O Vingador – Raquel Lisboa
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O Vingador – Raquel Lisboa Todos os direitos Reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, por qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da autora.
Revisão: Raquel Lisboa Diagramação: Raquel Lisboa Capa: Thaís do Vale (thatadovale@hotmail.com) Lisboa, Raquel Nonato da Silva Mulher de Honra – São Paulo, 2013 Este livro é uma obra de ficção. Todos os personagens e os diálogos foram criados a partir da imaginação da autora e não são baseados em fatos reais. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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Sinopse Helena é uma bela mulher que, devido sua inteligência e amor pelos estudos, ascendeu - se profissionalmente. Formada numa das melhores universidades da América Latina, domina cinco idiomas, é uma professora reconhecida pelo seu excelente trabalho, escritora e tradutora de livros. Tem uma vida familiar estável, está no segundo casamento há dezesseis anos e é mãe de Julia, uma adolescente linda e espirituosa. Tudo parecia normal até o dia em que Paulo - seu amigo e amor de infância - retorna ao Brasil depois de dezesseis anos de exílio; os restos mortais de seu primeiro marido, de maneira suspeita, desaparecem do cemitério e uma ligação misteriosa coloca em xeque a vida de Helena que, repentinamente, encontra-se numa verdadeira encruzilhada. Agora, ela precisa prestar contas de coisas sobre o seu passado para um homem que só quer: VINGANÇA.
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29 de junho 1982 O carteiro passou naquela manhã de sábado, trazendo um telegrama para Dona Marlene. Amanda, uma jovem de dezesseis anos, morena jambo, cabelos negros encaracolados na altura da cintura, olhos grandes, estatura mediana e muito bonita, gritou pela avó: -Vovó, é para senhora... Um telegrama. Venha abrir logo que estou morrendo de curiosidade! Amanda era muito alegre e sorridente, espoleta como a mãe. A bondosa senhora saiu da cozinha enxugando as mãos no avental e sorria com a atitude de sua amada neta, que ansiosa pelo conteúdo do envelope, tentava abri-lo disfarçadamente. Observou o remetente, era um telegrama do Cemitério Municipal de Jandira. “O que será? Faz tanto tempo que não recebo um telegrama... Espero que seja uma boa notícia...”, pensou. Abriu - o. Estava escrito que era necessário seu comparecimento urgente no cemitério, para tratar de um assunto extremamente importante. A mensagem estava assinada por Alaor Batista, do setor administrativo. Ansiosa para saber do que se tratava, Dona Marlene pediu para Amanda acompanhá-la até o local. Em menos de dez minutos aprontaram-se, e vinte minutos depois, enquanto a senhora manobrava o veículo, Amanda entrou impaciente no escritório de Alaor, pois não se aguentava de curiosidade. Ao sair do carro, Dona Marlene sentiu um frio percorrer sua espinha e uma aflição apertava seu peito. O escritório de Alaor ficava dentro do cemitério, logo na entrada. Embora fosse
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distante dos túmulos, dava para vê-los de longe e era indescritível a tristeza que ela sentia. Parecia que ali, a morte estava mais perto. Cruzes de várias cores e tamanhos complementavam a paisagem, dando ao ambiente um aspecto macabro. “Os cemitérios deveriam transmitir paz para nós e não medo...”, pensava. Não sabia o porquê sentia aquilo. Pior do que o sentimento de morte é o pressentimento de que alguma coisa ruim aconteceu ou iria acontecer. O suspense misturado com a tristeza do ambiente, a deixavam ainda mais angustiada. Já não sabia se queria realmente descobrir a causa do telegrama, mas a neta já a aguardava no escritório. Não tinha jeito, precisava ser forte. Estava ali e não tinha como voltar. Dona Marlene entrou no escritório e sentou-se ao lado da neta. O escritório era pequeno e a mobília simples. Havia somente uma pequenina janela detrás da mesa e ao lado dessa, um quadro do Sagrado Coração de Jesus. Logo, Alaor chegou se apresentando e pedindo desculpas pela demora. Todos se cumprimentaram e o anfitrião sentou-se em sua mesa. Alaor era um homem alto, meia idade e negro. Tinha cabelos grisalhos, era muito gentil, e apesar da simpatia, trazia uma preocupação no olhar. -Dona Marlene... Não sei como lhe dizer isso, mas... Mas... - O homem tentava encontrar as palavras certas para dizer, enquanto rabiscava um papel. -Mas, o quê? – questionava Amanda sentada numa cadeira ao lado da avó, mascando um chiclete inquieta.
