito numa parte do todo da imagem é uma forma de nova simbolização, pois é o estadólogo que opera o realce que não existe na realidade observada. Esta é uma segunda simbolização que ele opera. Por ser uma simbolização dentro de uma outra simbolização, diz-se que o estadólogo operou uma ressimbolização do Estado, ainda que só de uma parte dele. Dependendo do grau da “distorção” operada pelo estadólogo, ele pode terminar por descrever uma Alegoria do Estado, uma CARICATURA DO ESTADO, e não o Estado mesmo. Isto ocorreu justamente porque o estadólogo operou uma “analogia com uma significação incidente”. A alegoria feita está no campo da ARTE e não no campo da CIÊNCIA. Ainda que seja difícil não operar tais distorções, é preciso que o estadólogo faça um esforço permanente para reavaliar suas imagens mentais e descrever com a máxima fidelidade o que observou. A ideologia é uma das “significações incisivas” que gera a alegoria no lugar da analogia científica. 80 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA177. O estadista observa o campo do Estado onde opera mudanças do mesmo modo que o estadólogo o faz; ele olha e vê o antes, o durante e o depois das transformações por ele operadas. A imagem mental que cria de cada uma destas fases de mudanças tende a ser uma “cópia” fiel do que ocorreu; por isso, é uma representação da realidade, uma analogia da própria realidade. Porém, ele pode “distorcer” esta representação mediante a incidência de uma significação de modo a apresentar como sendo representação fiel o que na verdade é uma representação distorcida pela ideologia utilizada. Em outras palavras, ele pode terminar vendo o que não está posto, ou descrevendo o que não aconteceu na realidade. O estadista pode fazer esta distorção consciente ou inconscientemente; por isso, precisa ele reavaliar sempre as suas “descrições” da realidade para corrigir as distorções ou, se for o caso, para mantê-las como estipula a sua própria vontade orientada pela ideologia que aporta. A visão da realidade do estadista tem que ser a da mera simbolização; se usar ressimbolizações, pode ser que seja com vista a algum efeito que ele pretende obter mediante a distorção por ele operada no discurso que retrata “aquela” realidade (alegoria). De qualquer sorte, ele dispõe, sempre, destas duas possibilidades analógicas. 81 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA178. O estadólogo pode ver o Estado como uma “cultura exótica”, algo estranho para si e que precisa ser conhecida. Assim, ele pode usar o seu campo de observação de modo tripolo: como meio de compreensão do Estado, como meio de interpretação do Estado e como meio de aprendizagem sobre o Estado. 177 178

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 43. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 43/44.


