Beijo da Rua

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Muito pão duro e pouco pau duro Copa do Mundo também foi ruim para prostitutas

A NITERÓI QUE QUEREMOS: com liberdade, trabalho, moradia; sem estupro, extorsão, prisões e interdições ilegais Sylvio, o cara!

Ano 25 – número 2 – dezembro de 2014


PAPO DAVIDA

D

Zero a zero

EXPEDIENTE

urante a Copa do Mundo, o tão aguardado gringo que por aqui desembarcaria como turista sexual deixou gregos e troianos a ver navios. No imaginário da nação, piranhas vorazes fariam um notável pé-de-meia com esse turista qualificado que ia, por sua vez, pulular nas arenas das zonas de todo o país. Vendo as coisas por outro ângulo, governo e algumas ONGs preocupadas com a sorte das moçoilas permaneciam firmes, à espreita, prontos para pescar o impiedoso desvirtuador, o temido turista sexual disfarçado de turista tout court. Foi uma acirrada disputa em campo. Putas de todo o país implementaram programas de aceleração do crescimento, investindo alto em aluguel de apartamentos, maquiagem, perfumes e roupa nova, tudo para receber os gringos com todo o charme exigido pela profissão. Já o pacto do governo com as organizações preocupadas com as mocinhas era de fazer broxar o objeto do desejo das putas, fazendo o turista sentirse apequenado porque culpado diante da sorte (supostamente) miserável dessas mulheres. Indiferentes a esse discurso,

mulheres de todo o Brasil, profissionais e amadoras, deitaram, rolaram e dissuadiram o gringo dessa culpa toda. Aliás, uma das virtudes do pagamento pelos préstimos sexuais é ser um eficaz dissipador de confusões e culpas, sobretudo para aqueles homens casados que não gostam de trair suas esposas. Ao acordar um pagamento para a realização de seus desejos, essa categoria de cliente – seja ele gringo ou nativo – resolve seus grilos determinando que aquela transação não passa disso: uma puta transação. Ou, a depender do grau do grilo, uma digna transação. E é nela, aliás, que se compra e vende fantasia. Esse mercado de fantasias, comumente conhecido como mercado do sexo, parecia mesmo que ia ser incrementado pelo tão reputado megaevento esportivo Copa do Mundo. Mas, infelizmente, não foi bem assim. Para as prostitutas, o despacho do Brasil no incrível 7x1 para a Alemanha acabou sendo uma metáfora perfeita do inesperado 0x0 no placar da maioria. Afinal, a concorrência das amadoras e a precariedade financeira dos torcedores não foram computadas.

Fundadora

Edição de arte

Editor

Colaboração inestimável: todos

(RP MTB 13.193)

Uma publicação do Coletivo Davida

Gabriela Leite Flavio Lenz

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Claudio Prudente

Soraya Simões

Apoio

Fundo Guarda-chuva Vermelho

beijo@davida.org.br

Distribuição gratuita, doações bem-vindas


Copa sem tesão

Matias Maxx/Vice Brasil

Feriados, torcedores sem grana ou investindo em outros prazeres derrubaram mercado do sexo, mostra Observatório da Prostituição

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Mundial de 2014 no Brasil foi considerado “ruim” pela maioria das prostitutas entrevistadas no Rio de Janeiro, situação semelhante à de Fortaleza e Recife. No caso do Rio, apesar dos 886 mil turistas nacionais e estrangeiros contabilizados pela prefeitura, houve declínio no comércio sexual durante os 32 dias do evento. Dos 83 pontos de prostituição cariocas pesquisados pelo Observatório da Prostituição (representando 75% das prostitutas que trabalham nas casas, boates, termas, privês, bares, praias, massagens e pontos de rua no Rio num mês de julho comum), apenas 17 registraram aumento de atividade, e em seis outros pontos o fluxo de clientes foi normal. Em contraste, nos demais 60 pontos, inclusive na Vila Mimºosa, onde batalham cerca de 1.000 mulheres, a queda estimada no movimento de clientes variou de 30% a 50% entre 12 de junho e 13 julho. Dois desabafos de prostitutas deixam evidentes as dificuldades enfrentadas por elas, e por que o fim da festa foi mais comemorado do que o início e o meio: “Teria sido bom se tivesse mais pau duro e menos pão duro”. “Graças a Deus que acabou e agora o movimento vai melhorar”. De acordo com o estudo do Observatório da Prostituição sobre o efeito da Copa do Mundo na prostituição e no turismo sexual no Rio de Janeiro, a queda no movimento do comércio sexual pode ser atribuída aos seguintes fatores:

3. A não substituição de clientes habituais por clientes estrangeiros, uma vez que os turistas ficaram concentrados na Zona Sul e na Lapa. 4. O perfil dos turistas estrangeiros que estiveram no Rio de Janeiro: a maioria vinha de países da América do Sul e tinha pouco dinheiro. (Só argentinos, chilenos, colombianos e equatorianos somaram 177 mil, ou 35% dos 471 mil estrangeiros que visitaram a cidade.) 5. Os preços muito elevados que impuseram restrições financeiras aos turistas, limitando gastos com “custos não essenciais”.

Não houve aumento na exploração sexual de crianças e adolescentes nem no tráfico de seres humanos

6. Há indícios de que muitos homens solteiros que visitaram o Rio durante a Copa estavam mais interessados em gastar seu dinheiro e tempo conversando com amigos e bebendo do que consumindo serviços sexuais.

1. Os diversos feriados decretados durante a Copa, com o fechamento de prédios e lojas comerciais.

Por causa desses fatores, houve uma migração interna na cidade, com as prostitutas deixando o Centro e a Zona Norte durante a Copa para frequentar a orla de Copacabana. Uma pequena faixa desse bairro acabou concentrando a grande maioria das atividades sexuais comerciais no Rio, dando a falsa impressão de que a prostituição aumentou na cidade. Enquanto Copacabana viu o número de mulheres trabalhadoras do sexo quase dobrar, porém, a Vila Mimosa e o Centro – áreas que concentram a grande maioria das garotas de programa no Rio em tempos normais – observaram seus contingentes de prostitutas caírem drasticamente.

2. A dependência da Vila Mimosa e dos pontos de prostituição do Centro (onde estão as maiores concentrações de prostitutas no Rio) de clientes habituais, os moradores da cidade, que não circularam nessa área da cidade nesses feriados.

ESTADO VIOLENTO – Os pesquisadores não encontraram nenhuma evidência de que houve aumento na exploração sexual de crianças e adolescentes durante o Mundial, nem no tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual. As piores e mais Matias Maxx/Vice Brasil

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arbitrárias violações dos direitos humanos das prostitutas testemunhadas durante a Copa foram protagonizadas pela polícia e pelas forças de segurança do Estado. Apesar das grandes discussões sobre prostituição e turismo sexual na mídia e na sociedade civil antes da Copa, o Estado não esteve presente em nenhum momento promovendo direitos humanos, saúde sexual, ou o respeito aos profissionais do sexo nos principais pontos do Rio de Janeiro. RELATÓRIO COMPLETO – Nesta edição especial do Beijo da rua você encontra o relatório completo da pesquisa etnográfica. Ela abrangeu os principais pontos de prostituição do Rio de Janeiro (Copacabana, Ipanema, Centro, Lapa e Vila Mimosa), e ainda Fortaleza e Recife, visando monitorar os impactos da Copa do Mundo nas áreas de prostituição de cidades-sede (presença de estrangeiros, concentração ou aumento da prostituição em determinados setores dos municípios), as ações policiais e de organizações governamentais e não-governamentais que vêm atuando nessas áreas ora para reprimir a exploração sexual de crianças e adolescentes, ora para promover suas causas e políticas concernentes à prostituição. A pesquisa também observou as condições de trabalho nesses lugares durante os jogos e as redes formadas para viabilizar o trabalho sexual no período, além de acompanhar o noticiário nacional e internacional sobre prostituição no Brasil durante a Copa do Mundo. OBSERVATÓRIO – O Observatório da Prostituição é um projeto de extensão do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), que reúne professores, pesquisadores e alunos da UFRJ, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). O projeto é realizado em parceria com o coletivo Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj) e a Rede Brasileira de Prostitutas. A metodologia completa está na página 17

Queda geral: fluxo de clientes caiu em 60 dos 83 pontos pesquisados e número total de prostitutas diminuiu 15%

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fluxo dos clientes durante a Copa diminuiu em 60 dos 83 pontos pesquisados, a maioria daqueles localizado no Centro, a região do Rio que concentra mais prostitutas. A maior parte desses pontos fechou, por iniciativa própria, pelo menos um dia da semana durante toda a Copa do Mundo, por não ter clientes suficientes. Na Vila Mimosa (que conta com umas 60 casas, mas, por ser uma região moral fechada e coesa, é contabilizada como um ponto só em nosso mapeamento da prostituição), confirmamos o mesmo fenômeno, com várias das casas fechando em dias de jogo. Com base em nossas próprias contagens e nos cadernos de programa que vimos em vários pontos, pwodemos afirmar que o comércio do sexo parece “Teria sido bom se ter caído pelo menos 30% no Centro e na Zona tivesse mais pau Norte do Rio de Janeiro durante o mês da Copa. duro e menos pão Somente seis dos 83 pontos mantiveram fluxo mais ou menos estável de clientes, quase todos em duro” Copacabana, embora algumas termas no Centro Leila, 35 anos, Rua Buenos Aires também não tenham registrado declínio. Dezessete pontos melhoraram seu fluxo de clientes durante o Mundial – todos eles em Copacabana. Todavia, e apesar de uma migração significativa de prostitutas dos outros pontos da cidade, a quantidade das que frequentaram esses pontos foi significativamente menor que o número que normalmente trabalha no Centro e na Zona Norte (inclusive a Vila Mimosa). Os 23 pontos com estabilidade ou crescimento no fluxo de clientes durante a Copa tiveram aumento total de 25% no número de prostitutas. Enquanto isto, nos Fotos: Thadeuss Blanchette

Concentração de turistas e prostitutas em Copacabana (página anterior) contrasta com as casas fechadas do Centro

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pontos onde o fluxo de clientes diminuiu, o número de mulheres trabalhando parece ter caído, minimamente, 30%. Levando em consideração todos os principais pontos de prostituição do Rio, parece que houve uma queda de 15% no número das mulheres trabalhando com sexo na cidade durante o mês da Copa, apesar do crescimento temporário da prostituição num pequeno trecho do bairro de Copacabana.

Expectativa frustrada: decepção com faturamento, quantidade e qualidade dos clientes

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esmo nas termas luxuosas da Zona Sul do Rio, onde o número de clientes cresceu, o faturamento das prostitutas não foi o esperado. Em muitas termas, a quantidade de trabalhadoras aumentou junto com a de clientes, significando que o total de programas por mulher ficou mais ou menos estável. Em outros casos, os clientes apenas beberam e conversaram, sem pagar programas. Na orla de Copacabana, perto da Fifa Fan Fest – Marco Zero para a prostituição no Mundial –, o número de programas por mulher não aumentou durante o período: de fato, em muitos casos diminuiu. O que aumentou foi o valor que algumas das trabalhadoras sexuais cobraram dos gringos. Muitas das mulheres que migraram para Copacabana do Centro e da Vila Mimosa, por exemplo, costumam cobrar 120 reais por hora, por programa, ganhando 100-300 reais por dia, fazendo programas de 15-20 minutos com 5 a 12 homens. Em Copacabana, essas mesmas mulheres cobraram 200-300 reais por hora, fazendo de um a cinco programas por dia, de uma hora cada. Algumas mulheres conseguiram cobrar até mais, relatando que certos europeus e norte-americanos pagaram 500 a 1.000 reais por programa. Todavia, o movimento de clientes em Copacabana foi maior no inicio do Mundial e diminuiu ao longo dos 32 dias de jogos. Até as quartas-de-final, havia homens de quase todos os países na Zona Sul. Após as quartas, porém, os argentinos dominaram as pistas, praças e bares, e poucos deles queriam pagar 300 reais por hora. O final do Mundial, então, viu uma sensível queda na lucratividade da prostituição em Copacabana, a única região em que houve algum aumento no comércio sexual durante o evento. A maior decepção durante a Copa parece ter ocorrido na Vila Mimosa. A VM fica poucos quilômetros distante do Estádio do Maracanã e a expectativa de todos (inclusive da prefeitura) era de que essa notória zona ficaria repleta de clientes após os jogos. A associação que controla a Vila – Amocavim – apostou alto na renovação da área, que ultimamente anda decadente e mal frequentada. Pagaram por uma limpeza geral das ruas (a responsabilidade dessa tarefa é, propriamente falando, da prefeitura), colocaram fachada falsa no prédio principal e também montaram uma estátua de Zé Pilintra (feita de fibra de vidro e medindo 6 metros de altura) no centro da Vila. A excitação dos donos dos bares e das prostitutas antes da Copa era palpável. Alguns comerciantes compraram centenas de caixas de cerveja para atender à sede das hordas de turistas que presumivelmente encheriam a VM após os jogos. Como relatamos acima, porém, o comércio na Vila Mimosa caiu de 30% a 50% no mês da Copa e poucos turistas – e quase nenhum deles estrangeiro – chegaram à Vila. Vários dos que apareceram causaram mais problemas do que trouxeram soluções.

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“Graças a Deus que acabou e agora o movimento vai melhorar”

Caroline, 28, massagista, numa sala de massagens de edifício na Avenida Rio Branco, Centro

“A Copa foi uma meeeeeeeeeeeeeerda!”

Deusa, 23, em boate na Rua Buenos Aires, Centro

“Geralmente levo uns 700 reais para casa, toda semana. Nas duas últimas semanas [de junho], ganhei um total de somente 500 reais, e olha lá! Nem consegui pagar a matrícula de meu filho” Simone, 32, casa na Zona Portuária

“A Copa não fez nada para a Vila”

Ariel, trabalhadora há dez anos entre Vila Mimosa e Copacabana

“A Copa vai ser o fim disto aqui”

Catarina, 35, garota de programa e gerente de um bar na Vila Mimosa

“O Rio não pegou bons jogos. Tem muito gringo aqui em Copacabana, mas são quase todos gringos latinos: argentinos, chilenos... Gringo pobre. Querem negociar programa de 100 reais por até 50. Querida, não vou nem daqui até a esquina por 50 reais!”

