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Justiça Social e Justiça Histórica Boaventura de Sousa Santos
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o voltar do período de férias, os Ministros do Supremo Tribunal Federal enfrentarão uma questão crucial para a construção da identidade do Brasil pós-constituinte: é possível adoptar um sistema de acções afirmativas para ingresso nas universidades públicas que destine parte das vagas a negros e indígenas? Ao rejeitar o pedido de liminar em acção movida pelo DEM, ex-PFL, que pretendia ver suspensa a matrícula dos alunos aprovados na UnB no âmbito de uma política de selecção com estes contornos, o Ministro Gilmar Mendes sugeriu que a resposta a esta questão fosse buscada em função do impacto das acções afirmativas sobre um dos elementos que acompanha o constitucionalismo moderno desde as suas origens, na Revolução Francesa: a fraternidade. Perguntou o Ministro se, com o advento de programas como o da UnB, o país estaria abrindo mão da idéia de um país miscigenado e adoptando o conceito de uma nação bicolor, que opõe “negros” a “não-negros”. E indagou se não haveria formas mais adequadas de realizar “justiça social”, tal como a adopção de cotas pelo critério da renda. A proposta de situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade representa uma importante inovação no discurso do STF. Mas assim como o debate sobre a adopção de acções afirmativas baseadas na cor da pele não pode ser dissociado do modo como a sociedade brasileira se organizou racialmente, o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere. Como já escrevi nesta secção, a enunciação do ideário da fraternidade nas revoluções iluministas européias caminhou de par com a negação da fraternidade fora da Europa (“Tendências/Debates”, 21/08/2006). Nesse “novo mundo”, do qual o Brasil se tornou parte desde que a Carta de Caminha chegou ao Rei de Portugal, a prosperidade foi construída à base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e
da sobreexploração dos escravos que para aqui foram trazidos. Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo antiíndio e antinegro. (“Tendências/Debates”, 10/06/2008). É claro que na organização das suas relações raciais o Brasil difere de países como os EUA, na medida em que apresenta um grau bem maior de miscigenação. A questão é saber se esse maior grau de miscigenação foi suficiente para evitar a persistência de desigualdades estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica ou, em outras palavras, se o fim do colonialismo como relação política acarretou o fim do colonialismo como relação social. Indicadores sociais de toda ordem dizem que essas desigualdades não apenas persistem, como prometem seguir atormentando as gerações futuras. Um estudo recente divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, por exemplo, mostra que o risco de ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior entre adolescentes negros do que entre brancos. Falar em fraternidade no Brasil significa, essencialmente, enfrentar o peso desse legado, o que representa um grande desafio para um país em que muitos tomam a idéia de democracia racial como dado, não como projecto. Mas se o desafio for enfrentado na sua inteireza pelas instituições sem que se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos “pobres”, o país caminhará não apenas para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sócio-político. Ao estabelecer e monitorar um sistema de acções afirmativas que destina parte das vagas a pretos, pardos e indígenas, a UnB tem oferecido três grandes contribuições para essa transição. Em primeiro lugar, o sistema de educação superior pode recusar-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobilizar a comunidade para a construção de alternativas de inclusão de seg-
nBoaventura Santos: história e justiça social ANO III Nº 32
Agosto de 2009
Estado, sociedade e lógica punitiva
Para os estudiosos das reformas universitárias, seria fundamental que o programa da UnB pudesse completar o ciclo de 10 anos previsto no Plano de Metas da instituição. Sobre o posicionamento a ser adoptado pelo STF diante do problema, a resposta não está clara. O Tribunal poderá desprezar a experiência da UnB sob o receio de que ela venha a dissolver o mito de um país fraterno, porque mais miscigenado que outros. Mas o Tribunal também poderá conceder que o programa da UnB representa, bem ao contrário, uma tentativa válida de institucionalizar a fraternidade ao reconhecer a existência de grupos historicamente desfavorecidos, contribuindo, assim, para a efectivação da justiça social. Somente a segunda resposta permite combinar justiça social com justiça histórica.
nEntrevista: Professora Ela Wiecko
C&D Constituição & Democracia
Criminologia:
mentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica. Em segundo lugar, a construção e adopção de alternativas com este recorte não acarreta prejuízo para a qualidade dos trabalhos acadêmicos; ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus. Em terceiro lugar, apesar de levantar reacções pontuais, como a do DEM, e de incluir decisões que sempre serão polêmicas, como a do critério de identificação dos beneficiários, acções afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica conseguem desenvolver um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica. Basta ver como diversos grupos de pesquisa e sectores do movimento estudantil se articularam em defesa do sistema da UnB quando este se viu confrontado pela acção do DEM.
nDilema do Direito Penal: Lei Maria da Penha
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Cotas raciais em universidades
EDITORIAL
José Geraldo de Sousa Junior - Reitor da Universidade de Brasília, professor da Faculdade de Direito e coordenador do projeto O Direito Achado na Rua
Observatório da Constituição e da Democracia
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crise do sistema penal é assunto de permanente discussão na mídia, na universidade, nos setores responsáveis pela execução de políticas públicas. Fala-se em alternativas ao sistema penal, mudanças na legislação, tratamento digno aos presos, políticas de segurança pública. A Constituição Federal assegura essa dignidade, quando impõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, vedando, ainda, a pena de morte. Neste número do Observatório da Constituição e da Democracia, realizado em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (GCCrim), lançaremos um olhar crítico sobre a vivência das garantias constitucionais do campo penal. Luciana Ramos aborda a difícil situação das mulheres encarceradas e a luta por seus direitos sexuais e reprodutivos. Os impactos da Lei Maria da Penha são novamente tema de artigo do Observatório, agora em texto de autoria de Mayra Cotta. Em entrevista, a Professora Ela Wiecko de Castilho fala de assuntos caros à criminologia crítica, como o processo de reforma do Código Penal, e também sobre a ocupação pelas mulheres de espaços públicos de poder. Os textos que compõem este número adotam a perspectiva de que a Criminologia Crítica propõe outro olhar à questão penal – e estes novos caminhos se iniciam nos bancos da faculdade. Estudar e compreender a Criminologia são fundamentais ao estudante de Direito. Trazemos à discussão também o tema das ações afirmativas, que já foi objeto de um número específico do Observatório. O Prof. José Geraldo de Sousa Junior chama a atenção para o importante debate em torno do sistema de cotas da Universidade de Brasília, que foi impugnado perante o STF. Na mesma linha de afirmação da importância das cotas no processo de reconhecimento do caráter emancipatório do direito, Boaventura de Sousa Santos destaca a relevância de combinar justiça social e justiça histórica. Com essas propostas, este número do Observatório da Constituição e da Democracia, lançado no momento em que se discutem políticas de segurança pública na CONSEG – Conferência Nacional de Segurança Pública, em Brasília – DF, traz pontos de partida para algumas discussões, esperando que a relação entre sistema penal, justiça social e Constituição seja, um dia, real. Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito – Universidade de Brasília
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Por que ensinar criminologia? Carolina Costa Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduação em Direito da UnB Marina Quezado Grosner - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de 04 Criminologia; Professora voluntária de “Criminologia” (2005-2007) na graduação em Direito da UnB
A experiência de Ceilândia Lei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor? Mayra Cotta - Graduanda em Direito pela UnB, integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) e do 06 Projeto de Extensão de Atendimento de Mulheres em situação de violência doméstica na Ceilândia
Justiça Restaurativa: uma resposta possível aos conflitos penais Marina Lopes Rossi - Membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM). Cursando o Máster de Criminologia e Execução Penal na Universidade Autônoma de Barcelona
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A audiência única no processo penal Pedro Ivo - Advogado, bacharel em Direito pela UnB, membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) 10
Dos grilhões ao satyagraha Ricardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM)
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Entrevista com a professora Ela Wiecko Reforma penal, lei Maria da Penha e segurança pública: (im)possibilidades para uma justiça criminal Carolina Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduação em Direito da UnB Eneida Vinhaes Bello Dultra - Mestranda em Direito, Estado e Sociedade, consultora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA Noemia Porto - Mestranda em Direito, Estado e Constituição na UnB, especialista em Direito Constitucional pela 12 UnB, diretora da Escola de Magistratura do Trabalho da 10ª Região (Ematra-X) e juíza do Trabalho
OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO A feminilidade encarcerada Luciana de Souza Ramos - Pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) da Universidade de Brasília. Foi pesquisadora-membro do Grupo de Trabalho Interministerial sobre sistema carcerário feminino de 14 2008
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
EXPEDIENTE Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB – Plataforma Lattes do CNPq). ISSN 1983-8646 Coordenação Alexandre Bernardino Costa Argemiro Martins Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Valcir Gassen Comissão executiva Mariana Cirne Paulo Rená da Silva Santarém Ricardo Machado Lourenço Filho Silvia Regina Pontes Lopes Sven Peterke Integrantes do Observatório Adriana Andrade Miranda Aline Lisboa Naves Guimarães Beatriz Vargas Damião Alves de Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniela Diniz Daniele Maranhão Costa Douglas Antônio Rocha Pinheiro
Douglas Locateli Eneida Vinhaes Bello Dultra Fabiana Gorenstein Fabio Costa Sá e Silva Giovanna Maria Frisso Guilherme Scotti Jean Keiji Uema Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Judith Karine Juliano Zaiden Benvindo Leonardo Augusto Andrade Barbosa Lúcia Maria Brito de Oliveira Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marthius Sávio Cavalcante Lobato Natália Dino Noemia Porto Paulo Henrique Blair de Oliveira Ramiro Nóbrega Sant´Ana Raphael Augusto Pinheiro Renato Bigliazzi Rosane Lacerda
A cruel mecânica das sentenças criminais condenatórias Vinicius Machado - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de Criminologia
OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS A presença do GCCrim no Fórum Social Mundial de 2009 Diogo Machado - Advogado e membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim)
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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público e a execução da pena criminal Paula Bajer Fernandes Martins da Costa - Procuradora Regional da República; doutora em direito processual penal-USP; coordenadora do Grupo de Trabalho Sistema Prisional da Procuradoria Federal dos Direitos do 20 Cidadão; diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República
DIREITO ACHADO NA RUA Advocacia e Consultoria www.yamakawa.adv.br
As janelas quebradas da democracia Paulo César de Sales Júnior - Graduando da Faculdade de Direito da UnB
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NOTA DO CORRESPONDENTE As diferentes melodias da América Ana Luiza - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB
Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda
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Justiça Social e Justiça Histórica
Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)
Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação - Gustavo Di Angellis Ilustrações - Flávio Macedo Fernandes Contato observatorio@unb.br www.fd.unb.br
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Preço avulso: R$ 2,00
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Cotas raciais em universidades José Geraldo de Sousa Junior
“A
s cotas deram concretude a objetivos de justiça social, equilibrando as proporções étnicas presentes na sociedade, e fizeram circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre saberes”. Volto a um tema que já havia sido objeto de abordagem neste espaço (Cotas contra a desigualdade racial). E o faço em razão de ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) proposta pelo Democratas (DEM), ex-PFL, contra os atos normativos que estabelecem o sistema adotado pela UnB para ingresso de negros na universidade. Submetida ao presidente do STF ainda no recesso de julho, o autor requereu liminar para suspender o registro dos alunos aprovados no último vestibular, tanto pelo sistema universal quanto pelo sistema de cotas, para assim obter nova listagem de aprovados; e também para impor que os juízes e tribunais de todo o país determinassem a suspensão imediata de todos os processos que envolvam a aplicação de sistemas de cotas em universidades. Ao prestar informações, a UnB reafirmou a convicção acerca da constitucionalidade do sistema por ela adotado, tanto mais que em consonância com as diretrizes de direito internacional dos direitos humanos, às quais o Brasil se vincula, além de explicar o alcance acadêmico do modelo autonomamente aplicado. Mostrou como, política e epistemologicamente, a instituição deu concretude a objetivos de justiça social, “amorenando” a universidade e equilibrando as proporções étnicas presentes na sociedade, de um lado, enquanto, de outro, a experiência abriu condições para fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre saberes. Contra o argumento de que a medida proporciona um racismo invertido, salientou que o modelo adotado não deriva de uma concepção biologista restrita, mas, tal como o
próprio STF já fixou em julgamento paradigmático, “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social”, e é desse pressuposto, fenótipo, que se origina “o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista” (Habeas Corpus nº 82.424, DJU de 19/3/2004, seção 1, p. 17). Na manifestação apresentada ao Supremo, a AGU defendeu que as medidas de ação afirmativa destinam-se a reduzir as desigualdades fáticas registradas entre os estudantes que competem para ingressar no ensino público superior. A peça elaborada pela Secretaria Geral de Contencioso (SGCT) lembrou a tradicional posição da jurisprudência do STF, no sentido de garantir a participação das minorias no processo democrático de formação de opinião e vontade, em todas as suas esferas.
