Jornal Mural Raíssa

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AS MÁFIAS DO BRASIL Florianópolis, 21 de junho de 2013

Ano 1

Edição 1

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AS MÁFIAS DO BRASIL Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Raíssa Turci Arte: Pelicano Serviços editoriais: Carta Capital, O Estado de S.Paulo, Zero, O Globo e Diário Catarinense Impressão: Gráfica Postmix Junho de 2013

Crime organizado corrompe Estado

P

ercival de Souza utilizou sua experiência como jornalista investigativo para homenagear o amigo Tim Lopes, repórter da TV Globo torturado e morto em 2002 no bairro do Complexo do Alemão por ordem do traficante “Elias Maluco”. Tim Lopes desagradou ao traficante por produzir matérias que denunciavam o narcotráfico na região. Indignado, surpreso e muito abalado, Percival de Souza escreve e publica o livro Narcoditadura – O caso Tim Lopes, crime organizado e jornalismo investigativo no Brasil, (Labortexto Editorial, 272 páginas, R$ 35,00, 2002) no qual investiga e descreve as circunstâncias da morte do amigo, desmascara o funcionamento do crime organizado, critica a impunidade e discorre sobre jornalismo investigativo. O livro é evidentemente escrito com emoção, indignação e ira. Já no primeiro capítulo, a morte de Arcanjo Antônio Lopes do Nascimento, nome de Tim Lopes, é contada com riqueza de detalhes. Ele aparece geralmente como Arcanjo, em um jogo de palavras estabelecido pelo autor. Arcanjo, na Bíblia um mensageiro divino, foi traído pelo “Capeta”, conhecido

como André Capeta, que o reconheceu como jornalista e o levou ao seu algoz, também de nome bíblico, Elias. Em apenas meio ano, Souza apura e escancara o alcance e a eficácia do crime organizado, as incongruências e a corrupção do poder Judiciário, a impunidade no Brasil e as consequências para a sociedade por coexistir com organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que funcionam como verdadeiras máfias alheias ao poder do Estado, corrompendo cidadãos, juízes, advogados, policiais e políticos. No quarto capítulo, o mais interessante do livro, intitulado também de Narcoditadura, o autor relata diversas histórias que comprovam o enorme poder dos traficantes. Nas áreas em que eles dominam entram apenas quem eles permitem, da forma como permitem e quando permitirem. É também nesse capítulo que o repórter reparte a responsabilidade pela morte do amigo com os usuários de cocaína, maconha, êxtase, mesmo que de vez em quando. De maneira bastante incisiva e inteligente, o jornalista relaciona diretamente essas “pequenas compras” ao financiamento do tráfico e à violência. As

Divulgação

Livro denuncia impunidade e prova que grupos de tráfico como o PCC envolvem esferas públicas

Autor escancara o poder do narcotráfico mesmas pessoas que consomem as drogas esporadicamente reclamam da violência e da insegurança que elas próprias ajudam a financiar. Com diversos documentos, uma apuração muito bem realizada e linguagem simples, Percival de Souza esclarece a “di-

Lei vai piorar lotação em prisões

drogas em 2006. Em 2012, esse número chegou a 25,5%, o que representa mais de 130 mil presidiários. O professor de direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, André Mendes, escreveu em análise que a pena para o tráfico já foi aumentada em 2006 e isso não reduziu o crime. “O aumento que se pretende promover agora vai diminuí-lo? Provavelmente não. Mas uma coisa é certa: o número de presos por tráfico irá aumentar e afetar o já combalido sistema penitenciário”, analisou. De acordo com o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Leonardo de Bem, aumentar a pena “evidentemente” não reduz a prática de crimes. “Ninguém que se dedica à vida criminosa teme pelas consequências de sua infração. Um exemplo foi a lei que passou a considerar homicídio como crime hediondo”. O ministro Gilmar Mendes, na abertura da audiência pública sobre o regime prisional do país, em maio, disse que o Brasil possui um sistema penitenciário “à

um tema para outro de forma a interligá-los tão bem que o leitor não sente mudança abrupta e consegue entender toda a rede de funcionamento das organizações criminosas. A obra tem um certo ar pessimista, revelando a cruel realidade da corrupção das instituições que supostamente deveriam proteger a população, os assassinatos de agentes e delegados que tentaram reduzir o crime organizado e outras barbáries cometidas pelos criminosos. Considero a leitura indispensável aos jornalistas e estudantes com vontade de produzir matérias que vão além da apuração rápida e confortável. Através dos casos que conta, Souza incentiva os jornalistas a batalharem por um jornalismo que repercuta de forma positiva para a sociedade e a não se intimidarem com ameaças e casos como o do Tim Lopes. O escritor provou que a morte de Tim Lopes não foi em vão. O texto faz com que o caso inspire profissionais a contarem histórias sobre as mazelas sociais e a desbravarem casos de corrupção, criminalidade e injustiça, para que a população esteja cada vez mais consciente da sociedade em que vive e possa mudá-la.

