Com dois anos de idade, vê os pais separarem-se, ficando a viver com o seu pai e com a sua avó paterna, enquanto a sua mãe fixava residência em Marvão com a filha Rosária, de quatro anos. Aos oito anos já andava de roda da forja e despontava nele uma aptidão invulgar para o desenho.
Carolino Tapadejo filho
Carolino de Jesus Tapadejo Calado, nasce em Castelo de Vide no dia 25 de Fevereiro de 1924, filho de João Batista Tapadejo e de Fortunata da Estrela Calado.
Carolino Tapadejo filho
Com onze anos, entra para a escola de música da Banda União Artística e no ano seguinte estreia-se como executante, tocando então bombardino. Algum tempo depois, opta pela trompete, por quem se havia de “apaixonar” por mais de trinta anos, quer na filarmónica, quer no “Bando Carioca”, orquestra que, com um grupo de amigos, fundou nos anos cinquenta.
Carolino Coimbra Pina Tapadejo, nasce em Castelo de Vide em 1947. Em 1958, inicia a aprendizagem do ofício de ferreiro, na oficina de seu pai, e entre 1968 e 1971, cumpre o serviço militar, no Regimento de Transmissões, na Cidade do Porto.
Em 1963, é convidado e aceita produzir esculturas em ferro, destinadas aos Estados Unidos da América. Em Fevereiro de 1974, termina a fruteira em ferro forjado, que foi classificada como a obra artística mais relevante da sua vida e que havia de inspirá-lo no futuro em relação a todos os outros trabalhos que foi desenvolvendo, com vista à criação de uma Sala Museu na sua própria casa. Durante a década de oitenta, dedica-se ao desenho e produção de móveis em ferro para a sua sala de visitas. No final de 1989, é acometido por um Acidente Vascular Cerebral, que lhe debilitou os membros superior e inferior do lado direito. No início dos anos noventa e em recuperação do AVC, continua a produzir os trabalhos em ferro que havia iniciado anteriormente, aproveitando para efectuar a sua recuperação física. No dia 3 de Agosto de 2001, é vítima de um segundo Acidente Vascular Cerebral e é internado no Hospital de Portalegre, onde vem a falecer, vinte e quatro dias depois. Eram 7 horas da manhã do dia 27 de Agosto.
Mestre Carolino |
No início de 1961, na sequência de uma denúncia anónima, recebe a visita da PIDE, que lhe confisca dezasseis armas de caça que estavam na oficina a aguardar reparação, apesar de estarem devidamente legalizadas. Em Agosto do mesmo ano morre o seu pai e, de seguida, vê suspensa por dois anos a pena de seis meses de prisão que lhe havia sido aplicada, em consequência da apreensão das armas de caça.
do do
No início de 1949, volta a casar, desta vez com Rufina de Alegria Terceiro Alexandre e em Fevereiro do ano seguinte, nasce o seu segundo filho, Jorge. Em Outubro de 1954, vem ao mundo o seu terceiro filho, Mateus e em Março de 1960, a sua mulher dá à luz o seu quarto e último filho, José Alberto.
Ferreiro
Em Agosto de 1947, morre a sua mulher, Rosalina, na sequência do parto do seu primeiro filho, Carolino.
A Oficina de
Em 1945, regressa a Castelo de Vide e à oficina de ferreiro onde havia aprendido o ofício com o seu pai. O inconformismo relacionado com a estagnação da profissão era nele uma constante, pois tinha presente que era indispensável mudar e modernizar muita coisa. Apesar de alguma oposição de seu pai, inicia então uma nova e longa caminhada.
Memória de Memórias e Outras Histórias
Quando perfaz vinte anos, baptiza-se e casa-se com Rosalina Coimbra Pina, sendo nesse ano incorporado no exército, onde permanece cerca de nove meses.
A Oficina de Ferreiro do
Carolino Mestre
Memória de Memórias e Outras Histórias
Em 1975, assume o cargo de presidente da Comissão Administrativa da freguesia de São Tiago Maior, e no ano seguinte, é eleito vice--presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide. Em Janeiro de 1980, toma posse como presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, cargo que ocupou até final de 1989. Entre 1997 e 2008, exerce o cargo de Provedor da Misericórdia de Castelo de Vide. Em 2001, a convite do Padre Dr. Vítor Melícias, assume o cargo de Delegado para as Relações Internacionais da União das Misericórdias Portuguesas e, em 2006, é convidado para implementar e coordenar a TURICÒRDIA - Rede de Turismo Social da União das Misericórdias Portuguesas. Como Coordenador, e como Formador, tem participado em vários programas de iniciativa Comunitária, em Portugal e noutros países da Europa. Como convidado, tem proferido Palestras, abordando temas relacionados com a história de Castelo de Vide, Turismo Cultural ou Problemas Sociais. Estas Intervenções têm vindo a ter lugar, para além de Portugal, nos seguintes Países: Espanha; Grécia; Itália; França; Holanda; Inglaterra; Bélgica; Alemanha; Dinamarca; Suécia; Finlândia e ainda no Canadá e no Brasil. Tem participado em inúmeros programas de rádio e de televisão e, como Cronista, vem assinando vários trabalhos, para diversas Revistas portuguesas e estrangeiras. Ao longo da sua vida, tem tido como principal preocupação a sua valorização profissional e cultural, tendo no seu currículo, entre outras, as seguintes qualificações: Curso de Gestão por Objectivos; Curso de Escultura do Ferro; Curso de Especialização em Desenvolvimento Local. Das mais de duas dezenas de distinções que lhe foram outorgadas, destacam-se as seguintes: Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, (1985); Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, (1990); Prémio Nacional da Conservação da Natureza, (1996). carolinocptapadejo@gmail.com
A Oficina de Ferreiro do
Carolino Mestre
Mem贸ria de Mem贸rias e Outras Hist贸rias
Carolino Tapadejo filho
TíTULO
A Oficina de Ferreiro do Mestre Carolino. Memórias de memórias e outras histórias © 2011 – UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA AUTOR
Carolino Coimbra Pina Tapadejo EDIÇÃO
edições Universidade Fernando Pessoa Praça 9 de Abril, 349 | 4249-004 PORTO | PORTUGAL Tel. 22 507 1300 | Fax 22 550 8269 | edicoes@ufp.edu.pt | www.ufp.pt PRODUÇÃO
RCL - Imagem e Comunicação | Maria João Cunha FOTOGRAFIAS
Rui Cunha | Pág. 21, 31, 36, 43, 45, 47, 56, 75, 92, 97, 104, 111, 138, 142 e 149 Fotos de Peças e Ferramentas | José Manuel Bica Penhasco Restantes fotos | Engº António Transmontano CONCEPÇÃO GRÁFICA
RCL - Imagem e Comunicação | Dulce Soares Lima IMPRESSÂO E ACABAMENTOS
SERSILITO - Empresa Gráfica, Lda. DEPÓSITO LEGAL: 329050/11 ISBN: 978-989-643-073-3
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Homenagem Dedicatória Prefácio Agradecimentos Nota Prévia ... e aqui começa a história Os anos 40 | 50 A Rua Nova e a Fonte da Vila A Oficina e o Mestre João Tapadejo A Era do Mestre Carolino Presenças Assíduas na Oficina Os Caixeiros Viajantes Os Dias de Feira e de Mercado Os Aprendizes O Carnaval Os Anos 60 Os Anos 70 Os Anos 80 Os Anos 90 | 2000 Aprendizes da Oficina do Mestre Carolino Oficinas de Ferreiro, existentes em Castelo de Vide, nos Anos 50 Ferramentas Feitas à Forja pelo Mestre Carolino Ferramentas Feitas à Forja por autores Desconhecidos Ferramentas de Compra Trabalhos Executados Pelo Mestre Carolino, Destinados ao Exterior Mobiliário, em Ferro, Feito pelo Mestre Carolino Trabalho Executado pelo Mestre João Tapadejo As Têmperas A Soldadura Posfácio Comentários
“Se o
Sapateiro não deve ir além do
chinelo ...
Ferreiro ... poderá o
ir além da
bigorna ? ”
“Sabeis porque vos querem mal vossos inimigos? Ordinariamente é porque vêem em vós algum bem que eles quiseram ter e lhes falta.” (Padre António Vieira – Sermão da primeira Sexta-Feira da Quaresma, Lisboa, na Capela Real, 1649, § III.)
Homenagem
A quem partiu precocemente deixando fruto verde.
Dedicatória
Ao meu avô, João Tapadejo, ao meu Pai, à mãe Rufina, ao meu irmão Jorge, já falecidos; à minha mulher, Maria Amélia; aos meus filhos, José Carlos e Maria Rosalina; ao meu neto José Paulo, “Príncipe” da família; e aos meus irmãos, Mateus e José Alberto. Por Tudo aquilo que não fui capaz de vos dar.
Prefácio Acompanho, há mais de trinta anos, a vida profissional, pública e cívica de Carolino Tapadejo. De facto, tal companheirismo, repleto de cumplicidades práticas, utilitárias e intelectuais, permitiu construir uma amizade duradoura, saudável, solidária, forjada (que melhor termo poderia utilizar?) em projectos, desafios e sonhos. Por tudo isso, o convite que me foi endereçado para prefaciar este livro só poderia, obrigatoriamente, ter uma resposta positiva, que constitui, seguramente, orgulho mútuo. Creio que foi em 1981, num seminário académico, no Instituto Universitário da Beira Interior (depois Universidade), que nos encontrámos pela primeira vez. Jovens assistentes universitários, bebemos com avidez deliciosa, as palavras desse autarca desconhecido, que nos encantou com as suas convicções, determinação e conhecimentos sobre o desenvolvimento local que se visionava para o Alentejo. Perante três professores americanos de nomeada, a plateia era constituída por docentes da Covilhã, Évora e Vila Real (alguns dos quais se tornaram figuras públicas e académicos de referência). O contacto frutificou, nomeadamente através de acções do então PIDR (Projecto Integrado de Desenvolvimento Rural) e da OID (Operação Integrada de Desenvolvimento) e, a partir de 1986, através do Programa LEDA, da Comissão Europeia. É verdade que se tais acções cimentaram o referido companheirismo, as intervenções em Espanha, França,
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
Bruxelas, Itália e Grécia, que partilhámos, permitiram conhecer um homem simples, humanista, defensor do ambiente, cidadão preocupado, mestre dos seus ofícios de agente e líder do desenvolvimento local/regional, que soube sempre encarar a sério as problemáticas que enfrentava, amenizadas com as anedotas adequadas aos contextos mais diversos. A acção cívica e de serviço à comunidade de Carolino Tapadejo não se esgotou na Presidência da Câmara Municipal de Castelo de Vide. Mais tarde, na Misericórdia da sua terra, Tapadejo soube dar continuidade a uma meritória intervenção no apoio à comunidade, na protecção dos desfavorecidos e esquecidos, no envolvimento dos jovens, em projectos inovadores orientados para o bem comum. Se estas palavras situam a prática social deste cidadão de mérito, que dizer da obra que agora se apresenta ao público? Face à minha condição de antropólogo, este livro vem confirmar que o mosaico cultural que é o Alentejo possui um manancial de temas por descobrir, desvendar e divulgar. E nesse sentido, à volta da figura emblemática de seu pai, Carolino Tapadejo revela-se etnógrafo e historiador, que adquiriu na sua vivência a capacidade e o sentido crítico de narrar o quotidiano, de explorar o humor e a ironia, de denunciar desigualdades e injustiças, de recolher elementos semi-perdidos da cultura material e intangível. Convém recordar que trabalhar com metais sempre foi considerado, em todas as culturas, uma actividade altamente especializada. O ferreiro, por exemplo, era visto,
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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em muitas sociedades, como um ser acima do homem vulgar: essencialmente sagrado. De facto, quem manipula o fogo e sabe moldar e natureza bruta do metal, só com a convivência dos Deuses! Na nossa sociedade, perdido o carácter sagrado da profissão – que se associava à feitiçaria e ao sobrenatural – os artesãos do ferro foram, desde sempre, os grandes impulsionadores da mudança, quer ela se consubstanciasse no arado ou na espada. A confraria dos ferreiros surgiu no princípio do século XIII, demonstrando assim a importância do ofício, orientado para a produção de artefactos utilitários: alfaias agrícolas, armas, grades, foices, portões, arcas, enxadas e martelos. Forjado ou fundido, o ferro deu, desde sempre, ao artesão, a possibilidade de veicular dois tipos de saberes: um mágico e outro técnico. Na realidade, nas primeiras décadas do século XX, ainda os ferreiros alentejanos competiam com os barbeiros na aplicação da medicina popular: reminiscências da função “extra-ordinária” da profissão. Devo acrescentar que é a metalurgia do ferro que produz os instrumentos do próprio ofício, situação única que não acontece nas outras actividades artesanais. Indústria rural de complemento, o artesanato dos metais representou, desde sempre, no Alentejo, um sector importante na luta árdua do homem com a terra. Ainda hoje, aqui e além, algumas famílias de ferreiros, como a de Carolino Tapadejo foram ou são identificadas como poetas do ferro e dos metais, numa dicotomia aparentemente contraditória, que une sensibilidade e dureza, natureza e cultura.
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
A homenagem que se faz a Mestre Carolino (pai), sendo o coração desta obra, não deixa de abordar o contexto da época, serve de recordação para que os mais velhos matem as nostalgias e é um incentivo para que os mais novos possam reflectir. Por tudo isso, este livro serve para pensar. Obrigado, Carolino! Francisco Martins Ramos (framos@uevora.pt)
C a ro lCi na oroTa l i npoa dTae jpoa df iel hj o
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Agradecimentos Ao Senhor Professor Doutor Salvato Trigo, Digníssimo Reitor da prestigiada Universidade Fernando Pessoa, e a sua Exma. Esposa, Senhora Dra. Manuela Trigo, Presidente da Fundação Fernando Pessoa, que ao tomarem conhecimento de que eu estava a preparar um trabalho escrito de homenagem a meu pai e à velha oficina de ferreiro da nossa família, de imediato assumiram a sua edição, demonstrando uma continuada amizade, que muito me honra; ao Senhor Professor Doutor Francisco Ramos, pela disponibilidade demonstrada, ao aceitar o meu convite para prefaciar esta modesta obra, bem como pela sua amizade e solidariedade, demonstradas ao longo de três décadas; à Senhora Dra Maria de Guadalupe Transmontano Alexandre, pela sua amabilidade em escrever o posfácio do livro, atitude que registo com muita gratidão; ao meu afilhado e amigo, António Pita, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, que ao tomar conhecimento deste projecto, de imediato disponibilizou a Secção de Arqueologia, para que fosse possível a inventariação, limpeza e catalogação de ferramentas e outros materiais, tendo em vista a sua posterior musealização; ao meu ilustre amigo, Dr. Daniel Carreiras, pelos seus conselhos com vista aos aspectos técnicos do livro; ao meu querido amigo e distinto fotografo Rui Cunha, a sua esposa Maria João, à sua filha Vânia e à também criativa Dulce Lima, pelo excelente e categorizado trabalho efectuado
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na revisão final, maquetagem e organização gráfica do livro e, ainda, pela cedência de algumas fotos que nele estão impressas; da Secção de Arqueologia, ao João Magusto, pela valiosa colaboração prestada na elaboração e preparação dos materiais e ferramentas da oficina, com vista à sua publicação, assim como os seus ensinamentos informáticos, que se revelaram de grande utilidade; ao José Manuel Bica Penhasco, pelo seu empenho e saber, no acompanhamento e na recolha fotográfica de todas as ferramentas da oficina, bem como a criação da base de dados para todo o espólio; ao Nuno Félix e ao Carlos Grande, pelo excelente e qualificado trabalho, que realizaram na limpeza e na preparação das ferramentas. Este agradecimento, è extensivo ao Pedro Vieira, à Emília Dias e ao Ricardo Fernandes, que colaboraram também na limpeza dos materiais; ao meu filho, José Carlos, pela paciência revelada, nas aulas informais de informática, ensinando e corrigindo os erros próprios de um noviço nesta matéria; ao meu querido amigo, Alexandre Sequeira, pela primeira revisão do texto; ao Dr. Fernando Branquinho, e ao António Roxo, pelas informações preciosas, relativas aos primeiros anos em que o mestre Carolino esteve à frente da oficina. Um reconhecimento muito especial, ainda que, em muitos casos a título póstumo, a quantos, ao longo dos séculos, souberam dignificar as suas profissões, sobretudo a de ferreiro, quantas vezes em circunstâncias terríveis de sobrevivência.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Nota Prévia Desde o início da década de Noventa, que a ideia de escrever a história da oficina da família, me tem perseguido. Gostaria de ter tido a possibilidade de levar este projecto por diante, em vida de meu pai. Por razões de natureza familiar e profissional, tal não se tornou possível. Era minha intenção fazer coincidir a apresentação deste trabalho com a concretização da musealização da oficina de ferreiro, pertencente aos meus antepassados, mas tal não foi possível, devido à pequenez intelectual do Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, António Ribeiro, que faltou ao seu compromisso para com a Junta de Freguesia de São João Batista, no que respeita à realização das obras na oficina, incluídas no Plano de Actividades e no orçamento Municipal, nos últimos dois anos. Perante tal situação, e porque o edifício é propriedade da referida Freguesia, a Junta e a Assembleia de Freguesia, embora com um orçamento modesto, tomaram a decisão de levar por diante as obras necessárias para a musealização da oficina. Com esta atitude, demonstraram que mesmo na política, ainda existem pessoas com carácter. Por causa deste incidente a entrada em funcionamento da oficina museu, sofreu um atraso significativo. Refiro, que eu e os meus irmãos, desde o início, decidimos que todo o espólio pertencente à oficina, será entregue graciosamente àquela Autarquia, mediante a assinatura de um Protocolo.
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Castelo de Vide foi, desde tempos remotos, terra de artífices de várias profissões que souberam, ao longo dos séculos, criar uma cultura muito própria que a diferencia de todas as Terras vizinhas. João António Gordo, escolheu para título de uma obra que não chegou a ser publicada, o seguinte: “Castelo de Vide, Vila Medieval, Cidadezinha Moderna.” Em minha modesta opinião, nunca ninguém havia caracterizado tão bem Castelo de Vide. Saibamos nós ser dignos deste título e honrá-lo com as nossas atitudes, salvando e protegendo o que nos resta dum passado honroso, feito com o sacrifício e sofrimento de gerações.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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história ... e aqui começa a
“...ali se fixaram algumas famílias de Judeus, entretanto convertidos forçadamente ao cristianismo, passando a desenvolver naquela rua as suas actividades profissionais, entre as quais, a de ferreiro.”
Perde-se na memória do tempo a história daquela pequena oficina de ferreiro, situada no número 27 da Rua Nova, em Castelo de Vide.
É muito provável que tenha começado a funcionar nos primórdios do séc. XVI, quando ali se fixaram algumas famílias de Judeus, entretanto convertidos forçadamente ao cristianismo, passando a desenvolver naquela rua as suas actividades profissionais, entre as quais, a de ferreiro. Uma investigação mais profunda, (já em curso) poderá trazer ao conhecimento, com rigor e detalhe, outros elementos que agora se desconhecem. A abordagem que vou fazer da história da oficina e de quem lhe conferiu “alma”, reporta-se ao período que vai desde 1945, até 2001, porque foi o tempo em que o meu pai, que adiante tratarei por mestre Carolino, por pai, ou simplesmente por mestre, ter sido o principal protagonista e o tempo em que, pela sua mão, ali se operaram as grandes transformações, desde as formas mais arcaicas de trabalhar o ferro, até às modernas técnicas de moldar aquele nobre metal. Factor igualmente importante, para ter escolhido este período do século passado, tem a ver com o facto de
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“...o facto de eu, nascido em 1947, ter tido a possibilidade de acompanhar de perto tudo o que ali se passou...”
eu, nascido em 1947, ter tido a possibilidade de acompanhar de perto tudo o que ali se passou durante a maior parte daqueles anos, podendo por isso dar um testemunho, tanto quanto possível, fiel.
Atrás (da esq. para a direita): Mestre Carolino e seu pai Mestre João Tapadejo Frente: António Roxo, Fernando Branquinho, Carolino filho e Alexandre Raposo, 1949.
Com esta publicação, pretendo também dar a conhecer, sobretudo aos castelovidenses mais jovens e aos forasteiros, a minha visão da vida social e económica da vila naquela época e a relação que a oficina tinha com a comunidade e, em particular, com as pessoas que mais frequentavam aquele espaço, homenageando-as, ainda que de forma singela.
Carolino filho à porta da oficina, 1949.
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Os anos
40 50 /
No final da década de quarenta e início dos anos cinquenta, Castelo de Vide vivia as sequelas deixadas pela segunda guerra mundial e, apesar de Portugal não ter participado oficialmente naquele conflito, os efeitos do mesmo faziam-se sentir de forma intensa por todo o país e a nossa Terra não fugia à regra. Assim, no nosso Burgo, as dificuldades económicas eram imensas, em especial nos agregados familiares de menores recursos, que viviam muito abaixo dos limiares da pobreza. A maior parte dessas famílias eram compostas por muitos elementos, devido ao grande número de filhos e, nalguns casos, por acolherem no seu seio, familiares idosos. Algumas destas situações prolongaram-se por décadas.
“ Tanto os mestres como as mestras, recebiam aprendizes ...”
Naquela época, a economia local baseava-se, em grande parte, numa agricultura de subsistência em
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que uma percentagem elevada da população vivia e trabalhava no campo. Ainda no sector produtivo, as actividades desenvolvidas pelas muitas oficinas dos vários ofícios que existiam na Vila, tinham relevância económica, nomeadamente as de sapateiro, carpinteiro, ferreiro, alfaiate, barbeiro, albardeiro, funileiro, ferrador, para além dos inúmeros pedreiros que também desenvolviam a sua actividade no Concelho e noutras Terras, indo mesmo até Elvas. Para as mulheres, existiam as profissões de modista, costureira, alfaiata, enchedeira ou criada de servir. Tanto os mestres como as mestras, recebiam aprendizes que, por não existirem alternativas escolares ou outras, tinham como única possibilidade a aprendizagem dos ofícios disponíveis na Terra, que no entanto, não absorviam todos os adolescentes oriundos de famílias pobres, que saíam da escola ou aqueles que nem lá chegavam. Para alguns dos que ficavam de fora, os pais recorriam aos lavradores para os aceitarem como criados, a fim de trabalharem na lavoura. Quanto às raparigas que não conseguiam lugar como aprendizas, ou que pertenciam a agregados familiares mais desfavorecidos, o destino era quase sempre o de irem como criadas de servir para casa das famílias mais abastadas. Nas duas últimas situações, dizia-se que iam “morar.” Algumas moças do campo, limitavam-se a trabalhar na agricultura, normalmente até casarem, frequentando de vez em quando, na vila, cursos de costura e de bordados, quase sempre promovidos pela “Singer” e pela “Oliva”. Algumas meninas, filhas de gente com mais posses, passavam, por vezes, algum tempo em casa das mestras modistas mais afamadas, para que estas as ensinassem a costurar e a bordar, com o intuito de virem depois a ser umas donas de casa, prendadas.
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“ Por não existirem alternativas escolares ou outras, os jovens tinham como única possibilidade a aprendizagem dos ofícios disponíveis na Terra.”
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Os funcionários públicos existiam em número apreciável. O Tribunal, os Registos e Notariado, as Finanças e Tesouraria, as forças de segurança da Guarda Nacional Republicana e da Guarda Fiscal, os Serviços Camarários, os Correios, a Caixa Geral de Depósitos e ainda a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, os Caminhos de Ferro e o Grémio da Lavoura, empregavam um número apreciável de pessoas que animavam a vida local. O turismo, apesar da existência do Hotel das Águas, do Hotel Sintra e da Pensão Casa do Parque, (apesar de modesta, era dirigida por gente idónea e com carácter... ) não tinha expressão significativa, a não ser no Verão, com a vinda das pessoas que frequentavam as Termas. Existiam ainda algumas actividades sazonais, como a colheita da azeitona no Inverno, utilizando depois os vários lagares para desfazer a azeitona e sacar dela o tão precioso azeite. No final da Primavera, era a época da ceifa e, junto às eiras preparadas para o efeito, estacionavam as debulhadoras fixas para separarem o grão da palha. Só mais tarde chegariam as ceifeiras debulhadoras. Os agricultores que tinham pequenas produções de cereais, debulhavam nas suas eiras, recorrendo a cascos de animais ou com mangual. Em Castelo de Vide, o transporte de mercadorias era efectuado pelo caminho de ferro e a ligação à vila processava-se através da Central do Ti Alberto de Assunção, que tinha um serviço combinado com a CP, localizada na Carreira de Cima onde funciona hoje a pastelaria “Sintra do Alentejo”. O transporte das mercadorias entre a vila e a estação do caminho de ferro era assegurado por duas carroças de tracção
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“ No caso das encomendas que vinham dirigidas à oficina, a maioria eram barras de ferro e de aço com seis ou doze metros de comprimento e, mesmo assim os carroceiros lá as conseguiam acomodar e chegar com elas ao destino.”
animal. No caso das encomendas que vinham dirigidas à oficina, a maioria eram barras de ferro e de aço com seis ou doze metros de comprimento e, mesmo assim, os carroceiros lá as conseguiam acomodar e chegar com elas ao destino. Era um trabalho muito árduo. Recordo aqui o Ti Zé Novo que, apesar da sua pequena estatura, era um homem rijo, não havendo obstáculo que lhe fizesse frente e foi quem mais encomendas transportou para a nossa oficina. Os despachos podiam ser efectuados em pequena ou grande velocidade, e no caso desta última, levava menos de vinte e quatro horas a chegar ao destino, podendo ser entregues ao domicílio. Hoje leva bastante mais tempo e estamos no século XXI. Nessa época também transportavam por caminho-de-ferro os perus pelo Natal que eram normalmente enviados aos pares, colocados dentro de numa alcofa que era cosida com cordel, apenas deixando de fora o pescoço e a cabeça dos bichos. Igualmente no Inverno, seguiam para Lisboa as bilhas com azeite, utilizando o mesmo transporte, mas, neste caso, iam dentro de uma grade de madeira fechada a cadeado, depois do gargalo da bilha, ter sido soldado a estanho. Pela mesma via seguiam os canastros com os então famosos chouriços, fabricados nas várias salsicharias que existiam em Castelo de Vide. Os galináceos viajavam também por caminho de ferro, enjaulados em grades de madeira. Mais tarde, a Central passou para as mãos do Ti Jaime da Silva e o transporte, nessa altura, já era efectuado em veículo motorizado e assim continuou até à extinção daquele serviço.