Em seu parecer, o procuradorgeral da República, Roberto Gurgel, afirmou que as cotas não só respeitam o princípio da igualdade como também ajudam a alcançar esse preceito constitucional. O procurador citou também a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação, da qual o Brasil é signatário desde 1968. A convenção recomenda às nações a implantação de políticas de ação afirmativa para reverter a trajetória de minorias que sofrem discriminação. Para o procurador-geral, “o mito da democracia racial transformou-se em retórica oficial, passando a servir como um álibi para que o Estado e a sociedade brasileira nada fizessem a respeito da discriminação”. Além disso, ele sustentou que as cotas atendem ao chamado princípio da justiça distributiva e ajudam a quebrar estereótipos e a promover maior plu-
ralismo. Ainda segundo o procurador, “o quadro de dramática exclusão do negro justifica medidas que o favoreçam e que ensejem uma distribuição mais igualitária de bens escassos, como são as vagas em uma universidade pública, visando à formação de uma sociedade mais justa”. O presidente do STF, Gilmar Mendes, não concedeu a liminar e remeteu o debate ao Plenário, que é o mais apropriado para a dimensão do tema que foi levado ao Supremo, assegurando um auditório amplo, que permita ao país mobilizar-se para discussão tão relevante.Trata-se, agora, de participar fortemente desse debate, procurando dar sustentação a ações afirmativas enquanto reconhecimento de um direito emancipatório com o qual, como lembra Boaventura de Sousa Santos,“a diferença não nos inferiorize e a igualdade não nos descaracterize”.
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Por que ensinar Criminologia? Carolina Costa Ferreira e Marina Quezado Grosner
E
nsinar Criminologia é um desafio. Os estudantes de Direito, acostumados às visões fragmentadas das disciplinas que se apresentam ao longo de todo o curso, resistem à proposta de um saber que extrapola métodos ou teorias, propondo um novo modo de pensar. Para exercitar esta habilidade, alunos e professores precisam ver, compreender, refletir. É preciso, fundamentalmente, reagir à realidade do sistema penal. O senso comum – presente no discurso dos telejornais, na posição dos órgãos de governo, nas leis propostas no Congresso – é uma forte barreira imposta àqueles que se aventuram a ensinar Criminologia. Os “pré-conceitos” são perceptíveis em qualquer ambiente – na universidade, no trabalho, em conversas entre amigos. Nesta perspectiva, contrariar o senso comum pressupõe o (re)conhecimento das teorias criminológicas, da evolução do discurso punitivo na sociedade e, principalmente, refletir sobre as razões pelas quais determinados pontos de vista ganham espaço na mídia, e outros nem tanto. Discute-se, por exemplo, a aplicabilidade da “Criminologia de Ambientes” ou da “Criminologia Clínica”, tipologias que insistem em se reinventar para discutir “causas” do crime e “perfis” de criminosos, para manter em evidência políticas públicas com poucas soluções e muito preconceito: surtos de ciência a serviço do discurso punitivo. Estes exemplos remontam ao paradigma criminológico, chamado positivista; herança do século XIX, preocupa-se com o sujeito criminoso, buscando (somente) nele as causas para o cometimento de crimes. As pesquisas dessa Criminologia começaram pela procura de traços an-
tropológicos da criminalidade, mediante a observação de indivíduos segregados em cárceres e manicômios, em que características como altura, textura do cabelo, tamanho do crânio e do maxilar eram fundamentais para identificar um padrão no perfil do delinqüente. Dessa Criminologia, as pesquisas ampliaram seu objeto, passando às causas físicas, sociais e psicológi-
cas determinantes da conduta delituosa, que revelavam uma personalidade perigosa de uma classe de pessoas - os delinqüentes - sujeitos diferentes dos indivíduos “normais” e dos quais a sociedade deveria se defender. Até hoje se percebe a influência destes conceitos: em muitos Estados, as secretarias responsáveis pela segurança pública são chamadas de Secretarias de “Defesa Social”.
Esse discurso cumpre sua função segregadora e racista, em prol das classes dominantes e dos grupos de poder. Na América Latina, a Criminologia positivista se manifestou fortemente na teoria do homem delinqüente, atribuindo aos índios e negros, nossos primeiros criminosos natos, a condição de inferiores e, portanto, perigosos. Naquele momento, o discurso da delinqüência foi sinô-
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nimo de patologia e degeneração. No início do século XX o ensino da Criminologia ligou-se à Medicina Legal, mas permaneceu como disciplina acessória ao Direito Penal. O curioso é que dita “cientificidade” da Criminologia acabou por afastá-la ainda mais do estudo do Direito. A partir da década de 1930, o estudo teórico da Criminologia perdeu um pouco de seu aspecto médico para despontar como ramo da Sociologia. Indicavam-se como “causas” da delinqüência aspectos sócio-econômicos, ambientais e culturais, relacionando-os às estatísticas criminais. Mas a Criminologia ainda permanecia positivista, etiológica. Porém, nos anos 1960, uma nova teoria mudou relativamente os estudos criminológicos, despertando o pensamento crítico. Constatou-se que a criminalidade não poderia mais ser considerada um comportamento minoritário na população, praticado por alguns indivíduos perigosos, diferentes, anormais. Ao contrário, comprovou-se que todos na sociedade cometem crimes: exercícios de autodenúncia e vitimização mostraram várias condutas violadoras de normas penais que não despertaram a máquina punitiva estatal e, portanto, não trouxeram conseqüência alguma para seus autores. A criminalidade é um comportamento observado na maioria da população, cuja conduta, para ser criminosa, depende da reação a ela, do interesse desta sociedade em satisfazer seus ideais de punição. Neste raciocínio, tal reação se traduz numa “etiqueta” atribuída a esses indivíduos e condutas previamente selecionados. E se apenas parte da criminalidade é apreendida pelo sistema penal, o objeto de estudo da Criminologia positivista também se torna fragmentado, pois cuida apenas dos casos que entraram no sistema penal. A partir destas constatações, a Criminologia deixa de perguntar como ocorre o crime e quem são os criminosos – porque, afinal, o crime e os criminosos conhecidos são aqueles selecionados pelo sistema penal – para perguntar, agora, por
que algumas pessoas são consideradas criminosas, e como é realizada essa seleção. Com esse novo olhar, a Criminologia da Reação Social passa a pesquisar o controle penal. Como são escolhidas as condutas que passarão a ser crimes e as que deixarão de sê-lo? Como age a polícia na apuração dos crimes de que tem conhecimento? Quais fatores influenciam a vítima a levar ou não ao conhecimento da polícia determinado crime? Como é a decisão do Judiciário por iniciar ou não um processo, ou condenar ou absolver determinada pessoa? Qual o impacto que a passagem pelo sistema prisional tem sobre o indivíduo encarcerado? O enfoque presente nestas questões não conseguiu afastar, por completo, o paradigma positivista. A Criminologia, então, ainda fica dividida. E este conflito é revelado nos cursos de Direito. O Direito Penal é considerado a “verdadeira” ciência criminal, tendo a Política Criminal e a
Criminologia como ciências acessórias, repetindo um antigo “modelo integrado das ciências penais”. A disciplina de Criminologia, quando oferecida aos graduandos, é optativa e tratada de forma secundária. Direito Penal e Processo Penal têm maior relevância no currículo acadêmico. O resultado é um total desconforto – inicial – dos alunos que, ao fim do curso, desafiam a si mesmos a pensar de forma diferente, questionando um sistema penal que lhes foi ensinado como se perfeito fosse, nas intenções de “recuperação” e “ressocialização” dos “indivíduos”. Para romper tantos preconceitos em torno do tema, é preciso mostrar a realidade, usando todos os instrumentos possíveis. Discutem-se teorias através de textos, filmes, músicas. O objetivo é praticar ações para despertar reações, discussões e aprendizado mútuo. Professores e alunos se abrem a um universo diferente de possibilidades, com o objetivo de fortalecer o interesse acadêmico no
desenvolvimento de pesquisas que possam revelar a verdadeira realidade do sistema penal, ou a forma pela qual essa visão é construída. Aquele que realmente compreende os postulados da Criminologia se modifica e se torna capaz de transformar, ainda que minimamente, o mundo à sua volta, refletindo sobre os estereótipos que antes reproduzia. Alunos e professores tornam-se mais iguais – estabelecem uma relação de proximidade, cúmplices na descoberta de novos saberes. Passam, sobretudo, a compartilhar uma perspectiva mais humana do Direito. Estudar Criminologia, hoje, na perspectiva da reação social e crítica, mostra-se imprescindível à formação dos juristas, em especial daqueles que optam por atuar na área criminal, para que tenham coragem de propor novos modelos de diminuição do controle penal e de solução de conflitos, para minimizar o sofrimento que o sistema penal proporciona.
A Criminologia deixa de perguntar como ocorre o crime e quem são os criminosos para perguntar, agora, por que algumas pessoas são consideradas criminosas, e como é realizada essa seleção.
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A experiência de Ceilândia Lei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor? Mayra Cotta
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ompletados três anos da entrada em vigor da lei 11.464, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, muitos comemoram supostas conquistas possibilitadas por este instrumento no sentido de redução dos eventos de violência doméstica e familiar. E, de fato, há alguns aspectos que devem ser comemorados – o fenômeno da violência de gênero no âmbito da família e das relações interpessoais ganhou perspectiva nacional e nunca se viu, especialmente
dentro da Universidade, uma discussão tão intensa em relação a este tema. A violência doméstica e familiar, a partir da Lei Maria da Penha, deixou de pertencer entre as quatro paredes do casal para se transformar em fenômeno jurídico próprio. Chama a atenção, contudo, a ênfase dada ao caráter punitivo da lei. Criada como um mecanismo de proteção integral à mulher, voltado, especialmente, à prevenção da violência doméstica de gênero e ao atendimento multidisciplinar das vítimas, a Lei Maria da Penha parece caminhar em direção ao mesmo fra-
casso experimentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim como a aplicação desta legislação abandonou seus principais objetivos de proteção e promoção da cidadania das crianças e adolescentes para se transformar em meio eficaz de punição penal dos menores, a Lei Maria da Penha encontra dificuldades em implementar suas diretrizes preventivas e educativas, assumindo um papel de intervenção pontual do Estado por meio da lógica punitiva do direito penal. A lei, de fato, trouxe mudanças que apontam para um rigor mais
intenso da legislação punitiva – aos crimes ocorridos no contexto da violência doméstica e familiar foi vedada a aplicação de penas pecuniárias, a lesão corporal leve nestas situações teve sua pena aumentada e foi prevista a possibilidade de prisão preventiva para o cumprimento das medidas protetivas de urgência – mas seus principais objetivos vão muito além do aumento da repressão dos agressores. Basta ver as diversas novidades desenvolvidas pela Lei Maria da Penha no sentido de buscar a prevenção da violência doméstica bem como a emancipação da mulher.
A Lei Maria da Penha encontra dificuldades em implementar suas diretrizes preventivas e educativas, assumindo um papel de intervenção pontual do Estado por meio da lógica punitiva do direito penal.