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-Mas... O corpo, ou melhor, os ossos de Fernando Sanchez desapareceram do jazigo... – falou finalmente, com sofreguidão. -Como assim desapareceram? – indagava Dona Marlene, enxugando a testa com um lenço. -Pois bem... Há duas noites, o guarda noturno – Francisco - fazia a ronda no cemitério e deparou-se com um homem que estava com uma lanterna iluminando os nomes do jazigo. Subitamente, o sujeito abriu a portinhola, mexendo aqui e ali e retirou uma urna pequena de madeira, onde ficam depositados os ossos do indivíduo. Francisco se aproximou na tentativa de impedi-lo de realizar tal façanha. O sujeito estava de costas e virou-se de repente ao ouvir os gritos do guarda ordenando para que parasse de fazer aquilo. Ao aproximar-se do homem, Francisco assustou-se com o que viu e caiu no chão, tremulo. O sujeito pulou o muro com uma incrível habilidade levando a urna consigo. Duas horas depois, o outro guarda Antonio encontrou – o no chão em estado de choque, tremendo e resmungando: “o palhaço, o palhaço...” Ontem verificamos que a urna de ossos pertencia ao seu sobrinho Fernando Sanchez, que foi enterrado aqui há dezesseis anos... Foi por isso que a chamamos. Gostaríamos de saber se a senhora quer denunciar o que aconteceu à polícia... - Não, por favor, não. Não envolva a polícia nisso. Coloque um ponto final nesse caso... - disse Dona Marlene, levantando-se sôfrega. - Mas... - Por favor... Deixe como está... – finalizou decidida.
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Amanda não entendeu nada. A avó parecia tão aborrecida que a garota nem se atreveu a perguntar o que realmente estava acontecendo. “De que adiantou vir aqui? Continuo do mesmo jeito... Não compreendi bulhufas...”, pensava ao fazer uma careta de descontentamento. A avó e a neta despediram-se de Alaor e meia hora depois estavam em casa. Eram dezesseis horas e Dona Marlene, sentada no sofá, tricotava e matutava em tudo o que aconteceu naquele dia. Tinha uma vaga noção do que sucedera aos restos mortais de seu sobrinho Fernando Sanchez, mas não queria acreditar. Se fosse o que imaginava, temia pelo que aconteceria com Helena, ex- mulher do finado. Só não entendia como o jazigo de seu sobrinho fora descoberto depois de tanto tempo. Subitamente, o telefone tocou. Amanda atendeu: - Alô! – disse Amanda. - Alô! Quero falar com a Marlene... – disse uma voz masculina, grossa e rouca. - Quem gostaria? – indagou a moça. - Uma pessoa que ela conhece muito bem... – respondeu a voz secamente. - Mas, qual é o seu nome? – insistiu Amanda. - Eu sou o Vingador... – respondeu o homem. Amanda estremeceu. Dona Marlene, ao perceber que a neta estava sem ação, levantou-se e pegou o telefone de suas mãos. - Quem é? – perguntou com firmeza, porém aflita, suspeitando de quem se tratava. - Sou eu... Está reconhecendo a minha voz?
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Ela reconhecia e muito bem. Não gostava daquilo. - O que você quer? – questionou, agora, com voz estremecida. -Vingança. – respondeu o homem, desligando o telefone em seguida. Dona Marlene suava frio. Logo, sua pressão subiu e ela começou a passar mal. Amanda amparou a avó para que não caísse. Chamou alguns vizinhos para ajudar a levá-la até o opala preto que estava estacionado ao lado de fora. Pedrinho, o vizinho que acabava de chegar do trabalho, levou-as ao Hospital. No caminho, Dona Marlene pronunciava com dificuldades essas palavras: - Ele voltou, ele voltou... Preciso avisar Helena... *** Augusto, Ana e Sr. Jorge chegaram á Santa Casa de Misericórdia em São Paulo, assim que souberam do ocorrido com Dona Marlene. Amanda estava sentada na sala de espera, Pedrinho ao seu lado segurava sua mão, mas soltou-a disfarçadamente assim que Augusto – pai de Amanda – se aproximou deles, perguntando como Dona Marlene estava. - A vovó está bem papai. Está fora de perigo, sua pressão está controlada. Só que permanecerá internada, em observação. Quando tiver alta do hospital, deverá fazer fisioterapia. Sr. Jorge - esposo da enferma - e Ana – nora de ambos e esposa de Augusto - estavam no quarto com Dona Marlene, visivelmente abalados. A doce senhora não conversava, estava com a face esquerda torta.