Tim Lopes não foi o único Arte: Pelicano - site Movimento das Artes

A Câmara dos Deputados aprovou, em 28 de maio, o aumento da pena mínima de cinco para oito anos para traficantes que fazem parte de organização criminosa – definida como um grupo de quatro ou mais pessoas com o objetivo de obter quaisquer vantagens pela prática do crime. A punição máxima continua em 15 anos. Com a aplicação da medida, os condenados não poderão mais começar a cumprir a pena em regime aberto. Caso o Senado e a presidente aprovem o projeto, a lei colocará ainda mais pessoas no sistema carcerário brasileiro, que já possui um déficit de mais de 237 mil vagas. Um dos pontos mais polêmicos do projeto é a falta de definição clara para traficante, o que pode fazer com que usuários sejam enquadrados nessa categoria. A redução da pena para o traficante “de menor potencial ofensivo” – preso primário, detido com pequena quantidade de droga – está garantida no projeto, mas não há definição da quantidade que caracteriza esse tipo de traficante. “É uma medida que vai gerar confusão. Pode haver quatro pessoas fumando maconha e acharem que são traficantes. E vai o usuário cumprir pena maior que um homicida”, disse o deputado Paulo Teixeira (PT - SP). O autor do projeto, Osmar Terra, disse que “todo traficante, pequeno ou grande, tem que ser preso”. Para especialistas, o projeto não é eficaz para combater o tráfico e levará ao aumento da superlotação nas penitenciárias. O sistema prisional do Brasil tem 310,6 mil vagas e já abriga 548 mil presos. O país possui a quarta maior população carcerária do mundo e teve o terceiro maior aumento mundial no número de detentos em 2012. A quantidade de presos por tráfico aumentou quase três vezes nos últimos cinco anos e o crime é responsável pela prisão de um em cada quatro condenados. De acordo com dados do Ministério da Justiça, 14,7% do total de detentos foram presos por tráfico de

tadura” imposta pelos traficantes. O livro é bastante intrigante e faz com que o leitor fique ansioso por descobrir as entranhas do crime organizado. Por vezes, o relato torna-se extremamente emocional, por se tratar da história do assassinato brutal de um amigo também jornalista, o que acaba quebrando o ritmo da narrativa e, em certos momentos, constrói uma visão aparentemente maniqueísta da sociedade. O livro aborda também o jornalismo investigativo no Brasil, atividade que o autor considera cada vez mais escassa. “São poucos esses seres (repórteres investigativos). São raros. E se ficarem atemorizados com o fim do Arcanjo Tim, brevemente serão os últimos exemplares de uma espécie em extinção”, escreve. Souza alerta para a importância do papel da imprensa nas denúncias de crimes de tráfico e corrupção. Além disso, o escritor realiza reflexões sobre o trabalho dos repórteres investigativos e compartilha dicas para quem quer seguir essa área. Narcoditadura ainda trata dos casos de tráfico nas fronteiras do país e conta casos de jornalistas que correram graves riscos para reportar essas histórias. O livro é bastante abrangente a o autor muda de

beira do colapso”, no qual “mais de 500 mil presos estão amontoados em prisões superlotadas e em precárias condições”. Alguns estudos indicam que o índice de reincidência criminal no Brasil seja de 70% – não é um dado oficial, pois o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ainda não terminou o cálculo dessa taxa, iniciado em 2012 –, o que indica que o sistema penitenciário pode não recuperar sete em cada dez detentos. O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Marivaldo Cássio Pereira, durante comissão do Senado para analisar a reforma do Código Penal, em junho desse ano, informou que cada vaga prisional custa R$ 40 mil para ser criada e cada preso consome entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil por mês. “Um custo excessivamente alto para a sociedade, que tem como resultado, muitas vezes, a transformação de um cidadão que talvez não fosse tão violento em uma pessoa muito pior. Ou seja, a sociedade está custeando um sistema que, em vez de protegê-la, acaba transformando pessoas em seres humanos piores”, disse Pereira.