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Como medidas de prevenção, a lei procurou fomentar a integração dos estudos de gênero, a promoção de campanhas educativas e de programas educacionais que enfoquem esta temática, a criação de atendimento policial especializado para as vítimas, a capacitação dos aplicadores da lei e até mesmo a coibição, na mídia, de papéis estereotipados que legitimem a violência de gênero. Também foi pensada uma série de medidas de assistência à mulher em situação de violência doméstica, como a manutenção por seis meses do vínculo trabalhista, o acesso prioritário da servidora à remoção e a inclusão da vítima em programas sociais. Ainda além, um dos principais avanços da lei foi a criação das equipes de atendimento multidisciplinar, integradas por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, que devem fornecer subsídio ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública bem como desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e seus familiares, com especial atenção às crianças e adolescentes. Como se vê, portanto, a Lei Maria da Penha foi concebida para combater de forma eficaz a violência doméstica e familiar, ciente da complexidade deste problema e compreendendo que não há respostas simples e imediatas para a questão. Foram imaginadas diversas maneiras de se proteger integralmente a mulher e de se promover meios para a interrupção dos ciclos de violência, possibilitando à vítima – e ao agressor – uma vida sem violência. O principal aspecto, contudo, que parece ser destacado por parte dos entusiastas da lei, infelizmente, é a maior punição dos autores. O Ministério Público, inclusive, se apropria da lei para enfatizar este viés – afinal, agora é lei: quem bater em mulher vai preso. Até mesmo a implementação da lei se dá por meio da lógica punitiva do direito penal, seja na atuação policial, seja na prática judiciária. Interessante notar, entre os policiais, a ambivalência de suas abordagens nas questões de violência doméstica, observada a partir do acompanhamento de alguns plantões na 15ª Delegacia de Polícia, em Ceilândia. Quando uma mulher procura uma Delegacia alegando que o marido
disse que iria matá-la, ou que seu companheiro a puxou pelos cabelos desde o bar em que estava até a casa onde moram, o mais provável é que receba pouca atenção dos policiais. De fato, pode-se perceber na fala de alguns a idéia de que há brigas normais entre os casais, não merecedoras da proteção policial. Por outro lado, quando a mulher chega apresentando em seu corpo sinais evidentes da violência, os agentes parecem mais estimulados a tomar providências que consideram eficazes – entram na viatura e vão atrás do agressor para realizar o flagrante. No Judiciário, a reprodução desta lógica punitiva do Estado-penal se mostra evidente já de partida, uma vez que as demandas geradas pela Lei Maria da Penha são levadas aos Juizados Especiais Criminais nos Fóruns que ainda não criaram os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, conforme a previsão legal. Dessa forma, os juízes que decidem os conflitos abarcados pela lei transitam também pelos crimes de menor potencial ofensivo – entre
uma mulher que há anos se submete às agressões do marido, eles julgam um crime de desacato e uma contravenção penal de perturbação à tranqüilidade, por exemplo. Isso leva a uma prática que acaba sendo nefasta aos propósitos da lei, pois a violência doméstica e familiar contra a mulher – uma questão complexa, cujo enfrentamento requer atuação multidisciplinar e reflexão para muito além da mera punição do agressor – é reduzida à tipificação de condutas isoladas, retiradas pontualmente da dinâmica de relacionamento dos envolvidos. O juiz, portanto, não procura uma solução abrangente e eficaz para o problema a ele exposto, mas, ao contrário, tende a dar uma resposta estatal adequada à ameaça, à injúria ou à lesão corporal descritas no inquérito. O fenômeno da violência doméstica contra a mulher é traduzido em tipos previstos no Código Penal, simplificado numa linguagem mais familiar aos aplicadores do direito. Também no momento de decidirem acerca das medidas protetivas de
urgência, os juízes parecem se identificar mais com a lógica típica do direito penal. Nos Juizados de Ceilândia, por exemplo, a partir dos atendimentos realizados de forma interdisciplinar entre os cursos de Direito e Psicologia da UnB, no Projeto de Extensão de Atendimento de Mulheres em situação de violência doméstica, é possível perceber uma hesitação dos magistrados em deferirem as medidas protetivas de urgência próprias do direito de família. Realmente, uma análise exploratória realizada nos dois Juizados Especiais Criminais de Ceilândia mostrou que estas medidas são pouco deferidas – prestação de alimentos provisórios, separação de corpos e suspensão das visitas (requeridas em 43%, 34% e 21% dos casos, respectivamente) são deferidas numa freqüência de 3%, 9.5% e 5.5%. Isso pode ser entendido como uma resistência dos magistrados em tocar nas questões afetas às áreas que não pertencem ao direito penal. Igualmente, a medida protetiva de afastamento do lar acaba dependendo quase exclusivamente da gravidade da tipificação dada a cada ocorrência – a mesma análise exploratória constatou que o 75% dos afastamentos do lar são deferidos em situações que envolvem o crime de lesão corporal. O momento de realização da audiência, por sua vez, poderia servir de oportunidade para a compreensão do problema submetido ao judiciário, por meio da escuta da vítima e do agressor, bem como dos demais envolvidos no conflito. Também seria na audiência a ocasião mais adequada para a atuação conjunta dos profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde na orientação e encaminhamento voltados à ofendida, ao agressor e aos familiares. Nos Juizados de Ceilândia, contudo, o que se vivencia nas salas de audiência é a reprodução das práticas típicas dos JECrims – muita correria para o encerramento de cada audiência e pouco espaço para que sejam ouvidos os envolvidos. A lei Maria da Penha, pensada especialmente como forma de prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra a mulher e repleta de mecanismos para se tentar atingir estes objetivos, acaba sendo moldada, na prática, à lógica punitiva do Estado-penal.
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Justiça Restaurativa: uma resposta possível aos conflitos penais Marina Lopes Rossi1
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ampliação das práticas de justiça restaurativa é um desafio, que pode ajudar na construção de um novo sistema de justiça criminal, menos punitivo, em que se busca promover a responsabilidade e a consciência de cada cidadão e não a repressão e a obediência”. “Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa contra a televisão e a danifica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente que nenhum deles vai ficar contente. Mas, cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma atitude diferente. O estudante número 2, furioso, diz que não quer mais morar com o primeiro e fala em expulsá-lo de casa; o estudante número 3 declara: ‘o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos e ele que pague’. O estudante número 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: ‘ele está, evidentemente, doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O último, enfim, sussurra: ‘a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse... Vamos juntos fazer um exame de consciência”. A parábola acima, citada por Louk Hulsman no seu livro “Penas Perdidas”, evidencia que existem várias maneiras possíveis de se lidar com um conflito. No âmbito penal, porém, durante muito tempo, admitia-se apenas uma solução: o modelo repressivo do sistema de justiça criminal, com a aplicação da pena de prisão. O crescimento das práticas de justiça restaurativa começa a questionar este monopólio. A justiça restaurativa propõe uma nova forma de solução dos conflitos penais, com uma maior participação
O crescimento das práticas de justiça restaurativa começa a questionar o modelo repressivo de justiça criminal.
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das partes envolvidas. Não há entre os autores um consenso sobre a definição deste modelo, mas podem-se citar alguns elementos que são essenciais para a sua caracterização: o processo dialogado, a participação das partes e o acordo restaurador. A grande diferença entre a justiça restaurativa e o processo penal tradicional é a existência de um diálogo que permite alcançar um acordo. Este processo é muito positivo para as vítimas, pois elas podem expressar os seus sentimentos ao seu agressor, o que as ajuda a superar o trauma do delito. Também traz benefícios para o infrator, pois após ouvir a vítima ele ficaria mais consciente do dano que provocou. Este encontro ajuda a romper as visões estereotipadas e auxilia as partes a enxergarem o outro. O processo dialogado permite ainda uma participação maior da comunidade na resolução dos conflitos, que é um valor democrático bastante deficiente no sistema penal tradicional. Além do diálogo, por meio do qual as partes envolvidas chegam a uma solução para o conflito, o resultado final também é importante. O acordo restaurador tem como objetivo reparar simbólica e/ou materialmente a vítima e permitir a reintegração do infrator e a restauração da comunidade afetada. É essencial, porém, o estabelecimento de limites para este acordo. Não se pode admitir, por exemplo, que ele tenha como objeto a execução de medidas degradantes para o infrator, pois, apesar da concordância de ambas as partes, ainda há um caráter de castigo, que deve ser limitado legalmente. O Conselho da Europa elaborou alguns princípios que devem ser aplicados em qualquer processo em que se permita à vítima e ao infrator, com consentimento mútuo, participar ativamente na solução das conseqüências do delito, com a ajuda de um terceiro facilitador. Entre estes se pode citar: a necessidade de consentimento, a confidencialidade das discussões e a disponibilidade da mediação em todas as fases da justiça penal. No Brasil há alguns projetos-piloto que buscam implementar práticas restaurativas, mas este modelo não está institucionalizado. Foi firmado um acordo de cooperação entre o Mi-
nistério da Justiça e o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) que objetiva promover estas práticas no país. Com o apoio das Nações Unidas, a Secretaria de Reforma do Judiciário tem procurado fomentar o debate sobre o tema, além de contribuir com alguns projetos-piloto já existentes com o objetivo de incentivar a replicação destas experiências. Foram apoiados três projetos: na Vara da Infância e da Juventude de São Caetano do Sul-SP; na 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre-RS e no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes, em Brasília-DF. É importante destacar que os três projetos são distintos, mas todos aplicam os princípios da justiça restaurativa. Nos dois primeiros, estes são aplicados em casos envolvendo crianças e adolescentes. Já em Brasília, o projeto se dirige aos crimes de menor potencial ofensivo praticados por adultos. A ampliação das práticas de justiça restaurativa é um desafio, que pode ajudar na construção de um novo sistema de justiça criminal, menos punitivo, em que se busca promover a responsabilidade e a consciência de cada cidadão e não a repressão e a obediência. É importante lembrar, porém, que a justiça restaurativa não é (e não
Um conflito pode ser resolvido de diferetes maneiras e não se deve pretender construir um único modelo para todos os casos. pretende ser) a panacéia de todos os males do sistema de justiça criminal e que não são todos os casos que podem ser resolvidos por meio deste modelo. Trata-se de uma alternativa que propõe um novo olhar sobre os conflitos penais, buscando não a culpabilidade individual, mas o enfrentamento de todas as questões relativas ao conflito. Procura-se não a punição, mas a responsabilização pelo dano praticado e a reparação. O foco não está no passado, na ação já praticada, mas no futuro, no que pode ser feito para restaurar as partes envolvidas e a comunidade. Para a construção de um sistema de justiça justo é essencial que se promovam diferentes formas de solução dos conflitos penais. É preciso retirar os óculos da retribuição para poder
enxergar novas alternativas, que podem proporcionar soluções mais satisfatórias para as partes e para a toda a sociedade. Como já afirmava Hulsman, um conflito pode ser resolvido de diferentes maneiras e não se deve pretender construir um único modelo para ser imposto a todos os casos. Ao contrário, é necessário se promover e incentivar diferentes estratégias mais compatíveis com a pluralidade e a complexidade da sociedade moderna. Nesse contexto, a justiça restaurativa surge como uma resposta possível, que não destaca apenas o que há de negativo nos conflitos penais, mas aproveita o seu potencial transformador e incentiva o protagonismo da comunidade na solução dos seus problemas.
