Um Sheik Tentador Sophie Weston
Título
original:
IN THE ARMS OF THE SHEIKH — Fico feliz por saber. Mas você tem certeza de que não há espaço para um homem em sua vida? — Absoluta. Ele tocou seu lábio inferior com uma carícia suave como uma asa de borboleta. Natasha encolheu-se. O pequeno toque era, de alguma forma, mais íntimo do que um beijo. Ele deu um riso suave, que ninguém além dos dois poderia ter escutado. — Eu precisaria de uma noite para fazê-la mudar de idéia — ele murmurou, a respiração eriçando o cabelo que circulava a orelha dela. — Apenas... Uma... Noite. Natasha procurou sem sucesso uma resposta definitiva. Mas era tarde demais. Ele já tinha ido embora.
Digitalização: Rita Cunha Revisão: Rosana Prado
PUBLICADO SOB ACORDO COM HARLEQUIN ENTERPRISES II B.V. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Copyright © 2005 by Sophie Weston Originalmente publicado por Mills & Boon London Título original: IN THE ARMS OF THE SHEIK Impressão: RR DONELLY MOORE Tel.: (55 11)2142-3500 www.rrdoimelley.com.br Distribuição exclusiva para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil: Remando D'liitiaglia Distribuidora S/A Rua Teodoio da Silva, 907. Rio de Janeiro, RJ - 20563-900. Tel.: (55 21). 1879-7766 Editora HR Ltda. Rua Argentimi, 171, 4º andar. São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ - 20921-380. Correspondências para: Caixa Postal S516 Rio de Janeiro, RJ 20220-971. Aos cuidados de Virginia Rivera virginia.rivera@harlequinbooks.com.br
Capítulo 1 Nova York é o paraíso dos insones, pensou Natasha Lambert. Uma cidade que nunca dorme. Apertou o nariz contra a janela do quarto de hotel e olhou vinte andares abaixo. O céu de novembro estava negro como se fosse meia-noite, mas já eram cinco da manhã. Mesmo assim os faróis dos carros varriam a rua molhada pela chuva e ainda havia pessoas na calçada. Quem seriam? Pessoas indo para o trabalho? Voltando de uma noitada? Natasha viu um casal saindo debaixo do toldo do hotel, enquanto um carregador colocava uma montanha de malas no táxi. Rapidamente voltou para a grande mesa executiva, razão principal para ter reservado a luxuosa suíte. Não que ela parecesse uma alta executiva agora, pensou Natasha, sorrindo ironicamente. Não com seus velhos e queridos chinelos forrados de pêlo e decorados com carinhas de gato. Seu laptop estava aberto num facho de luz. Natasha sentou-se à sua frente e remexeu os dedos dos pés nos chinelos confortáveis, pensando nas cores que poderia usar nos slides de sua apresentação. Azul? Muito frio. Vermelho? Muito agressivo. Exatamente como eu, pensou ela de maneira esquisita. Seu último namorado fizera uma análise completa de sua personalidade antes de terminarem. Ele a havia chamado de insensível. E ficara furioso quando ela concordara alegremente. — Isso não é um elogio — vociferou ele. — Talvez não para você. Mas eu me esforcei muito para ficar assim. Agora o telefone estava tocando. Sem tirar os olhos da tela, Natasha atendeu-o. — Sim? — Posso deixar um recado para Natasha Lambert, por favor? — Sou eu — disse. — Oi, Izzy. Ela ouviu um gritinho angustiado. — Ai, não! O sorriso de Natasha aumentou ainda mais. Izzy Dare era sua melhor amiga. — Você não quer mais falar comigo, Izzy? O que eu fiz? — Estava tentando deixar um recado na recepção. Não queria acordá-la! — Não acordou. Natasha girou um gráfico de pizza na tela. Talvez azul e vermelho? Afinal de contas, frio e agressivo muitas vezes eram características vantajosas nos negócios. Ela podia ser insensível, mas era bem-sucedida. E não ligava para o que diziam, contanto que gostassem de seu trabalho. Ela parou de brincar com o gráfico. — O que posso fazer por você, Izzy? Contudo, Izzy ainda estava preocupada.