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Existiam em Castelo de Vide algumas famílias que viviam quase ou exclusivamente do rendimento das propriedades, sobretudo rústicas. O pagamento das rendas era efectuado em dinheiro e em propinas, que obrigavam à entrega de géneros, desde borregos a galinhas e ovos, até azeite, batatas, passando por queijos, frutas, etc. Nalguns casos, incluíam até lavagem semanal da roupa do agregado familiar dos senhorios. Tudo o que era entregue em propinas aos donos dos prédios, tinha que ser da melhor qualidade, o que aumentava as dificuldades dos rendeiros. Recordo o desabafo sofrido daqueles que vinham do campo e se dirigiam à oficina para mandar arranjar as suas ferramentas, lamentando-se por terem sérias dificuldades em cumprir com a entrega das propinas, porque o ano agrícola havia sido mau e não tinham dinheiro para comprar o que faltava. Pediam então ao mestre Carolino se podiam ficar a dever o amanho dos utensílios, até que conseguissem ganhar dinheiro para pagar. Estes pedidos foram sempre aceites e, nalgumas situações, pagavam mais tarde, não em dinheiro mas com produtos que tinham em excesso nas suas explorações agrícolas. Alguns rendeiros, tinham mesmo que se endividar para poderem cumprir com a entrega das propinas aos patrões, nome pelo qual tratavam os donos dos prédios. E se havia senhorios compreensivos, outros eram rigorosos, por vezes intolerantes, obrigando os arrendatários a cumprirem integralmente, com a entrega das propinas nas datas acertadas, apesar de saberem da impossibilidade que estes tinham em cumprir com o acordado. Em alguns casos eram mesmo ameaçados de serem postos fora
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das propriedades e, ao contrário dos tempos actuais, os prédios de campo nessa altura estavam todos ocupados. Também havia situações de arrendamentos antigos, por vezes transmitidos de pais para filhos e, nesses casos, os rendeiros viviam de uma forma geral mais desafogados. A escolaridade nessa época em Castelo de Vide ia só até à quarta classe (actual quarto ano) e nem todas as crianças frequentavam a escola. Algumas vinham do campo a pé, percorrendo vários quilómetros diariamente e, quando chovia, traziam uma saca de linhagem, dobrada a meio, que lhes protegia a cabeça e as costas, não impedindo no entanto que se molhassem, tendo depois que secar a roupa no corpo ao longo do dia. Ao contrário do que ocorre nos nossos dias, nesse tempo, os Invernos eram rigorosos, estando vários meses a chover. Algumas crianças de agregados familiares mais pobres, andavam descalças. Também nesse período e com produtos vindos da Caritas, a Paróquia e a Conferência de S. Vicente Paulo, forneciam alguma alimentação aos mais desfavorecidos na denominada “Nossa Casa.”
“ Era triste ouvir as mães mais carenciadas, quando davam aos filhos, pão sem conduto, dizerem: “o pão seco faz os olhos bonitos”.”
Era triste ouvir as mães mais carenciadas, quando davam aos filhos pão sem conduto, dizerem: “o pão seco faz os olhos bonitos”. Só elas sabiam a mágoa com que proferiam aquelas palavras, pois não tinham dinheiro para irem além do pão. Nessa época existiam os exames da terceira e quarta classe e, nesses dias, os examinados com sucesso, saíam da escola acompanhados de um grupo de colegas, fazendo uma grande algazarra. Davam vivas àqueles que tinham passado no exame e aos respectivos pais, percorrendo as ruas da Vila até às casas onde estes
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“ Na noite de S. João, que era a mais festejada, acendiam-se as fogueiras, assavam-se sardinhas, toucinho, cacholeiras ou chouriços, enquanto começava o bailarico numa das lojas da vizinhança,...”
moravam, e então toda a malta era convidada a entrar, a fim de comerem umas bolachitas e tomarem um refresco, de groselha, de café ou de vinagre. Nesses tempos, quando chegava o mês de Junho, era ver, em muitas ruas da vila, a vizinhança juntar-se para comemorar os santos populares. Enquanto os rapazes se encarregavam de ir ao rosmaninho, as cachopas tratavam da decoração da rua, de fazer a boneca para colocar no cimo do mastro, e faziam as bandeiras. Os mais pequenos pegavam na boneca já preparada e, durante a tarde, deambulavam pela vila, angariando fundos para custear as despesas da festa. Na noite de S. João, que era a mais festejada, acendiam-se as fogueiras, assavam-se sardinhas, toucinho, cacholeiras ou chouriços, enquanto começava o bailarico numa das lojas da vizinhança, previamente decorada para o efeito. No meio da rua, lá estava o mastro envolvido por heras ou por rosmaninho, com a boneca no topo. Os rapazes, à socapa, tentavam incendiar o mastro, mas eram constantemente repelidos pelas raparigas, pois estava estabelecido que a boneca só deveria ser queimada na noite de S. Pedro. Era hábito saltar-se a fogueira três vezes e deitavam-se as tradicionais bombinhas de S. João e as caninhas, que apenas continham rastilho. Avós e mães faziam as capelas de trevo para a criançada e queimavam na fogueira as que haviam feito no ano anterior. A partir da meia-noite, mandava a tradição que se deveria ir à água nova e então pegava-se numa bilha ou num barril e, em grupo, lá se ia até à Mealhada ou à fontinha do Castelo, buscar água nova.
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“No final da Primavera os rapazes, que completavam 20 anos iam tirar as Sortes.” Uma grande festa para a miudagem era o Sábado de Aleluia, pois, até às alterações da Liturgia da Igreja Católica, operadas em meados da década de cinquenta, as cerimónias da Vigília Pascal desenvolviam-se no Sábado até ao fim da manhã, e só a partir do momento em que soava a Aleluia é que os rebanhos entravam no espaço urbano, dirigindo-se para a frente da igreja matriz, onde os animais eram benzidos, negociados e depois sacrificados, um pouco por toda a vila, normalmente nas lojas das casas. Era também esse o momento em que as pessoas se cumprimentavam, dando e recebendo as Boas-Festas, enquanto as Filarmónicas, União Artística e Frederico Laranjo, arruavam pela Vila, tocando alegres marchas, levando à frente a garotada, apoiante das suas hostes, que badalavam os chocalhos, dando largas à sua alegria. No final da Primavera, os rapazes que completavam 20 anos iam tirar as Sortes. Tratava-se da inspecção para o serviço militar que normalmente tinha lugar nos Paços do Concelho. Era uma festa que durava vários dias, pois a rapaziada contratava um acordeonista que com eles circulava pela vila e, na véspera da inspecção, mandava a tradição irem para o campo tomar banho, para uma propriedade que tivesse um tanque grande ou uma piscina. No dia das sortes, os que saíam apurados colocavam uma fita vermelha na lapela do casaco, enquanto os que ficavam adiados usavam uma verde e os que saíam livres punham uma branca. A seguir, os inspeccionados, acompanhados pelo som da concertina e das pandeiretas, circulavam pela vila indo a casa dos respectivos pais onde tinham a mesa posta. À noite, ofereciam um baile com orquestra que, se o tempo o permitisse, marcava lugar na praça D. Pedro V. Nesse C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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tempo, as orquestras mais solicitadas aqui da zona eram, em Castelo de Vide o Bando Carioca e os Sintras, em Portalegre a Ferrugem e a Ideal, os Águias nas Carreiras e ainda os Santos em Valência de Alcântara. Para a maioria dos rapazes, o dia das sortes era aquele em que pela primeira vez vestiam um fato novo, feito numa das alfaiatarias existentes na vila. Um dia importante para os jovens, em idade namoradeira, era a Quinta Feira de Ascensão (Dia da Espiga). Da parte da tarde fechavam-se as oficinas e os rapazes acompanhavam as respectivas namoradas até ao campo para irem colher a espiga. Era uma tarde em que se gozava de alguma liberdade e por isso até havia quem, de forma brejeira, comentasse que algumas moças apanhavam uma grande espiga. Por vezes, não se enganavam.
“Para a maioria dos rapazes, o dia das sortes era aquele em que pela primeira vez vestiam um fato novo, feito numa das alfaiatarias existentes na vila.”
Nessa época, o Natal em Castelo de Vide era comemorado com muita discrição, no recato dos lares, em família, sem o espalhafato consumista dos nossos dias. Na noite da consoada, nas casas dos agregados mais pobres, a ceia compunha-se de alhada de cação e de marrã frita (entremeada) e durante o resto da noite, à volta da lareira, comiam filhoses acompanhadas, por vezes, por cânticos de Natal e pelo som de uma ronca, normalmente feita pelo membro mais velho da família. Nas casas de gente remediada, já se comia canja e o segundo era a galinha ou perua tostada e, durante o serão, comiam filhoses e azevias. Nos lares de famílias com mais posses, compunha-se a ceia também de canja, seguindo-se o peru, presença principal nessa noite e durante o serão lá apareciam as azevias, as fatias de ovo e outras sobremesas. Em todos os lares onde houvesse gente nova, mandava também a tradição que os miúdos 32
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deviam colocar os sapatos na chaminé antes de irem dormir, porque durante a noite passava o Menino Jesus a deixar prendas. Assim que acordavam, os mais pequenos corriam para ver se tinham alguma coisa no sapato. Nos lares mais pobres, as prendas constavam normalmente de uns rebuçaditos e de um par de meias ou outra peça de vestuário. Nas casas de pessoas remediadas, à parte de alguns chocolatitos, por vezes também recebiam algum brinquedo ou uma peça de roupa. Já nos lares de pessoas abastadas, as prendas eram mais avultadas e em maior número. Ao final da noite algumas pessoas, na maioria mulheres, iam assistir à Missa do Galo. Ainda durante a década de cinquenta, o Cónego Albano constrói um Colégio que abre a possibilidade da escolaridade ir um pouco mais além, criando condições para alguns poderem continuar a estudar em Castelo de Vide por mais cinco anos, permitindo depois, àqueles cujos pais tinham mais poder económico, prosseguirem os estudos em Portalegre ou noutros locais. A propósito do Cónego Albano, recordo que alguns a quem ele deu a mão para poderem continuar a estudar foram os que cobardemente o “apunhalaram” nos tristes acontecimentos ocorridos no Sábado de Aleluia de 1975, na igreja matriz em Castelo de Vide.
“Nessa época, o Natal em Castelo de Vide era comemorado com muita discrição, no recato dos lares, em família, sem o espalhafato consumista dos nossos dias.”
Existiam, com alguma frequência, crises de trabalho, sobretudo para trabalhadores indiferenciados, que se juntavam ao pé do Pelourinho à espera que alguns lavradores aparecessem e lhes arranjassem alguns dias de trabalho que, mesmo mal pago, não podiam rejeitar, pois tinham a família a passar fome. Esta, era uma situação degradante e não me recordo que as denominadas Elites endinheiradas da época tenham feito algo para ajudar a mudar aquele estado de coisas, a não ser mandarem C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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celebrar uma Missa de vez em quando, talvez por pensarem que assim limpavam a consciência. Por vezes, abriam-se algumas frentes de trabalho nas obras públicas, fora de Castelo de Vide, para onde se deslocavam algumas dezenas de homens. Iam de saco aviado, que significava levarem os mantimentos para toda a semana, pois partiam à segunda-feira de madrugada, regressando sábado à noite com o dinheiro da féria semanal, em que as mulheres os aguardavam para efectuarem as compras para a semana seguinte, ou para pagarem o aviamento da semana anterior. Nesse tempo, as mercearias e outras lojas, nos sábados, fechavam às 11 horas da noite. A estratificação social era, pois, muito acentuada em Castelo de Vide nesse tempo. Mais um exemplo disso era o que se passava com as Sociedades Recreativas Artística Popular (de origem monárquica) e 1º. De Dezembro (de raiz republicana), estando a primeira mais orientada para a população do campo, enquanto a segunda era quase exclusivamente para pessoas da Vila ou para alguns lavradores mais abastados, existindo ainda o Clube, onde iam somente os ricos ou os que se faziam passar por tal. Para além disso, o Café Central era privilégio só para uns quantos, quase todos relacionados com o regime então vigente. É curioso que, ainda hoje, alguns frequentadores do referido estabelecimento são os mesmos de outros tempos, apesar de agora apregoarem que são de esquerda.
“...o Café Central, era privilégio só para uns quantos, quase todos relacionados com o regime, então vigente.”
De entre as famílias que dominavam a Vila naquela época, existiam indivíduos bem formados e cordatos na forma como lidavam com gente de camadas sociais
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“Nessa época em Castelo de Vide, já a polícia política (PIDE) actuava, através de informadores “Bufos” ...” consideradas inferiores. Porém, outros havia em que a arrogância e a prepotência imperavam, tentando sempre que podiam, espezinhar os mais frágeis, nomeadamente quando recorriam aos seus serviços. Destes últimos, ainda existem por aí alguns “laníferos,” com cheiro a bedum que sem terem a força de outros tempos, sempre que podem e os deixam, prenhes de saudosismo, tentam restaurar o passado, dizendo-se democratas e fazendo-se agora passar por esquerdistas. “É com papas e bolos ... !” Nessa época em Castelo de Vide, já a polícia política (PIDE) actuava, através de informadores “Bufos” criteriosamente escolhidos de entre a população, que se dedicavam a perseguir indivíduos considerados opositores do Estado Novo (chegaram a ser dezasseis informadores). Foram muitas as pessoas incomodadas ao longo dos anos por esses energúmenos que, cobardemente e a coberto do anonimato, denunciavam pessoas por terem tido algum desabafo de ordem política em público, por pertencerem à Banda União Artística, não trabalhar no dia primeiro de Maio, comemorar o 5 de Outubro, por inveja, ou simplesmente porque se tinham recusado a fazer-lhes algum favor. A minha família também foi alvo dessas perseguições, mas voltarei a este assunto mais adiante. Entretanto e na sequência de alguma modernização que o país conheceu no pós guerra, começaram a fechar em Castelo de Vide muitas oficinas dos vários ofícios existentes na vila, acelerando a debandada da população activa com destino ao litoral, sobretudo para Lisboa e zonas circundantes. O êxodo não mais haveria de parar, com excepção do período que se seguiu ao 25 de Abril, até final dos anos oitenta.
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Rua Nova e a Fonte da Vila A
A Fonte da Vila tinha naquela época uma vida económica e social bastante intensa, porque ali se localizavam várias actividades que se prolongavam pelas Ruas Nova e dos Serralheiros, tais como: uma padaria; duas oficinas de carpinteiro; uma mercearia; uma venda de petróleo; duas lojas de carvão; quatro tabernas; duas salsicharias; duas adegas; quatro oficinas de ferreiro; uma de sapateiro e uma mestra modista. Estas actividades não terão sido ali localizadas por acaso, mas sim pelo facto daquela ter sido uma zona de fixação de cristãos novos e uma das principais entradas na Vila para quem vinha das zonas do Bom Jesus, do Ribeiro da Fonte, do Vale do Pereiro, dos Pombais, dos Alagadores, de Santo Amador, do Prado e da Amieira. Era um corrupio de gente que subia e descia aquelas artérias durante todo o dia, desde as moças que iam para as mestras onde aprendiam algum dos ofícios dedicados às raparigas, até aos agricultores que transportavam produtos hortícolas para a praça, que nesse tempo se localizava junto ao Pelourinho, passando por aqueles que nos dias de Mercado Franco, (última sexta feira de cada mês)
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“Era um corrupio de gente que subia e descia aquelas artérias durante todo o dia,...” conduziam os animais para o Largo do Calvário, onde se realizavam as transacções de gado, ou ainda os que no Inverno ao final da tarde transportavam a azeitona em dorso de animal, para um dos Lagares situados dentro da Vila. Muitos dos que utilizavam a nossa rua entravam na oficina para deixarem ou recolherem as suas ferramentas ou outros utensílios. Alguns, apenas pretendiam conversar um pouco e tentar saber ou dar alguma novidade. No início dos anos cinquenta, não existia Matadouro e os suínos eram abatidos e chamuscados na rua, à porta dos salsicheiros. Na Rua Nova os nossos vizinhos Francisco Branquinho, (o Ti Chico dos Porcos) e Francisco Curvelo, (o Ti Chico Marmelo) possuíam as suas casas de matança e durante os meses mais frios do ano, pelo menos uma vez por semana, procediam ao abate dos animais que depois eram chamuscados com giesta. Esses dias eram de festa para a pequenada, devido a toda a movimentação que esta actividade gerava e, no final, o vizinho Chico dos Porcos, que adorava a miudagem, assava os “mamilhos,” saliências que tinham a forma de um pequeno dedo e cresciam na parte inferior do pescoço de alguns suínos de montado. Aquilo pouco tinha que comer e eram rijos, pois compunham-se apenas de pele e cartilagem, mas quentinhos e com sal, acabavam por ter algum sabor e sempre dava para o pessoal afiar os dentes.
“ No início dos anos cinquenta, não existia Matadouro e os suínos eram abatidos e chamuscados na rua, à porta dos salsicheiros.”
Passantes ilustres na nossa rua, eram alguns artistas da música ligeira portuguesa, vindos de Lisboa, a convite do Hotel das Águas, (actual Sol e Serra) que com as suas excelentes e afinadas vozes animavam algumas noites de verão no interior ou na esplanada daquela unidade
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Bando Carioca num carnaval em Castelo de Vide nos anos cinquenta. Atrás, da esquerda para a direita: Manuel Sarnadas, José Anacleto Chenrim; À Frente, da esquerda para a direita: Francisco Caranova, José Folgado, Mário Rainho, Eduardo Valhelhas; Em pé: Manuel Barbosa, Carolino Tapadejo; À direita em pé: Belinha Sarnadas, Isabel Valhelhas.
hoteleira. Por vezes, durante a tarde, caminhavam a pé pela Carreira de Cima, desciam a Rua Nova em direcção às Termas e paravam por alguns instantes a ver trabalhar o mestre Carolino que, de imediato, começava a falar-lhes de música. Desses visitantes, recordo com saudade nomes como os de Maria Clara, Maria de Lurdes Resende, Rui de Mascarenhas ou Luís Piçarra. Para nós, eram momentos únicos, pois ainda não havia chegado a televisão e apenas os conhecíamos através das suas canções que escutávamos pela rádio e pelas fotos publicadas nas Revistas Sociais da época, como a “Flama” ou o “Século Ilustrado” e ali tínhamos a possibilidade de lhes falar e pedir autógrafos, correspondendo eles com muita simpatia. A propósito de música, nessa época o meu pai tocava trompete na Banda União Artística e na orquestra o “Bando Carioca”. Recordo-me que, quando a Banda tinha algum serviço de maior relevância, preparava-se muito bem, ensaiando na sua própria casa horas a fio. Diziam os entendidos que era um excelente músico. Em Castelo de Vide, os aquistas eram apelidados de “bebáguas” e muitos deles repetiam a vinda ano após ano, estabelecendo conosco uma relação de amizade que, em muitos casos, se tornou duradoura. Para nós, 38
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os que andávamos na escola, a chegada dessa gente era motivo de alegria, pois anunciava a proximidade do Verão e com ele as tão esperadas férias grandes. Já a sua partida, deixava-nos tristes, pois era o prenúncio do nosso regresso às aulas que, nesse tempo, se iniciavam por volta do dia 7 de Outubro. Alguns aquistas, após o regresso das termas, subindo a Rua Nova, faziam uma paragem na oficina, aproveitando para descansar um pouco enquanto batiam um papo com o mestre Carolino que, agarrado ao seu trabalho, lá ia respondendo, pois era bom conversador, desde que estivesse de catadura. Nessa época, a Guarda Republicana fazia rondas regulares a pé pelo campo, cumprindo um itinerário previamente estabelecido que tinha que ser validado e assinado pelas pessoas que encontrassem no caminho. Quando iam para as bandas do Vale do Pereiro, desciam a nossa rua, entravam na oficina e bastava começar a chuviscar e outras vezes nem isso, para que a ronda se fizesse dentro da oficina, pois passavam ali o resto da tarde. Entretanto, não tardava a aparecer uma tora de toucinho ou uma morcela que, de imediato, eram assados na forja e devoradas a seguir, acompanhadas por um bom tintol que normalmente estava por perto. Como era necessário justificar na folha de ronda a passagem pelos locais determinados, então o Guarda mais graduado solicitava às pessoas presentes para rubricarem o documento, confirmando que a patrulha tinha estado naquele sítio e àquela hora, de acordo com o que constava no boletim itinerário, quando afinal não haviam passado da Rua Nova.
“Desses visitantes, recordo com saudade, nomes, como os de Maria Clara, Maria de Lurdes Resende, Rui de Mascarenhas ou de Luís Piçarra. ”
As outras oficinas de ferreiro que existiam naquela rua, eram propriedade dos mestres Hermínio Gargaté, (o Ti Caracinha) Francisco Alvarrão e Francisco Afonso (o Ti C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Casalim.). Quando os mestres estavam a malhar ferro, o que acontecia por vezes em simultâneo, era delicioso ouvir o som dos martelos que ora batiam no ferro em brasa ora na bigorna, soando como uma harmoniosa sinfonia, tal era a beleza sonora que ecoava por toda a Rua Nova, como se de uma poesia musical se tratasse, maravilhando os ouvidos de quantos tinham o privilégio de escutar aqueles melodiosos sons. Um vizinho interessante que morava no número 20 da Rua dos Serralheiros, onde tinha uma casa de pasto, era o Ti Chico Favas. No Inverno comprava azeitona e nessa altura o preço rondava os oito tostões o quilo. Dizia a tradição que depois da azeitona colhida, qualquer pessoa podia ir aos olivais apanhar os restos, a que se dava o nome de rabisco. Por vezes, eu e alguns colegas, íamos ao rabisco para arranjarmos uns trocos, para comprarmos rifas, onde saíam, entre outros brindes, bolas de coiro para jogarmos futebol, no improvisado campo do Pouso. Quando íamos vender a azeitona, o Ti Chico só nos pagava quatro tostões por quilo e deitava-a para o monte onde estava a outra pela qual pagava o dobro. A partir de um determinado momento resolvemos que a nossa azeitona tinha que valer o mesmo que a outra e pusemos a questão ao comprador que nos disse que não. Resolvemos então adoptar a seguinte estratégia: Quando tínhamos material para vender, escalávamos dois elementos: um transportava um saco cheio e o outro, mais atrás, levava um saco vazio. Enquanto o Ti Chico, depois de pesar a azeitona ia à casa de pasto pagar o produto ao primeiro, o segundo ia ao monte enchia o
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outro saco e um pouco depois ia vendê-lo ao mesmo comprador e assim ninguém ficava prejudicado. Ainda hoje, estou convencido que ele se apercebeu da marosca, mas deve ter achado piada à ideia e por isso fingia que não sabia. Este homem, alem de ser uma excelente criatura, era também muito ingénuo e brincalhão.
“ Quando os mestres estavam a malhar ferro, o que acontecia por vezes em simultâneo, era delicioso ouvir o som dos martelos que ora batiam no ferro em brasa ora na bigorna, soando como uma harmoniosa sinfonia, ...”