O Brasil foi o quarto país onde mais profissionais da imprensa foram assassinados em 2012, com onze jornalistas mortos em apenas um ano, o maior número já contabilizado. A situação brasileira foi pior que a do Afeganistão, Iraque e Gaza, por exemplo, que somados chegam a oito vítimas. Nos primeiros lugares estão Síria, Somália e México. Em 2013, o país já está em terceiro lugar, com quatro jornalistas assassinados até abril. Os dados foram divulgados pela Campanha Emblema para a Imprensa, organização com sede em Genebra que defende a criação de regras internacionais para proteger jornalistas. Desde 2008, 22 jornalistas foram mortos em território nacional – metade desse número em apenas em 2012. No levantamento do Comitê para Proteção dos Jornalistas (CPJ) sobre onde há mais impunidade nos crimes contra repórteres, o Brasil ficou em décimo lugar, com nove casos de morte sem solução. O ranking foi elaborado com os assassinatos sem condenação entre 2003 e 2012. Apenas os 12 países onde ocorreram mais de cinco crimes foram considerados. O presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, disse que a segurança oferecida pelas empresas aos jornalistas “não é suficiente, nem eficiente e, em grande parte dos casos, nem existe”. A presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro, Suzana Blass, disse que o assassinato do jornalista Tim Lopes provocou a primeira discussão sobre segurança dos repórteres desde a ditadura militar. As empresas de comunicação cariocas passaram a fornecer colete à prova de balas e treinamentos para casos de risco. No entanto, essas medidas foram abandonadas e já se mostraram insuficientes, segundo Suzana. “Após a morte do cinegrafista da Band (Gelson Domingos, atingido por uma bala de fuzil em um tiroteio entre criminosos e policias enquanto cobria uma operação do BOPE, com colete à prova de balas, em novembro de 2011) constatou-se que os coletes utilizados hoje pela imprensa não são capazes de aguentar o grosso calibre das armas dos bandidos. Viu-se também que muitos jornalistas saem da redação com coletes menores ou maiores que o seu tamanho”, explicou a sindicalista. A Fenaj faz anualmente um relatório nacional da violência contra jornalistas profissionais – que inclui assassinatos, agressões físicas e verbais e ameaças. Outras ações da federação, segundo o presidente Schröder e a vice, Maria José Braga, são a criação de um Grupo de Trabalho com a Secretaria de Direitos Humanos, o apoio ao projeto de federalização da investigação de crimes contra jornalistas, a proposição às empresas de um protocolo nacional de segurança e a denúncia pública de casos de violência contra profissionais do ramo. Uma das diretoras da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Luciana Kraemer, disse que a associação monitora e divulga os casos em que a morte é decorrente da profissão, integra o Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil e procura melhorar o monitoramento da violência contra repórteres para criar medidas de proteção. De acordo com Schröder a intenção de quem mata jornalistas é a de “matar o mensageiro para impedir a circulação da mensagem. A tentativa (das ameaças) é de enfraquecer a profissão e desacreditar o jornalismo. Por isto, reagir não só é uma necessidade corporativa, mas uma obrigação cidadã”.

“Os presídios se transformaram em escritórios do crime. Eles têm hierarquia, tribunais, punições. É uma estrutura tipo Cosa nostra italiana” Percival de Souza


AS MÁFIAS DO BRASIL Raíssa Turci

Florianópolis, 21 de junho de 2013

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AS MÁFIAS DO BRASIL Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Raíssa Turci Arte: Pelicano Serviços editoriais: Carta Capital, O Estado de S.Paulo, Zero, O Globo e Diário Catarinense Impressão: Gráfica Postmix Junho de 2013

Fotógrafo torturado por milícia desmascara a realidade das favelas

N Policial invade principal ponto de tráfico no morro do Horácio, Florianópolis

Facção de crime ataca SC

Cristiano Estrela - Agência RBS

Mais de 25 ônibus foram queimados e houve 31 ataques com disparos de armas de fogo a bases da polícia civil e militar em 16 cidades de Santa Catarina, em novembro de 2012. Ao final de janeiro do ano seguinte, em uma nova e maior onda de atentados, houve mais 111 ataques em 36 municípios do estado. Carros e ônibus foram incendiados, coquetéis molotov atirados e tiros disparados contra prédios públicos e bases policiais. A investigação da Polícia Civil apontou a organização criminosa conhecida como PGC (Primeiro Grupo Catarinense) como autora dos atentados. A Polícia Civil estima que haja 2 mil integrantes do PGC reclusos no estado – de uma população carcerária de 15 mil – e mais 2 mil fora do sistema prisional. Os líderes da facção ordenavam os ataques por meio de mensagens via celular, enviadas de aparelhos de dentro e de fora das cadeias. Estima-se que na Penitenciária de São Pedro de Alcântara, onde surgiu a organização criminosa em 2003, cerca de 800 dos 1.200 detentos façam parte do PGC. O PGC exerce liderança sobre os membros dentro do sistema prisional e também sobre criminosos em liberdade. De acordo com as investigações, o grupo possui dois ministérios – chamados de primeiro e segundo, com integrantes em diferentes prisões que tomam as principais decisões do grupo, como matar aliados e inimigos. Esses estão entre os mais de 100 indiciados pelos atentados. A organização possui também um conselho vitalício, que passa as ordens de dentro da cadeia para os “sintonias”. Eles recebem as mensagens dos líderes e repassam aos “disciplinas gerais”, responsáveis por armas, drogas, cumprimento de punições, organização e cadastro dos integrantes. Esses, por sua vez, dissipam as mensagens aos “batizados”, como são chamados os demais integrantes da facção criminosa. A organização tem inclusive um estatuto que explica as regras do grupo e uma cartilha para instruir os adolescentes sobre suas funções e como ascender no grupo – vender drogas e praticar atentados contra agentes de segurança pública. Durante as duas ondas de ataques, a polícia fez cerca de 20 apreensões de suspeitos com menos de 18 anos. Como em outras organizações de crime organizado, do PGC participam também advogados. Eles fazem o intermédio entre os presos e os integrantes livres, entregam cartas com as ordens dos ministérios, recados e cartões micro SD, que cabem na costura das roupas e são utilizados pelos presos para gravar e enviar vídeos. Alguns advogados recebem ligações diretas de detentos via celulares, de acordo com os processos judiciais. O Ministério Público (MP) de SC compara a facção com as máfias: compartilham e delegam atividades e se aliam em ações criminosas. O PGC mantém-se através do tráfico de drogas e armas, assaltos, resgate de presos, roubos, prostituição e execução de policiais e dos que atrapalham o funcionamento do grupo. A facção financia criminosos para praticarem delitos, fornecendo o armamento e os materiais necessários. Então, o infrator repassa de 10% a 30% do lucro de sua ação ao PGC. O dinheiro vai para o caixa geral da quadrilha e é investido em drogas, armas, pagamento de advogados, ajuda a familiares de presidiários e ao financiamento de atentados. Para que todo o esquema funcione, uma contribuição de R$ 100 por mês é cobrada dos integrantes, com juros de R$ 2,50 ao dia. De acordo com participantes do grupo, os atentados aconteceram em represália a maus tratos provocados pelos agentes do Departamento de Administração Prisional (Deap). Cada série de ataques ocorreu junto com a divulgação de vídeos filmados pelos presos para comprovar os maus tratos. O MP denunciou 21 agentes penitenciários pelo crime de tortura contra detentos na Penitenciária de São Pedro de Alcântara – 16 por tortura e cinco por omissão. Segundo a instituição, as principais provas são lesões no corpo dos presos, muitos com marcas de tiros de bala de borracha. O diretor do Deap, Leandro Lima, está entre os denunciados e ainda permanece no cargo.