— Tem certeza que não acordei você? Achava que Nova York ficava cinco horas atrás do fuso horário de Londres. Que horas são aí, afinal? — Cinco e pouco. — E você está acordada? — Izzy estava horrorizada. — A Lambert Research nunca dorme — disse Natasha, em tom formal. — Mas por quê? — Reunião no café-da-manhã com o Poderoso Chefão. Resolveram isso no último instante, então estou refazendo a apresentação. — Ele é legal? — perguntou Izzy, temporariamente distraída de seu objetivo. — Quem? — O Poderoso Chefão. — David Frankel? É um workaholic baixinho e gordo que tem uma propensão nojenta para apalpá-la se você deixá-lo chegar muito perto. — Parece horrível. — Por isso ele é o Poderoso Chefão — disse Natasha calmamente. — Homens poderosos são horríveis. Faz parte do trabalho deles. Izzy protestou, mas Natasha ficou indiferente. — Sem problemas. Trabalho com homens poderosos o tempo todo. Eles dão muito trabalho e não gostaria de namorar um deles. Mas, tirando isso, são legais. Diga logo o que você quer. — É sobre o fim de semana... — Ah, sim. Estou esperando ansiosamente por ele. Um programa com as amigas é exatamente do que preciso. Principalmente depois da semana que tive. Houve uma pausa, que teria sido perceptível se Natasha não estivesse digitando, ajustando o gráfico novamente. Desta vez, ela o coloriu de verde limão. A tela pulsou com as cores fortes. Natasha tombou a cabeça para o lado. Jovem e excitante? Ou muito superficial? — Houve uma mudança de planos. Natasha suspirou. — Que pena. Vamos ter de adiar por causa da chuva? — Não, não foi esse tipo de mudança. Foi... Bem... Uma mudança de local. — Certo — disse Natasha, sem muito interesse. — Para onde? — Bem... — Izzy parecia estranhamente envergonhada. — Será numa casa particular. Eu peguei emprestada. — Legal. Dê-me o endereço. Izzy deu. — E tem mais uma coisa... Finalmente a hesitação de Izzy fez efeito. Natasha parou de brincar com o mouse. — Ande, Izzy. Fale logo. Qual é o problema? O lugar está caindo aos pedaços? Não tem aquecimento central? É tão escondido que terei de alugar um heli cóptero para
chegar lá? — Você faria isso, não faria? — Izzy parecia estranha. — O que for preciso — disse Natasha, animada. — Uma por todas e todas por uma. Você é minha melhor amiga e não a vejo há seis meses. — Ela encolheu os dedos e largou o mouse. — Vou ter de arranjar um piloto? — Não. De carro, fica a uma hora do aeroporto. — Então não há problemas. — Certo. Então volte para seu trabalho, e eu a verei amanhã. Vai pegar o vôo noturno? — Sim. — Isso é bom. Teremos o dia inteiro para conversar antes que as outras cheguem. Natasha franziu a testa. Deu as costas para o laptop. Aquilo parecia sério. — Você está com algum problema, Izzy? — Não, é só que... — Izzy parou. Depois continuou, com uma voz alta e artificial. — Serenata Place é difícil de encontrar. — Era como se ela quisesse dizer algo mais e não tivesse coragem. — Vou mandar um mapa por e-mail — disse ela, com animação desesperada. A testa de Natasha ficou ainda mais franzida. Nunca tinha escutado Izzy falar assim. Bem, pelo menos desde... Ela afastou as lembranças sombrias de sua mente. Já haviam se passado três anos desde aquela época ruim. Ela e Izzy tinham saído vivas da selva, como todos os outros. Os pesadelos também iriam embora na hora certa. No entanto, isso não explicava por que Izzy parecia tão tensa c artificial. — Qual é o problema, Izzy? — Vou me casar. — Vai o quê? — Me casar — disse Izzy, rápida. — Eu sei. É muito de repente. Você não o conhece. Só que ele está indo viajar e... Este fim de semana será nosso noivado. Natasha ficou ali franzindo a testa para o telefone por um longo instante. Izzy era uma mulher prática, determinada, mas tinha seu lado vulnerável. E Natasha sabia exatamente qual era. Izzy estava no trabalho. Trabalhava com a prima, Pepper, num escritório claro e elegante. Não havia paredes e qualquer um podia escutar a conversa dos outros. Izzy não ia querer falar sobre aquilo com suas colegas de trabalho escutando. — Olhe, vejo você na sexta-feira e conto tudo. Bom vôo. — Izzy desligou. Certo, esperaria até encontrá-la cara a cara na sexta-feira. E aí Izzy lhe contaria tudo. Enquanto isso, não havia sentido em ficar pensando sobre o assunto. O súbito casamento de Izzy poderia esperar algumas horas. Natasha, a profissional, tinha uma apresentação para terminar. Virou-se novamente para o laptop e, com uma batida forte no teclado, fez o gráfico ficar roxo.
