A vida como spoiler: Reflexões sobre KES de Ken Loach 10/05/2015
Me perguntaram numa rede social se já havia visto Kes. Claro que já vi Kes! Vi e ainda não me recuperei muito bem. Vou usar o Imdb para resumir a história: A young, English working-class boy spends his free time caring for and training his pet falcon. É isso, working-class boy, working-class hero. Billy só tem uma coisa a favor dele: a infância. Como um working-classe boy da década de 1960, Billy tinha a liberdade de perambular. Sempre foi perigoso, mas se ignorava isso com mais frequência. A liberdade, a curiosidade e inteligência o levaram ao encontro com Kes, um falcão. Até este momento, Billy é um estorvo para todos: colegas, família, escola. Mas o encontro com Kes é o seu voo para a humanidade plena. E, daí, me peguei não mais me comparando com Billy… mas com o seu professor. Sim, o filme evoca a figura do professor que não é um peso-morto na vida de um working-class boy. ‘Como estrelas na terra’, ‘Sociedade dos poetas mortos’, ‘Escritores da liberdade’. Histórias reais ou fictícias. Há sempre o professor salvador de almas, almas sedentas por conhecimento mas que eram mal compreendida, subestimadas, mimadas. O professor, essa figura com uma vocação para o martírio profissional… que pega os alunos pela mão e os conduz… zzzzz….
Em Kes, o professor percebe que Billy tem um tesouro escondido. E observa o garoto que não é ninguém excepcional… é um working-class boy, que será workingclass e fim. Ele vê o garoto apaixonado pelo conhecimento… um conhecimento que lhe interessa porque é maior do que ele. Todo menino é um rei. Billy é rei com Kes. Nada de working-class… Billy e Kes são senhores de seus territórios, não há fronteira e o horizonte é todo deles. Porque na infância a gente se deixa voar assim… E o professor teve esse olhar. ‘Aluno como protagonista do próprio conhecimento’… Rapaz, a gente tem que ser protagonista da nossa vida para depois sermos protagonistas do nosso conhecimento! E Billy chega a isso observando a natureza. Não tem coisa que expressa melhor o sentido da vida do homem no mundo do que isso. A gente é natureza, tem que ser natureza. O professor pede para Billy dar uma aula sobre tudo o que ele aprendeu sobre Falcões. Billy dá a aula… não de maneira professoral, porque ensinar não é nada de mais… não te faz especial. Ensinar é humano, demasiadamente humano. Tem a ver com toque, contato, voo. Billy entendeu tudo, o professor entendia com ele… a sala fica pasma frente ao garoto que não era bom em nada… working-class hero, working-class kes. Só que existe algo… não é determinismo. É vida. É a vida do working-class boy que precisa se tornar working-class. Kes se torna ‘just a bird’. A gente é estapeado pela mãe de Billy como esta ‘verdade pragmática’. Como fomos estapeados pelas nossas mães em alguns momentos ou por algum chefe no trabalho ou pela escola. O normativo, o esperado, como temos que ser e nos conduzir. Não há espaço para Kes. Kes e sua grandiosidade divina vão para o lixo. Porque é ali que o que há de grande em nós vai parar para quem é do workingclass. O professor? Ah, o professor… ele não tem como parar isso. Ele é SÓ um professor, sabe? Não é onipresente, onipotente e nem oniciente. Você pode fazer o exercício e pensar que o professor consolaria Billy, faria ele procurar treinar outro falcão e zzzzzzz… O professor não dá conta de Billy-Kes. Nunca dará.
É Billy que pegará o corpo de Kes e lhe dará dignidade. A dignidade do funeral. Isto, que herdamos dos primeiros homens. Somos seres-humanos e como tais enterramos nossos mortos. Porque não somos indigentes, nem um indigente é indigente. É preciso um rito, uma despedida, um encerramento. Billy enterra à Kes. O rito é uma resistência. Não somos enterrados nele, recusamos que Billy-Kes vá ao lixo. Mas, quá, despertei.