118 O estadólogo também pode implementar três atitudes a partir do campo de estudo: universalizar a sua da visão do Estado, generalizar os modos de vida no Estado e caracterizar a variedade de coisas e atividades do Estado. Com a experiência de observação do Estado, pode construir uma espécie de “sementeiro de analogias” sobre o Estado, de modo a poder retratar os “habitantes do Estado” tanto como efetivamente são quanto, por um meio artístico, estabelecer analogias caricaturais que permitam realçar, ideologicamente, aspectos do Estado por ele julgado importantes, mas sempre ciente de que opera não através da ciência, mas da arte, para produzir um tipo de “Estado metafórico”. Ademais, o estadólogo também pode procurar conhecer o estado através do teatro, no conteúdo das peças produzidas pela sociedade sobre o seu Estado, tanto do presente quanto do passado. Portanto, o estadólogo observa o Estado não apenas “dentro” dele, mas, também e, quem sabe até, principalmente, “fora” dele, na sociedade que o instituiu. O estadólogo precisa estar atento aos detalhes do Estado, para poder apreender as minúcias de tudo quanto “aparece” em seu campo de observação; isto porque é a partir do detalhe que pode ser construída a síntese da totalidade das coisas e momentos de “aparição” do Estado real. 82 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA179. O estadista também opera no Estado usando-o, e também a si próprio, como meio de compreensão, de interpretação e de aprendizagem sobre o próprio Estado, de modo que possa, também, produzir universalizações, generalizações e caracterizações das variedades de objetos encontrados no Estado e que materializam-no como se fosse uma “coisa” tangível. O estadista “manipula” o Estado através do próprio Estado, como os meios disponíveis neste, que são recursos materiais e recursos humanos, tendo em vista os fins postos nas mudanças por ele estabelecidas. O estadista trabalha com o “Estado real” e não com o “Estado metafórico”; por isso, suas representações ou analogias precisam estar constantemente sendo revisadas, de modo a evitar tanto o erro de avaliação da situação do presente quanto o erro de planejamento e de execução das mudanças que vai implementar. Ver como a sociedade vê o Estado é um modo de observar o próprio Estado no olhar que vem de fora dele, com um tipo de objetificação diferenciada da que pode ser produzida a partir de dentro dele. Também o Estadista precisa estar atento a todos os detalhes do Estado, tanto do que é produzido pelos outros quanto pelo que é produzido por ele próprio no Estado; assim, poderá ter o “controle” completo de tudo quanto “acontece” no Estado sob o seu comando, dentro de seu território ou espaço de mando. Sem o detalhe, o estadista está “cego” e não conseguirá ver o conjunto concreto, justamente pela falta do detalhamento prévio que lhe “fugiu” da observação. 83 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA180. O estadólogo tem que estar atento para dois tipos de contextos: o “contexto temático” e o “contexto cênico” da realidade retratada pela observação. Ao “encenar” um tema, pode reproduzir a cena 179 180

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 43/44. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44


119 do próprio contexto de sua época quanto pode produzir uma cena da realidade atual que materializa, simbolicamente, o tema. Em outras palavras, uma descrição escrita feita do Estado em um livro tem que ser vista dentro do contexto da obra, em primeiro lugar e, só depois, dentro do contexto do leitor ou estadólogo. A intercontextualização pode gerar distorções que impeçam o estadólogo de ver o Estado real, operadas pelos “óculos” das descrições de suas leituras. Em outras palavras, o estadólogo não pode fazer contextualizações descontextualizadoras do Estado, pois isso levará a produzir uma alegoria do Estado e não uma metáfora científica do Estado, um retrato da realidade observada por meio de relatos escritos. 84 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA181. O estadista é, antes de tudo, um estadólogo que adquiriu o poder de mando, que não se limita a observar o Estado, mas está munido de poderes para mudar o Estado, para transformá-lo. Portanto, as idéias que tem do Estado devem ser produzidas a partir da própria observação do Estado no lugar e no tempo onde o estadista está; não adianta ele ficar pensando no Estado que “leu” em obras de estudo teórico, pois tais obras retratam o Estado segundo a observação do escritor, em um tempo passado e em outro lugar que não o do estadista. Podem auxiliar, mas, também, podem prejudicar a compreensão, a interpretação e aprendizagem sobre o Estado real, concreto, visível, posto “ali”. Não pode ver o Estado atual como sendo o Estado do passado ou o Estado de um outro país; tem que fazer um esforço para ver o Estado tal qual ele é e está posto, por mais difícil que possa se apresentar o processo de “descoberta” deste Estado real. Sem este “controle” de realidade, o estadista está fadado ao fracasso na direção do Estado; não agirá como estadista e nem como estadólogo, mas sim como um artista que “inventa” um Estado irreal. 85 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA182. O estadólogo é obrigado a usar elementos como “modelos” analógicos para interpretar e para explicar os temas de sua observação do Estado. Estes elementos ou modelos analógicos somente podem ser interpretados no próprio processo da ocorrência da observação. O estadólogo observa o Estado através de modelos analógicos e interpreta o conteúdo de sua observação no próprio processo de observação. Isto quer dizer que observar e interpretar acontecem concomitantemente; é impossível observar sem interpretar ou interpretar sem observar; o processo é comum a ambas as atitudes do estadólogo. Toda descrição do Estado pode ser comparada a uma obra de arte e a sua interpretação comporta, ao menos, sempre, dois sentidos: um expresso e um subjacente, denotado e conotado, onde o explícito indica ou sinaliza o implícito. Comumente se diz “ler nas entrelinhas, segundo uma expressão antiga da cultura brasileira. O estadólogo diz, mas o que diz não é apenas o “dito”; ele também diz para “além” do meramente dito; ele aponta para outras direções que estão posta indiretamente no discurso que descreve o Estado.

