Daqui pra rua foi um palito Nosso primeiro encontro se deu em abril de 2014. Lembro de termos nos olhado de relance enquanto eu tragava um cigarro nos arredores do Centro Cultural Bento Silvério, também conhecido como Casarão da Lagoa. Era meu primeiro dia como estagiário de jornalismo na Fundação Franklin Cascaes. Diferentemente de outros locais onde trabalhei, senti que ali o clima era mais ameno e que algumas liberdades poderiam ser tomadas sem prejuízo próprio ou para a entidade. Beto já era a terceira pessoa que vinha pedir cigarros em menos de quatro horas na área. - Fala, gente boa! Será que você me consegue um cigarrinho desse? - Claro, brother. Pega aí... - Valeu, maninho. Pensei comigo mesmo que precisaria criar uma estratégia para não ficar no prejuízo. Se cada vez que saísse para fumar, tivesse que ceder um, dois ou até três cigarros, precisaria encontrar um estágio extra apenas para pagar os maços de Marlboro Light que teria de comprar a mais. Decidi, então, que levaria apenas um cigarro quando saísse para fumar, e ele seria meu. Quando resolvi colocar o plano em prática, no entanto, eles pararam de me abordar. Muito recentemente vim a descobrir que estavam me testando, para saber se “o galego era gente boa ou não”. Eu era novo na praça e logo fui identificado como o novo funcionário do Casarão. Os meses se passaram e, quando percebi, já estava muito íntimo do pessoal em situação de rua. Nos dias em que trabalhava pela manhã, pegava dois ou três copos de café e levava para eles, que agradeciam muito. Era inverno e o famoso vento da Lagoa não dava trégua. Quando vinha do sul, eles ficavam do lado direito do Casarão. Quando batia o nordeste, todos corriam para o outro lado, e assim sucessivamente, dia após dia, com ou sem chuva. E as pombas como plateia. Foi em uma dessas incursões matinais que conheci Pernambuco. Sexagenário, o senhor vive na Lagoa há cinco anos. Antes disso, passou por Maceió, Salvador, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Sua vinda para cá foi acidental. Ele pretendia voltar para sua terra natal, Recife, mas não tinha todo o dinheiro da passagem. Pensou que se ficasse um período em Santa Catarina, conseguiria juntar mais um tanto e seguir viagem, o que nunca aconteceu. Ex alcoólatra, seu único vício é a maconha, que consome diariamente há mais de uma década. Sua barba branca e espessa esconde a face de um homem sensível, que acorda todos os dias com um sorriso no rosto, em total comunhão com a natureza. - Está vendo essas florzinhas aqui, filho?
- Sim, é uma pitangueira, né? - Exato. Elas não estavam aqui semana passada. Isso quer dizer que logo logo vai esquentar. A primavera está chegando. O velho ainda falou sobre uma espécie de pato que acabara de chegar na Lagoa. - Eles vem pra cá nessa época, pra se acasalar. Fiquei impressionado com a sua capacidade de observação. Lembrou-me a forma como minha avó percebia que ia chover. Dizia ela que, duas horas antes da primeira gota cair, os pássaros voavam alucinados no céu, todos procurando comida e abrigo. Era a hora de recolher a roupa do varal. Mais tarde soube que a Petrobrás foi a última empresa em que Pernambuco trabalhou. Largou o emprego por causa de uma mulher. Ela não aceitava que ele ficasse muito tempo fora de casa e ameaçou terminar o relacionamento caso ele não procurasse algo mais de acordo com o que planejava para os dois. Tomado por uma paixão cega, Pernambuco decidiu largar tudo para viver junto da mulher, que acabou fugindo com outro homem meses depois. Desde então passou a beber. No começo era wisky, depois vodka e, por fim, cachaça. Quando chegou nesse estágio, sua integridade física já estava bastante abalada, a cirrose já se avizinhava e as dívidas começaram a surgir. Vendeu casa, carro e ficou apenas com a roupa do corpo. Daí para a rua “foi um palito”, como costuma dizer. Macarrão é o mais novo dentre todos e o mais antigo na Lagoa depois de Beto. Com 35 anos, o rapaz tem uma casa no Canto da Lagoa, mas prefere viver na praça. Ele chega a passar semanas sem pegar o barco. “Aqui me sinto vivo”. Sobrevivendo de bicos, tem no artesanato a sua principal fonte de renda. São brincos, colares, pulseiras, anéis... A confecção dos itens é feita de acordo com a demanda. Se as vendas estão boas e as peças diminuem em quantidade, trabalha horas a fio para completar o mostruário de veludo preto. “Os turistas compram pelos olhos”. Sentado em sua velha cadeira de praia, duas coisas estão sempre com ele: um litro de cachaça e algum livro. A primeira ele compra no mercado em frente à praça. Os livros são tomados de empréstimo na pequena biblioteca do Casarão. Prefere ler romances, mas não é raro vê-lo com volumes da Barsa ou mesmo revistas como Veja, Época e Caros Amigos. Alto e muito magro, sofre de uma gagueira terrível. A dificuldade para compreendê-lo é tanta que muitas vezes evito a sua presença. É muito complicado saber que uma pessoa está falando algo coerente, fazendo bom uso da gramática, e mesmo assim você não entender uma vírgula do que o sujeito diz. Nesse tempo de apuração, tive a oportunidade de conhecer pessoas incríveis, com as quais dividi momentos de carinho, respeito e amizade. Beto foi a principal delas. Minha aproximação se deu de forma fria e com um objetivo claro: eu pretendia fazer um documentário chamado “O
