Jornal MEMAI 8

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MEMAI w w w. j o r n a l m e m a i . c o m . b r

Letras e Artes Japonesas - Edição 08 - Curitiba - 春 Haru - Primavera de 2011

AS MIL FOLHAS DE GENY

Entrevista com a pioneira nos Estudos Japoneses no Brasil, Geny Wakisaka, tradutora do Man’yôshu, a primeira antologia de poesia japonesa

東の野にかきろひの立つ見え てかえりみすれば月傾きぬ Dos campos emerge A claridade ao leste Volvendo-me a oeste Vejo o submergir Da lua.

IMPÉRIO E XOGUNATO NO JAPÃO

Como era possível no Japão haver um xogum e, ao mesmo tempo, um imperador? Saiba mais 3

MANGÁS NAS PUBLICAÇÕES DE HQ NO BRASIL O trabalho de desenhistas nisseis Claudio Seto, Julio Shimamoto, Paulo Fukue e Fernando Ikoma 8

ANOTAÇÕES DE PEQUENAS MUDANÇAS

Os poetas dos grêmios aperfeiçoam a arte de dizer mais com o mínimo seguindo a forma tradicional do haicai 11

A MONTAGEM FLUTUANTE

Yasuziro Ozu, um dos três grandes cineastas japoneses, e seu olhar crítico e poético sobre a vida nas cidades 14


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MEMAI

SUMÁRIO

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KOTOBA

SALADA DE PRIMAVERA

KOTOBA SALADA DE PRIMAVERA HISTÓRIA IMPÉRIO E XOGUNATO NO JAPÃO por Yuri Sócrates Saleh Hichmeh

por Marilia Kubota

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ENTREVISTA AS MIL FOLHAS DE GENY WAKISAKA por Neide Nagae

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POP MANGÁS NAS PUBLICAÇÕES DE QUADRINHOS NO BRASIL por Patrícia Borges

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HAICAI ANOTAÇÕES DE PEQUENAS MUDANÇAS por Alvaro Posselt LITERATURA E DEPOIS A MULHER QUE NÃO QUERIA ACREDITAR CONTOS DO SOL NASCENTE

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KINEMA A MONTAGEM ILIMITADAMENTE FLUTUANTE por Marilia Kubota

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VIDA MEU PAI, UMA PITANGUEIRA E SEUS FRUTOS por Lina Saheki

VERTIGEM

LUAS E MARÉS

Equipe Editoria Geral: Marilia Kubota Editoria Artes: Sandra Hiromoto Editoria Palco: Patrícia Kamis e Jorge Miyashiro Editoria Internet: Mylle Silva e Raphael Kruger Editoria História: Yuri Sócrates Saleh Hichmeh Revisão: Alvaro Posselt Fotografia: Gustavo Morita Ilustração: Simonia Fukue Nakagawa e Guilherme Match Colaboradores: Jorge Yamawaki, Neide Nagae, Patrícia Borges, Teruko Oda, Benedito Costa e Erica Kaminishi. Colunistas: Lina Saheki e Suzana Tamae Inokuchi Convidado especial: Geny Wakisaka. Projeto gráfico: Sandra Hiromoto Diagramação: Raphael Faria Kruger Capa: Aplicação do poema do Man Yôshu sobre obra “Mesa Giratória”, de Simonia Fukue Nakagawa.

Crédito: Gustavo Morita

Yukio Mishima

Crédito: Anuschka Lemos

Leu: Teruko Oda Luas e Marés, de Mahelen Madureira, (Edições Costelas Felinas, 2010), 1ª Antologia de Haicais da Associação Prato de Sopa Monsenhor Moreira, de Santos (SP), resultado de oficinas desenvolvidas pela organizadora ao longo de dois anos. Apresenta haicais de moradores de rua que buscam o Prato de Sopa para fazer suas refeições. As composições, de grande pureza, testemunham o (re)encontro do homem com a natureza — momentos mágicos, cuja leitura vale a pena. Teruko Oda, haicaista, é autora de Furosato no Uta - Canção da Terra Natal (2010), Flauta de vento (2005), Janelas e tempo (2003) e vários outros livros de haicai.

Em japonês, chuva de primavera se escreve harusame. A expressão não descreve apenas um termo de estação – kigo, para os haicaistas experientes. Mas também um prato feito de massa de amido de arroz ou broto de feijão. O nome do prato indicia a tendência do povo japonês em colocar poesia em todos os aspectos do cotidiano. Para o japonês, escrever um diário ou um haicai é uma prática comum. Assim como decorar bueiros com brasões imperiais, fazer da dobradura de papel uma arte ou aproveitar sobras que se encaixam na filosofia mottainai (não desperdiçar). Na sociedade ocidental, a arte é inutensílio, produto supérfluo que os espíritos ociosos cultivam. No Japão, está integrada na vida e por isto é um modelo para o ocidente, hoje, quando todas as ações humanas tendem a se tornar arte. Apesar da ameaça de constantes catástrofes naturais, o arquipélago japonês resiste. No Brasil, iniciamos mais uma primavera com chuvas e saladas coloridas. O JORNAL MEMAI tem experimentado algumas mudanças e espera que os leitores acompanhem nosso harusame.▀ editorjornalmemai@gmail.com

Leu: Benedito Costa O templo do pavilhão dourado Li há muitos anos o livro de Yukio Mishima. Gostei tanto que comprei todas as traduções que encontrei, uma vez que não leio no original e fui comparando como de língua para língua os tradutores verteram o texto. Para mim, este é o momento máximo da obra de Mishima. Com agudeza e crueldade, ele descreve a relação entre jovens monges e o que se passa na cabeça de um alucinado, que destrói uma maravilha arquitetônica milenar. Todas as questões mais importantes da obra de Mishima estão ali. Vale a pena ler e divulgar. Benedito Costa é professor de Literatura e crítico de arte. Autor de “Diante do Abismo”.

Impressão: Gráfica O Estado do Paraná Tiragem: 2.500 unidades 春 - Haru - Primavera 2011.

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contato@jornalmemai.com.br

Rua Mateus Leme, 314 – Apto. 301 CEP: 80510-190. Curitiba/PR

Chibi Seto é um personagem criado pelo cartunista Guilherme Match – uma homenagem a Claudio Seto. Saboro Nossuco é um personagem criado por Thadeu Wojcioechowski. O texto da tira Chibi Seto desta edição é de Sandra Hiromoto.