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44/45.


120 Extrair o sentido “oculto” na descrição do Estado constitui uma arte própria do ímpeto interpretativo, que vai mais fundo do que a mera “tradução” do que está posto; ademais, “a analogia sempre retém o potencial da alegoria”, no sentido de que todo denotado pode vier a ser conotado. 86 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA183. O estadista, mais do que o estadólogo, precisa estar atento ao texto e ao contexto do que observa e dos resultados do que produz com suas intervenções modificativas do Estado. A sua leitura denota o que vê, mas, embutido nela, vem, também, um sentido conotado que aponta para além do que está meramente dito. Também precisa estar atento para a leitura feita pelos outros, pois o duplo sentido sempre está presente e só se alcança o segundo sentido através de uma “salto” baseado no primeiro. Cada leitura apresenta como elemento um “modelo analógico” que serve para interpretar e para explicar, mas tais modelos só podem ser interpretados no próprio processo de uso dos mesmos; em outras palavras, o uso do modelo só pode ser interpretado durante o processo de seu próprio uso; ação e interpretação ocorrem ao mesmo tempo; agir é interpretar mediante modelos e interpretar é agir mediante modelos. A analogia aqui está entre o contexto de realidade e o contexto de pensamento do intérprete. O estadista não pode dissociar estes dois processos, sem perder o senso da própria realidade que tem diante de si. Descobre-se o encoberto a partir do descoberto. 87 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA184. O estadólogo precisa observar no Estado três estágios. Em primeiro lugar está a mudança do centro de gravidade alegórico, que vai do Estado para a relação estadólogo-Estado e daí para o meio de comunicação do Estado. Em segundo lugar está o pensamento do estadólogo, cujo foco pode estar na ação simbólica do estadólogo, no tema do Estado ou outro, até chegar a uma autopercepção do estadólogo como tal, que lhe permita ver o Estado e para além do Estado. Em terceiro lugar está na consciência da criação, pelo próprio estadólogo, de um tanto de si mesmo, na sua relação com o Estado. Em outras palavras, estadólogo parte de uma objetificação do Estado a partir do seu campo de observação ou estudo e vai, aos poucos, tomando consciência do seu próprio trabalho e na contribuição que dá, a partir de si mesmo, para a invenção do Estado a partir do seu ato de percepção de si, do Estado e do que está além do Estado. 88 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA185. O estadista passa pelos mesmos estágios do estadólogo. Parte da objetificação do Estado mediante seus atos de mudança operados no Estado e vai se dando conta, paulatinamente, à medida que muda o Estado, de si mesmo como estadista até concluir que a construção do

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Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 44/45. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45. Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45.