Priscila, 35, Praça do Lido, Copacabana

“Tem muito homem no calçadão, sim, mas eles não querem pagar programa. Querem gastar o dinheiro que têm bebendo cerveja com seus amigos e falando de futebol” Diana, 19, Prado Júnior, Copacabana

Migração na cidade: prostitutas trocaram áreas vazias por Copacabana e poucas chegaram de fora

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Copa perturbou completamente o calendário de trabalho no Rio, já que foi decretado feriado em dia de jogo na cidade e também naqueles dias em que a seleção entrava em campo. Como resultado, as profissionais do sexo que trabalham nas regiões centrais e norte da cidade, predominantemente a Vila Mimosa e as pequenas casas do Centro, enfrentaram um declínio significativo no número de clientes. Esta perda levou parte das mulheres que geralmente trabalham nessas áreas a se deslocar para a Zona Sul à procura de clientes, sobretudo para Copacabana, onde houve a maior concentração de turistas ao longo dos jogos. Muitas dessas mulheres esperaram as primeiras semanas do Mundial para deixar seus locais de trabalho fixo e pegar o rumo de Copacabana, uma vez que os clientes esperados não chegaram ao Centro e à Zona Norte. Observamos poucas prostitutas vindas de outras partes do Estado do Rio (encontramos cerca de duas dúzias) e menos ainda viajando para o Rio de outros Estados (menos que uma dúzia) com a expectativa de trabalhar durante a Copa. Em geral, as que vieram não estavam satisfeitas. Maria, por exemplo, veio de Goiânia e estava pela primeira vez no Rio, com o objetivo de lucrar com o Mundial. No entanto, se mostrou bastante insatisfeita com o resultado da empreitada: “Pensei que iria ser melhor, que faria mais programas e a um preço mais alto, mas não consegui. Foi uma desilusão”. Encontramos apenas uma mulher que migrou de outro país para vender sexo na Copa do Mundo: uma peruana, que viajou de forma independente, sem intermediação de terceiros. Ela ficou muito decepcionada com o resultado de sua decisão, dizendo que teria ganhado muito mais se tivesse ficado no Peru: “Na minha cidade, Lima, faço mais dinheiro que no Rio! Lá cobro 100 dólares por programa, não tenho despesas com estadia e não tenho que pagar nada à casa. E tem muito latino aqui! Muito argentino! Eles não são bons clientes...” Como a maioria das casas no Centro da cidade fechou nos dias dos jogos do Brasil e nos dias em que houve partidas no Maracanã, muitas das “migrantes” encontradas em Copacabana vieram desses pontos. Isto causou certo constrangimento para essas mulheres, acostumadas a trabalhar com clientes brasileiros em lugares fechados onde contam com seguranças e a condição de anonimato. Em Copacabana, tinham que negociar programas em língua estrangeira, em praça pública, e fazer sexo em locais desconhecidas e sem apoio ou segurança. VILA MIMOSA ÀS MOSCAS – Ariel, uma prostituta que trabalha na Vila Mimosa, contou que desistiu de trabalhar em Copacabana depois do fechamento da boate Help, em 2009. O fechamento deixou muitas prostitutas do bairro trabalhando nas ruas próximas da Prado Júnior, mas Ariel não queria ficar exposta. Todavia, o movimento dos clientes estava tão ruim na Vila Mimosa durante o Mundial que ela se juntou a outras colegas da Vila para pegar um táxi para Copacabana. Lá, ela e suas colegas cobraram 200 reais por hora na Praça do Lido, ao lado do Restaurante Balcony (fechado pela polícia durante a Copa, leia em “Polícia pra gringo ver”), o ponto de prostituição mais movimentado identificado pela pesquisa durante a Copa. “Entre a Vila e Copacabana, tá bem melhor em Copacaba-


Fotos: Thaddeus Blanchette

Com Centro e Vila Mimosa vazios (teve até pelada de filhas de prostitutas), algumas profissionais migraram para Copacabana, mas tiveram dificuldades de adaptação às condições de trabalho no bairro

na”, disse Ariel. “Parei de ir para Copacabana porque você fica muito exposta. E não pode mais sentar e tomar uma bebida depois que fecharam o Balcony. Agora tem que ficar em pé do lado do Balcony esperando os homens virem conversar, é mais cansativo. Não tenho paciência. Tem que ficar a noite toda esperando. Mas em Copacabana, pode cobrar melhor - 200 reais por hora. E você nem fica a hora inteira. A maioria das mulheres que relataram estar se “dando bem” durante o Mundial eram as trabalhadoras habituais de Copacabana, já acostumadas com a gira do sexo comercial e do turismo no bairro. Muitas das mulheres vindas do Centro e da VM demoraram a se habituar às novas condições e, portanto, não ganharam bem durante os jogos. Várias de nossas informantes do Centro afirmaram ter ido somente duas ou três vezes à Zona Sul, precisamente porque não se sentiram à

“Eu devia ter ficado no Peru. Lá eu ganhava muito mais” Paolla, 29, peruana

“A Copa foi boa para mim, mas teria dado no mesmo se ficasse em São Paulo” Priscila, 35, paulista

vontade com as condições de trabalho no bairro. A expectativa da Copa também trouxe uma nova geração de prostitutas às ruas. Eram mulheres mais jovens (na faixa de 18-25 anos), sempre em pequena minoria frente às veteranas, mas sempre presentes, particularmente na Praça do Lido, em Copacabana. Essas moças se deslumbraram com as matérias publicadas na mídia antes dos jogos, que afirmavam que haveria “muita sacanagem”. Ironicamente, então, foi o próprio exagero da mídia sobre as expectativas de um enorme aumento de clientes de prostituição que ajudou a “recrutar” esses novos rostos para a pista. Poucas dessas novas prostitutas conseguiram lucrar tanto quanto esperavam, mas quase todas relataram ter tido experiências positivas com a venda de sexo na Copa do Mundo. Poucas afirmaram que iriam continuar na prostituição com o fim dos jogos. Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Polícia pra gringo ver: contingente aumentou em Copacabana só para proteger estrangeiros, e fechamento do Balcony não deslocou ponto de encontro

No bairro turístico de Copacabana, porém, a presença da polícia foi extraordinariamente intensa. De fato, na maioria das noites, na faixa principal de prostituição perto da Fifa Fan Fest, havia mais guardas que garotas de programa. A polícia era de todas as corporações: Civil, Militar, Guarda Municipal, Força Nacional de Segurança e até Polícia Federal.

BALCONY FECHADO – A maior operação policial relacionada com a prostituição durante a Copa foi o fechamento do Restaurante Balcony e do Hotel Lido no primeiro dia do megaevento (ambos abriram dias depois do fim da Copa). Supostamente, essa operação foi organizada porque esses estabelecimentos “exploravam vulneráveis” (crime que não existe no Código Penal brasileiro). É notável que, apesar dessa a Vila Mimosa, observamos um pequeno aumento na presença da polícia acusação, todas as mulheres e travestis que costumavam usar o Balcony como ponto durante a Copa: um ou dois carros circularam ocasionalmente pela área de encontro continuaram exatamente no mesmo lugar, em torno da Praça do Lido, onde antes a presença era quase absolutamente zero. Geralmente, porém, que se transformou no maior ponto de prostituição durante os jogos. Vimos vários policiais em Copacabana direcionando turistas estrangeiros para não houve nenhum policial na Vila. clubes e boates de prostituição. Isto foi deveras irônico, pois muitos desses lugares De acordo com Rachel, uma das garotas que trabalham na Vila, “seria bom se poderiam ser considerados, tecnicamente, violadores das leis brasileiras contra o lea cidade mantivesse a polícia após a Copa. Temos muitos problemas em todo o bairro e em torno daqui [a Vila], com viciados em crack. Mas sabemos que eles vão nocínio, pela prática de ganharem dinheiro com o trabalho sexual de terceiros. (Os donos do Balcony, ao contrário, não ganham nada com o trabalho das mulheres e embora após os jogos”. Outra trabalhadora, Ariel, há dez anos trabalhando entre a Vila Mimosa e Co- travestis que frequentam o restaurante.) Observamos que os clubes e boates indicados pela polícia estavam entre os pacabana, explicou por que não foi à policia depois de ser agredida e mordida no pontos mais bem-sucedidos de prostituição em Copacabana (e, portanto, no Rio) rosto por um cliente argentino durante a Copa: “Por causa da Copa, a polícia não quer arriscar que algo sério aconteça com durante os jogos. Várias das garotas de programa por nós entrevistadas comentaram algum gringo, porque eles terão que responder pelo caso. Os gringos, então, estão este fato de forma amarga e opinavam que o Balcony provavelmente havia sido bem seguros. Então, por que ligar para a polícia [caso um cliente estrangeiro te fechado por não pagar propina à polícia. Testemunhamos um caso de possível intervenção policial clandestina numa boabuse]?” No Centro do Rio, a polícia geralmente esteve ausente, particularmente nos ate de Copacabana. A boate em questão é um pequeno estabelecimento perto da dias de jogo no Maracanã, afora os momentos em que protestos foram convoca- praia, que aluga quartos para a prostituição (prática que foi particularmente repridos. Várias trabalhadoras sexuais dessa região reclamaram que tinham medo de ser mida durante as grandes operações policiais contra a prostituição na Zona Sul em assaltadas e culparam a falta relativa do policiamento no Centro como uma das 2012). No Mundial – e frente ao fechamento do Hotel Lido, tradicional hotel de razões para não irem trabalhar nos dias de jogo. A ausência da polícia foi citada por prostituição na região –, essa boate começou a abrir suas portas para que as prostialgumas gerentes de casas no Centro como um dos motivos para o fechamento dos tutas ativas na orla pudessem alugar quartos por 70 reais por hora. Uma de nossas pesquisadoras presenciou a seguinte situação em frente da boate, estabelecimentos nos dias de jogo no Maracanã. na penúltima semana da Copa: Matias Maxx/Vice Brasil Ela estava na calçada perto do clube quando chegaram dois policiais militares. Eles andaram até a boate, que permanecia fechada, e observaram a porta por uns cinco minutos, antes de voltar em direção à orla, conversando intensamente. Pararam ao lado da pesquisadora, que ouviu o seguinte trecho da conversa: “Sim. Concordo. Dá para tirar um bom dinheiro lá”. Na noite seguinte, cinco membros do Observatório voltaram à boate. Várias dos espelhos internos estavam quebrados e a porta de acesso ao clube estava danificada. O gerente do estabelecimento contou que uma garota de programa tinha quebrado os espelhos por acidente e que a porta tinha sido parcialmente destruída por um cliente que queria sair rapidamente da boate, sem pagar. Ambas as explicações não faziam sentido algum, já que os espelhos eram vários e separados e a porta estava danificada do lado externo. Todos os pesquisadores concordaram que o estabelecimento tinha a aparência de que havia sofrido uma blitz relâmpago da polícia. Embora o local continuasse aberto e funcionando até o fim da Copa, os funcionários não gostavam Em Copacabana, presença ostensiva e constante de policiais, que não se meteram mas tampouco defenderam de conversar sobre os danos e contaprostitutas. “A polícia vem aqui e não faz nada, fica olhando”, disse uma profissional

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Matias Maxx/Vice Brasil

O fechamento do Balcony, tanto da área interna como do toldo, apenas transferiu o ponto de encontro de gringos e prostitutas para o calçadão ao lado

davia, nos eventuais conflitos entre os clientes e as prostitutas ram diversas histórias conflitantes sobre suas causas. “Tá vendo tanta polícia? (componente frequente e tradicional da cena copacabanense), as A presença policial em Copacabana foi ostensiva e constangarotas de programa reclamavam que os policiais estavam “semte. Nas palavras de uma de nossas informantes, tinha “mais poDepois de todos os pre tomando o lado deles [os turistas]”. Isto é uma inversão da licial que pombo! Tinha mais policial até que argentino!” Essa turistas irem pra casa, prática normal na orla, pois a polícia frequentemente apoia as presença se intensificava na hora do encerramento da Fifa Fan vai ‘tchau, adeus, byeprostitutas nessas brigas (e, muitas vezes, aproveita a oportunidaFest e nos últimos jogos da Copa, quando a torcida argentina bye’ e a segurança vai de para extorquir dinheiro dos clientes turistas). dominava a orla e região circundante. Houve vários confrontos voltar a ser uma merda” É marcante que nas semanas anteriores à Copa, testemunhaentre a polícia e torcedores argentinos. Priscila, 35, sobre a presença policial no mos um conflito típico desses, entre três turistas americanos e Todavia, os policiais não se metiam com as prostitutas, mas Lido uma garota de programa, em frente do Balcony. Os turistas acutambém não as defendiam. Apesar da preocupação oficial ossaram e mulher de ter roubado o iPad de um deles após um protensiva com o suposto aliciamento de menores em torno do restaurante Balcony, nunca testemunhamos policiais pedindo a identidade dos grama no dia anterior. Tendo encontrado a mulher no calçadão, chamaram a polícia e adolescentes e crianças que frequentavam a Praça do Lido à noite. As garotas de insistiram que levasse a garota para a delegacia. A polícia recusou e tentou apaziguar programa também reclamaram que sentiam não poder contar com apoio policial, os ânimos de todos os envolvidos. Nosso pesquisador, que ajudou a servir como inem caso de emergência. Como disse uma delas: “A polícia só está aqui para os es- térprete no caso, conseguiu conversar após o confronto com um dos policiais, que interpretou a situação da seguinte maneira: trangeiros, para fazer presença, para pegar o arrego. Não está aqui para nós”. “Eles estavam bêbados e perderam um iPad. Agora, vendo a moça 24 horas mais Outra garota de programa reclamava: “A polícia vem aqui e não faz nada, fica olhando, rodando, pega seu arrego e pronto! Aqui na Praça [do Lido] fica rolando o tarde, entrou na cabeça deles que ela poderia ser o vilão. Não fizeram boletim de tráfico [de drogas] bem ao lado deles. Às vezes tem até roubo e eles não fazem nada”. ocorrência, não falaram com a polícia de turismo, nada. E querem que eu prenda a moça só por causa de suas acusações. Haja paciência...” Em contraste, três semanas depois, na Vila Mimosa, uma informante contou SEGURANÇA PRA FIFA – Várias de nossas informantes prostitutas disseram ter ouvido falar que colegas suas estavam sendo assaltadas na orla e que o espaço era a nossa equipe um caso grave de violência que tinha sofrido. Ela viu um turista “perigoso”. Outros comentários das garotas eram de que os organizadores da Copa suíço bater numa garota de programa após um conflito sobre o pagamento de um estavam “preocupados em fazer um Rio bonito, e não com a nossa segurança”, e que programa. Várias colegas da garota agredida saíram em sua defesa e a situação se “está cheio de policiais agora para fazer figuração e deixar tudo enfeitado. Eles estão transformou numa briga. O suíço ligou para a polícia, que levou todas as mulheres – inclusive nossa informante, que viu a briga mas não participou – para a delegacia. aqui fazendo a segurança pra Fifa e não pra gente!” O sentimento geral das prostitutas era de que “a polícia está lá para proteger As mulheres foram soltas só depois de o turista fugir na hora de assinar o Boletim gringo”, o que foi confirmado por um jovem policial militar na Praça do Lido. de Ocorrência (B.O.). O único caso de preconceito aberto por parte de um policial que ouvimos duConversando com uma pesquisadora americana loura (que ele confundiu com uma rante os jogos veio de uma jovem travesti, que reclamava ser alvo constante de turista), confirmou que “estamos aqui para proteger você”. Houve poucos confrontos abertos entre as trabalhadoras do sexo e a polícia. To- chacotas de um jovem PM que se auto-identificava como homossexual. Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Violência de clientes: casos foram poucos e indicam problemas estruturais