EDIÇÕES

R$ 25 (nacional)


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MEMAI HISTÓRIA

IMPÉRIO E XOGUNATO NO JAPÃO

Xogum e imperador são sinônimos? Como era possível no Japão haver um xogum e, ao mesmo tempo, um imperador? Este artigo discute as diferenças entre os dois títulos

Arquivo

por Yuri Sócrates Saleh Hichmeh

Tropas imperiais japonesas derrotando o exército russo na guerra de 1905

No feudalismo japonês, por causa de guerras sucessivas, o Imperador viria a perder prestígio como figura central política e militar. Não é raro lermos e ouvirmos os termos xogum e xogunato, especialmente relacionados aos nomes de Yoritomo Minamoto e Ieyasu Tokugawa. Vemos também os nomes de Hideyoshi Toyotomi e Nobunaga Oda relacionados à política e ao militarismo japonês do século XVI, mas não como xoguns. Por fim (e para complicar ainda mais) encontramos, junto a todos, os imperadores japoneses, como Go-Toba, Go-Daigo e Meiji. Neste momento, o leitor pode perguntar: xogum e imperador seriam sinônimos? Ou ainda: como era possível no Japão haver um xogum e, ao mesmo tempo, um imperador? O objetivo deste artigo está em apresentar e discutir brevemente as principais diferenças entre ambos os títulos, visando ao esclarecimento das dúvidas mais frequentes relacionadas à temática. O primeiro registro escrito acerca do povo japonês data de finais do século III depois de Cristo, sendo de autoria chinesa. O documento tinha por objetivo apresentar as principais características dos japoneses, descrevendo para as elites chinesas alguns dos hábitos, as práticas religiosas, o idioma e a política dos habitantes do arquipélago. No documento, assim como em documentos posteriores até o século V, os chineses descrevem a política japonesa como baseada em um poder central, com uma figura principal governante, o Imperador. Assim como na Europa medieval e moderna, o poder imperial japonês era ditado por famílias poderosas e influentes, muitas vezes passado hereditariamente. A figura imperial japonesa teve grande influência na inserção da escrita com caracteres chineses e do Budismo no arquipélago japonês. Até o século XII, os imperadores detinham, no Japão, o poder completo sobre o arquipélago, tanto religioso, quanto político e militar.

Foi no contexto de desenvolvimento dos poderes locais (vulgarmente chamado de feudalismo japonês) que o Imperador viria a perder prestígio como figura central política e militar. Desde o século X, com o fortalecimento da família Minamoto, iniciaram-se sucessivas guerras entre os clãs Taira e Minamoto, ambos visando à supremacia política. Com a vitória de Yoritomo Minamoto, em 1185, uma nova era, com grandes mudanças, instaurava-se no Japão: o xogunato. Yoritomo Minamoto foi o primeiro xogum do Japão, inaugurando um governo composto por dois representantes: o xogum e o imperador. O primeiro, detentor dos poderes de facto sobre território, opinando política e militarmente; ao segundo coube um papel mais simbólico, tornando-se única e exclusivamente uma figura religiosa, representando o xintoísmo. A partir desse momento, com a fundação do xogunato Kamakura, o Japão contou com duas capitais: Kamakura, ao norte da atual cidade de Tóquio, representando o poder político e militar; e Kyoto, como capital espiritual. Com o controle exercido pelos Minamoto, seus rivais perderam força, especialmente com o deslocamento do centro político do Japão. O xogum foi apoiado por um exército samurai, espalhado pela região central do arquipélago, consagrando o poder dos Minamoto, suprimindo seus opositores e mantendo o poder do Imperador restrito à esfera religiosa. Naturalmente, o xogunato Kamakura sofreria um gradual enfraquecimento ao logo do século XIII. Dentre as principais forças internas que provocaram esse enfraquecimento, temos a lenta descentralização do poder, que passava vagarosamente às mãos de grandes proprietários de terras; entre as razões externas, as duas frustradas invasões mongóis sobre o arquipélago foram responsáveis por uma série de repercussões entre a população, que passou a questionar o poder exercido pelo xogunato. Entre os séculos XIV e XV, a figura do xogum sofreu um golpe ainda maior, uma vez que as guerras internas pelo território japonês iniciaram, desembocando no Período dos Estados em Guerra (Sengoku-Jidai). Apenas com a ascensão de Ieyasy Tokugawa ao po-

der, no século XVII, é que o xogunato encontraria novamente forças frente à população japonesa e às potências externas. Durante os 250 anos do xogunato Tokugawa, a distinção entre as figuras do xogum e do imperador distanciaram-se ainda mais, de forma que o poder imperial foi suprimido pela política confucionista, militar e centralizadora dos Tokugawa. Por influência das potências europeias, o Japão Tokugawa foi forçado, no século XIX, a modernizar-se, abrindo seus portos ao ocidente. Junto às novas técnicas militares, idiomas e produtos industriais, os ocidentais levaram ao Japão uma forte crítica à figura do xogum, realçando o poder imperial. Dessa forma, desde o início da Era Meiji até o final da Segunda Guerra Mundial, o poder imperial tornou a governar a política e o militarismo, destacando o Japão do início do século XX como uma potência imperialista, visando à expansão de seus domínios, derrubando a grande Rússia em 1905, conquistando a península coreana, a Manchúria e Singapura. ▀ Yuri Sócrates Saleh Hichmeh é historiador (UFPR), professor de História e consultor empresarial de Gestão da Qualidade. É um dos co-autores da coletânea de ensaios O Túnel do Tempo (Juruá, 2010).


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MEMAI ENTREVISTA

MIL FOLHAS PARA GENY

Personagem pioneira nos Estudos Japoneses no Brasil, Geny Wakisaka dedicou a vida inteira para a Literatura Japonesa, traduzindo poemas do Man’yōshū, a primeira antologia de poesia japonesa, o primeiro retrato em ficção deste povo

por Neide Nagae

Geny Wakisaka, com a medalha do Prêmio Man’yôshu, recebida em 2008.


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MEMAI Tradutora, organizou livros de Ueda e Oe e está concluindo a tradução de Makura no Sōshi (O Livro do Travesseiro). Geny Wakisaka é uma das personalidades que compõe o quadro pioneiro dos Estudos Japoneses no Brasil. Uma vida inteira em contato com a Literatura Japonesa, sem deixar de lado o amor pela família. Filha de Rocro Kouyama (1886-1976) e Tany Kouyama (1881-1973) que chegaram em 1908 no Kasato Maru, é esposa de Katsunori Wakisaka, (um dos primeiros tradutores juramentados do Brasil), mãe de quatro filhos e com cinco netos. Em 1971 resolveu retomar os estudos interrompidos em 1942 e não parou mais. Ingressou no curso de Língua e Literatura Japonesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde concluiu o bacharelado em 1976. Em 1983 foi contratada como professora e pesquisadora em regime de dedicação integral, mas dedicava-se ao curso como auxiliar de ensino voluntária desde 1973. Doutorou-se em Letras em1987, defendendo a tese O Mundo Poético de Yoshino nas Mutações dos Chōka . Seu tema foi uma pesquisa sobre os poemas longos dos séculos VI ao VIII, inseridos na antologia poética Man’yōshū. Assumiu a direção do Centro de Estudos Japoneses e a coordenação do Curso de Língua e Literatura Japonesa da USP entre 1987 e 1990 e foi uma das criadoras do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, iniciada em 1996, quando aposentou-se. Continuou a ministrar aulas e a dar orientações em nível de Mestrado. Tradutora de prosa e poesia, organizadora de livros de tradução como o de Akinari

Ueda e Kenzaburo Oe, Contos da Era Meiji e Contos Modernos Japoneses, publicados pelo Centro de Estudos Japoneses da USP, ainda está concluindo a tradução em grupo de Makura no Sōshi (O Livro do Travesseiro). Em 2008, recebeu o Primeiro Premio Mundial Man’yō, concedido pela Fundação de Promoção Cultural do Man’yō (Nara, Japão), pelos trabalhos desenvolvidos em português, no Brasil, sobre essa antologia poética. Trata-se da obra: Man’yōshū vereda do poema clássico japonês, publicado em 1992. JORNAL MEMAI - Pode explicar o que é o Prêmio Man Yoshu? GENY WAKISAKA - Em Asuka, na província de Nara, capital do Japão entre os anos 710 e 749, foi inaugurado em 2001 o Centro Cultural Man’yô da Província de Nara (Nara Kenritsu Man’yô Bunkakan). Nara foi o berço da Antologia Poética Man’yôshû , organizada por volta do século VIII. O centro tem por objetivo realizar pesquisas interdisciplinares sobre os legados culturais regionais da cultura japonesa, levando em conta as riquezas antropológica, etnológica e literária e cogitou levar esses estudos ao âmbito internacional, com incentivos aos pesquisadores que desenvolveram trabalhos relacionados a esses temas. Desse intuito, resultou a implantação do Prêmio Mundial Man’yôshû, que são atribuídos aos trabalhos realizados fora do Japão. MEMAI - A comissão avaliadora deste prêmio foi seletíssima: Donald Keene, pesquisador de Literatura Japonesa, Hirayama Ikuo, Presidente da Fundação de Fomento à Pesquisa em Artes – Fundação de Proteção ao Patrimônio Cultural; Toyama Atsuko, ex-Ministra da Educação e Cultura do Japão e Nakanishi Susumu, Diretor do Centro Cultural Manyo da Província de Nara. GENY - O prêmio foi anunciado no dia 10 de março e fui ao Japão para recebê-lo no dia 10 de maio de 2008.