121 Estado por ele operada é um tanto de si mesmo que é dado e posto no Estado; é o seu pensamento de si e do Estado que é implementado nas mudanças do Estado. O estadista e o Estado parecem fazer parte de um todo único e indistinto, de início, mas que se diferencia no próprio processo de mudança do Estado. Ademais, o estadista nunca é eterno no poder do Estado; ele é passageiro e deixa, sempre, a marca da sua presença, pois o Estado se tornou um tanto de sua própria presença durante o exercício do seu mandato. Na verdade, a máxima de Luiz XIV “O Estado Sou Eu” mostra apenas o primeiro passo da objetificação indistintiva estadista-Estado; a evolução que distingue os dois decorre de um processo de consciência do próprio estadista e da sua maturidade como governante. 89 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA186. O estadólogo tem de: 1) basearse num entendimento introspectivo de suas próprias operações e capacidades; 2) desdobrar a relação entre técnica de Estado e temática de Estado como um meio de extrair autoconhecimento do entendimento dos outros e de extrair entendimento do autoconhecimento dos outros; 3) tornar mais óbvios e compreensivos a seleção e o uso de analogias e modelos explicativos, que são provenientes da própria cultura do estadólogo, como sendo parte da extensão simultânea do próprio entendimento do estadólogo e da apreensão de entendimento de outros estadólogos; 4) aprender a externalizar noções como “lei natural”, “lógica” e “Estado” como quem procede na invenção de um autorretrato; 5) ver essas suas próprias noções como quem vê os conceitos de outros estadólogos, tentando apreender os seus próprios significados de um ponto de vista mais genuinamente relativo. 90 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA187. O estadista tem que fazer um esforço para proceder do mesmo modo que o estadólogo, tanto no tocante ao conhecimento da situação atual do Estado quanto de suas propostas de mudanças e da imagem de realidade futura que pode formular em sua especulação reflexiva; isto, na antecedência ao ato de mudança; durante a aplicação da mudança, deve proceder de novo, aplicando o mesmo método; e, num terceiro momento, após ter implementado as mudanças, deve voltar a aplicar o método, de modo que possa sempre e reiteradamente dar-se conta de si mesmo no processo de mudança do Estado, de modo que o Estado não reflita apenas o seu pensamento. Mas o conjunto de todos os pensamentos a que teve acesso o estadista para implementar as mudanças que pretende e faz. Com isso, o estadista se tornará um melhor estadista em cada nova mudança que opera no Estado. 91 – APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA188. Parafraseando, em parte, Wagner, o estadólogo pode dizer que “estudo do Estado é Cultura”, assim como estudo da cultura é cultura”. Uma Ciência do Estado que pretenda ser, ao mesmo tempo, consciente e com senso de objetividade relativa, precisa assumir o fato de 186 187 188

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45/46 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 45/46 Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 46.


122 que estudo do Estado é cultura. Daí que ela precisa ser consciente, objetivamente relativa e culturalizada. Em nova paráfrase, o estadólogo pode afirmar que “o estudo do Estado é, na verdade, o estudo do nosso Estado, da nossa Cultura de Estado”. O estudo do Estado opera por meio das nossas formas, cria com nossos termos, toma emprestado nossas palavras e nossos conceitos para elaborar seus significados e, por fim, recria-nos (nós, os estadólogos) mediante os nossos próprios esforços. A terceira paráfrase que o estadólogo pode fazer é afirmar que a Estadologia se situa permanentemente em uma encruzilhada e tem que fazer opções. Ou se coloca como uma experiência aberta e de criatividade mútua, na qual o Estado em geral é criado por meio dos “Estados” que criamos com o uso desse conceito, ou se torna uma imposição de nossas próprias preconcepções ou preconceitos sobre outros Estados. A quarta paráfrase que o estadólogo tem que fazer consiste em afirmar que a Estadologia tem de permanecer fiel às implicações da nossa PRESUNÇÃO DO ESTADO. Se não o fizer – e aqui vai a quinta paráfrase – não poderá assumir a igualdade relativa dos Estados, terá de negar a criatividade dos povos para formar o seu próprio Estado e passará a usar tais Estados e povos como subservientes ao nosso Estado e ao nosso povo. Por fim, como sexta e última paráfrase, o estadólogo terá de afirmar que a criatividade e a invenção são as qualidades salientes da cultura de um povo. O Estado é, portanto, uma Criatividade do seu próprio povo. 92 – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA189. O estadista, como já se disse repetidas vezes, é, antes de tudo, um estadólogo com poder para modificar o Estado. Neste sentido, tudo quanto se disse acima serve para este. O estudo do Estado é cultura; mas, também, a própria modificação do Estado pelo estadista. Deve assumir que Estado é Cultura; que há uma cultura do Estado. Para o estadista também há a presunção do Estado para todo e qualquer povo, como cultura dele próprio. O estadista é parte do seu próprio povo e, na medida em que dirige o Estado, representa o próprio povo dirigindo o seu próprio Estado. Sem a presunção do Estado e da igualdade entre os povos para construir os seu próprio estado, negando-lhe a sua própria criatividade, então, esta negação tem a finalidade de tornar aquele povo subserviente, assim como o seu próprio Estado. É o que ocorre nas Ditaduras decorrentes de golpes ou de guerras de conquista (seja de que tipo for), em que se destrói o Estado posto para se impõe outro em seu lugar, negando-se ao seu povo a criatividade de seu próprio Estado. Isto em uma perspectiva externa. Em uma perspectiva interna, o estadista precisa reconhecer a presunção do Estado em outras esferas de poder, como ocorre em uma federação ou em uma confederação; ou, mesmo quando o Estado é unitário, nos diversos segmentos desconcentrados ou descentralizados, com maior ou menor autonomia decisória. O estadista reconhece que o Estado é múltiplo e uno, ao mesmo tempo, segundo a concepção do povo que o estabelece. Uma parte do Estado é o Estado uno naquela parte onde o estadista exerce a competência para o mando capaz de 189