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A audiência única no processo penal Pedro Ivo
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o ano de 2008, foram editadas as Leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008, que instituíram profundas modificações, respectivamente, no Tribunal do Júri, no regime de provas do processo penal e no procedimento penal ordinário. Com pouco mais de um ano da Reforma Processual Penal, intensas discussões têm sido travadas sobre a interpretação dessas novas disposições. No meio acadêmico, discute-se se o propósito da Reforma de modernizar o processo penal, tornando-o célere, não traz o risco de sacrifício aos postulados do devido processo legal e da ampla defesa. Nos tribunais, o dia-a-dia das varas criminais tem originado uma série de discussões sobre a aplicabilidade de dispositivos das novas leis. Um dos institutos que mais tem sido objeto de debates é a audiência única. A nova audiência, antes cindida em três sessões distintas, passou a compreender a realização de toda a instrução processual, a realização de alegações finais orais pelas partes e o proferimento de sentença em audiência. Em razão dessa abrangência, a audiência única tem sido chamada de “superaudiência” por autores que analisaram a Reforma de 2008. A proposta de uma audiência única está diretamente vinculada ao objetivo de acelerar a tramitação dos processos criminais. Nesse contexto, a estratégia encontrada pela Lei para que o processo seja célere e, ao mesmo tempo, resguarde, ao menos formalmente, o devido processo legal e a ampla defesa, foi fortalecer a oralidade. Para tanto, a Reforma não apenas robusteceu o emprego da palavra falada (alegações finais orais), como impôs a concentração dos atos processuais (audiência única) e instituiu o princípio da identidade da física do juiz (o juiz que acompanha a instrução profere a sentença). Somente com a confluência desses três elementos resguarda-se a oralidade. Por outro lado, qualquer transgressão, ainda que tênue, a tais requisitos, ocasiona uma quebra irreparável da oralidade. Pelo fato de a cisão da instrução e a substituição de juízes serem bastante comuns no cotidiano das varas criminais, a aplicação do rito da au-
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Dos grilhões ao satyagraha Ricardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo
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diência única tem gerado situações. Os Tribunais têm se deparado com situações em que as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa impõem a inovação do procedimento da audiência única. Nesse contexto, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal – TJDFT decidiu, recentemente, em habeas corpus impetrado pelo Núcleo de Prática Jurídica da Universidade de Brasília – NPJ/UnB (habeas corpus nº 2009.00.2.002622-7), que, na hipótese de realização de diversas audiências, presididas por diversos juízos diferentes, deve ser oportunizado às partes o oferecimento de alegações finais escritas – ainda que a Lei preveja de modo diverso, pelo fato de as alegações finais orais não se mostrarem suficientes para o resguardo da ampla defesa. É que, no caso de quebra
da oralidade, as atas de audiência e os demais atos documentados tornam a ser a principal fonte informativa do processo, o que impõe, por conseqüência, o emprego da linguagem escrita por todos os atores envolvidos. Em outro julgado, também de iniciativa do NPJ/UnB (habeas corpus nº 2009.00.2.005529-1), o TJDFT entendeu que a cisão da audiência - comum por razões práticas - pode ser determinada também se estiverem sob perigo garantias constitucionais. Foi o que ocorreu na hipótese analisada pela Corte, em que o acusado, por ser morador de rua, não foi localizado por seus advogados dativos antes do oferecimento da defesa preliminar (momento em que são indicadas as testemunhas). O Tribunal decidiu por resguardar o direito do acusado de indicar testemunhas para
um momento posterior, ainda que a consequência disso seja a cisão da audiência: “o instituto da audiência una deve ser respeitado se garantidos os postulados de maior grandeza como a ampla defesa e o contraditório”. Os julgados acima citados possuem, em comum, o fato de terem encontrado soluções constitucionais para dificuldades práticas na aplicação do instituto da audiência única. As decisões mencionadas fornecem um norte para a interpretação dos dinâmicos institutos da Reforma de 2008. Nas hipóteses em que a observância das novas disposições legais favorecer tão somente o projeto de celeridade e deixar de atender ao devido processo legal e à ampla defesa, adaptações são necessárias, ainda que, em algumas hipóteses, contra a literalidade da Lei.
o afirmar que o ideal democrático é o cidadão responsável, e não o obediente, o satyagraha de Gandhi nos permite enxergar o conflito como elemento estruturador da própria vida social e a não-violência como uma vitória em si, independente do resultado alcançado”. Resultado da união dos termos sânscritos satya (verdade) e agraha (firmeza), a palavra satyagraha ficou nacionalmente conhecida como o nome dado à operação da Polícia Federal que, em julho de 2008, prendeu o banqueiro Daniel Dantas, o megainvestidor Naji Nahas e o exprefeito de São Paulo Celso Pitta, entre outros, sob a suspeita de envolvimento em crimes financeiros e casos de corrupção. Não obstante o contexto em que empregado, a origem do conceito em nada diz com a repressão ou o uso das prisões como meio de se alcançar determinados fins. Pelo contrário, está em polo diametralmente oposto. Seu desenvolvimento deve-se a Mahatma Gandhi e está ligado ao modo não violento de vida. Para Gandhi, o objetivo da vida deve ser a busca pela verdade, entendida como “voz da consciência” e existente em todas as pessoas. Disso decorrem duas premissas caras ao satyagraha: o homem deve ele próprio promulgar as leis que orientem seus pensamentos, palavras e ações, o que implica tanto na possibilidade de incorrer em erros como também corrigi-los quantas vezes for necessário. Essa autonomia é fundamental na busca do justo, pois é maior o risco daquele que obedece cegamente a uma autoridade exterior persistir no erro do que quem pensa por si. O indivíduo que busca a verdade deve convencer-se também que esse é um caminho sem fim, e a verdade será sempre fragmentária, parcial e imperfeita. Logo, o homem não deve nunca tentar impor sua verdade aos outros, imperativo que eleva a tolerância à regra de ouro da conduta humana. Por essa razão, a verdade se en-
contra na relação com o outro, no respeito às suas concepções, tomandose o cuidado de evitar qualquer atitude violenta contra ele. Nessa saga, a não-violência é o meio e a verdade o fim, e o essencial não é ter razão, mas ser bom. Isso não significa, no entanto, que o homem não-violento deva ser omisso e covarde. Para Gandhi, a necessidade de forçar o adversário a reconhecer as exigências da justiça não justifica todos os meios. A não-violência é mais efetiva na luta contra o mal do que a lei de talião, que ao usar de violência só faz aumentar a perversidade. As práticas não-violentas de Gandhi ficaram mundialmente conhecidas durante a campanha pela libertação colonial da Índia nas décadas de 1930 e 1940, quando estratégias de resistência passiva e não cooperação foram utilizadas buscando fins políticos, baseadas na constatação que a maior força do império britânico não estava nos fuzis ou no número de soldados, mas na capacidade de resignação e cooperação voluntária do povo indiano. Em 12 de março de 1930, no que ficou co-
nhecido como “A marcha do sal”, Gandhi e mais setenta e nove companheiros deixaram a cidade de Ahmedabad numa caminhada de 390km até o povoado de Dandi, na costa do oceano Índico, pregando o “dever de deslealdade” para com um governo de leis desumanas que se apoiava na exploração de milhões de indianos. Chegando ao destino, com um punhado de sal apanhado da praia na mão, conclamou seus conterrâneos a abertamente desobedecerem à lei que obrigava ao pagamento do imposto sobre o sal até que a Índia e seu povo se tornassem independentes. Em agosto de 1947 a Índia finalmente se livrou do julgo britânico, sem a necessidade de qualquer levante armado. Mas o que a filosofia e as práticas não-violentas podem ter a ver com o Direito? Afinal, segundo a teoria clássica, o Estado é o detentor do monopólio da violência legítima e o Direito o regulador do seu uso, necessário quando determinadas práticas colocarem em risco o próprio convívio social. Certamente não seria realista conceber uma sociedade sem um governo ao qual se reco-
nheça o direito e os meios de coagir os cidadãos. Todavia, a sociedade brasileira desta primeira década do Séc. XXI vêse imersa numa espiral aparentemente sem fim de violências, fruto de séculos de iniquidades e cultura autoritária, para a qual a resposta habitual tem sido o incremento do poder punitivo estatal, numa lógica de meios e fins em que a violência cometida hoje contribuiria para uma longínqua e incerta paz. Estariam justificados assim os sofrimentos e as restrições a direitos. Ao afirmar que o ideal democrático é o cidadão responsável, e não o obediente, o satyagraha de Gandhi nos permite enxergar o conflito como elemento estruturador da própria vida social e a não-violência como uma vitória em si, independente do resultado alcançado. Trata-se de estabelecer um Estado de Direito no civismo dos cidadãos que voluntariamente renunciam à violência, e não na repressão de governo. Somente então, em uma dinâmica da não-violência, será possível falar efetivamente em uma economia da violência e em Direito Penal mínimo.
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ENTREVISTA COM A PROFESSORA ELA WIECKO
Reforma penal, lei Maria da Penha e segurança pública: (im)possibilidades para uma justiça criminal Carolina Ferreira, Eneida Dutra e Noemia Porto
Considerando as possibilidades de alterações legislativas ao Código Penal (PL 1069/95 entre outros), especialmente na parte dos crimes contra os costumes, a senhora considera que tais iniciativas atendem à expectativa de atualização? E em que medida? A chamada reforma do Código Penal não tem acontecido de forma sistemática, há vários projetos de leis ao mesmo tempo. Foram criadas duas comissões de especialistas, instituídas pelo Ministério da Justiça para apresentarem proposta de revisão do CP. A Comissão Especial de 1998 se dedicou a rever a parte especial, da qual participei como única mulher. Logo foi abandonada a idéia de se fazer mudanças no sistema de penas, por exemplo, modificando em alguns tipos previstos com pena privativa de liberdade para pena substitutiva. Isso exigiria um grande esforço de revisão geral. A compreensão era de que a sociedade veria tais modificações como um “afrouxamento” do sistema. Esse já foi um sinal de que não conseguiríamos fazer uma verdadeira reforma. Para mexer nos crimes da parte especial era preciso enfrentar questões polêmicas, a exemplo do crime de aborto, a eutanásia. Havia muita pressão de setores da sociedade, nestes casos, das igrejas. A Comissão decidiu não excluir o crime de aborto, mas deliberou por ampliar as hipóteses do chamado aborto legal. Na segunda Comissão, conseguimos propor a mudança do nome do título dos crimes contra os costumes, para chamálos de crimes contra a dignidade sexual. Ainda queríamos que esse título compusesse a parte dos crimes
contra a pessoa, mas isso também não foi adiante. A proposta aparentava ser mais uma “maquiagem” do que verdadeira reforma. Há um aspecto interessante daquele período, o então Ministro Cernichiaro do STJ conversava bastante com a imprensa sobre os trabalhos da comissão, na tentativa de abrir e publicizar o debate e receber sugestões da sociedade. Eram enviadas correspondências para universidades, pois na época ainda não se tinham disponíveis meios tecnológicos de comunicação. Recebemos diversas contribuições do movimento feminista, articulado pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Como era a única mulher, é como se eu pudesse ser a voz do movimento feminista. Porém, nós que estudamos Criminologia Crítica não acreditamos nos aumentos de penas, na excessiva criminalização. Senti certa dificuldade em dialogar, pois os movimentos de mulheres pretendiam descriminalizar o crime de aborto, mas criminalizar, de forma mais pesada, outros crimes sexuais. Concluídos os trabalhos, o projeto foi encaminhado para o Ministro da Justiça e de lá seguiu para a Casa Civil, de onde não mais saiu. Vários projetos de lei posteriores foram apresentados tendo como ponto de partida discussões e estudos realizados pela comissão. É muito difícil no Brasil realizar uma reforma total como a que já aconteceu em outros países, em razão da diversidade cultural e da profunda desigualdade. Para enfrentar questões polêmicas e ter discussão ampla vai demorar muito tempo. Cada ano ao sair uma nova lei, temos um fatiamento que faz com que se perca a idéia de sistema penal em que se distingue o que é mais ou menos grave. Observa-se
também que a criminalização de condutas não acontece mais de dentro para fora, isto é, da sociedade para o legislador. Há modelos convencionados internacionalmente, como é o caso da lei da lavagem de dinheiro, do crime organizado, do enfrentamento ao terrorismo. Quando se faz alterações parciais, ou a partir de consensos particularizados, a sociedade perde a visão do conjunto, o que aprofunda ainda mais a injustiça que o sistema representa. Fazendo um balanço dos 3 anos da Lei Maria da Penha-LMP, na sua aplicação prática, houve criminalização de condutas? Na sua observação, a lei gerou um empoderamento das mulheres? Quanto à desistência da denúncia pela mulher nos casos de lesão leve, qual sua opinião? É difícil fazer um balanço porque não temos coleta de dados padronizada que permita uma análise. No Distrito Federal talvez fosse possível realizar este balanço, então, na disciplina do Mestrado em Direito da UnB as pesquisas se dirigiram para a busca destes dados nas delegacias, para se saber como estavam recebendo as mulheres que sofriam violência doméstica. Descobriu-se justamente que não há dados disponí-
veis que torne possível uma comparação com a fase anterior. É verdade que há uma discussão pública maior sobre o tema da violência doméstica, mas se a lei está proporcionando um aumento das denúncias e diminuindo os casos por causa da aplicação de medidas que ela estabelece, não sabemos com certeza. O Grupo Candango de Criminologia que funciona no Núcleo de Prática Jurídica – NPJ da UnB começou a atuar em 2007/2008 com atendimentos jurídicos às mulheres vítimas de violência doméstica. Em 2009, os atendimentos passaram a ser jurídicos e psicológicos. Este novo formato foi analisado no trabalho de monografia de uma aluna da graduação da UnB, Sarah Raquel, que estudou e relatou três casos de atendimentos no Núcleo. Nos casos estudados, a partir do atendimento interdisciplinar, as mulheres ficaram mais empoderadas e não têm mais medo. Essa lei decorreu de uma proposta apresentada por mulheres à Secretaria de Política para as Mulheres da Presidência da República-SPM. Não se queria aumento de tipos-crime, mas sim a existência de uma equipe interdisciplinar que estaria habilitada a escolher, com a vítima da violência doméstica, em cada caso,
Os movimentos sociais querem a implementação de direitos sociais como o acesso à terra, à educação, à comunicação, à liberdade. Mas há uma tendência de usar a forma mais gravosa para conter os movimentos, a fim de evitar que aconteça a alteração da realidade que eles pretendem.