casa dos 25 anos, trabalhando de uma da tarde até três horas da manhã, todos os dias. O bar lotava com um público quase 100% masculino, estrangeiro e anglofalante, chegando a ter 1.000 fregueses numa única noite. Nas duas ocasiões em que visitamos o local (que em outros momentos, fora da Copa, era também um ponto de prostituição, embora em pequena escala) testemunhamos várias cenas de violência, tanto física quanto simbólica. Na primeira visita, vimos um americano jovem jogar um balm geral, as prostitutas avaliaram os clientes estrangeiros de de garrafas de cerveja nos pés das funcionárias do bar, pois de Copacabana – particularmente os europeus, austraele se chateou com a morosidade do serviço. Na segunda noite, “Uma garota do Centro lianos e norte-americanos – como “programas finos”: ou vimos uma garçonete acabar com uma briga usando o expediente foi a Copacabana e se seja, clientes que pagam bem, cuidam de si e tratam a de se jogar por cima de um cliente bêbado (que era duas vezes o fodeu. Um italiano prostituta com respeito. tamanho dela), dando uma gravata nele a ponto de quase asfixilevou para um motel Houve, porém, casos de violência contra as trabalhadoras á-lo. É mister notar que as funcionárias deste bar ganharam em do sexo. Poucos, mas significativos, pois indicam problemas torno de 1.600 reais, no total, durante a Copa; mais ou menos chique e sumiu na hora de natureza estrutural. o que uma garota de programa, trabalhando na Praça do Lido, da conta. Ela pagou e Uma prostituta da Vila Mimosa reportou ter sido morganharia em duas a quatro noites. saiu mais caro que o dida por um cliente argentino, mostrando seus ferimentos a Em geral, o bar parecia estar constantemente à beira de uma programa” uma pesquisadora. Outras relataram constantes brigas com explosão, de tão alto o nível de bebedeira e agressividade dos freJaninha, 32, trabalhadora numa clientes estrangeiros sobre o pagamento do programa. A quentadores turistas. Neste estabelecimento, sim, testemunhamos boate no Centro maioria desses casos parece ser fruto da má comunicação entodos os comportamentos masculinos popularmente entendidos tre as prostitutas e os clientes na hora de acertar o programa. como associados aos megaeventos esportivos, mas não encontraNa Vila, o preço do programa é, muitas vezes, comunicado mos nenhuma prostituta. Isto em franco contraste com o bairro “barra-pesada” da em separado do preço do aluguel da cabine. Um cliente, então, pode achar que Vila Mimosa, onde o comportamento público dos homens era, em geral (fora uma pagará só 50 reais (o preço do programa), para depois saber que deve 60 (mais 10 ou outra exceção, como a descrita acima), calmo e respeitoso. pelo aluguel da cabine). Uma vez que as prostitutas que trabalham na Vila Mimosa geralmente não falam nenhuma língua estrangeira e raramente lidam com clientes que não falam português, esses pequenos mal-entendidos poderiam facilmente acontecer e, acontecendo, tenderiam a se transformar em confrontos com alto potencial de violência. Ariel, que trabalha na Vila Mimosa, dá um exemplo de como a falta de uma problema mais constante reportado pelas prostitutas não foi a violência física língua comum potencializa os conflitos: “Os homens chamam a polícia para tudo... e sim a incapacidade ou falta de vontade dos clientes de pagar o preço estipuPensam que estão sendo assaltados porque não entendem [quando a casa cobra o lado pelo programa. Isto ocorreu particularmente em Copacabana. Ouvimos preço do quarto]. Acham que estamos pedindo mais dinheiro. Às vezes, o preço do várias histórias de clientes que combinaram pagar 300 e, na hora, só queriam quarto é só 10 reais, mas isto causa confusão porque eles não entendem”. pagar 50; clientes que passaram dinheiro falso e clientes que se recusavam a pagar CAPACITAÇÃO LABORAL – Situações como esta ilustram a importância de projetos o aluguel do quarto do hotel, achando que estava incluído no preço do programa. como aquele organizado pela Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Apros- Todos esses problemas foram potencializados pelo fato de que boa parte das trabamig) antes da Copa, que visava ensinar às prostitutas (e particularmente às garotas lhadoras sexuais que estavam em Copacabana não tinham o costume de trabalhar das zonas mais pobres) um mínimo da língua inglesa. Mesmo sem garantir flu- em praça pública, sem segurança e sem ter alguém para cobrar as contas do cliente. Mas a reclamação principal das prostitutas era dos clientes que as irritavam com ência, essas aulas criam a capacidade de pelo menos poder falar algumas palavras, especialmente as ligadas ao comércio do sexo, facilitando a comunicação e dimi- sua insistência em “pechinchar”. As mulheres reportaram que muitos clientes estrangeiros não queriam pagar nuindo a possibilidade de mal-entendidos e confrontos. A mais significativa dessas histórias, em termos de frequência e detalhes, envol- mais que 100 reais por programa (enquanto o preço de um programa normal em via clientes estrangeiros praticando roubos contra prostitutas. Isto aconteceu parti- Copacabana variasse entre 200 e 300 reais por hora). As reclamações sobre “gringos cularmente com as garotas que tinham migrado do Centro para Copacabana. Elas pão duros” foram constantes e focaram, particularmente, nos argentinos, chilenos e estão acostumadas a trabalhar em casas fechadas, onde podem recorrer a seguranças uruguaios — os chamados “gringos latinos”. Como disse Priscila, 35, uma paulista e a cobrança do programa é feita pela casa. Várias delas relataram ter tido suas bol- que veio trabalhar na Praça do Lido durante os jogos: “Eduardo Paes [o prefeito do Rio] não batalhou direito para o Rio na Copa. Por sas roubadas por clientes, e os rumores de que as prostitutas estão sendo assaltadas em Copa corriam soltos nas casas do Centro. Outra garota relatou ter sido forçada isso, pegamos muitos jogos de países que não prestam, tipo Argentina, Chile... Esse povo está mais pobre que o brasileiro!” a pagar o hotel sozinha após seu cliente fugir no meio de um programa. Todavia, as interações entre turistas e prostitutas foram geralmente cordiais durante a Copa do Mundo. Fora as reclamações sobre a pechincha constante, as RACISMO – Várias prostitutas negras e morenas escuras contaram ter sido alvo de situações descritas acima podem ser largamente entendidas como limítrofes: a agressões verbais racistas, particularmente na hora de negociar o preço do progragrande maioria de nossas informantes garotas de programa reportou ter tido ma. Natasha relatou ter sido chamada de “macaquita” várias vezes por argentinos uma Copa tranquila, embora não tão lucrativa quanto esperavam. Até os argen- na praia: “Macaquita não pode cobrar 300 reais! Tem que cobrar 100!” Durante as tinos e chilenos os gringos latinos, de tão má-fama eram geralmente vistos como últimas noites dos jogos, na orla, os pesquisadores testemunharam vários casos de cavalheiros na cama, embora, como disse uma informante nossa, teria sido bom agressões semelhantes. O consenso na orla sobre os argentise tivesse mais paus duros e menos pão duro. Talita, 29, trabalhando na Praça do Lido, falou por muitas de suas colegas quando avaliou que meus clientes me nos que vieram ao Rio para o jogo final foi “Só tem argentino aqui bem ilustrado por Priscila: “Os argentinos trataram bem melhor que minha família. e eles são racistas pra são muito ruins. Não têm dinheiro, são sucacete. Dizem que devo AGRESSIVIDADE – O mesmo não pode ser dito das relações entre homens estran- jos e sempre querem desconto. Reclamam cobrar menos porque sou geiros e mulheres brasileiras em geral no Rio durante a Copa do Mundo: o pior do preço! Não tem dinheiro, não vem pra ‘negrita’. Aqui, ó!” comportamento, por parte de turistas estrangeiros, que testemunhamos durante os Copacabana!” Natasha, 20, Praça do Lido Falando com os clientes, porém, oujogos foi num bar de classe média em Ipanema. A maioria das 12 funcionárias do bar em questão era formada por mulheres, na vimos o outro lado dessa história. Os ho-

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Gringo pão duro: turistas estrangeiros pechincharam preços dos programas

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Amanda De Lisio

Alguns turistas foram ao Lido para ver um contexto de prostituição diferente daquele de seus países. Para um americano, “aqui é louco, você vê prostitutas do lado de famílias!”

mens reclamavam que todos os preços eram elevados demais no Rio — muito além de suas expectativas — e que o preço para o sexo era duas ou três vezes aquilo que eles costumam pagar em seus países de origem. Mesmo os “gringos finos” (isto é, aqueles que vieram de países considerados economicamente privilegiados) acharam o preço dos programas muito além de suas expectativas. Ironicamente, esse “choque de preço” não os empurrou para os mercados sexuais mais baratos da Vila Mimosa e do Centro (onde um programa de 15 minutos poderia custar 30 reais). A vasta maioria dos gringos com quem conversamos não conhecia esses lugares e, ao ouvir falar deles, taxou-os de “sujos e perigosos”, não demonstrando o menor interesse em visitá-los. Em geral, os turistas (de todos os tipos) ficaram restritos à Zona Sul, e poucas vezes se aventuraram para além da Lapa, a não ser para assistir a jogos no Maracanã.

ciou a violência da polícia, notou que estava sendo seguida e fotografada por pessoas que pareciam ser policiais. No dia 21 de junho, ela foi sequestrada por quatro homens em uma praça próxima ao prédio onde mora e trabalha. Os homens mostraram a ela uma foto de seu filho saindo da escola e disseram que parasse com as denúncias, sob ameaças de morte a ela e a seu filho. Um dos homens fez cortes à faca em seu pescoço e braço e só então ela foi deixada de volta na rua. Isabel foi então para a delegacia, mais uma vez, para denunciar a violência. Mas a polícia não levou seu caso a sério, registrando um “termo circunstanciado” em vez de “boletim de ocorrência”, o que significa que nenhum inquérito foi aberto para investigar o que tinha acontecido. Dias depois, ela saiu de Niterói somente com as roupas do corpo, sem lugar para ficar, e passou a ser abrigada numa rede de casas de ativistas, com apoio exclusivo de doações pessoais (posteriormente duas organizações ofereceram recursos emergenciais por alguns meses), enquanto começava uma longa jornada por órgãos do governo, estaduais e federais, em busca de apoio e segurança. Ela estava (e continua) decidida a levar adiante o ativismo e a denunciar as violações de direitos da polícia e continua a luta por justiça para ela e suas colegas. Acompanhando o caso, notamos uma falta absoluta de redes de apoio e proteção para prostitutas que denunciam violência – sobretudzo, da polícia. As opções do estado têm sido inexistentes, insuficientes ou impossíveis de conseguir, a não ser que Isabel aceite condições que silenciariam totalmente seu ativismo e/ou a de se colocar como vítima – e vítima da prostituição, não da violência institucional que ela de fato sofre. Laura Murray

Violência policial: Invasão do Prédio da Caixa em Niterói teve estupro, roubo e extorsão

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o dia 23 de maio, centenas de policiais civis invadiram um prédio no Centro de Niterói onde aproximadamente 400 mulheres trabalhavam como prostitutas. Durante a operação, os policiais cometeram extorsões, furtos, roubos e estupros, e mais de 100 mulheres foram detidas para averiguação. Todos os apartamentos (mais de 90) onde elas trabalhavam foram interditados e taxados como locais de crime, embora não houvesse autorização judicial para tais atos. Tentativas de registrar queixas na Delegacia da Mulher (Deam) no dia foram negadas, tal como o direito das mulheres de contar com a presença de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) durante seus depoimentos na delegacia. No dia 4 de junho, na audiência pública convocada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, os roubos, extorsões e estupros foram denunciados, e a ilegalidade de todas as ações da polícia no dia 23 foi constatada pela Defensoria Pública do Estado e pela OAB. Depois da audiência pública, Isabel, uma das prostitutas que publicamente mais denun-

ESPECULAÇÃO E MILITARIZAÇÃO – É forçoso notar que, embora esse caso não tenha sido diretamente causado pela Copa do Mundo, ele está ligado a dois fatores que a Copa potencializou: a especulação imobiliária criada em Niterói e no Rio por causa dos megaeventos esportivos e a militarização das forças de segurança brasileiras. O valor dos imóveis aumentou consideravelmente nos últimos cinco anos, em função dos projetos de renovação urbana desenvolvidos pelas prefeituras das duas cidades em nome dos preparativos para os jogos. As prostitutas – junto com os pequenos comerciantes tradicionais e o comércio irregular que, outrora, ocupavam os centros – estão sendo cada vez mais pressionadas a sair desses espaços, em nome de sua higienização. No caso do Prédio da Caixa, essa tendência irrompeu em violência, uma vez que a cidade não tinha nenhuma maneira de expulsar legalmente as quase Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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400 mulheres que alugavam apartamentos no imóvel. A militarização das forças de segurança brasileiras encoraja a polícia a perceber os cidadãos como inimigos a serem derrotados e não pessoas portadoras de direitos. Este é um problema de longa data no Brasil, mas ele toca a questão da prostituição de forma candente, uma vez que as trabalhadoras do sexo, muitas vezes, nem são consideradas cidadãs pela polícia. O coletivo Davida atuou firmemente em parceria com o Observatório da Prostituição na defesa dos direitos das mulheres de Niterói e na mobilização de outras organizações e pessoas – Abia, Transrevolução, Anistia Internacional, Fundo Ação Urgente, Justiça Global, Frontline Defenders, Mídia Ninja, bem como o deputado Jean Wyllys –, todos se posicionando publicamente sobre a invasão ilegal da polícia e a necessidade urgente de uma investigação imparcial sobre as ações do dia 23/5, o sequestro e ameaças a Isabel, e o apoio a ela como defensora de direitos humanos – nada que o Estado brasileiro tenha sido até agora capaz ou interessado em fazer. Consideramos inadmissível que, seis meses depois da invasão, todas essas situações continuem sem resolução. Leia também “A Niterói que Queremos”, nas páginas 23 a 25

Exploração sexual de crianças e adolescentes: nenhum caso e duas denúncias sem relação com o megaevento Nos espaços dedicados à prostituição, encontramos poucas pessoas que pareciam ser adolescentes. Nas áreas onde a prostituição acontecia em espaços fechados e gerenciados – Vila Mimosa, as casas e boates do Centro, as termas e boates da Zona Sul – não vimos ninguém aparentando menos de 18 anos. Em todos esses lugares, as mulheres eram obrigadas a apresentar documento de identidade antes de

serem autorizadas a frequentá-los. No Centro, os gerentes das casas até mantinham fotocópias das identidades de todas as mulheres que ali trabalhavam e mostravam esses registros a nós. É de se destacar, nesse sentido, que os preços de programas nesses locais fechados sejam padronizados: a casa não ganharia um único centavo a mais se um menor fosse se prostituir ali. Várias prostitutas, diversos gerentes, barmen e seguranças das casas do Centro e da VM enfatizaram esse fato para nós. “Não sei por que a mídia mente tanto sobre esse assunto”, dizia a dona de uma casa de massagem no Centro. “Olha só: ninguém emprega menores conscientemente. Por que empregaria? Só colocam a casa em risco! Se a polícia entra e tem menor, minimamente, o gerente ou o dono vai ter que pagar uma propina das grandes para continuar aberto. Mais “Pelamordedeus, por que provavelmente, vai todo mundo preso: é que todo mundo acha garotas, clientes, todos. O risco não compensa o pouco dinheiro que a casa poderia que sou menor?” ganhar. E temos muito mais trabalhadoras Gisele, 18 anos, na Praça do Lido, do que o necessário hoje. Ninguém precisa mostrando sua identidade a um pesquisador para demonstrar sua sair recrutando crianças. verdadeira idade “O problema é que você tem menina – essas de 16 e 17 anos – que querem trabalhar e que vão arranjar identidade falsa para poder enganar a casa. Olho cuidadosamente todas as identidades das meninas que trabalham aqui e xeroco tudo. Mas nem todo mundo é tão cuidadoso assim. E aí, de vez em quando, a polícia entra num puteiro e encontra menor”. SEM CONTROLE – Na orla da Copacabana, o Balcony Bar costumava fazer um controle semelhante, especialmente em momentos de grande movimento, como o Carnaval e o Ano Novo. Lá, no passado, erguiam-se barreiras na calçada e as jovens somente poderiam passar após apresentar identidade. O Mab’s, outro bar da orla frequentado por prostitutas e clientes durante a Copa, manteve esse sistema. Ironicamente, o fechamento do Balcony no primeiro dia do Mundial acabou com