Cfe. WAGNER, Roy. A Presunção da Cultura, in: A Criação da Cultura, p. 46.


123 modificá-lo, de transformá-lo. Como instrumento do Estado, o estadista é o próprio Estado animado, pelo seus dirigentes. A vontade do estadista não é a vontade pessoal dele, mas sim do próprio Estado posta através das leis que regem o Estado; se a vontade do estadista precisa ser implementada, antes de tudo ele precisa tornar a sua vontade a vontade do próprio Estado através das leis, “lato sensu”, do próprio Estado. Um plano de governo de um estadista se torna lei do Estado, cujo concurso de aprovação passa por diversos segmentos de poder composto por diversos representantes do próprio povo. Em outras palavras, o povo é o Estado e o Estado é o povo. O estadista é o povo criando o seu próprio Estado. Esta é a criatividade do Estado.

Conclusões da Síntese Paralela de Ciência do Estado

93 - O estadólogo pode ser comparado com o antropólogo e o setor do Estado que ele estuda é o seu campo de pesquisa presencial, participativo, interativo e de imersão observativa. O Estado só pode ser visto como uma cultura diferenciada que o estadólogo estuda para fins de melhor compreendê-lo e explicálo tal como ele é ou se parece no presente observativo do pesquisador. 94 – O estadólogo visa a conhecer e descrever o Estado; o estadista visa a modificar o Estado mediante o poder de mando de que dispõe para tal, dentro de seu campo de competência legal. O estadista vê o estadólogo como um estranho na tribo do Estado com a finalidade de estudar temporariamente o Estado; o estadólogo vê o estadista como nativo do Estado e objeto de seus estudos. O Estado é comparável a uma “tribo” exótica, a “tribo do Estado”, com sua “aldeia do Estado”, com seus “nativos do Estado”, com seus “costumes do Estado”. 95 - As “leis do Estado” são apenas uma descrição do que a tribo deve ser, mas isso não quer dizer que a tribo seja exatamente como a lei prescreve, uma vez que cada “local” interpreta a lei a seu modo e dentro de suas próprias tradições de Estado. A lei é um “indício” para estudo da tribo do Estado, porém, o papel do estadólogo é a de ver a tribo real, concreta, e compará-la com a tribo virtual, ideal, posta pelos textos legais. Mesmo que a lei seja obrigatória para toda a tribo do Estado, posto que criada por ela mesma, o modo de concretização varia de local para local, de tempo para tempo e de nativos para nativos. 96 – o papel do estadista pressupõe a introjeção do papel do estadólogo, i.e., antes de mandar na tribo, deve conhecer muito bem a tribo. Como isso nem sempre acontece, o estadista precisa se fazer estadólogo, principalmente no início, mas, também, ao longo do exercício do cargo, eis que não tem a formação técnica


124 necessária para entender a totalidade do Estado na particularidade do setor ou campo em que exerce o seu poder de mando.