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qual o instrumento adequado para ser utilizado, se civil ou penal. Neste sentido eram importantes os Juizados Interdisciplinares. Foi difícil na tramitação da proposta no Congresso que essa complexidade fosse compreendida, daí porque a proposta inicial foi modificada. Também o Judiciário não conseguiu compreender ainda a aplicação dessas dimensões complexas para enfrentar o problema. Em razão disso, hoje prevalece a lógica criminal. Então, houve sim mais criminalização. Para que se consiga romper esse ciclo de violência é preciso reconhecer que se trata de violência de gênero. Mais de 90% dos casos de violência doméstica é praticada por homens contra mulheres. Essa situação foi observada e estudada, daí concluímos que para combater esse quadro é preciso ação afirmativa. Então, a lei não é inconstitucional e não fere o princípio da isonomia. Os homens podem reivindicar as medidas protetivas – e o juiz pode e deve decidir baseado no seu poder geral de cautela. Quanto à retratação, ela tem que ser feita em audiência. A idéia, a partir de uma experiência daqui do DF, era de que a retratação fosse segura e que não ocorresse em decorrência de constrangimento à mulher. A polêmica se dá nos crimes de lesão corporal leve em que a ação era condicionada à representação pela Lei 9.099/95. A LMP mudou o procedimento para ação penal pública incondicionada. Isto é polêmico para nós feministas e também foi no processo legislativo. Existem duas linhas de entendimento: a primeira é de que não se deve tratar as mulheres como “vítimas”, mas como pessoas que se encontram em situação de violência, devendo ser fortalecido seu direito à autonomia e à liberdade; a segunda corrente entende que a mulher ainda está dominada pela estrutura de uma sociedade machista, e o Estado, de certa forma, ainda deve “protegê-la”. No entanto, chegamos a um consenso de que no Brasil deveria prevalecer a ação penal pública incondicionada, por causa da condição dominante de vulnerabilidade ainda vivida pela mulher. Assim, a tutela gera uma situação de equilíbrio. No Poder Judiciário, essa polêmica encobre um discurso baseado na defesa da família, na tentativa de manter a harmonia familiar, mesmo
uma tendência de usar a forma mais gravosa para as condutas dos movimentos, a fim de evitar que aconteça a alteração da realidade que eles pretendem. É preciso lembrar que a lei penal como é conservadora é feita para punir. No caso das mulheres, por exemplo, há repressão quando se pretende designar a ocorrência de apologia ao crime em eventos que na verdade orientam e auxiliam a implementação dos casos de aborto legal nos serviços públicos. A revolução que está em andamento hoje no mundo é aquela feita através do direito, por isso pressiona-se pela implementação dos ainda não-realizados.
que impondo sacrifício às mulheres. Por uma questão de coerência, a medida protetiva só se justifica pela situação vulnerável, mas é preciso estar atenta a um discurso em defesa da autonomia das mulheres. Qual é a sua opinião sobre os impactos atuais do PRONASCI e a organização da Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG)? Estou vendo com muito entusiasmo a CONSEG; a questão das conferências livres é um avanço na discussão. Por outro lado, tenho preocupação pois a maioria das pessoas que vão participar são da polícia. O próprio Ministério Público não se articulou com a devida antecedência e terá um espaço mínimo na Conferência. A visão mais repressiva deve prevalecer; faltam policiais que tenham uma visão mais humanista da questão da segurança pública e com um trabalho interdisciplinar. A concepção do PRONASCI é ótima. A política de segurança pública deve ser conjugada a outras, como saúde, educação, etc. Recentemente, ouvi de pessoas atuantes nas favelas do Rio de Janeiro, que não são da área de segurança pública, que os projetos do PRONASCI já conseguiram bons resultados. Acho que o
caminho é este mesmo: mostrar a presença do Estado não apenas pela polícia, mas com outros setores também. Isso evidentemente leva tempo e também não podemos nos esquecer de que há uma “indústria do crime” por trás disso tudo, à qual interessa vender produtos e não investir em segurança pública. Algumas iniciativas estatais tem tomado uma forma repressiva forte contra Movimentos Sociais. Há uma criminalização dos movimentos? Não acho exagerada a expressão criminalização dos movimentos sociais. É o que está acontecendo, não só no Brasil. Trata-se de um fenômeno global, expressivo na América Latina, e que decorre de um conflito ideológico. Os movimentos sociais querem a implementação de direitos sociais como o acesso à terra, à educação, à comunicação, à liberdade. O Estado cria óbices muito fortes, como é o caso das rádios comunitárias que não têm regulamentação. As estruturas de poder usam a lei mais forte, que define infrações penais e administrativas, para punir as condutas. Sabemos que em alguns casos os movimentos sociais infringem a lei, e por isso mesmos fica difícil para o Ministério Público não atuar. Mas há
Como a senhora se posiciona sobre a ocupação dos espaços públicos e políticos pelas mulheres? O que dificulta estar nos espaços de poder e decisão? No espaço político a defasagem é mais grave e não corresponde à percentagem das mulheres na população. No Ministério Público Federal, se mantém, há mais de 10 anos, apenas em torno de 30% de mulheres. No Judiciário tem aumentado mais a presença feminina. Mas os concursos públicos para determinadas carreiras são muito difíceis. Exigem tempo de preparação e isso é mais difícil para as mulheres. A exigência ou as prioridades familiares, dos companheiros, dos filhos - cujos cuidados predominantes são dispensados pelas mulheres - afetam as mulheres que acabam deixando seus estudos para segundo plano. Além disso, no início da carreira normalmente é necessário permanecer no interior do país, o que é bastante complicado também para elas. A verdade é que as mulheres assumem mais que os homens os compromissos familiares. Elas vão entrando pelas beiradas, ocupando cargos que são considerados como tipicamente femininos. A discriminação enfim ainda permanece. As coisas vão mudando. Temos mulheres onde antes não havia. Aparentemente houve avanço, mas se for analisado, mesmo quando elas estão em altos cargos, dependem de uma rede masculina que dá sustentação naquele espaço e elas precisam precisam fazer concessões. As etapas para se chegar aos cargos de destaque são dominadas por homens. O masculino não perdeu o controle ainda.
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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO
A feminilidade encarcerada Luciana Ramos
O
sistema penitenciário brasileiro é titular de muitas violações aos direitos humanos, no que tange as mulheres presas o cenário é pior, pois a múltipla punição dada às mulheres por “agirem como homens” é mais cruel. Abandono da família, marido e filhos, bem como a impossibilidade de serem mulheres – não garantia da visita íntima, impossibilidade de permanência com filhos nascidos no cárcere – são algumas das punições sofridas, para além da pena. Embora o número de mulheres presas no Brasil seja diminuto frente ao número total de presos 308.786 (houve um aumento de 135% da população feminina) 1, a situação carcerária dessas mulheres revela o grau de discriminação e de criminalização pelo qual vivem. O sistema penitenciário brasileiro abriga, aproximadamente, uma população carcerária feminina de 14.058 (4,55%) mulheres, sendo que 6.522 (25%) estão em delegacias públicas, contra apenas 13% dos homens, o que demonstra falta de política penitenciária voltada especificamente para as mulheres encarceradas. As mulheres presas no Brasil hoje são jovens, mães solteiras, afro-descendentes e, majoritariamente, condenadas por tráfico de drogas. Quando presas, são abandonadas pela família, sem garantia do direito a visita íntima e de permanecerem com os filhos nascidos no cárcere, o que demonstra a dupla (múltipla) punição da mulher, quer pelo sistema penal, quer pela sociedade. Assim, quando a mulher é encarcerada as conseqüências são de diversas ordens. Não repercutem apenas na pessoa da detenta, mas atingem os núcleos familiares, comunitários e sociais; repercutem de forma específica nos filhos: crianças e adolescentes. Conseqüências da criminalização feminina no cárcere As mulheres são tratadas mais severamente que os homens e tam-
bém são duplamente condenadas: legalmente, por infringirem a lei, e socialmente, por serem consideradas biológica e sexualmente anormais (quando delinqüem). Os motivos biológicos que se costumam apresentar para a baixa criminalidade feminina é relacionada a sua “natural” docilidade e passividade decorrentes da “imobilidade dos óvulos”. Desse modo, quando as infrações se realizam em um contexto diferente daquele imposto pelos papéis femininos, as infratoras são tratadas mais severamente que os homens. Com a mudança no perfil da “delinqüência” feminina, conseqüentemente, dos tipos penais, aumentam as formas de punição e de controle, pois elas não apenas infringem regras sancionadas penalmente, mas, sobretudo, ofendem a construção dos papéis de gênero, pois se “comportam como homens”. Verifica-se diante dos dados apre-
sentados que o sistema carcerário não foi pensado para as mulheres até porque o sistema de controle dirigido exclusivamente ao sexo feminino sempre se deu na esfera privada. O direito penal foi constituído visando os homens enquanto operadores de papéis na esfera (pública) da produção material. O perfil do encarceramento feminino, detalhado acima, demonstra claramente a desigualdade de gênero, não só na aplicação da pena (todas as esferas da execução penal), bem como na não concretização de direitos básicos às detentas. Toda forma de amor é punição dentro do cárcere: Direitos sexuais e reprodutivos nós também temos! Discutir os direitos sexuais e reprodutivos é falar não só do direito de decidir quando e como ter filhos, mas também do direito de escolher com quem manter relações sexuais e quando. A efetivação desses
direitos passa pela garantia de acesso aos serviços de saúde da mulher. A desigualdade entre gêneros se faz de forma perversa na privação sexual imposta às mulheres presas, ou seja, de maneira mais contundente e inflexível que para os homens presos. Poucas unidades prisionais femininas admitem a visita íntima, constata o Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial, coordenado pela Secretaria de Política para as Mulheres, quer sob a alegação de evitar a gravidez – o que geraria maiores atribuições aos servidores penitenciários e necessidade de adequação dos estabelecimentos -, quer pelo baixo índice de visitas dos companheiros. Percebe-se a violação ao direito sexual da mulher sob duas vertentes: na individual, pela restrição à liberdade, privacidade, intimidade e autonomia, ou seja, ao livre exercício da sexualidade e da reprodução, sem qualquer discriminação, coerção ou vio-
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lência. Sob a dimensão coletiva, na ausência de políticas públicas que assegurem a concretização desses direitos, como acesso à informação em educação sexual e reprodutiva, discussão e oferta de métodos contraceptivos, prevenção à violência de gênero. Em muitas unidades prisionais femininas, as mulheres são punidas quando flagradas tendo relações homossexuais. A negação de visitas íntimas e de relacionamentos dentro do cárcere representa de forma muito peculiar a discriminação de gênero. A negação do direito de visita íntima impossibilita também à mulher o direito de escolher engravidar, de ser mãe, e aqui se observa outras conseqüências da violação ao direito de exercer a maternidade. Recentemente fora aprovada a Lei nº 11.942/09 que determina que as penitenciárias de mulheres sejam dotadas de seção para gestantes e parturientes e de creches para os menores cuja responsável esteja presa. Apesar de existir desde 2003 o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, que objetiva organizar o acesso das populações privadas de liberdade sob a tutela do estado nas ações e serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, de forma integral, era urgente a regulamentação da situação das mulheres no cárcere. Desta forma a referida lei está em perfeita sintonia com o relatório final apresentado pelo Grupo de Trabalho Interministerial instituído em 2007 com a finalidade de elaborar propostas para a reorganização e reformulação do Sistema Prisional Feminino, bem como concretiza o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Um novo olhar para o encarceramento feminino pautado na questão de gênero, respeitando as mulheres sob suas diversas faces, e garantindo a ela resignificar seu tempo na prisão e possibilitar novas expectativas para além da criminalidade, faz-se urgente, pois a violência institucional só reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão.