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Falava somente com gestos e Ana compreendeu que ela pedia um papel e uma caneta para escrever. Ana tirou da bolsa um papel e entregou-o para a sogra que escreveu com dificuldades: “Helena está em perigo... Ela precisa fugir...”Ana leu o papel, guardou-o e tranquilizou a sogra: -Não se preocupe que seu recado será entregue. Telefonarei para Helena ainda hoje. Dona Marlene fez menção de sorrir. Na sala de espera, enquanto aguardavam Sr. Jorge e Ana, Amanda explicou para seu pai tudo que sucedeu naquela tarde. Falou do telegrama, do que foi conversado no cemitério e da ligação misteriosa. Augusto sentiu um frio na espinha. Aquela história estava muito estranha. De qualquer forma, já que sua mãe insistia tanto, achou melhor relatar para Helena o acontecido. *** O avião aterrissou no Aeroporto de Congonhas. Os passageiros desembarcaram. Um homem moreno, um metro e oitenta, quarenta e oito anos e porte atlético, entrou num táxi que estava estacionado ao lado do aeroporto. Uma hora depois, estava em frente ao antigo prédio que ocupou há dezesseis anos. As coisas ali mudaram consideravelmente. A venda de Sr. Luis fechara e no lugar dos pequenos estabelecimentos que ocupavam quase o quarteirão inteiro, havia um supermercado da rede Pão de Açúcar. O trânsito também aumentou, algumas pessoas envelheceram tanto que não dava para reconhecê-las e outras, nem tanto.
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Somente o prédio onde ele habitou por alguns anos estava do mesmo jeito. “Como sempre, precisa de uma boa pintura,” pensou. Entrou. Subiu as escadas até o terceiro andar e seguiu até o apartamento 12. Colocou a chave na fechadura. Hesitou. Não sabia se o apartamento estava alugado, apertou a campainha algumas vezes. Ninguém atendeu. Abriu à porta receoso e notou que o apartamento estava vazio, exatamente do jeito que o deixou quando partira. A mobília era a mesma, nada mudou. O guarda roupa estava vazio. O homem deixou suas coisas ali na sala, desceu até o supermercado que ficava em frente ao prédio e fez algumas compras. Comprou produtos de limpeza, alimentos, higiene pessoal e um novo chuveiro para instalar no banheiro. Parou em frente a uma banca e comprou um jornal de concursos públicos. Retornou para o prédio e na portaria pediu para falar com o sindico que lhe informou que o condomínio fora pago rigorosamente em dia, durante todos os anos de sua ausência. Subiu para o apartamento e iniciou sua tarde com uma boa limpeza. O pó era intenso por ali. Após a faxina, preparou um lanche. Comeu, sentou-se no sofá e iniciou a leitura do jornal, satisfeito. Estava feliz por retornar ao Brasil depois de dezesseis anos de exílio. Paulo César estava feliz por chegar a sua casa. ***
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Helena estava furiosa. Saiu da USP e seguindo para casa em seu veículo, pensava em sua vida: “Não sei quanto tempo aguentarei essa situação, pois faz exatamente quatro anos que me encontro assim. Não suporto mais a convivência com meu marido. Cadu está mudado. Na verdade, desde que passei em dois concursos públicos e leciono em uma Universidade Pública, ele mudou de comportamento. Não é mais aquele amante de outrora. Não me procura mais e quando o procuro, está cansado. O engraçado é que sou tão ocupada quanto ele e ainda tenho disposição para o amor”. Estava distraída nesses pensamentos, quando foi fechada por outro carro. Quase sofreu um acidente. O motorista, mesmo errado, gritava: - Lugar de mulher é na cozinha! Enfurecida, Helena pegou uma flanelinha que estava sobre o banco do passageiro, abriu o vidro da janela e exibindoo ao motorista, que estava no veículo ao lado, gritou: - Olhe aqui para você! Uma flanelinha para lustrar os chifres! Quem garante que sua mulher está em casa lavando louça? Idiota! – rapidamente fechou o vidro e acelerou. O outro carro passou em sua frente e Helena perdeu-o de vista. As ruas estavam pouco movimentadas e Helena voltou a pensar sobre sua vida. Pensou em seu relacionamento com Cadu e em seu maior tesouro: Julia. Lembrava-se que para amenizar seu nível de stress, aumentou razoavelmente sua frequência na academia de artes marciais e de boxe. Inicialmente, treinava três horas por semana, uma hora e meia cada um. De um ano para cá, treinava duas