A esposa do Ti Chico, era a vizinha Aniceta que para além de boa pessoa, fazia excelentes petiscos e, por isso, entre muitos outros, era também cliente da sua casa de pasto o Sr. Lameira que era chefe das finanças. Um dia o homem dos impostos disse ao Ti Chico para, no dia seguinte, passar pela repartição de finanças a fim de falarem sobre a fixação da contribuição. À hora marcada lá estava o contribuinte que, de imediato, foi atendido pelo chefe, que como era uma pessoa muito humana e para abrir a conversa, começou por dizer-lhe que tinha a percepção que o ano estava a ser mau para o negócio da azeitona, ao que o Ti Chico rapidamente retorquiu, dizendo: “Ó chefe! Olhe que eu nunca ganhei tanto dinheiro como este ano.” Aflito para não desatar a rir, o chefe da repartição lá disse ao contribuinte que podia ir à sua vida e que mais tarde falavam. O Ti Chico Favas resolveu um dia pintar as portas da rua da sua casa. Com a ajuda de um cunhado que era guarda-fiscal e lhe havia trazido a tinta, meteram mãos à obra e numa tarde, com ajuda de uns copitos, lá pintaram as portas utilizando tinta vermelha. No dia seguinte, quando o Ti Chico se levantou, ficou espantado, pois ao olhar para as portas, estas estavam pintadas de verde. De imediato, foi chamar o cunhado, pois, como na véspera estavam com os copos, já não tinha a certeza que cor havia utilizado. Foram
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“O dinheiro da venda era para a raia miúda ir comprar ginjas ou tremoços, ...”
procurar a lata com o resto da tinta e verificaram que efectivamente era vermelha. Por momentos, ficaram a olhar um para o outro e a pensar se não teria sido bruxedo e eis que aparece o vizinho Pedro Curvelo, que tinha uma oficina de carpintaria na mesma rua e costumava fazer grandes partidas ao Ti Chico. Não se contendo, começou a rir e lá se descobriu que afinal, durante a madrugada, o Pedro Curvelo e outro vizinho, apesar de gostarem pouco de trabalhar de dia, aproveitaram o fresco da noite e deram-se ao trabalho de pintarem as portas de verde, cor que ainda hoje mantêm. Um outro vizinho nosso que morava na Rua Nova, pedreiro de profissão, era conhecido por “escaravelho,” alcunha da qual não gostava. Uma bela tarde, descendo a Rua dos Serralheiros foi interpelado pelo vizinho Chico Favas, que afirmou ter em seu poder uma máquina fotográfica que tirava retratos instantâneos, convidando-o para se encostar à parede a fim de lhe tirar uma foto. O outro nem reparou que a máquina era velha e não funcionava, mas com a vontade de ser fotografado lá se pôs a jeito e o Ti Chico, compenetrado do seu papel de fotógrafo, colocou a maquineta encostada à cara e de olho piscado, simula o disparo. Seguidamente, abre o caixote e tira de lá um escaravelho vivo, que mostra ao vizinho dizendo-lhe: “Ficou mesmo bem, está tal e qual vossemecê!” Claro que o outro, não achando piada à brincadeira, deu corda às botas e desapareceu praguejando. Naqueles tempos, circulava pela vila um velhote a quem chamávamos o Ti Mil-Homens. Comprava
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correlhão (subproducto que se estraía da espiga do centeio, destinado à indústria farmacêutica), peles de coelho e de lebre e, quando passava pela Rua Nova, parava na oficina à espera que alguém lhe pagasse um copito ou lhe desse um cigarro. Comprava as peles de lebre a quatro tostões (um cruzado) e as de coelho a três tostões. O dinheiro da venda era para a raia miúda ir comprar ginjas ou tremoços, à taberna do vizinho Mateus Roxo (o Ti Mateus dos Canchinhos), no número 3 da Rua Nova, onde pontuava a sua mulher a vizinha Maria da Pena, pois o marido estava quase sempre na fazenda junto à Fonte da Amêndoa, onde tinha uma horta, cujos produtos vendia na praça. Eram também dois excelentes vizinhos. Um homem que ia com alguma frequência à Rua Nova, sobretudo no Outono e no Inverno, era o Ti Augusto Curvelo (o Ti Augusto Marmelo ou “O Berruga,”) pois tinha a sua adega no número 21 da nossa rua e ali se deslocava para cuidar do vinho. Quando lá chegava, chamava pelo mestre Carolino e pedia-lhe para levar um martelo e outras ferramentas, porque a fechadura da porta estava avariada. Tratava-se apenas de um pretexto pois o que ele pretendia, era fazer um exame ao vinho na companhia do seu amigo e, como se pode imaginar, a fechadura avariava frequentemente e o néctar era examinado de vez em quando. O Ti Augusto, pai de quatro filhos, era alto, gordo, com uma verruga enorme na face. Morava na vizinha Rua do Mercado e tinha um talho no número 77 da Carreira de Cima, ao lado da taberna do Ti João Espanholinho, onde passava muito tempo, sentado num banco junto ao balcão e tinha por hábito beber o vinho só até meio do copo
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que, a seguir, o taberneiro voltava a encher e assim era mais difícil embebedar-se. A Fonte da Vila, animava-se com a chegada da família Laranjo, donos da casa mais importante daquela bonita praça. O membro mais influente daquela família era o Brigadeiro Arménio Leal Gonçalves, conhecido e tratado por Senhor Brigadeiro, que nessa época, tinha um alto cargo na Arma de Engenharia do Exercito e vinha amiudadas vezes a Castelo de Vide acompanhado da família. O Senhor Brigadeiro era um amante da caça e durante a sua estadia rodeava-se de muita gente humilde da vizinhança, sobretudo caçadores, que o acompanhavam nas caçadas e nas sessões de tiro aos pratos que, com frequência, levava a cabo no sítio do Cipresteiro, enquanto os seus netos brincavam com a miudagem que morava naquela zona e a sua esposa recebia as numerosas visitas que afluíam à sua casa. O Senhor Brigadeiro era um homem alto, magro, austero e quando cá estava, vestia casaco e calças de ganga, azuis, parecendo um carregador do caminhode-ferro. Num determinado dia, acompanhado de alguns desses seus amigos caçadores, subiu a Rua Nova e dirigiu-se ao Café Central que, nesse tempo, era só para gente fina. Ao ver entrar aquela malta mal vestida, o empregado, não o conhecendo, indicou-lhes logo a porta da rua e o Brigadeiro, apesar de ter um feitio temperamental, saiu sem pestanejar, atravessou a Carreira de Cima e dirigiu-se com os companheiros para a taberna do Ti João Espanholinho, que ficava mesmo em frente. Alguém deve ter avisado logo o dono do café que se apressou a ir ao encontro do Brigadeiro, desfazendo-se em desculpas, mas sem resultado.
“ O Senhor Brigadeiro era um homem alto, magro, austero e quando cá estava, vestia casaco e calças de ganga, azuis, parecendo um carregador do caminho-de-ferro.“ 44
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“ A Fonte da Vila, animava-se com a chegada da família Laranjo, donos da casa mais importante daquela bonita praça. “
A Oficina e o Mestre
João Tapadejo A oficina era pequena, de forma rectangular, com um arco a meio e com pavimento em terra batida. Na parte interior, para lá do arco, localizavam-se a forja e o fole, com as respectivas bigornas, a pia em granito, que servia para pôr de molho o carvão de pedra, os bidões para as têmperas e o engenho de furar, de volante e manivela. No espaço mais próximo da porta, estava a bancada de madeira com três tornos de coluna, duas prateleiras para colocar cinzéis, ponteiros, punções e ainda uma estante para pendurar os maçaricos, os compassos e os alicates de pressão. Em frente da bancada, estava o equipamento de soldadura a aotogéneo com a botija de oxigénio e o gerador que produzia o acetileno.
“O mestre João Tapadejo, era um republicano assumido, tinha sido adepto da Carbonária e seguidor entusiasta de Afonso Costa, ...”
No piso superior da casa vivia o meu avô João Tapadejo, que também era mestre na arte de trabalhar o ferro, profissão que já vinha dos nossos antepassados. O mestre João Tapadejo, era um republicano assumido, tinha sido adepto da Carbonária e seguidor entusiasta de Afonso Costa, cujo retrato tinha pendurado à cabeceira da sua cama, próximo do quadro da República.
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“ Quando saíram, vinham agarrados um ao outro a chorar, gritando: “Morreu a nossa Banda!“ ...”
O meu avô foi, durante muitos anos, músico na Banda União Artística, de origem Republicana. Ainda em pleno regime monárquico, quando o Rei D. Carlos se deslocava de comboio em direcção a Espanha, ao parar na estação de Castelo de Vide para receber os cumprimentos das forças vivas locais, acenou à janela da carruagem real e, nesse momento, ouviu-se uma forte pancada no bombo de uma das duas filarmónicas a que se seguiu um grito de, “VIVA A REPÚBLICA!” O autor desta façanha tinha sido o mestre João Tapadejo que, nesse tempo, tocava bombo. Imagine-se a agitação que este gesto causou. Claro que as consequências vieram a seguir, indo quase de imediato passar uns dias à cadeia. Este episódio foi contado pelo Professor Vitorino Nemésio no programa televisivo, “Se Bem me Lembro”. Alguns anos mais tarde, foi proposta a municipalização da Banda União Artística, o que, de imediato, foi aproveitado pelos simpatizantes da Banda Dr. Frederico Laranjo, de origem monárquica, para darem largas ao seu contentamento. Desgostoso, o mestre João Tapadejo foi ver do António Coentro (o Setenta), alfaiate e sacristão que morava no número 8 da vizinha Rua do Mercado e era adepto da filarmónica do meu avô. Depois de uns copitos de vinho, que ambos adoravam, foram tocar a finados nos sinos da igreja Matriz. Quando saíram, vinham agarrados um ao outro a chorar, gritando: “Morreu a nossa Banda!” Claro que o C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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mentor desta cena, haveria de voltar a passar uns dias arrecadado e o sacristão perdia o cargo. Algum tempo depois, a Instituição recuperava a sua independência e ainda hoje existe. O meu avô, dizia-me que conjuntamente com outros companheiros republicanos, profissionais de vários ofícios, havia pertencido a uma organização que se chamava Maçonaria e reuniam com frequência numa casa, próxima da farmácia Freixedas, onde tratavam de assuntos importantes, sem, no entanto nunca me ter referido quais. De acordo com a sua informação, depois da morte de Eduardo Gasalho não mais voltaram a reunir, provavelmente por falta de liderança. Um homem com quem o meu avô se dava muito bem, era o Ti João Carreiras, carpinteiro de profissão, que amiudadas vêzes se deslocava à oficina, para reparar a ferragem das portas e janelas de madeira que, com mestria, fazia, ou arranjava. Tal como o mestre João Tapadejo, também era republicano e de uma grande frontalidade. Uma ocasião ia este homem na Carreira de Baixo, com uma prancha de madeira às costas,
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quando os sinos da igreja, dobravam, tocando a finados. Então, uma senhora que estava à janela do primeiro andar, da casa onde funciona hoje a Pastelaria Sol Nascente, perguntou-lhe quem é que tinha morrido, tendo o Ti João Carreiras respondido que tinha sido uma determinada pessoa. De seguida ouviu a senhora, da janela, exclamar: ”Mal empregada, era uma pessoa tão rica!” De imediato, o velho carpinteiro retorquiu, dizendo: ”Olhe senhora, cá neste mundo não fica puta nem cabrão nenhum! Levam todos a mesma volta.” O Ti João Carreiras foi protagonista de um outro episódio interessante. Num determinado ano, o mestre carpinteiro, conjuntamente com outros amigos, foi festeiro da Romaria da Senhora da Penha. Nessa época, a festa prolongava-se por vários dias. Muita gente das redondezas, sobretudo do Concelho de Nisa, deslocava-se de carroça para cumprir as suas promessas e assistir às celebrações. No último dia, quando os festeiros, já com uns copitos, tratavam de limpar a Ermida, um deles, com o copo na mão, resolveu deitar uma saúde à Santa. O brinde foi tão efusivo, que manchou o manto da Imagem com vinho tinto. O caso depressa chegou ao conhecimento do Bispo da Diocese, e, de seguida, os festeiros foram excomungados. Passados uns meses, aproximando-se a festa do ano seguinte, o Ti João Carreiras recebe um recado para ir a casa de uma senhora, que morava para os lados da Rua de Santo Amaro, para quem, de vez em quando trabalhava. O bom do carpinteiro, pensando que se trataria de mais algum serviço, lá foi, e quando lá chegou, perguntou: “Então senhora, tem cá mais algum trabalhito para mim?” A dita senhora respondeu-lhe, dizendo: ”Olha
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“ Muita gente das redondezas, sobretudo do Concelho de Nisa, deslocava-se de carroça para cumprir as suas promessas e assistir às celebrações.” 49
João, não é nenhum trabalho, mas tenho uma notícia muito boa para ti. O Senhor Bispo já te tirou a excomunga.” Sem perder tempo, o Ti João Carreiras respondeu-lhe: “Olhe senhora, não senti nada! Nem quando ma pôs nem quando ma tirou. Passe por cá muito bem.” e lá foi ao seu destino. Em 1957, o meu avô, fez uma carta/testamento dirigida a João Neves Campos, presidente da Banda União Artística, em que formulava dois desejos. No primeiro, solicitava que, quando morresse, os seus colegas músicos acompanhassem o seu funeral, tocando uma marcha fúnebre e no segundo, pedia que a fotografia do Dr. Afonso Costa, que tinha à cabeceira da sua cama,
Afonso Costa. Foto oferecida à Banda União Artística pelo Mestre João Tapadejo em Carta/Testamento de 1957.
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fosse colocada na casa de ensaio da Banda, ou então, deveria ser colocada sobre o seu peito, indo assim com ele para a sepultura. Os dois desejos haveriam de ser satisfeitos no dia em que baixou à cova. O mestre João Tapadejo era também um excelente cozinheiro e era constantemente solicitado para pôr os seus dotes de cozinha à prova, tanto na oficina como nas tertúlias que, com frequência, organizavam no campo. Num final de tarde de Outono, estava o meu avô à porta da oficina, quando se dá conta de um cheirinho agradável que vinha do lado da Fonte da Vila e pensou para com os seus botões que aquele cheiro só poderia vir da oficina do colega Francisco Alvarrão. Resolveu então descer a rua e deitou a cabeça ao postigo da porta. Verificando que estavam de petisco e não o haviam convidado, disse: “Com que então rancho melhorado!” Seguidamente, o Ti Chico Alvarrão perguntou-lhe se era servido, tendo o Ti João perguntado se o pitéu tinha alho. Ouvindo como resposta que sim, então disse: “Bom, então assim vou comer.”
Mestre João Tapadejo, cozinhando, 1945.
O meu avô gostava muito de fazer partidas e brincadeiras e uma vez, três dos aprendizes iam levar um fogão de lenha que havia sido arranjado na oficina, a casa do mestre Teodoro Porfírio que era compadre
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do meu avô. Sabendo ele que a sua comadre era muito forreta, disse aos rapazes que, se a dona do fogão não lhes desse gorjeta, ficariam a aguardar, à entrada da porta, que chegasse o mestre Teodoro e ao verem-no aproximar-se, deviam começar a gritar, dizendo que estavam desgostosos porque o cão havia comido a gorjeta que a senhora lhes tinha dado. Assim que chegou o dono da casa, percebendo o que se passava, chamou a mulher e obrigou-a a dar-lhes uma oferta. Outras vezes, dizia aos aprendizes que, quando fossem levar algum serviço a casa de alguém que não os ofertasse, deveriam ferrar uma mijadela atrás da porta. Em algumas ocasiões assim aconteceu. Também dizia que quando fôssemos a casa de uma pessoa e ela nos convidasse para tomar alguma coisa e o fazia com gosto, nós não devíamos recusar, para ela ficar contente. Mas se ao contrário, a pessoa estava a oferecer apenas por bem parecer, então devíamos comer e beber ainda mais, para deixá-la aborrecida.
“Outras vezes, dizia aos aprendizes que, quando fossem levar algum serviço a casa de alguém que não os ofertasse, deveriam ferrar uma mijadela atrás da porta.”
O meu avô adorava a miudagem e gostava de os ensinar a assobiar e a cantar, incutindo-lhes, desta forma, o gosto pela música. Por vezes, aparecia lá pela Rua Nova um garoto chamado Celestino Raposo e o Ti João Tapadejo, não perdia a oportunidade de o sentar em cima de um balcão, pedindo-lhe para cantar. Então o miúdo começava a cantarolar uma valsa e depois, como prémio, o meu avô dava-lhe meio tostão para comprar dois rebuçados de fruta. A propósito de Celestino Raposo, é de inteira justiça realçar o percurso notável desta figura que, tendo nascido de uma família modesta, conseguiu subir na vida a pulso, fazendo uma carreira brilhante como músico
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“ Em meados da década de quarenta o Mestre João Tapadejo transfere a oficina para o seu filho Carolino, ...”
na Banda da Guarda Nacional Republicana e noutras filarmónicas, onde actuou e que dirigiu como maestro. Entre outras actividades, foi professor no Conservatório de Música de Portalegre, dirigiu ainda a Banda União Artística e fundou o grupo Coral de Castelo de Vide. A mediocridade, a inveja e a maldade de uns quantos “azêlhas” e outros “êlhas,” existentes no nosso Burgo, levaram-no a afastar-se dessas lides, por não estar disposto a continuar a aturar os cinzentismos de uns quantos “coitadinhos”. O maestro Celestino era filho de António Raposo, (o Daíça) funileiro de profissão e músico por paixão e por necessidade. Ao longo da sua vida, também dirigiu várias filarmónicas e foi autor de inúmeras partituras e arranjos musicais. Em meados da década de quarenta o Mestre João Tapadejo transfere a oficina para o seu filho Carolino, iniciando este, então, uma nova e longa caminhada rumo ao futuro.
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A Era do
Mestre Carolino Em 1945, o mestre Carolino regressa da tropa e toma conta da oficina, comprando de imediato algumas ferramentas, para poder enfrentar os desafios que tinha pela frente. No final dos anos quarenta, a convite da Misericórdia de Marvão, assume o compromisso de construir uma centena de camas, em ferro, para o Asilo de rapazes, daquela Instituição. Porque seria moroso fazer os milhares de furos necessários com um berbequim manual, resolve encomendar à Sociedade Comercial Romar, a sua primeira máquina eléctrica. Tratou-se de um berbequim marca Black & Decker de 220V-2,2A - 450w 900/RIN. Segundo a empresa vendedora, foi o primeiro berbequim que importou para Portugal. Esta máquina ainda existe e funciona. Em 1953, para cumprir os requisitos legais impostos pela sétima Circunscrição Industrial, sedeada em Évora, o Mestre Carolino é notificado para fazer obras na oficina, tendo que subir o pé direito para os três metros, com placa de cimento no tecto. O meu avô passou então a morar connosco. Também devido às obras, o fole que fornecia o ar para a forja teve que ser retirado e substituído por duas ventoinhas, uma eléctrica e outra manual. A partir dessa altura, a oficina passou a ter luz eléctrica, porque, até aí era utilizado
Berbequim Black & Decker, 1949
Esmeril Black & Decker, 1953
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um gasómetro a carboneto como aqueles que eram usados nas minas. Na década de cinquenta, existiam dez oficinas de ferreiro em Castelo de Vide, que se dedicavam, principalmente, a consertar ferramentas destinadas às tarefas agrícolas, como o amanho de enxadas, enxadões, sachos, picaretas, arados de ferro, ou então construíam portões em cantoneira para a entrada das propriedades, reparando ainda os engenhos das noras e os respectivos alcatruzes. Para as portas e portões de madeira fabricavam, à forja, fechaduras, trincos, aldrabas, lemos, cachimbos e os respectivos pregos. Também se faziam as ferragens para as carroças e, alguns mestres, entrando nos domínios da serralharia civil, dedicavam-se a fazer ou a reparar fogões de lenha, a construir portas e janelas, gradeamentos, corrimões, varandas, passando também pela instalação de canalizações. À nossa oficina, chegavam a toda a hora pessoas que solicitavam os mais variados tipos de pequenos consertos,
Alexandre Raposo, António Roxo, Fernando Branquinho e à frente, Carolino filho, 1949.
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desde o arranjo de torneiras, passando pela soldadura de ferros de passar, de chocalhos, de chaves, reparação de fogões a petróleo, etc. Alguns eram biscates que ocupavam algum tempo, mas pelos quais era raro cobrar-se o que quer que fosse pelo trabalho efectuado. Quando assim acontecia, as pessoas perguntavam quanto deviam, e o mestre respondia que não era nada. Então os fregueses retorquiam, dizendo: “ assim não pode ser”. A que o mestre contestava: “É o mais barato que posso fazer.” Também por lá apareciam os mais pequenos para que lhes fizéssemos os bicos para os peões ou rodas em ferro com os respectivos guiadores. Escusado será dizer que este trabalho era pago com uma gracinha, tipo roncadela e com algumas habilidades feitas com os dedos. Quando casava a filha de algum freguês agricultor, o mestre da oficina oferecia à noiva uma trempe, uma tenaz, uma pá e um espeto. A este conjunto, dava-se o nome de “ferragem”. Esta tradição iria manter-se até finais da década de sessenta. O mestre Carolino também arranjava espingardas caçadeiras, consertando as fixarias, colocando novas câmaras ou fazendo as molas, para as quais inventou uma têmpera especial. Eram muitos os caçadores que, dos mais variados sítios, traziam as suas armas à oficina para serem consertadas, pois sabiam que quando saíssem das mãos do mestre iam como novas. Mais tarde, esta actividade haveria de trazer-lhe muitos problemas que, mais adiante, irei descrever. No primeiro dia de caça era tradição fazer-se na oficina um petisco ao final da tarde, com coelhos bravos oferecidos pelos caçadores que haviam tido as suas espingardas a arranjar. 56
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“ À nossa oficina, chegavam a toda a hora pessoas que solicitavam os mais variados tipos de pequenos consertos.” Muitas pessoas procuravam as oficinas de ferreiro para curarem os “Cobros” também conhecidos por “Zonas.” O tratamento desta maleita, processava-se da seguinte forma: depois de fechada a porta e tirada a roupa do doente, colocava-se uma mão cheia de grãos de trigo na bigorna, enquanto na forja se aquecia um ferro até ficar em brasa, que depois era posto em cima do trigo, fazendo pressão sobre o mesmo, o qual libertava o óleo com o qual se besuntava a zona do corpo afectada, usando para tal uma pena de peru. De seguida, colocava-se uma folha de papel pardo sobre a zona afectada. Se o paciente fosse homem, o curativo era feito pelo mestre com a ajuda de dois aprendizes, se a pessoa doente era mulher, então era chamada a mãe Rufina que se encarregava do tratamento, enquanto os aprendizes, contrariados, lá se voltavam de costas. No final da década de cinquenta, são lançados no mercado perfis em tubo de aço, quadrados e rectangulares, que vieram revolucionar a forma de trabalhar as caixilharias e o mestre Carolino não perdeu tempo, começando por estudar os novos materiais e, pouco tempo depois já estava a fazer portas e janelas com os novos perfis que, para além de permitirem um trabalho mais perfeito, imitavam, de certo modo, as caixilharias de madeira. Para fazer este tipo de trabalhos, compra um aparelho de soldar a electrogéneo, mais berbequins, um esmeril e, algum tempo depois, adquire uma máquina hidráulica de dobrar tubos que veio facilitar, entre outras coisas, a construção de portões em tubo redondo, muito mais leves, substituindo os que até aí eram feitos em cantoneira.
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“ No primeiro dia de caça era tradição fazer-se na oficina um petisco ao final da tarde, com coelhos bravos oferecidos pelos caçadores que haviam tido as suas espingardas a arranjar.” 57
“O mestre Carolino era um estudioso da sua arte e gastava algum do seu tempo, investigando e testando novos métodos de trabalhar, ...”
Também no final dos anos cinquenta, apareceu no mercado o tubo de polietileno (plástico preto) que substituiu com vantagem as antigas tubagens de ferro fundido, de fibrocimento, de chumbo ou de grés. Também aí o mestre Carolino esteve na vanguarda e de imediato se adaptou ao novo material, passando a usá-lo em todos os trabalhos em que este podia ser aplicado, nomeadamente na montagem de equipamentos para rega por aspressão e em descargas de casas de banho, pois nessa época já se trabalhava também em canalizações. O mestre Carolino era um estudioso da sua arte e gastava algum do seu tempo investigando e testando novos métodos de trabalhar, moldar e soldar o ferro, o aço e ainda outros metais como o ferro fundido, o latão, o cobre e ainda algumas ligas fundidas como o alumínio ou o antimónio. Devido a isso, a soldadura quase não tinha segredos para ele. Chegou mesmo a descobrir os desoxidantes para soldar latão e ferro fundido, utilizando borato de sódio e potassa. Quantas vezes chegavam à oficina pessoas dos mais variados sítios com peças partidas, sobretudo do ramo automóvel, com a esperança que o mestre as pudesse soldar, porque nos anos que se seguiram à segunda guerra mundial, era difícil encontrar peças novas para substituir as que se danificavam, pelo que havia de puxar pela imaginação e pelo conhecimento. O mestre era também exímio na arte de temperar os mais variados tipos de ferramentas e outros objectos de aço. Uma das suas coroas de glória foi ter descoberto a fórmula de temperar as enxadas e outras ferramentas de corte, com sabão caseiro dissolvido em água. Com 58
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esta fórmula, ganhou fama dentro e fora do Concelho e era interessante vê-lo a martelar as enxadas, testando depois a têmpera, dando uma forte pancada com o corte da enxada na base da bigorna e se não fazia mossa na ferramenta, então estava óptima para ser lançada à terra. Uma vez, um freguês que estava a vê-lo bater uma enxada, perguntou-lhe quantas pancadas eram precisas para arranjar aquela ferramenta ao que o Mestre, ironizando, respondeu: “ embora pareçam muitas, apenas lhe dou três marteladas: duas na pá e uma no olho.” Uma gargalhada e lá continuou o seu trabalho. Nesse tempo, o arranjo de uma enxada custava trinta e cinco escudos. Por vezes dizia por graça que quem fazia as enxadas é que havia de cavar com elas, e quando lhe respondiam que, se assim fosse ele estaria tramado, retorquia que não, porque ele não as fazia só as arranjava. Também se temperavam outros tipos de ferramentas, tais como cinzéis, ponteiros ou machados, utilizando simplesmente a água. Havia ainda a técnica do óleo para temperar vários tipos de molas, mas naquela época já era pouco usada. Para temperar os machados que serviam para a tiragem da cortiça, o meu avô utilizava cornos de vaca, que, devido à sua curvatura, encaixavam bem no corte dos machados, provocando assim um arrefecimento homogéneo. Por piada, ainda hoje se fala na têmpera de corno.