PGC provocu mais de 165 atentados em duas ondas de ataques que atinigiram mais de 30 cidades

ilton Claudino tem medo de polícia, não tem endereço fixo, raramente sai na rua e anda disfarçado. Ele não é criminoso. É um fotojornalista. Ganhou menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog com a foto Na Mira da Lei, que retratou uma manifestação no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em 2001. Apaixonado por fotografia e jornalismo investigativo, ele teve que parar. Claudino, uma repórter e um motorista do jornal O Dia foram descobertos enquanto investigavam uma milícia na favela do Batan, no Rio de Janeiro, para uma reportagem especial. Os milicianos os torturaram e ameaçaram por sete horas e meia. Os três passaram a viver escondidos. A história da equipe era conhecida, mas não se sabia quem eram até 2011, quando o fotojornalista escreveu um depoimento para a revista Piauí no qconta detalhes do que aconteceu. Ele é o único dos três que revelou sua identidade. As máfias do Brasil - O senhor já fez várias matérias investigativas de risco. O que te movia a fazer essas pautas? Nilton Claudino - O que me movia é amar a profissão. Como eu sempre amei o que fazia, me dediquei ao máximo. Fui muito pauteiro, dava altas pautas para o jornal. Lembro quando, pela primeira vez no Rio de Janeiro, foi uma equipe de PMs mulheres para a rua. A pauta era fotografar as meninas e “um abraço”. Chegando lá, me deparei com mulheres lindas. Voltei para a redação e falei para o editor de cultura da época, o Joaquim Ferreira dos Santos “olha, tenho uma puta pauta: as gostosonas da PM. Esse é o título. Pois eu vou botar essas mulheres de biquíni”. E ele me respondeu “essa eu quero ver!”. Imagina, botar policial de biquíni! Fui conversar com o comandante e falei que ia fotografá-las na praia, com o visual do Rio de Janeiro e tal. Ele disse que me ajudaria, mas foi meio na inocência, sabe? O comandante chamava a mulher dentro do gabinete e só no andar dela eu já ia escolhendo. Escolhi seis ou sete mulheres. Dia seguinte, busquei cada uma e levei para a praia. Botei as mulheres de biquíni. E saiu no jornal no domingo. Segunda-feira, o comandante foi demitido. O Leonel de Moura Brizola (governador do Rio de Janeiro na época), que era um cara de bom gosto, adorou a matéria, me defendeu. O velho era danado. Aí foi o maior sucesso, a Playboy fez convite para duas delas, o Fantástico comprou as fotos e colocou todas as mulheres no programa. Nossa, foi um sucesso. Então, as pautas nasciam na rua. Por isso repórter não pode ficar no gabinete, tem que ir para a rua. A.M.D.B. – No que diz respeito à reportagem sobre a milícia no Rio de Janeiro para o jornal O Dia, que acabou causando todo o transtorno, o senhor acha que valeu a pena? N.C. – Valeu. Valeu, cara. Eu faria de novo. O que se pode dizer que perdi foi o convívio com meus filhos, separei da mãe deles, meu neto só vi uma vez. Tudo na vida tem seu preço, né? Talvez tenha sido esse o meu preço. Agora, vou ao psiquiatra uma vez por semana, tomo quatro remédios. No mais, aprendi muita coisa. Numa avaliação geral, acho que quem ganhou mesmo foi o Rio de Janeiro e quem mora em comunidades. As Polícias Pacificadoras passaram a existir a partir daí. Foi implantada nessa comunidade uma Unidade de Polícia Pacificadora. Agora, mais Unidades foram implantadas nas gran-