A sala do trono no palácio era uma mistura excêntrica de magnificência e simplicidade. O emir do Saraq estava sentado numa cadeira francesa de brocado que teria se encaixado melhor no palácio de Versailles, e acenou para o recém-chegado na direção de um sofá sueco minimalista. O emir o tinha chamado pessoalmente. — Você não manda em mim, vovô — disse o recém-chegado, sem qualquer emoção. Era alto, com sobrancelhas decididas e um nariz adunco e altivo. Sua túnica branca não tinha nenhum vinco. Ele não se sentou. — Você está aqui — lembrou o Emir com um toque de desafio. — Por enquanto. Seus olhos se encontraram: os do emir, ferozes; os de seu observador, indecifráveis. Ele tinha bastante prática em mascarar os sentimentos. — Não vamos discutir, Kazim. Isto é importante. O tom apaziguador era incomum. Mas o avô era um ator contumaz, pensou Kazim, e tão astuto quanto um falcão caçador. Ele permaneceu alerta. — Outro casamento arranjado? — Não. Eu já concordei, você decide quando se casar. — Parecia que cada palavra estava sendo arrancada dele, mas mesmo assim conseguiu dizê-las. Não foi suficiente. Kazim corrigiu-o, implacável. — Se eu me casar. O velho também não gostou daquilo. — Se você se casar — concordou com relutância. Kazim não sentiu remorsos. — E com quem eu quiser casar. — E com quem você quiser casar — repetiu o emir, entre os dentes. O neto assentiu como um general aceitando a rendição. Eles se encararam como dois duelistas. O emir disse algo explosivo, bem baixinho. Kazim decidiu não escutar. Às vezes aquele era o único movimento possível no prolongado jogo de xadrez que era o relacionamento dos dois. — Você quebra todas as tradições e não escuta ninguém, mas realmente consegue fazer as coisas. Os lábios de Kazim se contraíram. — Obrigado. Acho. O emir parou de falar baixo e rearrumou a dobra de sua túnica branca sobre os joelhos. Estava nitidamente fazendo um enorme esforço para parecer razoável. — Pedi para vê-lo porque houve um alerta. Subitamente, toda a cautela de Kazim se dissolveu em preocupação. — Está falando de ameaças? Contra você? O emir permitiu-se um sorriso fino. — Não. Contra você.
Por um instante, o rosto de Kazim ficou absolutamente sem expressão. Ele não respondeu. A atmosfera na sala do trono ficou carregada de eletricidade. — Então você sabia — disse o emir suavemente. Kazim ficou perturbado. Não tivera a intenção de revelar tanto. O velho era muito bom naquilo. Mas aquele não era um bom pensamento. Escondeu o desconforto, profissional que era, e deu de ombros. — Sempre há malucos por aí. As ameaças vêm com o território. — E você está se colocando como alvo para eles — disse o avô, com raiva súbita. Kazim suspirou. Aquilo não era novidade. Seu avô o queria em casa e a salvo em Saraq, sem se envolver em conversações de paz em outros continentes. — Este seu Conselho de Reconciliação Internacional é uma grande idéia. Muito bem pensada — fez uma pausa para conseguir mais efeito. — Para daqui a 50 anos. — Não temos 50 anos — disse Kazim, um pouco cansado. Já haviam discutido aquilo antes, muitas vezes; de maneira mais explosiva no dia em que partira, um ano atrás. Ele se preparou para discutir novamente. Mas, desta vez, o emir não estava em busca de uma boa discussão. — Isso não importa. — Como assim? — Você está na lista de assassinatos — disse o velho, de repente. Kazim ficou rígido como uma rocha. — Seus espiões são muito eficientes — disse, educadamente. — Você não está levando isso a sério. Kazim deu de ombros novamente. — Tomo precauções bem razoáveis. — Não, não toma. Kazim piscou. — Como assim? — Liberar os seguranças e até mesmo os empregados durante um fim de semana inteiro não é tomar precauções bem razoáveis — acusou o emir. — Não é isso que você vai fazer? — Invasão de privacidade é um conceito totalmente estranho para você, não? — reclamou Kazim, implacável. — Cuido dos meus familiares. — Mantendo-os sob vigilância 24 horas por dia? — Se é por causa de uma mulher, traga-a para cá, onde você está a salvo. Você pode ficar com o Sultana's Palace e terá toda a privacidade que quiser. Um músculo saltou na mandíbula de Kazim. — Não é uma mulher — disse ele, irritado. Pela primeira vez na conversa o emir sorriu. — Melhor se fosse. Você trabalha muito.
