Harashi - Os Mestres da Luz Livro 1: A Guerra do Princípio

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LIVRO I 2


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Para meu eterno Mestre, Manohal Lo’omeh, que foi o ponto de partida para tudo o que sou. Ontem, hoje, e sempre.

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DOCUMENTO SELADOR DO SACERDOTE RAEL ZAVILAH He’er Vah Shelan Lo’oyashnu – Que a minha Paz se encontre dentro de vós. Antes de me dirigir a vocês, seres evolucionários do tempo e do espaço, gostaria que soubessem quem eu sou. Meu nome é Rael Ga’ard Zavilah, Sacerdote da Ordem Harashi. Não pertenço ao espaço, muito menos ao tempo em que vocês estão inseridos, mas o que tenho a lhes dizer transcende qualquer compreensão mortal. Não há tempo o suficiente que exista para que se deem mais explicações sobre estes documentos que lhes repasso, mas os registros que no momento vocês têm em mãos, fazem parte de uma minuciosa coletânea de memórias devidamente registradas nos Arquivos de nossa Ordem. Este vasto material, oriundo de Arquivos Pessoais de grandes personalidades de nosso passado, foi organizado e cronologicamente reescrito por mim para atestar uma série de fatos ocorridos em Yuransha, nome pelo qual seu planeta é conhecido no nosso. Todos os nomes que aparecem nestes documentos são reais, menos algumas personalidades, que, por serem agentes transformadores do presente, não podem ser aqui revelados, por já haverem tomado decisões que possivelmente determinarão os rumos que a história do seu planeta seguirá nos próximos anos ou nas próximas décadas. Neste momento, talvez eu esteja rompendo incontáveis protocolos internos da Ordem, mas a mando dos Seres Superiores, devo revelar tais registros, na esperança de que isso, um dia, possa amenizar os danos já causados no continuum espaço-tempo pelas ações do sincronismo temporal, ignoradas por todos nós ao longo das eras. Não sou um guerreiro com a missão de mudar o meu, ou o seu mundo. Sou apenas um espectador do tempo. Um homem que não existe no seu mundo, nem existirá mais no meu. Com a devida cautela, escolho minhas palavras, pois estas também podem mudar o conturbado futuro de nosso Universo Local, do qual infelizmente fui testemunha. E se por ventura, um dia for condenado por tais atos, que meus Guias me concedam a 5


indulgência plena pelas naturais falhas de minha Mente evolutiva e de minha mais pura vontade. Mas neste momento, meu único desejo se resume em lhes narrar uma bela, e não menos fascinante história. Não podemos alterar o passado, não podemos impedir o futuro, mas estamos aqui. Estamos presentes no seu mundo para dar testemunho de que tudo isso é real: O ar que vocês respiram, as folhas de papel que agora tocam, e as palavras que estão sussurrando dentro de suas Mentes. Somos uma legião de observadores. Um mar de olhos e ouvidos que pairam sobre seu mundo muito antes de vocês caminharem sobre ele. Podem nos chamar do que quiserem: Anjos, Deuses, Seres Elevados... Mas nada vai mudar o fato do que somos e o que fizemos. Nós somos os Sacerdotes Harashis. E este é o nosso legado.

Selo Este Registro. Yuransha, 02 de janeiro de 2014 – Calendário padrão ocidental. Origem e Marcação anterior ao Salto entre os Tempos: Nemashi. 06 de Nilihvan do Ciclo 29.897 – Era Luminosa da Constelação. 30 de março de 2245 – Calendário padrão ocidental. Destino e Marcação após o Salto entre os Tempos: Yuransha. 09 de novembro de 2009 – Calendário padrão ocidental. 01 de Mohavad do Ciclo 01 – Era da Involução de Navadoh.

Rael Ga’ard Zavilah – Sacerdote da Ordem Harashi

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DOCUMENTO INTRODUTÓRIO1 Cidade de Nova York, fevereiro de 2013. O sol do meio da tarde cortava os imensos arranha-céus, dando forma às suas sombras ao longo das avenidas tomadas pelo mar de carros. Numa rua movimentada de Manhattan, em Midtown, uma jovem garota passeava com seus pais em meio ao ritmo frenético da cidade nova-iorquina. A pressa em seus passos acelerados denunciava o pouco tempo que restava daquela viagem que fizera aos Estados Unidos da América. Embora fosse mais uma viagem turística para seus pais, para ela era uma maravilhosa oportunidade de entrar em contato com a cultura local. A viagem de pouco mais de uma semana foi o suficiente para ela conhecer as cidades do país que mais lhe fascinavam. Los Angeles, a capital do Cinema. Washington, a cidade mais poderosa do mundo. Nova York, o centro social e econômico do país. Enquanto esteve visitando estas cidades, apenas tinha comprado roupas, algo que para ela não acrescentava nada à sua vida. Tentando levar algo de relevante daquela viagem, decidiu investir seu dinheiro em algo que ela não cansava de comprar: livros. Aquele bairro era conhecido pelas suas inúmeras lojas de livros usados. E seu desejo por conhecimento obrigara seus pais a leva-la àquela região para satisfazer sua sede por leitura. 1

A vocês que não estão acostumados com a linguagem e expressões que utilizarei a partir de agora, peço que tenham paciência em apreciar tais notas explicativas ao final das páginas. Embora tal recurso não exista em meu mundo, esta ferramenta facilitará bastante a transcrição das memórias dos personagens envolvidos na história passada de nossos mundos. O documento anterior, selado por mim, diz respeito a um protocolo estabelecido por nossa Ordem. Após escritos, o conjunto de documentos são formalmente selados pelos seus autores, para que assim não sejam mais alterados, e seu conteúdo, mesmo que passível de erros, não se perca, pois, para nós Harashis, todo conhecimento é importante, até mesmo aqueles equivocados. Posteriormente, os escritos são registrados nos Arquivos da Ordem, para então, serem disponibilizados para o livre acesso por parte dos habitantes de nossa sociedade.

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Sem pensar duas vezes, ela adentrou na primeira loja que avistou. Em meio às inúmeras fileiras de estantes, a garota não sabia o que procurar. Romance não era um gênero que ela gostava. Muito menos terror. Talvez um policial fosse algo animador para suportar as mais de doze horas de voo de volta à sua terra natal, a Itália. Andando em meio às prateleiras, passou pela seção de ficçãocientífica. Embora gostasse de ler as histórias sobre sociedades do futuro imaginadas por vários autores, ela não estava no clima de encarar livros que muitas vezes contavam a mesma coisa. Mas ao passar a vista sobre as obras ali presentes, algo lhe chamou a atenção. Misturado aos vários títulos, um livro grosso, surrado, de capa azul escura, lhe fez puxa-lo para matar sua curiosidade. Embora

bem

conservado, ele já demonstrava os sinais do tempo através de suas páginas meio amareladas. Ela folheou com cuidado e voltou-se para a sua capa. As únicas palavras ali existentes se destacavam por suas letras douradas que já não emitiam tanto brilho. O Livro de Ormoshi. A garota leu o título em inglês sem entender o porquê daquele nome. Para sua maior estranheza, não havia nome de autor algum. Nenhuma figura que o identificasse. Nada. Imediatamente, abriu suas primeiras páginas e passou a lê-lo. Logo, as palavras das primeiras linhas saltaram aos seus olhos de modo perturbador. Estas folhas as quais leem no chamado Livro de Ormoshi é o primeiro anexo à obra homônima, não pertencente aos documentos originais resgatados por nós. Ela é um testamento às gerações que folhearão estas páginas com o propósito de adentrarem com plena consciência nos fatos escritos e compreendidos pelas antigas Mentes conhecedoras desse Grande Mistério, até então oculto aos povos de nossa civilização.2

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Primeiro parágrafo do Documento Introdutório do Livro de Ormoshi, intitulado O Testemunho dos Cinco Guardiões, assinado em 02 de Novembro de 1952 do calendário ocidental padrão de Yuransha.

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Ela passou a mão nos seus cabelos negros, tirando a franja dos olhos para ler novamente. Aquilo era de fato estranho, e o fascínio que aquele texto lhe provocava a fez mergulhar mais a fundo nele. A princípio, contava a história de um livro perdido de uma antiga civilização. Mas à medida que lia aquelas primeiras páginas, o que parecia inicialmente ser uma mera ficção literária se tornava um desafio a tudo o que ela já havia lido a respeito. O relato constituía mais do que uma narrativa ficcional. Era o registro de um dos acontecimentos mais intrigantes da história recente da política norte-americana. As linhas que se esboçavam diante dela falavam sobre o famoso Caso Roswell, onde no ano de 1947, o governo dos Estados Unidos – naquela época sob o comando do presidente Harry S. Truman – resgatou destroços de uma nave espacial que caíra no estado do Novo México, junto com corpos de supostos seres extraterrestres. Mas o que impressionava naquilo tudo era o fato de que quem estava narrando a história eram cientistas do próprio governo norte-americano, autointitulados Os Cinco Guardiões. Ela fazia de tudo para ver aquilo como um mero livro de ficção, mas a precisão dos relatos não lhe deixava dúvida sobre sua veracidade. Falava sobre telas de LCD, DNA, tecnologia avançada. Ideias que para a data em que a obra fora publicada nem sequer eram concebidas pela ciência. Ela não acreditou e verificou novamente a data do livro. 1952. Falsificação? Talvez. Mas o que mais lhe espantava eram os nomes que estavam ali. Os cinco cientistas que assinavam o livro eram os mesmos que eram apontados como membros de um complô do governo para acobertar os acontecimentos de Roswell. O grupo era conhecido como Majestic-12.3

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Pela ordem das assinaturas, os Cinco Guardiões eram: o engenheiro Vannevar Bush, o astrônomo Donald Menzel, o biofísico Detlev Bronk, o físico Lloyd Berkner e o piloto aeronáutico Jerome Hunsaker.

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Ao terminar de ler o relato, ela descobriu que tais cientistas foram os responsáveis por encontrar, traduzir e publicar na sua língua materna o conteúdo que estava encerrado naquela obra. Porém, quando estava para ler o referido escrito, ela ouviu seu nome ecoar pelo local. - Sofia4, venha logo. – Sem meias palavras, sua mãe lhe chamou. Seus pais estavam na porta da loja, preocupados com o horário do voo de volta à Europa. - Já estou indo. – Obedecendo, a garota se dirigiu ao caixa. - São dez dólares. – Disse o rapaz do caixa, enquanto Sofia tirava a carteira de sua bolsa azul. - Escuta, você não é daqui, não é? – Perguntou o homem, que aparentava ter a mesma idade da garota. - Não... – Sofia respondeu. - Foi o que pensei. Seu sotaque lhe denunciou. Pelo visto você viaja muito pelo mundo. - E por que você acha isso? – Perguntou a garota, curiosa para ouvir a resposta do jovem. - Você passou direto pela seção de romances, mas se deteve na de policial. Pelo visto você gosta de um pouco de ação. – Disse ele, enquanto entregava o livro à garota, se aproximando dela. – Escuta, mocinha, você tem algum programa para hoje à noite? - Perguntou, penetrando no fundo daqueles grandes olhos azuis que lhe chamavam a atenção. De súbito, ela percebeu as segundas intenções ocultas no fundo daqueles globos escuros que a encaravam. Farabutto! – Xingou, sem acreditar naquela cantada barata. – Patife! – Disse ela, arrancando o livro da mão do caixa. - Desculpe? – O jovem recuou, sem entender o que ela falara. - Preciso ir! – Sofia virou as costas para o vendedor sumindo dali entre as coloridas prateleiras abarrotadas de livros.

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Seu nome completo era Sofia Raposo Scotto. Nasceu na cidade de Milão, no dia 29 do mês de janeiro do ano de 1994, segundo o calendário ocidental padrão de Yuransha. Filha de Pedro Franco Raposo e Beatrice Mazzuoli Scotto. Não teve irmãos.

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- Não se pode mais nem conversar... – Disse o vendedor, sem reação, enquanto a próxima pessoa da fila esperava para ser atendida. Após pegar o livro, a garota se dirigiu aos seus pais na saída da loja. - Você não acha que já tem livros demais? – Indagou o pai de Sofia, em um italiano carregado. – Você não lê metade deles. - Da mesma forma você tem várias camisas, e só por isso eu não reclamo porque elas vivem guardadas no fundo do armário. - Mas um dia eu posso precisar delas. - Eu também. – Sofia respondeu, dando um irônico sorriso para o pai. Ao sair da loja, ela sabia que tinha em mãos mais que um simples livro. Talvez aquilo fosse o único registro legado ao mundo de um dos mais intrigantes encontros com seres extraterrestres. Um dos vários que já teriam acontecido ao longo da história. Seus pais chamaram um táxi, que logo parou perto da calçada aonde se encontravam. Antes de entrar no carro, Sofia observou aquele pacote em suas mãos. Ela sabia que o valor daquela obra não podia ser traduzido em dinheiro. Então contemplou a rua pela última vez, olhando o movimento dos carros, enquanto eram cortados pelas sombras dos edifícios e atingidos pelo mesmo sol que iluminava seu rosto. Naquele momento uma estranha sensação tomou conta do seu íntimo. Pensando sobre o que acabara de ler, agora ela tinha a certeza de que não estava sozinha no Universo, e que muito do que ela ainda não sabia podia estar oculto naquele livro. Mas Sofia teria que descobrir isso longe dali. A caminho do aeroporto, o táxi tomou o sentido sul da avenida, novamente se perdendo no trânsito da metrópole.

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DOCUMENTO 001 UM DIA COMO OUTRO QUALQUER Washington, D.C., 2013, um mês depois. O silencioso subúrbio despertava em meio à manhã de um dia da semana. No bairro de Arlington Heights, cruzando um exército de árvores que formavam fileiras sem fim ao longo das calçadas da 7th Street S, um ônibus amarelo arranhava o asfalto da rua sem movimento, parando em frente a uma das casas ali construídas. Da porta de uma delas, um jovem de embaraçados cabelos escuros saiu em direção ao chamativo veículo. O sol que acabara de nascer aumentava a claridade de sua pele, quase cegando seus olhos que há pouco tempo haviam despertado. Seus passos arrastados revelavam a falta de ânimo para encarar mais um dia naquela rotina que ele não aguentava mais, assim como a maioria dos seus amigos. Os únicos prazeres de Gabriel Cameron5 naquele dia, além da tão esperada volta para casa ao final da tarde, eram a aula de Física no último do período da manhã - uma das poucas matérias que lhe interessava - e a tranquila tarde em que passava sozinho na biblioteca da escola, na companhia de seus livros preferidos. Ele subiu no ônibus fazendo um grande esforço para não tomar o caminho de volta para casa. Prontamente, o comprido veículo partiu, seguindo seu inalterado caminho ao norte, ao redor do tradicional Cemitério Nacional de Arlington, que preservava a memória de militares mortos em combate – desde a revolução americana até as recentes Guerras do Iraque –, e de personalidades da história norte-americana, como o ex-presidente John F. Kennedy e o célebre arquiteto de Washington, Pierre L’Enfant. 5

Seu nome completo era Gabriel Harris Cameron. Nasceu na cidade de Washington, D.C., no dia 21 do mês de agosto do ano de 1995, segundo o calendário ocidental padrão de Yuransha. Filho de Anton Gilmore Cameron e Lena Victoria Harris Cameron. Igual a Sofia, Gabriel também não teve irmãos.

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Dentro dele, passando entre alguns colegas de sala e respondendo aos seus cumprimentos, Gabriel caminhou na direção das últimas poltronas do veículo, onde dois de seus amigos observavam aquela figura já tão conhecida se aproximar deles. Notando a fadiga do seu amigo, comentam entre si. - Aposto que ele passou a noite acordado. – Falou Nicolas Bandini, um jovem de traços mexicanos vestido com uma jaqueta preta com um L amarelo destacado ao centro. O Lakers era seu time de basquete favorito, ao qual não perdia uma partida sequer. - Conversando com a namorada, imagino. – Respondeu Henry Stuart, um jovem de cabelos loiros e olhos escuros, filho de empresários britânicos que tinham rumado aos Estados Unidos para prosperarem nos negócios locais. Ele era o melhor amigo de Gabriel desde sua infância, quando se conheceram nos primeiros anos da escola. - Ex-namorada, você quer dizer. Não acredito que eles voltem mais... Não bastam as noites que passam ao telefone, discutindo pela madrugada, e agora precisamos vê-lo abatido desse jeito. – Respondeu o amigo. À medida que Gabriel se aproximava, os garotos observavam a moda que o amigo vestia diariamente. Despreocupado com a aparência, Gabriel não fazia questão de vestir roupas de marca – ao contrário de vários dos seus amigos –, preferindo roupas comuns, de preferência escuras, marcas da tribo musical a qual se identificava. Entretanto, nesse dia vestia uma camisa branca sem estampa, junto com o tão conhecido jeans, e o tênis desgastado pelas partidas de basquete que disputava após as aulas. Completando o vestuário, portava em seu bolso o tradicional iPod tocando no ultimo volume os cadenciados acordes de guitarra da música Temples of Syrinx da banda setentista de rock progressivo Rush. - E lá vem o nosso herói! – Disse Henry erguendo o punho cerrado em tom de ironia para Gabriel. - Mas sua cara está péssima mesmo. – Disse Nicolas sem entender o que se passava, já que seu amigo estava daquela maneira há dias. – Vocês brigaram mais uma vez? – Perguntou.

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- Podem parar com isso. Eu ouvi tudo o que vocês falaram desde que subi no ônibus. – Disse Gabriel, cortando os amigos. – E não, seus idiotas. Só estou sem dormir direito. Nem falado mais com ela eu tenho, só quando nos encontramos nos intervalos. - Devia tentar dormir mais cedo. Essa sua cara já não é mais novidade para nós. – Respondeu Nicolas que tanto já aconselhara Gabriel. – Até porque semana que vem temos uma partida contra a turma dos jogadores da escola. - Se ganharmos deles isso sim é que vai ser uma novidade. – Gabriel falou em um tom nada animador sentando-se numa cadeira a frente dos seus amigos. Ninguém havia notado quando o ônibus parou, mas apenas quando nele subiu uma alva figura de longos cabelos castanhos. Era Sasha LeBlanc6, a ex-namorada de Gabriel. A garota cruzou o longo veículo, caminhando na direção das poucas pessoas que ali conhecia. Embora de temperamento tímido, logo fez amizade com Nicolas, que se tornou um dos poucos amigos dela, principalmente por seu interesse em Marie Solomon, a melhor amiga de Sasha. Por sua vez, o destino fez o resto do trabalho, unindo seu convívio diário com Nicolas e sua amizade junto a Gabriel. O que antes era uma simples amizade cordial, acabou por aflorar seus interesses um pelo outro. Era um estranho relacionamento sincero, mesmo com alguns desentendimentos por parte de Gabriel e a não menos inoportuna falta de paciência por parte de Sasha. Mas apesar disso tudo, o casal era bastante unido, antes, durante, e após as aulas. Embora aquele relacionamento fosse intenso, há um mês não mais existia, sendo trocado por uma frieza e aversão desconcertante. Após cruzar metade do ônibus, Sasha foi interrompida por Marie, que logo pediu para sentar-se ao seu lado,

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Seu nome completo era Sasha Mason Bratt LeBlanc. Nasceu na cidade de Chicago, no dia 10 do mês de maio do ano de 1996, segundo o calendário ocidental padrão de Yuransha. Filha de William Becker LeBlanc e Juliet Mason Bratt LeBlanc. Teve uma irmã mais nova, Allie Mason Becker LeBlanc.

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mas a garota, decidida, seguiu o seu caminho até os últimos assentos do veículo. Ali, apenas três figuras a observavam se aproximar. Duas sentadas, e uma, bastante conhecida, de pé. - Eu te liguei a noite toda ontem. Por que você não me retornou? – Disse a garota, com os olhos melancólicos. - Não temos mais o que conversar. – Respondeu Gabriel, fechando a cara. Henry e Nicolas se entreolharam, acompanhando, ansiosos, o desfecho daquela nova discussão. - Liguei para sua casa. Seus pais me disseram que você passou o dia trancado no quarto. Mas custava mandar uma simples mensagem, mesmo dizendo que não queria conversar? Sentindo o clima que a conversa estava tomando Nicolas se intrometeu, interrompendo Sasha e Gabriel. – Calma pessoal. Vocês não estão a fim de brigarem novamente, não é? Ainda mais agora que já estamos chegando ao colégio. - Para encararmos mais um dia insuportável com professores mais insuportáveis ainda. – Retrucou Henry, soltando uma cara de tédio. Sasha e Gabriel se entreolharam sem conseguir dizer uma única palavra. Os motivos pífios e as constantes brigas do casal haviam rompido o antigo clima de respeito mútuo que imperava entre os dois. Onde antes só havia amor, agora só restava ressentimento. Porém, uma brusca curva fez os dois perderem o foco entre eles para observarem o ônibus que adentrava no estacionamento do colégio. Cansada de ser tantas vezes ignorada, Sasha logo retornou para onde se

encontrava

sua

amiga,

deixando

Gabriel

abandonado,

enquanto

observava a garota ao fundo com um olhar orgulhoso. Voltando sua vista para o trajeto do coletivo, Gabriel avistou o imenso pátio de concreto e asfalto, onde outros veículos semelhantes já se encontravam imóveis, dos quais, vários estudantes saiam para entrar nos prédios da instituição.

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Seguindo

o

rotineiro

caminho

dentro

do

estacionamento,

eles

passaram por uma grande placa com o brasão do colégio e um nome gravado nos tijolos em letras de metal: William S. Sadler High School. Sem esperar que o ônibus parasse na pista, os estudantes se levantaram e se aglomeraram em uma tumultuada fila para logo saírem do veículo. - Calma, seus bárbaros, se estão com pressa, a janela está aberta a vocês. – Disse Gabriel, enquanto barrava os amigos que tentavam passar na sua frente. - Estávamos passando, mas você resolveu tirar essa bunda da cadeira e atrapalhar o trânsito. – Disse Henry, olhando para Nicolas enquanto os dois riam do amigo. No meio daquela algazarra, eles conseguiram descer do veículo. Mas logo Gabriel estancou com uma menina de longos cabelos escuros. Era Marie, que estava de costas para ele. Isso em nada o teria abalado se na frente dela estivesse Sasha, conversando com sua amiga. A conversa foi subitamente silenciada quando a garota logo notou aquele alvo menino lhe encarando. Por um instante Gabriel conseguiu se enxergar no fundo daqueles olhos castanhos que o fitavam. Eles estavam estranhos, vazios, assim como as últimas conversas que os dois tiveram. Da mesma forma, a jovem se encontrava distante. Sem entender porque em tão pouco tempo um sólido relacionamento se esfacelou em uma série de brigas e desavenças que acabaram por minar seu namoro de anos. Observando que sua amiga não mais lhe dava atenção, Marie virou-se percebendo que Gabriel estava olhando para Sasha. Sem pensar duas vezes, ela segurou a amiga pelo braço e logo a conduziu em direção a um dos prédios do colégio. Enquanto olhava discretamente para trás, o rápido movimento bagunçava o longo cabelo castanho de Sasha. Timidamente, ela seguiu sua amiga, talvez à contragosto. Mas agora Gabriel não teria mais como saber. Nem como adivinhar o que talvez a garota desejasse lhe falar. Voltando a si, Gabriel acordou daquele sentimento inebriante com um toque de um de seus amigos no seu ombro, chamando-o para adentrar no histórico prédio. 16


- Pare de sonhar campeão. Ou a única coisa que vai conseguir fazer é esbarrar em alguma parede sem encontrar nenhuma resposta. - Não é isso... Eu só preciso descansar. Vocês já conhecem minha rotina. – Os dois assentiram com a cabeça. - Mas sabemos como está se sentindo. Um coração apaixonado e uma cabeça perturbada tiram a força de um guerreiro. E precisamos de seu apoio para nosso time ganhar a próxima partida. – Disse Nicolas, dando um soco de leve no peito do amigo, tentando animá-lo, em vão. - Eu não estou apaix... – Disse Gabriel, mas o amigo o interrompeu. - Você está preocupado com o jogo? – Disse Henry, cortando o amigo. – Eu estou preocupado é com as nossas provas. E você devia fazer o mesmo. – Completou, voltando-se para Gabriel. O máximo que Gabriel conseguiu fazer foi soltar um acanhado sorriso enquanto concordava com o filho dos Stuart. - A propósito, se você tem tanto tempo para virar a noite em claro, arranje um modo de me conseguir os códigos do Dark Empires. Invadir aquelas bases rebeldes não é tão simples quanto a gente pensa. – Disse Henry, cutucando Gabriel no peito. - Você ainda joga isso? – Perguntou Nicolas, rindo do amigo, viciado em jogos online. - Gabriel que me apresentou esse jogo, mas ele não é para qualquer um. Somente homens de verdade são capazes de navegar entre seus planetas sem serem capturados pelos cruzadores imperiais. E Gabriel é um desses homens. Nosso pirata da informação. - Posso ser um pirata, mas não tenho como garantir acesso à fortaleza. Posso lhe dar os códigos de interação com os bots e personagens do jogo. Eles sim podem lhe ajudar, não eu. – Disse Gabriel, rindo do viciante hobby do amigo, que passava noites em claro pedindo ajuda a Gabriel para acumular mais pontos naquele exótico jogo com seus personagens ainda mais peculiares. - Infelizmente nosso pirata tem a acesso a tudo, menos às nossas provas. Acessar o e-mail do senhor Miles seria uma proeza muito maior que invadir a fortaleza dos rebeldes. – Disse Henry, rindo junto com Nicolas. 17


- Mas, caso eu seja pego, não terei como reiniciar o jogo, meu caro. – Disse Gabriel, voltando-se para os amigos, enquanto começava a subir as escadas que levavam ao colégio. - Ei, navegador das galáxias... Tente não dormir tão tarde. Parece que você passou a noite inteira numa batalha. Vai acabar dormindo durante a aula. – Concluiu Henry, se juntando a Gabriel e Nicolas. Os três amigos subiram a escadaria, enquanto Gabriel pensava no que ele havia acabado de dizer. Você está certo. Passei a noite lutando mesmo... Contra os meus pesadelos.

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DOCUMENTO 002 O INÍCIO DO DESPERTAR Senhor Cameron! O professor de Física assustara Gabriel, despertando-o. - Se não consegue acompanhar minha aula é melhor que se retire e vá descansar. – O garoto não sabia há quanto tempo estava dormindo, mas foi acordado com a ajuda de seus amigos que estavam nas bancas ao seu lado. - Desculpe senhor. Não consegui dormir bem esta noite. – Respondeu Gabriel, ainda desorientado. O professor, deixando Gabriel de lado, voltou-se para a sala, recobrando a atenção dos alunos. - Sorte sua Cameron que minha aula terminou, mas na próxima tente não dormir. As respostas nos exames podem fugir de você junto com sua falta de atenção... - Já íamos lhe bater para te acordar. – Indagou Henry, não gostando do cansaço que vinha deixando seu amigo abatido há um bom tempo. - Você está assim há dias. Estamos preocupados com você. Você tem que dormir direito Gabriel. – Completou Nicolas, apoiando o amigo. - Calma pessoal, eu só estou dormindo pouco. No fim de semana eu recupero meu sono. – Gabriel levou a mão aos olhos, evidenciando sua visível sonolência. – Além do mais, nossas provas estão chegando. Ninguém está dormindo direito. Imediatamente o professor cortou a conversa do trio, voltando-se novamente para a classe, antes que os alunos batessem em debandada. - Os exames regulares estão chegando, mas saibam que ainda temos um capítulo para terminar. Vamos estudar o entrelaçamento quântico na próxima aula, a começar pelo Paradoxo de Einstein-Rosen. Por isso sugiro que deem uma lida no assunto porque farei perguntas. - Fácil, até demais... – Disse Gabriel aos amigos, balançando a cabeça enquanto ria. - Só se for para você. – Disse Henry olhando para Nicolas, que balançava a cabeça, rindo da própria desgraça. 19


- Meu amigo, estamos fod... A sirene do colégio soou o tão conhecido som da liberdade. Os alunos se levantaram das bancas, saindo da sala às pressas. No corredor os três amigos discutiam seus destinos. - Eu e Nicolas vamos para minha casa estudar. Você vem conosco? – Perguntou Henry a Gabriel. - Hoje não. Vou passar à tarde na Biblioteca. Se eu for com vocês vou acabar dormindo. Prefiro ficar por aqui mesmo. – Respondeu Gabriel, incisivo. - Tudo bem. Já sabe onde nos encontrar. E se precisar de alguma coisa, nos ligue. - Eu estou bem, é sério. Só preciso focar nessas provas. Falo com vocês à noite. Vou almoçar no refeitório e depois estudar na Biblioteca. - Ok. Vemos você mais tarde. – Henry falou com Gabriel enquanto caminhava com Nicolas para a saída do Colégio. - Se ligue, cara, vai terminar sendo assombrado por esses livros que tanto lê. – Nicolas se despediu de Gabriel, enquanto este já caminhava para o refeitório do Colégio. Gabriel parecia desnorteado por conta das noites mal dormidas. O tempo parecia andar a passos de tartaruga enquanto ele almoçava no refeitório. À tarde, o colégio já ficava vazio de costume, mas em época de provas, mais parecia uma cidade fantasma. Sozinho naquele ambiente tão frequentado por ele nos últimos anos, Gabriel aproveitava a solidão na Biblioteca não só para estudar, mas para meditar sobre as mais variadas questões que o afligiam, inclusive sobre o seu próprio futuro. Ele gostava de poder se entregar naqueles momentos em que podia ser ele mesmo: alguém que buscava conhecimento e respostas para as suas mais profundas dúvidas. Entretanto, naquele dia estava difícil se concentrar nos livros que o atraíam. A fadiga era tanta que àquela altura, já não anotava suas reflexões, mas fazia rabiscos e pequenos desenhos nas folhas de papel que acompanhavam os livros.

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Vendo que não estava produzindo como deveria, resolveu se retirar da Biblioteca para lavar o rosto no banheiro. Quem sabe assim não despertava daquela inércia que tomava conta dele desde o início da manhã. Saindo daquele ambiente, ele rumou para um imenso corredor ladeado de armários e salas ao qual estava acostumado a cruzar todos os dias. Seguindo o caminho já conhecido, adentrou em um dos banheiros ao final da alameda. Assim como o corredor, o banheiro se encontrava com as luzes apagadas, devido ao horário em que poucas pessoas o frequentavam, apenas iluminado pelos frágeis raios de sol que se esforçavam para adentrar pelas pequenas janelas. Cansado, o garoto lavou o rosto em uma das pias. Não encontrando nenhuma toalha, entrou em um dos boxes para procurar algum papel para enxugar o rosto e as mãos. Embora tenha se banhado, o cansaço ainda persistia, a ponto provocar uma fadiga que só aumentava. Para piorar, sua vista começava a ficar turva. Retornou a pia na esperança de que lavando mais uma vez o rosto aquela sonolência o deixasse, mas sua visão continuava a gerar imagens disformes diante dos seus olhos enquanto ele fitava a si próprio no espelho, se segurando no balcão. Esfregou os olhos para que aquele incômodo passasse, mas as ondas de luz que ele enxergava só faziam aumentar. Passar mal ali não seria uma boa ideia, ainda mais naquele lugar isolado. Aquela horrível sensação estava deixando-o nervoso. Sua cabeça já começava a rodar, quando subitamente, aconteceu o que ele jamais imaginara. As luzes que pulsavam em sua visão começaram a tomar uma forma luminosa. Mais do que isso, uma forma definida. Uma forma humana! A cada segundo que se passava a imagem se tornava mais nítida em sua frente, suspensa no ar, iluminada por uma aura que preenchia cada vez mais o recinto. Àquela altura, Gabriel já não conseguia mais se mexer, tamanho o assombro de tal visão. Suas pernas tremiam, e quando ele menos 21


esperou, perderam as forças, fazendo com que caísse de joelhos no gélido piso de cerâmica branca. A claridade que surgia a sua frente era tão intensa que ele cobriu os olhos para protegê-los daquela luz ofuscante. Entretanto, Gabriel não sabia que aquele fenômeno estava se produzindo apenas dentro de sua Mente. No banheiro somente se encontrava a sua figura – que jazia de joelhos no meio do recinto –, iluminado apenas pelas janelas foscas que davam para o estacionamento do Colégio. Porém, dentro de si, ocorria um turbilhão de acontecimentos. Levantando seus olhos, os mesmos se acostumaram com o brilho emanado pelo ser, e eis que o jovem enxergou a real forma da aparição que contemplava à sua frente. O homem que se apresentava diante dele trajava longas vestes beges que mais pareciam uma jaqueta fechada. O cinto que lhe cingia o ventre se destacava pela cor escura, ao passo que Gabriel notara que abaixo dele, aquela jaqueta continuava a descer, como se fosse uma única peça. Completando o vestuário, sobre o resto do seu corpo pendia uma espécie de manto da mesma cor, que mais se assemelhava a um tallit.7 Olhando ao redor daquela figura, Gabriel notara que todo o seu corpo emanava uma aura esverdeada. Ela pulsava como se acompanhasse o ritmo da vida daquele ser. - Não tenha medo Gabriel, não lhe farei mal. – Disse o ser com uma suave voz, mas tão sólida como uma montanha. Gabriel tremia. Não de medo, mas de incredulidade. - Meu nome é Marishi8. Estou aqui para lhe trazer uma mensagem. – Pela primeira vez Gabriel encarou a face do homem que estava diante dele, fitando seus grandes olhos escuros que o observavam daquele rosto sereno. Suas palavras eram firmes. Entretanto, ele não abria sua boca. A comunicação entre ambos era realizada diretamente entre a Mente de Gabriel e a daquele ser. 7

Xale tradicional de antigos povos de Yuransha, conhecidos por judeus, usado em suas cerimônias religiosas milenares. Em nosso mundo, tal indumentária se chama Lumehrin.

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Marishi Arthah Helamen, Sacerdote Harashi, filho do saudoso Sumo Sacerdote Mazha Arthah Helamen e da Sacerdotisa Bashet Kham Helamen.

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Sua cabeça reluzia, fazendo Gabriel acreditar que estava diante de um ser divino. A cabeça raspada daquele homem fazia brilhar ainda mais aquela luminosidade, quase tomando forma de um halo. - O que é você? – Disse Gabriel, assombrado. - Eu falo a você de outro lugar. De outro planeta. Um local muito além do seu mundo. Eu faço parte da Ordem Harashi, uma irmandade mística de cientistas e sacerdotes que guardam o verdadeiro conhecimento sobre a vida, o Universo, e várias questões que você mesmo se pergunta todo dia. Você não é o primeiro nem será o último a ser visitado por nós. - Vocês são... - Somos o que vocês conhecem como Anjos... Mensageiros... – Disse o homem. – Ou simplesmente, seres de outro mundo. Aquela afirmação fez o coração de Gabriel palpitar ainda mais forte. - Seres de outro mundo? – O jovem repetiu, afetado com aquela afirmação. - O nome que vocês nos dão não importa. O que você deve saber é que boa parte das lendas e mitos criados no seu planeta são reais. Em muitas ocasiões nós entramos em contato com vocês ao longo de sua história. - Mas eu não entendo. Afinal, o que eu tenho de especial para vocês virem me procurar? - Você é muito mais do que se permite ser, Gabriel. Assim como tantos outros no seu mundo, você possui uma capacidade especial de dominar certos dons. Sabe do que eu estou falando... Sua percepção do mundo ao seu redor é bastante aguçada. Você pensa à frente dos seus amigos. Vê coisas que eles não são capazes de enxergar, embora essa capacidade ainda seja limitada. - Sim... Eu sei do que você está falando. – Gabriel confirmou com a cabeça, sabendo que Marishi falava sobre as intrigantes habilidades sensitivas que ele desenvolvera ao longo de sua vida. – Mas, por que você veio a mim neste momento? – Perguntou, ansioso. - Nós o monitorávamos há bastante tempo, Gabriel. Mas agora você está preparado para tudo o que vai aprender. - Tudo o que vou aprender? Do que você está falando?

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- Você ainda não compreende, mas todos nós possuímos habilidades que estão adormecidas em nossas Mentes por conta de nossa própria natureza. E no caso do seu planeta, isto é consequência do atrasado nível de evolução espiritual em que se encontram. Apenas poucos são capazes de despertar tal domínio de suas potências naturais e não naturais. A autoridade com que Marishi falava transmitia para Gabriel uma sensação de temor cada vez mais intensa. - As histórias de homens que realizaram verdadeiros milagres, ou que possuíam poderes considerados divinos, são de fato verídicas. Neste exato momento

sua

Mente

está

libertando

inúmeras

forças

que

estavam

adormecidas dentro dela, e que até então se manifestavam de maneira bastante rudimentar. - Mas eu não estou sentindo nada. – Disse o garoto, sem compreender. - Com o tempo você irá. A propósito, você não precisa mais se comunicar comigo utilizando sua fala. Desde o início nós estamos nos comunicando através de nossas Mentes. Ao ouvir aquilo, Gabriel entrou em choque ao notar que de fato, em nenhum momento, era a sua fala que movia aquele diálogo, mas sim os seus pensamentos. O garoto então compreendeu que passara boa parte de sua vida andando em uma sala fechada, tateando suas paredes para encontrar o caminho em meio àquela escuridão, quando na verdade ele se esquecera de abrir os olhos para saber que andava em um recinto iluminado. Intensamente iluminado, assim como a silhueta daquele ser. Entendendo a principio como se revelavam tais habilidades, Gabriel passou o resto da tarde dialogando mentalmente com Marishi, que lhe explicou diversos aspectos das coisas que ele seria capaz de realizar, entre elas, se comunicar com o Sacerdote. A última advertência feita a Gabriel foi de manter aquele encontro em segredo, e que, a única pessoa com quem o jovem poderia se comunicar daquela forma era o próprio Sacerdote Harashi. Antes de se desconectar da Mente de Gabriel, Marishi informou que em pouco tempo o garoto não somente iria conhecer outras pessoas que 24


faziam parte daquela realidade, como também visitaria o desconhecido mundo no qual aquele ser vivia. Voltando a si, ainda tomado pelo êxtase da visão que havia presenciado, agora a cabeça de Gabriel só pensava em tudo o que havia lhe acontecido nas horas que passara no banheiro. Ele imergiu por um tempo naquela inquieta meditação. Ainda não havia assimilado por completo aquela visão que testemunhara, mas algo logo lhe chamou a atenção. Notou que já era tarde e o sol estava se pondo. Era hora de voltar para casa. Quanto tempo havia permanecido ali? Se perguntava. Mas não importava. Após retornar ao corredor, aqueles crescentes pensamentos apenas aumentavam suas dúvidas, o que já estava gerando um desconforto em Gabriel, que começava a ter uma terrível dor de cabeça. Correndo pelos desertos corredores da Sadler High School, buscava a porta de saída. Enfim alcançada, sair daquele prédio pareceu um alívio para ele, que agora respirava ofegante, como um homem que voltava a encher os pulmões após emergir do fundo de um lago. Ainda afetado pelo o que havia acontecido, seus sentidos voltaram a se concentrar em algo que lhe chamara a atenção naquele momento. Uma voz invadia sua cabeça através de seus ouvidos. Seu nome era chamado atrás dele, como um som distorcido pela dor de cabeça que ele estava sentindo. Pensando ser o início de outra visão, ele voltou a sentir o calafrio que experimentara anteriormente, talvez devido ao choque do inesperado encontro que tivera com aquele ser de outro planeta. Mas para a sua surpresa, ao se virar, suas expectativas lhe traíram quando ele viu uma figura que lhe era bastante familiar. Parada atrás dele estava Sasha, com a mochila que ele deixara na biblioteca antes de ir ao banheiro. Ela se aproximou sem disfarçar sua cara de preocupação. - Você saiu e deixou sua bolsa na biblioteca. Imaginei que tinha ido ao banheiro, mas você passou horas sem retornar. O que aconteceu? Você está 25


pálido... – Sasha olhava para o rosto de Gabriel que aparentava estar abatido. - Eu não estava me sentindo bem. Fui caminhar um pouco pelo colégio. Estava na quadra, vendo o treino da equipe de Basquete. – Respondeu, mentindo sobre o que havia acontecido. - A biblioteca já estava fechando, e eu pensava que não iria mais retornar. Então juntei tudo e guardei na sua mochila. - Obrigado... – Disse ele tomando a mochila das mãos da garota. – Mas eu tenho que voltar para casa. Não estou me sentindo bem. Preciso descansar. – Gabriel agradeceu soltando um sorriso forçado, denunciando a dor de cabeça que o estava flagelando. - Meus pais já estão vindo me buscar, mas acho que temos tempo. Precisamos conversar... – Disse a garota, logo sendo cortada pelas ríspidas palavras de Gabriel. - Não! – Gritou Gabriel, em meio a uma pontada, assustando Sasha. – Nossos últimos encontros provaram que não conseguimos nem ao menos conversar civilizadamente, quanto mais chegar a um consenso. – Disse o garoto, ponto um termo à conversa. – Preciso ir, o ônibus já está no pátio. Observando

o

grande

estacionamento

ao

seu

redor,

Gabriel

rapidamente deu as costas à garota, indo em direção ao veículo. Sasha observou tudo aquilo calada. Seu silêncio também refletia a estranheza daquela atitude de Gabriel enquanto ele corria para pegar o ônibus que já estava de partida. Se não conseguia obter respostas de Gabriel, poderia pelo menos ter respostas de seus amigos, que o encontravam praticamente todo dia. Distante dali, cruzando as avenidas de volta a Arlington Heights, Gabriel não parava de pensar naquele fatídico encontro. Ainda estava impressionado demais para de fato acreditar no que havia experimentado, mas maravilhado o suficiente para mergulhar nas recentes memórias daquela inesperada aparição. Finalmente, após descer do ônibus, adentrou apressado naquela singela habitação que vivera desde criança, sem dar uma palavra com seus pais que se encontravam na sala, subindo as escadas como um gato. 26


Foi direto para seu quarto trancando a porta e deitando-se em sua cama como havia deixado quando acordou. Seu quarto estava mais desarrumado que seu armário no colégio. Seus livros estavam na mesma página que Gabriel deixara na noite anterior, e uma série de cavidades em suas prateleiras denunciava a pequena torre empilhada que esperava pelo garoto a serem estudados para os exames que se aproximavam. Entretanto, com as preocupações e os problemas que vinham se acumulando, a última coisa que Gabriel fizera naqueles dias foi estudar, e muito menos dormir. Ele sentiu-se afundar na suavidade do seu colchão enquanto fechava os olhos para fazer desaparecer aquela dor de cabeça que o atormentava. Voltando a abri-los, fitou o oceano de estrelas que pairava sob sua cabeça. Se não fosse pelo papel de parede que revestia o teto do seu quarto, ele poderia jurar que via o céu através daquela película. E de fato, o estava vendo. Mais do que isso, o sentia. Naquele momento, Gabriel estava enxergando além dos limites que lhe seriam humanamente possíveis. Inconscientemente, o garoto estava ativando as áreas adormecidas de sua Mente de que Marishi lhe falara. Depois do que vivenciara naquela tarde, o corpo de Gabriel passou por transformações que tinham origem no desconhecido de sua Mente, e agora ele acessava uma percepção das coisas que nunca havia experimentado. Agora, suas capacidades psíquicas iam além das torpes brincadeiras de adivinhação que ele fazia quando criança, na solidão de sua rotina de filho único. Agora, aquele jovem presenciava os fenômenos ao seu redor, e em tempo real. Bastava concentrar sua vontade naquilo que desejava enxergar. E assim, ele viu o seu futuro. Como que arrebatado por sua consciência, ele se deparou com uma imensa cidade que ocupava um planeta inteiro. Ela era cercada por inúmeros

edifícios

revestidos

de

cristal

que

rasgavam

as

nuvens,

contrastando com uma vasta área verde jamais imaginada. O equilíbrio entre a natureza e a obra humana parecia algo divino. Ele só conseguia chegar à conclusão de que aquilo se tratava do Paraíso. 27


Mergulhando profundamente naquela visão, Gabriel buscou em sua mais sincera vontade o destino que tanto lhe interessava. Ao mesmo tempo em que se focava nele, a consciência do jovem era arrastada para uma fortaleza circular que abrigava inúmeras pirâmides e torres no meio daquela imensidão cintilante. E desse modo, penetrando mais ainda em sua visão, sua Mente foi transportada para a presença do ser que ele conhecera há poucas horas. Gabriel estava se conectando novamente à Mente de Marishi.

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DOCUMENTO 003 ALÉM DOS NOSSOS OLHOS EXISTE UM MUNDO DE POSSIBILIDADES Vejo que está progredindo na libertação da sua Mente. Até mais rápido do que imaginei. Marishi falou com Gabriel em silêncio, enquanto meditava de olhos fechados, concentrado. - Que lugar é esse? – Gabriel perguntou enquanto observava o recinto circular aonde Marishi se encontrava. Embora não fosse nítido, o garoto enxergava tudo como se a luz brotasse de cada átomo do lugar. - Você está vendo o interior do Santuário do planeta Nemashi. 9 Ele é a sede da Ordem Harashi no sistema onde vivemos, o Sistema de Ashunyah. É um local praticamente inacessível ao seu planeta. Em sua cama, o jovem Gabriel olhava para o teto do seu quarto, em estado de transe, admirando o ambiente que enxergava enquanto se comunicava com o Sacerdote. - E onde fica este lugar? – Perguntou, surpreso com o brilho das paredes atrás do Sacerdote. - No mesmo lugar onde você vive: A Galáxia de Yashena. - Yashena? - Sim. Mas no seu mundo vocês costumam chamá-la de Via Láctea. – Aquelas palavras mexeram com a imaginação do garoto, que mentalizava a colossal distância existente entre ele e o misterioso membro da não menos misteriosa Ordem Harashi. 9

Conhecido em Korah – o idioma padrão do Sistema de Ashunyah –, como a Floresta dos Mestres, Nemashi é o décimo primeiro orbe na ordem centesimal de divisão dos planetas. É o mais próximo do sol existente em sua órbita. Circundado por três luas – Sefehros, Lihbris, Karoshes –, Nemashi é o único planeta habitado e habitável de um microsistema de quatro planetas isolados. O mundo habitado mais próximo dele é o Suhzas, pertencente ao pequeno, mas denso microsistema de Ivilah. Nemashi se encontra aproximadamente 1.891.105.414.164.176 angemômetrons de Yuransha – unidade padrão de medição de grandezas estelares. Convertendo os angemômetrons em unidades de medição de Yuransha, a distância entre Nemashi e o seu planeta é de aproximadamente 4.202.456.475.920.391 quilômetros, ou 444,2 anos-luz.

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Aos poucos, tudo o que havia aprendido até então foi fazendo sentido para Gabriel. - Sinto como se uma força estivesse adormecida dentro de mim por anos, e só agora fui capaz de libertá-la. Preciso que me ensine como controlar esse meu potencial. - Você deve compreender que não podemos abarcar todo o conhecimento de uma só vez. Nossa Mente tem um potencial ilimitado, o qual nem os mais sábios Sacerdotes são capazes de compreender. Entretanto, se seu corpo não está preparado para receber o impacto dessa transformação em suas células, elas rejeitam essa poderosa energia, sendo, como consequência, destruídas. Tudo neste Universo deve seguir o seu tempo. Se você quebra esse ritmo ao qual somos ligados, também se destrói essa perfeita harmonia que é a vida. - Eu não sei explicar... Eu estou bem, mas sinto como se meu corpo ardesse em febre. E ao mesmo tempo uma poderosa energia parece aumentar as minhas forças e minha percepção. - O que você está sentindo é o que as pessoas do seu mundo conhecem como a Aura, o Ki, ou Prana. Nós a chamamos de Vohan.10 Ela é o campo de

10

Do Korah, A Chama. Também é conhecida de Chama da Vida. A Vohan – diferente do nosso biomagnetismo, que explicarei mais à frente –, emana diretamente do nosso DNA, que por sua vez, se constitui em uma verdadeira rede de informações biológicas. Apenas 10% do nosso DNA é utilizado para construir proteínas. Os outros 90% desse supercomplexo de DNA são os chamados no seu mundo de “DNA lixo”. No entanto, tudo o que existe possui uma função neste Universo. O DNA não é apenas responsável pela construção de nossos corpos, mas também serve como um depósito de informações para outro tipo de comunicação, ou interação com o nosso corpo, com o meio, ou até mesmo o Universo inteiro. O DNA também transmite eletricidade com os mesmos atributos de um sistema de condução de corrente elétrica, podendo ser ativado através da temperatura de nossos corpos. Os condutores artificiais de seu mundo, para o seu devido funcionamento, necessitam de temperaturas extremamente baixas (entre -300 e -150 graus, grandezas de temperatura padrão de Yuransha), podendo, desse modo, emitir luz. Por isso, o brilho, ou campo luminoso, consequente do funcionamento biológico de um organismo é o que constitui o espectro emito pela Vohan, diretamente estabelecido pelo código estrutural do DNA – por isso cada ser possui uma Vohan com uma tonalidade específica. Porém, sua funcionalidade está muito além de uma simples aura colorida.

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força que emana do fundo das células do seu corpo. É a mais pura energia que vem dos seres vivos. Por meio dela podemos interagir magneticamente com o espaço ao nosso redor, assim como com os demais seres. Ela é o que nos mantém unidos, formando uma verdadeira simbiose. Se você fechar os olhos e se concentrar, será capaz de enxergá-la. Seu espectro é verde, assim como a minha. - Mas eu não consigo vê-la. - Com o tempo será capaz de vê-la, de tocá-la, de manipulá-la. Em breve você receberá o devido treinamento para adquirir essas e outras habilidades. - Mas quanto tempo isto vai levar? - Tenha paciência Gabriel. Já estamos providenciando sua vinda para Nemashi. - Mas como eu poderei ir até o seu mundo? - Atravessando o Universo... – Estas últimas palavras ecoaram pela cabeça do garoto. Mas, por uma estranha força, Gabriel sentiu sua Mente repentinamente se desconectar da Mente do Sacerdote. O jovem agora estava confuso sobre a conversa que acabara de ter. Ele fechou os olhos - em vão -, tentando se contatar novamente com o ser extraterrestre, mas a única coisa que ele sentiu foi a voz do Sacerdote chamando-o pelo seu nome. Abrindo-os novamente, para a sua surpresa,

O magnetismo emitido por todos os elementos do Universo é o que permite essa interação eletroestática entre a energia liberada pela Vohan e o meio em que o corpo se encontra, onde, através de uma membrana condutora, presente no DNA, somos capazes de conservar ou liberar “informações” que são ativadas pelo catalisador dessa reação. Esse catalisador é uma potente energia que tem a capacidade de alterar a matéria ao nosso redor. Esta força real, e sempre em movimento, é o processo mais poderoso sintetizado pela Mente, ao qual chamamos de Vontade. Através desse processo, a membrana libera informações que percorrem todas as nossas células, permitindo assim, que os campos magnéticos emitidos pelo DNA interajam com o meio, de acordo com essa Vontade emitida pela nossa Mente. Somente assim, nós somos capazes de realizar feitos dos mais variados tipos e intensidades, que no seu mundo são grosseiramente chamados e reconhecidos como “milagres”. Mas isso é um assunto que por enquanto não me prolongarei, em respeito à ordem cronológica da narrativa.

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Gabriel viu a figura de Marishi em pé diante de sua cama. Mas dessa vez, o ser que o visitara horas antes não estava presente apenas na sua Mente. Sua presença era diferente daquela que se apresentara pela primeira vez na escola. Ela era real. - Mas como... é possível? – Gabriel observava Marishi, espantado com aquela nova aparição. - Você um dia aprenderá que o Universo é regido por leis naturais e não naturais. E uma dessas leis não naturais permite que aqueles que dominam a matéria a controlem segundo sua mais pura vontade. – O Sacerdote fez uma pausa, novamente voltando a falar. – Você será capaz de se transportar para qualquer lugar do Universo em que você tenha alguma conexão. Neste caso, a conexão com sua Mente me trouxe à sua presença. Tudo é questão de você dominar a matéria, e assim, você será capaz de explorar suas propriedades imateriais. - Isto é incrível... Quer dizer que eu posso viajar a qualquer lugar do Universo? - Sim. Mas você deve conhecer qual será seu destino, senão poderá destruir a si mesmo. Você deve conhecer os seus próprios limites para saber aonde quer chegar. Só então você poderá viajar a Nemashi. - Então você veio para me levar ao seu planeta? - Ainda não. Minha missão agora é preparar a sua ida a Nemashi para iniciar seu treinamento. - Mas como farei isso? Não posso simplesmente deixar a Terra. Você disse que preciso manter tudo isso em segredo. Aqui eu tenho minha família, tenho meus amigos, tenho a minha vida. – Naquele momento o único pensamento que ressoou em sua cabeça foi o rosto de Sasha. Embora estivesse ansioso por conhecer aquele mundo novo, em nenhum momento passou pela sua cabeça que isto poderia lhe custar se afastar da pessoa que ele mais amava. - Você precisa entender que além dos limites alcançados pela jovem Ciência do seu planeta, existe uma ciência universal que compreende as

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diversas possibilidades de comportamento da nossa matéria. Você terá a possibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Marishi fez um rápido movimento com os dedos da mão direita atirando uma fina onda, cortando alguns fios de cabelo de Gabriel. O garoto se esquivou em cima da cama, mas os movimentos do Sacerdote foram mais rápidos. Abrindo a mão, ele atraiu os fios que caíram no ombro do jovem, colocando-os num tubo metálico retirado do cinto que prendia sua indumentária. – Iremos clonar o seu corpo para que você possa se transportar ao nosso mundo e ao mesmo tempo não deixar de estar presente no seu. Quando seu clone estiver preparado eu voltarei para buscá-lo, e então começaremos seu treinamento para você se tornar um Sacerdote Harashi. - Mas eu não sei como me transportar pelo Universo. - Todo esse poder está adormecido dentro de você, Gabriel. Com disciplina e treinamento você saberá como acessá-lo. Tenha paciência e espere o meu retorno. E lembre-se: mantenha tudo isso em segredo, e não use suas habilidades na frente de ninguém. Toda transformação no Universo tem seu momento inevitável para acontecer. Saiba aguardar o seu. – Com aquelas palavras Marishi desapareceu da mesma forma que surgiu. Após um tempo imerso naqueles novos acontecimentos, o garoto voltou a deitar-se em sua cama, cansado, pensando sobre a nova conversa que tivera com o Sacerdote. E em meio àqueles inúmeros pensamentos, Gabriel adormeceu.

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DOCUMENTO 004 TODO PROGRESSO TEM SEU TEMPO Bom dia príncipe encantado. Parece que finalmente voltou a dormir o sono da beleza. Henry ironizou Gabriel, que acabara de entrar no ônibus. - Acho que ele foi dormir na fortaleza dos rebeldes, isso sim. Ligamos para você a noite toda, e não nos atendeu. Se não estivéssemos tão cansados iríamos te procurar na sua casa. – Cortou Nicolas, segurando no ombro do amigo sentado ao seu lado. - Passei o dia na biblioteca estudando. Quando cheguei em casa fui direto para o meu quarto dormir. – Gabriel respondeu aos amigos um tanto quanto inseguro. - Sasha me falou que te encontrou quando você estava indo embora. Ela disse que te achou... estranho. Aconteceu alguma coisa? - Já disse que não aconteceu nada. Apenas estava exausto do dia. Eu precisava era dormir, e agora estou novo. – Disse o amigo, retrucando. - Espero que esteja mesmo, porque vamos ter chamada oral na aula de Geografia Política. – Gabriel mal teve tempo de falar, quando notou que ônibus acabara de chegar ao colégio. Após estacionar, os estudantes se dirigiram aos vários portões da escola a passos acelerados. Aquela pressa em chegar logo às salas evidenciava o período em que todos se encontravam: os temidos exames. Os três amigos se misturam à multidão de alunos naquela procissão a caminho da rotina matinal. No corredor central, logo se dirigiram aos seus armários, onde guardavam os mais variados objetos. De materiais e livros até roupas e bolas de basquete. Chegando ao seu armário, Gabriel tirou a chave do bolso de sua calça para abri-lo. Entretanto, ele não se lembrava do estado em que o havia deixado nos últimos dias. Para seu infortúnio, aconteceu o que ele jamais esperava. Ao abri-lo, uma avalanche de livros e sapatos desabou em cima dele. Assustado, Gabriel agiu por reflexo empurrando tudo de volta ao armário, gerando uma onda de choque com o movimento de suas mãos. 34


Mesmo agindo em poucos segundos, o forte impacto junto com a atitude desengonçada do amigo chamou a atenção de Nicolas que viu, assombrado, a porta do armário sendo fechada sem que Gabriel a tocasse. Ele piscou duas vezes imaginando ter tido uma alucinação, embora tivesse certeza do que havia presenciado. - Como você fez isso? – Perguntou Nicolas, assustado. - O que? – Respondeu Gabriel, apreensivo, imaginando se o amigo havia realmente testemunhado o que acontecera. - Fechar o armário sem tocá-lo. – Nicolas tropeçava nas próprias palavras, quase gaguejando. – Eu vi o que você fez Gabriel... - Isso se chama reflexo, idiota. – Respondeu Henry, caçoando de Nicolas, voltado desde o início para seu armário. – Ele apenas... -... Bati a mão na porta com força. – Disse Gabriel, ainda se recuperando daquele fenômeno inesperado, tentando se justificar em meio a tropeços. Para seu alívio, a sirene do Colégio soou, ecoando o toque de recolher e encerrando de vez aquela polêmica. – Vamos. Não quero levar bronca do nosso professor. – Gabriel entrou de imediato na sala, deixando Nicolas e Henry sozinhos no corredor. - Cara, eu juro. Eu sei o que vi. Ele sequer encostou naquela porta! – Nicolas se virou para Henry com uma expressão que variava entre o espanto e a sinceridade. – Não sei como ele fez aquilo, mas eu vi... - Esqueça isso... Você está ficando tão perturbado quanto ele. Relaxe, vamos nos divertir um pouco com essa chamada oral. – Henry chamou Nicolas para dentro da sala, dando-lhe uma tapa no ombro. Nicolas o seguiu, desnorteado. Dentro da sala, os alunos se arrumavam enquanto o professor entrou na sala com uma cara de quem gostaria de reprovar metade da turma. Aquela aula não era uma das melhores, por conta daquele truculento professor. Muito menos, uma das preferidas de Gabriel devido ao assunto estudado. O jovem de longe tinha parado para estudar – resultado daquelas últimas semanas em que tinha passado as noites em claro. - Bom dia. 35


Com um tom mais seco possível o professor cumprimentou os alunos colocando alguns livros na mesa que usava toda semana. – Como todos já estão sabendo, hoje teremos chamada oral valendo uma terceira nota a ser acrescentada nos exames da semana que vem. Vou sortear os nomes de vocês e aqueles que saírem terão o prazer de responder às minhas perguntas. Àquela altura a sala estava dividida entre a apreensão de alguns alunos por não terem estudado e a expectativa de alguns, esperando que se sorteados pudessem responder às perguntas do professor. Em uma das bancas da sala, os olhos de Gabriel não focavam nenhum ponto, estando ele voltado para questões que eram mais importantes que aqueles testes. À medida que o professor chamava aleatoriamente os alunos, a Mente de Gabriel seguia um fluxo de ideias que o atormentavam sobre suas recémdescobertas capacidades. Da mesma forma, ele refletia sobre aquele mundo desconhecido que em breve ele iria visitar. Aos poucos, a imaginação do jovem modelava um novo universo a sua frente. Um universo iluminado pela razão em que os homens descobriam os milagres que eram capazes de realizar. Um universo cuja própria concepção por si só já era sublime. Gabriel imaginava como seria aquele planeta descrito por Marishi em seus encontros. Conseguia enxergar uma pluralidade de mundos que formavam um único sistema. Unido. Coeso. Compreendia cada vez mais a grandiosidade do Universo. Era muito egoísmo da humanidade conceber que apenas em um único planeta – um dentre os bilhões, trilhões, ou mais orbes que habitavam os sistemas – pudesse existir vida inteligente. Aquela viagem interior pela evolução do Cosmos desligou Gabriel da realidade que o cercava, até que ele foi sugado pela mesma, como se sua Mente estivesse entrado em um buraco negro. A voz que entrava pelos seus ouvidos fez seus sentidos voltarem à atenção para uma sombra à sua frente.

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O professor, que já chamara o nome de Gabriel pela quarta vez, finalmente conseguiu que o aluno distraído lhe desse atenção. - Senhor Cameron, acho que você não está muito interessado em participar da chamada. – O professor encarou o aluno com um ar de superioridade, já pensando nas perguntas que faria àquele jovem que acabara de despertar de um verdadeiro transe de desatenção. - Senhor Milles, me perdoe. Eu não dormi direito e... – Agora consciente de onde estava, Gabriel tentava se justificar. Entretanto, o professor parecia determinado em estragar o dia do garoto. - Não tem problema. Já que o senhor passou a noite toda estudando para o meu teste, então deve estar pronto pra responder minhas perguntas, não é mesmo? – Inquiriu o professor, ironicamente. - Eu... Não acho que esteja preparado o suficiente... - Ora, não seja modesto... Muito bem, se você estudou, e eu sei que estudou, então não há nada a temer. – Mas Gabriel temia – e como temia – o que estava por vir. Aquela sensação de ansiedade desnorteava qualquer raciocínio que aquele pobre jovem poderia formular. E pior, seu medo de errar era tanto que mal era capaz pronunciar uma palavra. Não que ele não gostasse de falar em público, mas naquela situação, ele perdera todo o controle sobre seus sentidos, criando uma verdadeira confusão de pensamentos dentro de si. - Me responda: Quais são as funções do Departamento de Defesa dos Estados Unidos? - Mas senhor... Eu não estudei... - Estou esperando Cameron. E vocês nem pensem em ajudá-lo. Estou de olho nos senhores. – Embora estivesse cercado dos seus colegas que via todo dia, Gabriel se sentia a pessoa mais sozinha, mais isolada, mais impotente diante daquele desafio lançado contra sua vontade. Ficou imaginando que se não era capaz de responder uma simples pergunta, como seria capaz de desenvolver as capacidades descritas por Marishi?

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Àquela altura Gabriel estava encarando o professor como se o mesmo estivesse prestes a atacá-lo com várias perguntas que o matariam de vergonha caso não soubesse respondê-las. Tomado por uma lógica tão simples, compreendeu que desde que se encontrara com o Sacerdote, ele já havia começado seu treinamento para desenvolver habilidades que até aquele momento não imaginava sequer existirem. E utilizando-se dos seus instintos, assim como um animal encurralado, ele ousou tentar o que nunca havia passado pela sua cabeça. Por um breve minuto, Gabriel fechou os olhos como quem queria se concentrar. Novamente deixando para trás o mundo que o cercava, dessa vez não se entregou aos milhares de pensamentos que o perturbavam, mas esvaziou-se de todos eles. Da mesma forma como fizera na noite anterior com Marishi, ele penetrou na Mente do professor. Repentinamente, tudo se tornara sem luz, sem som, e sem nada que os sentidos de Gabriel pudessem apurar. O mundo ao seu redor se transformou na mais bela imagem que jamais vira em sua vida. Embora estivesse de olhos fechados, Gabriel enxergava tudo ao seu redor como estava acontecendo. As coloridas Vohans dos presentes iluminavam de forma tênue aqueles corpos que se movimentavam em seus lugares, dando a Gabriel um show de luzes como nunca vira em sua vida. Da mesma forma, ouvia o emaranhado de pensamentos que tomava conta do recinto. Um misto de apreensão, piadas sobre sua demora em responder, incentivos, e até pensamentos distantes daquela realidade penetrava a Mente de Gabriel, embora apenas quatro alunos estivessem conversando baixinho naquela sala aonde reinava o silêncio. Focando na Mente do professor, Gabriel enfim logrou o que desejava. Em meio a um emaranhado de pensamentos que variavam entre a impaciência para que o aluno respondesse e uma breve recapitulação dos tópicos daquele assunto, eis que a resposta escapou da forma mais inesperada possível. - O Departamento de Defesa é um órgão responsável pela coordenação e supervisão de todas as agências e funções do Governo envolvidas com a

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segurança nacional e com as Forças Armadas. – Respondeu Gabriel, sem titubear. - Impressionante, Cameron. Pelo visto você estudou bem. Agora... Responda-me, quais são as agências do governo vinculadas a ele? – Aos poucos tudo ficava mais prático para o jovem que compreendia o que agora ele era capaz de fazer, embora, estivesse se esforçando para não responder mentalmente.Para evitar em uma perigosa situação, falava consigo mesmo em voz baixa. - Quais as agências vinculadas? Que agências são essas professor? – A sala soltou um riso coletivo ante o tom irônico de Gabriel. - Não brinque comigo Cameron. Apenas responda à minha pergunta. - Desculpe senhor, pensei alto demais. – Aquele método de decorar era de fato maçante, e não estimulava em nada aos alunos estudarem. Mas utilizando-se dessa estratégia, Gabriel poderia se livrar daquele inútil exame. Assim, ele fez o professor automaticamente pensar na resposta, e pela segunda vez esta lhe foi entregue de bandeja em suas mãos. - As várias agências do país trabalham em conjunto com o Departamento de Defesa, ajudando-o nas suas operações. Dentre elas se destacam a Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas, conhecida como DARPA, a Agência de Espionagem de Defesa, também chamada de DIA, a Agência Nacional de Espionagem Geoespacial ou NGA, e a mais conhecida delas, a Agência Nacional de Segurança, a NSA. - Parabéns senhor Cameron. – Disse o professor, arqueando as sobrancelhas, admirado com o aluno que aparentemente nada sabia. - Você está correto. A sala aplaudiu o aluno em peso, como se o garoto tivesse feito a última cesta nos segundos finais, ganhando o jogo. Porém, toda aquela euforia começou a afetar a Mente de Gabriel. Eram ideias demais, pensamentos demais, que misturados aos gritos e aplausos, começavam a fazer uma confusão dentro da sua Mente. Uma forte dor de cabeça crescia à medida que ele permanecia na sala. Não aguentando mais suportar aquela tortura, Gabriel se levantou de sua banca, tentando disfarçar sua angústia enquanto passava pelos seus 39


colegas. Eles estranharam aquela atitude do jovem que saia da sala em passos cada vez mais rápidos. Notando que Gabriel não estava bem, Henry e Nicolas se levantaram prontos para irem atrás de seu amigo. Entretanto, uma esguia figura se pôs diante deles, barrando seu avanço. - Aonde pensam que vão? A chamada ainda não acabou. – O professor prontamente encarou os dois garotos que rumavam para a porta da sala. - Vamos atrás de Gabriel. Ele não parece bem. – Henry respondeu com firmeza, determinado a enfrentar o tão detestado professor. - O senhor Cameron já cumpriu sua obrigação. Se ele está sentindo alguma coisa ele sabe muito bem onde fica a enfermaria. - Mas senhor... – Nicolas se intrometeu tentando justificar o amigo. - Não vou repetir senhores. Se vocês não retornarem aos seus lugares vou chamá-los para responderem às minhas perguntas agora mesmo. – Com tamanha autoridade, o professor silenciou os dois alunos que vagarosamente voltaram às suas bancas. Enquanto

que

os

olhos

de

Henry

queimavam

de

raiva

pela

intransigência do seu professor, o semblante de Nicolas demonstrava sua preocupação. - Alguma coisa está acontecendo com ele. Temos que descobrir. – Nicolas sussurrou para o amigo, que olhava para o professor desejando que o teto da sala desabasse sobre aquela cabeça dura. - Nós iremos. Mas agora não temos escolha. Teremos que esperar o intervalo. – Henry olhava os ponteiros no relógio da parede, imaginando o que estaria se passando na cabeça de Gabriel. Adentrando nos longos corredores do colégio, Gabriel Cameron fugia daquela sinfonia macabra de pensamentos que o atormentava. Ele sabia que o único som que ressoava pelo ambiente era de seus tênis tocando o chão. Porém, ao passar em frente às salas - cujas portas se encontravam fechadas –, uma onda dissonante invadia sua Mente turvandolhe os sentidos.

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Cada vez mais se aproximando do seu destino, suas expectativas de encontrar o recinto vazio foram confirmadas quando ele adentrou no banheiro em que havia tido o primeiro encontro com Marishi. Dessa vez, o ambiente encontrava-se iluminado, embora a visão de Gabriel estivesse diminuindo aos poucos. Ele sentia que sua consciência estava deixando-lhe. Da mesma forma, temia que junto com ela sua vida também estivesse indo embora. Sem esperar, perdendo as forças o garoto caiu, prostrando-se no ladrilho. Por um breve momento concentrou-se para dissipar aquele ataque de pânico que distorcia seu raciocínio, direcionando aquele temor para a figura que ultimamente vinha ajudando-o a descobrir quem ele realmente era. Exausto, fechou seus olhos procurando um pouco de alívio. O ambiente perdeu toda a sua claridade. Não havia mais nada além da mais plena escuridão. De repente, o que antes se tornara escuro começou a clarear da mesma maneira como Gabriel já havia experimentado outras vezes. Sem precisar abrir os olhos, ele sentia a tão conhecida figura diante dele através do contorno de sua esverdeada Vohan. Mais uma vez, em pé a sua frente, Marishi fitava aquele jovem através da serenidade do seu semblante. - As trevas por si só já deixam o homem na escuridão, mas a luz em excesso o cega do mesmo jeito. – Disse Marishi, estendendo a mão para ajudar o pobre garoto a levantar-se. - O que está acontecendo? – Gabriel recobrava os sentidos enquanto se perguntava o que houve com ele. - Você não está preparado para utilizar certas capacidades. Sua Mente não está acostumada com tamanha variação de energia. Você deve entender que ela é um ímã. Você a abre para atrair certo objeto. Uma vez alcançado, se não inverte a polaridade desse ímã, você continuará a atrair outros objetos que estão perto de você. - Eu não entendo... - Você libertou sua capacidade de acessar a Mente daqueles que procura, mas não consegue bloquear a sua aos pensamentos que o circundam. Embora ninguém ao seu redor tenha noção disso, existem outras pessoas que 41


o tem. E se quiserem, elas poderão controlar sua Mente. Torturá-la. E se até mesmo quiserem, destruí-la. – Aquelas palavras deixaram Gabriel ainda mais nervoso. – Atualmente você é igual a um guerreiro que abre sua guarda para atacar um inimigo, mas ao atacá-lo deixa seu corpo sem defesa. Você precisa saber utilizar suas habilidades ao mesmo tempo em que sua Mente está protegida, senão se tornará um alvo fácil. - De quem? – Perguntou o garoto, ainda ofegante. - Nós temos muitos inimigos, Gabriel. E eles não precisam estar entre nós. Nem presentes no mundo material. Você ainda aprenderá muitas coisas, mas tudo deverá ser feito no seu devido tempo, senão sua Mente poderá receber uma sobrecarga, e isto acabará destruindo você. Quando você estuda demais não sente dores de cabeça? - Sim. Às vezes. - É o mesmo princípio do que aconteceu agora. Tudo neste Universo tem o seu limite. E da mesma forma você é consequência dos limites em que se permitiu evoluir. As potências da sua Mente são infinitas, mas todo o resto do seu corpo está sujeito às alterações dentro dos seus limites físicos e biológicos. Não tente ir além se não estiver preparado, senão sua Mente sofrerá as consequências da fraqueza do seu corpo. - E o que eu posso fazer então? - Você vai esperar até que eu volte. Enquanto isso, não tente utilizar suas habilidades novamente, ainda mais em público. Você deu sorte de não interagir com as emanações das Mentes dos seus colegas. O resultado poderia ser inimaginável. Você ainda não conhece suas habilidades, e muito menos eu. Por isso vamos aquietar sua Mente até que estejamos prontos para levá-lo a Nemashi. Lá, você receberá o devido treinamento para dominar suas capacidades, e principalmente, saber como conhecer a si mesmo. - Em quanto tempo você voltará? - Quando tudo estiver preparado. Quando você tiver maturidade o suficiente para compreender que nada neste mundo é um brinquedo, nem mesmo sua própria Mente. Marishi aproximou-se de Gabriel.

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- Ajoelhe-se. – Obedecendo à ordem, Gabriel ficou de joelhos diante do Sacerdote que impôs as mãos sobre sua cabeça. Neste momento a esverdeada Vohan de Marishi tornou-se mais uma vez visível para o garoto que apenas observava enquanto uma fraca luminescência envolvia seu corpo. - O que está fazendo? – Perguntou o jovem, confuso. - Por segurança estou bloqueando sua Mente contra qualquer ação que libere suas habilidades, seja por sua vontade ou de outra pessoa. Não tente contra isto. Você só perderá suas energias, e o mesmo acontecerá se alguém tentar se conectar a ela. Em breve eu e um grupo de Sacerdotes voltaremos para buscá-lo para iniciar seu treinamento no Santuário de Nemashi. Marishi retirou as mãos da cabeça de Gabriel. Aos poucos sua Vohan assim como a do Sacerdote - se tornou invisível aos seus olhos. – Agora preciso ir... Porém, mais uma vez lhe peço, não fale de nada disso com ninguém. Da mesma forma como você, o seu planeta ainda não está preparado para tamanho conhecimento. Aguarde o meu retorno. – Gabriel esperava enxergar a Vohan luminosa de Marishi iluminar seu corpo até fazêlo desaparecer, mas desta vez não aconteceu. Com um breve piscar de olhos, o Sacerdote não estava mais ali. Marishi havia retornado a Nemashi. Mais uma vez Gabriel voltava a ficar impressionado com a real dinâmica da matéria. Saindo do banheiro, Gabriel andava pelos corredores do Colégio enquanto pensava como seria poder se deslocar para onde quisesse. Tomado por seus pensamentos, ele não percebeu seus dois amigos vindo em sua direção do outro lado do corredor. Antes que pudesse dobrar em uma das alas, um deles lhe chamou pelo nome. - Finalmente te encontramos. – Disse Henry, estendendo a mão a Gabriel, detendo-o em sua fuga. - Precisamos falar com você. O que está acontecendo? – Indagou Nicolas – Nos últimos dias você anda muito estranho, mas hoje isso passou dos limites! Você saiu da sala como se houvessem jogado uma bomba lá dentro. Estava inquieto... atordoado. Entendo que a pressão do senhor

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Milles nos faz enlouquecer, mas aquilo não era por conta do exame. Eu não sei o que está se passando, mas você está mudado, Gabriel. - Sim, eu tenho que concordar com Nicolas. Parece que você ultimamente está... nos evitando, tentando nos esconder algo. - Eu não estou escondendo nada de vocês. Eu só estou me estressando com esse monte de relatórios, chamadas, aulas e provas que estão chegando... - Sim, mas não é só disso que estou falando. – Nicolas interrompeu, tentando arrancar alguma verdade do amigo. – Eu vi o que aconteceu. Você fechou o armário sem tocar nele. Também sei que você não estudou nada para essa chamada, e mesmo assim respondeu a todas as perguntas do senhor Milles. A única coisa que não sei é por qual razão você saiu daquele jeito. Essa semana você vem agindo muito diferente. Algo está acontecendo, mas não quer nos contar. - Cara, somos seus amigos. Em todos esses anos eu e o Nicolas contávamos tudo o que acontecia conosco. O que está havendo? Não fizemos nada para você ficar nos evitando desse jeito. - Eu só quero que vocês entendam que eu preciso de um tempo sozinho. Preciso colocar minha cabeça no lugar. Preciso focar nessas provas. E preciso descansar dessa desgastante rotina. - Mas sempre estudamos juntos perto das provas. – Henry falou incomodado, uma vez que aquilo era um ritual seguido à risca pelos três amigos. - É, mas dessa vez será diferente. Me desculpem. - Gabriel, só queremos ajudá-lo. – Nicolas tentou fazer com que o amigo voltasse atrás. - Desculpe Nicolas, mas por enquanto só eu posso me ajudar. Tenho que ir para casa agora... Depois falo com vocês. – Virando as costas para os amigos, Gabriel deixou-os no corredor, enquanto caminhava rumo à saída. Um dos amigos se pôs a segui-lo, mas logo sentiu uma mão sobre seu ombro. - Esquece Nicolas. – Disse Henry, detendo-o. – Talvez ele só precise de um tempo sozinho. 44


- Não... Não. – Disse o amigo se esquivando. – Eu sei de alguém que pode ajudá-lo e nos ajudar a descobrir o que está acontecendo. – Nicolas sacou o celular do bolso enquanto avistava o amigo sair do prédio.

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DOCUMENTO 005 PLANEJANDO O CAMINHO Planeta Nemashi, Laboratório Central do Santuário Harashi. De volta ao Santuário, Marishi agora estava diante de uma tela luminosa exibindo caracteres numéricos e imagens de estruturas moleculares, quando um robô azul-prateado flutuou em direção ao Sacerdote. - A análise molecular está pronta, senhor. – Falou o pequeno droide com uma voz mecânica. - Obrigado. Envie os dados para o meu apartamento para eu acessálos quando chegar. – O Sacerdote deu a ordem ao droide que respondeu com precisão militar. Erguendo o braço, e afastando o seu sobretudo, o Sacerdote revelou seu alvo punho, no qual cingia uma fina pulseira branca. Acionando o instrumento, ele projetou uma imagem tridimensional sobre seu punho, moldando a forma de um ser que trajava um longo manto branco. – As análises estão prontas. Estou enviando-as para os meus aposentos. Quero lhe contar algumas coisas antes de repassarmos as informações ao Quórum dos Doze. - Sim. Encontre-me na colunata do Santuário. De lá adiantamos nossa conversa. – O misterioso ser balançou com a cabeça concordando. A imagem holográfica desapareceu da frente de Marishi, que desativou o aparelho, prontamente tomando o caminho da saída do grande laboratório. À medida que cruzava o recinto, todo aquele arsenal tecnológico surgia na frente dele revelando inúmeras máquinas que a ciência da Terra nem sequer conceberia serem possíveis. Guardada

em

câmaras

isoladas

por

resistentes

vidros,

vários

androides e robôs estudavam e manuseavam toda aquela tecnologia que resultava em instrumentos, circuitos e apetrechos, onde seus dados eram exibidos nas imensas telas de luz que se projetavam no ar.

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Enquanto caminhava para a saída, Marishi passou por uma passarela translúcida, observando a movimentação de material em um dos hangares do Santuário, localizado em um amplo galpão abaixo do laboratório. Ao chegar ao final do corredor, passou por uma sala circular, entrando em um dos transportadores ali instalados, espécies de elevadores que funcionavam de um modo bem peculiar, bem distinto de seu mundo. - Halsta Branah. – Nave da Sabedoria. – Ordenou à máquina em que se encontrava. Imediatamente aquele dispositivo partiu, mas em vez de subir, ele subitamente desapareceu junto com Marishi para se materializar novamente dezenas de patamares acima. Após surgir em seu destino, um aviso sonoro anunciou o patamar em que se encontrava, confirmando o local em que Marishi pretendia chegar. Saindo dali, o Sacerdote adentrou em um longo corredor adornado de altas colunas circulares. O local mais parecia uma imensa catedral iluminada, com o piso adornado por um longo tapete decorado por mandalas circulares. Enquanto caminhava pela nave, alguns Sacerdotes passavam pelo ilustre membro da Ordem cumprimentando-o. Seguindo o caminho das colunas ao fundo de uma nave paralela a que se encontrava, Marishi contemplava as inúmeras estátuas de antigos membros da Ordem que contribuíram de alguma forma para ela. Olhando seu lado direito, Marishi avistou a imponente escultura do seu falecido pai, Mazha Helamen. Um dos mais importantes Sumos-Sacerdotes na recente história da Ordem Harashi, tendo sido membro do Quórum dos Doze, o conselho supremo da Ordem. Olhando para a longa lança dourada com a ponta no formato de uma chama, que a estátua trazia na mão esquerda, em seguida fitou a mão oposta que segurava um globo na posição horizontal. O rosto estava de olhos fechados, da mesma maneira como Marishi encontrara seu pai pela última vez, morto durante uma batalha.11

11

A Batalha de Jaya’akara foi um terrível conflito iniciado no distante planeta Kale’endru, controlado na época pelo clã Syhrins-Akhan, autointitulado os Libertadores das

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Aquela amarga escultura era uma ironia do simbolismo, pois representava o equilíbrio que todo guerreiro devia ter em um combate, utilizando-se da força e do conhecimento. Entretanto, seu pai fora derrotado por uma triste falta de concentração durante o derradeiro conflito. Deixando para trás a lembrança do seu pai, olhou a encruzilhada à sua frente. Aquele longo corredor terminava em um espaço circular, que exibia uma imensa estrutura cristalizada que chamava a atenção de todos os que passavam por ali. Era o cume de uma montanha de cristal a qual se assentava o grande Santuário.12 A Ciência dos Harashis fazia com que aquela obra da natureza fosse reverenciada como uma fonte de energia vital. Segundo seus estudos, aquele cristal potencializava as capacidades de todos os que se encontravam presentes no local. Por isso, o solo daquele lugar era considerado sagrado para a Ordem. Atravessando ao redor da grande pedra, Marishi caminhou passando por três das sete naves que compunham o prédio central do Santuário, a imponente Pirâmide de sete lados. Seguindo o caminho por diversas vezes percorrido, ele se aproximou do ser com quem havia se comunicado momentos antes. Observando o movimento do local, um dos SumosSacerdotes da Ordem virou-se para cumprimentar Marishi.

Máquinas. Esse clã, formado por piratas e seres sensitivos, iniciou uma revolução mal sucedida, tentando controlar as centrais de produção e de energia do planeta, fazendo a população refém em suas cidades. Como força auxiliar para reestabelecer a paz local, foi enviado um destacamento da Ordem Harashi, cujo chefe da operação era o Sumo Sacerdote Mazha Helamen. Infelizmente, em meio ao conflito, ele acabou sendo morto em uma covarde emboscada promovida pelos sanguinários piratas. 12

O Santuário era uma das mais antigas e extensas construções de Nemashi. Assentado sobre a Grande Rocha, sua base cristalina, o Santuário da Ordem Harashi era o resquício da antiga Academia da Luz, o quartel general da Ordem em seus primeiros ciclos. A Grande Rocha não somente possuía um forte poder curativo, como também alimentava o gerador do Domo Invisível, o campo magnético que protegia o Santuário contra eventuais ataques de inimigos da Ordem.

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A figura era imponente. Seu longo manto branco realçava sua altura, superior a Marishi, assim como a cor escura de sua pele. Seus grandes olhos azuis formavam um contraste que ao mesmo tempo transmitiam a sensação de segurança e também intimidavam seus oponentes. Seu nome era Haron Voorih13, oriundo do planeta Mynoriah, uma sociedade autônoma, que por questões históricas e políticas, há séculos vivia separada dos demais planetas que faziam parte da Constelação, a antiga aliança política formada entre os diversos planetas do Sistema de Ashunyah. Esse debate diplomático já havia tomado muitas horas de diálogo entre os dois Sacerdotes que voltavam a se encontrar. Mas naquele momento, o assunto era outro. - Ordenei ao Droide-Chefe do Laboratório que enviasse as pesquisas para o meu apartamento. Lá discutiremos como vamos organizar esta operação. – Marishi falava com Haron enquanto eles caminhavam rumo a uma das naves do ambiente. - Não vamos precisar de muitos esforços para executá-la. O que me preocupa é a adaptação do garoto ao ambiente. - Sim, mas isso não será o maior dos problemas. Temos outros, você sabe. – Marishi balançou a cabeça, concordando com Haron. - Creio que você é quem coordenará os próximos passos quando terminarmos esse trabalho, estou certo? – Indagou o amigo. - Sim... Eu tomei para mim a missão de ensinar o garoto. Quero que ele se torne um grande Sacerdote. – Respondeu Marishi. - Precisamos agir com prudência. Sabemos que tudo na natureza tem seu tempo. Não podemos apressar a evolução. Ela segue seu próprio fluxo. - Não estou fazendo isso. Mas creio que não podemos esperar mais. Já tendo cruzado boa parte da nave Marishi notou que tinha se concentrado tanto na conversa que não prestara atenção ao objeto que Haron vinha segurando desde que se encontraram.

13

Filho do Sacerdote Kalehzan Voorih e da também Sacerdotisa Londah Voorih.

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- Você veio da Biblioteca, não é? E pegou um Tahamalen.14 – Indagou, enquanto olhava para o reluzente objeto na mão do Sacerdote. - Sim. Temos algo a mais para discutirmos em seu apartamento. - Mas este é da seção particular dos Sumo-Sacerdotes. Marishi logo notara a cor da sua capa de metal, dourada, diferente dos demais encontrados nos Arquivos do Santuário. - Sobre o que ele trata? – Perguntou. - Da razão pela qual perdemos vários registros da Biblioteca naquele fatídico dia. – Haron respondeu, para o espanto de Marishi.

14

Tahamalen – ou Vaso de Escritos –, era uma estrutura cristalina de tonalidade azulada, variante do mesmo tipo de cristal sagrado que se encontrava abaixo da nave central do Santuário. Ele era protegido por uma estrutura de metal que seguia o mesmo formato, servindo de condutor elétrico para sua instalação e eventual manuseio em nossas mesas de leitura. Por meio de tecnologia magnética, uma gama quase infinita de conteúdos era gravada em suas minúsculas estruturas: Textos, hologramas, e até mensagens de voz.

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DOCUMENTO 006 CRUZANDO OS DESTINOS Washington, D.C., William S. Sadler High School. Atravessando um dos corredores abertos, do lado de fora da escola, Gabriel quase galopava na tentativa de se afastar de seus amigos. O que aconteceu naquele dia tinha sido demais para ele. Estava exausto, confuso e apreensivo pelo que ainda estaria por acontecer. As

promessas

do

Sacerdote

ainda

ecoavam

em

sua

cabeça,

imaginando ele, que em breve ele iria para Nemashi iniciar seu treinamento para se tornar membro da Ordem. Embora o Mestre Harashi houvesse exaustivamente narrado sobre boa parte da história da Ordem e de sua importância para o mundo de Gabriel, ele sabia que havia muitas coisas que Marishi ainda não lhe contara. A curiosidade e a expectativa tomavam conta da Mente do jovem, que imaginava o que lhe esperava dentro daquele templo que ele vira em suas primeiras meditações. Perdido em meio aos seus pensamentos, Gabriel não notara que alguém vinha em sua direção. Quando voltou à realidade, percebeu que era tarde demais para sair dali sem que aquela pessoa o avistasse. Mesmo receoso, resolveu continuar seu caminho até ficar cara a cara com Sasha. - Sua aula já acabou? – Perguntou, fingindo não saber de nada, embora Nicolas já tivesse colocado a garota par de tudo o que ele presenciara. - Sim. Fiz a chamada do senhor Milles e ele me dispensou. Já estou indo pra casa. – Gabriel tentava disfarçar seus reais motivos de querer fugir de sua escola, embora visse nos olhos de Sasha que ela sabia de algo a mais. - Você parece apreensivo... – Enquanto falava com Gabriel ela notava o tique do garoto que batia o pé no chão em um ritmo cada vez mais rápido. - O teste me deixou desgastado... - Não estou falando disso. Nicolas me pediu pra falar contigo. Disse que você tinha se afastado dele e de Henry, que vinha agindo estranho... – 51


Aquilo lhe tomou de surpresa, fazendo Gabriel se sentir como um rato encurralado por um gato contra a parede. - Ele me pediu para fazer isso porque ele está preocupado com você... – A garota continuou. – Se você não estiver à vontade de conversar com eles, pode desabafar comigo. Àquela altura, Gabriel temia sobre o que Nicolas teria contado para Sasha, embora o semblante da garota apenas refletisse a sinceridade de suas palavras, de que nada sabia sobre o que de fato estava acontecendo. Antes, querendo desaparecer daqueles corredores, Gabriel agora sentia uma vontade inexplicável de querer continuar naquele lugar. Queria poder congelar aquela sensação de segurança que Sasha lhe transmitia. Tomado por esse sentimento, ele agiu por impulso abraçando a garota, que travou, sem reação. Sem saber o que falar, os dois permaneceram estáticos na frente um ao outro, embalados por aquele reconfortante abraço. E eis que Gabriel finalmente interrompeu aquele silêncio. - Prometo que te conto o que está havendo, mas preciso de tempo. Você ainda não está pronta para ouvir o que eu tenho para lhe diz... – Disse, segurando as mãos da garota. A garota bruscamente soltou-se dele, com uma cara de assombro. - Você está saindo com outra... – Disse Sasha, tremendo de raiva enquanto suas bochechas coravam. - Não! Não é isso... – Gabriel avançou sobre a menina, tentando se explicar, mas obviamente, não podia lhe contar a verdade. De fato ele estava tendo encontros, mas encontros sobrenaturais. - Então o que é? Diga logo, de uma vez por todas! – A garota se descontrolou, partindo para dele, que segurou seus braços com firmeza. - Não posso... Mas preciso que confie em mim. Não diz respeito nem a mim nem a você. É algo que me transformou... – Disse Gabriel tentando encontrar as palavras. - E quando você poderá me contar? Gabriel buscava alternativas, e ao mesmo tempo temia que estivesse sendo observado por Marishi, ou alguém desconhecido. Buscando coragem, finalmente abriu o seu coração com uma vontade incontrolável. 52


- Hoje à noite... Ligue-me hoje à noite e conversaremos. – Disse ele, um pouco mais aliviado. - E se você não quiser falar comigo? Ultimamente a única coisa que faz é me evitar. – Disse a garota, mais irritada do que antes. - Eu sei, mas vou lhe atender. No dia em que eu não fizer mais isso, é porque não me importarei mais com você. Os dois se fitavam como há muito tempo não faziam. Suas mãos que antes seguravam os braços da garota agora escorregaram até as dela. Aquela atração

era

evidente

e

indiscutivelmente

irresistível.

Eles

somente

conseguiam se olhar em um silêncio que traduzia as suas mais íntimas vontades naquele momento. Como que movido por uma força magnética, seus corpos se aproximaram aos poucos, mesmo que ainda resistissem àquela confortável tentação. Entretanto, como se tivesse sido acertado por um raio, Gabriel subitamente se afastou de Sasha, enquanto soltava um longo suspiro. - Não... Não posso. – Disse Gabriel, encarando a garota, que somente o observava com estranheza. - Eu não entendo... – Disse a garota enquanto suas mãos se desprendiam, rompendo a breve sintonia que havia se estabelecido entre os dois. Gabriel também não compreendia aquela atitude inesperada. Mas seu orgulho falava mais alto naquele momento. - Preciso ir. Já está tarde... – Falou Gabriel, institivamente, voltando a erguer sua cabeça fitando os olhos de Sasha. A garota baixou o olhar, evidenciando sua desilusão. Com muito esforço, ela conseguiu voltar a falar. - Você pode ao menos... me contar por que está agindo dessa maneira? – Disse a garota, tentando esconder sua cara de choro. - Eu não sei... – Disse ele, se sentindo estranho. De fato ele não sabia explicar porque recuara, quando o que mais queria era dar um beijo de despedida na garota. – Mas prometo lhe dar uma resposta quando me ligar. - Eu ligarei. Pode ter certeza disso. – Disse Sasha, passando a mão no seu rosto enquanto tirava o cabelo que se misturava a algumas lágrimas que escorriam dos seus trêmulos olhos. – Se continuarmos assim, um dia vamos

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acabar nos destruindo... Resta saber quem vai acabar primeiro um com o outro. - Eu sei... – Foram as únicas palavras que Gabriel conseguiu dizer. Como se tivessem repulsado um ao outros, os dois se afastaram. Gabriel já começava a caminhar de volta para casa quando a garota mais uma vez se voltou para ele. - Se cuida, ok? – A garota respondeu, se despedindo. Gabriel acenou com a cabeça, soltando um sorriso estremecido. Sasha olhou para ele uma última vez, antes de tomar seu caminho para casa. Solitária. Como ela estava se sentindo há um bom tempo.

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DOCUMENTO 007 A VIDA É UM MERO RELÓGIO Em um dos apartamentos do Santuário, Marishi e Haron se sentavam ao redor de uma mesa circular que exibia uma larga imagem holográfica emitida pelo Tahamalen. Nela, várias figuras formadas por riscos gravados numa pedra pairavam no ar, revelando símbolos que se assemelhavam à forma humana, assim como outros caracteres desconhecidos. - Nossos historiadores conseguiram concluir seus estudos sobre as civilizações indígenas do Continente Americano de Yuransha. – Disse Haron, apresentando o relatório final daquele estudo a Marishi. - Achei que não seria possível. Suas obras de arte, embora primitivas, possuem um intenso simbolismo. Como vocês conseguiram entender seus significados? – Marishi perguntou, ainda não compreendendo como os Sacerdotes conseguiram desvendar tal enigma. - Pelos acontecimentos que definiram suas histórias. Vê estes traçados? – O alto Sacerdote apontou para alguns riscos que lembravam formas humanas. Do lado deles, pequenos traços rústicos intercortados desenhavam estranhas imagens, porém, conhecidas do idioma dos dois Harashis. - Parecem com nossos antigos ideogramas. – Disse Marishi, sem demonstrar nenhuma surpresa. Haron assentiu com a cabeça. - São do período posterior às nossas primeiras visitas. São dos povos indígenas da Grande Bacia do Nevada, especialmente do chamado Povo Ute.15 – Concluiu Haron.

15

Segundo os registros do Santuário, estes povos, surgiram há milhares de ciclos, tendo sua cultura primitiva se desenvolvido através das diversas tribos que se espalhavam pela região. Uma dessas tribos remanescentes era o Povo Ute. Os Ute foram um povo indígena – descente dos primeiros nativos norte-americanos – que viviam isolados em um conglomerado de antigas tribos que ocupavam o meio oeste, indo até o Estado do Colorado. Do nome Ute derivava a localidade que eles povoavam, um dos mais importantes estados do interior dos Estados Unidos, o Estado de Utah. Nele se

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- Nessa época – Continuou o Sacerdote. – seu idioma tornou-se mais complexo, e seus registros foram influenciados por nossas visitas, inclusive a escrita, que, como você percebe, é similar à nossa. – Disse Haron, tocando as imagens no espaço vazio. – Mas quero que você preste atenção nisso aqui. O Sacerdote fez um movimento com a mão, fazendo surgir outra caverna em que se encontravam imagens parecidas. Porém, aqueles riscos eram bem menos definidos, quase apagados. - O que eles têm em especial? Dizem alguma coisa? – Perguntou Marishi. - Na verdade narram uma história. Uma história que nossa Ordem conhece muito bem. - Você quer dizer que uma narrativa de nossa cultura foi contada a essas tribos primitivas? - Marishi, você ainda não entendeu. As primeiras imagens que lhe mostrei são posteriores às nossas visitas a esta civilização. Já as últimas, mostram um registro anterior à nossa chegada nesta região do planeta. - Aonde você quer chegar com isso? – Perguntou Marishi, confuso. - Estas histórias não foram repassadas a esses povos. Elas estavam lá antes mesmo de nossos enviados chegarem ao planeta. Não sabemos como, mas estes povos de algum modo previram algo que iria acontecer entre nós. Uma profecia... Ao ouvir aquelas palavras o sereno rosto de Marishi deu lugar a uma visível incredulidade. Haron voltou a insistir. - Eu sei que é difícil você aceitar isso, mas não fomos nós que repassamos tal história a estes povos, foram eles que nos revelaram uma profecia que nós transformamos em uma lenda. - Então eles guardam uma profecia... sobre nós?16

encontrava parte dessa cadeia de montanhas, cujas inscrições e registros no idioma dos Ute foram marcados nas pedras da localidade pelos seus antepassados. 16

Neste momento, sinto a necessidade intervir mais uma vez, para que se esclareçam os acontecimentos aqui expostos. Essa Profecia, de fato foi real, não uma mera lenda ou uma concepção criada pelos antigos Harashis. Nos ciclos seguintes, tanto Marishi quanto Haron tentaram interpretá-la, mas falharam em compreender seu real conteúdo. Os

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- Temo que não somente eles, mas outras civilizações compartilhem desse mesmo conhecimento. Afinal, eles não foram os únicos povos que visitamos antigamente, não é? Aquelas

palavras

fizeram

Marishi

atinar

para

um

importante

ensinamento da Ordem Harashi. - De fato... O conhecimento é como a água que podemos usar para saciar nossa sede, mas nunca poderemos segurá-la com as mãos... Devemos levar nossas bocas direto à Fonte. Tentar retê-la, como sempre será inútil... – Disse o Sacerdote, externando seu pensamento. - Exato, meu amigo. Além do mais, não se esqueça de que ainda estamos do lado de cá. E, principalmente, sua Fonte se encontra bem distante de nós. – Disse o mynohriano. – Se não conhecemos a água, quem dirá a Fonte. Ainda temos muito o quê aprender aqui. - Mesmo assim Haron, é intrigante... Embora nós estivéssemos ali para orientá-los, eram eles quem nos ajudavam a iluminar ainda mais nosso sólido conhecimento. Seja na antiguidade, quando eles ainda engatinhavam rumo à sua evolução, ou até mesmo nos dias atuais. Sempre fomos reféns do auxílio dos povos desse planeta. - Eu compreendo aonde você quer chegar Marishi. A vinda do garoto vai nos ajudar a compreender melhor a cultura do seu mundo. - Exato... E mais do que isso. Ele terá uma importância fundamental para resgatarmos nosso registro perdido naquele planeta. Seu mundo está à beira de um colapso político, e temo que a corrupção entre seus líderes os levem a outro conflito em escala mundial. – Disse Marishi, mudando de assunto. Enquanto passava a mão na careca, o Sacerdote refletia sobre a gravidade do que havia falado. – É isso o que eu temo. Eles sabem o que aconteceu em Roswell. – Haron interrompeu. – Os Guardiões resgataram nossos registros, mas não os salvaram das armadilhas do sincronismo temporal. Por um bom tempo eles Seres Superiores de alguma maneira nos entregaram o aviso por meio daqueles primitivos povos. Porém, não fomos sábios o suficiente para evitar os problemas que aconteceriam em nosso futuro. Nos próximos registros, se me for permitido, revelarei qual seu real significado. Mas por hora, continuarei mantendo a linearidade da narração.