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horas por dia, de segunda a sexta feira. Duas vezes por semana jogava tênis e praticava natação, uma vez. Assim, conseguia manter-se equilibrada emocionalmente, sempre cuidando de seu trabalho com muita responsabilidade. Dava aulas na USP e em uma escola que ficava próximo de sua casa, o Colégio Nossa Senhora da Lapa, onde sua filha estudava e também seu marido Cadu era professor. Helena lecionava para a turma de Julia – sua filha – literatura, e Cadu - seu marido – Gramática. Davi, filho de Cadu e enteado de Helena, estudava no exterior. Não se viam há quatro anos. Ao contrário da mãe, que era ligeiramente ruiva com cabelos levemente cacheados, Julia era morena de cabelos negros, lisos. Tão lisos que eram escorridos. No restante, elas se pareciam no número dos calçados, 35, e no tamanho das roupas. Os olhos de ambas tinham também algo em comum, eram negros, grandes e ligeiramente rasgados. Helena parecia ser descendente de algum oriental e Julia, por causa da cor da pele e do feitio dos cabelos, uma índia. Mãe e filha eram dotadas de uma privilegiada beleza e inteligência. Assim como a mãe, Julia era a primeira aluna da classe e, com quinze anos, já tinha seu primeiro livro de literatura publicado. Helena também era escritora, iniciou a carreira com vinte anos e tinha vinte e cinco livros de literatura e dois pedagógicos publicados. Uma grande parte de sua renda, vinha dos livros que escrevia. Helena falava com fluência, cinco idiomas: português,
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inglês, espanhol, francês e alemão, tarefa que aprendeu com muita facilidade por ter uma memória fotográfica. Julia dominava dois: português e inglês. Ao lembrar-se da filha, Helena se transportava ao passado quando tinha dezesseis anos. Era inocente e a vida era um verdadeiro mar de rosas. Reconhecia que parte daquela ternura que via na doce Julia também teve outrora, mas se perdeu no tempo com as consequências de todo o sofrimento que passou na vida. Agora, com trinta e quatro anos, era uma mulher fria e indiferente. Helena tinha certeza que no interior de Julia, por traz daquela bondade e delicadeza, se escondia muita força e coragem. No fundo, assim como Helena, Julia tinha personalidade forte. Mãe e filha treinavam boxe e judô juntas. No judô, Julia estava na faixa verde e Helena era faixa preta há dois anos. A concepção de Helena era que a mulher devia ser independente financeiramente e também praticar algum tipo de esporte, aonde fosse possível desenvolver técnicas de defesa pessoal. Esse pensamento a invadiu depois do casamento que tivera com o primeiro marido – Fernando – com o qual foi vitima de violência física e sexual por diversas vezes durante o tempo que viveram juntos, quase dois anos. Talvez por esse motivo, incentivou a filha a ingressar no mundo do judô. Nos pensamentos de Helena, aquela era a única maneira de se protegerem do mundo. Seu veículo já estava na esquina, próximo a casa. Helena, agora, imaginava como abordaria o marido para discutir sua
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relação. Todas as vezes que ela tentava dialogar sobre a indiferença dele, eles brigavam. Dessa vez, ela estava disposta a ter uma conversa definitiva com Cadu. Ele teria que dar uma boa explicação pela sua mudança de comportamento, pois o judô, o boxe, a natação e o tênis que Helena praticava, não estavam mais surtindo efeito. Ela precisava de amor. Precisava amar e ser amada. Era cobiçada por muitos homens, desde colegas de trabalho até alunos, mas honrava o marido. Sempre o respeitou e permanecia constantemente ocupada para não pensar em sexo. Nesse período de quatro anos, Helena lhe propôs tratamento com um urologista, mas ele recusou-se ao dizer que não precisava daquilo. Era muito rude e jamais aceitaria que estivesse com algum problema. Ela soube que quando homem sofre de diabetes, pode acontecer diminuição do desejo, mas não conseguiu convencê-lo a procurar um médico. Naquela noite, Helena colocaria as cartas sobre a mesa. Ou ele procurava tratamento, ou se separariam. Estacionou o veículo e adentrou sua casa por volta das 23: 00 h. Julia conversava animadamente com Jaci – a empregada – no sofá da sala, enquanto fazia suas unhas. Regina, amiga de Julia e aluna de Helena, também estava por lá conversando alegremente. Provavelmente naquela noite, a jovem dormiria na casa deles. Regina era a melhor amiga de Julia, só perdia para Amanda – filha de Ana – que era para a moça como uma irmã. Pena que Amanda morasse longe, Julia agradeceria de coração se pudesse vê-la no mínimo todos os dias.