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Na sutileza da perversão de um sistema presidiário, que desrespeita o homem preso, que parcela cabe às mulheres presas, que são obrigadas ao uso de uniforme semelhante ao deles? Calças compridas, sempre. Nada de uso de saias! Nada de olhar-se no espelho e ver-se mulher, quiçá ter desejos. Nada de “estereótipos” femininos. Nada de sonhos, de auto conhecimento como ser humano e ser mulher. (Dora Martins, Juíza de Direito do Estado de São Paulo) Site de acesso ao Relatório da CPI do sistema carcerário: http://pfdc. pgr.mpf.gov. br/grupos- de-trabalho/ sistema-prisiona l/CPIsistemacarc erario.pdf/ view 1 Dados de 2006 apresentados no Relatório Final do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre “Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino”, Brasília: Dezembro/2007. Dados retirados do INFOPEN
As mulheres encarceradas sofrem com dupla (múltipla) punição, seja pela pena, seja pela ausência de políticas penitenciárias.
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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
A cruel mecânica das sentenças criminais condenatórias Vinicius Machado
C
ada caso é um caso e o senso comum não contraria essa máxima. Cada fato social carrega consigo um sem-número de vetores, de particularidades e de possibilidades. Cada indivíduo é um cosmos próprio e, por isso, as tentativas de sua redução a uma categoria podem até satisfazer a tentação de se simplificar a compreensão desse ser, mas também o mutilam. Diante da atual prática judicial, esse sujeito é destituído de suas singularidades para se tornar um dado analisável, num contexto em que a prioridade é conferida mais ao processo de exame que ao indivíduo. Assim se dá a atuação do sistema de justiça criminal que, antes de cuidar de específicos conflitos sociais e de sujeitos únicos, enquadra-os em módulos para os quais já há respostas prontas. Nesse programa, tais indivíduos devem se ajustar à mecânica judicial e não o contrário. Assim, como resultado de uma produção em série de condenados, a sentença representa hoje o êxito dessa perspectiva reducionista do sistema de justiça criminal. Para chegar a esse estágio da ação excludente da máquina judiciária, o indivíduo já foi marcado com o estigma de criminoso e já foi selecionado, diante de tantos outros indivíduos que praticam condutas criminalizadas. Como momento crucial da atividade punitiva, a sentença condenatória resume a estratégia de quantificação, massificação e exclusão do sujeito. Em pesquisa feita com sentenças criminais condenatórias proferidas no Distrito Federal nos anos de 2006 e 2007, impressionou a capacidade tecnológica desenvolvida pelos julgadores ao redigirem suas sentenças. Os textos já estão prontos antes mesmo de o caso ser submetido a julgamento, fenômeno que não é exclusivo da justiça criminal, esfera em que, entretanto, seus efeitos são ainda
Ora, se os crimes são basicamente os mesmos, os casos em análise se assemelham e, principalmente, os criminosos fazem parte do mesmo reduto “homogeneizado” da sociedade, o ato de decidir se transforma na automatizada tarefa de preencher lacunas no texto pronto da sentença condenatória. O sujeito acaba sendo apenas uma peça acessória do grande maquinário de produção de condenações.
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mais ofensivos ao direito de defesa do réu. Tal prática mecanizada se torna mais fácil quando se constata que mais da metade (53%) da atividade judicial penal – à exceção dos crimes julgados nos Juizados Especiais Criminais – dedica-se a perseguir autores de apenas três comportamentos criminalizados: roubo, furto e porte ilegal de arma de fogo. Isso mesmo: dos incontáveis tipos penais referidos na legislação brasileira, apenas três deles concentram o foco da persecução penal. Seria coincidência o fato de que comportamentos ordinariamente atribuíveis a setores sociais marginalizados da sociedade constituam o principal objeto da atuação repressora do Estado? Ora, se os crimes são basicamente os mesmos, os casos em análise se assemelham e, principalmente, os criminosos fazem parte do mesmo reduto “homogeneizado” da sociedade, o ato de decidir se transforma na automatizada tarefa de preencher lacunas no texto pronto da sentença condenatória. O sujeito acaba sendo apenas uma peça acessória do grande maquinário de produção de condenações. Para indivíduos sem rosto sob a visão judicial, oferece-se uma sentença condenatória que mais parece um resultado de exame laboratorial automatizado. Isso porque o relato da decisão também trata do grau de anormalidade de um sujeito que, já de forma abstrata, atenta contra a ordem social. São maçãs podres, seres doentes que atraem a necessidade de extirpação do que é mal. Assim, devidamente categorizados, distinguem-se entre si apenas pela qualificação jurídica dada no processo: nome, idade, filiação, endereço. Basta então buscar um modelo de sentença, mudar o nome do réu, o número do processo, a data. Está pronta a decisão condenatória que irá definir o direito de liberdade do indivíduo, cujo futuro será o mesmo de outros sujeitos sobre os quais a tecnologia judicial já tenha testado sua eficiência. Ampla defesa? Contraditório? Como exercer plenamente tais direitos se o discurso judicial da sentença trata de um ser abstrato e esquece a concretude do indivíduo que está sendo julgado? Não há como contrapor argumentos que não enfocam o caso específico, mas que apenas se traduzem em formu-
lações genéricas sobre gravidade do crime e necessidade de repreensão da conduta, tudo em forma de termos técnicos que pretensamente justificam a si mesmos. É o sucesso dos jargões. Já que os fatos e as teses podem ser padronizados, os indivíduos também podem. A sinistra figura do “homem médio” continua se reproduzindo no ideário dos juízes, ainda que se repagine em definições como “cidadão de bem” e similares. O “homem médio” é uma entidade exemplar, correta, ideal e falsa. É um ente abstrato que, na percepção judicial, regula a medida da ação humana contrária à lei penal. Qual é a referência para se definir o comportamento padrão de um ser fantasioso como o “homem médio”? Surge daí a possibilidade de o juiz fazer predominar seu próprio código de conduta, informal, associando-o ao código legal de punição. O preceito de tolerância a determinada prática se fixa nas particulares concepções do magistrado, de acordo com um código punitivo paralelo, um second code. O “homem médio” acaba se revelando na figura do julgador que sentencia naquele caso. Diante de um indivíduo marginalizado, não há empatia por parte de um magistrado que não se identifica com aquela realidade que lhe é tão distante. Para um ser humano de categoria inferior, um semicidadão, não é necessário se deter em análises detalhadas acerca de sua conduta. É suficiente que, na sentença, proceda-se ao copiar e colar do discurso judicial corriqueiro acerca da marginalidade, com direito a bastantes termos técnico-jurídicos e a alusões cerimoniosas a entendimentos de tribunais. Em seguida, aplica-se a pena. Após conhecer o veredicto de sua condenação, o indivíduo recebe a pena correspondente à conduta criminalizada por si praticada. É o momento da individualização judicial da pena, um direito fundamental segundo o qual a sanção penal deve ser particularizada para aquele específico caso e para aquele específico sujeito. Todavia, a mesma compreensão massificada que se desenvolveu na análise da autoria e da materialidade do crime também repercute na fase de individualização. Valendo-se de minuciosos critérios legais de cálculo da pena, ao juiz é conferida a prerrogativa de avaliar a punição adequada se-
Nenhum método, cálculo ou engessamento mecânico de sentenças pode ser mais importante que o destino de um ser humano prestes a ter seu direito de liberdade restringido. gundo sua própria convicção. Assim, ao examinar questões como circunstâncias e consequências do crime, grau de culpabilidade, personalidade do agente, antecedentes e conduta social, o magistrado dispõe de ampla margem para aferir a conduta criminalizada e, principalmente, para investigar o ser do indivíduo “delinquente”, uma vez mais, de acordo com o regramento de seu código de valores. Mas o cálculo da pena acaba por também não ser individualizado. Ao contrário, as análises acerca da essência do condenado e do comportamento criminalizado se repetem entre casos distintos. Por isso, mesmo na fase de individualização da pena, o argumento também é robotizado, vazio e genérico, os jargões jurídicos transbordam e o resultado da equação é o mesmo. Antes de se referir ao indivíduo concreto, a prioridade é dada à manutenção da mecânica retórica das sentenças criminais condenatórias. Pode-se creditar essa situação ao
pragmatismo, ao volume de processos que abarrotam os gabinetes de juízes, tirando-lhes a capacidade de se deterem a cada caso, ou à mera preguiça. De qualquer forma, o fato é que a ampla defesa, o contraditório e a individualização da pena se tornam direitos fundamentais pisoteados por uma atividade judicial que se preocupa mais com a reprodução de sua tecnologia da punição do que com a vida humana que está em julgamento. Contra esse cenário de devastação de direitos, é imprescindível que se confira à humanidade do sujeito a prioridade que lhe é devida. Um olhar mais preocupado em compreender o contexto do indivíduo pode ser o primeiro passo para amenizar os efeitos de uma prática punitiva tão reducionista e mutiladora. Nenhum método, cálculo ou engessamento mecânico de sentenças pode ser mais importante que o destino de um ser humano prestes a ter seu direito de liberdade restringido.
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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
A presença do GCCrim no Fórum Social Mundial de 2009 Diogo de Oliveira Machado
O
Grupo Candango de Criminologia (GCCrim) apresentou em Belém, por ocasião do Fórum Social Mundial de 2009, conclusões da pesquisa realizada acerca de “roubo e furto no DF: avaliação da efetividade das sanções não privativas de liberdade”. O evento consistiu em conferência livre sobre segurança pública e foi realizado em preparação à 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, que deverá ocorrer entre os dias 27 e 30 de agosto. As discussões foram travadas com base
na divulgação de estudo desenvolvido pelos pesquisadores do GCCrim, que examinaram 2.806 casos de furto e 2.416 casos de roubo, referentes a processos iniciados entre 1997 e 1999 no Distrito Federal. Os dados colhidos a respeito dos réus denunciados e das vítimas, em cada um desses processos, permitiram analisar em que medida as alternativas à pena privativa de liberdade podem contribuir para conter os malefícios inerentes ao sistema penal. O fato de a conferência ter se realizado durante o Fórum Social Mundial agregou grande variedade de
experiências relatadas por participantes residentes em diversos estados do País e atuantes em momentos distintos do sistema penal. O evento foi organizado de modo a permitir intervenções a cada seção da pesquisa apresentada. Assim, a presença de autoridades em segurança pública permitiu contribuições bastante qualificadas a respeito do tema. Dessa forma, além de publicizar a pesquisa realizada pelo grupo de pesquisa, a conferência permitiu o encontro de estudiosos da segurança pública e da política criminal, o que, sem dúvida, trouxe contribuição de grande valia.