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estiveram a salvo, esperando o momento de serem revelados aos seus povos, mas como você sabe esse tempo não chegou. E com a morte inesperada do último Guardião, as traduções dos nossos registros foram perdidas, e acabaram caindo nas mãos do governo deles. Até hoje o conteúdo dos documentos é estudado por acadêmicos daquela nação, entretanto, ainda não compreendem uma linha sequer da nossa Ciência ali encerrada. – Concluiu o Sacerdote. - Não compreendem, mas temo que sejam capazes caso coloquem as mãos no Livro. – Disse Marishi. Sem esperar aquela revelação do companheiro, Haron se precipitou. - Do que você está falando? – Perguntou o Sacerdote, apreensivo. - Quando o último Guardião faleceu, as traduções originais foram recolhidas. Mas uma delas simplesmente sumiu. Uma tradução especial. - Todas as traduções eram iguais. Possuíam apenas a síntese dos nossos estudos. – Disse Haron, contestando. - Não esta. O último Guardião não somente protegeu o Livro, mas decidiu estudá-lo e tirar conclusões sobre nossos documentos ali escritos. - Marishi, ele era apenas um cientista... - Ele era um homem igual a nós, em busca do conhecimento. E temo que ele tenha descoberto algo que ainda não saibamos. - Como você sabe disso? - Antes de sua morte, meu pai nomeou o Sacerdote Shandara para investigar o paradeiro do Livro em Yuransha. Tal missão não foi registrada nos Arquivos da Ordem por razões que peço que por hora não revele ao Quórum, mas que se fizeram de suma importância para não arriscarmos a segurança sobre este mundo. - E que razões são essas? - Para evitarmos complicações com eles. Por mais que a Ordem, o Quórum, e todos nós busquemos impedir de encontrarem o Livro, eles são imprevisíveis. - Claro... – Disse o alto mynohriano, sorrindo. – Sabemos que todo sigilo é precioso, por isso devemos agir logo. Nossas Escrituras não podem ficar vagando pelo planeta. 58


- E não estão. Não sabemos como isto ocorreu,17 mas Shandara ao localizá-lo, também descobriu que recentemente a tradução foi achada e levada por uma pessoa que nunca cogitei que pudesse tê-la em mãos. - Quem Marishi? Os agentes do governo, ou... Não, Marishi... Eles?! – Haron quase saltou em cima do Sacerdote. Helamen estendeu suas mãos, pedindo calma ao amigo, que voltou a reclinar-se na poltrona. -

O Livro foi

encontrado pela mesma garota que

estávamos

monitorando há um bom tempo. – Disse o Sacerdote, rindo daquele conveniente acaso. - Sofia? – Exclamou Haron, boquiaberto. Marishi balançou a cabeça, positivamente. - Enquanto organizávamos a operação para entrarmos em contato com Gabriel ao mesmo tempo eu também estava preparando a vinda da garota. - Mas ela ainda não está pronta para iniciar seu treinamento. 17

Até aquela época de fato não era sabido, porém, com o trabalho dos nossos grupos de estudos sobre Yuransha, pudemos traçar o caminho percorrido pelo Livro dentro dos Estados Unidos da América. Temendo o que poderia se suceder à sua morte, o último Guardião sobrevivente, Jerome Hunsaker, resolveu interromper os seus estudos. Talvez, não pelo seu conteúdo, mas sim pelas assombrosas conclusões que chegara com seu discreto trabalho. Tomando uma decisão “sabiamente imprudente”, decidiu entregar o Livro a um amigo de confiança, que no presente já se encontra falecido. Este homem, por sua vez, manteve o Livro em segredo por um bom tempo, até a sua precoce morte, ocorrida em circunstâncias um tanto quanto suspeitas. Sua família, por sua vez, sem conhecer a real importância da obra confidenciada a este homem, acabou doando boa parte dos seus livros a bibliotecas e algumas livrarias de obras antigas, dentre os quais o singelo estabelecimento que Sofia Scotto iria adentrar com o desejo de adquirir um livro para sua viagem. É curioso que dentre os milhares de títulos, justamente a garota escolheria o Livro de Ormoshi em meio às diversas e empoeiradas prateleiras da loja. Sei que posso não estar sendo imparcial, mas aonde todos os elementos se encaixam de uma maneira matematicamente precisa, não há espaço para nenhum acaso. Alguns irmãos da Ordem podem discordar de mim, mas não somente creio, como também confio a sorte de tais acontecimentos à mais direta vontade dos Seres Superiores, que desejavam que tais acontecimentos se concretizassem naquele determinado momento e daquela tão improvável maneira. Mas isso é algo que não poderemos ter conhecimento, pelo menos por enquanto...

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- Não temos escolha. Ela corre perigo estando com esse livro em mãos. Talvez isto não seja uma simples coincidência. – Disse Marishi, baixando a cabeça. – Acima de tudo temos o dever de proteger não só sua integridade, mas também precisamos evitar que este livro caia em mãos erradas. - Então não podemos perder tempo Marishi. Contate o Quórum e os Sumos Sacerdotes. Se o livro foi encontrado, então a vida deles está correndo perigo, assim como toda a população de seu planeta. - Já estou concluindo os preparativos para trazer Gabriel ao Santuário. Sua iniciação agora é só uma questão de tempo. Só depois disso poderei trazer a garota para que ela também se torne uma Sacerdotisa. Assim como ele, este é o seu destino. Os dois Sacerdotes continuaram a conversar sobre mais detalhes daquela delicada missão. Enquanto que o plano se aprofundava, o sol ia desaparecendo no horizonte de Nemashi, iluminando ainda mais o apartamento onde se encontravam. E como um vento que derruba as folhas de uma árvore, o dia tornouse noite.

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DOCUMENTO 008 CONHECENDO A PRÓPRIA IGNORÂNCIA Cidade de Milão, Casa da Família Scotto. Sentada em sua cama, Sofia folheava as páginas do velho livro, se admirando ainda mais a cada linha que lia. Ela não parara de ler o Livro de Ormoshi desde que retornara à sua cidade natal. Horas se passavam, enquanto aquelas páginas pareciam sugála para dentro daquelas palavras que tanto a atraiam. Embora algumas coisas não fizessem sentido de imediato, os comentários escritos à mão – como notas de rodapé – esclareciam a respeito daquele conteúdo. E o que ela lia continuava por assombrá-la. “Assim como as vibrações magnéticas moldam o espaço e o tempo, da mesma forma o magnetismo originado nos seres pensantes molda as interações com a matéria, fusionadas através de suas Mentes. Se o princípio original da matéria é imaterial, constituído a partir da pura energia, da mesma forma, essa energia liberada a partir do pensamento é capaz de transformar a matéria ao seu redor. A vontade, originada pela dinâmica do pensamento, potencializa tal energia primária, sendo capaz de transformar a matéria segundo as sinceras vontades do ser. É um eterno movimento criativo, movimentando e organizando a matéria, como influenciando suas forças através da Mente.”18 - Isso é impossível! – Disse Sofia consigo mesma, não acreditando no que lia diante dela. Ela já havia devorado páginas afinco sobre as propriedades da matéria, sua interação com a Mente humana, e como ela era capaz de interferir no mundo em que vivia. Aquilo a havia deixado maravilhada, pois

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Passagem do Documento 17 das Escrituras do Princípio, traduzida e transcrita pelos Guardiões no Livro de Ormoshi.

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mais uma vez sua cabeça estava repleta de questionamentos e possibilidades sobre como de fato seria capaz de desenvolver tais habilidades. Ela emergia dentro dos próprios pensamentos como uma morfina que amenizava sua sede pelo conhecimento, e aquele saber transcendental a fazia entrar em um êxtase filosófico nunca antes experimentado. Aos poucos Sofia estava compreendendo o mistério encerrado naquelas páginas. Aquilo a fazia bem. Ela se sentia envolvida por aquelas palavras. Podia sentir aquele poder descrito emanar do seu corpo. Então, lhe passou pela cabeça: Por que não tentar? Embora gostasse de ler sobre o sobrenatural, ela nunca havia de fato tentado fazer o que se passava pela sua mente. Olhando fixamente para um dos livros na beira da cama, ela o fitou como se o quisesse trazê-lo até si através de sua visão. Fechando seus olhos, concentrou-se para tentar mover o livro. A cada segundo que se passava ela sentia uma onda de energia crescer dentro da sua Mente, invadindo seu corpo à medida que se concentrava mais. Ela podia jurar que estava enxergando o livro através de seus olhos fechados. Sentindo ter chegado o momento, ela descarregou toda a sua vontade naquele livro. E ao abrir os olhos, puxou o livro para perto de si mentalmente. Mas para a sua desengano, ele permaneceu inerte no mesmo lugar onde estava. Sofia não desanimou, repetindo aquele ritual inúmeras vezes, até que uma pequena dor de cabeça começou a lhe incomodar. Aquilo mais parecia uma brincadeira de uma criança que criava seu próprio mundo com amigos imaginários. Ou quem sabe, ela não estaria ainda preparada para fazer algo tão banal como movimentar um simples livro segundo a vontade de sua Mente. Sabendo que não seria fácil comprovar o que estava lendo naquela obra, ela resolveu continuar a lê-lo, na esperança que, com o devido conhecimento, ela estivesse pronta para realizar tudo aquilo que o Livro de Ormoshi lhe ensinava.

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DOCUMENTO 009 O CAMINHO ESTÁ PREPARADO Durante a noite, trancado em seu quarto, Gabriel estava esperando a ligação de Sasha. Porém, naquele momento, outro pensamento lhe preocupava. Uma semana havia se passado desde o seu último encontro com Marishi, e agora ele lhe anunciara que chegara a hora de Gabriel viajar até Nemashi. Ele estava apreensivo, imaginando como seria transportado até o quartel general Harashi. Ele divagava sobre viagens através do Universo, como seria aquele mundo novo que ele conheceria, e o que seria do seu futuro a partir dali. Imerso no mar de seus pensamentos, o silêncio da Mente de Gabriel foi quebrado pela voz que já reconhecia de longe. - Se eu fosse você não ficaria sonhando com o futuro, Gabriel. Você pode se decepcionar com suas próprias expectativas. – A voz de Marishi fez o garoto se virar. Mas para a sua surpresa, dessa vez o Sacerdote não estava sozinho. Um homem e uma mulher de longos cabelos loiros se encontravam escoltando

o

Sacerdote.

Eles

vestiam

uma

idêntica

túnica

branca,

semelhante à de Marishi, porém, coberta por um sobretudo cinza que ia até o chão. Aqueles seres mais pareciam ter vindo de uma história de ficção científica. A claridade de sua pele contrastava com o fundo escuro do quarto de Gabriel. Observando melhor a aparência dos dois, Gabriel chegou à conclusão de que só poderiam ser irmãos gêmeos. A serenidade em seus rostos, entretanto, não diminuía a forte presença que eles irradiavam. - Marishi, quem são eles? – Perguntou Gabriel, ainda assustado com a sublime presença dos dois seres. - Eles são Sacerdotes que o acompanharão em sua viagem até Nemashi. Gabriel: conheça Yonnah e Shandara Menahon. - Desculpe tê-lo assustado, mas é bom já ir se acostumando com nossa aparência. A partir de agora você irá conhecer vários de nós. – Com sua voz 63


suave, Yonnah queria que Gabriel se sentisse o mais a vontade possível. A jovem mulher sabia que a partir daquele momento, Gabriel conheceria um mundo muito diferente do qual ele vivia. - Sei que você está nervoso, mas não há nada a temer. Com o tempo você vai apreciar viajar entre os espaços. É mais seguro do que qualquer módulo cruzador, se você souber como fazer, é claro. – Shandara falava com firmeza, tranquilizando e alimentando a curiosidade Gabriel com aquelas palavras. Marishi se aproximou do jovem, impondo as mãos sobre a cabeça de Gabriel. A mesma aura branca que havia envolvido o garoto uma semana antes agora era dissipada dele, voltando às mãos do Sacerdote. Com isso Gabriel voltou a enxergar a Vohan que emanava dos presentes. Então ele logo compreendeu o que estava se passando naquele momento. - Vocês vão me levar, não é? - A pergunta que você deveria fazer agora é: Você está pronto para ir? – Perguntou Marishi. O Sacerdote estava para falar quando subitamente se calou. Sentia que algo estranho que havia se revelado dentro do quarto. Os outros dois Sacerdotes se entreolharam. Um deles apontou na direção de Marishi, enquanto o mesmo se virava, sentindo poderosas ondas invisíveis emanarem atrás dele. Seguindo o olhar do Sacerdote, Gabriel logo percebeu a atenção dos Harashis havia sido desviada para seu celular que estava vibrando em cima de sua cama. A imagem do display reluzente mostrava apenas uma única foto. Sasha estava ligando para Gabriel, como prometera naquela tarde. O coração do garoto institivamente palpitou, com uma vontade incontrolável de saltar sobre o aparelho. Porém, o único motivo que o ainda prendia ao chão era a presença dos três Sacerdotes. - Eu sinto uma louca vontade dentro de você para apanhar este aparelho. Só não entendo porque ainda se acovarda em fazer isto. – Disse Marishi, enquanto fitava a imagem da garota na tela. 64


- Vocês sabiam que eu iria contar tudo para ela... – Gabriel perguntou, sentindo brotar um princípio de vergonha própria. - Não é preciso monitorar a sua Mente para adivinhar seus pensamentos. – O Sacerdote respondeu, soltando um sarcástico sorriso. - Vocês também me manipularam para que eu não falasse a ela quando nos encontramos hoje, não foi? - Não, Gabriel. Apenas fiz sua Mente se lembrar da promessa que me fez no nosso primeiro encontro. Se você decidiu não permanecer ali com ela, isso foi consequência unicamente da sua vontade. Da mesma forma, agora percebo outros desejos dentro de sua Mente, bem como um mar dúvidas que não param de aumentar. - O que querem que eu faça? – Perguntou o garoto, angustiado. – Por favor, me digam... - Isto, apenas cabe a você decidir. Só peço que se escolher, não volte mais atrás. Vamos lhe ajudar em tudo o que for preciso, mas só poderemos fazer isso se estiver do lado de lá. - E o que irei encontrar? – Perguntou, enquanto não tirava os olhos do aparelho reluzente. - Tudo o que os homens do seu mundo nunca se depararam. – Respondeu Shandara, enquanto o garoto olhava para o teto estrelado do seu quarto, imerso em sua mais profunda crise existencial. Olhava ao seu redor, ainda maravilhado, mas profundamente abalado por aquela situação. Sabia que se decidisse partir com os Sacerdotes, jamais voltaria a rever sua família. Seus amigos. Sasha. A vida que levava na Terra seria apagada e ele renasceria para uma nova, em um mundo de promessas totalmente desconhecido. Sabia que sua vida não era mais como havia se acostumado, e que todas as seguranças que possuía agora haviam desabado por alguns poucos encontros que tivera com Marishi e os últimos desencontros que tivera com Sasha. Não podia negar seu maior desejo, mas tinha medo de arrepender-se. Tinha medo de não ser forte o suficiente para prosseguir em sua decisão. De decepcionar aqueles que o amavam. Mas, em meio aquele caos psicológico, uma coisa lhe fez tomar a derradeira escolha. 65


Sem esperar, o jovem sentiu uma força indescritível queimar sobre sua pele. Aquele toque de Marishi em seu ombro fez o garoto virar-se, visualizando a poderosa Vohan do Sacerdote. - Lembra-se do que lhe falei no nosso primeiro encontro? – Perguntou o Sacerdote, enquanto Gabriel apenas o olhava, anestesiado. – Você é muito mais do que se permite ser, Gabriel... Olhe ao seu redor, se você acha que isso não é verdade, nós ainda estaríamos aqui? Pegue no meu manto. Sinta... Tudo isso é real. Institivamente Gabriel apertou o alvo lumehrin de Marishi, com uma determinação que nunca havia sentido antes. Sua Mente havia despertado para uma realidade que ele jamais imaginou existir. Agora ele estava ali, encarando não só a realidade, como também o mundo vindouro no qual ele passaria a viver. Os vívidos olhos do Sacerdote Harashi perceberam emergir um novo semblante em Gabriel. O garoto parecia transfigurado, não só pela sua Vohan que ardia como nunca, como também por sua vontade, traduzida nas breves palavras que escaparam de sua boca. - Eu quero ir. – Disse o garoto, decidido. – Me ensine como me tornar um verdadeiro Harashi. Aquelas palavras rapidamente ressoaram nos ouvidos de Marishi, porém, se propagaram pela sua Mente ainda mais intensamente. O Sacerdote percebeu a sincera vontade expressada por Gabriel, de modo que agora ele não tinha mais dúvidas sobre o verdadeiro desejo do jovem garoto. Percebendo que agora não havia mais volta, Gabriel largou o manto do Sacerdote, apenas imaginando o que estaria para acontecer. Seguindo seu instinto, ele se aproximou de Yanneh e Shandara. Recebendo a confirmação visual de Marishi, os dois Harashis estenderam suas mãos uns aos outros formando um circulo ao redor do jovem. – Quero que esvazie sua Mente de qualquer preocupação. Deixe que ela seja guiada por nossos pensamentos. Agora, nós o levaremos até o Santuário da Ordem. Até Nemashi, o seu novo lar. Obediente, Gabriel fechou os olhos como lhe ordenara Marishi, sentindo sua Vohan queimar mais e mais, assim como as dos seres que o 66


cercavam. Ele voltara a presenciar a mesma visão que tivera no seu primeiro encontro com o Sacerdote. A luminosidade ao seu redor aumentava à medida que ele sentia suas células arderem em uma agitação nunca antes experimentada. No meio daquela indescritível sensação, mesmo que por um breve instante, Gabriel conseguiu fitar pela última vez seu celular, ainda aceso, mais uma vez vibrando pelas chamadas que não seriam atendidas. Ele estava seguro de sua decisão. Sabia que não havia mais volta, assim como o seu namoro que havia acabado. Pensou se aquela determinação que o movia naquele momento, não era a mesma que o levou a terminar seu relacionamento com Sasha. Embora ainda estivesse receoso quando decidira romper o laço de compromisso que os unia, agora o jovem não possuía mais nenhuma dúvida quanto à necessidade de se afastar da garota. Não seria fácil, mas era mais do que necessário para esquecê-la completamente. Porém, acima disso tudo, seus maiores desejos se multiplicavam acerca do que ele se depararia naquele mundo novo. O que aquele desconhecido universo guardava para ele? Suas perguntas logo foram dissipadas pela intensa corrente de força que o possuiu. Gabriel não sentia mais seu corpo. Não sabia se sua Mente o havia sugado ou se ele havia se expandido até o infinito. Mas por um breve momento que pareceu uma eternidade, ele sentiu-se alcançar o lugar mais distante daquele Universo. E da mesma forma como aquilo se expandiu, retornou a si mesmo em uma fração de segundo, fazendo o tudo se tornar nada. Após isso, existia um silencioso vazio que preenchia o quarto, quebrado apenas pelo insistente vibrar do celular de Gabriel. Todos que estavam ali haviam desaparecido para surgirem no mesmo instante em outro ponto da Galáxia. Em outro planeta. Em outra realidade.

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DOCUMENTO 010 CRUZANDO O UNIVERSO Gabriel sentia apenas uma pressão que o fazia cair. Mas não havia direção, apenas um vasto abismo luminoso cujas imagens pareciam penetrar sua Mente em uma velocidade nunca antes vista. Ele mal conseguia visualizar aqueles borrões, mas de uma coisa ele tinha certeza: Ele estava cruzando o Universo. Feixes luminosos se apresentavam

quase

que

imperceptíveis

como

planetas,

estrelas,

constelações inteiras. Podia jurar que acabara de ver a única galáxia que conhecia: a Via Láctea. O lugar onde ele nascera. Mas agora estava bem distante dela. Distante de casa. Ele não sabia há quanto tempo estava viajando, mas ele parecia se distorcer

à

medida

que

o

garoto

era

sugado

por

aquele

túnel

eletromagnético. Gabriel sentia sua Vohan queimar intensamente enquanto que avançava naquele redemoinho de imagens. É maravilhoso! Pensou ele. Estava vislumbrado com aquele fenômeno. Jamais imaginara algo parecido. Por breve um momento esquecera que aquilo estava acontecendo graças aos Sacerdotes que o levavam rumo a Nemashi. Recobrando esta consciência, ele viu brotar formas não definidas que oscilavam dentro daquela onda de energia. Prestando mais atenção percebeu que os feixes luminosos daquele túnel eram formados por aqueles três seres que o conduziam naquela jornada. Quando concentrou sua Mente para enxergar o que de fato estava acontecendo o garoto pôde contemplar os rostos de Marishi, Shandara e Yonnah avançarem e recuarem dentro daquele espectro luminoso. Eles estavam lá. Levando-o para um novo mundo. Uma nova realidade que Gabriel nunca havia pensado antes. Embora aquilo fosse apenas um fenômeno que se produzia através de sua Mente, tudo era real. Ele estava ansioso para chegar ao seu destino, pois já estava começando a ficar

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incomodado com a pressão que só fazia aumentar ao seu redor, quase lhe partindo em mil pedaços. Mais uma vez sentiu suas células se aquecerem na mesma onda vibratória que experimentara antes. As imagens começaram a ficar cada vez mais disformes enquanto que a velocidade do que se passava aumentava até que uma intensa luminosidade ofuscou a Mente de Gabriel, e ele mergulhou em um profundo silêncio. Tudo aquilo havia se tornado um mar de trevas.

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DOCUMENTO 011 CHEGANDO AO NOVO MUNDO Aos poucos Gabriel foi recobrando seus sentidos. Ao abrir os olhos apenas enxergava o chão. Notara que jazia em um aconchegante piso, e que diante dele, estavam os mesmos seres que o haviam levado até ali. Estou em Nemashi. Pensou ainda nervoso, enquanto freneticamente girava sua cabeça, olhando cada detalhe do lugar aonde se encontrava. Eles se encontravam em uma grande sala circular cujas paredes eram decoradas com algumas mandalas de perfeita simetria e um carpete azul que cobria todo o piso. O ambiente era bem iluminado, o que o fazia se sentir bem naquele local. Levantando sua vista, Gabriel enxergou Shandara e Yonnah de pé, ao lado de Marishi. O Sacerdote o observava em silêncio, sem pronunciar uma palavra, talvez esperando o garoto falar alguma coisa. Entretanto, adiantouse, rompendo o sereno ambiente com sua imponente voz. - Bem vindo a Nemashi, Gabriel. – Disse Marishi ao jovem. - Onde... eu estou? – Perguntou o garoto, gaguejando, ainda maravilhado com o lugar. - Você está em uma das salas de treinamento do Santuário da Ordem Harashi. Estou satisfeito em você ter acordado de seu breve sonho. - Sonho? Como assim? – Perguntou o garoto, acordando daquela inebriante desorientação. - O que se passou na sua Mente foi um rápido delírio. As galáxias, as luzes, os túneis que você viu eram uma alucinação causada pelo “Salto entre os Espaços” que acabamos de realizar. - Então não cruzamos o Universo? - Não como imaginou. Nós apenas desaparecemos do seu planeta para surgir no mesmo instante em Nemashi. - No mesmo instante? – Disse o garoto, assombrado com aquelas palavras. O Sacerdote assentiu com a cabeça.

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- Exato. A sensação que você teve dentro daquele “túnel” na realidade durou apenas alguns milésimos de segundo. - Mas Marishi... Isso é impossível... O tempo... - O tempo e o espaço nada mais são do que percepções assimiladas pela sua consciência. Um dia você terá a oportunidade de estudar suas naturezas, mas agora precisamos sair daqui.19

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O chamado Salto entre os Espaços, conhecido no seu mundo pelo nome de teletransporte ou teleporte, nada mais é do que um meio de estabelecer um determinado corpo, ou massa, em outro espaço em um mesmo momento. As minhas explicações iniciais sobre esta natureza e comportamento da matéria tem por finalidade situá-los em uma realidade a qual ainda é, em sua maioria, desconhecia pelos habitantes de seu planeta. Existem estudos sérios, que no momento presente buscam compreender a verdadeira relação entre o espaço, a matéria, e o tempo. A realidade em que estamos inseridos – isto é, o plano material e fisicamente palpável de nosso Universo Local –, possui uma série de dimensões – para ser mais preciso, dez no total –, algumas delas claramente invisíveis a nós. Três dessas dimensões são o que conhecemos como o “espaço tridimensional”. A quarta, o “tempo”, é o que define o momento em que se situa uma determinada matéria em um espaço específico. O comportamento das três dimensões da matéria é inversamente proporcional ao comportamento do “tempo”. Da mesma forma como a matéria é um estado constante de vibração de partículas constituídas de energia, possuindo uma determinada composição e distribuição, da mesma forma o tempo é um aparente fluir, composto de inúmeros “presentes”. Em outras palavras, não existe “passado” ou “futuro”, apenas uma progressiva soma de inúmeros “presentes” que formam o que entendemos como o “momento”. O passado, por sua vez, se constitui de “marcos” desses mesmos “presentes”, sendo estes reais e palpáveis a nós, os quais para a Mente equivalem às memórias ou lembranças. Por fim, o futuro nada mais é do que um “presente” em potencial, mas que ainda não foi inserido em nosso “momento”. Como exemplo prático desse comportamento da matéria em relação ao espaço, neste momento no qual vocês leem tais escritos, a matéria que compõe seus corpos está se comportando de maneira harmoniosa, em relação ao espaço em que ocupa, uma vez que ela se encontra e um ambiente que agrega tal formação molecular, mantendo-se perfeitamente estável e se desenvolvendo em uma constante matemática. Se forem transferidos a um ambiente hostil a tal configuração molecular, suas estruturas químicas se destruirão instantaneamente, rompendo toda a cadeia de equilíbrio molecular estabelecida pela matéria. Da mesma forma, em relação a outro espaço, seus átomos, células, órgãos, organismos e até um bioma como um todo, continuariam a se manter

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- E para onde vamos? – Perguntou Gabriel, sem conseguir disfarçar sua ansiedade. - Para a sua nova vida, Gabriel. – Respondeu Shandara, sorrindo para o jovem. - Venha comigo. – Marishi, tocou o ombro do garoto, enquanto ele ainda se situava naquela nova realidade. Abandonado em suas próprias divagações, Gabriel mal percebeu que todos haviam deixado a sala, apenas ouvindo o deslizar da porta de vidro fechando-se atrás dele.

estáveis se fossem materializados – ou em nossa linguagem, “saltassem” – de um espaço – ou “ponto” – para outro do Universo Local, com um ambiente acolhedor. Por isso, o Salto entre os Espaços é uma prática a ser cuidadosamente calculada, para evitar que um determinado corpo surja em um ambiente que desintegre seu equilíbrio estrutural. Considerando esta mesma constante em relação ao novo ambiente a ser materializado este corpo, tal modificação espacial obedece às mesmas regras da disposição da matéria em relação ao tempo, ou seja, para tal matéria se deslocar subitamente de um ponto “A” para um ponto “B” consideravelmente distante, ela obrigatoriamente deverá realizar tal feito em centésimos de segundo, em alguns casos, milésimos, de modo que sua configuração molecular em nada se altere com esse súbito deslocamento, como da mesma forma não alteramos nossa configuração molecular ao caminharmos ou nos movermos de um ponto “A” a um ponto “B” em um ambiente receptivo à nossa constituição. Em outras palavras, em relação ao espaço, podemos “saltar” de um ponto a outro em um mesmo momento no tempo, enquanto que, em relação ao tempo, podemos “saltar” de um momento a outro, ocupando um mesmo lugar no espaço. Sobre esta último princípio, o do Salto entre os Tempos, foi por meio dele que me transportei ao momento presente em que vocês estão situados. Mas sobre isso, falarei em um momento mais adequado. Já em relação ao primeiro princípio, somente posso dizer que a equação do Salto entre os Espaços consiste em mover uma considerável massa entre dois pontos num determinado espaço, porém, sem alterar a estabilidade da composição molecular do objeto. Tal realidade foi atestada no seu mundo pelo célebre cientista de Yuransha, Albert Einstein, com a sua fórmula “E = m.c²”, que determinava a equivalência existente entre uma determinada massa em relação à energia. Obviamente, para a realização de tal feito, se necessita de uma comunal emissão de energia, e parte da resposta para compreender isto se encontra no poderoso potencial de nossas Mentes, cujo princípio físico-matemático está presente em cada átomo deste Universo. Mas para explicar-lhes isto com mais afinco deverei trabalhar tais assunto aos poucos, de modo que sua compreensão se torne mais simples e menos abstrata. Por isso, voltemos à narrativa dos acontecimentos.

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Imediatamente, o garoto irrompeu pelo corredor encontrando Marishi caminhando solitário mais a frente. Aparentemente, os gêmeos Harashis haviam tomado o caminho oposto. Ao sair daquela sala, Gabriel se assombrou com sua extensão, quase a perder de vista. Aquela via era ladeada por altas colunas que tocavam um teto abobadado. Enquanto caminhavam, Gabriel passava por salas iguais às que havia saído. - O que são essas várias salas? – Perguntou, tentando observar seu interior através dos portões de vidro. Todas pareciam idênticas, seguindo o mesmo formato circular. - São capelas de meditação e treinamento para nós Sacerdotes. Todas são iguais a que estávamos. Com o tempo você entenderá qual o verdadeiro potencial do corpo e de sua Mente. Este salto que realizou nem se compara ao que você será capaz de fazer. E é isso o que vamos descobrir a partir de agora. - Eu não... Eu não sei o que dizer senhor... – Disse Gabriel, ansioso. - Não diga. Apenas observe tudo o que o cerca. É bom prestar atenção, porque a partir de hoje, este é seu novo lar. Os dois continuaram seu caminho até chegarem a uma parede repleta de transportadores. Adentrando em um deles, Marishi prontamente falou. - Yebrah Zeneha – Laboratório Central. – Disse Marishi ao entrar no transportador. A máquina se fechou, emitindo um campo translúcido, e prontamente desapareceu no espaço. Gabriel ao chegar, ficou desorientado, ao se deparar com um longo salão iluminado diante dele. A barreira magnética cedeu, enquanto que Gabriel mal conseguia falar. - Marishi, nós... - Realizamos um salto entre pequenos espaços. – Respondeu em meio a um sorriso, se adiantando às palavras do jovem. Dando um leve empurrão em Gabriel, Marishi conduziu o garoto por um mundo totalmente novo aos seus olhos. Um imenso salão estava repleto de máquinas e homens. Aos poucos o jovem sentiu-se mergulhar em uma história de ficção científica, onde androides e humanos se juntavam para criar ciência. Aquele mundo futurista aguçava a visão do garoto, que apenas passava

olhando

robôs

carregando

tubos

com

compostos

químicos 73


brilhantes, imagens holográficas que pairavam no ar sobre algumas mesas e imensas telas transparentes cheias de dados desconhecidos, onde homens vestidos com roupas coladas ao corpo e luvas apontavam e discutiam suas conclusões em uma língua estranha aos ouvidos de Gabriel. - Eles são os nossos mais valorosos cientistas. Assim como eu, são Sacerdotes que se dedicaram à busca pelo conhecimento. Eles estudam tudo, desde reações químicas até a evolução do Universo. – Falou Marishi através de sua Mente. - Que língua é essa que eles falam? - É o Korah, o idioma padrão do Sistema de Ashunyah. Cada planeta que forma este sistema possui sua língua oficial, mas para todos os povos se comunicarem foi preciso se criar um idioma comum. Unimos o dialeto e a escrita de todas essas sociedades e as sintetizamos em nossa língua oficial. Embora não compreendesse uma palavra do que falavam, Gabriel cada vez mais se vislumbrava com aquela realidade. Seguindo Marishi, ele entrou em uma sala toda iluminada, cujas paredes brancas aumentavam ainda mais a claridade. Dentro dela, uma série de máquinas fazia aquele ambiente se parecer mais com uma sala de cirurgia. Mais ao fundo, Gabriel notou que havia um imenso pilar de vidro, cujo interior continua um líquido esverdeado. Ao fitar com mais atenção notou que aquele pilar na verdade era um tanque, e que dentro dele havia uma pessoa. Mas seu espanto foi maior ao ver que, flutuando naquelas águas, se encontrava o seu corpo, preso por uma máscara de respiração, e colado a ele, inúmeros plugs monitoravam seus sinais vitais. Inerte à sua frente, Gabriel contemplou o seu clone, como Marishi havia lhe prometido semanas antes.

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DOCUMENTO 012 O RENASCER DE GABRIEL Isto... Isto é incrível... Gabriel estava paralisado com aquela visão à sua frente. Não conseguia sequer conceber como aquilo seria possível, ou se era real ou não. - Eu sei. – Disse Marishi, também contemplando a redoma. – Nossa tecnologia conseguiu não só recriar o seu corpo como também o fez através da aceleração do crescimento. Calculando a sua idade é possível recriar seu corpo perfeitamente como ele se encontrava quando o seu DNA foi coletado. Ele é o histórico do que você já evoluiu. Assim, em poucas semanas seu clone se torna amadurecido o suficiente para sua consciência ser ativada. 20

20

A chamada técnica de clonagem consiste na reprogramação de uma célula adulta sem a utilização de células reprodutoras do sexo oposto. Em suma, é possível realizar tal feito ao ativar um conjunto de quatro genes de uma determinada célula. Através da manipulação estrutural do código genético daquele indivíduo, podemos regredir tal célula ao estado de uma célula embrionária, e assim, a partir dela, reconstruir qualquer célula do organismo. Esta técnica, aliada à aceleração nuclear – um sistema especial de engenharia genética capaz de reproduzir qualquer órgão do corpo em poucos dias –, nos permite recriar um organismo completo e funcional, dentro de algumas semanas do tempo padrão de Yuransha. Omito os demais detalhes sobre as técnicas utilizadas e seus cálculos específicos devido à falta de ética de sua atrasa cultura. Até mesmo em Nemashi, possuímos sistemas de ética em relação à clonagem, que, do mesmo modo como em seu mundo, também é proibida, porém, permitida em um único caso: o de salvar vidas quando estas se encontram em perigo. Mas sobre isso apenas poderei falar quando me for permitido. Os magníficos e complexos avanços de nossa Ciência podem ser um perigo ao seu mundo, que apenas caminha em sua longa jornada evolutiva. A Ciência de Yuransha continua caminhando em descompasso com o necessário amadurecimento espiritual de seus cientistas. Sem isso, será impossível concretizar sua aplicação humanitária para que esta possa a aliviar o inevitável sofrimento de sua população. O desenvolvimento científico em Yuransha só não é maior devido à sua economia monetarista, que transforma o mais puro conhecimento em mercadoria a ser negociada pelas grandes corporações. Mas para mudar tal realidade, seu mundo só poderá fazê-lo quando ocorrer um episódio igual ou parecido com o que uma vez na história futura de seu mundo,

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- Então ele será enviado para a Terra para ficar no meu lugar? - Claro. Mas ele é um recipiente sem lembranças, por isso será preciso que as memórias dele também sejam iguais à sua. Gabriel, quero que você conheça o Sacerdote Haron Voorih. – Do lado de Marishi surgiu uma figura imponente, mas ao mesmo tempo com olhar suave. O Sacerdote Haron curvou-se ante Gabriel, cumprimentando-o. - Seja bem vindo ao Santuário de Nemashi, Gabriel. – Haron também falava através de sua Mente com o jovem, que conseguia entendê-lo perfeitamente. – Eu sou o chefe do Laboratório em que se encontra, e supervisiono todas as pesquisas realizadas pela Ordem Harashi. O que vamos fazer com você é transferir suas memórias para o seu corpo clonado, duplicando suas lembranças, e estas serão assimiladas pela Mente que já se encontra nele. Desse modo, ela possuirá seu aprendizado, conhecimentos e é claro, todas as habilidades que você já desenvolveu até hoje, para assim, desenvolva perfeitamente sua personalidade até o presente momento. - Então ele terá as mesmas lembranças que eu possuo? - Exatamente, Gabriel. – Respondeu Haron, sorrindo para o jovem. – Entretanto, a partir de agora ele terá a autonomia para decidir o que quiser, segundo sua vontade. Ele será uma Mente com memórias e experiências já vivenciadas. - Uma Mente com memórias e experiências? - Da mesma forma como você alimenta e atualiza as informações em seu cérebro a cada dia, nós podemos fazer isso de uma maneira digamos... mais acelerada. Acredite: nós não somos muito diferentes dos computadores que você costuma utilizar em seu mundo.21

ocorreu. Infelizmente, acho muito difícil, praticamente impossível a História se repetir, e caso venha a acontecer, temo pelo novo futuro que os aguarda... 21

Tal como os computadores, os nossos cérebros funcionam como um poderoso processador de dados em uma rede que conecta e desconecta informações. Quando um interruptor é aberto ou fechado, ou no caso do cérebro, quando uma sinapse se configura, um sinal é transmitido para determinadas células do corpo. Nesse meio, os erros aparecem como uma natural consequência da constante programação realizada pela Mente. Sem erros

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Aquela afirmação fez Gabriel arquear suas sobrancelhas, visivelmente perturbado. - Gabriel... – Disse Marishi, tocando-lhe o ombro com sua mão esquerda, fazendo o garoto virar-se. – Por favor, deite-se naquela mesa para que possamos preparar o seu corpo realizar a transferência de suas memórias. – Mesmo ainda receoso, o garoto obedeceu, deitando-se em um leito a sua frente, pairado no ar. Enquanto Marishi e Haron se aproximavam, Gabriel observava em silêncio seu clone dentro do tanque. Sentiu-se estranho, a julgar pela súbita taquicardia que lhe atacara. Falava consigo mesmo, tentando se acalmar, mas era em vão. Gabriel sentiu-se ainda mais incomodado quando viu o corpo de Haron emanar sua aura alaranjada, à medida que Marishi fazia o mesmo. Não entendendo o que se passava, assistia um tanto quanto nervoso aos dois Sacerdotes passarem a mão acima do seu corpo em movimentos circulares. Delas brotavam pequenas ondas luminosas como se uma pedra tivesse caído em meio à água, dissipando-as a partir do seu centro. - O que estão fazendo? – Perguntou o garoto, confuso. - Apenas relaxe. – Respondeu Marishi enquanto repetia os mesmos movimentos descendo pelo corpo do jovem. De alguma forma a serenidade do Sacerdote também acalmava Gabriel. – Estamos preparando seu corpo para transferirmos suas memórias.

não há a experiência, e sem ela, a constante cadeia de aprendizagem não pode ser formada. Mesmo quando pensamos ou desejamos, estamos aprendendo algo, mesmo que inconscientemente. Nosso cérebro nunca descansa, muito menos a nossa Mente. Se nosso cérebro é a máquina processadora dos dados, a Mente é quem fornece tais dados, através da assimilação da experiência. Pela experiência formamos nossa personalidade ao longo da vida. A todo o momento essa síntese dessas experiências é devolvida ao cérebro como memórias conscientes, ou de lapsos inconscientes, que são gravados e podem ser acessados a qualquer momento pelo indivíduo, de forma voluntária ou não. Em outras palavras nossas memórias são dados reais, imagens palpáveis, processadas e guardadas na Mente através do cérebro, que as ativa ou as preserva, de acordo com a vontade ou pré-disposição da Mente do indivíduo. Nosso cérebro é uma máquina, mas quem origina, retém, e dispõe os pensamentos é a Mente.

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- Sem isso, seu corpo fica vulnerável aos intensos efeitos gerados pela troca de energia entre os dois corpos. Estamos criando uma barreira eletromagnética ao redor do seu corpo. – Disse Haron. - Estou com medo... – A respiração de Gabriel acelerou, enquanto ele observava os Sacerdotes, com um crescente receio do que podia acontecer. - Não se preocupe. Não vamos lhe machucar. Quando acordar, as coisas velhas terão passado, e tudo o que já sonhastes se fará novo... – Disse Marishi repousando suas mãos sobre a cabeça de Gabriel. O garoto tentou reagir, mas era tarde demais. Seus músculos relaxaram. Os Harashis se olharam, sorrindo um para o outro. Recebendo uma pequena máscara de respiração de Haron, Marishi a levantou sobre Gabriel, moldando-a ao rosto do garoto. Sem mais demora, os dois iniciaram a operação. Dando a ordem ao droide que programava as máquinas da sala, imediatamente o tanque em que o clone se encontrava esvaziou o seu liquido, ao passo que uma silenciosa onda magnética suspendia o corpo no ar, como se ele ainda estivesse imerso no líquido. Presa ao seu rosto, uma máscara de respiração idêntica à que Gabriel estava usando monitorava suas funções vitais. Na tela, os dados do corpo continuavam estáveis, à medida que o vidro que cercava a redoma descia rapidamente, deixando apenas o corpo suspenso no vazio. Haron, então, guiou com as mãos uma das mesas que ali estavam magneticamente suspensas, e a posicionou ao lado da base da redoma. Aproximando-se, o Sacerdote guiou o corpo até a mesa, através de suaves ondas que emanavam de suas mãos, colocando-o em cima daquela plataforma branca, e conduzindo-o junto à Marishi, que se encontrava ao lado de Gabriel. Posicionando as mesas paralelamente, os Sacerdotes iniciaram um peculiar ritual. Marishi pousou as mãos sobre a cabeça de Gabriel como se estivesse apontando para o corpo à sua frente enquanto que Haron criava uma barreira ao redor da cabeça do clone. Com um gesto positivo, Haron mandou Marishi continuar. Helamen começou a movimentar as mãos em pequenas 78


ondas enquanto que Haron permanecia firme em seu lugar. De repente, da cabeça de Gabriel surgiram emanações luminosas que se misturavam com algumas outras sombrias. Após um período, aquele fenômeno cessou. Os dois Sacerdotes se entreolharam com um leve sorriso. - Seus pensamentos são nobres. – Disse Haron. - Sim. Não esperava que fosse desse jeito. Embora haja alguns pensamentos egoístas e orgulhosos, em sua maioria são de coragem, altruísmo e superação. – Marishi respondeu, impressionado com o que vira através de sua Mente. - Ele será um grande Sacerdote. - Sim, mas isso só dependerá dos seus esforços. – Haron balançou a cabeça, concordando com o amigo. Continuando com aquele ritual, os Sacerdotes guiaram as duas pranchas para o interior de dois dos vários tubos de metal embutidos na parede da sala. Eles encaixaram os leitos dentro do pequeno túnel e acionaram controles numa tela luminosa ao lado das entradas. Imediatamente, uma armação metálica, como uma espécie de armadura semitransparente desceu do maquinário que revestia o tubo, pousando sobre os corpos, e prendendo-os suavemente às mesas. Em seguida, tiaras transparentes em forma de capacete foram presas às cabeças dos dois garotos da mesma maneira, acendendo uma série de alertas, e inúmeras informações que logo surgiram nas telas do outro lado da sala. - As medições vitais estão estáveis. Continuem com a operação de mapeamento

do

cérebro.

Disse

Marishi,

ordenando

aos

robôs.

Imediatamente as máquinas ativaram o sistema de ressonância magnética do laboratório. Uma série de imagens surgiu nos monitores, apresentando a estrutura cerebral de Gabriel, com uma série de dados sobre volume do sangue, pulsação, velocidade e número de sinapses por segundo, assim como a estabilidade e o isolamento eletromagnético do cérebro como um todo. Os Sacerdotes pareciam satisfeitos. Após uma rápida análise das telas, Marishi se aproximou de um dos droides que manuseava uma dos computadores. 79


- Podem iniciar a sublimação. – O Sacerdote deu a ordem. O robô respondeu, com obediência militar. Os dois se afastaram enquanto que do outro lado, os robôs acionavam os mecanismos nas telas de vidro. As duas portas dos tubos se fecharam. E com um eco provocado pelo selamento das câmaras, iniciou-se o processo de transfusão das memórias de Gabriel. Se aproximando do painel para acompanhar aquela operação, Haron e Marishi logo assistiram uma sequência de caracteres aparecendo e desaparecendo diante de seus olhos. Infinitos dados corriam as telas em alta velocidade, como uma chuva de números. Tal quantidade absurda de informações vinha da Mente de Gabriel, que naquele momento duplicava suas memórias, lembranças e experiências vividas até então.22

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Embora tal processo seja complexo, tentarei simplificar para que vocês entendam o magnifico potencial que existe em nossas Mentes. Em primeiro lugar, devo explicar que esta complexa fórmula que aparecia nos computadores do Laboratório consistia em um sistema de codificação bastante conhecido no seu mundo: O código binário. O que se via ali nada mais era do que a transcrição dos pensamentos, memórias e experiências vividas por Gabriel pelo processador da máquina, um verdadeiro mapeamento de sua Mente. O que os Sacerdotes fizeram antes foi um mapeamento sensitivo, fazendo emanar para dentro de suas Mentes parte dos pensamentos que mais reincidiam na Mente de Gabriel, isto é, uma porção do que constituía sua real personalidade, ou sua “Alma”, se assim desejarem chamar. Sendo tais memórias reais e palpáveis, como já havia explicado antes, tais imagens e impressões podem ser reconstruídas, da mesma forma como imagens de ressonância magnética revelam a constituição de um órgão do corpo. Tais imagens, quando codificadas, reproduzem a expressão matemática da formação do pensamento, que é de natureza binária. Há um verdadeiro processamento de “dados” e de “não dados” que percorre o nosso cérebro quando o pensamento é sintetizado nele. Existe uma “energia” a ser liberada e uma “não energia”, a ser conservada. Algo a ser conectado e algo a não ser conectado, e essa rede de dados que é criada é justamente o conjunto que forma o pensamento em ação, sua real natureza, a “criatividade”, a verdadeira ação que se manifesta no nosso cérebro e transmite suas ordens às nossas células. Entretanto, tal processo, ocorrido em uma velocidade que sequer podemos imaginar, requer uma liberação de energia, que por sua vez, acaba ressoando através de nossos pensamentos como um verdadeiro eco. Essa energia livre acaba criando o que no seu mundo é conhecido como a “Noosfera”, e no nosso, chamado de “Garbha”.

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Como se estivessem sentindo o que ocorria nas câmaras, os dois se voltaram para elas enquanto enxergavam através de suas Mentes o que se passava dentro delas. Sentindo o que ocorria nas câmaras, os dois se voltaram para elas enquanto observavam as auras dos dois corpos aumentarem de brilho, e

Assim como existe a atmosfera, existe também um verdadeiro mundo das ideias, formado por toda sorte de culturas, linguagens, teorias e conhecimentos gerados pela atividade incessante de nossa Mente. Essa atmosfera do pensamento é justamente a rede invisível na qual a Mente pode acessar os pensamentos e memórias de outra Mente em particular, como os Sacerdotes fizeram com Gabriel. Dessa maneira, nós alimentamos a Garbha quando pensamos ou nos comunicamos. A criação dessa Noosfera é o resultado direto da constante evolução biogeoquímica e a consequente liberação dessa “energia livre” pela transformação termo-químico-nuclear dos elementos ao nosso redor, por meio dos pensamentos de nossa Mente. Em outras palavras, a Garbha é fruto da natural evolução dos animais para seres pensantes e sua interação consciente ou inconsciente com o meio. A partir da Garbha, podemos acessar nosso passado, presente e até mesmo futuro, que é criado pela realidade que constantemente alteramos. É um fato já comprovado que, através de nossas Mentes, somos capazes de alterar a matéria ao nosso redor, de acordo com nossa Vontade – ou seja, nossos pensamentos direcionados de acordo com nossa personalidade –, e dessa forma, alimentar o eterno fluxo criativo que move o espaçotempo ao qual estamos inseridos. Mas como tudo tem uma razão de existir, essa atmosfera de pensamentos também foi capaz de influir na cadeia de acontecimentos que narrarei neste e nos outros livros que transcreverei. Esta breve explicação é a descrição sucinta da realidade referente a nós, seres vivos pensantes, situados no presente espaçotempo. Por isso, como reflexão última, lhes digo que, se nós, somos capazes de tais feitos como consequência do processo de desenvolvimento neural, promovido pela nossa evolução, podemos dizer que, da mesma forma, toda a matéria, o espaço-tempo, e claro, todos nós, fomos gerados pelo mesmo mecanismo criativo, segundo a mais pura Vontade, emanada de uma Personalidade dotada de uma poderosa Mente, porém, com uma capacidade e poder de criação infinitamente maiores. Em outras palavras, dada a complexidade, grandiosidade e perfeição de nosso Universo Local, podemos dizer que o Cosmos – enquanto a realidade total a qual estamos inseridos –, foi criado pela Mente de um Ser, de fato, e incontestavelmente Superior. Como está escrito em certas Escrituras Sagradas do seu mundo, nós fomos e somos criados à imagem e semelhança do que vocês compreendem como “Deus”. Não os nossos corpos, mas nossas Mentes.

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num forte cintilar, vislumbraram ambos se transfigurarem dentro de um forte fulgor. Aquilo, porém, ainda assim era imperceptível aos Sacerdotes. A atividade mental daqueles corpos havia atingido um ápice que a Ciência Harashi nunca conseguiu decifrar. O que os Harashis apenas viam como um fulgor, na verdade se desenrolava de um modo totalmente diferente, e, imagino eu, magnifico, no interior daquelas Mentes. Um mistério que nem eles, nem eu, poderemos compreender. Pelo menos por enquanto. Pelo menos na realidade a qual estamos inseridos... A Mente sempre ocultará algo de sua natureza, mas meu dever aqui não é compreendê-la, não no meu presente tempo. No meio daquele processo, um aviso no painel subitamente apareceu, indicando o término daquele rápido, mas não menos fantástico processo. Da mesma forma, aquelas emanações luminosas cessaram. Marishi olhou satisfeito para Haron, que apenas brandiu com a cabeça. - Missão cumprida. – Disse Marishi, observando as portas dos tubos se abrirem enquanto que as plataformas em que estavam os corpos deslizavam para fora. Em seguida, os dois Sacerdotes auxiliaram os robôs, registrando e analisando os dados coletados pelo computador central. Os sinais vitais de Gabriel eram monitorados enquanto jazia adormecido naquele leito flutuante. A partir dali, nada mais seria como antes.

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DOCUMENTO 013 O PRIMEIRO DIA DA NOVA VIDA Como quem desperta de um sono, Gabriel abriu os olhos aos poucos, se acostumando com a luz. Aquela luminescência seria maior se não fosse Marishi bloqueando aquele intenso fulgor a sua frente. O Sacerdote observava o jovem deitado em uma espécie de cama de cristal flutuante, no meio de um longo salão repleto de outros leitos idênticos. Gabriel olhou ao seu redor, e perguntava se ele estaria flutuando assim como aquelas demais placas translúcidas. - Este é o Complexo Hospitalar do Santuário. É para onde trazemos nossos Sacerdotes que não estão bem. Mas você não precisa estar aqui. Só precisa descansar. – Para o espanto de Gabriel, ele conseguia compreender perfeitamente o que Marishi lhe falava. - Estou entendendo o que você fala... – Da mesma forma, o garoto ficou abismado quando pronunciou aquelas palavras, tomando consciência que não só podia ouvir o que Marishi lhe dizia, mas também era capaz de falar o Korah fluentemente. O Sacerdote levantou a mão, pedindo para escutá-lo. - Assim como eu transferi suas memórias para o seu clone, junto com suas lembranças e aprendizados, eu também programei seu cérebro para compreender a nossa língua. - Mas... como é possível? - Toda comunicação é feita através do sentido que damos às nossas palavras ou gestos, mas antes de tudo, nós nos comunicamos através das nossas vontades. O pensamento é a nossa forma comunicação original. É o modo pelo qual externamos racionalmente as nossas vontades. - Então podemos nos comunicar com qualquer pessoa através do pensamento? -

Claro.

Por

termos

aprendido

nossa

língua

materna,

nosso

pensamento está atrelado à nossa linguagem, mas são nossas vontades que primeiramente determinam a essência do que queremos dizer. Desse modo

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consegui me comunicar com você, mesmo não compreendendo ainda a nossa língua. Gabriel refletia sobre o que o Sacerdote lhe falava. De repente, outro pensamento lhe sobressaiu. - Marishi, onde está o meu clone? - Já está em seu mundo. Vivendo a sua vida. - E quanto às minhas lembranças? Quero dizer, se eu tenho memórias de tudo o que aconteceu até eu chegar aqui, ele também se lembrará disso? - Calma meu jovem. Calma... Você precisa entender que memórias não podem ser destruídas. Elas são parte de sua experiência pessoal e só podem ser compartilhadas. Eu bloqueei suas memórias referentes a tudo que diz respeito a nós. Se algum dia ele vier a se lembrar, será como se tivesse tido um sonho. - E ele? De quem era a Mente que está no meu clone? - Uma pobre criança que passou um longo período em coma. Por se encontrar nesse estado por tanto tempo, uma nova Mente passou a gerir seu antigo organismo. - Meu Deus... E isso é possível? – Gabriel perguntou, impressionado com o que ouvia e imaginando tal processo. - Embora não seja comum, algumas vezes isso acontece, como proteção do organismo para que ele não morra pela ausência de seu principal elemento. Como parte desse estado de inconsciência, sua Mente ficou adormecida e dispersa pelo Universo, sem rumo, apenas esperando uma oportunidade de ser atraída por um novo corpo em formação sem uma Mente ainda instalada. E este corpo acabou sendo o seu clone. – Disse Marishi. – Nessa natural troca de Mentes também acaba se realizando uma troca de informações entre elas, transmitindo parte das experiências que o indivíduo desenvolveu até então. Por isso, muitas pessoas que acordam do estado de coma passam a falar línguas que sequer ouviram ou aprenderam antes ou adquirem novas habilidades que não tinham tedência a desenvolver. Mas acima de tudo, você deve entender que com esse processo nós demos novamente a chance dele viver. - E por que ele precisou voltar à vida? 84


- Porque era preciso. A Mente que está em seu clone não teve a oportunidade de viver uma vida para adquirir experiências. Só podemos libertar nossa Mente do Universo em que vivemos se permitirmos que ela evolua através de nossos corpos. E só podemos realizar isto ao longo de nossa vida com as experiências que adquirimos através de nossas ações e pensamentos. Você um dia entenderá que a morte não é o fim de tudo. Ela apenas liberta a Mente do nosso corpo, e a faz unir-se às tantas outras que tiveram o mesmo destino. Mas nem sempre podemos entender este mecanismo. São o que chamamos de Leis Não-Naturais. E nossa Mente é a chave para entendermos estas Leis e seus fenômenos, da mesma forma como o que acontece conosco quando morremos. - Então podemos dizer que o que de fato somos é consequência do que pensamos? - Exato. Você ainda vai aprender como funciona este maravilhoso Universo. Tudo é tão encaixado, que somos como um perfeito mecanismo evolutivo. Só precisamos nos mover para essa imensa máquina funcionar. O resto é consequência se fazemos movimentos bruscos ou suaves. O garoto apenas assentiu com a cabeça, ainda tentando assimilar aquelas palavras. - Mas agora não é hora para você aprender isso. Está na hora vestir suas novas roupas. – Disse o Sacerdote, mudando radicalmente o assunto, e tirando Gabriel daquele reflexivo transe. – Como já deve ter notado, o clima de Nemashi não é tão quente como no seu mundo. – Marishi se afastou de Gabriel, enquanto um droide trazia uma plataforma com a roupa que o jovem vestiria a partir dali. Após se vestir, Gabriel, se observou diante do espelho. Podia jurar que estava enxergando o futuro que o aguardava. Um novo mundo de descobertas. De possibilidades. Embora mal tivesse chegado à Nemashi, Gabriel se sentia como se já fosse um Sacerdote desde que nascera. Sua roupa preta se destacava pela justa túnica que lhe cobria o corpo, como se fosse um casaco fechado. Em cima, um discreto capuz se desenhava como extensão daquele terno transpassado. Ela mesclava a imagem de um executivo em seu paletó com um monge coberto por seu 85


negro hábito. Abaixo, a calça de mesma cor era presa por botas que se moldavam aos seus pés. Apenas sua cabeça se via livre daquela roupa, mas Gabriel logo cingiu o capuz, admirando aquele novo jeito de se vestir. - Eu não gosto de roupas escuras, mas tenho que admitir que combinam com você. Afinal, é o que você gosta, não é? – Marishi falou enquanto o garoto se olhava no espelho. - Como você sabe disso? – Disse Gabriel, se perguntando se havia alguma coisa que o Sacerdote não sabia. Marishi apontou o dedo para a sua própria cabeça e em seguida apontou de volta para a de Gabriel, lembrandolhe que ele o monitorava há tempos. - A propósito, preciso lhe dizer algo importante. - O que? - Como você vai passar a viver em Nemashi, o seu nome não pode ser escrito com os caracteres de nossa língua, por isso fizemos a transcrição do seu significado para o nosso idioma. - Meu nome? - Sim. Ele significa O Mensageiro da Verdade. - E como ele fica em Korah? - Luhan.

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DOCUMENTO 014 A INICIAÇÃO NA ORDEM Após conhecer seu novo nome - que mais lhe soava como um apelido Gabriel caminhou por um longo corredor, seguindo Marishi, enquanto refletia sobre a última conversa que tivera com o Sacerdote. Perguntava-se: quando ele ouvia a voz de Marishi, por qual nome ele era chamado? Ele ouvia Gabriel, mas na Mente do Sacerdote, ele devia ser chamado pelo seu nome em Korah. Luhan. Repetiu consigo mesmo. A dinâmica daquele tipo de linguagem ainda impressionava Gabriel, fazendo-o divagar como se daria aquele fenômeno da comunicação entre as Mentes. Mas a onda de pensamentos foi cortada pela forte luz que contraiu as pupilas de Gabriel. Sem esperar, ele foi tomado de surpresa ao adentrar em uma das naves do Santuário. Admirado com a altura do lugar em que se encontravam, a imensa nave ladeada por colunas fazia Gabriel se sentir em uma catedral da Europa, só que em proporções bem maiores. Eles cruzaram toda sua extensão, passando pelo cume da montanha de cristal, bem ao centro da grande pirâmide que se erguia acima deles. Os olhos de Gabriel brilhavam na medida em que caminhava pelo recinto, se maravilhando com cada detalhe daquele mundo real, mas que ainda soava como uma fantasia criada em um sonho. Gabriel ainda não havia digerido tudo o que acontecera, e seu coração ainda ansiava por respostas. - Marishi, eu tenho uma pergunta. – Disse Gabriel enquanto caminhava. - Prossiga. – Disse o Sacerdote. - Quando veio a mim pela primeira vez, você falou que no meu planeta os Sacerdotes eram conhecidos como anjos. Vocês são os mesmos anjos de que a Bíblia fala? Como podem ser tais anjos se os mesmos possuem asas? - Calma meu jovem... Eu já sabia que mais cedo ou mais tarde você me faria esta pergunta. – O Sacerdote fez uma pausa, imaginando como iria falar aquilo para Gabriel. 87


- Desde os tempos antigos o seu mundo leva tudo o que escrevem ao pé da letra. O sentido original da palavra anjo vem da língua hebraica do seu planeta. Nela, eles são chamados de Malach, que simplesmente significa Mensageiro. Em grego, este termo é mais sucinto ainda. A palavra Ággelos significa Intermediário. - Mensageiros? Intermediários? Mas de que? - Somos mensageiros que trazem conhecimentos considerados, digamos... Superiores. – Marishi respirou lembrando-se dos seus antigos estudos. – Nós somos parte de uma série de intermediários que agem segundo a vontade daquele que vocês chamam de Deus. - Uma série de intermediários? Como assim Marishi? E o que vocês entendem por Deus? – Perguntou Gabriel, tomado por uma euforia vinda daquelas palavras. - Paciência Luhan... Já lhe disse que você aprenderá cada coisa no seu tempo. Você ainda não está preparado para tamanho conhecimento. - Mas Marishi, eu quero saber... - E você irá. Mas aprenda que tudo o que leva ao declínio da ignorância ou ascensão do conhecimento deve ser dosado com sabedoria. O leite deve ser dado na porção adequada para que a criança cresça corretamente. Da mesma forma assim é o conhecimento que adquirimos. - Eu compreendo, senhor. – Disse o garoto, decepcionado. – Mas se os anjos são seres, como você disse... de outro mundo, porque eles sempre são representados com asas? - Na visão dos povos antigos, era uma maneira direta de mostrar que eles voavam pelos céus, que eles vinham do alto. Mas é claro, você já deve imaginar como estes seres chegavam ao seu planeta. Por exemplo, nós Harashis, chegamos ao seu mundo pela primeira vez em naves que pousaram em uma desértica região de Israel, em uma grande montanha chamada Hermon. Com todas aquelas ligações, Gabriel não demorou a ter um insight. - Você quer dizer que todas as representações aladas de seres mitológicos na verdade eram alusões a veículos espaciais?

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- Sim, as primeiras expressões gráficas dos humanos foram os petróglifos. Os índios Hopi, por exemplo, em seus desenhos antigos, representavam deuses que desciam dos céus. Diziam que esses deuses eram os kashinas, seres vindos do espaço em veículos, e que trouxeram conhecimento de outros mundos. Luhan, se você parar para observar, em todas antigas civilizações do seu planeta existe representações desses mesmos seres alados. Egípcios, sumérios, gregos, persas, indianos, maias, africanos... Mesmo vindas de culturas totalmente isoladas, estas imagens pretendem dizer apenas uma coisa: Que existiam seres que vinham de um lugar distante para nos ensinar algo, e que de alguma forma eles tinham a capacidade de voar pelos céus. Esta absurda semelhança entre as culturas desses povos não é mera coincidência. - É inacreditável... – O garoto ainda estava pasmo com as palavras de Marishi. – Como o senhor conhece tanto sobre o meu mundo? - Meu jovem, se esqueceu que por muitas vezes eu estive em seu planeta? Do mesmo modo, ao longo de incontáveis eras, nós viajamos ao seu mundo no intuito de instruirmos, educarmos, ensinarmos aos homens como evoluírem, e saírem de uma vida praticamente primitiva para serem capazes de crescerem em conhecimento e tecnologia. - Mas os anjos descritos na Bíblia não ensinavam aos homens tecnologia. - Tem certeza? Você sabe o que é a Arca da Aliança, não é? - Sim, o lugar onde eram guardadas as tábuas dos Dez Mandamentos que Deus ditara a Moisés. Através dela os hebreus se comunicavam com Ele. – Disse Gabriel, lembrando-se dos sermões dominicais que ouvia na igreja que seus pais frequentavam. - Você está certo em quase tudo. – Disse Marishi concordando com a cabeça. – Entretanto não era Deus que se comunicava com Moisés e os israelitas. - Como assim? - Se você ler a Bíblia com cuidado verá que Deus nunca se comunica diretamente com ninguém. Sempre são os seus anjos que falavam ao povo, não só na religião judaica, como em todas as outras do seu mundo. 89


- Então para quê servia a Arca da Aliança além de um depósito das tábuas dos Mandamentos? - Bem, eu não chamaria de depósito... Mas sim de um comunicador para os israelitas. Gabriel sentiu um baque dentro do seu cérebro. Aquelas poucas palavras trouxeram à tona lembranças sobre tudo o que já havia estudado a respeito, inclusive de um dos livros que mais gostava. Escrito em 1968, a obra se tornou um clássico do gênero. Seu autor teorizava a possibilidade das antigas civilizações terrestres serem resultados de visitas extraterrestres. O livro dizia que esses mesmos extraterrestres eram vistos como divindades por parte dos povos da época. Isto era a chamada Teoria dos Astronautas Antigos. Dentre as várias hipóteses apresentadas no livro, Gabriel se lembrou de que um dos capítulos falava sobre a Arca da Aliança. Segundo ele, as instruções divinas dadas a Moisés para a construção da Arca tão eram exatas, que as medidas eram ordenadas com a precisão de centímetros! Toda aquela ciência estava encerrada no capítulo 25 do Livro do Êxodo. E de acordo com alguns estudiosos, se ela fosse reconstruída nos dias atuais utilizando as mesmas ligas metálicas descritas, seria possível transformar aquela histórica urna de metal em um transmissor de ondas de rádio. Na cabeça dos israelitas, a Arca era um canal de comunicação entre eles e Deus. De certa forma eles estavam certos. Os relatos da mítica Arca levavam a crer que ela era eletricamente carregada. Alguns diziam que as faíscas que viam passando através dela seria o poder de Deus. “Ninguém deveria se aproximar dela. Quem chegasse perto morreria”. Era o aviso de Deus para o povo. Para tanto, Ele repassou instruções exatas de como deveriam transportá-la, desde os calçados até as vestes. Tudo de acordo com a tecnologia isolante disponível na época aos hebreus. Entretanto, mesmo com todo o cuidado que sempre tiveram, em um episódio narrado no Primeiro Livro de Samuel, um homem chamado Uza, que transportava a Arca a mando do rei Davi, teve um nefasto destino. Em certo momento do percurso, os bois que puxavam o carro que levava a Arca

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se agitaram fazendo-a tombar. Quando o pobre homem a sustentou com as mãos, caiu morto no chão, como se tivesse sido fulminado por um raio. Essa era uma das diversas histórias que existiam sobre este ícone que já fora até alvo dos nazistas, em sua inquietante busca por relíquias sagradas. Entre lendas e fatos históricos, outra lembrança estremeceu a cabeça de Gabriel. Em cima da Arca, Deus ordenou que fossem colocadas imagens de dois querubins. Curiosamente, ambos possuíam longas asas voltadas um para o outro. Aquela clássica imagem não teria nada de estranho, mas depois daquelas palavras de Marishi, Gabriel conseguia enxergar a incomoda ligação entre os anjos da Arca e os seres descritos pelas outras culturas de seu planeta. Sua fértil imaginação, por sua vez, acabou por trocar os dois querubins por seres alados egípcios. Observando com calma, a iconografia e a posição desses seres concebidos pelo povo egípcio não mudava em nada a imagem dos mesmos querubins descritos pela cultura judaica. Em meio às lembranças, as perguntas que Gabriel fazia a si mesmo eram tão apropriadas para o momento como as conclusões que aquele livro chegava. Seriam os deuses astronautas? Voltando ao mundo real, Gabriel então absorveu aquelas palavras de Marishi como se estivesse sendo convencido por aquele livro quando o lera pela primeira vez. - Então quer dizer que quem falava com Moisés através da Arca na verdade eram... - Seres de outros mundos. Ou mais precisamente, Sacerdotes Harashis de tempos antigos. Gabriel não acreditava no que acabara de ouvir. Ficou imaginando os vários episódios da Bíblia. Se trocasse a palavra

anjos por seres

extraterrestres, a imagem seria a mesma. Logo se lembrou dos anjos que destruíram Sodoma e Gomorra, a legião que descia e subia a famosa Escada de Jacó. Os anjos que milagrosamente alimentaram o profeta Elias no deserto e que posteriormente o levaram em uma Carruagem de Fogo... Impossível! Pensou.

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Mas aos poucos todas aquelas lendas pareciam estar mais palpáveis enquanto fatos. De súbito, um dos episódios mais misteriosos da Bíblia lhe fez imergir em suas divagações mais uma vez. O Capitulo 18 do Livro do Gênesis narrava a história de Abraão, onde Deus apareceu para ele. Entretanto, o relato bíblico descreve que Deus apareceu como três anjos que desceram a Terra. Estando em sua tenda, Abraão os observou vindos do alto. Mas não os viu enquanto seres alados. Na verdade eles eram meras figuras humanas. Sem asas. Sem nenhuma característica da clássica imagem de um anjo. A narrativa prosseguia um tanto quanto confusa. Abraão estava diante de Deus, mas ele O tratava como seres distintos, chamando-os de “meus senhores”. Os três anjos conversaram com Abraão, o orientaram e até se alimentaram junto com seu anfitrião. Aquela cena já era um tanto estranha, mas agora parecia ainda mais assombrosa, quando Gabriel percebeu que o Deus do Velho Testamento quando se apresentava, sempre possuía características humanas. Conversava como um homem. Comia como um homem. Caminhava como um homem. Mas o que mais prendia a atenção de Gabriel naquele texto era o momento em que Sara, mulher de Abraão, se queixava em pensamento por não ter filhos. Subitamente os anjos ouviram suas frustrações e lhe repreenderam, revelando que Sara teria um filho dentro de um ano: Isaac, o filho primogênito de Abraão. Logo, aquele detalhe fez Gabriel se lembrar que os Sacerdotes Harashis possuíam a habilidade de se comunicarem através de suas Mentes. Quão próximos daquela realidade agora vivida por Gabriel estariam os anjos apresentados na Bíblia? Perguntou-se. Por mais que ele tentasse, em seu íntimo, cada vez mais enxergava aquelas passagens da Bíblia não mais como passagens simbólicas – como muitos fiéis cristãos tendiam a interpretar, aludindo o conjunto dos três seres como uma representação primitiva da Trindade cristã –, mas como uma narrativa factual, onde, em vez de anjos celestiais, Gabriel via Sacerdotes Harashis conversando com o histórico patriarca semita.

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Mais uma vez aqueles pensamentos se dissolveram em meio à realidade, e ele fitou Marishi caminhando pela nave do Santuário. - Então... Sacerdotes Harashis estiveram presentes nos episódios narrados pela Bíblia? – Replicou o garoto, ainda perplexo. - Não só da Bíblia, mas em narrativas de todas as Escrituras Sagradas do seu planeta. Várias de nossas missões foram relatadas nos livros dessas religiões. Mas se quiser saber de fato como ocorreram, todas estão registradas nos Arquivos da Ordem. - As histórias da Bíblia estão guardadas nos arquivos da Ordem Harashi? - Boa parte delas. E claro, com muito mais detalhes do que a memória fotográfica de suas testemunhas era capaz de registrar e transferir para o papel. Com o passar do tempo, essas histórias passaram a ser escritas ou incompletas ou corrompidas pelas lendas criadas pela imaginação popular. Gabriel apenas concordava. Àquela altura sua cabeça já começava a doer. Eram informações demais para ele digerir tão rapidamente. Fora que estavam caminhando sem parar a um bom tempo. Suas pernas já estavam cansando. Embora não fosse sedentário, ele não estava preparado para aquela maratona de resistência física e mental. - Falta muito para chegarmos? Estamos andando desde que saímos do Laboratório. – Perguntou, sem conseguir ocultar sua visível fadiga. - Ainda temos um pouco de chão até chegarmos à Academia do Santuário. Você não pode ver porque estamos abaixo da terra, mas acima de nós existe um grande jardim que preenche o espaço que ele ocupa. - De fato é grandioso. Nunca vi nada parecido. – Disse Gabriel, meio ofegante. – Você falou que há muito tempo os Sacerdotes já visitavam meu planeta, mas qual é a origem da Ordem Harashi? - Você irá aprender que tudo neste Universo é uma constante evolução de algo que já existiu em outro ponto, Luhan. - Como assim? - Assim como aconteceu em seu planeta, todas as manifestações espirituais presentes neste Universo começaram com a experiência e a assimilação de fenômenos por parte dos seres mortais conscientes. E do 93


mesmo modo ocorreu para a fundação a Ordem Harashi. – Marishi continuou. – A origem da Ordem remonta a uma antiga religião do extinto planeta Malavah. Há muito tempo, este planeta se encontrava em um estado evolutivo semelhante ao seu. Havia diversas crenças instaladas nele, mas uma em especial se destacava: a Religião Harah, ou Religião da Luz. Não muito diferentes de nós, os Sacerdotes dessa religião estudavam os mecanismos de evolução do Universo e como eles se manifestavam através de nossas Mentes. Acontece que por conta de conflitos políticos a religião se dividiu, gerando inúmeros grupos que lutavam entre si por poder, e isso desencadeou uma guerra civil em Malavah. - É muito parecido com o que está acontecendo com algumas religiões de meu mundo e seus grupos conservadores. - Eu sei... Desde o princípio, os povos do seu planeta estão em guerra por razões religiosas. E isto não é um mero acaso, infelizmente. - Mas e depois, o que aconteceu em Malavah, Marishi? -

Essa guerra foi devastadora, a ponto dos seus habitantes

praticamente destruírem o planeta com armas subatômicas. Por sorte, alguns poucos Sacerdotes conseguiram escapar do planeta. Nesse momento, eles já haviam construído diferentes visões de como deveriam continuar a religião, e acabaram se dividindo em três grupos distintos. Um desses grupos se isolou no distante planeta Moronah, fundando a Ordem Akehran.23 Ela é composta de ascetas que se dedicam aos estudos dos mesmos princípios originais da religião Harah. Mas diferente da Ordem Harashi, eles não possuem treinamento físico, são apenas contemplativos. Seus membros são conhecidos como Monges Akehranianos, e são liderados por Khanus Valohrim, conhecido como o Patriarca da Chave. Outro grupo dissidente rumou para o planeta Kamonih, na época, regido por uma opressora monarquia. Lá, fundaram a Ordem Orihman24, criando uma filosofia própria em torno das crenças da religião Harah. Nessa nova doutrina, substituíram os antigos conceitos por outros de mesmo valor,

23

Ordem dos Portadores da Chave, em Korah.

24

Ordem dos Guias do Caminho.

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porém, sem o misticismo pregado pela religião. Seus ideais de liberdade contrariavam os costumes ancestrais, e não demorou para que entrassem em atrito com os líderes do reino. Após uma longa guerra, essa Ordem derrubou a tradicional monarquia, criando uma sociedade igualitária que não durou por muito tempo, até as relações comerciais com outros planetas gerarem castas tão opressoras quanto o antigo regime. Agora, os Padres de Kamonih dominam e regem a vida da população do planeta por meio de suas infindáveis leis, e pelo braço de ferro da Assembleia da Estrela Vermelha e pelo orgulhoso e violento Príncipe Planetário, Helforas Shalimen, o líder supremo da Ordem. - E a Ordem Harashi? – Perguntou Gabriel, curioso. - Ela foi a última e a mais complexa Ordem formada. Em meio ao conflito, seus fundadores – os últimos Sacerdotes que fugiram de Malavah – conseguiram salvar a maior quantidade de registros da religião Harah. Com isso, fundaram a Ordem Harashi25 para preservar os conhecimentos da antiga religião. Eles eram sete, e cada um, à sua maneira, desenvolveu o até então limitado conhecimento difundido pela religião. Além da grande espiritualidade, os fundadores nos revelaram grande parte da Ciência que hoje estudamos. Com isso, a Ordem foi agregando cada vez mais cientistas que buscavam o conhecimento que nenhuma outra irmandade possuía. - E que conhecimento é esse? - O que você vai aprender a partir de agora. – Marishi conduziu Gabriel até uma grande praça circular no coração do templo. Ao centro, uma alta fonte de cristal em formato de pirâmide exalava água que corria para fendas no chão. Gabriel observava o ritmo do Santuário pulsar ao seu redor. - Esta água alimenta nossas estufas nos andares inferiores. O cristal se torna um filtro, tirando suas impurezas. Como pode ver, assim como na natureza, tudo no Santuário é reaproveitado. – Frisou Marishi, antecipandose à curiosidade do garoto. Em seguida eles seguiram para uma imensa porta de aço que logo deslizou enquanto eles adentravam em um grande salão. O recinto era longo.

25

Ordem dos Mestres da Luz.

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Suas paredes pareciam não ter fim, à medida que Gabriel observava as altas colunas que as ladeavam. Ao final do saguão, uma elevação que parecia um altar em meia lua destacava sete estátuas douradas. Gabriel já imaginava de quem se tratavam. Embora parecessem iguais, com seus rostos cobertos por máscaras, cada escultura de um dos Sete Sacerdotes fazia um gesto diferente com a mão, simbolizando uma característica peculiar de cada fundador da Ordem. Abaixo das estátuas, alguns Sacerdotes esperavam a chegada de Marishi para iniciarem a cerimônia. E mais abaixo deles, inúmeros jovens da idade de Gabriel se encontravam de pé, ao longo do salão. Eles eram filhos de cidadãos, professores, cientistas, embaixadores e até mesmo de outros Harashis. Aqueles garotos buscavam ingressar não só na vida acadêmica comum a

todos

os

habitantes

daquele

planeta,

mas

também

numa

vida

espiritualizada, que a Ordem oferecia a todos que se interessavam pelos mistérios do Universo em que viviam. Marishi se aproximou de um dos garotos, misturado na multidão. Sua aparência se destacava pela roupa que trajava. Aquela vestimenta rubra de tons escuros cobria todo o seu corpo, de modo que de costas, parecia que o garoto vestia um manto preso a um cinto, mas ao virar-se, Gabriel percebeu que se tratava de uma longa jaqueta fechada, parecida com a que vestia. O traje, não diferente dos demais, era completado por uma peça de couro que cobria os braços até os punhos, deixando somente as mãos livres. Completando o conjunto, grossas botas fechavam-se ao redor de sua calça, assim como em Gabriel. O garoto, ao sentir a presença de Marishi próximo de si, prontamente virou-se, encarando-o firmemente. - Shylon, eu quero que você conheça um jovem que vai ingressar na Ordem, assim como você. Ele veio de muito longe, e quero que você o ajude a adaptar sua nova vida aqui em Nemashi. – Disse Marishi, olhando para o garoto à sua frente. Em seguida, virou-se para Gabriel, enquanto ajeitava seu lumehrin que escorregava por seu ombro. 96


- Luhan, este é Shylon Helamen,26 meu filho. Os olhos escuros do jovem se voltaram para Gabriel, observando-o. Sua fisionomia não era em nada diferente dos amigos de Gabriel. De estatura mediana, e cabelos negros curtos, meio encaracolados, o que lhe tornava distinto dos demais jovens ali presentes era seu semblante, sério, como de alguém que estava fechado em seus próprios pensamentos. A priori, o garoto parecia não ter gostado de ser incomodado, continuando calado, enquanto analisava Gabriel da cabeça aos pés. - Prazer em conhecê-lo. – Gabriel estendeu a mão para cumprimentálo, porém Shylon não entendeu aquela atitude, apenas olhando-o com estranheza. - Creio que ele não conheça os nossos costumes. Nem nós os deles. – Disse Marishi, intervindo. – Aqui nos cumprimentamos reverenciando uns aos outros. É uma maneira de demonstrarmos humildade e respeito pelo o que o outro é. – Marishi curvou sua cabeça ante Gabriel, levando sua mão à testa e em seguida estendendo-a em direção ao garoto.27 Gabriel observava com atenção, enquanto Marishi lhe ensinava. - Me perdoe. – O garoto curvou-se repetindo o gesto diante de Shylon, que apenas sorriu. Pela primeira vez Gabriel viu uma franca expressão

26

Seu nome completo era Shylon Arthah Luhmis Helamen. Filho único do Sumo Sacerdote Marishi Arthah Helamen e da Sacerdotisa Sahnma Luhmis Helamen, nasceu em Nemashi no dia 15 do mês de junho do ano de 1995, segundo o calendário ocidental padrão de Yuransha.

27

Este cumprimento era seguido pela frase que abre meu relato: He’er Vah Shelan Lo’oyashnu – Que a minha Paz se encontre dentro de vós. Usada principalmente entre povos distantes e estranhos à nossa cultura, tal símbolo de paz era um modo de mostrar respeito pela pessoa, pela sociedade, e principalmente pelo que o indivíduo representava, simbolizado pela Mente, oferecida simbolicamente ao estrangeiro,

em sinal

de

cordialidade. Acima de tudo, aquele gesto era um convite à coexistência pacífica entre os povos, que muitas vezes tinham costumes considerados por nós como autodestrutivos e irracionais. E como mostrarei mais adiante, em várias oportunidades esta prática em nada ajudou para evitar que nos colocássemos em situações perigosas em outros planetas. Posteriormente, pela dinâmica de nossa sociedade, sua fórmula ficou resumida à saudação Vah Shelan, ou A Minha Paz.

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brotar de sua face, e aquele tenso encontro foi rapidamente trocado por um agradável clima de cordialidade. - Não se preocupe com isso. Nunca gostei de formalismos, ao contrário do meu pai. – Shylon estendeu sua mão a Gabriel, que apertou de volta. – Então, Luhan... – Disse Shylon, pronunciando o nome de Gabriel pela primeira vez. – De que planeta você vem? - Nasci no planeta Terra. – Respondeu Gabriel. - Planeta Terra? Nunca ouvi falar. Que mundo é esse? - Um mundo muito, muito distante... – Aos poucos, Gabriel começou a socializar com seu novo amigo, e assim, percebeu que nem sempre a primeira impressão era a que ficava. Enquanto os dois conversavam, Marishi subiu a escada para se juntar aos seus companheiros de Ordem. Imediatamente Haron começou a falar, em um tom solene, e como que guiados pela voz do Harashi, todos rapidamente fizeram silêncio. - Jovens... Sejam bem vindos ao Santuário da Ordem em Nemashi. Embora ele esteja aberto a todos os habitantes da Galáxia de Yashena, apenas os que se interessam adentram ainda mais em nossas paredes. Vejo no interior de cada um de vocês esse interesse, talvez o mesmo que moveu os Sacerdotes representados por essas estátuas atrás de mim a buscarem cada vez mais o conhecimento oculto em cada átomo deste Universo. – O Sacerdote fez uma pausa. – Todos nós aspiramos evoluir, superarmos nossos limites, e por fim, melhorarmos o mundo em que vivemos... – Os jovens prestavam atenção ao que o Sacerdote falava, enquanto que Gabriel ficava maravilhado com aquele ambiente. Era um estranho mundo o qual ele estava conhecendo, mas que cada vez mais lhe conquistava. -... Aqui vocês aprenderão que não importa somente ter sabedoria, mas é preciso também ter coragem; prudência; paciência; humildade; compaixão; e acima de tudo, amor... – Disse Haron. - Branah, Asha, Gaurah, Vemeh, Lithan, Rubah, Sahgi... – Shylon repetiu as palavras em Korah. – Esses são os sete princípios da Ordem Harashi. Cada Sacerdote possuía em especial uma dessas virtudes... O gesto 98


nas mãos das estátuas simboliza uma delas. – Disse Shylon, sussurrando a Gabriel. Ele já ouvira aquilo diversas vezes de Marishi. Quando criança, seu pai lhe contava as quase infinitas histórias sobre a Ordem. Enquanto Haron continuava a falar sobre a Ordem, Gabriel se perguntava o que estaria acontecendo na Terra. Embora mal tivesse chegado ali, para ele, Nemashi já estava se tornando seu novo lar, e ele não via a hora de iniciar seu treinamento. Após terminar seu discurso de boas vindas, Haron, se dirigiu novamente aos jovens. - Agora cada Sacerdote tomará dois de vocês para iniciarem seus primeiros treinamentos. Eles serão mais do que mestres, serão seus amigos, e se for necessário, eles também serão seus pais e suas mães dentro destas paredes... – Aquela frase em especial tocou o íntimo de Gabriel, que logo se lembrou dos pais que deixara na Terra. Mas agora ele sentia livre como nunca, para ser o que de fato desejava. –... Quando forem escolhidos, quero que se dirijam às capelas de meditação junto com eles para darem início ao programa de treinamento. Encerrando o discurso, Haron – assim como os demais Sacerdotes – foi ao encontro dos jovens ali presentes selecionando pares para começarem os estudos. Seguindo as ordens do companheiro, Marishi foi atrás da dupla que já havia escolhido previamente. - Vocês dois, venham comigo. Vamos começar a treinar essas Mentes preguiçosas. – Disse Marishi a Gabriel e Shylon, que o seguiram rumo ao outro lado do Santuário. Naquele momento, a cabeça de Gabriel já explodia em um misto de euforia e nervosismo. Que tipo de treinamento será esse? Perguntava-se. Em breve toda aquela agitação iria rapidamente cessar, mas não sabia ele que seria da pior maneira.

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DOCUMENTO 015 SUPERANDO OS MEDOS Após passarem por inúmeros corredores, eles adentraram em um saguão iluminado pela luz que cortava as claraboias. Enquanto Gabriel observava a grandeza do lugar, os três subiram por uma escadaria que dava em outro longo corredor com várias portas de vidro. Logo que chegou ao corredor, Gabriel reconheceu aquela via na qual caminhou assim que chegou a Nemashi. Entrando em uma das capelas, Gabriel viu-se dentro de uma sala circular igual a que havia estado.O teto era adornado por uma cúpula translúcida, adornada por desenhos simétricos em relevo. O ambiente bem iluminado, entretanto se mostrava sereno, como a sensação que desejava transmitir. Ao centro, havia apenas uma elevação em degraus, cuja forma concêntrica acompanhava as curvas da capela. - Por que tudo aqui é um círculo? – Perguntou Gabriel. - Porque é a forma básica do Universo. Tudo emana de um único ponto, e dele se expande seguindo a mesma onda. Com o tempo você vai aprender que cada parte do Santuário possui um belo simbolismo, assim como tudo ao nosso redor. – O Sacerdote respondeu. Após dar uma volta no recinto, Marishi voltou a falar. - Quero que vocês sentem-se no altar e fiquem de frente um para o outro. – Shylon subiu naquela plataforma e sentou-se de pernas cruzadas. Gabriel fez o mesmo que ele. - Vocês devem compreender algo: A Mente de vocês é o sistema central dos seus corpos. Tudo o que vocês fazem se origina nela. Por isso ela nunca cessa de funcionar. Nem mesmo quando estão dormindo. E ela apenas adormece quando entra no repouso que a morte proporciona. O Sacerdote deu uma pausa, caminhando ao redor dos garotos, observando atentamente os dois. Pensando nas palavras que diria em seguida, o ham’aryeno prosseguiu. - Da mesma forma, todo mal que acontecem a seus corpos, tem origem em suas Mentes. Seu estado de espírito influi diretamente na imunidade do 100


seu corpo, assim como na sua capacidade de reação a estímulos, e até mesmo

na

sua

regeneração

quando

estão

doentes.

Se

não

estão

mentalmente sadios, o resto tende a se deteriorar.28 - Isso significa que todas as doenças têm origem nas nossas Mentes? – Perguntou Gabriel. - Perfeitamente. Desde uma dor de cabeça por uma série de preocupações até uma doença terminal por uma depressão à longo prazo. – Respondeu Marishi. – Tudo depende de como sua Mente reage às situações. Claro que sua imunidade é um fator crucial a ser observado, somado a uma boa alimentação e exercícios, não só físicos, mas também psíquicos. Mas esta harmonia depende antes de tudo do estado em que se encontra sua Mente. - Mas pai, você sabe que não somos robôs para mantermos eternamente essa paz de espírito que tanto pregamos. – Interrompeu Shylon. 28

Aqui devo me manifestar mais uma vez para esclarecer-lhes. O desenvolvimento da Mente de fato é o marco para a origem e fim da vida como ela realmente é. A vida biológica, que é o conjunto simbiótico físico-químico que constitui seus corpos, nada mais é do que um receptáculo para a Mente, que passa a manifestar-se no corpo logo após o desenvolvimento basilar do cérebro. Se, com a formação do cérebro, dá-se início à vida consciente do ser, com a morte, ela se extingue definitivamente, de modo que até mesmo a medicina tanto do seu, quanto do nosso mundo, determina o fim da vida quando as atividades cerebrais cessam por completo. Sem o corpo a Mente não sobrevive, e sem ela, o corpo é apenas uma massa biológica vegetando até a gradual falha dos seus órgãos funcionais. Como já havia explicado, a Mente é o processador primário dessa máquina que é nosso corpo. Embora seu funcionamento não dependa apenas do cérebro, este é o principal responsável por manter o equilíbrio químico-hormonal de nossos corpos. Assim, considerando que o pensamento é uma força real, palpável e que reaje junto à matéria, todas as doenças se originam da Mente, ao passo que o pensamento correto tem um efeito regenerador nas nossas células e no corpo como um todo. Porém, tudo isso somente pode ser expresso através do motor gerador de nossos pensamentos, a sincera Vontade. Por isso, todos os fenômenos de cura, quando não ocasionados pela gradual reação de nossos corpos, são sim, relacionados pela intensa atividade Mental, direcionada para nossa autorregenerarão ou regeneração alheia. Embora tais fenômenos sejam difíceis de ocorrer no seu mundo, ao longo dos meus escritos narrarei alguns desses episódios que o seu mundo compreende como sendo “milagres”.

101


- E jamais a manteremos, meu filho. Por isso precisamos vigiar nossas Mentes para que não caiamos nesse perigo. O segredo de como se viver bem está em mantermos nossas cabeças no lugar, caso o contrário um dia poderemos perdê-la. Ainda mais nós, que possuímos o maior poder que existe neste Universo. - E que poder é este, senhor? – Perguntou Gabriel. - Um poder inimaginável que reside no interior de nossa própria Mente. A nossa Vontade. – Respondeu. O Sacerdote se aproximou dos jovens. - Sentem-se de frente um para o outro. E prestem atenção na postura, ela também deve ser observada. – O Sacerdote continuou, corrigindo os garotos. – Do mesmo modo como as moléstias podem surgir pelo desequilíbrio em suas Mentes, elas igualmente podem ser geradas pela influência de outros indivíduos. É necessário equilibrá-la para evitar qualquer enfermidade, e da mesma forma, blindá-las contra ataques externos. Os garotos subiram na plataforma e sentaram de pernas cruzadas enquanto que ouviam os ensinamentos de Marishi. - Agora, quero que vocês conversem mentalmente enquanto tentarei penetrar nos seus pensamentos. Esqueçam tudo que os cercam. Foquem na conversa. Não sintam medo ou se perturbem. Tudo o que precisam fazer é resistirem às minhas investidas. O medo os torna vulneráveis ao mais inesperado dos ataques. Vigiem suas Mentes, sempre. Imediatamente os dois jovens se encararam firmemente, enquanto conversavam em meio ao silêncio que caiu sobre eles. Ao mesmo tempo, Marishi fechou seus olhos enquanto tentava quebrar a atmosfera de pensamentos criada por Gabriel e Shylon. Imerso em sua consciência, Gabriel contava ao seu amigo seus primeiros encontros com Marishi, como foi sua viagem para Nemashi e de sua vida na Terra. A conversa fluía normalmente, enquanto o jovem relatava suas primeiras experiências em Nemashi. Mas aos poucos, ele começou a sentir pequenos vultos embaçarem sua visão assim como acontecera na primeira vez que o pai de Shylon viera ao seu encontro. Gabriel sabia que Marishi 102


estava tentando penetrar sua Mente, mas aquilo o perturbava de uma maneira petrificante. O som começava a se distorcer pelo interior do seu ouvido. Sentia um profundo temor brotar do seu íntimo como se a energia que o circundava afetasse a tranquilidade de seu coração. Aquela onda sombria

o

envolveu,

fazendo-o

perder

gradativamente

os

sentidos,

mergulhando naquele mar de trevas. Em uma reação involuntária, quis fugir dali, mas o rápido movimento apenas lhe fez perder o equilíbrio e derrubando-o sobre a plataforma enquanto era engolido por aquele abismo. Sentia como se sua consciência fosse ser partida ao meio. Em um último lapso de memória, achou ter visto Shylon correr para ajudá-lo. Mas aquela tênue luminosidade que restara foi quebrada pela definitiva escuridão que tomou conta dele. O tempo pareceu aumentar de velocidade enquanto que aquele medo o devorou por completo. E aquela sinfonia macabra foi silenciada como se o grito pavoroso de uma mulher brotasse do seu íntimo, como se aquela vibração que lhe penetrava violentamente os ouvidos fosse a morte, prestes a ceifar sua vida. Sem que pudesse reagir, aquele pesadelo subitamente cessou. A consciência de Gabriel havia se dissipado.

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DOCUMENTO 016 ACORDANDO DO PESADELO Talvez eu tenha me enganado... Sentado à beira de um leito no Centro de Recuperação, Marishi observava os olhos de Gabriel se abrirem, enquanto o jovem reagia à medicação que lhe fora administrada. - Você devia ter passado mais tempo aqui. – Disse Marishi. - O que... aconteceu comigo? – Perguntou Gabriel, ainda desorientado. - Seu corpo ainda não estava preparado para o impacto da energia que gerei contra vocês. - Há quanto tempo... - Está aqui há alguns dias. Você bateu com a cabeça no chão, mas agora está bem. – Aquelas palavras acabaram por acordar Gabriel, agora assombrado pelo que havia acontecido. – De fato ainda não estava em condições para iniciar um treinamento tão pesado. Acho que você também não se alimentou como deveria antes de vir para cá, por isso foi medicado com as devidas vitaminas que precisava. Enquanto Marishi falava, um robô se aproximou, flutuando com uma bandeja. Dentro do prato quadrado, uma substância pastosa pairava como se fosse uma sopa. Ao seu lado, um copo fluorescente refletia no rosto assustado do jovem um líquido esverdeado. - O que é isso? – Perguntou o garoto, olhando para aquele manjar que visivelmente não lhe agradava. - Outra dose de sua medicação... Ou se preferir, seu jantar. – Falou o Sacerdote, enquanto observava Gabriel estranhar a comida. - Vamos, coma. São vitaminas naturais. É o que você mais precisa neste momento. Gabriel pegou uma colher para tomar aquela sopa pastosa e logo se familiarizou com o gosto. - Isso tem um gosto peculiar. Lembra... batata. – Disse Gabriel, degustando aquilo como se fosse uma novidade para seu paladar. – Vocês também tem isso por aqui?

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- Claro. Só porque você está em outro planeta não significa que as suas plantações sejam diferentes daqui. O gosto é muito parecido porque sua composição segue o mesmo padrão: Vitaminas, amido, e claro, muita água. Uma excelente fonte de nutrientes, para alguém que precisa, como você neste momento. Em nossos mundos este alimento é conhecido pelo nome de Amahruk. - Pelo visto já me adaptei a esse cardápio extreterrestre. – Gabriel comia freneticamente, como se não visse um prato de comida há dias. O Sacerdote riu daquele momento de ingenuidade do garoto, porém, também notou que embora sua fome fosse grande, maior ainda era o seu semblante de preocupação que não conseguia esconder naquele momento. E antes mesmo que lhe dirigisse a palavra, Gabriel revelou suas dúvidas mais profundas. - Marishi, enquanto eu estava desmaiando eu tive uma visão. Eu não sei dizer, mas parecia ao mesmo tempo um sonho, mas eu estava ali, caindo em um abismo. Ouvi gritos. Senti medo... Dor... - Sua Mente às vezes faz você recordar de sonhos, lembranças ou até mesmo temores que existem em seu subconsciente. Eu apenas incitei o medo em suas Mentes para que se desestabilizassem. Mas saiba que uma Mente desprotegida pode ser manipulada ao bel prazer do seu inimigo. Ele pode lhe confundir, lhe torturar, e até mesmo lhe matar através dela. – Aquelas palavras visivelmente perturbaram Gabriel. – Mas é claro Continuou. –, com tempo você saberá como dominá-la. - E como eu farei isso, Marishi? - Com muito estudo. E principalmente, treinamento. – Concluiu o Sacerdote. – Mas agora quero que você se alimente bem. Quando terminar me encontre na saída do Complexo Hospitalar. Marishi saiu do local, enquanto Gabriel tomava aquele estranho suco, ainda desconfiado. Mas após verificar o gosto, decidiu finalmente engoli-lo. Por um minuto pensou se aquilo seria um sonho. Mas ao sentir o doce gosto daquele líquido, retornou ao mundo em que estava e percebeu que ele era real. Bem real.

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DOCUMENTO 017 A SEDE DO CONHECIMENTO Após deixar o Complexo Hospitalar, Gabriel e Marishi desceram por um longo corredor inundado pela luz que adentrava no recinto por grandes janelas preenchidas por um quase invisível vidro. Após chegarem ao seu destino, Luhan vislumbrou uma imensa fachada cujos alongados arcos tocavam o teto daquele lugar. A imensa construção era rodeada por placas de pedras incrustadas dentro dos arcos. Nelas, havia caracteres que Gabriel agora lia, sem compreender, porém, o seu conteúdo. - O que são esses textos Marishi? - Elas são placas que reconstituem partes dos primeiros textos da Ordem Harashi. Foram estas as obras que nossos Sacerdotes fundadores conseguiram salvar antes da destruição de Malavah. Boa parte delas está guardada dentro deste local: A Biblioteca do Santuário. Aqui é a sede do conhecimento dos nossos sistemas estelares. – Disse Marishi enquanto que cruzavam uma das grandes portas de metal assentadas abaixo dos arcos. Após descerem uma escadaria rodeada por colunas, eles atravessam novos portais em formas de arco e então Gabriel pôde contemplar o verdadeiro tamanho da construção. Diante dele, a arquitetura da Biblioteca o fazia se sentir como se ele houvesse mergulhado na imensidão do local. Ela parecia um oceano sem fim que submergia à medida em que se olhava para sua outra extremidade. Inúmeros patamares desciam seguindo o desenho inclinado do teto. A altura do enorme salão também era acentuada, com suas finas colunas que o sustentava ao longo daquela arquitetura em declive. A princípio, Gabriel pareceu confuso se perguntando onde estavam os livros, pois somente via as incontáveis mesas de leitura com suas telas luminosas, onde diversos Sacerdotes se encontravam sentados. Uns sozinhos. Outros, em grupos.

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Mas descendo as escadarias, ele vislumbrou inúmeros corredores abaixo de cada patamar, onde várias filas de prateleiras se organizavam simetricamente.

Um

forte

brilho

azulado

emanava

do

seu

interior,

iluminando-as perfeitamente até o fim daquele túnel. Cada uma dessas estantes estava repleta de pequenos cubos de metal polido, dispostos um ao lado do outro. Aquela fileira parecia não ter fim, como se espelhos tivessem sido posicionados projetando uma imagem infinita. Foi então que Gabriel compreendeu a verdadeira extensão daquele lugar. Aquela Biblioteca ia além de onde seus olhos eram capazes de alcançar. - É incrível, não é? – Disse Marishi, percebendo a surpresa de Gabriel. – Este é o maior acervo de toda a Galáxia. Também possuímos textos e escritos de outros planetas e sistemas vizinhos. - De toda a Galáxia? - Sim. Este Universo é grandioso. O número de sistemas habitados é ínfimo comparado ao número de planetas e estrelas que existem, mas ainda assim são inúmeros. Somente planetas com as condições do seu são capazes de abrigar vida desenvolvida. Aqui em Ashunyah, todos os mundos habitados como Nemashi possuem a mesma atmosfera, geografia, e as condições climáticas para abrigar uma biosfera tão diversificada. Se estivéssemos mais longe ou mais perto de nosso Sol, não seria possível estarmos aqui, da mesma forma como em seu planeta. - Como assim? - A evolução em nosso Universo é um princípio imutável. A vida como conhecemos somente pôde se manter estável seguindo um determinado padrão. Desse modo, um planeta somente desenvolve seres vivos complexos se seguir uma constante entre sua distância com o Sol e se houver rotação em seu próprio eixo. Se não fosse assim, nós... - Nunca teríamos existido... – Disse Gabriel, abismado. - Exato. – Confirmou o Sacerdote. – Além do mais, nossa evolução se baseia na premissa básica de que precisamos de um primata comum para chegarmos ao nosso nível de consciência. Sem isso, nossa espécie jamais existiria. Até que se prove o contrário, somos a espécie mais evoluída. - Somos a única espécie inteligente no Universo? 107


- Depende do que você considera inteligente. - Ora Marishi, estou falando de nós, seres humanos. - Luhan, quero que você entenda que aqui em Nemashi e em outros mundos, a espécie que você chama de humana não é a única. O queixo de Gabriel caiu. Ele não esperava ouvir aquilo do Harashi. Em sua cabeça, as histórias de seu mundo sobre seres extraterrestres de outra espécie eram apenas uma grande mitologia, assim como tantas outras. - Você quer dizer que existem outras raças além da humana? – Perguntou o garoto, bestificado. - Sim. Tanto aqui, como em vários outros planetas do Universo, a evolução gerou diversas espécies de animais, uns mais parecidos com os encontrados em seu planeta, outros nem tanto. – Marishi parou enquanto refletia sobre suas próprias palavras. – Entretanto, existe algo que nos difere drasticamente dos demais animais. - E o que é? - A Mente. – Marishi continuou. – Somos a única espécie que possui a capacidade de pensar, de refletirmos, e de se comunicar a partir da linguagem. Mas isso foi fruto de um longo processo evolutivo. E como em qualquer processo, este não foi linear. – Disse o Sacerdote. Marishi explicou a Gabriel por que a espécie conhecida na Terra como homo sapiens era uma constante no universo. Da mesma forma explicou como o processo evolutivo acabava por gerar uma espécie mestra que possuía como características finais o intelecto e a atividade psíquica desenvolvida pela atividade da Mente. Segundo o mestre, assim como ocorreu em Yuransha, os antigos primatas dos diversos planetas do Sistema de Ashunyah evoluíram até estagnarem no padrão conhecido no planeta de Gabriel como o gênero homo. Esta espécie genérica evoluiu em vários subgrupos até chegar ao correspondente do homo sapiens. Eles eram chamados de Devahan. Entretanto, ao longo do tempo, o ambiente, os hábitos alimentares, e as condutas desses indivíduos acabaram por determinar a supremacia de pelo menos cinco dessas espécies distintas.

