HARASHI
OS MESTRES DA LUZ
OS CONTOS PERDIDOS DE YURANSHA
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Para Lahid Zavilah, minha av贸, que desde cedo me contou hist贸rias.
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PRIMEIRA DIVISテグ A GUERRA DO VALE DE SIHDIM
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DOCUMENTO SELADOR1 Desde que seus primeiros habitantes despertaram sua consciência, a nossa Ordem estabeleceu o primeiro contato com o planeta Yuransha, terceiro orbe do Sistema Monvanyah2, vinculado à Galáxia de Yashena.3 A exploração e acompanhamento do progresso moral e social daqueles inúmeros povos, incumbida a nós pelos Superiores, nos fez desde cedo ganhar o respeito, admiração e até a adoração religiosa de muitos daqueles homens e mulheres que estavam caminhando em sua jornada evolutiva. Com a unificação das tribos de uma próspera região, ao redor de um rio chamado Iteruh4, a Ordem Harashi instituiu uma de suas Embaixadas naquele próspero reino, para manter contato com os sacerdotes locais, uma vez que faziam parte da sociedade mais avançada deste planeta naqueles tempos. Embora a Embaixada-Sede estivesse nas chamadas terras do Iteruh, estávamos presentes em diversas outras tribos e reinos das redondezas, como os dos Rios Idiglat e Subartum5, os reinos que circundavam o Rio Sinduh6 e de regiões mais afastadas ao oeste como o
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A vocês que não estão acostumados com a linguagem e expressões que utilizarei a partir de agora, peço que tenham paciência em apreciar tais notas explicativas ao final das páginas. Embora tal recurso não exista em meu planeta, esta ferramenta facilitará bastante a transcrição das memórias dos personagens envolvidos na história de nossos mundos. Este Documento Selador diz respeito a um protocolo estabelecido por nossa Ordem. Após escritos, o conjunto de documentos eram formalmente selados pelos seus autores, para que assim não fossem mais alterados, e seu conteúdo, mesmo que passível de erros, não se perdesse, pois, para nós Harashis, todo conhecimento era importante, até mesmo aqueles equivocados. Posteriormente, os escritos eram registrados nos Arquivos da Ordem, para então, serem disponibilizados para o livre acesso por parte dos habitantes de nossa sociedade. Do mesmo modo, tais notas ajudarão a esclarecer-lhes quanto aos termos da época, uma vez que tal narrativa foi escrita há milhares de ciclos.
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Nome do Sistema Solar, em Korah, idioma padrão de nosso mundo.
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Nome pelo qual a Via Láctea é conhecida em nosso mundo.
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Rio Nilo, no atual Egito.
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Rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia.
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Rio Indo, na Índia.
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Reino de Shalem7. Mas, ao contrário do Vale do Iteruh, os reinos presentes em outra região próxima, no chamado Vale de Sihdim, ainda não haviam entrado
em
contato
conosco,
continuando,
pois,
atrasados
no
seu
desenvolvimento social, político, e, sobretudo, moral. A origem do Vale de Sihdim remonta às épocas em que as tribos locais se aglutinaram ao redor de um grande lago, fazendo surgir no meio daquelas montanhas pequenas cidades. Mas com o passar das eras, o comércio com os reinos dos Rios Iteruh, Idiglat e Subartum fez com que diversas famílias da localidade enriquecessem rapidamente, consolidando, posteriormente, seu poder político. Da mesma forma, com o passar do tempo, formou-se um promissor acordo comercial entre as cinco cidades do Vale, unificando-se as moedas para facilitar o comércio com os reinos próximos. A chamada Liga de Sihdim era formada pelas cidades de Sohdom, Amorah, Adamah, Zevohim e Zohar.8 Com o tempo, essas cidades se tornaram muito ricas e prósperas. Mas suas riquezas não lhes eram o bastante. Os clãs da Liga de Sihdim organizaram uma série de campanhas militares na tentativa de invadir os Reinos do Norte, mas foram esmagados pelo potente exército unificado do Vale do Iteruh e do Império Sumério. Como consequência, as cinco cidades passaram a pagar pesados tributos aos Reinos do Norte, que se fortaleceram ainda mais economicamente. Com seus povos subjugados, a paz pôde novamente habitar o Vale de Sihdim, mesmo que a contragosto dos seus habitantes. Após recuperarem a autonomia econômica de suas cidades, as famílias nobres de Sihdim novamente se uniram para reaverem seus bens, apropriados pelos Quatro Reis do Norte. Esse período de trégua foi o tempo necessário para que os exércitos de Sihdim voltassem a se reorganizar, e graças a essa ganância, uma nova guerra eclodiu entre esses povos. O que não esperávamos era que as notícias desse segundo conflito chegassem não somente aos ouvidos da sede da Ordem, o Santuário do
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Atual cidade de Jerusalém, em Israel.
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Sodoma, Gomorra, Admah, Zeboim e Zohar.
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planeta Nemashi, como também em Tevohan, lar da irmandade mais sombria e temida da Galáxia de Yashena: A Ordem Zahran. Desde o início de nossa tutela em Yuransha, os Magos da Ordem Zahran acompanharam silenciosamente nossos estudos e descobertas sobre aquele pequeno orbe. Como algo típico de sua já conhecida natureza egoísta, os Magos Zahranianos passaram a também ansiar o louvável conhecimento que aqueles cientistas e sacerdotes do reino do Faraó e dos Reis do Norte produziam naquela terra árida. Suas técnicas, embora rudimentares, provaram ser muito úteis para descobrirem e utilizar os minérios e cristais existentes naquele mundo, algo que era de grande importância para nossa Ciência. Entretanto, devido às diversas guerras, parte desse conhecimento foi perdido pelos ataques perpetrados pela Liga de Sihdim. Bibliotecas inteiras, cientistas valorosos, e descobertas que nem mesmo nós tínhamos conhecimento foram perdidas pela violência causada pela ganância pelo ouro daqueles atrasados e decadentes reinos de Sihdim. Isso acarretou a ira dos Magos em Tevohan, fazendo-lhes colocar em prática um antigo plano de ocupação de Yuransha, para que eles próprios ditassem o rumo da caminhada evolutiva deste mundo. Obviamente, seus objetivos não seriam tão nobres, e para evitar isso, enviamos quatro Embaixadores para negociar o status de Yuransha com os Magos em um planeta neutro de nosso sistema. Já no planeta, essa segunda e não menos devastadora guerra apenas piorou nossa situação perante Nemashi e Tevohan. Os exércitos de Sihdim haviam novamente sido derrotados em suas próprias terras, e desta vez, os Quatro Reis dos Rios Idiglat e Subartum ameaçavam escravizar aqueles povos para evitar que novamente se levantassem contra eles. Três Embaixadores dos templos de Urim9 entraram em contato secretamente com um dos mais importantes chefes dos clãs do Império Sumério para que fosse ao então Faraó, Zenus-Het – filho do sábio AmenehHat –, propor um acordo que evitasse assim, uma possível escravidão daqueles miseráveis povos. O nome deste nobre homem era Avraham.
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Ur, na Mesopotâmia.