Ambos sabiam que Kazim não visitava seus aposentos particulares no palácio do emir havia anos. Tinha vindo direto do aeroporto para este encontro e o emir sabia que, provavelmente, o jato particular estava sendo reabastecido enquanto conversavam. O emir tinha aprendido pelo caminho mais difícil que, se houvesse uma batalha de vontades entre eles, Kazim sairia sem olhar para trás se achasse que estava certo. Mas aquilo era mais do que a batalha normal entre os dois. De repente ele não era mais o emir; era apenas um homem preocupado com a segurança do neto. — Pelo menos mantenha a equipe de segurança em Serenata Place. — Isso era o mais próximo de um pedido que o velho soberano conseguia fazer. Kazim ainda estava fervendo por dentro com a idéia de estar sendo espionado. — Minha organização para entreter meus amigos diz respeito apenas a mim. O avô explodiu. — Amigos! Que tipo de amigos iam querer colocá-lo em perigo? — Amigos normais — retrucou Kazim. — Ora! No entanto, havia um tom de desespero real na voz do velho homem. Kazim fez uma pausa, depois se sentou no sofá. — É apenas um fim de semana — disse, numa voz mais suave. — A duração é irrelevante — disse o emir. — Seria necessário menos de um minuto para um atirador de elite matá-lo. — Vou mandar Tom fazer uma varredura completa antes dos convidados chegarem, na sexta-feira — disse Kazim gentilmente. — E recoloco a equipe completa de segurança quando os empregados voltarem ao trabalho. O emir fez um ruído de indisfarçável desprezo. Kazim deixou a gentileza de lado. — Não posso deixar a festa de noivado de meu melhor amigo ser estragada por homens com fones de ouvido e paranóia profissional. — Uma festa! Você pelo menos checou a lista de convidados? Kazim subitamente ficou muito parecido com um príncipe do deserto. — Dominic é meu amigo. — Tem certeza? — perguntou o avô com raiva. Kazim cedeu um pouco. — Vovô, entenda. Dom e eu sempre escalamos juntos. Ele já teve a minha vida em suas mãos e eu, a dele. Claro que não fiquei conferindo quem são os amigos deles. — Cancele essa festa! Kazim olhou-o diretamente nos olhos. — Em meu lugar, o senhor cancelaria? Ele sabia um monte de histórias sobre a juventude do avô. Histórias de coragem e lealdade, além de pura obstinação. Ele baixou os olhos. — Tudo o que sou herdei de meus ilustres antepassados — murmurou, com ares de herdeiro submisso. O emir estreitou os olhos.
— Você pode ser muito inteligente — disse. — Mas um dia vai cair com essa cara presunçosa no chão. Os olhos escuros de Kazim, tão parecidos com os do emir, acenderam-se com súbito humor. — Quando isso acontecer, farei com que o senhor saiba imediatamente — assegurou ao avô. E saiu. Seu assistente pessoal estava esperando ao lado do veículo 4X4 no pátio da segurança do palácio. Seus passos raivosos faziam a túnica branca ondular. — E aí? — O velho tem um espião em minha casa — disse Kazim, entre os dentes. — Quer que eu encha Serenata Place com segurança 24 horas. Dê-me as chaves. Martin sentiu o coração apertar. A maior parte do tempo, Kazim era um homem aberto à razão, mas esses encontros com o avô faziam com que seu temperamento explodisse. Ele ficaria remoendo aquilo durante dias. Martin começou a andar ao lado dele, sacudindo a cabeça. — Está falando do fim de semana com Dominic? — Sim. — Bem, ele tem uma certa razão. Eles alcançaram o carro. Antes de entrar no banco do motorista, Kazim parou. — Ouça, Martin — disse controladamente. — Passo minha vida pública cercado de guarda-costas e seguranças em tempo integral. Pelo menos desta vez, quero dar uma festa como um homem normal. Martin trabalhava para Kazim há muito tempo. Sabia quando o chefe não ia mudar de idéia. Todos os que trabalhavam para Kazim sabiam. Os empregados da casa o temiam; os do escritório tentavam lidar com aquilo; seu secretário pessoal chamava de "o lado sheik" de Kazim. Não acontecia com freqüência. Mas, quando acontecia, ficava irremovível. — A decisão é sua. Kazim ligou o motor, conferindo o aparelho GPS. — Se não posso acreditar num homem com quem faço escaladas, não posso acreditar em mais ninguém. Martin entendia. Mas fazia parte de seu trabalho lembrar Kazim de verdades não muito bem-vindas. — Você não escalou com a namorada dele. Ou a amiga da namorada. Kazim virou a cabeça, surpreso. — Você acha que os Filhos de Saraq vão mandar alguma estilista de Londres me assassinar? Martin explodiu numa gargalhada. — Dessa forma não parece provável — admitiu.