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-Vixi, Mocinha! – dizia Jaci para Julia – Como está lindo... Desse jeito, vou arranjar um namorado... – completou marota. - Está sim... Mas você está se mexendo demais, vou cortá-la... Quero só ver como arranjará um namorado sem um pedaço do dedo... – repreendia Julia sorridente. Zé – o motorista – lia um jornal tranquilamente sentado na poltrona. Os empregados da casa eram muito antigos e de extrema confiança. Trabalharam por mais de vinte anos para Fernando - primeiro marido de Helena – e fazia dezesseis anos que trabalhavam somente para Helena. Eles acompanharam todo seu sofrimento quando o patrão se apaixonou por ela, que tinha na época dezesseis anos. Com dezessete anos, Helena fora obrigada a se casar com Fernando sob ameaças de morte contra sua família e contra Cadu, que era seu professor e namorado na época. Helena já havia provado o quanto Fernando era violento, pois foi estuprada por ele numa festa e temendo que fosse um bandido, casou-se para proteger sua família e o ex - namorado. Ao chegar ao Rio de Janeiro, descobriu que além de ser um assassino cruel – matava suas vítimas intoxicadas com cianureto e clorofórmio – Fernando era também um poderoso traficante. Era rico, muito rico, em consequência do tráfico de drogas, armas e talvez até mesmo, mulheres. Os empregados acompanharam todo o processo do casamento de Helena até a separação ocasionada pelo suicídio do marido. Por conta disso, eles não eram tratados como empregados e sim como amigos ou
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parentes. Eram a maior riqueza e apoio que Helena teve em seus momentos de desespero. Já na sala, Helena cumprimentou a todos rapidamente e dirigindo-se a filha: - Julia, amanhã você faz as minhas, tudo bem? - Tudo bem, mamãe... Amanhã eu faço. Sabe, eu estava pensando: Acho que vou abrir um salão de beleza... Vou ganhar uma grana... Só aqui em casa, teria duas clientes: mamãe e Jaci. E Regina também... Seriam três clientes – comentou a garota com um sorriso enquanto fazia cálculos com os dedos. - Só teria um probleminha, meu bem... As unhas da mamãe seriam de graça – completou Helena estalando um beijo na testa da filha. - E as minhas também – retrucou Jaci fazendo um bico de criança chorona. - Desse jeito não há negócio que vingue... Desisto da ideia de empreendedorismo - finalizou a moça, voltando sua atenção para as unhas de Jaci. Helena subiu as escadas até seu quarto e cumprimentou Cadu com um Oi, seco. Estava cansada e tomou uma ducha demorada. Enquanto se banhava, pensava numa maneira de abordar o marido. Vestiu – se no roupão. Dirigiu-se ao quarto, que ficava ali mesmo, e enquanto secava seus cabelos com uma toalha, sentou-se na beirada da cama observando Cadu pelo reflexo do espelho. Ele lia um Romance de George Orwell intitulado simplesmente como: 1989.