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Por conta de sua riqueza, ele possuía grande influência entre os comerciantes do Vale de Sihdim e os mercadores da cidade de Urim, sua terra natal. Seus interesses naquele conflito também eram pessoais, devido à captura pelos exércitos sumerianos de seu sobrinho sodomita, Loh. Assim, ele firmou um acordo com o Faraó Zenus-Het, para que o soberano apoiasse a libertação dos prisioneiros de Sihdim. Este, por sua vez, facilmente aceitou o acordo, devido à fundamental importância que as cidades do Vale de Sihdim possuíam na economia local: Se ninguém guerreava, todos lucravam, incluindo seu reino. Para garantir o cumprimento deste acordo, dois de nossos Sacerdotes foram designados para acompanharem a libertação e condução dos exércitos derrotados de volta à cidade de Sohdom. A narrativa desses acontecimentos foi registrada pelos dois Embaixadores que acabaram protagonizando um importante episódio na história de Yuransha. Seus nomes eram Levishan Hamalah e Molohay Aryhan, e esta é a história dos últimos dias de Sohdom. Selo Este Registro. Nemashi, 07 de Nilihvan do Ciclo 25.444 – Era Luminosa da Constelação Walah Diyahzen – Sumo Sacerdote da Ordem Harashi
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DOCUMENTO 001 A JORNADA PARA O VALE DE SIHDIM Assim que chegamos ao deserto do Vale de Sihdim, onde se desenrolou a batalha, notamos um funesto clima de destruição. Alguns corpos eram amontoados em pilhas, nas quais, logo percebemos entre elas a presença de jovens garotos e até mesmo crianças. Não havia água, sombra ou até mesmo piedade. Os prisioneiros que não foram executados até então, estavam sob a custódia do inflexível exército formado pelos Quatro Reinos do Norte. Naquele lugar tão desolado só conseguia pensar em nosso retorno à Embaixada-Sede
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após o fim de tal
desoladora missão. No meio daquele caos, notamos uma pequena caravana ao redor daqueles prisioneiros, a única razão pela qual eles ainda continuavam vivos.
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Em Yuransha, a Embaixada-Sede da Ordem se encontrava na histórica cidade de Menefeh, hoje chamada de Mênfis, no Egito Antigo. Mais precisamente, se localizava em um oásis cercado por um complexo de templos egípcios. Lá, em meio às imensas dunas, se assentava a imensa construção, que servia de base para nossas operações. O complexo de templos era ricamente decorado pela arte local, ladeado com suas pinturas tradicionais e imagens de seres alados, que representavam nossa presença naquelas terras. Porém, em seu interior, ele era totalmente diferente. O santuário local era dividido em duas etapas, a parte pública, onde a população e os Sacerdotes tinham livre acesso, e uma grande ala a qual só era permitida a presença de nós Harashis, e de alguns poucos sacerdotes egípcios que estavam sendo treinados nas Ciências Harashis, e que apresentavam todas as condições para algum dia serem levados a Nemashi e ingressarem na Ordem. Obviamente, como em qualquer templo, também tínhamos nosso lugar mais sagrado, a Câmara de Contato. Lá, se encontrava duas verdadeiras joias que trouxemos de Nemashi: O nosso poderoso sistema de comunicação, que tinha ligação direta com a Ordem e todo o sistema de Ashunyah, e nosso módulo de exploração, usado algumas vezes quando necessário, em missões oficiais, ou para visitarmos outras Embaixadas ao redor de Yuransha. Curiosamente, todo o mistério criado ao redor de nossa Ordem, do templo e de nossos “rituais ocultos”, apenas alimentou uma série de lendas sobre a Ordem Harashi, tida como uma “Grande Fraternidade dos Deuses”, que cultivava um conhecimento secreto nas terras egípcias. Posteriormente, aquele modelo de templo e hierarquia seria seguido por várias religiões organizadas e irmandades de Yuransha.
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Caminhando entre homens cobertos por mantos escuros, os soldados dos exércitos do norte, até chegarmos a uma figura desgastada pelo tempo, porém firme em suas palavras e atitudes, que logo nos chamou a atenção. Avraham era seu nome, e logo ele se mostrou um homem bastante sensível, ao conquistar a liberdade dos prisioneiros apenas dialogando com os reis dos Quatro Impérios do Norte que ali se encontravam. Nosso contato com aquele velho homem foi o mais breve possível, uma vez que nossa missão já estava designada pela Ordem. Os três Sacerdotes que o contataram previamente já haviam lhe orientado a confiar seus parentes e cidadãos dos reinos de Sihdim sob nossa custódia. A partir dali, nossa tarefa era leva-los para longe daquele macabro cenário de sangue. Aqueles miseráveis homens deveriam voltar a salvos para suas casas e para suas famílias. As negociações foram breves, e assim que pudemos, nos juntamos às caravanas lideradas por Avraham cruzando o desértico vale até a cidade de Sohdom. Nossa missão estava cumprida, porém, aquilo foi apenas o início de nossa jornada. Ao chegarmos à grandiosa cidade – para tal planeta, e padrões da época –, fomos convidados para nos hospedarmos na casa de Loh por um tempo. Esse período nos foi proveitoso, pois conhecemos a cultura daquela sociedade em que nunca estivemos. Loh foi bastante hospitaleiro conosco, assim como sua família, o que facilitou para que aprendêssemos muito sobre a vida e os costumes naquela cidade. Ao longo das nossas conversas, descobrimos que a corrupção, em seus mais diversos modos, havia dominado o conselho dos reis da Liga de Sihdim. Eles controlavam o comércio ao seu bel prazer em acordo com os interesses dos mercadores da região. Ao contrário do reino do Faraó e dos reinos do Norte, havia um visível e sério problema de desigualdade social naquelas terras, uma vez que a soberba e a ganância haviam se tornado a lei daquele lugar. Os mais pobres sofriam os piores abusos inimagináveis, sendo humilhados pela nobreza local, assim como tinham que mendigar as migalhas dos mais ricos, fosse em comida, fosse em trabalho, onde eram praticamente escravizados por seus senhores. 10
Descobrimos também que o comércio era restrito a algumas poucas famílias, sendo que muitos daqueles habitantes produziam exclusivamente para os nobres, enquanto estes vendiam seus produtos e ficavam com os lucros para si. A miséria era latente naquela sociedade que se erguia à custa dos menos favorecidos. Outra coisa que nos chamou a atenção era a insaciável ganância que aquelas famílias possuíam. Os reinos vizinhos eram invejados pelos povos do Vale de Sihdim, que ambicionavam invadi-los e anexá-los em um poderoso reino unificado. Desde os primeiros tempos daquelas cidades, seus reis sempre buscaram conquistar as terras faraônicas e sumérias para criarem um invencível império. Contudo, sempre fracassaram. Alimentando esse eterno estado beligerante, as cidades da Liga de Sihdim passaram a atrasar o desenvolvimento daquela região, pois almejavam o crescimento de sua sociedade somente através da guerra, da pilhagem, e da violência, ao contrário dos demais reinos, que cresciam em Ciência e em sabedoria. E foi no seio dessa cultura de ódio, que, durante uma saída ao mercado local, eu e Molohay descobrimos um complô acerca de outra guerra que estava por vir.