des comunidades do Rio de Janeiro, como o Complexo do Alemão. Na época em que o Tim Lopes foi assassinado, prometeram montar batalhão lá, acabar com o tráfico, e nada foi feito. As pessoas não tinham cidadania. Hoje, muitos dessa comunidade têm certidão de nascimento e identidade. Tem gente da comunidade, com mais de 80 anos, dizendo que hoje eles vivem em uma maravilha. Quem ganhou foram essas pessoas que passaram a ser reconhecidas como gente. Talvez se não tivesse acontecido essa história de nós três sermos torturados, a vida teria continuado a mesma lá. A presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro na época me disse que um dia eu iria ver o quanto fiz por aquelas pessoas. Hoje eu vejo. Elas votavam só no candidato da milícia e passaram a votar no candidato delas porque o exército entrou na favela. Foram grandes benefícios. Agora, alguém tinha que pagar por isso. E quem pagou fui eu. Hoje não trabalho, não posso usar meu nome. Mas que legal que alguém aproveitou e está aproveitando isso. A.M.D.B. – Pela sua experiência, quem o senhor acha que tinha mais poder na favela, os policiais ou os traficantes? N.C. – São poderes diferentes. O traficante faz, às vezes, o papel de “bom moço”, Robin Hood. E, ao mesmo tempo, para as mesmas pessoas que ajuda, faz também o papel do diabo, quando executa alguém da família daquela pessoa, por exemplo. Mas tudo com motivos. O tráfico executa se o cara for caguete, estuprador, esses não têm vez. Eles também dão dinheiro para as pessoas comprarem remédios, gás, comida. Isso eu já vi várias vezes. Uma vez eu estava entrevistando o “Bem-te-vi”, um traficante da Rocinha. Ele, com camisa do Ronaldinho e tênis Nike, cercado por mais de 50 soldados fortemente armados, com uma pistola cromada de ouro. Em um bolso tinha notas de R$ 10, no outro de R$ 20, no outro de R$ 50, no outro de R$ 100. Dependendo da necessidade, tirava o dinheiro do bolso e dava para a pessoa. Agora, com a milícia a história é completamente diferente. Você é obrigado a comprar o gás deles e a pagar uma taxa de segurança que depende do número de pessoas nas casas, tem até uma tabela. Você fica completamente refém deles. Tem que pagar tudo para a milícia. Você paga até para morrer. A.M.D.B. – O senhor escreveu em depoimento publicado na revista Piauí que a milícia impunha castigos e surras públicas aos usuários de drogas. Como aconteciam essas situações? N.C. – Impunha castigos mesmo. Se você fumar maconha ou usar droga na comunidade, eles te colocam para capinar, varrer, construir, principalmente se estiverem reformando a casa deles. A milícia jogava uma tinta branca no maconheiro. Às vezes, eles deixavam o cara sentado o dia inteiro no sol em cima de tijolos e areia. Os piores castigos eram para quem usava drogas. Só vivendo em uma comunidade de milícia para entender o pavor, o medo que era. Eu mesmo, que cheguei lá já conhecendo algumas pessoas, tinha medo de olhar para eles. Tinha pavor, não era medo não, era pavor. O policial que era conhecido como “01” andava com um caibro e metia porrada nos caras com aquilo. A.M.D.B. – O senhor escreveu que o policial “01” disse que tem informantes em vários jornais e emissoras de televisão. O senhor acha possível? N.C. – Eu acredito. Porque já vi no jornalis-

Nilton Claudino

Jornalista revela que população local vivia refém dos policiais

Claudino fotografou o cotidiano dos morros mo que as pessoas se tornam muito amigas de policiais. Saem para beber com o policial, com a fonte. Porra, o que é isso? Todo jornalista tem que ter fonte, mas intimidade é foda. Conheço vários repórteres no Rio de Janeiro que têm essa intimidade com a polícia. Não acho difícil que jornalista queira agradar (aos policiais). Só venha a nós, e vosso reino nada? Não que tenham contado para o “01”, mas podem ter contado para um policial que é amigo de outro policial, que contou para alguém que é da milícia. Nem todo policial sabe que o outro é miliciano. Tem uns que fazem na encolha e outros que fazem escancarando mesmo, não estão nem aí. A.M.D.B. – Com tudo o que aconteceu nessa reportagem das milícias, o que mais te impressionou? N.C. – O que mais me impressionou foi que o mundo é cruel e nós fazemos parte dele. São tantas barbaridades, cara. Eu ainda que fui contar, imagina quem não vai? Imagina se um cara não está sendo picotado, cortado, agora. Tudo isso impressiona. Os diretos não são iguais mesmo. O direito do asfalto é um, o da favela é outro. Isso não vai mudar nunca. Quem fala que mudou é mentiroso. Eles são excluídos mesmo. Pode ter mais denúncias agora, com celular que filma e tal. Mas quantos filmes não deixaram de ser feitos porque o cara não tem coragem, porque se fizesse ia perder a família, ia ter que sair da favela? E o governo não dá apoio porra nenhuma. Proteção de testemunha é mentira. Isso me impressiona porque nunca mudou nem vai mudar. Vai ao Morro da Cruz aí ver se não estão acontecendo barbaridades agora. E aí, quem vai denunciar? Só se for alguém da imprensa, né? A.M.D.B. – No que o senhor pensou no momento em que foi descoberto pelos milicianos? N.C. – Eu pensei “estamos mortos”. Tinha certeza que nós não íamos sobreviver e não ia nem ter corpo para enterrar. Primeiro eles fazem o cara sofrer bastante, depois colocam no “micro-ondas” e enterram. Passamos por cinco tribunais lá dentro. Os quatro primeiros julgaram morte. No quinto veio o cara que definiu que a gente não ia morrer. Entre os quatro julgamentos, tiveram muitas coisas horrorosas. Tiraram o motorista de perto de mim e eu só ouvia gritos dele e que os policiais estavam atirando. Mas os tiros não eram nele, fazia parte da tortura. Eu imaginava que o cara estava morto e eu seria o próximo. Os policiais tinham um site que mostrava que eles cortavam a cabeça, cortavam o corpo do cara. A gente não sabia disso quando foi fazer a matéria, acessamos esse site nos últimos dias. Acho que se tivéssemos descoberto nos primeiros dias, ia bater aquele medo. Talvez tivéssemos até desistido da matéria.

