Prévia do Livro Red Luna: A Chave Larshan

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Andar não era a forma mais digna de um príncipe viajar. Mesmo assim, sem escolta ou pompa, era assim que Arjuna Pandava percorria o caminho íngreme que levava ao vilarejo, no vale de Manipur. Não que fizesse questão de estar acompanhado pelo seu séquito de criados. Nem cansado estava e poderia andar por dias a fio, se necessário. Só se incomodava com a demora. Se usasse uma vimana − seu veículo flutuante −, poderia percorrer o caminho em minutos, mas esse não era exatamente o método de transporte mais discreto que existe, e todos saberiam da sua chegada ao vilarejo. E para sua missão, discrição era tão essencial quanto chegar no momento exato. – “Durante o grande festival na sagrada Manipur, no templo dos Nagas, encontrarás aquela que esculpe a luz...” – Arjuna lia para si a previsão feita por seu irmão, o astrólogo Sahadeva. Queria fixar na mente as palavras exatas do curto texto. Seus cabelos negros e lisos brincavam ao vento quando ele abaixou o capuz para olhar melhor à sua volta. Após se certificar do caminho em seu mapa, voltou a se cobrir, escondendo o rosto de pele arroxeada. Era um jovem magro, mas surpreendentemente 4


forte, como qualquer deus-mago. Sua postura ao andar irradiava confiança incomum, mesmo para um nobre. Apesar de ser um dos príncipes da Guilda, Arjuna não era de forma alguma acomodado à vida palaciana; pelo contrário, mostrava-se o mais aventureiro de seus irmãos e o que mais tinha viajado para além das terras Ignis. Conhecia boa parte da Grande Índia e um pouco além. A visão do “lago flutuante” indicava que estava chegando ao vale. Até o cheiro era diferente do ar poeirento da trilha montanhosa, lembrando a terra úmida após a chuva. Inúmeras ilhas verdejantes, que de longe pareciam enormes plantas de lótus, espalhavam-se por até onde a vista alcançava. Eram montes de junco e húmus que, trazidos pelos rios que ali desembocavam, formavam ilhas flutuantes ‒ daí o nome do lugar. Normalmente, as ilhas eram tranquilos locais de pesca para os que moravam por ali, mas nesse dia sem nuvens apresentavam-se como os lugares mais disputados para assistir às corridas de canoas que abriam o festival dos nagas. As ilhas balançavam, mal suportando a multidão de torcedores que se acotovelavam enquanto encorajavam os remadores em altos brados. 5


– Parece que o festival já começou... Maldição... Um clarão veio de seu ombro e uma espécie de chama animada, com a forma de uma salamandra, encarou Arjuna com senso de urgência estampado nos grandes olhos. – Não enche, Gandiva! − Arjuna respondeu amuado. – O festival dura alguns dias; esse é só o primeiro deles. Temos tempo para encontrar “aquela que esculpe a luz”! – ele tentava convencer-se do que dizia, retomando seu caminho prontamente. Não precisava ter respondido ao ser flamejante em voz alta, uma vez que os dois se comunicavam com as mentes, mas de vez em quando falava alto para enfatizar o que queria dizer. Apertando o passo, puxou de suas costas um arco de madeira, para que Gandiva saltasse dentro dele e o preenchesse com sua magia. A criatura se contorceu como se estivesse vestindo uma roupa apertada. As goratas* restantes foram percorridas rapidamente e as montanhas descortinaram-se, revelando um vilarejo em festa às margens do lago. A corrida de

*unidade de medida na Índia antiga, equivalente a 3 ou 4 km 6


canoas acabara, mas as competições do dia pareciam longe de terminar. Ao cruzar os portões do vilarejo, Arjuna buscou misturar-se à multidão entusiasmada. Os vencedores da prova eram carregados por ruas estreitas ladrilhadas, enfeitadas de bandeiras e flores. Crianças seguiam a procissão, correndo e brincando de lutas épicas, enquanto dançarinas, exuberantes em trajes espalhafatosos, rebolavam alegremente para a felicidade de quem assistia. Barracas de comida em tendas coloridas de pano impregnavam o ar com o cheiro do gengibre, do curry e dos bolinhos “momo” do Tibete, servidos com assustadores molhos de pimenta. O espírito de quem vinha ao festival era de comer e se divertir, caso não fosse possível brilhar nas competições. Arjuna procurou pelo templo dos deuses-cobras, mas sua busca não chegou a durar muito. O lugar não era nem um pouco difícil de achar, considerando quão chamativa era a construção, tanto por sua escala quanto pela rica − e duvidosa − decoração de sua fachada. Tudo girava ao redor desse local sagrado de culto, visível de qualquer canto do vilarejo. Agachado nas muradas de uma praça próxima, ele 7