MEMAI – Como os poemas japoneses entraram em sua vida e se transformaram numa espécie de vertigem ? GENY - Houve influência de meu pai, que participava de grupos de poetas que tinham como hobby compor tanka ou haiku. O grupo organizava convescotes à procura de inspirações e meu pai me levava nessas jornadas. Eu ficava brincando sozinha, mas essas andanças podem ter despertado o gosto pela poesia. Não componho, mas gosto de lê-los. O tanka eminentemente lírico é praticado pelo povo japonês onde anotam as emoções do dia-a dia. MEMAI – A literatura está nos laços de sangue. No Japão, seu avô tentou abrir um jornal; seus tios foram professores de japonês em Formosa, e seu pai desenvolveu trabalhos ligados ao meio jornalístico, ainda no Japão. E no Brasil, foi intérprete, jornalista, editor escritor, tankaísta e haicaísta. GENY - Depois de muita batalha para sustentar a família lançando-se em atividades que não tiveram êxito, ele consegue realizar o sonho de montar uma oficina para publicar um jornal para os imigrantes. Em 1921, começou a publicar o Semanário de São Paulo, com tiragem de 200 exemplares, em Bauru. A cidade foi escolhida por ser o centro de entroncamento das ferrovias do interior paulista e o jornal funcionou lá até 1935, quando mudamos para São Paulo. O jornal mudou de nome para Notícias de São Paulo até julho de 1941 quando foi extinto, devido ao decreto federal proibindo a edição de jornais em língua estrangeira*. MEMAI - Era aquele jornal conhecido pelo nome de Seishū Shinpō? Seu pai foi muito atuante e deixou grandes contribuiçoes para a colônia japonesa no Brasil, não é ? GENY - Além do jornal em Bauru, publicou três almanaques: o Almanaque Japonês da Noroeste (1928); o Almanaque Japonês da Noroeste, Sorocabana e Paulista (1930); e o Anuário Comemorativo do 25ª Aniversário

妥女の袖吹き返す明日香風都を遠みいたづ らに吹く

吾を待つと君が濡れけむあしひきの山のしづ くにならましものを

旅人の宿りせむ野に霜降らば吾が羽ぐくめ天 の鶴群

(Poema 51, Tomo I) Ventos de Asuka Tumultuam as mangas Das servidoras palacianas Deslocada a capital Ora debalde passam

(Poema 108, Tomo II) Quisera transformar-me naquele orvalho Que envolvera seu corpo Orvalho ao pé da montanha No tempo em que me aguardavas.

(Poema 1791, Tomo IX) Cegonhas migrantes Se a geada cobrir os campos Em que pernoitam viajantes Meu filho Acolham sob suas asas.

Reprodução de uma Flor, por Erica Kaminishi

ALGUNS POEMAS, POR GENY


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MEMAI A antologia fascinou-me pelo empenho dos japoneses em criar a própria escrita para registro das produções literárias rias formas flexionadas do verbo vir, ditos pelo amante e as frustrações e os anseios esperançosos contidos no verbo esperar, da mulher. Um poema do século VIII que ainda provoca ressonância no sentimento de uma jovem moderna.

Capa da 1ª. edição de Man Yoshu no Brasil da Imigração Japonesa ao Brasil (1933). Em São Paulo publicou a História dos Quarenta Anos da Imigração Japonesa (1948); e o Vocabulário Tupi-Português-Japonês(1951). MEMAI - E como foi a sua infância? GENY – Era a caçula de 7 irmãos, nasci em Bauru, quando meu pai já publicava o Semanário de São Paulo. Não tive experiência de vida na fazenda. Antes de ingressar no grupo escolar, já estudava japonês e quando mudamos para São Paulo, passei a frequentar o primário em língua japonesa. Concluído o ginasial, passei a estudar somente o japonês numa escola de corte e costura, onde me deram o diploma equivalente ao ginasial. Fui convidada pela diretora a dar aulas para o primário e fiquei até 1950. MEMAI - Sua primeira experiência profissional foi como professora de japonês ? GENY - Também trabalhei com legendagem em português de filmes japoneses, exibidos nos cinemas do bairro da Liberdade. MEMAI - Como aquele Cine Niterói, que deve ter deixado saudades. Eles foram um centro de convivência dos nipo-brasileiros. GENY - Participava na ocasião, de um grupo chamado Doyôkai onde reuniam mensalmente artistas e intelectuais da colônia japonesa. Eu ia aos encontros como ouvinte e foi lá que conheci o meu marido, na época, estudante do curso de Química da USP. MEMAI - Por que a escolha pelo Man´yōshū como objeto de pesquisa? GENY - Em primeiro lugar, fascinou-me o empenho dos japoneses em criar a própria escrita para o registro de suas produções literárias, transmitidas oralmente até então. Com base nos conhecimentos dos ideogramas chineses, os japoneses mantiveram o significado e sua leitura chinesa acrescentando nova leitura à moda da língua japonesa, mediada pela identidade semântica. À parte, anularam o significado de alguns ideogramas, transformando-os em fonogramas para suprir as necessidades na redação de sua língua. E assim foram registrados os 4516 poemas do Man’yōshū. O último poema da antologia data de 1 de ja-

neiro de 759. A antologia ficou retida na Corte, devido a intrigas e assassinatos ocorridos entre a nobreza, na qual participaram membros da família Otomo, cujo patriarca, Otomo no Yakamochi é apontado como organizador do Man’yōshū. Yakamochi, a despeito de já ter falecido, teve suas posses, títulos e a antologia que estava sob a sua guarda, confiscados. A antologia ficou na Corte esquecida até o ano 951 e quando a descobriram, a escrita japonesa já tinha sido simplificada com a implantação dos fonogramas (kana). A leitura do Man’yōshū, mesclado de ideogramas vertidos em fonogramas, ficou difícil. O imperador Murakami convocou cinco letrados no recinto Nashitsubo, que, confinados, foram incumbidos de decifrar o Man’yōshū. MEMAI - Para decifrá-la, Murakami ficou no trono entre 946-967. Grande apreciador da literatura, foi quem criou oficialmente um aposento no palácio chamado de wakadokoro, em 951, para elaboração da coletânea oficial de poemas Gosen Wakashū. GENY - O Man’yōshū no seu original me prendeu a atenção, pela escrita redigida toda em ideogramas, pelas variedades de formas poéticas e temas, pela presença de poetas pertencentes a uma diversidade de classes sociais. A partir do ano 905 a 1439 foram elaboradas, a mando dos imperadores, 21 antologias poéticas oficiais, incluindo o Gosen Wakashū. Mas em todas essas só foram compilados os poemas dos intelectuais, dos monges e da nobreza. No Man’yōshū você sente a voz de toda a população. MEMAI - Toca o coração... GENY: Não sei sei você conhece este poema. 来むといふも来ぬ時あるを来じといふを来む とは待たじ来じといふものを (Poema 527 Tomo 4) komu to iumo konu toki aru o koji to iu o komu to wa mataji koji to iu mono o MEMAI - Parece brincadeira com as palavras. GENY – A autora Sakanoueno Iratsume foi tia de Yakamochi. Ela usa no poema as vá-