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Tentou conversar, fez um hã,hã,hã. Ao perceber que a esposa queria alguma coisa, o marido fechou o livro colocandoo no criado – mudo. Tirou os óculos, e disse: - Estou muito cansado. Preciso dormir. – disse bocejando. - Antes de dormir, precisamos conversar... – encorajouse Helena. Cadu recostou-se na cabeceira da cama esperando, apático, o que Helena tinha para dizer. - Cadu – começou ela – Estive pensando em nossa situação e não dá mais para continuar assim. Sinto muito, mas teremos que nos separar. Cadu franziu a testa. Não esperava aquilo da esposa. - Não me diga que você se cansou de mim e está com outra pessoa... – falou tomado de uma súbita atenção. - Ainda não... Até aqui me controlei para nunca desrespeitá-lo. Sempre fui fiel. Consegui uma faixa preta no judô, graças a minha fidelidade... Mas tudo o que tenho feito até aqui, para não pensar em amor: judô, boxe, tênis e natação, não estão mais surtindo efeito. Acho que durou bastante, até. Quatro anos... – desabafou e, nesse momento, virava-se contra o espelho e o encarava diretamente. - Então você sugere a separação, é isso? – perguntou novamente, incrédulo. - Sim... A não ser que você aceite um tratamento médico... – opinou Helena. - Helena, eu preciso confessar uma coisa: Eu não estou doente fisicamente, meu problema é psicológico. Sofro tanto
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quanto você... Eu a amo, mas entre nós existe uma barreira muito grande... - Qual? – questionou curiosa, desembaraçando os cabelos delicadamente. - Bem... Trata-se de uma vaidade intelectual ferida... A minha vaidade intelectual foi ferida, quando tínhamos doze anos de casados... - E, por quê? – Indagou a mulher, enquanto colocava o pente sobre a penteadeira. -Você se lembra dos livros de literatura que lancei, assim que nos casamos? -Sim... Lembro-me muito bem... – Helena voltou a sentar-se na cama, com atenção redobrada no que o marido tinha a dizer. - Muitos foram traduzidos para língua estrangeira, alguns se tornaram filmes... Nessa época nossa renda aumentou e você estava fazendo sua graduação em Letras na USP... - É verdade... Seus livros foram o maior sucesso... E ainda são. – concluiu secamente. - Eles foram o maior sucesso até você começar a escrever também... – Cadu ainda não sabia como dizer aquilo. Olhava para um ponto fixo no ar como se esperasse que as palavras surgissem de algum lugar no espaço. - Não entendo... - A mulher o observava com mais firmeza. Ressabiado, Cadu prosseguiu: - A renda maior dessa casa era a minha. Você começou a escrever e, de quatro anos para cá, ganhou vários prêmios de
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literatura... Seus livros se tornaram filmes e até novelas baseadas em seus romances homônimos... Sua renda tornou-se quatro vezes superior a minha... Tornamo-nos concorrentes na Literatura e você sempre me venceu... Helena cortou-o, perdendo a serenidade de outrora: - Pensei que estivesse feliz por mim. Afinal de contas, somos casados! Cadu percebeu que estava numa encruzilhada onde todos os caminhos seguiam ao abismo. Não tinha escolhas e precisava ser franco. - É difícil para eu admitir que minha concorrente é minha própria mulher... Os diretores de filmes e novelas de várias emissoras não me procuram mais para fechar contrato, somente você... Helena com a testa franzida e o dedo indicador nos lábios, começava a entender aonde o marido queria chegar com as palavras “vaidade intelectual ferida”. Ele prosseguiu: - Sempre dei aulas em universidades particulares... Queria muito lecionar numa Universidade pública. Abriu concurso em S. Paulo para professor na USP, há quatro anos. Você e eu nos inscrevemos... Você se recorda quantas pessoas se inscreveram no total? - Sim... Oitenta. – respondeu com prontidão. - Quantas vagas eram? – indagou Cadu, querendo ganhar tempo para que suas ideias se organizassem. - Uma. – Novamente Helena respondeu com exatidão. Seu olhar estava ameaçador.