“ Ainda durante a década de cinquenta, a Câmara Municipal de Castelo de Vide, encomenda ao mestre Carolino um conjunto de candeeiros em chapa de ferro, destinados à iluminação pública, ...”
Ainda durante a década de cinquenta, a Câmara Municipal de Castelo de Vide encomenda ao mestre Carolino um conjunto de candeeiros em chapa de ferro, destinados à iluminação pública, sendo alguns para serem colocados no topo de postes de cimento e outros para pendurar em braços feitos em ferro forjado, suspensos da parede. Destes últimos, ainda se
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encontram alguns a funcionar em vários pontos da Vila. Passaram mais de quatro anos, até que conseguisse receber o dinheiro do trabalho. Nessa época já era frequente algumas pessoas ou entidades levarem muito tempo a pagar os trabalhos que mandavam executar aos mestres das oficinas. Se nalgumas situações era por terem dificuldades financeiras, noutras, porém, a conversa era outra. Recordo, a propósito, que uma vez o mestre Carolino foi contactado para efectuar um trabalho para a igreja matriz de Castelo de Vide, que consistia em fazer duas palmas em ferro forjado, destinadas a servirem de suportes para velas. O serviço foi executado, por sinal bastante elogiado, como aliás era costume, mas quanto a dinheiro, nem vê-lo. O tempo foi passando e apesar do meu pai ir solicitando para que o trabalho lhe fosse pago, não o conseguia. Passado mais de um ano, resolveu que, ou o serviço era liquidado de imediato, ou as palmas regressavam à oficina. Assim, um dia de manhã encontrou o seu amigo Frederico Massena, sacristão e distribuidor de gás e disse-lhe para avisar o chefe de que se o pagamento referente ao trabalho não fosse feito até à hora do almoço desse dia, as palmas regressavam à oficina. Como até à hora marcada não houve resposta, o mestre Carolino chamou os dois aprendizes mais velhos e ordenou-lhes para irem à igreja matriz, devendo entrar com respeito e em sossego e, ao chegarem junto das palmas, agarrassem nelas, trazendo-as de volta à oficina, depois de terem colocado as velas no chão. Assim aconteceu, e ainda os rapazes não tinham chegado à Rua Nova já o padre vinha apressado ver do meu pai, com o dinheiro para
Atrás, da esquerda para a direita: Mestre Carolino, Henrique Vidal e João Ceia; À frente: filhos – Mateus, Jorge e Carolino, 1959.
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pagar o trabalho e as palmas lá voltaram para o sítio para onde haviam sido concebidas. O mestre Carolino haveria de protagonizar mais tarde um outro episódio parecido. Durante a execução de uma obra num edifício perto do Parque João José da Luz, foi contactado pelo empreiteiro para fazer um corrimão em ferro forjado para a escadaria que dava acesso aos pisos superiores da casa, mas foi-se esquivando, pois o empresário mostrava não ser pessoa de bem quanto a pagamentos. Num determinado dia, o representante do dono da obra foi à oficina interceder para que o mestre realizasse o trabalho, porque ele assumia a responsabilidade do pagamento, caso o empreiteiro não cumprisse o estipulado. Depois de muita insistência o meu pai lá se dispôs a fazer o serviço. Lança mãos à obra e passado algum tempo, envia a factura ao empreiteiro mas os meses iam passando sem que o pagamento fosse efectuado e, como a empreitada estava a chegar ao fim, o mestre resolveu enviar um recado ao indivíduo que se havia comprometido a pagar, caso o empreiteiro não cumprisse. A resposta foi a de que afinal havia pensado outra coisa e não estava disposto a cumprir o acordado, sem no entanto dar qualquer explicação. Claro que perante este cenário, o mestre Carolino reagiu à sua maneira, e um dia à hora do almoço, mandou-me ir à quinta onde moravam os donos da obra, informar de que se até às três da tarde desse dia o pagamento não fosse efectuado o mestre reservava-se no direito de ir à obra com o seu pessoal arrancar o corrimão e trazê-lo de volta à oficina. Lá fui, e transmiti o recado ao indivíduo barbudo que me atendeu, tendo este respondido com arrogância que não
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“ ...ainda os rapazes não tinham chegado à Rua Nova já o padre vinha apressado ver do meu pai, com o dinheiro para pagar o trabalho e as palmas lá voltaram para o sítio para onde haviam sido concebidas. “ 61
só não pagava como não autorizava que o corrimão fosse arrancado. Então eu disse-lhe que era melhor ele não ir por aí, pois o meu pai, ao contrário dele, era pessoa de palavra e iria mesmo levar o corrimão de volta. Sem dizer mais nada, o tipo retirou-se, batendome com a porta na cara, regressando eu a casa com a resposta. Depois de reaberta a oficina, o mestre deu-me indicações para pegar em dois serrotes, uma rebarbadora e outras ferramentas, levar comigo mais dois ou três colegas e irmos até à obra e aguardar pela sua chegada. Quando íamos com as ferramentas na Carreira de Cima, eu vi à porta do Café Peninsular um conhecido advogado, amigo do meu pai; dirigi-me a ele contei-lhe o que se estava a passar e o senhor respondeu-me que, de seguida, ia ter connosco à obra para tentar evitar sarilhos. Quando chegamos ao local, vimos o representante do dono da obra, sair do edifício das casas amarelas e dirigir-se para o interior da casa onde decorriam as obras, entrar e barricar-se no seu interior, trancando a porta. Poucos minutos depois, chegava o cabo da GNR e por ele soubemos que havia sido chamado pelos donos da obra, com o objectivo de evitar que o corrimão fosse arrancado. Quase de imediato, vejo aproximar o meu pai acompanhado pelo seu amigo advogado que havia encontrado no caminho. Ao chegar ao local, dirigiram-se para a porta que continuava fechada e o advogado entrou em contacto com o indivíduo barricado, identificandose e pedindo-lhe para que abrisse a porta pois queria falar com ele. Uns momentos depois, ouviu-se o som da chave a correr a língua da fechadura e a porta lentamente começou a abrir com o tipo no seu interior
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a espreitar mas, quando viu o meu pai, tentou de imediato fechar-se de novo, mas o mestre não lhe deu tempo, meteu o pé à porta, projectando-a juntamente com o barricado para o interior, que se estatelou no chão e de papo pró ar, já com o mestre Carolino sobre ele, na presença do advogado e do cabo da guarda, ia dizendo cobardemente. “Eu pago, eu pago!” Depois de o terem levantado e já com o mestre mais calmo, o indivíduo meteu a mão ao bolso, entregou o dinheiro e cada um foi à sua vida sem que mais nada se passasse.
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Presenças Assíduas na
Oficina Nesse tempo, ia diariamente à oficina o Ti Severiano Morgado, também ferreiro, que tinha a sua velha oficina no número 2 da rua Diogo Belo. Era uma figura deliciosa o Ti Severiano, pequenino, muito frágil, não devia pesar mais de quarenta quilos e já tinha muita idade. Costumava ir ter conosco porque nós guardávamos-lhe bocados de ferro que lhe serviam para fazer pequenos biscates, como peias e serrilhas para os burros, brochas para várias utilizações e ainda trempes, tenazes, espetos e pás, que nesse tempo eram muito utilizadas, sobretudo no campo. Este homem, quando vinham as Feiras de Santo Amaro, dos Ramos e de São Lourenço, comprava para mim e para os meus irmãos, cinco tostões de torrão para cada um. Esta deferência durou vários anos e já eu era crescido, ainda ele me oferecia o torrão, e nessa altura, convidava-o para tomar um copito que custava cinco tostões. Era eu que pagava e depois metia-lhe cinco escudos no bolso para comprar uma onça de tabaco, pois sabia que ele vivia com muitas dificuldades.
“ Era uma figura deliciosa o Ti Severiano, pequenino, muito frágil, não devia pesar mais de quarenta quilos e já tinha muita idade. “
No início de um serão de Inverno, ouvi tocar a sirene dos bombeiros. Eu estava em casa e quando cheguei à
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“ Presença diária na oficina, era a do Engenheiro Transmontano que chegou a Castelo de Vide no final dos anos quarenta, ...” janela para tentar saber onde era o fogo, logo alguém disse que era para os lados da Rua de Mestre Jorge. Passou-me então pela cabeça que poderia ser na casa do Ti Severiano e, de imediato saí a correr para o local e o meu pressentimento confirmou-se porque o incêndio, que estava ainda no início, era mesmo na casa dele. Apesar do fumo, consegui vê-lo da entrada da porta e, sem saber muito bem como, ele veio parar aos meus braços, são e salvo. Ainda hoje conservo a imagem piedosa daquele velhinho que quando se viu ao meu colo, agarrou-se ao meu pescoço e os seus olhos adquiriram um brilho como se fossem os de um jovem. Pouco tempo depois, já com cem anos cumpridos, partiu rumo à eternidade. Presença diária na oficina, era a do Engenheiro Transmontano que chegou a Castelo de Vide no final dos anos quarenta, supostamente com uma doença incurável. Por obra do destino, pelo avanço da medicina e por crença própria, haveria de viver ainda mais de quatro décadas. Era engenheiro electrotécnico, morava na rua da Arrochela e tratava-se de um homem culto, bom conversador e bem informado em relação ao que se passava no país e no mundo. Para além de ouvir as rádios portuguesas, captava também com frequência a rádio Argel e a rádio Moscovo, embora fosse um homem conservador. Actualizava-se também, através da leitura constante de revistas nacionais e estrangeiras. Nos momentos em que permanecia na oficina, dava-nos conta das últimas novidades. Uma vez por ano, fazia uma viagem ao estrangeiro e, no regresso, fazia-nos um relato completo da visita. O instinto de sobrevivência deste senhor levou-o a impor a si mesmo um rigor
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muito grande. Assim, os horários das refeições eram escrupulosamente respeitados e todos os dias dava a volta à estrada da circunvalação, passando pela Rua Nova, parando durante um quarto de hora na oficina a bater um papo com o mestre Carolino ou com quem estava na altura, seguindo depois o seu caminho. A ele ficamos a dever as fotos mais antigas que estão publicadas neste livro.
Atrás, da esquerda para a direita: Carolino filho e José Samarra. À frente e pela mesma ordem: Os filhos Mateus e Jorge e José M. Pais, António Bucho e o Mestre Carolino, 1961.
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Mestre Francisco Grincho Ti Alberto Carreteiro “ O mestre Grincho era um extraordinário artista na sua arte, pois tratava a madeira por tu e era uma maravilha vê-lo trabalhar e apreciar as obras que lhe saíam das mãos, ...”
Um grande artífice que com frequência ia à oficina, era o mestre Francisco Grincho, carpinteiro que ia até à Rua Nova para soldar as ferragens das carroças que eram arranjadas na sua oficina, situada na corredoura de S. Roque. Por vezes, mandava lá os seus filhos, Domingos e Américo, que iam empurrando as ilhantras (parte exterior, em barra de ferro das rodas das carroças) que rebolavam pelas calçadas até chegarem à Rua Nova. O mestre Grincho era um extraordinário artista na sua arte, pois tratava a madeira por tu e era uma maravilha vê-lo trabalhar e apreciar as obras que lhe saíam das mãos, desde portas e janelas em castanho, em que utilizava pregos feitos por ele da mesma madeira, até móveis e outros serviços, para além do excelente trabalho que fazia na construção ou no arranjo das carroças. O seu amigo Carolino incentivou-o a comprar um aparelho de soldar, para evitar que andasse constantemente a deslocar-se até à Rua Nova. Assim aconteceu, e o mestre Carolino deu-lhe umas lições de soldadura. O Ti Alberto Carreteiro, também era carpinteiro. Tinha a oficina na rua de Santo Amaro e frequentemente ia à oficina para endireitar os pregos, os lémos e os cachimbos das portas de madeira, ou os espigões das aldrabas. Outro motivo para ir até à Rua Nova tinha que ver com o facto de quase sempre haver por lá umas garrafitas de aguardente, oferecidas por agricultores. O Ti Alberto Carreteiro adorava aquele precioso líquido, mas tinha o hábito de não utilizar o copo, preferindo beber pela garrafa. Um dia ao dar uma golada, sentiu que o que estava no interior do recipiente não era aguardente, mas sim uma mistela que tinha sido previamente preparada
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António Atanázio Anémio Pinto
Ti Manuel Bugalho
e, a avaliar pela reacção, não deveria ser nada agradável. Será escusado dizer que saiu praguejando e, a partir daí, nunca mais bebeu pela garrafa e cheirava primeiro antes de meter o copo à boca. O António Atanázio (O Abinhas) e o Anémio Pinto, eram dois funileiros da geração do mestre Carolino, sendo este último também músico na Banda União Artística. O primeiro tinha a oficina na Rua de Santo Amaro e o segundo, na Rua Miguel Ferreira. Tanto um como o outro iam com frequência à oficina fazer, em ferro, as asas para os baldes e para os caldeiros que, com mestria, faziam em chapa zincada nas suas oficinas. O primeiro deles, por falta de serviço, teve de ir de abalada para Lisboa ainda durante os anos cinquenta, enquanto o segundo ficaria por cá, alternando a sua actividade de excelente funileiro, com algumas idas à passarada ou à pesca. Visita quase diária, era a do Ti Manuel Bugalho (o Caninhas), que tinha uma oficina de mecânica de bicicletas e de motorizadas na Carreira de Cima junto à Caixa Geral de Depósitos. Deslocava-se à Rua Nova para soldar quadros e outras peças dos velocípedes que lhe chegavam para arranjo ou, simplesmente, para bater um papo. Era uma presença agradável para nós, não só porque era uma excelente criatura, sempre bem disposto e um grande amigo, para além de exercer influência sobre o mestre Carolino quando este estava com os “azeites.” O Ti Manuel Bugalho era das poucas pessoas a quem ele ouvia nesses momentos. A amizade entre ambos viria a estender-se às duas famílias, perdurando ao longo dos anos.
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Mestre Mateus Mourato Ti António Bucho Ti Zé Gasalho Uma pessoa que ia amiudadas vezes à oficina, era o mestre Mateus Mourato (O Ti Mateus das Águas). Era canalizador nos Serviços Municipalizados da C M de Castelo de Vide e, por vezes, necessitava de fazer algumas soldaduras e como não tinha aparelho de soldar nos serviços, lá ia até à Rua Nova. Em novo, havia aprendido o ofício de ferreiro e era também muito habilidoso a fazer trabalhos artísticos em ferro. O Ti Mateus era um homem baixo, gordito, muito calmo e uma excelente criatura. Conhecia como ninguém toda a rede de águas da vila e, bem assim, os caudais das diversas minas da serra e o comportamento, por vezes instável, das captações de água do Prado, pertencentes à Câmara Municipal. Já Presidente da Câmara foi a ele que recorri, para, em cima de um mapa da vila, actualizarmos todo o traçado das condutas e respectivos ramais da rede de águas, pois, para além dele, ninguém mais possuía conhecimentos para tal. Presença assídua que aguardávamos com alegria, era a do carteiro, pois normalmente trazia boas notícias, entregues em mão e de uma forma personalizada. Os postais que custavam cinco tostões eram em maior número que as cartas, pelas quais havia que pagar o dobro. Também nas épocas da Páscoa e do Natal, circulavam muitos postais ilustrados, como aqueles que eram usados pelos rapazes, para darem os bons anos às cachopas na noite de Ano Novo. Recordo que, nesse tempo, havia duas tiragens de correio por dia, que era célere, ao contrário do que por vezes acontece hoje, mesmo com o correio azul. Os primeiros carteiros que conheci eram o Ti António Bucho, (o Poucochinho) e o Ti Zé Gasalho. Ambos foram colegas do meu pai e do meu avô na Banda União Artística.
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“ Presença assídua que aguardávamos com alegria, era a do carteiro, pois normalmente trazia boas notícias, entregues em mão e de uma forma personalizada. “ 69
Ti Vicente Pais “ O Ti António tinha um gozo sarcástico, mas nós não lhe dávamos tréguas e, assim que ele se descuidava, já estava com a cara mascarrada ou a pega da pasta untada com óleo queimado. “
O Ti Vicente Pais (o Malaquias), também passava com regularidade pela oficina, pois para além de exercer a profissão de sapateiro, vendia jornais e revistas ao domicílio e o meu pai comprava, nessa altura, um jornal desportivo, chamado “Mundo Desportivo,” enquanto eu coleccionava o “Alvo,” que era uma pequena revista semanal de aventuras. A propósito do jornal “Mundo Desportivo,” recordo um episódio passado no início da década de sessenta, quando um dia o Benfica recebeu o Real Madrid e lhe ganhou por cinco a um no Estádio da Luz. No dia seguinte, o jornal trazia na primeira página o seguinte título: “O Vale dos Caídos Mudou-se para Lisboa.” Este título haveria de causar um incidente diplomático, pois o Vale dos Caídos é venerado pela população espanhola em memória de quantos tombaram durante a guerra civil espanhola que ocorreu entre 1936 e 1939. Visita regular mas pouco desejada, era a do Ti António Azevedo (o Papa da Menina) que vinha com as letras do banco para aceitação ou para cobrança das facturas relativas às encomendas, entretanto efectuadas e recebidas. O Ti António tinha um gozo sarcástico, mas nós não lhe dávamos tréguas e, assim que ele se descuidava, já estava com a cara mascarrada ou a pega da pasta untada com óleo queimado. Este homem havia sido sacristão e era contínuo do Clube, local onde tinha residência.
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Mestre Carolino com os filhos, Carolino, Jorge e Mateus,1961.
Ti Ant贸nio Azevedo
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Os
Caixeiros
Viajantes As empresas importadoras ou armazenistas, faziam circular pelo país os seus caixeiros-viajantes, a fim de apresentarem e tentarem vender os seus produtos, que iam desde máquinas e ferramentas, passando por perfis de ferro ou de aço, até parafusos, material para canalizações, etc. Cada viajante vinha em média quatro vezes por ano. Alguns faziam-se anunciar através do envio de um postal que numa das faces tinha o logótipo da empresa e a data da visita e do outro lado era um mata-borrão que podia ser utilizado no escritório ou na escola. Alguns vendedores faziam visitas rápidas e depois de contarem alguma novidade, ainda que fosse anedota, distribuíam por vezes alguns brindes como porta-chaves, lápis ou calendários e a seguir, tomavam nota da encomenda, seguindo depois o seu caminho. Outros, porém, demoravam-se mais tempo, fazendo estadia em Castelo de Vide e daqui deslocavam-se a Portalegre, a Nisa, Ao Crato, a Alter do Chão, etc. Ao fim da tarde, quando regressavam, procuravam o mestre Carolino para tomarem um copo,
“ Cada viajante vinha em média quatro vezes por ano. Alguns faziam-se anunciar através do envio de um postal que numa das faces tinha o logótipo da empresa e a data da visita e do outro lado era um mata-borrão que podia ser utilizado no escritório ou na escola. ” 72
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“ Ao fim da tarde, quando regressavam, procuravam o mestre Carolino para tomarem um copo, acompanhado de um petisco, quase sempre preparado na forja da oficina. ” acompanhado de um petisco, quase sempre preparado na forja da oficina. De entre os viajantes que mais anos nos visitaram e que maior permanência faziam, destaco três: o Sr. Mariano Leitão que era natural de Faro, representava a Sociedade Comercial Romar e vendia Máquinas da marca Black & Decker e ferramentas diversas de alta precisão, da marca D0WIDAT - made in Germany, como mandris extensivos ou fixos. O senhor Leitão, era um homem calmo, alto e gordo, devendo pesar ai uns cento e trinta quilos. Hospedava-se na pensão Cantinho Particular durante uns quatro ou cinco dias e, em cada manhã ia visitar clientes às terras vizinhas, regressando a Castelo de Vide, onde almoçava. Da parte da tarde, ia até ao Café Peninsular, ferrava uma soneca com uma roncadela à mistura, lia o jornal e tomava umas quantas imperiais. Por volta das cinco horas, ia visitar o seu amigo Carolino e, depois de alguns momentos de conversa, iam ter com o amigo João Ventura, homem de grande porte, que tinha uma casa de Pasto no Largo Capitão Salgueiro Maia, e era também um bom garfo. Estas três almas chegaram a estar sentadas à mesa mais de oito horas seguidas, sempre acompanhados de boa comida e de melhor pomada. Por vezes o senhor Leitão tirava do bolso uma lata de atum assado, que era uma delícia e que alguns pensavam mesmo tratar-se de carne assada, tal era a sua qualidade. Esta conserva era destinada quase exclusivamente à exportação, mas o Sr. Leitão tinha um irmão que trabalhava na fábrica conserveira que o produzia, tendo por isso acesso àquele precioso pitéu. O Fernando Barrigas, quando tinha a mercearia, chegou a vender aquele produto.
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O segundo viajante desta lista era o senhor José Mourato, natural de Portalegre. Representava a empresa José da Costa Rodrigues, do Porto, (Casa Parafuso) que comercializava máquinas, ferramentas, metais e parafusos para diversas utilizações. O senhor Mourato era um homem alto e forte, um autêntico “madeiro,” portador de um vozeirão estridente que se ouvia a grande distância. Hospedava-se na sua terra natal e quando chegava à oficina, cumprimentava o mestre com a seguinte frase: “ Olá, Carolino amigo!” De seguida, falavam de negócios e depois iam até à adega do Prado ter com João José, (o Jota-Jota), onde iniciavam uma maratona que quase sempre terminava na madrugada seguinte. Refiro que o João José era feitor na Quinta do Prado e foi um excelente anfitrião, estando sempre disponível para receber, para além dos amigos, as mais variadas pessoas que passavam pela Quinta, com visita obrigatória à adega. O mestre Carolino, referindo-se ao Jota-Jota, dizia por graça: “cá o velhinho também é bom cachopo.” O terceiro elemento, era o senhor António Revés, natural de Beja. Vendia fechaduras e todo o tipo de ferragens e ferramentas, da firma F. H. de Oliveira, de Lisboa. Também se hospedava na Pensão Cantinho Particular durante vários dias e aproveitava as manhãs para ir visitar clientes a outras terras da vizinhança e, pela tarde, lá ia até à Rua Nova, onde o esperava o seu amigo. Este homem também era um amante de bom vinho e de bons petiscos, fumava imenso e quanto mais bebia, mais cigarros consumia. Recordo-me de numa noite de S. João, em que organizámos um baile popular na oficina de cima, e o nosso amigo Revés, já
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“ A velha oficina ...”
“ Como nenhum dos dois sabia bailar, foi um regalo vê-los aos encontrões um ao outro, como se de uma grande briga se tratasse.”
bem bebido, atreveu-se a dar um pé de dança com a Ti Maria do Carmo, solteirona de quase oitenta anos, que era tia da mãe Rufina e passava grandes temporadas em nossa casa. Como nenhum dos dois sabia bailar, foi um regalo vê-los aos encontrões um ao outro, como se de uma grande briga se tratasse. Num determinado dia, quando eu estava só na oficina, chegou o senhor Revés que, depois de me cumprimentar, disse-me que pretendia mudar de Pensão, pois não estava satisfeito com o Sr. Espada, dono do Cantinho Particular, que era muito brincalhão e estava sempre a gozar com ele. Pensei de imediato em lhe pregar uma “peça,” e então disse-lhe que existia a Pensão Figueiredo, (nome pela qual era conhecida a cadeia situada no Castelo), que era boa, asseada, barata e que o dono era muito simpático, mas não era brincalhão como o outro. Então o nosso homem lá foi até ao Burgo medieval e, à entrada da Rua Direita, perguntou onde ficava a dita Pensão. Quando lá chegou, achou estranho que as janelas tivessem grades, como se de uma prisão se tratasse. No entanto, resolveu bater à porta e apareceu o Ti Luís Figueiredo (o Mata Mulas) que era o carcereiro, a quem o Sr. Revés perguntou se tinha algum quarto disponível, tendo o outro respondido favoravelmente. De seguida, perguntou-lhe se vinha só e se trazia a guia de entrada na cadeia. Incrédulo, o pobre Viajante depois de olhar para o Ti Luís que, sendo boa pessoa, não devia nada à beleza, deu corda aos sapatos, lá foi pela rua abaixo, regressando à oficina onde chegou com a calma própria de um alentejano que se prezava de ser e, sem perder a postura, disse-me, que quem precisava de se instalar naquela Pensão era eu.
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Carolino filho, 1965
No final dos anos cinquenta, o mestre Carolino compra a casa onde morávamos, localizada nos números 16 e 18 da Rua Nova, alguns metros mais acima da outra. Depois de efectuadas as obras necessárias, entra em funcionamento a nova oficina que passou a ser conhecida como a oficina de cima, mais moderna, melhor equipada e com mais espaço, permitindo fazer outros tipos de trabalho. A velha oficina prosseguiu a sua saga, continuando a ser muito útil, pois muitos dos trabalhos a realizar tinham que continuar a ser ali efectuados.
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Feira e de Mercado os dias de
“ Naqueles tempos as Feiras e os mercados tinham uma grande importância económica e social e a Vila enchia-se de gente, ...”