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Os Mynohr, ou mynoriahnos, eram uma dessas espécies em Yashena. Verdadeiros guerreiros, eles evoluíram de primatas do planeta Mynoriah, muito parecidos com seus equivalentes de Yuransha. Após milhões de ciclos residindo naquele mundo, eles perderam os pelos do corpo por conta do forte sol que o circundava, e como consequência, eles adquiriram a pele de tonalidade negra. Uma característica peculiar dessa espécie, devido ao tipo de primata do qual evoluíram, era a presença de orelhas alongadas. Por conta da grande quantidade de alimentos disponíveis em seu planeta, se desenvolveram com distinta altura, uma poderosa saúde, e alta percepção mental, devido à boa alimentação. Também por esses fatores, os Mynoriahnos construíram sua sociedade baseada em uma economia monetária. Devido à sua cultura competitiva e bélica, tornaram-se ótimos mercadores, pois sua produção era baseada no livre mercado para comerciarem entre eles e com os reinos vizinhos. Por muitos, considerados uma das raças-mãe de Yashena, também eram desprezados por serem demasiadamente orgulhosos de suas origens. Foi durante essa explanação de Marishi que Gabriel atinou para o fato de que Haron não era humano, mas sim pertencente à espécie dos Mynohr, sendo isto posteriormente confirmado pelo Sacerdote quando indagado pelo curioso Discípulo Harashi. Já o padrão que o jovem conhecia como humano, em Yashena era denominado de Elohay, ou elohanianos. Eles eram considerados uma raça intermediária, ainda em estágio final de evolução. Uma das características principais que identificava os elohanianos era a miscigenação. Assim como em Yuransha, os elohanianos evoluíram de primatas comuns

a

alguns

planetas

de

Yashena,

adquirindo

características

comportamentais distintas das demais. Era uma espécie que seguia um padrão diversificado, sendo ao mesmo tempo competitivista e passivo. Possuíam uma nutrição ora baseada em comida industrializada, ora em produtos naturais. Ora sedentários, ora ativos. Por isso, possuíam uma saúde em geral estabilizada. Entretanto, por condições de costumes que não prezavam pelo desenvolvimento intelectual, a sua percepção era parcialmente bloqueada, 109


necessitando de estímulos para ativar as regiões adormecidas de suas Mentes, como aconteceu com Gabriel. Continuando aquela aula sobre a evolução das espécies, Marishi falou sobre outra espécie de Yashena, os Ham’Aryen, ou ham’aryenos. Eles eram fisicamente idênticos aos elohanianos, diferindo apenas em um único fator: após muito tempo de evolução, desenvolveram uma monoetnia, possuindo traços parecidos e cor de pele híbrida. Ao mesmo tempo possuíam uma atividade psíquica intrínseca devido às suas intensas práticas espirituais desde os primórdios de sua evolução. Desenvolveram vários planetas do sistema e disseminaram pela Galáxia uma cultura baseada na justiça e no respeito mútuo. Eles seguiam uma dieta vegetariana, baseada em frutos e produtos naturais, ao mesmo tempo em que mantinham uma rígida disciplina de treinamento,

mantendo

o

equilíbrio

físico

e

mental.

Os

Sacerdotes

fundadores da Ordem Harashi eram em sua maioria ham’aryenos, o que fez com que a Ordem fosse assentada sob tais princípios. Era considerada a espécie moralmente mais desenvolvida. O modelo de perfeição. Por sua vez, rivalizavam política e ideologicamente com os Mynoriahnos. Durante sua explicação, Marishi revelou a Gabriel que, assim como Haron, ele também não era humano, pertencendo a espécie Ham’Aryen. Por sua vez, pelo que Gabriel entendera, Shylon era mestiço, tendo nascido de uma mãe elohaniana, a Sacerdotisa Bashet, que faleceu pouco tempo após ele nascer. No fim das contas, aquela miscigenação em nada alterava o desenvolvimento do garoto, uma vez que ele nasceu com características psíquicas inerentes aos ham’aryenos. Outra espécie um tanto quanto curiosa eram os Syhrins, ou syhrinianos. Fisicamente parecidos com os elohanianos, mas desenvolvendo uma

peculiar

monoetnia,

assim

como

os

ham’aryenos,

eles

eram

considerados a espécie fisicamente mais fraca, devido à grande dependência de medicamentos, o que debilitou seu sistema imunológico, também enfraquecendo sua estrutura muscular. Outro fator para tal foi o forte desenvolvimento da tecnologia em suas sociedades, o que os tornou

110


sedentários. Para combater isso, muitos deles passaram a seguir a dieta e os costumes dos ham’aryenos. Possuíam

uma

percepção

tão

poderosa

quanto

estes

e

os

Mynoriahnos, a ponto de serem considerados estudantes natos. Sua cultura não belicista também contribuiu para trocarem o desenvolvimento físico pelo intelectual, fazendo muitos deles optarem pelo caminho da contemplação pessoal e do isolamento. Tais comportamentos impulsionaram a fundação de irmandades espirituais como a Ordem de Akheran, que apenas prezava pela contemplação, desprezando o treinamento físico. Por fim, a quinta espécie conhecida em Yashena era a dos Akhan, ou akhanianos. Parecidos com os mynoriahnos, eram, porém, mais baixos e mais fracos do que estes. Oriundos das constelações de Sa'a-Moryah, eles viviam do comércio ilegal com os reinos das Zonas Periférica e Pós-Periférica, da agricultura local, e alguns, da navegação e de roubos pela Galáxia e suas fronteiras desconhecidas. Por serem voltados a práticas obscuras, e possuírem uma cultura de violência, suas Mentes eram bloqueadas para as faculdades psíquicas. Poucos

conseguiam

libertá-las.

Por

seu

temperamento

difícil,

eram

conhecidos pelo apelido de “as rochas”. Em sua maioria eram nômades, e os que se fixaram em determinados planetas, desenvolveram sistemas políticos e econômicos baseados na escravidão de outros povos. Eram considerados a escória da Galáxia. Marishi complementou dizendo que, embora somente cinco espécies fossem conhecidas em Yashena, muitas outras poderiam existiam em outras galáxias e sistemas, devido à diversidade de animais que evoluíram ao longo das eras. Porém, frisou que esta evolução estava obrigatoriamente atrelada ao padrão universalmente conhecido dos primatas bípedes, uma vez somente nestas condições poderiam evoluir até alcançarem a capacidade cognitiva pela atividade de suas Mentes. Gabriel passou o resto da tarde com Marishi na Biblioteca do Santuário. O Sacerdote, como um professor visivelmente interessado em ensinar ao garoto, se utilizou dos diversos recursos disponíveis, desde os 111


Tahamalens contendo informações sobre o assunto, até apontando para os outros

Sacerdotes

ali

presentes

e

mostrando

as

espécies

e

suas

peculiaridades. Gabriel jamais imaginou que o Universo pudesse conter segredos tão fantásticos. Aquela aula sobre a evolução o fascinava a cada detalhe explicado por Marishi. Em meio às lições do Sacerdote, perguntou-se se na Terra os homens também não estariam caminhando rumo a esta evolução. A resposta que ele encontrou era única para todos os seres. Só depende dos meus esforços pessoais. Pensou. Ele estava certo. O caminho seria árduo. Mas para Gabriel, assim como para a humanidade, aquela caminhada estava apenas começando.

112


DOCUMENTO 018 LAR DOCE LAR Ao anoitecer, após saírem da Biblioteca, Marishi conduziu Gabriel por um longo corredor. Entre os imensos arcos, altas estátuas decoravam o ambiente, cada uma, em uma disposição diferente. Gabriel observava tais esculturas com cuidado, prestando atenção nos detalhes daquelas imagens dos Sacerdotes mais importantes do passado da Ordem. - Marishi, para onde estamos indo? – Perguntou o jovem, curioso. - Para o único lugar onde você poderá ir neste momento. - Como assim? - Para sua nova casa. O lugar onde você irá morar a partir de agora. Gabriel não teve tempo nem de falar, quando os dois cruzaram um longo portal de concreto. Suas pupilas imediatamente se contraíram, não somente por conta da intensa luz, mas principalmente pela visão que o abismara. Centenas, talvez milhares de andares acima, uma imensa torre brotava do solo, quase que alcançando os céus. Gabriel olhou ao seu redor sem acreditar naquela construção ao qual haviam acabado de adentrar. O ambiente mais lembrava um arranha-céu de Nova York, só que em vez de concreto, o jovem apenas vislumbrava luzes e vidros cristalinos. Meticulosamente projetado, o piso em que se encontravam se assemelhava a um jardim, com altas árvores, fontes, e passeios que tomavam conta do vasto espaço. Ao prestar mais atenção, percebeu que aquela construção circular era sustentada por imensos pilares de vidro. Aquela colossal engenharia desafiava a mente de Gabriel que se perguntava como aquilo era possível. Olhando mais a frente, pôde contemplar os demais patamares abaixo dele, situados entre os vãos abertos ao redor daquele jardim, onde inúmeras escadarias em espiral levavam a um subsolo desconhecido. Sacerdotes iam e vinham de um lado para o outro.

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Várias placas luminosas indicavam locais específicos do Santuário: Arenas de Jogos; Mesas Comunitárias; Setor de Alimentação... Aquele mundo parecia cada vez mais fantástico. Mas ao chegar ao seu destino, algo deixou Gabriel boquiaberto. Aquelas colunas de vidro que aparentemente sustentavam o edifício, na verdade eram imensos dutos translúcidos. Vistos de baixo, vários Sacerdotes entravam em suas plataformas, desaparecendo e surgindo em outros patamares. - Aqui é a Torre da Habitação. – Disse Marishi, enquanto se aproximava de um dos canos transparentes. – É o ponto mais frequentado do Santuário. Neste edifício se encontram os apartamentos de cada Sacerdote. Da mesma forma, abaixo de nós, temos o refeitório onde fazemos nossas refeições, assim como a cozinha, onde robôs preparam a regulada alimentação de nossa dieta. - É imenso... – Disse Gabriel, olhando para cima. No alto, uma cúpula de vidro revelava o estrelado céu noturno acima de sua cabeça. - Espere até você ver a vista. Você irá gostar. – Marishi conduziu Gabriel o interior de uma plataforma metálica que se encontrava no interior do tubo. - Setor 119. – Disse Marishi, ordenando à máquina. Setor 119? Pensou Gabriel. Isso não significa que vamos subir... Imediatamente os pensamentos de Gabriel fugiram de sua cabeça. Sem perceber, ele havia desaparecido, e instantaneamente, aquele silencioso dispositivo fez o jardim em que estava parecer um diminuto ponto verde lá embaixo. Gabriel se contorceu na plataforma levemente perdendo o equilíbrio. Mal tendo tempo de espiar pelo vidro, Marishi já saia da máquina, forçando Gabriel a segui-lo por um longo corredor que circundava o patamar. Bem iluminado, ele se destacava pela uniformidade da sua arquitetura, onde incrustadas nas paredes esbranquiçadas, portas de metal polido selavam um portal retangular com uma placa luminosa incrustada na parede ao seu lado. Gabriel lia o nome e sobrenome de diversos Sacerdotes.

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Mas o que ele não esperava, era que em uma dessas placas, estivesse seu nome quando Marishi chegou ao seu destino. Luhan’Elezih Yuransha. O garoto leu em Korah, sem acreditar. Luhan, do planeta Yuransha, dizia o letreiro luminoso. - Yuransha? - Sim – Disse Marishi, afirmando com a cabeça. – Esse é o nome pelo qual seu mundo é conhecido no nosso, o nome cósmico do seu planeta. Terra é um nome que vocês elegeram por convenção, mas em nossa língua e em outras ele tem um significado maior: A palavra Yuransha significa planeta azul. Pelo menos é como ele se parece, não acha? Gabriel não achou palavras para se expressar, apenas repetindo aquele nome em sua cabeça. Imediatamente Marishi se aproximou da porta, e mandou Gabriel fazer o mesmo. Após alguns segundos, a porta de metal deslizou como se tivesse sido aberta por alguma senha mágica para entrar nas cavernas secretas, como nas lendas árabes. Seguindo Marishi, Gabriel entrou no que viria a ser o seu próprio mundo. Não muito diferente da Terra, aquele ambiente era bastante acolhedor. Bem na entrada, um pequeno jardim era iluminado por uma tênue luminescência. A iluminação do quarto parecia brotar das paredes, sem ser nem agressiva, nem fraca demais. Gabriel estava se sentindo de fato em casa. Após subir alguns degraus, outro ambiente se revelou. Uma singela sala de refeições abrigava uma mesa circular de metal que pairava no ar, enquanto vários cubos acolchoados a circundavam. Mais a frente, um longo divã jazia encostado na parede. Cavada nela, um grande nicho retangular era iluminado por um forte brilho azulado. Gabriel no mesmo instante já associara aquela claridade aos inúmeros Tahamalens dispostos nas prateleiras. A única coisa que Gabriel estranhou foi o fato de que não havia nenhuma janela naquele lugar. O clima, porém, era agradável, como se a temperatura fosse rigorosamente controlada. - Este aqui é seu apartamento, Luhan. É aqui que passará seus dias dentro do Santuário. – Disse Marishi enquanto observava Gabriel caminhar pelo local. 115


- É muito lindo. – Disse o jovem, ainda admirado. - Aqui você não precisará se preocupar com nada. Ele possui um sistema de comunicação com todo o Santuário. Se precisar, poderá entrar em contato com meu apartamento caso queira falar comigo, ou com os nossos droides na cozinha para lhe trazerem alguma refeição. - Mas como farei isso? - Ora, através de sua voz, claro. Nossa tecnologia funciona através do comando de voz ou de nosso biomagnetismo. Até a climatização do apartamento é controlada através dos sinais gerados pelo seu corpo. Se você estiver sentindo frio, ela automaticamente aumenta. Se estiver sentindo calor, ela diminui. Toda tecnologia serve para facilitar o dia a dia de nossas vidas - Tudo é incrível! – Gabriel não parava de girar sua cabeça admirando o ambiente. - Com o tempo você descobrirá como funcionam nossos sistemas de comunicação. Tudo o que você precisar poderá ser encontrado em nossos terminais. Através da inteligência artificial de nossas máquinas, nós administramos nosso mundo sem precisarmos mexer um dedo. É uma perfeita autogestão: O sistema gere o próprio sistema. - Compreendo. – Disse Gabriel, enquanto procurava uma cama no meio daquele grande salão. – Marishi, eu tenho uma dúvida: onde irei dormir? - Claro... – Disse Marishi, sorrindo. – Quase me esqueci. Siga-me. Marishi conduziu Gabriel através do apartamento. Ao cruzarem um portal, as luzes logo se acenderam, revelando o que a partir dali seria o quarto de Gabriel. As paredes se fechavam num grande retangulo, mas ao centro, uma grande cama circular se destacava no meio do ambiente, elevando-se do chão como se fosse um altar de pedra. Ao redor, não havia nada além de alguns divãs parecidos com o que Gabriel observara no ambiente anterior. - Este é o meu quarto? – O jovem não parecia tão animado ao ver aquele lugar apenas preenchido por uma cama e alguns sofás. Não havia

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mais nada. Nenhuma planta, nenhuma decoração, só o leito e algumas almofadas. - Creio que você não gostou muito. Mas é claro, as cortinas estão abaixadas. – Disse Marishi, em tom irônico. Marishi caminhou até a parede, sendo seguido por Gabriel. Dando uma ordem, imediatamente as paredes subiram revelando sua fina película que separava o quarto de outros compartimentos embutidos na parede. No seu interior, vários artefatos surgiram: De estranhos objetos até uma série de trajes pendurados em uma longa fileira. - Gabriel, suas roupas ficarão guardadas aqui. Separamos várias peças do seu tamanho. Creio que não terá dificuldade em utilizá-las nos momentos certos. Algumas até se parecem em muito com as usadas em seu planeta. Marishi apontou para uma pilha de cuecas organizadas dentro de um nicho na parede. O garoto não conseguiu conter o riso. - Como lhe falei tudo aqui funciona à base de comandos de voz. Cada ambiente possui seu sistema de administração particular, que se integra à rede central do Santuário, que por sua vez, faz parte da rede central do planeta. – Disse Marishi, explicando ao garoto. – No seu quarto, o sistema que funciona atende pelo nome de Odah. Colocamos uma voz feminina nele para ficar, digamos... mais agradável. Qualquer coisa que você precise, é só ordenar que será atendido. Marishi se afastou do armário. Gabriel o observava atentamente. - Odah, feche os compartimentos de vestimentas, por favor. – Ordenou o Sacerdote. Sim, meu senhor. Uma suave voz metálica ecoou pelo quarto. Imediatamente, a película que a pouco havia subido, retornou para onde estava ocultando novamente o armário na parede. Gabriel não conseguiu fazer outra coisa, senão soltar um silencioso sorriso. - Agora, só falta lhe mostrar mais uma coisa. – Disse Marishi, passando a mão na sua alva cabeça raspada. – Quando se cansar de olhar para as paredes, você poderá ir até a janela... – Marishi ditou outra ordem para o sistema. Imediatamente, a aparente parede que existia na lateral do 117


quarto subiu, revelando algo que Gabriel jamais imaginara existir. Diante do garoto, um mar de luzes se misturou a um vasto oceano negro. Inicialmente, Gabriel pensou que se tratava do céu estrelado, mas quando esfregou seus olhos diante daquela visão, avistou uma imensa cidade iluminada com seus altos arranha-céus, assim como enxergara em sua visão quando tentara contatar Marishi pela primeira vez. Diante dos seus olhos, Gabriel contemplava a grande cidade que cobria boa parte de Nemashi. A altura em que se encontrava fazia seus olhos irem além dos limites do Santuário. Abaixo, Gabriel via imensas vias e praças iluminadas se perderem ao seu alcance, em meio a traçados arquitetônicos que se embaralhavam pela extensão do grande jardim. Ao fundo, uma muralha de prédios se erguia, parecendo cercar o diminuto Santuário. Embora estivessem a quilômetros de distância, aqueles edifícios pareciam bem maiores do que o colossal ambiente em que se encontrava. Contrastando, um vasto campo verde tomava conta dos arredores. Estou numa selva de pedra ou numa floresta paradisíaca? Gabriel perguntou-se. Embora não pudesse conceber aonde terminava, aquela visão dava noção do tamanho do mundo em que Gabriel viveria a partir de então. - Eu lhe falei que iria gostar da vista. – Disse Marishi, ironizando. Os olhos de Gabriel brilhavam enquanto ele não desgrudava daquela extraordinária

paisagem.

O

jovem

ainda

passaria

um

bom

tempo

contemplando aquele luminoso cenário. Uma acolhedora certeza tomou conta dele, extinguindo de vez suas dúvidas. Agora aquele era de fato o seu novo lar.

118


DOCUMENTO 019 TORNANDO-SE UM GIGANTE O sol mal havia nascido quando Gabriel abriu os olhos. Pela primeira vez, Marishi o fizera levantar cedo naqueles dias. Odah, com sua aconchegante voz o acordara, informando o horário, clima e as ordens transmitidas pelo Sacerdote para que o jovem se alimentasse e trocasse de roupa o mais breve possível, pois o dia seria longo. Porém Shylon insistiu que colocasse roupas mais leves. O dia estava quente. Gabriel ainda não estava acostumado ao longo horário de Nemashi, e aquele súbito despertar o fez sentir-se em um quartel. E de fato, ele estava a caminho de se tornar um soldado. Após tomar um reforçado café da manhã em seu apartamento com estranhas frutas nativas do planeta, o garoto foi ao encontro do Sacerdote, como previamente determinado. Mas para a sua surpresa, quem o aguardava do lado de fora era Shylon, encostado na parede e comendo uma grande fruta avermelhada, semelhante a uma maçã. - Shylon? O que faz aqui? – Perguntou Gabriel, ainda sonolento. - Meu pai mandou vir lhe buscar. Hoje iniciaremos nosso treinamento físico. – Shylon respondeu, falando de boca cheia, não sendo nem um pouco refinado. - Treinamento? - Claro... você acha que passaríamos o resto da vida somente estudando nossos documentos? Além disso... você precisa colocar em prática o pouco que já estudou com meu pai. Durante sua breve estadia na Biblioteca do Santuário, enquanto ensinava sobre a evolução das espécies de Yashena, Marishi deu uma breve aula sobre as potências de Gabriel. Citou, desde as faculdades de seu corpo e de sua própria Mente, até como utilizá-las para transformar o espaço ao seu redor. Shylon lhe conduziu até um dos transportador da Torre da Habitação. Após chegarem ao solo, Gabriel cruzou um longo corredor dos subterrâneos do edifício. Continuando aquele longo caminho, ele logo sentiu a luminosidade aumentar enquanto passavam por imensos arcos ao subirem 119


uma íngreme rampa. Só então o jovem compreendeu para onde Shylon o estava levando. Após seus olhos se acostumarem com a luz, Gabriel se viu adentrando nos Jardins do Santuário. E aquela visão imediatamente o agradara. A harmonia dos jardins de alguma forma transformava Gabriel. Ele se sentia revigorado. Fortificado. Sentia que uma poderosa força estava presente naquele lugar, energizando cada célula do seu corpo. Era capaz de enxergar a Vohan emanada dos vários Sacerdotes ali presentes. Ainda era cedo, mas os jardins do Santuário pareciam um verdadeiro campo de batalha. Observando aquele mundo que o cercava, Gabriel contemplou as mais diversas atividades que os Sacerdotes praticavam. Do seu lado, um grupo em formação circular meditava, enquanto seus praticantes faziam estranhos movimentos no ar com as mãos. Aquilo não seria incomum, tirando o fato que eles estavam flutuando a mais de um metro do chão, circundados por um campo de energia invisível a Mentes não sensitivas. Ao redor deles, outros Sacerdotes permaneciam de pé, em silêncio, concentrados em seus exercícios como se buscassem romper aqueles casulos etéreos. Mais à frente, dois jovens sentados de frente um para o outro se encontravam inertes. Calados, apenas observavam o fundo dos seus olhos com uma respeitável serenidade. De repente, eles não estavam mais ali. Um súbito vento fez Gabriel cambalear, quando ao seu lado, os dois surgiram novamente, agora, sem a paz em que se encontravam. O garoto logo foi puxado por Shylon para se afastar daquela briga. Em meio a poderosas ondas de choque, eles se digladiavam no ar, utilizando-se de seus próprios ataques como um trampolim para alcançarem alturas ainda maiores. Subitamente, um deles conseguiu neutralizar o avanço do oponente imobilizando-o no ar. Derrubando-o com um único movimento, o Harashi foi atirado contra o fofo gramado abaixo deles com uma violência sem tamanho, para assombro de Gabriel. Porém, outros Sacerdotes que os observavam estenderam

suas

mãos,

estacando

a

queda

do

jovem

combatente,

prendendo-o no ar como se tivessem capturado-o em uma rede invisível. O coração de Gabriel palpitou, esperando o que aconteceria em seguida. Mas para sua surpresa, o garoto que se encontrava no alto, 120


rapidamente desceu, utilizando leves lufadas de ar através de suas mãos, enquanto que seu oponente também se estabilizava no gramado. Para sua surpresa, os dois se aproximaram um do outro se cumprimentando, como se fossem amigos de longas datas, enquanto que os Sacerdotes ao redor lhes parabenizavam e davam novas instruções acerca daquela frenética luta. - Duelos são comuns entre nós. Temos o costume de testarmos nossas habilidades até os limites. – Disse Shylon, notando o breve susto que Gabriel tomara. – Obviamente, sem matarmos uns aos outros. Gabriel não conseguiu conter o riso. Os dois avançaram sobre uma singela ponte acima de um pequeno afluente que cortava os jardins até chegarem a uma enorme escadaria de mármore branco que descia em um imenso semicírculo, lembrando um anfiteatro da Grécia Antiga. Ao centro, vários jovens da idade de Gabriel conversavam, enquanto um Sacerdote orientava alguns deles. O alto homem de pele negra organizava os grupos de alunos. Pela sua altura e vestes claras, a princípio Gabriel pensou ser Haron, mas olhando de perto, viu que o homem possuía um corte de cabelo um tanto quanto exótico, exibindo um complexo tracejado desenhado em seu couro cabeludo. O gigante Harashi se aproximou dos dois, prontamente falando com Shylon. - Seu pai me avisou que ele queria iniciar o treinamento de vocês o mais breve possível, por isso adiantei nossas atividades para hoje de manhã. – Disse o Sacerdote, com uma poderosa voz. - Já estamos mais do que preparados, senhor. – Disse Shylon, com uma sincera empolgação em suas palavras. – Luhan, este é o Sacerdote Shimah Voorih. O gigante aproximou-se levando sua mão à testa e em seguida estendendo-a a Gabriel. - Creio que já tenha conhecido o meu irmão, o Sumo Sacerdote Haron. - Sim, eu o conheci, senhor. – Disse o garoto, enxergando Haron no rosto de Shimah. De fato os dois eram idênticos. Eles eram irmãos gêmeos, porém, diferenciavam e muito em seus comportamentos. Haron sempre buscou estudar os mistérios do Universo que lhe fascinavam desde sua

121


juventude, enquanto que Shimah dedicou sua vida a testar os limites do corpo e da Mente. Em seu longo tempo na Ordem, Haron se tornou chefe dos Laboratórios do Santuário e também Mestre, passando a lecionar nas Escolas de Religiões, Crenças e Espiritualidade, Estudos da Mente, Engenharia Genética e Engenharia Simbiótica. Já Shimah tornou-se Mestre nas Escolas de Meditação, Estudos Anatômicos e de Equilíbrio Simbiótico. Esta última era a Escola na qual os dois Discípulos estavam ingressando naquele momento. Excelente combatente, Shimah também era considerado um dos Sacerdotes mais fortes da Ordem, o que lhe conferia o apelido de “O Gigante”. Mas, por dentro, o grandalhão exalava uma paz de espírito e simpatia distinta de muitos outros Harashis. Voltando-se para os garotos, o Mestre tornou a falar com Gabriel. - Pois bem, se conhece meu irmão creio que não terá problemas comigo. Mas logo lhe aviso: ao contrário dele, eu não pego leve. – Disse Shimah, soltando um sarcástico sorriso enquanto retornava ao centro do pátio, onde se encontravam reunidos os demais Discípulos. - O que ele quis dizer com não pegar leve? – Perguntou Gabriel, apreensivo. - Nosso treinamento não é fácil. Sempre temos aulas práticas, como o duelo que você presenciou no jardim. – Shylon respondeu. - Não sei se estou pronto para isso... - Não se preocupe. Não há o que temer. Só de vez em quando alguns têm um afundamento de crânio ou quebram uma costela. Gabriel arregalou os olhos diante da naturalidade de Shylon. - Creio que é melhor ficar desacordado por uns dias, como fiquei uma certa vez. – Disse Shylon, rindo da alarmada cara de Gabriel. Mal os dois se juntaram aos outros, Shimah iniciou sua aula. - Bom dia, jovens Harashis. Meu nome é Shimah Voorih, e eu serei seu Mestre na Escola de Equilíbrio Simbiótico. Comigo, vocês aprenderão como dominar a natureza que os cerca, do ar que inflama seus pulmões, até cada elemento que constitui seus corpos. Vocês aprenderão desde cedo como desenvolver suas aptidões, controlando o infindável poder que reside em 122


suas Mentes. A partir de hoje, lhes ensinarei como conhecer suas mais íntimas vontades. Os Discípulos prestavam atenção nas palavras do Sacerdote enquanto o observavam explicar as propriedades dos elementos e como dominá-los. O Sacerdote ergueu um bloco de granito atrás dele, para o espanto de alguns, fazendo-o levitar até si. - Como podem ver, através da minha Mente eu posso manusear esta pedra ao meu bel prazer. Fazê-la levitar, movimentá-la para um lado e para o outro, ou simplesmente... Destruí-la. – Com um visível piscar o bloco imediatamente se desfez em milhares de partículas que despareceram com o vento que soprava pelo vasto jardim. Aquela nuvem de poeira subiu acima da cabeça do professor enquanto os alunos soltavam um sonoro coro de admiração. Gabriel apenas observou aquilo, boquiaberto como um bebê. - Agora, quero que vocês formem duplas, se posicionando um de frente para o outro. – Ordenou, enquanto os jovens se dispunham simetricamente, como o Mestre ordenara. Shylon e Gabriel ficaram de pé, paralelos às linhas formadas pelos seus colegas. - O elemento mais abundante na nossa biosfera é o oxigênio, conhecido com Ar. Ele nos circunda, enchendo nossos pulmões, mantendo vivas nossas células através da oxigenação do nosso sangue. Da mesma forma, ele se locomove através das correntes de vento, mantendo a temperatura

dos

ambientes

equilibrada.

Disse

Shimah,

enquanto

caminhava entre os alunos, observando-os, e corrigindo as distâncias dos que estavam mais próximos. - Para nós Harashis, o Ar pode ser usado como uma arma, tanto para atacar, como para se defender dos nossos inimigos. Através de suas Mentes, vocês poderão manipulá-lo, concentrando-o ou dissipando-o, de acordo com suas vontades. Para tal, basta que o sintam passando entre vocês e o manipulem diretamente através de suas mãos. - Senhor, também podemos controla-lo através de nossos pés? – Perguntou um aluno ao fundo. Alguns dos jovens Discípulos deixaram escapar uma sonora risada.

123


- Claro... Tudo depende de como o manipulam através de suas Mentes. Com treinamento, vocês aprenderão como controlá-lo com ainda mais intensidade. Poderão até caminhar sobre ele, se assim quiserem. – O Sacerdote respondeu, gerando um burburinho entre os alunos. - Agora, vocês que estão ao meu lado, voltem sua atenção para seus colegas à sua frente. Contarei até três e vocês lançarão ataques contra seus amigos. - E como faremos isso, senhor? – Perguntou Gabriel, interrompendo o professor. Os outros estudantes o observaram, com nítido espanto ante aquela aparente pergunta tola. Alguns se perguntavam de onde viera aquele jovem que acompanhava o filho do Sacerdote Helamen. O Mestre, pacientemente,

caminhou

sorrindo

para

um

Gabriel

visivelmente

envergonhado pelo seu inoportuno questionamento. - Ora, Luhan, através de sua mais sincera vontade. Apenas deseje... Sinta o ar. Deixe que penetre suas narinas e seus pulmões, e assim você fará o resto. Lembre-se: Confie na sua vontade, ela é a força motriz de sua Mente. O Sacerdote retornou ao centro da turma, checando pela última vez os pares. - Somente manipulem o ar, nada mais. Não queremos machucar ninguém aqui. – Disse o Sacerdote, enquanto os jovens se concentravam, esperando as ordens. - Preparados? – Shimah foi respondido por algumas vozes soltas no ar. Os dois amigos se encararam, prontos para iniciar o duelo. Gabriel deveria atacar Shylon, enquanto este se defenderia. - Kahm... – Um... – Disse o Sacerdote, iniciando a contagem. Gabriel se concentrou, emanando sua Vohan. Enquanto seguia as ordens do Mestre, observava a mesma cor de sua chama, refletida no verde gramado. - Shem... – Dois... – O jovem inspirou, sentindo uma estranha energia brotar da palma de suas mãos. - Hon! – Três! – Os alunos jogaram suas mãos à frente como se estivessem empurrando o nada. Gabriel fez o mesmo.

124


Sentindo suas mãos formigarem, o ar que se concentrava entre elas foi lançado à frente como um turbilhão invisível, balançando fortemente a grama abaixo dele. Aquela onda de impacto atingiu Shylon em cheio, que não teve reação, apenas rolando pelo gramado até conseguir se segurar no chão. Aquele golpe chamou a atenção de todos, em especial de Shimah, que logo correu na direção dos dois, mas como já esperava, Shylon também sabia como se defender. - Mas como? – Disse Shylon, espantado, enquanto recobrava-se do susto. Gabriel aproximou-se do amigo, que observava atônito a Vohan Cameron pulsar no ritmo de sua respiração. - Você acha que seu pai não me ensinou nada esse tempo todo? –Disse Gabriel, rindo, enquanto ajudava Shylon a se levantar. Shimah também sorriu, satisfeito com seu aluno, enquanto compreendia os planos de Marishi para Gabriel. Seu amigo de longos ciclos sabia exatamente o que estava fazendo ao pedir que antecipasse o início dos treinamentos. Nem Shylon, muito menos Shimah imaginavam que Marishi havia secretamente instruído Gabriel sobre os princípios do domínio da Mente e suas disciplinas para o ataque e defesa. O garoto parecia mais do que preparado. - Vamos! Repitam o exercício. – Disse o mynohriano, evitando quebrar o ritmo da aula. – Só descansem quando houver equilíbrio entre vocês. Os Discípulos repetiram exaustivamente as sessões. Gabriel ganhava alguns duelos e em outros perdia. A paridade de forças entre os dois amigos era evidente, e aquilo estava impressionando o Mestre Harashi. Embora tivesse chegado há pouco tempo, Gabriel já dominava suas habilidades psíquicas como poucos estudantes dali. Shylon, por sua vez, já possuía algum tempo de treinamento com seu pai. Naquele momento o garoto apenas a aperfeiçoava sua técnica para barrar os ataques de Gabriel. Aquele embate já estava desgastando os garotos, que suavam intensamente ante o forte sol que castigava aquele dia sem nuvens em Nemashi. Porém, desejavam prosseguir com aquele pesado treinamento. Percebendo a obstinação daqueles promissores alunos, Shimah prosseguiu com o programa. 125


- Prestem atenção, todos vocês: Um Harashi possui diversas técnicas para dominar os elementos em uma batalha. Uma delas é muito parecida com o treinamento que acabaram de fazer. Gostaria que um de vocês me ajudasse a demonstrar. Shimah olhou cada um seus alunos, como se seu olho fosse um scanner à procura de um objeto perdido. Mas naquele momento, ele já possuía um alvo em especial. - Luhan. – Disse o Sacerdote apontando para Gabriel,. - Eu senhor? – Disse Gabriel, acordando-o com aquela chamada. - Sim, venha cá. – O jovem caminhou timidamente até o Mestre. – Não tenha vergonha... Todos estamos aqui para aprender. Após o jovem se colocar diante do Mestre, Shimah continuou a aula. - Por meio das leis da Ciência, nós sabemos que forças diferentes se atraem e forças iguais se repelem. O princípio básico da técnica que lhes ensinarei é o mesmo dessa lei natural. Através de seu próprio magnetismo você poderá repelir seu oponente como se fosse uma espécie de ímã. Seja utilizando o ar, ou uma poderosa onda de energia, você poderá se afastar ou se aproximar dele de acordo com o campo bioelétrico que você emanar. Basta que inverta ou mantenha a carga da sua Vohan, sua energia biológica29...

Vocês

estão

entendendo?

Alguns

alunos

assentiram

positivamente com a cabeça. Outros, com um sonoro grito.

29

O biomagnetismo é uma característica comum a todos os seres vivos, incluindo as plantas e animais, porém, somente os seres dotados de consciência são capazes de manipulá-lo através de suas Mentes. Esse potencial elétrico de nosso corpo consiste na capacidade de atrair ou repelir outras cargas elétricas, onde tal faculdade é resultante da energia liberada ou conservada pela nossa Vohan. Na prática, nossas células, por meio da atividade cerebral, se utilizam de gradientes eletrostáticos para armazenar ou liberar a energia metabólica, assim, desencadeando alterações internas e externas no meio, sendo estas determinadas segundo a Vontade emanada de nossas Mentes. Por isso, o nosso biomagnetismo nada mais é do que uma corrente elétrica, resultante de nossa constante atividade biológica, capaz de interagir com os campos magnéticos existentes ao nosso redor. Invertendo, ou não, a polaridade de nosso campo magnético, de acordo com as nossas emoções ou disposições de nossa Mente, podemos aumentar ou diminuir a emissão dessa força eletrostática.

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- Pois bem... No caso dessa técnica, ambos recebem o ataque. Ela é uma arma para repelir o oponente. Sua peculiaridade é que nela, você tem domínio a situação, seu opositor, não. – O Sacerdote prosseguiu. – É importante que você saiba o que está fazendo, pois poderá gerar desde um insignificante impacto, até ser arremessado para bem longe, perdendo o controle sobre seu próprio ataque. O Sacerdote se posicionou há alguns passos de Gabriel, e pediu que o jovem ficasse de frente para ele. - Luhan, quero que você me ataque como fez com Shylon. Após a contagem do Sacerdote, Gabriel lançou suas mãos à frente, atirando um forte ataque contra o professor. Entretanto, como já esperado, Shimah atirou outra onda de choque, barrando aquele ataque no meio do caminho. As ondas continuaram em choque, gerando uma barreira etérea acima do gramado, dispersando suas faíscas pelo verde tapete. Após um tempo, Gabriel cansou de sustentar aquela onda de energia, fazendo-a cessar. No mesmo instante o professor também encerrou aquele duelo. - O que eu fiz foi barrar o seu ataque até que você esgotasse suas forças. – Falou Shimah, explicando à turma. – Numa batalha isto teria sido mortal. Mas quando um Sacerdote é bem treinado, esses embates podem se prolongar por um tempo inimaginável. - E como faço para sustentar meu ataque? – Perguntou Gabriel, ofegante. - Com muito treinamento, Luhan. – Disse o Sacerdote, rindo com aquela aparente pergunta tola. – Mas não é o caso agora. O que desejo que você aprenda é o que eu irei fazer. Quero que novamente me ataque da mesma maneira. Quando eu inverter a polaridade do meu campo magnético para se igualar ao seu, nossos ataques serão repelidos, e então seremos lançados pela grama. Quero que se proteja, pois a onda de choque pode ser forte demais para você. – O garoto confirmou com a cabeça, ansioso. A dupla se posicionou de frente um para o outro. O professor fez a contagem. - Kahm... Shem... Hon!

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Das mãos de Gabriel brotou a mesma onda de choque, sendo mais uma vez bloqueada por Shimah. Entretanto, o desfecho foi diferente. Sem mover suas mãos, o professor fez brotar uma poderosa barreira, como se fosse uma bolha de sabão, refletindo um vasto espectro de cores quase imperceptível dentro daquela onda que pairava no ar. Enquanto Gabriel admirava aquela colorida visão, ambos foram atingidos, rolando pelo gramado. Gabriel não esperava por aquilo. Aquele vórtice etéreo pareceu sugá-lo para onde Shimah se encontrava, derrubando na fofa grama, como se alguém chegasse por trás, empurrando-o abruptamente. Por alguns segundos ele permaneceu caído naquele tapete. Após deslizar pelo gramado, se defendendo, Shimah se levantou indo com os outros alunos até onde estava Gabriel. - Luhan, você está bem? – Perguntou Shylon, se ajoelhando para checar se o amigo havia se machucado. Mas para a sua surpresa, Gabriel estava rindo consigo daquela inusitada situação. - Nossa, é incrível! Eu senti uma força irresistível me jogar para trás, e mesmo tentando não consegui barrá-la. – Disse o garoto, se levantando em uma euforia incontrolável, como se tivesse acabado de passear em alguma atração de um parque de diversões. Shimah se aproximou, ajudando-o a ficar de pé. - Eu sei... Também me senti da mesma maneira quando tive minhas primeiras aulas neste mesmo gramado. E por isso continuaremos a treinar até que você aprenda a atacar seus oponentes, como também se defender. – Disse o Sacerdote, novamente instruindo seus alunos. - Quero que novamente se posicionem de frente para o outro. Vamos recomeçar esta aula... Os alunos prontamente se colocaram nos seus lugares para continuar o treinamento. Gabriel apreciava cada vez mais aquele momento. Para ele, treinar daquela maneira era mais uma descoberta do que um exercício. Mal imaginava ele. Essa técnica ainda salvaria a sua vida.

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DOCUMENTO 020 A CONSTELAÇÃO DE ASHUNYAH Ao centro do grande salão circular, um Sacerdote caminhava pausadamente, apontando para as curvas da imagem holográfica que se projetava ao centro da redoma. Acompanhando seus movimentos, os vários estudantes escutavam com atenção cada palavra do Mestre Harashi que naquele momento apresentava uma aula aos seus mais novos Discípulos da Ordem. Misturado entre as poltronas que circundavam aquele pequeno anfiteatro, Gabriel, observava cada gesto, palavra e entonação do Mestre, tentando agarrar o máximo de informações que pudesse. Aquele alto professor se chamava Farah Bahalshi. Ele era Mestre nas Escolas de Integração Econômica e História da Constelação. Embora sua aparência já estivesse consumida pelo tempo, aquele velho homem não deixava escapar nenhum detalhe, do mesmo modo que a clareza de suas palavras ajudava Gabriel a assimilar o vasto conteúdo daquela aula. - A Constelação, como vocês sabem, é o principal e mais sólido bloco político e econômico dos planetas pertencentes ao Sistema de Ashunyah. Não menos antiga que a Ordem Harashi, a Constelação nasceu da vontade mútua de facilitar as relações comerciais entre os planetas locais. Como já é de conhecimento de vocês, essa integração comercial é uma tendência imprescindível no processo de evolução de um planeta. – Disse o Mestre, enquanto se aproximava de um dos alunos. - Mestre, se todos os planetas caminham para formar tais blocos, isso significa que planetas que não o fazem estão suscetíveis a conflitos por razões econômicas? – Uma das alunas perguntou, quebrando o silêncio que imperava. - Certamente. – Respondeu o esguio professor. – A quebra de barreiras comerciais ou políticas é um fenômeno essencial para se alcançar uma evolução social sem a necessidade de conflitos. A unidade é a única saída para se concretizar o sonho da Paz Perpétua. Lembrem-se, fronteiras apenas existem nas consciências e nos mapas desenhados pelos povos. A criação de 129


blocos ou alianças planetárias é uma mola propulsora para extinguir de vez essa ideia ultrapassada. Qualquer acordo político sempre parte de seu centro e se expande como uma onda, tal como aconteceu aqui em Nemashi. Farah explicou como se dera a fundação da Constelação, resgatando a atenção dos alunos mais dispersos, e também aumentando a curiosidade de Gabriel naquela aula. Segundo o professor, quando a Ordem Harashi foi fundada, os Sete Sacerdotes logo perceberam que a expansão política do sistema não iria suportar a pluralidade de moedas, leis e relações comerciais então existentes.

A

burocracia

havia

se

tornado

um

grande

perigo

ao

desenvolvimento pleno do Sistema. Graças à influência política que a Ordem logo conseguiu após sua fundação, os Sacerdotes sucessores deram início ao que seria o maior projeto já então realizado entre os planetas de Ashunyah. Há mais ou menos 700 mil anos, durante o período conhecido hoje como Era da Fundação da Constelação, a Ordem Harashi convocou a Assembleia das Estrelas Centrais, reunindo em torno de 300 planetas, dos pouco mais de 900 que eram habitados. Esse concílio durou um pouco mais de três ciclos, em meio a debates, propostas e votações, até que se chegou a um termo, quando foi traçado o plano piloto do que viria a ser a Constelação. Com isso, foi promulgada a Carta da Unidade, o manual que legislava a organização do mais recente bloco político de Ashunyah, e que agora iria regular seus planetas membros a partir dessas normas. A Constelação seria administrada em conjunto com todos os planetas membros por meio do Parlamento. Seus Embaixadores representariam

cada

mundo

e

seus

respectivos

interesses.

Após

estabelecidas, as relações comerciais logo se expandiram, gerando riqueza para os países membros. Com a moeda única, o Sihmad30, agora os planetas possuíam mais liberdade econômica para comercializarem entre eles. 30

O Sihmad era um sistema monetário utilizado por muitos planetas e reinos da Constelação como meio de determinar os valores de suas reservas e bens comercializados no mercado entre os planetas de Ashunyah. Certos planetas como Nemashi e Mynoriah acumularam enormes riquezas com o propósito de fortalecer a competitividade dos seus exportadores, não permitindo a apreciação da antiga moeda local, que logo entrou em

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desuso. Com isso, tornou-se imperioso o uso de uma moeda comum como meio de conter grandes crises financeiras com o inevitável enfraquecimento das moedas planetárias. Com o tempo, o Sihmad se tornou mais do que uma moeda de troca. Ele passou a definir as taxas de câmbio de acordo com a economia entre os planetas e o valor de uma moeda local. Isto permitiu aos mundos produzirem de acordo com a demanda de seus mercados, bem como segundo a valorização ou desvalorização de seus bens e suas matérias primas. Por sua vez, o Sihmad não era uma moeda palpável, constituindo-se de uma rede de crédito, cujo seus montantes eram diretamente debitados ou sacados pela população através de um sistema de assinatura biométrica. Com isso, diferente de Yuransha, não existiam bancos em Ashunyah, mas cada indivíduo era um banco em potencial, um agente ativo na economia do sistema, obrigado a trabalhar para sobreviver, caso o contrário passaria por necessidades que vocês atualmente conhecem bem melhor do que nós. Os impostos eram diretamente descontados desses bancos de dados monetários vivos, de modo que absolutamente todos pagavam impostos, sem exceção. Para isso, todo o sistema era monitorado pelas Casas do Tesouro de Nemashi, que fiscalizavam toda a atividade econômica e especulativa dos mundos de Ashunyah. O Sihmad se utilizava de uma rede criptografada que não dependia de nenhum emissor centralizado, como os servidores dos bancos do seu mundo, por exemplo. Essa rede, conhecida como A Teia, se utilizava um banco de dados inserido nos sistemas de comunicação

dos

planetas

para

registrar

as

transações,

utilizando

códigos

criptografados para garantir as funções básicas de segurança, como certificar que o Sihmad só poderia ser utilizado pelo seu respectivo indivíduo, por meio de sua biometria. Isso minava drasticamente as fraudes, que podemos dizer, eram seguramente inexistentes. Em contrapartida, esse rígido sistema de tributação e fiscalização acabou por criar clãs de piratas que constantemente burlavam as leis mercantis entre os planetas, quando por não poucas vezes, realizaram corruptas alianças com alguns reinos, na tentativa de adquirirem produtos sem passar pela obrigatória taxação entre as nações. Da mesma forma, a Teia era constantemente atacada por esses criminosos na tentativa de quebrar seu sólido código criptografado. Obviamente, embora esse sistema se mostrasse sólido, tinha suas corriqueiras falhas, com crises que rondavam períodos e ciclos determinados, de modo que, com o tempo, a não menos corrompida ânsia por lucro, tanto dos ricos Senhores dos Mundos – como eram conhecidos os empresários de nosso tempo – como também dos falidos governos planetários, acabaram por minar gradativamente o sistema. Após uma série de guerras, os sistemas de Ashunyah, assim como seus vizinhos, mergulharam em uma quase irrecuperável crise política e econômica, e o sistema do Sihmad definitivamente quebrou, junto com toda sua rede monetária invisível. Mas para explicar como nossa sociedade se

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A prosperidade dos planetas da Constelação logo fez outros mundos aderirem ao bloco, englobando muito além dos planetas pertencentes às Estrelas Centrais – mundos que circundavam os sóis próximos à Zona Central de Ashunyah, aonde se encontrava Nemashi. Com o repentino crescimento do bloco, a Ordem rapidamente se incorporou à Constelação como parte de sua administração, sendo seu braço científico, político, e até mesmo militar. Para facilitar a administração política e comercial, o Sistema foi dividido em quatro Zonas, onde tais áreas perdurariam até o presente. A Zona Central englobava os principais planetas que faziam parte da Constelação, cuja capital era Nemashi, aonde se encontrava o Parlamento. Este, por sua vez, era composto pelos Embaixadores de cada planeta membro e pelo Embaixador da Ordem Harashi. Cada mundo respondia diretamente à capital por meio de seus representantes. Na Zona Periférica, se encontravam os planetas menos habitados, onde muitos deles serviam de bases de alguns órgãos secundários da Constelação. Tais planetas eram governados por Reis ou Príncipes Planetários,

a

exemplo

de

Mynoriah

e

Kamonih,

sendo

estes,

respectivamente, o planeta natal dos Sacerdotes Haron e Shimah Vorih, e a sede da Ordem Orihman. A última Zona habitada era a Pós-Periférica. Ela era a região que se encontrava totalmente excluída da jurisdição da Constelação. Antes, ela incluía planetas que tinham pequenos laços políticos e comerciais com outros diversos planetas, membros da Constelação. Com a eclosão de uma série de guerras civis, os planetas ficaram submetidos aos poderosos Clãs de Comércio, liderados por piratas e criminosos locais. Existia ainda uma quarta Zona não habitada, com alguns planetas ainda inexplorados pela Constelação, devido ao primitivo estágio de evolução em que ainda se encontram, por sua gradual distância do centro de gravidade de Ashunyah.

reergueu, deixemos que os próprios Mestres Harashis exponham os fatos pelas suas memórias. Continuemos com o curso dos relatos.

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Segundo Bahalshi, estes orbes deveriam esperar a natural evolução das espécies locais, até que seus primatas se desenvolvessem de acordo com os padrões das raças, assim alcançando o necessário despertar da Mente para que pudessem delinear os primeiros esboços de uma civilização naqueles mundos. Obviamente, isto não se aconteceria pelos próximos milhões

ou

até

mesmo

bilhões

de

ciclos.

Estas

últimas

palavras

impressionaram Gabriel, que resgatou de sua memória os ensinamentos de Marishi sobre a evolução das espécies de Yashena. No meio daquela explicação, outra pergunta cortou o célebre raciocínio que o Harashi tecia naquele momento. - Mestre, mas segundo a História, se a Constelação nunca se fragmentou economicamente, como foi possível haver a Queda do Sihmad? – A voz de um garoto ecoou do fundo do anfiteatro chegando aos ouvidos de Farah, que logo se prontificou a responder. Do outro lado da sala, tomado de assalto por aquela pergunta, Gabriel logo perdeu o fio da meada. Dentro de si, se perguntava o que seria aquela Queda que o jovem Discípulo acabara de mencionar. Embora sua curiosidade lhe movesse, em busca da resposta, sua timidez o impedia de tirar sua dúvida com algum colega ao seu lado. Imediatamente, aproximando-se de onde Gabriel estava, Farah logo respondeu seu aluno, porém, tradando primeiramente de explanar o termo que

o

jovem

havia

previamente

citado.

Aquela

atitude

do

Mestre

surpreendeu Gabriel. Era como se de alguma forma ele tivesse percebido a dificuldade do garoto ante as inúmeras informações que estavam brotando naquela aula. - Para aqueles que nunca estudaram – Disse o Mestre voltando o olhar para Gabriel –, a Queda do Sihmad foi uma intensa guerra que varreu os planetas mais distantes da Zona Central. Esse conflito foi fruto da má administração dos recursos planetários, gerando uma forte escassez nos mundos menos desenvolvidos. Com o rápido crescimento tecnológico, a economia de mercado não atendia mais às demandas de trabalho, e a crescente automação das indústrias alimentou cada vez mais o desemprego. A consequência disto foi a eclosão de uma guerra civil que quase destruiu 133


alguns desses mundos. – Disse o Mestre Harashi, enquanto voltava ao centro da sala para manipular a imagem do mapa da Constelação no holograma projetado, aproximando e afastando os planetas que citava. - Percebendo esta crise que ameaçava o futuro Constelação, um grupo de doze Sacerdotes propôs um projeto que iria reformar por completo o sistema de produção e administração de nossos recursos, o que gerou uma verdadeira revolução em nossa cultura. E foi essa revolução que nos transformou na sociedade mais evoluída deste Universo. O Sacerdote fez uma longa pausa, esperando que alguns alunos ali absorvessem o que ele estava para falar, principalmente Gabriel. - Considerando que as leis da Constelação, assim como o frenético crescimento econômico em nada contribuíam para diminuir a violência e a miséria que ainda imperava em alguns de seus mais remotos planetas, os Sacerdotes da Ordem logo desenvolveram um modelo de gestão em que não seria mais necessário o uso de moeda como meio de troca para se adquirir os bens produzidos. Nesse sistema social revolucionário, a indústria em Nemashi e nos planetas da Constelação seria totalmente automatizada, e, a partir de então, seus bens produzidos seriam distribuídos entre as pessoas, provendo-lhes em suas necessidades básicas. Sei que para alguns de vocês isso pode parecer estranho, mas a partir desse sistema, os meios de produção privados deixaram de existir, e toda produção passou a ser considerada patrimônio natural de nossa sociedade. O professor continuava sua explicação, quando outra voz cruzou com a sua na atmosfera da sala de aula. - Desculpe perguntar senhor, mas que sistema é esse? – Disse Gabriel, atraindo a atenção do resto da sala. Imediatamente, ficou constrangido ante aquela atenção indesejada. Percebendo a sincera vontade de aluno em aprender, o professor logo se pôs a responder ao jovem em meio a um largo sorriso. - Ora, Luhan, o sistema da Economia Baseada nos Recursos. – Disse, olhando para um ainda mais curioso Gabriel.

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Aquela aula estava se desenvolvendo rápido demais, e Gabriel sabia que em tão pouco tempo não seria capaz de assimilar tantas informações diferentes. O que ele não imaginava era que seu Mestre também sabia disso.

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DOCUMENTO 021 UM MUNDO PARA TODOS Gabriel esperou pacientemente do lado de fora até todos os alunos saírem. Um a um, os estudantes deixaram o anfiteatro, até que aquele êxodo cessou, deixando o garoto sozinho, plantado no meio do imenso hall que circundava as salas de aula do Santuário. Antes que o jovem adentrasse na sala, Farah foi ao seu encontro, como havia dito minutos antes, desejando conversar pessoalmente com seu aluno. - Luhan, aí está você. Vejo que realmente está interessado em aprender sobre o nosso mundo. – Farah cruzou o portal do auditório, indo em direção ao jovem. - Esperei aqui, como o senhor me pediu. – Disse o garoto, enquanto se aproximava do Mestre Harashi. - Desculpe fazê-lo esperar. Aqui em Nemashi precisamos ter tempo e paciência com todos os que nos procuram. – A simplicidade nas palavras daquele velho homem era tão grande quanto sua vontade de ensinar a Gabriel. – Mas diga-me meu jovem, o que você não entendeu em minha aula? - Desculpe dizer isso senhor... – Disse Gabriel, encabulado. – Mas eu não compreendi nada. - Ora, não diga isso. Sempre aprendemos alguma coisa. – O garoto parou um por tempo, pensativo, e então voltou a falar. - Quando o senhor falou sobre o sistema de produção de Nemashi, eu não compreendi por inteiro. Você disse que todas as coisas produzidas pela indústria são distribuídas? - Exato. Aqui em Nemashi, nossa tecnologia se desenvolveu ao ponto de produzirmos tudo o que necessitamos de graça, e assim, da mesma forma podemos distribuir entre a população através do nosso sistema de logística. - Então na Constelação não existe comércio? – Perguntou Gabriel, curioso. - Na verdade ainda existe. Em diversos planetas de Ashunyah a Economia é baseada no Mercado. Vários reinos que não fazem parte da 136


Constelação ainda produzem de acordo com a demanda de seus mercados, de modo que estimulam o consumo entre seus habitantes, bem como o comércio com outros mundos vizinhos. O mais influente e rico deles, como falei, é Mynoriah. - Mas senhor, se os outros planetas produzem a partir da demanda de seus mercados, como se dá a produção em lugares como Nemashi? - Ora, através da necessidade de consumo da população. - É isso que eu não compreendo, senhor. - Vamos ver... Como posso explicá-lo? – Disse Farah, passando a mão em sua nuca, já afetada pela calvície. – Digamos que nossa economia é baseada nos recursos que o planeta possui e na real necessidade que precisamos consumir tais bens. Quando produzimos nossos alimentos, por exemplo, não o fazemos para comercializá-los entre nós, mas para suprir uma demanda de consumo por parte das pessoas que vivem em Nemashi. - Mas se não há mercado, com que moeda se dá a troca dessa produção? - Moeda? E por que precisaríamos disso? – Perguntou o professor, ironicamente. - Como assim? – Disse Gabriel, surpreso. – Não há nenhum elemento de valor para se trocar pelos bens produzidos? - Luhan, aqui em Nemashi nós não trocamos nossa produção. Nós simplesmente a distribuímos. – Disse o professor, reiterando, enquanto os olhos de Gabriel se arregalavam. – Você ainda não entendeu que nossa sociedade evoluiu a tal ponto que podemos ter gratuitamente tudo o que necessitamos? Diferente de nós, outros planetas como Mynoriah ainda se aprisionam em suas antigas relações comerciais, privando muitas pessoas ao acesso a tais bens de consumo básico, condenando-as à miséria. Se temos essa tecnologia ao nosso alcance, qual a razão de limitarmos o acesso a algo que no fim das contas são de necessidades fundamentais às pessoas? - Mas então como elas podem ter acesso a tudo isso? - Ora, indo até onde armazenamos nossos alimentos ou produtos. Lá retiram aquilo que lhes é necessário. Sem troca nenhuma. Sem moeda nenhuma. 137


- Mas como isso é possível, senhor? - Em cada zona habitada de Nemashi, assim como nos demais planetas da Constelação, existem as Casas do Tesouro. Esses armazéns de distribuição são diretamente ligados à nossa rede de indústrias. Quando um determinado produto é retirado, a rede capta a frequência da demanda com que ele é consumido, e, assim, envia os dados às nossas fábricas para que produzam a quantidade necessária para suprir o consumo que está sendo efetuado. Gabriel estava extasiado com aquela exposição de Farah. O professor explicou detalhadamente o sistema de produção, elucidando que em Nemashi, assim como nos outros planetas da Constelação, a indústria era capaz de abastecer todo o planeta, de modo que nenhuma pessoa pertencente à Constelação passava fome ou alguma necessidade básica, ao contrário dos outros planetas que ainda mantinham seus sistemas econômicos baseados nas demandas do mercado. Aquela rede, comandada pela inteligência artificial, ainda se utilizava dos dados de consumo tanto para produzir, como também para preservar o bioma local. Ao mesmo tempo em que as indústrias fabricavam, elas também repunham os espécimes utilizados. Esta prática ia desde a produção de alimentos até a exploração da matéria prima dos planetas para a construção dos imensos arranha-céus que desenhavam as cidades. Tudo o que era jogado fora era de alguma maneira reaproveitado. Desde cascas de alimentos para fazer vitaminas naturais, até materiais industrializados que eram reciclados para serem novamente utilizados das mais diversas formas. Na sociedade da Constelação, absolutamente nada se desperdiçava. Inclusive a água. Farah explicou que havia dois tipos de sistemas de distribuição. Para beber, se utilizava exclusivamente as fontes minerais e de água doce. A água era tão pura que não precisava de nenhum tratamento. Em Nemashi era considerada um dos bens mais preciosos. Já para o consumo pessoal, retiravam-se as águas dos oceanos do planeta. Após passar pelo sistema de dessalinização, ela era usada para as 138


mais diversas finalidades. Para se tomar banho e até para lavar as vias públicas. O sistema de esgoto coletava toda água impura, que após passar por uma estação de saneamento, era novamente devolvida para que a população a utilizasse no seu dia a dia. Tudo era perfeito. Da mesma forma como aquela realidade parecia um tanto quanto distante da Terra. Distante demais para Gabriel acreditar que de fato funcionasse. - Agora você compreende? – Perguntou o professor após a longa explanação. O garoto apenas assentiu com a cabeça. - Mas uma coisa ainda me intriga... – Não satisfeito com a resposta, o jovem prosseguiu. – Se não há comércio, não há moeda, e tudo o que precisamos é produzido pelas máquinas, então, onde as pessoas trabalham? - Luhan, pelo que vejo você ainda está muito apegado ao seu mundo. Me perdoe por dizer isso, mas seu planeta é bastante atrasado. - Como assim? – Disse o garoto, espantado com aquela dura afirmação. - A ideia de que o trabalho é algo típico de nossa natureza é um grosseiro pensamento que vem da filosofia competitivista de mundos onde a economia é baseada no mercado, como acontece em Mynoriah, e da mesma forma, também em seu planeta. O Mestre mergulhou em seu vasto conhecimento para dar uma lição que mudaria para sempre a cabeça de Gabriel. - Desde os primórdios – Disse ele. –, as pessoas trabalharam para satisfazer suas necessidades de sobrevivência, lutando para manter seu padrão de vida que se tornava cada vez mais caro. Entretanto, como falei em minha aula, ao longo do tempo, elas buscaram facilitar o árduo trabalho através do uso da tecnologia. Nosso novo sistema de produção acabou com os desnecessários problemas gerados pelo antigo mercado. As pessoas se viram livres de todos os trabalhos desgastantes, e com isso puderam ter uma nova perspectiva de vida. - Mas, e quanto aos outras profissões? Afinal, não só de indústrias vivia Nemashi, não é?

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- Sim, não existiam somente indústrias, mas todo um sistema de publicidade, de leis, e regras de mercado, pelas quais as antigas Casas do Tesouro controlavam a circulação dos bens. Nosso mundo era extremamente burocrata, assim como o seu. Mas há milhares de ciclos, a guerra fez ruir nosso sistema econômico, o que gerou a queda de nossa economia e de nossa moeda, e como consequência última, o fim de quase todos os trabalhos que existiam. Mas graças à Ciência, pudemos nos reerguer dessa terrível crise. O Mestre contava aquilo como se orgulhasse da história de seu planeta natal. - Após o fim da guerra, nos utilizamos da tecnologia existente em Nemashi e do conhecimento da Ordem para implantar em nossas máquinas o sistema de inteligência artificial que possuímos atualmente. A partir da aplicação humanitária da Ciência, as pessoas puderam ter novamente suas casas, alimentos, e uma qualidade de vida que nunca sonharam ser possível. Tudo ali, disponível para elas, e sem precisarem se desgastar como antigamente

faziam

para

sobreviverem

em

nosso

mundo.

Como

consequência, muitas profissões se tornaram obsoletas, sendo gradualmente trocadas por atividades que realmente eram benéficas à população. - Senhor, eu entendo a necessidade de nos utilizarmos da tecnologia para facilitar nossas vidas, mas nós precisamos trabalhar. Não podemos passar o resto de nossas vidas sem fazer nada. - E não passamos, Luhan. - Mas, se as pessoas não têm mais esses empregos, o que elas fazem? - Talvez você precise mudar um pouco de perspectiva. Em vez do defasado conceito de trabalho que aprendeu no seu mundo, você devia enxergar o homem ocupando melhor seu tempo. - Com o que, por exemplo? - Ora, com seu crescimento intelectual. Com o fim dessas profissões desnecessárias, os habitantes de Nemashi e da Constelação puderam se dedicar ao que de fato se interessavam: à Ciência, às Artes, ou em ocupações em que passaram a exercer pelo simples prazer de ajudarem uns aos outros, como os grandes Médicos da Academia de Ciências de Nemashi, os 140


Engenheiros de Navegação Espacial, ou simplesmente ensinando, como eu. Nós Mestres somos o grupo mais valorizado na sociedade nemashiana, uma vez que formamos a base produtiva de nossa sociedade. - Isso é de fato incrível... – Gabriel estava pasmo com aquelas palavras do seu professor. – Mas senhor, mesmo com todo esse desenvolvimento não haveria pessoas que, por já possuírem o que necessitam, não se acomodariam no conforto de suas vidas? - Isso não existe aqui, Luhan. A educação é algo enraizado em nossa cultura, ao contrário dos outros planetas que não fazem parte da Constelação. Da mesma forma, a busca pessoal pelo conhecimento é algo inato a todos nós. Até a pessoa mais preguiçosa desse Universo possui a brilhante centelha da curiosidade. Isto é o que nos move a descobrirmos novas coisas ou novos lugares. - Você quer dizer que poderíamos passar o resto de nossa vida viajando pelos mundos? - E por que não? Viajar também não é uma maneira de aprendermos? Podemos conhecer novas pessoas, trocar ideias. Tudo o que fazemos na vida é um aprendizado. Aqui em Nemashi somos livres para sermos o que quisermos. Diferente do seu mundo, aqui as pessoas buscam fazer o que realmente gostam. E o que elas acabam alcançando no fim das contas é a verdadeira felicidade. - Então, essa a definição de trabalho em Nemashi? Fazer o que gostamos para sermos felizes? - Exato. Não podemos desperdiçar as nossas vidas trabalhando para comprarmos bens que no fim, sempre estiveram ao nosso alcance. Isso, meu jovem, se chama escravidão. Por conta da ganância que os homens criaram para si, eles se esqueceram de que são capazes de produzir de graça tudo o que necessitam. Até que entendam isso, ainda haverá muita miséria no seu mundo... Aquela conversava animava cada vez mais Gabriel. Porém, a visão futurista de Farah mais parecia uma utopia para um planeta em que a economia era mais importante que a miséria humana.

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No

país

de

Gabriel

onde

as

multinacionais

brigavam

por

investimentos em um mercado invisível de ações –, se a bolsa caia alguns pontos, os jornais anunciavam aquilo como se fosse o fim do mundo. Já nas periferias do planeta, milhares de crianças, jovens e idosos passavam fome ou morriam desamparados em uma realidade até difícil de conceber. Entretanto, a mídia sequer tocava com um dedo nos fardos que assolavam o mundo. De fato algo estava errado. Muito errado. A Terra não andava nos seus melhores dias. E após as recentes crises políticas e econômicas ocorridas no próprio país de Gabriel, aquela realidade de Nemashi parecia cada vez menos tangível ao pequeno planeta azul. Ele não imaginava como seria possível organizar uma sociedade além da política, da guerra e da miséria. Um território sem fronteiras. Um planeta sem países. Em meio aos seus pensamentos, Gabriel lembrou-se de um livro que lera sobre os célebres ensinamentos de Bahá’u’lláh, um profeta persa do século XIX que pregava a união dos povos da Terra enquanto uma irmandade espiritual como o único meio de se alcançar a Paz. Ele dizia que “a Terra era um só país, e os seres humanos eram os seus cidadãos”. Talvez o fundador da religião Bahá’í estivesse certo. Mas aquela profecia ainda demoraria muito tempo para se concretizar. Ou no ritmo de evolução moral em que seus habitantes se encontravam, talvez ela nunca se tornasse realidade.

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DOCUMENTO 022 AS ESCRITURAS DO PRINCÍPIO Já se passara semanas desde que Gabriel cruzara os longos corredores do Santuário pela primeira vez. Aquela rotina agora já fazia parte de sua vida e a avalanche de treinos e estudos já se tornara comum ao dia a dia do garoto. Diferente da sua vida na Terra, os dias que se passavam dentro da Ordem davam um novo sentido à sua jovem vida. Agora, de fato estava fazendo algo que lhe inspirava, que lhe movia a superar seus limites. Entre afazeres e descansos, Gabriel gostava de andar pelo jardim do Santuário. Aquele colossal ambiente sempre se mostrava acolhedor, e era uma oportunidade de conhecer outros membros da Ordem, cuja quantidade parecia infinita diante do tamanho da irmandade. Passando pela entrada do Complexo das Capelas, Gabriel avistou ao fundo uma figura que via praticamente todo dia. Caminhando com sua habitual paz de espírito, Marishi fez um sinal com a mão para o garoto, que apenas esperou o Sacerdote se aproximar. - Luhan, eu estava à sua procura. Precisamos conversar sobre algo importante. – Disse Marishi. O tom daquelas palavras assustou um desprevenido Gabriel. - É algo sério, senhor? – Perguntou, preocupado. - Nada neste Universo é brincadeira. Mas creio que irá gostar. Siga-me. Calado, o garoto escoltou seu mentor por uma longa via. Lendo uma das placas acima de uma das entradas da grande pirâmide do Santuário, Gabriel imaginara para onde eles iriam. Entrando no subsolo do Santuário, os dois percorreram um corredor que dava para uma praça circular, já conhecida de Gabriel. Sem nenhuma surpresa para o jovem, eles cruzaram os arcos da Biblioteca imergindo naquele recinto inclinado. - Luhan, hoje eu tenho duas missões para você. - Como assim, senhor? Que missões?

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- Eu lhe trouxe hoje à Biblioteca para que você aprenda o porquê de eu, você, e todos nós Sacerdotes estarmos aqui. - Você está falando... Do sentido da vida? - Sim, e ainda mais do que isso. Quero lhe mostrar algo. Caminhando entre as prateleiras, Marishi se dirigiu a um Tahamalen guardado em meio aos demais. O Sacerdote o retirou como se soubesse decorado cada texto daquele lugar, entregando o cubo de metal a Gabriel. - Horun’Tahabah? – As Escrituras do Princípio? – Perguntou o jovem, lendo as inscrições em sua base. - Quando chegou aqui você me questionou quando iria aprender sobre os segredos do Universo. Pois bem, agora você os tem em mãos. - Os segredos do Universo estão neste Tahamalen? - Quase isso. Este Tahamalen que você está segurando é a compilação dos nossos mais valiosos estudos sobre o Universo. Ele conta detalhes sobre o início deste Universo, passando pela história de Yashena, e também descrevendo as habilidades e capacidades da nossa Mente. Mas é claro, ele é apenas uma introdução sobre tudo isso. Existem outros estudos mais aprofundados.31 - Você quer que eu estude este Tahamalen? – Marishi confirmou. - Você precisa compreender como funciona nosso Universo. Essa obra é um dos poucos textos que foram resgatados pelos Sacerdotes da religião Harah. Uma verdadeira relíquia da Ordem. - Uma relíquia? – O Sacerdote assentiu com a cabeça. - As Escrituras do Princípio são a nossa Bíblia. Sem esses estudos, nosso conhecimento, em sua maioria, seria baseado teorias passageiras e não em fatos, hoje inquestionáveis. Espero que você faça bom uso.

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Entre os principais documentos, se encontravam o Mayam’Horun – o Princípio de Tudo; o Bashe Elavah – o Universo Central; o Hadah Bashe’Avathan – o Grande Universo de Avathan; e o Bashe Lahon’Navadoh – o Universo Local de Navadoh. Estes quatro documentos formavam a base de nossos estudos sobre o Cosmos, consistindo até hoje no mais puro e verdadeiro conhecimento sobre a realidade em que estamos inseridos.

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Marishi deu as costas a Gabriel, caminhando de volta para as longas escadarias da Biblioteca. - Aonde vai senhor? – Perguntou Gabriel. - Voltar aos meus afazeres, ora. Já falei com seus professores para diminuírem suas aulas. Você já sabe qual é sua missão agora. - Mas e a outra missão de que o senhor falou? Ela é sobre o que? - Tenha calma, Luhan. Tudo virá no seu tempo. Quando tiver uma boa compreensão sobre o que está guardado neste cubo você será capaz de realizar uma missão que darei a você e a Shylon. – Disse o Sacerdote. – Mas por enquanto, ele é todo seu. Gabriel nem teve tempo de falar. Marishi já havia partido. Aquela atitude do Sacerdote pegou de surpresa Gabriel. Pela primeira vez Marishi não orientara Gabriel. Apenas lhe entregara um Tahamalen e o deixara à própria sorte para estudá-lo. O Sacerdote queria que o garoto andasse com as próprias pernas. Sozinho em suas próprias reflexões, ele se dirigiu a uma das mesas ali presentes, e com a mesma vontade que possuía quando passava as tardes sozinho na biblioteca do seu colégio, Gabriel colocou o Tahamalen na abertura da mesa, que logo acendeu sua tela luminosa. O garoto tocou o visor, fazendo aquelas palavras correrem diante dos seus olhos. O texto era gigante. Quinhentos. Mais de mil documentos formavam aquela obra que embora estivesse armazenada naquele pequeno Tahamalen, impressionara Gabriel desde o momento que abrira o arquivo. Gabriel voltou o texto até sua primeira página. Aquelas palavras pareceram desafiar sua Mente. Diante dele se exibia o primeiro documento do texto, com um título bastante sugestivo. O Princípio de Tudo. - É... Vai ser um longo caminho... – Disse o garoto encarando a tela. De fato aquela tarefa não seria nada fácil. Mas Gabriel sabia que Marishi não lhe dera nenhum prazo para ler aquela imensa obra. O Sacerdote não queria pressa. Pretendia acima de tudo que Gabriel assimilasse o precioso conteúdo guardado naquele pequeno Tahamalen.

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Sem mais perder tempo, o jovem comeรงou a ler aquelas linhas que surgiam diante dele. E com a curiosidade que sempre teve, mergulhou naquele oceano de sabedoria.

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DOCUMENTO 023 OS OLHOS DE CRISTAL A leitura das Escrituras do Princípio havia se tornado um fascinante desafio para Gabriel, porém, suas dúvidas continuavam a alimentar-se assim como sua fascinação com aqueles documentos. Quando não recorria a Shylon, na tentativa de que pudesse elucidar certas passagens da obra, outras vezes ele era visitado pelo amigo para que estudassem juntos. A cooperação entre os Discípulos era quase bastante construtiva para ambos. A sagacidade de Shylon contribuía para estimular a curiosidade incessante de Gabriel para aprender mais e mais sobre a cultura nemashiana, ao passo que os conhecimentos matemáticos de Gabriel fundiam a Ciência nemashiana e a terrestre em uma só. Nessa tarde, mais uma vez, Gabriel rumava para o apartamento de Marishi na esperança de encontrar ou o pai ou o filho, para mostrar certas passagens das Escrituras que coincidentemente, ou não, faziam alusão direta a Yuransha. Após cruzar metade daquele luminoso corredor no alto da Torre da Habitação, Gabriel imprimiu sua biometria nas fechaduras do apartamento de Marishi. Para facilitar o contato com seu pupilo, Marishi deu livre acesso a Gabriel a seu apartamento. A única obrigação naquele local era que a entrada de Gabriel – assim como de qualquer outro Sacerdote – ficaria registrada no computador central, como questão de segurança, no caso de algum infortúnio. Mas ali era o Santuário, o lugar mais seguro do sistema. Já conhecendo o vasto apartamento, Gabriel adentrou, observado a penumbra que engolia o ambiente, devido às cortinas parcialmente escurecidas. A temperatura ambiente estava consideravelmente baixa, o que fez o garoto desconfiar que Marishi ou Shylon poderiam estar no apartamento. Mas a essa hora, o Mestre Harashi estaria ocupado em suas aulas, então quem devia estar ali era Shylon. O garoto não dispensava a escuridão quando queria ter um sono sossegado pela tarde.

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- Shylon? – A voz de Gabriel ecoou pela quietude da sala. Quieta até demais. Ouvindo um arranhado se arrastar pelo escorregadio piso de pedra no corredor às suas costas, Gabriel avançou pela sala, imaginando que o amigo estaria em algum dos quartos no fundo do aposento. Estranhamente, a sombra de Shylon estava largada em cima da mesa. Dormindo desajeitado sobre aquele maciço bloco de pedra. - Mas nem para se deitar no sofá... – Disse consigo mesmo, rindo do amigo que parecia ter desabado sobre a mesa. Mas aquela penumbra o traiu, e percebendo que não se tratava de uma sombra humana, o corpo de Gabriel congelou em meio a sala, ao passo que aquele volume escuro se mexeu, erguendo sua larga cabeça, arrepiando a espinha de Gabriel e fazendo despertar a atenção do assustado jovem. Aquilo definitivamente não era Shylon. O espectro se ergueu na mesa, como uma besta, emitindo estranhos sons, rasgando os ouvidos de Gabriel, como o arranhar de um quadro negro. A fera subitamente abriu seus olhos que passaram a iluminar o ambiente, como se fossem feitos de cristais azuis, emitindo um brilho intimidador. Estranhamente, Gabriel sentiu um medo sem explicação invadir sua Mente, ao passo que o animal o encarava com um olhar invasivo. Seus pensamentos haviam escapado, mas em uma desesperada tentativa de fugir, a fera saltou sobre Gabriel, derrubando-o no oco piso de mármore. Em vão tentou lutar. Sentiu uma pressão sobre sua cabeça, e pensou ser a pata do bicho lhe esmagando, mas para sua surpresa ele se encontrava imóvel diante dele, observando-o como uma presa imobilizada. E era assim como se encontrava. Pensou que ela loucura, mas de alguma maneira aquele bicho o estava prendendo não por sua força, mas por sua Mente. Impossível! Gritou em sua Mente, sem conseguir se mexer. Com a certeza que havia imobilizado o garoto, agora o bicho passou a rolar em cima dele, intimidando-o ainda mais, enquanto emitia o estranho grunhido ainda mais alto. - Socorro! – Gritou Gabriel, em meio ao desespero. – Shylon! Me ajude... 148


Aquela pressão que sentia em sua cabeça enlouquecia sua Mente. O único e momentâneo lapso de razão que saiu de Gabriel foi quando observou ao fundo outro espectro surgir da escuridão, dessa vez soltando uma poderosa voz, já conhecida. - Shekmeh! Saia agora, ele é meu amigo! – Ordenou à fera, enquanto subitamente a acalmava. Tranquilamente, o felpudo animal caminhou a elegantes passos pela sala, rodeando o mármore que cercava os divãs. Num súbito movimento, saltou para um daqueles longos sofás, se espreguiçando, enquanto não tirava seus vívidos olhos de um apavorado Gabriel. - Ahras, levante as cortinas. – Ordenou Shylon. - Como deseja, Shylon. – Respondeu a máquina, com sua obediente voz masculina. Imediatamente, a luz penetrou naquele escuro ambiente, revelando a Gabriel a verdadeira identidade da fera. O animal, que jazia confortavelmente no sofá, se sacudiu com a luminosidade que o atingia, reluzindo sua pelagem que clareava gradualmente à medida que a cortina subia, até se tornar tão branco quanto a forragem do divã em que estava. Seus poderosos olhos azuis fitavam Gabriel com um ar de orgulho, e se não fosse a ofuscante luz que penetrava pelo painel de cristal ao fundo, o jovem podia jurar que viu um discreto sorriso brotar de seu focinho. - O que... É isso?! – Perguntou o garoto, em meio a um acesso de riso descontrolado de Shylon. - Isso é o nosso... Como dizem no seu mundo... Animal de estimação. – Disse o amigo, sorrindo enquanto apertava a longa orelha do bicho enquanto ele rodava a cabeça em meio a uma longa satisfação pelo carinho. Aquele longo e arranhado ronronar fez Gabriel atinar para a silhueta inconfundível de um bicho que via praticamente todo dia passeando em frente a rua de sua antiga casa. - Isso é um... Gato?! – Exclamou Gabriel, observando com assombro o tamanho do animal, nomeando-o em sua língua mãe. A grande fera mais lembrava uma lince, com uma forte pelagem de muitos tons de cinza. Mas seu robusto corpo e o modo como se sentava resgatava na memória de Gabriel a imagem de um lobo andando entre um nevoeiro. Afinal, o que de 149


fato era aquela criatura? Seria um gato? Um cachorro? Ou um selvagem híbrido típico de Nemashi? - Gato? – Perguntou Shylon, intrigado. – O que é isso? - É uma espécie de felino, muito parecido com os Aryeh, que no meu mundo são conhecidos como Leões. - Sim, você já tinha me falado desses leões quando conversávamos sobre as peculiaridades de nossos planetas. - Mas isso aqui é absurdo, ele é quase do meu tamanho. – Disse Gabriel, ainda impressionado com o animal. - Na verdade, só quando fica em pé. - Shylon levantou os dedos em rápidos movimentos, chamando pela fera. Imediatamente ela se colocou de pé ao lado de Shylon, para espanto de Gabriel, que observava o bicho contorcer a cabeça, com sua pelagem roçando a face do amigo. - O que ele é? – Gabriel perguntou, se levantando do chão. - Isso é um behemah, uma espécie bastante apreciada aqui em Nemashi. São os nossos animais de estimação. – Disse Shylon. – E não é ele, é ela. Esse behemah é fêmea. Seu nome é Shekmeh. - Não tinha uma espécie menor não? – Cortou Gabriel, sem ainda acreditar no que via. - Waaaahaum. – A fera resmungou, fazendo Gabriel dar um passo atrás. Shylon sorriu, olhando para o animal. - Ela respondeu que não. Minha garota é um tanto quanto orgulhosa e ciumenta. Não gosta que ninguém perturbem o meu sono ou de meu pai. Nem mesmo um Sacerdote, quanto mais você um estranho. - Mas eu não sou estranho. Venho aqui quase todo dia. – Respondeu Gabriel, intrigado. - Para ela é, meu amigo. – Disse Shylon. - E por que até agora eu ainda não a tinha visto? - Porque ela passou uma temporada inteira na floresta do Santuário. Estava reunida com outros de sua espécie. - Reunida? Como assim? - Os behemahs são criaturas independentes, que gostam de se misturar com outros de sua espécie em lugares isolados, como florestas ou 150


campos. São seres tão sociais quanto nós, e da mesma forma, possuem algumas habilidades mentais. - Habilidades? Mas pensei que somente nós é que podíamos desenvolver nossas Mentes. - Segundo o que ensinam os antigos Sacerdotes, os animais têm uma vontade derivada de sua natureza que é potencializada pelo aperfeiçoamento que adquirem através de suas experiências, assim como nós. Contudo, tal poder de suas Mentes não é uma força dotada de consciência, nem pode ser comparada à vontade humana, porque não é reflexiva, não é resultado do discernimento entre os significados morais mais elevados, nem da escolha dos valores pessoais. Essa capacidade, de discernir o que é certo ou errado, e de buscar a Verdade, é o que faz de nós criaturas dotadas de responsabilidade moral e com um potencial único: O de sermos seres criativos. Mas como toda espécie que busca meios de evoluir, os behemahs acabaram desenvolvendo uma espécie de comunicação mental. - Comunicação mental? - Exatamente. Por meio dessa comunicação ela foi capaz de imobilizar sua presa... Você. – Disse Shylon, apontando ironicamente para Gabriel. - E como se dá essa comunicação dela? - Ora, através de seus instintos, de seus grunhidos. Mas até mesmo essa estranha gama de sons possui uma lógica, uma espécie de linguagem instintiva, que podemos interpretar para melhor entendermos o que Shekmeh quer nos dizer. Shylon fez um movimento com a mão, e prontamente a fera foi ao seu encontro. Ainda desconfiado, Gabriel não tirava o olho dela, nem ela dele. - O Sacerdote Haron criou um dispositivo capaz de transformar as ondas cerebrais emitidas dos grunhidos dos behemahs em frases, de modo que podemos traduzir suas expressões em palavras. – Disse Shylon, tirando do bolso um peculiar aparelho cilíndrico. – Fale garota, como você se sentindo? - Waheeem... Whooon... – Aquele grunhido acendeu a engenhoca, emitindo luzes pulsantes que refletiam na face de Shylon, como se estivesse

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captando as vibrações emitidas pelos animal. Para espanto de Gabriel, uma frase foi expelida do dispositivo com uma forte voz metálica feminina. - Com fome, assim como você. Gabriel soltou um sorriso, visivelmente incrédulo. - Isso é... De fato, muito estranho. – Disse, virando a cara para aquela felina alienígena. - E tem mais. – Disse Shylon, puxando vazo junto ao divã. Em seu interior um fino pó branco se assemelhava a uma areia, como pequenos cristais de calcário. Shylon mandou Gabriel se afastar e virou o conteúdo no chão, espalhando-o pelo piso de pedra. - O que está fazendo? – Perguntou Gabriel. - Você verá. – Respondeu, voltando-se para a fera. – Shekmeh, quem é a pessoa que mais gosta de você por aqui? Shekmeh se aproximou de Shylon, cheirando o ar, sentindo o aroma suave do pó que seu dono havia espalhado no assoalho. - Grrrraaauumm... – A behemah ronronou novamente, ecoando aquela arranhada sonoridade. Para mais espanto de Gabriel, o aparelho na mão de Shylon emitiu uma única palavra. O nome do garoto que o segurava naquele momento. - Eu não acredito... – Disse Gabriel, boquiaberto. Porém, Gabriel não dava atenção ao nome pronunciado pela máquina, mas se encontrava aficionado pelo chão que vibrava junto com aquelas partículas espalhadas. Sutilmente, aquele pó amontoado começou a tomar forma, desenhando figuras geométricas em meio a uma perfeita simetria. Gabriel não sabia o que mais lhe impressionava, a perfeição daquelas formas geradas pelas ondas sonoras, ou a surreal capacidade daquele animal de produzir tais ondas. - Acredite. Essa é a mais fantástica habilidade desenvolvida pela evolução desse bicho, uma incrível sensibilidade psíquica, capaz de transformar seus grunhidos em ondas sonoras harmônicas, e por meio dessas ondas, uma geometria que traduz o que ela pretende nos dizer. – Shylon concluiu, em meio a um sorriso.

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- Então elas podem se comunicar através de suas Mentes... Assim como nós? - De certa forma, sim, porém sem a consciência real do que fazem. Animais possuem instinto, alguns deles não muito diferentes dos nossos. – Disse Shylon, voltando-se para aquela felina. – Mas você é mais inteligente do que muita gente por aí, não é, minha bola de pelos? Shekmeh emitiu um novo grunhido, fazendo o dispositivo de Shylon emitir uma resposta positiva. Porém, o garoto não teve tempo de formular nenhuma outra pergunta, quando a porta do apartamento deslizou revelando seu novo intruso. - Mas que bagunça é essa Shylon? Shekmeh derrubou outro vaso? – Perguntou Marishi, se escorando na entrada do aposento. - Não pai. Eu estava mostrando as habilidades dela a Luhan. Ele acabou de conhecê-la. - Não foi bem como eu esperava... – Reclamou Gabriel. - Pela sua cara e as roupas amassadas imagino o que deve ter acontecido. Se ela pulou em cima de você, considere que ela o tomou como seu mais novo amigo. É a maneira dos behemahs demonstrarem afeição, esfregando sua pelagem nos outros. Isso aquece a ambos. Gabriel apenas sorriu, olhando para o grande animal. Shekmeh soltou um grunhido mostrando seus largos e pontudos dentes. - Bem, ela está gostando da sua presença. Quem é amigo de Shylon também é amigo dela. Creio que vocês dois se darão muito bem. – Disse Marishi. – Apenas não mexa na cauda dela. - Por quê? – Gabriel perguntou, fitando aquele volume emplumado sacudindo ritmicamente acima do corpo de Shekmeh. - Você não vai querer saber... – Disse Marishi, soltando um sorriso sarcástico. – Shylon, antes de fazer o que quer que seja, limpe esta bagunça. O garoto prontamente obedeceu, estendendo suas mãos sobre o quadro geométrico desenhado por Shekmeh, e com um rápido movimento das mãos, desmontou aquela obra de arte, suspendendo todas as partículas no ar, e conduzindo-as cuidadosamente de volta ao interior do jarro em que

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estavam. O forte aroma daquela areia cristalizada logo invadiu o ambiente, fazendo a behemah espirrar. - Sinto que você veio aqui nos falar algo Luhan, estou correto? – Perguntou Marishi. - Sim. Tem a ver com as Escrituras. Descobri algo, senhor. – Aquelas palavras fizeram Shylon se voltar para o amigo, intrigado. - E o que seria? – Perguntou Marishi, também interessado. - Tem a ver com o meu mundo. - Explique-se melhor meu jovem. – Disse Marishi, enquanto Gabriel caminhava para a mesa da sala, levando o Talahamen até sua abertura. A imagem logo iluminou aquele ambiente, chamando a behemah a se juntar aos outros três Harashis que se sentavam ao redor da projeção.

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DOCUMENTO 024 UM LIVRO PARA CADA MUNDO Aqui está o que procurava. Disse Gabriel, apontando para o corpo do texto que se projetava acima da mesa de leitura. Novamente leu o título do documento para checar se não havia se confundido com outra passagem, tocando o ar enquanto o holograma descia até chegar na parte que lhe interessava. - Aqui diz que todas as sociedades possuem seus livros, muitas vezes considerados sagrados, porém, em um determinado momento, cada mundo recebe um livro em especial. Um tipo de manual do planeta, para que o povo possa progredir no momento oportuno para atingir sua verdadeira evolução. – Disse, lendo uma passagem daquele documento das Escrituras.32 – Então, cada planeta possui seu manual sobre suas origens e sua história? - Correto. – Disse Marishi, se ajeitando na poltrona. – Alguns mundos desenvolvem tais obras mais cedo, outros mais tarde. Alguns desses escritos transbordam o mais puro e verdadeiro conhecimento sobre este Universo. Já outros são tão adulterados que fica difícil lhes dar alguma credibilidade, mas de certa forma, todos eles são válidos devido à essência de seu conteúdo. - E meu mundo possui algum desses livros? – Perguntou Gabriel. - Certamente, Luhan. A Bíblia judaico-cristã, o Corão islâmico, o Bhagavad Gita hindu, o Popol Vuh maia, o Dhammapada budista e tantos outros. Obviamente, estes livros foram transcritos por mãos humanas, e 32

O Documento que era lido naquele momento era o de número 44, cujo título era Revelações de Época. O trecho citado neste momento era o seguinte: A realidade das múltiplas crenças religiosas de uma sociedade faz com que os seres evolucionários se percam em sua jornada de auto-aprimoramento, por isso, se faz necessário que ao longo da história, o conhecimento da Verdade seja revelado, de modo que possa contribuir de forma concreta para o alcance desse sublime objetivo espiritual. Por isso, juntamente com as revelações progressivas, é preciso que um conhecimento consolidado comum seja dado a cada mundo, direto de sua Fonte, para guiar tal sociedade quando esta estiver pronta para o verdadeiro salto em sua história, e assim, para que o povo possa progredir no momento oportuno para atingir sua verdadeira evolução, a evolução moral, de seus conceitos, e não menos fundamental, sua evolução de suas Mentes.

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igualmente por elas foram alterados ou mesclados com escritos sobre a história, costumes ou crenças locais, o que acabou alterando a origem de tal saber. – Disse o Sacerdote, também citando outras crenças e livros sagrados de Yuransha. - Mas como posso distinguir o que foi ou não alterado? E como posso dar credibilidade a escritos de uma origem tão duvidosa? - Pela veracidade dos fatos ali expostos. – Disse Marishi. – A Verdade são os fatos, sejam eles simples ou complexos de serem compreendidos. Os fatos que aparecem em tais escritos não podem ser contestados. - Não entendi Marishi. - Claramente certas passagens são fruto da ignorância e preconceito dos homens daquele tempo, como partes em que o Criador ordena qualquer tipo de violência. Não consigo conceber um Deus que em sua inimaginável perfeição alimente qualquer tipo de violência. Do mesmo modo, uma série de passagens tidas como “cientificamente equivocadas” são fruto do limitado conhecimento dos homens daquela época, e seu esperado insucesso em tentar explicar os fenômenos. Entretanto, mesmo assim, estes livros possuem informações que para a época não seria possível tais homens saberem de tais coisas. - Mas então onde estão estas passagens que não vejo? - Bem... Isso você somente poderá atestar pela leitura e um profundo estudo desses livros. Não é uma tarefa fácil, mas um dia você saberá como distinguir quais conhecimentos realmente foram repassados aos homens e o que, obviamente, é fruto de nossa limitada capacidade de entendimento. - E de onde veio tal saber? – Perguntou Gabriel, observando o dedo de Marishi se erguer no ar apontando para cima, quase em um reflexo. Aquela mensagem já dizia tudo. E Gabriel automaticamente a captara. - Luhan, na verdade muito pouco. Em quase sua totalidade, os ensinamentos ou eventos relatados são uma parte fragmentada daqueles que testemunharam tais fenômenos. Dificilmente uma Mente irá conseguir reproduzir tudo o que assimilou daquela Verdade. – Interviu Marishi, tentando esclarecer a salada que já se instaurava na cabeça de Gabriel.

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- Você quer dizer que tanto a Bíblia como os outros livros realmente foram inspirados... pelos deuses? - Seres Superiores... – Disse Shylon, prontamente corrigindo o amigo. - Mas se esses Seres Superiores existem, por que eles não aparecem logo para nós e dissipam todas as dúvidas sobre as crenças e sobre perguntas que fazemos desde que existimos? Não consigo conceber o porquê dessa eterna ausência. É como se de fato não existissem. - Vejo que você não possui tanta fé quanto eu imaginava. – Disse Marishi, voltando-se para Gabriel, em meio a um terno sorriso. - Eu passei minha vida inteira frequentando igrejas, comungando da mesma crença dos meus pais, porém nunca vi nada do que eles creem existir. Não é que não creia, mas eu até agora não tive uma prova sequer de que de fato deuses ou demônios existam. No dia que eu tiver essa certeza eu poderei dizer que eu sei, ao invés de que acredito. - Acho que aqui não tem muito espaço para essa sua dúvida. – Disse Marishi, apontando para o holograma flutuante, e em seguida olhando para Shekmeh que se espreguiçava no chão. - Aqui é diferente... - O que há de diferente, Luhan? – Marishi logo cortou Gabriel. – Olhe ao seu redor, veja os milagres que podemos fazer. E não, – disse, se adiantando aos pensamentos do garoto. – não é da tecnologia que estou falando.

Olhe

as

nossas

Mentes.

Olhe

o

nosso

conhecimento.

O

conhecimento puro e verdadeiro não é uma obra nossa, é algo que vem do Alto. É um entendimento inimaginável, que nos invade e nos choca nosso entendimento diante da verdadeira natureza deste Universo. - Então, no que eu devo acreditar? – Perguntou o garoto, ansiando uma resposta mais objetiva. - Por enquanto, somente naquilo que passar por sua compreensão, é o suficiente. Enquanto buscar compreender tudo com sua mais inocente sinceridade, você não se decepcionará com sua natural ignorância e trilhará os caminhos da dúvida. Porém, quando encontrar o que tanto procura ficará maravilhado, e então terá uma fé que valerá pela grandiosidade de um Universo inteiro. 157


- Mas, então, se eles existem, o que são estes Seres? - Pense neles como forças dotadas de uma poderosa personalidade e vontade para agirem do modo mais sublime neste e em outros mundos. Eles são os verdadeiros anjos que habitam este Universo. - Mas Marishi... – Disse Gabriel, pertubado com aquelas palavras. – Quando cheguei aqui você mesmo me disse que os Harashis foram tomados como anjos quando visitaram o meu planeta antigamente. - Exatamente. Nós fomos tomados por deuses e anjos na antiguidade, que desceram em Yuransha com suas “asas”, mas obviamente não somos essas divindades que eles imaginavam. Os verdadeiros anjos deste Universo são aqueles que chamamos de Seres Superiores. Poucas pessoas em seu planeta foram capazes de vê-los, mas lhe garanto, em nada se parecem com os anjos representados em seu mundo. - E como eles são? Com o que se parecem? – Perguntou o garoto, afundado em sua curiosidade. - Não tente pensar em imagens, mas sim em frequências que desenham formas, estas são suas verdadeiras aparências. Acredite, não podemos vê-los sem que eles permitam isso, caso o contrário não poderíamos mais viver. Acho que já leu alguma coisa do tipo na Bíblia, não é?33 33

Estudando as Escrituras judaico-cristãs de Yuransha, de fato encontrei referências a este fato, descrito no chamado Livro do Êxodo. Em seu capítulo 33, versículos 17, 20, 23, se encontra a seguinte passagem: “Disse, pois, o Senhor a Moisés: (...) Tu não poderás ver minha face, pois homem nenhum vê a minha face e continua vivo (...) Tu me verás não frente à frente, mas sim minha face oculta de ti”. Do mesmo modo, o Corão islâmico descreve na Sura 42, versículo 51, que: “(...) Não é possível a um mortal que o Senhor lhe fale, senão por revelação, oculto por detrás de um véu, ou pelo envio de um Mensageiro, pois este somente revela o que Ele deseja, apenas com Sua permissão”. Por mais que os muçulmanos tentem entender o que eles chamam por Deus, quanto mais se estuda a origem da religião islâmica, mais nos impressionamos com a verdadeira história contada pelos seus partícipes. Ao contrário do que a tradição muçulmana transmite, quando Allah aparece ao Profeta Mohammed em vários trechos do Corão, na verdade não era o próprio Deus que se revelava mas sempre o chamado Anjo Gabriel, o Ser Celestial que revelou os versos do livro sagrado a Mohammed. Em um dos episódios da comunidade islâmica primitiva é narrado, segundo as palavras do sábio muçulmano Masruq, que ele próprio: Estava descansando na casa de Aisha, a terceira esposa do

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Aquele sorriso sarcástico de Marishi era uma marca registrada de sua face, e de alguma forma fazia Gabriel endender o que às vezes o Sacerdote deixava nas entrelinhas. - Um dia lhe ensinarei isso com calma. Mas por enquanto, tudo o que posso lhe dizer é que nós, os anjos que de fato visitaram inúmeras vezes seu planeta, somos apenas um instrumento nas mãos dos verdadeiros Guias deste Universo. Somos os Seres Intermediários entre eles e nós, da mesma forma que Eles são os intermediários entre nós e o Mayam’Horun. – Gabriel

Profeta, quando ela disse: “Aquele que acredita que o Profeta viu o Senhor com seus olhos, fabricou a maior das mentiras deste mundo”. Eu estava deitado, mas ao ouvir isto logo me sentei e disse: Mãe dos Fiéis, por favor, não se apresse em responder... Não disse o Poderoso e Majestoso que o Profeta “realmente O viu, no claro horizonte" (passagem da Sura 81, versículo 23) e que ele “O viu novamente descendo dos céus” (Sura 53, versículo 13)? Ela disse: “Eu sou a primeira do nosso povo que perguntou isto ao Mensageiro do Senhor, e ele disse: Na verdade aquele que se manifesta diretamente a mim é o Anjo Gabriel. Porém, mesmo assim eu nunca o vi em sua forma original, no qual ele foi criado, exceto naquelas duas ocasiões (ao qual esses versos se referem), quando o vi descer do Alto, preenchendo o espaço ao meu redor, como que surgindo dos Céus para aparecer na terra, bem diante dos meus olhos, com a grandeza de sua presença e a sublime aparência de sua forma corporal”. Sei que muitos de vocês não conhecem as Escrituras do seu próprio mundo, mas ao longo dos meus estudos – como pretendo compartilhar parte deles nestes relatos sobre a história de seu planeta – compreendi que de fato as narrativas dos seus livros sagrados se encaixam de uma maneira inquestionável ao quase infinito saber de nossa Ciência. A maioria dos encontros dos habitantes de Yuransha com anjos ou deuses, foi, no fim das contas, contatos diretos com Sacerdotes de nossa Ordem, como o Sacerdote Marishi narrou acima. Porém, uma parcela quase insignificante destes fenômenos, foi ocasionado por encontros reais com tais Seres, que por sua vez, tinham uma missão bem específica ao contatarem homens e mulheres do seu mundo. E, quando estes fenômenos ocorreram, estes contatos se deram de acordo com as Leis Naturais deste Universo. Tenham consciência de que, se vocês somente são capazes de enxergar tais Seres Superiores apenas quando protegidos por seus “escudos”, quem dirá poderem contemplar o Princípio de Tudo, Aquele ao qual vocês chamam por Deus, em sua verdadeira natureza. Espero um dia poder explicar-lhes isto detalhadamente, mas de fato, todos nós ainda estamos muito distantes Dele. Mas isto é algo que não sei se serei capaz de lhes revelar, ou vocês de compreenderem. Pelo menos não por enquanto.