Garotas de programa trabalhando ao lado de uma família de moradores de rua, próximo do fechado Balcony

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Fotos: Thaddeus Blanchette

Menina trabalha como estátua viva: meia-noite, Praça do Lido


qualquer possibilidade de regular a entrada de menores nessa região da orla. As prostitutas expulsas do bar ocuparam a Praça Lido, nas adjacências, e continuaram o comércio sexual nesse espaço, ao lado de moradores de rua, comerciantes itinerantes, moradores do bairro e crianças associadas a todos esses grupos. Mesmo nesse espaço quase completamente desregulado, porém, encontramos números extremamente baixos de prostitutas potencialmente menores. Entre as 100-200 mulheres na Praça do Lido nas madrugadas da Copa, talvez 5 ou 6 pareciam ter entre 15-17 anos. É notável que muitas dessas meninas já frequentavam a praça em épocas normais, sua presença sendo registrada por nossos pesquisadores bem antes do início da Copa. Em outras palavras, não parece que os jogos aumentaram o número de possíveis menores vendendo sexo nessa região. Obviamente, nossas contagens foram feitas baseadas em nosso olhar e isto não é um método confiável, uma vez que toda trabalhadora sexual na praça competia para parecer ser maior de idade. Fizemos um esforço constante, porém, para conversar com as prostitutas que pareciam mais jovens e, em nenhum momento, conseguimos confirmar a existência de prostitutas menores de idade na praça (em muitos casos, ao adquirir mais confiança após uma conversa, as mulheres em questão mostraram suas identidades aos pesquisadores). Entre a população das travestis ativas na praça, porém, confirmamos que pelo menos duas eram menores de idade. O “olhômetro” – tanto dos pesquisadores quanto das prostitutas na praça – indicava que existia um grupo distinto de 5 ou 6 travestis menores de idade e ativas na Praça do Lido durante a Copa. Apesar dessa grande presença misturada de adultos e jovens, porém, só vimos a polícia checando as identidades dos frequentadores da Praça do Lido em uma ocasião. Dois fatos notáveis sobressaem nessa discussão, porém. 1) Apesar de acusar o Balcony Bar e o Hotel Lido de “exploração de vulneráveis”, a polícia carioca não prendeu ninguém por exploração sexual de crianças e adolescentes, situação que certamente seria revertida, caso houvesse forte evidência da existência desse crime nesses pontos. 2) Durante a Copa, o Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio de Janeiro manteve um posto avançado na orla, 200 metros distante da Praça do Lido. Os funcionários desse posto eram capacitados no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes e, com base nos pôsteres, banners e filipetas distribuídos por eles, esse era o foco principal de atuação. No entanto, no período da Copa, fomos informados que eles não registraram nenhuma denúncia de exploração sexual de crianças e adolescentes em Copacabana, e somente duas denúncias em toda a Zona Sul do Rio de Janeiro, nenhuma das quais foram relacionadas aos jogos. Testemunhamos, porém, vários casos de possível exploração de crianças e adolescentes e inúmeras situações de risco, causados ou potencializados pela Copa. Quase todos tinham a ver com trabalho infantil em áreas econômicas não relacionadas ao sexo. Na Vila Mimosa, por exemplo, uma pequena legião de meninos era empregada na entrega e porte de cargas, no comércio de rua e até no gerenciamento dos bares e estandes de comida. No Centro, menores – geralmente meninos – eram presença constante no comércio das ruas e também nos trabalhos de reciclagem de papel e latas de alumínio. Finalmente, em todos os lugares – mas particularmente em Copacabana –, crianças e adolescentes atuavam na venda de comidas, bebidas e lembrancinhas para turistas. O Posto Avançado do Conselho Tutelar registrou pelo menos um caso de um menino apreendido por vender chaveiros falsos da FIFA na Fan Fest. O posto também registrou inúmeros casos de crianças e adolescentes bêbados e/ou perdidos.

Mistura barato: interesses sexuais, afetivos, sociais e econômicos dificultam definir exploração sexual

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m dos temas recorrentes na mídia antes da Copa do Mundo era a possibilidade de que o evento poderia gerar um aumento no número de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Alguns jornais estrangeiros até estimaram o número de menores de idade sexualmente explorados no país em 500 mil! Porém, nenhuma organização – governamental ou não – lidou com o fato de que crianças e adolescentes são duas categorias diferentes no Brasil, em termos de leis sobre sexo.

Para recapitular: contato sexual com uma pessoa abaixo de 14 anos é considerado estupro no Brasil. A prostituição de pessoas entre 14-18 anos é considerada “exploração sexual” e é crime, independentemente do consentimento do adolescente. Todavia, os adolescentes entre 14-18 anos de idade podem, sim, engajar-se em relações sexuais sem necessariamente ser considerados “abusados” ou “explorados”, particularmente se esses relacionamentos não envolvem nenhuma troca econômica. As leis referentes a esse tipo de situação não são claras no Brasil: determinados grupos opinam que o Estatuto da Criança e do Adolescente ipso fato situa qualquer atividade sexual, por parte de pessoas com menos de 18 anos, como abuso sexual e, portanto, crime. Outros grupos salientam que o Código Penal brasileiro não proíbe atividades sexuais de pessoas entre 14 e 18 anos de idade, desde que essas não envolvam trocas econômicas ou outras formas de exploração branda. A mídia tem confundido a situação, indiscriminadamente, aplicando a palavra “pedofilia” para rotular qualquer atividade sexual entre pessoas com menos de 18 anos e adultos legais (i.e. pessoas com mais de 18 anos). Na prática, a percepção de “pedofilia” é fortemente potencializada por marcadores de orientação sexual, classe, gênero, nacionalidade e cor/raça. Um menino branco e heterossexual, da classe média e com 17 anos de idade, por exemplo, dificilmente seria entendido como “vítima de pedofilia” se mantivesse relações sexuais com uma mulher brasileira de 30 anos de idade. Enquanto isto, uma menina de 17 anos de idade, moradora de favela, é bem capaz de ser rotulada de “explorada sexual” se namorar um estrangeiro de 25 anos de idade. DUPLA MORAL – A dupla moralidade desse entendimento popular do tema pode ser claramente vista em dois casos recentes, expostos na mídia 0brasileira. Em 2013, o grupo de dança Bonde das Maravilhas foi proibido de se exibir em shows públicos, pois sua coreografia – que incluía passos entendidos como eróticos – supostamente feria a “dignidade” e a “imagem” das quatro integrantes menores de idade do grupo (17, 17, 16 e 14 anos). Enquanto isto, no mesmo ano, a filha de Maria da Graça “Xuxa” Meneghel, de 15 anos, vivia um namoro público com o ator Bernardo Mesquita, de 20 anos, sem nenhum comentário negativo na mídia. (Essa situação é ainda mais irônica, dado as revelações de Xuxa em 2012 de que ela foi explorada sexualmente como atriz jovem.) Os dois casos revelam certo consenso reinante no Brasil, onde as vidas sexuais/ afetivas de “certas meninas” (geralmente percebidas como pobres e pretas) precisam estar sujeitas à vigilância e ao controle público, enquanto as de outras meninas (geralmente percebidas como ricas e brancas) são consideradas acima de qualquer suspeita. Tal entendimento remete à antiga tradição cultural brasileira que divide as jovens em duas categorias: “meninas de família” e “meninas de rua”. A simbologia de “exploração e pedofilia” versus “namoro legítimo” se potencializa ainda mais quando o parceiro masculino contemplado é estrangeiro. PEQUENOS DETALHES – Durante a Copa do Mundo, testemunhamos várias interações entre estrangeiros adultos e brasileiras que aparentavam 16-17 anos. Essas interações eram particularmente comuns no bairro boêmio de Lapa, onde milhares de jovens do mundo inteiro se reuniam, todas as noites. Também observamos um caso, perto da Fifa Fan Fest, em Copacabana, em que duas meninas, aparentemente menores de 16-17 anos, envolviam-se com dois turistas colombianos. Essa situação, porém, demonstra claramente os limites do olho do observador para decifrar situações do tipo e, portanto, merece ser descrita com mais detalhes.Quatro pesquisadores estavam sentados num bar na Rua Prado Júnior, em Copacabana, região moral associada com a prostituição desde a década de 1950, quando as duas meninas chegaram com seus pretendentes e se sentaram ao lado de nossa equipe. Os pesquisadores acabaram conversando com as duas jovens e ajudando com problemas que tinham com seus celulares. As duas afirmavam não serem trabalhadoras do sexo. Afirmavam ser moradoras do subúrbio carioca, que estavam na Fan Fest para se divertir, tendo encontrado os dois jovens colombianos (na faixa dos 25 anos) nas areias de Copacabana. Evitaram falar sobre sua idade, apesar das várias tentativas dos pesquisadores de conseguir essas informações (geralmente consideramos isso indicação de que a interlocutora é, possivelmente, menor de idade). Ambos os meninos colombianos usavam em seus smartphones o aplicativo Tindr, criado especificamente para arranjar parceiros amorosos. O celular de um deles tinha mais de 20 contatos com jovens brasileiras, todas aparentando 25 anos de idade ou menos. Após uma hora de beijos e abraços com os colombianos, intercalados por conversas com duas pesquisadoras, os casais se levantaram da mesa e se prepararam Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Fotos: Thaddeus Blanchette

para ir embora. Neste momento, uma das moças chamou seu parceiro de lado e começou a conversar com ele. Com uma expressão de extrema sinceridade enquanto falava (olhos bem abertos, sorriso, braços abertos e mãos gesticulando, cabeça caindo por cima do ombro direito), pediu algo a ele. Não conseguimos ouvir o conteúdo da fala, mas, logo em seguida, o colombiano puxou a carteira, contou seu dinheiro e, cautelosamente, balançou sua cabeça em sinal afirmativo. A menina ria, feliz, e jogando seus braços em torno do pescoço de seu pretendente, beijou-o apaixonadamente. Após mais dois ou três minutos de beijos e abraços, o casal saiu, braços dados, em direção a um ponto de táxi. Namoro sincero ou exploração sexual? A longa experiência de alguns de nossos pesquisadores na vida noturna do Rio de Janeiro indicaria que não era nem uma coisa, nem a outra. Provavelmente era uma jovem buscando aventuras amorosas entre os estrangeiros de Copacabana para se divertir, para pagar sua noitada e também, quem sabe, para ganhar um dinheirinho extra. Se a conversa fosse como incontáveis outras que temos escutado em outros momentos, fora da Copa do Mundo, a menina estava dizendo que ela concordaria em ir para um motel com o rapaz, mas que ela precisaria de certa quantia de dinheiro para “pagar um táxi pra casa depois, para minha mãe não se preocupar comigo, pois não posso ficar na rua a noite inteira”. A quantidade pedida seria provavelmente menos que 100 reais e a menina provavelmente pegaria o ônibus ou o trem de volta para casa. Nenhum dos dois membros do casal qualificaria a interação como “prostituição”, e a jovem dava todos os sinais de que estava “sinceramente” interessada no Posto avançado do Conselho Tutelar em Copacabana, com cartazes pregando a denúncia da exploração colombiano (que, por sinal, era bem bonito) enquanto parceiro sexual/ sexual de crianças e adolescentes. O Balcony Bar e a Praça do Lido ficam pouco além, na mesma calçada afetivo. Essa combinação de interesses sexuais, afetivos, sociais e econômicos é extremamente comum nos espaços cariocas de vida noturna em que estrangeiros interagem com brasileiras. Se uma interação em particular será entendida como “exploração de crianças” ou como “a exploração saudável e normal de uma adolescente de sua sexualidade” depende muito dos marcadores de cor/raça, gênero, classe e nacionalidade de todos os envolvidos na paquera.

Sumiço geral: nas áreas de prostituição, entidades contra exploração sexual e de prevenção de Aids deram ausente, junto com Ministério da Saúde

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pesar de várias organizações não-governamentais terem recebido fundos consideráveis para lutar contra a exploração sexual e tráfico de pessoas durante a Copa do Mundo, constatamos pequena presença delas nas áreas de prostituição de Rio de Janeiro durante os jogos. Fora dos contextos de prostituição, observamos a distribuição de panfletos contra a exploração sexual da ONG Promundo perto do Maracanã num dia de jogo. No Centro, a ausência dessas organizações era total. A duas quadras da Vila Mimosa, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, em parceria com a ONG internacional Stop the Traffik, UN.Gift e colaboração da Amocavim, instalou uma Gift Box, caixa grande que parece uma embalagem de presente, mas, por dentro, exibe diversas histórias sobre pessoas que foram enganadas e traficadas. Uma equipe de voluntários circulou dentro da Vila convidando pessoas a entrarem na caixa, mas nos dias em que nossa equipe esteve presente, houve pouca procura e caixa ficou vazia a maior parte do tempo. Em Copacabana, no dia 6 de julho, um grupo de ativistas do coletivo Bastardxs fez um protesto contra o turismo sexual no Brasil e a suposta passividade da Fifa em relação ao tema em Copacabana. O Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio de Janeiro instalou um trailer, coberto de pôsteres do Disque 100, afixados também em outros suportes nas proximidades, para lidar com acusações de violência contra crianças e adolescentes (é de se notar que o trailer só funcionava até as 20h, enquanto o pico do comércio sexual em Copacabana acontecia sempre após as 22h).