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DOCUMENTO 002 REVELANDO AS IMUNDICES Dias depois, acompanhamos Loh em sua ida diária ao mercado de Sohdom para comprar frutas. Aquele ritmo frenético da cidade nos chamava a atenção, com toda sorte de artefatos e mercadorias que eram postas à venda. Enquanto observávamos uma das barracas erguidas no meio de uma grande praça da cidade, um dos nobres da localidade veio até nós. - Vocês estrangeiros não sabem que é perigoso andarem a sós pelas ruas da cidade? – Creio que nossos alvos trajes, característicos do reino do Faraó, tenham nos denunciado. – Acabamos de voltar de uma guerra! Vocês não são tão bem vindos aqui nos tempos atuais. O semblante daquele alto homem demonstrava um misto de desprezo e arrogância, nos incitando para que reagíssemos. Porém, continuamos em silêncio, inertes em nossa tradicional serenidade. Era o mais sábio a se fazer naquele momento tão adverso. Sem que esperássemos, Loh veio nos defender, pois sabia que aquele senhor queria nos ultrajar no meio do mercado, senão pior. - Tenha mais respeito pelos Embaixadores. Eles são enviados do meu tio, Avraham. Foi graças a eles que nossos exércitos foram libertados. – Disse o nobre homem. - Pelo que sei, seu tio é da cidade de Urim, do reino que entrou em guerra conosco. E pelo que conheço de seus interesses, ele apenas o protegeu, pois temia que as riquezas da família fossem confiscadas e partilhadas entre os reinos vizinhos. - Meu tio é um homem íntegro. Acima de tudo ele preza pela paz entre nossos reinos. Sentindo que aquela discussão não teria futuro, senão a vil discórdia, resolvi intervir para evitar o pior. - Loh, vamos. Não vale a pena se desgastar com essas pessoas. Pelo visto os teus princípios são muito superiores aos praticados nesta cidade. – 12
Disse-lhe, pondo minha mão sobre seu ombro, para que aquela discussão logo se encerrasse. - Senhor Embaixador, estais por acaso dizendo que nossa cidade não caminha ao lado do que é justo? – O homem nativo interveio, desejando que eu caísse na sua armadilha na frente do povo, que a aquela altura já nos cercava para assistir ao embate entre famílias. Como se as palavras estivessem apenas esperando para serem proferidas, prontamente lhe respondi. - E o que você considera como sendo justo? A justiça não está gravada nos portões e muros dessa cidade, mas na consciência de cada pessoa ao nosso redor. O mesmo pode se dizer da injustiça. Eu não preciso apontar o dedo dizendo o que fizeram, pois vocês podem muito bem dizer que eu estou mentindo. Mas tudo aquilo que cada um de vocês fizeram não pode ser escondido de vocês mesmos. Vocês não precisam de juízes ou de reis, somente de suas consciências para lhes sussurrarem a herança que deixaram para si mesmos. Enquanto proferia aquelas poucas palavras, vi o rosto do velho homem corar com uma violência descontrolada. - Isto é uma blasfêmia! – Ele gritava, tanto com sua boca e com o seu colérico olhar que me direcionava. - E ainda digo mais. – Continuei. – Nenhuma cidade é tão imunda que não tenha pessoas que a façam brilhar diante dos demais reinos. Da mesma forma, aqueles que são corrompidos por seus próprios vícios são os verdadeiros responsáveis pela decadência de seu reino. No fim das contas só resta saber se há mais pessoas que cultivam dentro de si a justiça ao invés da injustiça. Se vocês desejam encontrar essa justiça que tanto buscam, antes de tudo julguem a si mesmos ao invés dos outros. - Ele é um blasfemo! Um invasor de nossa cidade que só deseja semear a discórdia entre nós! – O homem estava perdendo o controle, se sentindo humilhado diante de todos os presentes. - Senhor, é melhor irmos. Eles podem se voltar contra nós. – Loh me apressava para sairmos dali, pois temia a reação do povo. 13
- Não se preocupe. Ninguém nos fará mal, pois todos estão constrangidos pelas minhas palavras. – Disse-lhe, observando a multidão ao nosso redor que conversava freneticamente. Eles estavam espantados com o que havia dito. Eu sabia que naquele momento, cada um deles estava relembrando de seus erros, cada injustiça que haviam cometido. E o semblante de muitos transparecia o arrependimento pelas coisas que haviam feito no passado, assim como outros, o rancor pela memória de seu próprio passado. Enquanto aquele homem continuava a nos acusar, rapidamente saímos do mercado retornando à casa de Loh. Passamos o resto do dia em sua residência conversando sobre os acontecimentos na praça. Ao cair da noite um grupo de homens veio até nós. Eram os líderes das famílias mais íntegras da cidade, e que discordavam das práticas que corrompiam os habitantes de Sohdom. Eles estavam ali para alertar a Loh sobre uma nova campanha militar que os reis de Sihdim estavam planejando. Ao contrário do que pensávamos, a derrota na última batalha não acalmou os ânimos daqueles povos. E o fato de um nobre da cidade de Urim ter libertado os cativos dos Exércitos do Norte significou uma humilhação ainda maior para aquela sociedade tão orgulhosa e corrompida. Já do outro lado, aqueles homens não estavam suportando mais aquela rotina de conflitos, que ceifava a vida dos seus familiares. Toda família em Sohdom havia perdido algum parente nas guerras, e aqueles homens temiam que numa próxima derrota, os reinos inimigos acabassem por convertê-los em escravos. Nós ouvimos suas preocupações e compartilhamos do mesmo sentimento de decepção para com o futuro daquelas cidades. Não enxergávamos a esperança de que um dia aqueles reinos pudessem enfim coexistir em paz. A guerra, a corrupção e a violência estavam no sangue daqueles povos, e nada poderia ser feito para mudar aqueles homens. Somente eles próprios poderiam tirar aquele ódio dos seus corações. Mas infelizmente, sabíamos que aquilo jamais aconteceria. 14
O sentimento daqueles chefes de família era de que não faziam mais parte daquela cidade. Não faziam mais parte daquela terra, pois, por meio dela, estavam perdendo o que lhes era mais precioso: Seus entes queridos. Mas, no meio daquela conversa fomos drasticamente interrompidos, por eles, mas por um chamado distante. Sentimos uma conhecida voz sussurrar em nossas Mentes. Eram os Sacerdotes de Nemashi, e as notícias não eram boas: Um aviso de que os Magos haviam ameaçado atacar as cidades pela destruição de raras bibliotecas de cidades dos reinos do Norte durante seus conflitos com a Liga de Sihdim. Embora o motivo fosse banal, para eles tinha um valor extremamente precioso, pois, assim como nós também estudavam aquele planeta. Porém, para os Zahranianos, o conhecimento está acima da própria vida, e aquele crime cometido pelos exércitos de Sihdim significava uma perda de conhecimento e tecnologia conquistada com muito esforço, tanto por nós como por eles, algo imperdoável para as crenças Zahranianas. Com aquele chamado, tivemos que voltar às pressas para a Embaixada. Combinamos com Loh que dentro de poucos dias voltaríamos à cidade para ajuda-los. Mal sabiam eles que corriam um grande perigo, não por uma guerra que se aproximava, mas por algo bem pior. No dia seguinte fomos levados para fora da cidade por Loh e combinamos o local do nosso reencontro. Após nos despedimos, nos dirigimos ao deserto para imediatamente saltamos11 até a Embaixada e assim não chamarmos a atenção dos moradores locais.
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Para melhor compreenderem a linguagem utilizada nestes antigos relatos dos Sacerdotes de nossa Ordem, em especial, a respeito de nossa técnica de “salto entre os espaços”, sugiro que leiam “A Guerra do Princípio”, o Livro 1 da série “Harashi – Os Mestres da Luz”, e primeiro volume da série traduzida e transcrita por mim, a partir das memórias de personalidades de nossos mundos, que viveram o “meu passado” e o “seu presente”.
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DOCUMENTO 003 O DESTINO DA LIGA DE SIHDIM Chegando à Embaixada da Ordem, logo fomos convocados para uma reunião nos templos de Menefeh. Como já esperado, os torpes sacerdotes do Faraó decidiram que seria realizada uma cerimônia por mais uma vez, nós, os “deuses”, estarem se comunicando com os Superiores de outros mundos. Mas logo dispensamos as tradicionais cerimônias. O clima entre nossos homens não estava bem. Pedimos a compreensão de nossos amigos religiosos, e logo nos trancamos na Câmara de Contato, a sala proibida do templo. Aquela reunião rotineira tinha um aspecto duplo, e inesperado. Nossa intensão inicialmente era repassar nossos relatórios sobre a nossa conversa com os chefes de família e a crise que estava se instalando nas cidades do Vale de Sihdim. Mas a Ordem pôs uma pauta a mais naquele dia. Sabíamos que os Zahranianos não estavam satisfeitos com o atraso provocado pelas cinco cidades de Sihdim, mas o que ocorrera nos últimos dias ultrapassou todo o limite do bom senso, bem como de nossas leis. A Ordem havia enviado um destacamento para negociar com os Magos em Ho’otah, planeta neutro, localizado na Zona Periférica de Ashunyah, nosso sistema, que servia unicamente de Mosteiro de apoio da Ordem Akehran,12 cuja sede ficava no planeta Moronah. Um de seus monges serviria de intermediário para realizar esta Aliança de Conciliação, que embora fosse necessária, não estava nem um pouco nas intensões dos Magos. Subestimamos a tão rápida cortesia dos Zahrarianos em aceitar aquela
reunião.