Naqueles tempos as Feiras e os mercados tinham uma grande importância económica e social e a Vila enchiase de gente, não só de Castelo de Vide, mas também dos Concelhos vizinhos que aqui se deslocava para fazer os seus negócios, na maioria agricultores e muitos deles, eram fregueses do mestre Carolino. Traziam ferramentas para consertar, deixando-as pela manhã na oficina e à tarde iam buscá-las e faziam contas com o mestre, que eram seladas com um copo numa das tabernas próximas. Os dias de Feira eram de inquietude para os aprendizes que já namoravam, pois estavam sempre na expectativa de saírem a horas decentes para poderem ir passear com as namoradas e comprar-lhes as feiras que normalmente se compunham de torrão e uma peça de vestuário, de louça ou de vidro. Por vezes, alguns fregueses atrasavam-se e lá ficava a malta a secar até mais tarde. Quando eu era pequeno, no dia de Ramos, os rapazes compravam o “vulto.” Tratavase de uma determinada quantidade de amêndoas de
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“ Quando eu era pequeno, no dia de Ramos, os rapazes compravam o “vulto”. ”
Da esquerda para a direita, José Samarra, António Bucho, Carolino filho, José M. Pais e Jorge, filho, 1961.
Páscoa, adquiridas através de rifas, no Lajeado junto aos Paços do Concelho. Eram embrulhadas em papel tosco, que os jovens metiam no bolso, para depois oferecerem às namoradas. Como cada embrulho fazia volume no bolso das calças, daí o nome de “vulto.” Havia até quem, maliciosamente comentasse: “Aquela hoje ganha um grande vulto.”
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Os Aprendizes Todas as oficinas eram muito solicitadas para aceitarem aprendizes, mas a do mestre Carolino era a mais assediada, pelo facto, de quem ali entrasse para aprender o ofício, aprendia mesmo ou então tinha que mudar de vida. Na oficina não se aprendia somente o ofício, mas tudo o que girava à volta dele, desde a posição do corpo no trabalho, à aprendizagem do sistema métrico em polegadas e em milímetros, passando pela ética em relação aos colegas, até ao respeito que se devia aos mais velhos, etc. O mestre, era muito exigente e rigoroso, privilegiando a qualidade em tudo o que fazia ou mandava fazer, dizendo, muitas vezes, que podiam chamar-lhe careiro, mas nunca incompetente e quando as coisas não lhe corriam de feição, porque “fervia em pouca água,” lá vinha o ralhanço, normalmente acompanhado de algumas cachaçadas que eram distribuídas pelos que estavam mais próximos. Quando, sem querer, dava uma martelada nos dedos, dizia para o martelo: “Olha que o teu dono sou eu e se voltas a fazer o mesmo, vais pela rua abaixo.” Quantos martelos marcharam até à Fonte da Vila e depois o Ti Chico Marmelo, com paciência de santo, subia a rua e trazia-os de volta.
“ Na oficina não se aprendia somente o ofício, mas tudo o que girava à volta dele, ...”
Logo após ter tomado conta da oficina, admitiu como aprendizes o Alexandre Raposo (já falecido,) o Fernando
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“ A oficina, por vezes, parecia uma casa de correcção, pois, entre filhos e outros aprendizes, chegaram a ser sete “galfarros” e todos de boa “cepa”.” Branquinho e o António Roxo, a que se seguiram mais umas dezenas, ao longo dos anos. A oficina, por vezes, parecia uma casa de correcção, pois, entre filhos e outros aprendizes, chegaram a ser sete “galfarros” e todos de boa “cepa”. Um dos castigos que nos era aplicado com frequência e que mais nos custava, era quando, por algumas maldades que fazíamos, o mestre mandava buscar duas ou três cadeiras de cozinha que eram postas à porta da oficina, onde éramos obrigados a sentar e a ler um jornal em voz alta, sobretudo os anúncios. Era uma vergonha para nós, pois a notícia corria veloz e não tardava que as moças que andavam à mestra nas redondezas, aparecessem de todos os lados para verem a nossa triste figura. Por vezes a ladainha levava mais de duas horas. Esta sanção tinha pelo menos o mérito de exercitarmos o hábito da leitura. Uma vez, teria eu uns treze anos, juntamente com o vizinho e saudoso Zé Miguel Miranda, ferrámos uma valente mijadela no rolêjo (patim da escada) da vizinha Clara do Rato, que era modista, esposa do Ti Francisco Casalim e mulher de quem nós não gostávamos, porque, ao contrário do seu marido, era vaidosa, arrogante e estava constantemente a repreender-nos. O castigo que nos foi aplicado pelos nossos pais, foi o de estarmos presos com uma linha de alinhavar, o Zé Miguel à cadeira de barbeiro do pai e eu ao torno de bancada mais próximo da porta da oficina. De vez em quando, o meu pai vinha certificar-se se a linha não tinha nenhum nó, porque se tivesse, então a conversa era outra. Esta situação durou aí umas quatro horas e, para mim, só
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terminou com a chegada do mestre Teodoro Porfírio (o Grazina), mestre de obras que, naquela época, também era presença regular na oficina e cortou então a malvada linha com uma enorme navalha, simulando estar a fazer um grande esforço, enquanto, com ar de gozo, dizia ao mestre e afilhado Carolino: “Parece que estou a soltar um bacorinho.” Este homem, quando alguém tentava trama-lo, costumava dizer: “Nunca na vida fui toureiro, mas já levei muita cornada.” Naquela altura, eu não entendia o que ele queria dizer com aquilo. Hoje, percebo muito bem a razão daquele desabafo.
Atrás: Mestre Carolino; À frente, da esquerda para a direita: José M. Pais, Carolino filho e José Samarra, 1961.
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“ Só a partir dos catorze anos é que os rapazes podiam ser aceites como aprendizes nas oficinas, mas na maior parte dos casos os pais insistiam com os mestres para os admitirem antes da idade permitida, para tentar evitar que criassem vícios, vagueando pelas ruas da vila.”
Só a partir dos catorze anos é que os rapazes podiam ser aceites como aprendizes nas oficinas, mas na maior parte dos casos os pais insistiam com os mestres para os admitirem antes da idade permitida, para tentar evitar que criassem vícios, vagueando pelas ruas da vila. O problema era que, com alguma frequência, aparecia a fiscalização e então era a debandada geral da rapaziada de todas as oficinas, que normalmente se juntava na Praça D. Pedro V (Carreira de Baixo), aproveitando para fazer um joguito de futebol, quase sempre interrompido com a chegada da Guarda Republicana. Quem fosse agarrado, ia raspar erva para a porta do Posto durante várias horas e os que escapavam, iam dar uma ”caída” (ir às fazendas colher e comer fruta sem autorização dos donos) aos figos ou a qualquer outra espécie frutícola que estivesse madura, correndo o risco de serem apanhados pelo dono da fruta e, se assim fosse, sujeitavam-se a levar com um arrocho (pau curvo, com cerca de cinquenta centimetros de cumprimento, que servia para apertar as cargas que burros ou mulares transportavam) nos costados. Alguns mestres eram tão ferrenhos na defesa da sua Filarmónica e daquilo que ela representava que, por vezes, aliciavam rapazes, propondo-lhes ensinar o ofício, desde que eles fossem aprender a músicos para a Banda da sua afeição. Quando chegava um aprendiz novo, tinha que passar por alguns testes, tendo mesmo que percorrer outras oficinas à procura da régua das arestas, do virgulo, do prumo de dois papos e ainda ir a uma alfaiataria onde
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“ Foram quase meia centena de jovens que passaram por aquela casa durante cerca de meio século. ”
existiam aprendizas, arranjar o ferro de passar, levando às costas uma chave com mais de vinte quilos, tudo isto perante o gozo de todos quantos participavam na brincadeira. Uma tarefa reservada aos recém chegados à nossa oficina, era terem a seu cargo a limpeza do local de trabalho que era feita nos domingos de manhã, colocando o lixo dentro de um caixote num carrinho de mão e depois iam despejá-lo para determinados locais. Por vezes, levava-se a espingarda de pressão de ar, aproveitando para dar uma volta à passarada. Os aprendizes permaneciam na oficina, em média entre dois a três anos e depois lá iam em busca de emprego, normalmente para a zona de Lisboa. Foram quase meia centena de jovens que passaram por aquela casa durante cerca de meio século. Era interessante que quando vinham à Terra, todos iam visitar o mestre que lhes tinha ensinado o ofício e uns quantos convidaramno mesmo para padrinho de casamento. Alguns ainda hoje recordam o tempo em que ele os mandava a sua casa buscar azeite frito para arrefecer as brocas, mas era apenas o pretexto para a sua esposa os alimentar pois, de entre eles, havia quem vivesse com muitas dificuldades. Enquanto o mestre e sua mulher estiveram entre nós, mantiveram com muitos deles uma relação de grande amizade.
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Atrás, da esquerda para a direita: João Luís, Joaquim Moura, Luís Gasalho e Mãe Rufina. À frente: Francisco Beliz e António e José Barroqueiro, 1963.
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O Carnaval O Carnaval naqueles tempos era animado, em Castelo de Vide, devido sobretudo à dinâmica criada pelo Grupo Cénico da Sociedade 1º de Dezembro que, nessa época, estava em grande actividade e onde despontava, entre outros, o Ti Alberto de Assunção, que era uma figura interessante e estava sempre disposto a alinhar nas farras carnavalescas. Era, aliás, na Central do serviço combinado com a CP, de sua propriedade, que eram feitos os preparativos para as brincadeiras que haviam de sair no Domingo e Terça-Feira de Carnaval. Noutros locais da Vila, havia também movimentações à volta do Entrudo como, por exemplo, na oficina do mestre Carolino.
Estava estabelecido popularmente que as partidas de Carnaval começavam sempre no dia vinte de Janeiro e logo a partir desse dia tornava-se perigoso passar na Rua Nova ou entrar na nossa oficina, pois as armadilhas carnavalescas andavam à solta por aquelas bandas. A primeira brincadeira de que me recordo, constava de soldar uma moeda a um prego grande e depois espetá-lo num taco de madeira que previamente se havia metido entre os intervalos da calçada. Enquanto alguém tentava apanhar a moeda, de dentro da oficina batia-se com um martelo num cabaço de lata, que fazia uma grande algazarra, deixando a pessoa envergonhada. Se fosse uma rapariga, então a festa ainda era maior.
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“ Estava estabelecido popularmente que as partidas de Carnaval começavam sempre no dia vinte de Janeiro e logo a partir desse dia tornava-se perigoso passar na Rua Nova ou entrar na nossa oficina, pois as armadilhas carnavalescas andavam à solta por aquelas bandas.”
Outra armadilha, constava de prender uma pulseira falsa a um fio de pesca e colocá-la no meio da rua, estendendo o fio até à oficina e quando alguém se preparava para apanhá-la, puxava-se o fio e, por vezes, havia quem fosse atrás do achado até à entrada da porta e lá tinha que ouvir a barulheira do martelo no cabaço. A partida que mais gozo nos dava, era aquela em que tirávamos a medida da caraça aos aprendizes que vinham das outras oficinas e consistia no seguinte: aos rapazes a quem a brincadeira era destinada, fazia-se crer que a nossa oficina organizava um grupo de mascarados para sair no Domingo Gordo, juntamente com um grupo de raparigas e então era preciso tirar a medida da caraça. Quando o pretendente chegava, mostrava-se-lhe um bloco de papel onde constavam uns quantos nomes de outros indivíduos que supostamente já tinham encomendado as suas máscaras e tirado as respectivas medidas. De seguida, perguntava-se qual o modelo que preferiam, pois dispúnhamos ainda de umas quantas de camelo, de urso, de macaco, etc. Depois de feita a escolha, colocava-se o tipo na posição correcta, isto é, voltado para a rua, ficando assim em contra luz, para que não se apercebesse do “martírio” a que ia ser sujeito. A seguir, um de nós, com os dedos polegar e indicador de cada mão mascarrados com óleo queimado e segurando uma fita métrica, tirava então a medida, fazendo deslizar os dedos sujos pela testa, pelas faces, pelo queixo e nariz, ao mesmo tempo que ia transmitindo as medidas ao colega que estava com o bloco, onde ia tomando as devidas notas. No final, mandávamo-los passar por outra oficina para informarem os que lá estavam, de que já haviam tirado
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a medida da caraça. Alguns chegavam a passar por vários sítios sem se aperceberem do estado em que tinham a “fronha.” Era o que se podia chamar de crime perfeito. Outra brincadeira interessante, constava de embrulhar uma bola de ferro (proveniente de antigos canhões), em papéis, atada com um cordel, colocando-a a seguir no meio da rua. Depois, era só esperar para apreciar as aptidões futebolísticas dos passantes, que não resistiam a dar uma boa biqueirada, pensando que se tratava de uma bola de papel. Em determinada altura, alguém, na oficina, se lembrou de pôr em prática uma nova brincadeira de Carnaval. Constava de preparar uma carteira de bolso, que depois de recheada com papéis verdes, parecidos com as notas, era colocada na calçada quase em frente da oficina, só que a parte que ficava para baixo, estava besuntada com “caquinha” da garotada da vizinhança e então podem imaginar o resultado. Não havia quase ninguém que passasse naquela rua que não apanhasse a carteira. Aquela partida fez um enorme sucesso, talvez porque a falta de dinheiro naquela época já era muita e então não havia “caquinha” que chegasse. Por vezes tínhamos que insistir com a miudagem que brincava na rua para aumentar a produção. Algumas das nossas vizinhas, estavam constantemente a espreitar pela janela tão entusiasmadas com aquela brincadeira, que chegaram a deixar esturrar a comida que tinham ao lume.
“ Em determinada altura, alguém, na oficina se lembrou de por em prática uma nova brincadeira de Carnaval. ”
Outra partida de Carnaval, consistia em preparar uma armadilha na casa de banho que se localizava no piso superior da oficina e que se preparava da seguinte
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“ Algumas das nossas vizinhas, estavam constantemente a espreitar pela janela tão entusiasmadas com aquela brincadeira, que chegaram a deixar esturrar a comida que tinham ao lume. ”
maneira: Fechava-se o contador da água, descargava-se o autoclismo e abria-se a torneira do chuveiro que estava por cima da pia turca, depois, era só esperar que algum freguês pedisse para ir à casa de banho e quando estava agachado a aliviar-se, abria-se a torneira do contador e o resultado era aquele que podem imaginar. Uma vez alguém se lembrou de fazermos uma brincadeira de Carnaval fora da oficina e então surgiu uma ideia brilhante, que foi a de cortarmos cuidadosamente alguns papéis de jornal em pequenos rectângulos. De seguida, eram untados com malaguetas, sendo depois trocados pelos papéis que estavam pendurados nas portas das cabines das retretes públicas, situadas por baixo do Lajeado. A seguir, colocávamo-nos da parte de cima, encostados às grades para desfrutarmos da reacção dos que iam saindo e posso garantir que era uma delícia apreciar aquele espectáculo. Coçavam tanto o traseiro, que pareciam estar a ser atacados por um formigueiro. Estas e outras brincadeiras haveriam de continuar pelos tempos fora até ao encerramento da oficina.
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Os anos
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O início dos anos sessenta, marca uma viragem significativa na vida portuguesa, criando problemas complicados ao Estado Novo, com a rendição na Índia e o princípio da guerra colonial nos territórios africanos de Angola, de Moçambique e da Guiné, promovida pelos Movimentos de Libertação respectivos, apoiados por várias potências mundiais. Guerra que havia de ceifar milhares de vidas a muitos jovens portugueses e africanos, para além daqueles que ficaram mutilados ou com problemas psíquicos para o resto das suas vidas.
“ O início dos anos sessenta, marca uma viragem significativa na vida portuguesa, criando problemas complicados ao Estado Novo, com a rendição na Índia e o princípio da guerra colonial...”
A Polícia Política (PIDE), fortalecia-se e aumentava a repressão um pouco por todo o país, enquanto ia crescendo o número de informadores (bufos), criteriosamente seleccionados de entre os devotos apoiantes do regime em cada terra. Podiam ser funcionários públicos civis, membros das forças de segurança, comerciantes, bancários, proprietários etc. Porque não eram conhecidos como tal, facilmente se misturavam com grupos de indivíduos, escutando ou fomentando conversas sobre política em locais públicos e, se alguém se descuidava a ter um desabafo contra a situação vigente, lá seguia uma denúncia que normalmente trazia incómodos graves para quem era denunciado, podendo mesmo chegar à prisão. Outra
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“... ia crescendo o número de informadores (bufos), criteriosamente seleccionados de entre os devotos apoiantes do regime em cada terra.” tarefa atribuída aos informadores, consistia em vigiar, à distância, determinadas pessoas já sinalizadas pelo regime, que era conveniente manter debaixo de vista, informando periodicamente os chefes sobre os seus movimentos. Noutras situações, os bufos denunciavam pessoas, simplesmente porque não gostavam delas. Castelo de Vide não fugia à regra e foi por isso que numa manhã húmida no início de 1961 o mestre Carolino viu entrar pela porta dentro dois indivíduos que, de imediato, se identificaram como agentes da polícia política que desejavam saber se a sua licença, como armeiro, estava actualizada. O mestre disse que sim e mostrou-a ao chefe de brigada, que a seguir o informou que tinha havido uma alteração recente à lei, e que, por isso, a licença havia perdido a validade. Assim sendo, tinham que confiscar as armas de caça que se encontravam na oficina a aguardar reparação, apesar de todas estarem legalizadas e acompanhadas pelos respectivos livretes. O mestre ainda tentou argumentar que desconhecia a alteração da Lei e que de imediato iria actualizar a licença, mas eles não admitiram mais conversas e, de seguida, como se fosse por magia, chegou à porta da oficina uma carrinha da PSP de Portalegre, onde vinham quatro agentes que, de imediato, se encarregaram de transportar as dezasseis espingardas para o interior do veículo, uma operação que durou breves instantes e de seguida entraram todos para a viatura e lá se foram. Algum tempo depois, os donos das armas foram notificados para irem recuperar as espingardas ao Governo Civil a Portalegre e o mestre Carolino pensou então que o assunto estava encerrado. Enganou-se
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totalmente, pois a partir daí é que os problemas graves iam começar e só terminariam muito mais tarde. Assim, umas semanas depois recebe uma carta do tribunal, notificando-o de que lhe havia sido instaurado um processo-crime na sequência da apreensão das armas. Tenta, de seguida, encontrar um advogado que o representasse, mas a tarefa não se afigurou nada fácil, pois tratando-se de um processo que envolvia a Polícia Política, os advogados que foi contactando, com escritórios na zona, não se mostraram disponíveis para o patrocinar, até que, tendo tomado conhecimento da situação, o Senhor Dr. António Correia Teixeira, de Portalegre, cuja esposa leccionava na escola primária em Castelo de Vide, colocou-se à disposição do meu pai e foi defendê-lo em tribunal. Quero aqui, ainda que de forma singela, prestar a minha sentida homenagem a este proeminente causídico, agradecendo-lhe a coragem e a solidariedade demonstradas, só ao alcance de pessoas com a craveira moral, intelectual e humanista do Senhor Dr. António Teixeira que, ao contrário de outros, já era democrata antes do 25 de Abril. Efectuado o julgamento e enquanto aguardava pelo veredicto, o mestre Carolino vê o seu pai ser internado no hospital da Misericórdia com uma doença grave, restando-lhe poucos dias de vida. O meu avô era ateu e o seu filho havia avisado um funcionário do hospital dessa situação e que se o Padre ali chegasse a tentar ministrar os últimos sacramentos a seu pai, que não o autorizassem e se houvesse insistência o avisassem de imediato, o que veio a acontecer. O meu pai foi chamado e, porque estava por perto, ainda chegou a tempo de evitar que o meu avô, mesmo moribundo,
Espingarda, fim do Séc. XIX
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“ Quando abri a porta, assustei-me, pois estavam dois indivíduos bem encorpados na soleira da porta, empurrando-me de seguida para dentro da oficina, ...”
fosse violentado na sua consciência. Algumas horas depois, haveria de partir em paz, rumo à eternidade. Contava setenta e quatro anos de idade. Entretanto, a sentença ditou uma pena de prisão de seis meses, suspensa por dois anos. Parecendo adivinhar o futuro, o mestre avisou-nos a todos que, a partir daí, estávamos proibidos de receber armas ou parte delas, para conserto. Algum tempo depois, estando eu com outros colegas na oficina, entraram dois indivíduos com a roupa enfarinhada, dando a ideia de serem moleiros, dizendo que traziam a fixaria de uma espingarda caçadeira que precisava de ser arranjada. Eu informei-os de que tal não era possível e expliquei-lhes os motivos. De seguida, identificaram-se como polícias da PIDE, mostrando um mandado de busca à oficina e de imediato passaram tudo a pente fino e, como não encontram nada relacionado com armas, lá foram ao seu destino sem mais comentários. Cenas destas foram-se sucedendo, mas nas visitas seguintes já não vinham disfarçados e identificavam-se logo à chegada. Alguns eram indivíduos educados, mas outros, eram prepotentes e agressivos. Numa manhã de 1962, cerca das sete horas, estava eu dentro da oficina de cima a colocar as ferramentas no porta-bagagem da motorizada para sair em serviço externo. Quando abri a porta, assustei-me, pois estavam dois indivíduos bem encorpados na soleira da porta, empurrando-me de seguida para dentro da oficina, identificaram-se e mostraram-me o mandato de busca, começando de imediato a vistoria. Em cima da bancada, estava uma gadanha embrulhada numa saca de linhagem, parecendo a coronha de uma arma
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de caça. Quando a viu, um dos tipos, com ar de gozo disse para o outro: “Desta vez temos arma” e eu respondi: “Vocês têm mas é merda!” Quando tiraram a gadanha da saca e viram que afinal não se tratava de nenhuma espingarda, ficaram furiosos, atiraram-se a mim, desancaram-me com pancada e saíram depois praguejando, enquanto eu fui até ao hospital curar as mazelas deixadas pela sova. Porque o meu pai já havia ameaçado que, se as coisas não se alterassem, um dia matava um desses tipos, eu disse-lhe que havia caído da motorizada e só alguns anos depois é que ele viria a saber a verdade. O meu irmão Jorge, quando tinha quinze anos, estava um dia na oficina a picotar uma cabeça de cavalo, em ferro, quando o tipo que chefiava a polícia política na Beirã, ao descer de carro a rua dos Serralheiros, caiu numa brincadeira de Carnaval, a que, sua mulher, que o acompanhava, achou muita piada. Então o indivíduo, furioso, entrou na oficina, pegou num compasso de bicos e com ele picou a cara do meu irmão, deixando-o a sangrar.