“Só vivendo em uma comunidade de milícia para entender o pavor que era”

“O direito do asfalto é um, o da favela é outro. Isso não vai mudar nunca. Quem fala que mudou é mentiroso. Eles são excluídos mesmo” Nilton Claudino


AS MÁFIAS DO BRASIL Florianópolis, 21 de junho de 2013

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AS MÁFIAS DO BRASIL Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Raíssa Turci Arte: Pelicano Serviços editoriais: Carta Capital, O Estado de S.Paulo, Zero, O Globo e Diário Catarinense Impressão: Gráfica Postmix Junho de 2013

Criminalista critica falência do sistema

E

le tem mais de 40 anos de jornalismo, grande parte deles dedicados à area investigativa policial. Já publicou 16 livros, ganhou quatro prêmios Esso de Reportagem e uma Menção Honrosa do Prêmio Vladimir Herzog, em 2003, na categoria “Livro de Reportagem”, por Narcoditadura. Percival de Souza é também especialista em segurança e criminologia. Atualmente, trabalha na Rede Record. Inquieto, “Perci”, como é conhecido pelos amigos, aos 70 anos, quer escrever ainda mais. As máfias do Brasil - O senhor acha que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são medidas eficazes para combater o tráfico? Percival de Souza – Sim. A criação das UPPs representou um primeiro grande passo no Rio de Janeiro para devolver ao Estado o que era uma espécie de propriedade exclusiva dos traficantes. Pela primeira vez tivemos uma ação precedida de ocupações sistemáticas, com ajuda das Forças Armadas, principalmente Exército e Marinha, além da Polícia Federal, unindo as forças do Estado, Polícia Civil e Militar, para numa segunda etapa serem implantadas as UPPs. Isso tem um sentido estratégico de mostrar aos moradores que o Estado está presente, que eles têm a quem recorrer, que os bandidos não podem mais dar ordens lá, que os moradores não precisam mais viver sob intimidação permanente. Nesse sentido, há eficácia. Mas ainda é um projeto em andamento, ainda há muita coisa a ser feita, ainda há muito território a ser conquistado. Até porque os bandidos, principalmente os traficantes, não abandonaram por inteiro a ocupação dos morros. Eles continuam disputando à bala os pontos que consideram essenciais para o tráfico. A.M.D.B. – Por diversas vezes policiais foram acusados de torturar criminosos. O senhor acha que essas torturas contribuem para a cooptação de pessoas pelo crime organizado? P.S. – O crime organizado tem um domínio impressionante sobre um grande número de estabelecimentos penais em todo o país. A população carcerária no Brasil chegou a cerca de 500 mil prisioneiros. É muita gente. Diante da ausência do Estado e da falência do sistema, que é lento e não cumpre seu papel de reintegrar, as facções criminosas se estruturaram dentro dos estabelecimentos penais, principalmente o Primeiro Comando da Capital (PCC), que nasceu em São Paulo e se espalhou por vários estados, como Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e também Santa Catarina. Esses grupos são muito bem estruturados, contatam-se com presídios de vários pontos do país. De alguma maneira, eles se inter-relacionam mais que as forças policiais. Para enfrentar essa situação, não há alternativa senão a de montar um sistema de fato digno de ser chamado de inteligência, de caráter interestadual, que se comunique e tome providências. A nível nacional, quem faz isso com eficácia é basicamente a Polícia Federal, que planeja operações, às vezes simultâneas, em vários pontos do país. Saber o que se passa dentro dos presídios é uma necessidade crônica brasileira. Alguns presídios se transformaram em verdadeiros escritórios do crime. Eles (grupos de crime organizado) têm hierarquia, tribunais, expedições punitivas. É uma estrutura tipo Cosa nostra italiana.