97 - Para tanto, pode contratar o estadólogo para lhe aconselhar sobre o Estado e melhorar o exercício do seu poder de mando. Quanto mais o estadólogo estuda o estadista no campo do Estado, tanto mais tende a negar a si próprio e a se tornar o seu próprio objeto: o estadólogo tende a se transformar em estadista. 98 – O método antropológico de Wagner aplicado à Ciência do Estado revela a possibilidade da criação de um método antropo-estadológico de estudo do Estado, ou simplesmente, MÉTODO ESTADOLÓGICO, através do qual o estadólogo e o estadista se valem da metodologia legada pela antropologia cultural ou simbólica para descrever e para modificar o Estado.

99 - A finalidade do estudo do estadólogo é inventar a cultura do Estado para que o estadista possa melhor e mais facilmente transformá-lo segundo as diretrizes ou propostas que a sua sociedade de origem lhe incumbiu; por isso, o estadólogo precisa estar imerso em seu campo de estudo, para ver o Estado real, sem o que não poderá aconselhar o estadista em sua tarefa de direção do Estado.

100 - Por isso o estadista tende a aceitar bem o estadólogo no seu meio, mesmo sendo um estranho, pois é ele que poderá mostrar justamente o que aquele não consegue ver; o estadista não tem o olhar desarmado do estadólogo e nem pode ter, pois ele, por ter o dever de modificar o Estado, está, desde logo, comprometido com uma visão de Estado que justifica justamente o seu poder de mando no local em que está posto.

101 - O estadólogo, por ter uma visão ampla e singular de todos os meandros do Estado, pode dispor de um horizonte teórico e prático mais amplo do que o estadista e, mais do que isso, pode produzir conhecimento, tanto teórico quanto prático, para o ensino de futuros estadólogos e de futuros estadistas, melhorando, sempre, a Ciência do Estado.