“... atiraram-se a mim, desancaram-me com pancada e saíram depois praguejando, enquanto eu fui até ao hospital curar as mazelas deixadas pela sova. ”
A perseguição à nossa família, sobretudo ao meu pai, só viria a terminar em Abril de 1974, embora tenha diminuído a partir de 1969 com a chegada de Marcelo Caetano ao poder. Castelo de Vide, durante o Estado Novo, esteve sempre sob o olhar atento da polícia do regime, devido, sobretudo às suas raízes republicanas. Para além dos dezasseis informadores que manteve durante décadas, tinha ainda uma figura altamente influente junto das chefias daquela polícia política. Muitos dos
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“ Castelo de Vide, durante o Estado Novo, esteve sempre sob o olhar atento da polícia do regime, devido às suas raízes republicanas. “ elementos que faziam parte da Banda União Artística eram vigiados de forma muito especial e estavam constantemente a ser denunciados, trazendo-lhes incómodos de vária ordem. Lembro-me de um dia, em 1963, estando com o meu irmão mais novo ao colo, o meu pai chegou a casa e chamou-me à parte para comunicar-me que ia ser preso, juntamente com outros companheiros da Banda e, enquanto recolhia alguma roupa para levar, com as lágrimas nos olhos, disse-me que, enquanto ele estivesse ausente, passava a ser eu o chefe de família, porque já era um homem, saindo de imediato. Ainda voltou nesse dia, pois, alguém na Câmara Municipal, terá interferido junto de alguma chefia da Polícia, com poder suficiente para anular a ordem de prisão. Recordo-me de um outro episódio dessa altura em Castelo de Vide, em que esteve envolvido o meu querido amigo João do Nascimento Chaves (o João Chinês). O chefe da polícia política que estava colocado na fronteira de Galegos, costumava ir cortar o cabelo à sua barbearia e um dia, chamou-o, dizendo-lhe que queria falar com ele em particular. Levou-o então para a parte de trás da oficina e avisou-o para que não se metesse em política porque se não se deixasse disso, um dia teria que o levar preso, pois estava um informador em Castelo de Vide que o vigiava e denunciava-o constantemente como agitador comunista. Um dia, o tal bufo, que era dono de uma farmácia, foi à barbearia do João Chinês para fazer a barba e o nosso amigo barbeiro não perdeu a ocasião, encostou-lhe a navalha da barba ao pescoço e disse-lhe: “Ouça lá ó seu canalha! você anda a denunciar-me, se volta a fazer o mesmo,
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“ Trinta e sete anos depois do 25 de Abril, ainda andam por aí, alguns fervorosos adeptos da antiga polícia política.”
corto-lhe as goelas.” É claro que o tipo não ganhou para o susto e de imediato saiu da cadeira e fugiu porta fora. De referir que estes tipos eram uns cobardes, pois quando apertados, não sabiam onde se meter. A propósito do João Chinês, quero aqui prestar-lhe a minha homenagem, pois trata-se de uma das pessoas mais solidárias para com os mais débeis que conheci em toda a minha vida. Para além de ter tratado dos pais, dos sogros e da esposa, durante muitos anos, é vê-lo nos domingos e nos feriados ir aos domicílios ou ao hospital, cortar o cabelo e fazer a barba aos enfermos e na sua oficina não cobrar a quem vê que não tem dinheiro. Para além destas qualidades, é também um excelente relações públicas. Que o digam as muitas centenas de visitantes de todo mundo, que anualmente entram na sua oficina de barbeiro, que são de imediato convidados a sentarem-se na cadeira, tirando fotos e normalmente não saiem sem ser obsequiados com um delicioso néctar. A tudo isto, há que acrescentar que a sua barbearia é o último reduto de uma tradição em vias de extinção, pois é um local de tertúlias e uma autêntica agência de notícias, porque é ali que se sabem e se dão as novidades da terra, para além de, quando chegam os alicobatas (nome pelo qual trata os castelovidenses residentes no exterior), lhes perguntar, de imediato, quando é que chegaram e quando é que abalam. O João Chinês era muito amigo do mestre Carolino e foi também seu colega na Banda União Artística. Trinta e sete anos depois do 25 de Abril, ainda andam por aí, alguns fervorosos adeptos da antiga polícia política. Um deles, depois de ter sido um dedicado servidor do anterior regime, tentou converter-se à democracia mas sem resultado. Saltita por aí, 96
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“chilreando”, qual passarinho, mas as suas atitudes não mudaram em nada, continuando com o mesmo espírito pidesco presente na sua mente. O saudoso Tenente-Coronel Salgueiro Maia, quando um dia se encontrou comigo em Santarém e lhe contei o que a minha família e outras pessoas haviam sofrido com a polícia política, sobretudo com as denúncias cobardes dos bufos, prometeu dar-me a conhecer a lista dos informadores em Castelo de Vide, o que aconteceu algum tempo depois. Foi então que fiquei a saber quem eram, e se alguns dos nomes constituíram surpresa, outros não, pois desde há muito que estavam por nós sinalizados. Em 31 de Maio de 1963, Castelo de Vide, viria a sofrer o acidente mais grave da sua história contemporânea, no dia em que recebeu, com pompa e circunstância, o então Presidente da República, Almirante Américo Tomás. A vila engalanou-se e as forças vivas, à boa maneira castelovidense, disseram presente, engalanando as janelas e varandas, trazendo para a rua os estandartes e os pendões que formaram alas junto aos Paços do Concelho, juntamente com as crianças da escola. Depois da sessão solene no salão nobre e, quando a comitiva presidencial já saía da vila, dirigindo-se para a quinta do Prado onde iria ser servido o almoço, ouviu-se um estrondo enorme vindo da torre do relógio e o pânico instalou-se com as pessoas a correrem sem saber para onde e sem terem a noção do que havia acontecido. Os elementos da polícia política e da GNR andavam atarantados de um lado para o outro sem saberem o que se havia passado, chegando a pôr a hipótese de se ter tratado de um atentado. Algum tempo depois, as pessoas deram-se conta da tragédia, quando viram
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“ Em 31 de Maio de 1963, Castelo de Vide, viria a sofrer o acidente mais grave da sua história contemporânea, no dia em que recebeu, com pompa e circunstância, o então Presidente da República, Almirante Américo Tomás. “ 97
duas meninas caídas junto à porta da torre. Porque estava próximo do local, devido ao facto de transportar o pendão dos ferreiros, recordo-me de ver as duas crianças, (com oito anos de idade), serem transportadas ao colo de dois homens que corriam em direcção ao hospital. Ao olhar para cima vi que o relógio da torre não tinha vidro e os ponteiros estavam apontados na direcção da Rua Almeida Sarzedas. Pouco tempo depois, era a consternação geral, com a notícia de que as duas meninas haviam falecido, em consequência dos ferimentos causados pelo rebentamento de foguetes e morteiros que estavam no interior da torre. Efectivamente, dois funcionários da Câmara Municipal, haviam estado a deitar foguetes em cima do telhado do edifício, junto à torre e, num determinado momento um dos foguetes não subiu, entrando para dentro da torre, descendo até ao rés-do-chão e aí explodiu, originando a detonação dos morteiros que ali se encontravam, provocando a destruição da porta que se projectou em pedaços para o exterior, atingido mortalmente as duas crianças. A seguir a esta tragédia, fui vítima de um acidente de trabalho na oficina de cima quando, depois de ter soldado um termoacumulador eléctrico, estava a ensaiá-lo, metendo-o à pressão, e ele rebentou, ferindo-me com alguma gravidade no interior da boca e no maxilar inferior. O meu irmão José Alberto, que tinha três anos e estava ao pé de mim, com o rebentamento levou com oitenta litros de água por cima, ficando sem respiração durante alguns momentos. Algum tempo depois, este meu irmão estava a brincar à entrada da oficina, quando descobriu uma
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garrafa de vidro que continha cerca de dois decilitros de gasolina e na sua inocência, não tardou a metê-la à boca e lá vai disto: ingeriu uma boa parte do líquido, ficando, de imediato, com dificuldades respiratórias. Valeu que eu e outros colegas estávamos próximos e rapidamente corri ao segundo andar da casa, trazendo uma garrafa com azeite, obriguei-o a beber, e dando-lhe várias voltas, provocando-lhe vómitos, que originou deitar fora, pelo menos parte do que tinha ingerido antes. Em seguida, levei-o ao hospital onde lhe fizeram o tratamento adequado. Nos dias seguintes, quando ele andava a brincar na rua, por vezes corria muito e nós por graça, dizíamos que ainda não se lhe tinha acabado o combustível no carburador. Em 1963, o mestre Carolino é convidado e aceita executar um conjunto de esculturas e outros trabalhos artísticos em ferro forjado, interpretando desenhos de arquitectos e escultores alemães e dinamarqueses, destinadas aos Estados Unidos da América. Estudada a forma como iria desenvolver o trabalho, deitou mãos à obra e durante meses a fio, junto à forja e à bigorna, com a arte e a mestria de que era possuidor, lá foi batendo o ferro em brasa que ora estendendo, ora encolhendo, ia tomando a forma prevista no desenho, sem deixar, no entanto, de lhe dar um cunho pessoal. Eram autênticas obras de arte, que faziam as delícias de quem tinha a oportunidade de as apreciar. Durante muito tempo, o meu pai dedicou-se quase exclusivamente a fazer aqueles trabalhos, mais pelo gozo que lhe dava, porque do ponto de vista financeiro, não era compensador. Quando estava a produzir trabalhos artísticos, costumava dizer por graça que nem se lembrava que tinha fome, nem se recordava das dívidas.
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“ Quando estava a produzir trabalhos artísticos, costumava dizer por graça que nem se lembrava que tinha fome, nem se recordava das dívidas.” 99
“ O Dr. Adolfo Bugalho, para além de ser uma excelente pessoa e um grande médico, era também um homem das artes.”
O Dr. Adolfo Bugalho, para além de ser uma excelente pessoa e um grande médico, era também um homem das artes. Quando se apercebia que o meu pai tinha algum trabalho artístico entre mãos, ia até à Rua Nova para ver o que é que o mestre estava a fazer. Numa dessas vezes, foi acompanhado pelo seu amigo, o também notável homem de cultura José Régio. O mestre Carolino, depois de mostrar o que estava a fazer, convidou os dois ilustres intelectuais a irem ao primeiro andar da nossa casa para verem um armário de cantoneira, em madeira, muito valioso, provavelmente do século XVI, que se encontrava no escritório. Escusado será dizer que José Régio haveria de fazer mais duas ou três visitas ao meu pai, não só porque apreciava a forma como o mestre moldava o nobre metal que é o ferro, mas sobretudo porque tinha a esperança de poder vir a adquirir o valioso móvel, embora nunca o tenha conseguido. Num outro dia, também o Dr. Adolfo Bugalho, chegou
Mateus e o pai junto a algumas esculturas, 1963.
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à oficina acompanhado pelo mestre António Ventura Porfírio, figura maior da nossa cultura. Em determinada altura, a propósito de uma peça que o meu pai estava a esculpir à forja, comentaram que o trabalho que o mestre Carolino estava a fazer se assemelhava à verdadeira e autêntica Arte Nova. Foi a primeira vez que ouvi falar em tal e, perante a minha curiosidade, durante alguns minutos, dispuseram-se a explicar-me o que era; onde nasceu, em que época, como chegou a Portugal, etc. A lição foi de tal maneira convincente que fiquei curioso e interessado em saber mais sobre aquela forma de expressão artística. Assim que pude, o que só veio a acontecer muito mais tarde, adquiri literatura que fez com que me tornasse um grande admirador da Arte Nova. Alguns anos depois, o mestre Porfírio foi comigo à casa do meu pai, para ver a mobília e a fruteira em ferro forjado que o mestre tinha terminado e, ao ver a beleza daquelas peças, voltou ao tema da Arte Nova, insistindo que o seu amigo e mestre Carolino, embora de forma empírica, era um exímio intérprete daquela forma de expressão artística.
Mateus Tapadejo e Luís Gasalho segurando um candelabro, 1963.
Um homem que deu nas vistas nos anos sessenta em Castelo de Vide, foi o Ti Faustino Carreiras. Era uma figura muito interessante, empreendedor, amigo do seu amigo, para além de ser também uma pessoa bem-disposta e amigo de fazer partidas e outras brincadeiras. Para
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“... mestre Carolino também era um excelente cozinheiro e, de vez e quando, ao fim da tarde, na oficina, ateavase o carvão na forja, enquanto o mestre temperava o pitéu ...” 102
além de muitos outros negócios, tinha na época três camionetas de carga que alugava para todo o tipo de serviços. Foi durante muitos anos vereador municipal e, ainda hoje é recordado com saudade por muitos dos que com ele lidaram ou que dele precisaram. A ele se ficou devendo a primeira estação de serviço no sítio do aterro e a recuperação de inúmeras casas na vila, que ia comprando e depois de arranjadas, vendia-as para, logo de seguida, iniciar outra obra. O Ti Faustino Carreiras ia com frequência à nossa oficina tratar dos assuntos das obras, pois era ao mestre Carolino que ele confiava as canalizações e outros trabalhos, nomeadamente caixilharias em ferro. Com os atributos que lhe eram reconhecidos, não tenho dúvidas que, se esta interessante figura tivesse vivido na Idade Média, teria sido muito justamente considerado um “Homem Bom.” Tal como seu pai, o mestre Carolino também era um excelente cozinheiro e, de vez e quando, ao fim da tarde, na oficina, ateava-se o carvão na forja, enquanto o mestre temperava o pitéu que tanto podia ser frango, como lebre, coelho bravo ou simplesmente umas lascas de marrã, a que agora se dá o nome de entremeada. Também era normal que o petisco fosse preparado e comido noutros locais, na vila ou no campo. Uma vez por ano, o meu pai tinha um compromisso com uma outra figura muito interessante que vivia em Castelo de Vide e se chamava, Manuel Ferreira da Silva, (o Ti Mané do Porto). Este homem era de uma bondade extrema, pois sem que se desse por isso, auxiliava várias pessoas que viviam com dificuldades, fornecendolhes pão gratuitamente ou dando emprego a alguns jovens. Passou grande parte da sua vida a fabricar pão
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na padaria onde tinha o forno, de sua propriedade. Raramente se via noutro sítio, fora do seu local de trabalho e então convidava o mestre Carolino para ir ao seu forno cozinhar lebre com arroz. Ao petisco, para além do anfitrião, assistiam normalmente o Ti Paulino, o Ti João Roque, o Ti Afonso Ribeiro (o Nacarino,) o Fernando Barrigas e, por vezes, o João Manuel, filho do Ti Mané do Porto. Era uma festa para o dono da casa, e o meu pai referia-se carinhosamente a ele, dizendo: “cá o velhinho também é bom cachopo.” E era efectivamente uma excelente criatura, o Ti Mané do Porto. O meu pai era muito amigo de outro homem bom, chamado Geraldo Calha, (o Chefe Calha) que foi durante muito tempo chefe da estação dos correios, serviço que assegurou sozinho durante muitos anos, pois o ordenado era pequeno, pelo que se sacrificava a fazer doze horas por dia, para poder suportar os custos com os estudos dos seus dois filhos. O Chefe Calha era também fotógrafo e vendia vários produtos, como máquinas de barbear, panelas de pressão, batedeiras, ferros de passar, etc., comercializava ainda esquentadores da marca LM, de origem alemã, e era ao mestre Carolino que ele recorria para proceder à montagem daqueles aparelhos que, por sinal, eram de excelente qualidade, tendo sido os primeiros esquentadores a chegar ao mercado português com a serpentina soldada com uma liga de prata, o que lhe conferia maior consistência e durabilidade. O Chefe Calha era uma pessoa bem disposta, amigo de fazer partidas e muitas delas eram partilhadas com o seu amigo Carolino. Recordo-me que uma vez o meu pai mandou um aprendiz aos correios comprar postais e ele perguntou-lhe se os queria já escritos, como o moço não lhe soube responder,
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“ O meu pai era muito amigo de outro homem bom, chamado Geraldo Calha, (o Chefe Calha) que foi durante muito tempo chefe da estação dos correios, ...”
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mandou-o de volta e o rapaz meteu os pés de bico e lá voltou à oficina para fazer a pergunta ao mestre, tendo este respondido que sim, desde que fossem escritos com tinta feita com urina de andorinha. Ao chegar de novo aos correios com a resposta, o chefe disse-lhe que aquela tinta estava esgotada e por isso tinha que levar os postais em branco. Outra vez, o meu pai mandou outro aprendiz registar uma carta e ao chegar à estação dos correios, o senhor Calha despachou-o para o Registo Civil, onde o funcionário que o atendeu lhe disse que os livros de registo estavam já todos preenchidos, devolvendo o rapaz para os correios e o Chefe Calha disse-lhe que, assim sendo, fazia-lhe o favor de registar a carta. Este homem deslocava-se duas vezes por dia ao Café Peninsular, acompanhado pelo seu inseparável cigarrito feito à mão e, ao chegar, pedia uma groselha, que afinal não era mais que uma taça de vinho. Em muitas ocasiões marcou presença na nossa oficina quando havia petiscos, sobretudo de caça. Avental em Couro
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Em meados dos anos sessenta, a casa agrícola Pinheiro Dias Coutinho, de Póvoa e Meadas, moderniza-se para melhor responder aos desafios do futuro da agricultura e adquire nova maquinaria e novas alfaias, que quando necessitavam de reparação, vinham à oficina do mestre Carolino, o que acontecia com frequência, dada a natureza xistosa dos terrenos da zona das Meadas e do Cabeço do Seixo, onde se localizava a exploração agrícola. Também ali instalamos uma rega por aspressão, que nessa época, era uma novidade por estas bandas. Tratava-se de uma empresa que nesse tempo dava trabalho a muita gente de Póvoa e Meadas e era gerida pela menina Maria Amélia, tratamento que
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era dado à senhora a quem a família havia confiado os destinos da empresa agrícola. Tratava-se de uma pessoa muito culta, de bom trato e predestinada para as funções que lhe haviam sido atribuídas. Tinha na altura como Feitor o Ti Joaquim Anacleto, natural de Évora que, quando chegava à oficina, ia sempre com muita pressa e com a pronúncia de um bom alentejano que era, pedia ao mestre Carolino: “ai méstri! tem que me desenrascari por que tenho a lavóra parada.” O Grémio da Lavoura, por essa altura, também era nosso cliente e, quase diariamente, um dos seus tractoristas chegava à oficina com avarias nas alfaias, que tanto podia ser uma grade de discos como um escarificador, uma charrua de discos ou de formão ou uma enfardadeira. O Grémio da Lavoura emanava do sistema corporativo, vigente em Portugal nesse tempo. Tinha como gerente um homem bondoso, chamado João Manso, que sendo regente agrícola e um estudioso da matéria, era um profundo conhecedor das limitações da nossa agricultura, face à ausência de bons solos agrícolas e a outros constrangimentos, nomeadamente de ordem humana. Outro freguês habitual era o senhor Pedro Moura Ramos, empresário agrícola cuja maquinaria constantemente precisava de vários consertos. Era uma excelente criatura este senhor. Andava sempre vestido a rigor, bem perfumado e fumava muito. Era casado com a Dona Susana Moura Ramos, uma grande Senhora que há muitos anos se dedica de corpo e alma às causas da solidariedade. O senhor Pedro Ramos e sua esposa, tornaram-se muito amigos e admiradores do meu irmão Mateus, que nessa época despontava como um jovem artista, predestinado para todo o tipo de trabalhos que
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“ ... com a pronúncia de um bom alentejano que era, pedia ao mestre Carolino: “ai méstri! tem que me desenrascari por que tenho a lavóra parada.” 105
“... este meu irmão viria a ser alcunhado por “mestre,” anexim (alcunha) pelo qual continua a ser conhecido.”
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apareciam na oficina, sobretudo os relacionados com a maquinaria agrícola, para além de ser também um excelente forjador. Ainda muito novo, começou a ser reconhecido e tratado por mestre, categoria a que só alguns tinham acesso e, mesmo assim, só depois de adultos. Curiosamente, este meu irmão viria a ser apelidade por “mestre”, anexim (alcunha) pelo qual continua a ser conhecido. Recordo-me dele quando ainda cachopo, querendo parecer adulto, convidava alguns fregueses para irem com ele tomar um copo. Enquanto eles bebiam vinho, ele contentava-se com um copo de gasosa, mas aquele acto social fazia-o sentir-se adulto. Na segunda metade dos anos sessenta, o Mateus, conjuntamente com um grupo de amigos, fundou os “Parras” uma orquestra que na época fez furor por terras do Alto Alentejo, dado o alto grau de “altruísmo” dos seus executantes. Nesse tempo, para poderem actuar em público, pelo menos um dos componentes, tinha que ter carteira profissional de músico. Como nenhum deles possuía tal certificado, contactaram o delegado do sindicato dos músicos do Distrito de Portalegre, entidade a quem competia passar a carteira de músico profissional. Aproveitando a relação de amizade que o meu pai mantinha com o referido delegado, desde que ele havia sido maestro na Banda quando o meu pai lá tocava, acertaram então que seria o mestre Mateus a sujeitar-se ao exame, como baterista e o local escolhido foi a oficina de cima, que foi previamente limpa para o efeito. No dia marcado o candidato montou a bateria e preparou-se para mostrar a sua habilidade. O mestre Carolino, sabendo
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dos dotes vinícolas do examinador, preparou-lhe um lanche, à medida, que colocou em cima da bancada da oficina e quando este chegou ligou mais importância ao néctar e ao comestível do que ao rapazito que ia ser examinado. Entretanto e já depois de ter molhado a boca, o maestro deu indicação ao jovem para começar a tocar. De imediato, compenetrado do seu papel, o mestre Mateus lá foi dando umas pancadas no pobre do bombo, nos tambores e nos pratos, enquanto os outros dois “artistas” de costas voltadas para ele e de copo em punho, lá iam falando de música e saboreando o vinho e o petisco. Ao fim de algum tempo, o examinador disse para o meu pai: “diga lá a esse gajo que pode parar que já passou no exame.” Uma coisa curiosa, que eu nunca percebi naquele maestro, é que ele era surdo e, mesmo assim, conseguia ser músico e dirigir filarmónicas. Actualmente, entre nós, existe também um caso de surdez que é no mínimo esquisito. Na Natureza e não só, existem coisas espantosas! No final dos anos sessenta, eu sou incorporado no exército e o mestre Carolino foi convidado pelo Engenheiro Malato Beliz para vereador substituto da Câmara Municipal. Aceita, na esperança de que a Primavera Marcelista faria a transição para o regime democrático, mas os seus anseios não viriam a concretizar-se. Ainda durante a década de sessenta o meu pai adquiriu um serrote mecânico, um serrote de disco, um engenho de furar e uma tarracha eléctrica.
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“ Uma coisa curiosa, que eu nunca percebi naquele maestro, é que ele era surdo e, mesmo assim, conseguia ser músico e dirigir filarmónicas. “
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Os anos
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No início dos anos setenta, o mestre Carolino concretiza uma ideia antiga ao comprar um torno mecânico moderno que lhe custou cerca de mil e quinhentos contos, instalando-o na oficina de cima. A partir desse momento, entusiasmado pela chegada da nova máquina, o mestre passou a estar mais tempo naquele espaço, fazendo, no entanto, algumas incursões à oficina velha para executar alguns trabalhos à forja. Foi assim que em 1973, começa a produzir a fruteira em ferro forjado, que foi considerada a obra artística mais importante da sua vida. Viria a terminá-la a 25 de Fevereiro do ano seguinte, data em que cumpriu 50 anos de idade.
“...em 1973, começa a produzir a fruteira em ferro forjado, que foi considerada a obra artística mais importante da sua vida. ” 108
O dia 25 de Abril de 1974, amanhece sombrio e húmido em Castelo de Vide. Um pouco antes das nove horas, abri a oficina de cima e, minutos depois entrou o Ti Augusto Chaves (o Batatinha), que vinha reparar a rosca do tampão da caixa do óleo do seu carro de praça e informou-me que tinha acabado de ouvir na telefonia que em Lisboa havia uma revolução, levada a cabo por militares. De imediato, subi as escadas e fui avisar o meu pai que ainda estava deitado e, de seguida, liguei o rádio e o televisor, tomando então conhecimento do que se estava a passar e, apesar das notícias nessa altura serem escassas, por vezes contraditórias, dava
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“ Recordo-me que nas semanas que se sucederam ao 25 de Abril, apareciam na oficina alguns indivíduos armados em progressistas, quando algum tempo antes apregoavam o salazarismo aos quatro ventos.” no entanto para perceber que o regime então vigente estaria a chegar ao fim. Esse e os dias seguintes foram de euforia, por vezes desmedida, em relação aos acontecimentos que o país estava a viver e na oficina ninguém assentava no serviço, porque a toda a hora chegavam notícias novas, por vezes desconcertantes em relação a tudo o que estava a passar-se. Recordo-me que nas semanas que se sucederam ao 25 de Abril, apareciam na oficina alguns indivíduos armados em progressistas, quando algum tempo antes apregoavam o salazarismo aos quatro ventos. Alguns desses cromos ainda por aí andam e é curioso, ou talvez não, que hoje são militantes de esquerda, porque será? O tempo ia decorrendo e no dia 30 de Julho fui submeter-me a exame de condução a Portalegre. O meu pai deu-me boleia e nesse dia foi também examinado um dos informadores da polícia política, que algum tempo antes, havia denunciado o meu pai. Esse indivíduo, embora continuasse com residência em Castelo de Vide, nessa altura andava por outras bandas por motivos que se prendiam com a prestação de contas à justiça. Passámos ambos no exame e no regresso, numa curva à saída de Portalegre, encontrámos o referido informador caído na estrada, pois havia tido um acidente com a motorizada onde se transportava. Tinha ferimentos ligeiros e nessa altura, quando tentávamos socorrê-lo, o meu pai apercebeu-se que alguém, tendo reconhecido o indivíduo, havia chamado a polícia, denunciando-o. De imediato, o mestre, disse-me para abrir a mala do carro, onde colocámos a motorizada, meio dentro meio fora e pegamos no indivíduo, metendo-o dentro do veículo, arrancando
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“ Este exemplo haveria de orientar-me em relação a algumas decisões que tive que tomar mais tarde, enquanto presidente da Câmara, ajudando a integrar alguns elementos da antiga polícia política nos vários serviços públicos em Castelo de Vide, depois de ilibados pela justiça.”
José Alberto, 1967
de seguida pela estrada das Carreiras em direcção a Castelo de Vide. Ao chegarmos à vila, dirigimo-nos ao hospital onde deixámos o homem para que pudesse ser assistido. De seguida, fomos levar a motorizada à oficina e rumámos à residência do indivíduo para avisar a esposa do que se havia passado. No regresso a nossa casa, perguntei ao meu pai qual o motivo porque havia assistido um homem que, pouco tempo antes, o tinha denunciado à polícia política. Obtive a seguinte resposta: “por alguma razão os homens são muito diferentes uns dos outros.” Este exemplo haveria de orientar-me em relação a algumas decisões que tive que tomar mais tarde, enquanto presidente da Câmara, ajudando a integrar alguns elementos da antiga polícia política nos vários serviços públicos em Castelo de Vide, depois de ilibados pela justiça. 1975 foi um ano marcado por muitas convulsões políticas em Portugal e em Castelo de Vide. Nesse ano a nossa Páscoa também não foi nada pacífica, pois o Sábado de Aleluia ficou marcado por incidentes graves na igreja matriz, a propósito de um suposto adiantamento da hora prevista para o terminar da Vigília Pascal. Apesar de ter estado envolvido directamente na tentativa de resolução daqueles tristes acontecimentos, não irei aprofundar aqui este assunto, pois espero vir a fazê-lo num outro trabalho que pretendo apresentar mais tarde. No início da década, o mestre Carolino havia comprado uma propriedade agrícola, passando a dedicar algum do seu tempo à sua nova paixão. Nos primeiros anos, com a ajuda dos filhos e de alguns amigos lá foi fazendo algumas transformações no prédio. De todos os irmãos, o que mais lá trabalhou, foi o meu irmão José Alberto, pois sendo o mais novo era o mais sacrificado.