outro”. A ideia era demonstrar, através dos depoimentos dos indivíduos em situação de rua e dos moradores e trabalhadores “normais” do bairro, como cada parte percebia a outra. A intenção era confrontar as versões durante a edição de modo a dar a entender a distância que separa essas pessoas. Cheguei a coletar uma série de depoimentos antes de falar com Beto. Nenhum deles, no entanto, me chamou tanto a atenção, seja pela densidade, seja pela história em si. Era uma tarde de quinta-feira. Eu já o conhecia relativamente bem mas nunca paramos para conversar por mais de cinco minutos. Naquele dia, ficamos cerca de duas horas trocando ideias. A gravação, que era para ser curta, se estendeu até não haver mais espaço no cartão de memória. O papo estava bom. Sentados no chão, vez ou outra éramos interrompidos pelos outros homens em situação de rua. Eles se mostravam excitados com a ideia da reportagem, em especial Chapecó, que passava de cinco em cinco minutos para falar “eu já di a entrevista pra ele, tá?”. Na ocasião, Beto contou sobre como foi parar na rua. Para minha surpresa, descobri que foi a partir de uma deliberação consciente e repleta de motivos plausíveis. Natural de Bagé, no Rio Grande do Sul, Beto chegou na Lagoa ainda menino. Veio com a família, em 1974. O pai era mecânico e ensinou a profissão ao filho. Com 24 anos, Beto acabou herdando a mecânica do pai, que falecera vítima de um infarto. O negócio contava com dez funcionários, além de Beto, que era muito requisitado na região. “Eu chegava a atender 20 carros por dia. Tinha gente que vinha do continente para arrumar o carro na 'Mecânica do Beto'”. O ritmo desenfreado de trabalho, que se estendia da manhã à noite, somado às altas taxas de impostos que pagava e à falta de tempo para viver com qualidade, foram os dois principais fatores que influenciaram a decisão de deixar tudo para trás. Em 1997, todos os dez funcionários foram demitidos e outra pessoa assumiu o ponto, que era alugado. Há quinze anos Beto não sabe o que é ter uma casa e um trabalho fixo. Motivo de pavor para a maioria das pessoas, essa circunstância era comemorada por ele: “Eu durmo quando quero dormir, como quando quero comer, e o mais importante – não pago impostos! Por que que eu vou ter uma firma se posso ganhar dinheiro aqui, sentado? Tá certo. Eu não deixo de atender os taxistas. Limpo um banheiro, faço um artesanato ali, mas nada comparado à loucura que era minha vida”. A gargalhada longa e estridente que sucedeu seu comentário foi daquelas de tirar o fôlego. Foram pelo menos quinze segundos ininterruptos de uma alegria que, confesso, é de causar inveja a qualquer um. Nem mesmo a ausência de dentes inibia seu entusiasmo ao falar da própria vida. Antes de se instalar nos arredores do Casarão da Lagoa, Beto conheceu setenta por cento do país, além de Argentina, Paraguai e Uruguai, em cima de uma bicicleta. A “odisséia” de seis anos estava sendo narrada em seus manuscritos, os quais se tornariam um livro chamado “Uma viagem ciclística”, previsto para ser lançado no início de 2015. Ele contava com orgulho que seus textos estavam sendo editados. “Quando o caderno está cheio, eu entrego pra ele e 'tchum' - vai pro
computador”. A pessoa a quem ele se referia e que estava lhe apoiando no projeto é um ex agente da Polícia Federal. Durante nossa conversa, muitos outros homens em situação de rua se aproximaram. Um deles foi apresentado a mim como sendo o “Corredor”. Ele contou, e Beto confirmou, que é um maratonista de mão cheia. “Esse aí sobe e desce o morro da Lagoa todos os dias. O que falta pra ele é patrocínio... e um tênis decente”. Bem recentemente vim a descobrir que o “Corredor” é, na verdade, um traficante da região. De fato, ele faz tudo a pé. Me sinto um tanto idiota quando lembro do dia que levei a ele um par de tênis... Beto era daquelas pessoas que se relacionam bem com todo o tipo de gente, do traficante ao político, da dona de casa à madame, do taxista ao ciclo-ativista. Eu poderia descrever aqui momentos de total indignidade humana vividos por ele, cagado no meio da praça, com vômito até as orelhas e uma dezena de pombas beliscando suas unhas fartas. O sorriso largo e a sua generosidade, no entanto, são as lembranças que vou carregar comigo. Dificilmente vou esquecer do dia em que fui convidado a comer o churrasco que ele, Pernambuco e Macarrão fizeram em uma churrasqueira improvisada em uma das lixeiras de concreto da praça. A carne, que estava fora do prazo de validade, e que fora doada pelo dono do mercado do outro lado da rua, exalava um odor tão gostoso que não pude deixar de provar. Pedi um pedaço bem passado, contrariando meu próprio gosto, que é de boi quase berrando. A alegria dele em poder compartilhar as coisas é algo que jamais vou esquecer. A noção de uma família ampliada e que está sempre de braços abertos. Como futuro jornalista, posso dizer que tive uma experiência, no mínimo, marcante.. Assumi um compromisso para mim mesmo: vou encontrar o detentor dos manuscritos de Beto e faço questão de editar e diagramar “Uma viagem ciclística”. O vazio que carrego comigo se reflete na paisagem que agora cerca o Casarão: Pernambuco está internado. Macarrão voltou para o Canto. O Corredor foi preso. Chapecó sumiu. E o Beto da Lagoa morreu.