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Índice Analítico

SUMÁRIO .............................................................................................................................................................. 2 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 3 PARTE 1 – A IDÉIA DE CULTURA .................................................................................................... 7 1 – A CULTURA HUMANA COMO OBJETO DA ANTROPOLOGIA: O HOMEM EM PERSPECTIVA CONCEITUAL ................................................................................................................. 7 2 – CONCEITO DE CULTURA E PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO ............................................ 8 3 – A PERSPECTIVA LARGA E DE LONGO ALCANCE DO ANTROPOLÓGICO .......................... 9 4 – O ESTUDO AMPLO E BÁSICO DO HOMEM: EPISTEMÓLOGO, PSICÓLOGO E ANTROPÓLOGO ...................................................................................................................................... 10 5 – CONSCIÊNCIA DA CULTURA - OBJETIVIDADE ABSOLUTA E OBJETIVIDADE RELATIVA: MÉTODO DE OBJETIVAÇÃO ................................................................................................................ 11 6 – ISONOMIA DE CULTURAS: FOCO NA RELATIVIDADE CULTURAL...................................... 12 7 – A COMBINAÇÃO DAS DUAS IMPLICAÇÕES DA IDÉIA DE CULTURA: RELAÇÃO INTELECTUAL DE COMPREENSÃO ................................................................................................... 13 8 – O “EXPERENCIAMENTO” ANTROPOLÓGICO – IDEOLOGIA OU CIÊNCIA? DIÁLOGO COM HERÓDOTO .................................................................................................................................... 15 9 – AS CONDIÇÕES DA EXPERIÊNCIA – QUANTITATIVA E QUALITATIVA: ARQUEÓLOGO, SOCIÓLOGO E ANTROPÓLOGO CULTURAL OU SOCIAL ............................................................ 16 10 – O TRABALHO DO PESQUISADOR DE CAMPO: SINAL DE “IGUALDADE INVISÍVEL” ENTRE CULTURAS ................................................................................................................................. 18 11 – A INVENÇÃO DA “CULTURA” PELO ANTROPÓLOGO: VERBOS “EXPERIENCIAR”,“VISIBILIZAR” E “REINVENTAR” .......................................................................... 20 PARTE 2 – TORNANDO A CULTURA VISÍVEL .............................................................................. 22 12 – O “COMEÇAR DO ZERO” NO “TRABALHO DE CAMPO”: UM PARTICIPANTE DE QUE COMEÇA SUA INVENÇÃO DA CULTURA ESTUDADA.................................................................... 22 13 – OS PROBLEMAS DO PESQUISADOR INICIANTE DE CAMPO: O PESQUISADOR É TAMBÉM PESQUISADO ......................................................................................................................... 23 14 – COMO LIDAR COM OS PROBLEMAS: A CORTESIA COMO BASE DE UMA ARTE ELABORADA ............................................................................................................................................. 24 15 – OS PRIMEIROS CONTATOS “FORASTEIRO-NATIVO”: HOSTILIDADE, RISO E AMIZADE ..................................................................................................................................................................... 26 16 – APRENDER COM OS NATIVOS: EXPECTATIVAS DE RECIPROCIDADE .......................... 27 17 – AS CONTRADIÇÕES NOS SENTIMENTOS DO PESQUISADOR: A CONDIÇÃO SOCIAL DE PESSOA DIMINUÍDA ........................................................................................................................ 28 18 – O PRIMEIRO CHOQUE CULTURAL: A PERDA E O RESGATE DO EU DO ANTROPÓLOGO ...................................................................................................................................... 29 19 – O SEGUNDO CHOQUE CULTURAL: O CHOQUE DA ALDEIA .............................................. 32 20 – A SOLUÇÃO PARA OS CHOQUES CULTURAIS: AMPLIAÇÃO DA CONVIVÊNCIA – MISSIONÁRIO DA CULTURA ................................................................................................................ 34 21 – A OBJETIFICAÇÃO DA CULTURA: O PSICANALISTA E O XAMÃ........................................ 36 22 – OBJETIFICAÇÃO E APRENDIZADO: EXTENSÃO E PREDISPOSIÇÃO CULTURAIS ...... 37 23 – A CULTURA COMO “MULETA” DO ANTROPÓLOGO: PROCEDER “COMO SE FOSSE COISA”........................................................................................................................................................ 39 24 – O ATO DE INVENÇÃO DA CULTURA: USO DA ANALOGIA E “VIRAR NATIVO” ............... 40 25 – A CULTURA É TORNADA VISÍVEL PELO CHOQUE CULTURAL: A CONCRETIZAÇÃO INVENTIVA ................................................................................................................................................ 41