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então se lembrou da conversa sobre os Seres Intermediários, que tivera com Marishi quando chegara ao Santuário. - Mas se vocês são enviados aos planetas com uma missão, então o que afinal eles fazem? – Perguntou Gabriel, curioso. - Do mesmo modo como os pais têm a missão garantir um ambiente para educar seus filhos, para que estes possam caminhar com suas próprias pernas após amadurecerem, estes Seres possuem um propósito muito maior do que zelar por planetas que apenas iniciaram um longo caminhar em sua jornada evolutiva. Eles possuem um Universo inteiro para administrar. E por meio dessas ordens, ou mensagens, eles interagem conosco, nos instruindo como conduzir, manter e promover a evolução dos nossos planetas e do Universo sem que eles intervenham. E você deve imaginar onde parte dessas ordens se encontram, não é? Gabriel concordou com a cabeça, vindo à sua memória dezenas de livros sagrados das religiões do seu mundo. - Mas se as Escrituras do Princípio são o manual para Nemashi e os planetas de Ashunyah, então qual o manual do meu planeta? Quer dizer, Yuransha possui suas próprias Escrituras do Princípio? – Perguntou o garoto, já laçando um nó em sua cabeça devido à gama de informações jogadas em tão pouco tempo. - Com certeza, Luhan. Como uma vez lhe ensinei: nada do que existe em seu planeta é original, e da mesma forma como tantos outros, ele também possui um manual. Esta Escritura que você se questiona na verdade é um Livro que se encontra em seu mundo, e leva o nome dele... Embora Marishi estivesse no meio de sua explicação para Gabriel, Ahras interrompeu o Sacerdote, anunciando o jantar que se aproximava com a tradicional chamada para que todos os Sacerdotes se juntassem no grande salão do refeitório do Santuário. As tradições Harashis não dispensavam a união da irmandade, onde praticamente todos os membros da Ordem faziam questão de realizarem suas refeições uns com os outros, aproveitando o momento para descontraírem, em meio à rotina de estudos e trabalho.

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- Bem, podemos discutir isso no caminho meu jovem. – Disse Marishi, convidando Gabriel a se juntar a ele e a Shylon. – Você também vai gostar de conhecer esas Escrituras do Princípio do seu mundo. - Também estou curioso, pai. – Disse Shylon, se levantando da mesa. – O planeta natal de Luhan parece bastante interessante. Levantando suas pontudas orelhas com os movimentos ao seu lado, Shekmeh logo se pôs de pé, seguindo o seu dono. Mas antes de acompanhar os Harashis, ela bateu sua grossa cauda nas pernas de Gabriel, enquanto soltava um longo e agudo grunhido, se espreguiçando. Pouco ligando para a behemah, o jovem se perguntava que outro livro seria aquele. E que ainda por cima levava o nome do seu planeta. Yuransha... *** Será possível? Sentada em sua cama, mais uma vez Sofia se questionava enquanto lia aquelas páginas impregnadas da mais variada espécie de informações acerca do Universo. Mas daquela vez, a jovem deteve-se por algo intrigante. Em uma das páginas, pequenas anotações cortavam sua atenção do texto principal, fazendo a garota mergulhar nas pequenas linhas que riscavam quase que simetricamente o amarelado papel. Em uma delas, o Guardião discorria um fato que ocorrera com ele, algo que arrebatou a atenção de Sofia. Eles estiveram aqui. Tentaram me encontrar, mas não tiveram forças para continuar. Creio que os Olhos Invisíveis que nos observam tenham me concedido mais tempo para completar meus estudos. Sou grato todo dia pela distante, mas poderosa proteção que me concedem a cada momento. Mas se você, amigo da sabedoria, acredita nas minhas palavras, e encontrou esta obra após o necessário sono de minha Mente, não hesite em continuar este trabalho que iniciei. Este livro é a chave

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para nos protegermos do que está por vir. Jerome Hunsaker, 05 de fevereiro de 1984.34 Sofia sentiu um forte peso na sua cabeça descer pelo de seu corpo. Seu sangue gelara, disparando também seu coração. Afinal, quem eram eles? Agentes do governo americano que estariam atrás do livro? E quem seriam estes assim chamados Olhos Invisíveis? Pelo que lera até agora, Sofia não encontrara nenhuma referência a estes misteriosos observadores. Ao longo da leitura do Livro, ela descobrira que os Cinco Guardiões esconderam a obra dos presidentes norte-americanos que sucederam a Harry Truman. Alguns desses episódios foram gravados nas próprias páginas do Livro pelo seu dedicado Guardião. Mas se ele não estava falando dos agentes federais, de quem estava então? Mas algo a chocara ainda mais. Aquela mensagem parecia ser destinada a alguém em especial. E aquelas três palavras – amigo da sabedoria – não saiam de sua cabeça. Mesmo após passar semanas lendo incansavelmente aquelas páginas, a garota se mantinha fechada em seu ceticismo tão natural de sua personalidade. Mas aquilo desafiava seu conhecimento essencialmente racionalista. Não se tratava de meros dados expostos que podiam ser refutados, mas de fatores que uniam o profundo conhecimento ali encerrado, a mítica narrativa de como a obra fora concebida, e o remoto modo como a garota havia achado o livro perdido na desencontrante rotina de Nova York. Sofia relutava em aceitar que aquilo tudo tinha um propósito. Porém, não conseguia achar outra explicação. Se perguntava por que ela, aquele local, e aquele momento. Poderia ter sido encontrado qualquer outra pessoa, porém não foi, e agora, ela, uma amante do conhecimento, tinha a missão de explorar e dar continuidade ao legado deixado pelo último Guardião. Aquelas palavras pareciam ter sido direcionadas para um momento específico: Um momento em que o livro tivesse sido encontrado, para ser protegido.

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Anotação ao lado do título do Documento 23, que tratava sobre a Expansão Controlada do Universo Local de Navadoh.

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Mas ali, sozinha em seu quarto, a jovem italiana sabia que não estava protegida, e muito menos o Livro. Segundo a obra existiam outros seres residentes no Universo, em especial, pertencentes à classe do indivíduo que dava nome àquele registro. Mas se eles existiam, por que simplesmente não se revelavam para levar o livro a um lugar mais seguro? Quem são esses seres de Nemashi e que Ordem é essa? Perguntava-se. Do mesmo modo, imaginava como seria um possível contato com aquelas personalidades de outro mundo. Mas ao mesmo tempo o Livro falava de outras entidades, verdadeiras forças conscientes, dotadas de uma incrível sabedoria e que eram capazes de controlar e regular este e outros Universos que existiam. Para a Mente racional de Sofia aquilo forçava sua compreensão. Para ela, ciência e misticismo não se misturavam, bem como especulações sobre seres fantásticos não passavam de mitologia criada pela subjetividade e criatividade da mente humana. Em meio às suas divagações, a garota sentiu algo subir pelas suas costas, como se tivesse tocando os nervos de sua espinha. Aquele calafrio escalou seu corpo, fazendo-a sentir um progressivo esfriar de sua pele, fazendo seus pelos eriçarem. Mas aquela súbita sensação arrepiante foi seguida pelo inesperado. Juntamente com o desconforto, a porta de seu quarto moveu-se, batendo violentamente contra o portal. - Merda! – Gritou a garota, enquanto o livro caia de sua mão, esparramando-se no chão. Sofia encolheu-se em sua cama, vidrada na porta selada à parede. A única coisa que conseguia mentalizar naquele momento era que de alguma forma alguém, ou algo havia fechado a porta. Pelo amor de Deus? O que é isso? Sentindo seu coração quase lhe escapar pela boca, ela refez seus pensamentos, voltando ao começo da noite, e que pelo que se lembrava, aquela mesma porta se encontrava encostada, mas não fechada. Do mesmo modo, a janela do seu quarto fora levemente aberta. Em contrapartida, aquela sensação de baixa temperatura não poderia ter vindo de uma corrente de vento externa. Ela não sentiu vento algum, mas sim seu corpo esfriar, como se uma brisa tivesse transpassado seus nervos. Em meio

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aqueles pensamentos, Sofia somente conseguiu imergir em uma inesperada crise de choro. - Cosa vuoi da me? – O que você quer de mim? – Perguntou-se em meio a soluços. Tentando se recuperar do susto, a garota, voltou-se para o chão, apanhando o livro azul, enquanto seu coração se acalmava em meio aos trêmulos esforços para se abaixar. Recomposta, voltou a observar o Livro por alguns minutos, segurando-o firmemente. Se o fato de estar ali com ele era algo predestinado, ela não podia saber. Pelo menos não por enquanto. Colocando sua cabeça no lugar, decidiu que independente do que estivesse acontecendo, ela continuaria a estudar a obra. A sua profunda curiosidade lhe movia acima de qualquer temor, insegurança ou dúvida. Sofia sentiu um breve ânimo tomar conta de sua Mente. Sofia apertou o Livro, olhando para o seu título, como uma mãe conversando com um filho, algo que embora parecesse imaturo, ela fazia constantemente com seus outros livros. E, dirigindo-lhe seus pensamentos, tomou sua mais íntima decisão. - Eu vou lhe compreender. – Disse, pausadamente, olhando-o fixamente. – E se estiver errado, você não terá valido seu preço. Guiada por uma estranha vontade, ela deu um singelo beijo naquela capa desgastada. Estava cansada pelo adentrar daquela madrugada, porém, seguia determinada em seu desejo em continuar a estudar o Livro de Ormoshi. Largando-o em cima da cama, Sofia se levantou para buscar um copo d’água na cozinha. Antes de sair, ela segurou a maçaneta da porta, analisando se não haveria algum defeito nela. Mas resolveu deixar aquilo de lado. Ela fechou suavemente seu quarto, descendo como um gato os degraus da escada do corredor. Embora estivesse cheia de dúvidas, algumas delas seriam respondidas em pouco tempo.

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DOCUMENTO 025 O LEGADO DOS GUARDIÕES Com o tempo passando, Gabriel se aperfeiçoava em seus estudos no Santuário. A pesada rotina, porém, já se tornara algo leve para o garoto que não se esgotava de treinar sua Mente e seu corpo. A cada dia aprendia mais sobre Nemashi, sobre a Constelação, e sobre os ensinamentos da Ordem Harashi. Da mesma forma há duas semanas vinha lendo As Escrituras do Princípio. Até agora aquele registro lhe ensinara sobre muita coisa do que Marishi já lhe orientara. Falava sobre a formação do Universo em que vivia, a formação dos planetas e dos sistemas de Yashena. Também falava das espécies inteligentes que existiam no Universo, e não menos estranho, descrevia detalhadamente as potências da Mente. Estes documentos, porém, eram difíceis de assimilarem devido à linguagem hermética em que foram escritos. Gabriel não cansava de passar o dia inteiro na Biblioteca do Santuário, e aquele, em especial, não fora diferente dos outros. O sol já havia se posto, mas o garoto continuava ali, mergulhado naquele Tahamalen que tanto lhe fascinava. Sua leitura de fato era estimulante, mas Gabriel já estava cansado. Não comera nada desde que entrou na Biblioteca, e seu estômago já estava reclamando violentamente. Se continuasse assim, logo ele passaria a ver coisas. Pensou. E de fato ele viu. Sem esperar, uma alta sombra projetou-se sobre a mesa. Mas para o garoto não foi nenhuma surpresa ao ver o sobretudo bege de Marishi escurecer sua visão, tapando a luminosidade do ambiente. - Você não saiu dessa Biblioteca desde que entrou hoje. – Disse o Sacerdote em pé diante de Gabriel - Senhor, o que faz aqui?

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- Precisamos conversar. – Disse o Sacerdote, apoiando-se na mesa de leitura. – Creio que você já tenha progredido o suficiente dentro da Ordem para saber certas coisas. E talvez não possamos mais esperar. - Do que você está falando? - Deixe este Tahamalen, e venha comigo. – Ordenou o Sacerdote. Minutos depois, ambos cruzavam o passeio da nave do Santuário. O semblante de Marishi estava sério, calado, reflexivo. Muito diferente do homem que Gabriel conhecera e convivera durante aqueles três meses desde que chegara em Nemashi. Após aquela caminhada em silêncio, Marishi finalmente falou. - Você já se perguntou por que fui ao seu encontro naquela tarde? -

Você

disse

que

eu

possuia

habilidades

que

deveriam

ser

desenvolvidas... – Disse o garoto, se lembrando do seu primeiro contato com Marishi. - Correto. Mas existem outros iguais a você no seu planeta. Você não é diferente deles. Mesmo assim, nós o monitoramos desde criança. O garoto havia se esquecido desse detalhe pertinente. - Há quanto tempo, Marishi? – Perguntou Gabriel, intrigado. - Desde que passou a desenvolver suas habilidades psíquicas. Mas estas qualidades também se somaram a certos conhecimentos que você adquiriu ao longo da vida. – Marishi soltou um longo suspiro. – Digamos que eles se tornaram úteis... aos nossos propósitos. - Que propósitos, Marishi? – Perguntou Gabriel, curioso. - De resgatar um importante texto nosso que está perdido no seu planeta. - E que texto é esse? - Seu coração acelerou, não esperando aquela revelação. - As Escrituras do Princípio. – Disse o Sacerdote, enfático. - As Escrituras do Princípio? – Gabriel perguntou-se, confuso. – Mas não é uma obra amplamente difundida aqui em Nemashi? - Não quando ela se encontra perdida em seu mundo e o governo do seu país está à procura dela.

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- Do que você está falando? – Perguntou o garoto, assustado com aquelas palavras. – O governo do meu país está à procura das Escrituras do Princípio? - Exato. Preciso lhe contar algo que você já devia saber há muito tempo. Como sabe, ao longo da história do seu mundo, sempre observamos a evolução dos povos de Yuransha. Muitas vezes também precisamos intervir para evitar algum desastre. Um desses episódios aconteceu na época da Segunda Grande Guerra. - Vocês participaram da Segunda Guerra Mundial?! – Perguntou Gabriel, transtornado. - Calma Luhan, me escute. – Disse Marishi, acalmando os ânimos de Gabriel. – De certa forma sim, mas nossa participação dentro desse acontecimento vai muito além do que você imagina. Quando a Guerra acabou, a Ordem destacou uma missão especial para observar como Yuransha estava comportando após o conflito. Aproveitamos também para catalogar alguns textos antigos do seu mundo que serviam para estudos de nossos cientistas. Marishi falava aquilo como se estivesse dando uma aula sobre a história da Ordem Harashi. Seu conhecimento era de fato impressionante. - Entretanto, com o fim da guerra, os Estados Unidos aperfeiçoou seus radares através da então capturada tecnologia nazista. Assim, pela primeira vez, se tornaram capazes de rastrear qualquer objeto que estivesse sobre o território norte-americano. O Sacerdote olhava para o vasto corredor à sua frente, como se estivesse relembrando o triste episódio que contaria. - Creio que já tenha ouvido falar nessa história. Em 1947 aviões da Força Aérea dos Estados Unidos interceptaram uma nave, abatendo-a em meio ao deserto. Seus quatro tripulantes morreram na explosão, e posteriormente seus corpos foram resgatados pelo Exército do seu país no deserto próximo à cidade de Roswell. O queixo de Gabriel caiu. Ele já conhecia a famosa história que ganhou um status de lenda urbana, povoando a imaginação da população dos Estados Unidos. 167


Encontros com seres extraterrestres, destroços da nave recolhida pelo Exército. Um complô do governo norte-americano para acobertar todo aquele fantástico acontecimento. Entre fatos e mitos, a história oficial conta que os destroços da suposta nave foram encontrados no dia 02 de julho de 1947 por um fazendeiro chamado William Macdonald próximo ao seu rancho, na cidade de Roswell, enquanto cavalgava com seu filho. Porém, dias antes, diversos moradores locais afirmaram terem visto luzes no escuro céu de Roswell. No dia 07 de julho os destroços foram recolhidos e guardados pelas Forças Armadas na base de Fort Worth. Com a rápida repercussão na mídia, a Força Aérea logo tratou de desmentir a história, afirmando que se tratava de um balão meterológico que caíra na região. Entretanto, devido à grande movimentação de contigentes militares para a pequena cidade, bem como as informações que aos poucos vazavam, como relatos de grandes partes dos destroços, bem como corpos sendo removidos, a história ganhou força, alcançando rapidamente o status de um mito. Uma coisa, porém, era certa: Ao identificarem os destroços, os militares americanos iniciaram uma atrapalhada campanha de desinformação para acobertar a verdadeira origem do material, que até os dias atuais continuava um mistério. Nenhuma prova concreta foi apresentada, e as poucas fotos do suposto balão meteorológico, não davam crédito à versão oficial fornecida pelas Forças Armadas. Embora Gabriel nunca tivesse parado para pensar sobre aquilo desde que chegara a Nemashi, em sua cabeça nunca havia passado a ideia de que a Ordem Harashi tivesse alguma ligação com o chamado Caso Roswell. - Marishi, você quer dizer que a nave que sobrevoou Roswell, e seus tripulantes... -

Era

uma

missão

enviada

pela

Ordem.

Infelizmente, nossos

Sacerdotes foram mortos, e seus corpos recolhidos com os destroços. - Você quer dizer, a nave, não é? - Não exatamente. Essa nave de que você fala na verdade era um pequeno módulo de exploração utilizado pelos Sacerdotes, e junto com seus corpos e os resquícios do módulo, o governo também resgatou um pequeno cubo de cristal, um Tahamalen que continha as Escrituras do Princípio. 168


Então, a partir disso, em outubro desse mesmo ano o presidente dos Estados Unidos criou uma comissão para analisar os destroços de Roswell. O grupo passaria a ser conhecido como... - O Majestic 12... - Pelo visto você já sabe a história. – Disse o Sacerdote, satisfeito com o conhecimento de Gabriel sobre o caso. – Acontece que após estudarem as propriedades dos destroços resgatados em Roswell, eles recriaram boa parte da tecnologia que se encontrava no interior do módulo. - Que tecnologia era essa? - A mesma que seu planeta possui atualmente: Telas de plasma, tecnologia touch screen, projeções a partir de circuitos magnéticos. - Então a tecnologia que possuímos tem origem extraterrestre? - Sem dúvida. Sendo mais preciso, boa parte dela, graças ao acidente. Marishi explicou que após o fim da guerra, parte da tecnologia nazista caiu nas mãos do governo norte-americano e soviético. A própria bomba atômica havia sido uma criação dos nazistas, que ao perderem a guerra, viram todos os seus projetos caírem nas mãos da União Soviética e dos Estados Unidos, tendo o governo de Washington desenvolvido em pouco tempo as duas bombas que acabaram por selar o término da Guerra e o início da próxima. Entretanto, com o Caso Roswell, os líderes soviéticos foram informados de que agora os Estados Unidos dispunha de uma tecnologia bem mais avançada que a resgatada na Segunda Guerra, e assim começou uma verdadeira história de espionagem e conflitos diplomáticos para se estudar e desenvolver tal tecnologia. Assim, os dois países saíram de uma era onde reinavam os pesados tanques e aviões bimotores para entrarem na segunda metade do século XX armados com uma poderosa tecnologia que seria alvo de disputa entre os dois gigantes durante a Guerra Fria. Durante o período da Guerra Fria, a humanidade nunca deu tal salto tecnológico em tão curto período de tempo. Segundo o Sacerdote, o mercado somente veria essa tecnologia décadas depois, devido ao sigilo militar que pairava durante a Guerra Fria. Porém, toda essa fabulosa tecnologia há

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muito tempo já dominava os laboratórios da Força Aérea americana, como também do governo soviético. Percebendo que era demais para o jovem garoto, Marishi se conteve em completar aquela explanação, dizendo que a própria NASA era reflexo do fim da Segunda Guerra. Com seus quarteis e laboratórios dominados pelas forças

americanas

e

soviéticas,

os

proeminentes

cientistas

alemães

acabaram sendo levados em custódia para os dois países, sob o acordo de trabalharem para seus respectivos governos em troca de anistia por seus crimes cometidos durante a Guerra. Como consequência disso, um dos primeiros chefes do projeto de lançamento de foguetes da NASA, era ninguém menos que Wernher Von Braun, o chefe do projeto de foguetes do Regime Nazista. Aquela aula sobre uma história desconhecida de Yuransha havia mexido com tudo o que Gabriel aprendera na escola sobre o fim da Segunda Grande Guerra e início da Guerra Fria. - Mas Marishi... Se toda essa tecnologia foi resgatada do módulo, como esses cientistas foram capazes de traduzir as Escrituras do Korah para meu idioma? - Através da linguagem básica do Universo. – Disse o Sacerdote, sorrindo. - Como? - Matemática, Luhan. Como uma vez disse um sábio do seu planeta, “tudo são números”. – Gabriel ouvia aquilo com uma curiosidade única. - Os cientistas se utilizaram do código binário para transcrever os caracteres das Escrituras do Princípio, que por acidente, se projetaram nas suas recém-criadas telas de plasma quando conectaram o cubo à mesa de leitura resgatada do módulo. Assim, eles acabaram acessando o conteúdo gravado no Tahamalen, mapeando todo o texto das Escrituras, e dando origem ao que eles chamaram de O Livro de Ormoshi.35 35

No intitulado Documento Terrestre da Revelação de Ormoshi, presente na introdução da obra, os Cinco Guardiões narram como foi realizada a descoberta e tradução das Escrituras: “Nossa jornada para a descoberta do Livro de Ormoshi começou logo após a derrota que sofremos, na tentativa de divulgarmos nossas assombrosas conclusões ao

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mundo. Todos os materiais haviam sido previamente analisados, e partir dos resultados primordiais, tivemos a missão de extrair todo o operacionismo daquelas máquinas danificadas ou destruídas pela queda do “disco”. Até então os avanços tinham sido poucos. Um dos mais significativos foi a descoberta de novas características de interações eletro-ópticas através de finas estruturas de cristal liquido, a qual conseguimos reproduzir em laboratório. Estes princípios de interação eletro-magnética, revelados diretamente da tecnologia extraterrestre, nos permitiu a projeção de imagens bem definidas

nas

telas

recriadas.

Esta

mesma

tecnologia

permitiu

também

que

posteriormente fizéssemos outra fantástica descoberta sobre o mecanismo de leitura que estava presente dentro do “disco”. Para ser mais preciso, uma tecnologia bastante avançada. Uma das peças principais encontradas dentro do “disco” era um bloco que inicialmente pensávamos ser uma simples mesa de refeições. Entretanto, a mesma era constituída de uma espécie de metal inédita, cuja estrutura molecular não conseguimos definir, sendo tal elemento até então desconhecido pela Ciência do nosso planeta. Da mesma forma, descobrimos que a estrutura de cristal azul, encontrada na sala desta mesa, também possuía as mesmas características magnéticas presentes nas telas de cristal líquido. Isso nos intrigou, uma vez que o cristal não é magnético. Mas os eventos posteriores abriram nossas Mentes para a existência de uma ordem físico-química além da nossa atual compreensão. Durante uma reunião restrita apenas a nós, os cinco cientistas do Majestic-12, foi realizado um experimento com os objetos presentes no laboratório. Constatado o magnetismo do objeto cristalizado, Vannevar Bush notou que a estrutura metálica da mesa se encaixava no formato do cubo cristalino. O cubo então foi conectado à mesa para averiguar quais as reações se sucederiam. Imediatamente, para o nosso assombro, os medidores de potencial magnético, que serviam para medir as variações magnéticas presentes na sala, subiram quando o cristal foi inserido na mesa. Como se levado por uma inspiração, Bush enxergou uma relação entre o magnetismo emanado pelo cristal e própria tela de cristal líquido, e assim, conectou a estrutura metálica à tela. Aos nossos olhos, enquanto que as medições do magnetismo brotavam como dados matemáticos em nossos medidores, da mesma forma se construía na tela a imagem que se encontra na primeira página do Livro de Ormoshi. Aquilo nos emudeceu por alguns segundos, pois sequer concebemos as razões daquele fenômeno. Não sabíamos qual o principio por trás daquele fato, mas o mesmo se apresentava radiante a partir de sua tela, que nos iluminava bem como a sala inteira. Por fim, o mais incrível estava guardado para o final daquelas experiências. Tomados pela admiração, como se fosse a descoberta do fogo pelos primeiros hominídeos, nos aproximamos daquela atraente e misteriosa imagem formada no cristal reluzente. O doutor Menzel, impelido pela sua natural curiosidade, tocou pela primeira vez naquele quadro de luz,

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como se contemplasse um verdadeiro milagre da física. Subitamente, aquela tela escorregou dos seus dedos, descendo sua imagem para nos revelar outra, uma continuação daqueles primeiros escritos em caracteres até então desconhecidos para nós. Até ali tínhamos presenciado as primeiras linhas da Revelação de Ormoshi, embora, dentro de nossas Mentes, sequer imaginávamos seu sublime conteúdo. Tudo aquilo que víamos diante de nós constituía o que viria a ser mais tarde um livro. Indo além do que já tínhamos descoberto naquele momento, o mesmo cientista tremeu sua mão diante da tela que até então estava parada, e mais uma vez presenciamos o “milagre”, onde a tela novamente se moveu para cima e para baixo, como se obedecesse a mão do homem que a havia libertado de seu sono. Aquilo mexeu muito com nosso conhecimento, até então tido como inquestionável e consolidado. A verdade a qual agora nos deparávamos era que por algum principio desconhecido de todos nós, o magnetismo biológico era capaz de interagir com a matéria, e como consequência, também com a eletricidade presente naquelas imagens formadas. Tamanho foi nosso assombro que decidimos estudar em segredo aquele fenômeno, ainda mais pela natureza misteriosa dos caracteres até então desconhecidos por todos nós. Uma das salas dos laboratórios das Forças Armadas era equipada com os mais avançados sistemas operacionais da época, o que nos permitiu a união de nossa tecnologia com essa tecnologia magnética. Como essa era uma das poucas salas em que tínhamos o acesso exclusivo, pelo caráter da missão, pudemos trabalhar sem a interferência dos nossos próprios superiores militares do Majestic-12. Utilizando-se de relatórios incompletos, transferimos todo o material para este laboratório sob a justificativa de estudarmos as interações entre o processamento de dados através das telas de cristal líquido. Entretanto, eram de total desconhecimento dos militares as propriedades de interação magnética entre o cristal liquido e o cubo cintilante. Todo o material, incluindo o cubo e a mesa, foi guardado nesta sala sob o pretexto de dar-lhes ainda mais segurança. Com a exclusividade dos estudos decretada pelo presidente Truman a nós cinco, logo começamos o trabalho de tradução. Primeiramente realizamos a ligação do sistema operacional dos computadores com a tela de cristal líquido. Desse modo, conseguimos experimentar a inovação deste novo tipo de formação de imagem através dos nossos próprios sistemas. Entretanto a reprodução do mesmo fenômeno de locomoção da imagem realizado anteriormente não se repetiu, gerando apenas a mera exibição do mesmo ícone obtido da tela do sistema de processamento de dados. Ainda não sabemos o porquê, mas deve ser reflexo da incompatibilidade do nosso sistema com esse tipo de tecnologia. Constatado este fato, realizamos a segunda etapa já teorizada por nós cinco: A transposição dos caracteres gravados no cubo para o nosso sistema operacional. Após fazermos as devidas conexões e programações, iniciamos a operação de mapeamento dos misteriosos caracteres. Como já

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tínhamos nos indagado antes, era preciso um programa de operações que lesse os caracteres enquanto uma sequencia ordenada. Olhando sob a lógica da matemática, entendemos que todo aquele conjunto de imagens constituía um código matemático que poderia ser traduzido enquanto uma sequencia ordenada de palavras. Desse modo, pretendíamos nos utilizar do caráter binário de todo aquele código desconhecido para traduzi-lo para a nossa língua. E assim, se iniciou o nosso trabalho primordial: mapear os caracteres que surgiam à nossa frente, e catalogá-los em uma sequência que formava palavras, frases e textos inteiros. Porém, a já esperada variedade de palavras obtidas da tradução nos assombrava, e precisaríamos de um programa especifico para traduzirmos aquele código matemático para a nossa língua. Desse modo, dividimos nosso grupo em dois. Três cientistas ficaram responsáveis pela transcrição dos códigos e suas construções métricas e equacionais, enquanto que os outros dois adaptavam o programa de compilação de dados a um novo sistema de processamento que compreendia a tradução de caracteres numéricos para a língua inglesa. Após dois anos de trabalho concluímos o sistema operacional de tradução o qual foi imediatamente ligado à tela de cristal que exibia as tão conhecidas imagens dos caracteres. Assim que começou a funcionar, os caracteres surgiram na tela como algarismos numa equação tão infinita que pensávamos que nunca teria fim. O sistema passou duas semanas operando sem descansar, o que nos revelou o tamanho da obra que estava diante de nós. Terminada esta fase de tradução dos caracteres para o sistema binário, começamos a tradução destas fórmulas para nossa língua mãe. Isso nos levou mais dois anos para que nossa tradução fosse completa. Calculado um determinado prazo para o término de nossos trabalhos, estávamos crentes de que o livro se apresentaria completo em nossa língua. Porém para a nossa decepção, partes dele estavam indecifráveis, uma vez que o programa que planejamos tinha por função traduzir os caracteres para palavras especificas do inglês, mas escapou à nossa inteligência que sendo uma obra em outra língua, palavras especificas, nomes próprios ou expressões daquela cultura não entrariam em acordo com a nossa gramática, e isto fez com que nossa tradução fosse levada de volta ao ponto de partida. O livro estava pronto e ao mesmo tempo indecifrável. Seu conteúdo mais precioso ainda estava perdido naquelas equações não traduzidas para o nosso idioma. E assim iniciou a parte mais sagrada da nossa tradução, em que todos nós tivemos que ler o livro, palavra por palavra, da primeira à última linha para compreendermos além daquelas letras e frases que se apresentavam diante de nós depois de cada equação traduzida. Conceitos, ideias, verdadeiras revelações da origem e mecanismo do Universo e da Vida nos foram apresentadas, como uma luz que cega os homens aprisionados por anos dentro de uma “caverna”. E esse foi o início de nosso grupo que a partir de então iria realizar uma série de estudos sobre o conteúdo selado no Livro de Ormoshi”.

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DOCUMENTO 026 O LIVRO DE ORMOSHI O Livro de Ormoshi? Marishi sorriu, confirmando com a cabeça as dúvidas que se formavam na cabeça do jovem. - O nome Ormoshi vem de Ormoshi Lamanih. Ele foi um dos maiores Sacerdotes da Ordem Harashi. Durante sua vida, ele reuniu todos os estudos da religião Harah e os compilou no que conhecemos hoje como “As Escrituras do Princípio”. É ele quem assina o documento final da obra, mas os textos não são de sua autoria, sendo fruto de milhares de ciclos de estudos dos antigos cientistas de Nemashi e outros planetas. Tal título do Livro foi um mero desconhecimento das origens dos escritos por parte dos cientistas do seu mundo. - Mas o que aconteceu ao Livro? - Os cinco cientistas do Majestic 12 continuaram seus estudos sobre os destroços de Roswell, sendo supervisionados pelo governo dos Estados Unidos. Porém, eles ocultaram o livro dos líderes do seu país para protegê-lo em uma época em que seu sublime conhecimento poderia ser convertido em uma arma de destruição em massa, devido à chamada Guerra Fria. Esta é a razão pela qual nós os chamamos de Guardiões. – Disse o Sacerdote relembrando de seus estudos sobre o Livro. - Mas esse segredo não durou tanto tempo e as informações vazaram, fazendo com que seu país, assim como as outras nações do seu planeta, ambicionasse seu poderoso conhecimento. - Então os Estados Unidos conseguiu por as mãos no Livro? - Sim, e não. Os Guardiões imprimiram cinco cópias do livro. Uma para cada um deles. Eles protegeram aquele tesouro com suas vidas, esperando o momento certo para revelá-lo ao mundo. Mas um dos Guardiões não se conteve em apenas preservar, passando também a estudá-lo, o que o levou a descobertas surpreendentes. Como resultado de seu trabalho, ele anotou algumas de suas conclusões nas próprias folhas do Livro. - Então um dos livros é diferente dos demais?

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- Exatamente. E esta é a razão pela qual o governo dos Estados Unidos está em busca desta cópia até hoje. - E o que este cientista escreveu? - Não sabemos. Tudo o que temos notícia é que diz respeito ao próprio conteúdo da obra, e traz algumas revelações sobre nosso Universo. Entretanto, também não temos como saber o que descobriu. Podemos já ter conhecimento dessas revelações... Ou não. – Disse o Sacerdote, pensativo. - E quanto aos outros livros? - Os outros quatro livros foram confiscados pelo governo dos Estados Unidos, mas essa tradução passou um bom tempo a salvo das mãos do seu país. Entretanto, tempos mais tarde, com a morte do último Guardião, o Livro simplesmente desapareceu, reaparecendo novamente nos dias atuais. - Onde? – Perguntou Gabriel, inquieto. - No lugar mais inusitado possível. Uma garota da cidade de Milão durante uma viagem aos Estados Unidos acabou encontrando a obra em uma livraria de Nova York. Ela o comprou sem saber do que se tratava e levou de volta para sua terra natal, a Itália. - E o que eu tenho a ver com isso? - Precisamos que você volte à Yuransha para resgatar o Livro. Gabriel parou no corredor em que se encontravam. Diante dele, longos painéis de vidro brotavam da parede, e para além deles, os jardins do Santuário se revelavam em meio ao seu vasto e iluminado campo verde. A iluminação, embora fraca, por conta das nuvens que aterrissaram sobre Nemashi, inundava o ambiente. Entretanto, Gabriel não ansiava contemplar a vista. Estava absorto naquela conversa com seu mentor, observando os Sacerdotes ao fundo daquela paisagem. - E por que vocês simplesmente não viajam até lá? Quer dizer, vocês são Sacerdotes Harashis. Podem estar em qualquer lugar do Universo quando bem desejarem. – Gabriel se exaltou, se perguntando qual sua verdadeira relação com tudo aquilo. - Na verdade, não podemos Luhan. – Disse Marishi, serenamente.

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- Como assim, Marishi? – Gabriel deu de ombros, não entendendo mais nada. - Da mesma forma como observamos vocês de longe, nós também somos observados. - Por quem Marishi? – Perguntou o garoto, apreensivo. - Pela Ordem Zahran. – Disse Marishi, diante de um aturdido Gabriel.

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DOCUMENTO 027 OS PORTADORES DO MISTÉRIO O Sacerdote se aproximou do garoto, tentando organizar aquela enxurrada de informações que invadira a cabeça de Gabriel nos últimos minutos. Eram muitas ordens, muitas dissidências e muita história para assimilar. - Assim como as Ordens de Akehran ou Orihman, existe outra Ordem. Uma Ordem dissidente da Ordem Harashi. - Outra Ordem... dissidente? – Perguntou o garoto, confuso. - Sim. Seus membros foram antigos Sacerdotes Harashis que após inúmeras desavenças, acabaram deixando a Ordem Harashi. Hoje eles são conhecidos como Magos Zahranianos. - Magos Zahranianos? – Gabriel ainda estava assimilando tudo aquilo. Marishi assentiu com a cabeça. – Mas o que os levou a deixarem a Ordem? - Ao longo do tempo, seus conhecimentos e habilidades os deixaram orgulhosos, fazendo-os se fecharem em seu próprio círculo, não tendo contato nenhum com os outros membros da Ordem Harashi. Para eles, o sentido da vida era obter conhecimento, não importava o custo. Assim, criaram uma filosofia em que as relações e sentimentos eram um obstáculo a ser vencido. Embriagados por essa nova doutrina eles se tornaram frios. Até mesmo cruéis em suas práticas. Muitos deles acabaram entrando em conflitos reais com alguns Sacerdotes, e deixaram a Ordem em meio a uma crise sem precedentes na nossa história. - E depois, o que aconteceu? - Os Sacerdotes desertores se juntaram em torno de um novo grupo que aspirava pelas mesmas ambições de poder e acabaram por fundar a Ordem Zahran.36 Ao contrário dos Harashis, a Ordem Zahran praticamente criou uma religião particular em torno dos seus conhecimentos, a ponto de seus membros usarem um hábito bastante conhecido. - Mas o que essa Ordem tem a ver com o meu planeta?

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Ordem dos Portadores do Mistério.

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- Nós desconfiamos que os Magos estejam no seu mundo à procura das Escrituras perdidas. Mas assim como nós, eles também não sabem onde encontrá-las. Entretanto, os Magos Zahranianos criaram uma poderosa Ciência da Mente que os permite achar o que eles procuram através da Mente de outras pessoas. - Como assim Marishi? – Perguntou Gabriel, intrigado. - Eles desenvolveram uma técnica de meditação em que eles são capazes de se conectar a uma Mente que buscando o mesmo que eles. - Você quer dizer que se não são capazes de encontrar o que procuram, eles deixam que os outros encontrem por eles? - Isso! – Exlamou. – Em resumo, se alguém também está à procura do Livro perdido e o encontrar os Magos o terão encontrado também...37

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Em seu vasto conhecimento, Marishi explicou a Gabriel a natureza daquela técnica que agora lhes explano. Por meio da experiência somos capazes de assimilar os fenômenos ao nosso redor, inclusive todos os elementos do ambiente em que estamos inseridos, em especial, seu espaço físico. Através dessa síntese de nossos pensamentos, a memória se torna um propulsor que estimula o cérebro a conectar as informações deixadas em determinado lugar em que estivemos, podendo estas, serem resgatadas a todo momento. Como consequência disso, como expliquei antes, essa incessante atividade neuronal cria uma atmosfera de pensamentos e memórias que é alimentada pelas emanações causadas pela assimilação dessas experiências por nossa Mente: A chamada Noosfera, ou Garbha. Por isso, a capacidade de um indivíduo de saltar entre os espaços requer uma única condição: Que ele já tenha estado alguma vez naquele local em que deseja ir, uma vez que a memória de tal experiência está gravada naquele local. A simples mentalização pessoal de um local que tenha visto por alguma imagem ou ouvido falar por outros não ativa esse poderoso catalisador de experiências que é a memória. Entretanto, existem dois outros modos de se transportar a um determinado lugar sem ter estado alguma vez nele, mas como veremos, isso ainda depende exclusivamente da experiência de outro indivíduo. A única exceção a esta lei natural que constitui o Salto entre os Espaços é a capacidade que um indivíduo pode desenvolver cruzando seus pensamentos com as memórias de um terceiro, podendo transportar-se junto com essa pessoa, por meio de um “acesso temporário” à memória de suas experiências vividas. O segundo modo foi uma criação da torpe Magia Negra Zahraniana. Os Magos em sua sede por poder e conhecimento, desenvolveram uma técnica que em vez de acessar as memórias de alguém que está junto a ele, sugam, invadem e violam a Mente do indivíduo que procura, por meio de uma invasiva técnica proibida por nossa Ordem. Em resumo,

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- Marishi... É terrível! Se eles quiserem, então... – Gabriel estava assombrado com aquela explicação. - Sim, encontrarão o Livro em Yuransha. Por isso preciso de você nessa missão. Se algum de nós for ao seu planeta seremos facilmente localizados, pois procuramos a mesma coisa que eles. - Mas Marishi, se a garota está com o Livro, os Magos não podem simplesmente ir atrás dela? - Assim como você, ela ainda não entende o real conteúdo encerrado no Livro. Sua Mente não está em sintonia com a Mente dos Magos, e muito menos com a nossa e de outros Sacerdotes que estudam as Escrituras. Assim, ela não pode ser encontrada tão facilmente. Mas a partir do momento que compreender o que está escrito, suas emanações mentais poderão atrair os Magos à sua presença, entende? – Gabriel aquiesceu com a cabeça. - O que você quer que eu faça? - Por enquanto, que pare de estudar as Escrituras do Princípio. Eu iniciei você na sua leitura para que compreendesse algo que irá necessitar para esta missão. Mas a partir de agora você aprenderá algo novo. Sem isso não poderá cumpri-la. - E o que é? – Gabriel perguntou, ansioso. - Vamos para o meu apartamento. Lá, lhe ensinarei o que você precisa aprender. – Disse Marishi, fazendo o garoto seguí-lo.

colocando-se em meditação, o Mago busca sincronizar seu pensamento com o do seu alvo, scaneando às cegas os mesmos pensamentos, por meio de ideias, palavras ou imagens. Quando ambos os pensamentos se cruzam, em uma mesma frequência e simultaneidade no tempo, o Mago quebra a barreira do espaço-tempo, sendo literalmente sugado para a presença daquele que buscava. Embora não pudessem ver ou sentir, os envolvidos

estavam tão ligados que aquela

força de atração era praticamente

irresistível. Era mais um impulso instintivo do que uma busca racionalmente calculada. Isto pode levar um tempo incalculável, como pode jamais se concretizar. Mas, devido às técnicas de meditação dos Zahranianos, eles se revezam em turnos, buscando dentro da atmosfera etérea da Garbha pensamentos que estivessem alimentando-a naquele determinado momento com informações sobre o local, objeto ou pessoa procurada. Possuímos poucos registros de fenômenos desta natureza, mas em todos os casos tais encontros foram mortais.

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Os dois caminharam pelo longo corredor da nave, desaparecendo em meio Ă densa luminosidade que cobria o ambiente. Os ares dentro do SantuĂĄrio haviam mudando. E estavam prestes a se tornarem pesados.

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DOCUMENTO 028 CONHECE A TI MESMO E CONHECERÁS OS TEUS INIMIGOS Planeta Tevohan, Mosteiro da Ordem Zahran. Do outro lado do Sistema de Ashunyah, no gélido planeta Tevohan, uma grande construção de pedra surgia numa das várias montanhas cobertas de gelo. O complexo de templos ali existentes pertencia à Ordem Zahran. Em uma das várias pontes que cruzavam os imensos templos, um manto escuro se expandia à medida que o vento soprava. Um homem atravessava uma das inúmeras fendas no cânion, abertas por vulcões no início da formação daquele planeta. Seus passos rápidos evidenciavam a pressa que tomava conta de si, levando-o a uma fachada com vários arcos talhados na rocha. Ao longo da via, estátuas de antigos Magos da Ordem iluminavam o caminho, segurando cristais que emanavam um tênue brilho azulado. O clima austero completava o cenário do Mosteiro, onde alguns Magos cruzavam a mesma ponte em silêncio, apenas curvando-se diante daqueles que passavam por eles, em um cumprimento mais seco o possível. Ninguém falava mais do que o necessário, apenas aquilo que convinha para o crescimento intelectual deles mesmos. Ao contemplar os pavimentos abaixo da ponte, o Mago relembrou dos tempos áureos da Ordem, que contava com milhões de membros. Agora o numero tinha sido reduzido para alguns milhares. Mesmo assim, a quantidade de Iniciados em treinamento no Mosteiro espantava o eremita, pois ele sabia do potencial do novo exército que estava em formação. Agora nossa guerra está além das diferenças com os Harashis. Disse a si mesmo enquanto retomava o seu caminho. Subindo a escadaria, continuou a andar, cruzando uma fileira de colunas com diversos símbolos de Magia Zahraniana. Dirigindo-se a um nicho ao fundo da parede, subiu na estrutura de cristal cinza que flutuava no recinto. Eliminando qualquer preocupação com o mundo ao seu redor, ele fez o disco subir, utilizando sua percepção, 181


elevando-o até o topo da montanha. Após atingir o patamar desejado, ele estancou o cristal, adentrando na colossal nave à sua frente. Saindo dela, deixou-a flutuando ao redor de uma parede de cristal de mesma cor, onde agora sustentava magneticamente a plataforma. Continuando seu caminho, ele adentrou em uma das capelas já tão visitadas em sua vida na Ordem. A arquitetura circular cingia o ambiente, destacando a figura sentada a sua frente em uma espécie de altar central. Meditando em cima de uma mesa de pedra escura com a mesma forma da capela, o homem que se erguia diante do Mago emanava sua conhecida Vohan sombria. Aquele espectro, porém, ao contrário dos espectros dos Harashis, não se expandia sua luminosidade, mas sugava a matéria ao seu redor, mesmo se mantendo estável dentro de si mesma. Aquela chama, por sua vez não era colorida, mas emitia um estranho reflexo, variando entre tons escursos de preto, azul escuro e bordô. Aquelas cores, mesmo imprecisas, causavam uma reação certeira naqueles que se encontravam diante daquele ser. Embora fosse treinado para não sentir medo, aquele Mago impelia o recém-chegado Zahraniano a reverenciá-lo. Talvez mais por temor do que por respeito. Tirando o capuz de sua cabeça, o Mago inclinouse ante o Juiz da Ordem que o observava desde que chegara ao recinto. Quebrando o silêncio, manteve seu rosto apontado para o chão, fazendo brilhar ainda mais seus irregulares cabelos ruivos que cobriam a calva cabeça de sua esguia silhueta. - Me chamou, Senhor? – Disse o homem. - Sim, Arquimago Lakahz... Pode se levantar. – A autoridade daquela pesada voz fez o Mago erguer-se no mesmo instante. Sem o capuz cobrindolhe a vista, ele mais uma vez vislumbrou a realeza sombria que emanava do chefe supremo da Ordem Zahran. Seu nome era Sarahnel Mazhayan. Em seu passado ele tinha sido um Sacerdote Harashi, como tantos outros da irmandade. Como mandava a tradição desde o anátema entre a Ordem Harashi e a Ordem Zahran, o trono de Juiz Supremo dos Magos deveria ser ocupado pelo Zahraniano mais sábio e mais poderoso dentre os Magos.

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Como eles acreditavam, o Mago mais poderoso era aquele que tinha domínio tanto sob as artes da Magia Luminosa Harashi e da Magia Sombria dos Zahranianos. Após a morte do seu antecessor, ele foi elevado ao posto mais poderoso da Ordem devido ao seu conhecimento e habilidades. Ele era um exímio estudante tantos dos textos Zahranianos quanto dos Harashis. Era capaz de criar e destruir o mundo ao seu redor através do seu pensamento, embora só utilizasse suas habilidades quando realmente fossem necessárias. E acima de tudo, tinha uma ambição sem igual na busca do conhecimento oculto aos seres vivos daquele Universo. Todos o temiam mais por seus desejos que pelo seu poder. Esse poder, elevado a um status de mito, também advinha dos paramentos utilizados pelo líder da Ordem. O Juiz Supremo, como sempre, trajava sua armadura sagrada. Mesmo encoberta pelo tradicional manto negro, sua vestimenta de couro era ornamentada com os amuletos de cristal que jaziam nos pontos vitais do corpo, os quais a Magia Zahraniana acreditava potencializar a Vohan daqueles que os usavam. Igualmente negros, os longos cabelos de Mazhayan jaziam firmes e presos por uma série de pequenas tranças que vinham das mais antigas tradições Zahranianas.38 38

Essas tradições, baseadas nos estudos da religião Harah sobre magnetismo, criou entre os Magos um verdadeiro culto aos cristais e pedras de potências magnéticas, dentre elas a magnetita, um raro tipo de mineral magnético existente tanto em Yuransha como em Tevohan, onde no passado foram trazidas em grande proporções por meteoritos que atingiram o planeta. Desde a nossa ancestral descoberta de que a orientação magnética das bactérias era devido à presença dentro do organismo de partículas magnéticas de ferro, óxido de ferro, e principalmente magnetita, constatação deste elemento presente no interior

do

cérebro

dos

seres

mortais

conscientes

acabou

por

nos

confirmar

conhecimentos revelados por nossos Superiores em nossas Escrituras, de que tais materiais podiam conferir ao organismo a capacidade de orientar a campos magnéticos presentes no ambiente em que está inserido, no caso, não mais pela mecânica biológica, mas através de uma ação consciente originária na própria Mente do indivíduo. A característica bioquímica da nossa consciente interação magnética com os elementos ao nosso redor vem justamente dessa peculiar constituição de nossos cérebros, mais especificamente da área conhecida na medicina de seu mundo como glândula pineal. No caso da estética Zahraniana, a tradição acabou legando este adereço mais decorativo do

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- Sei que não é um trabalho fácil, mas creio que esteja progredindo como já espero. – O Juiz voltou a rasgar o silêncio com sua voz. - Sim, venerável Supremo. A interpretação das Escrituras de Yuransha já está muito avançada. Mas ainda há alguns contextos que não estão corretos. Precisamos de mais tempo para não nos equivocar em nossas conclusões. - Temos todo o tempo que for preciso Arquimago. Passamos incontáveis ciclos buscando o sentido oculto por trás dessas linhas tão antigas. Mesmo caminhando a passos lentos estamos atingindo nosso objetivo muito antes da Ordem Harashi. - Sim meu senhor. A nossa guerra agora não é contra eles. Por um momento fez-se um silêncio sepulcral entre ambos. Após um abismo sem o mínimo som, a voz do Príncipe Juiz voltou a ecoar. - Você ainda não entende, Lakahz? Isto não é uma guerra. Estamos numa jornada para atingirmos o conhecimento supremo. Nosso real inimigo não é nenhum Sacerdote Harashi. Ele está oculto aqui dentro. – Sarahnel apontou para a própria cabeça, indicando o simbolismo daquela conversa. - Mas temos que nos apressar senhor. Temo que estejamos perdendo o controle sobre os rumos deste Universo. A involução... – Sarahnel fez um sinal com a mão, sileciando o Mago. - A esta altura tal fenômeno é irreversível. A resposta que precisamos achar é como podemos reverter isto a nosso favor. E ela está guardada nos textos que estão em seu poder. – Concordando com as palavras do seu Mestre, Lakahz apenas se perguntava se um dia teria a capacidade de compreender o real sentido das Escrituras que estava estudando. Mais uma vez o Juiz voltou a falar. - O texto que você traduz é apenas um meio para levá-lo ao que tanto procura. Não se esqueça de que nossas Mentes é que estão determinando o cumprimento ou não dessa profecia. que funcional, pois na ciência Zahraniana, bem como na nossa, a presença de elementos cristalizados ou rochosos com potência magnética são úteis para manter o equilíbrio simbiótico em um ambiente. Mas no caso da Ordem Zahran, tais cristais se tornaram um mero amuleto a ser carregado nas tranças do seu líder máximo.

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- Temo que não sejamos capazes de compreender seu significado antes que ela seja cumprida. O tempo está correndo contra nós. – Embora mantivesse a serenidade, era visível a preocupação do Mago que agora encarava o sábio mestre tentando encontrar uma solução para aquele enigma tão oculto. Mas o que ele apenas enxergava dentro daqueles olhos cinzentos era a falta de compaixão para com o próximo. - Tenha paciência. Não se esqueça de que tudo é revelado no seu tempo. Este não é o nome da Escritura que está traduzindo? Revelação? - Sim. Mas prefiro chamá-la por outro nome: Apocalipse.

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DOCUMENTO 029 O RESGATE DAS ESCRITURAS Em seu apartamento, Marishi discutia com Gabriel seu delicado plano de resgate das Escrituras do Princípio. O Sacerdote explicou ao jovem que ele teria que ir a cidade de Milão com Shylon procurar por Sofia Scotto, a garota que encontrou o Livro de Ormoshi nos Estados Unidos. Da mesma forma deveria achar uma maneira de se aproximar dela sem chamar a atenção de outras pessoas. Todo aquele plano tinha que ser executado pelos dois, porque como já explicara, os Sacerdotes Harashis se encontravam na mesma frequência da Mente dos Magos, uma vez que ambos conheciam igualmente as Escrituras do Princípio. Aquela caçada às cegas era de fato perigosa. Caso os Sacerdotes rastreassem a garota e o livro, o súbito encontro iria denunciar a localização deles, e assim atrair os Magos para onde a garota se encontrava. Para Gabriel, aquilo era assustador, e ao mesmo tempo preocupante. Era como se ele estivesse sendo vigiado o tempo todo pelos Magos. E uma assombrosa dúvida então surgiu na sua cabeça. - Se eles podem estar em qualquer lugar quando quiserem, por que não atacam o Santuário? – Perguntou o jovem, preocupado. – Quer dizer, se nós recuperarmos as Escrituras do Princípio eles não poderão vir até aqui? - O Santuário é bem protegido pelos Sacerdotes. Podemos facilmente sentir a presença dos Magos, caso eles invadam este sagrado recinto. Sua Vohan sombria os denuncia facilmente. Seria suicídio eles virem até aqui, até porque a Ordem Harashi possui muito mais membros do que a deles. - Mas ainda assim é perigoso, não é? - Sim. Nenhum lugar neste Universo é totalmente seguro. Mas não se preocupe, o Santuário é bem guardado. O verdadeiro problema está no seu mundo, com os Zahranianos vagando por lá. Precisamos agir rápido, antes que eles encontrem a garota. - Mas como irei até lá se vocês não podem ir?

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- Há um bom tempo ensinei a Shylon como se transportar entre os espaços. Você mentalizará o lugar onde a garota mora. - Mas Marishi, eu nunca conheci essa menina! - Você nunca a conheceu, mas já esteve bem perto da casa dela. - Pelo amor de Deus Marishi, onde já estive? Onde? – Gabriel estava agitado com aquela conversa recheada de enigmas. - No Estádio Giuseppe Meazza, em Milão. – Disse Marishi, sucinto. Gabriel se admirava com o conhecimento do Sacerdote sobre sua vida. Sentia-se observado desde o seu nascimento até os dias em que antecedera sua viagem a Nemashi. Fã do futebol europeu, Gabriel torcia pela Associazione Calcio Milan, conhecido também conhecido como AC Milan. Quando tinha uns quinte anos, o garoto viajou à Itália com seus pais durante as férias escolares. Passando pela cidade de Milão, Gabriel não poderia perder a oportunidade de conhecer a casa dos rossoneros. Situado no bairro de San Siro, o estádio se tornara uma atração turística, devido ao seu tamanho colossal – sendo a terceira maior arena da Europa –, e por ter recebido importantes jogos como a última partida disputada pelo lendário jogador brasileiro Pelé. Mas a cabeça de Gabriel estava longe do rival da Internazionale. Pensava somente na sua primeira missão dentro da Ordem. - Ela mora perto do estádio? – Perguntou, impressionado. - Praticamente colada. Infelizmente não podemos ir até lá. Mas vocês dois podem. E você conhece o lugar. - E quando iremos? - Hoje. – Disse o Sacerdote, enquanto Gabriel engolia a seco. – Eu lhe darei as coordenadas exatas. Vocês deverão agir estritamente como irei orientá-los. De repente, a porta do apartamento se abriu. Shylon havia chegado às pressas, como se tivesse sido requisitado com urgência. Haron estava ao seu lado. - O senhor me chamou pai?

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- Sim, meu filho. Você e Luhan terão que realizar sua missão hoje à noite. Preciso lhe repassar as informações. Não podemos mais perder tempo. Em meio aquela correria, os dois adentraram no apartamento. A noite seria longa, mas em breve Gabriel e Shylon estariam na Terra. Na sua primeira missão juntos. A primeira de muitas que ainda viriam. Gabriel não imaginava, mas o encontro que ambos com Sofia teriam mudaria para sempre a vida dos três jovens.

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DOCUMENTO 030 O PRIMEIRO CONTATO Já passava da meia noite. Sofia estava em sua cama, mas se remexia no colchão tentando encontrar uma posição confortável para dormir. Mesmo se deitando cedo, ela passara a noite em claro sem conseguir pegar no sono. Mais uma vez tinha folheado boa parte do Livro de Ormoshi, e novamente ficava admirada com as revelações ali escritas. Sua curiosidade já lhe havia roubado diversas noites de sono, que em seu lugar se transformavam em uma onda de pensamentos que muitas vezes acabavam contemplando o nascer do sol. Ela já estava se acostumando com aquela rotina de dormir pouco, pois compensava o sono em outros momentos. Entretanto, o conteúdo daquele livro ainda a intrigava. As definições e explicações dos diversos fenômenos sobrenaturais a deixava assombrada. Telecinesia. Teletransporte. Manipulação das moléculas a partir da vontade da Mente. Aquelas habilidades supra-humanas se mostravam diante dela, mas apesar de todas as tentativas, ela ainda não conseguira reproduzi-las. Embora fosse insistente, todo aquele esforço já parecia provar que tal livro não passava de um conto de fadas. Uma mera ficção inventada para iludir os crédulos. Sofia desistira de continuar a refletir sobre aquelas coisas que já não faziam mais tanto sentido. Cansada por conta da hora, resolveu enfim ir dormir. Virou-se mais uma vez para seu travesseiro e encostou a cabeça nele. De imediato, sentiu-se afundar em sua cama, como se uma força desconhecida tivesse invadido seu quarto, engolindo-o na escuridão. Incomodada, ela se virou para o outro lado da cama, e o que ela viu congelou o mundo ao seu redor, gerando um medo jamais sentido antes. Diante dela, duas figuras escuras e encapuzadas se materializaram como que surgidas de um pesadelo. O ser do lado direito fez um rápido movimento com a mão, gerando uma forte vibração que varreu todo o quarto, atingindo os ouvidos de Sofia. 189


Ao mesmo tempo em que este silvo tomou conta do ambiente, um único som ecoava pelo quarto. Um grito de pavor escapou da boca de Sofia, à medida que o outro espectro avançou sobre a garota. Do lado de fora do quarto, apenas o silêncio da noite habitava aquela casa. Sem saber o que fazer, Sofia fechou os olhos esperando o pior, se encolhendo em cima de sua cama. De súbito sentiu aquelas mãos repousaram sobre ela, pressionando sua cabeça. Ao abrir os olhos em meio ao medo, ela pôde sentir seu corpo afundar na cama, pela forte pressão emitida pelas mãos daquele ser. Entretanto, à medida que seu corpo perdia as forças, aquela angústia que tomava conta dela ia desaparecendo. E o medo que dominara sua Mente até aquele momento foi trocado por uma sensação que misturava apreensão e dúvida. O que está acontecendo? A garota só conseguia se perguntar aquilo, enquanto algumas lágrimas escorriam de seus brilhantes olhos. Lentamente recuando, os seres retiraram seus escuros capuzes revelando inimagináveis rostos joviais. Sofia estava diante de Shylon e Gabriel. O sombrio silêncio foi rasgado mais uma vez pela voz de Sofia, que mal conseguia falar. - Quem... Quem são vocês? – A garota falava gaguejando, quase sem emitir som. Mal dava para se ouvir sua voz, embora Gabriel tenha escutado a garota através de sua Mente. E da mesma forma logo lhe respondeu. - Sofia, não se assuste. Não vamos lhe machucar. Nós somos mensageiros de um lugar distante daqui, e temos uma missão a cumprirmos com você. – O semblante da garota agora demonstrava espanto com o fato de Gabriel se comunicar através de sua Mente. Ela conseguia ouvi-lo claramente, embora não visse sua boca se mexer. - Agora se acalme. Precisamos que você escute tudo o que temos para lhe falar. – Shylon interrompeu o amigo, tentando acalmar a garota que começara a tremer em sua cama em meio a soluços. 190


- O que vocês querem comigo? Por que vieram até mim? - Uma das razões é porque você tem consigo um dos livros de nossa Ordem. Uma enciclopédia da civilização do nosso planeta. – Shylon respondeu, seguindo o plano traçado por Marishi. - Mais do que isso, você possui ocultas todas as habilidades que você leu neste livro. Viemos até você porque agora está pronta para libertar essas capacidades que tanto lhe fascinam. Caso decida de fato aprender sobre o que leu, você poderá se tornar uma de nós. – Completou Gabriel. - E... o que vocês são? - Somos Sacerdotes da Ordem Harashi. Uma antiga Ordem de cientistas e místicos oriunda do planeta Nemashi. Nós estudamos a evolução e a composição de tudo o que existe Universo, principalmente, sobre nós mesmos. Alguns de nossos estudos mais importantes geraram o livro que está em suas mãos. E como você já deve saber, aconteceu certas coisas que trouxeram este livro ao nosso mundo. - Nosso? - Sim. Eu faço parte da Ordem Harashi, mas nasci aqui, assim como você. Do mesmo modo, como você está sendo vistada por nós, também fui visitado por um grande Sacerdote dessa Ordem para me juntar a eles. Sofia apenas ouvia tudo, perplexa. - Vocês estão me chamando para me tornar uma Hari... Como é mesmo o nome? - Calma garota, não viemos aqui para isso. Pelo menos não por enquanto... E o nome é Harashi. Harah-Shi. – Disse Shylon, soletrando o nome da Ordem pausadamente. - Não se atormente Sofia. Nós lhe contaremos tudo o que precisa saber. A partir de agora você tem esse direito. A propósito, meu nome é Luhan... – Disse Gabriel, estendendo a mão à garota, enquanto sentava-se ao pé da cama, enquanto Shylon puxava uma cadeira próxima a uma escrivaninha do quarto da jovem, sentando-se de frente ao seu encosto. Shylon sabia que a noite seria longa, e logo estendeu a longa manga do seu sobretudo bordô que trajava sobre o encosto, apoiando-se nele enquanto não tirava seus escuros olhos de Sofia. 191


DOCUMENTO 031 INDO ALÉM DA IMAGINAÇÃO Mas isso é absurdo! Sofia estava eufórica com o que Gabriel havia lhe contado. Embora tivesse passado a acreditar nas coisas que havia lido no Livro de Ormoshi, ouvir aquelas revelações daqueles jovens era bem diferente. Para ela, imaginar como seria aquele mundo descrito por Gabriel era fantástico. Se perguntava como seria o treinamento enfrentado por ela que Shylon lhe falou, e o que seria aquela Ordem mística na qual ela ingressaria. Mas acima de tudo, o que mais lhe assombrara era o alerta que os dois fizeram sobre o Livro de Ormoshi. Shylon lhe contara sobre a sua origem, e o complô dos governos para se apossarem dele. Pior ainda, falou sobre os Magos Zahranianos que ela logo passou a temer e do perigo que corria caso eles a encontrassem. Antes, aquelas histórias sobre seres de outros mundos, fenômenos sobrenaturais e civilizações avançadas eram meros contos de ficção. Agora, ela estava vivendo aquelas lendas. Há algumas horas, aqueles jovens haviam entrado em seu quarto, e agora ela estava sendo recrutada para adentrar na Ordem mística que eles tanto haviam lhe falado. - Eu não posso simplesmente sumir do nada. E mesmo que eu fosse com vocês, meus pais desconfiariam da minha ausência. – Sofia ainda estava agitada com as revelações de Gabriel e Shylon. - Calma garota. Nossa missão por enquanto é lhe explicar tudo isso, mas ainda não podemos leva-la para Nemashi. – Disse Shylon. - Isso ainda não nos foi permitido. – Gabriel, concluiu. - E o que querem que eu faça agora? – Sofia estava perdida, sem saber como proceder diante de tantas informações. - Não leia mais o Livro de Ormoshi. Como já lhe explicamos, quanto mais você assimilar suas informações, mais você se arrisca que os Magos lhe encontrem. O semblante de Sofia exalava sua inquietação.

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- Não se preocupe. – Disse Shylon. - Vamos continuar monitorando você para que nada de mal lhe aconteça. - Somos os seus anjos da guarda, Sofia. – Disse Gabriel, sorrindo para a garota. Ouvir aquilo a perturbava muito, ainda mais por sua natureza cética. Perguntava-se se por aí existiam anjos. A resposta, de fato, parecia estar diante dela. - Mas precisamos que... – Shylon ainda falava quando seus sentidos se aguçaram. O suficiente para ele ouvir um leve som compassado. Era seco, mas se arrastava pelo ar, como se estivesse se aproximando do quarto. Gabriel também ouviu, recuando instintivamente. Sofia também ouvia, não pelas suas faculdades mentais, mas pelos seus próprios ouvidos. Aqueles passos ritmados agora eram perfeitamente audíveis para todos. O coração de Sofia disparou, esperando o pior. A maçaneta da porta rodou lentamente num ranger tortuoso. Ela olhou para os garotos, que lhe devolveram o mesmo olhar de aflição, sem saberem o que fazer. Enfim, ela conseguiu falar, dando o ultimato. - Meu pai! – Falou quase que sussurrando. Reconhecendo o som daqueles passos, Sofia imediatamente se projetou da cama querendo saltar até a porta, mas para seu espanto, no mesmo instante Shylon e Gabriel sumiram de sua presença, deixando-a completamente sem reação. A porta abriu-se confirmando o que Sofia já esperava. Era seu pai que acabara de levantar, talvez para ir ao banheiro, e avistou a claridade dos abajus pela fresta da porta do quarto da garota. - Sofia, você está acordada há essa hora? Já são seis horas da manhã. – Disse o alto homem, que já beirava os sessenta anos, se escorando na porta, enquanto coçava seus cabelos semigrisalhos observando a garota petrificada em sua cama. Ela parecia que havia visto um fantasma. Sofia

quase

não

esboçara

nenhuma

reação.

Apenas

virou-se

desconfiada para a janela atrás de si, confirmando o sol que já havia despertado.

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- Devia deixar para ler seus livros durante o dia. – Continuou. – Não se esqueça de que você tem que devolvê-los ainda hoje na Universidade. Ela concordou com a cabeça, mais por reflexo do que consciência. Após passar um tempo observando aquela estranha lentidão de sua filha para respondê-lo, o pai de Sofia sentiu o sono que ainda o dominava. - Vou fazer seu café da manhã. Não demore. – Disse o homem, bocenjando enquanto ajeitava seus óculos voltando-se para o corredor. A jovem continuou absorta em sua cama, com o Livro de Ormoshi em seu colo. Foi por pouco. Mas ela tivera sorte, pensou. Dessa vez tinha sido seu pai, mas da próxima poderia ser um Mago Zahraniano.

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DOCUMENTO 032 MISSÃO DADA É MISSÃO CUMPRIDA Vocês não trouxeram o livro? Como puderam ser tão imaturos! A habitual calma de Marishi deu lugar a uma exaltação nunca vista. Haron apenas acompanhava a bronca que o amigo dava no seu filho e em Gabriel. - Vocês já deviam estar com ele em mãos neste momento. – Marishi ainda estava alterado. - O pai dela entrou de repente no quarto... Tivemos que fugir. Além do mais, o sol já havia nascido. Não podíamos mais ficar lá. – Shylon tentava se desculpar, em meio à afobação que os trouxe de volta ao Santuário. - Não interessa. Vocês não entendem que não podemos mais esperar? O Livro já deveria estar aqui, para a segurança da própria garota. Era a missão de vocês, e não cumpriram com o principal objetivo. – Marishi estava certo. O livro continuava na Terra, e Sofia ainda corria perigo. - Eu sei pai. – Shylon concordou, cabisbaixo. Gabriel, em silêncio, apenas ouvia. - Eu entendo que já está tarde, mas vocês precisam voltar para buscar a garota. – Marishi caminhava pelo seu apartamento, pensando em alguma solução para o problema. - Mas como faremos isso? Precisamos do clone dela, não é? – Perguntou Gabriel. - Creio que nessa pressa toda eu tenha me esquecido de mostrar algo a vocês dois. O Sacerdote saiu do seu apartamento e os levou ao Laboratório do Santuário. No trajeto, uma enxurrada de memórias invadiu a cabeça de Gabriel. O jovem se lembrou dos seus primeiros dias em Nemashi. Das primeiras lições que aprendera com Marishi. Do seu clone que fora reanimado! Por um breve momento a imagem da cópia do seu corpo suspenso no tanque do laboratório fez seu coração acelerar. Aquela lembrança ainda era 195


chocante para o garoto que viu sua vida mudar drasticamente no breve período de um mês. Ele nunca esperou que aquela cena de histórias de ficção científica pudesse ser real. Um clone para viver sua vida na Terra. Era incrível demais para acreditar, mas aquilo já estava acontecendo. Sem notar por onde caminhava, seus sentidos o puxaram de volta à realidade quando diante dele uma forma conhecida lhe saltou aos olhos. O estranho sentimento que invadira seu íntimo, meses antes, agora voltava à tona. Ao fundo do mesmo salão circular do Laboratório em que Gabriel já estivera, um corpo boiava dentro de um tanque de coloração azulada. Aquela cena fez Gabriel e Shylon estancarem. De fato, a visão era fantástica. O corpo boiava no líquido, protegido pela mesma película que cobria o clone de Gabriel quando ele estivera ali pela primeira vez. Embora estivesse com uma touca protegendo os cabelos, as feições do rosto eram mais do que reconhecíveis. Sendo monitorado pela aparelhagem do lugar, aquele corpo mais parecia uma bela escultura grega exposta em um museu da Itália. Dentro daquele tanque reluzente se encontrava o clone de Sofia. - Já estávamos nos preparando para trazê-la até aqui, mas com a descoberta inesperada do Livro de Ormoshi tivemos que antecipar sua vinda. – Marishi quebrou o silêncio, enquanto Shylon e Gabriel permaneciam boquiabertos. - Vocês a monitoravam há muito tempo, não é? – Perguntou Gabriel, ainda em choque. – Assim como eu... Marishi concordou com a cabeça. - Da mesma forma como você, ela também despertou suas habilidades. Porém, só conseguia manifestá-las quando estava dormindo. Através do seu inconsciente a garota derrubava objetos do seu quarto, movia os móveis da sala, e fazia outras coisas do gênero. - E ninguém nunca desconfiou de nada? - Seus pais pensavam que ela era sonâmbula, mas na verdade estava manifestando suas habilidades quando não havia ninguém por perto. Até hoje ela não tem consciência de como realizava tais coisas. Os garotos ouviam Marishi em silêncio até que Shylon quebra-lo. 196


- E nós, o que iremos fazer? – Perguntou o garoto, ainda admirando a redoma que guardava o corpo de Sofia. - Por hora devem descansar. Mas quando acordarem vocês devem voltar à Itália para buscá-la, e juntamente com ela, o Livro. - Antes que os Magos o encontrem. – Os garotos voltaram-se Haron, encostado na entrada do Laboratório. O tétrico tom da voz do Sacerdote pareceu se dirigir também aos dois amigos. Gabriel não pretendia se encontrar com um Mago. Nem imaginava como seria experimentar isto. Talvez, a sensação fosse o mesmo calafrio que sentira ao ouvir aquelas palavras.

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DOCUMENTO 033 ALCANÇANDO A BUSCA Por conta daquela noite em que passara em claro, Sofia ainda estava com sono. Mas além do fatídico encontro que tivera com os dois garotos, ela também estava aterrorizada pelas revelações de Gabriel. Sua única vontade era de se livrar daquele livro, que agora a fazia temê-lo. Não parava de pensar naquele inusitado encontro, e se perguntava como faria para entrar em contato com os jovens Harashis. Embora já tivesse tentado contata-los, chamando-os mentalmente, seus esforços foram em vão. Mesmo já tendo a parte do Livro de Ormoshi à respeito da comunicação entre as Mentes, ela ainda não era capaz de realizar tal prodígio. Além do mais, a garota tinha uma importante missão para o dia. Precisava devolver uma pilha de livros que apanhara na Biblioteca da Universidade. Era o último dia para devolvê-los, caso contrário ela pagaria uma multa considerável. Para sua felicidade as férias estavam chegando, e ela passaria um bom tempo fora de casa, junto aos seus pais, provavelmente viajando. Porém, após o encontro com Shylon e Gabriel, Sofia pensava se não seria melhor passar o resto de sua vida longe da Terra. Ela não sabia o que estava lhe aguardando, mas naquele momento preferia viajar muito além de países. Pretendia conhecer outros planetas... Nemashi. Sem tempo a perder, ela tomou um rápido café da manhã preparado por seu pai. Depois, vestiu sua confortável blusa azul que usava quando ia para a academia, junto com um short qualquer. Por segurança, ela jogou o Livro de Ormoshi dentro da sua mochila junto com os outros que iria devolver, e assim pôs-se a caminho da Universidade. Avançando pela serena e arborizada Via degli Ottoboni, a rua de sua casa, a garota caminhou até a estação de metrô mais próxima, construída abaixo da Piazzale Lorenzo Lotto. Após desembarcar na estação Crocetta, próxima ao campus, um súbito medo tomou conta dela. E se eu estiver sendo seguida pelos Magos? 198


Tudo bem, é bobagem minha. Pensou, tentando se acalmar. Aquela altura ela já estava no meio da rua. Estava entregue à própria sorte. Mas no seu íntimo ela sabia que em algum lugar desconhecido dois garotos estavam lhe vigiando. Seus anjos guardiões, como eles mesmos se autointitularam. A breve sensação de segurança foi logo dispersada quando chegou na Via Francesco Sforza, surgindo diante dela o secular prédio da Universidade de Milão. O grande edifício de tijolos vermelhos matinha a arquitetura da época, com antigas janelas de arco duplo contrastando com outras preenchidas por modernos painéis de vidro. Porém, sua história era antiga. A Università degli Studi di Milano – também conhecida como La Statale – era o centro de estudos mais importante da capital da Lombardia, sendo fundada no começo do século XX. No entando, seu prédio, um dos primeiros marcos da arquitetura civil italiana, datava do século XV, na época sendo propriedade da tradicional família dos Sforzas, os duques de Milão. Posteriormente, após sua fundação, a Universidade cresceu em torno de si mesma, construindo vários outros prédios ao longo das décadas para abrigar as diversas escolas da La Statale – as chamadas facoltà – incluindo, a Faculdade de Direito – Giurisprudenza –, na qual Sofia estudava. Adentrando naqueles prédios históricos, a jovem cruzou o grande claustro do edifício principal. Seus arcos de pedra ao redor do jardim exibiam a clássica arquitetura renascentista que povoara a sociedade italiana nos tempos de Maquiavel. Caminhando

pelas

arcadas

de

pedra

da

histórica

sede

da

Universidade, Sofia se dirigiu até o rústico prédio da Biblioteca. O singelo edifício quadrático de tijolo aparente era simples, porém sólido, assim como o histórico complexo da instituição. Atravessando a porta de vidro, Sofia passou por inúmeras estantes abarrotadas

de

livros.

Poucos

alunos

se

encontravam

no

recinto,

principalmente por conta do fim do período letivo. Se aproximando de um balcão de madeira, a garota logo sacou três grossos livros que levava na bolsa, entregando-os ao atendente.

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Após devolver os volumes, ela voltou-se para algumas estantes ao seu lado, observando alguns livros do seu curso que estavam dispostos aleatoriamente naquelas prateleiras. Mas sua intenção não era ficar ali. Não parava de pensar no Livro de Ormoshi que carregava em sua bolsa. Saindo da Biblioteca, Sofia queria encontrar um lugar tranquilo para ficar, para poder pensar um pouco sobre os acontecimentos que não a deixaram dormir na noite anterior. Embora cansada, ela estava desperta como nunca. Cruzando a movimentada Francesco Sforza, deixou o prédio principal da Universidade, adentrando no parque Giardino Della Guastalla. Aquela área verde em frente à fachada da Statale era vasta. Suas arvores faziam o local ter um clima agradável enquanto suas sombras amenizavam o forte sol que dominava os céus de Milão naquela manhã. Mas diferente do período das aulas, o parque estava vazio, com alguns poucos alunos que caminhavam em direção à entrada da Universidade. Ao aproximar-se de uma das árvores, espantou alguns dos pombos que já se preparavam para ali pousarem, fazendo-os se elevarem acima dos céus de Milão, guiados pelo acaso e pelo vento que soprava. Sentando-se embaixo de uma das árvores do parque, a garota deixou-se envolver pela penumbra formada pelas folhas, encostando sua cabeça no tronco, e enfim podendo descansar das últimas horas que passara em claro. Mais uma vez, sua irresistível atração pelo Livro de Ormoshi lhe fez tirá-lo da sua mochila. Contemplando sua desgastada capa, a garota o folheou enquanto observava o movimento do parque. Silencioso. Contido. Assim como Sofia se encontrava. Aquela estranha calma a relaxou, embora estivesse atenta à baixa movimentação no deserto campo verde ao seu redor. O único som que ela ouvia era do vento balançando os galhos acima de sua cabeça e das folhas de papel que passava como quem não tinha pressa. Os títulos dos documentos do Livro lhes saltavam aos olhos à medida que a garota refletia a respeito da conversa que tivera com Shylon e Gabriel. Ela estava fazendo justamente o que prometera se abster. Mas ao mesmo tempo precisava tentar se comunicar com eles. Lia sobre a 200


comunicação entre as Mentes, alimentando gradativamente sua intuição que lhe dizia para ter cuidado com o que procurava. Talvez ela encontrasse. Ou talvez fosse encontrada. *** As paredes rodeavam o altar dentro da rotunda. Ao invés de oferendas a alguma divindade, um homem trajando um escuro hábito se encontrava sentado em cima dele. Aquela estranha cena poderia se passar dentro de algum templo oriental, mas o recinto sagrado era uma das capelas de meditação do Mosteiro da Ordem Zahran, em Tevohan. E o homem em cima do altar não era um monge, mas um Mago Zahraniano. Há horas ele se encontrava naquela habitual posição de meditação. Entretanto, ao contrário dos outros membros da Ordem, ele não estava cumprindo seus rituais diários de disciplina da Mente. Juntamente com outros Magos, ele estava ali imerso na sua própria consciência, buscando um destino incerto em meio à enxurrada de pensamentos que rondavam o interior de sua cabeça, como se fosse um mantra, repetindo os textos das Escrituras do Princípio junto com algumas reflexões em torno do que buscava. Seu foco: um livro e uma garota. Embora aquela prática parecesse ridícula, pois não havia nenhum parâmetro para guiar aquela busca às cegas, o Mago vasculhava cada possibilidade, se concentrando em cada palavra que fazia ecoar em sua Mente. Aquela concentração só não era mais forte pela dor de cabeça que começava a assolá-lo. Embora fosse treinado para suportar condições extremas, o Mago já estava sentindo as diversas horas em que se encontrava estático naquela posição. Os Mynoriahnos eram a espécie mais resistente dentre as cinco, mas ainda assim possuíam corpos de carne e osso. Não eram imunes às reações provocadas pelo desgaste físico. 201


Aquele forte incômodo, mesmo assim, parecia reconfortante. De alguma forma energizava o corpo do Zahraniano através da meditação. Por conta da sua concentração, aquela pulsação fazia não só sua cabeça

latejar

como

também

sentia

suas

células

queimarem.

Os

pensamentos não paravam de fluir. Partes das Escrituras do Princípio retumbavam na sua Mente, vindo à tona pela sua poderosa memória. As ondas dos pensamentos fluem. (...) Formando laços entre as vibrações de mesma frequência... O medo atrai a inquietude. A dúvida aproxima as desilusões. (...) A Mente vigilante nunca se abala. Já os negligentes permitem que tudo os enfraqueça. Aquela sensação de poder apenas aumentava. Por ignorância os insensatos se entregam à distração. E vagando com suas Mentes inseguras, são atingidos por toda sorte de pensamentos que se atiram sobre eles. Não é outra Mente disciplinada que os atacam, mas sua própria fraqueza que os derrubam. O Mago mergulhava mais fundo no seu transe. Vigiem suas Mentes para não cederem ao erro. Sem rumo. O erro, assim como acerto, está na prudência ou negligência da vigilância de suas fortalezas. Sendo levado pelos ventos de suas próprias indagações. Uma hora ou outra acabarás encontrando o que buscas. Mas não era preciso fazer mais nada. Sim. Encontrarei o que busco. Pensou, interrompendo sua meditação em meio a um calafrio subindo sua espinha dorsal. Sentiu uma incontrolável vontade de abrir seus olhos, tentando-o tirar daquele estado de mortificação. Mas seu treinamento não foi mais forte que aquele impulso. Instantâneo, feroz, e certeiro. Sem

que

pudesse

esboçar

alguma

reação,

o

Zahraniano

foi

subitamente sugado para dentro de si mesmo. Não se encontrava mais ali. Ele havia encontrado o que tanto procurava.

202


DOCUMENTO 034 ATRAINDO O QUE DESEJA O medo atrai a inquietude... Sofia leu aquelas linhas do Livro de Ormoshi, tão séria quanto às advertências que o próprio Gabriel a fizera. Pensou consigo mesma: Não fora uma boa ideia sair de casa. Um arrepiante vento soprou, tirando a garota daquela inebriante distração. Talvez o cansaço estivesse fazendo efeito sob o forte sol daquela hora na manhã. O forte vento novamente uivou para dentro dos ouvidos de Sofia, fazendo-a despertar seus sentidos para observar o jardim à sua frente. Mas o que ela nunca esperou foi que além de sua audição seus olhos fossem atacados por uma aparição fantasmagórica. Sem se conter, sua vívida íris azul se contraiu diante do espectro escuro que se aproximava dela. À sua frente, aquela figura dominava sua visão, fazendo um forte calafrio subir pelas suas costas: Era o medo. Debaixo de um longo manto negro, o alto homem de pele escura mais parecia

um

monge,

caminhando

serenamente

entre

as

folhas

que

ladrilhavam o gramado. Mas a intuição de Sofia lhe dava a certeza de que não se tratava de um eremita. Pelo menos não da maneira como ela desejava que fosse. Ela tentou gritar, mas seu pavor não deixou que nenhum som saísse de sua boca. Da mesma forma não conseguiu se mexer. Nem para frente, nem para trás. A única reação que teve foi uma incontrolável vontade que invadiu sua Mente, chamando pelas únicas palavras que conseguia pensar naquele momento. Enquanto observava aquele arrepiante espectro ser se aproximar, uma estranha mancha sombria brotou ao redor da figura, fazendo sua consciência mergulhar ainda mais no horror do seu pesadelo. Ela não compreendia, mas estava enxergando a pesada Vohan do Zahraniano. O medo fechou seus olhos, fazendo-a clamar novamente pelos seus protetores. Para sua sorte seus pensamentos ecoaram pelo silêncio do desconhecido. 203


*** Você precisa aprender a degustar os alimentos. - Eles não vão fugir da sua boca. – Disse Shylon enquanto assistia ao amigo devorar o café da manhã no grande refeitório da Ordem. O iluminado salão retangular dava a impressão de que mesas não tinham fim, alinhadas simetricamente umas às outras. Alguns poucos Sacerdotes eram servidos por robôs que iam e vinham no ar, carregando bandejas metálicas com algumas frutas e jarras de sucos produzidos no Santuário. Aquela manhã mal havia nascido, mas os Sacerdotes já estavam de pé. Alguns ainda se arrumando para o dia. Outros, já nas suas atividades. - Eu estou com fome. – Disse Gabriel, segurando com as duas mãos um espécime arredondado que mais lembrava uma melancia, com sua nítida cor esverdeada. - E eu não consegui dormir direito. – Continuou, balançando sua caneca transparente, enquanto observava o líquido girar em torno do seu próprio eixo. – Não paro de pensar na nossa missão e na segurança da garota. Sabe, sua proteção depende de nós. É muita responsabilidade. - Você devia se preocupar menos e comer mais, então. Precisamos de nossos corpos fortificados para podermos saltar entre os espaços. - Como isso se dá? – Gabriel perguntou. - O salto? Gabriel assentiu com a cabeça, curioso. - Primeiro, você precisa saber que existem algumas regras. – Disse Shylon, enquanto Gabriel engolia o resto da fruta que estava em suas mãos. - Regras? – Shylon respondeu com a cabeça, enquanto abocanhava aquela suculenta iguaria. - Para poder saltar entre os espaços você primeiro precisa conhecer o seu destino. Caso o contrário, você pode não conseguir se transportar, ou simplesmente, surgir dentro de outro local, como... dentro de uma montanha. 204


- Então se nos transportarmos para dentro... - Você vira pó, literalmente. – Disse Shylon, esfarelando uma espécie de bolo, levando a massa à sua boca. Gabriel fez uma cara não muito contente. - Por isso só podemos ir a um lugar onde já estivemos. Ou então... – Disse Shylon, engolindo o resto da comida –... através das memórias de outras pessoas. – Completou o amigo. - Outras pessoas? – Gabriel perguntou, espantado. - Claro. Se não podemos ir aonde desejamos, podemos fazer isso por meio de outras pessoas que já estiveram lá. Basta que nos conectemos à sua Mente. Assim, podemos adentrar em suas lembranças e nos materializarmos naquele local onde ela um dia esteve, ou onde está no momento. Foi assim que meu pai veio até você, localizando aonde você se encontrava. - Mas como é possível fazer isso? - Ora, da maneira que sempre fizemos. Ou seja, através de muito treinamento. – Disse o amigo, enquanto devorava o resto daquela fruta extraterrestre. - Não entendo. -

Tudo

neste

Universo

vibra

em

determinadas

frequências

eletromagnéticas, incluindo nossos pensamentos. O segredo para nos conectarmos à Mente de alguém está na poderosa lembrança ou na sincera vontade de nos comunicarmos com quem desejamos. Ao fazermos isso, nossos pensamentos vibram em certas frequências, de tal forma, que somos capazes de localizarmos a pessoa através da comunicação primária do Universo: A comunicação entre Mentes. Da mesma forma é o Salto entre os Espaços. - E que técnica é essa? Digo, existe alguma magia por trás dos saltos? - Você realmente acredita que isso seja algum milagre? – Perguntou o amigo, rindo discretamente. – O princípio do Salto entre os Espaços está na nossa própria Mente. Os nossos pensamentos deixam rastros, informações que ao mesmo tempo estão gravadas na nossa Mente, mas que de alguma forma também ficam aprisionadas nos lugar em que estivemos no passado, graças aos campos magnéticos que geramos pelos nossos corpos. 205


- Por isso só podemos nos transportar aos lugares em que já estivemos alguma vez? - Perfeitamente. A partícula essencial de nossa matéria é a energia. Nossos corpos, nossas roupas, nossos objetos pessoais, e toda a natureza. Você poderá encontrar qualquer coisa que procure neste Universo, desde que você tenha deixado esse rastro nos lugares ou nos objetos que busca. Todas essas informações estão guardadas ao nosso redor. Para acessá-las, somente precisamos conectá-las à nossa Mente. - Você fala de transmissões de informações. Isso seria equivalente ao enlaçamento quântico? – Aquelas palavras de Gabriel logo espantaram Shylon. Ele quase se esqueceu de que o amigo era um profundo conhecedor da física de seu mundo.39 - Imagino sobre o que você esteja falando. É mais ou menos isso. Nossas memórias deixam rastros onde estivemos, e essas informações quando religadas, nos permitem abrir uma verdadeira ponte para nossa Mente navegar entre os espaços que nos separam delas. - E como podemos realizar essa viagem? – Perguntou Gabriel.

39

A teoria do enlaçamento quântico – fenômeno estudado no meio científico de Yuransha por meio da mecânica quântica – partia do princípio que era possível dois ou mais objetos estarem de alguma forma conectados, mesmo que separados por milhões de anos-luz de distância. Estas informações quânticas ficariam armazenadas em ambos os objetos, numa espécie de rede invisível, apenas sendo possível a transmissão dessas informações através de uma técnica que entrelaçasse esses mesmos dados. É o que a Ciência de Yuransha chama de teletransporte quântico. Através da polarização, ou manipulação dos spins dos átomos, seria possível uma série de proezas, desde localizar onde se encontra tal partícula ou objeto dentro do espaço, até como localizá-los em algum momento dentro do tempo. Em outras palavras, seria possível realizar não somente viagens no espaço, mas também viagens no tempo. Esta ideia de que tudo está conectado entre si abrangeria desde partículas subatômicas até Universos inteiros. Tudo estaria unido em uma grande simbiose, e a origem desta união cósmica se daria por meio de "forças" que não seríamos capazes de enxergar, mas que permeiam o espaço-tempo, entretanto, não ficando presas às limitações a ele relativas. Aquela concepção era absurdamente fantástica para Gabriel. Já para Shylon, era mais do que possível. Uma realidade a qual ele próprio já experimentara, e que de fato, é não somente real, mas já palpável à Ciência nosso mundo.

206


- Por meio de sua Vohan você é conectado a essa rede formada pelos seus pensamentos. Como sua Mente ainda faz parte do seu corpo, quando você se conecta às suas lembranças ou a de outros, você é transportado ao seu destino. Não é seu corpo que percorre os espaços, é a sua Mente. Ele apenas é arrastado nessa viagem. Imaginando como seria aquele treinamento para conseguir tal proeza, a cabeça de Gabriel já estava começando a latejar, acusando a noite mal dormida. Do mesmo modo, Shylon já estava sentindo sua cabeça pesar. Não demorou para que a voz de Gabriel também começasse a pesar dentro de seus ouvidos. Distorcida. Distante... - Não estou em condições para pensar nisso agora. Preciso dormir... – Disse Gabriel, se queixando do visível cansaço. – Eu gostaria que nossa rotina... Sentindo um forte desconforto, Shylon levantou sua mão, mandando o amigo se calar. Não demorou para que ele captasse o que estava acontecendo. - O que foi? Não posso mais me queixar que estou com sono? – Gabriel protestou. - Não Luhan. Escute... – Shylon baixou sua cabeça, fechando seus olhos. Aquele início de dor de cabeça deu lugar a algo mais poderoso. - O que? – Perguntou o amigo, ainda sem entender. - A voz... Ela... Mais uma vez seus nomes ecoaram em suas Mentes. Desta vez Gabriel ouviu nitidamente. - Estou ouvindo... Sofia! Gabriel gritou em sua cabeça, em um único pensamento que lhe assolou seu coração. Rapidamente se levantou da mesa, enquanto o amigo o seguia em meio ao reflexo. - Venha! – Shylon se concentrou, agarrando a mão do amigo. No mesmo instante eles desvaneceram no refeitório. Um droide que chegava na direção dos dois estancou com duas jarras de suco de frutas. Ele analisou o ambiente através do vidro da jarra. Os 207


garotos que haviam feito o pedido sumiram diante de suas lentes. Então após um breve processamento, a máquina retornou à cozinha, programando em qual tonel de produção devolveria a bebida. Se o robô fosse um Sacerdote, teria confundido o colorido amarelado do líquido com a poderosa Vohan de Shylon. Agora, os dois amigos cruzavam o Universo para resgatar Sofia. Mas Shylon como sempre agia antes de pensar. Ele teve coragem de se lançar ao desconhecido, mas ao que parecia, se esqueceu do que dizia um dos sete princípios da Ordem Harashi: A Coragem sem Prudência gera Caos.

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DOCUMENTO 035 A CAÇADA Finalmente conseguindo se mover, Sofia recuou em meio a cambaleantes passos. Seus músculos haviam travado pelo medo, e o que se seguiu só piorou a situação. Subitamente, duas outras sombras igualmente pálidas brotaram ao lado do Zahraniano. Aquele trio macabro não fez nada. Apenas observava a garota através de seus escuros trajes. A priori aquelas vestes não eram tão diferentes. Tirando a súbita aparição, aqueles três homens de cabelos raspados mais pareciam monges em seus sobretudos escuros e longos capuzes. Mas olhando mais de perto, percebia-se que aquelas longas vestes em nada tinham a ver com o mundo em que Sofia vivia. Uma leve armadura de couro cingia sob seus troncos no interior daquele sobretudo, e, incrustados nela, discretos cristais se dispunham sob os principais pontos vitais dos indivíduos. Aquela visão terrificante apenas aumentou o pavor de Sofia, que tão somente conseguia andar para trás. Desengonçada, a garota tentou correr, em vão. Com uma única piscada brotando de um sinistro olhar, um daqueles homens fez a garota ser atirada no gramado junto com sua mochila e o livro. Ela tentou se levantar, mas foi impedida. Duas sombras surgiram à sua frente. Suas vestes escuras fizeram Sofia paralisar. Mas para sua sorte, eram Gabriel e Shylon que se encontravam diante dela, muito diferentes de como ela os havia conhecido. Olhavam para ela visivelmente nervosos. Sem pensar duas vezes, Gabriel apanhou o livro, enquanto Sofia segurava sua bolsa escancarada. Ao tocar a obra, seu sangue congelou ao ler o título em inglês com suas letras não tão mais douradas. Gabriel tomou consciência do que agora

209


tinha em suas mãos, e olhar a tão enigmática tradução das Escrituras do Princípio o fazia tremer por dentro. O que conteria aquele livro? O que ele teria de tão especial? Mas suas divagações foram embora tão rápido quanto vieram. Ele voltara à realidade, quando diante dos seus olhos, avistou as três figuras vindo em sua direção. Tal como ele, o livro também havia atraído a atenção dos Magos de Tevohan. Aquela primeira visão dos Zahranianos pegou de surpresa os seus sentidos, fazendo brotar um medo que talvez era o mesmo que assolava Sofia. Porém, diferente da garota, uma estranha inquietude lhe movia a continuar encarando aqueles seres sombrios. Mas não era coragem. Talvez uma forte descarga de adrenalina que tivesse despertado Gabriel naquele momento. Já Shylon sentia-se capaz de enfrentar o trio que se aproximava, mas um impulso tão consciente quanto aquela vontade, lhe fazia desistir daquela loucura. De qualquer jeito, ambos os garotos sentiram-se impelidos a sairem dali. Mas nem sempre a Mente governava o corpo, e assim como Sofia, nem Gabriel nem Shylon não conseguiram se mexer. Eles vieram resgatar a garota, mas tal viagem fora tão mal planejada como aquele momento. Uma coisa era Gabriel ou Shylon ouvirem o que Marishi lhe falava sobre os Magos Zahranianos. Outra era estar frente a frente não apenas com um, mas com três daqueles míticos seres. - Precisamos fugir! – Gabriel bradou, expulsando sua mais sincera vontade. Compartilhando da mesma conclusão do amigo, Shylon não pensou duas vezes. - Segurem minha mão. – Ordenou aos outros dois. - O que você vai fazer? – Perguntou Sofia, nervosa. - Apenas confie em mim. Pense em algum lugar bem distante daqui. Rápido! A Mente de Sofia projetou a primeira imagem que veio à sua consciência. Era mais do que o suficiente. Shylon imergiu nas memórias da garota enquanto os três apertavam firmemente suas mãos. Os Magos percebendo o que estavam acontecendo, avançaram sobre o trio. Mas não o suficiente para alcança-los. Os jovens partiram da mesma 210


maneira como chegaram. E seguindo seus rastros, os Magos se puseram a caçá-los. Assim, uma infinidade de lugares se sucedeu, onde, em fuga, os três jovens saltavam de espaço em espaço, materializando e desmaterializando seus corpos nos diversos lugares que Sofia mentalizava. Grandes parques da cidade, cobertura de edifícios, ruas desertas. A Mente de Sofia já estava se desgastando, enquanto que Shylon concentrava suas forças em romper a barreira do espaço-tempo dentro dos ambientes em que a ágil memória da garota se instalava temporariamente. O suficiente para ele projetar seus corpos em milésimos de segundos. Aquela técnica milenar de projeção da matéria, popularmente conhecida como teletransporte, desgastava não só a Mente como o corpo dos garotos, que sentiam os impactos da poderosa Vohan que emanava a cada fuga. Como um prodigioso estudante das Ciências da Mente, Shylon sabia que os Zahranianos estavam no encalço deles, e a cada local onde eles saltavam, as lembranças da garota deixavam um rastro de suas energias que era seguido pelos seus inimigos. Era preciso ser mais rápido que eles. E Sofia de fato era ágil. Rapidamente captara a lógica daquela técnica de fuga, e suas lembranças sobre os mais diversos e remotos lugares em que esteve saltavam de sua cabeça com a mesma rapidez com que os garotos apareciam e despareciam daqueles lugares. Ninguém era capaz de vê-los, mesmo quando em público, a não ser pelo silvo que emanava da leve brisa que escapava pelo ambiente a cada salto. Mas era preciso desconectar a Mente dos Magos de sua Mente, senão eles seriam perseguidos até à beira da exaustão. Sem saber para onde ir, Sofia trouxe os garotos de volta para La Statale. Só que em vez de retornarem ao campo que cercava a fachada da Universidade, eles adentraram em uma das salas de aula que a garota frequentava. Naquele momento, porém, ela se encontrava vazia, sem alunos ou professores, apenas cercada por inúmeras bancas de madeira. Respirando fundo, Shylon recuperou o fôlego para reorganizar seus pensamentos. - Precisamos despistá-los... Agora... – Disse, ofegante. 211


O garoto mal conseguia raciocinar, não só por conta da tortuosa pressão que sentia em sua cabeça, como também pelo pavor que os Magos surgissem novamente diante deles. - Estou sentindo minha cabeça rodar... – Sofia denunciou o mal estar que logo sentira, se escorando em uma das bancas. Sentia seu corpo pesar gradualmente. Gabriel a sustentou pelos braços. - O que vamos fazer? – Perguntou Gabriel, encarando Shylon. Subitamente, as pupilas de Shylon se dilataram, e ele projetou seu corpo para frente, segurando as mãos dos outros dois. - Pensem em outro lugar, os dois. Agora! – Ordenou o jovem. - O que? – Gabriel não assimilou o que o amigo dissera. Sofia apenas o encarou, tomada de medo pela tensão que a dominara. - Façam! – Novamente Shylon ordenou. Obedecendo, eles fecharam os olhos, enquanto que uma poderosa luminosidade brotou do interior da Mente de Gabriel, projetando-se através de suas células. Obviamente ele não foi capaz de enxergar isto, mas sentiu novamente a pressão que já estava afetando-o. Aquela força descomunal agiu como se fosse mais uma vez arrebentar seu corpo, puxando suas mãos como se fossem ser tragados por aquela poderosa vibração. Por um breve momento ele sentiu que suas mãos haviam se soltado, mas ele estava errado. O trio mais uma vez havia desaparecido, deixando a sala no mais completo vazio. Pelo menos até a chegada quase que instantânea da tríade de Zahranianos logo em seguida. Ao pisarem no velho assoalho de madeira rústica, os hostis Magos logo se prepararam para a seguinte projeção. Mas dessa vez, eles permaneceram parados, se entreolhando. Algo estava errado. Algo estava impedindo-os de prosseguirem aquela macabra caçada através dos espaços. Eles não sentiam mais as lembranças deixadas pela garota. Sem conseguirem esboçar nenhuma reação, aquelas três figuras de túnicas pretas continuaram em pé, confusos, em meio ao nefasto silêncio daquela sala de aula. 212


DOCUMENTO 036 NÃO ESTAMOS SOZINHOS Sofia sentiu os pelos de suas pernas arrepiarem. E seguindo aquele calafrio, o resto do seu corpo também se eriçou. A gélida brisa soprava de vários lugares. Shylon olhou ao seu redor, sentindo seus pés afundarem no gramado irregular em meio a um extenso campo aberto. Não tão distante dali, pequenas casas se espalhavam para além do sopé daquele terreno elevado. A atmosfera da zona industrial de Milão parecia sinistramente tranquila para aquela manhã agitada. Ainda mais onde os três jovens se encontravam.

Não

sabiam

se

foram

vistos,

mas

no

meio

daquele

descampado, não havia lugar onde se esconder. E esta era a principal preocupação de Gabriel. - Precisamos voltar a Nemashi. Eles podem chegar a qualquer momento. – Disse, virando os olhos para se certificar que estavam sozinhos. - E você acha que eu não tentei? Algo está me impedindo. – Disse Shylon, analisando o terreno. - Como assim algo? - Os Magos... – Disse Sofia, nervosa. Suas palavras balançaram a Mente de Shylon, que subitamente se virou para a garota. Porém, aquelas palavras não era uma resposta, mas um medroso aviso da presença dos Magos, que subiam pela lateral daquela encosta. - Mas como? – Shylon se perguntou, sem reação. A rapidez com que as coisas aconteceram foi tal, que os Magos já encurralavam o trio, dando-lhes apenas a opção de recuar. Num ato de desespero, Shylon fez queimar novamente a sua Vohan, e erguendo a mão na direção dos Zahranianos, atirou uma poderosa rajada luminosa contra o Mago que se encontrava ao meio. O inimigo sombrio continuou andando, ao passo que, com um único movimento, deteve aquela onda fulgurante, atirando-a contra o chão terroso, dispersando-a como um para-raios. - Você quer nos deter com essa magia ultrapassada? Nós somos os Magos da Ordem Zahran! – Bradou o alto homem negro, enquanto 213


continuava

a

caminhar.