O encontro instigou o diálogo e permitiu a formação de parcerias para realização de eventos futuros. O espaço de promoção do debate, permitido pelo Fórum Social Mundial, também foi de importância fundamental para agregar pessoas sensíveis a uma nova perspectiva a ser lançada sobre as políticas de segurança pública, que prevejam a profunda reformulação da estrutura instituída e do discurso jurídico-penal vigente. A efetividade de algumas garantias constitucionais foi questionada na pesquisa. É o caso do direito à defesa e à presunção de inocência. De
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acordo com as conclusões apresentadas, parece haver uma lacuna entre as previsões formais de direitos e a experiência concreta e diária do sistema penal. Um exemplo - em menos de 12% dos processos de furto analisados pelos pesquisadores houve interposição de recurso. Isso significa que na quase totalidade dos casos foram descartadas eventuais oportunidades de o réu condenado vir a ser absolvido ou ter a pena condenatória suavizada. Além disso, segundo dados levantados pela pesquisa, réus não assistidos por advogados particulares foram condenados, em média, a maiores períodos de encarceramento quando comparados com os réus representados por advogados particulares. Este último grupo teve prisões provisórias decretadas por períodos mais breves e os condenados foram sentenciados a regimes mais brandos. A situação é especialmente preocupante quando se tem notícia de que mais de 90% dos acusados de furto não foram defendidos por advogados particulares e, no caso dos acusados de roubo, o índice é superior a 70%. Não se pode falar em pleno gozo do direito de defesa diante desse quadro. Acerca da prisão cautelar, foi observado que a prática tem sido regra, a despeito da excepcionalidade que a legislação lhe atribui. A maioria absoluta dos réus de furto e de roubo é presa antes de ser julgada. Quase metade dos réus de roubo é presa em razão de flagrante. No caso de réus de furto, esse motivo leva ao encarceramento provisório de 75% deles. Essa distorção viola o princípio da presunção de inocência, uma vez que finda por encarcerar por períodos muito longos acusados não sentenciados. O sistema age em relação ao suspeito como se sobre ele pesasse presunção de culpabilidade. Na verdade, o que se observou é que o sistema penal não consegue oferecer à sociedade e à vítima outra resposta senão a prisão provisória do suspeito pela prática do furto ou roubo. Elementos como a falta de estruturação da agência judiciária, a prescrição da pretensão punitiva, a demora prolongada para a prolação da sentença ou mesmo a não execução da sentença condenatória contribuem para esse quadro de uso abusivo da prisão provisória. O direito à igualdade, garantido pela Lei Maior, também parece ca-
recer de efetividade material. A Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – 2004 divulgou que 56,61% da população do Distrito Federal é composta por pessoas pardas e pretas. Nos casos de furto e roubo analisados, aproximadamente 74% dos réus eram pretos e pardos. Logo, soa inapropriado afirmar que a lei penal é igual para todos diante de dados que indicam a sobre-representação da população negra dentre a população criminalizada nos processos estudados. O perfil de réu mais comumente encontrado foi do homem negro, jovem e desempregado. Outro ponto de relevância discutido durante o evento foi a dependência estabelecida entre a gravidade do regime da pena e os índices de reincidência. A relação é diretamente proporcional – quanto mais grave a pena aplicada, maior é o índice de reincidência. Mais da metade dos réus que cumpriram pena em regime fechado reincidiram. Foi o mais alto índice registrado. Em contraposição, o menor índice de reincidência (24,2%) foi apresentado pelos réus que tiveram suspensão condicional do processo, a mais branda das penas. Os dados parecem indicar, portanto, que a pena de prisão contribui para a permanência da criminalidade. O discurso dos réus ouvidos durante a pesquisa vem ao encontro dos números apresentados nas estatísticas. Em relação aos que cumpriram penas restritivas de direitos, a fala dos réus que foram efetivamente presos é mais intensamente marcada pelos impactos negativos da condenação no convívio social, para conseguir emprego e para a vivência familiar. Esse quadro parece indicar que a prisão, como primeira medida punitiva, precisa ser repensada. Mas a discussão não girou somente em torno dos réus. As vítimas dos casos analisados também foram ouvidas. E manifestaram bastante insatisfação com o rumo do processo penal. Isso porque, ao noticiar o
furto ou o roubo, as vítimas esperavam, sobretudo, a reparação dos danos que sofreram. Essa resposta, contudo, não é oferecida pelo sistema penal, que, no máximo, condena o acusado à prisão. Mesmo nas hipóteses em que a legislação processual penal previa como possível a reparação dos danos, principal demanda das vítimas, a condição foi eleita em apenas 3,17% dos casos. O resultado não poderia ser diferente quando se observa que apenas 2,31% das vítimas foram ouvidas durante a audiência de suspensão condicional do processo, momento em que é possível determinar os termos da reparação dos danos causados. Ao final, veem-se vítimas feridas no exercício da cidadania que procuravam quando noticiaram o furto ou roubo às autoridades competentes. A posição que o sistema de justiça penal reserva à vítima ratifica e nutre um direito penal fundamentado no sofrimento. Em suma, ninguém é beneficiado pelo sistema penal – vítimas,
réus ou sociedade. As vítimas ficam frustradas em suas expectativas, os réus não são ressocializados e os índices de reincidência desmentem a afirmação de que a sociedade estaria mais segura. O evento no Fórum Social Mundial encontrou espaço de legitimação social para a formulação de uma política alternativa à pena de prisão. Como etapa preparatória da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública – CONSEG, a oficina atingiu seu objetivo de ampliar a diversidade de segmentos envolvidos para debater os eixos temáticos propostos e enviar contribuições à etapa nacional. A partir das discussões travadas, foram encaminhadas ao Ministério da Justiça formulações de princípios e diretrizes para uma nova política criminal brasileira, atenta a que, ao menos nos crimes contra o patrimônio, medidas não privativas de liberdade têm maior possibilidade de oferecer respostas para uma intervenção penal salutar.
Ao menos nos crimes contra o patrimônio, medidas não privativas de liberdade podem oferecer respostas para uma intervenção penal salutar.
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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público e a execução da pena criminal Paula Bajer Fernandes Martins da Costa
A
Constituição impõe ao Ministério Público o dever de promover a ação penal de iniciativa pública. No sistema punitivo brasileiro, a maioria das condutas criminosas é reprimida pela persecução pública e oficial, significando isso que a vontade da vítima em ter ou não punido o autor da infração é irrelevante. Há exceções, evidentemente. Em poucas hipóteses a lei permite à vítima decidir se a persecução penal, sempre pública, pode acontecer (injúria, dano a bem privado, entre outros). Mas a regra geral é a de que o Ministério Público promove a ação penal e, assim, garante-se igualdade na aplicação da lei, pois os agentes públicos não podem optar entre agir ou não agir segundo critérios subjetivos, pessoais. Se praticada a conduta descrita na lei como criminosa e descoberto seu autor, a persecução penal é inevitável. O Ministério Público tem importante papel no controle e na repressão da criminalidade. Promove a ação penal, judicial, pois a própria Constituição afirma que, sem devido processo legal, com pleno contraditório e ampla defesa, a punição não pode acontecer. Mas a Constituição impõe outro relevante dever ao Ministério Público: a defesa aos direitos sociais e individuais indisponíveis. Assim, se por um lado ele deve impulsionar a persecução penal, deve fazê-lo respeitando os direitos do autor do fato. E mais: deve agir para que, cada vez mais, direitos individuais sejam respeitados pelo Estado em todas as suas tarefas e esferas de intervenção. O Ministério Público não conclui suas atribuições no momento em que condenado o autor da infração penal. A condenação e a execução da pena devem ser acompanhadas, fiscalizadas. O Ministério Público tem o dever de verificar se a pena está sendo executada adequadamente, nos li-
mites em que imposta, bem como se direitos não atingidos pela condenação são suprimidos ou violados. Por isso é que a Lei de Execução Penal estabelece, no artigo 68, parágrafo único: “O órgão do Ministério Público visitará mensalmente os estabelecimentos penais, registrando a sua presença em livro próprio”. Essa visita não deve ser formal ou simbólica. O Ministério Público tem o dever de adotar providências para prevenir ou reprimir maus tratos, superlotação, tratamento que prejudique a
O Ministério Público tem importante papel no controle e na repressão da criminalidade. Promove a ação penal, judicial, pois a própria Constituição afirma que, sem devido processo legal, com pleno contraditório e ampla defesa, a punição não pode acontecer.
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saúde física e mental das pessoas presas. Mas, independentemente do dever específico de fiscalizar os estabelecimentos prisionais, o Ministério Público precisa estar estruturado para provocar, no Estado, a adoção de políticas públicas voltadas para o fim da superlotação e violação dos direitos das pessoas presas. Os estabelecimentos prisionais são mantidos pelo Estado e cabe a ele acautelar pessoas que cumprem pena ou devam ficar presas durante o processo em condições que lhes garanta a dignidade. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, no Ministério Público Federal, mantém Grupo de Trabalho com finalidade de estudar e propor alternativas de ação que melhorem o sistema prisional e contribuam para o término da superlotação nos presídios. As memórias e realizações deste Grupo podem ser encontradas na página da internet http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/gruposde-trabalho/sistema-prisional. O Ministério Público Federal pode e deve concentrar atenção no sistema prisional como um todo. A União repassa, aos Estados, recursos destinados aos presos e à saúde dos presos. A utilização adequada desses recursos precisa ser fiscalizada. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária elaborou plano diretor nacional do sistema penitenciário e as unidades da federação também têm planos diretores correspondentes. Na página do Conselho na internet (http://www.mj.gov.br/cnpcp) estão Plano Diretores Nacional, Planos Diretores dos Estados, bem como informações úteis relacionadas ao sistema prisional brasileiro. União e Estados devem trabalhar juntos para que metas e objetivos sejam alcançados, para que o sistema, como um todo, promova cumprimento da pena em condições que permitam a reinserção do indivíduo em sociedade. Não obstante o estabelecimento de normas e metas de ação por quem deve promover correta execução da pena, atrocidades continuam a existir. Na já não tão recente CPI do Sistema Carcerário (2008) relataramse situações de graves violação a direitos humanos em diversos locais de detenção no Brasil. O relatório apresentado pelo Deputado Domingos Dutra pode ser consultado em link na
página da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão na internet (http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/gruposde-trabalho/sistema-prisional/CPIsistemacarcerario.pdf/view). Em Porto Velho, Rondônia, situação de absoluta miserabilidade humana no Presídio Urso Branco gerou pedido de intervenção no Estado ajuizado pelo Procurador-Geral da República no Supremo Tribunal Federal em outubro de 2008. Recentemente, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária constatou condições insalubres e estado de violência em presídios no Espírito Santo (relatório na página do CNPCP na internet: http://www.mj.gov.br/cnpcp). Os relatos são terríveis e geram desconforto àqueles que aplicam o direito penal. Infelizmente, não há
como minimizar essa sensação de incapacidade de solução dos problemas detectados que, em maior ou menor escala, despertam descrença no sistema punitivo. Essa descrença, porém, é pessoal e não institucional, porque as instituições permanecem sob as variadas turbulências e conflitos. E, sob o ponto de vista institucional, cabe ao Ministério Público:”I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (artigo 129 da Constituição). Este dispositivo é contextualizado pela norma do artigo 127 da Carta:” O Mi-
nistério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. A dignidade do homem é indisponível e é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição). Sob qualquer ponto de análise, a conclusão é inarredável: o Ministério Público deve fiscalizar a execução da pena no processo judicial de execução e deve fiscalizar, também, o sistema carcerário, cobrando, do Poder Executivo, medidas que demonstrem aplicação de recursos públicos adequada à conquista e preservação da dignidade da pessoa encarcerada.
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DIREITO ACHADO NA RUA
NOTA DO CORRESPONDENTE
As janelas quebradas da democracia
As diferentes melodias da América
Paulo César de Sales Júnior
Ana Luiza
S
F
egurança pública e política criminal são temas recorrentes nos noticiários internacionais. As preocupações crescem em torno do aumento dos custos de gestão do sistema prisional. O debate passa então a girar em torno do melhoramento de técnicas e da ampliação dos efetivos policiais, ficando de lado os fundamentos do sistema penal. A criminologia, como matéria crítica ao sistema punitivo e aos seus fundamentos, é a porta-voz do discurso crítico em relação ao sistema penal, tendo sempre por contraponto o discurso oficial elaborado pelas agências formais de controle penal. No seio dos estudos criminológicos, formaram-se algumas correntes na busca por estabelecer uma fundamentação filosófica legitimadora da persecução penal. A escola positivista, inauguradora do que se denominou ciência criminal, teve a preocupação de definir aspectos patológico-normativos da criminalidade, apresentando modelos anatômico-fisiológicos daqueles que seriam os criminosos natos. Posteriormente, a teoria sociológica da criminologia, apresentando uma definição sociológica do desvio, superou o rígido determinismo dos conceitos positivistas para concluir que a estrutura dos conflitos sócioeconômicos representa o cerne do problema da criminalidade. Surge então a ideia de periculosidade social, que levada ao extremo no século XXI chegou a eclodir em construções como o “direito penal do inimigo”. A teoria sociológica da criminologia teve como preocupação principal a tentativa de superar o paradigma da reação social, núcleo do modelo positivista, na medida em que apontou para a assimetria maniqueísta de divisão entre bem e mal, delinquente e demais indivíduos.