observava discretamente o movimento das sentinelas naguinis* nas escadarias do santuário. Eram mulheres de pele arroxeada como a dele, embora metade humanas, metade cobras. No lugar das pernas havia uma cauda de serpente, livre de qualquer ornamento que impedisse seus movimentos rastejantes. O torso, ao contrário, era protegido por armadura até os quadris. Entre os deuses-cobras, eram as mulheres que frequentemente assumiam o papel de guerreiras. – Tantos vigias, mesmo num festival... − suspirou surpreso. Mas fazia sentido. Os nagas tinham a fama de serem guardiões de tesouros absurdamente ricos, e seus templos, verdadeiros cofres-fortes. – “Durante um grande festival na sagrada Manipur, no templo dos nagas, encontrarás aquela que esculpe a luz. Do santuário repleto de tesouros será furtada a relíquia nascida do sol.” – ele repetiu para si a previsão completa. Até onde podia observar, tudo ia bem. Pela tranquilidade das vigias, nada havia acontecido. Ou talvez o roubo ainda não tivesse sido descoberto. Arjuna es-

* nagas mulheres 8


tremeceu ao pensar nessa possibilidade. De qualquer forma, só lhe restava esperar. Acariciando o arco com os dedos, Gandiva emitiu o que parecia um ronronar. Incomodado com o tédio, o arqueiro bocejou, um gesto inconsciente trazido do tempo em que era humano.

Uma naguini vinda do festival dirigiu-se ao templo. Nada demais... Exceto pelo fato de que algo nela o incomodava, um pressentimento estranho. Ela se movimentava de um jeito esquisito, como se não soubesse rastejar direito. Às vezes sua cauda tremeluzia quando saía da sombra para o sol, como uma miragem ondulante do deserto. Arjuna levantou-se e, afundando o rosto ainda mais para dentro do capuz, seguiu-a de longe. As pessoas respeitosamente abriam passagem para ela, ou pelo menos tentavam fazê-lo, aglomerando-se ainda mais. Uma criança correu apressada por trás da deusa-cobra... E suas pernas atravessaram a cauda desta... Como se ela não fosse sólida. 9


Arjuna piscou algumas vezes, pensando se tinha visto coisas, até que finalmente entendeu o que estava acontecendo: era uma ilusão, uma escultura de luz! Num pulo, correu até ela, tentando abrir caminho pela multidão. – Draupadi! A naguini virou instintivamente o rosto ao ouvir o seu nome... E logo percebeu a besteira que fizera, expressando revolta consigo mesma. – É ela! – Arjuna gritou para Gandiva, como que quisesse a confirmação do companheiro. – Você não me escapa... − grunhiu ameaçador, enquanto apertava o arco, fazendo a salamandra soltar um leve guincho. − Socorro, irmãs! Um ignis descontrolado quer me matar! – Ela fugiu em direção às outras vigias do templo, derrubando um pedaço de pau que sustentava uma barraca de comida. A tenda caiu em cima de Arjuna, que corria em seu encalço. O jovem debateu-se ao tentar sair do mar de tecido à sua volta, sendo agarrado de repente por um par de braços da grossura da perna de um elefante. – Insolente! − O gigantesco dono da barraca chacoalhou Arjuna em meio a um monte de bolinhos esparramados pelo chão. – Vê a bagunça que fez?! 10