Aquela

arrogante

declaração

ganhou

mais

imponência com a poderosa voz do seu dono. A figura do Mago transferia aos seus oponentes um temor que ia além de sua fisionomia. A Vohan sombria daquele ser queimava intensamente. E Shylon sabia que os Zahranianos não usavam seu poder em vão. O mais poderoso dos ataques é aquele que mais evitamos. Pensou. Aquele ensinamento Zahraniano era quase um dogma dentre os vários difundidos pela Ordem. Para eles, um verdadeiro guerreiro deveria evitar gastar suas forças, para então, quando estivesse pronto para atacar, descarregar toda a sua ira contra o inimigo. Essa técnica de luta era um modo não só de aniquilar o oponente em definitivo, como também uma forma de se ter controle durante todo o combate. - Não há pensamento que não possamos rastrear. Ou controlar... – Disse o Mago, olhando para Shylon, enquanto avançava sobre o trio. – Para todo destino há um ponto de partida. - O que vocês querem? – Atrevendo-se, Shylon gritou, encarando o adversário. - Creio que já sabem a resposta. – Disse o outro Mago, atrás de Gabriel. Como se fosse uma raposa à espreita, o garoto seguia o Zahraniano com seus olhos. Sofia recuou, abraçando a mochila contra seu corpo. - Qual o interesse de vocês pelo Livro? – Perguntou Gabriel. - A pergunta não é por que queremos o Livro, mas sim o que queremos do Livro. A Mente de vocês é tão limitada que sequer compreendem o real significado das Profecias Progressivas. - Profecias Progressivas? – Perguntou Gabriel, sem entender nada do que o guerreiro falava. - Harashis patéticos... O que seus mestres andam ensinando a vocês? Equações de saltos no espaço-tempo? Técnicas ultrapassadas de controle sobre a matéria? Pelo visto, a Ciência Universal também está sendo esquecida em Nemashi, como há muito tempo já acontece em Yuransha. - Você conhece o meu planeta? – Perguntou Gabriel, assombrado. 214


- Não seja tolo! Vocês não estão sozinhos, nem nunca estiveram. Diferente dos Harashis, que os abandonaram, nós sempre tivemos interesse no seu planeta. Nós três viemos de um lugar distante daqui. Mas há outros que conhecem seu mundo mais do que você imagina. Deixaram nossos muros para servir a propósitos maiores. Estes, sim, são verdadeiros eremitas. Como vocês dizem, “homens santos” em busca da Verdade. E boa parte dessa Verdade está oculta nestas folhas. – Disse o Zahraniano, apontando para Sofia. Aquele dedo em riste fez a garota sentir seu sangue descer. Sua única vontade era de correr, mas se fizesse isso, obviamente seria caçada por aqueles

monstros.

Porém,

se

ficasse

ali,

os

garotos

continuariam

encurralados. - Vocês nunca o terão! – Disse Gabriel, avançando timidamente em diração ao Mago. - Como ousa nos afrontar? – O líder da tríade ergueu a mão contra Gabriel, que numa imprudência como nunca tivera em sua vida, também ergueu a sua. Ao mesmo tempo em que a Vohan sombria do Mago se elevava, Gabriel sentia queimar dentro de suas células uma pujança que nunca sentira até agora. Por um breve momento, conseguiu enxergar três pontos reluzentes próximo de onde estavam. Um trio de pombos em voo passou entre os dois, assustando-se ao se aproximarem deles. Por um breve momento, Gabriel lembrou-se da estranha relação entre tais aves e os campos magnéticos.40 40

A poderosa capacidade de orientação dessas aves se dá pela sua aguda sensibilidade à alterações nos campos magnéticos que as circundam. Isso se dá principalmente pela presença de magnetita na composição de seus bicos. Não menos importante, é a consideração que este é o mesmo mineral que se encontra sob a forma de micro cristais não somente dentro de nossos cérebros como de tantos outros animais, fazendo com que haja uma incessante interação, mesmo que inconsciente, entre dos campos magnéticos que os envolvem, bem como entre todos os elementos magnéticos do ambiente ao seu redor. Curiosamente, sobre este episódio ocorrido que passei a investiga-lo pessoalmente, e até agora não consigo chegar a uma conclusão satisfatória de como se deu essa atração dos pombos aos garotos, pois estes foram os mesmos que Sofia havia anterioremente

215


E foi justamente nesse momento que a Mente de Gabriel, foi capaz de relembrar de suas primeiras aulas sobre a natureza da Mente, no qual Haron lhe ensinara que as emanações magnéticas da Vohan eram o que garantiam a interação e manipulação do ambiente ao redor de um Harashi. Porém, para que isto ocorresse, era necessário ativar o catalisador dessa poderosa reação. E isto se dava pela mais pura e sincera vontade de realizar tal feito. Era estranho, mas junto com aquelas lembranças do que havia aprendido, Gabriel sentiu sua Mente ser transportada a outro estado de consciência, um misto de fúria e poder que tomava conta de si, gradativamente. E sem mais esperar, o jovem assistiu uma poderosa rajada flamejante brotar da palma de suas mãos, chocando-se contra a sinistra e não menos poderosa onda projetada pelo Mago. Os olhos de Gabriel se abriram em meio à consciência do que estava acontecendo, e no mesmo instante, um sentimento de medo lhe percorreu a espinha. Ele sabia que não poderia enfrentar um Mago Zahraniano e voltar vivo para Nemashi para registrar o ocorrido. Mas aquele lapso de pensamento foi quebrado por um raio que partiu aquele conflito ao meio. Astuto, Shylon lançou uma ríspida onda elétrico-magnética, rompendo a

redoma

de

fótons

criada

pelos

dois

combatentes,

e

espantando

definitivamente os pombos que ainda rondavam o local. O Mago recebeu aquela intervenção como um insulto, atacando novamente, e dessa vez, voltando-se contra Shylon. Confiando em seus reflexos, o jovem Helamen absorveu aquela poderosa energia com uma das mãos, gerando uma nova barreira etérea, enquanto que, com a outra mão bloqueava aquela poderosa defesa contra o inimigo. Porém, o peso do treinamento do Zahraniano superava no quesito combate. Os Harashis sempre foram ótimos estudantes, enquanto que os

enxotado do jardim da faculdade. Mas se de alguma forma eles foram atraídos ambas às vezes à presença dos garotos, resta uma pergunta que ainda não sou capaz de responder: Por que o foram? E se de fato o foram, como insisto em pensar, por quem?

216


Magos da Ordem de Tevohan conseguiram encontrar o equilíbrio entre a academia e as arenas de duelos. E o resultado disso era visível desde os primeiros combates entre Harashis e Zahranianos. Contam os relatos, que, quando aconteceu o cisma dentro da Ordem de Nemashi, os Magos levaram consigo um terço de seus Sacerdotes. Para se igualarem em força bélica, os Zahranianos dobraram a rotina de seu treinamento

físico.

Com

isso,

criaram

um

exército

de

guerreiros

marcialmente superior à própria Ordem Harashi. Daí veio seu mítico temor que se espalhou rapidamente por Ashunyah. Os mais sensacionalistas diziam que um Mago Zahraniano valia por três Sacerdotes Harashis. Podia ser apenas uma lenda, mas para Shylon aquilo estava comprovado. O poder do seu inimigo era incomparável, e rapidamente aquela barreira foi rompida, não só pelas mãos do Mago, mas também pelo seu gélido olhar, petrificando os movimentos do garoto, enquanto ele assistia seu oponente lançar um novo e mais intenso ataque. Sem reação, ele apenas esperou o impacto. Boquiaberto, assistiu aquela onda luminosa crescer contra si. Mas a mesma foi bloqueada por outro espectro que brotara de suas costas. Impossível! Gritou. Quem poderia? Luhan? Embora não quisesse acreditar, Shylon apenas observava o desenrolar daquele espetáculo luminoso arrebatador. Gabriel estava há pouco tempo na Ordem, e Shylon sabia que o que o amigo aprendera até então não era o suficiente para fazê-lo enfrentar um Zahraniano. Mas para sua surpresa – e para sua salvação – uma conhecida voz que escutava desde sua infância emergiu atrás dele, fazendo brotar no seu íntimo uma poderosa e conhecida sensação de segurança. Marishi apareceu sem cerimônias, prontamente segurando por um tempo aquele ataque que logo se dissipou pelo ar, atraindo a poderosa onda de energia para um emaranhado de cabos suspensos que faziam parte da rede elétrica local. Aquela fúria tomou conta das linhas de força, que logo transferiram a intensa rajada até uns postes fincados ao longo de uma estrada próxima. Mesmo assim, as explosões que se seguiram não foram 217


fortes o suficiente para chamar a atenção dos garotos para o que se sobreveio. Junto com Marishi e seu inesperado resgate, Haron e Shimah surgiram logo em seguida, protegendo a retaguarda do Sacerdote, e da mesma forma Gabriel e Sofia, que assistiam aterrados ao desenrolar daquele combate. Sentindo-se encurralados, os Magos não tiveram outra reação, senão fugir daquele duelo de forças etéreas. Agora, sem conhecerem o terreno, eram eles que estavam encurralados no local. A cada salto, os ataques dos Sacerdotes que os perseguiam arrancavam um tufo da terra criando uma grande cratera, como se uma mina de guerra houvesse detonado. Mas aquele jogo de fugas e aparições entre os espaços estava para acabar. Concentrando-se nas próximas posições, Shimah conseguiu atingir em cheio dois Magos no mesmo instante em que reapareceram nos espaços que almejavam. Os irmãos gêmeos, então, alcançaram aqueles corpos sem vida que jaziam no gramado. O impacto daqueles golpes era tal, que, se um corpo não estivesse preparado para recebê-lo seria destruído, – como aconteceu – visto que, o intenso choque paralisava de imediato os órgãos vitais do indivíduo. Vendo o que acontecera, o Mago que liderava o grupo preparou-se para fugir para Tevohan. Mas os sentidos de Marishi foram mais rápidos, fazendo o Sacerdote lançar um golpe de misericórdia contra seu inimigo. Porém, aquele golpe invisível não atacou o corpo, mas a Mente do Mago, fazendo-o cair por terra, paralisado. O ataque de Marishi havia bloqueado a Mente do Zahraniano, impedindo-o de viajar de volta para seu mundo. Todas as sinapses de seu cérebro, relativas à locomoção, foram temporariamente interrompidas. Os três jovens assistiram ao desfecho, aterrorizados. Já as atitudes do Sacerdote tão continuavam firmes como ele próprio. Checando que ninguém ao redor os avistara, Marishi se aproximou do guerreiro com sua típica serenidade, enquanto o observava inerte no chão, aonde, em vão, tentava lutar contra o golpe de Helamen.

218


O poderoso Mago encarou o adversário através de seus frios olhos escuros. Mas ao invés de ódio, Marishi viu um discreto sorriso surgir dos lábios do Zahraniano. Naquele momento ele não conseguiria definir qual sentimento se passava na cabeça do Mago. Tentando descobrir seus pensamentos, o Sacerdote experimentou um estranho vazio brotar do interior daquele miserável ser. Um vazio que afetou a sua própria Mente de um modo fatal. No mesmo instante Haron se virou, pressentindo o que estava acontecendo. - O que ele está fazendo? – Perguntou, tomado de surpresa por aquele pressentimento. Shimah também sentiu, precipitando-se na direção de Marishi. - Alguém o detenha! – Haron gritou, tarde demais. Marishi não teve tempo de reagir. A potência daquela energia era demais para o Sacerdote, que para se proteger, colocou as mãos diante dos seus olhos, enquanto sentia seu corpo cambalear. Uma sinistra onda obscura cresceu da Mente do Mago, e se expandiu pela atmosfera, como se uma poderosa chama incinerasse toda a vitalidade presente naquela encosta. Os garotos fecharam os olhos, enquanto que o Sacerdote voltou a encarar aquele augúrio já conhecido de seu saber místico. Aquele ataque não fora direcionado a ele, mas contra o próprio oponente. Assim como a vida do Mago, aquela oscilante chama sombria cessou no mesmo instante, trazendo de volta a calma que pairava sobre a atmosfera do campo. Os presentes passaram alguns segundos sem respirar, esperando alguma outra repercussão, porém tudo havia terminado. Diante daquele cenário devastador, os garotos finalmente se levantaram da terra e se aproximaram dos dois corpos restantes, ainda receosos. - Agora estamos seguros. – Disse Haron, observando o ambiente. - Senhor, o que aconteceu? – Perguntou Gabriel, ainda trêmulo. - Algo que iremos discutir quando voltarmos a Nemashi. – Respondeu Shimah. 219


- O que aconteceu aqui precisa ser registrado imediatamente nos Arquivos da Ordem. – Disse Haron, conhecendo os tradicionais protocolos das missões realizadas pelos Sacerdotes. - Todos estão bem? – Marishi gritou para que todos respondessem. Os dois garotos responderam positivamente. Os irmãos Voorih confirmaram com suas cabeças, permanecendo em silêncio. Gabriel virou-se para Sofia. - Você está bem? – A garota apenas encarava os olhos de Gabriel, sem saber o que dizer. - Estou... – Porém, o medo era visível através da sua vívida íris contraída e sua não menos ofegante respiração. Enquanto Gabriel tentava tranquilizar a garota, os Sacerdotes decidiam os próximos passos. - Eu os levarei a Nemashi junto com Haron. Agora que temos a tradução das Escrituras em mãos precisamos sair logo daqui. Você terminará de arrumar essa bagunça. – Disse Marishi se dirigindo a Shimah. - E por que eu tenho que fazer isso? – Perguntou. - Ora, você foi que me seguiu. Veio até aqui por último. – Disse Haron, rindo do irmão. - É como dizem nesse mundo: O último que chegar apaga a luz, ou quase isso... – Disse Marishi, soltando um sorrido sarcástico para o amigo. – Vamos, não podemos permanecer mais tempo aqui. - Creio que já ficamos até demais. – Disse Shimah, sondando a destruição ao seu redor. Os dois Sacerdotes se encaminharam até os garotos, e após uma breve conversa, sumiram da relva esverdeada. Sozinho, Shimah se aproximou dos corpos sem vida dos Magos. Olhando para eles, se perguntava o porquê daquelas atitudes tão desesperadas. Porém ele só iria descobrir isso quando voltasse ao Santuário. Sem perder mais tempo, o Sacerdote emanou sua poderosa Vohan dourada. Com um rápido movimento de suas mãos, Shimah fez brotar um poderoso facho luminoso. Preciso, porém, destruidor.

220


Aquela faísca de uma quase imperceptível chama azulada percorreu a direção pretendida, atingindo os corpos em cheio. Quase que instantaneamente, eles se desfizeram no ar, em milhares de partículas que logo sumiram às vistas do Sacerdote. Aquele trabalho sujo estava concluído, e agora com o terreno limpo de qualquer evidência dos corpos, Shimah iria tratar algo ainda mais preocupante. O que se passava na Mente daqueles Magos? Perguntou-se. Deixando de lado seus pensamentos sobre o que aconteceu, o Mestre Harashi projetou seu próximo instante no interior do Santuário. E seguindo sua vontade, o espaço que antes ele ocupava voltou a ser preenchido pelo forte vento que soprava sobre a relva, espalhando a terra no local de volta para suas fendas.

221


DOCUMENTO 037 LIGANDO OS PONTOS Sofia continuou de olhos fechados. Aquela insuportável sensação ainda fazia sua cabeça rodar, e por um breve momento sentiu um embrulho em seu estômago. Porém, aquela ânsia não era proveniente de um enjoo, mas do medo que ainda sentia por conta dos acontecimentos que se sucederam em tão pouco tempo. Em menos de uma hora ela fora perseguida por Magos Zahranianos, testemunhou uma intensa batalha na periferia de sua cidade, e agora estava viajando para outro lugar. Outro planeta, bem distante da Terra. Nemashi. Tudo parecia surreal demais para ser verdade, mas aquele sonho aos poucos foi sendo trocado por uma realidade bem palpável quando a garota decidiu abrir seus olhos. A luz era intensa. Intensa até demais, e aquela tentativa de enxergar onde estava pareceu doer não só sua retina como também sua cabeça. Ela foi se orientando à medida que Shylon e Gabriel a sustentaram pelos braços e a ajudaram a se levantar. O mundo ainda rodava dentro de sua cabeça quando outro – mais fantástico ainda – lhe foi revelado. A atmosfera daquele lugar era magnífica, divina até, ela diria. Tudo parecia extremamente claro, como num sonho lúcido. Ela podia enxergar as cores daquelas paredes, que em meio às colunas de pedra reluziam relevos de formas humanas através de linhas metálicas. Ela não sabia que aquelas grandes paredes contavam alguns dos episódios vividos pelos primeiros Sacerdotes da Ordem Harashi, mas para Sofia tudo aquilo era belo e grandioso. Enquanto girava seu pescoço, admirando a altura do lugar, ela percebera que se encontrava em um longo corredor, cujo caminho, marcado por aquelas colunas, levavam a um colossal arco ao final daquela nave. - Onde estou? – Perguntou, ainda abismada. 222


- Você está no interior do Santuário da Ordem Harashi. Nós lhe dissemos que a levaríamos até aqui... E como pode ver, aqui estamos. – Disse Shylon, sorrindo para a garota. - Isso... É real? – Mesmo tocando em uma das colunas, a cética concepção de mundo de Sofia tentava convencê-la de que aquilo era um sonho. - Você acha que o que você sente não é real? - Inquiriu Shylon. A garota balançou a cabeça, negativamente. – Até os nossos sonhos são reais, pois são projetados por nossas Mentes. O que não existe é aquilo que não ousamos fazer, ou sonhar. Aquela aspereza fez Sofia despertar para a nova realidade que estava vivenciando. Sentir uma pedra arranhando sua mão nunca foi tão fantástico para ela. Já Gabriel observava o comportamento dos Sacerdotes. Quase se esquecera de que só viera parar ali graças à Marishi, Haron e Shimah. Este, último, acabara de chegar, logo se juntando ao irmão e à Helamen. Se não fosse por eles, quem sabe qual teria sido o destino dele, de Sofia, e de Shylon. Os três estavam conversavam sobre o que acontecera, quando Marishi se afastou. Parecia distante. O Sacerdote caminhou até um espelho d’água existente no átrio em que se encontravam. Calado, apenas observava seu próprio reflexo. Gabriel se aproximou vagarosamente do seu mentor. - Senhor? Está tudo bem? – Perguntou o garoto, apenas olhando o Sacerdote que caminhava à beira daquela rasa piscina. - Estamos com um sério problema Luhan. – Disse Marishi, andando a passos curtos, contudo, mantendo sua tradicional serenidade. - O que está acontecendo? Eu preciso saber... – Ao contrário do Sacerdote, o garoto estava visivelmente ansioso. - Você sabe qual é o segundo bem mais importante para os Zahranianos? – Questionou o Sacerdote. Gabriel não esperava Marishi devolver sua pergunta. Mas o garoto já conhecia o modus operandi do seu mentor. - A vida. – Respondeu. 223


- Correto. E por que ela não é o mais importante? Aquele não era o momento mais oportuno para uma revisão sobre o que aprendera a respeito da Ordem Zahran, mas ele decidiu entrar no jogo. - Porque o conhecimento está acima de tudo. – Gabriel respondeu, com medo de errar. Contudo, Marishi lhe fez um sinal para prosseguir. - Para os Zahranianos, nada pode comprometer a busca pelo conhecimento. Inclusive suas próprias vidas. O Sacerdote balançou discretamente a cabeça, enquanto o brilho da água refletia em seu cocuruto. No princípio, como ensinara Marishi, os Zahranianos estavam dispersos em diversos grupos heterogêneos, onde todos ambicionavam a liderança da Ordem. Ao se instalarem em Tevohan, se iniciaram conflitos entre eles mesmos, até dentro de próprias facções formadas na Ordem. Os assassinatos dos líderes desses núcleos se intensificaram, e Tevohan se viu a beira de uma guerra civil. Então, um dos grupos mais poderosos, os dos antigos Sacerdotes da espécie dos Syhrins, temendo uma barbárie ainda pior que a ocorrida com os Padres em Kamonih, criaram o Manifesto Dourado41,

41

O Manifesto Dourado foi criado há aproximadamente 200 mil anos yuranshianos, e consistia no que consideramos a profissão de fé da Ordem Zahran. Tal Manifesto foi uma tentativa de encerrar os conhecimentos adquiridos pela Ordem até então em uma doutrina oficial. Diferente da Ordem Akehran, que diverge da Ordem Harashi apenas em suas práticas, a Ordem Zahran passou a contrastar não apenas em suas práticas como também em sua Ciência e crenças. Para os Zahranianos a única coisa que era real e palpável a nós era o Conhecimento, e este fetiche se tornou o ideal a ser atingido por seus membros. Mas para isso, era preciso se estabelecer a “igualdade entre as Mentes”, e a “irmandade entre as inteligências”, os princípios centrais estabelecidos pelo Manifesto que vigam até hoje. Todos os Magos passaram a ser iguais entre si e possuíam a mesma função na construção e descoberta dos saberes oculto dos Universos. Entretanto, um único Mago diferia dos demais: o Juiz da Ordem, que era considerado o mais sábio e poderoso dentre eles. Mas nem sempre a Ordem foi governada por um líder supremo. Em seus primeiros ciclos, a Ordem Zahran era regida pelo Tribunal dos Nove, um conselho composto por nove dos Magos mais poderosos, geralmente da espécie dos Syhrins. Mas devido a conflitos internos, o Tribunal se dissolveu alguns ciclos após a promulgação do Manifesto. Na realidade, a divulgação do Manifesto foi um devastador golpe arquitetado

224


uma regra que é usada na irmandade até hoje, onde matar um Mago é o pior crime que pode existir, pois em sua Mente pode estar guardado um saber inimaginável. A tranquilidade do Sacerdote transparecia uma certeza que era refletida em seus olhos vívidos. - Exato. Era o que já imaginava... – Disse Marishi, sorrindo consigo mesmo. - Aonde você pretende chegar com... - Aquele Mago tirou sua própria vida porque ele possuía uma informação que não poderíamos saber, caso fosse capturado. – Marishi continuou – Algo que se soubéssemos comprometeria os planos da Ordem Zahran. Gabriel então percebera que Marishi não estava lhe perguntando algo, mas usando suas respostas para chegar a uma conclusão. - Então os Zahranianos estão planejando algo? – Retrucou. - Antes eu apenas suspeitava, agora tenho certeza. Tirar a vida de um Mago é o maior dos crimes dentro da Ordem, inclusive sua própria vida. Mas sua única exceção é para se obter ou proteger algum conhecimento oculto. por um Mago syhriniano chamado Elah Ve’eyan. Com o poder conquistado pela publicação do Manifestado, ele se autointitulou Juiz Supremo da Ordem, e após conflitos posteriores, revelou-se de fato o mais poderoso Mago da Ordem até então. A partir disso, a única coisa que diferenciaria os Zahranianos entre eles era a capacidade de superarem a própria sabedoria, fazendo com se reverenciassem mutuamente pelos seus saberes e poderes adquiridos. E sendo o Juiz Supremo o Mago mais sábio da Ordem, ele seria considerado como aquele que se encontrava mais próximo de atingir a Grande Finalidade – fenômeno este comum às nossas doutrinas e que somente poderei explicar mais à frente, para manter a cronologia da narrativa. No mais, só posso adiantar que este ideal proposto pela doutrina Zahraniana acabava reconhecendo o Juiz da Ordem como um verdadeiro deus em potencial, Senhor do Universo Local de Navadoh, e por que não, de outros universos. Isso obviamente iria criar um deturpado culto à personalidade do seu líder com consequências que repecurtiram algumas vezes não só em nosso mundo, como também em Yuransha. Desse modo, o Manifesto tornou-se uma regra de vida seguida até hoje pelos Magos, mas suas origens se encontram em um episódio cósmico que nem todos os Zahranianos ou Harashis conhecem. Entretanto, só poderei tratar devidamente desse fato em outros livros.

225


- O que vamos fazer? - O Quórum se reunirá para discutirmos o que está acontecendo, mas antes precisamos fazer algo mais importante. - O que, Marishi? - Cuidar da garota, claro. – Disse Marishi, olhando para Sofia, que apenas observava aquela cena calada. – Haron, leve Luhan e Shylon até a sala do Quórum. Shimah já está a caminho do Laboratório para preparar os equipamentos. – O irmão de Shimah fez um sinal positivo para o amigo. - Os Sumo-Sacerdotes já devem estar chegando para a Sessão que convoquei nesse momento. - Ótimo. Quando terminar minha tarefa me juntarei a vocês. – Disse Marishi. Após se despedir do amigo, o Sacerdote caminhou até uma coluna onde Sofia estava encostada. A Mente da jovem italiana ainda vagava pela imensidão dos átrios do Santuário, até que Marishi a trouxe de volta à realidade. - Desculpe deixá-la isolada por tanto tempo. – Disse o Sacerdote, dando um breve susto na garota. – Meu nome é Marishi Helamen. Eu sou um dos Sacerdotes da Ordem Harashi, e também pai de Shylon. Sofia apenas concordou com a cabeça, timidamente, sem saber o que falar. - Seja bem vinda ao Santuário da Ordem Harashi... Luhan e Shylon devem ter lhe falado um pouco sobre as origens da Ordem, sobre quem somos, e principalmente, o porquê de trazermos você aqui. Como sabe, nós a vigiamos há um bom tempo por conta de certas habilidades que você possui desde que era uma criança, mas creio que não se recorda delas... Conduzindo a jovem pelo longo corredor, Marishi se distanciou dos outros três, que agora caminhavam na direção contrária. Após cruzarem toda a extensão do átrio em que estavam, Haron conduziu os garotos até uma ala bastante iluminada, após descerem uma longa escadaria. Após cruzarem aquele corredor, o trio chegou a uma grande rotunda. Sete fontes jorravam uma cristalina água que voltavam a subir pelas translúcidas paredes, como se fossem puxadas por uma força gravitacional invertida. Cingindo as cristalinas paredes do recinto, grossas 226


colunas formavam um círculo no meio daquele imenso vão. No teto, uma cúpula dourada refletia algo que Gabriel enxergou no mesmo instante. Olhando ao seu redor, notou que as paredes, por sua vez, pareciam emitir um brilho natural, refletindo-o na abóbada, como se aquele fantástico domo tivesse sido esculpido dentro de uma imensa caverna. Gabriel

não

sabia

onde

estava,

e

Haron,

adiantando-se

aos

pensamentos do garoto, satisfez sua curiosidade. - Este é o coração do Santuário. Estamos dentro da montanha de cristal, a base rochosa que sustenta a grande pirâmide e todo complexo. - Estamos dentro da terra? – Perguntou Gabriel, incrédulo. - A uma boa profundidade. – Disse o Sacerdote. – Mas agora iremos apenas subir. O Sacerdote se aproximou de um dos nichos gravados naquela simétrica estrutura rochosa. E seguindo o Mestre, Gabriel adentrou em uma das plataformas que ali existiam. Após desaparecerem para surgirem ao destino desejado, os olhos de Gabriel se contraíram com a forte luz que inundou o novo recinto circular em que se encontravam. O transportador de onde saíram na verdade era um dos grossos pilares que circulavam aquele luminoso hall. Olhando com cuidado, Gabriel jurou que enxergou uma nuvem além do painel de vidro que estava a sua frente, como se cristais flutuassem no horizonte, dispersos, em meio às nuvens. Só então, para sua surpresa, percebeu que ele estava fitando alguns dos arranha-céus da distante cidade de Nemashi. Naquele momento, eles se encontravam no topo da pirâmide do Santuário. - Meu Deus... – Disse consigo mesmo, admirando a paisagem. Mas logo aquela visão foi interrompida pelo Sacerdote. - Luhan, venha. Ainda não chegamos à Sala do Quórum. Haron o tirou do seu transe pessoal, chamando-o de outra grossa coluna no centro do hall, onde no seu interior, Shylon já aguardava o amigo. Ansioso, Gabriel adentrou novamente naquela última plataforma, que, ao invés de materializar os ocupantes em outro espaço, se elevou suavemente até o patamar acima deles, o último nível do Santuário. 227


E ao chegar ao seu derradeiro destino, o jovem foi arrebatado pelo imponente ar de sacralidade que o recinto emanava. Por um breve momento, jurou que podia sentir a presença de algo que só poderia descrever como divino. A potente aura vivificante fez o garoto pensar que havia alcançado o Paraíso. Naquele lugar, a luz parecia preencher cada espaço existente, revelando os traços daquela magnífica arquitetura. As inclinadas colunas que sustentavam o grande salão formavam sete paredes que convergiam em um único ponto circular no teto. Preenchidas por grandes vitrais translúcidos, suas formas triangulares desenhavam o pico da pirâmide de sete lados do Santuário Harashi – sua principal construção –, que abrigava o lugar onde Gabriel se encontrava agora: A Sala do Quórum dos Doze. A nobre atmosfera que todos sentiam – explicara Shylon rapidamente – devia-se à grande estrutura de cristal que se assentava sobre o cume da pirâmide. Aquela pedra sagrada estava posicionada ao centro da construção, assim como a base montanhosa que sustentava o Santuário. Shylon lhe falou que assim, como em todo o resto da fortaleza, o cristal servia para não só purificar aqueles que estavam no recinto, como também potencializava as energias e pensamentos emanados durante as reuniões. Daí, a sublime sensação que Gabriel sentiu ao entrar na sala sagrada. Mas o que de fato chamou a atenção do jovem Discípulo foi uma imensa mesa circular que o jovem não parava de fitar desde que chegara. A grande estrutura parecia emergir do chão, como se abraçasse aquele salão, ao mesmo tempo convergindo para seu próprio interior. Gabriel não conseguia ver, mas havia uma grande fenda ao centro daquela távola. Ao passar a vista pela mesa, vislumbrou algumas figuras que se projetavam ao longo dela. Dez no total, contou. Os homens e mulheres ali presentes eram Sumos Sacerdotes Harashis, os mais nobres e experientes membros da Ordem. Tendo ciência do lugar onde se encontrava, um leve incômodo passou a percorrer seu 228


corpo e sua Mente, fazendo-o sentir timidez e ao mesmo tempo admiração por estar ali. O garoto mal teve tempo de inquirir Haron, quando foi surpreendido por um dos homens ali presentes, que se erguia de sua poltrona e dirigia seu sereno olhar para onde ele se encontrava. Em seguida o velho se curvou ante os Harashis. - Vah Shelan, meus jovens Discípulos. Meu nome é Zabriah Sevanish. Sejam bem vindos à Sala do Quórum. – Disse o gentil Sacerdote de longos cabelos brancos. – Sentem-se, fiquem à vontade. Podemos estar no topo do Santuário, mas aqui todos nós somos iguais. Sua branda voz era um sincero convite para que Gabriel e Shylon se juntassem aos Sumo-Sacerdotes. Haron sentou-se em uma das poltronas ao redor da mesa, e os garotos logo procuraram ficar ao lado do mestre. Aquilo era uma verdadeira novidade para Gabriel, que pela primeira vez iria participar de uma sessão do Quórum dos Doze.

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DOCUMENTO 038 O PLANO OCULTO O domo no qual Gabriel se encontrava era tão amplo quanto os demais ambientes do Santuário. A diferença era que ali se reunia o mais importante conselho da Ordem Harashi: O Quórum dos Doze. Formado por doze dos inúmeros Sacerdotes da Ordem, aquele círculo místico, ao contrário do que parecia, não era restrito aos demais membros da irmandade. Na prática, o Quórum era um fórum onde os Sacerdotes consagrados poderiam participar a qualquer momento. A rotatividade de seus membros acontecia a cada estação, de modo que todos os Sacerdotes da Ordem, em algum momento,

se tornariam temporariamente Sumo-Sacerdotes. A

hierarquia dos membros do Quórum, porém, era meramente administrativa. Dentro daquelas sete paredes discutiam-se os mais variados assuntos: Desde as missões mais simples a serem realizadas pela Ordem, até problemas de ordem política e social. Mesmo com a importância das matérias ali discutidas, qualquer membro da Ordem podia participar das reuniões como ouvinte e conselheiro dos Sumo-Sacerdotes, daí as filas de poltronas que circundavam a grande mesa. Entretanto, o voto e as decisões finais cabiam somente aos doze membros do Quórum. O número par não possuía apenas um caráter simbólico que remetia aos doze Harashis que conduziram a reconstrução da Ordem e da Constelação após a mais grave crise política do Sistema. Durante as sessões era necessário se chegar a um consenso, e para que isso acontecesse, era preciso que a maioria dos Sacerdotes concordasse com as posições ali apresentadas. Em algumas pautas, era necessário que todos os membros do Quórum chegassem a um comum acordo. Por isso, em vários episódios na história da Ordem, houve sessões que duraram dias, até ciclos inteiros para que os Sacerdotes alcançassem o tão esperado consenso. Embora o assunto que esta sessão trataria fosse de fundamental importância para a Ordem, ainda assim, a pauta do dia possuía um 230


conteúdo “leve”, comparado a outras reuniões que aquela sala presenciara em sua história. Tanto o passado quanto aquele momento fazia com que o ambiente aspirasse à reverência, e aqueles cordiais Sacerdotes percebiam que Gabriel de alguma maneira já se sentia à vontade ali, sentado em uma das cadeiras ao redor da távola. O Sumo-Sacerdote de longos cabelos brancos fez um movimento com a mão, pegando Gabriel de surpresa, quando uma branda iluminação brotou do piso, percorrendo também toda a extensão da mesa. Um grande holograma preencheu o círculo vazado ao centro da sala, projetando a imagem do antigo emblema da Ordem Harashi. O círculo azul pairava no vazio daquele espaço. Dentro dele, um heptagrama na mesma cor tocava suas curvas, onde, dentro de cada triângulo, se encontravam inscritos um dos sete princípios da Ordem, segundo seus ideogramas em Korah. Ao centro, se destacava uma majestosa estrela de sete pontas em formato de sol, com seus raios voltados para cada princípio, como se quisesse apontar os caminhos que levam à tão incompreensível e intangível Verdade. Aquele conjunto geométrico era uma síntese dos ensinamentos da Ordem, assim como um sucinto mapa do Santuário, que fora construído segundo o desenho do emblema Harashi. Gabriel assistia aquilo maravilhado, quando o Sacerdote Zabriah, afastando seus longos cabelos brancos dos ombros, rompeu novamente o silêncio, falando solenemente. - A Sessão do Quórum está aberta. Pronunciem-se. Do lado oposto da mesa, uma Sacerdotisa de pele negra e vívidos olhos verdes voltou sua potente voz para Gabriel e Shylon. - Eu, Sacerdotisa Nishale Potehlyon, tomo a palavra. – Disse a bela mulher, solenemente. O velho Sacerdote mandou prosseguir. – Creio eu que o Sacerdote Haron já tenha lhes explicado o motivo dessa Sessão. Os garotos apenas concordaram com a cabeça.

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- Nós já estamos a par da situação que aconteceu em Yuransha. – Continuou a Sacerdotisa. – Mas precisamos que os fatos sejam registrados a partir da visão dos verdadeiros participantes deste acontecimento: Vocês dois, Shylon e Luhan. Alguém deseja perguntar algo aos garotos? O Sacerdote de cabelos brancos se levantou novamente. - Sim. – Disse ele, demonstrando interesse. – Contem-nos, qual a razão de vocês terem sido perseguidos pelos Magos em Yuransha? Conhecedor da gênese sobrenatural dos acontecidos, e dos protocolos de registro das Sessões do Quórum, Shylon se dispôs a compartilhar suas lembranças com os Sumo Sacerdotes, narrando detalhadamente cada passo que ele e Gabriel deram. Das tentativas de contatar Sofia, até culminar no intenso confronto na periferia de Milão. Os Sacerdotes ouviam calado o jovem garoto, enquanto refletiam sobre o episódio. - Você disse que dialogaram brevemente com um dos Magos. – Replicou o velho Sacerdote. – Quem era ele, e o que disse a vocês? Ao ouvir a pergunta, Gabriel sentiu-se impelido a responder, instintivamente projetando seu corpo sobre a mesa. - Estávamos assustados, senhor. Não sabemos quem eram, nem nos disseram seus nomes, mas formos forçados a nos defendermos e enfrentálos. Perguntamos a um deles: Qual são seus interesses no Livro? O Mago nos respondeu: A pergunta não é por que queremos o Livro, mas sim o que queremos do Livro. O Sacerdote concordou com Gabriel, mostrando que prestava atenção a cada palavra sua. O jovem prosseguiu. - Depois eles zombaram de nós, da Ordem, e falaram até sobre o meu planeta. Era como se eles o conhecessem, como se tivessem visitado-o alguma vez. Um dos Sacerdotes ali presente voltou sua atenção para aquelas palavras de Gabriel. Parecia especialmente interessado em ouvir mais sobre aquilo. - E o que lhe disseram? – Inquiriu o sereno homem de aparência ilustre, que mais lembrava um clérigo muçulmano, com sua pele parda e 232


uma generosa barba que tocava suas longas vestes brancas, contrastando com um distinto turbante preto que levava sobre a cabeça. - O Mago disse... – A lembrança daquele episódio ainda incomodava Gabriel. Voltando a se concentrar, o garoto continuou. – Ele disse... que a Ordem... -...

A

Ordem

Harashi

abandonou

Yuransha.

Disse

Shylon,

completando a voz do amigo que mal conseguia sair de sua boca. –... Ao contrário dos Zahranianos, que sempre tiveram interesse pelo pequeno planeta. Gabriel agradeceu com o olhar. O Sacerdote gesticulou para o jovem prosseguir. - Ele disse que vieram de um lugar distante. Mas havia outros que conheciam meu planeta. Outros Magos que abandonaram seus muros para servir a propósitos maiores. Que eram eremitas, homens santos em busca da Verdade. – Completou. - Interessante... – Disse outro Sacerdote, sentado ao redor da grande mesa. - Desculpe senhor, mas o que é interessante? – Perguntou Gabriel, acuado. O Sacerdote de longos cabelos loiros focou seus olhos no holograma luminoso do brasão da Ordem. -

Mesmo

após

tantos

ciclos

isolados

em

suas

fortalezas,

os

Zahranianos só consigam encontrar as ínfimas parcelas da Verdade que lhes são conquistadas nos lugares tidos por eles como sendo mais inferiores e que estão em quarentena. - Quarentena? – Perguntou Gabriel, estranhando aquela palavra. Percebendo a confusão de pensamentos na cabeça do jovem, Haron interrompeu. - Tenha paciência Luhan, esta palavra diz respeito a uma condição a qual o seu planeta está inserido em nosso Universo Local. Mas como já disse o Sacerdote Marishi: Com tempo e estudo você compreenderá. Shylon repetiu ironicamente aquelas palavras junto com Haron, como se já estivesse cansado de ouvir aquela típica frase de seu pai.

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- A propósito, eu tenho uma intervenção a fazer. Como o Sacerdote Marishi se encontra ocupado em outra tarefa neste momento, gostaria de expor algumas conclusões que ele tomou desse episódio durante uma conversa que tive com ele antes de subir para esta Sessão... Haron ainda falava, quando a atenção dos Sumo-Sacerdotes voltou-se novamente para a porta de entrada da Sala, de onde Marishi acabara de surgir. - Desculpem o atraso, mas prefiro comentar isto pessoalmente. – Disse o mítico Harashi, com seu sorriso no canto da boca. Haron sentou-se, balançando a cabeça e devolvendo o mesmo sorriso sarcástico a Marishi. Por quase uma hora, os presentes ouviram as reflexões de Helamen sobre o que acontecera. Gabriel, porém, já sabia de tudo o que o Sacerdote lhe contara há pouco tempo. Marishi expôs seus pressentimentos de que a Ordem Zahran vinha agindo secretamente no planeta Terra a mais tempo do que ele imaginava. Falou até da possibilidade dos Magos estarem ali não só há anos, mas décadas. Seus propósitos, assim como seus paradeiros, continuavam um mistério. Não só para Gabriel como também para aqueles Harashis havia uma série de questões a serem respondidas: Por que aquela obsessão dos Zahranianos pelo Livro de Ormoshi? E por que estariam tanto tempo em Yuransha? Marishi sabia que a importância conteúdo único no Livro dizia respeito a interpretação que o último Guadião tinha registrado em suas páginas. Porém, o Sacerdote não conseguia enxergar o que um cientista de Yuransha poderia ter acrescentado a um completo manual sobre o Universo. Aquele sublime conhecimento já era digerido diariamente entre os membros da Ordem Harashi e Zahran. Não havia mais nada de especial a ser adicionado àquela obra. A reunião prosseguiu em meio a mais perguntas do que respostas. Os Sacerdotes sabiam que suas dúvidas só seriam esclarecidas após muita investigação, e tinham certeza de que isso não aconteceria do dia para a noite. Muito menos naquele momento. 234


Após poucas interpelações de alguns dos Sacerdotes, o Documento da Sessão do Quórum foi selado pelos presentes – assim ele nunca mais seria alterado.42 Seguindo as práticas já conhecidas, o Documento foi protocolado nos Arquivos da Ordem, onde poderia apenas ser consultado apenas pelos Sacerdotes. Em geral, o conteúdo de todas as Sessões do Quórum era público, podendo ser consultados por qualquer um. Entretanto, algumas reuniões, como esta, requeriam certo sigilo até que o fato abordado não tivesse mais relevância. Estes relatórios secretos, por sua vez, eram guardados nos Arquivos Pessoais de cada Sumo Sacerdote como uma espécie de cópia de segurança. Essas câmaras, por sua vez, eram uma espécie de memorial pessoal que se encontrava nos subsolos da Biblioteca do Santuário. Assim, após todos os necessários trâmites, a reunião do Quórum dos Doze finalmente foi encerrada.

42

Este documento, que constava nos registros da Biblioteca da Ordem, possuía a sequência QD-11A298264-04, e fora assinado pelos Sumo Sacerdotes então presentes: Marishi Helamen, Haron Voorih, Nishale Potehlyon, Zabriah Sevanish, Shelan Krishima, Mazdeh Boham, Olamarum Kole’eman, Kahmas Lo’ovrindah, Zylvah Tirish, Pahzel Ko’orolan, Guimah Baharoh e Jinah Sohyan.

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DOCUMENTO 039 AS PROFECIAS PROGRESSIVAS Gabriel saiu do elevador ainda eufórico. Na sua cabeça, as lembranças da Sessão do Quórum se amontoavam em um redemoinho de pensamentos. Os diálogos travados entre os Sumos Sacerdotes pareciam ao mesmo tempo magníficos e confusos para o jovem garoto, que sentia como se houvesse retornado aos seus primeiros dias em Nemashi. Era muita informação para ele assimilar naquele curto momento. Shylon havia permanecido na Sala do Quórum para contar aos Sacerdotes mais detalhes da operação de resgate do Livro de Ormoshi. Enquanto isso, Marishi passeava com Gabriel pelo Santuário, para este absorver o denso conteúdo da reunião. Como o garoto continuava imerso em seu silêncio, o Sacerdote decidiu quebrá-lo. - Continuar calado não vai lhe ajudá-lo em nada. – Disse Marishi. - Desculpe senhor? – Perguntou Gabriel, sem esperar ouvir aquilo. - Não tenha receio em aprender Luhan. Pergunte o que você tanto anseia em saber. O Sacerdote não deixava escapar nenhuma inquietação da Mente de Gabriel. Dominando sua ansiedade, o garoto falou. - Durante a reunião eu ouvi vocês falando sobre as Profecias Progressivas... Mesmo se controlando, ele não conseguia formular seu raciocínio, e por um momento, hesitou em continuar o assunto. Porém, Helamen ordenou que o garoto prosseguisse. - Quando nós estávamos enfrentando os Magos... Eles também falaram sobre essas Profecias. Afinal, o que elas são? – Perguntou Cameron. Marishi conduziu Gabriel por uma das esplanadas do Santuário. Percorrendo aquele longo corredor de colunas que sustentavam uma das sete naves, o Sacerdote falou sobre um dos assuntos que mais estudara dentro da Ordem Harashi.

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- As chamadas Profecias Progressivas são um conjunto de revelações que surgiram no seu planeta, onde, em vários momentos na história, algumas pessoas ou grupos tiveram acesso a essas mensagens por diversos meios. Boa parte delas deu origem às várias religiões do seu mundo. – Disse o Sacerdote, envolvido no seu dom de ensinar. - E que revelações são essas? – Perguntou Gabriel, chocado. - Elas são incontáveis. Começaram a se manifestar desde que os homens do seu mundo desenvolveram a capacidade de comunicação em suas Mentes. Por isso elas se manifestam diretamente da fonte... Do pensamento. - Você quer dizer... - Elas somente se manifestam através de nossas Mentes. Sendo mais específico, as Profecias só podem ser transmitidas pelas Mentes daqueles que estão do outro lado para aqueles que estão do lado de cá, se é que me entende. Gabriel engoliu a seco. Ouvir aquilo era inquietante demais. - E como se dá essa transmissão? - De muitas maneiras. Uma delas, da mesma forma como eu lhe visitei pela primeira vez: Através de visões. – Por um breve momento, a imagem do primeiro encontro com Marishi tomou conta da mente de Gabriel. - Então somente aquele que recebe a mensagem pode ouvir ou ver quem as revela? - Perfeitamente. As visões se dão através da comunicação primordial do Universo, o contato direto entre as Mentes. Somente os receptores podem se ligar à Mente dos mensageiros. Por isso apenas os videntes podem ver ou ouvir os enviados, como você falou. Há vários registros dessas revelações em seu planeta. Embora muitos casos sejam fraudes grosseiras, surtos psicóticos ou delírios de pessoas que buscam apenas sentir o que acreditam, alguns casos alegados de mensagens recebidas são de fato reais. - Mas por que as pessoas as recebem? E do que elas tratam? - As Profecias são avisos. - Avisos? Sobre o que? - Sobre o nosso passado, presente e futuro. 237


- Eu sempre pensei que profecias eram visões apenas sobre o futuro. - Luhan, o tempo é apenas uma ilusão criada pelas nossas Mentes. O tempo que sentimos é uma progressão formada de muitos agoras. A cada segundo, você está vivendo um presente. A única diferença é que este presente é a concretização de um passado que você e muitas outras pessoas iniciaram anteriormente. O presente é uma rede de possibilidades. Aquelas palavras remoeram a cabeça de Gabriel. - Então por isso as Profecias são chamadas de Progressivas... – Disse Gabriel, enquanto se esforçava para seguir aquela explicação de Marishi. - Você aprende rápido... Elas são visões de possíveis futuros que podem, ou não, ocorrer, pois dependem do rumo tomamos no nosso dia a dia e tomamos em nosso passado. Por isso são chamadas de Progressivas, porque constituem uma verdadeira gama de possibilidades que a evolução do nosso Universo pode seguir. Nenhuma profecia é absoluta. Elas se constroem segundo nossas vontades. - Mas como podemos saber que essas profecias serão cumpridas? - O futuro é tão real quanto o presente que estamos vivendo agora. Ele apenas não existe ainda porque não foi inserido dentro da nossa realidade. Podemos evitar a consequência de algo que já traçamos no nosso passado, mas temos que saber como. Pois o sincronismo temporal sempre está em movimento, mas se nada fizermos, ele acabará nos atingindo, como está acontecendo agora. Basta abrirmos as portas de suas possibilidades para elas serem concretizadas. – Disse Marishi, olhando para o rosto de um espantado Gabriel. - O segredo da clarividência não está em adivinhar o futuro, mas compreender como o que fizemos no passado vai se encontrar com as nossas decisões do presente. A cabeça de Gabriel estava a ponto de explodir. Eram informações demais. Pensamentos demais. Os Harashis cruzaram uma das colunas, descendo uma pequena escadaria até chegar a uma série de nichos laterais na nave, no qual se encontravam os elevadores. – Sei que é muita coisa para você assimilar, mas agora você possui uma missão mais importante do que aprender sobre essas coisas. – Disse Marishi, enquanto a luminosa porta do elevador se abria. 238


- Qual senhor? – Perguntou Gabriel. - De cuidar da nossa mais nova hóspede. – Disse o Sacerdote adentrando no elevador com o garoto.

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DOCUMENTO 040 O NOME DA SABEDORIA Voltar ao Centro Hospitalar da Ordem trouxe à Mente de Gabriel as lembranças de seus primeiros dias em Nemashi. Mas dessa vez o jovem Discípulo não estava lembrando de seus primeiros momentos dentro daquelas paredes. Agora se enxergava imerso em dúvidas de como era possível transferir suas memórias para um novo corpo que acabava de ser clonado. Primeiro ele, e agora Sofia. Era demais para ele, mas para aqueles Sacerdotes não passava de mais um dia na rotina daquela sociedade. Imaginava quando estudaria e entenderia aquela fantástica ciência, e se algum dia seu mundo seria capaz de obtê-la. Cruzando um longo corredor de paredes brancas revestidas por um material que mais parecia um plástico fosco, Gabriel chegou ao Centro de Repouso do Complexo Hospitalar. A única cama ocupada não lhe deixava dúvida sobre quem nela estava. Sentada ao lado da cama, enquanto conversava, a Sacerdotisa Yonnah pousava suas alvas mãos sobre a cabeça de Sofia, em seguida descendo lentamente pelo corpo e repetindo o movimento, como se fosse um scanner. Voltando-se para Helamen que acabava de entrar no recinto com Gabriel, logo pôs a falar com o companheiro Harashi, após comprimentar-lhe segundo a tradição. - Vah Shelan. Examinei suas funções vitais, todas estão estáveis. Por mim ela já pode sair daqui. – Disse a Sacerdotisa syhriniana enquanto o ham’aryeno lhe devolvia a saudação. - A Minha Paz a você também, Yonnah. Estou satisfeito por ouvir isso. Se você a libera, eu não tenho o que contestar. – Respondeu Marishi, em meio a um sorriso. Gabriel se aproximou da garota - Você está bem? – Perguntou mentalmente. Sofia olhou para ele, não conseguindo segurar sua exaltação.

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- Isso aqui é um sonho... Ainda não consigo acreditar! – Disse, agitando-se no leito. Gabriel também não se conteve ante a surpresa de ver a garota se comunicando perfeitamente com ele no idioma nemashiano. - Ela está falando... - Claro... Assim como você, o Korah também foi registrado na Mente dela. – Disse Marishi apontando para sua própria cabeça em seguida voltando-se para a garota. – Além do mais, é bom você saber que aqui em Nemashi usamos nomes próprios de nossa cultura. Como sabe, Luhan é do seu planeta, mas na realidade seu nome é Gabriel, Gabriel Cameron. - Gabriel? Mas por que você é chamado de Luhan? – Perguntou a jovem, achando aquele nome no mínimo estranho. - É a tradução do meu nome em Korah... Eu gostei. – Disse Gabriel, dando de ombros. - E do mesmo modo como Gabriel não mais é chamado pelo seu nome, você também terá uma nova identidade no nosso mundo. – Disse Marishi. - Meu nome possui outra pronúncia em Nemashi? – Perguntou, confusa. – Marishi olhou para a garota, concordando com a cabeça, em meio ao seu tradicional sorriso. - Exatamente. Em nosso idioma, a palavra Sofia é traduzida como Branah. – Disse Marishi. - Branah... – A garota repetiu consigo mesma. Branah – Sabedoria. A tradução do nome de Sofia para o Korah era de fato estranho. O nome que ainda achava diferente, logo fez a garota se empolgar. Repetindo o nome, ela logo se levantou do leito, para assombro de Gabriel e do próprio Marishi. Aquele nome parecia ter recobrado as forças da menina que há pouco tempo havia passado por uma “cirurgia de memórias”, transferindo suas memórias para um clone que viveria sua vida em Yuransha. Da mesma forma que a garota, Gabriel refletia sobre o nome. Mais uma vez ocorreu-lhe, que, assim como o seu, o nome de Sofia era falado pelos Sacerdotes no Korah. Ou seja, quando conversavam telepaticamente com ela, a garota ouvia o seu nome como era chamada na Terra, mas na

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comunicação entre as Mentes, o que se manifestava era o sentido metafísico da palavra, e não a forma como ela era pronunciada. Mais uma vez ocorreu um pensamento incômodo na sua cabeça. Se a telepatia era a forma originária da comunicação entre as Mentes, existia algum tipo de “idioma mental”? Alguma “língua do Universo”? Aquelas breves reflexões alcançariam um patamar que Gabriel jamais imaginara cogitar. Mas naquele momento, o garoto não conseguia ir muito além. Até que ponto o mundo material em que vivia não era uma projeção grosseira de uma existência muito mais sublime? Aquele não seria o momento, mas ao longo dos ciclos que passaria no Santuário o garoto aprenderia muito sobre isso e outras coisas. Mas suas divagações foram drasticamente interrompidas enquanto observava a garota se olhar no espelho à frente da cama quando Marishi lhe tocou o ombro. - Luhan, agora temos que sair. – Disse Marishi, voltando-se para Sofia. – Vamos deixá-la a sós para que troque suas roupas. A Sacerdotisa Yonnah providenciará o que vestirá a partir de hoje. Quando terminar, ela a levará para conhecer o Santuário. - Minhas roupas não serão iguais as de Luhan, não é? – Disse a garota apontando para as roupas escuras que o jovem vestia, que mais parecia que ele saíra de um velório. - Eu gosto de preto, algum problema? – Gabriel protestou, cheio de orgulho. Enquanto os dois Harashis se retiravam, Yonnah entrou no quarto guiando com a mão uma espécie de arca que flutuava no ar. Sofia não conseguia tirar o olho daquela caixa flutuante, claramente espantada. - O que tem aí dentro? – Perguntou a garota, espantada. - Nada do que você já não tenha visto no seu planeta. – Disse a alva mulher enquanto deslizava a mão sobre o cubículo branco. Imediatamente, a tampa se abriu, revelando um conjunto azul que mais lembrava um vestido meticulosamente dobrado dentro da caixa metálica. Sofia olhou para aquela vestimenta, enquanto sua mão tocava o leve algodão, sentindo a textura enquanto retirava aquilo que seriam suas novas roupas naquele novo mundo. 242


DOCUMENTO 041 A DISCÍPULA SUPERA O MESTRE Algumas semanas haviam se passado em Nemashi. A rotina dos Sacerdotes já havia conquistado o coração de Sofia. Quando ela foi levada àquele mundo, jamais imaginou o que iria estudar e aprender a partir de então. O Livro de Ormoshi havia sido guardado por Marishi e os atuais membros do Quórum dos Doze para estudos posteriores sobre seu conteúdo, mas isso não impediu que a jovem adquirisse uma cópia das Escrituras do Princípio para ler em seu tempo livre. Bem mais animada do que Shylon e Gabriel, que não eram tão disciplinados para o estudo, a jovem garota, agora iniciada na Ordem, passava pelo menos metade do seu dia na Biblioteca, e quando não estava lá, sempre tinha um Tahamalen em seu quarto, pronto para ser lido. Junto com essas leituras adicionais, ela tinha que cumprir com a carga horária das aulas ministradas pelos Sacerdotes sobre diversos assuntos. Em algumas dessas aulas, os Discípulos mais avançados também compartilhavam de suas experiências, ensinando aos novatos da Ordem. Nesse dia, os escolhidos foram Shylon e Gabriel, que por iniciativa de Marishi dariam uma aula para sua turma iniciante na Escola de Filosofia Harashi, presidida pelo Sumo Sacerdote Zabriah Sevanish. Empolgado, ao centro da sala, Shylon explicava sobre a natureza das relações sociais. Mais precisamente sobre as teorias acerca da evolução do comportamento nas sociedades. -... O princípio básico da antiga filosofia Harashi é que nós somos livres por natureza e temos responsabilidades morais a serem observadas. Todos os atos que praticamos repercutem de alguma forma em nós mesmos e ao nosso redor. Somos seres curiosos, pois há uma centelha em nossas Mentes que nos impele a buscar o Conhecimento. Há uma natural busca não só de autosuperação como também de superação entre nós. Deveríamos buscar a sabedoria e crescimento pessoal pela experiência, mas a única coisa que buscamos é conhecimento para mostrarmos que somos superiores ao outro, que sabemos mais do que o outro, que podemos mais do que o 243


outro. E este natural desejo de autosuperação é o que acaba gerando os conflitos mais irrelevantes até a uma guerra que poderá destruir um sistema inteiro. O conflito é algo inato à nossa natureza e um dos pressupostos para a nossa evolução. Somos seres egoístas desde o nascimento. Só aprendemos a coexistirmos e construirmos nossas sociedades a partir do conflito de ideias e comportamentos. No mais, todos nós temos ambições tão ocultas que às vezes só nos são reveladas em situações extremas. Somente sabemos quem somos quando somos quando precisamos fazer escolhas. - Discordo Shylon. – Disse Sofia, levantando a mão, enquanto os demais alunos rompiam o silêncio da sala com breves conversas paralelas. - Por que você acha que nossa natureza é competitivista? Os filósofos de nossos mundos concordam que tudo o que fazemos tem por objetivo a felicidade. Mas, mesmo a felicidade sendo uma experiência essencialmente pessoal, também está atrelada a uma necessidade de relação com o próximo. Para garantir a continuidade dessa relação é preciso que se estabeleça um respeito mútuo, e não vejo nessa “competição natural” algo que possa manter a paz ou evoluir de alguma forma uma sociedade como a nossa. - Não conheço os filósofos do seu mundo, mas vejo até mesmo nossa ânsia por conhecimento como uma competição necessária à construção do saber e descoberta da Verdade. Sem o interesse em superar o conhecimento do próximo não podemos descobrir o que existe além dele. Cabe a nós, decidirmos se vamos buscar esse conhecimento por meios pacifistas, como nós Harashis, ou por meios violentos, como os Zahranianos ou os Padres de Kamonih. Mas em ambos os casos esse conflito é inevitável. Assim como suas naturais consequências, que podem ser uma simples discussão entre dois indivíduos ou o início de uma devastadora guerra entre mundos. - Se somos pacifistas ou violentos, isso se deve às nossas atitudes pessoais, mas há certas coisas que se não desenvolvermos em nossas consciências, acarretará a nossa ruína.

Durante as idades iniciais de

qualquer mundo, a competição é essencial ao progresso de uma civilização. Mas à medida que a evolução dos seus habitantes prossegue, a cooperação torna-se cada vez mais necessária. Nas civilizações desenvolvidas, a cooperação é mais eficiente do que a competição. O homem primitivo é 244


estimulado pela competição. A evolução primitiva é caracterizada pela sobrevivência do mais apto biologicamente, mas as civilizações posteriores somente evoluem através da cooperação inteligente, por um espírito de fraternidade compreensiva e pela irmandade entre seus membros. - Isso eu já sei, mas você ainda não me respondeu: Se não deve haver competitividade, como poderemos evoluir? – Perguntou Shylon, logo sendo cortado pela garota. - Deixe-me continuar... Nesse momento centenas, talvez milhares de pessoas aqui em Nemashi possam estar brigando umas com as outras. Mas por quê? Por quem? Pelo o que? Pela falta de visão da irracionalidade de seus mais íntimos desejos? Qualquer conflito é puramente irracional, inclusive a competição, seja ela intelectual, econômica ou de qualquer natureza. O surgimento da fraternidade genuína significa que foi alcançada uma evolução social na qual todos os homens se satisfazem em carregar o fardo uns dos outros, não a provar quem é capaz de carregar tais fardos ou superar tais problemas, ou capaz de ser mais sábio ou mais poderoso do que os outros. Nessa situação, apenas uma linha de conduta torna-se capaz de garantir a evolução plena dessa sociedade: a adoção de uma regra de respeito mútuo, uma “regra dourada”. Basta que exista esse princípio na Mente das pessoas, todas as leis locais e costumes caem por terra. - E no que você baseia isso? - Nas Escrituras do Princípio, nos estudos de outros Sacerdotes, e nas minhas convicções. Construímos nossa personalidade de acordo com a interação com o nosso meio, nossa cultura, e nossas crenças. Mas quando o homem acaba com os problemas que criou, tudo isso perde sentido, e ele passa a se preocupar com os verdadeiros problemas que vem da natureza de sua própria Mente. E essa é a base da sociedade que se estabeleceu em Nemashi, baseada exclusivamente no respeito mútuo, e alimentada a partir desse modo único de promover esse tipo de educação em cada um de seus habitantes, ensino que estamos recebendo aqui e agora. A educação foi por muito tempo doutrinária, militarista, exaltadora do ego e buscadora de um sucesso baseado nessa autosuperação social, como ainda acontece em meu mundo. Mas aos poucos isso evoluiu, principalmente aqui em Nemashi. A 245


educação passou do controle de um clero conservador para filósofos e cientistas. A educação se tornou algo inato à nossa natureza e não atraleado a trabalhos que nós mesmos criamos e nos submetmos. Essa nova educação nos transformou em seres livres, líderes de fato, com a consciência de que a filosofia, a busca pela sabedoria, se transformou na principal razão do progresso de nossa sociedade. - Sim, passamos a nos preocupar com o verdeiro desenvolvimento de nossas Mentes, e com isso ganhamos sabedoria, conhecimento, poder... E não podemos negar, hoje mais do que nenhuma outra sociedade nós temos isso. Eu, você, Luhan, todos aqui, temos essa força que outros não têm, como em seu planeta, Yuransha. Nós temos uma força que muitos não são capazes nem sequer de conceber, quanto mais de desenvolver. - Eu tenho uma força, Shylon? – Perguntou a garota, em um leve tom de ironia. – O que para você é força? Para você a força é associada à dominação. Mas você não devia crer na força como um “poder” sobre outras pessoas, mas sim como uma sincera vontade pela Justiça. E Justiça significa igualdade, honestidade, combater a miséria, as desigualdades, a violência. Isso é o que deveríamos chamar de força. E é essa vontade de buscar tais ideais que nos movem a concretizá-los, a realizar verdadeiros milagres, como nossa sociedade, quando milhares de mundos desabam pelo egoísmo e esse falso desejo de superação. - Desde quando ela virou filósofa? – Perguntou Gabriel, cochichando no ouvido de Shylon. - Calado. – Respondeu, cortando o amigo. - A Mente do homem busca a sua evolução, mas a intolerância e ignorância o transforma facilmente em um animal. Quando percebemos pelo que falamos, pensamos e agimos, vemos o que de fato é fruto de nossa Mente evolutiva e o que é resquício de uma primitiva cultura competitivista que apenas trouxe guerra e destruição a esse mundo. Se somos radicalmente pacíficos é justamente por isso que Nemashi é a sociedade mais evoluída do nosso Universo Local. Então lutemos para não perdermos essa grande conquista alcançada pela evolução de nossas Mentes.

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A turma irrompeu em uma sonora salva de palmas, enquanto Sofia apenas sorria de satisfação. Naquela sala existiam duas pessoas que não gostavam quando suas ideias eram contrariadas. A primeira estava ao centro, a outra, continuava em pé observando a garota com um certo orgulho silenciado. - É Shylon, temos que admitir, ela é muito inteligente e está se superando. Temos que reconhecer, precisamos estudar mais. – Disse Gabriel, dando de ombros, enquanto o filho de Marishi não acreditava que Sofia fosse capaz de realizar aquele discurso. - Isso não me importa. Como ela consegue aprender essas coisas em tão pouco tempo? Isso não é inteligência, o que ela faz ainda não tem nome. - Não, meu amigo, tem sim, e está justamente em seu nome. É algo ainda não possuímos: Sabedoria. – Disse Gabriel, dando uma tapinha nas costas de Shylon. A única coisa que lhe restou foi rir consigo mesmo diante da indiscutível sagacidade da jovem Harashi. *** No complexo de templos escavados nas gélidas rochas de Tevohan, o homem de confiança de Sarahnel conversava com seu líder sobre os últimos acontecimentos. Inclinado ante uma imagem luminosa do Juiz da Ordem projetada do chão, Lakahz se mostrava visivelmente irado pelo inimaginável desfecho daquela missão dada como certa. Já Sarahnel, em sua habitual frieza, apenas ouvia as denúncias de um Arquimago insandecido pela grosseira falha de seus subordinados. - Não consigo conceber como três crianças foram capazes de deter os nossos irmãos. - Atrasaram eles, Arquimago. Quem os derrotou foram os Mestres Harashis. – Disse Sarahnel, de pé, em frente à luminosa projeção. - Não importa! Perdemos uma oportunidade única graças àqueles vermes. A incompetência deles foi o mérito de suas mortes.

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- Não devemos nos precipitar, pois a única coisa que perdemos foi uma oportunidade. Enquanto não for destruído, o Livro sempre estará ao nosso alcance. - Como consegue permanecer tão calmo quando falhamos em uma missão tão simples? - Não falhamos Lakahz. Agora o Livro não está mais vagando por aí, está seguro no Santuário de Nemashi, e de lá não sairá. - Está em um lugar que não temos acesso. Agora os Harashis poderão estudar o Livro, descobrir seus segredos para nós. - Lakahz, por que você se preocupa tanto? Onde está a sua fé em mim? Já disse, o Livro estará em nossas mãos. Esses garotos... – Disse Sarahnel, suspirando. – Eles são a chave para conseguirmos o Livro... - Como teremos acesso ao Livro a partir deles? - Não Lakahz, não teremos. Eles virão até nós. A curiosidade deles será o guia de sua desgraça. - Senhor, eles são apenas crianças... - Mas possuem características que muitos de nossos irmãos não têm. A ambição é um dos caminhos que levam ao Conhecimento. E cada um deles possui uma grande ambição dentro do Santuário. Eu sinto isso, Arquimago. - Você acha que eles seriam capazes de trair a Ordem? - Todos ali são sucetíveis. O caminho da corrupção não é a dúvida, mas a certeza. E enquanto eles estiverem certos do que desejam, o Livro de Ormoshi virá até nós. – Disse Sarahnel, em meio à imagem trêmula. Lakahz concordou com o implacável Juiz. Em meio àquela conversa, o Arquimago Zahraniano subitamente ergueu-se do chão, ouvindo um longínquo chamado em sua Mente. - Ó Magnífico Juiz, devo retornar imediatamente a Yuransha. A essa altura eles devem estar sentindo minha ausência. - Você está cumprindo muito bem com a sua missão, Lakahz. Volte, e junte-se a eles, como também aos nossos irmãos. Boa sorte, Arquimago. O Zahraniano se curvou ante à imagem, mas antes que pudesse andar, foi interrompido novamente pela projeção.

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- Lakahz, não subestime os pequenos Harashis. Eles podem ter um potencial maior do que o seu dentro dessas montanhas. – Disse o mítico Zahraniano, encerrando a conversa. Com o fim da transmissão, o Mago deu às costas, rumando para a escuridão além do arco de saída daquele recinto que se assemelhava ao orgulho que agora sentia, grande e vazio.

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DOCUMENTO 042 A REDE INVISÍVEL Em um determinado dia, um jovem Harashi vagava sem rumo pelos jardins do Santuário. Em sua cabeça, milhares de pensamentos se misturavam com suas obrigações que teria ao longo daquele dia. Estava imerso em suas mais profundas questões e anseios. Como que perseguido por uma sombra, o jovem acelerou seus passos, até que por instinto, se virou para mais uma vez voltar a encarar um sempre sereno Marishi. - Por que você ainda acha que cruzará com alguém que não seja um Sacerdote aqui no Santuário? – O Sacerdote perguntou com o seu sorriso de sempre. - Eu não paro de pensar nisso desde que tivemos aquele indesejável encontro no meu planeta. – Disse Gabriel, reconhecendo sua paranoia. - Sabe Luhan, nenhum lugar onde há seres com a possibilidade de escolherem entre aquilo que é construtivo e destrutivo é seguro. Geralmente escolhem o que é destrutivo. - E o melhor exemplo disso é o meu planeta, não é? - Você não imagina o quanto. – Disse Marishi, passando a mão em um corrimão de pedra ao cruzarem uma pequena ponte sobre um riacho. Da mesma forma como aquele riacho que passava abaixo deles tomava dois novos rumos, serpenteando entre o verde gramado, o Sacerdote mudou o curso daquela conversa para algo que Gabriel jamais imaginaria. – Queria deixar para falar sobre isso com você com mais calma, mas acho que agora é o momento mais apropriado. - Como senhor? – Perguntou Gabriel, perdido naquela conversa. - Creio que já sabe, mas neste exato momento está acontecendo uma guerra ao redor do seu mundo. - Uma guerra?! – Exclamou, arregalando os olhos. - Não estou falando de uma guerra real, mas uma guerra virtual. Você sabe muito bem que diariamente os governos do seu planeta travam uma

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batalha dentro da rede de computadores em busca da mais refinada gota de informação. É o que vocês chamam de cyberwar. - Já ouvi falar dessa guerra. – Disse Gabriel, pensativo. - Você sabe qual foi a razão pela qual eu lhe visitei em Washington? – Aquela pergunta desconcertou Gabriel. - Ora, você mesmo disse que eu era uma pessoa especial, e que deveria desenvolver minhas habilidades na Ordem. - Mas nunca lhe falei por qual razão você era especial para nós. Desde que chegara ao Santuário ele tinha consciência que seu objetivo de vida agora era se tornar um Sacerdote Harashi, mas Gabriel havia se esquecido daquele detalhe. Havia uma razão maior ainda pelo qual Marishi o trouxera a Nemashi. - A razão pela qual eu lhe trouxe aqui vai muito além das habilidades que tem em sua Mente, Luhan. Suas qualidades mais incríveis, na verdade, estão no seu conhecimento enquanto hacker. Aquelas palavras fizeram Gabriel virar ao avesso. Poucas pessoas sabiam que o garoto era um exímio programador. Nem mesmo seus amigos. Nem mesmo Sasha. Muito menos os seus pais. Na verdade, apenas Gabriel, e somente ele sabia de suas verdadeiras aventuras pela rede mundial de computadores, a Internet. - Como você sabe disso? – Disse Gabriel, ainda espantado. - Por que ainda se impressiona com o nosso mundo? Nós o escolhemos porque você é a pessoa mais preparada para estar aqui. Desbloquear jogos para seus amigos ou descobrir segredos em redes sociais são brincadeiras de tolas crianças que não sabem como ocupar melhor seu tempo. Já o que importa, o que você de fato faz, não é muito diferente de um Sacerdote que passa dias a fio devorando as frases gravadas em um Tahamalen. Ambos buscam a Verdade, a única diferença é que você se utiliza de meios mais elaborados. E é por isso que precisamos de você. - Eu? – Gabriel quase saltou em cima de Marishi. - Sim. – Disse o Sacerdote, devolvendo. – Suas habilidades como hacker podem nos ajudar a encontrar os Magos Zahranianos que estão escondidos no seu planeta. 251


- E como eu farei isso Marishi? – O garoto se sobressaiu, assustado com aquela afirmação do Sacerdote. - Luhan, você tem acesso à Deep Web43 como poucas pessoas em seu mundo. 43

Para aqueles que não conhecem, a chamada Deep Web - também conhecida em seu mundo como a “internet invisível”, “web das profundezas”, ou “web escondida” – é uma verdadeira zona de perigo no mundo da navegação cibernética de Yuransha. A Deep Web consiste em uma série de sites projetados propositalmente, que não são registrados em nenhum mecanismo de busca. Escondidos do mundo e hospedados onde ninguém pode encontrá-los. Essa rede é tão misteriosa que nem motores de busca famosos de seu tempo como o Google conseguem mostrá-la. De acordo com o que pesquisei sobre ela, é comparada constantemente com um grande iceberg: Os mecanismos de busca como o Google e tantos outros seriam a ponta do iceberg. A parte submersa, muito maior e longe da nossa vista, seria a Deep Web. Segundo os estudos de especialistas de Yuransha, 4% do conteúdo existente no mundo estaria disponível na internet. Já os outros 96% estaria na Deep Web! Mas quanto a isto, nem eu poderei comprovar. Sou um mero engenheiro de nano-tecnologia, não um técnico de informática do seu mundo. Essa analogia é tão fantasiosa quanto as exageradas histórias de quem julgou explorá-la, mas, por mais que se estude a Deep Web, nem todos os livros do mundo poderão compreender o que de fato se encontra nela. Formada em sua maioria por fóruns – como são conhecidos na web comum –, a rede invisível é um poço para todo tipo conteúdo. Da mesma forma como possui conteúdos inofensivos, quem navegava pelos links da Deep Web pode se deparar, sem qualquer aviso, com sites da mais criminosa pornografia infantil, anúncios de tráfico humano, todo o tipo de taras sexuais, cultos sombrios, canibalismo, registros de assassinatos, mercados de compra e venda de armas, de drogas, dentre as mais grotescas práticas que vocês sequer imaginam existir no seu mundo. Porém, aos mais hábeis na arte de navegar pela rede escondida, na última camada, a mais densa de todas, aquela à qual só uma elite anônima conseguia penetrar, é possível descobrir informações de nível secretíssimo, desde segredos de Estados nacionais, até conteúdos reais sobre avistamentos de OVNIs – equivocadamente conhecidos em Yuransha

como

Objetos

Voadores

Não

Identificados

e

contatos

com

seres

extraterrestres. A única coisa que posso dizer a vocês, é que, entre fatos e lendas, a Deep Web é real, e Gabriel se encontrava inserido nessa elite de hackers. Não os que procuravam conteúdo criminoso dentro da rede, mas aqueles que tinham conhecimento das verdadeiras informações que poderiam mudar o mundo. Certa vez, segundo os registros de suas memórias, o jovem garoto acessou fóruns que continham o que seriam os primeiros documentos a serem publicados por um conhecido

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Aquelas palavras fizeram o coração de Gabriel palpitar. - Eu... Como você sabe... - Você já sabe como... E sempre que eu precisar saber mais, basta que eu procure, assim como você. Você ainda não percebe que seu maior dom é a sua curiosidade? Sem ela você não seria capaz de chegar até aqui, e não estou falando da Ordem. Estou falando das coisas que conhece sobre o seu mundo, das quais somente você tem esse privilégio. - Eu tenho domínio sobre a Deep Web, mas como isso pode ajudar a encontrar os Magos, Marishi? – Perguntou o Gabriel, ainda em choque. - Você irá pesquisar sobre eles nos fóruns que você acessava. Suas páginas e círculos fechados são a melhor fonte de informação que podemos ter no seu planeta neste momento. - Mas... Preciso de um computador seguro, com uma conexão à Internet. Quase todos os computadores do meu país são vulneráveis à interceptação. Precisaria de dias, talvez meses para filtrar informações mais

site do seu tempo, chamado Wikileaks. Importantes documentos confidenciais do governo dos Estados Unidos vazaram, e posteriormente foram distribuídos em pequenos fóruns na Deep Web, para depois se tornarem públicos. Aquelas informações aleatórias eram a verdadeira razão pela qual Gabriel e outros hackers da sua idade navegavam pelas profundezas daquele oceano instável. Embora não pudessem se manifestar publicamente em relação a tais documentos, devido ao seu conteúdo sigiloso, Gabriel tinha mais do que noção do ambiente em que estava pisando, e sempre cauteloso, assim como seus outros companheiros de rede, possuía um servidor em casa não catalogado para acessar tal conteúdo, o qual apenas alguns privilegiados tinham acesso. Caso seu IP – o endereço eletrônico da rede – fosse público, no dia seguinte seria muito provável que a CIA e o FBI batessem à porta de sua casa. Por isso, antes de divulgar o que era necessário que o mundo soubesse, ele prezava pelo que lhe mais era necessário até então, sua segurança. Às vezes é preciso guardar a Verdade para evitar que ela se perca no caminho. De alguma forma, isto o fazia estar acima dos próprios serviços de inteligência do próprio país. Não havia cofre mais seguro do que a sua Mente e seu silêncio. E esta louvável discrição o transformou em um poderoso instrumento dentro da Ordem Harashi. Uma ponte de acesso para nós sobre as informações mais importantes que circulavam em Yuransha. Só não imaginávamos aonde ele seria capaz de chegar. De fato, Gabriel era um garoto não somente habilidoso, mas inteligente, em todos os aspectos dessa palavra.

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confiáveis. Como farei isso? – Disse o garoto, observando o Sacerdote caminhando em círculos. - Com a ajuda de Shylon e principalmente, de Branah. – Disse o Sacerdote olhando o horizonte de Nemashi através das grandes folhas verdes que entrecortavam a luz do sol. Já à frente de Gabriel, não havia nada concreto. Uma série de dúvidas somavam-se na Mente do jovem, que agora tinha uma inesperada tarefa, retornar ao seu planeta natal, depois de meses longe de casa. Aquela missão de fato mexera com o íntimo do jovem, que pela primeira vez em meses, ouviu da boca do Sacerdote uma ordem para retornar ao mundo onde nasceu, cresceu e conheceu pessoas maravilhosas. - Você acha que é capaz de cumprir esta missão? – Perguntou Marishi, fazendo Gabriel se ofuscar com a luminosidade que balançava entre as vivas folhas da grande árvore à sua frente. - Sim. Mas... - Mesmo após tanto tempo aqui você ainda tem dúvidas, não é? – Perguntou o Mestre, enquanto sentava-se em um dos bancos no meio daquele passeio. - Sim, mas não é só isso. - Eu sei, é saudade... - Você sabe que não posso mais voltar para casa. Eu não posso mais ter a vida que eu tinha. - E você acha que eu não sei? Que você sente a falta de tudo isso? Sente falta de seus pais, sente a falta de seus amigos. Sente a falta de Sasha. – Aquele nome fez a cabeça de Gabriel novamente rodar. Estranhamente, mesmo após meses imerso na atmosfera do Santuário, o semblante de Sasha não saia da memória de Gabriel. Ainda havia algo ali, e as palavras que não foram ditas naquela noite em que o garoto partira para Nemashi era o que mais doia nele. Ele havia quebrado mais uma promessa feita a ela. Sabia o quanto aquilo a magoava e sentia-se profundamente culpado por tê-la enganado. Quem sabe o que se sucedera aquilo. Ao mesmo tempo, sentia um desejo incontrolável de contar o que acontecera. Queria mostrar-lhe aquele mundo, 254


contar de suas descobertas, revela-la algo que jamais imaginara. Mas desde o início Marishi lhe proibiu terminantemente de retornar a Yuransha, caso o contrário, não somente seria expulso da Ordem, como também teria todas as suas memórias relativas à ela bloqueadas. - Deixe-me falar com ela. – Disse Gabriel, em um impulso que não sentia há muito tempo. - Não, já lhe falei. - Por favor... - Não, isto está fora de cogitação, Luhan. - Ela poderia vir para cá, se tornar uma Harashi, viver aqui... - Não! – Aquela descontrolada exclamação emudeceu Gabriel, que apenas observou o sereno Sacerdote voltar a si, acomodando-se novamente no banco, enquanto pesadas e silenciosas lágrimas desciam pelo rosto do garoto. – Você não entende... Você ainda não entende por que eu lhe trouxe aqui? A partir do momento que você decidiu vir você sabia que não teria mais volta. Sofia também sabia, e veja como está. Ela construiu uma bela razão para estar aqui e a cada dia dá testemunho dessa vontade de viver entre nossas paredes, mas qual é sua razão Luhan? Não parece ser a mesma de quando pisou pela primeira vez naquela capela. - Eu apenas queria tê-la aqui... - Para que? Para exibir seus mais novos conhecimentos e habilidades que desenvolveu? Ser um Harashi é muito mais do que impressionar a garota que você gosta. Você não percebe que a cada dia está se impressionando mais e mais com o que você tem se tornando? Toda vez que acorda e olha pela janela do seu quarto você acha uma nova resposta para cada dúvida que tinha no dia anterior. A cada dia você descobre uma nova razão de estar aqui. - E por que eu pude vir e ela não? - Porque você estava preparado, ela não, e nem algum dia talvez esteja. Seus pensamentos não são como os dela, Luhan. Ela tem um verdadeiro amor em seus desejos, mas aqui ela precisaria muito mais do que isso. - Como o que?

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- Algo que só você tem neste momento: O sincero desejo de aprender o que ainda não sabe, e a coragem de enfrentar suas próprias convicções. Mas o fato de ter essa coragem também não significa que você está preparado para isto. Enquanto não for capaz de enfrentar suas próprias dúvidas, não posso permitir que volte a esses lugares e arrisque expor o nosso mundo de forma irresponsável. Mas reconheço que você possui o mesmo espírito dos primeiros Sacerdotes dessa Ordem, que abandonaram a antiga religião para procurar a Verdade além dela. E isto, meu jovem, não é algo fácil buscar em um Universo cheio de incertezas. - E eu senhor, o que terei que buscar neste momento? - Por enquanto, somente os Magos escondidos em seu planeta. Venha comigo Luhan. – O Sacerdote se desconectou temporariamente da realidade, invadindo a Mente do seu filho lhe repassando as ordens que deseja. Notando a distração de seu Mestre o garoto o indagou daquele vácuo. - Para onde iremos? - Para meu apartamento. Tenho uma missão para você. – Disse Marishi, passando a mão sobre seu ombro e guiando o garoto rumo uma das entradas da Torre da Habitação.

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DOCUMENTO 043 DE VOLTA PARA CASA Ao adentrarem no apartamento em um dos últimos andares da Torre da Habitação, Marishi e Gabriel estagnaram na porta ao se depararem com uma cena impressionante. Sofia jazia deitada no gélido chão de mármore. Porém, ela estava sorrindo. Na verdade, se divertindo bastante com Shekmeh, que havia se deitado sobre seu corpo, enquanto a garota acariciava a forte pelagem da behemah, hipnotizada pro aquela massagem. Bestificados com aquilo, os dois apenas observaram, enquanto Shylon jazia no sofá observando a pitoresca cena. - Parece que Branah acabou de encontrar seu bicho de estimação aqui em Nemashi. – Disse o garoto, enquanto Sofia foi pega de surpresa com a chegada dos dois Harashis, que sequer havia notado, entretida com o animal. Ruborizada por aquele flagra, tentou se levantar, fazendo Shekmeh se levantar do assoalho após abrir a boca, mostrando seus reluzentes dentes afiadíssimos. - Pelo visto alguém está gostando dela mais do que seus próprios donos. – Disse Marishi, enquanto Shylon ria. - E tem como não gostar? Essa gata é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida. – Disse Sofia, empolgada com sua mais nova descoberta no Santuário. - Ela não é uma gata... – Disse Shylon, corrigindo a garota. – É um behemah fêmea. - Desculpe, ainda não estou acostumada com as palavras. Mas quando vi essa coisa linda me apaixonei de imediato. - Ela não pulou em cima de você? – Gabriel perguntou, relembrando de seu primeiro encontro com a fera. Sofia ficou de joelhos, enquanto passava a mão na cabeça da behemah. - E por que ela faria isso? Ela é um amor. E ainda por cima tem a cor dos meus olhos. – Disse, atraindo os olhares dos três, que confirmavam interiormente a semelhança entre os vívidos olhos azuis das duas fêmeas. 257


Marishi estava gostando de ver aquilo, mas não podia continuar mais com a brincadeira. Havia muito a se fazer pelas próximas horas. - Sei que estão se divertindo com isso, principalmente você, Branah, mas preciso que me escutem. Chamei vocês três aqui por um importante motivo. - Qual Marishi? – Sofia perguntou, atiçando sua curiosidade. - Vocês precisarão voltar a Yuransha. – Ouvir aquilo fez com que Gabriel voltasse seus olhos exclusivamente para o Sacerdote, e Sofia largasse a behemah para escutar o que ele tinha a dizer. As palavras do ham’aryeno se extenderam por longos minutos. Marishi caminhava pela sala do seu apartamento, enquanto Sofia e Shylon ouviam o Sacerdote falar sobre os conhecimentos de Gabriel. Da mesma forma, o Mestre Harashi explicou a necessidade de acessarem a Deep Web para colherem as informações necessárias, e assim descobrirem o paradeiro dos Zahranianos na Terra. Helamen detalhou o plano e a necessidade de cautela, tanto para as informações pesquisadas não serem interceptadas pelos órgãos do governo americano, como os jovens não serem vistos por ninguém. - Certo, mas como faremos isso sem nos expor? Afinal, precisaremos de um lugar seguro, seja do governo ou de outras pessoas. Assim como Luhan, não posso mais voltar para casa. – A garota perguntou. - Ótima pergunta Branah, e a resposta se encontra em você mesma. – Disse Marishi apontando para a garota. Sofia inquietou-se, pensando tratarse de um novo jogo filosófico. - Eu, senhor? – Perguntou, assustada. - Exato. Você é o portal de acesso para esta missão. Branah, você é de nacionalidade italiana, mas seu pai não. Quando era jovem, ele conheceu sua mãe, uma jovem da Itália que veio estudar no Brasil, onde ele morava. Por um bom tempo o seu pai foi professor da mesma Universidade em que você estuda, e foi nesse período que você nasceu em Milão. – Disse o Sacerdote. Sofia ficou abismada com a quantidade de informações que Marishi sabia sobre sua vida.

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- Mas assim que nasceu, seu pai ingressou na carreira diplomática, e vocês voltaram para Brasília onde você morou por um tempo, até que ele se tornou cônsul do Brasil na Itália e sua família voltou a residir em sua cidade natal. - Marishi, como...? - Já lhe disse, nós monitoramos você desde que era uma garotinha. - Mas no que eu posso ajudar nisso? - Sua família ainda possui a casa em que moravam no Brasil? - Sim, mas somente viajamos a Brasília durante as minhas férias. Faz mais de um ano que não piso por lá. Só o caseiro que vai uma vez ao mês para cuidar dela. - Ótimo. Então a partir de agora este será nosso quartel general em Yuransha. - E o que cada um de nós fará pai? – Perguntou Shylon. - Luhan pesquisará na rede acerca do paradeiro dos Magos. Branah lhe dará a assistência ao que precisarem. E você... – Marishi fez uma pausa, pensando o que falar. – Você irá conhecer a cidade... Ela é muito bonita. - Adoro quando posso ser útil... – Disse Shylon, sem acreditar que não possuía uma função naquela missão. - E é melhor você se acostumar com o planeta. Talvez tenha que visitalo mais vezes. – Seu pai concluiu. - E quando iremos senhor? – Perguntou Gabriel. - Estão ocupados com alguma coisa neste momento? Gabriel balançou a cabeça, negativamente. - Então o que estão esperando? Já conhecem o plano, bem como, eu, a competência de cada um. – Disse o Sacerdote, ordenando aos três que se preparassem para o salto. Dando as mãos em um círculo, Marishi se aproximou do trio. - Shylon, você tem o dever de zelar pelos dois. Esta é a sua tarefa enquanto estiverem lá. - Obrigado pela incumbência. – Respondeu, olhando sacarsticamente para seu pai. - Mantenham-me informado de suas descobertas. 259


- Espere nosso retorno, pai. Garanto que traremos boas notícias... Estão prontos? – Perguntou Shylon aos seus amigos. - Sim. – Respondeu Gabriel. - Quando quiser. Já estou mentalizando. – Respondeu Sofia. Shylon assentiu. Fechando os olhos o garoto adentrou mais uma vez na Mente de Sofia. Ele enxergou um grande lago que estendia suas margens pelo meio do cerrado como se fosse uma árvore expandindo suas raízes no meio da terra. Aquela mancha escura mais parecia um oásis no meio do deserto, assim como foi concretizado pela construção daquela fantástica cidade. Ele viu surgir uma casa à beira desse lago, e junto com essa imagem, um forte impulso fez a Mente de Shylon ser arremessada para dentro dos espaços, juntamente com seus amigos. Eles haviam partido para sua mais nova aventura.

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DOCUMENTO 044 CHEGANDO AO QUARTEL GENERAL Shylon deu um passo atrás e sentiu algo forçar suas costas. Estava se apoiando em uma grande mesa de madeira, revestida por uma espécie de tecido verde colado à mesma. Aquela estrutura estranha, porém, era familiar à Sofia e Gabriel, que se encontravam naquele instante no salão de jogos da casa da garota. Ainda curioso, Shylon analisava a mesa de sinuca enquanto que Sofia observou o ambiente, procurando ouvir algum sinal de movimento. Sua residência se encontrava do mesmo modo desde a última vez que estivera ali. Os tacos jaziam em um suporte incrustado na parede, e as bolas estavam guardadas em uma caixa de madeira em cima da mesa. Também concentrado no recinto, Gabriel fechou seus olhos sentindo o que acontecia ao seu redor. - Não sinto a presença de ninguém aqui dentro. Nem ao redor dessa casa, por uma boa extensão. – Disse o garoto. – Você não tem vizinhos? - Eles são deputados do Congresso Nacional. Quase nunca vêm ao trabalho, quem dirá morarem aqui. – Disse Sofia, soltando um sorriso maroto. Shylon percorreu a sala, observando algumas fotos do pai de Sofia na parede, juntamente com alguns troféus numa estante de madeira. - Isto aqui é muito interessante, mas onde está o computador que iremos usar? – Perguntou Shylon, ansioso. - Vá com calma. Primeiramente precisamos encontrar as chaves dessa casa. – Respondeu Sofia. - Para quê precisamos de chaves se podemos atravessar paredes? – Disse, rindo da garota. - Minha casa, minhas regras. Fora que não podemos sair por aí nos transportando. A última coisa que queremos aqui é chamar atenção. – Disse Sofia, saindo do salão, seguida pelos dois garotos. Cruzando um longo corredor ela entrou em uma sala cheia de livros. Era o escritório do seu pai.

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Após vasculhar algumas gavetas em seu gabinete, achou o tão conhecido chaveiro com o formato da bota italiana que portava todas as chaves da residência. - Com isto aqui poderemos ir aonde quisermos. – Disse ela voltando ao corredor. Sofia seguiu pela passagem, chegando a uma passarela suspensa no centro de sua casa. O teto inclinado descia até uma grande vidraça que iluminava toda a sala. Altas cortinas cerravam metade daquele painel translúcido que dava para a área externa. Indo até o final daquela passarela, ela desceu por uma escada chegando ao recinto, repleto de uma moderna mobília. Um divã circundava uma pequena mesa ao centro da sala, enquanto que outro sofá cercava um comprido e baixo móvel, no qual acima dele, se encontrava uma grande TV de plasma. O piso de cerâmica, mesclado com partes em madeira nobre, completava o ambiente finamente decorado com quadros modernistas e algumas plantas nativas do país. Nenhum dos garotos imaginava, mas parte daquelas obras constituía um verdadeiro museu que invejaria qualquer colecionador de arte brasileira moderna. Decorada com quadros de Cândido Portinari, Ismael Nery e Francisco Brennand – conceituados artistas brasileiros –, aquela sala exalava o padrão daquelas obras, tão alto quanto o poder aquisitivo da família de Sofia. Completando o ambiente, a alvidez daquelas paredes e vidraças contrastava com o vasto campo verde que circundava a mansão. Indo até uma das portas de vidro Sofia a destrancou com uma das chaves que carregava. Os garotos se aproximaram, curiosos com o lugar. A porta deslizou convidando-os a se aventurarem pelo jardim. - Sejam bem vindos à minha humilde residência. – Disse ela, sorrindo para os dois. Eles caminharam pelo terraço, contemplando a área externa que rodeava a casa, ladeada por algumas palmeiras e arbustos bem podados. Mais ao lado, uma base de cerâmica e pedra contornava uma piscina que destacava sua água límpida através do azul da cerâmica que revestia seu interior. 262


Assim como em Nemashi, a casa possuía um passeio que levava a uma margem. Caminhando por aquele longo gramado, Gabriel se lembrou dos jardins do Santuário. Se aproximando do singelo píer, Gabriel pôde então visualizar bem ao fundo alguns prédios que se erguiam no horizonte da cidade. Shylon fez o mesmo, se perguntando onde estava. - Este é o Lago Paranoá, um imenso lago artificial que circunda Brasília. Tudo nesta cidade foi construído a partir do zero. O que antes era o nada se tornou a capital do país e sua cidade mais moderna. - É lindo demais... – Disse Gabriel, enquanto observava um bando de gaivotas voando em conjunto pelo azulado céu que pairava sobre sua cabeça. - Até que este planeta não é um lugar ruim para se viver. – Disse Shylon. - Só acho quente demais. Pelo menos por aqui. Eu estou muito acostumada a lugares frios, como Milão. Esta cidade seria perfeita se não tivesse esse clima insuportável, e seus políticos, piores ainda. - São tão ruins assim? - Eu vivi minha vida aqui, rodeada pela política. O Brasil é um país rico, em todos os sentidos. O problema é que, as coisas só funcionam se alguém estiver lucrando. Isto vai do cidadão mais honrado até o político mais criminoso. Se o poder é a mercadoria a ser comprada, aqui sua moeda é a corrupção. - Mas a corrupção não é exclusividade desse lugar. Quero dizer, é algo alimentado pela ganância humana. - Mas o problema aqui é bem maior. Eles são como parasitas cultivados pelo próprio povo. A cada eleição somos bombardeados de promessas cada vez mais absurdas, até mesmo contra direitos fundamentais de nossas leis. A corrupção é o manto sobre o qual o mal floresce nesse país. Se o povo lesse sobre política como lê sobre esportes, se escalasse seus governantes como escalam seus times, se lutasse por seus direitos como lutam pelo seu Futebol, talvez este país fosse outro. - O que é Futebol? – Perguntou Shylon, intrigado. 263


- Um esporte do nosso mundo. Se bem que para mim é mais um meio fácil de poucos empresários ganharem dinheiro pelo esforço de alguns atletas e com o apoio de muitos espectadores. No nosso mundo o suor do povo rega a ganância dos poderosos. E esta planta apenas tende a crescer e produzir ainda mais sementes. – Disse a garota, enfática como sempre. Shylon ficou em silêncio tentando absorver aquelas pesadas palavras. - Em Nemashi não existe política. A Ciência é a única política da qual usamos para administrar nosso planeta. Quando buscamos aplicar a Ciência para melhorar a vida das pessoas não existe espaço para a corrupção. Acho que é por isso que ela não existe em nosso mundo. - Então este é o nosso novo quartel general? – Perguntou Gabriel, mudando drasticamente de assunto. Sofia respondeu com sua cabeça. – Não é tão grande quanto o Santuário, mas é o que temos no momento. - Então que comece essa missão insana. – Disse Gabriel, se animando. – Onde está o computador? - No meu quarto. Venham. Voltando à mansão, Sofia conduziu os garotos até seu quarto, por um longo corredor no primeiro andar. - Bem, este é o meu santuário. Não reparem na bagunça... – Disse ela, abrindo a porta timidamente. - Não brinca... – Disse Gabriel, olhando ao seu redor. Ao contrário do que as palavras de Sofia davam a imaginar, seu quarto era um vasto e aconchegante ambiente. Um pequeno divã encostava-se a uma das paredes enquanto que à sua frente uma grande escrivaninha tomava conta da parede oposta, com suas prateleiras preenchidas por uma infindável quantidade de livros e porta retratos com fotos da garota. Em outra, uma grande pintura – que mais parecia uma fotografia de Sofia – pendia acima da sua cama, finamente forrada por um alvo lençol que levava inscrições em inglês de um dos mais clássicos romances de Shakespeare, Romeu e Julieta.

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Do lado oposto à grande janela que iluminava seu quarto, outra porta conduzia ao banheiro do quarto da garota. Mas o confortável ambiente do quarto de Sofia não foi o suficiente para tirar o foco de Gabriel. Em cima da escrivaninha da garota uma tela branca logo chamou a atenção de Gabriel. Era o computador de Sofia. Um rápido pensamento logo tomou conta de sua cabeça: Seria aquela máquina que lhe diria onde os Magos Zahranianos estavam se escondendo no seu planeta? Ansioso para confirmar a sua pergunta, Gabriel logo foi ligando o aparelho, enquanto Sofia o observava. - Por onde iremos começar? – Perguntou, curiosa. - Primeiramente preciso de uma conexão com a internet. – Respondeu. - Esta casa toda possui rede WiFi. - Ótimo. Já é o bastante. - Só isso? - Na verdade precisarei instalar alguns programas e fazer algumas alterações na sua máquina, senão poderemos ter visitas indesejadas. O coração de Sofia disparou. A última coisa que ela queria era que descobrissem que ela estava ali. Ainda mais a polícia. Ou coisa pior. - E como você pode ter certeza de que de fato estamos seguros aqui? – Perguntou Shylon. - Estes programas tornarão o endereço eletrônico dessa máquina invisível aos sistemas de interceptação dos governos. Além disso, estamos em outro país. Assim ficará bem mais difícil os órgãos de inteligência dos Estados Unidos nos rastrearem. – Disse Gabriel, enquanto acessava o navegador padrão na tela inicial. Sofia o observava, apreensiva. - E como isso é possível? – A garota perguntou. - Você precisa baixar um browser, o navegador da internet, que é preparado para não ser invadido, preparado pra te deixar anônimo. Esse navegador é capaz de ler o tipo de páginas que são exibidas na Deep Web... - E que browser é esse? – Perguntou Sofia, intrigada. - Seu nome é Tor Bundle. – Disse Gabriel, enquanto pesquisava o programa. – É com ele que você acessa a rede oculta. Uma vez instalado, você está liberado para acessar suas várias páginas. Mas você deverá saber 265


como fazê-lo. Grande parte do conteúdo da Deep Web é de pedofilia, necrofilia, assassinos de aluguel, venda de armas, drogas... Sofia engoliu a seco. Gabriel não conseguiu conter o riso. - Mas também tem muito mercado de bitcoin, a moeda da internet, e coisas do tipo. Já para achar um conteúdo realmente válido, a busca é mais complicada. Mas para isso existem os Googles da Deep Web. - Você consegue pesquisar sobre o que queremos? - Sim. Mas isso pode levar um tempo. Faz meses que não entro desde que viajei para Nemashi. Com isso, acabei me afastando dos meus contatos. - Contatos? Estou começando a achar que você possui ligações com esses assassinos de aluguel ou traficantes. - Nem se preocupe. – Disse o garoto com um sorriso sarcástico. – O que eu procuro são coisas bem mais poderosas do que armas. Diga-me Branah, alguma vez você já conheceu a verdade que está além dos seus livros? A garota quis protestar, mas nem teve tempo. Com o novo navegador instalado, Gabriel o abriu e digitou alguns caracteres em sua barra de endereço, logo aparecendo o nome de algumas páginas. Uma tela preta surgiu com apenas uma barra em branco. Gabriel digitou algumas letras e números e como num passe de mágica, a tela se tornou tão dourada como a miniatura da Torre Eiffel que se encontrava na escrivaninha de Sofia ao lado do monitor. Três palavras em inglês saltaram aos olhos da garota. Ao lê-las a jovem quase se desequilibrou enquanto se sustentava no encosto da cadeira na qual Gabriel estava sentado. - O Clube de Bilderberg? Você está de brincadeira, não é? – Perguntou Sofia, abismada. - Eu não sou apenas um Sacerdote Harashi. Eu também faço parte do Clube de Bilderberg44... Dos hackers, claro. O que buscamos aqui é simplesmente conhecimento, mas por meios não convencionais.