126 26 – UM PONTO DE CONEXÃO ENTRE DOIS MODOS DE VIDA: O “NATIVO METAFÓRICO” ESTRANHEZA E INTERPOSIÇÃO ........................................................................................................ 43 27 – A “EMANCIPAÇÃO” DO ANTROPÓLOGO: EXPERIÊNCIA DA CULTURA – ESCAPE E CONTROLE ............................................................................................................................................... 44 PARTE 3 – A INVENÇÃO DA CULTURA ......................................................................................... 45 28 – “COMO SE” HOUVESSE CULTURA: SENTIDO GERAL E SENTIDO PARTICULAR ......... 45 29 – O MOMENTO DA INVENÇÃO: CRIATIVIDADE HUMANA E ARTE CRIATIVA .................... 46 30 – O “JOGO DE FAZ-DE-CONTA”: A DUPLA INVENÇÃO DA CULTURA OBSERVADA PELO ANTROPÓLOGO ...................................................................................................................................... 47 31 – O ENTENDIMENTO ANTROPOLÓGICO DE CAMPO: A METAMORFOSE CULTURAL QUE O ANTROPÓLOGO SOFRE ......................................................................................................... 49 32 – ESTUDO ANTROPOLÓGICO: A INCONSCIÊNCIA DA INTENÇÃO SIMBÓLICA ANALOGIA COM O PINTOR E A PINTURA ........................................................................................ 50 33 – A INVENÇÃO É “CONTROLADA”: IMAGEM DA REALIDADE E IMAGINAÇÃO DO CIENTISTA................................................................................................................................................. 51 34 – A METODOLOGIA DA INVENÇÃO DA “CULTURA” EM CAMPO: REFINAMENTO DA INVENÇÃO E A METÁFORA DO SALTO COM VARA ...................................................................... 52 35 – OS EFEITOS DA INVENÇÃO DA CULTURA: MODELO, CONTROLE, REPRESENTADOR E EDUCADOR - POR QUE VALE A PENA ESTUDAR OUTROS POVOS ..................................... 55 36 - OBJETO DE ESTUDO COMO “CONTROLE” NA CRIAÇÃO: APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO – ARTICULAÇÃO E SIGNIFICAÇÃO ............................................................ 57 37 – O ESTILO DE FIGURAÇÃO DO REALISMO FLAMENGO: A PINTURA DO SÉCULO XV. 58 38 – O RETRATO DA CONDIÇÃO HUMANA DE ÉPOCA: O USO CARICATURAL DE HIERONYMUS BOSCH ........................................................................................................................... 60 39 – OS TRAÇOS ANTROPOLÓGICOS NA OBRA DE BRUEGEL: CARICATURA E IRONIA SIMBÓLICA ................................................................................................................................................ 61 40 – APREENSÃO ARTÍSTICA DOS COSTUMES LOCAIS NA PINTURA DE BRUEGEL: PROVÉRBIOS E ALEGORIAS - A RESSIMBOLIZAÇÃO ALEGÓRICA .......................................... 62 41 – O TIPO PARTICULAR DE ANTROPOLOGIA DE BRUEGEL: DIÁLOGO DA PINTURA COM O TEATRO DE SHAKESPEARE ............................................................................................................ 64 42 – O POVO BÍBLICO TORNADO FLAMENGO: A CONTEXTUALIZAÇÃO DESCONTESTUALIZADORA DE BRUEGEL ...................................................................................... 65 43 – O ÍMPETO INTERPRETATIVO E A “TRADUÇÃO”: O USO DE “MODELOS” ANALÓGICOS E A INTERPRETAÇÃO NO PROCESSO ............................................................................................. 66 44 – CENTRO DE GRAVIDADE ALEGÓRICO NO DESENVOLVIMENTO DA PINTURA FLAMENGA: DIÁLOGO COM PETER RUBENS, REMBRANDT E VERMEER ............................. 68 45 – ANTROPOLOGIA AUTOPERCEPTIVA E AUTOCONSCIENTE: O RETORNO A NÓS MESMOS .................................................................................................................................................... 69 46 – ESTUDO DA CULTURA É CULTURA: O TEÓRICO E O ÉTICO SIMULTANEAMENTE NA AUTOREFLEXÃO ANTROPOLÓGICA ................................................................................................. 71 CONCLUSÃO (DO MÉTODO ANTROPOLÓGICO AO MÉTODO ESTADOLÓGICO-ESTADÍSTICO) .......................................................................................................................................................................73 FONTES DE PESQUISA ................................................................................................................................... 79 ANEXO ÚNICO (APROXIMAÇÃO ESTADOLÓGICA – APROXIMAÇÃO ESTADÍSTICA) .................81 ÍNDICE ANALÍTICO ......................................................................................................................................... 125


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