Vai pagar por tudo o que estragou!! – disse cuspindo, enquanto o atirava bruscamente contra o chão. Seu rosto foi descoberto, revelando seu disfarce. Ao ver que tinha destratado um deus-mago, o pobre homem ficou branco como se seu sangue tivesse se tornado água. Ele arfava como um peixe fora d’água; enterrando o rosto no chão, ajoelhou-se aos pés de Arjuna. – P-p-perdoe-me, L-lorde! – gaguejou convulsivamente. – Veja como eu trato uma divindade que visita minha tenda! Não tenho o direito de pedir perdão por tamanha ousadia! Sou um idiota! Era Arjuna que se sentia um idiota por ter perdido Draupadi. Quando se recompôs, viu-se rodeado de pessoas, algumas ajoelhadas e outras querendo tocar em sua capa, julgando-a sagrada. – Vossa divindade não é um naga! Veio de outro reino para escolher um discípulo? – um senhor perguntou. – Leve o meu filho! – suplicou uma mulher levantando no colo um menino. – Será um ótimo discípulo! – Por favor, tenha piedade e cure minhas pernas! – pediu um velho brâmane. 11


– Somos os vencedores da corrida! Gostaria de ver nossos portais-de-magia? Ficaríamos honrados! – Aquela naguini! Viram para onde ela foi? – Arjuna tentou se desvencilhar do excesso de atenção que recebia. Uma mão gelada agarrou o braço dele. – Procurando por naguinis, ignisss encrenqueiro? – disse uma vigia, tomando-lhe o arco com violência e imobilizando-o. – Sei que nosso festival atrai devas* de todos os reinos, mas um ignisss é a primeira vez que vejo! – adicionou outra, cuspindo no rosto de Arjuna especialmente ao sibilar a palavra “ignis”. – Sou um príncipe, não falarei com subalternas! Libertem-me! – respondeu Arjuna, como se sua honra dependesse de nunca dar satisfações àquele tipo de deus-mago. Estava irritado por ter deixado a situação sair de controle, mas ainda mais irritado por estar coberto de saliva de cobra. Malditos répteis que não conseguiam guardar suas línguas enquanto falavam.

* outro nome dado aos deuses-magos 12


– Como queira, moleque atrevido! Chamem o regente, para que o principezinho explique essa balbúrdia! Poucos momentos depois, um naga descia as escadarias do templo. Usava uma capa vermelha feita de pele de cobra e, ao contrário das naguinis, tinha pernas. Arjuna lembrou-se de que os nagas podiam mudar a forma de seus corpos e nem sempre mostravam todas as características de seus animais-totens. Mesmo assim, o sacerdote tinha olhos com pupilas em forma de fenda, como as cobras. – Sou Naguendra, regente de Manipur. Estou à sua altura para conversar, jovem ignisss? – disse ele sarcástico. Cuspia menos que suas subordinadas, talvez por se apresentar na forma humana em vez de “meio animal”, embora ainda falasse meio sibilado. – Exijo que me solte! O senhor precisa entender a gravidade da sit... – Arjuna, hum? Da guilda dos ignisss Pandavas? – interrompeu Naguendra, alisando o queixo e lendo essas informações nas inscrições do colar dele. – Um príncipe Pandava devia saber que ignisss não são bem-vindos em terras gaias! Qual o interesse de vocês em Manipur? – Vim aqui para impedir um roubo! Sei que há 13


regras para devas entrarem em territórios estrangeiros, mas se as seguíssemos à risca nunca chegaria a tempo de deter a ladra. Ela fugiu, mas poderia me ajudar a encontrá-la! – Que nobre da sua parte! Quer impedir um roubo a nosso templo! – O sacerdote fingiu comoção, seguida por uma gargalhada, logo acompanhada pelas naguinis ao seu redor. – Nós, guardiões de tesouros, não sabemos como cuidar de ladrões? Temos que confiar em ignisss para isso? É isso que quer dizer? – Tenho pena daquele que tiver coragem de encontrar Ulupi no santuário – gargalhou a naguini que segurava Arjuna. A sua risada de alguma maneira o afligia. Um estrondo ensurdecedor foi ouvido do interior do templo. Uma cobra gigantesca se debatia, derrubando as colunas de pedra ao seu redor com a força de sua cauda. Uma mulher controlava-a com arreios improvisados. Incrédulo, Arjuna viu que era a própria Draupadi, despida do disfarce de naguini. Ela jogou a cobra em direção a Naguendra, que foi lançado contra uma das paredes do templo. – Regente! – gritaram as vigias desesperadas, 14