44

O Clube de Bilderberg ou Conferência de Bilderberg é o nome dado a um encontro, anual, do qual participam, no máximo, 150 convidados, escolhidos entre personalidades

266


- Que meios? - Depende do seu propósito. Podemos desde compartilhar informações já existentes, como também busca-las invadindo bancos de dados de empresas ou de órgãos do governo. - Então se desejar, você também pode transferir dinheiro de gordas contas da Suíça? - Com certeza, mas não queremos problemas com a Interpol e seus amigos. Descobririam nossos ataques em poucos minutos. Por isso, preferimos derrubar sites de governos ou partidos políticos conservadores durante manifestações ou episódios importantes de nossos países. - Ah, então temos ladrões éticos.45 – Disse Sofia, ironizando.

influentes no mundo empresarial, acadêmico, midiático ou político. Não existe uma agenda detalhada da reunião, nenhuma resolução é proposta, não há votações, e, após o encontro, nenhuma declaração é divulgada. Devido a este caráter sigiloso, criou-se uma série de lendas em Yuransha sobre a verdadeira função deste grupo. Algumas teorias dizem que o Clube Bilderberg tem o propósito de criar um governo totalitário mundial, e outras afirmam que este projeto tem a interação até mesmo de forças malignas ou extraterrestres. Obviamente, tudo não passa de uma grande salada conspiratória criada pelos boatos difundidos na rede de computadores. Mas de fato, esta reunião muda ou pelo menos direciona as políticas econômicas de alguns países de acordo com as perspectivas futuras do mercado. Mais do que isto não passa de uma grande teoria da conspiração sem nenhum fundamento, ao menos para as fantasiosas Mentes daqueles que acreditam nessas histórias. 45

Quando acessava esta informação proferida por Sofia, notei que a Mente de Gabriel ativou regiões específicas sobre uma determinada memória. Esta memória dizia respeito a alguns trechos de um livro que ele lera há algum tempo, a respeito da ética dos hackers. O livro Hackers: Heroes of the Computer Revolution, escrito pelo jornalista norteamericano Steven Levy, elencava uma série de princípios da chamada Ética Hacker, práticas estas que se baseiavam em cinco pontos: Compartilhamento; Abertura; Descentralização; Livre acesso aos computadores e melhoria do mundo. Esses princípios diziam entre outras coisas que “o acesso a computadores deveria ser ilimitado e total”, “ooda a informação deve ser livre”, “a autoridade devia perder sua credibilidade e que a descentralização da informação devia ser promovida”, “a arte pode ser criada a partir dos computadores” e a máxima que “os computadores devem melhorar nossas vidas”. Basicamente, estas eram as mesmas crenças que Gabriel compartilhava, e que na medida do possível, praticava-as fielmente, como se fossem uma verdadeira doutrina religiosa.

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- Mas nesse caso, como obteremos nossas informações? – Perguntou Shylon, olhando as páginas daquele fórum que exibia como fundo uma imagem do lendário Farol de Alexandria. - Se utilizando dos melhores informantes que possuo: Os meus contatos. – Disse Gabriel, digitando algumas palavras no fórum. No mesmo instante uma janela de chat se abriu com o nome de um dos membros daquele círculo secreto virtual. - Mr. Brownstone? Quem diabos usaria um nome desses? – Disse Sofia, observando aquele nome, título de uma música do grupo de rock norte-americano Guns N’ Roses. - Quem não quer que o FBI bata à sua porta no dia seguinte. Nunca colocamos os nossos verdadeiros nomes ou dados, por razões óbvias. Gabriel digitava com a agilidade a qual estava acostumado, explicando minunciosamente de que soubera uma história que seres extraterrestres estavam se escondendo no planeta, e que possuíam um plano secreto, que vinham de um planeta longínquo e qye faziam parte de uma antiga Ordem. - Você realmente espera que seu contato acredite nisso? – Perguntou Sofia enquanto observava Gabriel digitando. - Acho que você é quem precisa conhecer mais sobre as histórias da Deep Web. – Gabriel respondeu, concentrado. E de fato Sofia precisava. Havia inúmeras histórias bizarras do gênero as quais os membros dos fóruns da Deep Web tinham conhecimento, e só posteriormente vazavam para a Internet. Uma dessas contava a história de um homem que criou um servidor de um jogo com dezesseis bots – robôs controlados por inteligência artificial – no modo de sobrevivência apenas para se divertir. Mas ele acabou se esquecendo de desligá-lo e o servidor ficou funcionando durante quatro anos com os robôs se matando e “aprendendo”. Ao entrar novamente no servidor então veio a surpresa: Todos os robôs estavam desarmados e completamente parados. Para ter certeza que não havia ocorrido um bug, o criador do servidor trocou o mapa manualmente e a reação foi a mesma: Nada.

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Ele então resolveu entrar no jogo, imaginando que os jogadores voltariam ao seu estado normal de tiros e sangue quando ele ingressasse na rodada, porém isso não aconteceu. Os bots apenas o olhavam e o seguiam desarmados. Como última tentativa de voltar ao normal, ele pegou uma arma e matou um dos bots. Então, veio a reação: Todos os outros bots pegaram uma arma e imediatamente o atacaram. Após a morte do intruso que causou o distúrbio, os outros voltaram ao estado de paz anterior. Espantado com aquele fato, o criador chegou à conclusão de que ao longo de quatro anos de infindável aprendizado, a inteligência artificial dos bots entendeu que a melhor maneira de garantir a sobrevivência era simplesmente não atacar. A lógica era simples: Se ninguém matasse, ninguém morreria. Ninguém ganhava, mas também ninguém perdia. E aquele que ousasse atrapalhar essa ordem seria eliminado pelo conjunto. Após quatro anos de guerra e extermínio coletivo, os bots com sua inteligência artificial foram capazes de fazer algo que a humanidade não fora capaz de concretizar até os dias atuais: A paz mundial. Embora

difícil

de

acreditar,

essa

história

rodou

o

mundo

posteriormente com sua prova cabal, um print da página do fórum da Deep Web em que o próprio criador do jogo anunciava, espantado, a sua descoberta. Entre as lembranças de suas antigas navegações pela rede oculta, Gabriel terminou de digitar a mensagem no fórum e a enviou com um único clique no mouse. Imediatamente se confirmou que sua mensagem havia chegado aos arquivos do destinatário. - Espera! – Disse Sofia se debruçando em cima de Gabriel e do computador. - O que foi? – Perguntou o garoto, assustado. Sofia não conseguiu conter o riso. Embora tenha notado por um breve momento, ela enxergou o nome registrado por Gabriel na conta no fórum. As três palavras que lhe tiraram a seriedade mais pareciam um jargão clássico de filmes de ação: Wolf, James Wolf. - Seu nome na Deep Web é James Wolf? 269


- Qual o problema? – Perguntou o garoto. - Nenhum, Senhor 007. - E agora... O que fazemos? – Perguntou Shylon, esperando pelo próximo passo. - Só nos resta esperar por uma resposta. – Respondeu Gabriel, observando a página do fórum. - Aqui sentados? – Perguntou o garoto, inquieto. - Você tem um plano melhor? - Eu tenho. – Disse Sofia tirando um maço de dinheiro de uma carteira que ela guardava em uma das gavetas de sua escrivaninha. – Estão interessados em conhecer a cidade onde passei minha infância? Os garotos se entreolharam concordando. Qualquer coisa era melhor que continuar naquela mansão silenciosa. - Mas não com essas roupas. – Disse a garota apontando para as túnicas e jaquetas de Nemashi que os dois usavam. - Você também está moderna como nós. – Shylon devolveu o olhar recriminante. – Temos outra opção? - Não seja por isso. Minhas roupas estão no armário. Já vocês... Se virem com as do meu pai. Luhan, ajude nosso amigo a se adaptar ao nosso mundo. – Disse ela apontando para Gabriel o quarto do outro lado do corredor.

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DOCUMENTO 045 A CAPITAL DA ESPERANÇA Os longos arcos da Ponte Juscelino Kubitschek – presidente que fundara a cidade – se levantavam das águas do Lago Paranoá enquanto um carro branco com listras verdes e amarelas nas suas laterais seguia seu trajeto. Dentro do taxi Shylon, Sofia e Gabriel observavam um dos mais famosos cartões postais da cidade enquanto que o veículo os levava para a área central do plano piloto de Brasília: A Esplanada dos Ministérios. Shylon ainda se ajeitava desconfortável dentro da camisa social branca que trajava, contrastando com as confortáveis roupas cotidianas que os outros dois vestiam. De súbito, ele observou um longo pináculo se erguer da terra alaranjada que o circundava. Era a bandeira do Brasil que se encontrava logo atrás da Praça dos Três Poderes, o centro administrativo da capital federal. Aquele pavilhão era considerado a maior bandeira hasteada do mundo, sendo substituída mensalmente em uma tradicional cerimônia militar. Chegando ao seu destino, o taxi estacionou para que os jovens descessem. Mas o que Gabriel nunca esperou era que ele fosse se encantar com a visão que presenciava naquele momento. Levado por um impulso, Gabriel girava em torno do seu próprio eixo contemplando a magnitude da Praça. Shylon também ficou admirado, porém em silêncio. A Praça dos Três Poderes era um amplo espaço aberto entre os três edifícios

monumentais

que

representavam

os

poderes

da

República

brasileira: O Executivo, o Legislativo, e o Judiciário. Ao centro, um longo retangulo de mármore branco exibia o busto do fundador de Brasília com a seguinte frase: “Ao presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, que desbravou o sertão e ergueu Brasília com audácia, energia e confiança, a homenagem dos pioneiros que o ajudaram na grande aventura”. Sofia leu a inscrição para os dois garotos, traduzindo-a para o Korah. - É muito lindo, não é? – Disse Sofia, já esperando aquela reação dos dois. – À sua frente está o prédio do Congresso Nacional, a casa do Poder Legislativo. Do seu lado direito se encontra o Palácio do Planalto, sede do 271


Poder Executivo. E do seu lado esquerdo o Supremo Tribunal Federal, a corte de última instância do Poder Judiciário no Brasil. Embora fossem tradicionais prédios da administração de um Estado, o que diferenciava aqueles edifícios era a sua arrojada e moderna arquitetura, cujos traços mais pareciam ter saído do sonho de um gênio futurista. Desenhados pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, os prédios da Praça dos Três Poderes – assim como Brasília inteira - haviam sido projetados para que se tornassem um marco da cidade mais moderna do país. Um símbolo do progresso em uma época que o Brasil começava a se projetar como uma futura potência no mundo. O traçado solidificado pelo concreto parecia sugerir que aquelas construções flutuavam com suas finas colunas e largos espaços abertos. Todas revestidas com mármore branco, elas contrastavam com o sempre azulado céu de Brasília, e o verde do longo gramado que forrava a Esplanada dos Ministérios. O prédio mais curioso ali era o do Congresso Nacional. Cartão postal mais famoso de Brasília, com sua concepção plástica arrojada, a sede do Poder Legislativo do Brasil era um conjunto onde se destacavam as duas cúpulas representando os plenários: A cúpula maior – côncava – abrigava a Câmara dos Deputados, e a cúpula menor – convexa –, abrigava o Senado Federal. Completando o complexo, duas torres gêmeas em forma de H, quando vistas de frente, se erguiam do interior de um grande espelho d’água. Lá funcionavam os escritórios administrativos das casas legislativas. Gabriel estava envolvido por completo naquela nova atmosfera. - Nunca vi algo assim na minha vida. – Disse Gabriel - Olhe que já viu. – Disse Shylon, se referindo ao Santuário. De surpresa, Sofia puxou a mão de Gabriel e de Shylon. - Vocês não pretendem ficar aí o dia inteiro, não é? Venham, temos muitas outras coisas para conhecermos. Os garotos seguiram a jovem, enquanto que seus longos cabelos se espalhavam pelo forte vento que soprava pela Praça. Caminhando ao longo de uma das avenidas que formavam o Eixo Monumental, os jovens contemplavam os prédios dos Ministérios do Governo 272


Federal que se erguiam um ao lado do outro, como se abrissem caminho para a Praça dos Três Poderes. Chegando quase ao fim da Esplanada, Gabriel avistou uma forma conhecida emergir da terra. A princípio, o que parecia ser uma pirâmide, lhe confundiu os sentidos. Aqueles traços brancos pareciam unir-se em um ponto no alto e depois se dispersarem como se continuassem seu traçado no céu. Segundo o que Sofia explicara mais tarde, aquela curiosa forma remetia à imagem de duas mãos postas em oração. No alto, um símbolo bastante conhecido do garoto não deixava dúvida do que se tratava: Uma igreja. Shylon não se conteve de curiosidade diante do moderno templo. - O que é isto? – Perguntou. - Esta é a Catedral de Brasília. – Sofia respondeu enquanto caminhava. - É incrível. Mas onde está a entrada dela? – Perguntou Gabriel, observando que ao redor da construção não havia nenhuma porta ou arco de entrada como em outras igrejas tradicionais. - Venham e lhes mostrarei. – Sofia seguiu pela calçada, até que alcançaram o quarteirão da Catedral. Bem à frente de sua fachada, quatro grandes estátuas de bronze se postavam como guardiões daquele templo de vidro e concreto. Em suas formas esbeltas eram retratados os quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João. A pequena inclinação que os jovens subiam converteu-se em uma rampa que descia por um longo e escuro corredor. Aquela cova de concreto era o pórtico de entrada do templo. E após entrarem naquele túnel obscuro, eles emergiram para um surpreendente recinto inundado de luz. Aquela arquitetura era de fato sem comparação. A forma circular da construção parecia abraçar quem ali entrava, como se fosse um peregrino que saia das trevas para a iluminação. As brancas colunas de concreto que Gabriel enxergara no exterior sustentavam a estrutura de formato hiperboloide. Dentro daqueles triângulos inclinados, imensos vitrais mesclados de azul, verde, marrom e branco davam vida ao ambiente, pintando imagens disformes. 273


A magnitude do templo impressionava, e a reação de Shylon e Gabriel era condizente com o local. Shylon se aproximou das paredes revestidas de mármore branco, tocando-a com as mãos. Seguindo seu trajeto, algo em seu caminho o deteve abruptamente, quando, ao levantar a cabeça, uma forma humana lhe saltou aos olhos. Era uma réplica da escultura da Pietá de Michelangelo que se encontrava na lateral do santuário. O jovem, como a maioria dos visitantes do local, passou um bom tempo admirando aquela obra, sem saber de sua imensurável importância na história da arte de Yuransha. Gabriel por sua vez, caminhava ao longo da nave por um tapete vermelho que levava até o altar, inebriado por aquela atmosfera. A Catedral se encontrava vazia naquele horário de almoço, e somente a presença do trio preenchia o recinto. Mas algo lhe fazia sentir que não só eles estavam ali. Era como se uma aura verdadeiramente divina habitasse aquele lugar, uma forte concentração de

energia.

Por

um

breve

momento

sentiu

sua

Vohan

pulsar

inconscientemente pelo interior de suas células. Sua energia vital por algum motivo estava ativada naquele lugar. Continuando a andar ele não percebeu um movimento que pairava acima de sua cabeça. Uma sombra projetada no local onde pisava. Uma presença real que preenchia o espaço aéreo da Catedral. Experimentando um estranho reflexo, sua cabeça se levantou, junto com seus olhos, e a visão que ele teve o tomou completamente desprevenido. Seus olhos não eram os únicos que estavam observando. Outros dois lhe penetravam firmemente enquanto a mão daquele ser apontava em sua direção com a palma aberta. Gabriel sentiu seu coração disparar quando percebeu que aquele ser não estava sozinho. Outros dois pairavam acima dele, bem mais distantes, porém descendo em sua direção. Recuando instintivamente, Gabriel tropeçou no tapete vermelho da Catedral, à medida que caia sem reação no fofo tecido. Shylon se virou no mesmo instante, correndo para a cena que lhe atraíra a atenção, à medida que Sofia também corria para socorrer o amigo. 274


- Os anjos... – Disse Gabriel recobrando o equilíbrio, enquanto apontava para cima. Olhando para o alto, Sofia então entendeu que aquela cena pitoresca devia-se ao susto que Gabriel levara ao fitar três estátuas de anjos que pairavam no centro da Catedral. Aquelas pesadas esculturas de concreto suspensas por cabos de aço eram uma decoração um tanto quanto inusitada. Quando vistas da entrada da Catedral, aquelas imagens pareciam mais um arranjo que completava o ambiente. Mas quando observadas do centro do edifício tomavam a forma de uma visão divina onde os anjos pareciam descer do alto e convidavam o peregrino a subir junto com eles rumo aos Céus. Aquela ilusão de óptica devia-se, sobretudo, ao tamanho das imagens. Quanto mais próximo do piso maior era a escultura, quanto mais distante, menor. A beleza daquele santuário católico impressionara tanto Gabriel que ele não havia notado aquele trio cinzento acima de sua cabeça, provocandolhe aquele inesperado encontro e sua cômica queda. Mas tudo não passou de um susto. - Você conseguiu fazer o impossível. – Disse Sofia, erguendo-o do piso de mármore. - Olhe que não. Ainda posso fazer esses anjos voarem pela Catedral. – Disse Gabriel, rindo. - Prefiro não estar aqui quando os turistas chegarem. – Disse ela, devolvendo o sorriso. - Certo, e o que se faz aqui? – Perguntou Shylon. - Depende do que você deseja. Uns vem aqui para cumprir com rituais diários que se impuseram. Outros para pedirem coisas que eles próprios são capazes de realizar. Outros, porém, para esperarem milagres que nunca chegarão a acontecer. – Disse a garota, observando serenamente o lugar. - Por que você é tão cética? Essa é a fé que vocês praticam no seu planeta? – Perguntou Shylon. - Você tem uma melhor?

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- Sim, eu tenho. – Disse Gabriel, interrompendo. – Entendo que já passou o tempo em que as pessoas buscavam Deus a partir de si mesmas. Agradeciam pelo que são e o que possuem através de suas ações diárias. E conversavam diariamente com Ele se perguntando como poderiam ser pessoas melhores. Há muito tempo essa paz interior foi ensinada, mas pouca gente escutou. - E quem foi o Mestre que ensinou essa paz? – Perguntou Shylon. - O mesmo que está ali. – Gabriel voltou seu olhar para um grande crucifixo de madeira que estava ao fundo do altar central. Shylon caminhou até a beira da escada que levava ao altar. Com seus olhos, fitava o homem que pendia no madeiro, enquanto ouvia Gabriel falar. - Dizem que doutrina era perfeita, era suave, acolhedora. Todos se reconheciam em suas palavras porque Ele sempre se colocava no lugar das pessoas. Mas no fim Ele acabou morto pela intolerância do seu povo, pelos pensamentos poluídos pela falta de amor. Muita gente não o ouviu porque não quis ouvir. Todos estavam surdos... E creio que estão, até hoje. – Disse Gabriel, lamentando. Shylon ouvia aquelas palavras, mas não as conseguia assimilar por completo. Faltava-lhe algo naquele momento. Faltava-lhe compreender a real mensagem que Jesus trazia consigo, além daquele corpo torturado e sem vida pendurado naquele crucifixo. Faltava-lhe fé, a mesma fé de que Sofia não possuía. Uma sombra cortou a luminosidade da Catedral. O som de rotores de helicóptero fizeram os três garotos acordarem daquela reflexão enquanto que o eco da máquina se perdia em sua trajetória desconhecida. - Será que sabem que estamos aqui? – Perguntou Sofia, preocupada. - Duvido... – Disse Shylon, tentando perceber o destino daqueles helicópteros. – Nesse momento estão longe daqui. Indo para mais longe ainda. Gabriel então fez sua voz novamente ecoar na Catedral voltando-se para Sofia. - Parece que você é tão cética quanto medrosa. Tenha calma, ninguém sabe que estamos aqui.

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- Mas não estou querendo descobrir isso. De qualquer jeito é melhor irmos, precisamos voltar para casa e vermos se as buscas do senhor James Wolf deram algum resultado. – Disse ela, sorrindo sarcasticamente para Gabriel. - Concordo. Quero ver no que isso vai dar. – Disse Shylon, concordando com a cabeça. - Creio que não precisamos mais de táxis para voltarmos, não é? – Disse Gabriel. - Não mesmo. – Sofia respondeu. - Quer fazer o favor? – Disse Gabriel estendendo sua mão para Shylon, enquanto segurava a de Sofia. - Até quando você vai se esquivar de saltar entre os espaços? – Shylon perguntou, reprovando-o. - Quem sabe um dia, quando aprender. Mas não hoje. Não aqui. – Respondeu, sorrindo despreocupadamente. Shylon balançou a cabeça negativamente, enquanto fechava os olhos mentalizando a mansão de Sofia no Lago Paranoá. Gabriel voltou a fitar a escultura do anjo. Mas dessa vez ele parecia acenar, se despedindo. O jovem, então, se lembrou de que em breve teria que voltar para o lugar onde se encontravam os anjos que antigamente visitaram seu mundo: Nemashi. E com esse pensamento, eles novamente deixaram a Catedral em um completo vazio.

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DOCUMENTO 046 A RESPOSTA De volta ao quarto de Sofia, Gabriel novamente acessava a Deep Web, explorando o fórum em que deixara uma mensagem há algumas horas. A janela do chat prontamente fora aberta, mas anexa a ela, pequenas outras janelas em cascata apareciam uma em cima da outra, como se fossem uma lista de mensagens não lidas. - Temos uma resposta. Na verdade muitas. – Disse Gabriel, verificando uma caixa em cima da página. Ao mover o cursor do mouse, várias caixas surgiram, indicando a gama de mensagens que haviam sido deixadas para Gabriel. Os garotos fitavam aqueles retângulos como se tivessem encontrado a Arca da Aliança. Porém, aquela arca continha muito mais do que os Dez Mandamentos. Aqueles links anunciavam o retorno das mensagens piscando com vigor, chamando a atenção de Sofia que não conseguia mais esperar para conhecer que respostas estariam ali guardadas. Sutilmente, a garota aproximou sua mão do cursor, direcionando-o para uma daqueles links. - Não toque nisso! – Gabriel esbofeteou a mão de Sofia, atirando-a para longe do mouse e assustando a garota e a Shylon. - O que houve?! – Perguntou, amedrontada. O filho Marishi também recuou com aquela inesperada reação de Gabriel. - Assim como na Internet, é preciso ter cuidado com a Deep Web. Muitas páginas e fóruns disponibilizam vários links maliciosos disfarçados de programas famosos, ou se aproveitando de brechas no sistema operacional para pegar os que não estão acostumados a navegar nessa rede. E se você clicar... - O que acontece? – Perguntou a jovem, com o coração disparando. - Nem queira saber... É mais fácil procurar um computador novo. – Disse Gabriel, digitando uma série de códigos, prontamente fechando aquelas caixas piscantes. – Isto é um sistema de proteção do nosso fórum, para caso uma pessoa estranha acesse a página com nossa conta. Somente

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por meio de um comando pessoal podemos desativar essas caixas e acessarmos as verdadeiras mensagens. - Certo, já sabemos que isso é seguro, mas quero ver o que seu amigo respondeu. – Disse Shylon, se projetando sobre o monitor. Gabriel prontamente entrou na caixa de mensagens, o verdadeiro arquivo do fórum, semelhante a uma caixa de e-mails dos dias atuais.46 - O que está escrito? Não entendo nada. - Me impressiona se entendesse... – Respondeu Gabriel. – Isso aqui, meus amigos, é nosso próximo plano de estudo. E acreditem, ele pode não caber em um único Tahamalen. Diante de Gabriel, uma lista quase infinitas de links e títulos apareciam e desapareciam enquanto o jovem Harashi movia o cursor do mouse, descendo a página exibida no monitor. Links com títulos como “Avistamento de OVNIS na Amazônia em junho”; “Imagens de corpo luminoso captadas por câmeras da Estação Espacial Internacional”; “Arquivos de investigações de atividade extraterre guardados no Kremlin”; “Documentos protegidos por ex-ministro da Defesa do Canadá revela atividade alienígena na Terra”, se revelavam aos concentrados olhos de Sofia, que, tomada por um sobressalto, segurou o braço de Gabriel, detendo-o no meio daquela busca. - Espera... – Sofia interrompeu. - O que foi? – Perguntou, para maior incômodo de Shylon, que apenas observava. Sofia apontou para o link um pouco acima do cursor. Seus olhos brilhavam diante das palavras destacadas em negrito. -...

“Locais

plausíveis

de

atividades

extraterrestres

(...)

Entre

montanhas”? – Gabriel leu, cortando algumas palavras do título – É isso que acabei de ler?

46

Por segurança, as conversas realizadas no chat prévio eram apagadas após alguns minutos, para garantir a segurança daqueles que acessavam o fórum. Entretanto, aquelas conversas eram enviadas diretamente para a caixa de mensagens da conta pessoal do usuário daquele fórum, que só era acessada após a confirmação do código de segurança. De fato, a Deep Web era tão anônima quanto segura – para aqueles que sabiam navegar, claro.

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- Abra. – Disse a garota, com uma autoridade irrecusável. Clicando em cima daquele link, uma nova janela foi aberta, revelando um novo fórum, agora com paisagens desérticas, como se fosse um guia de turismo nas regiões mais exóticas do planeta. Seu nome, não podia ser menos simbólico: O Círculo de Nazca, em referência aos famosos geoglifos no deserto de mesmo nome, no Peru. Entretanto, se tratava de uma página que especulava sobre atividades alienígenas. Recheado de notícias falando sobre teorias relacionadas ao governo norte-americano, e estranhas e não menos surreais espécies de supostos alienígenas, a matéria central daquele exótico fórum da Deep Web tratava sobre alguns lugares inusitados, que no passado foram palco de fenômenos ufológicos. De acordo com aquela longa e detalhada matéria, tanto as visitas como avistamentos de seres extraterrestres ou fenômenos do gênero giravam em torno de um lugar em especial. Todas elas, segundo o texto, aconteciam em localidades cercadas de montanhas. Na lista das cidades que se assentavam entre montanhas, se encontravam algumas conhecidas como Roma na Itália, Washigton e Los Angeles nos Estados Unidos, Lhasa no Tibete, e outras nem tão conhecidas, como Medjugórie na Bósnia e Herzegovina, onde muitos acreditam que a Virgem Maria teria aparecido a jovens videntes e lhes transmitido uma série de mensagens sobre o Fim dos Tempos, Kanagawa no Japão, onde se encontra o Monte Fuji, conhecido como um lugar amaldiçoado, onde muitas pessoas entram em suas florestas para cometer suicídio, e muitas outras. Após lerem aquela matéria, Sofia ainda continuava imersa em sua natural curiosidade. - De fato isso é interessante, mas não nos trouxe nada novo para nós. – Disse a garota, após ouvir a leitura do texto. – Mas algo ainda me intriga, por que montanhas? – Perguntou Sofia. - Na verdade, minha cara... – Respondeu Shylon, se intrometendo imediatamente. – elas possuem uma importante função em nossas missões. Quando navegamos até um planeta, nossos módulos fazem uma varredura prévia através de nossos scanners para estabelecer o relevo do planeta ao 280


qual desceremos. As montanhas mais altas por sua vez se tornam verdadeiras balizas para nossas manobras, sendo os melhores pontos para descermos em qualquer mundo. - Talvez seja por isso que a maioria dos fenômenos de avistamentos ocorra em locais montanhosos. – Disse Gabriel, surpreso com sua própria conclusão. - Exatamente. – Respondeu o amigo. - Mas qual a relação de tudo isso com os nossos amigos que procuramos? – Novamente a garota perguntou. Meio disperso naquela conversa, Gabriel apenas ergueu sua mão, pedindo silêncio. - Acho que encontrei a resposta. – Disse, sendo imediatamente cercado por Shylon e Sofia. Eles fitaram o final daquela mensagem, na qual um pequeno texto do informante de Gabriel dizia umas poucas palavras em meio aquela floresta de links e páginas da Deep Web. Dê atenção aos links de número 11, 14, 23, 26, 28, e, sobretudo, ao que fala sobre atividades em determinadas regiões montanhosas. Espero que seja útil. Para cada um desses links há uma mensagem com dados específicos que achei na Rede. Uma mensagem mais objetiva do que aquela não existia, e o trio respirou, aliviado, enquanto Gabriel apressadamente retornava à caixa de entrada das mensagens, vendo que seu amigo anônimo havia deixado uma série de mensagens sobre aquelas páginas surreais. O cursor escorregou certeiro, abrindo o link da mensagem sobre as montanhas. Aquela longa carta sintetizava o que falava aquele texto, mas uma parte no final logo chamou a atenção dos garotos.47

47

Acessando as memórias dos três jovens Harashis, pude facilmente registrar a mensagem na íntegra, cujo conteúdo era este: “Boa noite Wolf, Não sei quais são suas intensões nesta nova comunicação, mas vejo que passou um bom tempo longe do Clube. Espero que não tenha arrumado nenhum problema com os homens de Washington, principalmente para nós.

281


Se eu fosse você, focaria nesses dois primeiros, Roma e Washington. Acredite Wolf, a política e a religião estão tão intimamente ligadas a estes casos que poderia dizer que elas são a origem da Ufologia. O que você procura não está por aí voando pelos céus, mas escondido em nossas instituições aqui na Terra. Abraços cordiais, Mr. Brownstone. Sofia leu aquilo, soltando um profundo suspiro, voltando-se para Gabriel, sem acreditar. - Então esta é a grande revelação do nosso amigo Brownstone? Sem uma fonte segura não podemos dar crédito a isso. A margem de especulação é muito grande. Que fontes são essas de que ele possui? - Eu não sei. – Respondeu Gabriel.

Esta mensagem, em resposta às suas dúvidas sobre recentes atividades de nossos visitantes, diz respeito a indícios de que estão ocorrendo atividades extraterrestres em zonas montanhosas de nosso mundo. Como você já deve saber, montanhas são como verdadeiros portais, pontos de contato entre um local desconhecido no espaço e o nosso planeta. Não vou me alongar muito. Para esclarecer suas dúvidas é muito mais útil que acesse estes links que lhe enviei abaixo. Dê atenção aos links de número 11, 14, 23, 26, 28, e, sobretudo, ao que fala sobre atividades em determinadas regiões montanhosas. Espero que seja útil. Para cada um desses links há um resumo com dados específicos sobre o que achei na Rede. Mas é preciso que saiba que se você está à procura de atividades suspeitas no nosso planeta, minhas fontes mais seguras me garantem que você deve procurar em arquivos governamentais de três regiões e instituições: 1) O Vaticano, na cidade de Roma, localizada entre as Sete Montanhas. Há muito tempo sabemos que a Igreja omite dados de pesquisa e estudos secretos sobre seres de outros planetas; 2) Washington, a capital do acobertamento ufológico, que não preciso me alongar por razões tão óbvias; e 3) Por incrível que pareça, o Tibete, sede das ordens monásticas budistas, uma vez que elas desde sua origem, possuem segredos relacionados a contatos com seres de outros mundos, bem como curiosas doutrinas sobre a mente e o Cosmos. Foram registrados avistamentos regulares nestas regiões, principalmente Washington. Talvez seja isso o que procure. Se eu fosse você, focaria nesses dois primeiros, Roma e Washington. Acredite Wolf, a política e a religião estão tão intimamente ligadas a estes casos que poderia dizer que elas são a origem da Ufologia. O que você procura não está por aí voando pelos céus, mas escondido em nossas instituições aqui na Terra. Abraços cordiais, Mr. Brownstone.”

282


- E você confia em uma fonte anônima desse jeito? - Estamos navegando pela Deep Web. Você realmente espera que alguém aqui coloque uma foto de perfil e diga de onde veio? - Então isso é tudo o que temos por enquanto? – Perguntou Shylon. Gabriel balançou a cabeça, positivamente. - Ótimo. – Concluiu, satisfeito. - Ótimo? Você acha isso ótimo? – Perguntou Sofia, revoltando-se. - Você tem algo melhor? – O filho de Marishi retrucou. - Não, mas não pretendo repassar informações apócrifas ao Santuário? - Meu bem, posso não ser um Zahraniano, mas para mim o conhecimento fala mais alto, independente da fonte. - Assim como sua teimosia. – Disse, enfurecida. Fingindo

que

não

escutou,

Shylon

ignorou

Sofia,

voltando-se

imediatamente para Gabriel. - Tem alguma maneira de copiarmos essas informações com segurança? – Shylon perguntou. - Claro. Usando uma técnica que ninguém pode interceptar. – Gabriel respondeu, enquanto digitava rapidamente. - Qual? – A garota perguntou, resmungando. Gabriel abriu novamente a janela do chat, que preencheu toda a tela do computador. Seus dedos sobrevoavam o teclado da máquina como se estivessem procurando uma tecla em específico, até que seu dedo desceu. Veloz. Preciso. Sofia olhou para Gabriel surpreendida. - Print screen? Você só pode estar brincando. - Você tem algo melhor? – Gabriel respondeu, ironicamente, fazendo a garota bufar de raiva. Ela retirou-se da presença dos dois, voltando sua atenção para os livros de sua estante que há muito tempo não os via. Eles sim, pareciam compreendê-la muito mais do que aqueles dois Harashis imaturos. Em meio àquelas desavenças, Gabriel logo abriu a imagem em outro programa e imediatamente imprimiu as páginas que havia salvado. Levantando-se da cadeira, Gabriel chamou seus amigos, mostrandolhes as folhas recém-impressas que segurava. 283


- Precisamos voltar à Nemashi. Por enquanto nossa missão está cumprida. – Disse, enquanto Shylon se levantava da cama de Sofia que havia sentado por um instante para descansar. Mesmo a contragosto, a garota também se aproximou, concordando com a decisão.

284


DOCUMENTO 047 A ORDEM DOS SUPERIORES Marishi se encontrava em uma sala circular com um grande domo dourado no teto. Aquele pequeno anfiteatro, iluminado por cristais cintilantes, era uma das salas de aula da Academia do Santuário. Sentados à mesa que flutuava ao centro da redoma, Haron e Shandara discutiam sobre uma carta que se projetava no centro da mesa com sua imagem luminosa quando o trio de adolescentes irrompeu pela entrada do salão. -

Pai,

desculpe

interromper,

mas

descobrimos

algo

sobre

os

Zahranianos. – Disse Shylon visivelmente cansado por ter percorrido o Santuário inteiro atrás de Marishi. - Vejo que a pressa de vocês tem um motivo, mas nós também temos uma notícia para dar a vocês, e não podemos mais esperar. – Disse Haron, interrompendo. – Descobrimos o porquê dos Zahranianos estarem em Yuransha. - Como? – Disse Gabriel, surpreso. - Segundo os estudos de campo do Sacerdote Shandara, os Magos podem estar de fato trabalhando em conjunto com os governos do seu planeta. Mais precisamente com o governo do seu país, Luhan. - E mais. Sabemos o nome de quem pode estar no comando desta missão. – Haron completou. - Quem? - Seu nome é Lakahz Hamorun. – Disse Shandara. Sofia sentiu uma estranha sensação no seu âmago. Gabriel apenas observava, enquanto que Shylon não esboçou nenhuma reação. Aquele nome já lhe era familiar, assim como para o resto da Ordem. O Sacerdote continuou, notando o desentendimento de Sofia e Gabriel. - Ele é um dos Magos mais proeminentes da Ordem de Tevohan. Sua primeira missão ficou marcada para sempre na nossa história como um dos episódios mais sangrentos que aconteceram nos muros do Santuário. - Que episódio? – Perguntou Gabriel. 285


- Há alguns ciclos, um grupo de Magos invadiu o Santuário para roubar uma relíquia pertencente a eles. - O que eles buscavam? - Dois textos que consideravam fundamentais para eles. O primeiro e principal, a chamada Codificação Zahraniana, que há muito tempo se encontrava guardada nos Arquivos da nossa Biblioteca. A Codificação era um verdadeiro guia sobre a Mente e sua interação com o Universo. Se nós temos as Escrituras do Princípio, o equivalente delas para os Magos seria a Codificação. - E qual era o outro texto? - O outro era uma obra que se fosse juntada à Codificação, daria aos Zahranianos um conhecimento muito mais poderoso do que possuímos. – Disse Shandara, sem conseguir prosseguir. - O que eles buscavam era a última cópia do Livro de Ormoshi. – Disse Marishi, olhando para o amigo. – Mas é claro, eles não tiveram sucesso, uma vez que o Livro se encontrava perdido no seu planeta. Gabriel e Sofia escutavam aquilo como se um filme estivesse passando dentro de suas cabeças, compreendendo a razão do interminável conflito entre os Harashis e os Zahranianos. - Então... se os Magos colocassem as mãos no Livro de Ormoshi... - Eles teriam domínio sobre o passado, o presente, e o futuro desse Universo. Em outras palavras, poderiam controlar nossos passos, nossos planos, nossas Mentes. – Disse Marishi, fatidicamente. - Esse foi um dos maiores fracassos na história dos Zahranianos. A missão não saiu como eles esperavam, custando não só a vida de milhares de nossos Sacerdotes, mas também deles próprios. Lakahz foi o único Mago sobrevivente do banho de sangue que lavou os átrios do Santuário. Nesse dia nós testemunhamos seu real poder. – Disse Shandara, interrompendo Marishi. Os garotos apenas ouviam calados. O Sacerdote voltou a falar. - Seu êxito ao resgatar as escrituras Zahranianas lhe rendeu ainda mais poder dentro da Ordem Zahran, tornando-o um de seus líderes. Ele não é um Mago qualquer. Ele se tornou um estudante na arte da morte.

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- Mas senhor, se vocês dizem que os Zahranianos são tão poderosos, porque eles simplesmente não voltam para nos destruírem? – Sofia interrompeu, abismada. - Não se preocupe, minha jovem. Como você já aprendeu em suas aulas, os Zahranianos apenas destroem aquilo que os impedem de alcançar o conhecimento. Se nós estamos buscando o mesmo que eles, porque eles destruiriam o que pode ser útil aos seus propósitos? - Então eles vivem como parasitas do conhecimento que adquirimos? – Perguntou Gabriel. - Até certo ponto, sim. – Haron se interpôs. – Eles buscam comprovar o que eles aprenderam, através de nossas próprias descobertas. Como é que dizem no seu mundo... Duas cabeças pensam melhor que uma? – O garoto assentiu. – Mas a partir do momento em que a Verdade encontrada por nós supera os seus avanços, eles buscam ter somente para si o conhecimento que adquirimos. - E como eles agem? - Através das mais diversas armas. Do modo mais rude, se utilizando da violência, até a mais sombria das magias negras criada por eles. São capazes de tudo para adquirir seu tão estimado conhecimento. Até mesmo corromper a Mente de Sacerdotes, de Reis, de Governantes. - E isso inclui os líderes do meu país? - Certamente, Luhan. O Livro de Ormoshi é um tesouro tanto para o governo dos Estados Unidos quanto para os Magos. Se nós, que somos os Sacerdotes da Ordem Harashi precisamos da sua ajuda, assim como de Sofia, do mesmo modo os Magos precisam de alguém em Yuransha para encontra-lo. E no momento não há ninguém melhor do que aqueles que deram origem a tudo isso. – Disse Marishi, trazendo a Gabriel suas memórias da origem da descoberta do Livro. - Mas não se engane Luhan. – Disse Haron. – Embora pareçam distantes de nossa realidade, os Zahranianos concentram dentro de si um poder inimaginável. Suas Mentes são como um mar de segredos que não podem ser tão facilmente desvendados. Você pode mergulhar nas suas águas

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turvas, mas quando a luz de suas virtudes não mais o alcançar, você está encarando um mundo desconhecido. Perdido, assim como eles desejam. - Sim garotos, o que vocês tinham para nos contar? – Indagou Haron, convidando o trio a se juntar à mesa. *** O Mago ergueu seu manto, iluminando seu calvo cocuruto com o reflexo dos cristais do salão. Perante ele, seu soberano lhe olhava com satisfação. O Arquimago das hostes zahranianas estava cumprindo o seu dever, avançando sobre seu pior inimigo. Porém aquele inimigo não era um homem, muito menos um Sacerdote Harashi. Para um Zahraniano, o pior inimigo era aquilo que o impedia de obter o conhecimento. No caso de Lakahz, era sua própria ignorância. A leitura diária, repetida, quase que automática o fizera decorar inúmeras obras sobre a Ciência daquele Universo. As Escrituras do Princípio eram apenas uma insignificante parcela do que o Mago havia assimilado em sua vida. Embora suas características o descrevessem como um homem frio, desprovido de qualquer virtude compassiva, seu intelecto ardia em meio às poderosas chamas do saber. Lakahz era um verdadeiro intelectual. Um homem que dominava todas as áreas da Ciência Universal. Não só as naturais, como também as psíquicas e aos olhos de Yuransha, o que era chamado de Magia Negra. Aquilo

o

tornava

um

homem

completo,

um

guerreiro

invencível,

praticamente um semideus, na visão dos Zahranianos. Acima dele, porém, estava o homem que vos falava naquele momento. O único que de fato era considerado ser o mais próximo de se tornar invencível, imortal, um verdadeiro deus: Sarahnel. - Creio que já esteja por dentro dos acontecimentos Arquimago. – Disse Sarahnel em meio às sombras do escuro salão circular. - Sim, meu senhor. Essa é a razão da minha vinda. – O Zahraniano fez uma pausa. – Como sabe, sou um homem precavido. E devido ao avançar 288


dos nossos estudos, creio que seja mais seguro levá-los para outro lugar, digamos, para dentro de nossos muros. - Admiro muito sua lucidez. Sempre colocando seus pensamentos a frente dos nossos inimigos. - Sim, milorde. – Lakahz se curvou, ante o Juiz Supremo. – O que era preciso aprender já foi aprendido. O que precisávamos ler já foi lido. Só nos restam algumas poucas passagens que podemos decifrar na segurança de nosso mundo. - E como você pretende realizar isso? Sabe que vocês não podem desaparecer de onde se encontram. Acima de tudo nossa missão é agir em silêncio, afinal, não existimos naquele mundo. - Ontem à noite eu tive um sonho. – Disse o Mago, recordando-se. – O Mosteiro consumia-se por completo em meio às chamas. Um verdadeiro inferno que não deixava rastros, nem deles, nem de nós. Um trágico fim para homens que em nada fazem pelo seu progresso, a não ser agir como vegetais à espera da própria destruição: seja pelas adversidades do sincronismo temporal, ou pela frágil natureza física daqueles mortais. - É difícil pensar em outra coisa quando você se vê cercado pelas mais rudes crenças dos mais miseráveis dos homens. - Sim milorde. Embora haja alguns que se adaptariam facilmente à Ordem, outros, porém, não possuem um mínimo de expectativa para suas vidas. Sucumbiriam ao primeiro dia dentro de nossas paredes devido à sua falta de visão e sabedoria. - Mas isso é passageiro, Lakahz. A cada geração que se passa, apenas os que buscam a iluminação sobrevivem. Aos que estancam suas Mentes no tempo, estes serão esquecidos através das eras, assim como seus medíocres pensamentos. O tempo corre igualmente para o guerreiro sábio, assim como para o ignorante. O que o torna invencível é a maneira como ele escolhe utilizar seu tempo: Treinando arduamente, ou desperdiçando-o com vaidades. – Disse o Líder Supremo, com sua tradicional autoridade retórica. - Por isso não podemos perder tempo. A Ordem de Nemashi ainda está à procura dos nossos tesouros. Eles não podem tocar nesses escritos. Estão agindo como nós fizemos naquele tormentoso dia. 289


- Diferente de nós, eles nada fizeram para merecer este Conhecimento. Apenas tiraram algo que pertence a nós, assim como nossa Codificação. Novamente eles procuram agir como covardes, buscando tomar o livro do Guardião que estudou a vida toda para compreendê-lo. - Apenas espero a sua ordem para que aquele tesouro retorne à Tevohan. - Você o fará quando achar necessário. – Disse o Mago Supremo. – Você

um

Arquimago

Zahraniano.

Eu

divido

contigo

as

minhas

responsabilidades, não o meu trono. Meus homens são os seus homens. Coloque-se no meu lugar, e saberá o que fazer. Devemos ser como uma só Mente. Só assim seremos invencíveis Lakahz. - Está feito... Meu Senhor. – Disse o Sacerdote, retirando-se da presença de Sarahnel.

290


DOCUMENTO 048 ENTRE AS MONTANHAS E AS PLÊIADES Entre montanhas? Questionou Haron. - É o que as mensagens do Fórum dizem. – Disse Gabriel, entregando uma série de papeis impressos a Marishi. – É tudo o que consegui por enquanto. - Será de grande utilidade para nós. Mandarei estes documentos para o Laboratório de Estudos Linguísticos digitalizarem e traduzirem. - Por que você confia tanto na Deep Web Marishi? – Perguntou Sofia. - As melhores informações são aquelas que mais se procura ocultá-las das pessoas. Se não querem que saibam, deve haver um bom motivo para isso. – Disse Marishi. – A Deep Web é um verdadeiro oceano de muitas mentiras e farsas, porém, a verdade está bem misturada a elas. Você só precisa saber onde procura-la, e pelo visto Luhan sabe muito bem como fazer isso. – O garoto soltou um sorriso acanhado. - Mas que tipo de fundamento tem essas informações? – Sofia novamente perguntou. - Na realidade, elas têm bastante fundamento. Como você sabe, os yuranshianos tem um verdadeiro fascínio por montanhas. E isso tem uma razão muito especial, principalmente pela relação que seu planeta possui com algumas estrelas, como as Plêiades. - As Plêiades? – Perguntou, surpresa com a resposta do Sacerdote. - Exatamente, minha jovem... Marishi explicou que boa parte das lendas de Yuransha davam uma importância central às montanhas como a morada dos deuses. Em todas essas histórias eram relatadas aparições inexplicáveis sobre elas, como nas tradições hopis, nos antigos livros sagrados dos hebreus, bem como nas lendas das antigas tribos árabes e dos fiéis muçulmanos. Também haviam relatos de guerras travadas acima das nuvens nas lendas gregas; e uma série de palácios que sobrevoavam as cidades e seus montes, na literatura hindu. Indo mais além, os sacerdotes e sábios desses povos sempre apontavam as montanhas como lugares sagrados, estabelecendo uma forte 291


ligação com as Plêiades, onde, em várias culturas do mundo antigo, como egípicios, maias, persas, chineses, e celtas e os índios das Américas, esta constelação era sempre associada aos seus deuses, e em muitos casos, associada também às origens da espécie humana. As Plêiades são conhecidas desde os tempos mais remotos pelos povos do mundo inteiro, incluindo os maoris (que as chamavam de Matakiri), os aborígenes australianos, os persas (que as chamavam de Parvin ou Soraya), os chineses, os maias (Tzab-ek), os árabes (Thurayya), os astecas (Tianquiztli) e também os índios Sioux da América do Norte. De acordo com a mitologia grega, este aglomerado recebeu o nome de Sete Irmãs, representando sete filhas e seus pais. Já para os japonses, seu nome é Subaru. Da mesma forma, o chamado anjo Morôni, revelador das Escrituras Mórmons, dizia que veio dessa região de estrelas. Entre lendas e histórias, um fato curioso é que, desde o início de sua sociedade, os sumérios possuíam um livro de estudos desses astros, que chamavam de Mul-Mul, ou “Estrela das Estrelas”. E esse culto às Plêiades tinha uma razão. Seis das estrelas das Plêiades são visíveis a olho nu em um céu noturno razoavelmente limpo, podendo esse número subir, de acordo com as condições de observação celeste. Em 1579, o astrônomo alemão Michael Maestlin desenhou onze dessas estrelas em sua carta estelar, e tempos mais tarde, outro famoso astrônomo, Johannes Kepler, chegou a dizer que seus amigos observadores foram capazes de contar quatorze dessas estrelas. Mas é necessário ressaltar que, muito antes desses dois cientistas modernos se aventurarem no estudo das Plêiades, os observadores do mundo antigo já haviam catalogado até centenas desses astros, sendo eles auxiliados em seus estudos, sobretudo os egípcios e sumérios, por nós Sacerdotes Harashis. A relação existente entre essa fascinação dos antigos pelas Plêiades e as montanhas de Yuransha é que, ao analisarem tais estrelas, esses sábios buscavam compreender de onde vinham os visitantes que há muito tempo desceram em seu mundo. O Sistema de Ashunyah se encontra muito próxima ao coração luminoso desse grande conglomerado de estrelas. No

atual

momento,

estamos

precisamente

a

4.202.456.475.920.391

292


quilômetros de distancia de Yuransha, ou se preferirem, aproximadamente 444 anos luz. - Então existe uma ligação real entre as montanhas, essas estrelas e meu mundo? – Sofia insistiu. - Certamente. Se alguém veio de Ashunyah para seu planeta, ele obrigatoriamente teria que partir de alguma região próxima às Plêiades e ao chegar, desembarcar próximo a alguma montanha de Yuransha. - Então os Zahranianos estão vivendo em regiões montanhosas? – Gabriel interrompeu aquela explicação. - Isso ainda não é possível saber. Os dados que você obteve incluem muitas cidades como Washington, Roma e uma série de outras capitais ou metrópoles que se situam entre montanhas. Mas também podem estar próximos a qualquer formação rochosa que sirva de baliza para sua primeira vinda a este mundo. – Marishi respondeu. - Então o que podemos aproveitar dessas informações? – Sofia perguntou. - A única certeza que temos é que, quando chegaram pela primeira vez em Yuransha, estes Zahranianos passaram por alguma região montanhosa do seu mundo. - Alguma em especial? – Gabriel perguntou. - Não sei, mas você pode descobrir isso para nós. – Disse Marishi, sorrindo para o garoto. – Continue suas pesquisas na Deep Web. Esta informação que conseguiu foi muito valiosa para começarmos a seguir os passos dos Magos em Yuransha.

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DOCUMENTO 049 O TESTE FINAL Sofia e Shylon se encontravam sentados ao final da grande escadaria daquela sala de aula ao ar livre. Daquela espécie de anfiteatro sem palco, eles observavam o desenrolar de uma curiosa aula ministrada por Marishi para seu jovem Discípulo, Gabriel. Desde que ele ingressara na Ordem, o ham’aryeno tinha uma meta traçada para o jovem. Queria que se tornasse um Sacerdote o mais rápido possível. Tal como Sofia, sua inteligência e aptidões para absorver aqueles conhecimentos eram louváveis, e o rápido desenvolvimento que o garoto obteve naqueles meses dentro do Santuário era espantoso, até mesmo para seres de outras espécies como os brilhantes syhrinianos. Embora Gabriel crescesse em conhecimento, algumas das habilidades essenciais

para

um

Harashi

ainda

não

estavam

completamente

desenvolvidas. E uma delas era o “Salto entre os Espaços”. A técnica de transporte para lugares onde a pessoa já esteve era de suma importância para os membros da Ordem. Acima de tudo, era uma ótima técnica de combate. Dado os acontecimentos em Milão e o perigo que realmente corriam, Marishi achava mais do que prudente instruir bem Gabriel e Sofia nesta área das Ciências da Mente. Desde cedo ele treinou seu filho para tal habilidade, e uma vez que também precisava proteger Sofia – que apenas engatinhava nas primeiras lições sobre se transportar entre os espaços –, Gabriel já passava da hora para largar as aulas teóricas e começar a praticar. Concentrado em seu aluno Discípulo, o Mestre Harashi caminhava de um lado para o outro, tentando atrair a atenção de Cameron e assim estimular sua percepção. -... Quando falamos que a Mente é o motor propulsor de tudo neste Universo, estamos falando de algo literal, seja a nível animal, em relação às nossas Mentes materiais, ou a nível supra-material, como em relação aos Seres Superiores que projetaram nosso Universo. A capacidade 294


de discernir e descobrir da Mente, com base nos mecanismos do Universo, depende inteiramente da habilidade, escopo e capacidade da Mente investigadora, empenhada na tarefa de observação. As Mentes do espaçotempo, organizadas a partir das energias do tempo e do espaço, ficam sujeitas aos seus mecanismos. Porém, como você sabe, existem leis naturais e não naturais em nosso Universo Local. E é o acesso a essas leis nãonaturais que permite com que seres iguais uns aos outros tenham capacidades

aparentemente

superiores.

E

a

chave

para

acessar

o

entendimento dessas leis está na vontade emanada de sua Mente. - Eu entendo o que você quer me dizer Marishi. Mas já tentamos outras vezes e eu ainda não consigo. Falta algo em mim... - O que falta em você é a vontade de agir. Lembre-se dos princípios da Ordem: A Humildade sem Coragem gera apatia. Mas da mesma forma, a Coragem sem Prudência gera caos. Não posso gravar isso em sua Mente. Não se trata de um sistema lógico que se reproduz infinitas vezes, como a técnica que usamos para você falar o Korah. Saltar entre os Espaços depende primeiramente dos rastros que suas memórias deixaram nos lugares onde você esteve e acima de tudo, de sua mais sincera vontade de estar neles. Quer tentar? Não sei quanto a Shylon e Sofia, mas eu posso ficar o resto do dia aqui. Gabriel fez um sinal com a cabeça, disposto a prosseguir. Do outro lado do campo, os dois jovens Harashis apostavam suas fichas nas habilidades de Gabriel. - Ele vai conseguir. – Disse Sofia, observando a cena de longe. - Não. Ele não vai. – Shylon insistiu mais uma vez, percebendo a ansiedade da garota. - Por que você está dizendo isso? - Isso não é uma técnica tão simples. Eu mesmo levei mais de um ciclo para me acostumar. Luhan mal chegou ao Santuário e meu pai já quer que ele praticamente saiba como saltar durante um combate, como fizemos em Milão. Para usá-la é preciso uma perícia especial, que só se adquire com o tempo. Quando calculamos mentalmente o espaço onde desejamos estar,

295


nós não calculamos a equivalência entre paredes, o piso ou o teto, simplesmente os sentimos. - Então o Salto é feito às cegas? - Eu não disse isso. Como você já deve saber, nossas memórias deixam rastros na Garbha, que nos permite unir aquele registro passado ao novo desejo de nossa Mente. Assim, somos transportados ao mesmo tempo por nossa vontade racional, e pela memória de que um dia estivemos ali. É como os estudos da Ordem ensinam: Nada neste mundo ou nos outros substitui a autêntica e constante experiência protagonizada pela nossa Mente. - E você acha que eu algum dia poderei me transportar entre os espaços? - Certamente. Na teoria todos os seres racionais podem utilizar a técnica do salto. Para isso basta que sua Mente seja desbloqueada para tais habilidades não-naturais. E isso pode vir como uma pré-disposição, pela raça, ou através do tempo, após muito treinamento. - Então as pessoas em Nemashi utilizam o Salto com meio de transporte? - Não só em Nemashi, como em todos os planetas da Costelação e até naqueles que também não fazem parte dela. Basta apenas que tenham estado alguma vez no lugar para onde desejam ir. Como falei, a capacidade de Saltar entre os espaços se encontra em todos nós. - Mas então por que incontáveis naves cruzam os céus de Nemashi durante todo o dia? - Algumas delas fazem parte do sistema de logística da Constelação, transportando os produtos que abastecem as Casas do Tesouro. Outras são pilotadas por pessoas que podem Saltar entre os espaços, mas nunca estiveram no lugar que desejam ir. E por fim, para quem ainda não aprendeu a técnica, só resta cruzar nosso sistema em um módulo de transporte. – Disse Shylon, voltando seu olhar para o campo à sua frente. - Mas pelo que já li até mesmo a viagem desses módulos pelo espaço obedece às mesmas regras do Salto, estou correta? - Perfeitamente. – Disse Shylon, voltando-se novamente para a garota. – Sei que dentro de você existe um bicho chamado Curiosidade, controlando 296


sua Mente a me fazer essas incontáveis perguntas, mas pelo Princípio Branah, preste atenção. Luhan vai tentar Saltar agora. - E o que acontece se ele conseguir? - Creio que vai levar uma bela queda. – A garota revirou seus olhos para Shylon, perguntando o que aquilo significava, mas ele ordenou que apenas observasse. Distante da conversa da dupla, o jovem Harashi se encontrava afastado de Marishi, que permanecia de pé do outro lado do gramado, esperando alguma reação do garoto. Conectado às vibrações mentais de Cameron, o Sacerdote captou o momento em que o jovem Harashi acionou o velho mecanismo mental conhecido de seus estudos. Dentro da cabeça de Gabriel, se projetava a imagem de Marishi. Distante, porém perfeitamente visível, não como a imagem que seus olhos enxergavam, mas próximo o suficiente para o garoto lhe estender a mão. Seus pensamentos se misturaram com o verde da grama que afundara sob seus pés há poucos minutos enquanto media a distância que ele e o Sacerdote ocupariam no campo. Porém, naquele turbilhão de pensamentos que duraram apenas alguns milésimos de segundo, o espaço-tempo revirou-se dentro de sua cabeça, fazendo o garoto se sentir flutuando no ar. Porém ele não flutuava, mas caia naturalmente puxado pela gravidade. Uma queda não perigosa para um Harashi como ele, mas totalmente mortal para um menino que fora pego de surpresa pela sua própria vontade, sem chances nenhuma de aparar aquela queda. Mas mesmo assim, ela foi aparada pelo alto ham’aryeno, que sustentou o garoto no ar com um movimento de sua mão, trazendo-o não tão delicamente ao fofo gramado. Do outro lado, Shylon cochichava com Sofia. - Não disse? É isso o que acontece até aprendermos como fazer. O coração da garota ainda disparava da visão que teve ao ver Gabriel despencar em queda livre, até ser amparado pelo Mestre Harashi. - Já falei, não pense no espaço que ocupará na grama. Sinta-a da mesma forma quando você pisou sobre ela. – Disse Marishi, ordenando ao jovem aprendiz. 297


- Estou com medo de surgir no mesmo espaço que você ocupa. - Pois não devia. Se eu trouxe você até aqui é porque sei que está preparado. Só descansaremos quando estiver acostumado à queda. Entretanto, sob o forte sol que fazia naquele dia, somadas às esperadas e naturais preocupações que brotavam na cabeça daquele ainda inexperiente Harashi, as tentativas viram-se frustradas uma atrás da outra. Duas, três, quatro, cinco, seis vezes e o resultado era o mesmo. A impaciência de Sofia só aumentava enquanto Shylon apreciava aquele espetáculo de sucessivos erros. Por fora duvidava e muito que o amigo conseguiria algum progresso naquele dia, mas por dentro ele estava esperançoso de que algo de diferente acontecesse. Não tanto quanto Sofia, mas estava. Mas por alguma razão, a ansiedade da garota desapareceu, junto com sua torcida a cada tentativa de Gabriel. - Por que essa cara séria? Está chateada pelo fracasso de nosso amigo yuranshiano? – Shylon perguntou, estendendo a mão na frente de Sofia. - Não mesmo, meu querido. Sinto que dessa vez ele vai conseguir. – Disse a garota, serenamente. - E o que te leva a achar isso? - Eu simplesmente sei. – Disse, observando calada o jovem Harashi no gramado. - Você está botando muita fé nele, mesmo sabendo que as chances são poucas. - Ele não precisa de poucas chances, só precisa de uma. – Aquela cortada emudeceu o filho de Marishi, mas ele não se deu por vencido. - E se ele não conseguir? – Shylon inquiriu, com a cara mais irônica possível. - Eu lhe dou um beijo. – Ela respondeu, saindo daquele transe quase místico. Ao ouvir aquilo os olhos do garoto se contorceram junto com sua cabeça, enquanto olhava para Sofia, boquiaberto. - Ele não vai conseguir... Ele não vai conseguir... – Disse Helamen baixinho para si mesmo, voltando sua atenção para o Mestre e o Discípulo, soltando um incrédulo e satisfeito sorriso.

298


No gramado Gabriel não parecia nem um pouco abatido, mesmo que o uso constante daquela técnica cansasse não somente o corpo como a própria Mente. O desânimo, porém, não abalou o jovem, que mantinha sua concentração no ponto onde desejava surgir. Subitamente,

ele

sentiu

suas

células

arderem

no

conhecido

mecanismo acionado por sua Vohan. A projeção daquela imagem penetrou o inteior de sua Mente e Gabriel sentiu a vibração atingir seu ápice. Aquele fenômeno durou milésimos de segundo, o suficiente para fazer Gabriel desparecer de onde ele se encontrava e surgir no mesmo instante diante de Marishi. O garoto sentiu seus pés afundarem no gramado, enquanto voltava a se equilibrar, contrariando suas expectativas de que poderia despencar do alto novamente. A testemunha mais próxima daquele fato, Marishi, apenas franziu as laterais da boca, sorrindo discretamente. Por dentro, porém, estava mais do que satisfeito com mais um avanço que seu Discípulo conquistava naquele pouco tempo na Ordem. Bem acima deles, o grito de Sofia havia ecoado quando ela, sem esperar viu o jovem se materializar diante do pai de Shylon, ficando este igualmente boquiaberto com a proeza. - Como... – Shylon tentou falar, mas não conseguiu. Gabriel havia superado muitos outros Discípulos, inclusive a ele. De fato, aquela situação era incomum, mas perfeitamente plausível. - Eu não disse que ele conseguiria? – Disse a garota, eufórica como nunca. Já o jovem Helamen continuava olhando para o campo, teimando em aceitar aquilo. Não a conquista de seu melhor amigo, mas o resultado da aposta feita com Sofia. - Podemos apostar uma próxima tentativa? – Disse o garoto, frustrado. - Não haverá uma próxima. – Sofia respondeu, ainda com o sorriso irradiando do rosto. - Por quê? – Ele perguntou, intimamente revoltado. - Luhan está vindo. – Sofia apontou para os dois Harashis no gramado, porém Shylon não via um só movimento do garoto em direção às escadarias. 299


- Mas ele ainda está lá, junto com meu pai... Contrariando suas expectativas, de repente uma sombra se projetou sobre suas costas, prontamente agarrando-o e suspendendo-o no ar. Shylon já mentalizava uma onda de choque contra o agressor, mas a voz de Gabriel minou estes pensamentos. - Vocês viram? Eu consegui! – Disse Gabriel, explosivo com seu feito. - Nada mal para um Discípulo recém-chegado, nada mal mesmo. – Disse Shylon, ainda surpreso. - E agora, o que você vai fazer? – Perguntou Sofia. De repente, Marishi surgiu no alto do anfiteatro. - Voltar a treinar. – Disse o Sacerdote, enfático, atraindo a atenção de todos. – Se não peguei leve com o treinamento de Shylon, também não farei com ele. - E quando eu começarei meu treinamento para Saltar entre os espaços? – Sofia perguntou, imaginando o que poderia ser capaz de fazer. - Quando estiver como Luhan. A garota balançou a cabeça, sem entender o que o Sacerdote queria dizer com aquilo. - Preparada. – Disse o Sacerdote, concluindo sua breve conversa, em seguida saltando de volta ao gramado. A garota tentou questionar o amigo, mas Gabriel o seguiu, também esvanescendo da arquibancada. De longe, Sofia e Shylon voltaram a se acomodar naqueles bancos de pedra, enquanto no campo verdejante, o treinamento prosseguia tão rigoroso como começou. Embora Marishi não desse trégua, ele sabia que no futuro aquela disciplina seria útil para a vida de Gabriel, tanto no seu uso diário como para protege-lo dos tortuosos momentos que viriam em breve.

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DOCUMENTO 050 A ÂNSIA PELO CONHECIMENTO Passadas algumas semanas, notava-se um clima estranho no Santuário. Quando chegou, o Livro de Ormoshi era o assunto mais falado entre Sacerdotes, Discípulos e os membros do Quórum. Sessões, grupos de estudo, e debates sobre Yuransha e sua história foram realizados, e em todas as aulas, os jovens Harashis passaram ter uma curiosa atração por aquele pequeno planeta tão isolado e tão distante de Nemashi. Porém, naqueles dias, pouco ou quase nada se falava sobre a misteriosa relíquia que fora resgatada. Até mesmo Sacerdotes como Marishi e Haron, que estavam participando dos estudos do Livro, não falavam nada, nem com seus companheiros de Ordem, nem com seus Discípulos. Quem mais estranhara tudo isso foi Sofia, que nunca mais conversara com seu Mestre sobre o Livro, muito menos com Haron, de quem assistia às aulas da Escola de Estudos da Mente. Naquele dia, outra aula do Sacerdote era assistida pela garota, porém, as análises sobre a Mente não lhe eram tão interessantes. Apenas sua curiosidade sobre o que haviam feito com o Livro era que ocupava a cabeça da garota, enquanto Haron falava para aquele pequeno anfiteatro lotado pelos Discípulos da Ordem. -... A capacidade da Mente em discernir e descobrir, com base nos mecanismos já conhecidos do Universo, depende inteiramente de sua habilidade, escopo e capacidade investigadora, empenhada na tarefa de observação dos elementos ao seu redor. As Mentes do espaço-tempo, pertencentes a nós, seres mortais, programadas e desenvolvidas segundo as energias e frequências presentes neste Universo Local, ficam sujeitas aos mesmos mecanismos presentes no tempo e no espaço aos quais não somos capazes de mensurar tão facilmente. Por isso, temos a capacidade de interagirmos diretamente com o espaço e com o tempo, segundo essas habilidades desenvolvidas ao longo de nossas vidas, podendo acessar outros mecanismos disponíveis a nós, como por exemplo, a Noosfera, conhecida no nosso mundo como Garbha. Desse modo, podemos nos conectar a essa 301


atmosfera do pensamento, à rede invisível a qual nossa Mente pode acessar os pensamentos e memórias de outra Mente em particular. Mas obviamente, isso requer um treinamento que nem todos os Harashis são capazes de desenvolver. – Disse Haron enquanto manuseava a imagem projetada acima da mesa. - Ou Zahranianos. – Um aluno interviu ao fundo, enquanto seus colegas riam daquela inquietante colocação. - Certamente. Na verdade, com um treinamento específico, qualquer ser dotado de uma Mente racional pode ter acesso à Garbha. O que não preciso dizer, é algo muito perigoso, ainda mais quando se trata... Como você falou... de um Mago Zahraniano. – Haron respondeu, parecendo um tanto incomodado. Enquanto isso, Sofia mal se esforçava para prestar atenção à aula, conversando com uma amiga ao seu lado. Porém aquele estranho comportamento do Mestre Harashi não passou despercebida pelas duas. - Notou a reação dele? Parece incomodado quando falamos nos Magos ou na Ordem Zahran. – Disse Wanisha Mendah, uma jovem Mynohriana que se tornou amiga de Sofia durante a convivência nas aulas de Haron. - Ele também não fala com você sobre o Livro, não é? – Sofia perguntou, alimentando sua curiosidade. - Ele me proibiu de perguntar sobre isso. Disse que esses assuntos só devem ser tratados quando o grupo de estudos do Livro terminar seus trabalhos. Porém meu Mestre já se encontra há muito tempo nesse projeto, mas ninguém sabe o que de fato encontraram nesta velha relíquia. - O meu também. Marishi não toca nesse assunto sob nenhuma hipótese, e quando perguntamos a ele, ele rapidamente muda de assunto. Isso está muito estranho. - Eu também acho. Mas por que eles estão agindo assim? - E por que eu saberia? - Porque foi você que encontrou o Livro. Você o leu. Sabe o que ele contém. – Disse Wanisha, passando a mão em seus longos cabelos negros. - Eu li pouco. Ele é apenas uma tradução das Escrituras para uma língua do meu mundo, com alguns comentários escritos em suas páginas.

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- Mas você quase morreu por conta desse Livro, ele deve ter alguma coisa de especial. - Não me lembre sobre esse dia. Ainda tenho pesadelos com essas lembranças. - Também vai me proibir de falar sobre isso? – A garota perguntou, invadindo os grandes olhos azuis de Sofia com seus oblíquos olhos negros. - Não... É que você nunca se encontrou com um Mago Zahraniano. - Como eles são? – Ela insistiu, tentando imaginar o que Sofia lhe diria. Sua amiga relutou, mas decidiu em prosseguir com seu relato. - Suas Vohans são sombrias, literalmente uma sombra. Não exalam luminosidade como as nossas. Os Magos perseguem seus objetivos não com paixão, mas com um fanatismo sem igual. O Conhecimento que eles buscam está acima de suas próprias vidas. Eu me pergunto: Do que adianta eles conquistarem tudo isso se esse Poder não os torna seres melhores? Eu vejo essa ânsia pelo Conhecimento como autodestrutiva. - Mas você também tem essa ânsia pelo saber. - Como? – Sofia retrucou, sem entender. - Você já me disse que o conhecimento é a coisa mais importante para você. Por que o busca? – A garota perguntou. - É um intenso desejo que vem de dentro de mim, não sei explicar. - Então você busca o conhecimento pelo poder de possuí-lo? - Está dizendo que eu estou agindo como os Zahranianos? - Não estou dizendo isso. Apenas que você é que deveria saber esta resposta, mas pelo visto não sabe. – Sofia se entregou àquelas perguntas, parando pela primeira vez na vida para pensar sobre tais questões. Porém, foi drasticamente interrompida quando Haron a fez erguer sua cabeça de volta ao centro da sala. - Alguma das duas jovens que estão conversando tem algo a acrescentar aos estudos do Sacerdote Navohan? – Haron perguntou, atraindo a atenção da dupla. - Não senhor. – Sofia respondeu, enquanto corava suas alvas bochechas. Mas antes que voltasse a prestar atenção à aula, virou-se novamente para falar com Wanisha. 303


- Escute, se souber de alguma coisa que Haron descobriu me avise. Meu único desejo agora é saber o que os Sacerdotes desvendaram no Livro de Ormoshi. - Peço o mesmo. Você não sabe o quanto estou curiosa em relação a esse Livro. - Pelo visto eu não sou a única que possui essa ânsia pelo Conhecimento. – Sofia respondeu, rindo silenciosamente com a amiga. As duas encerraram aquela conversa, contorcendo seus corpos e Mentes de volta para a aula, antes que Haron lhes chamassem a atenção novamente.

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DOCUMENTO 051 ALCANÇANDO A ILUMINAÇÃO Após algumas horas trancada na sala de aula, Sofia veio expor suas diárias dúvidas com o Sacerdote, e o Mestre Harashi, solícito como sempre, concordou em explicar o que a jovem Discípula quisesse lhe perguntar. Como era natural do Sacerdote, Haron levou Sofia para caminhar pelo jardim do Santuário, para deixar para trás o ambiente recluso das salas de aula. Em meio àquele passeio, o Sacerdote notara que a garota possuía algumas perguntas em sua Mente, parecendo distante enquanto caminhava no vasto tapete verde que afundava sobre seus pés. Por isso, aquela silenciosa Sofia não tardou a falar. - Haron, gostaria que me esclarecesse uma coisa. – Perguntou. - Desculpe, mas ainda não posso lhe dizer nada sobre o Livro de Ormoshi. – Respondeu o Mestre Harashi, soltando um sorriso irônico à curiosa pupila enquanto enxergava seus questionamentos. – Mas posso lhe responder sobre outras coisas que lhe perturbam. – A garota, impressionada com aquela habilidade do Sacerdote, logo partiu para suas não menos habilidosas perguntas. - Se vocês nos visitam há tanto tempo, por que não aparecem em público e se mostram? Por que existe todo esse mistério em torno de seres de outro mundo se de fato eles existem? - Deixe-me dar um exemplo, talvez lhe ajude a compreender. Imagine que um dia os cientistas de O’Hashia descubram como viajar longas distâncias no Cosmos e visitar planetas habitáveis. Imagine agora que um destes planetas visitados é povoado por seres violentos, que são capazes de matar uns aos outros pelo simples ódio. Que destroem o próprio planeta tendo consciência do que estão fazendo. Que disputam ferozmente um pedaço de terra tão insignificante, comparado à vastidão do Universo. Esses exploradores do seu mundo não conseguiriam pousar suas naves no planeta e realizar contato com a população. Com toda certeza, eles seriam atacados por causarem pânico às pessoas, e não conseguiriam se comunicar de forma 305


eficiente para informar suas intenções pacíficas de exploração e estudos. – Disse Haron. A garota se esforçou para falar, mas a única coisa que conseguiu foi concordar com aquelas palavras do Sacerdote. - Agora entende? No caso dos habitantes do seu planeta, nós não fazemos contatos diretamente porque vocês possuem armas nucleares capazes de destruir Yuransha por completo. Se dentro do seu próprio planeta vocês tem problema para assimilarem suas diferentes culturas, imagine então se essas culturas forem extraterrestres? - Então como será possível realizar este contato? - Com paciência Branah, como sempre, paciência... Como você sabe, há centenas de milhares de ciclos estudamos o seu mundo em segredo, para que um dia, quando seu planeta tiver capacidade de conviver e contribuir de forma pacífica para estabelecer relações com outras culturas, possamos enfim fincar nossas Embaixadas, o sinal definitivo da conquista pacífica dos mundos em “quarentena”. - Mas e se compartilhássemos o conhecimento que é produzido aqui em Nemashi? Certamente eles perceberiam que viemos em paz, e teriam condições para assimilar a magnifica Ciência que os Harashis estudam. - Pense Branah... Se os habitantes de Yuransha não são capazes de promover a paz entre povos de mesma origem, quem dirá se um dia lhes revelarmos nosso conhecimento? Certamente vocês transformariam nossa tecnologia em uma nova arma. Nunca subestime o poder de destruição dos homens. Eles já possuem a tecnologia para acabar com a fome no mundo, mas ainda assim preferem construir armas de destruição em massa. Só me pergunto se isto é ignorância ou negligência. - Então vocês deixaram de nos contatar por conta da violência do nosso mundo? - Muito pelo contrário. De tempos em tempos ocorrem contatos como aconteceu entre você e Luhan. A única regra, é que todos estes contatos devem ser estritamente pessoais. - Você quer dizer, apenas uma pessoa de cada vez?

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- Não necessariamente. Várias pessoas do seu mundo já presenciaram contatos em grupos, em sua maioria, por pessoas espiritualizadas, capazes de assimilar de alguma forma uma consciência superior à que possui. Em quase todas as religiões do seu mundo, boa parte de seus ensinamentos foram revelados mediante contatos, sejam realizados por nós ou pelos Seres Superiores. Infelizmente alguns desses contatos foram frustrados por conta da violência dos habitantes do seu mundo. - Mas o que aconteceu após esses contatos? - Um vasto legado foi deixado no seu mundo. – Disse o Sacerdote. – Venha comigo. Adentrando por um longo arco que surgiu em meio ao jardim, Haron conduziu Sofia por um longo corredor aberto, cujo vento espalhava as vestes brancas do mynohriano atrás dele. O Sacerdote caminhava a longos passos pela vasta alameda ladeada de colunas. O sol poente se escondia entre os relevos dos jardins e das altas árvores que ali se erguiam. Porém, o que mais lhe ocultava eram os pilares que sustentavam aquele passeio coberto no meio do Santuário. Enquanto caminhava, a silhueta de Haron aparecia e desaparecia em meio às sombras num jogo que estava deixando a garota impaciente. Sofia se perguntava aonde o sábio Mestre pretendia lhe levar. Ao longo da via, observou que entre algumas colunas se erguiam largas paredes de metal. Sofia constatou que nelas estavam gravadas o que a princípio pareciam ser árvores. Umas pequenas. Outras, porém, se erguendo do chão quase que tocando aquele alto teto translúcido, que mais parecia ser feito de cristal. Sem esperar, Haron estancou diante de uma das paredes de metal, e ficou ali, estático, contemplando-a. A curiosidade da garota fez o resto, levando-a a se aproximar daquele muro isolado. Da mesma forma como as figuras gravadas nas outras paredes, esta exibia uma imensa árvore de bronze, que ao longo dos seus ramos, exibiamse várias palavras luminosas, como se ali tivessem sido incrustados cristais, vazados dentro do muro. Sofia pôs os olhos nas palavras que mais se destacavam, fortemente iluminadas pelo pôr do sol em Nemashi, lendo-as em Korah. Antigas Tradições. Tradições do Oriente. Tradições do Ocidente... 307


A imagem daquela árvore, porém, foi revelando minuciosamente nomes já conhecidos de Sofia, que percorriam cada ramificação dos seus galhos, onde estes ligavam cada nome inscrito dentro das folhas a outro, até que um inesperado entendimento tomou conta da sua consciência. Haron apenas observava os luminosos olhos de Sofia se mexerem, inquietos com aquela infindável quantidade de informações. - Isso é fantástico! – Exclamou a jovem, boquiaberta. Sua cabeça pareceu se prender ao chão, quando ela fitou uma única palavra gravada na base da grande árvore, que indicava de onde vinham aquelas intermináveis palavras: Yuransha. Aquele imenso relevo era uma verdadeira árvore genealógica de todas as religiões e crenças do seu planeta. A majestosa árvore de bronze na parede traçava cada religião, cada dissidência, cada grupo ramificado na grande teia dos credos do seu planeta.48 - Cada muro pelo qual você passou é uma sistemática de todas as religiões existentes nos planetas habitados que conhecemos. Em cada uma se encontra as origens e as ligações existentes entre elas. Esta é a árvore do seu planeta. – Disse Haron. Sofia não conseguia falar nada. Apenas olhava para aquele colossal inventário das religiões do seu mundo. Ela viu as diversas seitas e movimentos do Cristianismo, as várias escolas do Hinduísmo, as estranhas ligações helênicas e pagãs que influenciaram o Judaísmo antes de Cristo, assim como a infindável gama de crenças e religiões provenientes da África e da Ásia antiga. 48

Obviamente existem milhares ou milhões de crenças espalhadas por Yuransha, algumas dessas praticadas por apenas centenas de pessoas, tornando-se impraticável a contagem das mesmas, além do fato de que em algumas religiões como o Cristianismo, a quantidade de igrejas multiplica-se a uma velocidade assustadora. Mesmo mantendo a mesma base de crenças, podemos dizer que suas práticas divergem drasticamente umas das outras. E isso é o que determina a existência das vertentes religiosas. Se pararmos para pensar, em Yuransha existe cerca de mais de 13 mil seitas. E este número apenas tende a aumentar, graças à mesma dinâmica de expansão existente nas incontáveis crenças e religiões instituídas nos outros mundos. Por isso aquela árvore no meio dos jardins – como tantas outras ao seu redor –, apenas listava os sistemas religiosos que partilhavam da mesma base teológica.

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Da mesma forma, lhe surgiam nomes estranhos de crenças, das quais nunca ouvira falar: Ayyavazhi, Cao Dai, Fé Babí, Orficos... Mais uma vez, uma overdose de informações atormentava a cabeça de Sofia. A jovem Discípula nunca imaginou que seu planeta fosse alvo de estudos tão profundos por parte da Ordem de Nemashi. - Vocês estudam as religiões do meu mundo? - Não só as religiões. Nós observamos cada aspecto do Universo em que vivemos, seja ele científico, político, ou social. E é claro, a religião também não nos escapa, afinal, já fomos até protagonistas de vários episódios no seu planeta. - Mas por que fazem isso? - Porque é a nossa missão enquanto seres viventes. De fato existe uma Verdade que transcende tudo o que vemos ou sentimos. Além do mais, a espiritualidade é algo inato aos seres pensantes. - A crença? – Haron balançou a cabeça negativamente. - Você precisa diferenciar crença de espiritualidade. Todas as pessoas creem em algo. - Até os ateus? - Certamente. Os mais céticos e incrédulos creem em suas próprias convicções, sem possuírem, contudo, a plena certeza do que afirmam. O que nos escapa aos sentidos nunca poderá ser atestado somente pela razão. – Disse, sorrindo para com ela, que logo captou a provocação. - Então devemos basear nossas expectativas na fé? - Também não. Não se esqueça de seus primeiros ensinamentos: Quando o desenvolvimento da nossa natureza intelectual se dá sem princípios de ponderação em si mesmo, nos tornamos orgulhosos e arrogantes. Por conta do nosso gélido racionalismo temos a lamentável tendência a nos acharmos donos da Verdade. Da mesma forma, um superdesenvolvimento da Mente baseado apenas na fé, tende a produzir uma interpretação fanática e desvirtuada do mundo e dos seus fenômenos, atrasando da mesma forma a evolução moral do indivíduo, pois este fica do mesmo

modo

fechado

em

suas

próprias

convicções

e

até

mesmo

preconceitos. 309


- Então o que devemos fazer? - Liberte-se. – Disse o Sacerdote, enfático. – Liberte-se de todo julgamento, preconceito, ou temor. Sua Mente é tão livre quanto os pássaros que estão pousando no alto dessas colunas. Você é a única responsável por guiá-la, assim como os pássaros que traçam seus destinos. O que afinal você pode temer quando a única coisa que aprisiona a sua Mente é o seu próprio receio de voar? Sofia escutava atentamente aquela aula sobre epistemologia. Parecia que a resposta para aquele embaraçoso paradoxo era o desapego. Desapego de si mesmo. Desapego de tudo o que ela havia agregado para si. - Nenhuma evolução neste e em qualquer mundo se dará através de prisões. Sejam elas materiais ou morais. Não se prenda a nada que possa limitar seu potencial. Se este próprio Universo foi moldado por magníficas Forças Mentais, por que deveríamos limitar nossa Mente mortal? Em meio àquelas palavras, outras surgiram soltas na cabeça de Sofia. Em seu tempo livre na Terra, a garota costumava ler clássicos da literatura oriental. E entre eles, os tratados de filosofia budista estavam entre seus preferidos. Em alguns deles dizia-se: Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. E através deles, fazemos o nosso mundo. Os ensinamentos de Sidharta Gautama – o Buda – eram ao mesmo tempo complexos e enigmáticos. Na verdade, eram bem próximos dos ensinamentos Harashis, pensou. - Sim, os ensinamentos do Buda são bastante similares aos nossos. – Disse Haron, esclarecendo as dúvidas de Sofia, enquanto enxergava seus pensamentos. - Ele foi orientado pelos Harashis? – Perguntou Sofia, soltando uma leve ironia. - Não. – Disse Haron, negando com plena certeza. – O príncipe Sidharta alcançou boa parcela da verdade sobre a natureza da Mente através do que fazemos todos os dias: Meditando sobre si mesmo e sobre o Universo. Sua doutrina é única, porque explica o Universo tanto em seu sentido metafórico como no seu sentido real. A vida, o homem e o Cosmos se fundem 310


em uma única metáfora sobre a Mente. E o resultado para quem compreende esta doutrina não é outro, senão o seu objetivo: Alcançar a Iluminação, ou o simples e verdadeiro entendimento do mundo e das coisas. - E o que acontece ao homem quando a alcança? - Liberta-se de todos os obstáculos que mencionei. Dos seus julgamentos. Dos seus preconceitos. Dos seus temores. Ele torna-se consciente sobre o que de fato ele é: Um ser em constante transformação, rumo à sua plenitude. – Aquelas palavras já começavam a se embaralhar na cabeça de Sofia, que apenas observava calada a grande árvore de metal. Haron se aproximou de um dos ramos onde estavam gravadas as escolas do Budismo. - Um dos sistemas de crenças que mais admiro no seu mundo é o do Budismo, pois suas reflexões são profundas. Porém, quando analisamos suas práticas, elas não estão tão distantes de outras. Especialmente no Tibete, pode ser encontrada a mais estranha difusão do Budismo, que ao longo do tempo incorporou vários elementos do Hinduísmo, do Taoísmo e até do Cristianismo, mesmo que subjetivamente. – Disse Haron, apontando os dedos para as respectivas religiões, e como aquelas crenças se envolviam dentro da árvore. Ele explicou que, quando os missionários budistas chegaram ao Tibete, eles encontraram um estado de selvageria primitiva, muito similar àquele que os primeiros missionários cristãos encontraram nas tribos nórdicas da Europa. Os habitantes tibetanos, de mentes simples, não queriam abandonar completamente as suas antigas crenças na magia e seus encantos. Eles possuíam rígidos dogmas e credos cristalizados, rituais místicos e jejuns especiais. Com a chegada do Budismo, eles criaram um novo misticismo em torno da nova religião, em que, por sua vez viu-se incorporada figuras de anjos, santos, e até uma Mãe Sagrada, Maya, a mãe do Buda. Da mesma forma passaram a praticar a confissão particular e acreditarem no purgatório que os tirava do sofrimento permanente. As cerimônias religiosas e os rituais tibetanos desenvolveram um elaborado sistema que abrangia sinos, cantos, incensos, procissões, 311


rosários,

imagens,

monofônicos,

água

assim

como

benta, as

vestes

tradições

vistosas cristãs

e

coros

medievais.

musicais Os

seus

monastérios se tornaram extensos e as suas catedrais, magníficas. Eles mantinham uma repetição sem fim de rituais sagrados e acreditavam que essas cerimônias conferiam a salvação a seus fieis. Junto a nenhum outro povo dos tempos modernos podia ser encontrada a observância de tantas coisas, de tantas crenças. Era inevitável que, dentro de uma liturgia tão complexa, tal conjunto de rituais não se tornasse paradoxal, e, em certo período de tempo, complicado de se praticar. Como explicara Haron, isto não era tão diferente do que ocorreu com o Cristianismo, em relação ao seu encontro com as supersticiosas crenças greco-romanas. - Os tibetanos possuem a essência ritualística das principais religiões do mundo, principalmente o Cristianismo. Até a sua hierarquia abrange monges, freiras, abades, e o Grande Lama, que seria equivalente ao Papa. São incríveis eremitas, assim como os monges católicos. Mesmo que não percebam, estas características se desenvolvem em boa parte das religiões, incluindo as de nosso Sistema, como a Ordem Akehran e sua religião contemplativa. – Disse o Sacerdote, concluindo sua explicação. - Espera Haron, o que você falou sobre os católicos? - Que os budistas possuem figuras de mesma equivalência aos clérigos da Igreja, como o Papa. - Não, não... Estou falando depois. - Que eles são grandes eremitas? - Eremitas... Não pode ser... A mensagem... - Do que você está falando...? – Pela primeira vez Sofia presenciara Haron ficar estático. - Os Magos Zahranianos podem estar infiltrados... - Não me diga mais nada. Venha comigo. – Disse o Sacerdote puxandoa enquanto visualizava a torrente de memórias que brotou na Mente da garota. Embora estivesse confusa com aquela atitude precipitada de Haron, Sofia sabia que o Sacerdote já havia captado a mensagem. Entre rápidos passos, Haron cruzou os jardins do Santuário, em busca da única pessoa que conhecia a jovem melhor do que ele. 312


DOCUMENTO 052 UM NOVO QUEBRA-CABEÇA Marishi estava sentado no seu apartamento em volta de uma mesa holográfica, transmitindo uma imagem luminosa das Escrituras. O Sacerdote ensinava a Gabriel sobre determinados Documentos em que falavam sobre as propriedades da matéria e como ela se comportava no espaço, inclusive durante os saltos. Sentado ao lado dos dois, Shylon observava meio desatento àquela explicação que tanto ouviu em sua vida. - Quando você vai nos poder mostrar o Livro ao invés das Escrituras pai? – Shylon perguntou. - Quando os Sacerdotes terminarem de estudá-lo. – Respondeu Marishi, sem se alongar, respondendo a mesma pergunta que já ouvira de Shylon outras vezes. - Mas por que não falam nada? Não sabemos de nenhum avanço, o Quórum nada mais fala sobre isso, muito menos o senhor. - Já disse que não posso falar. Estamos analisando no Laboratório de Estudos Linguísticos e só podemos comentar os avanços entre os envolvidos nesse estudo, que até agora se resumem a nenhum. - Eu não acredito que não tenham descoberto nada. Que mistério todo é esse? É por que o Guardião descobriu algo que não sabemos? - Chega! – Exclamou o Sacerdote, perdendo sua habitual paciência. Gabriel se espantou com aquela reação de Marishi, mas logo o Sacerdote se acalmou. – Não podemos falar sobre isso por enquanto, e espero que não insista. Quando for a hora certa contaremos a você, a Branah e a Luhan. Não tenha pressa em aprender, meu filho. Na vida podemos conquistar muitas coisas com mais rapidez, mas não o Conhecimento. Shylon concordou com a cabeça, observando a projeção. Mas a imagem tremia, com Shekmeh batendo ritmicamente com a cauda na mesa. Após repreendê-la, Shylon notou que a porta do apartamento estava aberta, revelando Haron e Sofia que já se encontravam a um bom tempo assistindo aquela discussão.

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- Pelo visto seu filho também insiste em saber sobre o Livro. – Disse Haron, falando meio ofegante. Marishi sabia que aquela atitude do amigo era estranha, revelando algo que lhe tirara seu habitual equilíbrio. - O que aconteceu? – Perguntou o Sacerdote, atônito. - Branah... Ela acha que descobriu onde os Magos podem estar infiltrados. – Disse Haron, enquanto fechava os olhos, tentando recuperar o ar, ainda ofegante. O Sacerdote voltou-se para Marishi, ordenando que continuasse. A atenção de seu amigo emanava de seu olhar, que agora só ansiava pelo que Sofia tinha para lhe dizer. - Conte-nos tudo. – A garota se pôs a frente do Sacerdote Voorih. - Quando nós estávamos enfrentando os Zahranianos em Milão, eles nos falaram que alguns Magos deixaram Tevohan para servirem a propósitos maiores. Que eram “verdadeiros eremitas. Homens santos em busca da Verdade”. Talvez eles não quisessem apenas dizer que se encontravam isolados no meu mundo, mas... - Mas dizer onde eles de fato estariam escondidos. Pelo Princípio... Eles podem estar travestidos de religiosos. – Marishi concluiu, para surpresa dos demais. - Talvez eles tenham revelado onde estavam porque acreditavam que ali seria o fim para vocês. Mas nós chegamos antes disso. – Disse Haron, enquanto Marishi concordava com o amigo. Aquela conclusão atingiu Sofia em cheio. As recordações de seu desagradável encontram com os Magos Zahranianos mais uma vez fizeram seu sangue gelar. Eles estavam no planeta, mais próximos talvez do que ela imaginava. Talvez alguma vez na sua vida ela já tivesse cruzado com algum Mago sem saber. Talvez alguns dos muitos padres e monges que eram amigos da família católica de Sofia, pudessem ser Magos. Por que não? - Vocês estão dizendo que os Magos podem estar escondidos... em igrejas? – Perguntou Gabriel, incrédulo. - Em mosteiros e conventos, para ser mais preciso. – Disse Haron. - Mas como poderemos saber qual tipo de monge estamos à procura? – Sofia perguntou, meio confusa. - Do que você está falando? – Shylon interrompeu, sem entender. 314


- Em nosso mundo não existe apenas uma religião com eremitas. - Ela tem razão. Em quase todas as grandes religiões do planeta existem ordens monásticas. Cristãos, budistas, hindus, muçulmanos... – Disse Haron, citando alguns exemplos. - A própria mensagem da Deep Web citava uma infinidade de regiões montanhosas que podem ter mosteiros. Desde Roma até o Tibete. Se os Magos estão infiltrados em algum clero religioso não temos como saber qual. Existe uma margem muito grande para nossas especulações. – Disse Marishi, olhando para os outros presentes. Mais uma vez o raciocínio do Sacerdote era preciso. Porém, a cada descoberta que se conquistava, uma densa nuvem de dúvidas surgia para serem esclarecidas, dificultando ainda mais aquela busca. - Agora temos uma pista concreta. Luhan, volte a pesquisar na Deep Web. Talvez seus fóruns lhe deem alguma notícia sobre atividades anormais entre esses monges do seu planeta. – Ordenou o Sacerdote. - Mas senhor, como farei isso? – Perguntou Gabriel, sem acreditar naquela missão claramente impossível. - Você deve saber a resposta, afinal você é o hacker. – Disse Marishi, soltando um sorriso irônico para o garoto. Gabriel riu consigo mesmo, balançando a cabeça negativamente, sentindo-se desafiado, mas ao mesmo tempo achando aquele encargo um absurdo. Continuava a ser uma caçada às cegas, mas agora ele acabara de remover muitos obstáculos pela frente. Agora o foco daquela busca mudara completamente. Ao invés de órgãos do governo, ele iria procurar os Magos em mosteiros e conventos. Entretanto, se encontrar com Deus não era nem de perto o objetivo dos Magos exilados. Muito menos buscar a iluminação. Havia algo que ainda não fora captado. E para encontrar essa resposta Gabriel teria que montar um novo quebra-cabeça. Mas naquele momento sua cabeça não conseguia pensar em mais nada, a não ser no breve alívio que sentia ao voltar para Yuransha. Ao menos esse seu desejo seria realizado pelos próximos dias.

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DOCUMENTO 053 UM LUGAR ESPECIAL Passados alguns dias, Sofia e Gabriel continuavam sua jornada em busca dos Magos. Sentados na mesa do quarto da garota, tentavam encontrar novas evidências e os possíveis rastros que os Zahranianos podiam ter deixado e vazado na Deep Web. As buscas por elucidar aquele enigma foram inúteis, pela falta de precisão das palavras da mensagem. Entretanto, a bem vinda revelação feita ao acaso pelos Magos elucidou parte daquele enigma. Mas ainda assim, uma série de barreiras detinha os Sacerdotes, bem como os jovens Harashis que mergulhavam cada vez mais naquele desafio. - Obrigado. – Disse Gabriel, pegando o copo com café e bebendo-o como se fosse água. – Estamos há semanas buscando novas informações. Mas do que adianta se nem as que possuímos não batem? Perguntou,

fitando

a

tela

do

computador

de

Sofia,

enquanto

visualizava a mensagem do fórum da Deep Web. - Já parou para pensar que pode haver outros seres dispersos pelo planeta fora os Magos? Nosso pensamento está sendo limitado demais, não acha? – Disse Sofia, olhando para Gabriel. - Como assim? – Perguntou o garoto, sem compreender. - Marishi certa vez me falou que não são somente os Harashis visitaram a Terra em seu passado. Muitos outros seres, muitas outras civilizações também participaram do nosso processo de colonização. Talvez estejamos no encalço de seres extraterrestres de fato, mas não os que procuramos. - E caso sejam outros seres, você não acha que eles também poderiam nos ajudar? – Disse Gabriel, pensativo. - Você quer dizer, pedir ajuda a eles para achar os Magos? - Exato. - E por que eles fariam isso? Não acha que seres envolvidos com governos tão corruptos não estariam no nosso nível de evolução?

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- Aonde você quer chegar com isso? – Disse Gabriel, se interrompendo ao dar um generoso gole na caneca. - Talvez os líderes do seu país não estejam procurando o Livro junto com os Magos Zahranianos. Talvez ambos o estejam procurando com propósitos distintos. - Que propósitos, exatamente? - Não sei, mas com certeza os propósitos dos Magos seriam bem maiores. Não que isso seja uma coisa boa... Gabriel soltou um longo suspiro. - Eu já não sei mais de nada. Estamos aqui desde o começo da tarde e não fizemos nenhum progresso. Até o sol já se pôs. - É apenas mais um dia nesse planeta, como também será dentro de algumas horas em Nemashi. - Você não sente saudades não? - Do que? - Da sua vida? Da sua família? De tudo o que você tinha aqui? Quero dizer... Olhe para nós, estamos em nosso mundo sem podermos sair para ele. Você está escondida em sua própria casa! Não entendo como não consegue se afetar com isso, sabendo que alguém está vivendo uma vida que um dia foi sua. - Mas essa vida ainda é minha. Eu continuo sendo a Sofia que nasceu aqui, bem como você, Gabriel. – Ouvir o seu nome se tornara algo estranho aos ouvidos de Gabriel, fazendo-o acordar de seu cansaço no mesmo instante. – O que decidimos fazer de nossas vidas não muda o que já fomos e o que somos. Você é Gabriel, nascido em Washington, e que está se tornando um Sacerdote Harashi. Eu não quero ser reconhecida como alguém que evitou um ataque dos Zahranianos ao meu mundo. Eu quero descobrir o que há lá fora, até mesmo além de Nemashi, além de onde a Ciência Harashi é capaz de descobrir. Eu quero saber Gabriel, isso é o que me move a estar aqui com você. – Disse Sofia, escorando-se na cadeira, e acabando por dar um apertado abraço em Gabriel. O cansaço também tomara conta dela, isso não podia negar. Sofia olhou pela janela, confirmando o crepúsculo que já se consumira. 317


Uma onda de pensamentos tomou conta de sua cabeça. O que fazer quando a Mente estava cansada? Ela fitou a estante do seu quarto, refletindo. No seu silêncio, pensava nos possíveis passos que poderiam ser dados em seguida. Observou o globo terrestre que se apoiava em uma das estantes, porta retratos com várias fotos suas nas praias da região nordeste do Brasil, e uma pirâmide de cristal em miniatura do lado de uma fileira de livros de enciclopédia que possuía. - Você precisa relaxar. – Disse Sofia, voltando a encostar-se à cadeira onde estava Gabriel. - Eu preciso? – Disse ele, confuso. – O que você quer dizer com isso? - Precisamos ir a um lugar. – Disse ela, fitando os olhos de Gabriel. - Que lugar? - Um lugar especial que tem aqui em Brasília. Lá vamos poder relaxar um pouco. Nunca precisamos tanto disso como agora. Sem mais falar, Sofia segurou a mão de Gabriel, que se levantou da cadeira instintivamente. Seu coração disparou sem que percebesse. Ele não conseguia desviar seus olhos daquelas irresistíveis pupilas azuis. - Você quer ir? – Perguntou a garota, suavemente. - Claro... – Disse Gabriel, meio abobado, sem pensar duas vezes. – Mas como iremos? - Você que irá nos levar. - Não sei se estou seguro para fazer isso agora... - Mas você já fez. E agora precisa praticar. Eu confio em você. – Disse Sofia, enquanto encarava o garoto, soltando um contido sorriso. – Apenas siga os meus pensamentos. - Seguirei. – Gabriel respondeu, ainda desconfortável com a ideia. Sem conseguir organizar os milhões de devaneios que surgiam na sua cabeça naquele momento, Gabriel apertou as mãos de Sofia enquanto fechava os olhos. Sua Mente absorveu o local que a garota se recordava, e logo os dois foram tragados para dentro do próprio espaço. Gabriel estava brincando com a sorte. Em meio ao oceano de pensamentos, caso não projetasse devidamente o destino o qual Sofia imaginava, poderia destruir a 318


ambos, se materializando em um espaço indevido. Mas o pouco que havia aprendido já era o suficiente para o jovem saltar entre os espaços. *** Ao abrir os olhos novamente, Gabriel ouviu as folhas de uma grande árvore se balançar com o gélido vento que soprava em suas costas. Ele se encolheu de frio enquanto olhava ao seu redor. O lugar onde estavam mais parecia um estacionamento com poucos carros plantados bem distantes de onde se encontravam. - Era aqui onde você pretendia nos levar? – Perguntou Gabriel, intrigado com o local. - Claro. Onde você achou que iríamos? – Perguntou Sofia, olhando estranho para o garoto. - Eu não sei... – Disse Gabriel, não querendo entrar em detalhes. Mas o que lhe fez deixar de lado as palavras foi algo à sua frente que definitivamente lhe roubara a atenção. Ao fundo daquele longo espaço aberto erguia-se uma montanha de pedra que se destacava no meio da noite. Olhando mais de perto, aquela construção cintilante desenhava uma forma bastante conhecida de Gabriel. Contemplando o edifício em meio aos holofotes e uma grande lua que o iluminavam, Gabriel viu-se diante de uma imensa pirâmide branca no meio do descampado.