Kazim pôs o carro em movimento. Pela primeira vez em dias, seus olhos estavam brilhando. Tomara que ela seja loura! Ficou naquele humor frívolo o tempo todo durante o vôo de volta para Londres, para desespero de Martin e Tom Soltano, o americano que era chefe da segurança de Kazim. Quando já voavam há uma hora, Martin estava quase perdendo a paciência. Até que Kazim disse algo tão ultrajante que ele explodiu. — Você só pode estar brincando! Kazim levantou o perfil altivo do arquivo que estava examinando e suas sobrancelhas se ergueram. — Nunca brinco com meus compromissos. Aquilo era verdade. Nos últimos e tumultuados anos, Kazim tinha voado para o mundo todo, levando sua marca pessoal de inteligência refinada e calma bem dosada para a resolução de conflitos, do deserto às periferias das cidades. Era uma agenda importante e cheia de responsabilidades. Mas não provocava muitos risos. Martin, que organizava a maioria dos eventos, sabia tudo sobre a agenda. Levantou-se e abriu um grande mapa na mesa, à frente de Kazim. Mostrava seus compromissos, dia a dia, nos próximos seis meses. Martin colocou o dedo sobre a semana da qual Kazim estava falando. — Apenas olhe. Você não tem tempo. Kazim manteve a calma, como sempre. Esta era uma de suas características mais irritantes. — Quando chegar a hora, eu arranjo tempo. — Veja isso. Nova York, Paris, Saraq, Indonésia, Turquia. Você não pode nem ter certeza de que vai conseguir ir ao casamento de Dominic, quanto mais dirigir o cerimonial. Kazim sorriu. Tinha um belo sorriso. Iluminava seus olhos, transformando o rosto severo em puro charme, que derretia qualquer pessoa num piscar de olhos. Aquele sorriso fazia as mulheres adorarem-no. Martin olhou para ele com suspeita. — Mas não vou dirigir o cerimonial do casamento de Dominic — disse Kazim em tom brando. — Ele me convidou para ser o padrinho, e só. Chego e fico ali segurando as alianças. Quanto tempo isso vai demorar? — Você já foi a um casamento inglês? Kazim al Saraq era brilhante e poderoso, com um perfil arrogante e poços de petróleo suficientes para que as pessoas geralmente não discutissem com ele. Mas os dois eram seus companheiros mais próximos. Jamais se lembravam dos poços de petróleo e ignoravam seu perfil. — Um casamento inglês? Claro. — Daqueles grandes? Com tias usando chapéus? Mães debulhando-se em lágrimas? — pressionou o conselheiro de segurança. — Casamentos não são tão diferentes assim entre as culturas — disse Kazim secamente. — Mães se debulhando em lágrimas são uma constante, da Índia ao Canadá. — Acho que você está certo sobre as mães — admitiu Tom. — Mas o padrinho inglês é único. E faz muito mais do que ficar segurando um par de anéis, acredite em mim. Eu já fui padrinho.