MEMAI – Traduzindo: Quando diz que não vem, eu não espero achando que vem. É uma expressão assim, contrariada. Diz que não espera, mas pensa que pode ser que venha... Expressa bem o sentimento. A abrangência de poemas compostos pelas mais variadas classes é ressaltada como um das peculiaridades da obra, mas a senhora não acha que a obra pode ser um artifício dos próprios compiladores? GENY - Seria difícil pela quantidade de poemas compilados. São quatro mil e tantos poemas. E Yakamochi, o provável compilador, anota muitas vezes que poemas de difícil compreensão foram excluídos. Podem ter reelaborado algumas obras, principalmente de autores desconhecidos, ou os carregados de dialetos, mas o cerne foi conservado. O povo da época não escrevia. A transmissão era oral e nota-se nos poemas essa oralidade. Deve ter sido um esforço sobrenatural do funcionário público, sair da capital a serviço, percorrer o país e coletar os poemas nas horas vagas, memorizando-os ou anotando-os em ideogramas transformados em fonogramas. MEMAI - Como foi o trabalho de compilar estes poemas ? GENY - Segundo consta, o número de ideogramas usados no Man’yōshū somam 2.560 caracteres, dentre os quais, 440 usados como fonogramas, ditos fonogramas Man’yō. Para a unificação de escrita tinham que estabelecer e divulgar o quadro dos fonograma/ man’yō. O elevado número dos fonogramas resulta da existência das palavras homófonas que deveriam ser diferenciadas através dos fonogramas. A maior parte dos poemas são dos séculos VI, VII e VIII e muito pouco do IV e V. A antologia compila inclusive poemas de autores desconhecidos e portanto de datas ignoradas. Não se sabe ao certo o tempo decorrido nessa árdua labuta. Mas, eles conseguiram. MEMAI - O que é ler uma obra como o Man’yōshū hoje? GENY – É apreciar a multiplicidade e variedade de cantares da antiguidade de um povo, num momento em que se processava no país, a consolidação do poder político, permitindo a unificação de um estado. A antologia surge como subproduto dessa ebulição. Pode se dizer que registra poemas de quase todo o território japonês, das províncias do norte ao sul. (a entrevistada mostra uma lista com vários topônimos) MEMAI - As localidades citadas na obra chegam a quase 50 e abrangem todo o Japão! GENY - A movimentação em nível de todo o país que reflete a obra é o que me atrai. Não só poemas de uma classe social, pega toda

A partir do ano 905 foram elaboradas 21 antologias poéticas, mas em todas só foram compilados poemas da elite; no Man’yōshū você sente a voz do povo


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MEMAI Deve ter sido um esforço coletar os poemas, memorizá-los ou anotá-los em ideogramas a população, e não é só a alegria e o amor, mas a penúria, a tristeza que eles passam, tudo está projetado. MEMAI - A gente não tem noção de como foi possível reunir poemas tão diversificados e abrangentes. A senhora acha que isso também demonstra a força do poder central? GENY - Foi uma concentração de poder, anteriormente existiam vários clãs. A concretização desse governo centralizado é que possibilitou a congregação e envio dos “poetas” às províncias, não como poetas, mas como funcionários públicos. A coleta de poemas em grande escala resulta em parte do interesse do governo central em marcar o seu poder aos quatro cantos do país, mas o mérito coube aos mensageiros e funcionários públicos, que se interessaram pela produção cultural do país. E isso tudo foi feito antes da criação do silabário Kana. Tudo em ideogramas. MEMAI – Que autores da Literatura Japonesa a senhora recomenda para o leitor do jornal ? GENY - Pelo meu gosto, dos poetas seriam Akiko Yosano, Takuboku Ishikawa, Shiki Masaoka. Na prosa, ainda fico no Natsume Sōseki. Não sei porque esses. Meu pai os trouxe na bagagem em 1908. São os primeiros livros que li e me marcaram. Queria que Kusamakura (1906) fosse traduzido. Parece leve, mas é pesada. E também Gubijinsō (1907). NEIDE: Travesseiro entre as relvas, nome bem poético para Kusamakura, que é também um makurakotoba! Não sei se seria essa a tradução que a senhora daria. Gubijinsō já traz no título um desafio para a tradução, tem o trocadilho do nome da papoula, do apelido da amante do guerreiro chinês. GENY: Gostaria que alguém traduzisse o Kusamakura. NEIDE: Quem sabe alguém que leia essa entrevista, se encoraje. Fica, então, a recomendação para tradução! Geny Sensei, muitíssimo obrigada pela magnífica aula de hoje! (E olha que até fiquei com lição de casa...) ▀ Neide Nagae é Doutora em Letras (USP), docente e pesquisadora da Graduação e Pós-graduação de Língua, Literatura e Cultura Japonesa do Dep. de Letras Orientais (USP). Suas pesquisas concentram-se na prosa moderna japonesa com ênfase nos autores da escrita do eu, nos diários literários clássicos e no pensamento japonês. Dedica-se também à tradução e aos estudos de tradução.


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MEMAI POP

MANGÁS NAS PUBLICAÇÕES DE HQ NO BRASIL O mangá se tornou popular no Ocidente com a divulgação da obra Lobo Solitário, de Frank Miller, mas antes, no Brasil, já havia desenhistas nisseis como Claudio Seto, Julio Shimamoto, Paulo Fukue e Fernando Ikoma.