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DOCUMENTO 054 AS SETE FACES DA REVELAÇÃO Gabriel continuava a olhar para a construção, hipnotizado. Definitivamente Brasília era uma cidade incomum. - O que é isso? – Perguntou o jovem, ainda deslumbrado. - Essa pirâmide é conhecida como o Templo da Boa Vontade. É um santuário construído para ser um centro de peregrinação. Seu caráter ecumênico permite que pessoas de todas as crenças venham realizar suas orações da maneira que bem desejarem. – Disse a garota olhando para a pirâmide iluminada. Localizado na chamada Asa Sul do plano piloto de Brasília, o Templo da Boa Vontade era uma construção peculiar. Construído em formato piramidal, o edifício chamava atenção devido às suas sete faces que se encontravam no topo. Diferente da Catedral de Brasília, ele não era revestido por vitrais, mas por um fino mármore branco que o destacava em meio à vasta área verde que o cercava. Considerado o monumento mais visitado da capital do Brasil, ele era aberto vinte quatro horas, durante todos os dias da semana, para que os peregrinos o visitassem. Ao se aproximar da edificação, imagens da pirâmide central do Santuário da Ordem vieram à Mente de Gabriel. Entretanto, ela era consideravelmente menor e não possuía a reluzente cobertura de cristal do quartel general de Nemashi. - E o que viemos fazer aqui? – Gabriel perguntou, enquanto caminhava para a entrada do santuário. - Algo que desejava fazer desde que ingressei na Ordem. Venha comigo e entenderá. Os dois adentraram no Templo por um pequeno túnel que levava para dentro da terra, semelhante à Catedral. Chegando ao recinto, Gabriel percebeu algo bastante intrigante. No seu interior existia um caminho traçado no piso em forma de espiral. Na primeira etapa, o peregrino passava pelo percurso sobre pedras 320


escuras, que representavam os pecados e erros do homem. Ao chegar ao centro, se fazia uma pausa para orações e reflexões. A volta era feita sobre as pedras claras, representando sua purificação alcançada, segundo havia explicado Sofia. - Precisamos mesmo fazer isso? – Disse Gabriel olhando para aquela mandala de pedra. - Às vezes parece que você não é um Harashi. - Por quê? - É como dizem: Do que adianta o homem ganhar o conhecimento do mundo inteiro e abandonar a essência de sua alma? Se sua Mente está inquieta não poderá compreender o enigma da mensagem. Muito menos encontrar os Magos aqui em Yuransha. - Às vezes acho que você não é tão cética como aparenta. - Não preciso acreditar em forças superiores para buscar minha própria paz. – Disse Sofia, se aproximando do início do labirinto negro. – Vamos, venha comigo. Aceitando o convite, Gabriel seguiu Sofia, circulando o traçado. A cada linha percorrida, o garoto estranhamente sentia sua Vohan se ativar inconscientemente. Talvez fosse só a sua Mente, mas ela também enxergava a chama de Gabriel emanar de seu corpo, emitindo uma forte aura esverdeada. Aquela visão a assustou, pois nunca havia observado aquele fulgor tão próximo. Os dois alcançaram o centro da espiral, sendo iluminados pelo reflexo da lua que penetrava ao longo das vidraças que uniam as sete faces da pirâmide. Gabriel ergueu sua cabeça, contemplando aquele fenômeno. Sofia, por sua vez, sentia sua Vohan arder como nunca, como se tivesse sido potencializada. Assustada, a garota apenas olhava nos olhos de Gabriel. - O que está acontecendo? – Perguntou inquieta. - Eu já esperava isso. Acabei de ver que acima de nós existe uma imensa pedra de cristal fincada no cume da pirâmide. Assim como no Santuário de Nemashi, este cristal possivelmente purifica o ambiente catalisando as elevadas energias magnéticas daqueles

que aqui se

encontram. O que está acontecendo é algo que os não sensitivos não são 321


capazes ver ou sentir, mas que estamos realizando neste momento: Nossa energia vital está sendo purificada. – Disse Gabriel, fechando os olhos enquanto sentia sua Vohan se expandir mais e mais. Considerada a maior pedra de cristal puro do mundo, o cristal do Templo da Boa Vontade simbolizava o ecumenismo em sua totalidade, o encontro com a presença unificadora de Deus. A pedra se encontrava no ponto exato em que o peregrino chegava após percorrer a parte escura da espiral no interior da nave. Sofia nunca sentiu aquilo, talvez porque nunca tivesse praticado aquela mística buscando seu objetivo. A sincera vontade alimenta a força daquilo que se deseja. Dizia um trecho do Livro de Ormoshi. Talvez aquilo fosse verdade. Pela primeira vez a garota sentia algo que sempre duvidara em sua vida. O poder da Mente era de fato transformador. Potencializava no indivíduo aquilo que ele desejava. Mais do que isso, Sofia sentia uma sublime energia emanar do interior de suas células. Sentia-se capaz de dominar os elementos da mesma forma como os mais poderosos Sacerdotes o faziam, a exemplo de Shimah e Marishi. Sua percepção estava aguçada, e ela podia sentir tudo o que acontecia ao seu redor enquanto percorria o interior do templo de olhos fechados. Embriagada por aquela sensação de poder, a jovem não percebeu que eles não eram os únicos presentes na redoma piramidal, e diferente da Catedral de Brasília, aquela presença era de um ser vivo real. A sombra se projetou pelo pórtico de entrada do templo alcançando os garotos, que foram tomados de surpresa por aquela aparição. Aquele nebuloso personagem caminhava silenciosamente pelo piso em espiral, avançando sobre o trajeto desenhado no mármore. Atemorizados, os dois recuaram, incapazes de esboçar alguma reação. A misteriosa figura foi iluminada pela luz da lua que penetrava os painéis vidro, revelando-se a Gabriel e Sofia que puderam enfim se tranquilizar. Olhando na direção da dupla uma senhora com seus cinquenta e poucos anos adentrava na nave tranquilamente como se já frequentasse o local. Devido ao baixo clima que fazia na cidade aquela noite, ela vestia um 322


fino blazer lilás junto com uma blusa branca por dentro, o que fazia sua aparência parecer ainda mais inofensiva por conta daqueles discretos trajes. Completando aquela silhueta, uma longa calça da mesma cor do blazer encerrava o conjunto. Notando a tensão dos garotos, a gentil senhora de ondulados cabelos castanhos quebrou o silêncio que imperava no salão piramidal. - Desculpe-me se assustei vocês. Eu vi buscar um livro que havia deixado aqui perto do altar. Gabriel virou-se para a direção em que a mulher olhara. Bem atrás dele, uma pequena escadaria conduzia a uma espécie de altar esculpido na pedra em forma de uma mesa que se destacava na parede ao fundo do Templo. Localizado no término da caminhada pela espiral, o chamado Altar de Deus era o ponto central do santuário, onde eram feitas as cerimônias místicas e orações coletivas. Sobre a mesa do altar, uma placa de metal retangular com uma imagem gravada em seu centro simbolizava o Divino através dos quatro elementos da natureza: fogo, ar, terra e ar. Enquanto a atenção de Gabriel estava voltada para o altar, Sofia não conseguia desgrudar os olhos da senhora, ainda afetada pelo susto. - Nós já estávamos saindo. – Disse a garota, em português, gaguejando. - Não se preocupem. O Templo é aberto durante todo o dia. – Disse a mulher enquanto se aproximava dos jovens. – Deus nunca fecha suas portas para seus filhos que O buscam de coração. Gabriel continuava calado, enquanto que Sofia a observava se aproximar. - Desculpe perguntar, mas a senhora possui alguma ligação com o Templo? – Disse a garota. A mulher soltou um sorriso sincero. - Sim. Eu contribuo com a manutenção do edifício e auxilio em suas atividades. Digamos que sou uma de suas guardiãs. Sofia apenas a ouvia, enquanto que Gabriel observava o santuário. As pausas que a mulher fazia apenas contribuíam para a silenciosa atmosfera que o Templo exalava naquela hora. 323


Silenciosa até demais. A senhora caminhou até o centro da espiral, ficando a poucos metros dos garotos. Naquele ponto, a luz incidia diretamente sobre ela, fazendo com que assumisse uma aparência bem diferente daquela tímida figura que adentrara há poucos instantes na nave. Parecia estranha. Vivificada. De alguma forma transfigurada. Seu semblante não havia mudado, porém seu rosto parecia ter assumido uma imagem um tanto quanto fantasmagórica. Como se um raio tivesse iluminado o santuário por completo. Uma estranha energia havia inundado o recinto. Gabriel sentiu uma poderosa gélida brisa subir pela sua espinha, congelando tanto seus movimentos como seus pensamentos, que logo se voltaram para Sofia, que igualmente lhe devolveu um olhar assustado, também sentindo a mesma arrepiante sensação. Sem esperarem, a idosa soltou um forte suspiro, como se o ar tivesse sido expulso dos seus pulmões. Faltando-lhe o ar, ela levantou a cabeça, sendo banhada pela forte luz que descia pela fenda translúcida onde se encontrava o cristal. Por um breve momento, os garotos juraram que estavam sendo confundidos pela luz que iluminava o recinto, porém o que eles estavam realmente presenciando, era uma poderosa energia emanar do corpo da sensitiva. O que eles não entendiam era que aquela força mística não era da médium, mas vinha de uma poderosa fonte, se espalhando pelo recinto com um fulgurante brilho. - O que está havendo? – Gabriel perguntou, abismado. - Eu não sei... Ela está passando mal? – Sofia tremia de assombro, enquanto os olhos da mulher se fechavam entre breves espasmos. – Precisamos ajuda-la... – Disse, indo ao seu socorro. Entretanto a mão de Gabriel lhe deteve, dando um forte puxão pelo braço. - Não toque nela! – Gritou o garoto, ordenando. - O que? Não podemos ficar aqui parados... - Espere. Acho que sei o que está acontecendo. – Disse o jovem, agitado. 324


Os dois ficaram em silêncio apenas vendo a mulher terminar os últimos espasmos, em meio a estranhos movimentos com sua boca, como se estivesse tentando falar algo, emitindo um som meio distorcido. - O que ela está dizendo? – Sofia se esforçava tentando escutar o que a mulher balbuciava, em vão. - Eu não estou conseguindo ouvir. – Respondeu o garoto. Ele se aproximou a passos trêmulos. Os jovens podiam jurar que se tratava de outra pessoa. Mas se não era ela quem se encontrava ali, quem era? -... à Montanha... Retornem... – A mulher balbuciava as palavras entrecortadas, impedindo os jovens de ouvirem o que falava. De repente, a cabeça da mulher tombou, sendo envolta pelas sombras de seu próprio rosto. Sofia recuou, sendo amparada por Gabriel. Encarando os garotos, seu semblante exalava uma aura totalmente distinta daquela que a aparentava minutos antes. Seus olhos sequer piscavam, mas fitavam os rostos assustados de Gabriel e de Sofia com uma serenidade intimidadora. - Ela está... – Disse Sofia, reconhecendo as poucas palavras. - Retornem... À Montanha... – Dessa vez a voz da mulher tornou-se concisa, transparecendo um tom distinto do seu, um pouco mais abafado. Pior do que isso. Sua voz assumiu um tom masculino. - Ela está falando... em Korah? – Disse Gabriel deslumbrado, reconhecendo o idioma da Constelação. A mulher continuou a falar. Para a surpresa deles, a comunicação não estava se efetuando somente pela boca da mulher, mas também entre as Mentes dos dois. Uma estranha sensação se dispersou no interior de suas cabeças, como se outras vozes estivessem ressoando pelo ambiente. - Mas como? – Disse Sofia, paralisada de medo. Um longo silêncio se fez entre os três até que a mulher voltou a falar. Dessa vez as palavras eram ouvidas nitidamente. - Retornem à Montanha Sagrada. – A médium não desviava o olhar dos garotos. – Retornem aonde tudo começou. 325


- Aonde tudo começou? Do que ela está falando? – Perguntou Gabriel. Embora estivesse morrendo de medo por dentro, Sofia criou coragem para falar. - Quem é você? – Perguntou, ainda amedrontada. - Alguém que há muito tempo os procura. – As palavras pareceram dar um soco no peito de Sofia, que sentia seu coração disparar freneticamente. A garota recuou junto com Gabriel. - Diga-nos o seu nome. – Inquiriu Gabriel, em um tom desafiador. - Meu nome não tem importância... Mas sim o que trago para vocês. - E... E o que você tem para nós? - Não tenham medo. – Disse a voz, incisiva. – Eu lhes trago uma mensagem. - Uma... mensagem? – Perguntou Gabriel, gaguejando. A mulher concordou suavemente com a cabeça. - Sei que buscam uma resposta, e é por isso que estou aqui: Para lhes contar somente o que precisam saber. Vocês procuram os Sacerdotes corrompidos. E sei onde estão. - Sabe onde os Magos estão escondidos? - Sim... – Disse a mulher concorando com a cabeça. – Vocês acertaram até agora, porém ainda não são sábios para aceitarem o que já sabem. Eles se encontram em uma Igreja, a Igreja de Roma. Estão estudando o antigo conhecimento que lhes transmitimos: A Revelação. - A Igreja! Eles estão infiltrados na Igreja! – Disse Gabriel, em um brado incontido. - Shhhh! – Sofia mandou Gabriel se calar, concentrada em ouvir aquelas palavras. – Mas... onde se encontra essa igreja? – Perguntou Sofia, tentando arrancar alguma resposta concisa no meio daquele falatório incoerente. - Definitivamente isso é algo que não se vê todo dia. – Disse Gabriel, segurando Sofia pelos ombros, enquanto se envolvia na aura sublime daquela visão. - Se você ficar calado talvez ela possa nos falar mais. – Disse Sofia, nervosa. 326


- Não temos tempo, sabe disso. – Disse Gabriel, falando com Sofia, e em seguida, voltando-se para a mulher. - Estão lá... Ao norte da latitude trinta e três... O número secreto que dá acesso ao seu mundo. Gabriel avançou sobre a mulher, se aproximando dela, enquanto seu coração quase saía pela boca. - Que lugar é esse? Onde podemos acha-lo? Sentindo uma forte alteração na atmosfera magnética do ambiente, Sofia tentou se precipitar para impedir que Gabriel terminasse o que havia desencadeado. - Está escrito nas Escrituras... Eles o descreveram. O Monte... – A mulher repetiu, agora com dificuldade. - Não Luhan! Se afaste! – Disse Sofia, se precipitando sobre os dois. A mulher também tombou para frente, em meio a novos espasmos. Sua voz perdeu força, enquanto que os garotos sentiram sua Vohan diminuir até desparecer por completo. Perdendo o equilíbrio, a senhora foi ao encontro de Gabriel, que se jogou no chão para amparar sua queda. Sustentando-a pelos braços, logo foi ajudado por Sofia que a erguia em meio àquela desastrada queda. Embora semi-inconsciente, ela conseguiu se equilibrar no gélido piso do Templo, enquanto que Sofia olhava para o alto, sentindo a poderosa energia se dissipar acima do teto, esvanecendo-se pelo cristal que jazia no cume da pirâmide. - Idiota! Viu o que você fez? Acabamos de perder uma chance única de saber onde eles estão! – As brancas bochechas de Sofia agora estavam coradas de raiva, enquanto ela segurava Gabriel pelos ombros. - A culpa é minha? Eu não posso adivinhar que aconteceria isto. – Disse Gabriel, esquivando-se. A mulher abriu os olhos, como se tivesse acordado de um sonho que não se recordava. - O que... Estou fazendo... – Disse a senhora, ainda sem forças. – O que aconteceu comigo? – Perguntou aos dois garotos.

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- Você não se lembra? – Perguntou Sofia, sem acreditar. A mulher balançou a cabeça, negativamente. - Apenas me recordo da minha consciência ir apagando aos poucos, como se eu estivesse desmaiando. – Disse, enquanto tentava se levantar, com a ajuda dos garotos. - Mas a senhora está bem? Está sentindo alguma coisa? – Perguntou a garota, ainda abalada. - Estou, mas preciso de um pouco d’água. Há algumas jarras em cima daquela mesa. – Disse, apontando para uma mesinha de madeira ao lado do altar. - Water. – Água. – Ordenou Sofia a Gabriel, em inglês. O garoto prontamente pegou uma das jarras ali existentes despejando seu conteúdo em uma das taças de cristal que apanhou. Voltando onde estava, entregou a taça à mulher que bebeu o conteúdo por completo, fazendo longas pausas, enquanto fechava seus olhos a cada gole. Sofia e Gabriel apenas observaram calados. - Esta água que estou bebendo é purificada pelas forças magnéticas que emanamos nas nossas cerimônias. Como costumamos chamar, é uma água abençoada. Obrigada... – Disse, entregando a taça de volta a Gabriel, que a pôs de volta na mesa. - Você é uma sensitiva, não é? – Perguntou Sofia, finalmente criando coragem para tocar no assunto. A mulher acenou com a cabeça. - Sou o que chamamos de médium. – Respondeu a senhora com um terno sorriso. - O que aconteceu? - Provavelmente eu abri um portal de comunicação com alguém que estava procurando falar com vocês... Há um bom tempo. – Disse ela, sorrindo. - Alguém? Quem? Por favor, nos diga. - Por que possuem esse ardente desejo de saberem? Afinal, qual é mais importante: A mensagem ou seu mensageiro? – Disse a mulher. Sofia sentiu a autoridade de suas palavras, apenas concordando. - Então o que devemos fazer agora? 328


- Vocês possuem uma missão. Agora vocês devem cumpri-la. - Uma missão? - Sim. Você e seu amigo estrangeiro agora possuem uma mensagem em mãos. Nunca a subestimem, pois ela foi confiada a vocês por um propósito. Mensagens sublimes vêm de fontes ainda mais sublimes. Seja ela qual for, não se esqueçam: Apenas confiem no mensageiro... Pois foi enviado do Alto. Após encarar os jovens Harashis, a mulher ergueu a cabeça fitando o cume da pirâmide. Sofia apenas a olhava, sem acreditar no que havia escutado. - Obrigada, senhora... - Zybia. – Disse a idosa, soltando um generoso sorriso. Sofia retribuiu com um sorriso contido, em seguida olhando para Gabriel para que saíssem dali. Mas antes que pudessem cruzar a porta do santuário a mulher os deteve. - Garotos? – Sofia e Gabriel quase escorregaram no liso mármore que revestia o piso. - Tomem cuidado, pois o Mal não faz distinção entre os poderosos e os humildes. Vigiem suas Mentes, pois ele os vigia do mesmo modo. - Eu compreendo... – Disse a garota, concordando entusiasmada com aquelas palavras. Aparentemente parecia ter recebido uma nova revelação. Os dois logo dispararam para a saída, deixando a senhora no interior da pirâmide. Após emergirem para a área externa do Templo, a dupla ainda tremia pelo que havia ocorrido dentro do domo. - Por Deus, quem era esse mensageiro? – Perguntou Gabriel, ainda eufórico. - Talvez algum de Seus enviados. – A garota respondeu, ainda impressionada. - Agora acredita em forças superiores? Acredita? – Gritou Gabriel, extravasando seu nervorsismo. - Isso não mais importa. Agora temos a localização deles. – Disse Sofia, olhando para o chão.

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- Mas o que ela quis dizer com Montanha Sagrada? – Perguntou Gabriel. - Eu também não sei, mas agora já sabemos por onde procurar. – Respondeu Sofia, sorrindo, - Sabemos? – Perguntou o garoto, desnorteado. - Vamos. – Disse Sofia, segurando a mão de Gabriel, enquanto ele ainda olhava para o alto da pirâmide, boquiaberto. Ansiosos para voltarem à Nemashi, Gabriel e Sofia partiram de Brasília em um piscar de olhos. A partir daquele momento eles se lançavam em uma nova aventura. Agora estavam mais próximos de encontrarem aquilo que mais buscavam. E o que mais temiam.

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DOCUMENTO 055 QUE NADA TE DETENHA Andando por um longo corredor, um sacerdote cruzava as alas do recinto sagrado. Porém, aquele recinto não era o Santuário de Nemashi. Nem o homem era um membro da Ordem Harashi. O monge beneditino andava apressado, como se o tempo estivesse caçando os seus passos que deixava para trás. Ao fundo, o coro de vozes monofônico podia ser ouvido, entoando quase que inaudível o Adeste Fidelis em latim, anunciando o tempo de Natal. O som vinha da basílica que se erguia no centro daquele monastério milenar, mas o destino daquele monge não era outro senão a sua cela. Ao chegar aos seus aposentos, aparentava estar ansioso. Logo pegando a chave da sua cela, apressou-se em abrir a rústica porta de madeira, mas o som de passos ecoando pelo corredor o deteve, forçando-o a acompanhar com os olhos aquela figura encapuzada que se aproximava. Um monge cruzou seu caminho saudando-o como o costume prezava. Após o breve protocolo, ele torceu a chave que levava no bolso do seu habito, fechando rapidamente a porta com um baque surdo. Escorando-se na porta que acabara de cerrar, o monge prontamente virou-se, sentindo seu sangue gelar quando uma voz pesada como o ferro rasgou o silêncio chamando-o pelo nome. O asceta encarou aquela sombra que bloqueava a luz do sol que entrava pela janela ao fundo do minúsculo aposento. Como se estivesse em um momento de adoração, o homem prostrou-se ante aquela figura encapuzada que se encontrava diante dele com o mesmo hábito. Não esperava a presença do Mago naquele momento, muito menos que ele adentrasse em sua cela daquela maneira. Os monges beneditinos possuíam rígidas regras de isolamento, os quais, passavam boa parte do dia voltados à oração e meditação pessoal em seus quartos. Conversar uns com os outros era proibido, senão, no horário das refeições e das atividades comunitárias. Além disso, o único momento em que eles tinham contato com a comunidade monástica era durante a celebração diária dos ofícios e das missas. E naquele momento ele estava a 331


violar uma das chamadas Regras de São Bento, um conjunto de normas que regia a vida nos mosteiros da Ordem Beneditina. Mas para ele aquele era o menor dos problemas. Minutos antes, havia sido contatado pelo Zahraniano para se encontrarem em sua cela. A julgar pelo adiantar da chegada do Mago, o assunto deveria ser urgente. Sem perder tempo, como era natural de sua personalidade, o monge logo se pôs a falar mentalmente com o Mago. - Milorde, o senhor deseja falar comigo? O Zahraniano respondeu monossílabo, rasgando o silêncio como um grave badalar de um sino. - Sim. A aspereza do tom do Mago não deixava dúvidas quanto ao conteúdo a ser tratado. - Chamei você aqui por um propósito. – Disse o Mago. – Sinto que os Harashis estão muito perto de nos encontrar. O semblante do monge converteu-se em uma incômoda surpresa. - Mas... Como? Nossa localização é impenetrável, mesmo com os mecanismos de buscas deles. Você nos assegurou... - Não interessa! – Brandiu o Mago. – As informações que eles conseguiram não vieram dos informantes da Ordem. Muito menos os que estão nesse planeta. - Você quer dizer que eles foram instruídos... - Sim, os Superiores. – O Mago disse aquela palavra como se sentisse sua Vohan queimar dentro de si. - Mas eles não costumam intervir dessa maneira... – Disse o monge, sem querer acreditar. - Mas interviram! De alguma maneira esse Mensageiro permitiu que eu sentisse sua presença durante o contato. Mas... Me impediu de matar a mulher. Estão protegendo-os. O monge continuava de joelhos boquiaberto, enquanto ouvia as palavras do Zahraniano. - Ele bloqueou sua Vo... 332


- Khala! – Chega! – O Mago deixou escapar um grito de ódio, dando as costas subitamente. – Você é a pessoa em quem mais confio aqui, e esta é a razão pela qual lhe chamei. – Disse o Mago, se recompondo. O silêncio habitava entre ambos, enquanto o Zahraniano permanecia introspectivo, como se estivesse lutando contra uma força dentro de si. O monge foi pego de surpresa quando aquela sombra encapuzada voltou-se novamente para ele. Parecia contrariado. Mas sem perder sua frieza emocional. O monge havia entendido os sinais. O Mago se aproximou do homem jazido no chão, e impôs suas mãos naquele couro cabeludo alvo. Com a mesma voz ríspida começou a proferir as seguintes palavras em Korah: Ha Gavah Mayam’Horun Ha Yoh. He’er Hari Khoda Bayesha Alemuh Branah. Ahe’er Yahnus’Kamah Heva Lohay’Shadon. Hyma!49 Estas estranhas palavras formavam uma conhecida fórmula da Magia Zahraniana para transferir as memórias, experiências e conhecimento adquirido por um Mago ao longo de sua vida. Porém, essa prática era uma atitude extrema para os membros da Ordem. Dividir o conhecimento com outro Zahraniano significava um sinal de fraqueza pessoal. Para eles, o conhecimento deveria ser conquistado individualmente. Somente era compartilhado entre aqueles que sentiam dominar o mesmo saber. Se o conhecimento era o que alimentava as aspirações daqueles Magos, o orgulho dominava suas almas por completo. O cessar daquelas carregadas palavras fez o monge sentir uma poderosa onda sibilar pela cela, penetrando-lhe os ouvidos até a beira da loucura. Um verdadeiro caos se instalou em sua Mente. Não conseguia gritar. Não conseguia pensar. Seus pensamentos não estavam mais ali porque outros haviam usurpado o seu lugar. Uma verdadeira chuva de memórias atravessou a Mente e a visão do homem, que sentia como se não houvesse chão nem paredes ao seu redor.

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Sua tradução era mais ou menos a seguinte: Eu lhe concedo o Princípio de Tudo o que Eu Sou. Que a minha força ativa alimente a tua sabedoria. E que o conhecimento da minha Mente seja a morte dos teus inimigos. Está feito!

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Nem espaço, nem tempo. O passado, presente, e até as visões que o Mago Zahraniano esporadicamente tivera acerca do futuro tomaram conta de sua Mente. Sem esperar, o indescritível incômodo cessou, devolvendo-lhe a visão. Saído daquele transe, o asceta caiu de joelhos no gélido ladrilho da cela. O Zahraniano pareceu ter sido jogado para trás, em meio a espasmos, que deixaram seu corpo tremendo por inteiro. Buscando se apoiar em uma prancha presa à parede, o ilustre membro da Ordem Zahran derrubou alguns livros, assim como um pequeno crucifixo que se apoiava em um pedestal em cima da mesa. Porém, controlando o caos interior, o Mago novamente aprumou-se. À sua frente, enquanto se recuperava daquele degradante fenômeno, o monge imaginava qual razão levara o poderoso Zahrananos a compartilhar seu intrigante conhecimento com ele. Estaria ele por acaso perdendo sua vitalidade? Talvez perecendo por alguma enfermidade desconhecida? Ou apenas guardando um poderoso segredo por segurança? O

miserável

monge

continuava

abalado

com

aquelas

breves

conclusões. Tal atitude apenas revelava que de alguma forma ele conseguira ficar a par dos interesses do Juiz Supremo da Ordem Zahran. Havia sido escolhido para um único propósito: Devia guardar aquele conhecimento, para quando fosse preciso, entregar ao líder dos Zahranianos. - Agora você compreende? – Disse o Zahraniano, aparentando estar um pouco abatido, porém, emanando uma Vohan mais poderosa ainda. - Sim, Lakahz. – Disse o monge absorvido por aquela aura de poder que ainda afetava a sua Mente. O silêncio novamente foi quebrado pelo Zahraniano, enquanto observava a tranquila relva que cercava o mosteiro. Ao fundo, uma elevação montanhosa se destacava na paisagem com uma alva neve cobrindo seu cume. - Eu lhe entreguei a chave de um poder indescritível. Mas lembre-se: Somente Sarahnel poderá acessá-lo.

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- Obrigado pela confiança, Grande Arquimago... – Disse o monge, encarando novamente o Mago. – Nossa missão agora está entrando em uma nova fase. Precisamos ser cautelosos com os nossos inimigos. - Não se engane como os Harashis. – Disse Lakahz. – O pior inimigo que existe é aquele que te impede de obter o Conhecimento. Se for tua ignorância, supere-a. Se for tuas emoções silencie-as. E se por acaso for um homem, destrua-o. Que nada te detenha. Só o Conhecimento pode salvá-lo. - Sim, meu senhor. – Disse o monge, baixando a cabeça ante o Arquimago Zahraniano. Lakahz havia tido uma visão. Mas como toda visão, o futuro era incerto. Não sabia se de fato aquela conquista poderia chegar ao seu destino em segurança. Da mesma forma, deveria atravessar o Universo sem que caísse nas mãos da Ordem de Nemashi. Como um homem precavido que era, ele não queria botar tudo a perder e logo chamou seu principal servo naquele lugar. Aquela atitude significava mais do que renúncia da sua soberania dentro da hierarquia da Ordem Zahran. Não que não acreditasse em si mesmo, mas temia que seu próprio poder algum dia pudesse destruí-lo. O que fazer quando se confunde o poder que se possui com o que você é? Pensou. O saber que ele havia conquistado estava consumindo sua personalidade. Ele não percebia. Muito menos os outros. Isso teria um preço para todos. E para o Universo.

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DOCUMENTO 056 FECHANDO O QUEBRA-CABEÇA Shylon se encontrava no seu apartamento, observando o movimento da área externa do Santuário pelo painel de vidro da sala. O garoto não esperava a chegada de Sofia e Gabriel, que lhe deram um grande susto ao surgirem repentinamente atrás dele, chamando pelo seu nome. Shekmeh abriu os olhos para ver o que era, mas ao notar a presença dos dois yuranshianos, voltou a cabeça entre suas patas . - Vocês não sabem que é falta de educação não avisar de sua chegada antes de saltarem entre os espaços? – Disse Shylon, batendo com a mão na mesa. - Cala a boca e escuta: Aconteceu algo conosco em Brasília. – Disse Sofia, afobada. - Vocês se encontraram com algum Mago? – Perguntou, ansioso. - Bem melhor do que isso. – Disse Sofia, sorrindo para um desnorteado Shylon. – Descobrimos onde eles estão. - Pelo Princípio... Mas como? – O garoto mal conseguia acreditar. - Sem perguntas. Preciamos ver o Livro de Ormoshi imediatamente. A resposta está nele. – Disse Sofia, segurando o ombro de Shylon. - Impossível. Ele está guardado nos Laboratórios para análise. Além do mais, o acesso é proibido a quem não está trabalhando em seu estudo. – O jovem retrucou. - Ele tem razão. Seríamos expulsos da Ordem por invadir o Laboratório da Ordem. – Gabriel se intrometeu. - Você não entende que acabamos de receber instruções dos Superiores? – Tal frase de Sofia fez o apartamento entrar em profundo silêncio. Shylon então resolveu quebra-lo, após assimilar a surreal notícia. - Por que não podemos falar diretamente com meu pai ou com Haron? - Porque suas Mentes estão sendo vigiadas pelos Zahranianos. – Sofia respondeu, deixando os garotos boquiabertos. - Como é? – Gabriel perguntou, duvidando, da mesma forma como Shylon transparecia tal incredulidade em seu olhar. 336


- É isso o que você ouviu. Os Magos sabem que os mais sábios membros da Ordem estão neste momento debruçados sobre o Livro. E do mesmo modo que nos caçaram em Yuransha, estão tentando fazer neste momento com os Sacerdotes. - E por que nós estaríamos imunes? – Shylon perguntou, intrigado. - Você acha mesmo que a Ordem Harashi confiaria a Discípulos recém-chegados a tarefa de decifrar o Livro? Por que acha que essa revelação foi feita a mim e a Luhan em Brasília, e não aos grandes Sacerdotes aqui em Nemashi? – Aquelas palavras fizeram os garotos acordarem. Mais uma vez Sofia tinha razão. - Então o Santuário corre perigo? – Gabriel perguntou. - Se eles tanto querem o Livro por que não invadem o Santuário? - Por favor, use a cabeça ao menos uma vez na vida. Tudo o que Marishi lhe ensina escorre pelos ouvidos? – Disse a garota, sem paciência de explicar aquilo. – É o conhecimento que os Sacerdotes obtem que está sendo vigiado, não o Santuário. E qualquer coisa que contemos aos Sacerdotes, os Magos em Tevohan imediatamente saberão. Por isso agora nós temos uma missão: Precisamos descobrir onde os Magos estão antes que os Sacerdotes desvendem os escritos. Portanto arrume um jeito de termos acesso ao Livro, ou os Magos saberão de tudo antes dos Sacerdotes anunciarem suas descobertas. – Concluiu a garota. - Mas só os Sacerdotes autorizados podem ter acesso às câmaras dos Laboratórios. – Shylon retrucou. - Algo me diz que você tem a chave para isso. - E como você pode ter tanta certeza disso? - Estou vendo a resposta bem clara neste momento em sua Mente. Shylon se assustou com aquelas palavras. As habilidades de Sofia lhe davam créditos, mas era preciso agir rápido. Os jovens Harashis contavam com poucas informações, mas o rápido contato que tiveram em Brasília fora o suficiente para guia-los em sua próxima missão: Adentrar secretamente nos Laboratórios do Santuário e localizar os Magos através do que estava escrito no Livro. Os argumentos da jovem fizeram fez Shylon ceder, pois no fundo ele sabia que era a única coisa que podiam fazer. 337


- Você me assusta garota... Venham. – Disse Shylon, puxando os dois amigos, saindo pela porta do apartamento. *** Esperando pacientemente na entrada de uma das salas de estudo do Santuário, Marishi adentrou no recinto, assim que Haron encerrou a aula. Enquanto que os jovens Discípulos recém-ingressos na Ordem deixavam o grande anfiteatro, o Sacerdote careca adentrou, aproximando-se do amigo, que lhe recebeu com bastante surpresa. - O que lhe trás aqui há essa hora? – Você não tinha que ministrar para os alunos da Escola de Diplomacia Galáctica? - Consegui colocar o Embaixador Sahmus Ga’ard50 no meu horário. Nesse momento ele deve estar dando uma aula melhor do que a minha. – Disse Marishi, se apoiando na mesa de leitura de Haron, ao centro da sala. – Eu passei a tarde no Laboratório de Estudos Linguísticos. - Percebe-se, você colocou outro para dar aula em seu lugar... – Ele respondeu, sorrindo, porém notou a uma fria seriedade no rosto do amigo. - Os Sacerdotes passaram o dia inteiro escaneando a frequência de palavras e expressões escritas pelo Guardião no Livro de Ormoshi. E uma em especial se repete com certo zelo. Diria até destaque. Contamos treze referências diretas a ela. - Seja mais objetivo Marishi, minha próxima turma está para chegar. Nesse momento o Sacerdote fechou os olhos, como se estivesse dando uma notícia de pesar, permanecendo assim enquanto falava. - Você está bem? – Perguntou Haron, preocupado com o amigo. - Sim... Apenas... – Marishi não precisou falar mais nada. Haron entendeu o que ele queria lhe dizer com aquele estranho comportamento. 50

O Embaixador Sahmus Amesha Ga’ard, um de meus ancestrais, teve um importante papel na política interplanetária da Constelação. Seus descendentes, por sua vez, tiveram uma importância ainda maior no desenrolar dos acontecimentos que narrarei nos próximos livros. Digamos que os membros de minha família sempre tiveram problemas do tamanho de nosso Universo Local, inclusive eu.

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- Serei breve. Isso não deve sair desta sala. – Continuou, enquanto o mynohriano concordava com a cabeça. – Nós encontramos referências a profecias que o Guardião não teria como compreender tão facilmente. - Profecias? – Haron perguntou, intrigado. - Sim, especificamente sobre três. - Então o Guardião escreveu sobre a Profecia dos Três... - Não Haron, falam sobre três profecias, não sobre a lendária Profecia dos Três.51 – Disse Marishi interrompendo. – Eu não estou falando das profecias que o povo Ute descobriu sobre nós e que se encontram nas Escrituras do Princípio. Estas três profecias na verdade formam uma só, e foram originadas exclusivamente em Yuransha. Elas surgiram no período mais delicado da história do planeta, e possuem uma importância impar para compreendermos as ações do sincronismo temporal. - Está dizendo que o Guardião teve acesso às Profecias Progressivas? - Eu não sei, mas ele conseguiu compreender muito além do que a Mente de um vidente pode enxergar. Sua Ciência e seus conhecimentos foram muito além de sua própria fé. Ele conseguiu interpretá-las de uma maneira totalmente nova, inclusive fazendo relação com um antigo texto que se encontra guardado em nossa Biblioteca. - Qual Marishi? - A Revelação de Patmos, conhecida em Yuransha como o Apocalipse. – O Sacerdote respondeu, para o imediato assombro de Haron. - Preciso ver a tradução imediatamente. - Você sabe que a essa hora o Laboratório está fechado, e só podemos entrar na câmara com todos de nosso grupo. Não desejo quebrar as regras acordadas no Quórum. – Disse, enquanto continuava de olhos fechados. - Então o que faremos? – Disse Haron, ainda surpreso com aquela informação. Subitamente Marishi abriu os olhos, saindo daquele estranho transe. Haron olhou para ele entendendo o que havia acontecido.

51

Esta é a mesma profecia que Haron cita no Documento 007 deste livro, mas para me manter fiel à cronologia dos fatos, volto a frisar que somente me aprofundarei nelas quando for o momento oportuno.

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A única reação que ambos tinham naquele momento era o semblante de preocupação, claramente estampados em seus rostos. - Por enquanto você terá que dar aula. – Disse Marishi, voltando-se para a porta da sala, enquanto alguns Discípulos começavam a entrar. – Se não se importa, assistirei junto com seus Discípulos. Precisamos conversar mais após seu término. - Sobre o que? – Marishi voltou a fechar seus olhos, novamente se concentrando. - Algo muito delicado. Precisamos saber o que vamos dizer a Luhan, Shylon e Branah. Eles precisam saber sobre as Três Profecias de Fátima. – E novamente abriu os olhos, encarando Haron, que não conseguia ainda processar aquelas três últimas palavras. Os alunos aos poucos se acomodaram no anfiteatro, enquanto Haron sentava-se em um dos degraus, encarando Marishi.

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DOCUMENTO 057 A RELÍQUIA DO LABORATÓRIO O trio cruzou o Santuário como se estivessem sendo vigiados. - Vamos ser descobertos... Vamos ser descobertos... – Disse Shylon, olhando para os lados, enquanto caminhava quase que obrigado. - Pare com essa ladainha. Onde está sua coragem Helamen? Estamos salvando o futuro desse Livro e quem sabe da Ordem. – Disse Sofia, puxando os outros dois. - Ele tem razão. Se formos pegos podemos não só nos complicaremos como também vamos envolver Marishi nisso. – Disse Gabriel, vigiando sua retaguarda, com medo de estarem sendo seguidos. - Você acha que Marishi não tem consciência de que está sendo vigiado? Por que acha que os estudos estão tão atrasados? Os Sacerdotes temem que os Magos penetrem em suas Mentes. Por isso estão usando o sistema de tradução por inteligência artificial. Só estão acompanhando o processo

sem

conhecerem

os

resultados

verdadeiros,

apenas

dados

numéricos. - Como você sabe de tudo isso garota? – Perguntou Shylon, surpreso com o que Sofia lhes falava. - Não acham estranho o modo como os Sacerdotes estão agindo ultimamente? Não permitindo que falemos sobre tal assunto, até mesmo nas aulas? Até seus Discípulos estão proibidos de falar sobre isso. Os rumores são grandes. Além do mais, tal mensagem foi transmitida a nós e não a eles. É por isso que chego a essas conclusões, e tenho mais do que certeza: Os Sacerdotes estão sendo vigiados pelos Zahranianos. - Ela tem razão Shylon. – Gabriel só podia concordar com Sofia. - Você pode saber o que está acontecendo, porém não sabe como chegar até onde está acontecendo. Yebrah Zeneha – Disse Shylon ao entrar em um dos transportadores da nave. Ao surgirem andares abaixo, o trio imergiu em um longo corredor iluminado por todos os lados. Era o Laboratório Central do Santuário Harashi, um verdadeiro labirinto com inúmeras câmaras de estudos e análise dos mais diversos tipos de materiais. 341


- E agora? Para onde vamos? – Sofia perguntou, olhando para os lados. - Vencer os sistemas de segurança do Laboratório Central. – Disse Shylon, caminhando pelo corredor. – Cada Laboratório do Santuário possui um sistema particular. E somente Sacerdotes autorizados podem ter acesso ao respectivo Laboratório em que estão desenvolvendo suas pesquisas. O garoto se aproximou de uma grande porta metalizada. Inscrito acima da entrada, um letreiro luminoso com letras em Korah revelava onde estavam: Laboratório de Estudos Linguísticos. Ali se encontravam os textos mais raros de Ashunyah e de outros sistemas, que eram trazidos primeiramente ali para serem digitalizados e estudados antes de serem colocados em exposição na Biblioteca do Santuário. - Então foi para cá que trouxeram o Livro de Ormoshi? – Disse Sofia, surpresa. Shylon confirmou com a cabeça. - E como entraremos? - Dessa forma. – Respondeu o garoto, aproximando-se do luminoso computador, incrustrado na porta. A máquina abriu a tela luminosa exibindo o sistema de acesso. O garoto rapidamente digitou uma sequência memorizada de sete números, porém Sofia notou que Shylon digitava repetidas vezes os números 0 e 1. - Sequência binária? - Não acha que seria tão fácil assim, não é? – Shylon respondeu, rindo da incredulidade da garota enquanto continuava a digitar uma sequência que aparentemente não terminava. - Mas por que você está digitando três sequências diferentes? - O sistema de segurança tem que ser distravado juntamente com a ativação das máquinas da sala. Sem liberarmos esses sistemas, o computador central do laboratório não é ativado. Por isso antes de entrarmos precisamos burlar três sistemas diferentes. Ao terminar de falar, a porta de metal imediatamente cedeu, abrindo passagaem a um grande recinto que se iluminava para os visitantes. Ao adentrarem, a porta atrás deles se fechou, soltando um forte jato de vapor em cima do trio. Sofia deu um grito, assustada com o mecanismo. 342


- Está tudo bem... Isso serve para matar as possíveis bactérias que carregamos para dentro do Laboratório. Ajuda a preservar os documentos guardados aqui. Shylon tranquilizou os presentes, caminhando pela entrada até esbarrar em uma grande parede de vidro. Dessa vez, o computador acionou seu mecanismo, notando a presença dos garotos. - Meu nome é Kheri 7, computador do Laboratório de Estudos Linguísticos. Dados de cadastro e senha de acesso, por favor. – Disse a voz masculina, típica dos sistemas nemashianos. - Marishi Artha Helamen. Número de registro para acesso 07703. Senha: Shylon Artha Helamen. - Essa é a senha do seu pai? – Sofia riu daquela cena. - Shhhh! – Disse Shylon, calando a garota. – O computador ainda está processando. Mas a resposta não demorou. - Cadastro e senha confirmados. – Disse a máquina, abrindo a porta de vidro à frente dos intrusos. - Espera... Uma vez seu pai disse que toda tecnologia de acesso se dá através do DNA ou do comando de voz. – Questionou Gabriel. - Sim... E? – Shylon perguntou, sem entender. - Como ele pode entrar se o computador reconhece a sua voz e não a dele? - Meu pai pediu para gravar minha voz e a reproduz toda vez que vem ao Laboratório. Por isso eu conheço as senhas. Ele não quer que sua voz seja reproduzida aqui dentro... - Assim os Magos não poderão saber que ele está aqui. – Disse Sofia, surpresa com aquela descoberta. - Acho que essa história de monitoramento está fazendo sentido agora. – Disse Shylon, concordando com a jovem. Ao avançarem sobre o Laboratório, o trio observou uma série de câmaras dispostas uma ao lado da outra, como se fossem salas de reuniões de modernos escritórios. Em cada uma delas, uma mesa era rodeada por várias cadeiras e ao fundo, uma estante de cristal guardava os exemplares 343


que eram analisados. Sem perder tempo, Shylon localizou o Livro, guardado em uma daquelas salas. No meio daquele verdadeiro labirinto de salas de vidro, uma em especial se destacava pelo objeto ao fundo. A conhecida capa azul

desbotada

saltou

aos

olhos

de

Gabriel

e

Sofia que

também

reconheceram aquele tão problemático Livro, que era o motivo deles estarem naquele planeta. - Esse Livro quase nos matou. – Disse Gabriel, praguejando. - Mas nos fornecerá as respostas que precisamos. – Disse Sofia, avançando sobre a sala, detendo-se por uma porta de vidro. Shylon pôs à frente, digitando uma nova senha no computador local. - Estas salas são hermeticamente lacradas. A segurança é essencial. Podíamos saltar para dentro delas se quiséssemos, mas morreríamos sem oxigênio. A porta imediatamente se abriu, liberando a passagem para os três. Enfim, estavam diante do Livro de Ormoshi. Shylon colocou luvas muito parecidas com as usadas por peritos em Yuransha, entregando outras aos amigos para que as usassem. Assim, ele retirou o Livro do seu armário de vidro em que se encontrava como um troféu – erguido dentro daquele nicho – , colocando-o em cima da mesa. Por alguns segundos o trio ficou em silêncio, contemplando aquela obra como se tivessem encontrado o Santo Graal. Sofia, então, resolveu agir. Puxando

uma

cadeira,

sentou-se

próximo

ao

Livro,

abrindo-o

aleatoriamente. - O que está fazendo? – Shylon perguntou. - Temos que começar por alguma parte, não acha? – A garota respondeu. - Não é assim que pesquisamos em Nemashi. Kheri 7, ative o sistema da mesa de leitura. - Sim, meu senhor. – A máquina respondeu, acendendo o painel de controle da mesa. Aquele computador embutido na verdade dava acesso a todo o sistema de pesquisa, estudo e material disponível naquele laboratório. - E como vamos encontrar o que queremos? – Gabriel perguntou.

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- Simples, meu amigo. Você precisa aprender a manusear nossas máquinas. Inclusive como pesquisar em nosso mundo. – Disse Shylon, colocando o Livro em uma grande abertura na mesa. Imediatamente, o dispositivo se fechou sobre o livro, como se tivesse comprimindo-o. Shylon movimentou suas mãos no ar, manuseando aquela tela suspensa como se estivesse acionando uma programação. Imediatamente aquela armação de metal abriu o livro com uma força e o folheou como se um forte vento tivesse invadido a sala, para espanto de Sofia e Gabriel. - Está louco?! – Sofia gritou, enquanto achava que o Livro se desmantelaria naquele estranho mecanismo. - Calma minha jovem Harashi. Isso aqui é o sistema mais seguro e preciso de pesquisa em nosso mundo. A máquina acabou de escanear todas as páginas do livro com seus caracteres. Agora só precisamos programar a identificação dos caracteres para a tradução com o idioma em que está escrito. O em... Eng... - Inglês. – Gabriel respondeu. - Isso! – Shylon exclamou. – E assim, a nossa tradução instantânea estará feita. Kheri 7, por favor, programe a tradução do Inglês para o Korah. Após alguns segundos, a máquina emitiu um sinal, confirmando o término da tradução. - Agora, só precisamos achar as expressões que desejamos. Procure por Yuransha. Palavra correlacionada, Terra. – Disse Shylon, enquanto a máquina pesquisava as palavras. Um total de 255 referências foi achado, todas em notas escritas ao longo das folhas pelo Guardião. - Acho que precisamos refinar essa busca. – Disse Sofia, rindo do fracasso daquela pesquisa. - Não me diga! – Disse Shylon, ironizando. - Vamos ser mais objetivos. Kheri 7, procure por Trinta e Três. - Trinta e três? – Shylon perguntou, sem entender. – Por que Trinta e Três? - A latitude do meu planeta onde os Magos se encontram. A mulher em Brasília nos disse que este dado estaria escrito no Livro pelos tradutores. – Sofia respondeu, encarando o amigo. 345


- Meu Deus... – Gabriel exclamou, surpreso com a perspicácia da garota. Para espanto dos três, um único resultado surgiu. Isolado, em destaque naquela tela luminosa. - Tenho que admitir garota, de fato você é genial. – Shylon ficou sem acreditar. - Pare de me bajular e abra logo isso. – Disse Sofia, ansiosa para ver o que foi encontrado. Imediatamente, uma imagem da folha em que estava escrita a expressão encontrada se projetou no ar como um filme em uma tela de cinema. Os garotos se aproximaram, e Shylon, lendo pausadamente, apreciou aquele texto com uma atenção que nunca possuiu durante suas aulas no Santuário. Aquelas linhas grosseiramente escritas nas páginas do Livro pelo último Guardião, preenchiam as laterais daquela página que fazia parte do Documento 34, que tratava sobre os saltos entre os espaços, realizados tanto por indivíduos como por veículos. Confirmando o texto original, tantas vezes estudado nos exemplares originais das Escrituras do Princípio, Shylon acompanhou a leitura de Sofia da tradução na nota para os caracteres do Korah. O texto dizia o seguinte: As Forças Armadas de nosso país encontraram a nave, ou veículo de navegação dos Sacerdotes na região de Roswell, após sua destruição com a interceptação aérea. Feitas as análises dos destroços pelo Majestic 12, bem como dos registros aeronáuticos, guardados em nossos quarteis, é estranho notar que os radares de nosso país registraram sequências de aparecimentos e desaparecimentos desse objeto voador interceptado exatamente em cima de onde se encontra a latitude de grau 33, ao norte da Linha do Equador. Essa repetição dos súbitos “avistamentos” nos fez concluir que tal região pode ser uma espécie de ponto de contato, ou até mesmo rota de navegação utilizada por eles, que parte de uma desconhecida região do espaço para, em questão de milésimos de segundos, se materializarem de sobre esta região, numa espécie de “salto”, tal como o presente Documento explicou 346


detalhadamente em seus escritos que antecedem esta página. Arrisco até dizer que a região de Roswell, no Estado do Novo México, é uma espécie de “Portal” para estes Seres virem de seu mundo até o nosso, sendo localizado dentro do perímetro que abrange a latitude norte de grau 33. - Roswell... – Sofia repetiu aquela palavra, lembrando-se das histórias sobre a nave dos Sacerdotes Harashis que fora abatida naquela localidade desértica. - Então eles estão em Roswell? – Shylon perguntou. - Não sei se estou tão certa disso. Há informações que não batem... Sofia continuava falando, porém os ouvidos de Gabriel estavam longe dali, mais precisamente, caminhando para a entrada do laboratório, de onde ouvia um estranho, mas conhecido som. - Vocês ouviram isso? – Gabriel cortou a explicação da Discípula. - O que Luhan? – Sofia perguntou, se desconcentrando de sua leitura do Livro. Porém, aquele eco quase inaudível podia ser captado se a câmara ficasse em silêncio. Todos se calaram, percebendo igualmente aquela conhecida voz metalizada. Computador do Laboratório... - Que barulho é esse? Você ativou a inteligência artificial do computador? – Gabriel perguntou, visivelmente tenso. Shylon negou com a cabeça. Porém, aquela voz novamente penetrava seus ouvidos, ecoando abafada pelo corredor, invadindo suavemente aquela câmara hermética. Dados de cadastro e senha de acesso... - Alguém está no Laboratório. – Sofia disparou, olhando assustada para os amigos. - Pelo Princípio, desligue isso! – Shylon bravejou, enquanto Gabriel saltava em cima da mesa, digitando rapidamente sobre a tela do computador. Imediatamente a imagem do Livro se desfez, enquanto o jovem Harashi desligava o sistema. Enquanto Gabriel terminava de apagar o histórico acessado na máquina, Shylon continuava ali, concentrado na capa azul enquanto tentava 347


achar uma saída viável. Estava hipnotizado por aquele estranho sentimento de que as respostas que tanto procurava poderiam estar guardadas nas folhas amareladas daquele velho livro. Mas eles teriam que sair dali o mais rápido possível, antes que o misterioso visitante os encontrasse. Shylon segurava a obra contra a mesa, até que tomou a decisão de leva-lo consigo, mas antes que conseguisse movê-lo, a delicada mão de Sofia desceu junto com a gravidade, caindo sobre a capa do Livro, prendendo-o de volta à mesa em um surdo baque. Aquele brusco movimento acordou os sentidos de Shylon que se assustou com a súbita reação da garota. - O que você está fazendo sua louca?! - Estou vendo o que você pretende. – Disse Sofia. - Precisamos do Livro! – Shylon insistiu. - Acredite, não mesmo. Nós vamos embora, mas o Livro fica do Santuário! – A garota gritou, fazendo Shylon estancar. - Para onde iremos?! - Para minha casa. Não fique aí parado, já estou mentalizando! Luhan! Aquele grito fez o garoto voltar-se para os amigos, se aproximando enquanto captava a chamada. Ambos deram as mãos, enquanto Shylon sequer perdeu tempo, invadindo os pensamentos da garota. No momento seguinte, a sala ficou vazia, acionando o sistema automático de selamento do recinto. Após alguns segundos as luzes locais se apagaram, deixando a sala da maneira como estava antes do trio adentrá-la. Porém, a pressa de Sofia fez com que a gravidade agisse como o esperado, e a posição como o Livro fora deixado não permitia que continuasse de pé dentro do suporte, como se encontrava antes. Assim que deixaram a câmara a obra se desequilibrou em meio às suas velhas páginas, se escorando na proteção de vidro que a impedia de cair no chão. Poucos segundos depois, as luzes do longo corredor voltavam a se acender, abrindo passagem para aquele barulhento farfalhar de tecido branco que ecoava pela vastidão do corredor. As longas vestes do Sacerdote abriam caminho pelo piso metalizado junto com os ritmados passos daquele homem que corria freneticamente pelo longo Laboratório.

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Ele sabia que algo estava acontecendo ali, e sua expressão de assombro veio à tona quando o Sacerdote confirmou que alguém havia manipulado o Livro. Sua posição, encostada no armário de vidro não deixava dúvidas. E o nível de oxigênio que se aproximava de zero provava que a sala estivera ocupada há pouco tempo. Seu único alívio era saber que o Livro continuava onde havia sido deixado. Não como esperava, mas isso o tranquilizava bastante. Porém, o Harashi continuava agitado, imediatamente abrindo o canal de comunicação com o computador central do Laboratório. - Kheri, me comunique com o apartamento do Sumo Sacerdote Marishi. Avise-lhe que alguém invadiu o Laboratório. E que por um milagre o Livro continua aqui. – Disse o homem, enquanto a máquina imediatamente respondia ao apelo do homem.

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DOCUMENTO 058 A LATITUDE TRINTA E TRÊS Pelo Princípio... Quem era? Gabriel ainda estava agitado, enquanto sentava-se na cama do quarto de Sofia em Brasília para se acalmar. - Sério que você ainda pretende descobrir? – Shylon perguntou, sarcasticamente. - Tivemos sorte em sair dali sem sermos notados. – Disse Sofia, nervosa. - Sorte? Há essa hora os Sacerdotes devem estar procurando quem estava no Laboratório. E adivinha quem são os únicos Harashis que nesse momento não se encontram no Santuário? - Será que dá para ser menos irônico pelo menos agora? Preciso de um pouco de silêncio para me concentrar. - Por favor, se acalmem. – Disse Gabriel, intervindo naquele princípio de discussão. – Precisamos pensar nossos próximos passos. - Os nossos próximos passos nos levarão aos Magos. – Sofia respondeu, decidida como nunca. - E como você pretende fazer isso? Ao dizer aquilo, Shylon não obteve resposta da garota, apenas observando ela ficar de ponta de pé, até alcançar um globo colorido no alto da estante do seu quarto. - Essa bola é que vai nos mostrar onde estão os Magos? – O jovem perguntou. - Isso, meu querido, é uma representação em escala de todos os países e regiões de Yuransha. - Acho que estou entendendo o que ela pretende fazer. – Disse Gabriel, apenas acompanhando os movimentos da garota. - O Guardião escreveu no Livro indicando que Roswell seria um portal para Yuransha, não é? - Sim, e aonde você quer chegar com isso? – Shylon perguntou, curioso.

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- O Mensageiro nos mandou retornar a uma Montanha Sagrada. E que a igreja onde eles estão escondidos se encontrava na latitude de grau trinta e três. Há algo que não bate nos escritos do Guardião. Este lugar não pode ser em Roswell. – Disse Sofia, colocando o globo em cima de sua escrivaninha. - Por quê? – Gabriel perguntou, sem compreender. Ele e Shylon apenas olhavam para a jovem, sem entenderem aonde ela queria chegar. Ela apontou o dedo no mapa, indicando a referida latitude em cima daquela região. - Esta é a cidade de Roswell. Aqui não existe nenhuma montanha, nenhuma igreja ou mosteiro católico. Os Estados Unidos são um país de maioria Protestante, não tendo nenhuma ligação com o que diz a mensagem. - Então se os Magos não estão escondidos em Roswell onde afinal estão? – Shylon perguntou. - Essa localidade é um deserto, não uma região de montanhas consideradas sagradas. Deve haver uma montanha em outro lugar nessa latitude. Uma grande montanha com uma igreja junto a ela. E isso é algo que não existe nesta parte dos Estados Unidos. O problema é que não temos nenhuma formação rochosa importante nessa linha. – Disse, avançando com seu dedo sobre o Oceano Atlântico para provar que não havia nenhuma outra montanha naquele caminho. - Espere! – Gabriel a interrompeu, fixando seu olhar no globo. – A latitude passa próximo da Espanha e de Portugal. Existem algumas montanhas aqui e pelo que sei a Espanha e Portugal são países profundamente católicos. - Você falou bem, mas próximo não significa sobre. Além do mais, se encontram acima da latitude trinta e três, não existindo nenhuma cordilheira ou montanha considerada sagrada ao sul da Espanha ou Portugal. – Àquela altura Shylon já não estava mais conseguindo acompanhar o raciocínio. O indicador de Sofia continuou sua trajetória passando meticulosamente por países da África como Marrocos, Argélia, até se perder sobre o Mar Mediterrâneo. - Não estou conseguindo vislumbrar outra cidade na região. Estão vendo... – Disse Sofia, avançando rumo o Oriente Médio. 351


De repente, os olhos de Gabriel foram atacados por uma visão que o deixou paralisado. Parecia que tinha visto algo familiar. Com uma única ordem, o jovem interrompeu o dedo de Sofia. Os três amigos se olharam à medida que o semblante do Discípulo de Marishi transparecia sua assombração. - O que houve? – Perguntou Shylon, preocupado. - A cidade de Roswell... – Disse Gabriel, gaguejando. - Sim, o que tem ela? – Sofia perguntou. - Está na mesma latitude de uma grande montanha. - Qual?! – A garota se surpreendeu com aquela inesperada descoberta. O garoto nunca pensou que pudesse existir tal ligação. Não sabia se era meramente coincidência ou se tudo aquilo tinha algum sentido oculto. Mas aquele nome saltou aos seus olhos, reacendendo na sua memória a revelação recebida em Brasília, bem como uma antiga conversa que tivera com o Sacerdote. Aquelas seis letras escaparam de sua boca com uma conclusão arrebatadora. - Hermon... – Disse Gabriel, balbuciando. Sofia levantou seus olhos, sem conseguir tirá-los do rosto paralisado de Gabriel. Ele não pronunciava outra palavra senão aquela. Seus músculos enrijeceram à medida que digeria aquela perturbadora informação. - Hermon. – Ele repetiu, sem acreditar, confirmando o que via. Shylon segurou o ombro do amigo, se apoiando para checar o dedo da jovem em cima do mapa. Sofia apontava para um conjunto de estranhos caracteres naquela grande imagem que o filho de Helamen não compreendia. Na cabeça da garota, porém, uma série de perguntas se misturava a conclusões que ela jamais imaginara que pudesse chegar sobre o lendário monte. Hermon. A palavra não parava de ressoar na Mente de Gabriel. Muito menos na sua. Aquele nome era familiar para ambos.

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DOCUMENTO 059 O PORTAL QUE LIGA OS CÉUS À TERRA O Monte Hermon é um portal de acesso à Terra na mesma rota da cidade de Roswell? O coração de Sofia acelerou sem ela esperar, como se tivesse visto um fantasma à sua frente. Shylon ainda estava sem compreender, e Gabriel sentiu seu sangue descer ao ler novamente aquela palavra. Era difícil de acreditar, mas a simbólica latitude de grau trinta e três revelava uma ligação um tanto quanto inimaginável. Chamado de “Montanha Sagrada”, ou do hebraico, Har Hermon, o Monte Hermon é uma grande montanha que se encontra na fronteira entre a Síria e o Líbano. Medindo 2814 metros de altitude, o seu pico está quase sempre coberto de neve, enquanto ao redor, o sol castiga o seco terreno que o circunda. - Impossível... – Shylon finalmente falou, traçando novamente com os olhos uma reta pela latitude do deserto de Roswell até o Monte Hermon. - Não é impossível. – Gabriel parecia em êxtase, como se tivesse descoberto o caminho até um tesouro escondido. – Certa vez Marishi me disse que, segundo conta a tradição judaico-cristã, foi nessa montanha onde os anjos desceram à Terra pela primeira vez. - A Montanha Sagrada, onde tudo começou... – Disse Sofia, ligando os pontos. - Isso! – Disse Gabriel, ainda entusiasmado com aquela conexão. – Só precisamos trocar a palavra anjos por... - Harashis! – Sofia completou, boquiaberta. Gabriel balançou a cabeça sorrindo. Imediatamente a garota lembrou-se de seus estudos sobre as crenças judaico-cristãs. A tradição judaica apontava esta montanha como sendo a elevação na qual os Anjos desceram à Terra pela primeira vez. Esta descida mencionada no livro apócrifo de Enoque é constantemente confundida com a queda dos chamados “anjos caídos”. A lenda dos “anjos caídos” tem origem em grupos pré-cristãos e também é fundamentada nos escritos da Segunda Carta de 353


Pedro, capítulo 2, versículo 4, que assim diz: “Pois Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os lançou no inferno, prendendo-os em abismos tenebrosos a fim de serem reservados para o Juízo Final”. Entretanto, no Livro de Enoque, a palavra usada é o verbo “descer” ou até mesmo “viajar” a um determinado lugar, e não “cair”. As culturas tribais de Yuransha, em especial, desta região do Oriente Médio, acabaram por criar uma série de histórias alimentadas ao longo dos tempos, sobre hostes de Anjos comandados por outros Anjos Superiores, ou Arcanjos, que lhes enviaram inúmeras vezes em missão para a Terra, ou Yuransha. Pelo visto todas essas histórias eram reais, só não imaginavam como haviam ocorrido. Estes Anjos são mencionados em outros escritos da Bíblia como no capítulo 4 do Livro de Daniel, e também no Livro do Gênesis, em seu capítulo 6, que narra a origem dos Nefilim, ou “gigantes”, filhos de anjos e humanas. Ora, não preciso entrar em muitos detalhes para que se entenda que, se estes seres – tradicionalmente tidos como puramente espirituais –, tiveram relações com mulheres humanas e delas nasceram filhos, podemos concluir que não se tratavam de Anjos no sentido espiritual da palavra, mas de seres dodatos de corpos físicos, iguais a nós. Em suma, o fato é que estes anjos que vigiavam e desciam a Yuransha, nada mais eram do que os Sacerdotes Harashis que observavam e estudavam os planetas em evolução a mando dos verdadeiros Anjos, os Seres Superiores. Por outro ângulo, a montanha lendária se encontrava na mesma latitude que a cidade de Roswell, no estado do Novo México, onde em 1947 uma nave foi abatida pela Força Aérea Americana. A nave que transportava Sacerdotes Harashis. Sofia não conseguia pensar em outra coisa a não ser na introdução do Livro de Ormoshi. Aquela fantástica obra, fruto da ousadia dos Guardiões, que dedicaram

suas

vidas

a

protegerem

aquele

precioso

conhecimento,

novamente voltou à tona. Imagens do Livro e seu conteúdo invadiram sua Mente, num misto de imaginação e lembranças sobre o que lera a respeito. Refletindo consigo mesma, Sofia se perguntou por que aquele acontecimento ainda repercutia até o presente momento, envolvendo-os em

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uma guerra cósmica pelo conhecimento que já durava milhares, talvez milhões de anos. - Agora estou entendo... – Disse Sofia, ainda em estado de choque. - Talvez queira nos explicar o que agora entende, senhora sabe-tudo. – Disse Shylon, menosprezando a vontade quase incontrolável da garota de falar. - Segundo o que aprendi nas aulas de Haron, as montanhas são marcos dos portais de acesso aos planetas, ou como você uma vez nos falou: “As montanhas mais altas se tornam verdadeiras balizas para nossas manobras, sendo os melhores pontos para descermos em qualquer mundo”, estou correta? Creio que desde a antiguidade, o Monte Hermon teve uma grande importância por conta de sua localização central em relação às diversas civilizações do planeta. Já o deserto de Roswell teve um papel decisivo devido ao fato da região de Israel começar a ser fortemente ocupada pelos judeus durante as perseguições Nazistas, tornando as missões da Ordem menos “discretas”. Como os Sacerdotes precisavam monitorar Yuransha para avaliar as consequências do fim da Segunda Guerra e início da Guerra Fria, e a Palestina não era mais um local “desocupado”, alteraram suas rotas para o novo Ponto em Roswell. Anos depois, o resultado disso seria catastrófico. - Suas teorias são medonhas, garota. – Disse Shylon, surpreso. Sofia deu uma piscada para ele, agradecendo o elogio. – Mas pelo que estou vendo existem outras montanhas pela mesma região. - Mas as informações da mensagem eram precisas. O informante da Deep Web nos mandou procurar “entre montanhas”. A mensagem que recebemos falava da “Montanha Sagrada onde tudo começou”. Hermon é o monte pelo qual os Harashis chegaram a Yuransha. É um dos portais de acesso de nosso Sistema para o meu planeta. – Disse Sofia, debruçando-se sobre o mapa, enquanto fixava os dedos sobre as imagens da geografia pedregosa da Palestina. Aquela linha não deixava dúvidas. As antigas rotas de navegação usadas pelos Harashis para chegar à Terra seguiam o princípio do ponto de

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incidência da localização de um cruzador vindo de Ashunyah em relação ao planeta que seria o destino da viagem. Refletindo sobre aquilo Gabriel relembrou suas aulas de Navegação Espacial, onde aprendeu que não importava aonde a rotação de um planeta se encontrasse, qualquer ponto dentro da latitude do globo seria o destino das naves que viajavam de um determinado espaço na Galáxia a outro. - Então é isso? Lakahz está infiltrado em um mosteiro perto do Monte Hermon? – Gabriel perguntou, sintetizando tudo o que fora discutido. - Um Mago escondido num mosteiro? Como ele não seria descoberto? – Disse Shylon, duvidando da conclusão do amigo. - Ele é um Mago Zahraniano, é capaz de enganar um Harashi, quando mais meros religiosos. Além do mais sua missão é estudar as Escrituras aqui em Yuransha, como disse o Mensageiro. Seria um disfarce perfeito, ainda mais com o estilo de vida reclusa que eles levam. A vida de um monge é muito mais discreta do que um padre ou bispo. – Sofia se intrometeu, novamente tentando convencê-lo com seus argumentos. - Mas ainda não tem sentido. – Disse Shylon, interrompendo. – Como podemos ter certeza sobre qual mosteiro eles estão? Você mesma disse que essa região está infestada de igrejas. - Na verdade... só há uma igreja nessa região com tal característica. – Disse Sofia, se adiantando às reclamações de Shylon. – Quando era criança eu viajei para essa localidade com meus pais. No sopé do Hermon existe um mosteiro cuja biblioteca guarda inúmeras obras raras descobertas na região, incluindo antigas cópias dos livros originais da Bíblia. E ele é dedicado nada mais nada menos do que aos Anjos do Senhor. – Disse Sofia, sem conseguir conter seu entusiasmo, erguendo suas alvas mãos. – Precisam de mais algum sinal rapazes? - Por que não pensamos nisso antes... Se Lakahz está escondido em Yuransha, ele iria se abrigar em um lugar onde ficaria mais fácil enviar para a Ordem Zahran os raros exemplares das Escrituras do seu mundo que estavam estudando, sem que notassem sua falta. – Disse Shylon. Aquelas palavras ressoaram na cabeça de Sofia como uma pedrada enquanto ela observava seus livros enquanto ouvia os Harashis falarem. 356


- De fato, retirar as Escrituras do Vaticano é bem mais difícil do que de um velho mosteiro isolado em Israel. – Disse Gabriel, concordando. - Agora a mensagem faz sentido! – Sofia exclamou, sem conseguir se controlar. - Como? – Gabriel perguntou, sem entender. - As Escrituras... - O que têm elas? – Shylon perguntou. - Estávamos procurando nas Escrituras erradas. - Como assim garota? – Imediatamente Sofia puxou um livro de capa preta que se encontrava no alto da estante. - O Mensageiro em Brasília nos disse que o Monte que procurávamos fora descrito nas Escrituras. As Escrituras de que ele falava não era a tradução das Escrituras do Princípio, mas a Bíblia. – Disse, abrindo o livro em cima da escrivaninha, passando a folhea-lho. - A Bíblia? – Gabriel se sobressaiu, espantado com aquela afirmação. - A Bíblia também é chamada de Escrituras Sagradas no nosso mundo. E o monte que é mais citado em seus livros é o Monte Hermon! De fato Sofia estava certa. E para comprovar isso ela mostrou que a Bíblia citava o Hermon mais do que qualquer outro monte. No Antigo Testamento, a cadeia montanhosa é chamada de Baal-Hermon no livro de Juízes, e de Monte Sião no livro de Deuteronômio.52 Já no Novo Testamento o Monte Hermon possui um papel importante nos episódios vividos por Jesus. Os Evangelhos falam que Jesus viajou com seus discípulos pela estrada ao norte de Betsaida, no Mar da Galiléia rumo à cidade de Cesaréia de Filipe, que ficava na base sul do Monte Hermon. Ali o Mestre revelou sua intensão de ir a Jerusalém e profetizou sua morte e ressurreição. Do mesmo modo, o Hermon é considerado como o local onde ocorreu um dos episódios mais misteriosos da vida de Jesus: A Transfiguração, 52

Mais precisamente, o Monte Hermon é citado no Antigo Testamento nos livros de Deuteronômio 3:9, 4:48; Salmos 29:6; Crônicas 5:23; Cânticos de Salomão 4:8; Juízes 3:3; e Ezequiel 27:5. No Novo Testamento aparece nos evangelhos de Mateus 16:13, 16:18-21, 17:1-8; Marcos 8:27, 9:2-8; e Lucas 9:29-36.

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quando levou consigo três dos seus discípulos, Pedro, Tiago e João, a uma alta montanha para orar. Muitos acreditam que esta alta montanha citada nos evangelhos era o Monte Hermon e não o tradicional Monte Tabor. - Para uma cética você estudou a Bíblia até demais. – Disse Gabriel, rindo da jovem Discípula após ouvir aquela breve aula de teologia. - É impossível não aprender sobre essas coisas quando seus pais lhe levavam todo domingo à Igreja. – A garota respondeu em tom de chacota. – Agora entendem? O Mensageiro nos disse o local onde os Magos estão escondidos, a latitude onde o Monte se encontra, e onde poderíamos achar suas referências. Nós é que fomos cegos ao considerar somente o Livro de Ormoshi. Esquecemos-nos de voltar nossas buscas para o elemento central com que os Zahranianos estão envolvidos: As Escrituras cristãs! - Mas precisamos comprovar se eles realmente estão lá. – Disse Gabriel. - Podemos descobrir isso juntos. – Disse Shylon, soltando um largo sorriso para os dois. - Nem pensar! Seu pai nos proibiu de irmos a outro lugar que não seja minha casa ou o Santuário. – Sofia pespondeu, inflexível. - Precisa de mais algum sinal? – Disse Shylon, desafiando a garota. - Não podemos sair por aí correndo atrás dos Magos só porque eles estão agindo no planeta. Vocês querem morrer? Além do mais, qualquer missão deve ser reportada aos Sumo Sacerdotes para que o Quórum autorize. Usem a cabeça ao menos uma vez na vida. - Você sabe como chegar lá ou não? – Perguntou o garoto, enfático. - Ainda me recordo do lugar. – Disse Sofia, ríspida. - Então vamos. Não podemos mais perder tempo. - Ela tem razão. Deveríamos avisar aos Sacerdotes. É muito perigoso. – Disse Gabriel, relutando. - Devíamos mesmo. – Sofia se intrometeu. – Não sabemos nem se Lakahz está sozinho. Podem ser incontáveis. – Sofia novamente contestou. - Um exército de Magos não pode se esconder dentro de um mosteiro de Yuransha sem serem notados. É muito mais fácil um Mago experiente

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como Lakahz passar despercebido, ainda mais, cumprindo sua missão em meio às atividades cotidianas dos monges. – Disse o garoto. - Por um lado Shylon tem razão. Quanto menos Magos no planeta, menos a chance de atrapalharem a missão e serem descobertos. Visibilidade é o que eles menos querem neste momento. – Disse Gabriel, tentado a ir, ainda que receoso. Um silêncio sepulcral se abateu sobre eles, instaurando alguns segundos de tensão. - Vocês não estavam procurando uma missão de verdade? Agora ela está diante de nós. – Disse Shylon, desafiando os amigos. Ninguém se movia. Apenas se entreolhavam aguardando alguma manifestação. Então, Sofia decidiu agir. - Vocês venceram. – Disse, batendo com sua delicada mão na mesa, claramente a contragosto. – Nós iremos. Mas assim que notarmos algo de estranho avisaremos aos Sacerdotes. Concluiu, fuzilando Shylon com seu azulado olhar. - Apenas faça seu trabalho. – Disse Shylon, mandando a garota mentalizar o local. - Espero que saiba o que está fazendo. – Disse Sofia, temerosa, olhando para os dois. Shylon devolveu a piscada irônica para a garota. - Confie em mim. Segurando a mão dos seus amigos, ela fechou os olhos enquanto trazia de volta as memórias do seu passado. Aquela onda de pensamentos era clara até demais. Sofia visualizou seu destino como se aquilo fosse uma tela do pintor holandês Rembrandt. O realismo das imagens só não era maior pela forte luz que inundou sua visão, embaçando-a temporariamente. Em questão de milésimos de segundos, Sofia levou Shylon e Gabriel para onde ela havia estado há muito tempo em sua infância.

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DOCUMENTO 060 SUBINDO O MONTE DOS DEUSES O vento corria solto ao final da tarde pela planície que mesclava o verde das plantações com a desolada formação rochosa da região. Ali se encontrava a tríplice fronteira entre Israel, a Síria e o Líbano. Mais precisamente, aquela relva se localizava entre a Reserva Tel Dan, em Israel, e o Parque Nacional da Fortaleza de Nimrod, na Síria. Ao fundo uma construção da natureza se erguia do solo parecendo tocar os céus: O Monte Hermon. Embora pequeno visto daquele lugar, Gabriel ainda não acreditava que chegaram até ali. Na cabeça de Sofia, lembranças do seu passado lhe davam a certeza de que aquele era o lugar que estivera durante sua viagem quando criança. O clima seco, porém frio, típico do lugar, incomodou Shylon, que estava com seus braços desnudos. - Aqui está muito mais frio que Nemashi. – Disse Shylon se tremendo. - Você vive tempo demais enclausurado no Santuário. – Respondeu Gabriel. – Onde fica esse mosteiro? A garota continuou em silêncio, concentrada, tentando penetrar em suas memórias. Embora Sofia tivesse feito inúmeras viagens durante sua vida, cada uma delas era inesquecível, de modo que ela se lembrava de cada lugar em que esteve. Incluindo Israel. Ela relembrou da cidade sagrada de Jerusalém. De Belém, local onde Jesus Cristo nasceu. Tel Aviv, a segunda maior cidade de Israel. E o sítio arqueológico da Cesareia de Felipe. Este último ficava em uma região próxima do sopé do Monte Hermon. E foi na ida a este lugar que Sofia visitou a planície em se encontravam. Em meio aos seus pensamentos, recordou das conversas com seu pai enquanto passeavam por aquele lugar. - Filha, olhe para seu lado direito, está vendo? Aquela montanha ao fundo é conhecida como o Monte Hermon. – Disse o pai de Sofia, enquanto dirigia por uma longa estrada rumo ao Líbano. 360


- Monte Hermon? – Perguntou a pequena Sofia, que não tirava os olhos da grande montanha, cuja neve se destacava no cume. - Sim. Dizem que foi o local aonde os anjos de Deus desceram à Terra. A garotinha olhava fixamente para o monte, imaginando um exército de anjos vindos dos céus com suas grandes asas. Após descer o olhar, ela viu uma grande construção na base da montanha. - O que é isso papai? – Perguntou a menina, apontando para o conjunto de prédios abaixo do monte, quase no horizonte, em cima de um pequeno morro. - É um mosteiro, minha filha. Está vendo aquela velha torre? – Disse o pai apontando. – É o que sobrou de sua construção original, antes dela ser destruída inúmeras vezes durante as Cruzadas. Ele é um dos mosteiros mais antigos daqui. É dedicado aos Anjos do Senhor. - Aos anjos? - Sim. Para muitos, este é um lugar sagrado. Um verdadeiro portal para o Céu. – Disse o pai da garota. Aquelas palavras apenas alimentavam a imaginação de Sofia. Ela pensava como seria possível chegar ao Céu por aquela montanha. Mas nunca passou pela sua cabeça que seria da forma como imaginava naquele momento. O portal que liga os céus à Terra. Os anjos do Senhor. Seus mensageiros. Pensou a garota, paralisada entre os dois jovens Harashis. Estar novamente naquele lugar mudava em muito as coisas. Ela ainda era capaz de enxergar aquela cena mais uma vez. Porém, no lugar de anjos com asas e nuvens se abrindo em meio a luzes celestiais, ela via uma enorme nave chegando dos céus com um exército de Sacerdotes Harashis que guiaria as civilizações da Terra rumo à evolução. Ali, a mitologia se chocava com a História. Viajando em meio às suas lembranças, a garota acordou daquele transe quando seus olhos avistaram o destino pelo qual vieram. - É ali! – Exclamou Sofia, apontando para uma elevação distante deles. - Tem certeza? – Perguntou Gabriel.

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- Absoluta. Este é o mosteiro ao qual meu pai se referiu. Eu me lembro daquela torre como se estivesse novamente viajando com ele. - E como vamos chegar até lá? – Perguntou Shylon. - Da mesma forma como nos trouxe aqui. – Respondeu a garota. Dando as mãos uns aos outros, eles novamente sumiram de onde estavam. Sofia mirou um conjunto de árvores acima na colina, próximas ao mosteiro, de modo que eles tivessem uma visão privilegiada da construção. Apenas os seus passos quebravam o silêncio do lugar. Entretanto, aquele lugar estava deserto, igual à alva terra que o cercava. Ninguém além deles percorria o campo de areia e pó em que se encontravam. Olhando de fora, o monastério mais parecia um castelo medieval, cercado de uma muralha de pedra que o protegia, com diversas guaritas que pareciam vigiar suas fronteiras. No passado elas poderiam ter servido para proteger os cristãos dos ataques de muçulmanos na época das Cruzadas. No alto da grande torre, o sino permanecia em silêncio enquanto o vento passava por ele sem acordá-lo de seu sono. O mosteiro secular parecia intransponível, e os três jovens se sentiam verdadeiros cruzados tentando invadir aquela fortaleza religiosa. - Se existem aquelas torres de vigia então deve haver um caminho ao longo da muralha. – Disse Gabriel. - É arriscado. Não podemos ser vistos. – Retrucou Shylon. - Eu não sinto a presença de ninguém ali. - Vamos. – Disse Sofia, estendendo a mão à Shylon e Gabriel. Mais uma vez eles desapareceram, alcançando o alto da muralha. Como eles imaginaram, ela possuía um caminho que percorria todo o mosteiro. Olhando ao redor, perceberam o real tamanho da construção, onde abaixo deles, um grande claustro preenchia boa parte do conjunto. Várias alamedas cortavam o lugar, e aquele mar de telhas vermelhas alimentava a imaginação dos jovens, que se perguntavam o que poderia haver abaixo delas. Aguçando sua percepção, Gabriel sentiu uma movimentação vinda do lado direito em que se encontravam. Mais precisamente em um longo edifício na lateral deles. A julgar pela distância simétrica das janelas e pela forma 362


arredondada ao final da construção, concluiu que se tratava do prédio principal do mosteiro: a basílica. Lá, era o ponto principal da vida monástica, onde se realizavam as missas, as orações diárias, e seus rituais. Uma das características desses rituais era a entonação do canto gregoriano nas missas. Era o canto litúrgico oficial da Igreja Católica. Embora estivessem distantes, era possível ouvir claramente o eco daquela melodia já conhecida por Gabriel e Sofia, mas estranha aos ouvidos de Shylon. - O que é essa música? – Perguntou o garoto, curioso. - Isto é o chamado Canto Gregoriano. É a música dos monges. Se os Magos estão presentes neste mosteiro, tenha certeza que eles estão naquele lugar. E estão celebrando uma missa. – Respondeu Sofia. - Não sei por que eu não consigo conceber tal coisa. – Disse Gabriel. - Nem eu. Mas vamos descobrir logo. – Respondeu a jovem. Eles caminharam agachados pela muralha até chegarem a uma porta de ferro. Passando por ela, acabaram por entrar em outra dimensão. Passando por alguns arcos, eles chegaram a um recinto iluminado pelas janelas que se encontravam acima deles. Agora não tinham mais dúvida aonde se encontravam. Haviam adentrado na basílica do mosteiro. O som dos cânticos se tornou mais poderoso, sem deixar de transparecer sua suavidade. O eco das vozes se espalhava pelo templo ao passo que a fumaça do incenso perfumava gradativamente o lugar. Do coro, os jovens observavam o movimento dos monges, que celebravam as Vésperas, a liturgia do fim da tarde, em que se agradecia a Deus pelo dia que tiveram. O hábito escuro tornava impossível identificar qualquer Mago Zahraniano. Todos estavam iguais, menos o abade que trajava as tradicionais vestes ritualísticas. Os jovens prestavam atenção em tudo, tentando encontrar alguma atitude suspeita em relação a qualquer um deles. - Onde eles estão? – Sofia sussurrou. - Não sei, podem ser qualquer um. – Respondeu Shylon. 363


- O hábito não ajuda a denunciá-los. Não temos como saber. – Interviu Gabriel. - Nem podemos localizá-los através de nossas Mentes. – Disse Shylon, caminhando para o outro lado do recinto. – Se fizermos isso, seremos localizados por eles. Precisamos de um plano... Decidido a sair daquele lugar, Shylon caminhou sorrateiramente para a porta à sua frente, mas foi surpreendido quando uma figura encapuzada surgiu diante dele. O livro que o monge levava em sua mão subitamente caiu, fazendo com que todos estagnassem onde estavam. Ninguém conseguiu esboçar uma reação sequer, tamanha a tensão que se instaurou. - Quem são vocês? - Perguntou o monge em um inglês arranhado. Por impulso, Sofia emanou sua aura, em um instinto de defesa. O que ela não esperava era que o monge fosse capaz de enxergá-la através de sua Mente. - Harashis?! – Disse o monge surpreso com aquela súbita revelação. – Jivah Mohaf Shiu Lehy? – Como foram capazes de chegar até aqui? O humilde monge então revelou sua temerosa identidade, falando em Korah. Num piscar de olhos, uma poderosa aura sombria emanou do seu corpo, tomando de assalto os jovens. - Merda! – Gabriel, recuou, sem reação. - Cuidado! – Gritou Shylon, enquanto o mago ergueu sua mão diante dele. Embora fosse um exímio combatente, seus reflexos não foram o suficiente para fazê-lo desviar da onda de choque o atingiu. Aquela sensação pareceu queimar através de sua coluna, como se um raio tivesse atingido sua cabeça. Logo perdeu as forças, caindo em meio a espasmos pelo chão. Gabriel e Sofia não sabiam o que fazer.

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DOCUMENTO 061 UM JOGO DE INTERESSES No altar, o ritual prosseguia, como se nada estivesse acontecendo naquele lugar. O clima era de paz. De silêncio. De comunhão. Todos estavam concentrados na cerimônia. Porém, aos poucos a harmonia monofônica do cãntico misturou-se com uma sonoridade intrigante. Gritos agudos e ecos de estranhos sons – como se chicotes estivessem atingindo o ar – ressoaram pelo templo. Todos se viraram para o andar superior da igreja, tomados de assalto por aquela eventualidade. - Que balbúrdia é esta? – O abade interrompeu a celebração. Os monges presentes no cadeiral das laterais do altar se levantaram para ver o que estava acontecendo. Rapidamente, dois monges correram para o local de onde vinha a confusão. Os religiosos estavam curiosos para saber do que se tratava aquele alvoroço, mas nunca passou pela cabeça deles que aquilo fosse causado pelos jovens que saíram por uma das portas laterais da nave da igreja segurados pelos três monges. Aquela cena mais parecia uma operação policial, onde os prisioneiros eram imobilizados pelos oficiais e atirados no cárcere. Após serem conduzidos pela nave, os cativos foram jogados no gélido piso de pedra do templo diante dos religiosos, para o assombro do abade. - Por Deus, o que está acontecendo? Quem são esses garotos? – O abade interveio, assustado com o grosso modo com que os monges tratavam o trio. Aquela cena era no mínimo medonha. O superior não conseguia esboçar reação. Parecia que fora arrebatado a outra realidade. Ao mesmo tempo, sentia como se uma estranha energia macabra houvesse preenchido o local, sugando as forças daqueles jovens que não conseguiam se levantar. De repente, um dos monges ali presentes se pôs à frente dos demais.

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A claridade de sua pele contrastava com o hábito escuro que trajava. Sua simples aparência alimentava a seriedade do seu semblante. Ele era um dos mais velhos do grupo de jovens monges que há algum tempo haviam ingressado no mosteiro. Embora passasse o dia em silêncio, como mandava a regra beneditina, um oceano de sabedoria brotava dos seus lábios toda vez que dirigia a palavra a alguém. Era conhecido por ser um exímio estudante das Escrituras cristãs e fluente em diversas línguas. Um verdadeiro santo em busca da Verdade. Seu nome era Magnus, embora, dentro do monastério, fosse conhecido por seu apelido - O Grande - em alusão às várias virtudes que cultivava em sua vida de eremita. Entretanto, naquele momento, a personalidade daquele homem pacífico foi transformada em um estranho misto de desprezo e frieza. Estava irreconhecível, como se de alguma maneira ele conhecesse aqueles garotos de algum lugar. E mais desconhecida ainda, era a língua que aquele homem passou a se comunicar com eles. Os monges, juntamente com o abade, prestavam atenção. Alguns, visivelmente assustados com a situação. O silêncio sepulcral foi então quebrado pela ríspida voz do monge. - Sinto em vocês a aura dos Harashis. E sei de onde vocês vêm. Acharam que viriam até aqui, descobririam nossos planos e voltariam ao Santuário para contar tudo à sua Ordem? – Disse o monge, enquanto olhava para os jovens imobilizados no chão do templo, penetrando em suas mentes. O monge então fez um movimento com suas mãos em direção aos adolescentes. Eles não estavam preparados para aquilo, mas o ataque que receberam pareceu rasgar seus ouvidos, criando um verdadeiro caos dentro de suas Mentes. As imagens logo se tornaram disformes, ao passo que o som também oscilava em frequências atordoantes. Eles sentiram seus corpos perderem as forças. Pensaram que iriam desmaiar. Aquela tortura parecia interminável, à medida que o monge assistia tranquilamente aos jovens agonizarem no chão. 366


Gabriel jurou ter perdido a audição, mas seus temores logo passaram quando voltou a ouvir a voz do abade. - Jesus! Magnus, o que está acontecendo? Eu lhe ordeno que pare com essa loucura. – Disse o religioso, cujo medo se encontrava estampado em seu rosto. - Me ordena? – Disse o homem, que agora trocava o Korah por um perfeito inglês. – Meu nome não é Magnus. E você não é mais o abade deste mosteiro. - O que?! Como ousa falar isso a mim? – O velho estava descontrolado. O monge estendeu sua mão, impedindo o homem de avançar contra ele, ao mesmo tempo em que tentava acalmá-lo. - Irmão, você serviu muito bem ao Senhor durante esses anos. Mas agora está na hora de testemunhar Sua Sublime Presença. – O monge encarou o velho com uma serenidade típica dos eremitas, mas suas intenções estavam longe de serem puras. Com um único golpe de sua mão, o monge atingiu o peito do abade, que caiu morto aos seus pés. O pânico tomou conta de alguns monges. Outros, porém, não esboçaram nenhuma reação, para maior pavor daqueles. Com o abade abatido aos seus pés, o monge fez um rápido sinal com a mão. Imediatamente, vários outros monges que o cercavam atacaram alguns de seus confrades que já se preparavam para fugir. Eles caíram no chão, em meio a espasmos, imobilizados. Foi então que os três amigos compreenderam o que se passava ali. Boa parte daqueles homens santos não era de fato quem aparentavam ser. Inerte no chão, olhando para o alto, Gabriel só conseguiu dizer apenas uma palavra, confirmando quem era aquele pálido monge que se destacava no meio dos demais. - Lakahz. - Na verdade, eu tenho vários nomes: Magnus para eles, Lakahz para a Ordem, William para a vida que vivi antes de entrar para esses muros, e o que mais gosto dentre eles todos. O nome que às vezes me chamam por aqui: Santo... – Disse o Mago rindo consigo mesmo. – Afinal, vocês nos 367


encontraram. E estou impressionado com a ousadia de invadirem este mosteiro. Mas, me digam, o que os trouxe às distantes planícies do Monte Hermon? Isto não é uma mera missão de espionagem. E pelo que estou vendo em sua Mente, nem é uma missão autorizada pela Ordem. - Sabemos por que estão aqui. Sabemos que a Ordem Zahran vem agindo secretamente no planeta. Que estão estudando as Profecias Progressivas. E para isso, se infiltraram no lugar mais promissor: A Igreja Católica. - Creio que vocês Harashis já sabem disso há um bom tempo. Então qual é a novidade? Por acaso cansaram de ficar isolados no Santuário garotos? – O Mago respondeu, debochando. - Você ri de nós, mas sabe a razão de estarmos aqui. Sarahnel enviou vocês porque a Ordem Zahran precisa do Livro de Ormoshi tanto quanto precisa da Codificação, não é? Por isso invadiram a Biblioteca do Santuário ciclos atrás para recuperarem seus escritos. – Disse Shylon, enquanto tentava recuperar suas forças, sem sucesso. - Por isso também nos perseguiram em Milão. Nós temos a tradução das Escrituras do Princípio, e vocês precisam dela para fechar as lacunas entre as Profecias Progressivas. Com os textos juntos vocês teriam controle sobre o passado, presente e futuro de Yuransha. – Interrompeu Gabriel, com olhos exalando um misto de ira e audácia. O Mago soltou uma sonora risada que ecoou pela basílica. - Vocês acham que o que estamos fazendo aqui diz respeito a este mundo medíocre? Pelo visto precisam ler mais seus próprios estudos. As Profecias foram reveladas através do seu planeta, mas elas dizem respeito a todo o Cosmos. O que o último Guardião descobriu ou deixou de descobrir será desvendado em breve. Não há conhecimento oculto que não possamos revelar. Suas Escrituras não possuem mais nenhum valor diante dos avanços que obtivemos aqui. - Então por que não deixam Yuransha em paz? – Sofia perguntou, desafiando o Arquimago. – Encontramos evidências de que seres de outro mundo planejam dominar este planeta através de nossos governos.

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- Vocês só podem ser muito ingênuos para acreditar nisso. Vou lhes falar apenas uma vez para que compreendam. – Lakahz fez uma pausa, pensando nas palavras que iria dizer. – Seus governos sempre estudaram a existência de seres de outro mundo, mas com descoberta das Escrituras do Princípio isto se tornou uma certeza, alimentando esse fanático desejo de estabelecer contato com civilizações além de Yuransha. Eles é que procuram a nós, não o contrário. - Espera Lakahz, você quer que acreditemos que os verdadeiros ambiciosos nisso tudo são os nossos governos? – Interrompeu Gabriel. - É incrível como vocês Harashis são limitados. Não enxergam que seus líderes estão lutando uns contra os outros para também encontrarem o Livro dos Guardiões? Ele é a chave de uma Ciência inimaginável. Quem conseguir por as mãos nele conquistará um poder nunca antes visto, e assim será capaz de subjugar as demais nações. As palavras de Lakahz eram sinceras, mas os jovens custavam a acreditar no que ele dizia. Ainda mais vindo de um Mago Zahraniano. - Ponham uma coisa em suas cabeças. Quando nações se unem elas só o fazem por dois propósitos: Para fortalecer sua economia, ou para guerrear umas contra as outras. – Embora relutantes, os jovens ouviam aquelas palavras com atenção. O Arquimago continuou com seu sermão. - Por isso não é de interesse nosso, nem da sua Ordem, que façamos contato com os governos deste mundo por enquanto. Além do mais, como falei, nosso objetivo é muito maior. Não temos porque nos envolvermos em conflitos políticos de planetas inferiores. – Disse o Mago, concluindo. - Como você quer acreditemos nessa sua ladainha quando vocês estão agindo bem no meio de nossas instituições? No seio intelectual da Igreja Católica? Nada do que você diz faz sentido Lakahz! – Gritou Gabriel. - Não faz? Por que o que vejo são inúmeros líderes cegos tentando se agarrar à única lamparina acesa da caverna. Uns, para sustentarem suas crenças

religiosas.

Outros,

para

continuarem

em

seus

governos

e

aumentarem seu poder através de um totalitarismo maquiado. Essa falsa democracia nunca deixou de existir, apenas cruzou a história sob diferentes bandeiras, doutrinas, partidos e discursos. Acreditem, toda política, todo 369


acordo, e toda promessa que se materializa em seu mundo não passa de um grande jogo de interesses egoístas que brota de todos os lados. - Egoístas? E o que vocês estão fazendo além de interpretarem as Profecias em proveito próprio? Vocês se fecham em suas próprias doutrinas e não se permitem agir além dos próprios narizes. - Não temos nenhum interesse além de cumprirmos as Profecias. Somente quando libertarmos nossas Mentes da ignorância é que seremos capazes de manipular a ordem cósmica para consertarmos o que os homens contribuíram para deteriorar. E apenas o Conhecimento pode nos dar tal poder. - E que profecias são essas que vocês tanto desejam cumprir? – Perguntou Sofia. - Realmente esperam que eu lhes revele? Vocês não passam de crianças tolas que nada sabem. – O Mago virou-se em direção aos jovens, debochando deles. – Tiveram muita sorte de terem nos descoberto. Mas aqui se encerra a aventura de vocês. - Se eu fosse você não teria tanta certeza disso Lakahz. – Disse Gabriel, penetrando os olhos do Mago. - É uma pena que tenha tanta esperança. Vocês chegaram até aqui... Mas daqui não passarão. O Arquimago caminhou em direção a um afresco retratando a decapitação do Apóstolo Paulo, aproximando-se de um dos Magos. Então, com precisão militar, deu a ordem aos seus subordinados. - Matem-nos.

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DOCUMENTO 062 DERRUBANDO MURALHAS A aula prosseguia com sua habitual participação dos alunos. Aquela turma de Discípulos mais velhos possuía um acumulo de experiência invejável a muitos Sacerdotes, onde muitos daqueles jovens Harashis estavam para ser enviados a outros planetas para aprenderem mais sobre a Galáxia de Yashena. Marishi se encontrava ali, também interagindo com seu colega de Ordem, complementando suas explicações. Haron estava a falar quando o Sacerdote Shandara invadiu a sala chamando a atenção de todos os presentes, principalmente de Marishi. - O Laboratório... – Disse, descansando para respirar. – Alguém o invadiu. – Marishi nada falou, apenas se levantando de sua poltrona, descendo aqueles degraus indo imediatamente ao encontro de Menahon. - E o Livro? – Haron se precipitou sobre o amigo. - Está lá, porém foi manipulado. Ele estava quase caindo dentro do nicho. – Disse Shandara. - Quem entrou na câmara precisava dos nossos registros de acesso. – Disse Marishi. - Helamen, o registro utilizado foi o seu. – O Sacerdote respondeu para um impressionado Marishi. – Você não foi ao Laboratório? - Não... Pode ser... – O Sacerdote negou imediatamente. – Passei a última hora aqui com Haron. A única pessoa que conhece a minha senha... - Shylon. – Shandara se adiantou, surpreso com a ousadia do filho de Marishi. O Sacerdote concordou com ele, porém, sem querer acreditar. - Meu filho possivelmente foi ao Laboratório com Luhan e Branah. Devem ter descoberto algo que tinha relação com o Livro de Ormoshi. - E onde eles estão agora? – Haron perguntou. - Não estão no Santuário. Já vasculhei em todos os computadores. Tentei me comunicar com o apartamento de Marishi, mas não respondia. Fui até lá e não havia ninguém, por isso vim procura-lo aqui nas salas de aulas. - Mas se não estão no Santuário... – Haron interveio, mas Marishi logo compreendeu a resposta. 371


- Estão atrás dos Magos. - Eles não seriam tão inconsequentes. – Haron se inquietou com aquela impensada escolha dos jovens Harashis. - Eu sinto que sim. Ou melhor, tenho certeza disso. Eles descobriram onde os Magos estão escondidos. - Pelo Princípio Marishi, mas por que não nos contaram? - Porque assim como nós, eles também sabem que os Zahranianos estão monitorando nossas Mentes. – Shandara e Haron o encararam, claramente espantados. Os Discípulos presentes continuaram calados, apenas acompanhando aquela conversa inesperada, uns inquietos, outros sem conseguir acreditar no que ouviam. Debatiam entre si a segurança do Santuário, bem como sua própria. - Precisamos fazer algo antes que eles façam alguma besteira. – Disse Shandara, sustentando sua mão no ombro de Marishi. - Eu sei. – Disse o Sacerdote, o mais sereno possível. Mas por dentro, milhares de pensamentos brotavam sem trégua, levando-o a imaginar onde e como estariam os jovens Discípulos. *** O monge que estava imobilizando Gabriel prontamente obedeceu ao comando do Lakahz, erguendo a mão para desferir o ataque mortal contra o jovem imobilizado no chão. Mas ao invés de medo, Gabriel apenas encarava seu algoz, enxergando o que ele estava para fazer. Durou apenas um segundo. Mas foi o suficiente para aquelas mãos que imobilizavam o garoto desviassem suas forças para assassiná-lo. E então aconteceu. O corpo de Gabriel sentiu uma força violenta brotar do seu interior, como nunca havia sentido antes. E com um forte impacto, os seus pés atingiram a perna desprotegida do Mago antes que ele o atacasse, quebrando-lhe os ossos no mesmo instante. 372


O grito de dor só foi abafado com um movimento involuntário do mesmo, que enterrou seu golpe no chão. Uma violenta onda de choque rasgou o piso, abrindo-lhe uma cratera, arremessando seus corpos pela igreja. Gabriel projetou-se no ar enquanto que seu inimigo caia morto ao chão. Manipulando a atmosfera local, Gabriel lançou uma rajada de eletricidade contra os Magos que aprisionavam Shylon e Sofia, caindo mortos aos pés dos dois. Recuperando-se, Gabriel só teve tempo de se defender, quando Lakahz friamente, mirou um grande candelabro no meio do altar, fazendo brotar poderosa uma onda de fogo contra os jovens, tentando encerrar de uma vez aquela resistência. A basílica iluminou-se em meio às chamas, enquanto que das mãos de Gabriel surgiu uma barreira etérea, protegendo-os do ataque. Tudo o que estava na frente foi varrido pelo fogo, inclusive os corpos ali

tombados.