— Escute homem. — Certo, continue. Pode me apavorar. — Bem — disse Tom com satisfação. — Você fica responsável pelo noivo. E eu quero dizer responsável. Você tem de dar a festa da vida dele. Depois de casado, ele deve lembrar dessa época como seus últimos dias de liberdade. Esse tipo de festa. — E depois, você o cura da ressaca no dia seguinte e o leva à igreja — interveio Martin. — Dominic estará treinando para a expedição ao Pólo Sul. Não haverá bebedeiras. Então, nada de ressacas. — Houve um lampejo de diversão no olhar de Kazim que eles não viam há décadas. — Vocês terão de fazer melhor do que isso para me convencer. — Certo — disse Martin. — Que tal isso? Todos os amigos dele serão uma espécie de mestres-de-cerimônias. Você não os conhece e metade deles não conhece os outros, mas terá de dizer a eles o que fazer. E terá de manter sob controle os pajens, as daminhas e as madrinhas. — Você está querendo dizer que vou dirigir o espetáculo — disse Kazim, ainda irritantemente calmo. — Posso muito bem fazer isso. É o que mais faço na minha vida. Martin levantou os olhos para o céu. Tom disse, gentilmente: — Diga a Martin e a mim o que fazer, e nós dirigiremos o espetáculo. — Isso é verdade. Tom continuou, com honestidade. — O padrinho é uma espécie de faz-tudo. Terei de fazer um alerta contra isso. Você será um alvo fácil. Martin assentiu. — E terá de arregaçar as mangas, esfregar as mãos e trabalhar. Não poderá delegar isso a ninguém. Kazim permaneceu impassível. Martin quase sapateou de irritação. Mas Tom, o homem de Princeton, continuou com firmeza. — Você terá de coordenar os discursos durante a refeição após a cerimônia. Que diabos, você tem que fazer o melhor discurso de todos. — Faço discursos o tempo todo. — Não como este — disse Martin com delicadeza. — Você terá de contar piadas. Por um instante, Tom esqueceu o e-mail ameaçador cm sua pasta de Ações Imediatas. — Você conhece alguma história sobre Dominic Templeton-Burke que faça um monte de estranhos rirem, Kazim? — perguntou, curioso. Pela primeira vez, Kazim empalideceu. Os outros dois reagiram com satisfação. — E que tal as madrinhas? — acrescentou Tom, começando a se divertir. — Você deve acompanhar a madrinha principal pela nave da igreja, atrás dos noivos, e ouvir todas as tias falando que casal adorável vocês fazem? — É — disse Martin, mais aliviado. — Haverá uma festa depois. E você terá de dançar com a madrinha mais feia. E continuar dançando com ela sempre que estiver sozinha.
— Cuidar para que nenhum dos pajens caia sobre os presentes de casamento — acrescentou Tom. — Apresentar as pessoas. Manter as duas sogras longe das gargantas uma da outra e os sogros longe da garrafa de conhaque. Mandar o casal feliz embora com um sorriso, garantindo que ninguém vandalize o carro deles. — Vocês estão exagerando. — Nem um pouco. — Tom fez isso e sobreviveu. Não pode ser tão ruim assim. Os outros dois se entreolharam novamente. — E pior — disseram em uníssono e passaram mais dez divertidos minutos contando a ele os piores desastres de casamento de que cada um podia se lembrar. — Não pense que você vai poder voar até lá, ficar no altar ao lado de Dom por dez minutos e depois pegar outro avião — avisou Tom. — Não pode ser assim. — Ligue para ele e diga para conseguir outra pessoa — disse Martin, sério. — É o único jeito. Mas o queixo de Kazim se ergueu. — Dei minha palavra a Dom. — É, mas você não estava pensando — começou Tom. — Minha palavra. Martin sabia que aquele era o ponto final. Se Kazim fizera uma promessa, nada o desviava daquilo. Jamais. — Se não puder fazer isso, sou um homem menor do que deveria ser. Houve um pequeno silêncio. Os outros dois reconheceram a derrota. — Você é um bom homem, Kazim — disse Tom. Martin não estava menos emocionado. Mas ainda era um homem prático. — Sorte da madrinha mais feia.
Capítulo 2 Para alívio pessoal dos conselheiros de Kazim, não havia nenhuma loura à vista quando os convidados de Dom começaram a chegar a Serenata Place, naquela sextafeira. A noiva revelou-se uma ruiva adorável. — Síndrome do casarão — disse Dom afetuosamente, enquanto ela subia as escadas para se trocar. — Como assim? — Izzy entrou em parafuso quando a levei à minha casa para conhecer meus pais. Agora qualquer coisa que pareça com o retrato de um ancestral a faz ficar nervosa. Um decorador especializado nos anos 20 tinha coberto as paredes do saguão de entrada de Serenata Place o com gravuras de caçadas vitorianas. Kazim olhou para a gravura mais próxima, com homens gordos de rostos vermelhos, cavalgando pelas montanhas.