Porém,
aquilo
era
uma
zombaria
ao
nosso
poder
diplomático. Pior, era uma armadilha bem planejada. Eles, sem um mínimo de compaixão, assassinaram nossos quatro Embaixadores e o monge akehraniano mediador. Ho’otah, como planeta próximo à fronteira da Zona
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Ordem mística de monges contempladores. O Akehranismo era a religião mais popular de nosso sistema e de outros vizinhos.
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Periférica, ficava em uma região fora de nossa jurisdição. Uma vez ocupado, o planeta serviria de base de lançamento dos cruzadores Zahranianos que viajariam até Yuransha. Como os Akehranianos são contra todo tipo de violência, não resistiram à investida Zahraniana, sendo igualmente mortos no Mosteiro de Ho’otah. Isso criou uma profunda crise entre nós e a sede da Ordem Akehran, em Moronah. Como eles, por suas crenças, proíbem qualquer represália, passaram a exigir que a Ordem Harashi tomasse providências junto à Constelação.13 Obviamente, somente nos restava a opção de capturar os Magos responsáveis pela chacina e submetê-los às Leis da Aliança,14 mas o propósito dos Zahranianos era justamente dar este recado: Que não desejavam negociar. E aquela reunião tinha o propósito dar o ultimato de que o planeta seria ocupado e Yuransha seria invadida. A consequência última era que, por conta daquela involução na região, as cidades de Sihdim também seriam destruídas como aviso aos outros povos. Em outras palavras, a Ordem de Zahran declarou guerra em um território além de nossa jurisdição, algo que, segundo nossas Leis, nos obrigaria a uma indesejável intervenção para evitar o pior.15 Nessa reunião,
13
Organização política que administrava a maioria dos planetas do sistema Ashunyah. Sua sede ficava em Nemashi, onde as decisões eram tomadas pelos Embaixadores dos planetas membros em conjunto com a Ordem Harashi.
14
Série de princípios pacifistas que eram considerados como leis universais pelos planetas membros da Constelação.
15
Algumas das Leis da Aliança estabeleciam que os incontáveis planetas e sistemas mapeados e registrados pela Constelação, mas que não faziam parte dela deveriam ser livres para conduzirem sua própria política, proibindo-se qualquer tipo de interferência, a não ser para se evitar um drástico atraso no curso evolutivo desses mundos ou do próprio Universo Local de Navadoh. Dentre os planetas e sistemas abrangidos por este acordo, se encontrava Yuransha, há muito tempo registrado em nossos órgãos de monitoramento cósmico. Qualquer intervenção não autorizada obrigatoriamente levaria a uma operação de nossas forças militares, as quais unicamente eram usadas para proteger as fronteiras da Constelação e os planetas vulneráveis, dentro e fora de nossos sistemas. Obviamente, pela grandiosidade de nosso Universo e complexidade desse modelo de administração,
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os Sumos Sacerdotes argumentaram pontos que não podíamos questionar, embora eu e Molohay ainda buscássemos uma saída pacífica para aquilo. - O fato é que não podemos mover os cruzadores da Constelação a tempo de evitarmos a chegada dos Zahranianos. Muito menos teríamos tempo de convencer os habitantes de Sihdim a desistirem da guerra e saírem de suas cidades. A limitação de suas Mentes é tanta que preferem garantir seus lucros pela guerra a própria sobrevivência.
– Disse uma das Sumas
Sacerdotisas, que nos elucidou ponto a ponto daquela inesperada manobra Zahraniana. - Sim, Likamah, nós temos consciência disso. – Molohay tomou a palavra desde cedo, apresentando nosso ponto de vista sobre a situação em Yuransha. – Mesmo assim, gostaria de liderar a urgente missão de evacuação da cidade de Sohdom, proposta pelo Sacerdote Levishan. Os únicos locais seguros para estas famílias que estão do nosso lado são as terras fronteiriças entre os reinos do Faraó e os Quatro Reinos do Norte. Segundo nossos relatórios, esta região ficaria segura da destruição, e Avraham poderia ajudá-los a se estabelecerem nessas terras. - Mesmo assim ainda temos o problema da vulnerabilidade de outros reinos. Temos Embaixadas em Menefeh, Shalem, Hastinpuram e Urim. Estas regiões estariam protegidas pelos nossos módulos de defesa nas Embaixadas, mas quanto ao resto do planeta não sabemos. Essa invasão pode ser centrada ou dividida entre os territórios. Não estamos preparados para um ataque tão inesperado. – Um dos Sacerdotes interviu. - Eu compreendo. Nossa presença em Menefeh também torna esta cidade vulnerável no caso de algum ataque Zahraniano à Embaixada. – Disse, voltando-me para meu companheiro. - Quanto tempo nós temos? – Perguntou Molohay.
dificilmente conseguiríamos monitorar todos estes orbes, mesmo com a louvável divisão de setores do nosso Universo Local. O resultado disso não seria outro, senão as operações da Ordem Zahran, que nos assombravam pela sua discrição, tanto em sua execução como em seus sombrios objetivos.
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- Apenas algumas horas. Neste momento os Zahranianos já devem estar prontos para partirem. – A imagem do holograma agitou-se, assim como eu e meu companheiro internamente. Era muito pouco tempo para evitarmos o que seria uma catástrofe. Com o passar da reunião o que mais preocupou os Sumos Sacerdotes em Nemashi foi o fato de que as cidades da Liga queriam promover uma nova guerra. Este ciclo de violência jamais cessaria, e aquilo só tendia a aumentar, até que seus reinos se dizimassem por completo. E isto não estava tão longe de acontecer. Uma invasão Zahraniana estava prestes a cobrir a órbita do planeta, porém, estes reis e príncipes só conseguiam enxergar os movimentos dos seus exércitos em campos de batalha. Pelo Mayam’Horun,16 quão atrasados eles ainda eram... Com o desenrolar da reunião, nossa missão tomou um novo rumo. Nossa missão agora era retornar à Sohdom e avisar àquelas famílias sobre a decisão de Nemashi. A partir daquele momento o tempo estava correndo contra eles. Não sabíamos se teríamos como resistir aos Zahranianos, pois dependíamos das nossas tropas. Que elas não chegassem tarde demais, senão o futuro de Yuransha estaria comprometido.
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Do Korah, “O Princípio de Tudo”. Título que damos ao Criador dos Universos.