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- Quem passou em primeiro lugar? – Cadu questionava apreensivo - Eu. – Helena demonstrava cada vez mais firmeza. - E quem passou em segundo? – Indagava Cadu, angustiado. - Você. – respondeu com ar enfadonho, porém determinado. Cadu olhou novamente para um ponto fixo no ar e as palavras pareciam que surgiram pouco a pouco vindas do além. Agora suas ideias estavam organizadas e ele prosseguiu, voltando sua atenção ao rosto de Helena: - Só consegui dar aulas porque um professor morreu num acidente de veículo e, por esse motivo, fui convocado... A mesma coisa aconteceu quando prestamos para a Federal, se lembra? - Sim. -Você passou em primeiro lugar e eu em segundo. Só concorri novamente no ano passado, depois de um ano, quando surgiu uma nova vaga... – desabafou por fim. - Mas você nunca me disse nada! – protestou a mulher levemente irritada. Parecia que outra briga aconteceria a qualquer momento. - Nem poderia... Não queria que me achasse invejoso... Foi difícil admitir que a minha concorrente era a minha própria esposa. Saber que a minha mulher era melhor que eu, machucou-me bastante. Comecei a pensar que você era demais para mim e isso ficou tanto tempo em minha mente que perdi o desejo. Você se tornou a “idealizada e a intocável”, e eu
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simplesmente sua sombra... – falou Cadu pacificamente. O marido estava diferente. Se fosse em outras ocasiões partiria para a ignorância. -Tentei falar com você sobre nossa vida, mas só agora você me diz isso... Quatro anos jogados fora... Sabe, eu só escrevi tantos livros, só me dediquei tanto a literatura e ao estudo, para não pensar em amor... Falar em sexo com você era proibido. Se tenho tanto sucesso assim, uma parte dele é graças ao seu desprezo... Preferia muito mais não ter tudo o que tenho, mas ter o seu amor! - Perdoe-me. Eu sempre pensei que você fosse feliz... – falou Cadu ressentido. Helena estranhava a tranquilidade com que o marido conduzia a discussão. Todas as vezes que tentavam conversar, ele era o primeiro a perder o controle. - Hipócrita! Você sabia o tempo todo que eu não era... Mas nunca se esforçou para me ajudar... Nunca! Nunca procurou um médico, nem permitiu uma conversa como essa que temos agora... Você roubou quatro anos da minha vida! – Helena disse, levantando-se bruscamente da cama, visivelmente alterada. - Mas, valeu a pena... Hoje você é uma escritora mundialmente reconhecida, faz tradução de obras literárias para outros idiomas e só não dá aulas em duas das melhores Faculdades do Brasil, porque pediu demissão da Federal e agora só leciona na USP... Quanto a mim, perdi meu posto para você e aos poucos estou perdendo seu amor – relutou Cadu com voz chorosa. Era a primeira vez que Helena o via daquele jeito.
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- E quando eu morrer, você sabe o que vai acontecer? Ninguém se lembrará de mim... Eu preferia muito mais aproveitar minha vida sendo feliz com o homem que me casei... Mas, ao que tudo indica, casei com meu próprio inimigo... – completou a mulher recobrando a calma. - Não é isso Helena... Sempre tive inveja de você sim, não nego. Fui idiota e tosco, meu machismo subiu para a cabeça... – “Estranho ele admitir que é machista...”- pensou Helena. Cadu prosseguiu: - Mas eu também estou muito doente por dentro... Não tenho nenhuma doença física, simplesmente não tenho vontade de fazer amor desde aquela época... – mais uma vez sua voz estava tremula. De repente, Cadu chorou. - E você nunca me disse nada... – comentou a mulher agora, sentando-se na cama ao lado do marido. - Não queria que você me deixasse... Perdoe-me... Não é fácil para mim também. Saber que meu desejo acabou e que a qualquer momento corro o risco de perder a mulher que amo, por não oferecer o que ela precisa... É doloroso demais para qualquer homem... – duas grossas lágrimas escorreram sobre seu rosto. Uma delas parou no canto direito dos lábios. Helena aproximou-se e a enxugou delicadamente: - É aí que está o erro... Podemos ir a um médico e tentar resolver tudo... – completou serena. - Já fui... Fiz exames, conversei com vários médicos... E não tenho nada... Se você quiser faço todos os exames novamente... – sugeriu Cadu segurando as mãos da esposa.