por Patrícia Maria Borges

Página da história O Monge Maldito


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MEMAI Flores Manchadas de Sangue retrata histórias de guerra, terror, violência e dramas psicológicos. Atualmente a presença e influência do mangá nas publicações de quadrinhos nacionais e internacionais é muito comum. Um exemplo claro dessa influência no Brasil pode ser identificado pela quantidade e variedade de publicações, que vão desde revistas independentes como as edições de fanzines, até lançamentos de grandes editoras brasileiras já consagradas, como a publicação estilo mangá da Turma da Mônica Jovem, de Maurício de Sousa, que lidera o mercado do quadrinho nacional. Das séries de quadrinhos influenciadas pelo traço dos mangás, Holy Avenger tem extrema popularidade no Brasil. A série se tornou conhecida no país em função do sucesso obtido por conta das 42 edições publicadas mensalmente ao longo de pouco mais de três anos. A série, criada por Marcelo Cassaro e ilustrada por Érica Awano, gerou também diversas edições especiais relacionadas ao seu universo. Criada no final dos anos 90 por Fábio Yabu, a série de quadrinhos para Internet dos Combo Rangers contou com a publicação da JBC e da Panini. Nela, um grupo de heróis armados de amor e coragem luta por um mundo melhor. Uma das mais recentes criações de Yabu, que também segue as características do estilo dos mangás, é a série de oito livros Princesas do Mar, editada pela Panda Books. Outras publicações típicas do estilo das histórias em quadrinhos japonesas são: História do Japão em Mangá, produzida por Francisco Noriyuki Sato no ano de 1995; O xintoísmo em mangá – publicação que conta a história da deusa Amaterasu; Mangá Tropical, de 2003 – obra que reúne os mais conceituados desenhistas do estilo mangá no Brasil. Outros lançamentos com as características dos quadrinhos nipônicos são: Luluzinha teen e sua turma, a Turma do Didi e do Sítio do Pica-Pau Amarelo, entre outros. Hoje em dia, é possível observar nas bancas de jornal e livrarias uma quantidade cada vez mais crescente de títulos nacionais que seguem as características tanto estéticas como narrativas do gênero mangá. E essa combinação entre quadrinho nacional e estilo mangá se realiza sob os mais diversificados tipos de histórias, como por exemplo em Miotaka & Tanaka – Amigos Separados pela Bomba Atômica, de Varneci Nascimento e Anilton Freires. É uma publicação nacional de 2009, que mistura o estilo dos quadrinhos japoneses com a tradição cultural brasileira da literatura de cordel. Crossword é um fanzine que mistura os elementos visuais dos mangás e animês de ação com a estética dos super-heróis americanos. Já Anjos da Mata, de Wilson Kohama é um quadrinho de 2009 que utiliza o traço do mangá para falar sobre a importância de proteger a Mata Atlântica. E mais recentemente, a publicação Ação Magazine em 2011 inaugurou a primeira revista periódica de séries de mangás do Brasil. A influência do mangá nas publicações de quadrinhos nacionais também se consagrou através da publicação de fanzines (revistas de fãs), iniciada no dia 1º de novembro de 1984 com o primeiro fanzine de mangá produzido no Brasil pelo Clube do Mangá. Essas publicações possibilitaram e possibilitam aos artistas amadores se expressarem através de estilos variados, apoiados na premissa de um dia se tornarem desenhistas profissionais. E até mesmo possibilita aos já conceituados desenhistas do país se expressarem através de suas primorosas obras, como é o

caso dos desenhistas Daniel HDR e Marcelo Cassaro com a revista Dungeon Crawlers. Os fanzines constituem uma boa forma de divulgar os trabalhos de quem tem um bom traço e histórias de boa qualidade para contar. E o destaque é para Bárbara Linhares, uma das mais conhecidas mangakás brasileiras, que lançou os seguintes fanzines no gênero shoujo: Manga Dream e Peter Pan The Second Day – um de seus fanzines mais recente. Outras publicações de fanzines mais bem sucedidas no Brasil são: Tsunami, desenhada por Denise Akemi, Pano pra Manga, lançada em 2001 por Elza Keiko e o fanzine Orbital #0, publicado em 2003. A popularização do mangá no Ocidente se deu com a divulgação da obra Lobo Solitário, de Frank Miller, publicada em 1988 no Brasil, mas mesmo muito antes dessa recente popularidade dos quadrinhos japoneses, aqui no país, desde os anos 70 já havia desenhistas nisseis que desenvolviam quadrinhos nacionais influenciados pela estética dos quadrinhos japoneses. Esse foi o caso de Claudio Seto, Julio Shimamoto, Paulo Fukue, Fernando Ikoma, entre outros. Foi através da editora Edrel, fundada em 1967, e principalmente através do editor Minami Keizi (conhecido como o pai do mangá no Brasil) que as publicações de quadrinhos nacionais puderam contar com a introdução do estilo dos quadrinhos nipônicos através do traço de desenhistas e roteiristas descendentes de japoneses. Entre alguns lançamentos da editora Edrel, a revista Ídolo Juvenil, publicada por volta de 1966 e 1967, com arte de Seto, foi a primeira publicação estilo mangá do Brasil. Claudio Seto, o precursor do estilo mangá no Brasil, publicou dezenas de histórias no gênero gekigá (histórias de temática dramática), tais como Estórias Adultas e Young Comics, além de outras com temáticas românticas. Um dos trabalhos dignos de destaque de Seto é Flores Manchadas de Sangue , uma publicação de 2008 em preto e branco que retrata uma série de elementos da cultura oriental – ninjas, gueixas, samurais – inseridos em histórias de guerra, terror, violência e dramas psicológicos. O álbum é composto por cinco histórias selecionadas pelo próprio autor da série Histórias de Samurais, publicada em 1969 pela editora Edrel. São elas: Flores Manchadas de Sangue, O Monge Maldito, Idealismo Frustrado, O Sósia e A Flor Maldita. O Monge Maldito e O Sósia A história de O Sósia é considerada um marco nas histórias de samurais, pois representa a criação do estilo de desenho do gênero samurai criado por Seto. Retrata um dos três heróis da Era Pré-Moderna do Japão, Toyotomi Hideyoshi, que colaborou para a unificação de um governo no país. Com relação ao aspecto visual, a diagramação segue o estilo de narrativa dos quadrinhos japoneses ao distribuir ao longo da página um conjunto de figuras geométricas dispostas de forma assimétrica, além de conferir o aspecto dinâmico à paginação, pela constante mudança de direção que vemos o personagem tomar ao longo dos quadros por onde ele caminha. Outras referências ao estilo se dão através da utilização de variados ângulos de câmera e pela valorização de determinados elementos do cenário que colaboram para intensificar o aspecto dramático das cenas. Com relação à história de O Monge Maldito, ambientada no Período Nara (ano de 712), quando a capital do Japão estabelecida em Nara passou a ser denominada de Heijô-kyo, cujo significado é “Capital da Paz”, destaca-se uma característica marcante do estilo de Seto (Figura 8), que é a tendência expressio-


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nista e que pode ser observada pela utilização de recursos cinematográficos que enfatizam os detalhes dos olhares, das ações e dos gestos das personagens – recurso que contribui para intensificar o envolvimento e a participação dos leitores com o desenrolar das histórias. Ainda com o desenhista Julio Shimamoto, considerado um dos artistas mais expoentes do quadrinho brasileiro, temos em Musashi, uma de suas obras-primas, uma outra característica estética comum aos mangás do gênero gekigá, que é a extensa e abundante quantidade de sangue jorrando em cenas de batalha. E foi justamente esse contato dos artistas

com as obras vindas diretamente do Japão que contribuiu para a divulgação de um novo estilo de desenho em território nacional, e que posteriormente serviu e vem servindo de inspiração para muitos autores brasileiros desenvolverem suas criações, permitindo assim, a diversidade e o enriquecimento cultural do mercado de quadrinhos do país. A adaptação do estilo mangá nas publicações de quadrinhos do Brasil, ao que tudo indica, está trazendo grandes benefícios para o mercado editorial do país, na medida em que está contribuindo para o crescimento das vendas e para o fortalecimento do mercado de produções independentes. A popularização desse tipo de publicação está ainda impulsionando o aumento da porcen-

tagem de leitores do nosso país, além de poder contar com a tão esperada adesão do público feminino, até então, pouco adepto desse tipo de mídia. ▀ Patrícia Maria Borges é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC- SP, com a tese Traços Ideogramáticos na Linguagem dos Animes (Via Lettera/ Fundação Japão, 2008). Pesquisadora do Observatório de HQ da ECA- USP e do Centro de Estudos Orientais da PUC- SP. Atualmente desenvolve pós-doutoramento na USP como bolsista do CNPq.