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Camiseta de funcionário do Posto Avançado. Nenhum caso de exploração sexual de crianças ou adolescentes, relacionado à Copa do Mundo, foi denunciado ao Conselho Tutelar

Disque 100 é a linha direta utilizada no Brasil para denunciar casos de violações de direitos e seu número constava em todos os cartazes, filipetas e camisetas utilizados pelas ONGs e organizações do governo para combater a exploração sexual durante a Copa (o número também constava nas filipetas que nossos pesquisadores distribuíram para prostitutas e clientes). DEFESA E DENÚNCIA – Mas os próprios membros do Conselho Tutelar criticavam o funcionamento do sistema Disque 100 durante o evento. “O problema é que o Disque 100 não é uma defesa e sim um método de denúncia,” dizia uma integrante do conselho. E continuou: “O abuso ou a exploração sexual de crianças é, de fato, crime. Constatando caso


desses, o cidadão deve ligar para a polícia, e não para o Disque 100. O Disque 100 só repassa casos para nós e outras organizações envolvidas na proteção dos direitos. Mas isto acontece algum tempo após a violação. Disque 100 não pode resolver problemas de violação de direitos enquanto estão acontecendo. Isto é a tarefa da polícia”. Apesar dessa crítica, se algum programa foi apresentado por quase todo mundo como “a linha de defesa principal contra a exploração sexual” na Copa, foi o Disque 100. O foco de prevenção no Mundial foi predominantemente calcado no conceito de criança ou adolescente vítima da exploração sexual, e é mister notar que “exploração sexual”, neste contexto, significava quase exclusivamente “a exploração sexual de crianças e adolescentes por parte de turistas estrangeiros”. De fato, o foco quase exclusivo na exploração sexual das crianças e adolescentes acabou ocultando outros problemas mais graves e candentes como as diversas e graves violações da polícia contra as prostitutas em Niterói. Por exemplo, quando perguntamos sobre a falta de posicionamento sobre a situação em Niterói ou a respeito de planos para promover educação e intervenção nas várias zonas de sexo comercial do Rio, agentes públicos e ONGueiros, “engajados na luta contra a exploração sexual”, disseram que “só focalizam na proteção dos direitos de crianças e adolescentes”. COMO, ONDE? – Talvez por essa razão, testemunhamos o estranho espetáculo de megacampanhas publicitárias contra a exploração sexual não ousarem pôr os pés nas principais zonas da cidade. É notável que todas as organizações envolvidas na propagação dessas campanhas não se interessaram em contatar as organizações de prostitutas da cidade na confecção de seus programas. É mister perguntar, então, como e onde essas organizações acham que a exploração sexual de crianças e adolescentes está acontecendo durante os megaeventos esportivos. Se não é nas zonas, então por que as forças de segurança do Estado resolveram se concentrar, particularmente, na repressão do comércio do sexo em lugares como o Balcony Bar? Se é nas zonas, por que a ausência total de um programa direcionado às trabalhadoras do sexo, recrutando-as para denunciar casos de exploração sexual? Em termos de promoção da saúde, durante nosso trabalho de campo, não observamos nenhuma iniciativa de distribuição de camisinhas ou informação sobre DST/Aids nos locais de prostituição. Em quase todas as casas onde entramos, as camisinhas distribuídas eram provenientes do Ministério da Saúde... mas foram os próprios gerentes das casas que as conseguiram. Nenhuma casa, praia, bar, massagem, privê, boate, clube, ponto de rua, ou termas ligados à venda de sexo registrou visitas por agentes da saúde pública, antes ou durante a Copa. Mas em nossas entrevistas e conversas informais, três ocasiões em que houve distribuição de preservativos foram mencionadas. A primeira, na Praça do Lido, em Copacabana: profissionais do sexo mencionaram a presença de um grupo evangélico na primeira semana da Copa distribuindo camisinhas e maquiagem e chamando mulheres para reuniões religiosas. A segunda, nos primeiros jogos da Copa, quando uma outra ONG foi vista distribuindo camisinhas na fila da Fifa Fan Fest. E a terceira, no primeiro dia do evento, por pessoas desconhecidas, na Estação Central. A equipe de pesquisa também buscou informações nos postos de saúde dentro e fora da Fan Fest e foi informada de que não havia camisinhas disponíveis. BLÁ-BLÁ-BLÁ – Várias trabalhadoras do sexo – e particularmente as mais velhas, que lembram do ativismo do Ministério da Saúde em eventos de grande porte no passado – criticavam duramente a aparente falta de interesse do governo na promoção da saúde sexual durante a Copa. “É um absurdo,” dizia Lana, prostituta de 32 anos que trabalha numa boate no Centro. “A mídia e o governo falavam tanto da prostituição antes do evento, estava em todo jornal: ‘Ah, os gringos estão chegando! Ah, o turismo sexual! Ah, vai ser uma orgia e tanto!’ Todo aquele blá-blá-blá sobre a putaria… E nada – absolutamente nada – de preservativos. Ninguém distribuindo camisinhas. Nada! Temos que ir, nós mesmos, para os postos conseguir. OK, tudo bem, legal se você tiver tempo. E para as mulheres que não têm? E para as ignorantes que estão começando agora e nem sabem onde ficam os postos, muito menos como colocar camisinha direito? Puta também paga impostos e a gente quer fazer nossa parte, mas parece que o Ministério da Saúde esqueceu da gente”. Os sentimentos de Lana foram repetidos por várias trabalhadoras de sexo, em todas as zonas do Rio de Janeiro. Levando em conta os esforços consideráveis do

movimento de prostitutas para alertar o governo e ONGs aliadas sobre os vários problemas que seriam enfrentados pelas trabalhadoras do sexo num evento como a Copa do Mundo, e a quase total ausência de programas direcionados a elas durante o evento, só podemos criticar a observação de Lana em um ponto: as prostitutas não foram esquecidas; seus direitos foram conscientemente deixados de lado.

Tudo igual: efeitos semelhantes em capitais do Nordeste

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ortaleza teve um quadro bastante semelhante ao observado no Rio de Janeiro. A principal ação repressiva da polícia foi uma operação em 8 casas de prostituição de luxo, quando foram efetuadas prisões de proprietários e gerentes, o que levou algumas delas a fecharem as portas (http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/policia/mpe-fecha-8-prostibulos-e-prende-10-pessoas-1.1030146. Acesso em: 11/8/2014). Houve uma intensa migração das mulheres que trabalhavam nas casas fechadas para a Praia de Iracema. No entanto, elas experimentaram dificuldades por barreiras estéticas e falta de experiência com estrangeiros. Neste local, apesar da forte presença de gringos, muitas mulheres reclamavam que eles não queriam pagar o preço cheio do programa/hora na Copa, entre 200 e 300 reais (antes de 120-150 reais neste local), ou demandavam companhia durante toda a noite e queriam pagar somente a hora. Nas avenidas Beira-mar e Abolição, os policiais ocuparam os pontos tradicionais das garotas de programa, que migraram para ruas menos movimentadas ou se misturaram a torcedores no calçadão. Na orla havia também mulheres inexperientes nos mercados do sexo que buscavam encontros rentáveis com gringos. Este espaço, onde estava a Fifa Fan Fest, foi marcado pela forte presença de agentes do estado e de ONGs atuando em campanhas contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. O Centro da cidade ficou esvaziado com os muitos feriados em função da Copa. Os clientes habituais diminuíram a frequência aos pontos de prostituição e os turistas não buscavam esses serviços na região. As mulheres, contudo, não migraram por antecipar as dificuldades descritas acima e tiveram sensíveis quedas nos ganhos mensais. A prostituição no entorno do Estádio Castelão foi afetada de maneira similar. Muitas equipes de jornalistas e documentaristas buscaram esses locais para tratar de questões como turismo sexual, exploração sexual de crianças e adolescentes, tráfico de seres humanos e o aumento da prostituição, dando-lhes grande visibilidade, enquanto que as boates fechadas da Praia de Iracema, onde os estrangeiros se concentram tradicionalmente e também no período da Copa para realizar trocas econômico-sexuais, ficaram fora das ações dos diversos setores do estado e mesmo da mídia. Num balanço impressionista, a prostituição diminuiu em todas as áreas da cidade, exceto Praia de Iracema e Beira-mar, onde a presença estrangeira aumentou a concentração de pessoas nos mercados do sexo, mas isso não se reflete no crescimento do número de programas. RECIFE – Na capital pernambucana, o efeito da Copa foi parecido. Algumas mulheres diziam que “não foi tão bom quanto pensávamos” e que “teve turista, foi bom pro comércio local, não pro negócio do sexo”. Como no Rio e em Fortaleza, o Centro ficou vazio e o movimento de turistas foi muito maior na Zona Sul da cidade, próximo à praia. De acordo com uma das prostitutas entrevistadas, “a Copa nem passou por aqui”. A preocupação nos discursos do governo com a exploração sexual de crianças e adolescentes também esteve muito presente, e a Copa foi vista pelas autoridades como uma oportunidade de dar visibilidade ao trabalho das instituições: “Sempre se queria fazer uma coisa dessas, mas agora apareceu a oportunidade!” Essas ações contribuíram para um pânico moral sobre a prostituição na cidade e para processos de “humanização e higienização da sociedade” que foram utilizados como forma de colocar os indesejáveis para debaixo do tapete. Porém, embora durante as obras pré-Copa vários bares em Camaragibe (Avenida Belmino Correia) onde eram usados quartos para programas tenham sido fechados, durante os jogos não houve relatos de repressão da polícia pelas ONGs que atuam na defesa dos direitos das prostitutas, e nenhuma casa foi fechada. Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Conclusão: trabalhar com fatos, não com boatos

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os meses anteriores à Copa do Mundo, a mídia (nacional e internacional), vários políticos e muitas ONGs aumentaram a sensação de pânico moral frente ao evento, prevendo um aumento brutal na exploração sexual de crianças, adolescentes e mulheres. Quase a totalidade dos esforços do governo e de seus aliados na sociedade civil foi direcionada à repressão desse crime. No entanto, todas as evidências reunidas até agora, após mais de 2.000 horas de trabalho de campo nas principais zonas de comércio sexual no Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife, indicam que não houve nenhum aumento na prostituição nem exploração sexual atribuível à comercialização de sexo na cidade durante a Copa do Mundo. De fato, a prostituição em geral parece ter diminuído no Rio durante o evento. Isto pode ser atribuído a uma série de fatores, já descritos. 1. As maiores concentrações da prostituição na cidade (Centro e Vila Mimosa) foram prejudicadas pelos constantes feriados (1-3 por semana), que esvaziavam essas regiões de clientes brasileiros, sem substituí-los por clientes estrangeiros. 2. Os homens cariocas que costumam comprar sexo em áreas como Vila Mimosa e Centro parecem ter passado esses feriados em casa, com a família ou amigos.

ram poucos casos prováveis e nenhum caso de exploração sexual de crianças. Essa observação tem também respaldo em nossas conversas com membros do Conselho Tutelar da Zona Sul do Rio, que não registrou nenhum incidente do tipo ligado à Copa. Se não houve enormes problemas articulados com a exploração sexual durante o Mundial, porém, isto não pode ser atribuído aos preparativos do governo e de suas ONGs associadas. A única operação anti-exploração sexual no Rio de Janeiro (fechamento do Balcony e do Hotel Lido no primeiro dia do evento) não reduziu em nada a exploração sexual de crianças e adolescentes. O próprio caso do governo contra esses estabelecimentos parece desprovido de quaisquer evidências críveis. Enquanto isto, uma enorme operação “anti-exploração sexual” na cidade de Niterói, que resultou em prisões ilegais e violência policial direcionada contra as trabalhadoras sexuais, foi quase por completo ignorada por todos os agentes envolvidos na “luta contra a exploração sexual”. Durante a Copa, a ausência dos vários órgãos do governo associados à saúde e à proteção dos direitos humanos era quase total nas principais zonas da cidade. A presença policial nas zonas (que aumentou drasticamente em Copa e um pouco em Vila Mimosa, enquanto diminuiu no Centro) parecia estar orientada à proteção dos turistas e não das prostitutas.

A única operação anti-exploração sexual no Rio de Janeiro (fechamento do Balcony e do Hotel Lido no primeiro dia do evento) não reduziu em nada a exploração sexual de crianças e adolescentes

3. Os preços altos e o fato de que boa parte dos estrangeiros que vieram para os jogos eram originários de países considerados “pobres” indicam que muitos turistas não tinham dinheiro disponível para gastar em atividades sexuais.

4. Grande parte dos turistas com dinheiro não estavam interessados em comprar serviços sexuais, gastando seu tempo e dinheiro bebendo e conversando com os amigos. Em relação à exploração sexual de adolescentes, nossos pesquisadores constata-

DIREITO “ESQUECIDO” – De fato, tudo indica que o direito delas de trabalharem durante a Copa – lembrando que a prostituição é uma profissão legal e reconhecida no Brasil – foi propositalmente “esquecido” e “confundido” com a exploração sexual pelo governo e ONGs aliadas. E justamente na mesma hora em que milhões de reais foram gastos na repressão de um problema – a exploração sexual de crianças e adolescentes por turistas estrangeiros – que não se configurava de forma grave

ou constante. A retórica da proteção de “vítimas inocentes” parece estar sublimando qualquer política realista de redução de danos e de promoço de direitos, voltada para milhares de trabalhadoras sexuais que atuam na cidade. Se o governo prosseguir nesse rumo, podemos esperar que os Jogos Olímpicos de 2016 vão gerar ainda mais abusos de prostitutas de carne e osso, por parte dos agentes de segurança do Estado. Concluímos que uma política pública relacionada ao comércio do sexo calcada em fatos – e não em boatos – precisa ser construída, urgentemente.

CONCEITOS

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Uma nota sobre prostituição, exploração sexual e tráfico de pessoas

s pesquisadores associados ao Observatório da Prostituição são contra a exploração sexual de crianças e adolescentes e o tráfico de pessoas. Porém, consideramos importante qualificar esses dois conceitos. Em primeiro lugar, eles não devem ser confundidos com as práticas de pessoas adultas que exercem livre e consensualmente a prostituição, sejam esses adultos brasileiros ou estrangeiros. Sexo pago entre adultos é legal no Brasil, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Considerando que as Nações Unidas e a Organização Internacional de Turismo definem o turismo sexual como sendo realizado por “pessoas que usam a infraestrutura turística de viajar para terras estrangeiras e se envolver em sexo comercial com os moradores locais”, isto significa que o turismo sexual no Brasil não é ilegal. Sexo comercial com pessoas com idade inferior a 18 anos não é turismo sexual: é exploração sexual de crianças e adolescentes e isto é crime no Brasil, sejam os praticantes brasileiros ou estrangeiros. Da mesma forma, forçar alguém a se envolver em atividades sexuais não é nem turismo sexual, nem prostituição: é estupro e/ou exploração sexual. O governo brasileiro nunca lançou estatísticas coerentes sobre quantos casos de exploração sexual envolvem os visitantes estrangeiros no Brasil. Dados obtidos via telefone (Disque 100) indicam que o número desses casos é relativamente pequeno.

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Em um relatório publicado pela Secretaria de Direitos Humanos, em 2008, dos 6.817 casos de exploração sexual de crianças ou adolescente reportados ao Disque 100 entre 2003 e 2007, envolviam “turismo sexual” 47 (ou seja, denunciavam turistas estrangeiros envolvidos). Considerando que o Disque 100 registrou 67.104 casos de violência contra crianças e adolescentes brasileiros, durante o mesmo período (dos quais cerca de 16.500 eram casos de violência sexual), a evidência disponível indica que são brasileiros os que conduzem a grande maioria dos atos sexualmente agressivos contra crianças brasileiras. Este dado é ainda mais preocupante quando se leva em consideração a investigação conduzida em 2004 pelo Congresso Nacional sobre exploração sexual de crianças. Dos 79 casos citados como “exemplares” por este estudo, apenas três turistas estrangeiros estavam envolvidos. Quatorze casos, no entanto, envolveram funcionários do governo (do nível municipal ao federal); oito casos envolveram policiais, juízes ou outros agentes de aplicação da lei; e cinco casos envolveram líderes religiosos. Assim, acreditamos que o clamor contra a suposta ameaça de “turismo sexual” desloca a atenção do público das ameaças reais que crianças brasileiras e suas famílias enfrentam, a começar pela concentração de recursos e atenção do governo em operações contra prostituição temporária, e não em projetos que visam reduzir efetivamente o abuso e a exploração de crianças e adolescentes no Brasil.