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DOCUMENTO 004 AQUELES QUE VIERAM DOS CÉUS No fim daquela tarde, saltamos a certa distância de Sohdom. Ao chegarmos aos portões da cidade, Loh nos esperava ansiosamente, sentado à beira de uma grande rocha. - Meus senhores, sejam bem-vindos de volta. A viagem deve ter sido cansativa para vocês. Vamos para minha casa. Os líderes das famílias já estão à nossa espera. – Loh se aproximou de nós com um ar de ansiedade. Parecia não estar muito à vontade ao nos conduzir por dentro da cidade. Logo que cruzamos os portões, percebemos que algo estava errado. As ruas estavam desertas. O comércio não estava lá como de costume. Um fúnebre silêncio tomava conta daquelas vias a não ser por um leve sussurro que ouvimos enquanto caminhávamos pelo rústico chão de terra batida à caminho da casa de Loh. O som de melodias que ecoavam pelo vazio daquele local. - De onde vem esta música? – Molohay perguntou, já imaginando a resposta. - A cidade está festejando. – Loh respondeu. - Festejando o que? – Ele insistiu. - A campanha que Sohdom fará contra os Quatro Reinos do Norte. Os reis da Liga de Sihdim decretaram que os habitantes poderão comemorar esses dias, porque depois partiremos para a guerra. - Não haverá uma próxima guerra. – Molohay respondeu, sucinto. - Como assim meus senhores? - Quando chegarmos à sua casa lhe explicaremos. – Eu intervi, querendo que chegássemos logo à residência de Loh. Durante o trajeto observávamos as inúmeras casas da cidade iluminadas por várias candeias. Em boa parte delas as pessoas estavam dançando e se encharcando de vinho e outras especiarias locais. Aquele clima de alegria era uma ironia das celebrações, uma vez que boa parte daquelas pessoas pereceria na batalha. 20
Mas dessa vez seria diferente. Em breve as cidades do Vale de Sihdim entrariam definitivamente para a história daquele planeta. Ao chegarmos à acolhedora residência, observamos que ao redor, as ruas se encontravam tomadas de pessoas, juntamente os festejos haviam contagiado toda a cidade. O que mais me chamava atenção era que aqueles homens recatados, que antes se orgulhavam de sua nobreza juntamente com sua reputação e títulos, mais aparentavam serem animais em uma selva sem nenhuma lei. Pareciam fora de si, inebriados com o temporário poder que possuíam dentro de uma sociedade que beirava a total degradação. Alegravam-se com o prazer promovido pelas bebidas que alteravam suas consciências e que naquele momento lhes roubava a mais preciosa razão. Ao entrarmos na residência de Loh, deixando para trás aquele primitivismo bestial, avistamos os mesmos homens que estavam presentes na nossa última visita. Assim que chegamos, eles logo se sentaram ao nosso redor, ansiosos para ouvirem o que tínhamos para lhes falar. Mas, antes que eu lhes dirigisse a palavra, notamos uma crescente onda de murmúrio cercar a casa em que estávamos. Eram os mesmos homens que estavam na rua quando chegamos. Não tardou para que eles começassem a jogar pedras na porta, para chamar nossa atenção. Da mesma forma, imediatamente passaram a zombar de todos nós. - Loh, por que você nos priva dessa festa em sua casa? Vem para fora juntar-se a nós! – Um dos homens começou a chamar por Loh para que também participasse daquela tosca comemoração. Alguns deles mal se mantinham de pé, atestando a que nível de desleixo haviam chegado, alguns, se escorando nas paredes das casas ali presentes, outros, derramando aquelas garrafas em cima de si, como se o único banho que tivessem tomado o dia todo tivesse sido daquelas bebidas que escorregavam de suas bocas, manchando suas alvas vestimentas. - Hoje beberemos o mais doce dos vinhos porque amanhã iremos chorar pelo amargo sangue dos nossos filhos! – Outro homem, visivelmente embriagado, gritava no meio da rua para nós. 21
- Trazes também os vossos convidados para que eles também se juntem a nós. Queremos conhecê-los! – No meio da multidão outro homem gritou. Sentindo-se constrangido por aqueles homens, Loh saiu de sua casa, visando tomar satisfação com eles. - Vocês estão loucos? Tenham mais respeito pelos Embaixadores. Eles estão aqui para nos ajudar. Prefiro entregar-lhes minhas filhas a deixar que façam mal a eles. – Loh encarou um dos homens, demonstrando sua ira para com aquele grupo de baderneiros. - Cala-te! Estes estrangeiros mal chegaram à cidade e já querem se tornar juízes do nosso povo! Eles merecem a morte por tamanha ousadia. Mas pior do que eles, só você, que os trouxe para macularem Sohdom... Seu traidor! – O homem que gritava com Loh o empurrou, fazendo-o cambalear para dentro da residência. Como uma onda que engolia tudo pela frente, aqueles homens invadiram a casa querendo agredir Loh. Como eu já estava prevendo aquela situação, prontamente fiquei vigiando, na lateral da porta. E quando aquela turba adentrou, Molohay rapidamente puxou Loh para os fundos da sala, abrindo caminho para mim. Com um único movimento da minha mão, fiz surgir uma poderosa chama que inundou a casa, atingindo aqueles homens em cheio. Eles ficaram atordoados com aquela confusão que eu havia criado em suas Mentes animalescas. Sem saber para onde fugirem, corriam pela rua, temporariamente cegos, procurando algum objeto para se sustentarem. Quando me virei, já acalmada a confusão, os presentes dentro da casa haviam caído de joelhos diante de nós, tamanho o assombro que tomava conta delas. - Quem... Quem são vocês? – Um dos homens ali presente nos perguntou, mal conseguindo falar. Eu fechei a porta atrás de mim sem tocala com a mão, para maior pavor daqueles que estavam na sala. Estávamos tão inquietos quanto eles. - Somos mensageiros de outro mundo. Estamos aqui para ajudá-los. – Molohay interviu, antecipando-se a mim. - Nós viemos até vocês para alertá-los. Amanhã, Sohdom, assim como todas as cidades do Vale de Sihdim serão destruídas. – Enquanto me 22
escutavam, eu observava seus semblantes de dúvida. De arrependimento. De pavor. - Mas por que meus senhores? Nada de mal fizemos... – Loh nos perguntava eufórico, visivelmente assombrado com aquela fatídica notícia. - Vocês nada fizeram, mas boa parte dos habitantes dessa cidade sim. As cidades do Vale de Sihdim se tornaram um obstáculo para o desenvolvimento dos reinos que os circundam. A corrupção se enraizou no coração dos seus governantes, e sabemos que ela jamais terá fim. Desde o início de suas civilizações seus reis construíram este império através da guerra, da ganância e da violência. E isto provocou a ira de Seres que deveriam zelar por este mundo junto conosco. Para eles, é preciso deter seus reinos antes que acabem com o progresso do seu próprio planeta. - Eles quem, meu senhor? Quem são estes que estão irados conosco? – Perguntou um dos homens ali presentes. - Aqueles que estão em outros mundos. Aqueles que vêm dos céus, assim como nós. – Respondi-lhe, apontando para cima. Um sonoro coro de admiração tomou conta da sala. - Os deuses que sempre nos visitaram? – Loh perguntou. - Assim como vocês? – Também perguntou uma mulher, no fundo. - Não! – Exclamei, para assombro dos presentes. – Eles não são deuses. Muito menos nós também somos. Se vocês desejam tanto saber, somos mensageiros dos únicos que verdadeiramente estão acima de tudo, os Seres Superiores. Porém, estes que vos ameaçam, não estão próximos nem aos Seus pés, quanto mais de suas Vontades. Mas acreditem, com ou sem a permissão dos verdadeiros Senhores deste mundo, estes seres sombrios podem transformar essa cidade em um mar de fogo mais rápido do que o piscar de seus olhos. – Respondi, com toda a minha sinceridade, aumentando o pavor daqueles homens e mulheres. - Outros, assim como nós, também visitaram as demais cidades, orientando seus habitantes justos a deixarem-nas o mais rápido possível. – Molohay prosseguiu com nossa missão. - Mas não temos para onde ir. – Um dos homens nos questionou. 23
- Vocês irão para as fronteiras dos Reinos do Norte, lá serão acolhidos por Avraham. – Molohay lhe respondeu. - E quando devemos partir? – Loh me perguntou, ainda em choque. - Desde agora. Nós os acompanharemos para deixarem a cidade em segurança. Vão para as suas casas e arrumem suas coisas. O tempo está correndo e nada podemos fazer para evitar isso. – Eu e Molohay saímos com aqueles homens escoltando-os até suas residências. Com o chegar da noite, vimos a degradação que tomava conta de Sohdom. Espalhados pelas ruas, inúmeros homens e mulheres se escoravam pelas paredes, embriagados por aquela festa repugnante. Nem sabiam eles que àquela hora no dia seguinte não restaria mais ninguém dentro daquela cidade. Passamos a noite ajudando as famílias a se organizarem para a fuga. Aquele êxodo aos poucos começou a tomar forma. Mas apesar de todos os avisos, a família de Loh ainda relutava para não deixar Sohdom.