— Eles não são meus ancestrais — disse ele, indignado. Dom sorriu. — Vou dizer isso a ela. Devo acalmá-la. Kazim, recebendo telefonemas freqüentes de um nervoso oficial de segurança, não teve muito tempo para fazer social naquela noite. Mas até para ele era óbvio que a ruiva Izzy ficava cada vez mais perturbada conforme os convidados chegavam. Finalmente ele saiu do gabinete para encontrar Dom, que parecia preocupado. — A melhor amiga não chegou — disse Dom. — Não podemos anunciar o noivado até que ela chegue. — O que você quer fazer? — perguntou Kazim. — Matar a mulher. — Tirando isso? Dom franziu a testa. — Adiar tudo. Anúncio do noivado, champanhe, fogos de artifício. Deixar tudo em suspenso até amanhã e esperar que a maldita mulher chegue até lá. Kazim piscou. Mas tudo o que disse foi: — Então todos os seus convidados vão ficar para passar o fim de semana. — Sim, graças a você — Dom deu um suspiro sentido e deu um leve soco em seu braço. — Definitivamente tenho amigos melhores do que Izzy. — Você conheceu a amiga perdida, então? — A Senhorita Eficiente? — Dom sacudiu a cabeça. — Ainda não. — Ela parece intrigante — disse Kazim, educadamente. Dom riu. — Não faz o seu tipo. — Achei que você não a conhecia. — Não preciso. Sei que é uma chata. Uma daquelas mulheres bem-sucedidas do século XXI. Kazim sacudiu a cabeça com pena. — Não sei por que você está dizendo que ela não faz o meu tipo. — Porque você acha que o lugar de uma mulher é recebendo rosas e poesia — disse o amigo. — Antes de mandá-la para casa, para que você continue salvando o mundo. Kazim não se ofendeu. — Muito engraçado — disse calmamente. O telefone locou novamente. — Desculpe. A mensagem de texto de Tom era inequívoca. Kazim devia ligar para ele imediatamente. Novas informações estavam chegando sobre ameaças às negociações de paz, e a Kazim em particular. Tom precisava de conselhos. — Desculpe, Dom. Vou cuidar disso e encontro você mais tarde. Dom assentiu. Os amigos de Kazim estavam acostumados a tais interrupções.
— Vou convencer Izzy a descer e abrir algumas garrafas. Vamos começar essa festa. — E cuide para que o pessoal dos fogos de artifício volte amanhã — Kazim lembrou. Natasha tivera um dia ruim. Primeiro, o gráfico roxo não tinha funcionado bem. E nem seu maravilhoso arquivo de apresentação. David Frankel queria sua menção pessoal e indivisível. Não havia jeito de deixá-la sair, de preferência até que concordasse em jantar com ele. Enquanto Frankel fazia pergunta após pergunta sem objetivo, ela viu sua chance de pegar o primeiro vôo noturno, e depois o outro, desaparecer. Sorrindo com dificuldade, desculpou-se e ligou para Izzy do banheiro das mulheres. Izzy não atendeu. Natasha deixou um recado. — Izzy, vou chegar atrasada. Desculpe, querida. Vejo você assim que puder. As horas frustrantes que se seguiram formaram um padrão repetitivo. O último vôo atrasou; havia neblina e ele acabou sendo desviado. Natasha calculou as dife renças de fuso horário e telefonou muitas vezes, mas Izzy não atendeu nenhuma. Finalmente, era uma noite escura de sábado quando a limusine alugada por Natasha alcançou as estradinhas estreitas da região de Sussex. O silêncio do motorista era mais eloqüente do que uma torrente de reclamações. Já tinham passado por um vilarejo de dez casas pelo menos três vezes, quando Natasha avistou um caminho íngreme e estreito à esquerda. — Aqui. Aborrecido, o motorista fez o que lhe foi dito. O aquecedor crepitou e desligou. Natasha estremeceu. Ela não estava viajando com um vestido Prada, mas também não estava com roupas de expedições ao Ártico. Com meias finas e sapatos de saltos altíssimos feitos à mão, seus dedos dos pés estavam vagarosamente se transformando em gelo. — Espero que não esteja longe. Estamos a quilômetros de lugar nenhum. À direita, havia cercas e campos escuros; à esquerda, uma alta cerca de louros muito bem podada. — Parece algum tipo de mansão imponente — disse Natasha. — Espero que não tenhamos errado novamente. E então surgiu uma placa. "Serenata Place. Estritamente Particular." — Que amigável — notou Natasha. O lugar era grandioso. Ela estava assustada, embora não dissesse isso em voz alta. O que importava o tamanho do lugar?, perguntou-se. Podia lidar com qualquer coisa. Mas quando a limusine passou a cerca viva e foi parada por enormes portões de ferro batido, Natasha sentiu sua confiança balançar pela primeira vez. Trincou os dentes e não demonstrou o que sentia. Ao contrário, baixou o vidro elétrico e falou rispidamente para a câmera na entrada. — Srta. Lambert para srta. Dare. Estou sendo aguardada.