METODOLOGIA DA PESQUISA

No Rio, estudo incluiu duas mil horas de pesquisa etnográfica e 116 entrevistas formais

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pesquisa do Observatório da Prostituição é baseada em quase uma década de investigações sobre turismo sexual e prostituição, conduzidas no Rio de Janeiro por acadêmicos, jornalistas, ativistas LGBT e prostitutas. Em 2012, dois membros do Observatório concluíram um mapeamento extensivo dos vários pontos de prostituição no Rio de Janeiro, fruto de 8 anos de investigações etnográficas e sociológicas. Esse mapeamento nos permitiu identificar os principais pontos de prostituição frequentados por brasileiros e estrangeiros na cidade. No mesmo ano, os membros do Observatório iniciaram uma série de visitas a esses pontos, em vários momentos de seu ciclo econômico anual (a prostituição no Rio – e particularmente o turismo sexual – tem um forte componente sazonal). Em 2013, intensificamos essa ronda de visitas, nos concentrando nos 20 pontos mais frequentados por turistas sexuais, a Vila Mimosa e os 20 pontos mais movimentados no Centro do Rio. Entre novembro de 2013 e maio de 2014, visitamos esses lugares pelo menos uma vez por mês, geralmente nas primeiras semanas do mês (portanto quase sempre após o pagamento dos salários), para conseguir uma contagem média de número e tipo de trabalhadoras e clientes ativos nos locais. Nesse período, fizemos entrevistas com prostitutas, gerentes, seguranças e outros trabalhadores desses pontos sobre seus planos e perspectivas para a Copa do Mundo. Durante o Mundial, dividimos nosso grupo de pesquisadores em três, com uma equipe responsável por Copacabana e as outras duas se deslocando para o Centro e Copacabana, respectivamente. Tentamos colocar todas as equipes em campo todos os dias em que houve jogo da Seleção Brasileira ou partida no Maracanã (o estádio da Copa no Rio). Também entramos em campo em outros momentos considerados por nós estratégicos (por exemplo, nos jogos semifinais e das quartas-de-final). Pesquisadores individuais foram a campo quase todos os dias durante o evento. Geralmente, concentramos nossas atividades entre meio-dia e 3 da manhã do dia seguinte. No decorrer da Copa (e com a crescente constatação de que o comércio sexual na Vila Mimosa e no Centro estava muito reduzido), começamos a concentrar nossos esforços noturnos em Copacabana. Ainda assim, houve equipes no Centro e na Vila Mimosa até o fim da Copa. Também circulamos entre os espaços de recreação noturna associados com a Copa, mas não, necessariamente, com prostituição, mais particularmente o bairro da Lapa e os bares de Ipanema. Finalmente, visitamos várias termas heterossexuais e saunas homossexuais durante o Mundial. Uma de nossas colaboradoras prostituta trabalhou numa termas de luxo na Copa. Outras trabalharam na Vila Mimosa e em Copacabana. No total, calculamos que, durante a Copa do Mundo, os membros de nossa equipe totalizaram mais de 2.000 horas de pesquisa etnográfica, observação-participante, nas áreas onde o sexo é comercializado no Rio de Janeiro. Nos últimos dias do evento e nas semanas imediatamente posteriores, fizemos 116 entrevistas formais, com questionário, com trabalhadoras sexuais ativas durante o evento, perguntando sobre suas expectativas e experiências. Para todas as participantes, compartilhamos informações sobre nossos ob-

jetivos como grupo de pesquisa e seus direitos como participantes. Em parceria com Davida, produzimos e distribuímos o Beijinho da rua (versão de bolso do jornal tabloide Beijo da rua, publicado por Davida), com informações sobre direitos e saúde para prostitutas e clientes, em português e em inglês. No reunimos pelo menos uma vez por semana, nos meses de maio, junho e julho, para coordenar as equipes, compartilhar dados, redirecionar pesquisas e dialogar com agentes públicos e membros da mídia. A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) gentilmente cedeu espaço para ser utilizado como quartel-general da pesquisa durante o evento. Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Amanda De Lisio

Um sábado feliz e um marinheiro sem Copa

Alguns dos pesquisadores do Observatório da Prostituição

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ste relato é de duas histórias que se passaram num dos dias do trabalho de campo de dois pesquisadores durante o período da Copa do Mundo no Rio, em um famoso lugar de prostituição que supostamente iria encher de turistas. Caminhando pelo bairro, ouvia-se música estremecendo numa batida repetitiva, enquanto mulheres dançavam seminuas dentro de bares – sem dúvida, silêncio é algo que não se encontra! Paramos num bar para tomar uma bebida a fim de acalmar algum tímpano que pudesse estar em vias de ser perfurado. Paulo (nome fictício), um senhor alto de cabelos brancos que parecia ter bem mais de 80, entra no banheiro e se arruma saindo com ar de elegância e sorriso nos lábios para fazer seu programa com Marisa (nome fictício), que simpaticamente o aguardava. Passam-se 40 minutos e Paulo desce cuidadosamente de seu quarto no segundo andar por umas difíceis e estreitas escadas em caracol. Para no banheiro antes de pagar, e em seguida dirigiu-se à gerente com ar agradecido, colocando uma nota em seu sutiã. Depois que ele saiu, Marisa pegou um cigarro e uma garrafa de cerveja antes de sentar-se à mesa ao lado do jukebox. Observou as pessoas passando pelo corredor principal quando começámos a bater papo com ela. Marisa gostou da música da Katy Perry que escolhemos na jukebox, dançando e conversando conosco. Bonita, magra e mulata, com 35 anos mas aparentando ser bem mais nova. Acha que a cor da pele dela permite ter essa aparência. Ela mencionou que não teve aumento de clientes durante o Mundial nem viu nenhum gringo. O movimento não aumentou, mas ela trabalha com seus clientes habituais, um deles o Paulo. O dinheiro que ganha dá para manter sua vida e de seus filhos, a escola, tudo que precisa.

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Marisa tem de trabalhar sem emoção senão dá briga, e ciúme. Muitos clientes já se apaixonaram por ela. “Quando eu vejo que ficam com ciúme aí eu falo que não pode, e dou um gelo.” Paulo tem 84 anos, é cliente habitual de Marisa, que demonstra carinho por ele. Todo sábado se encontram e, apesar da sua idade, segundo Marisa ” tudo funciona direitinho…”. Paulo é feliz na sua companhia aos sábados. Sem Copa – Seguindo caminho e passando por outros bares, observamos algo que se destaca no meio da rua. Um grupo de homens em seus sessenta, e um deles, muito alto, de pele clara e com camisa azul choque cheia de flores brancas, que denuncia: “Turista na área! Entraram num bar onde até o gerente olhou pra ele e gritou: ‘Gringo’!” Decidimos nos aproximar para uma conversa (afinal era uma raridade ver turista por esta área). Tom é inglês e estava lá com amigos não pela Copa do Mundo, mas por trabalharem num navio e pelo acaso de o navio passar no Rio. Quando isso acontece, gosta de se deslocar a este bairro de prostituição porque tem um ambiente muito diverso. Vem para o Rio desde 1980, trabalhando como engenheiro embarcado. No bar estavam três brasileiros embriagados, que diziam a Tom e amigos para fazerem o gesto de dar tapa com a mão enquanto passava bem alto uma musica de funk com a letra: “Tapa na bunda Tapa na bunda!” E gritavam eufóricos para eles, ao mesmo tempo que davam tapas na bunda de uma garota de programa que dançava subindo e descendo: “This is Brasil!!!!!”. Tom, sentado com cerveja na mão direita, fazia o gesto com a mão esquerda ao ritmo da música simulando o tal tapa! Esta é a diversidade que Tom gosta! Um gringo marinheiro sem Copa do Mundo. Amanda de Lisio e José Gonçalo Zúquete, pesquisadores do Observatório da Prostituição


Uma pesquisadora em campo

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m 2013 realizei pesquisa a respeito das perspectivas da mídia em relação aos efeitos da Copa do Mundo de 2014 sobre a prostituição nas cidades-sede. Foi baseada em ampla busca on line de publicações que relacionassem o turismo sexual, o tráfico de pessoas e o Mundial. A maior parte do material encontrado alertava os leitores sobre aumento do tráfico de pessoas, principalmente mulheres, para cidades-sede, com o propósito de suprir a grande demanda pelo comércio do sexo, supostamente relacionada ao aumento do número de homens para assistir aos jogos. Aprofundando minha pesquisa sobre a relação do tráfico de pessoas (erroneamente colocado pela mídia como uma questão exclusivamente relacionada à prostituição) e grandes eventos esportivos, traduzi o manual What is the cost of a rumor?, um importante material elaborado pela Global Alliance Against Traffic in

A preparação para receber turistas contrasta com o bar vazio

Women (GAATW) para tratar do assunto. A partir da análise de dados divulgados no manual sobre grandes eventos esportivos anteriores, concluí que muito provavelmente não teríamos um aumento do comércio do sexo proporcional ao pânico que estava sendo instalado nas pessoas. VILA MIMOSA – Como continuação do meu projeto, sob a orientação do professor Thaddeus Gregory Blanchette, juntei-me ao grupo do Observatório da Prostituição para a pesquisa empírica da situação da prostituição e do turismo sexual durante a Copa do Mundo no Brasil, a fim de coletar dados para comparação com os divulgados previamente. Na divisão dos grupos de campo optei por ficar na Vila Mimosa, por ser local emblemático no cenário da prostituição no Rio de Janeiro. Diante do histórico estigma criado sobre a prostituição no local, foi amplamente divulgado antes da Copa que além de crescimento no número de clientes circulando na Vila durante o evento, pela proximidade com o Maracanã, também aumentaria absurdamente o número de mulheres trabalhando no período. Isso devido ao tráfico de pessoas, que proveria centenas/milhares de mulheres para suprir o suposto aumento da demanda por sexo. Acompanhei a movimentação na Vila durante toda a Copa, comparecendo principalmente nos dias de jogos do Brasil e de jogos no Maracanã. Diferente da expectativa midiática, já no dia da abertura da Copa notei que a VM certamente não era um dos principais destinos turísticos do público da Copa. O lugar pareceu estar em último plano para tais turistas. Até mesmo Fotos: Julie Ruvolo muitos dos “frequentadores fiéis” do local, aparentemente diminuiram sua frequência. Em todos os dias que estive lá o número de homens presentes na Vila era muito abaixo do normal. Insatisfação – No entanto, outro fato muito espantoso chamou minha atenção. Além de encontrar menos clientes, menos mulheres estavam indo trabalhar na Vila. O número de mulheres por casa estava também muito abaixo do normal e as que lá estavam não pareciam satisfeitas com a situação. Aquelas com as quais tive oportunidade de conversar manifestaram grande insatisfação com a Copa. Não que esperassem grandes mudanças, já que não tinham a mesma expectativa que a mídia (de um boom do turismo sexual), mas também não esperavam uma queda tão brutal dos rendimentos, o que era bastante nítido, já que não havia muitos homens em busca de sexo por lá. Os poucos que compareciam nos dias de jogos aparentemente eram operários fazendo pausa no horário de trabalho para assistir ao jogo; ou homens que estavam a caminho de casa e paravam para tomar uma cerveja e assistir à partida, já que não havia muito transporte público durante os jogos. Cheguei a essa conclusão porque ao término das partidas a grande maioria dos homens não permanecia na Vila. Maior concentração da prostituição no Rio, a VM ficou praticamente “às moscas” durante o Mundial. Circulava entre as mulheres que o point era Copacabana, apesar do fechamento do Balcony Bar e da repressão do Estado sobre a prostituição na rua. Sendo lá o “novo” foco, muitas mulheres seguiam para Copacabana, o que aumentou em muito a oferta. Contudo, ouvi relatos que, apesar de o número de clientes ser bem maior em Copacabana, os turistas que se interessavam em negociar programas, em sua maioria, pechinchavam ao máximo, em alguns casos chegando a desvalorizar o serviço a ser prestado. Sendo assim, Copacabana também não estava sendo muito bom para lucrar com sexo. Como dizem, “não tava fácil pra ninguém”. O turismo sexual durante a Copa, fosse na Vila ou em Copacabana, de fato superou todas as expectativas de tão pouco lucrativo que foi. Andressa Bento, pesquisadora do Observatório da Prostituição

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Ataque de pânico O que rola quando uma cidade combate tráfico sexual durante megaevento esportivo Julie Ruvolo

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nquanto um milhão de turistas vieram ao Brasil para o maior evento esportivo do planeta, organizações de direitos humanos estavam mobilizadas para o seu próprio megaevento: a explosão do turismo sexual no país. Se os dados do Departamento de Estado americano forem considerados fatos, ainda antes da Copa do Mundo havia 250.000 crianças e adolescentes vendendo sexo no Brasil. Já o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil estima o contingente em 500.000. É lógico que esses números iriam disparar com a chegada de milhões de turistas abrindo as carteiras para gastar quase sete bilhões de reais. A relação causal entre megaeventos esportivos, aumento de turismo sexual e a vulnerabilidade de crianças é aceita como fato no mundo inteiro. Por isso, foi um consolo quando o secretário de Direitos Humanos lançou campanha de 8 milhões de reais para as cidades-sede da Copa combaterem exploração sexual de menores; ou quando as freiras do Vaticano distribuem panfletos mostrando como detectar o tráfico sexual; ou quando o jogador David Luiz pede aos passageiros da British Airways para “protegerem nossas crianças”, como parte da campanha “É Cartão Vermelho”, coordenada pela Agência Nacional de Crimes da Grã-Bretanha; ou ainda quando uma grande instalação a uma quadra da Vila Mimosa (a Gift box, projeto da Iniciativa Global das Nações Unidas contra o Tráfico de Pessoas e da ONG Stop the Traffick) está repleta de imagens de mulheres, homens e crianças sob manchetes como “Eu fui traficado!”

anterior, muitas vezes mostrou aumento da violência policial contra profissionais do sexo na cidade-sede, em nome de “higienização”. Em Berlim, em 2006, a polícia invadiu 71 bordéis durante a Copa do Mundo, mas “não encontrou nenhuma evidência de tráfico [e] deportou dez mulheres”. Quatro anos depois, na África do Sul, “contato da polícia com o trabalho sexual (...) incluiu brutalidade policial sistemática, corrupção e assédio, e o contato de agentes de saúde com profissionais do sexo em geral diminuiu durante o período de Copa do Mundo, num momento em que deveria ter aumentado”. E de acordo com a defensora da saúde dos profissionais de sexo Georgina Perry, há dois anos, em Londres, a polícia desviou dois milhões de reais em financiamentos destinados ao combate ao tráfico sexual para financiar centenas de batidas em bordéis. “Isto é o que acontece quando um medo, pânico, mito assume vida própria”, diz a socióloga Laura Augustin. “A prova de que há motivo para tal medo é simplesmente irrelevante. Se a polícia não encontra muitas mulheres presas, as vítimas devem estar muito bem escondidas, o que justifica ainda mais dinheiro para mais policiamento ainda mais intenso”. REPRESSÃO NO RIO – Em nenhum lugar a repressão foi mais acentuada do que no Rio de Janeiro, onde existe uma longa história de repressão policial das profissionais do sexo antes de visitas relevantes de turistas. Foram fechados no Rio 17 pontos de prostituição do Centro e 18 na Zona Sul nos últimos anos, representando cerca de 20% dos locais de sexo comercial nesses bairros, de acordo com dados recolhidos pelos antropólogos Thaddeus Blanchette e Ana Paula da Silva. E o total de profissionais do sexo em Copacabana está reduzido a cerca de metade do que era em 2005. A repressão assumiu novas dimensões com as invasões ao Prédio da Caixa, em Niterói, onde a polícia prendeu ilegalmente 11 prostitutas e as enviou para o presídio de Bangu em abril passado. Um segundo ataque, em 23 de maio, foi ainda mais violento, com mais de 100 profissionais do sexo presos ilegalmente, muitas vítimas de agressões, roubos e estupro por parte da polícia. De acordo com os pesquisadores do Observatório da Prostituição, presentes na delegacia no dia do ataque, um dos policiais admitiu que não tinha autorização judicial para prender as prostitutas, momento em que elas foram liberados, mas até