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DOCUMENTO 005 O ÚLTIMO PÔR DO SOL DE SOHDOM Quando o dia amanheceu, Sohdom estava deserta, como que de ressaca da festa do dia anterior. Enquanto voltávamos para as muralhas, após acompanharmos as últimas famílias para fora da cidade, notamos algo estranho sobre nós. Gradualmente, as nuvens escureceram, formando uma densa camada escura sobre nossas cabeças. Parecia o prenúncio de uma tempestade, mas sabíamos do que se tratava. Por alguns segundos, a consciência do que estava acontecendo nos paralisou no meio daquele deserto. Contemplávamos algo que não devíamos. - Eles estão aqui. – Disse convicto, me dirigindo a Molohay. - Mas por que não atacam? – Perguntou-se, admirando aquela sombra invisível sobre o céu. - Acredite, eles já estão se preparando. Foram mais rápidos e silenciosos do que esperava. - Onde está Nemashi? - Espero que a caminho. – Disse, me sentindo invadir por aquela sensação de impotência. De fato, nada podíamos fazer contra aquele monstro que inundava os céus de Sohdom. Mas logo voltei minha atenção para nossa missão. – Precisamos salvar uma última família, mesmo que não consigamos salvar a nós mesmos. Essa é a nossa missão... – Disse, olhando nos fundos dos olhos trêmulos de Molohay. Pela primeira vez em minha vida vi seu semblante transparecer o medo. E o medo pairava sobre nossas cabeças. Não havia tempo, e naquele mar de dúvidas sobre quanto ainda nos restaria, rapidamente retornamos à casa da família de Loh, uma vez que a sua era a última que ficara. Ao adentrarmos em sua residência, notamos que nada havia sido preparado para a fuga. - Por que não nos obedeceram? Não sabem que temos pouco tempo para deixarmos a cidade? – Eu não estava nem um pouco satisfeito com 25
aquilo, afinal tínhamos nos esforçado para salvar os parentes de Avraham, mas eles sequer tinham separado seus bens. - Eu fui humilhado pelos meus genros. Eles disseram que era loucura minha. Que eu deveria aproveitar os últimos momentos da festa. – Loh me encarou com uma profunda decepção. - Sei que sua família é justa, mas seus genros não são. Eles não compreendem a seriedade de nossa missão e nem estão preocupados em se salvar. Para eles existem coisas mais importantes do que suas próprias vidas. Tolos... - Eu sei, meu senhor. Eu sei... – Sentindo-se abandonado pela sua própria família, Loh começou a chorar copiosamente. - Não temos mais tempo para lamentações, Loh. Arrume as tuas coisas e saia dessa cidade com tua família agora. A destruição de Sohdom é inevitável. Somente quando passarem pela cidade de Zohar vocês estarão seguros. Convencido por mim, Loh apressou sua família para que deixassem o local. No final da manhã nós partimos com ele, sua mulher, e suas duas filhas para fora dos muros de Sohdom. Enquanto nos afastávamos da cidade dávamos orientações de como deveriam proceder. - Quando chegarem a cidade de Zohar, não parem em lugar algum. Não fiquem na cidade, pois ela também será destruída. Ao final do dia vocês alcançarão as montanhas. Atravessem-nas, e só assim estarão protegidos da destruição que assolará os seus reinos. – Minhas instruções eram claras, pois sabíamos o que iria acontecer. - Temo que as montanhas não sejam fortes o suficiente para deter essa destruição que vocês anunciam. – Loh transparecia sua preocupação. - Você acha que se estivéssemos mentindo, faríamos tudo que vocês presenciaram? Vocês merecem ser salvos, pois têm muito que oferecer a este mundo. Já os que ficaram para trás, em nada se esforçaram para tornar seus reinos melhores. – Loh concordou comigo. – Agora vá! Siga seu caminho porque agora não podemos fazer mais nada por vocês. – Após nos despedimos de Loh e sua família, eu e Molohay voltamos nossas costas para tomarmos o caminho de volta à cidade. 26
- Para onde estão indo? – Loh perguntou, apreensivo. - Vamos voltar para o lugar de onde viemos. – Enquanto eu apontava para o céu, Loh compreendia o real sentido da nossa visita. Nós éramos os enviados que vigiavam aquele mundo. Nós zelávamos por todos eles. Tínhamos a missão de cuidar daqueles povos que apenas engatinhavam rumo à evolução espiritual. Ainda aconteceriam muitas outras coisas após aquele último encontro. Mas por enquanto, nosso trabalho havia de fato terminado. Às pressas, projetamos nosso próximo instante dentro do Santuário, retornando para nossa sede em Nemashi, onde iríamos nos reunir com outros membros da Ordem em uma Sessão Extraordinária do Quórum dos Doze. Nem imaginávamos aquela cena em nossas câmaras, mas a paz de nossas meditações e estudos deu lugar a um caos sem precedentes.
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DOCUMENTO 006 OS SACERDOTES DOS TEMPLOS DE TEVOHAN Impossível! Rastreiem os quadrantes novamente! O grito do Sacerdote Shilamaloh ecoou pela sala do Quórum. Apenas três dos doze Sumos Sacerdotes estavam presentes, recebendo dali mesmo as informações que vinham das bases dos Sentinelas dos Quadrantes, os órgãos responsáveis pelo monitoramento de nossas fronteiras na Galáxia de Yashena, que controlavam o tráfego de cruzadores e módulos de navegação. Pelo visto as naves Zahranianas haviam conseguido burlar nossos potentes scanners. Como, não sabíamos, mas o que agora importava era que eles já se encontravam em Yuransha, e nós, estávamos atrasados. - Estão atrasados! – Gritou Shilamaloh, enxergando meu pensamento, em seguida, levando a mão à cabeça. A serenidade do nosso velho amigo velho havia se dissipado. E compreendíamos o porquê. - De fato estamos. Mas conseguimos salvar a família de Loh junto com algumas outras. – Disse-lhe, tentando acalmar o Sacerdote. - Não interessa! Já sabemos da permanência dos nobres de Sihdim. Não é culpa de vocês, mas não consigo conceber tamanha idiotice. Eles escolheram a própria morte e de suas famílias! - Podemos tentar voltar... – Antes que Molohay pudesse intervir, uma voz surgiu detrás dele. - Não podem! Vocês querem morrer também? – A Suma Sacerdotisa Likamah se precipitou sobre nós, igualmente nervosa. – Acabei de receber uma mensagem do quadrante do Sistema de Zolinah. A Sacerdotisa Pavahi acabou de me repassar uma mensagem oficial enviada a nós. - Dos Zahranianos? – Eu e Molohay nos juntamos em um coro inevitável. - E de quem mais seria? – Disse a Sacerdotisa, impaciente. – Pelo Princípio de Tudo, transmitam logo essa gravação. – O Sacerdote avançou sobre a grande mesa branca que circundava o centro da sala, abrindo o canal de comunicação com o Sentinela do sistema Zolinah. 28
Um grande holograma surgiu com a imagem da nossa Embaixada de Zolinah, com outra Sacerdotisa ao centro da sala em que se encontrava que saudou os Sacerdotes de Nemashi. Abrindo a transmissão do arquivo de áudio captado pela Embaixada, aquela voz áspera logo ecoou pelo domo do Quórum, aguçando nossos sentidos. Era Te’eran Pryhmus, o orgulhoso e ousado Arquimago Zahraniano, irmão gêmeo do não menos temido Da’anishal Pryhmus, o Juiz Supremo da Ordem Zahran.17 - (...) Não percam seu precioso tempo, pois ele acabou para Yuransha. O tiro da misericórdia será dado, e vocês nada poderão fazer mais por este planeta. Tirem suas Embaixadas daqui, senão elas também serão destruídas, junto com seus diplomatas. Que os deuses de Yuransha os protejam, porque vocês falharam em sua missão. Saibam, Harashis, o único poder real que existe neste Universo é o conhecimento e a vontade de obtê-lo. E esse poder existe somente dentro de nós. Nós somos os únicos Sacerdotes que podem revelar o verdadeiro conhecimento aos mundos e trazer a evolução que vocês não foram capazes de levar a este planeta miserável. E agora todos pagarão por esta involução que perpetuam pelas eras. Nós somos os verdadeiros Sacerdotes dos Templos de Tevohan... Nós somos os Magos Zahranianos! - Malditos! Isso é muita ousadia. – Disse Molohay. - Não temos tempo... Precisamos embarcar agora! – Gritei com o Sumo Sacerdote Shilamaloh.