A.M.D.B. – Articulações complexas como essas de crime organizado pressupõem necessariamente o envolvimento dos poderes Legislativo e Judiciário? P.S. – Não tenho dúvida nenhuma de que o crime organizado só pode nascer, prosperar e dominar se tiver uma absorção de forças do Estado. Por Estado nós podemos compreender corrupção policial, influência no Legislativo, na advocacia, no Judiciário. Tudo isso existe de maneira já apurada oficialmente. É um poder estruturado que procurar se parecer com o Estado. O crime organizado procura ter sua legislação, seu Judiciário, sua inteligência. Procura inclusive adotar medidas drásticas como a pena de morte. Pelos chamados “tribunais do crime”, que existem no PCC e no Comando Vermelho, por exemplo, as penas de morte são aplicadas implacavelmente. Eles têm tribunais, julgadores, acusação, defesa e executores. Essa é uma realidade pouco conhecida, mas é a realidade dos presídios brasileiros. A.M.D.B. - Várias teses atualmente indicam que a legalização das drogas, especificamente a maconha, poderia enfraquecer o tráfico. O senhor é contra ou a favor da legalização? P.S. – Sou absolutamente contra. Como você diz, há teses. Tese quer dizer “pode ser que”, “tudo indica que”. As teses podem ser alicerçadas em dogmas, em fatos concretos, em pesquisas confiáveis. Mas também podem ser construídas no vácuo. Imaginar que, de uma hora para a outra, a legalização das drogas significaria a diminuição do crime chega a ser quase delirante. Primeiro, porque os traficantes não vão se submeter ao poder do Estado. Segundo, porque o Estado teria que se converter em traficante. Terceiro, a legalização teria que ser controlada. Evidentemente, quem é a favor da legalização não pensa que crianças possam ir a um estabelecimento comercial e adquirir maconha, cocaína, etc. Se alguém disser que acha normal uma criança ou um jovem poder comprar isso, normalmente sem restrição, eu volto a repetir, é uma posição absolutamente delirante. Eu acho que meu argumento é absolutamente insofismável. Se você admite que o que estou falando é verdadeiro, você está dizendo “sou a favor da legalização, mas exijo que haja um controle”. Então a legalização não existe, não se pode comercializar a droga livremente. A droga, indiscutivelmente, é prejudicial à saúde. Você não pode vender cigarros de nicotina com advertências até aterrorizantes de que o cigarro faz mal e achar normal que a maconha seja consumida. Mesmo quem aderiu a uma posição desse tipo, como a Holanda, não tem mais liberdade total como havia antigamente. Porque eles perceberam os malefícios. Amsterdã se transformou, por muito tempo, numa convergência de dependentes químicos europeus. Por essas razões, eu sou absolutamente contra. Mas estou disposto a dialogar com quem conseguir responder aos meus desafios, que são, aliás, provocadores mesmo. A.M.D.B. – Qual é a atuação do Brasil no tráfico de fronteiras?

P.S. – Atualmente, o Brasil é o maior consumidor de cocaína na América do Sul e um corredor de exportação. Muitas das drogas que vão para os Estados Unidos, para partes da Europa ou até para a Ásia, passam pelo nosso país. Anualmente, é feita uma reunião nos Estados Unidos com chefes de polícia de várias partes do mundo. Estive em um dessas últimas reuniões e, na troca de informações, chegou-se a uma informação aterradora: de toda a droga, no mundo, que parte de algum lugar e tem um destino certo, 85% chegam a esse destino, são vendidas e consumidas. E mais: os traficantes não acreditam em êxito das ações policiais. Eles sempre acreditam que, se houve uma apreensão de grande volume, foi exclusivamente porque alguém delatou. E eles decidiram que essa pessoa deve ser identificada e sumariamente executada. Os grandes traficantes fazem uma espécie de seguro. É inacreditável isso, mas é verdade. Se alguém é responsável por uma remessa de toneladas e há uma interceptação, a pessoa tem direito a um seguro e quem falhou na operação deve pagar. A estrutura dominante do tráfico no mundo é essa. A.M.D.B. - O Brasil foi o terceiro país com o maior número de jornalistas assassinados em 2012. Como o senhor vê essa situação? P.S. – Eu vejo que para o jornalista que se empenha em fazer jornalismo investigativo, essa é uma grande angústia e um grande desafio, porque ele passa por vários tipos de ameaça. Primeiro, o seu “calcanhar de Aquiles”, que sempre é a família. Depois, ele próprio. Quando é considerado um grande incômodo, é caçado, perseguido e morto. Isso significa que os jornalistas que fazem esse tipo de trabalho são, como gosto de definir, extremamente solitários. Eles precisam deter um grande número de informações, às vezes confidenciais e secretas, e conviver com essa situação comunicando-se o mínimo possível. Quanto menos pessoas souberem, melhor. Ele é solitário porque tem que ficar quieto na própria redação, quieto com a maior parte dos amigos. Um comentário, repassado mesmo que ingenuamente, pode chegar aos ouvidos de quem jamais poderia saber o que ele está i nve s t i g a n d o. Isso pode ser até fatal. Então, é uma angústia que remete cada um ao encontro consigo mesmo. Em um determinado momento ele vai se perguntar “Valeu a pena esse risco todo? A sociedade me retribui de alguma maneira?”. São perguntas permanentes. A.M.D.B. – E para o senhor, vale a pena? O que te move a fazer jornalismo investigativo apesar dos perigos? P.S. – Na medida em que você amadurece, vai adquirindo uma consistência no sentido de saber avaliar eventuais limites e riscos. Você tem ímpetos e utopias da juventude, vontades de consertar o mundo de hoje para amanhã, sonha com uma sociedade justa e igualitária. Tudo isso faz parte do nosso ideário. Na medida em que amadurece, você vai constatando os limites, vai vendo que certas utopias são irrealizáveis, vai avaliando riscos físicos