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
Pend達o com desenho de Mestre Carolino, bordado por Joaquina Coelho.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Os anos “ Foi durante os anos oitenta que o meu pai, precisando de substituir a mobília da sala de visitas da sua casa, em vez de comprar outra em madeira, resolveu começar a esboçar no papel uma mobília em ferro. ” 112
80
Em Portugal, a década de oitenta inicia-se com a tentativa de estabilização da vida política nacional e, apesar de algumas convulsões, o país prepara-se para a integração na Comunidade Económica Europeia. Na nossa vida familiar e profissional, este período trouxe algumas alterações, como a minha saída para ocupar o cargo de presidente da Câmara e com a autonomização do meu irmão Mateus, que passou a trabalhar por conta própria. Com o mestre Carolino ficaram então a trabalhar os filhos Jorge e José Alberto e dois aprendizes. Um pouco mais tarde, o José Alberto também iria sair e procurar outra via profissional. Foi durante os anos oitenta que o meu pai, precisando de substituir a mobília da sala de visitas da sua casa, em vez de comprar outra em madeira, resolveu começar a esboçar no papel uma mobília em ferro. Apesar de alguma falta de mobilidade, motivada por problemas reumatismais, deitou mãos à obra, começando por fazer a mesa e as cadeiras, depois os apliques de parede e a braseira. Quando estava a trabalhar nestas peças, era frequente ver os turistas que, em grande número, passavam pela Rua Nova, pararem para vê-lo moldar o ferro e, então o mestre, de imediato, mesmo não dominando a língua de alguns deles, convida-os a subir
M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
“ Foram muitas centenas, de nacionais e estrangeiros, que ao longo dos anos, recebeu em sua casa. ” à sala do primeiro andar da casa onde se encontravam as peças que já havia terminado, oferece-lhes um copo de ginja caseira e depois de muita conversa, quase sempre gestual, seguiam-se as fotografias que mais tarde recebia pelo correio. Foram muitas centenas de nacionais e estrangeiros que, ao longo dos anos, recebeu em sua casa. Em Dezembro de 1989, é vítima de um acidente vascular cerebral que lhe debilita a parte direita do corpo, passando algum tempo hospitalizado em Portalegre.
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Os anos
90
2000
No início dos anos noventa, o médico recomenda ao mestre Carolino que deveria fazer algumas sessões de fisioterapia, com vista à sua reabilitação física. Embora contrariado, aceita, mas pouco tempo depois, desiste, porque a sua ideia era fazer a recuperação na sua oficina, continuando a produzir a mobília que havia iniciado anteriormente. É assim que em Abril desse ano, com muito esforço, começa o trabalho da cristaleira cujo desenho já havia feito antes do AVC. No início foi dramático, porque a mão direita não tinha acção, deixando-o por vezes desesperado, chegando mesmo a pensar desistir. Mas como a vontade era superior ao desânimo, lá foi continuando a sua saga e alguns meses depois, o móvel estava concluído e o mestre recuperado da trombose. A seguir e para colocar em cima da cristaleira, produz duas miniaturas de esculturas, que havia executado na década de sessenta, para os Estados Unidos da América. Constrói ainda o candelabro para o tecto da sala e começa a desenhar um candeeiro, com braço, encimado por um velho barbudo, destinado a
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“...e começa a desenhar um candeeiro, com braço, encimado por um velho barbudo, ...” ser colocado num dos cantos da sala de jantar, trabalho que já não conseguiu levar a cabo porque, entretanto, apareceu-lhe uma doença do foro oncológico que lhe limitou ainda mais a mobilidade. Como se isso não fosse suficiente, em Agosto de 2001, volta a ser acometido por um AVC, que o remete, de novo, para uma cama hospitalar. Seria o seu último combate, pois às sete horas da manhã do dia 27 de Agosto, partiu rumo à eternidade quando contava 77 anos de idade. Com a sua partida, a velha oficina, como que em sinal de luto, encerrou as suas portas.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
“...às sete horas da manhã do dia 27 de Agosto, partiu rumo à eternidade quando contava 77 anos de idade.”
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Aprendizes da Oficina do Mestre Carolino de 1945 a 2001 Alexandre Raposo António Roxo Fernando Branquinho João Carreteiro Agnelo Faria Henrique Vidal João Salvador Humberto Nicolau Henrique Beliz Carolino C. P. Tapadejo José Manuel Pais Francisco Chaves José Samarra Mário Bilé
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Falecido
Falecido
Falecido
João Seia João Semedo Francisco Neves José Cardoso Manuel Gavancha António Transmontano Manuel António Sequeira José Lourenço Sequeira Fernando Vicente António Bucho Jorge Manuel Tapadejo Adolfo Rouqueiro Mateus Tapadejo João Luís Sanguinho José Maria Raposo José António Barroqueiro Manuel Francisco Carrilho Luís Gasalho José Francisco Costa Francisco Beliz José Pedro Chaves António José C. Barroqueiro José Alberto Tapadejo Joaquim Moura João Maria Moura José Amaro Quintans Adriano Chaves João Maria Junceiro Vicente Ribeiro João Francisco Branquinho Salvador Luís Carreteiro Francisco Fernando Barroqueiro Sequeira
Falecido
Falecido
Falecido
Falecido Falecido
Falecido
Falecido
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M e m 贸 r i a d e M e m 贸 r i a s e o u t ra s H i s t 贸 r i a s
Oficinas de Ferreiro existentes em Castelo de Vide, nos anos cinquenta Severiano Morgado, na Rua Diogo Belo. Hermínio Gargaté, na Rua Nova. Francisco Alvarrão, na Rua Nova. João Tapadejo, na Rua Nova Francisco Casalim, na Rua Nova. Carolino Tapadejo, na Rua Nova. João Laranjo, nas Portas de S. João. José Alvarrão/António Serafim, na Rua de Sta. Maria. Francisco Bugalho, na Rua Cândido dos Reis. Mestre Paulino, na Rua Cândido dos Reis. (só ferraduras)
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Ferramentas feitas Ă forja pelo
Mestre Carolino
10 cm Escariador Frezas
Rebordador
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Ferramentas feitas Ă forja por
Autores Desconhecidos
10 cm Molde Pé de Cabra Talhadeira Cunho de Chave Punção | Escariador Quadrado Punção Redondo Embutidor Goiva em Meia Cana Talhadeira de Bigorna Cinzel Punção de Bico Ponteiro quadrado Ponteiro Redondo Tenazes Boca Direita Boca de Gancho Boca Torta -
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Ferramentas de compra
10 cm Tarracha
Par de Caçonetes Desandador Macho de Ponta Macho Médio Macho Parelho Chaves de Bocas
Engenho manual, com Roquête
Chave-Inglesa
Berbequim Manual
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10 cm Tesoura Corta-Chapa
Alicate de Pressão
Maçarico de Soldar a Autogénio (modelo françês)
Maçarico de Soldar a Autogénio (modelo português)
Maçarico de Soldar a Autogénio (modelo português)
Torno Manual
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Memória de Memórias e outras Histórias
10 cm Maçarico a Gasolina para Soldar Plástico ou a Estanho
Compasso de Pontas Direitas e de Pontas Curvas
“ No espaço mais próximo da porta, estava a bancada de madeira com três tornos ... uma estante para pendurar os maçaricos, os compassos e os alicates de pressão.“
Compasso de Volta Inteira
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Trabalhos executados pelo
Mestre Carolino destinados ao exterior
Anos 40 Cadeira
Grade de Porta
Grade para テ田ulo 130
Memテウria de Memテウrias e outras Histテウrias
Protecção para Vaso de Flores
Corrimão para Edifício Público C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Anos 50 Grade para Edifício Público
Cadeira
Candeeiro de Iluminação Pública, com Braço 132
Memória de Memórias e outras Histórias
Anos 60 Grade de Varanda
Grade de Varanda C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Anos 70 Grade de Varanda
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Mem贸ria de Mem贸rias e outras Hist贸rias
Anos 80 Grade de Varanda
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Mobiliário
em ferro
Mestre Carolino feito pelo
Ao longo da sua vida, o mestre Carolino fez imensos trabalhos artísticos, muitos dos quais desenhados pelo próprio. Alguns desses objectos, encontram-se em Castelo de Vide, na via pública ou em interiores e muitos outros estão distribuídos pelo país e por muitos outros pontos do Globo. A partir dos anos setenta, resolve começar a desenhar e a produzir peças de mobiliário, com vista à criação de uma sala museu na sua própria casa. É a discrição desses trabalhos, bem como as técnicas que utilizou, que se apresentam a seguir.
Bengaleiro Trabalho misto, feito à forja e a frio, utilizando varão quadrado, no elemento central e nos restantes elementos verticais. Ambos são torcidos a frio. O tripé de suporte é feito em barra de ferro, trabalhado à forja. Criação: Autor desconhecido. Desenho: Estilizado por mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos setenta. Exemplares executados: Quatro.
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Mesa Com tampo oval, assente em quatro patas. O esqueleto do tampo e das patas são feitos em ferro quadrado, trabalhado a frio. Os elementos que ornamentam o tampo são em ferro redondo, igualmente executados a frio. Os motivos que decoram o tampo são o sol, plantas e um cavalo estilizado, sobre os quais assenta um vidro. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos oitenta. Exemplares executados: Peça única.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Cristaleira O esqueleto é feito em tubo de aço, rectangular, sendo que os elementos decorativos são cinzelados, em chapa de ferro. Todo o trabalho é efectuado a frio. O mestre Carolino aproveitou este trabalho para recuperar de uma trombose, funcionando como fisioterapia. Quando terminou este móvel, estava praticamente recuperado. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos noventa. Exemplares executados: Peça única.
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Cadeira O esqueleto é feito em tubo de aço, quadrado, trabalhado a frio e o espaldar é executado, igualmente a frio, em varão redondo, tendo como elemento decorativo uma cegonha. Os punhos da cadeira são feitos em chapa de ferro, martelada. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos oitenta. Exemplares executados: Quatro.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Canapé O sistema construtivo é semelhante ao da cadeira, sendo que, o espaldar, tem um motivo diferente para poder suportar dois espelhos feitos em chapa de ferro, cinzelada, representando as figuras de Luís de Camões e de D. Nuno Álvares Pereira. Criação e desenho: Mestre Carolino, com excepção da gravura de Luís de Camões, que foi copiada de uma revista. Trabalho: Efectuado nos anos oitenta. Exemplares executados: Peça única.
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Candeeiro Cadeira O esqueleto, de forma circular, é feito em tubo de aço, quadrado, e os outros elementos são executados em barrinha de ferro, trabalhados a frio. Os tubos que suportam as lâmpadas são de ferro, moldados a quente. O elemento tubular central, que suporta o candeeiro do tecto, é tubo em aço. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos noventa. Exemplares executados: Peça única.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Aplique Canapé O esqueleto é feito em varão redondo, martelado à forja, tornando-o pontiagudo. As folhas, são de chapa de ferro, moldadas a frio, com cinzel sem corte. Os suportes das lâmpadas, são de tubo de ferro, moldados a quente. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos setenta. Exemplares executados: cinco.
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Candelabro Cadeira Escultura feita à forja. Representa uma réplica, em miniatura, de trabalhos executados pelo mestre Carolino, destinados aos Estados Unidos da América. Criação: Arquitecto alemão (nome desconhecido). Desenho: Estilizado por mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos oitenta. Exemplares executados: dois.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Candeia Canapé Rica Feita em chapa de ferro, trabalhada a frio, com excepção do suporte para pendurar, que é executado à forja. Os dois espelhos da candeia são recortados e picotados com um punção de bico. Esta candeia, tem como curiosidade o facto de ter dois recipientes, sendo que o de cima serve para depositar o azeite que alimenta a torcida, e o de baixo para aparar algum pingo de azeite, do pavio colocado no recipiente superior, evitando assim que pingasse para o chão. Tendo em conta o seu desenho rendilhado, a parecer-se com um bordado, é considerada uma candeia rica. Criação: Autor desconhecido. Desenho: Estilizado por Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos sessenta. Exemplares executados: Cerca de duas dezenas.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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Candeia Pobre Cadeira Feita em chapa de ferro, martelada com um martelo de bola. Tem como curiosidade o facto de poder funcionar com azeite ou com vela de cera, em simultâneo, ou em separado. É um trabalho que requer o domínio perfeito da técnica de martelar o ferro, mas pela sua aparente simplicidade, é considerada uma candeia pobre. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos setenta. Exemplares executados: Peça única.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Braseira Canapé Feita em chapa de ferro, trabalhada a frio, com excepção das asas e do suporte, que são forjados. O testo é martelado, onde, para além do martelo, é apenas usado um punção, feito propositadamente para este trabalho. Trata-se da cópia de um original, provavelmente, do Século XIV, que se encontra num dos Museus de Lisboa. Criação: Autor desconhecido. Desenho: Estilizado por mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos setenta. Exemplares executados: Dois.
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Fruteira Cadeira Considerada um trabalho escultórico, de muito difícil execução, feito à forja, com excepção das folhas, que são trabalhadas a frio. A ligação das uvas aos restantes elementos é assegurada através de soldadura a autogénio. As raízes são feitas de arame redondo, onde está desenhada, para além da data em que a fruteira foi terminada, o nome do autor. Criação e desenho: Mestre Carolino. Trabalho: Terminado em 25 de Fevereiro de 1974. Exemplares executados: Peça única.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Santo António Canapé Feito em chapa de ferro, trabalhada a frio, e a bordadura, em arame quadrado, torcido igualmente a frio. Os recortes para fazer a imagem do santo, são feitos, usando uma broca, uma lima e um punção. Criação: Autor desconhecido. Desenho: Estilizado por Mestre Carolino. Trabalho: Efectuado nos anos oitenta. Exemplares executados: Vários.
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Trabalho Executado pelo
Mestre Jo達o
Tapadejo
Pazinha de Brazeira Trata-se de um trabalho misto, (forjado/frio) e com excepção das duas folhas, é feito de uma só peça. Do meio para baixo, é efectuado à forja e a parte superior, trabalhada a frio, usando brocas e limas. Dadas as suas características, não é de fácil execução, pois exige o domínio perfeito do material que é o ferro. Criação e desenho: Mestre João Tapadejo. Trabalho: Efectuado nos anos cinquenta. Exemplares executados: Peça única.
C a ro l i n o Ta p a d e j o f i l h o
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As Têmperas Têmperas são o método a partir do qual se consegue conferir maior rigidez aos metais, sobretudo ao aço, mergulhando-os, no estado incandescente, numa superfície líquida, especialmente água. Nas oficinas de ferreiro, era frequente temperaramse ferramentas para a agricultura, para a construção civil, para uso doméstico, para armas de caça, para os veículos automóveis, etc. Nos anos quarenta e cinquenta, na nossa oficina, o meu avô e o meu pai temperavam também algumas das ferramentas com que trabalhavam, por não existirem à venda no mercado e, quando existiam, eram demasiado caras para as bolsas mais vazias. Assim, os martelos, os cinzéis, os ponteiros, os punções, os martelos, as brocas, os compassos, etc., eram fabricados e temperados pelos mestres. Entretanto, aparecem outras empresas a comercializar todo o tipo de ferramentas, o que fez com que o preço baixasse, embora o meu pai tenha continuado a produzir algumas para poder fazer determinados serviços. Também temperavam todo o tipo de utensílios para uso agrícola, como enxadas, enxadões, sachos, picaretas, machados, etc. Para temperar as ferramentas quase sempre utilizavam a água e, para outras ferramentas, o óleo queimado. Para os machados utilizados na tiragem da cortiça, o meu 152
M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
“...método a partir do qual se consegue
conferir maior rigidez aos metais, sobretudo ao aço, mergulhando-os, no estado incandescente, numa superfície líquida, especialmente água.” avô usava cornos de vaca que, devido à sua curvatura, encaixavam no corte convexo dos machados que uma vez incandescentes, entravam pelos chifres dentro e, de seguida, eram mergulhados na água, conseguindo, assim, um arrefecimento homogéneo. O mestre Carolino resolveu fazer algumas experiências para conseguir obter melhores resultados nas têmperas e, assim, descobriu que o sabão caseiro, dissolvido em água, era excelente para temperar ferramentas de corte, sobretudo enxadas. Então, um dos aprendizes pegava num bocado de sabão e esfregando-o pelas mãos ia-o dissolvendo para dentro do bidão das têmperas, até se desfazer totalmente. Este método permitia que a ferramenta ao sair da forja no estado incandescente, entrasse de imediato na água ensaboada e o arrefecimento processava-se de forma lenta, adquirindo a rigidez considerada apropriada à sua função. Para testar a têmpera, o mestre pegava na ferramenta e dava-lhe umas pancadas com o corte na base da bigorna que era constantemente massacrada e ainda hoje é possível ver os muitos golpes que lhe foram infringidos. Para temperar as molas das espingardas caçadeiras, o meu pai descobriu a seguinte fórmula: enchia uma lata de 1/8 de litro com azeite cru até um grau de acidez, depois prendia a mola a um bocado de arame de fardo e com o maçarico de soldar aquecia a mola e, quando entendia que já tinha a incandescência adequada, mergulhava-a na lata do azeite até arrefecer completamente. O azeite era sempre substituído em cada mola que temperava.
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A Soldadura Desde tempos remotos que o homem descobriu formas de ligar vários fragmentos de metal entre si. O sistema mais antigo que se conhece é o do caldeamento, que une dois bocados de ferro através do aquecimento a alta temperatura dos elementos a unir sendo, a seguir, retirados da forja, colocando-os rapidamente na bigorna, sobrepondo-os, dando-lhe fortes pancadas com o martelo, conseguindo assim uma fusão consistente. Por vêzes utilizava-se areia fina para ajudar a consolidar o pegamento e já no tempo do meu avô usava-se também uma pasta que chegava de Espanha através do contrabando. Esta operação tinha que ser feita com muita rapidez, para evitar a perda de temperatura dos materiais a caldear. Mais tarde, e embora não sendo considerado soldadura, aparece o cravamento, também conhecido por rebitagem, que consiste em unir duas ou mais peças através de um ou mais furos, onde se introduz um rebite ou remacho em ferro destemperado, que depois é martelado, juntando assim as duas partes. Um outro modelo de pegamento para metais descoberto pelo homem, foi a soldadura a estanho, cujos instrumentos são os seguintes: prepara-se uma barra de estanho, entretanto fundida com uma percentagem de chumbo, criando uma vareta a que
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
“...caldeamento que une dois bocados de ferro através do aquecimento a alta temperatura...” se dá o nome de solda; destempera-se um pouco de ácido sulfúrico com pedaços de folha de zinco para ficar menos corrosivo e arranja-se uma pequena barra de cobre ou de bronze, quadrada, com cerca de dez centímetros, que se espalma numa das pontas e na outra, prende-se um varão de ferro redondo com um cabo de madeira na outra extremidade. A esta ferramenta dá-se o nome de ferro de soldar. A soldadura a estanho, é normalmente utilizada para unir chapas de bronze, de cobre, de latão, de zinco, ou de chumbo. Para proceder à soldadura, aquece-se o ferro de soldar no fogo, limpam-se com uma lima ou com lixa as partes que pretendemos unir, desoxidam-se com o ácido já destemperado. A seguir, com o ferro quente derrete-se a solda sobre a zona a soldar, espalhando-a de modo a que fique mais homogénea e consistente. Já no século vinte chega a Portugal a soldadura oxi-acetilénica, também conhecida por soldadura a autogénio e, em 1945, o mestre Carolino adquire um equipamento deste tipo para poder executar outros serviços, nomeadamente nos domínios da serralharia civil. Para efectuar soldaduras a autogénio é necessário o seguinte equipamento: uma botija de oxigénio e o respectivo manómetro, um gerador para produção de acetileno, vários maçaricos, duas mangueiras de borracha, varetas de solda e óculos de protecção. Para se iniciar uma soldadura, coloca-se a peça de aço ou de ferro que pretende soldar-se no local apropriado, pega-se no maçarico com o bico adequado, abre-se a torneira ligada ao acetileno e
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” Para o ferro fundido, descobriu que a potassa era também um excelente desoxidante e muito mais barato.”
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acende-se o maçarico. A seguir, abre-se a torneira do oxigénio e faz-se a mistura com o acetileno. A junção ente os dois elementos em chama, faz com que o bico do maçarico fique com um dardo pontiagudo que se adequa à soldadura que se pretende fazer. De seguida, aponta-se o mesmo na direcção do local a soldar e, com a vareta junto à peça, aproxima-se o dardo que aquece o local pretendido a uma temperatura tal que derrete a vareta e a peça, proporcionando a fusão dos elementos, fazendo com que a soldadura fique solidificada. Com o mesmo método podem soldarse outros tipos de metais, como o ferro fundido, o latão, o cobre, o bronze e ainda ligas como o alumínio ou o antimónio. Nestes casos, tem de ser utilizado um desoxidante apropriado a cada um dos metais. Nos anos cinquenta os desoxidantes que existiam no mercado eram muito caros, sobretudo o que era utilizado no latão, no cobre e no bronze, a que se dava o nome de “Tobi.”O mestre Carolino que considerava o preço daquele material um exagero, resolveu começar a fazer algumas experiências, ensaiando outros produtos e assim, um dia, descobriu que o borato de sódio produzia o mesmo efeito e custava apenas um escudo cada carteira, que dava para o mesmo número de soldaduras que o outro que era muito mais caro. Para o ferro fundido, descobriu que a potassa era também um excelente desoxidante e muito mais barato do que aquele que utilizava até então.
Memória de Memórias e outras Histórias
Também durante o século passado, chega a soldadura a electrogéneo. Este método, consta de um aparelho eléctrico que, por intermédio de um transformador, leva a corrente eléctrica já transformada através de um cabo a um alicate onde se prende um eléctrodo. Entretanto, um outro cabo com uma pinça na extremidade é amarrada à peça que se quer soldar, fazendo massa. Terminada esta operação, o soldador pega na máscara de protecção e promove o contacto do eléctrodo com o local escolhido. De imediato, ao percorrer a zona que se quer soldar, o eléctrodo começa a derreter-se, solidificando a zona onde se pretende intervir. Com este método podem soldar-se ferro, aço, ferro fundido, alumínio, ou outros metais.
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Posfácio O Antropólogo Francisco Martins Ramos escreve no prefácio de “Memória de Memórias e outras Histórias” “…este livro vem confirmar que o mosaico cultural que é o Alentejo possui um manancial de temas por descobrir, desvendar e divulgar.” Nada mais verdadeiro do que esta afirmação. Dela partiremos para uma reflexão sobre esta obra de Carolino Tapadejo filho, com quem trabalhamos na década de 80 do passado século, que sempre admiramos e em quem fomos descobrindo um manancial de possibilidades que se têm concretizado ao longo dos anos e que afloram actualmente neste livro. Não nos interessa rotulá-lo: de carácter etnográfico, histórico, antropológico, memorialista. Tem tudo isso, mas para nós o mais importante é o facto de se tratar de uma narrativa viva, que mergulha com realismo no passado mais ou menos recente (e mesmo remoto) para nos transmitir a força e o valor do quotidiano e os traços de personalidades de que não costumam ocupar-se os jornais ou as revistas e muito menos alguns Historiadores.
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A obra centra-se naquela pequena oficina de ferreiro, situada no nº 27 da Rua Nova, em castelo de Vide. Trata-se de um espaço limitado, com acesso a outro mais amplo - a rua, situando-se esta no coração da Vila. O narrador fala-nos, logo no início, da “alma” desse recanto que enraíza no século xvi e cuja face mais nítida é Mestre Carolino Tapadejo pai que a “povoou” durante mais de meio século. Mas nos 3 espaços citados e nesta personalidade reflectem-se os acontecimentos mundiais e nacionais – Segunda Grande Guerra, Primeira República em Portugal, Estado Novo, Pós Vinte e Cinco de Abril: consequências, factos, doutrinas tudo genuinamente local. A sociedade da Vila, contida nas velhas classes até 74, parece desfilar pela Rua Nova com as suas possibilidades económicas, os seus hábitos, as suas festas, as suas intrigas. A rua é um espaço privilegiado com oficinas, casas de comércio, tabernas modista e suas armadilhas de carnaval. Dela se evoca o som dos martelos dos ferreiros, a alegria da pequenada em dias de matança de porco, o cheiro dos petiscos preparados nas forjas. É através dela que confluem para o número 27, caixeiros-viajantes, carpinteiros, aquistas, gente da Comunicação Social, elementos da G.N.R e da Polícia Política. A rua é um filão dinâmico que percorre a narrativa, permitindo visões alargadas.
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No número 27 vive, na segunda metade do século xx, um artesão que ganha com honradez o pão quotidiano, manobrando o ferro, eterno estudioso da sua Arte e sempre atento às modernas técnicas e materiais, bom cozinheiro, desenhador, escultor e músico. É arrebatado quando esgotada a paciência, de humor variável como todos os artistas, de uma bondade serena traduzida nos gestos simples de cada dia, bom utilizador da ironia como todo o castelovidense, com um grande sentido de família e capaz de perdoar e proteger os inimigos. Sem esquecer as descobertas de métodos simples de têmpera, queremos salientar a delicadeza, o “movimento” a elegância, a expressividade, o equilíbrio de enfeites do grande artista que passou ao ferro a sua sensibilidade apurada de criador e lhe deu vida, uma vida que nos interpela e apraz em cada objecto que o seu talento e as suas mãos produziram. É que, mesmo quando intérprete de arquitectos e escultores Mestre Carolino conferiu sempre à sua obra artística um cunho pessoal. A musealização da sua oficina é, para além deste livro e de outros que a sua obra venha a inspirar, parte da homenagem que Castelo de Vide e o País lhe devem. Quanto a este livro da autoria de Carolino Tapadejo filho, diremos que não se esgota na homenagem prestada com todo o coração a seu pai.