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MEMAI HAICAI

ANOTAÇÕES DE PEQUENAS MUDANÇAS

Três lançamentos de livros em 2011 registram o haicai tradicional, aquele praticado por Matsuo Bashô, Kobayashi Issa, Yosa Buson e outros mestres. Através dos grêmios de haicai, seus discípulos aperfeiçoam a arte de dizer o suficiente por Alvaro Posselt

POEMAS PARA CONTEMPLAR A LUA CHEIA Em sua jornada pelos caminhos do haicai, Sérgio Francisco Pichorim publica Luar de abril. Agora com o haigo (nome haicaístico) Matsuki, que significa pé de pinheiro e é o nome de um poeta japonês, Matsuki Tantan, o autor reafirma e marca mais ainda o seu estreitamento e dedicação com o gênero, visto que é um estudioso, divulgador e disciplinado praticante do haicai há mais de dez anos.

Além disso, aparecem os temas mais diversos, sejam da fauna, flora, geografia, do tempo ou fenômenos atmosféricos e de suas vivências, mostrando a versatilidade e aplicação de haijin (haicaísta) em suas observações e busca de conhecimento em relação à natureza. Pedaços de folhas caminham pelo quintal. Ah, essas formigas!

O título do livro faz referência à primeira lua cheia do outono, período em que os poetas do haicai se reúnem para contemplá-la e compor seus poemas (tsukimi). Esse ritual se repete todos os anos e o tema é um dos preferidos pelos haicaístas. Para Matsuki não poderia ser diferente, a começar pela capa do livro.

Constam ainda no livro, além dos poemas com temas das estações do ano, um haicai guilhermino, haicais sobre uma via-crúcis, vivências do autor durante a procissão, e um posfácio de Rosa Clement.

Não está sozinha aquela pequena estrela. Lua de Bashô. Seus haicais sempre denotam uma forma intuitiva de composição, isenta do mecanismo intelectual, com linguagem direta e simples. O sentido é sempre um gatilho e a realização do haicai pode acontecer de forma inusitada: Luar de abril, de Sérgio Francisco Pichorim. Araucária Cultural, 120 páginas, 2011

Jogo do Brasil. O chinês da pastelaria toca vuvuzela.

Um verde novo recobre o morro da via-crúcis Natural de São José dos Pinhais, PR, Sérgio Francisco Pichorim é professor universitário. Por diversas vezes obteve classificação em concursos de haicai. Em 2002 e 2003, em Campinas, conquistou o 1º. lugar no Encontro Brasileiro de Haicai. Tem seus haicais publicados em diversos jornais e faz palestras com frequência sobre o assunto. E-mail para contato: pichorim@pop.com.br

UM SOPRO NA TRILHA DO HAICAI recheada de suas vivências remotas da terra natal, Santos. Trata-se então de uma viagem poética sem sair do lugar, pois a cidade do litoral de São Paulo ainda a acolhe e é palco de memórias e de novas histórias. De volta ao passado – Pelas calçadas de Santos Vento noroeste. Inspirada nas leituras das viagens de Bashô, mas sem seguir as regras do haibun (diários de viagens), a autora oferece ao leitor um passeio nostálgico: “Súbito bater de portas. Sopra o vento noroeste entre o correr de sobrados. Casas amalgamadas, paredes que não guardam segredos...”. Esses segredos aparecem no livro? Quem sabe apareçam no caminho para a escola, na rampa do mercado, no passeio de lancha, nos pregões na calçada, na viagem de trem... Podem estar em qualquer lugar, até no vai e vem das andorinhas:

Vento Noroeste, de Regina Alonso. All Print Editora, 54 páginas, 2011. Segundo livro de haicai de Regina Alonso, Vento Noroeste traz na esteira de seus poemas uma narrativa descontraída e suave,

Beiral de telhado – Vão e vêm sem parar as andorinhas Através das estações do ano, a leitura transporta o leitor através da memória, de sua própria memória, pois quem não tem uma lembrança do fogão a lenha na casa da avó, de

balões, das férias escolares, das fogueiras, ou de uma remota noite de Natal? Aplausos na rua – O mais velho da família acende a fogueira. O haicai é uma bala com sabor de vivência. Para o leitor, o gosto de saborear o instante como se fosse um momento só seu, solitário e ao mesmo tempo compartilhado com tudo que há de mais retumbante em nós, extraído de apenas três versos. Dessa forma, a possibilidade de se deixar levar por esse Vento Noroeste, que já se insinua a partir da capa e suas folhas esvoaçantes, torna-se a mais leve e mais envolvente possível. Âncora no mar – Sobre as mãos do lancheiro o brilho da lua. Vento Noroeste sopra e deixa rastro indelével na trilha do haicai. Além de haicaísta, Regina Alonso é pedagoga, integra o grêmio de haicai Caminho das Águas e o grupo Poetas Vivos, ambos de Santos, ministra e coordena oficinas literárias em escolas e ONGs e é detentora de vários prêmios em concursos regionais e nacionais de haicai, poesia livre, contos e crônicas. E-mail para contato: orgone1@terra.com.br


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UMA HOMENAGEM À GOGA É possível afirmar que Matsuo Bashô está para o Japão assim como H. Massuda Goga está para o Brasil? A trajetória de Goga (1911-2008) começou em 1929, ano de sua chegada ao nosso país. Seis anos depois conheceu Nempuku Sato (1898-1979), com quem aprenderia sobre o haicai. A partir dessa época até 1999, o discípulo de Sato construiu uma história que se tornou patrimônio cultural do haicai tradicional praticado no Brasil.

Primavera alegre Os namorados com walk-man Percorrem o parque

Goga e haicai é uma breve homenagem ao mestre, que completaria cem anos em 08 de agosto deste ano. Organizado por Teruko Oda, o livro é composto de três textos e uma antologia de haicais de membros do Grêmio Haicai Ipê.

Libélula voando pára um instante e lança sua sombra no chão

Os textos, escritos por Paulo Franchetti, Edson Kenji Iura e Francisco Handa voltam-se para a importância da figura de Goga, abordando sua vida e obra. Trazem um pouco de sua relação com o Grêmio Haicai Ipê, sua convivência e amizade.

Goga e haicai – um sonho brasileiro. Escrituras Editora, 93 páginas, 2011.

Em 2004, Goga foi homenageado com o Masaoka Shiki International Haiku Prize, concedido pela Fundação Cultural de Ehime (Japão). Alguns de seus haicais:

Flores silvestres pequeninas e sem brilho à espera de abelhas...

As nuvens douradas Flutuam no pantanal - florada de ipê

Alvaro Posselt é poeta, professor de língua portuguesa e revisor de texto. Desde sua graduação, divulga o haicai em escolas e em redes virtuais. (alvaroposselt@yahoo.com.br)

PARA GOGA: HAICAIS DO GRêMIO Ipê Na floricultura a dúvida logo some. Um vaso de clívia. Alberto Murata (1935-2011)

Primavera breve – Anuncia-se no templo novo funeral. Francisco Handa

Num canteiro central sem tetos em happy hour – Primavera quente. Monica Martinez

Jardim Botânico – Planando árvore abaixo flor de jacarandá. Benedita Silva de Azevedo

Manhã de primavera – Lavando roupa no tanque minha mãe canta... Guin Ga

O beiral sem tinta – A casa dos marimbondos Ainda está lá. Neide Portugal

Dia de Finados. As flores nas sepulturas saúdam os que foram. Delores Pires

Um agito de asas... Na penumbra entre folhas pássaros em amor. Hazel de São Francisco

Na trilha do bosque idosos param a marcha – Amoras maduras. Tânia Alves da Costa

Brisa da manhã – O cãozinho fecha os olhos Por alguns instantes. Edson Kenji Iura

Clareira na mata – Velho jacarandá caído carregado de flores. João Toloi

Bolha de sabão – Passa, levando no ar as cores da infância. Tânia D’Orfani

Na banca da feira o viço das alcachofras Mais um ano passou Eunice Arruda

Toalhas em punho grande algazarra na sala – Pega o marimbondo! Lourdes Fátima Basílio

Canto da araponga. Nenezinho se espreguiça e volta a dormir. Zuleika dos Reis


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MEMAI

Seja um Memaijin, assine o Jornal Memai Sim, aceito assinar o Jornal Memai por um ano - quatro edições - R$ 25,00 (vinte e cinco reais) a ser depositado na Conta de Marilia Kubota - Caixa Econômica Federal - Ag. 370 - Conta corrente 9357-3.