“Imaginar que, de uma hora para a outra, a legalização das drogas diminuiria o crime chega a ser quase delirante”

Divulgação

Percival propõe a criação de um órgão de inteligência interestadual para combater o narcotráfico

Autor é contra a legalização das drogas e a favor da implantação das UPPs nas favelas e familiares. Mas há um momento em que você acha que, mesmo com todos os riscos, deve fazer determinado trabalho. Esse é o espírito do Narcoditadura. Eu estou acostumado a lidar com crimes e assassinatos no meu cotidiano profissional. Quando isso vitimou meu amigo Tim Lopes, de maneira brutal, fiquei chocado, abaladíssimo. Uma coisa é falar dos outros. Outra coisa é quando uma vítima faz parte das suas amizades. Então, o que me motivou foi fazer uma homenagem póstuma ao Tim. Fiz questão de fazer isso rapidamente. Produzi esse trabalho em meio ano. Fui ao local, investiguei, me arrisquei. Mas acho que valeu a pena. Eu tinha que fazer isso pelo Tim. Eu precisava mostrar que ele não morreu em vão. Eu precisava não me intimidar com aqueles berros que os traficantes davam nos acessos aos morros do Rio de Janeiro, para assustar os jornalistas: “vai ter mais Tim, vai ter mais Tim!”. Quando o Tim Lopes foi identificado através de um exame de DNA, apenas por um pequeno pedaço de costela, nós, jornalistas do Rio e de São Paulo, quisemos fazer uma homenagem a ele no local onde ele foi assassinado. Os traficantes proibiram. Então, falei para mim “eu não vou me curvar. Não vou dobrar os meus joelhos. Eu vou lá!”. E estive no local mesmo. Fui camuflado em uma caminhonete de entrega de biscoitos para descrever aquele cenário. Confesso que ali, vendo aquela realidade, o forno onde ele foi cremado, aqueles aros de pneus que significavam que mais pessoas haviam sido incineradas, naquele momento, eu, sozinho, chorei profundamente. O meu livro é escrito com dor, com emoção, com ira, é uma composição de tudo isso. Mas me senti recompensado pelo que ele significou em termos de repercussão. Eu precisava fazer isso. A.M.D.B. – O senhor acha que o assassinato do Tim Lopes atemorizou os jornalistas a ponto de impedir a realização de pautas investigativas sobre o tráfico e o crime organizado? P.S. – Sem dúvida nenhuma, porque a causa da morte dele fundamentalmente

foi uma denúncia que ele fez sobre uma feira de drogas nos morros. Depois do Tim, usar coletes à prova de bala se tornou rotineiro no Rio de Janeiro. Também foram estabelecidas normas de segurança mínima. As coisas mudaram muito. Mas isso deixou claro que fazer matéria sobre um tema desses não é fazer um passeio pela Disneylândia. Você tem riscos, tem que saber avaliar situações, ter cuidado com as fontes, saber por onde anda. O meu amigo Tim, por exemplo, foi traído por alguém que não sabemos até hoje quem foi. Mas que ele foi traído, não há dúvida. A.M.D.B. – Continuando no tema jornalismo, o senhor é a favor da volta do diploma para exercer a profissão de jornalista? P.S. – O jornalista tem que ter uma formação acadêmica, precisa ter cultura. O que nós podemos discutir eventualmente é se ele poderia fazer Direito, por exemplo, com uma especialização em Comunicação. Do jeito como as universidades estão estruturadas, acredito que o que se poderia fazer é um aperfeiçoamento permanente dos currículos. Acho que caberia nas faculdades de Comunicação uma disciplina de Reportagem, por exemplo, para explicar a história da reportagem e como ela é feita. Por que entrevistas como essa só acontecem na “Semana de Jornalismo”, uma vez por ano, no mês de setembro? Deveria ser permanente isso. Nós, jornalistas, somos detentores de um grande know-how que poderia ser aproveitado. Mas, de uma maneira ou de outra, o diploma é necessário. Aliás, é uma conquista da categoria profissional. Não pode ser abolido. E não é verdade que qualquer um pode escrever. Pluralidade em um jornal significa você abrir a página três da Folha, por exemplo, e ver artigos de várias tendências políticas e ideológicas. Agora, saber fazer reportagem, é outra coisa. Jamais um filósofo, a Marilena Chauí, ou seja lá quem for, vai escrever uma boa matéria, porque não sabe fazer reportagem. Isso é uma bobagem. É um bizantinismo discutir isso! Sou pelo diploma.

“De toda a droga no mundo, 85% chegam ao seu destino, são vendidas e consumidas. Os traficantes não acreditam nas ações policiais”

Percival de Souza


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