Os demais

Magos

ingressaram

no

conflito,

tentando

desmoronar parte do teto sobre os jovens. Sofia sustentou os escombros, atirando os pedaços das pedras e dos afrescos em cima de alguns Zahranianos que logo desviaram dos ataques. Sem esperarem, Shylon lançou um novo ataque na direção de alguns Magos que fugiam em direção à porta de saída. Do mesmo modo, alguns dos monges que eram reféns, sentiram a ardente chama crescer em sua direção. Em meio ao desespero, dois deles saltaram de encontro a três Magos que se preparavam para fugir dali. Porém, nem os Magos, nem os monges, e muito menos os garotos esperavam aquele inusitado desfecho. Os três Magos não estavam tentando alcançar a saída. Seu destino era voltar à Tevohan, pois se continuassem ali, seriam destruídos, pelo descontrolado ataque do jovem Harashi. Ao tocarem o hábito de um dos Magos, os dois monges foram tragados para dentro de si, junto com os Zahranianos, para a surpresa de Shylon. - Eles fugiram! – Gritou Sofia, apontando para o vazio deixado. Porém, ela mal teve tempo de falar quando Lakahz lançou um novo ataque contra eles. Gabriel se pôs à frente, detendo as labaredas que continuavam a avançar pela construção. 373


- Não importa! Precisamos sair daqui! – Gritou Shylon, enquanto ajudava o amigo a deter o fogo. - Não posso contê-los por muito tempo. – Disse Gabriel, se esforçando para manter sua barreira contra o fogo que alcançava a armação de madeira do teto da basílica. Um dos Magos desferiu um golpe contra Shylon, que o desviou, fazendo-o atingir a parede do coro atrás deles. A colorida rosácea explodiu em milhares de cacos de vidro, desfazendo-se junto com vários blocos de pedra que rolaram pelo chão. - Por aqui! – Gritou Shylon, segurando a mão dos outros dois. Prontamente deu um longo salto até o primeiro andar da basílica, chegando até a fenda aberta. Os outros dois olharam as construções do mosteiro bem à frente, e uma altura de três andares que separava o coro da porta de entrada da igreja, localizada abaixo. - Você quer que eu salte isso tudo? – Perguntou Sofia, assustando-se com a altura. - Vamos seus idiotas, querem morrer? – Gritou Shylon, ordenando que Gabriel segurasse Sofia, mas a única coisa que ele conseguiu fazer foi gerar uma nova onda de impacto no chão da basílica, fazendo os Magos se desequilibrarem, interrompendo seus ataques. Logo em seguida, Shylon saltou até o pátio de pedra à sua frente. Sem falar uma palavra, Gabriel segurou a cintura de Sofia, e sem lhe dar a oportunidade de protestar, saltou para o pequeno abismo à sua frente. O grito da garota ecoou pelo ar, enquanto rapidamente a mão de Gabriel que estava livre manipulava o espaço ao seu redor para suavizar a queda, criando uma onda que absorveu o impacto quando chegaram ao solo. Uma grande labareda brotou do interior da igreja, sendo cuspida através da rosácea. Em frente à fachada da basílica, Shylon desviava os blocos de pedra que despencavam do alto, enquanto a garota, agora em terra firme, se desesperava ante a um cenário catastrófico. Atrás deles, o fogo consumia o templo, fazendo desmoronar por completo o teto da basílica. Sofia chorava, dominada pelo medo, sentindo-se perdida em meio ao cenário apocalíptico. Não suportando continuar ali, a garota institivamente 374


puxou os dois garotos pelo braço, cruzando o jardim que cingia a entrada do templo. Estava deserto, porém, em ruínas. Após passarem por uma grande muralha que cercava a basílica, eles adentraram em um grande claustro, cercado de alamedas cobertas e arcos de pedra que cortavam o jardim daquele ambiente. Como se tivessem brotado do nada, vários monges começaram sair por dentro dos corredores. Impulsivo, Shylon logo desferiu um poderoso ataque, derrubando parte da estrutura de pedra sobre eles. Mas eles foram mais rápidos, correndo daqueles blocos que por pouco não caíram sob suas cabeças. Vendo o que estava acontecendo, Sofia logo interviu. - Não Shylon! – A garota puxou a mão do amigo para o alto, fazendo com que aquela coluna de energia se dissipasse pelos céus. – Eles são monges de verdade! Gabriel não sabia se fora o instinto ou a perspicácia de Sofia, mas por pouco Shylon não matou aqueles pobres religiosos que tentavam escapar da sinistra batalha. Tentando alcançar a saída do Mosteiro, os monges foram subitamente atingidos por uma poderosa chama que varreu os jardins em questão de segundos. Se não fosse pelo reflexo de Shylon, a mesma chama teria atingido os garotos em cheio. Mas o jovem Harashi dissipou a onda que começava a arder pelo vasto gramado do claustro. Aquela poderosa força, brotava de um lugar de desconhecido, como se um poderoso lança chamas tivesse sido ativado. Mas a resposta logo chegou. - Esses também são monges? – Disse Shylon encarando a turba vestida de hábitos negros que saia por um dos arcos do interior do claustro. Olhando para trás, Sofia viu que aqueles homens que tentavam escapar jaziam mortos em meio ao fogo, enquanto o pequeno batalhão Zahraniano avançava pelas grandes alamedas do Mosteiro. - O que vamos fazer? – Disse a garota, apavorada. - Vamos fugir daqui! – Gritou Gabriel, segurando a mão dos dois. Ele concentrou-se, em vão. Por algum motivo não estava conseguindo saltar de volta à Nemashi.

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- Cuidado! – Shylon pôs-se na frente deles, criando um vórtice com suas mãos. Um imenso bloco de pedra estancou no ar, fazendo o garoto, recuar os passos, porém, mantendo sua postura. Como um boomerang, a rocha foi sugada de volta, acertando em cheio um Mago que se encontrava em um andar acima do claustro, explodindo o telhado e esmagando o inimigo. Abismado com aquele ataque, Gabriel voltou a si, quando uma nova onda de ataques oscilou contra os garotos que logo se esquivaram dali. Mas suas tentativas foram barradas por uma rajada de energia que acertou em cheio os arcos de pedra do jardim, espatifando-os pelo jardim. Com aquelas barricadas de pedra, o trio viu-se encurralado ao centro do claustro. Os garotos se defendiam dos ataques, recuando cada vez mais, enquanto os Magos remanescentes galgavam espaço, escalando aqueles escombros que se amontoavam à frente deles. Sem ter para onde correr, a atenção de Gabriel foi desviada para uma explosão acima de sua cabeça, que fez desabar um pedaço da alameda do claustro que se encontrava à sua direita. O fatal ataque dos Magos surtira efeito, fazendo os Harashis caírem naquela estratégica armadilha. Vendo as pedras desmoronarem em sua direção, Gabriel fez um enorme esforço, criando uma nova barreira etérea, dessa vez, contendo uma imensa parede formada por pedras da época das cruzadas. Outras partes da estrutura desabaram ao redor deles, levantando uma grande onda de poeira. Sem acreditar no que o amigo acabara de fazer, Shylon soltou uma forte onda de impacto, levantando as pedras dos escombros e jogando-as em cima dos Magos que avançavam. Porém, aqueles contra-ataques, não surtiam efeito, pois a maioria dos Zahranianos sabia como se defender ou desviar das ofensivas. Gabriel sentiu o peso da gravidade agindo sobre ele, fazendo-o cambalear. Suas forças estavam sucumbindo. Shylon logo correu para ajuda-lo, e com a outra mão, rechaçava o avanço dos Zahranianos com a ajuda de Sofia. Eles sabiam que não iriam aguentar por muito tempo. - Me escutem, só tem uma maneira de sairmos daqui. – Gritou Gabriel, enquanto se protegia do ataque em seu casulo etéreo. 376


- E qual é? – Gritou Sofia. - Não tenho tempo para explicar. Quando eu der o sinal empurrem esse muro para cima o mais forte que puderem. E preparem-se para o impacto. - Como é? – Disse Shylon, sem entender. - Agora! – Gabriel gerou um vórtice dentro da própria barreira que criara. Ao mesmo tempo, Shylon e Sofia liberaram uma onda que impeliu aquela imensa parede de pedra para cima deles. Eles não tiveram como reagir. Simplesmente foram atingidos pela onda de impacto gerada pelos Magos ao passo em que eram jogados para dentro de uma das arcadas do claustro. Seus inimigos também foram pegos de surpresa ao serem tragados pelo estranho vórtice que Gabriel aprendera em suas aulas com o Sacerdote Shimah. Durou alguns poucos segundos, mas toda aquela força liberada foi silenciada sob uma densa nuvem de poeira quando os incontáveis blocos de pedra caíram em cima dos Magos, puxados para o lugar onde antes se encontrava o trio. Após se limpar do pó que o cobria, Shylon se levantou, ainda tonto do impacto que sofrera. - Vocês estão bem? – Perguntou. - Sim. – Respondeu Gabriel. - Que ideia foi essa? Poderia ter nos matado! – Disse Sofia, se levantando, um pouco ferida. - Eu criei um vórtice com a mesma frequência que o ataque deles. Ao se encontrarem, as forças foram repelidas como em um ímã, e nós fomos atirados para trás enquanto eles vieram parar no nosso lugar. – Disse Gabriel, enquanto tirava os cascalhos de sua roupa. - Você é louco! Temos a sorte de ainda estarmos vivos! – Gritou Sofia. - Não temos tempo para discutir. Eu ainda sinto a presença de Lakahz, e vem do outro lado do mosteiro. – Disse Shylon. - O mosteiro está pegando fogo. Você quer continuar aqui e morrer? – Sofia contestou, com medo das chamas que só aumentavam.

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- Não podemos saltar de volta a Nemashi. Estamos presos aqui. E precisamos saber o que os Zahranianos descobriram. Somente Lakahz tem essa resposta. - Como assim? - Consegui penetrar na sua Mente por pouco tempo, mas vi parte de suas memórias. - Temos que captura-lo e levá-lo para Nemashi. – Disse Gabriel. - Não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos entrar em contato com Marishi ou Haron para nos ajudarem. – Disse Sofia. - Vou falar com eles. – Shylon fechou seus olhos e se concentrou em silêncio. Entretanto, por mais que tentasse, somente ouvia o barulho das chamas queimando ao seu redor. - O que foi? – Perguntou Gabriel. - Eu não estou conseguindo falar com meu pai. – Disse o garoto, se concentrando. – Parece que estão bloqueando nossa comunicação. O jovem se esforçava, em vão. Só após mergulhar em cada centímetro de seus pensamentos, foi então que conseguiu compreender o que estava acontecendo. - Lakahz. – Pensou Gabriel. - Como isso é possível? – Perguntou Sofia, agitada. - A onda de choque... quando fomos capturados era isto. Ele bloqueou nossa capacidade de saltarmos de volta à Nemashi e de nos comuni... - Cuidado! – Gabriel gritou, enquanto criava uma barreira etérea dissipando a rajada de eletricidade atirada por um Mago no final do corredor. Ao mesmo tempo, Shylon ergueu sua mão, condensando aquela energia e atirando-a de volta ao seu inimigo que caiu fulminado. - Maldito Zahraniano. Quantos ainda estão vivos? – Disse Shylon, se recuperando do ataque. - Fora nós três, só consigo sentir apenas a presença de mais um. – Disse Gabriel, fechando seus olhos. - Lakahz... Mas o que faremos agora? – Perguntou Sofia, assustada. - Vamos terminar a tarefa que começamos. 378


- Você está louco? – Gritou a jovem, sem acreditar. - Acho que não temos escolha. – Disse Gabriel olhando o fogo avançar por detrás dele. - Você não quer ir atrás dele, não é? - Quando só nos resta uma única opção, estamos condenados a enfrentá-la. Não podemos fugir dela. Não mais. – Respondeu Gabriel, enquanto caminhava passando pelo corpo inerte do Mago, rumo a um longo corredor com paredes de pedra. O fogo avançava rápido, e eles precisavam sair dali. À frente, apenas um longo corredor abria passagem para eles. Era o único caminho a seguir.

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DOCUMENTO 063 NÃO RESTARÁ PEDRA SOBRE PEDRA À medida que cruzavam o mosteiro, os jovens Harashis desciam mais e mais, como se estivessem mergulhando em uma cripta. O lugar se tornava cada vez mais quente, enquanto as chamas engoliam aos poucos a construção. Após descerem até o último patamar, eles cruzaram arcos de pedra talhados entre as paredes, e só então perceberam onde estavam. A suposta cripta que cogitaram, na verdade era uma grande capela. Ao longo da nave, as cortinas que cobriam as janelas nas laterais pegavam fogo, ao mesmo tempo em que no teto acima, afrescos seculares se desfiguravam pelas chamas. Ao fundo, um crucifixo de ferro ardia nas labaredas que o envolvia. Mas o que chamava mais atenção, era a figura solitária que se destacava em meio ao incêndio. Aos pés do altar, um monge parecia orar silenciosamente em meio àquele caos. Mas os jovens reconheciam aquela figura de longe através de sua aura maligna. Parado diante deles, Lakahz contemplava aquela cena como se tudo tivesse sido planejado. - “E eu me tornei a Morte, destruidora de mundos”. Conhecem esta frase garotos? – Disse o Mago. - É um trecho do Bhagavad Gita, o evangelho hindu. – Sofia respondeu, reconhecendo imediatamente aqueles versos.53 - Exatamente! Vejo que conhece as Escrituras do seu próprio planeta. Algo raro para uma civilização que em sua totalidade as desconhecem, mergulhando cada vez mais na superstição e nos mitos criados ao longo do tempo. São pouquíssimos os habitantes do seu mundo que compreendem os verdadeiros sentidos por trás desses textos considerados sagrados.

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Esta frase fazia parte do capítulo 11 do Bhagavad Gita. O trecho completo dizia o seguinte: Se o brilho de mil sóis explodissem no céu, isso seria como o esplendor do Poderoso Ser. E agora tornei-me a Morte, Destruidora de mundos. Esta frase tornou-se bastante conhecida através do físico norte-americano Julius Robert Oppenheimer, diretor do Projeto Manhattan, enquanto este assistia a detonação da primeira bomba atômica dos Estados Unidos.

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- O que você quer nos insinuar? – Disse Sofia, encarando o Mago com seus brilhantes e ferrozes olhos. - Uma hora atrás vocês estavam acusando a Ordem Zahran de ser uma irmandade fechada em suas próprias doutrinas. Pois bem crianças, já que chegaram até aqui, acho que vocês têm o direito de saber o que realmente está acontecendo. - Do que você está falando? – Perguntou Shylon. - A Verdade! – Gritou o Mago. – Cada um de vocês a busca à sua maneira, assim como todos neste imenso Universo. A única diferença entre a nossa Ordem e a de vocês, é que, para nós, o Conhecimento é o maior poder que podemos dominar. Uns são corajosos o suficiente para fazerem isto. Os que não o são permitem que esse poder os domine através do caos criado em suas Mentes. Pelas mesmas dúvidas que frequentemente os assolam. - Não nos venha falar de caos, Lakahz. – Bradou Shylon. – Os Zahranianos trouxeram guerra à Constelação! Vocês... - Vocês é que não compreendem o que está em jogo aqui? Isto não é mais uma disputa ideológica entre nossas Ordens. Olhem ao seu redor. O Universo está entrando em colapso e vocês estão preocupados em nos combater por conta de velhas escrituras. - Isso é uma lenda. Bilhões de ciclos de evolução não podem simplesmente serem varridos em um colapso universal. Em nenhum lugar. Nem mesmo aqui em Yuransha. – Retrucou Shylon, incrédulo. - Como vocês são ingênuos. Desde que os habitantes de Yuransha despertaram sua consciência vocês acham que são especiais. Vocês são apenas um grão de poeira insignificante neste glorioso Universo Local. Quando abrirem os olhos seu planeta já vai ter sucumbido às previsões das Profecias, assim como todo o Cosmos. O Arquimago Zahraniano pareceu apreciar o eco da sua voz que ressoou pelo recinto com aquela previsão apocalíptica. - Você realmente acredita que o Universo está se aniquilando? – Perguntou Sofia, descrente. - Sim. E posso lhe garantir que está acontecendo a uma velocidade nunca antes ocorrida. Estrelas e sistemas inteiros estão morrendo sem 381


nenhuma razão. O movimento de muitas galáxias está retroagindo. Planetas inteiros estão entrando em colapso da noite para o dia. Lakahz fez uma pausa para os jovens entenderem. Uma coisa era ouvirem os discursos de Marishi ou dos Sacerdotes. Outra era aquilo vir da boca de um Mago Zahraniano. - Até mesmo as catástrofes que ocorrem neste mundo não estão isoladas do que ocorre fora dele. – Ele continuou. – Tudo está interligado. A harmonia cósmica que sustenta o Universo está sendo gradativamente alterada pelos pensamentos egoístas das inúmeras civilizações espalhadas pelo espaço. Por conta de homens e mulheres como os de Yuransha... - Por conta de pessoas como você, Lakahz! Por conta de pessoas como você os mundos estão em guerra. Meu planeta está em guerra. Graças a pessoas como você estas ditas Profecias estão se cumprindo, segundo você acredita. – Disse Gabriel, interrompendo o Mago. - Estão se cumprindo porque os homens escolheram este caminho sem volta. Vocês Harashis são tão obcecados com suas divergências com a Ordem Zahran que preferiram passar inúmeros ciclos nos combatendo ao invés de moverem um dedo para impedir isso. Em pouco tempo nós conseguimos decifrar profecias que sua Ordem levou gerações apenas para catalogar. Vocês não imaginam os avanços que obtivemos no curto período que passamos neste mosteiro. - Quando o levarmos para Nemashi veremos se isto é verdade. - Você está enganado. Em breve vocês queimarão junto com esse mosteiro, e eu retornarei a Tevohan para levar nossas descobertas à Ordem. É uma pena que tantos Magos tenham perecido nas mãos de crianças tão fracas. – Lakahz continuava zombando deles enquanto a capela se destruía nas chamas. - Lakahz, não nos subestime. – Disse Gabriel, interrompendo. – Vocês podem ter descoberto muitas coisas, mas seu conhecimento ainda está longe de estar completo, assim como seus Arquivos. Os Sacerdotes encontrarão um jeito de reverter esta involução antes de vocês. Os Superiores jamais deixariam...

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- Vocês Harashis são mesmo ingênuos... Esperam uma intervenção divina, mas não sabem que o tempo agora está contra vocês. São iguais a estes miseráveis eremitas: Perdem sua razão entre seus medos, se privam de seus instintos para alcançarem a Verdade, e no fim, morrem sem obterem nenhuma das respostas que tanto procuram. - Vocês Zahranianos é que armaram seus esquemas ilusórios. Continuam fingindo que não existe um plano maior nestes incontáveis Universos. – Disse Shylon, colocando-se à frente. - Tudo tem começo, mas um dia isso também acabará. Não decidimos quando nossa vida começa, mas podemos determinar quando terá um fim. Somente a retrógrada Ciência Harashi faz vocês acreditarem que a sobrevivência de suas Mentes já está assegurada. Eu tenho pena de vocês... Não veem as ameaças de ataque nuclear que rondam suas cabeças? As bombas subatômicas são criações dos homens, mas foram os Deuses que conceberam todo o poder destrutivo que reside dentro delas. Mas os homens decidiram disseminar a destruição ao invés do Conhecimento. Um dia tomarão consciência da verdadeira destruição que estão gerando em Navadoh. - Vocês são vermes, mas pensam que são deuses. Me recuso a pensar como vocês. – Disse Shylon, encarando Lakahz. - Sou eu que não necessito da Ciência Harashi para conhecer o futuro. A revelação das Três Profecias já é o suficiente para que eu saiba o que está por vir. - Do que você está falando Lakahz? – Gabriel interrompeu. - Um dia, no passado de seu mundo, três crianças miseráveis e sem poder algum ouviram uma doce voz que sussurrava em suas Mentes. Mas esta voz era um triste lamento para todo este Universo. Elas a conheceram, mas não souberam seu nome até hoje, mas isso não importava. O que elas tinham a dizer ao mundo era mais importante. Mas também não o fizeram, não da maneira que deveria ter sido. Com o tempo a mensagem verdadeira se perdeu, tornando-se um ídolo entre os homens com um único nome: Fátima. – Disse o Mago virando-se para o altar, e contemplando o crucifixo que ainda ardia entre as chamas. 383


- Você está falando das Profecias de Fátima?! – Perguntou Sofia, abismada com aquela revelação. Aquelas palavras chamaram a atenção de Gabriel, porém, ele ainda não compreendia do que se tratava. - Muito mais do que isto, estou falando do destino que bate à porta do nosso Universo. E nem a Ordem nem os Sacerdotes poderão fazer nada contra isso. Como um dia foi dito no seu mundo: Não restará pedra sobre pedra... Por um breve minuto, inúmeros pensamentos tomaram conta da Mente de Lakahz. Lembrava-se dos textos sagrados que havia estudado, e das conclusões a que chegara sobre o futuro do Universo. Um mar de lembranças se agitava em sua cabeça. Profecias. Destruição. Morte. Não restará pedra sobre pedra. Pensou, relembrando as palavras proféticas de Jesus nos evangelhos, antevendo a destruição de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C. Porém, agora essa destruição era muito maior, e nem mesmo aqueles jovens Harashis eram capazes de imaginar o que estaria por vir. Lakahz, porém, tinha aquilo nitidamente impregnado em sua memória, pois havia conseguido enxergar o tenebroso futuro que rondava a todos. Em meio aquela divagação do Arquimago, Shylon enxergou a oportunidade perfeita para atacar seu inimigo, lançando uma onda etérea, tentando derrubar Lakahz. Porém, em um único movimento da sua mão, o Mago absorveu aquela energia para dentro de si, abortando o ataque do jovem Harashi. - Idiota! Acha que pode tentar contra o meu poder?! – O Mago revidou soltando uma intensa rajada de energia que iluminou a capela. Os jovens saltaram para escapar, mas o impacto abriu uma cratera no chão, junto com uma onda de choque que abalou as estruturas do recinto. Mesmo se protegendo, eles foram atingidos pela ressonância que os fez cair por terra. Na queda, Sofia acabou desmaiando, batendo com a cabeça no chão. Shylon e Gabriel se escoraram em um banco para se levantarem, com muita dificuldade. - Se eu permiti conhecerem todas estas coisas, foi para que não morressem na ignorância. Mas ainda assim, não são capazes de enxergar 384


um palmo à frente do que está diante de vocês. Deviam ter aproveitado a chance que lhes dei para fugirem, mas a desperdiçaram. Considerem isto como um golpe de misericórdia Harashis! – Gritou Lakahz, enquanto que lançou outra onda de impacto contra os jovens. Antes que os atingissem, Gabriel conseguiu bloqueá-la, dissipando-a pela capela. A ressonância atingiu a parede do fundo, fazendo várias colunas racharem e desabarem sobre o altar. Lakahz apartou a nuvem de poeira que o engoliu e imediatamente lançou um novo ataque, rechaçado dessa vez por Shylon. - Não vamos aguentar desse jeito! – Gritou Shylon. - Precisamos proteger Branah! – Gritou Gabriel, enquanto segurava as ondas de impacto geradas por Lakahz. – Temos que entrar em contato com Marishi. Não podemos enfrentá-lo sozinho. - Não estou conseguindo me concentrar. Minha Mente ainda continua bloqueada. – Disse Shylon, se esforçando em vão. De repente, os garotos sentiram uma poderosa força obscura brotar do íntimo de Lakahz. Uma estranha energia se misturava com a sombria Vohan do Mago. Era uma energia nunca antes vista pelos garotos. Era vazia. Maligna. Da mesma forma, da mão de Lakahz, surgiu uma pequena chama negra. Os dois não sabiam do que se tratava, mas à medida que ela ganhava força, um estranho temor tomava conta de seus corpos, fazendo-os recuar perante aquela aterradora visão. - Isso é pela morte dos membros de nossa Ordem. – Disse Lakahz, friamente, enquanto que seu corpo expelia uma forte aura sombria. Com um único movimento de sua mão, aquela onda de energia foi atirada em direção aos dois jovens. - Cuidado! – Gabriel se jogou na frente de Shylon. Aquele espectro maligno o engoliu, gerando uma intensa claridade que ofuscou o ambiente. Para a surpresa de Lakahz, aquela energia que deveria ter consumido os garotos simplesmente ficou suspensa no ar, bloqueada por uma barreira etérea criada por Gabriel. Mesmo não conseguindo controlá-la direito, o garoto capturou aquela onda de impacto e a aprisionou em sua armadilha. Após se recuperar do susto, Shylon se juntou ao amigo. 385


- Mas como é possível? Vocês deviam estar mortos! – Disse o Arquimago, sem acreditar. Gabriel apenas se concentrava para deter aquele ataque. Por um breve momento achou que não conseguiria aguentar aquele poder descomunal que consumia suas forças. Mas ao desviar o rosto daquela luminosidade, fitou por um momento o rosto de Sofia, desmaiada atrás dele. A paz em seu semblante lhe transmitia uma força que ele não sabia explicar, ao mesmo tempo em que no seu interior, sabia que tinha uma missão a cumprir. O dever de protegê-la. De levá-la a salvo de volta à Nemashi. Vencido aquele breve temor, Gabriel juntou forças para encarar novamente o Arquimago Zahraniano. Agora com uma determinação que só ele podia experimentar, encarava seu inimigo, sabendo mais do nunca o que devia fazer. - Lakahz, eu lhe avisei: Não nos subestime! Agora Shylon! As mãos deles agiram em perfeita sincronia, direcionando aquele espectro de energia contra Lakahz, que não teve reação, apenas sentindo o impacto daquela poderosa onda sobre seu corpo. Não houve dor. Apenas uma macabra sensação de leveza. Perante os olhos assustados dos dois garotos, Lakahz assistiu seu corpo ser reduzido ao nada. Ao ser atingido, o Mago Zahraniano foi desintegrado em milhares de partículas que se dissiparam pela capela, juntamente com sua chama sombria, que imediatamente apagou-se após levar consigo a vida de Lakahz. Havia terminado. Os garotos caíram por terra, sentindo uma forte pressão em suas cabeças. Ainda abalados pelo desenrolar do conflito, aquele transe inebriante foi quebrado após uma das colunas atrás deles desabar em meio às chamas. - Precisamos sair daqui! – Gritou Gabriel, enquanto que a capela continuava a se consumir. - Minha Mente está novamente aberta! – Respondeu Shylon, sentindo a transformação. - Então chame Marishi! 386


- Não temos mais tempo! Segure Branah. Vou tentar nos transportar. Gabriel obedeceu, segurando a mão de Sofia, que jazia desacordada no chão. Imediatamente, Shylon puxou sua outra mão, se concentrando para fugirem daquele pandemônio. - Não estou conseguindo! A fumaça está me atrapalhando! – Gritou Shylon, enquanto era afetado pela densa nuvem negra que começava a envolvê-los. - Se concentre! – Gabriel se esforçava para manter a consciência. - Não estou conseguindo focar... - Shylon! – Gabriel clamou pelo nome do amigo para que ele fizesse algum milagre, já sentindo a temperatura aumentar ao seu redor. As labaredas se aproximaram, formando densos pilares de fogo. Mas aquela sensação incandescente não estava lhe causando dor. Em questão de segundos, Gabriel percebeu que seu corpo havia se tornando leve, agitando suas células em uma vibração já conhecida. Para o seu alívio, no instante seguinte, eles não estavam mais lá. Shylon conseguira transportá-los em segurança para Nemashi. O que eles deixaram para trás foi um denso rastro de escombros, enquanto o fogo terminava de consumir o local, fazendo o resto do telhado desabar sobre a capela. O cenário de destruição só não era completo por uma única torre que ainda se mantinha de pé, quase intacta. Ao redor dela, inúmeros focos de incêndio consumiam o que sobrara do milenar mosteiro. Saindo da fenda aberta onde antes se encontravam telhados, uma grossa nuvem de fumaça e poeira se elevava aos céus, levando toda ira e violência daquela batalha para as pacíficas nuvens que se formavam ao redor da planície desértica. O único som que se ouvia era o do fogo, consumindo os últimos vestígios daquele intenso confronto que, enfim, havia terminado.

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DOCUMENTO 064 O BOM FILHO AO LAR RETORNA Já era madrugada em Nemashi. Marishi não dormira, tentando entrar em contato com os jovens. Embora durante anos tenha amadurecido a sua serenidade, aquela situação lhe tirava do sério, como a qualquer pai. Há horas, isolado em seu apartamento, ele buscava junto com Haron algum indício de onde os garotos poderiam ter ido. Mas era em vão. Ele sabia que aquela falta de comunicação não podia ter sido gerada pelos jovens. Mas se não fora por eles, por quem então? Embora se admirasse com as habilidades de Shylon, ele sabia que seu filho ainda não estava pronto para enfrentar as técnicas dos Zahranianos. Muito menos Sofia ou Gabriel. O nobre Harashi temia o pior. - Marishi, quando não podemos mais agir, só nos resta esperar as consequências do que os outros fizeram. – Disse Haron, tentando acalmar o amigo, visivelmente preocupado. - Não posso ficar aqui esperando as consequências quando meu filho corre perigo naquele planeta isolado. Eles estão entregues à própria sorte. Não temos mais a Embaixada em Yuransha, até mesmo após o fim da Guerra Civil de Ashunyah.54 E por culpa dos Zahranianos este planeta e muitos outros continuam em “quarentena”.

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A Guerra Civil de Ashunyah foi um terrível conflito entre a Ordem Zahran e a Ordem Harashi, que resultou na destruição de alguns planetas de nosso sistema. Por conta desse conflito, conta-se que os Superiores entraram em contato diretamente com os Embaixadores Harashis, dispersos pelos planetas em se encontravam e lhes deram a ordem de evacuá-los imediatamente para que protegessem o Santuário em Nemashi, uma vez que a colossal Biblioteca da Ordem estava sob ameaça. Essa devastadora guerra, que durou consideráveis ciclos, chegou até a atingir Yuransha durante a Antiguidade, tendo boa parte desses episódios registrados por diversas sociedades locais. Ao final do conflito, todo o complexo do Santuário foi destruído, menos a Biblioteca, o que até hoje, muitos acreditam ter havido algum tipo de intervenção dos Superiores em prol da Ordem Harashi e de todo o conhecimento que foi construído ao longo de incontáveis ciclos.

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- Marishi, assim como eu você também sabe que início, meio, e fim são apenas impressões que temos da realidade pela nossa assimilação dos fenômenos. Nunca houve um fim de uma guerra porque nunca houve um início. Só existe uma guerra, e ela está sendo travada constante, desde que tomamos nossa primeira decisão racional. O que os Zahranianos fazem, desde que traíram os ideiais que cultuamos nestes muros, é apenas uma ínfima parcela das decisões destrutivas que tomamos diariamente com nossos pensamentos, palavras e ações. Nossa verdadeira guerra é uma guerra de consciências, uma guerra invisível que destroi lentamente tudo o que o Mayam’Horun há muito tempo criou. Esta é a única guerra que existe, uma guerra contra o Princípio. – Repetinamente, Shandara adentrou no apartamento como um mensageiro para dar uma notícia. Infelizmente ela não era tão boa. - Os garotos voltaram. – Disse o Sacerdote, transparecendo o nervosismo em suas palavras. Haron e Marishi prontamente se levantaram de suas poltronas, inesperados com aquela chegada. Shandara novamente olhou apreensivo para eles. - Mas eles não estão bem. Por favor, venham. Prontamente os três deixaram o apartamento e rumaram para a nave central do Santuário. Aos pés do pico da montanha de cristal, Gabriel e Shylon estavam caídos no chão, tossindo fortemente por conta da fumaça que inalaram. Suas roupas estavam rasgadas e chamuscadas pelo incêndio no mosteiro. Ao lado deles, Sofia jazia desmaiada, enquanto os Sacerdotes ao redor corriam para socorrê-los. Marishi estava chocado com aquela cena, mas ao mesmo tempo aliviado ao ter de volta seu filho. Ele não conseguia dizer nenhuma palavra. Apenas olhava para Shylon, que tentava se levantar em meio a acessos de tosse. Haron se pôs na frente de Marishi. Ele carregava Sofia nos braços. - Eles vão ficar bem, mas precisamos leva-los logo para o Centro de Recuperação imediatamente. – O Sacerdote apenas observava aquela cena sem tirar os olhos do seu filho. 389


- Marishi! Precisamos ir! – Gritou Haron, recobrando a atenção do ham’aryeno. - Sim, claro. Shandara, leve Luhan. – Ordenou, ao amigo que logo pôs Gabriel em seus braços. Eles seguiram por uma das naves, rumo ao Complexo Hospitalar. Marishi se sentia como se tivesse tirado Shylon pessoalmente daquele inferno. Prestando mais atenção, percebeu que seu filho tentava se comunicar com ele. Mesmo com dificuldade, Shylon conseguiu falar. - Pai... Nós conseguimos... Nós conseguimos... Pai... – Disse o garoto, enquanto Marishi o escutava, porém sem entender o que seu filho dizia. E em meio ao delírio, Shylon perdeu a consciência.

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DOCUMENTO 065 BRINCANDO COM A SORTE Sentados em um dos quartos do Centro de Recuperação Marishi e Shandara observavam os três jovens que eram tratados da intoxicação do incêndio. Haron adentrou na sala segurando uma moldura de metal. Na sua tela oca, uma imagem holográfica projetava sem cessar dados e palavras que se alternavam enquanto o Sacerdote manuseava o dispositivo. - Vah Shelan. Os droides me informaram que eles precisarão seguir uma dieta especial. Já mandei os cientistas botânicos colherem as ervas de nossas estufas. Em poucos dias estarão recuperados. – Marishi não respondeu à saudação, visivelmente inserido em seus pensamentos que logo foram compartilhados com o amigo. - Isso não me preocupa Haron. O que não entra na minha cabeça foi como e por que eles fizeram isto. Quando acordarem eu vou ter uma séria conversa. – Disse Marishi, aborrecido. - Acho melhor você acalmar seu ego, porque já estão acordando. Marishi voltou seus olhos para os leitos, enquanto Gabriel e Shylon acordavam aos poucos, ainda sentindo o efeito dos sedativos que lhes foram administrados. - Irresponsáveis! – Aquele inesperado grito de Marishi fez os dois despertarem de vez. O Sacerdote se aproximou das plataformas flutuantes. Em meio aquele caótico despertar, os dois amigos reconheceram, ainda que confusos, o quarto de repouso do Complexo Hospitalar. Marishi rasgou novamente o silêncio, continuando seu sermão. - Vocês tem ideia do perigo que correram? A tarefa de vocês era localizar onde estavam os Magos, não irem atrás deles. Fora que toda e qualquer missão deve ser registrada nos Protocolos da Ordem. Se houvesse acontecido alguma coisa pior, vocês estariam sozinhos. Sem absolutamente ninguém para ajudá-los! - Mas pai... – Shylon tentou se justificar.

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- Não Shylon. Vocês passaram dos limites! Vocês pensam o que? Que todo dia um Harashi enfrenta um Mago e sobrevive para contar história? – O Sacerdote não dava trégua, porém tinha toda razão. - Marishi, tenha calma. – Disse Haron, tentando acalmar seu amigo. - Calma Haron? Como você quer que eu me sinta sabendo que meu filho se expôs daquele jeito? Você está me pedindo calma quando eles é que tiveram a sorte de voltarem vivos ao Santuário. Olhe para eles. Só não morreram porque Shylon conseguiu trazê-los a salvos. - Marishi, nenhuma experiência totalmente é negativa. Em tudo há aprendizado. – Disse Shandara, intervindo. - O senhor tem razão. – Disse Gabriel, cortando o Sacerdote, tendo um acesso de tosse. O garoto criou coragem e continuou a falar, mesmo com dificuldade. – Apesar de toda destruição, descobrimos coisas importantes. A ira de Marishi no mesmo instante cessou, dando lugar a uma quieta curiosidade. - Prossiga. – O mentor de Gabriel lhe ordenou. - Diferente do que pensávamos os Magos não estão agindo em parceria com os governos de Yuransha. - Não? – Marishi se inquietou diante daquela informação. – Mas os dados que você colheu na Deep Web, assim como os relatórios de Shandara mostram claramente que informações sobre a Constelação haviam vazado do governo norte-americano. Alguém tem conhecimento sobre nós, e com certeza quem as repassou não era do seu mundo. Eram informações muito detalhadas. Quem as transmitiu só pode ser alguém que alguma vez na vida esteve nos planetas da Constelação. - Mas quando estávamos frente a frente com Lakahz ele nos revelou que a Ordem Zahran não tinha nenhuma relação com os interesses das nações do meu mundo. Esses governos apenas buscam o Livro para proveito próprio, nada, além disso. Marishi e Haron apenas ouviam o que Gabriel lhes dizia. - Acreditem, ele só nos falou o que já sabíamos. Os governos da Terra desejam ardentemente o Livro para se apoderarem do seu conhecimento oculto e assim expandir seu poder bélico. – Disse Marishi, olhando para 392


Shandara e Haron, enquanto o Mynoriahno balançava a cabeça lentamente, concordando com os pensamentos do amigo. - Então nossas intuições estavam corretas... – Disse Haron, passando a mão no seu queixo. - Que intuições senhor? – Perguntou Gabriel, confuso. - Não tem a ver somente conosco ou a Ordem Zahran, mas com algo relacionado com o seu planeta... - Isso tem a ver com as Profecias de Fátima? – Disse o garoto, cortando o Sacerdote. - Como você sabe disso? – Haron perguntou, surpreso com a pergunta. - Quando enfrentávamos Lakahz, ele nos falou que os Magos estavam estudando essas profecias. O que elas dizem? – Gabriel perguntou, meio ansioso. - As Profecias de Fátima são um conjunto de revelações, cuja interpretação ainda não é um consenso, nem entre os estudiosos do seu mundo ou de Nemashi. – Marishi respondeu, tentando explicar ao garoto, porém, sem querer entrar em detalhes naquele momento. - A Ordem as conhece? – Aquela resposta quase fez Gabriel se levantar na cama, sendo logo contido pelo Sacerdote. - Tenha calma Luhan. Quando se recuperarem nós conversaremos com vocês três. É algo que já está na hora de saberem. O Discípulo relutou, mas decidiu aceitar aquelas palavras em silêncio, voltando ao repouso. Marishi voltou-se para Haron, pensativo. - Fomos cegos em considerar somente os Magos Zahranianos, mas em nenhum momento pensamos que outros podem estar envolvidos. - Você quer dizer outros grupos, como as Ordens Akehran e Orihman? – Perguntou Gabriel, curioso. - Eles não teriam nenhum interesse direto no seu planeta. Não creio que estejam envolvidos. - Então quem mais poderia ser? - Não sei. Existem muitas seitas originadas das Ordens de Ashunyah. Para a nossa infelicidade, a única dissidência gerada na Ordem Harashi

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foram os Zahranianos.55 Por isso precisamos ter paciência e esperar os próximos acontecimentos em Yuransha. Talvez isso nos mostre quem está

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A expansão das quatro Ordens de Ashunyah foi o motor propulsor que deu início a uma série de dissidências que varreram a região. A primeira divisão oficial foi gerada na Ordem Akehran. A Ordem já era conhecida pelo pesado proselitismo que promovia, e a já esperada divergência entre seus membros acabou por produzir uma quantidade crescente de seitas que se espalham pelos sistemas de Yashena, como as igrejas hoje em dia se proliferam em Yuransha. A rasa doutrina por elas pregada, bem como seus fundamentos espirituais, acabou por atrair boa parte dos habitantes de planetas subdesenvolvidos, criando incontáveis divisões e vertentes dentro delas próprias, uma verdadeira praga, onde muitas vezes suas crenças divergiam profundamente. As principais Seitas Akehranianas foram a Chave da Ciência, a Sociedade do Símbolo Universal, a Ordem da Luz das Estrelas, e a Fraternidade dos Padres da Chave. A próxima Ordem a sofrer um cisma foi a Orihman. Com a Queda do Sihmad e instituição da Economia Baseada nos Recursos, clãs dos planetas pertencentes à Zona Pós-Periférica de Ashunyah começaram a se organizar em grupos de piratas e contrabandistas para não perderem os lucros que obtiam do comércio com os planetas pertencentes à Constelação, uma vez que estes não dependiam mais do mercado. A partir desse fenômeno surgiu em Kamonih as chamadas Facções Orihman, milícias de criminosos organizados em irmandades que seguiam rígidas regras de fé e violentos códigos de honra. Elas eram a Ordem da Coroa do Sol (seus membros eram conhecidos como os Cabeças Raspadas), os Assassinos de Melkah, surgidos no planeta de mesmo nome, e o grupo chamado de Lendas de Mavoriah, cultuadores de mitos sobre Seres Superiores que se corromperam, tornando-se criaturas semi-imortais, e assim passaram a almejar um único propósito: Recuperarem seu status original. Mas para isto, precisavam se alimentar da alma daqueles que os cercavam. Em Yuransha, passaram a ser conhecidos em histórias locais como demônios ou vampiros. A Ordem Harashi também teve seu único e pior dos cismas, com a rebelião dos Sacerdotes que criaram a Ordem Zahran, há 202 mil anos yuranshianos. Posteriormente, dentro da Ordem de Tevohan, foram criadas as chamadas Irmandades Zahranianas. As duas e mais temidas fraternidades foram a Sociedade do Sol Negro e o Culto da Morte da Luz, onde ambas cultuavam os Juízes Supremos como verdadeiros deuses, promovendo um sistema de crenças bem mais rígido do que o da Ordem Zahran. Por fim, um curioso movimento espiritualista começou a surgir nos pequenos planetas da Zona Pós-Periférica, chegando até a Zona Central de Ashunyah. Os chamados Grupos Eremitas eram formados por indivíduos dotados de alta percepção e sensibilidade aos mundos invisíveis, e que de algum modo eram capazes de acessar os mecanismos das Profecias Progressivas. Tidos como reveladores, visionários, ou profetas

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agindo em segredo no seu mundo. Existem interesses por todos os lados no seu planeta, assim como por todos os quadrantes do nosso sistema. Marishi se afastou dos leitos, indo em direção à saída. - Mas por enquanto a única coisa que vocês precisam se preocupar é em recuperar suas forças. E quanto a você... – Disse o Sacerdote, se voltando para Shylon. – Vou pensar como vou discipiná-lo. Talvez passe alguns exercícios de meditação, você precisa controlar seus impulsos. - Desculpe senhor, sem querer me intrometer, mas esta é a punição que dará a Shylon? – Gabriel perguntou, surpreso com aquele castigo. - E você tem alguma sugestão melhor? – Disse Marishi, sorrindo para o garoto. – Luhan, os homens do seu mundo punem o corpo imaginando que este é o melhor caminho para a disciplina. Mas se esquecem de que seus erros não são cometidos pela fraqueza do corpo, mas sim pela indisciplina da Mente. Quando um dia eles compreenderem isto, não haverá mais necessidade de prisões. O Sacerdote irrompeu pela saída junto com os outros dois, deixando os jovens sozinhos em seus leitos, mas antes de deixar o quarto, Gabriel novamente chamou Marishi. - Senhor, seremos expulsos da Ordem por isso? – Perguntou, meio acanhado. - Mas é claro que não. – Disse, enquanto suspirava, engolindo seu ego. – Na verdade... Vocês estão de parabéns. Não sei se na idade de vocês eu teria tido a mesma sorte e a mesma coragem de enfrentar os perigos. Agora descansem. Vocês merecem... – E saiu junto com os outros Sacerdotes. Shylon deu ombros, soltando um confuso sorriso para o amigo.

dos Seres Superiores, trabalhavam à parte da própria Ordem Harashi. Curiosamente, estes indivíduos eram os únicos em quem confiávamos além dos nossos próprios Sacerdotes. E quando necessário, recorríamos a eles para que esclarecessem nossas dúvidas acerca das revelações dos Superiores. Embora eles vivessem como eremitas, nós os classificamos em três grupos, de acordo com suas práticas: Os Profetas Evolucionários, os Reveladores do Deserto e os Videntes de Livohran.

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Gabriel mal teve tempo para falar, quando ouviu um som arranhando o tecido ao seu lado. Em meio a pesados movimentos, Sofia se mexia no leito, ainda zonza, como se tivesse acordado da pior ressaca de sua vida. Ao abrir os olhos, a forte luz que iluminava o recinto agrediu suas claras pupilas. Se acostumando com a luz, ela sentiu seus músculos se contraírem, pois não fazia ideia de onde se encontrava. Se não fosse pela aliviante visão dos dois amigos ao seu lado, ela estaria mais assustada ao tocar aqueles plugs fluorescentes colados à sua testa. Mas apesar do leve frio na barriga, aquele ambiente era estranhamente tranquilizante. - Onde estamos? – Sofia finalmente falou, eufórica, observando o quarto onde se encontravam. - Se acalme. Estamos no Santuário. Agora tudo está bem. – Disse Shylon sentado em sua cama. - O que aconteceu conosco? – Disse Sofia, tentando se lembrar de suas memórias, em vão. Apenas encontrou um profundo vazio na sua Mente. - Volte a se deitar, porque a história é um pouco longa. – Disse Gabriel, soltando um sincero sorriso de satisfação ao ver que a garota agora estava bem. O trio passou o resto da madrugada relembrando suas aventuras naquele dia, enquanto Sofia não acreditava no fantástico desfecho que acabou por selar o episódio. Para sua sorte, o epílogo daquela aventura lhes fora favorável.

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DOCUMENTO 066 A GRANDE JORNADA Após alguns dias se recuperando, Gabriel voltou às suas atividades no Santuário. O garoto se sentia renovado para continuar seus estudos na Ordem, e sua rotina de treinamento o trouxe de volta à realidade que o cercava, amadurecendo-o ainda mais após o sinistro episódio em Israel. Naquele dia, após passar a manhã estudando na Biblioteca, Gabriel resolveu ir a uma das sacadas da Torre da Habitação. Daquele colossal patamar era possível contemplar os Sacerdotes que caminhavam pelos Jardins do Santuário. O observando o distante Jardim, eles mais pareciam minúsculas formigas vestidas de branco. O garoto pensou. Levantando a vista, Gabriel pôde observar diversos pontos luminosos sumirem acima da atmosfera azulada de Nemashi. Os cruzadores que partiam do Espaçoporto Setorial traçavam suas rotas de viagem bem em frente do Setor Sul do Santuário, razão pela qual os inúmeros apartamentos da fortaleza Harashi ficavam voltados para os vastos campos verdes que a circundavam, tendo ao horizonte as montanhas de cristal e concreto, formadas pelos arranha-céus da cidade-mãe. Caminhando pelo longo corredor circular do patamar, Marishi reconheceu de longe aquela figura já tão familiar em suas aulas e palestras no Santuário. Adentrando em um dos arcos que se abriam nas reluzentes paredes do hall, ele foi ao encontro de Gabriel, que pressentiu a chegada de seu Mestre. - A Minha Paz, Luhan. Sinto que sua cabeça está cheia de dúvidas. E não são a respeito das minhas aulas. – Disse Marishi, fazendo a tradicional saudação ao jovem. Gabriel a devolveu, inclinando-se igualmente ao Mestre. - Desculpe senhor, mas desde que voltamos de Israel, algo vem me incomodando. - Prossiga. – Assentiu, sempre pronto para esclarecer as dúvidas do jovem Discípulo.

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- Quando estávamos no Centro de Recuperação, Shylon me disse que agora não podemos mais acessar os pensamentos de Lakahz e conhecer suas razões de ter permanecido em Yuransha. Eu queria saber senhor... Podemos conhecer seus pensamentos se ele está morto? - Infelizmente não. – Logo respondeu o Sacerdote. – Assim como suas lembranças, sua Mente foi totalmente destruída por conta daquele ataque. - Mas como isso é possível? - Lakahz tentou aniquilá-los para que não deixassem rastros por onde estiveram, e assim não pudéssemos localizá-los no seu planeta. Sua mais íntima vontade era de que vocês fossem destruídos por completo, incluindo suas Mentes, suas memórias, tudo o que eram em vida. Porém, durante o duelo que travaram, essa maligna vontade, aliada ao seu poder destrutivo, acabou por voltar-se contra ele. Como vocês dizem no seu mundo: O feitiço virou contra o Mago. - Feiticeiro... – Disse Gabriel, corrigindo-o. - Isso. – Marishi retrucou, sorrindo. – Se não fosse pela sua coragem de enfrenta-lo, talvez agora vocês três seriam basicamente... Nada. – Disse, enfatizando sua última palavra. - Então se morrêssemos, nós... Deixaríamos de existir? – Perguntou Gabriel, arregalando os olhos. – Sem sombra de dúvida. Mas você deve compreender que a morte nem sempre é o fim de tudo. Aquelas palavras de Marishi trouxeram à tona as lembranças do episódio em Brasília, relembrando Gabriel de que existia algo após a morte, e que esse algo havia falado com ele. Entretanto, naquele momento, o jovem não conseguia conceber como isso seria possível. - Mas o que acontece depois... quando morremos? Quer dizer, como se dá essa vida após a morte? – As inúmeras dúvidas que surgiram logo acordaram os sentidos de Gabriel, dilatando suas discretas pupilas escuras. Um turbilhão de pensamentos invadiu a cabeça do jovem. Ele estava prestes a receber a resposta sobre uma das dúvidas mais pertinentes da humanidade: Afinal, o que acontecia após a morte?

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A consciência do que Marishi iria lhe esclarecer fez sua ansiedade aumentar, assim como sua pulsação que latejava freneticamente, como um bumbo dentro de seu coração. - Calma meu jovem. Vejo sua aflição para que essas dúvidas sejam logo esclarecidas. Mas a resposta que posso lhe dar por enquanto é que a chamada vida após a morte é igual à vida que vivemos aqui neste Universo. - Como? – Aquela resposta confundiu ainda mais a cabeça do garoto. - Um aprendizado, Luhan. Se a razão de nossa existência é evoluirmos, quando morremos isto não é diferente. - Então a morte é apenas a continuação da nossa vida? – Gabriel perguntava freneticamente. - Primeiro você deve compreender do que se trata a vida para entender o que é a morte. A morte é apenas mais uma transformação do estado em que se encontra sua Mente. Um estado imperfeito, fruto de nossa natural limitação enquanto seres mortais. Nós sabemos que a experiência que passamos em vida é grandiosa, mas tudo isto é apenas uma escola primária para aprendermos o que realmente importa. Para começarmos nossa verdadeira jornada. - Jornada? De que? - Ora, de evolução. Nossa missão neste mundo é desenvolvermos nossa natureza mortal para darmos continuidade à nossa existência. - E como isso ocorre? - Pela prática de virtudes como a compaixão, a humildade e o amor. - E se não fizermos isso? - Se não construímos esses valores em vida, nossa Mente não sobrevive à separação do corpo, pois deixa de carregar consigo as forças vivificantes dessas grandes virtudes inerentes a todos nós. Sem essa essência, sem essa alma que construímos diariamente, não sobrevivemos à morte, como aconteceu com Lakahz. É como se nos transformássemos em meras sombras, sem personalidade, sem forma, sem conteúdo. - Então a sobrevivência para essa vida após a morte só depende de nós?

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- Exato! Somos totalmente responsáveis pelas nossas ações e pelo nosso destino. Em outras palavras, somos totalmente responsáveis pela nossa salvação ou condenação. Após essa derradeira experiência, se conquistarmos um acúmulo moral o suficiente para continuarmos a evoluir, nossa Mente renasce em um novo mundo, em uma nova realidade. - Então após a morte nossa Mente reencarna em um novo corpo? -

Não

como

se

acredita

no

seu

mundo,

Luhan.

Não

existe

reencarnação, mas sim progressão. Em uma reencarnação nós poderíamos voltar a nascer neste mesmo mundo problemático. Mas o único caminho que trilhamos é ascendente. E isto não se dá através da nossa rude matéria. Nossas Mentes evoluem neste Universo experimentando outras realidades dentro do Cosmos, mas esta é a nossa primeira e única existência concretizada na carne. O que vivemos aqui é apenas nossa gênese para alcançarmos o nosso destino. - E qual é esse destino? - Conquistarmos aquilo a que estamos fadados: Tornarmo-nos seres perfeitos. Ou como vocês entendem no seu planeta: Retornarmos a Deus. Sedes perfeitos como o Pai é perfeito... Já deve ter ouvido isso, não? O Sacerdote falava com tanta propriedade que parecia já haver experimentado tal realidade alguma vez em sua vida. - Luhan, quero que você aprenda uma coisa: Durante a minha vida de Sacerdote, aprendi que a sabedoria não é a maior das virtudes. Sem humildade e compaixão nosso conhecimento nos torna orgulhosos e arrogantes. E esta é a origem de todas as injustiças. Gabriel continuava calado, apenas escutando seu mentor. Marishi prosseguiu. - Ao longo da minha vida eu vi a ruína de vários Magos e Sacerdotes por conta dessa sede de poder e conhecimento. Eles possuíam o poder para destruírem mundos inteiros, porém, não eram capazes de alimentarem uma gota de amor próprio para sobreviverem após suas mortes. O tom daquelas palavras parecia duro demais comparado ao que o Sacerdote dissera anteriormente.

400


-

O

ódio,

a

violência,

a

destruição

brotam

de

uma

Mente

desequilibrada, inebriada pelo poder que temporariamente possui. Mas tudo é passageiro. O poder, o conhecimento, nossas vidas, e até mesmo este Universo inteiro, nada é permanente. Porém, o que você realiza neste mundo, você carrega para sempre aqui... e aqui – Disse Marishi, apontando para a testa e em seguida para o peito de Gabriel. – E você sabe o porquê? - Não, senhor. – O garoto respondeu, esperando a resposta. - A essência do que você é nasce da sua mais sincera vontade. Quando tais virtudes como a humildade ou a compaixão brotam dentro de si, você apenas está voltando a se unir ao Princípio de Tudo o que existe, entra em sintonia com a mais poderosa e sincera vontade que existe neste Universo e em tantos outros, a do Mayam’Horun. Em outras palavras, esse é o único modo de construirmos nossa essência individual, da qual constantemente nos afastamos... - E nossa essência é...? - O Amor, Luhan. O Amor é real. O Amor é o que nos dá vida e o que nos mantém vivos. O amor pelos outros, o amor por si mesmo. Essa energia aparentemente ilusória é o que dá sentido, força e realidade às nossas vidas. Sem ela não somos, nem seríamos, nem podemos ser. Jamais se esqueça disso. - Não me esquecerei, senhor. – Respondeu um Gabriel sem palavras. Um pouco atrasado para suas ocupações diárias, o Sacerdote desceu as escadarias da sacada, mas subitamente, interrompeu seu trajeto. - Luhan? - Senhor? – O jovem voltou-se novamente para o Mestre. - Da próxima vez, lembre-se do que lhe falei sobre saber esperar. Tudo tem seu tempo, e devo confessar, nesse seu primeiro ciclo na Ordem, você aprendeu muita coisa. Sinto que agora está preparado para enfrentar suas dúvidas. Sim... Agora você está preparado. – Disse o Sacerdote, pensativo. Gabriel apenas observou com estranheza aquelas palavras do Harashi. - Bem, preciso ir, e você, decida o que vai fazer pelo resto do dia, só não se esqueça de que já está anoitecendo. – Disse Marishi, despedindo-se. - Mas senhor, ainda estamos no início da tarde... 401


Marishi

havia

abandonando

Gabriel

em

meio

aos

seus

pensamentos. Observando o horizonte, o garoto então compreendeu. Nunca se sentiu tão completo, tão inspirado. Aquela rápida conversa dera a ele um leque de convicções que nunca havia parado para pensar em sua vida. Em meio à sua vida de cálculos e equações cibernéticas, o jovem Discípulo jamais havia experimentado tal alento. Agora Gabriel estava sentindo-se penetrar na grandiosidade do Universo além da fria ciência que estudava na escola e teorizava nos fóruns da internet. Confiando naquelas poucas palavras de Marishi, o garoto parou para refletir qual era o seu lugar naquele imenso Universo. Mesmo não obtendo uma resposta de imediato, ele sentiu um confortável sentimento invadir seu íntimo. Pela primeira vez ele sentiu algo que não tinha há muito tempo: Fé. Só então compreendeu que a ação sem a sincera vontade de fazê-la tornava-se um mero ato, assim como a fé sem prática tornava-se palavras jogadas ao vento. Era preciso agir. E acima de tudo, de coração.

402


DOCUMENTO FINAL Washington D.C., dezembro de 2013. Era o fim de mais uma tarde em Arlington Heights. O vento soprava timidamente nos espaços entre as folhas das árvores, agitando-as como se fosse arrancá-las. O acanhado sol que ainda existia no horizonte atingia suas superfícies, revelando as fortes cores do outono. O dia havia sido quente, mas naquela hora a gélida brisa não era desafiada por nenhum dos moradores do local, de modo que a longa rua estava deserta, a não ser pelos poucos carros que esporadicamente a cruzavam. Ao longo do percurso, os veículos eram engolidos pelas imensas sombras das árvores que se desenhavam ao longo da via até atingir algumas casas. Dentro delas, os habitantes do bairro viviam sua pacata rotina, onde os pais esperavam pelos filhos, no tradicional horário em que estes voltavam das suas últimas aulas daquele ano letivo. Como de costume, um habitual ônibus amarelo passou ao longo da pista retilínea, percorrendo mais uma vez aquele caminho diário. Entretanto, prosseguiu sem parar em nenhuma das residências. Aquele clima de entardecer parecia normal, se não fosse pela súbita e despercebida aparição de Gabriel do lado de uma das grandes árvores ali presentes. A penumbra formada pelo sol que se punha envolvia o lado em que o jovem se encontrava, ajudando a escondê-lo em meio à sombra da própria árvore. Olhando ao redor, confirmou o cálculo de sua percepção antes de viajar até ali. Ninguém o notara chegar. Mais uma vez seus sentidos não o traíram. Passando a caminhar pela calçada, os raios de sol que inundavam aquele ambiente iluminaram o rosto de Gabriel. A serenidade que emanava de seu semblante demonstrava a razão pela qual estava ali. Embora ele não visse seus pais há tempos, aquela missão auto outorgada falava mais alto que a saudade do seu lar. Era algo íntimo. Mais profundo. Algo que só ele 403


conseguia experimentar. Aquela força irresistível o levara a um lugar que há muito ele não frequentava: A casa de Sasha. Conhecendo cada metro quadrado daquele terreno, o jovem, adentrou lateralmente pelo raso gramado. A tranquilidade do bairro apenas contribuía para que Gabriel realizasse aquela tarefa que mais parecia uma infiltração. De cara algo lhe chamou a atenção. O espaço onde antes jaziam os carros dos pais de Sasha se encontrava vazio. Ótimo. Terei menos problemas para fazer o que pretendo. Pensou. Mais seguro com aquela constatação, ele encaminhou-se para a lateral daquela casa. Aguçando sua percepção, apenas sentiu aquela tão conhecida presença. Porém, Gabriel não sentiu o mesmo fulgor mental que o atormentara nas últimas vezes que esteve com Sasha. Naquele momento sua motivação era diferente. Se concentrando, Gabriel saltou para dentro da casa que tanto frequentou nos últimos anos. Agora dentro da sala, o garoto percebeu que a mobília permanecia a mesma, comprovando que os pais de Sasha sempre rejeitaram mudanças na casa, quem dirá em sua mentalidade. A televisão se erguia no móvel como uma estátua de algum deus grego em um pedestal. Ao lado dela, destacada no canto da sala, uma alta árvore de natal denunciava os festejos que se aproximavam. A tradicional religiosidade daquela sociedade não era deixada de lado naquela casa. Abaixo de uma grande pintura de um Jesus de longos cabelos loiros e brilhantes olhos azuis, uma Bíblia se abria em cima de um suporte. Se aproximando do pedestal, o jovem notou que ela estava aberta no capítulo 38 do Livro de Jó. Algo logo chamou a atenção de Gabriel ao ler o versículo 11. Ele dizia: “Tu chegarás até este ponto, e daqui não passarás”. Imediatamente, o jovem se recordou das palavras do Arquimago Zahraniano no mosteiro do Monte Hermon. Será que Lakahz teria citado as Escrituras zombando dos garotos? Não importava. Gabriel queria esquecer aqueles pensamentos que lhe afastavam do seu foco. A típica família norte-americana a qual Sasha pertencia fazia com que a garota vivesse a maior parte do dia sozinha em casa, entre seus estudos e suas distrações, por conta da rotina de trabalho dos seus pais. Porém, 404


naquele dia, a ex-namorada de Gabriel se encontrava no seu quarto, no primeiro andar da residência. Subindo, aquela longa escada – seguindo uma estratégia quase militar para que não se encontrasse com a irmã mais nova de Sasha, Allie –, Gabriel se escorou na parte lateral dos degraus, próxima à parede, de modo que ninguém não pudesse vê-lo subir. Checando o vazio do longo corredor e suas portas fechadas, seu coração palpitou de imediato quando viu a emanação luminosa que brotava do quarto da garota. As luzes acesas denunciavam que alguém se encontrava em seu interior. Gabriel não tinha dúvida de quem se tratava. Aproximando-se meticulosamente da entrada, logo estancou ao perceber que além daquela ser a porta do lugar entreaberta uma silhueta de longos cabelos castanhos jazia de costas para a entrada. O susto o fez recuar, ao passo que tentava controlar sua ansiedade. Com cautela, Gabriel voltou a espiar pela porta, e assim pôde contemplar a figura de Sasha, sentada em uma escrivania de madeira, cercada por uma pilha de livros, que de longe reconheceu como sendo do colégio em que estudavam. A primeira vontade que teve foi de entrar naquele recinto, mas a razão sussurrou-lhe outra vez mais alto, lembrando-lhe de sua missão. Fechando os olhos, Gabriel concentrou-se para o que ia fazer. E então, como um ruído que tira a audição, a Mente de Gabriel mergulhou em um profundo silêncio dentro dos pensamentos de Sasha. Aquele misto de imagens disformes inundava sua visão, tomando a forma de sopros de lembranças pontuais. À medida que Gabriel tentava acessar as memórias que a garota tinha sobre ele, as primeiras lufadas vieram como uma poderosa energia negativa que fez o corpo de Gabriel estremecer. As imagens o perturbaram de imediato, pois não imaginara a quantidade de brigas que se sucederam ao termino do namoro deles. Da mesma forma, viu que Henry e Nicolas foram os únicos a ajudar Sasha naquele momento em que ela mais precisou. Aquelas lembranças apenas impressionavam Gabriel que cada vez mais penetrava nas memórias da garota. Mesmo passando por momentos

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difíceis, Sasha soube superar seu apego desde que eles acabaram. Não falava mais com o clone de Gabriel desde que ele havia deixado a Terra. Era como se, de fato, o verdadeiro Gabriel tivesse partido para longe. Para ocupar seu tempo a jovem dedicou-se aos estudos. Parece que ela seguiu à risca o verbete de que mente vazia é oficia do Diabo, e assim, por meio de sua rotina, conseguiu preencher o vazio que Gabriel deixara. Não havia momento em que estivesse sem algo para fazer, nem que fosse limpar seu próprio quarto. Enquanto contemplava aqueles pensamentos ocultos, Gabriel acabou enxergando a si mesmo e percebeu o quanto fora egoísta por tanto tempo. Toda torrente de conhecimentos, missões e acontecimentos mexeram com o corpo e com a Mente do jovem. Naquele momento Gabriel sentiu o peso do amadurecimento que sofrera ao longo de quase um ano que se passara. Ele aprendeu a distinguir e compreender o real valor das relações humanas. Como encarar os problemas que naturalmente surgem ao longo da vida. E principalmente, como reagir para superar as dificuldades. Como se fosse uma epifania, todo um ciclo de aprendizados ao qual ele fora submetido até então lhe fez pleno sentido. Gabriel sentiu uma estranha energia percorrer cada célula do seu corpo, deixando escapar um leve sorriso. Ele não sabia explicar aquela sensação, mas estava feliz por Sasha. Sentia-se confortado ao sentir que ela também se encontrava da mesma maneira. Aquele sentimento recíproco era o perdão pelos erros que eles cometeram um contra o outro ao longo daquela conturbada relação. Talvez eles estivessem mais ligados do que nunca, experimentando aquela paz a qual só poderiam encontrar na calmaria de suas mentes, antes agitadas. Gabriel não sabia quanto tempo duraria aquela serena embriaguez, mas aos poucos foi sendo levado por ela. Era como se a interação magnética entre os dois tivesse afetando-os naquele momento, quando estavam mais uma vez próximos. A Mente de Sasha não experimentava um pingo daquela energia transcendental, uma vez que estava bloqueada a tais fenômenos. Mas até mesmo para os seres não sensitivos, aquela interação magnética gerava descargas inconscientes para o cérebro, que por sua vez reagia através do 406


instinto. E no meio daquela experiência psíquica, Sasha virou-se para a entrada do seu quarto, aonde Gabriel se encontrava. - Allie? – Perguntou, achando que a irmã lhe espiava pela porta. O transe místico foi rompido por uma onda de medo que assolou o garoto. Guiado por seu instinto, os reflexos de Gabriel apenas o direcionaram para longe dali. E num piscar de olhos, aquela figura que estava de pé em frente à porta já não se encontrava mais presente. Em meio à confusão que se formou dentro de sua Mente, Sasha recobrou os sentidos que há pouco haviam traído sua percepção. Podia jurar que ao invés de sua irmã travessa havia visto o rosto de Gabriel no meio daquela penumbra, formada pelas fracas luzes do corredor. Não. Não pode ser ele... – Pensou a garota, sem querer acreditar, enquanto olhava para aquele escuro vazio. – É impossível. Ele não pode atravessar paredes. Talvez fosse só uma lembrança. Um traiçoeiro reflexo alimentado pelo já visível cansaço, devido às horas de estudo. Então, com a determinação com a qual havia iniciado aquela leitura, a garota rapidamente fechou o livro, descendo as escadas para pegar alguma coisa na cozinha. Porém, ao se virar, seu coração novamente disparou enxergando uma conhecida silhueta de pé, ao lado do fogão: Era sua pequena irmã, Allie. - Você me chamou? – Disse a garota vestida com um pijama rosa. - Achei que estivesse me espionando atrás da porta. – Sasha perguntou, encarando sua irmã desconfiada com tudo aquilo. - Mas eu estava. Você me chamou então vim ver o que era. Mas como você não estava mais no quarto, eu desci até aqui. – Disse a pequenina sardenta de longos cabelos negros, semelhantes aos de Sasha. - Mas eu achei que você estava me observando antes de eu te chamar. - Será que nossa casa está... mal assombrada? – Aquela expressão de horror da garota fez Sasha voltar seus olhos para o ponto qualquer em que sua irmã olhava, porém ali não havia nada. Tentando colocar sua cabeça novamente no lugar, ela virou-se para a pequena encerrando a conversa. - Só se for em seus pesadê-los. – Disse a irmã mais velha tentando acalmar a imaginação da mais nova. – Tudo bem, venha comer alguma coisa 407


e esqueça isso. – Entretanto as estranhas lembranças continuavam a pertubá-la junto com a imagem de Gabriel que não lhe saia da cabeça. Mas logo elas se dissiparam com o lanche que passou a preparar para sua irmã. Passado o susto, Gabriel observava ao fundo a casa de Sasha detrás de um grupo de árvores, fincadas em um pequeno gramado que se estendia ao lado de uma das calçadas. Novamente em segurança, lembrou que aquele abrigo foi a primeira coisa que conseguira mentalizar ao quase ser descoberto. Mais uma vez também lhe ocorreram as advertências de Marishi quanto aos perigos de se transportar entre os espaços. De súbito, outra onda de pensamentos inundou sua Mente. Refletindo sobre o que aprendera no pouco tempo que passara dentro da Ordem, lembrou-se de que nada vinha sem sacrifícios. Sacrifícios, neste caso, não mais físicos - como era pregado em seu atrasado planeta natal -, mas de ordem moral. Pensou o garoto. Ele sacrificara o que era mais de importante em sua vida naquele momento. Mas agora nada mais importava. Já havia escolhido seu caminho, e só lhe restava esperar as consequências dos seus atos. Fechando os olhos, imaginou o mundo que aguardava seu retorno. Um mundo de possibilidades. Um mundo com um novo sentido para se viver. Em um piscar de olhos, sua sombra projetada no grosso tronco da árvore despareceu. Ele voltara a cruzar a imensidão daquele desconhecido Universo que a cada dia lhe parecia mais familiar. Uma estranha força lhe invadiu. Podia jurar que eram as descargas eletromagnéticas que transportavam suas células através do Cosmos. Mas aquilo era mais do que uma sensação física, era um sentimento incontrolável. A poderosa mistura de sua mais íntima vontade naquele momento: Superar seus próprios limites. O jovem sentia uma euforia invadir sua Mente de uma maneira que não experimentava desde que cruzara as reluzentes câmaras do Santuário pela primeira vez. Suas forças haviam sido renovadas para continuar aquela épica jornada em busca da Verdade. Ele sabia que muitas outras histórias ainda o aguardavam para serem vividas. Mas por enquanto, Gabriel almejava apenas uma coisa. Sabedoria. 408


GLOSSÁRIO Akhan: Surgida na Zona Pós-Periférica de Ashunyah, é uma das cinco espécies mestras da Galáxia de Yashena. São desprovidos de qualquer capacidade extrassensorial. Considerados a escória da Galáxia, em sua maioria são piratas ou criminosos. Ashunyah: Nome pelo qual o sistema dos planetas da Constelação é conhecido no Cosmos. Caso Roswell: Incidente ocorrido em 1947, quando a Força Aérea Americana abateu nos céus da cidade de Roswell um módulo de exploração pilotado por Sacerdotes Harashis que exploravam a região. Cinco Guardiões: Cientistas do Majestic-12 que traduziram o Livro de Ormoshi. Eram o engenheiro Vannevar Bush, o astrônomo Donald Menzel, o biofísico Detlev Bronk, o físico Lloyd Berkner e o piloto Jerome Hunsaker. Codificação: Conjunto de estudos da Ordem Zahran iniciados há 98 mil anos. É tida pelos Harashis como uma distorção das Escrituras do Princípio. Constelação: Organização que administra a maioria dos planetas de Ashunyah. Sua sede fica em Nemashi, onde as decisões são tomadas pelos Embaixadores dos planetas membros em conjunto com a Ordem Harashi. Economia Baseada em Recursos: Sistema econômico utilizado nos planetas da Constelação, no qual os bens são produzidos e distribuídos à população. Elohay: Espécie de Yashena considerada intermediária, em estágio final de evolução. Uma de suas principais características é a miscigenação. É a espécie a qual pertencem os seres humanos de Yuransha. Escrituras do Princípio: Série de estudos da Ordem Harashi sobre o Cosmos, sua origem e seus mecanismos. Este compêndio é considerado a “Bíblia Harashi” e foi organizado pelo Sacerdote Ormoshi Lamanih. Gabriel Cameron: Jovem da cidade de Washington que é contatado pelo Sacerdote Marishi Helamen para ingressar na Ordem Harashi. Entretanto tal chamado tinha um propósito maior: Ajudar a resgatar o lendário Livro de Ormoshi, até então perdido na Terra, que fora encontrado pela jovem italiana Sofia Scotto em Nova York.

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Galáxia de Yashena: Nome pelo qual a Via Láctea é conhecida no Cosmos. Nela se encontram os sistemas de planetas como Nemashi e Yuransha. Grande Universo de Avathan: Um dos Sete Grandes Universos que circundam o Universo Central, criado há 987 bilhões de anos. Nele se encontra o Universo Local de Navadoh. Ham’Aryen: Espécie mestra predominante em Yashena. Milhões de anos de evolução fez com que esta espécie desenvolvesse uma poderosa capacidade psíquica. São fisicamente parecidos com os elohanianos. Haron Voorih: Sacerdote Harashi pertencente à espécie dos Mynohr. É tido como um dos mais sábios Sacerdotes da história da Ordem. É o melhor amigo de Marishi Helamen e irmão de Shimah. Juiz Supremo: Título dado ao líder máximo da Ordem Zahran. Korah: Idioma-padrão dos planetas pertencentes à Constelação. Lakahz Hamorun: Arquimago Zahraniano, braço direito de Sarahnel Mazhayan, é considerado um dos mais poderosos membros da Ordem. Pertencente à espécie dos elohanianos. Livro de Ormoshi: Tradução para o inglês das Escrituras do Princípio realizada pelos cientistas do Majestic-12 a partir de um Tahamalen achado nos destroços do Caso Roswell. A obra leva o nome do Sacerdote Harashi que assina seu último documento, Ormoshi Lamanih. Majestic-12: Grupo de sete militares e cinco cientistas, criado pelo presidente norte-americano Harry S. Truman, para estudar os destroços resgatados do Caso Roswell. Malavah: Mundo onde surgiu a Religião Harah. É um dos mais antigos planetas de Yashena. Foi destruído por uma guerra civil. Marishi Helamen: Sacerdote Harashi da espécie Ham’Aryen, pai de Shylon. Junto com Haron, conduziu o plano de contato com Gabriel e Sofia, para resgatarem o Livro de Ormoshi. Mayam’Horun: Do Korah, O Princípio de Tudo. É o título dado nos planetas da Constelação ao Criador dos Universos e de todo o Cosmos. Em Yuransha possui muitos nomes: Allah, Yahweh, Brahman, Ahura-Mazda, Olorum. Mazha Helamen: Poderoso Sacerdote Harashi, pai de Marishi, que foi morto durante um conflito contra clãs de piratas na Zona Periférica de Ashunyah. 410


Monvanyah: Nome do sistema solar de Yuransha conhecido no Cosmos. Mosteiro de Tevohan: Sede da Ordem Zahran. Esse complexo de templos se assenta entre as montanhas vulcânicas de um dos planetas mais distantes do Sistema de Ashunyah, abrigando todos os Magos da Ordem, diferente da Ordem Harashi, que possui Santuários em outros planetas da Constelação. Mynohr: Espécie surgida no planeta Mynohria. Possuem uma monoetnia onde a maioria dos membros possui a cor da pele negra e olhos claros. É considerada uma das raças-mãe de Yashena, o que gera desprezo por outras espécies e excessivo orgulho de seus membros por suas origens. Nemashi: Planeta-capital da Constelação, presente no centro do Sistema Ashunyah. Nele se encontra o Santuário, sede da Ordem Harashi. Ordem Akehran: Do Korah, “Ordem dos Portadores da Chave”, a Ordem Akehran foi fundada no planeta Malavah após a fuga de Sacerdotes da Religião Harah para o planeta Moronah. A Ordem acabou criando uma poderosa religião que se expandiu pelo Sistema de Ashunyah. Ordem Harashi: Do Korah, “Ordem dos Mestres da Luz”, foi fundada em Nemashi pelos Setes Sacerdotes remanescentes da Religião Harah que fugiram de Malavah durante sua destruição pela guerra civil. Foi a principal promotora do desenvolvimento de Yashena, transformando a região na mais desenvolvida do Universo Local de Navadoh. Ordem Orihman: Do Korah, “Ordem dos Guias do Caminho”, esta irmandade foi fundada por Haraístas que fugiram de Malavah para o planeta Kamonih. Posteriormente passaram a se intitular de Padres, incitando a população contra o reino local, e após um golpe, instituíram um governo ainda mais autoritário no planeta, que passou a ser regido pela Ordem. Ordem Zahran: Do Korah, “Ordem dos Portadores do Mistério”, se originou do Grande Cisma, onde Sacerdotes Harashis deixaram a Ordem após uma série de conflitos internos. Passando a habitar o planeta Tevohan, os Harashis passaram a se denominar de Magos e criaram uma poderosa doutrina baseada no culto ao conhecimento, deturpando a filosofia Harashi. Ormoshi Lamanih: Sábio Sacerdote que há 300 mil anos compilou os estudos sobre o Cosmos até então realizados da Ordem Harashi em uma única obra, dando origem às Escrituras do Princípio. 411


Quórum dos Doze: Conselho rotativo que administra a Ordem Harashi. Religião Harah: Crença surgida no planeta Malavah que tinha por doutrina o estudo aprofundado sobre o Cosmos e seus mecanismos. Dentre seus sacerdotes se encontravam sábios, filósofos e cientistas que por muito tempo contribuíram para o desenvolvimento de Yashena. Os princípios da religião sobreviveram à destruição do planeta com a fundação das Ordens Akehran, Orihman e Harashi. Salto entre os Espaços: Nome pelo qual é denominado o processo de transporte da matéria entre dois “Pontos” no espaço. O “Salto entre os Espaços” é inversamente proporcional ao “Salto entre os Tempos”, técnica esta utilizada para avançar ou regressar dentro de um período no tempo. Santuário de Nemashi: Sede da Ordem Harashi, localizada na capital da Constelação. Erguido sobre uma montanha de cristal, o complexo, inserido dentro de uma grande muralha circular, serve de residência, centro de estudos e treinamento para os Sacerdotes. Seu prédio principal é a pirâmide de sete lados, em cujo cume se encontra a Sala do Quórum, onde se reúne o Quórum dos Doze. No interior da pirâmide, se erguem sete naves que conduzem a outros edifícios, como a Biblioteca e a Torre da Habitação, onde se encontram os apartamentos dos Sacerdotes. Visto de cima, o Santuário é uma representação do emblema da Ordem Harashi. Sarahnel Mazhayan: Juiz Supremo da Ordem Zahran. É o líder máximo da Ordem e seu Mago mais poderoso. Da tradicional espécie Ham’Aryen, o culto à sua personalidade se tornou tão grande que alguns Zahranianos o consideram como um deus em potencial. Sasha LeBlanc: Ex-namorada de Gabriel Cameron. Seres Superiores: Nome dado às Personalidades geradas pelo Mayam’Horun que O auxiliam na expansão, administração e preservação do Cosmos. Em outros mundos são chamados de Entidades Celestiais, Anjos, Deuses, etc. Sete Sacerdotes: Membros da Religião Harah que fundaram a Ordem Harashi após fugirem da destruição do planeta Malavah. Shandara Menahon: Sacerdote Harashi da espécie dos Syhrins e irmão gêmeo da Sacerdotisa Yonnah. Shimah Voorih: Sacerdote Harashi mynohriano, irmão de Haron. 412


Shylon Helamen: Discipulo Harashi, filho do Sacerdote Marishi Helamen, pertencente à espécie dos ham’aryenos. Sofia Scotto: Jovem da cidade de Milão que durante uma viagem com seus pais aos Estados Unidos descobre ao acaso o Livro de Ormoshi em uma livraria de Nova York. Syhrins: Espécie de Yashena surgida no planeta Ka’alab. Fisicamente parecidos com os elohanianos, entretanto, fazem parte de uma monoetnia onde todos os membros da espécie possuem pele excessivamente clara e longos

cabelos

loiros.

Desenvolveram

uma

poderosa

capacidade

extrassensorial, superando a dos mynohrianos e ham’aryenos. Tahamalen: Cubo cristalino de cor azul no qual textos, imagens e hologramas podem ser gravados por meio de tecnologia magnética. Seu nome em Korah significa “Vaso de Escritos”. Tevohan: Planeta vulcânico onde se encontra a sede da Ordem Zahran. Universo Central: Universo-Fonte de onde emanam todos os outros Universos. Deste centro de gravidade se manifesta o Mayam’Horun. Universo Local de Navadoh: Microcosmo localizado dentro do Grande Universo de Avathan, criado pelos Seres Superiores há 400 bilhões de anos. Yonnah Menahon: Sacerdotisa Harashi pertencente à espécie Syhrins. Irmã do Sacerdote Shandara. Yuransha: Nome pelo qual o planeta Terra é conhecido no Cosmos. Zona Central: Setor principal de Ashunyah que abriga a maioria dos planetas membros da Constelação. Nesta zona se encontra o planeta-capital Nemashi. Zona Periférica: Setor onde se encontravam os planetas menos habitados ou que não fazem parte da Constelação, como Mynoriah e Kamonih. Zona Pós-Periférica: Último setor habitado de Ashunyah. É considerada a parte menos civilizada do sistema, sendo dominada por poderosos clãs de comércio e piratas que vagam sem rumo. Zona Não-Habitada: Possui alguns planetas ainda inexplorados pela Constelação, devido ao primitivo estágio de evolução em que ainda se encontram. É o setor mais próximo da região das Plêiades.

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LINHA CRONOLÓGICA* GÊNESE DO UNIVERSO LOCAL DE NAVADOH Data não sabida: O Mayam’Horun cria o Universo Central em harmonia com uma infinidade de personalidades auxiliares, os Seres Superiores. Nem o espaço nem o tempo ainda existem. Primordialmente tudo é espiritual. Data não sabida: Surgimento e expansão dos Sete Grandes Universos do espaço-tempo ao redor do Universo Central. A matéria surge com a alteração conjunta das frequências das energias e forças físicas pelos Seres Superiores, gerando em um determinado espaço os gases primordiais. O tempo, por sua vez, passa a existir quando a matéria é posta em movimento enquanto é gerada. Desse modo surge o espaço-tempo. +/- 987 bilhões de anos: Surge o sétimo e último Grande Universo do espaço-tempo, o Grande Universo de Avathan, onde se encontra o microcosmo em que vivemos, chamado de Universo Local de Navadoh. +/- 875 bilhões de anos: Uma comissão de Seres Superiores escolhe um setor no espaço onde as condições eram favoráveis à expansão das forças físicas e energias primordiais para o surgimento de um Universo Local. +/- 800 bilhões de anos: Seguindo o mesmo processo de condensação gasosa, os Seres Superiores geram um vasto sistema solar em um determinado espaço do Grande Universo de Avathan, dando forma à chamada Nebulosa de Ondronvah. +/- 400 bilhões de anos: A partir da progressiva desintegração da Nebulosa de Ondronvah surge o nosso Universo Local de Navadoh, um dos 700 mil Universos Locais presentes nos Sete Grandes Universos. Esse projeto consistia em um Universo dotado de 100 constelações, compostas por sua vez de 100 sistemas planetários, onde cada sistema poderia atingir o potencial de 1000 planetas habitáveis. Assim, nosso Universo Local tem a capacidade de possuir cerca de 10 milhões de mundos. * Para facilitar o entendimento do leitor os fatos serão datados segundo o calendário ocidental padrão de Yuransha.

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+/- 7 bilhões de anos: Após bilhões de anos enfrentando explosões e expulsões de sóis para o Universo Local de Navadoh, a Nebulosa de Ondrovah se desintegra por completo. CRONOLOGIA DO SISTEMA DE ASHUNYAH +/- 40 bilhões de anos: O sistema de Ashunyah começa a se formar no espaço a partir da expulsão de sóis de uma nebulosa ao centro da Galáxia de Yashena, conhecida no Cosmos como Via Láctea. +/- 12 bilhões de anos: Os planetas ao centro de Ashunyah definem suas massas, a exemplo de Nemashi, porém as condições para o estabelecimento da vida ainda continuam impróprias; Quanto mais afastados do centro do sistema, os demais planetas sofrem para se formarem, devido à crescente instabilidade dos sóis periféricos. +/- 8 bilhões de anos: Constantes chuvas de meteoros castigam os planetas em formação; Estabelecimento das três luas de Nemashi. +/- 2 bilhões de anos: Alguns planetas já possuem oceanos; As estrelas ao centro de Ashunyah completam seu resfriamento, ganhando a temperatura ideal para o estabelecimento da vida nos orbes; O plasma vital, já presente, se adapta às condições para sua evolução, como em Malavah e Nemashi. +/- 950 milhões de anos: A flora marinha primitiva se desenvolve. +/- 700 milhões de anos: O rápido florescimento da flora marinha acaba por purificar os resquícios do carbono existente na atmosfera; A vegetação começa a se desenvolver, adaptando-se rapidamente às condições de planetas como Nemashi. +/- 500 milhões de anos: O setor hoje conhecido como Zona Periférica continua a se expandir com a expulsão de novos sóis em formação, dando origem à região das Plêiades. +/- 440 milhões de anos: Padrões biológicos de aves e mamíferos se estabelecem em muitos planetas do sistema de Ashunyah. +/- 290 milhões de anos: Os ancestrais dos mamíferos conscientes de Ashunyah evoluem de primatas comuns, dando origem a proto-espécies em planetas isolados como Kala’ab, Malavah e Mynoriah. 415


+/- 265 milhões de anos: A proto-espécie de primatas conhecida como Devahan torna-se um padrão em muitos planetas. Entretanto, ao longo do tempo, o ambiente, os hábitos alimentares, e as condutas desses indivíduos determinam a supremacia de cinco grupos evolucionários. +/- 240 milhões de anos: Surgimento dos ancestrais definitivos das espécies dos Syhrins, Ham’Aryen e Mynohr. +/- 165 milhões de anos: Surgimento da espécie Elohay em vários planetas de Ashunyah, incluindo Nemashi. +/- 149-110 milhões de anos: Milhões de ancestrais das quatro espécies tomaram suas primeiras decisões conscientes; Início da civilização nos planetas de Ashunyah. +/- 33 milhões de anos: Em planetas como Malavah, Nemashi, Mynoriah e Kala’ab as sociedades se tornam mais complexas e cidades se desenvolvem em um ritmo progressivo. +/- 29 milhões de anos: Surgem os ancestrais da espécie Akhan nos planetas da Zona Pós-Periférica. +/- 10 milhões de anos: A maioria dos mundos do Sistema atinge seu ápice de evolução biológica, com o surgimento dos primeiros seres conscientes da espécie Akhan; Em outros mundos, as sociedades já se encontram estabilizadas como em Malavah, Kala’ab, Mynoriah e Nemashi, com suas respectivas culturas, religiões e sistemas político-econômicos. +/- 9 milhões de anos: Fundação da Religião Harah no planeta Malavah. +/- 8 milhões de anos: A Religião Harah promove um poderoso avanço científico, social e cultural em Malavah, tornando-o o planeta mais evoluído do Universo Local de Navadoh. +/- 3 milhões de anos: Inicia-se a exploração espacial entre os planetas de Ashunyah, com vários contatos bem sucedidos; Na periferia do sistema, incontáveis planetas afundam em guerras causadas por sociedades cujos governos são administrados pela espécie akhanianos; Revelações diretas dos Seres Superiores aos Sacerdotes Haraístas começam a compor suas Escrituras. +/- 770.000 anos: Início da Guerra Civil de Malavah; Declínio da Religião Harah; Um grupo de Sacerdotes Haraistas deixa o planeta e funda a Ordem 416


Akehran no planeta Moronah, tornando-se Monges eremitas; Outro grupo Haraísta chega a Kamonih e funda a Ordem Orihman, passando a se denominarem Padres; Queda do Reino de Kamonih e ascensão da Assembleia da Estrela Vermelha, que passa a governar o planeta por meios dos Padres de Orihman; Fuga dos Setes Sacerdotes de Malavah durante a destruição do planeta; Fundação da Ordem Harashi em Nemashi. +/- 769.000 anos: A Ordem Akehran sofre seu primeiro cisma, dando origem às seitas da Chave da Ciência, a Sociedade do Símbolo Universal, a Ordem da Luz das Estrelas, e a Fraternidade dos Padres da Chave. Nos próximos milhares de anos as divisões dentro dessas quatro fraternidades primordiais criam uma gama de irmandades que disseminam suas doutrinas pelo sistema de Ashunyah e vizinhos. +/- 766.000 anos: Construção do Santuário da Ordem Harashi. +/- 700.000 anos: Nemashi e outros planetas do Sistema atingem seu ápice de desenvolvimento econômico; Convocada a Assembleia das Estrelas Centrais, reunindo quase 300 planetas de Ashunyah, dos pouco mais de 900 que eram habitados, fundando-se a Constelação; Alguns planetas se recusam a integrarem a aliança política, como Mynoriah e Kamonih. +/- 680.000 anos: Uma crise econômica, seguida de uma devastadora guerra, leva à chamada “Queda do Sihmad”, a moeda da Constelação. A quase destruição da aliança política leva os planetas membros a abolirem o sistema monetário, substituindo-o pela Economia Baseada nos Recursos. +/- 679.000 anos: Com o fim do Sihmad, clãs dos planetas pertencentes à Zona Pós-Periférica formam grupos de piratas e contrabandistas; A partir desse fenômeno, a Ordem Orihman sofre um cisma com a criação das Facções, irmandades criminosas que passam a agir em outros sistemas vizinhos através do mercado negro. Dentre elas se destacam a Ordem da Coroa do Sol, os Assassinos de Melkah, e as Lendas de Mavoriah. +/- 650.000-500.000 anos: A mando dos Seres Superiores, a Ordem Harashi passa a enviar missões de contato e exploração para setores conhecidos e desconhecidos do Universo Local; Aceleração da evolução biológica e antropológica em milhares de planetas de Navadoh.

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+/- 500.000 anos: Primeira tentativa de estabelecer a Embaixada da Ordem Harashi no planeta Yuransha, com o envio dos 100 Sacerdotes e Sacerdotisas. +/- 300.000 anos: Compilação dos estudos da Ordem e revelações sobre o Cosmos, realizada pelo Sacerdote Ormoshi Lamanih, dando origem às Escrituras do Princípio. +/- 202.000 anos: O Grande Cisma da Ordem Harashi: Surge a Ordem Zahran no planeta Tevohan; O Tribunal dos Nove passa a guiar a Ordem. +/- 200.000 anos: Promulgação do Manifesto Dourado pela Ordem Zahran; Golpe do Mago syhriniano Elah Ve’eyan; Ascenção do primeiro Juiz Supremo da Ordem; Surgimento das três vertentes de místicos eremitas: Os Profetas Evolucionários, os Reveladores do Deserto e os Videntes de Livohran. +/- 98.000 anos: Primeiros estudos dos Magos que dão origem à Codificação Zahraniana. +/- 38.000 anos: Segunda tentativa de instalar a Embaixada da Ordem em Yuransha. +/- 10.000 a.C.: Catalogação das primeiras Profecias Progressivas pelos Sacerdotes Harashis, reveladas através dos Profetas Evolucionários. +/- 3.000 a.C.: Surgimento da Sociedade do Sol Negro e do Culto da Morte da Luz dentro de grupos secretos na Ordem Zahran. +/- 2.500-1200 a.C.: Terceira tentativa de estabelecer Embaixadas em Yuransha e planetas de sistemas vizinhos como Vehmos 4, Uranish, Sizihvos e Shomar, localizados para além do quadrante Sul de Yashena; Início da Guerra Civil de Ashunyah, contra os Zahranianos; As Embaixadas Harashis deixam pequenos planetas, a exemplo de Yuransha, e as missões de contato e colonização são suspensas até o fim do conflito, somente se realizando missões de monitoramento desde então. 1º de julho de 1947: O módulo de exploração da Ordem Harashi é abatido pela Força Aérea Americana nos céus acima do deserto de Roswell em Yuransha; Um Tahamalen contendo as Escrituras do Princípio é resgatado e traduzido por cientistas do governo norte-americano. 1984: Batalha de Jaya’akara no planeta Kale’endru contra o clã de piratas das espécies Syhrins-Akhan. Muitos Sacerdotes são assassinados. 418


15 de junho de 1995: Nasce em Nemashi Shylon Helamen, filho do Sacerdote Marishi Arthah Helamen. Agosto de 1995: Zahranianos atacam Nemashi em busca do Livro de Ormoshi, acreditando estar guardado na Biblioteca do Santuário Harashi. Fevereiro de 2013: O Sacerdote Shandara Menahon descobre que a jovem yuranshiana Sofia Scotto encontrou o Livro de Ormoshi em uma livraria de Nova York. Março de 2013: Os Sacerdotes Marishi Helamen, Haron Voorih, Shandara e Yonnah Menahon iniciam o plano de contato com os jovens yuranshianos Gabriel Cameron e Sofia Scotto para resgatarem o Livro de Ormoshi. CRONOLOGIA DE YURANSHA (PLANETA TERRA) +/- 5 bilhões de anos: Próximo ao centro da Galáxia de Yashena um sol passa a alimentar o Sistema de Monvanyah – nosso Sistema Solar –, desenvolvendo um total de 12 planetas, dentre eles o planeta Terra, conhecido no Cosmos como Yuransha. +/- 2 bilhões de anos: O pequeno planeta azul define-se gradualmente possuindo então um décimo de seu tamanho atual. Sua massa restante se completa pela acumulação de meteoros, até 1 bilhão de anos depois. +/- 550 milhões de anos: As águas de Yuransha possuem salinidade essencial para o desenvolvimento da vida. Com base no cloreto de sódio, esse plasma vital se abriga em três regiões diferentes: entre a Europa e África, a Oceania e o Oceano Pacífico, e a Groelândia e as Américas. +/- 500 milhões de anos: A flora marinha primitiva se desenvolve. +/- 400 milhões de anos: A vegetação começa a se desenvolver, adaptandose à atmosfera dominada por carbono, passando a oxigená-la. +/- 250 milhões de anos: Os primeiros peixes se desenvolvem, evoluídos de artrópodes e crustáceos. As árvores, ainda sem folhas, se alastram pela terra absorvendo o dióxido de carbono que intoxicava o ar e limpando a atmosfera para a evolução dos primeiros animais terrestres. +/- 150 milhões de anos: Os primeiros animais terrestres se desenvolvem, surgindo os anfíbios, como a rã, que já se destacam como potencial modelo 419


para a evolução da espécie humana. Em mais de 10 milhões de anos, os répteis alcançaram sua evolução com os dinossauros, que se tornam espécie dominante por 20 milhões de anos. +/- 100 milhões de anos: Os dinossauros são extintos, mas uma pequena espécie carnívora sofre mutação, dando origem aos primeiros mamíferos placentários. Milhões de anos depois a melhoria nas condições da atmosfera leva ao surgimento de uma complexa fauna avícola. +/- 40 milhões de anos: A evolução de mamíferos placentários atinge seu ápice com a adaptação e o surgimento de padrões hoje já conhecidos, como cavalos, rinocerontes, tapires, esquilos e diversos grupos de primatas. Milhões de anos depois os antepassados das baleias, golfinhos e focas se adaptam aos mares, desenvolvendo habilidades motoras e cerebrais maiores do que os mamíferos terrestres. +/- 3 milhões e meio de anos: Surgimento do gênero Australopithecus (africanus, robustus e boisei), primos dos mamíferos pré-humanos. +/- 1 milhão e meio de anos: Surgem os primeiros mamíferos protohumanos, evoluídos de primatas em uma região ao Oeste da Índia. +/- 1 milhão de anos: Nasce o primeiro casal de seres humanos, os verdadeiros antepassados da humanidade. Destacando-se dos demais primatas por desenvolverem um arcaico sistema de linguagem, esta foi a primeira vez em que seres de Yuransha tomaram uma decisão consciente, cumprindo as metas do padrão de evolução, estabelecidas pelos Superiores. +/- 850.000 anos atrás: Surgem os Neandertais. +/- 500.000 anos: Uma comissão de 100 Sacerdotes e Sacerdotisas Harashis é designada pelos Seres Superiores para uma missão em Yuransha. Esses Embaixadores chegam ao planeta pela primeira vez, se estabelecendo em uma região próxima à Mesopotâmia. +/- 250.000 anos: Com a intervenção, Yuransha desenvolve várias cidades, dotadas de escolas, centros administrativos e comércio proeminente. +/- 200.000 anos: Devido ao primeiro conflito iniciado contra os Magos Zahranianos, os Sacerdotes Harashis de Yuransha retornam à Ashunyah. Em menos de 100 mil anos, toda a cultura construída por eles desaparece

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da Terra, assim como suas cidades. A humanidade retorna ao seu estado primitivo, com inúmeras tribos e clãs. +/- 85.000 anos: As tribos e clãs das etnias vermelhas são expulsas da Ásia por seus conterrâneos da etnia amarela, migrando para as Américas. +/- 38.000 anos: Segunda tentativa de desenvolvimento do planeta. Dessa vez, a Ordem atua monitorando dois Embaixadores enviados pelos Seres Superiores, vindos de outros mundos para liderarem a nova missão de colonização. Esse casal ficou conhecido pelas lendas do planeta como Adão e Eva. Por sucessivos problemas, esta missão falha drasticamente. Aumentam os conflitos entre tribos e clãs ao redor do globo. Após alguns milênios, a Ordem se retira do planeta sem autorização dos Superiores. Apenas alguns Sacerdotes acompanham a involução gradual da civilização yuranshiana. +/- 12.000 anos a.C.: A humanidade retorna ao seu estado primitivo. +/- 5000 anos a.C.: Renascimento cultural. Ressurge a escrita. +/- 2.500 anos a.C.: Terceira tentativa de desenvolvimento do planeta. A mando dos Seres Superiores, as Embaixadas da Ordem Harashi são estabelecidas definitivamente nas cidades de Menefeh (Mênfis), no Egito Antigo; Urim (Ur), na Mesopotâmia; Shalem (Jerusalém), na Palestina; e Hastinpuram (região de Uttar Pradesh), na Índia. Novas guerras contra os Zahranianos suspendem as missões em Yuransha novamente. +/- 1200 anos a.C.: A partir de então apenas missões de monitoramento são realizadas no planeta, prosseguindo até o século XXI. 30-476: Ascenção do Cristianismo; Queda do Império Romano do Ocidente. Séculos V-XV: Idade Média; Consolidação do poder da Igreja; Cruzadas. 1453-1789: Idade Moderna; Queda do Império Bizantino; Colonização das Américas;

Reforma

Protestante;

Independência

dos

Estados

Unidos;

Revolução Francesa. 1914-1918: Primeira Guerra Mundial; Revolução Russa de 1917. 1933: Ascensão do Nazismo. 1º de setembro de 1939: Início da Segunda Guerra Mundial. 30 de abril a 07 de maio de 1945: Hitler se suicida no Bunker, em Berlim, enquanto o exército soviético toma a capital; A Alemanha se rende. 02 de setembro de 1945: Término da Segunda Guerra Mundial. 421


06 e 09 de agosto de 1945: Os Estados Unidos lançam as bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente. Após o ataque o Japão se rende oficialmente. 1947: Início da Guerra Fria. 1º de julho de 1947: Um módulo de exploração de Sacerdotes Harashis é abatido pela Força Aérea Americana nos céus acima do deserto de Roswell, estado do Novo México. 07 de julho de 1947: Os destroços são recolhidos, sendo guardados pelas Forças Armadas na base de Fort Worth, que tratam de desmentir o caso. 1° de outubro de 1947: O então presidente dos Estados Unidos Harry S. Truman cria o Majestic-12, um grupo de sete militares e cinco cientistas que teria a missão de investigar os destroços recolhidos do incidente em Roswell. Pesquisando secretamente, os cientistas descobrem que um dos artefatos trata-se de um antigo escrito advindo de uma civilização extraterrestre. No mesmo ano dão início ao complexo trabalho de tradução da obra que batizariam como o “Livro de Ormoshi”, em referência ao Sacerdote Harashi que assina seu último documento. 02 de Novembro de 1952: Conclusão da tradução do Livro de Ormoshi, redação do documento de selamento e assinatura dos cientistas envolvidos, passando a se intitularem como “Os Cinco Guardiões”. 1984: Morre Jerome Hunsaker, o último dos Cinco Guardiões. As quatro cópias impressas do Livro de Ormoshi são confiscadas pelo governo dos Estados Unidos, porém a obra em poder de Hunsaker é entregue a um amigo de confiança. Anos mais tarde ela desaparece misteriosamente. 1989-1991: Queda do Muro de Berlim; Fim da Guerra Fria. 29 de janeiro de 1994: Nasce Sofia Scotto, em Milão. 21 de agosto de 1995: Nasce Gabriel Cameron, em Washington. Fevereiro de 2013: Sofia encontra ao acaso o Livro de Ormoshi em uma livraria de Nova York, e descobre que ele é uma misteriosa tradução feita pelos cinco cientistas do Majestic-12. Março de 2013: Em seu colégio, Gabriel tem uma visão onde o Sacerdote Marishi Helamen se revela e o convoca a ingressar na Ordem Harashi.

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