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MEMAI LITERATURA

UM FLANÊUR EM TÓQUIO

COTIDIANO SENSÍVEL

PARA QUEM SE AVENTURA

E depois Natsume Soseki, tradução de Lica Hashimoto, Estação Liberdade, 294 páginas.

A mulher que não queria acreditar Fernanda Takai, Panda Books, 122 páginas.

Contos do Sol Nascente André Kondo, JBC Editora, 122 páginas.

Fernanda Takai não é escritora, apesar de este ser o seu segundo livro de crônicas. A literatura surgiu em sua vida quando começou a colaborar para os jornais Correio Braziliense e O Estado de Minas Gerais. Nestes espaços, a vocalista do Pato FU começou a escrever sobre suas impressões de viagem a bordo da aeronave Vida. A escrita de Fernanda é ágil, sem rodeios, como os poemas de suas canções. Seus temas são cotidianos, mas o cotidiano de uma estrela da Música Popular Brasileira. Não se pode negar que seu texto é sensível, com o olhar atento para detalhes e personagens humildes.

André Kondo já escreveu 3 livros, contando as aventuras vividas nas viagens que fez a diversos países, Espanha, Grécia, Turquia, Nepal, Índia, Sibéria, África, Austrália. De todas as aventuras, confessa, a maior começou quando decidiu ser escritor.

O romance E Depois, de Natsume Soseki (1867-1916) é considerado o primeiro romance psicológico do autor . O protagonista, Daisuke Nagai, é um solteiro ocioso de 30 anos. Sustentado pelo pai, só se revolta quando este exige um casamento. A exigência é uma ofensa para o filho, que defende seu individualismo a todo custo.O romance reflete as transformações causadas pela Restauração Meiji, iniciada em 1867, quando os imperadores retomam o poder depois de séculos de xogunato. Soseki nasceu em Tóquio em 5 de janeiro de 1867. Teve infância difícil e solitária. Estudou literatura tradicional chinesa desde a infância. Aos 23, ingressa na Universidade Imperial (atual Universidade de Tóquio). A saúde fraca o fez abandonar o trabalho de professor de inglês em Tóquio e mudar para o interior. Depois de algumas crises pessoais, obteve sucesso com Eu sou um gato em 1905. Tornou escritor exclusivo do Asahi Shimbun. Em 1910 é acometido por úlcera. Falece em 9 de dezembro de 1916, de sequelas de úlceras. Principais obras: Botchan (1906), Sanshiro (1908), Mon [O portal] (1910), essas duas compõem uma trilogia com E depois. (Texto:divulgação). TRECHO “— Que vergonha! Trinta anos... E sem fazer nada o dia inteiro... Como pode? Daisuke não se considerava um ocioso. Ele apenas não passava a maior parte do tempo vivendo exclusivamente para o trabalho, já que se considerava uma espécie humana de excelência. O fato é que, toda vez que seu pai insistia nesse assunto, Daisuke sentia pena dele. O cérebro pouco desenvolvido de seu pai não conseguia perceber que o filho aproveitava o tempo de um modo muito mais significativo, cristalizado em pensamentos e emoções. Sem outra opção, Daisuke limitava-se a esboçar uma expressão séria e concordava: — Realmente, é um problema.”(pp. 39-40).

A diagramação criada pela designer Sandra Hiromoto dialoga com o estilo contemporâneo de Fernanda, colando muitas letras entre as imagens. Mas ao acabar de ler A mulher que não queria acreditar, a ideia é se os livros escritos por artistas (mesmo os que escrevem muito bem, como Zeca Baleiro e Caetano Veloso) não são destinados unicamente a seus fãs. Para os fãs de Fernanda, seu livro de crônicas é tão precioso quanto sua obra musical. Para os que são leitores sem ser seus fãs, é uma diversão despretensiosa. (MK)

LANÇAMENTO EDIFÍCIO

BRIGADEIRO TOWERS Rua Brigadeiro Franco, 2190, entre Av. Visc.Guarapuava e Dr. Pedrosa, ao lado do Shopping CURITIBA Plantão no local Tel.: 3232-6894

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Rua Tibagi ,285 CURITIBA Creci 940J (41) 3233-6225

O fantástico e o inusitado que povoam os livros anteriores também estão presentes nas 15 histórias de Contos do Sol Nascente. O ponto de vista do estranhamento pode dificultar a identificação do leitor brasileiro com as narrativas. Mas é possível que os leitores de Musashi (mais de 120 milhões de exemplares vendidos no mundo todo, 120 mil no Brasil, segundo sua editora), adeptos de aventuras, achem graça nestes híbridos japoneses. Kondo é autor dos livros Além do horizonte, Amor sem fronteiras, O pequeno samurai. Mais informações no blog do autor: www.contosdosolnascente.blogpot.com(MK)


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MEMAI KINEMA

A MONTAGEM ILIMITADAMENTE FLUTUANTE

Yasuziro Ozu, considerado um dos três grandes cineastas japoneses de projeção internacional, ao lado de Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi, singularizou-se por seu olhar sobre a vida nas cidades, criticando a modernização sem deixar de lado a poesia por Marilia Kubota Yasujiro Ozu nasceu em Tóquio, a 20 de dezembro de 1903. Realizou muitos filmes em que o protagonista é a megalópole. Mas nem sempre seus críticos o consideram um cidadão de Tóquio. Ele morou longe da capital até se tornar adulto. Quando tinha dez anos, a mãe e os irmãos mudaram-se para Matsuzaka (na província de Mie, próximo a Nagoya, região central do Japão), terra natal do pai, onde Ozu foi educado e Ozu foi educado ali. Esta essa experiência o fez contemplar Tóquio de longe. Fez estudos secundários e foi trabalhar como professor. Aos 20 anos, começou a trabalhar como assistente de câmera na companhia cinematográfica Sochiku , hoje Sochiku Kabushi-gaisha (verificar). Aos 24, lançou a primeira obra: Espada da penitência (Zange no yaiba). Morreu em 12 de dezembro de 1963.

FILMOGRAFIA BÁSICA: Coral de Tóquio (Tokyo no gashô, 1931), Eu nasci, mas (Umarete wa mitakeredo, 1932), Mulher de Tóquio (Tokyo no onna, 1933) , Um hotel em Tóquio (Tokyo no yado, 1935), Filho Único (Hitori musuko, 1936), Os irmãos da família toda, Era uma vez um pai (Chiki Ariki, 1942), Relato de um proprietário (Nagaya Shinshi roku, 1947), Uma galinha no vento (Kaze no naka no mendori, 1948), Pai e filha (Banshun, 1947), Era uma vez em Toquio (Tokyo monogatari, 1953).