No bojo dessa teoria, ficou bastante conhecida a teoria das janelas quebradas, surgida por volta dos anos oitenta, com o fundamento na ideia de que a desordem e o abandono urbano teriam resultado direto no incentivo à prática de novos delitos, com crescimento vertiginoso dos índices de criminalidade. Seus defensores faziam analogia à seguinte situação: quando a janela de uma casa é quebrada, mas não é logo reparada, criase uma sensação de descaso e desordem com base na qual as demais partes da casa serão também abandonadas. Com esse fundamento foram aplicadas severas medidas de política criminal em cidades norte americanas, entre as quais ficou famosa a política de tolerância-zero aplicada na cidade de Nova York. Condutas poucos lesivas passaram a ser criminalizadas com o intuito de conter qualquer atividade delitiva. A despeito de aparentemente bem sucedida, essa política teve como conseqüência a criação de um regime de “lei e ordem”, sem, no entanto, providen-
ciar uma erradicação harmônica e sustentável da criminalidade. Ainda que superada a visão abstrata e ideológica do sistema punitivo e da própria realidade social, a criminologia sociológica não conseguiu superar as contradições próprias do sistema repressivo, operando apenas uma atualização desse modelo. Desse modo, pela perspectiva da eficácia das medidas repressivas, resta claro que a tentativa de mudar a realidade da criminalidade por meio das mais diversas políticas de persecução penal resultou em inequívoco fracasso. Como ressalta Juarez Cirino, não haveria, ademais, como dar certo a tentativa, tendo em vista que não é o sistema repressivo que vai modificar a sociedade. E questiona: como estabelecer um sistema punitivo democrático se não temos uma sociedade democrática? Não há como escapar da conclusão de que confiar na atuação do sistema penal para controlar o amplo crescimento da criminalidade que se observa nos dias de hoje é uma gran-
de perda de tempo. A pena, observada tanto pelo modelo preventivo, como pelo repressivo, perde o caráter de “prevenção geral”. A própria ideia de ressocialização se concretiza como mascaramento da matriz retributiva. Assim, somente pelo discurso oficial é que a ampliação do poder político de criminalização expressa instrumento hábil a conter o avanço da criminalidade. O que se deve consertar primeiramente são os vícios dos Estados que se dizem democráticos, permitindo uma inclusão social que não dê margem a seleções criminais desiguais. Que desse modo o desvio social não se torne a regra, como se observa atualmente. E no que diz respeito a democracia, imprescindível recorrer à nossa carta constitucional, na qual se estabelecem os fundamentos e os princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro. E assim, que a concretização dos direitos individuais e sociais ali previstos seja, esta sim, a principal arma no combate à criminalidade.
icam no mesmo pedaço de chão. Esse que resolveram chamar de continente e depois retalhar em pedacinhos, só para depois nos cobrarem assinatura e pedágio para atravessar fronteiras. Como parte desse lote batizado America, Brasil e Estados Unidos não poderiam ser mais diferentes nas suas semelhanças. O país do racismo e da segregação, da luta pelos direitos civis e do movimento black power ficou abalado pela morte prematura de um dos maiores símbolos da música mundial do séuclo XX. Michael Jackson: um homem deformado por processos de despigmentação da pele e cirurgias plásticas, um homem atingido em cheio pela força do racismo e da violência intra-familiar. Esse mesmo homem, que recusa o espelho e afasta sua identidade racial na primeira pessoa, tem aqui a consciência coletiva de sua filiação racial, faz clips considerando prioritariamente a população negra e como negro é enterrado. Já transformado nessa espécie de personagem de cera, Jackson grava, em 1996, um videoclip no Brasil. Vai a Salvador e canta no Pelourinho com os negros meninos do Olodum bradando no refrão: “eles não se importam mesmo com a gente”. Sim, Michael Jackson cantou a violência policial, a tortura e a falta de solidariedade entre e para com o contingente negro, em mais uma vívida demonstração do alcançe da consciência racial produzida nos Estados Unidos. E como é bonito rever aquela implacável cena se desdobrando pelas ruas de Salvador, sem espaços para as reticências da democracia racial. Nós, no país das mulatas e do carnaval, da convivência harmoniosa e pacífica, vivemos a experiência de Jackson da maneira como fomos ensinados: com eficiência e discrição. Que dizer de personagens como Cae-
tano Veloso, por exemplo, que ainda me faz suspirar com suas letras inspiradas? Esse, até pouco tempo atrás, sabia quem era negro no Brasil. Recita trecho de seu livro no álbum Prenda Minha: ao Vivo (1998), cena em que sua mãe o chama para ver o preto (Gilberto Gil) que ele gosta cantando na Tv. Depois, como num passe de mágica, tudo se apaga quando entram em cena a discussão das ações afirmativas. Não há mais negros no Brasil para Caetano. Ao menos nenhum identifícável para receber o benefício de políticas públicas específicas. Enxergo muito de Jackson nesse tipo de contradição, apesar do sentido estar invertido. É a negação do coletivo, da possibilidade de reconhecimento no outro, o que boneco de cera “moreno” produz com esse tipo de discurso e filiação política. O que parece à primeira vista enredo menor, é símbolo emblemático da forma como se assumiu viver o racismo e, principalmente, lidar com seus
efeitos nesses territórios aparentados. Não nos deixa mentir a análise de seus sistemas penitenciários. De um lado, temos o maior sistema carcerário do mundo, com mais de 2 milhões de presos para o ano de 2008, de acordo com o Departamento de Justiça americano. Homens negros sobram nas estatísticas: são três vezes mais do que o número de brancos e a pena de morte legalmente aplicada em alguns estados da federação tem um viés racial de peso. Nós, que não descobrimos qualquer potencial econômico para o aprisionamento, vamos levando a coisa orientados por seu objetivo maior sem maiores problemas: o negócio é neutralizar e exterminar. O número de corpos negros, principalmente da juventude, se amontoam sem qualquer tipo de censura consequente. Se o resultado é semelhante por caminhos distintos, me chama atenção o fato de que a explicitação do ra-
cismo abriu caminho para que um diagnóstico mínimo possa ser sistematicamente questionado no que se refere às violências vividas dentro e fora do cárcere nos Estados Unidos. Trata-se de um mundo de ações discriminatórias seguidas por constrangimentos públicos que tendem a gerar impacto político. Algo, sem dúvida, muito diferente de nosso discurso tropical abafado que o pudor não alcança. No Brasil, vivemos numa lógica em que tudo pode, desde que as intenções não se revelem, e a extinção da vida negra vai se dando sem maiores embaraços. Por hora, sem as respostas devidas, sigo me consolando na arte. Saboreio as músicas de Jackson e Caetano enquanto me ressinto por algumas de suas escolhas. Espero as perguntas certas me assaltarem sabendo que melodias, dados e cenários diferentes refletem realidades que se aproximam.
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009
Justiça Social e Justiça Histórica Boaventura de Sousa Santos
A
o voltar do período de férias, os Ministros do Supremo Tribunal Federal enfrentarão uma questão crucial para a construção da identidade do Brasil pós-constituinte: é possível adoptar um sistema de acções afirmativas para ingresso nas universidades públicas que destine parte das vagas a negros e indígenas? Ao rejeitar o pedido de liminar em acção movida pelo DEM, ex-PFL, que pretendia ver suspensa a matrícula dos alunos aprovados na UnB no âmbito de uma política de selecção com estes contornos, o Ministro Gilmar Mendes sugeriu que a resposta a esta questão fosse buscada em função do impacto das acções afirmativas sobre um dos elementos que acompanha o constitucionalismo moderno desde as suas origens, na Revolução Francesa: a fraternidade. Perguntou o Ministro se, com o advento de programas como o da UnB, o país estaria abrindo mão da idéia de um país miscigenado e adoptando o conceito de uma nação bicolor, que opõe “negros” a “não-negros”. E indagou se não haveria formas mais adequadas de realizar “justiça social”, tal como a adopção de cotas pelo critério da renda. A proposta de situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade representa uma importante inovação no discurso do STF. Mas assim como o debate sobre a adopção de acções afirmativas baseadas na cor da pele não pode ser dissociado do modo como a sociedade brasileira se organizou racialmente, o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere. Como já escrevi nesta secção, a enunciação do ideário da fraternidade nas revoluções iluministas européias caminhou de par com a negação da fraternidade fora da Europa (“Tendências/Debates”, 21/08/2006). Nesse “novo mundo”, do qual o Brasil se tornou parte desde que a Carta de Caminha chegou ao Rei de Portugal, a prosperidade foi construída à base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e
da sobreexploração dos escravos que para aqui foram trazidos. Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo antiíndio e antinegro. (“Tendências/Debates”, 10/06/2008). É claro que na organização das suas relações raciais o Brasil difere de países como os EUA, na medida em que apresenta um grau bem maior de miscigenação. A questão é saber se esse maior grau de miscigenação foi suficiente para evitar a persistência de desigualdades estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica ou, em outras palavras, se o fim do colonialismo como relação política acarretou o fim do colonialismo como relação social. Indicadores sociais de toda ordem dizem que essas desigualdades não apenas persistem, como prometem seguir atormentando as gerações futuras. Um estudo recente divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, por exemplo, mostra que o risco de ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior entre adolescentes negros do que entre brancos. Falar em fraternidade no Brasil significa, essencialmente, enfrentar o peso desse legado, o que representa um grande desafio para um país em que muitos tomam a idéia de democracia racial como dado, não como projecto. Mas se o desafio for enfrentado na sua inteireza pelas instituições sem que se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos “pobres”, o país caminhará não apenas para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sócio-político. Ao estabelecer e monitorar um sistema de acções afirmativas que destina parte das vagas a pretos, pardos e indígenas, a UnB tem oferecido três grandes contribuições para essa transição. Em primeiro lugar, o sistema de educação superior pode recusar-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobilizar a comunidade para a construção de alternativas de inclusão de seg-
nBoaventura Santos: história e justiça social ANO III Nº 32
Agosto de 2009
Estado, sociedade e lógica punitiva
Para os estudiosos das reformas universitárias, seria fundamental que o programa da UnB pudesse completar o ciclo de 10 anos previsto no Plano de Metas da instituição. Sobre o posicionamento a ser adoptado pelo STF diante do problema, a resposta não está clara. O Tribunal poderá desprezar a experiência da UnB sob o receio de que ela venha a dissolver o mito de um país fraterno, porque mais miscigenado que outros. Mas o Tribunal também poderá conceder que o programa da UnB representa, bem ao contrário, uma tentativa válida de institucionalizar a fraternidade ao reconhecer a existência de grupos historicamente desfavorecidos, contribuindo, assim, para a efectivação da justiça social. Somente a segunda resposta permite combinar justiça social com justiça histórica.
nEntrevista: Professora Ela Wiecko
C&D Constituição & Democracia
Criminologia:
mentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica. Em segundo lugar, a construção e adopção de alternativas com este recorte não acarreta prejuízo para a qualidade dos trabalhos acadêmicos; ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus. Em terceiro lugar, apesar de levantar reacções pontuais, como a do DEM, e de incluir decisões que sempre serão polêmicas, como a do critério de identificação dos beneficiários, acções afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica conseguem desenvolver um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica. Basta ver como diversos grupos de pesquisa e sectores do movimento estudantil se articularam em defesa do sistema da UnB quando este se viu confrontado pela acção do DEM.
nDilema do Direito Penal: Lei Maria da Penha