SEM EVIDÊNCIAS – Apesar dos bem intencionados esforços para proteger as crianças do turismo sexual associado a eventos esportivos internacionais, há pouca, se alguma, evidência de que a relação de causalidade, na verdade, existe. De acordo com reportagem da Organização Internacional para as Migrações, a Alemanha identificou apenas cinco casos de tráfico relacionados à Copa do Mundo de 2006 - mais ou menos 0,01% de um número estimado de 40.000 vítimas de tráfico sexual. A Grécia não conseguiu achar nenhum nas Olimpíadas de 2004, nem a África do Sul durante a Copa do Mundo 2010. Londres foi igualmente mal sucedida durante os Jogos Olímpicos em 2012, mas não por falta de tentativas. “Apesar de centenas de batidas a garotas de programa em uma campanha de seis meses por parte de órgãos governamentais, agências especializadas e todas as forças policiais no país”, escreveu o jornalista do Guardian Nick Davies, “a maior de todas as investigações de tráfico sexual do Reino Unido não encontrou nenhuma pessoa que tivesse forçado alguém à prostituição”. Mesmo quando confrontada com os dados que desmontam a relação entre eventos megaesportivos e picos de tráfico sexual, ainda é fácil imaginar alguém de boa consciência imaginar se há algum mal em lutar contra o flagelo que é o tráfico sexual - mesmo em contextos onde a sua proliferação é duvidosa. Isso pode ser uma posição válida para tomar se não fosse por um conjunto preocupante de dados que emerge quando se olha para os preparativos para esses eventos recentes - especificamente, a violenta repressão das profissionais de sexo. Um relatório de 2011 da Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres ( HYPERLINK “http://www.sxpolitics. org/pt/wp-content/uploads/2014/03/o-preco-de-um-boato.pdf ” \h http://www.sxpolitics.org/pt/wp-content/ uploads/2014/03/o-preco-de-um-boato.pdf ) sobre Copas do Mundo, Olimpíadas e os Super Bowls da década Instalação da Gift Box a uma quadra da Vila Mimosa, em 9 de junho

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Fotos: Julie Ruvolo


As questões do tráfico e da exploração infantil relacionadas a megaeventos tornam-se desculpas para justificar o comportamento e a repressão policial”

hoje (fim de novembro) ainda não foram autorizados a voltar ao “ prédio onde alugavam apartamentos. “O que aconteceu em Niterói é um exemplo da forma de atuação da polícia contra ‘exploração sexual’, mas não é por causa da Copa do Mundo”, diz Laura Murray, pesquisadora, documentarista e secretária-executiva adjunta do coletivo Davida: “As questões do tráfico e da exploração infantil relacionadas a megaeventos tornam-se desculpas para justificar um tipo de comportamento e repressão policial que não é novo, mas que agora tem, simplesmente, uma base de apoio ampliada entre aqueles que entraram na onda de limpeza do megaevento. Antes da repressão em Niterói, houve muitas outras. O movimento de prostitutas no Brasil nasceu de violência policial semelhante. É um exemplo de quão profundo o estigma contra a prostituição vai, e como profissionais do sexo não são tratadas como trabalhadores, mulheres, mães, esposas, cidadãs merecedoras de direitos pela polícia brasileira”.

ATAQUES IGNORADOS – Os ataques não só foram amplamente ignorados pela mídia brasileira, mas também por cada uma das referidas organizações mobilizadas para combater a violência sexual durante a Copa do Mundo. Quanto ao porquê de não terem denunciado os ataques, um oficial do programa da ONG Promundo (que lançou campanha na Copa do Mundo contra a exploração sexual três dias depois de 100 profissionais do sexo terem sido ilegalmente detidas e agredidas pela polícia em Niterói) respondeu: “A nossa organização seria contra violência policial contra garotas de programa ... mas nosso foco é a prevenção da exploração sexual de crianças e adolescentes”. A única exceção foi o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap), que avisou: “O CONATRAP observa com preocupação e repudia o surgimento de situações típicas de ‘higienização urbana’ em cidades brasileiras. O CONATRAP considera especialmente graves os efeitos desses processos junto aos(às) profissionais do sexo costumeiramente apresentados como ‘vulneráveis’ ao tráfico de pessoas. Os agentes responsáveis pela repressão ao tráfico humano devem ser os primeiros a garantir a proteção e a segurança da sociedade e dos direitos dos(as) profissionais do

sexo e a manter um ambiente de relação de confiança mútua, tão necessário para o enfrentamento ao tráfico humano…. Por fim, este CONATRAP recomenda a apuração rigorosa das denúncias de agressões, roubos e ataques sexuais durante a operação policial de repressão às prostitutas ocorrida na cidade de Niterói, no dia 23 de maio de 2014, bem como de outras ocorrências da mesma natureza”. É isso mesmo: prostitutas têm direitos no Brasil. A prostituição nunca foi crime no país, onde a estimativa do número de profissionais de sexo chega a 1 milhão de pessoas. O turismo sexual, apesar de um tweet de desencorajamento da presidente Dilma Rousseff, também é totalmente legal, desde que seja consentido entre adultos. E, de acordo com a CBO5198-05, o trabalho sexual é uma ocupação reconhecida pelo governo federal, com direito a benefícios previdenciários. Apesar das operações da polícia, a comunidade de profissionais do sexo no Brasil manteve altas expectativas antes da Copa. Na Vila Mimosa, a Amocavim, associação de donos de casas, decorou os corredores com bandeiras do Brasil, e pelo menos quatro donos de casa fizeram reformas. As garotas de programa em São Paulo comemoraram o começo da Copa em 12 de junho com evento e show em cabaré. Em Belo Horizonte, a Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig) ofereceu aulas de inglês, para que as garotas de programa pudessem negociar melhor com os estrangeiros. “Estamos mais preparadas que os motoristas de táxi”, disse a presidente da Aprosmig, Cida Vieira. Ela estimava que um adicional de 2.000 mulheres viajaria para Belo Horizonte até o fim da Copa do Mundo em busca de trabalho extra. Considerando expectativas semelhantes de mulheres em megaeventos anteriores, é de se perguntar quantas delas conseguiram encontrar o serviço que procuravam. Na Vila Mimosa, prostitutas presenciaram uma queda evidente da clientela durante a Copa do Mundo, enquanto só aumentava o número de jornalistas em busca de evidências de uma explosão no negócio. Uma prostituta que passou a última década trabalhando na Vila Mimosa disse que estava ansiosa para a Copa terminar para que pudesse voltar ao business as usual. Segundo o estudo do Observatório da Prostituição durante a Copa do Mundo no Rio, o negócio teve queda em todos os pontos de sexo comercial, com exceção de 17. Garotas de programa reclamaram de gringos pedindo descontos do tipo dois ou três clientes pelo preço de um, e de outros violentos. A campanha contra o tráfico sexual durante megaeventos esportivos tem repercussões para além dos lucros cessantes das profissionais de sexo nas cidade-sede. No Brasil, ela tem tirado a atenção de crianças que estão realmente sofrendo abuso físico ou sexual. De acordo com dados do Disque Denúncia, quase uma em cada três (33%) de todas as chamadas entre 2003 e 2010 relatou suspeita de violência sexual. Mas daquelas chamadas que relatam violência sexual, menos de 1% denunciaram tráfico sexual. Em outras palavras, para cada vítima potencial de tráfico sexual de crianças no Brasil, pode haver mais de 500 crianças sofrendo alguma outra forma de abuso. E todo o financiamento para proibir os gringos de pagarem por sexo com menores de idade e para varrer as garotas de programa para baixo do tapete não fez absolutamente nada para mudar essa terrível realidade. Deveria ser possível para nós lutar por aqueles que não querem vender sexo e apoiar os direitos das profissionais do sexo que estão atuando porque querem. Afastar as afirmações fantásticas em torno de tráfico sexual e megaeventos esportivos seria o primeiro e decente passo. Julie Ruvolo é jornalista e editora do documentário interativo Red Light Rio. Foi colaboradora do Observatório da Prostituição na pesquisa durante a Copa do Mundo 2014.

O interior da caixa

Texto aqui atualizado publicado em 10/7/2014 na GOOD Magazine: http://magazine.good.is Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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O silêncio diante da orgia que não aconteceu Thaddeus Blanchette

N

o final da história, quando todos os marmanjos bêbados embarcaram de volta para Gringolândia e a polícia carioca parou de marcar ponto em cada esquina da Zona Sul e retomou suas matanças nas favelas do Rio, o que mais me surpreendeu foi o silêncio quase absoluto sobre a exploração sexual. Quero dizer, foram meses e meses de anúncios dramáticos e previsões cataclísmicas. O Globo, The Guardian, The Chicago Tribune... até mesmo Time Magazine reportaram que centenas de milhares de mulheres e crianças estavam sendo traficadas para as cidades-sede a fim de saciar a lascívia das hordas de estrangeiros bárbaros. O número mais citado foi de 500.000 crianças sendo preparadas para o sacrifício nas principais capitais do país. Meio milhão só de crianças! A Marcha Mundial das Mulheres e dúzias de organizações crentes e feministas previam outras centenas de milhares de mulheres sendo escravizadas para satisfazer os desejos sexuais de nossos temidos visitantes. A deputada federal Liliam Sá (Pros-RJ) juntava forças com a colega estadual Inês Pandeló (PT) para entoar solenes avisos de que a última Copa, da África do Sul, tinha resultado em dezenas de milhares de casos de tráfico de mulheres e crianças. (Uma simples mentira, é claro, mas diante da ameaça mortal do turismo sexual, aparentemente qualquer exagero valia a pena.) E, evidente, não devemos esquecer das fundações e ONGs – a Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), o Promundo e as dúzias de organizações menos nobres – que embarcaram com seus inúmeros projetos de “capacitação” e “conscientização” que supostamente ensinariam o povão a identificar e delatar pedófilos e exploradores. Milhões de reais gastos em projetos, horas e horas de matérias de TV, hectares quadrados de histórias na imprensa, e incontáveis bits vomitados pelo World Wide Web, tudo com um único fim: avisar a humanidade que a Copa do Mundo de 2014 perigava ser a maior orgia de exploração de todos os tempos. E, no final das contas.... NADA.

16 ou 17 anos, na sua grande maioria travestis. Na Vila Mimosa, nada. Nas dezenas de prostíbulos, termas e fastfodas do Centro, nada. De adolescente puta, quase zero, sempre se escondendo (como de costume) nas margens das grandes muvucas noturnas da Lapa e de Copacabana. De prostituta criança, zero. Não estávamos surpresos, pois é isto que vemos faz quase uma década. Ao contrário do que O Globo e a FIA podem supor, o número de menores prostitutas no Centro e Zona Sul do Rio – a zona turística, enfim – é quase nulo. Os estudos feitos pela Abrapia e pelas próprias ONGs de combate à exploração sexual indicam a mesma coisa: na medida em que a exploração sexual de crianças e adolescentes existe no Rio, concentra-se longe dos bairros turísticos, precisamente nos subúrbios e comunidades, principalmente das zonas Norte e Oeste. Ironicamente, foram exatamente essas regiões as desnudadas dos efetivos da polícia e das várias agências de assistência social durante a Copa, em nome da caça ao mitológico “turista sexual”. O PORQUÊ DO SILÊNCIO – E é isto, a meu ver, o porquê do grande silêncio oficial frente à “orgia que não aconteceu”. Participando de uma reunião da FIA no início de novembro, ouvi Alexandre Nascimento, assessor da presidência da fundação, opinar que “talvez concentramos nossos esforços nos lugares errados durante a Copa”. Balancei minha cabeça e sorri amargamente. Acontece que a secretária de Alexandre é um dos psicólogos que organizaram o estudo pioneiro da Abrapia, mais que uma década atrás, sobre a exploração sexual de menores no Rio de Janeiro. Naquela ocasião, a entidade já tinha chegada à conclusão de que a vasta maioria dos abusos sexuais praticados contra crianças e adolescentes brasileiros é oriunda dos membros dos círculos íntimos dos menores; turistas – e particularmente os turistas estrangeiros – não são, nem de longe, grupo expressivo nesse quadro. A Abrapia já tinha descoberto esse fato em 2004, mas, mesmo assim, sua absorção foi inconveniente demais para políticos, jornalistas, ongueiros e outros empreendedores morais que miram, nos megaeventos esportivos, oportunidades douradas para empurrar suas agendas para a frente e, quem sabe, conquistar novos recursos para seus projetos políticos mais queridos.

“ONGs e fundações pretendiam ensinar o povão a identificar e delatar pedófilos e exploradores”

FANTASIA E TROTE – Não é que não tenham havido denúncias! No Rio, por exemplo, duas meninas menores de idade foram vistas cantando turistas russos na Lapa. A notícia espalhou-se pelas redes sociais! AhnHAHN! Era a prova da perfídia dos gringos! Finalmente, imagens que demonstravam a desgraça brasileira: a venda de nossas próprias crianças à luxúria imperialista! Acontece, porém, que as duas moças eram mais que conhecidas pelos Creas e Conselhos Tutelares da cidade, tendo já várias passagens pelo aparato protetor/repressor do Estado, bem antes da Copa do Mundo. Sua presença nas ruas nada tinha a ver com o Mundial. Mais adiante, no meio do evento, o Disque 100 foi mais uma vez acionado, agora por denúncia de que uma menina de 14 anos estava leiloando sua virgindade na Pedra de Guaratiba. Acionadas autoridades devidas, porém, descobriu-se que a chamada foi trote: mais uma instância de nosso famoso sistema “Disque Vingança”. Fora isso, nada. Sem denúncias. Sem ligações ao Disque 100. Quase nenhuma criança ou adolescente descoberta vendendo sexo aos gringos. Será que os cartazes de Neymar e Xuxa foram tão eficazes assim? Ou será que, mais uma vez, recursos públicos foram gastos indevidamente numa caça a fantasmas, enquanto serviços básicos jaziam na sucata? EU JÁ SABIA – Nós do Observatório da Prostituição já sabíamos a resposta. Entre os milhares de homens e mulheres e pessoas trans vendendo sexo nas ruas da Copacabana, encontramos menos que meia dúzia de menores, gente quase sempre de

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DANOS COLATERAIS – E se os danos colaterais desses pânicos morais afetam as prostitutas do Rio – deixadas a esmo por um poder público que está cada vez mais encantado com a família e sua proteção –, as putas que se fodam. Afinal das contas, importante é proteger criança, mesmo ao custo de ignorar os danos, explorações e abusos que as próprias famílias das crianças cometem. Vai ser interessante, então, ver como esses mesmos empreendedores morais lidam com a quase absoluta ausência de casos de exploração sexual de crianças e mulheres durante a Copa do Mundo de 2014. Afinal das contas, outro megaevento está logo ali no horizonte: os Jogos Olímpicos de 2016. Algo me diz, porém, que a retórica alarmista só vai dobrar, em vez de diminuir. Afinal de contas, quando é pego numa mentira, mentiroso tende a gritar mais alto.