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Memória de Memórias e outras Histórias
Outras personalidades e vários acontecimentos são evocados numa narrativa corrente e natural como o manar de uma fonte. Conhecimento da realidade focada, dinamismo, ironia e humanismo são outras características da obra. Fica-nos a sensação de uma lagoa calma pela qual perpassa uma brisa de graça, de amizade, de amor às coisas simples, mas que se encrespa por vezes pela amargura gerada pelas injustiças sociais. Pombal Velho, 31 de Janeiro de 2011 Maria de Guadalupe Transmontano Alexandre (Professora, Etnógrafa e Poetisa)
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“ Fica-nos a sensação de uma lagoa calma pela qual perpassa uma brisa de graça, de amizade, de amor às coisas simples, mas que se encrespa por vezes pela amargura gerada pelas injustiças sociais.”
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Comentários “ Reconhecimento e gratidão a quem, de forma generosa se dignou comentar este modesto trabalho.” 162
Memória de Memórias e outras Histórias
Zé Carlos e Maria Rosalina É necessário ter uma memória muito organizada para conseguir, passados tantos anos, por estas histórias de pé. Mas nisso o nosso pai é perito! Tem sempre uma anedota ou piada para contar, por norma uma pessoa bem disposta. Sempre com projectos disto ou daquilo, com espanhóis ou italianos. Facilmente tínhamos ou temos alguém, ou até mesmo grupos de pessoas, a almoçar em nossa casa, pessoas essas que na realidade não conhecíamos. É gratificante ter um pai que já deixou e, continua a deixar obra. É reconhecido pelas pessoas mais humildes às mais graduadas, sempre com a mesma postura e trato. Até gostaríamos de ter tido, em miúdos, o nosso pai mais tempo para nós (aqui o Zé Paulo como neto já teve mais sorte!)...mas a sua maneira de ser leva a que seja por natureza um homem do mundo, voltado para o mundo. Inúmeras vezes ouvimos o nosso pai contar e recordar histórias e peripécias passadas na oficina, ou como ele diz “na Rua Nova”. Para nós, uma justa homenagem a todos quantos passaram por aquela “escola”, aprendiam a ser ferreiros, serralheiros, canalizadores, mas, e acima de tudo, cresciam e aprendiam a ser Homens, também, uma Grande Homenagem aos Pioneiros e seus Professores, os Mestres, ao avô Carolino...e Bisavô João. Um relato puro de quem, não só passou, como aprendeu com estas e outras vivências.
Esperemos que este livro seja o início de uma série de histórias que por aí possam vir..... Para, principalmente, nos ensinar... Zé Carlos e Maria Rosalina
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Catarina Matos Foi enorme a alegria e profunda a gratidão que senti ao ser convidada para escrever estas considerações sobre a presente obra. “Memórias de Memórias e Outras Histórias” constitui uma envolvente narrativa do contexto sociocultural de Castelo de Vide de finais do século XX, desenvolvida em torno da dinâmica da oficina de ferro de Mestre Carolino (pai), escrita por Carolino Tapadejo (filho).
“... testemunhar o encanto e brilho no olhar ao falar daquilo que mais lhe é próximo e querido - a sua terra e as suas gentes.” 164
Na qualidade de colaboradora e amiga do autor tive o privilégio de escutar, em diversas ocasiões, muitos dos relatos aqui presentes e testemunhar o encanto e brilho no olhar ao falar daquilo que mais lhe é próximo e querido – a sua terra e as suas gentes. E quem como Carolino Tapadejo poderia escrever um relato tão apaixonante das histórias e gentes da sua terra? Só alguém que, como ele, ama a sua terra, se orgulha da sua história e preserva a sua identidade. A oportunidade de colaborar com Carolino Tapadejo entre Setembro de 2004 e Novembro de 2007 foi para mim uma experiência de singular valor e enriquecimento profissional e pessoal. Permitiu-me conhecer um homem simples e prático, de grande valor intelectual, senhor de inigualável sentido de humor, repleto de observações inteligentes e detentor de uma visão tão atenta e actual que o destaca do contexto da sua geração. A sua extraordinária vivência ligada ao desenvolvimento rural, à defesa do património, da história, cultura e etnografia, à preservação da natureza e luta contra injustiças sociais, premeia quem o rodeia e está próximo com múltiplos e variados ensinamentos. Tratando-se de um cidadão atento e preocupado sabe como ninguém contagiar quem o rodeia com valores e princípios que ficam para sempre. Obrigado Carolino Catarina Matos
Memória de Memórias e outras Histórias
Tozé Miranda Escrever este breve comentário ao livro que se nos apresenta, faz-me recuar alguns anos em direcção à minha infância e inevitavelmente aos primeiros anos da minha vida adulta. Serei dos poucos, que tive o privilégio de conviver em simultâneo com três gerações da família Tapadejo: Com o Mestre Carolino de Jesus, com Carolino e seus irmãos e com os netos do Mestre. Tenho portanto legitimidade para escrever o que me vai na alma, sem subterfúgios de querer agradar ou desagradar a quem quer que seja, sobre uma obra que li atentamente e que, confesso, embora não tenha vivenciado a maioria dos seus relatos, deles já tinha conhecimento através da facilidade com que se conhecem factos, mais ou menos reais nesta nossa querida vila. É um livro que relata episódios de uma época rica em acontecimentos, mas também rica em pessoas que faziam o dia-a-dia da nossa vila, muitas delas dedicadas aos seus ofícios e a um tecido económico aparentemente bastante mais forte do que aquele em que vivemos nos dias de hoje. Recordo-me dos dias onde, portas meias onde eu morava (utilizava como armazém o rés-do-chão da casa dos meus pais), Carolino de Jesus Tapadejo Calado trabalhava, qual Mestre, no seu ofício. Ora, qualquer ofício se constitui a partir de uma actividade necessária à vida do grupo social. Não se define mas descrevese, não se baseia numa ideologia mas na qualidade do que é fabricado. Também o Mestre Carolino não se definia, mas descrevia-se. O empenho que colocava na sua obra e a verticalidade da sua personalidade dava aos seus clientes a confiança necessária para a realização de qualquer trabalho. O carinho que tinha para comigo, era o mesmo que havia
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tido para com o meu pai nos tempos que passaram juntos, e para com a minha avó, a Menina Leonor, como gostava de lhe chamar. Tal atitude não deixava de ser estranha uma vez que a sua postura por vezes rude contrastava com as suas acções. Mas a postura do Mestre Carolino não tinha aparecido do acaso. Sofrido e calejado de tanto lutar pelas suas ideias e valores, sempre considerei natural a sua forma de estar. E numa altura em que relembramos os 100 anos da implantação da República no nosso País, é justa a homenagem que se lhe faz com este livro. O Mestre Carolino, republicano convicto, herança forte do seu pai, era um homem de porte; físico e intelectual. Terá educado os seus filhos da mesma forma. Um deles autor desta “Memória de Memórias e outras histórias” Com emoção, com facilidade e acima de tudo com a frontalidade a que Carolino Coimbra Tapadejo sempre nos habituou na forma como defende os seus ideais, esta obra é espelho da liberdade pela qual o seu pai lutou e que ele (filho) ajudou a construir enquanto actor privilegiado da cena política e da coisa pública, e acima de tudo enquanto Homem. “Porque somos Homens, Seres inteligentes e livres, chamados a lutar por esses dons na vida, formamos a nossa opinião e exprimimos as nossas ideias…” refere num dos seus discursos, uma das grandes figuras do nosso País, entretanto já desaparecida. Talvez seja essa frontalidade o mais difícil no convívio com Carolino. Pela amizade que lhe tenho sou dos primeiros a reconhecerlhe os defeitos, mas felizmente, ao contrário de muitos, lhe reconheço as muitas qualidades. A exposição pública e as decisões que se tomam, muitas contra interesses instalados, fazem com que sejamos amados ou
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Memória de Memórias e outras Histórias
odiados, reconhecidos por muitos, vilipendiados por outros. E a nossa vida acaba por ser um reflexo de tudo isso. Os desafios que me tem lançado, os conselhos que me tem dado, a frontalidade que me tem ensinado a pôr em prática e a amizade que comigo tem partilhado, ilustram bem a têmpera com que foi forjado. Mostram o seu carácter, tomando a mesma forma, quando está só ou acompanhado, no vazio ou na multidão, no caos ou na ordem. É por isso, que servindo esta sua obra para homenagear os seus antepassados, a quero aproveitar, se é que me é permitido, para também o homenagear a ele próprio. Abraço, Tozé Miranda
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“... tornando Raquel esta história Memória de memórias e outras histórias...sem dúvida o título para um livro que nos contextualiza muito bem a muito adequado nível histórico, transportando-nos para a importância do ofício, o sacrifício do passado, valores e cultura outrora honrosos, interessante, um para hoje em dia esquecidos... ensinamento, O autor prende-se muito nos detalhes, mostrando ser muito nos seus acontecimentos, aliando imagens igualmente uma arte que realista realistas e adequadas tornando esta história muito interessante, ensinamento, uma arte que se esculpe até nos homens se esculpe até um com coração de ferro! Uma honra para todos os que puderam essas histórias, um orgulho para todos aqueles que nos homens vivenciar conhecem este grande homem e uma verdadeira homenagem a com coração de seu pai, mestre Carolino! registada! ferro!” Marca Com muita amizade, Raquel Monteiro
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Memória de Memórias e outras Histórias
Mafalda Dourado Conheci o Carolino Filho já no tempo em que os animais falavam, quando tive a sorte de poder escrever a sua história de vida para o curso de antropologia que frequentava então. Não estava preparada para a minha intervenção dinâmica na investigação e que consistiu em correr atrás dele, do nascer ao por do sol e mais para diante, observando participativamente a sua história contemporânea enquanto lá ia coleccionado os episódios em que ele arrumava o seu passado e mo ia generosamente oferecendo, com as cores e os sabores da vida e da história de Castelo de Vide. Um dos momentos mais marcantes do périplo foi precisamente a contemplação das peças de arte do Mestre Carolino, dignas do museu em que felizmente estarão, cuja história e destino pude hoje ler, com o pormenor da paixão que o seu filho nutre pelas pessoas e pelos costumes que cruzam a sua vida. Honra-me profundamente a oportunidade de ler em primeira mão esta obra e espero com ansiedade outras produções deste verdadeiro etnógrafo e percursor das redes sociais que é o Carolino Tapadejo. Mafalda Dourado
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Daniel Carolino Tapadejo, para mim, o Sr. Carolino, convidou-me a escrever um breve comentário ao livro que o leitor tem agora entre mãos. Prefiro, no entanto, concentrar-me essencialmente no autor. Constitui para mim um enorme prazer dedicar estas linhas a alguém que admiro. Admiro o Sr. Carolino. Admiro a sua lucidez de pensamento e o seu notável talento para contar histórias; umas verdadeiras, outras nem tanto! Conheci o Sr. Carolino há muitos anos, era eu ainda um miúdo. Aprendi a aprender com ele e a respeitá-lo. Devo ao Sr. Carolino muito do que hoje sei sobre o passado da minha família e jamais saberei como lhe agradecer o gesto que teve para com o meu padrinho, Manuel Carreiras. Neste livro, o Sr. Carolino relata parte do que viu e do que ouviu ao longo de muitos anos, uma vida cheia de vivências, de contactos, de histórias. Uma vida em Castelo de Vide, a terra que o viu nascer, a terra que admira e que o admira. O epicentro da narrativa encontra-se na Oficina do Ferreiro, Mestre Carolino – seu pai – e entrelaça-se depois, como que forças de Porter, no emaranhado de relações, com clientes, fornecedores, empregados, aprendizes e colegas, que a partir daquele espaço se estabelecem, nos encontros e nos desencontros, tão castelo-videnses, dando origem aquilo que se pode assemelhar a uma breve história da vida quotidiana da vila, naquele período. O Sr. Carolino nunca sonhou com a riqueza material, preferiu sempre a recompensa da gratidão. Exímio pregador de trapaças e de “peças” nas quais também eu já caí, o Sr. Carolino é, neste tempo e por isso, um grande guardião de uma herança tão castelo-vidense, tal como ele. Um abraço amigo, Daniel 170
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Maria Tavares Transmontano ” O fruto é Quando a árvore é boa, a natureza não lhe nega o fruto.
O fruto é o livro que o Senhor escreveu, e que merece ser guardado em Oratório de Verdade. Um livro é a bandeira onde flutua a nossa independência. Ser independente é apenas criar o nosso gosto de Mulher ou Homem. É não ficar preso à escrita de seda, é saber escrever, em grosso linho mourisco, palavras de afecto e de verdade. Pombal Velho, 03 de Fevereiro de 2011 Maria Tavares Transmontano
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o livro que o Senhor escreveu, e que merece ser guardado em Oratório de Verdade. “
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“... uma profissão, plena de saberes e técnicas ancestrais, ...”
Serafim Tempos houve em que os homens ostentavam orgulhosamente ao peito o estandarte de uma profissão, plena de saberes e técnicas ancestrais, bebida directamente dos ensinamentos dos seus pais e avós, caldeada no ambiente, duro mas pleno de humanidade, das oficinas dos mestres e dos aprendizes. Mestre Carolino Tapadejo (Pai) integrou plenamente essa espécie ameaçada de seres humanos. Mestre ferreiro, artista insigne, teve o azar de nascer em Portugal. Na América ou na maior parte dos países europeus, com outras vivências e experiências mas com o mesmo saber, estaria hoje representado em museus e colecções de arte de todo o mundo. Que dizer de tantas das suas peças? Que dizer da sua taça composta com uvas e folhas de videira, autêntica obra-prima, felizmente ainda na posse da sua família, e que esperamos rever brevemente na sua Oficina-Museu em organização. A extraordinária obra que agora o seu filho, Carolino Tapadejo como seu pai, agora edita, é um tributo de amor, respeito e agradecimento a seu Pai e Mestre. Agradecidos estamos todos, a ambos, pelo exemplo inexcedível de humanidade. Obrigado Carolinos. Beirã, 25 de Janeiro, faz frio e vento, e passei o dia a plantar árvores, algumas em memória de Mestre Carolino, ano de 2011. Serafim Riem
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Memória de Memórias e outras Histórias
Maria João e Rui Cunha Conhecemos o Carolino, filho, no início dos anos 80, pouco tempo depois de ter sido eleito Presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, tendo-se consolidado, desde então, uma relação de amizade que nos fez participar em variados projectos comuns, partilhando, muitas vezes, conceitos e ideais. Como autarca, a princípio pouco compreendido e até contestado, o Carolino conseguiu pôr Castelo de Vide no mapa do turismo interno, implementando as medidas e as infra-estruturas necessárias para o efeito. Paralelamente foi, no entanto, na defesa dos valores do ambiente que ele mais se destacou, evitando, por exemplo, que o concelho de Castelo de Vide fosse invadido pela onda de florestações maciças com eucaliptos, que foi “moda” nos anos 80. Actualmente, passados todos estes anos, o nosso amigo Carolino continua a ser “a referência” em Castelo de Vide, visto que, até à data, não surgiu ninguém tão dotado nem com uma visão tão clara do que é o desenvolvimento regional – assente numa sábia articulação das questões da cultura, do ambiente e do ordenamento do território, com o desenvolvimento social e económico. O então justamente conhecido como “autarca do ambiente” aplicava já, na prática, por razões de clarividência e bom senso, o posteriormente tão teorizado e ainda pouco aplicado “Desenvolvimento Sustentável”. Quanto ao Carolino pai, conhecemo-lo também nos anos 80, pela mão do orgulhoso filho, que nos levou a conhecer a sua obra, as belas peças artísticas que fazia questão de continuar sempre executando como se fôra um exercício
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“... este “Catedrático da Escola da Vida”...” 173
de estilo imprescindível, e complemento necessário ao trabalho mais prosaico das encomendas à oficina. Quando o nosso amigo Carolino nos mostrou os textos que acabara de escrever e nos convidou a apoiá-lo na concretização desta bela homenagem ao Mestre Carolino, foi com enorme entusiasmo que nos dispusémos imediatamente a dar corpo a este interessantíssimo trabalho, preparando-o para edição. É que este livro não é apenas um trabalho sobre um grande Mestre artesão do ferro mas também, e para além disso, uma visão etnográfica, sociológica e antropológica que, Carolino Tapadejo filho, este “Catedrático da Escola da Vida”, nos dá de Castelo de Vide na segunda metade do século XX. Pelo muito que já fez e por tudo o que tem ainda para nos contar, este só pode ser o primeiro de uma série de trabalhos com mais “memórias de memórias” e muitas “outras histórias”. Maria João e Rui Cunha
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
Salvato Trigo A narrativa de vida, jorrada da memória e dos afectos, que se contém nas páginas deste livro de Carolino Tapadejo sobre a tradição serralheira de sua alentejana família castelovidense, despertou em mim o impulsivo desejo de registar aqui também o meu testemunho gatulatório a todos aqueles a quem Vulcano bafejou com os segredos da nobre arte do ferro! Degustei com verdadeiro prazer espiritual esta narrativa, porque nela eu próprio me projectei, filho que sou de um pai que, herdada de seu pai e meu avô a técnica da têmpera e o ritmo do malho na bigorna, ou cavalete, onde o fogo soprado pelo fole amolecia o ferro para o fortalecer, evoluiu, por autodidactismo e criatividade intuitiva, para uma serralharia artística, ora de natureza profana ora de natureza religiosa, que meu irmão foi capaz de sublimar esteticamente, espalhando-a por terras da França. A vivacidade afectiva da ilustrada escrita etno-antropológica do autor fez perpassar por meus olhos admirados e curiosos de pequeno limiano a precisão do cinzel a aguçar a foucinha, a costura perfeita dum calço numa enxada romba ou num machado cego, a curvatura perfeita duma barra de ferro a transfigurar-se em flor, a pua certeira na decoração duma chapa de portão, enfim, uma cruz a encimar epitáfios ou intenções votivas. Era o tempo em que os sonhos da infância de quase todos não passavam além da aprendizagem dum ofício ou dum mester, em que o respeito pelo trabalho, doméstico, rural ou profissional, se nos impunha como norma de vida, mas em que o brio no que se fazia era princípio duma ética artesã socialmente valorizada. Assim se forjava o nosso carácter e se desenvolvia a nossa personalidade de miúdos mal chegados da escola e logo transformados em ajudantes
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“... tal como eu, tem certamente saudades dos espaços, onde organizávamos familiarmente a nossa geometria de vida,...” 175
ou aprendizes, porque era tradição herdar a profissão do pai ou aprender outra com um mestre de confiança. Carolino Tapadejo, tal como eu, tem certamente saudades dos espaços, onde organizávamos familiarmente a nossa geometria de vida, mas resgata-nos de tempos em que até os silêncios dos nossos férreos pensamentos, embevecidos por sacadas e balustres de escadas, nos assustavam. Por isso, a liberdade tem para nós muito mais perfume, muito mais sabor, mesclados, porém, com os cheiros e os gostos característicos das forjas, onde mãos honestamente calejadas ganhavam artisticamente o seu pão. Nas terras do Lima ou nas de Castelo de Vide, num Portugal que foi para que este agora o seja diferentemente! Obrigado por esta narrativa tão alentejanamente limiana! Salvato Trigo
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M e m ó r i a d e M e m ó r i a s e o u t ra s H i s t ó r i a s
Com dois anos de idade, vê os pais separarem-se, ficando a viver com o seu pai e com a sua avó paterna, enquanto a sua mãe fixava residência em Marvão com a filha Rosária, de quatro anos. Aos oito anos já andava de roda da forja e despontava nele uma aptidão invulgar para o desenho.
Carolino Tapadejo filho
Carolino de Jesus Tapadejo Calado, nasce em Castelo de Vide no dia 25 de Fevereiro de 1924, filho de João Batista Tapadejo e de Fortunata da Estrela Calado.
Carolino Tapadejo filho
Com onze anos, entra para a escola de música da Banda União Artística e no ano seguinte estreia-se como executante, tocando então bombardino. Algum tempo depois, opta pela trompete, por quem se havia de “apaixonar” por mais de trinta anos, quer na filarmónica, quer no “Bando Carioca”, orquestra que, com um grupo de amigos, fundou nos anos cinquenta.
Carolino Coimbra Pina Tapadejo, nasce em Castelo de Vide em 1947. Em 1958, inicia a aprendizagem do ofício de ferreiro, na oficina de seu pai, e entre 1968 e 1971, cumpre o serviço militar, no Regimento de Transmissões, na Cidade do Porto.
Em 1963, é convidado e aceita produzir esculturas em ferro, destinadas aos Estados Unidos da América. Em Fevereiro de 1974, termina a fruteira em ferro forjado, que foi classificada como a obra artística mais relevante da sua vida e que havia de inspirá-lo no futuro em relação a todos os outros trabalhos que foi desenvolvendo, com vista à criação de uma Sala Museu na sua própria casa. Durante a década de oitenta, dedica-se ao desenho e produção de móveis em ferro para a sua sala de visitas. No final de 1989, é acometido por um Acidente Vascular Cerebral, que lhe debilitou os membros superior e inferior do lado direito. No início dos anos noventa e em recuperação do AVC, continua a produzir os trabalhos em ferro que havia iniciado anteriormente, aproveitando para efectuar a sua recuperação física. No dia 3 de Agosto de 2001, é vítima de um segundo Acidente Vascular Cerebral e é internado no Hospital de Portalegre, onde vem a falecer, vinte e quatro dias depois. Eram 7 horas da manhã do dia 27 de Agosto.
Mestre Carolino |
No início de 1961, na sequência de uma denúncia anónima, recebe a visita da PIDE, que lhe confisca dezasseis armas de caça que estavam na oficina a aguardar reparação, apesar de estarem devidamente legalizadas. Em Agosto do mesmo ano morre o seu pai e, de seguida, vê suspensa por dois anos a pena de seis meses de prisão que lhe havia sido aplicada, em consequência da apreensão das armas de caça.
do do
No início de 1949, volta a casar, desta vez com Rufina de Alegria Terceiro Alexandre e em Fevereiro do ano seguinte, nasce o seu segundo filho, Jorge. Em Outubro de 1954, vem ao mundo o seu terceiro filho, Mateus e em Março de 1960, a sua mulher dá à luz o seu quarto e último filho, José Alberto.
Ferreiro
Em Agosto de 1947, morre a sua mulher, Rosalina, na sequência do parto do seu primeiro filho, Carolino.
A Oficina de
Em 1945, regressa a Castelo de Vide e à oficina de ferreiro onde havia aprendido o ofício com o seu pai. O inconformismo relacionado com a estagnação da profissão era nele uma constante, pois tinha presente que era indispensável mudar e modernizar muita coisa. Apesar de alguma oposição de seu pai, inicia então uma nova e longa caminhada.
Memória de Memórias e Outras Histórias
Quando perfaz vinte anos, baptiza-se e casa-se com Rosalina Coimbra Pina, sendo nesse ano incorporado no exército, onde permanece cerca de nove meses.
A Oficina de Ferreiro do
Carolino Mestre
Memória de Memórias e Outras Histórias
Em 1975, assume o cargo de presidente da Comissão Administrativa da freguesia de São Tiago Maior, e no ano seguinte, é eleito vice--presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide. Em Janeiro de 1980, toma posse como presidente da Câmara Municipal de Castelo de Vide, cargo que ocupou até final de 1989. Entre 1997 e 2008, exerce o cargo de Provedor da Misericórdia de Castelo de Vide. Em 2001, a convite do Padre Dr. Vítor Melícias, assume o cargo de Delegado para as Relações Internacionais da União das Misericórdias Portuguesas e, em 2006, é convidado para implementar e coordenar a TURICÒRDIA - Rede de Turismo Social da União das Misericórdias Portuguesas. Como Coordenador, e como Formador, tem participado em vários programas de iniciativa Comunitária, em Portugal e noutros países da Europa. Como convidado, tem proferido Palestras, abordando temas relacionados com a história de Castelo de Vide, Turismo Cultural ou Problemas Sociais. Estas Intervenções têm vindo a ter lugar, para além de Portugal, nos seguintes Países: Espanha; Grécia; Itália; França; Holanda; Inglaterra; Bélgica; Alemanha; Dinamarca; Suécia; Finlândia e ainda no Canadá e no Brasil. Tem participado em inúmeros programas de rádio e de televisão e, como Cronista, vem assinando vários trabalhos, para diversas Revistas portuguesas e estrangeiras. Ao longo da sua vida, tem tido como principal preocupação a sua valorização profissional e cultural, tendo no seu currículo, entre outras, as seguintes qualificações: Curso de Gestão por Objectivos; Curso de Escultura do Ferro; Curso de Especialização em Desenvolvimento Local. Das mais de duas dezenas de distinções que lhe foram outorgadas, destacam-se as seguintes: Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, (1985); Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, (1990); Prémio Nacional da Conservação da Natureza, (1996). carolinocptapadejo@gmail.com