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Helena suspirou. Pensou no quanto era difícil para o marido viver daquela maneira também. Talvez o sofrimento dele fosse até maior do que o dela. Recostou-se ao seu lado e beijoulhe a face. - Eu acredito em você... Juro que nunca vou deixá-lo por isso... E que nunca serei infiel... Casamos para viver juntos para sempre. Cadu abraçou a esposa e sorriu. Adormeceram abraçados. No dia seguinte, Helena incluiu mais uma hora de tênis em sua rotina semanal. *** 30 de junho Augusto ligou várias vezes na casa de Helena, mas ela não se encontrava. Realmente, Helena era uma mulher muito ocupada. Arriscou novamente e deixou recado com Jaci, mesmo sabendo que a empregada era muito esquecida. Dois dias se passaram e nada de Helena retornar a ligação. Falou para Ana que teriam que ir até a casa dela pessoalmente, visto que agora o problema era na rede telefônica, o que deixou Amanda muito satisfeita, só assim colocaria as fofocas em ordem com Julia. O caso era que Augusto e Ana andavam muito ocupados com o Restaurante que tinham na Região Oeste, em Jandira, e Amanda cuidava da avó enferma. Precisavam aguardar uma oportunidade para falar com Helena pessoalmente e enquanto isso não acontecia, tentavam contato por telefone mesmo.
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Amanda também telefonou várias vezes para Julia só que, para ajudar, o problema na rede persistia. O recado da secretaria eletrônica era o mesmo: “Telesp informa: Esse telefone está impossibilitado de receber ligação”... Não recebiam e nem realizavam chamadas. Naquele dia, após a aula de tênis, Helena partiu para o bairro da Lapa. Daria aulas no colégio à noite e aproveitou aquela tarde para limpar o apartamento de Paulo. Parou o veículo em frente ao prédio que Paulo César morou e entrou no supermercado que ficava em frente. Comprou produtos de limpeza, fazia três meses que não limpava o apartamento do amigo. Desde que ele partira, era Helena quem zelava do imóvel. Ela não permitia que nenhuma empregada o fizesse, pois somente assim encontrava desculpas para estar ali. Sonhava com o momento de limpá-lo e encontrar o amigo sentado no sofá da sala. Os anos de sua ausência foram muitos, mas ela trazia em seu peito uma doce esperança de vê-lo novamente. Após as compras, atravessou a rua, entrou no prédio e subiu as escadas para o terceiro andar. Colocou as chaves na fechadura, abriu a porta e deparou-se com um apartamento visivelmente limpo e arrumado. Seu coração acelerou. Paulo voltara. Ela entrou nos quartos, um estava desocupado e no outro havia roupas no armário. Em cima do criado mudo, viu um lenço branco feminino. Abriu-o e reconheceu as iniciais: MHS, ou seja, Maria Helena Soares. Aquele lenço era seu. Helena sentou – se na cama segurando-o. Emocionada, recordou-se da despedida no
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cemitério de Jandira quando Paulo César, perseguido pela polícia, fora obrigado a deixar o país há dezesseis anos. Helena entregou aquele lenço para que ele guardasse como recordação da amizade de ambos. Ali, sobre a cama do amigo, desabou em lágrimas e com o lenço nas mãos soluçava descontroladamente. Ela preparou-se para esse momento a vida inteira e ainda assim, encontrava-se frágil, a mercê de suas emoções. Paulo César não se encontrava, a amiga olhou cuidadosamente todos os cômodos. Recompôs-se. Seguiu à cozinha, tomou um gole de café que retirou da garrafa térmica e colocou o copo sobre a pia. Lembrou-se que precisava preparar a aula para a turma do colégio Nossa Senhora da Lapa, que ficava a dois quarteirões de sua casa e a um quarteirão do apartamento do amigo. Saiu rapidamente sem lavar o copo. Trancou a porta. Desceu rapidamente, enxugando o rosto com as mãos, até a rua para pegar o veículo. Mal dobrou a esquina, Paulo César chegou com seu novo carro – um opala azul metálico, quatro portas. Ele subiu para o terceiro andar feliz com o negócio que fizera no automóvel. Entrou no apartamento e viu uma sacolinha com produtos de limpeza no chão da sala, recostada na parede. Entrou em seu quarto e observou que o lenço que estava no criado-mudo, encontrava-se em cima da cama. Sobre a pia havia um copo sujo de batom. Seu coração bateu mais forte e com emoção sorriu jubiloso, pois reconheceu que Helena esteve ali. ***
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