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Da’anishal e Te’eran Pryhmus eram filhos de Olavehan e Pandrah Pryhmus, grandes Embaixadores do planeta Kala’ab. A antiga tradição diplomática desse planeta fez com que os gêmeos crescessem em um ambiente e família que respirava o conhecimento. Desde cedo educados nas melhores escolas de diplomacia desse mundo, eles logo desenvolveram uma eficiente capacidade persuasiva. Posteriormente, seduzidos pelas promessas de poder da Ordem Zahraniana, ambos se impuseram a missão de buscarem o conhecimento a todo custo, de modo que corromperam não só a si mesmo, como levaram seus pais para a Ordem Zahran. Posterioremnte, em meio a disputas internas, Da’anishal acabou matando o antigo Juiz da Ordem, Laifah Behgan e assumiu o posto, elegendo Te’eran como seu braço direito. Desde então, ele passou a ser o novo e temido Juiz Supremo da Ordem Zahran.
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- Alguns cruzadores já estão de partida neste momento. Vocês foram escalados para o Lex-S3D. Nossas tropas os esperam nele. A jurisdição dessa missão está designada para a Embaixada em Menefeh. O Quórum já registrou a missão, vão! E que o Princípio de Tudo os proteja... Imediatamente, o painel central da Sala do Quórum abriu o velho canal de comunicação com o Santuário inteiro, fazendo a voz do Sacerdote Shilamaloh ecoar pelos hangares de nossos recintos sagrados. Mas antes disso, já havíamos saltado entre os espaços, surgindo no mesmo instante nos hangares subterrâneos que guardavam nossos cruzadores. - Em nome do Quórum dos Doze, esta é uma mensagem direta de nossa Sessão Extraordinária. Atenção aos esquadrões e capitães dos cruzadores e módulos restantes: Neste momento vocês tem a permissão para partirem imediatamente para Yuransha. Repito: Esquadrões e capitães dos cruzadores e módulos restantes, vocês tem a permissão para partirem para Yuransha...
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DOCUMENTO 007 A LUZ QUE RESPLANDECE NAS TREVAS O sol já estava se pondo quando Loh e sua família alcançaram o sopé da montanha. Olhando ao longo do Vale que tinham acabado de atravessar, a cidade de Zohar parecia um grão de areia no meio daquele descampado. Eles continuavam a subir a montanha, cuja base já começava a ficar distante. Um relâmpago rasgou o céu, iluminando toda a cidade de Zohar e seus arredores, e chamando a atenção de Loh e sua família. - Não parem! Estamos quase chegando às cavernas! – Loh gritava no meio da montanha enquanto um forte vento começava a soprar. O som do trovão ecoou quebrando o fúnebre silêncio do Vale. Não sabiam eles, mas o repentino relâmpago fora ocasionado pelas manobras daquela máquina assombrosa, que naquele momento se posicionava bem ao centro do Vale de Sihdim. - Não parem! Os mensageiros ordenaram que não olhássemos para trás. Temos que continuar caminhando! – As filhas de Loh já alcançavam seu pai, mas a sua mulher havia parado abruptamente. Ela estava aterrorizada com aquela cena. Não sabia o que iria acontecer. Mas seu certeiro pressentimento lhe dizia que aquilo os marcaria para sempre. Bem acima do deserto, além das nuvens que cobriam o Vale de Sihdim, um grande espectro cobria os céus de Sohdom. Em minha Mente, bem como dos outros Sacerdotes, não podíamos ver o que estava acontecendo naquele monstro sombrio, mas sabíamos que a contagem já havia se iniciado, e os caracteres numéricos daquela poderosa arma corriam para seu término mortal. *** Longe dali, eu me revezava com Molohay no controle do cruzador, realizando os obrigatórios protocolos de checagem dos controles e dos sistemas
elétricos
para
o
tão
esperado
“salto”.
Qualquer
falha
e 31
destruiríamos não somente a nós como a um esquadrão de cinquenta Sacerdotes que se dispunham nos painéis de armas nos módulos de ataques, prontos para entrarem em ação quando chegássemos ao nosso destino. Já
havíamos
deixado
Nemashi
há
algum
tempo,
e
já
nos
encontrávamos na zona das rotas de navegação, bem longe de nosso mundo. O primeiro “salto” a esta zona já havia sido feita. Agora nos preparávamos para o segundo e decisivo “salto”: A órbita de Yuransha. Informados os cálculos do motor, pedi a confirmação dos dados da distância a ser percorrida ao comando, para que informasse a Molohay. Estava muito ocupado checando o isolamento magnético do cruzador. Molohay estava por demais concentrado nos cálculos de angulação dos quadrantes de direção, e nada falara desde que chegamos ao cruzador. Mas sua ansiedade era tão grande quanto a minha, senão ainda maior. - Não estamos sendo rápidos o suficiente. - Estou tentando. Não posso ligar os potenciômetros do motor de salto sem fechar o circuito! – Gritei, tentando extravasar meu estresse. - Se nossos sistemas fossem mais rápidos, talvez já estivéssemos lá. - Se o Quórum fosse menos irresponsável, já estaríamos posicionados esperando os Zahranianos. - Você sabe que não podemos interferir em outras regiões que não estabelecemos nossas Embaixadas, mesmo que do próprio planeta. Não são regras do Quórum, são regras dos próprios Superiores... - Danem-se os princípios! Danem-se as leis! São vidas que estão prestes a serem destruídas. Vidas, Molohay! - Calma Levishan... – Disse Molohay, segurando em meu ombro. – Me escute, precisamos abrir a comunicação novamente, parece que estão nos chaman... - Espere... – Disse-lhe, interrompendo a checagem, enquanto um aviso sonoro ecoava pela cabine, entretanto, em minha cabeça, outra coisa retumbava sinistramente. Aquela visão que fui capaz de subitamente acessar não fora intencionada por mim, mas pelos próprios Zahranianos que projetaram-nas em nossas Mentes. 32
- Pelo Princípio... – Molohay concordou comigo, boquiaberto, enquanto visualizávamos os últimos números zerarem a contagem regressiva. Aquela cena inesperada travou todos os nossos movimentos ali, bem como congelou meus pensamentos. A única coisa que consegui assimilar naquele momento fora a voz intercortada de Molohay que lhe escapava como uma súplica. - Supremo Centro dos Universos, protegei-lhes... – Embora nunca mais tivesse praticado suas
antigas
crenças Akehranianas, naquele
momento, a mais íntima inspiração de Molohay se externou pela sua boca. E como um vento que leva as folhas de uma árvore, aqueles dígitos desapareceram diante de nós. Havia chegado a hora. E ela fora rápida demais. *** Do outro lado do Vale, Loh e suas filhas continuavam a escalar a montanha enquanto que sua mulher havia estancado no meio daquela paisagem. Agora algo mais chamava sua atenção, no fundo do vale, para além da cidade de Zohar, uma coluna de luz brotava do céu. Foi apenas um instante, mas aquela luminosidade cresceu de uma forma inenarrável. E o que se seguiu somente poderia ter uma definição. O inferno. A luminosidade rasgou o céu muito mais forte que qualquer relâmpago. Loh e suas filhas estavam apavorados, mas continuavam seguindo seu caminho sem olhar para trás. Entretanto sua mulher que estava de frente para aquela cena, teve seus olhos brutalmente atingidos por aquele intenso clarão, ficando cega no mesmo instante. Embora tenha jurado não olhar para trás, Loh descumpriu as nossas ordens virando-se para sua mulher que gritava em desespero. O que ele viu não afetou seu corpo, mas mexeu com seu íntimo para sempre. Emergindo do chão como uma tempestade de areia, um forte vento varria a cidade de Zohar ao fundo, destruindo-a por completo. Mas a vista daquela montanha revelava a Loh uma visão que nem acompanhando do nosso módulo nós poderíamos imaginar. 33