Os pesquisadores do Observatório da Prostituição Aline Da Cunha Valentim

Julie Ruvolo

Amanda Neder

Lucas Bernardo Dias

Amanda De Lisio Andressa Bento Ana Paula Silva Dayane Gomes

Débora Santana de Oliveira Gonçalo Zúquete Gregory Mitchell

Laura Murray

Natânia Lopes Riane De Sá

Soraya Simões

Thaddeus Gregory Blanchette Yaa Sarpong


A Niterói que Queremos Laura Murray (texto e fotos)

H

á muito o que dizer sobre o que aconteceu em Niterói este ano. As prisões ilegais de 11 prostitutas em março – sendo duas delas levadas para Bangu. A invasão ilegal ao Prédio da Caixa no dia 23 de maio por dezenas de policiais arregimentados em 13 delegacias. Os roubos, estupros, extorsões que acontecerem dentro dos apartamentos e as prisões ilegais e violações de direitos de mais que cem prostitutas presas para averiguação nesse dia. A resistência, coragem e beleza dos protestos das prostitutas nos dias 1/4, 16/4, 31/5. Suas falas denunciando a violência nas audiências públicas, primeiro na Câmara Municipal de Niterói e depois na Assembleia Legislativa de Rio de Janeiro. O sequestro de Isabel – a prostituta que mais denunciou os fatos – e as ameaças a sua vida e a sua família. Sua luta corajosa por justiça, que continua até hoje. Cada uma dessas frases dá um artigo. Quiçá um livro. Mas aqui quero escrever

algo que faça uma contribuição para o município que tanto me ensinou este ano. Quero também ser consistente com os objetivos do Beijo – valorizar, reportar e aprender da rua e das putas. Eu, pessoalmente, aprendi muito das ruas de Niterói e sugiro que a prefeitura faça o mesmo. A partir das imagens que eu captei durante meus meses do outro lado da baía, vejo uma oportunidade de contribuir com o projeto Niterói que Queremos, que está na etapa de “pesquisas de opinião” para a formulação de seu “Plano Estratégico de Desenvolvimento de Curto, Médio e Longo Prazos”. De acordo com o site ( http://www.niteroiquequeremos.com.br/), esta etapa significa que “esse é o momento de dar voz a todos aqueles que querem ajudar a construir o futuro de Niterói, e permitir uma participação da sociedade no processo de reflexão estratégica”. Penso que as prostitutas de Niterói facilitaram muito o trabalho da prefeitura. Nas passeatas dos dias 1/4, 16/4, 25/5 e 31/5, com suas faixas em letras garrafais, expressaram muito claramente a Niterói que desejam, como também nas dezenas de cartazes em frente do Prédio da Caixa. Assim como as mensagens nas barrigas de mulheres grávidas indicam o que querem não só para si mas também para os futuros niteroienses. Nos meses que frequentei o município, este foi o caso mais claro e direto da expressão de demandas e sugestões de uma categoria de cidadãos trabalhadores no sentido de elevar a cidadania e a civilidade desta Niterói que todos queremos. Para facilitar à equipe do projeto a análise e interpretação de dados, publico as fotos dos protestos e do prédio, que comunicam tanto o ponto de vista das prostitutas como o da polícia e de alguns moradores. As fotos das portas foram feitas no dia 24/5, um dia após a ação da polícia. Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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DIREITO DE TRABALHAR – Nos protestos e manifestações das prostitutas, o direito de trabalhar foi o desejo mais expressado nos cartazes, junto com pedidos para a aprovação do Projeto de Lei Gabriela Leite e afirmação do reconhecimento da prostituição como ocupação que é. Algumas mensagens: “Queremos trabalhar”; “Tira a mão de mim, deixa eu trabalhar, amanhã é outro dia eu tenho conta para pagar!!!”; “Sexo Pago também é bom, regulamenta a prostituição”. Além das demandas quanto ao direito ao trabalho sexual, elas também sugerem que o governo invista seu tempo e recursos em coisas mais importantes do que perseguir (ilegalmente) prostitutas: “ ...pessoas morrendo no Brasil inteiro nos hospitais e favelas e as polícias perdendo tempo em mandar 200 policiais para desempregar profissionais do sexo!” ou “Aqui no Brasil, Prostituição é CRIME e corrupção é ARTE”. DIREITO DE NÃO SER PRESA – O direito de não ser presa ilegalmente foi a segunda categoria mais presente nas faixas. Com muito orgulho, as prostitutas levantaram faixas afirmando – e informando aos que ignoram – que “Prostituição não é crime!” e questionando “Qual é o interesse do Promotor em nos Prender? Não somos criminosas!”. As faixas e cartazes apontam questões importantes para a reflexão do governo e

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sociedade de Niterói: “Só está interditado e condenado do 4º andar para baixo? Isso é perseguição!” De fato, o que justificaria a interdição de somente quatro andares de um prédio de 11 andares, quando o motivo alegado seriam problemas estruturais da edificação? Se os apartamentos onde as prostitutas trabalhavam não tivessem sido saqueados pelos policiais, poderíamos de boa fé acreditar que as portas só foram arrombadas para que as prostitutas fossem salvas do desabamento. MORADIA – Sem dúvida, moradia é um tema de importância para grande parte da população de Niterói e para as prostitutas não é diferente: “Não tenho casa, não tenho teto, e a polícia quer nos tirar do nosso Lepo lepo!”. A responsabilidade pela ação e suas consequências devastadores também foi questionada: “E agora, quem vai pagar nossas contas? Será o governo?” Embora todas as faixas reivindicassem de algum modo respeito, algumas tinham mensagens que merecem atenção especial quanto à cidadania das prostitutas: “Se me prender faço barulho. Sou puta com muito orgulho. Beijinho no ombro”, “P.U.T.A.S. Pessoas Unidas Trabalhando Ativamente com Sexo”, e, sempre é bom lembrar, “Prostituta também vota”. As famílias que coabitam nos quatro primeiros andares do prédio, por sua vez,


de acordo com as mensagens colocadas nas suas portas, não querem ser perturbadas. Pelas imagens conclui-se que estão com Deus e com o Botafogo. A palavra “Família” se mostra importante, sendo repetida na expectativa de que distinga e proteja o apartamento, mantendo-o a salvo das investidas dos clientes e da polícia. Ao passo que as portas dos apartamentos das prostitutas com a mensagem “Entre sem bater” foram as preferencialmente destruídas pela polícia. Já a polícia, embora a pouca criatividade das faixas, repetidas à exaustão, deixou bem claro o tipo de Niterói que quer: “Local de Crime: Não Atravesse”. E de fato, em audiência pública na Alerj dia 4/6, a Comissão de Direitos Humanos do órgão, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil/RJ concluíram que tudo o que ocorreu no local foi uma sucessão de crimes perpetrados pela polícia.

as proteja e que Botafogo vença; o que de tudo parece ser o mais improvável. Hoje, enquanto escrevo esse artigo, a Niterói que a polícia quer é a única Niterói realizada. Ninguém respondeu pelas violações de direitos das prostitutas, nem respondeu formalmente às suas demandas. E eu? O que quero eu? Escrevo com alguma ironia, mas o que eu quero é que os leitores deste artigo olhem as imagens e pensem realmente no tipo de cidade e cidadania que querem. Todos expressaram claramente sua visão de mundo, e a nós cabe apoiar e lutar pelas vozes que mais representem uma visão urbana de solidariedade, democracia numa sociedade “pluralista e inclusiva”, conforme o projeto Niterói que Queremos alega querer. Eu, pessoalmente, estou do lado das putas.

TRABALHAR E MORAR EM PAZ – Concluindo, as prostitutas querem uma Niterói onde possam, sem discriminação, trabalhar e morar em paz, livres de violência policial, abuso de autoridade e prisões ilegais. A polícia prefere mostrar opiniões pela força, tratando prostitutas como criminosas e ações criminosas do Estado policial com a corriqueira impunidade. As famílias do Prédio da Caixa não querem ser perturbadas, querem que Deus

Agradeço a pesquisadora mestranda em Direito, Ana Carolina Brandão, que me enviou o site do projeto Niterói que Queremos, que acabou inspirando esta reflexão. O projeto está relacionado ao programa da prefeitura de “Requalificação do Centro de Niterói”, que pretende “resgatar o prestigio perdido ao longo das últimas décadas” por meio de uma Operação Urbana Consorciada (OUC). Mais informações: http://centro. niteroi.rj.gov.br/oprojeto/ocentroquequeremos.php Beijo da rua - Dezembro 2014 |

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Adeus!

S

ylvio de Oliveira não caberia aqui ou mesmo num livro, como transborda nos corações da amizade. Descogitei, então, pedir manifestações de tanta gente amorosa. Onde iria parar? “Para não para não para não”. Criador e criatura sempre foram só um. Desenhou edições deste jornal e fez parte dele. Desenhou dezenas de estampas Daspu, assim como a marca, e vestiu a camiseta. Fundou os notáveis jornais Nós por exemplo e A Ilha, fez circular política, arte e cultura – produtor e cantor vibrante, quente e sarcástico – no continente e na Paquetá onde garantia ter sido concebido e que amou e se deu amar. E ao mar, pelos tantos amigos, no gran finale das cinzas, como desejou. Pertinho da cúmplice árvore que o acolhia. Preferi, deste sujeito, convocá-lo, e foi com a preciosa ajuda de Denise Reis e de André Villas-Boas, e dos captadores de imagens. Melhor não imaginaria (palavras amigas já recheiam A Ilha de outubro) para esse cara de expressão de ideias e desejos (até o último) como poucos. Por isso mesmo danado, impertinente, teimoso. Se queria algo, até se você estivesse pagando (“to pagano”), era ruim! E quando tinha absoluta certeza, pode crer, era o melhor. Como a foto que num átimo poético viu ser a perfeita para o Beijo da Gabriela. Capa que agora resplandece, protegida por material à prova d’água, no cemitério Cross Bones, em Londres, onde prostitutas enterradas na era medieval são hoje homenageadas. Sylvio também concebeu, com marcante sutileza e elegância, a incrível página dupla de fotos em ambiente de videogame, que Gabriela tanto amava! Na página ímpar aparece a ceia das putas que ele bolou. Fiz questão, naquela edição, que entre os tributos de amigos o dele fosse o primeiro. Mas preocupado. E se não quisesse aquela posição? E se não gostasse da foto dele que, esta sim, eu tinha escolhido? Jamais pensaríamos, quem poderia: menos de um ano para Gabriela e Sylvio brindarem novamente as loucuras da história e do futuro, se reencontrando também neste Beijo. E chega de conversa. Porque Sylvio foi rápido como assim que dizia: Adeus! Flavio Lenz

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colunaS da Gabi

Aos pesquisadores

Investigar a complexidade da prostituta a partir dos estudos de sexualidade e dos direitos sexuais é meu sonho maior. Ver a prostituição, a prostituta e a indústria do sexo como parte e criação da mesma sociedade que estigmatiza e discrimina é meio caminho andado para avançar e sair da mesmice e da hipocrisia. (Abril de 2012, última coluna)

O mito

O encontro [estadual de prostitutas] de Belém foi o acontecimento mais importante dos últimos anos de minha vida, porque me deu a medida de minha dureza, dos meus teatros, e, principalmente, me mostrou que sou frágil e que preciso desesperadamente de amor para muito além da admiração coletiva. Tudo começou com a minha chegada ao aeroporto. As meninas estavam me esperando e, de malas e tudo (inclusive meu cansaço), fui levada à zona de prostituição. Lá chegando me deparei com uma legião de mulheres, e daí todas elas, em fila, me colocaram frente à frente com um autêntico beija-mão. Que solidão, meu Deus, senti naquele momento. Quantas emoções contraditórias passaram por minha cabeça, como foi difícil conviver face a face com o mito. (ano III, nº 10, 1991)

Ser prostituta

Gente, ser prostituta, desde que nos assumimos como tal, é uma atividade tão boa e tão ruim como outra qualquer. Tem seus momentos bons e seus momentos ruins, mas se temos a consciência de que somos especialistas em fantasias sexuais, que não vendemos e nem alugamos nosso corpo e sim vendemos fantasias sexuais a homens ávidos dessas fantasias, então seremos mais felizes e poderemos viver nossa profissão com mais tranquilidade e até com orgulho. (Abril de 2002)

Exclusão

Os “bem nascidos” chamam todo o resto (a grande maioria da sociedade brasileira) de excluídos. Será que Ronaldo, Cafu, Rivaldo, Roque Júnior e todos os outros em algum dia de suas vidas se sentiram excluídos da sociedade brasileira? Não creio. Não teriam forças para ser o que são se assumissem esse terrível estigma. O Brasil não é um país cordial, como dizem alguns intelectuais. O Brasil rico é extremamente descortês com os seus semelhantes que nasceram pobres. De tempos em tempos inventam uma nova denominação: marginalizados, povos da base e agora excluídos. Excluídos de quê? Me pergunto. Excluídos da sociedade brasileira? Ora! Se são excluídos porque a escola está ruim, o emprego falta, o jovem não tem perspectiva para o futuro, a prostituta é vista com enorme preconceito, o que dizer do cara que estudou em uma boa escola particular, frequentou a universidade e agora

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dá aulas e mais aulas e não ganha quase nada? (...) Ninguém é excluído. Todos nós somos cidadãos brasileiros que precisamos tomar vergonha na cara e, ao invés de inventar denominações para estigmatizar pessoas, lutar para que a sociedade melhore e aí entrar todos no mesmo barco. ( Junho de 2002)

Protagonismo

Ir à Guatemala ou a qualquer outro país é uma vitória para nós. Essa viagem é resultado de nosso trabalho de organização e autonomia. Fui por um convite do governo brasileiro (Programa Nacional de DST/Aids), em cooperação com o governo da Guatemala. Digo isso porque quero, neste momento, que vocês todas percebam a importância que nós temos no fortalecimento da sociedade civil brasileira e, a partir dessa percepção, que assumam cada vez mais nosso protagonismo e nossa liderança. (Outubro de 2003)

Prevenção, essa nossa conhecida

Não adianta escolher populações específicas com maior ou menor probabilidade de risco. O risco é o mesmo para todos e todas. O grande desafio para a prevenção da AIDS é viver a nossa sexualidade sem mitos, verdades e modelos babacas, e aí sim poderemos falar na eficácia do preservativo, e – por que não – na eficácia de acordos entre casais que se respeitam e se amam: fora de casa só com preservativo. Amar é também ter a certeza de que o outro, como eu, vive intensamente suas fantasias sexuais. Passar pela vida acreditando em verdades absolutas é o grande risco de viver. (Agosto/setembro de 2004)

Cafetinas e cafetões

A princípio não tenho nada de pessoal contra essas pessoas, donas das casas de prostituição. Sou contra a ilegalidade e a clandestinidade. Quero que um dia eles assumam o seu papel e passem a ser empresários e empresárias esclarecidos. Proponho inclusive a essas pessoas que criem sua associação patronal e comecem a lutar pela legalização de sua atividade. Nós, prostitutas organizadas, podemos auxiliar nessa empreitada. Só não queremos que falem em nosso nome, só não queremos que confundam papéis. Patrão é patrão. Trabalhador é trabalhador. Assumam seu lugar de empresários da prostituição e pelo menos uma vez na vida lutem e se mostrem. Não tenham medo e nem tenham vergonha. Lembrem-se: nosso profissionalismo, charme, beleza e simpatia sempre fez de vocês empresários de sucesso. Então, por favor, mais profissionalismo e respeito e menos desmandos e soberba. (Abril de 2004)

Seleção de trechos de colunas: Soraya S. Simões


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