Se sou fabricante de tofu, tudo que posso fazer é tofu – é o que estou sempre dizendo. Uma mesma pessoa não é capaz de fazer tantos filmes diferentes. Num restaurante de loja de departamentos, nesses onde há de tudo, não se consegue uma comida gostosa. Assim é na realidade. Mas, mesmo que tudo pareça igual para as pessoas, eu descubro coisas novas, uma a uma e, com interesse novo, dedico-me à obra. Sou exatamente como uma artista que continua a executar várias pinturas da mesma rosa [ASAHI SHIMBUN, 28 de agosto de 1962, edição vespertina]

Cena de Pai e Filha A vida dos japoneses é absolutamente não-cinematográfica. Por exemplo, ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os cordões dos sapatos, e assim por diante. Não como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não tem outra saída senão retratar essa vida propensa a estagnações por meio de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica [KINEMA JUMPÔ, 11 de janeiro de 1955]

Cena de Uma galinha no vento Não quero mais registrar coisas nem atitudes que provoquem ceticismo. Não sei como me expressar, mas tendo ido à guerra, comecei a sentir algo como um espírito de absoluta afirmação. É como uma vontade de gritar, vinda de meu âmago: “Deixem as pessoas e as coisas como estão. Para mim,espaço tudo bem. [ASAHI SHIMBUN, 16 de agosto de 1939, edição vespertina]

Cena de Era uma vez em Tóquio Uma vez, no rio Shussui, deparei com um local que desejei representar no cinema. Estava deitado de bruços, nas proximidades de um pé de abricó; à minha frente, ribombavam as explosões de uma batalha próxima. Nesse momento, os sons da repentina queda dos abricós atingiram agradavelmente meus ouvidos. Havia, ainda,uma árvore cheia de flores brancas, e a queda de suas flores era muitíssimo bela e suave. Instintivamente, desejei registrar da guerra apenas aquele local [Asahi Shimbun, mesma edição]

Crédito: fotos e textos extraídos do livro “O Anticinema de Yasujiro Ozu”, de Kiju Yoshida, Cosac & Naify, 2003.


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MEMAI VIDA

MEU PAI, UMA PITANGUEIRA E SEUS FRUTOS Um pé de pitanga desperta um sentimento de compaixão e uma pequena viagem à infância e ao tempo dos pioneiros imigrantes

Crédito: Arquivo Pessoal

por Lina Saheki

50 anos da chegada do Afurika Maru (2010). Hisayoshii, sentado, o 1º. da dir.p/ esq. Quando comecei a ensinar japonês em Curitiba, lá pelos idos de 2007, contava uma história motivacional para os alunos. De que havia escolhido ser professora por causa de um pé de pitanga que fica ao lado da ciclovia do Centro Cívico, mais ou menos na altura do Bosque do Papa João Paulo II. Como a história é importante e faz algum tempo que não a conto, decidi imortalizá-la no JORNAL MEMAI. É mais ou menos assim: em 2006, alguns meses depois de me mudar para Curitiba, meus pais – que moram no Espírito Santo - me fizeram uma visita. Naquela época, eu morava no Centro Cívico, bem perto do Bosque do Papa, e eles adquiriram o hábito, durante a sua estada, de fazer uma caminhada matinal por essa área. Em uma manhã, meu pai, ao retornar do passeio, entrou no apartamento e comunicou, seriamente, que iria escrever uma carta para a prefeitura. Logo imaginei que a carta seria para tratar de questão relativa à infraestrutura ou à segurança no bairro. Mas não era nada disso. Segundo papai, a carta começaria assim: “Prezado Senhor, Sou o pé de pitanga que foi plantado ao lado da ciclovia perto do Bosque do Papa. Estou morrendo de frio. Por favor, me devolvam para minha terra natal”. Não pude deixar de sorrir enquanto meu pai,

que havia visto a mirrada pitangueira, explicava o sofrimento da planta. Lembro-me apenas de ter dito algo como: “Só poderia ser papai!”. Para mim, a graça dessa história reside, em parte, na inocência de meus pais. Reside, também, na memória guardada por essa compaixão. Afinal, eu mesma já havia percorrido aquele trajeto inúmeras vezes, mas meus olhos (seriam somente os olhos?) jamais estiveram abertos o suficiente para sentir a realidade dessa forma. Talvez estivesse sempre envolta em meus próprios pensamentos e problemas, talvez com pressa, ou não tenha sofrido suficientemente para alcançar esse grau de compaixão. “Terra natal...”, ele disse. Meu pai nasceu no Japão em 1944 e emigrou para o Brasil aos 16 anos para fugir da recessão do pós-guerra. Em 1960, meus avós e seus quatro filhos embarcaram no Afurika-Maru. Tempos muito difíceis, inacreditavelmente penosos. Uma vez, há alguns anos, passeando pelo interior com meus pais e irmãos, vimos uma casa construída com alguns tijolos e paredes de pau a pique. Meu pai comentou, então, que havia vivido em uma casa semelhante em seus primeiros anos de Brasil. E que, à noite, o vento que entrava pelas muitas frestas trazia frio. Eu quase não consegui acre-

ditar, afinal, como era possível que meu pai, aquele engenheiro aposentado, sempre sereno e tranquilo, pudesse ter vivido aquilo há pouco mais de 50 anos? “Estou morrendo de frio. Por favor, me devolvam para minha terra natal”. Por quantos momentos de frio ele não havia passado? Quantas vezes não deve ter desejado retornar ao Japão? Sei o quão difícil é conceber tais histórias e dificuldades que, felizmente, não vivi. Apenas as admiro, assim como a força e a determinação que se escondem sob a compaixão por todos os seres, valor tão caro à tradição zen-budista, mas que se revela em singelas formas como “Eu sou o pé de pitanga...”. Compaixão, mesmo tendo vivido na pele o frio e a dor da separação da terra natal. Meu pai até hoje ri quando lhe digo o quanto essa história (ou seria um koan?) ainda me emociona. “Bakajanaika!”, (“Como é boba!”), ele responde. E o que tudo isso tem a ver com as aulas de japonês? É que eu queria que mais pessoas, ao ouvirem histórias semelhantes, descobrissem os valores e as dificuldades que se escondem por trás das palavras – o poder de nossa própria cultura. Que descobrissem que a beleza está, às vezes, bem aqui ao lado, travestida em pequenas sentenças familiares, na comida um pouco mais doce ou salgada que o habitual, no olhar demorado de nossos pais. No fundo, eu queria que, ao contar uma história como essa, mais pessoas sorrissem. Com os olhos compassivos, ao entender, enfim, que também podem ser o pé de pitanga. P. S. Depois de escrever essa coluna, enviei um e-mail ao meu pai, pedindo permissão para colocar a foto que a ilustra. Eis a resposta: “Lina, não tem problema usar a foto. Ontem, procurando algumas fotos, revirei todos os álbuns e lembrei-me dos tempos passados, inclusive de vocês pequenos. Certamente encontrei as fotos da casa de pau a pique que fizemos de pilares de eucalipto, bambu, sapé e barro, cheia de desesperos e sonhos. Mas o tempo se encarregou de transformar as dificuldades e sofrimentos do passado em “*なつかしさ” (*), para podermos lembrá-los com carinho”. (*) -なつかしさ/natsukashisa pode ser traduzido nesse contexto como saudade. ▀ Lina Saheki (saheki.lina@gmail.com) é diretora do Centro Cultural Tomodachi, professora de japonês e mestre em Direitos Humanos. Participação especial de Hisayoshi Saheki.


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