tentando socorrer o naga desacordado. A ladra correu desabalada pelas ruas. Arjuna podia jurar que ela havia lhe dirigido um olhar vitorioso do fundo de seus olhos cor de âmbar. – Bhima, me dê forças... Não deixarei que ela escape de jeito nenhum! – Arjuna aproveitou-se da confusão para recuperar o seu arco, esquecido no chão. Procurando um lugar alto para que pudesse enxergar todo o vilarejo, deu-se conta de que o topo do templo era o local perfeito para isso. A monstruosa Ulupi oferecia o atalho perfeito para o telhado, seu corpo inerte servindo como uma escada improvisada. Lá de cima, Arjuna enxergou Draupadi correndo por cima das tendas. O príncipe ajeitou o arco, e uma chama surgiu de sua ponta superior. Num rápido gesto, a chama propagou-se até o outro extremo, formando uma corda de fogo enquanto, num movimento seguro, ele esticava bem a arma. Uma flecha flamejante surgiu em seus dedos. – Um alvo fácil... − murmurou para si mesmo, enquanto mirava. Por um segundo, ele pensou se não seria desonroso acertar Draupadi pelas costas, mas a hesitação durou somente esse instante. 15


“Pense só no alvo.” Ele disparou a flecha de fogo... que foi cortada pela espada certeira de Draupadi. O impacto foi seguido por um clarão ofuscante, e labaredas de fogo foram lançadas nas tendas. Demorou alguns momentos para que o arqueiro recuperasse a visão; então, já não havia mais qualquer sinal da ladra. Seu único rastro era um incêndio que se alastrava rapidamente pelo vilarejo. Arjuna, desesperado, levou as mãos à cabeça. – Grande Indraprashta...! O que foi que eu fiz?

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Os místicos Devas Estamos na aurora da civilização, no tempo da Era da Magia! Antigos como o próprio mundo, os imortais Devas adquiriram o status de deuses entre os humanos, inspirando lendas que agora fazem parte das grandes mitologias. Capazes de utilizar a magia inerente aos seres humanos, os Devas manifestam-na na forma de elementais, personificações das habilidades mágicas próprias de cada pessoa. Chamados de “deuses-magos”, os Devas acreditam no poder do conhecimento acima de qualquer coisa e preferem ensinar os humanos a governá-los. Seus modos acadêmicos fazem-nos sábios, porém burocráticos e lentos para agir. Enquanto a sua influência cresce, a dissidência também se espalha e alguns Devas decidem enveredar pelo caminho das Magias Varnis, usando o sangue humano como fonte de poder. Uma guerra avista-se no horizonte e Asti, uma garota amaldiçoada por um mal ancestral, pode determinar todo o futuro da raça dos deuses.


Draupadi Lendária forjadora-mestra da oficina mágica dos ignis Pandavas, é conhecida como a “escultora de luz”, usando os poderes de sua elemental, a tigresa Dawon. Agora uma fugitiva, é perseguida pela guilda que servia, acusada de matar o próprio discípulo, irmão mais velho de Arjuna.

Asti Filha adotiva de Draupadi, Asti carrega um antigo mal dentro de si: se o seu sangue for derramado, todos ao seu redor morrerão. Mãe e filha viajam incógnitas pelas terras da Índia em busca de uma cura, descobrindo que o destino da garota está relacionado com o futuro de toda a raça dos Devas.


Arjuna Um dos príncipes Pandavas e o atual Senhor do Fogo, título que herdou do seu falecido irmão. Cego por justiça, persegue Draupadi para levá-la ao tribunal da Guilda. Ele sabe que ela é uma assassina, mas por que estaria também roubando tesouros dos nagas?

Amanta A “oráculo da Profecia Varni”, Amanta previu o fim da era da Magia e o surgimento de uma nova raça de magos, cujo poder não viria dos elementais mágicos, mas de uma fonte de poder mais primordial: o poder que pulsa no sangue dos próprios humanos...





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