Uma imensa bola de fogo e enxofre brotou do interior da terra consumindo as cidades do Vale de Sihdim. Neste momento Loh imaginou que seus parentes estavam perecendo naquele lago de fogo. Mas logo acreditou que tudo aquilo acontecera tão rápido que não lhes causara a menor dor. Ele estava certo. A destruição das cidades assim como de seus habitantes foi quase que instantânea. Todos eles praticamente evaporaram no momento em que aquelas labaredas se espalharam pela terra. Não havia sobrado ninguém. As cidades ardiam nas chamas. Todos estavam mortos. Enquanto isso, na montanha, Loh voltou-se para a única pessoa que estava atrás dele. Sua esposa havia perdido a visão com o contato direto com a luz que rasgara os céus. Ela estava caída na montanha tateando a terra sem saber para onde ir, enquanto gritava por sua família. Vendo a mãe agonizando, as filhas de Loh se desesperaram, e logo tentaram descer a montanha, mas seu pai as impediu. Decido a ajudar sua mulher, sozinho, o velho homem iniciou sua descida naquele íngreme e traiçoeiro terreno. Aquela
ousadia
era
ainda
mais
arriscada,
devido
à
explosão
subatômica que transformou imensos blocos de pedra em verdadeiros meteoritos que eram arremessados cada vez mais próximos da montanha. Enquanto Loh chegava ao encontro de sua mulher, um enorme bloco de arenito em chamas voou em sua direção. Ele apenas esperou o impacto. Mas para sua surpresa, o bloco apenas levantou uma imensa onda de poeira, apagando-se nas areias da montanha. Quando a coluna de fumaça baixou, Loh notou que ele havia atingido em cheio sua esposa, para completo desespero de suas filhas. Elas tentaram ir de encontro à sua mãe que agora estava esmagada sob a imensa rocha, mas seu próprio medo as impediu, forçando-as a subir o resto da montanha com seu pai até encontrarem uma caverna onde se abrigaram. *** 34
Levishan?
–
Molohay
me
chamou,
acordando-me
daquele
transe
aterrorizante. As intercortadas lembranças que consegui captar da Mente de Loh e de suas filhas foram tremendas, e mesmo com todo o meu treinamento, não impedi de me abalar por aquilo tudo. Deixei que a frustração tomasse conta de mim, junto com um intenso sentimento de culpa. - Nós falhamos Molohay, nós falhamos... – Disse-lhe, sentindo uma grande confusão se instalando em minha cabeça. - O comando está anunciando... - O que? Que agora milhares de Mentes estão em silêncio? Que acabamos de permitir a matança dos habitantes de cinco cidades inteiras?! – Gritei, agarrando seu traje de piloto. Mas em seu olhar, também pude ver a decepção estampada em sua vívida íris. Seu sentimento era o mesmo que o meu: Revolta, mas ainda assim brotava um estranho misto de esperança. - Eu sei Hamalah, eu também vi. Mas não podemos voltar mais atrás, a única coisa que agora temos pela frente é uma guerra. – Disse meu companheiro,
tentando
me
consolar.
Novamente,
percebendo
minha
distração – Não temos mais tempo Hamalah! O salto foi estimado em 1.891.105.414.164.176 angemômetrons, a partir de nosso atual ponto na Zona Central de Ashunyah.18 – Aqueles dados apenas me fizeram retornar à realidade e a serenamente acionar o controle de voz da cabine. - Nemashi, aqui é o Capitão Hamalah. Motores prontos para acionar o salto e rotas confirmadas. Os dados chegaram à Ponte? – Perguntei, seguindo nosso protocolo de navegação. - Sim. Revisados e confirmados. Salto autorizado, Capitão. – O comando do Santuário havia nos liberado. Sem muita animação, liberei os computadores do cruzador, que por sua vez, acionaram os motores, e o resto que se se sucedeu foi consequência das Leis Naturais de nosso Universo. Em um piscar de olhos, nosso cruzador havia desaparecido do ponto em que estávamos – como tantos outros –, para
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Transformando os angemômetrons em unidades de medição de Yuransha, nós saltamos 4.202.456.475.920.391 quilômetros, ou 444 anos-luz.
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surgir acima da atmosfera de Yuransha. Em breve estarĂamos diante dos temidos Pulsares, os pequenos, mas mortais cruzadores Zahranianos. Uma nova guerra havia se iniciado.
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DOCUMENTO FINAL Este relato detalhado da destruição das cidades do Vale de Sihdim foi fruto da visão que tive acesso, por meio da temporária ligação que estabeleci entre a minha Mente e a de Loh. Muita coisa aconteceu nesse pequeno espaço de tempo, e dados específicos sobre o destino das cidades, só puderam ser registrados posteriormente ao conflito iniciado. As primeiras a serem destruídas foram Sohdom e Amorah, sendo a última delas Zohar. Como consequência das fortes explosões, qualquer vestígio dessas cidades foi apagado da topografia, desaparecendo em meio às rochas. Em compensação, a história dessa hecatombe permaneceu viva na memória de suas testemunhas, sendo repassadas de tempos em tempos pela tradição oral. Mesmo em meio ao conflito, não deixei de monitorar Loh e suas filhas, garantindo que estariam em segurança. Mais tarde descobrimos que devido à morte de sua mãe, as filhas de Loh tiveram relações com seu pai para que garantissem sua descendência. Como fruto dessas relações, nasceram Mohab e Ben-Hami, estes, que deram continuidade à genealogia de Loh. Pouco tempo depois, descendentes do patriarca Avraham compilaram essas narrativas de uma forma bastante rudimentar,19 ocultando diversos episódios ocorridos, incluindo esta batalha, que foi registrada em livros específicos dos Quatro Reinos do Norte, bem como dos povos do Rio Sindhu. Mas para nós, isso jamais será esquecido, pois o que no início era uma simples missão de escolta dos exércitos cativos de Sihdim tornou-se uma verdadeira jornada protagonizada por mim e o Sacerdote Molohay. A guerra foi embora tão rápida como veio, tão instável como a atmosfera política daquele planeta. Talvez um dia eu conte detalhes desse conflito, mas a única coisa que posso dizer é que conseguimos baixas mínimas, devido a uma intervenção praticamente milagrosa de nosso corpo diplomático com um inovador e surpreendente acordo com os quase sempre inflexíveis Zahranianos. 19
Esses fatos foram parcialmente registrados no Livro do Gênesis, capítulos 18 e 19.
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Outra vez nos saímos vitoriosos, conseguimos expulsar os Magos do planeta, mesmo que por um tempo. Mas os verdadeiros conquistadores foram os yuranshianos, alcançando uma paz que trouxe um verdadeiro florescer no desenvolvimento daquele orbe. Esta história atualmente se encontra devidamente registrada em nossos Arquivos. Mas não sabemos se num futuro distante seremos retratados como heróis ou negligentes, mas hoje sabemos que de alguma forma cumprimos com a nossa missão. Mesmo que seja por um breve momento, mais uma vez a paz voltou a habitar entre os povos de Yuransha. Esperamos que os homens sejam capazes de mantê-la, não pela espada, mas pelas suas consciências. Senão, mais uma vez voltaremos a interferir em seu mundo, assim como fizemos tantas outras vezes em seu passado.
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