Não havia nenhuma voz do outro lado. Nenhuma resposta. Apenas uma longa e sinistra pausa. Depois, finalmente, os portões se abriram para o lado de dentro. Silenciosamente. Natasha estremeceu novamente; e não era só por causa da temperatura. — Ah, que ótimo. Só falta o mordomo Tropeço, da família Adams, sair oscilando das sombras — murmurou, sentindo-se totalmente desconfortável. Estavam passando por um local realmente grandioso. O caminho de entrada era maior que a pista de decolagem de um jumbo. E então chegaram à casa... — Há torres suficientes para deixar os estúdios Disney com inveja — disse Natasha, com franqueza. — E toda a floresta da Bela Adormecida para protegê-las! Por que será que Izzy não me disse que tinha pegado emprestada uma mansão gótica? A limusine parou. Por mais irritado que estivesse, o motorista tinha sido bem treinado. Retirou a pequena bagagem dela e levou-a até os degraus da entrada. Tocou uma campainha impressionante antes de voltar para abrir a porta da limusine. Se ainda estivesse chovendo, ele teria segurado um guarda-chuva sobre a cabeça dela. — Obrigada — disse Natasha, saindo do carro como uma princesa. Tinha a estranha sensação de estar sendo observada. Mas a porta da frente permaneceu fechada e as janelas estavam escuras. Não havia qualquer sinal de vida. Ela subiu os degraus da entrada. Eles batiam frios como gelo nas solas de seus modernos sapatos de bico fino. Mármore, pensou, resignada. Definitivamente mármore. Uma mansão de verdade. — Acredito que este realmente seja o lugar correto... — começou ela. No entanto, o motorista já tinha ido embora. Ela observou a limusine sair por entre as árvores e descobriu que o coração estava apertado. Natasha controlou-se. Era uma mulher ou um rato? — O mordomo provavelmente terá de sair do caixão para chegar à porta da frente — disse a si mesma, sarcástica. — Grande idéia, Izzy. Um fim de semana temático! Apertou a campainha, várias vezes. Com força. A sensação de estar sendo observada se intensificou. Ela inclinou a cabeça, escutando... Aquilo seria um ruído...? Não, disse a si mesma. Não era um ruído real. Não conseguia ouvir nada além do vento nas árvores. Mas algo dentro dela sabia que ele estava ali. Seu sangue pareceu ficar mais pesado; mover-se mais devagar. Seus ossos latejavam. Cuidado. Natasha engoliu em seco. A atmosfera gótica estava realmente tomando conta dela! Tocou novamente a campainha muitas vezes, o coração batendo forte. Depois ouviu o ruído de folhas secas pisadas. Ela congelou. Imaginação era uma coisa. Seus instintos gritando para ficar em alerta eram algo totalmente diferente. Natasha tinha aprendido a confiar em seus instintos. Eles já haviam salvado sua vida uma vez. Seu olhar varreu o local rapidamente. — Quem está aí? Ela vasculhou as sombras, como se cada uma escondesse um assassino.
O homem surgiu da escuridão entre dois grandes arbustos. Não estava se escondendo, mas pisava levemente. Era alto e usava roupa escura. A primeira impressão de Natasha foi de que era muito profissional. Reconheceu as características: tenso, concentrado, controlado. Sua segunda impressão, que mandou a primeira para longe como uma explosão de total arrogância. Natasha conhecia a arrogância em todas as suas formas. Trabalhava com ela todos os dias e, uma vez, aquilo quase tinha custado sua vida. Ela detestava arrogância. Por puro reflexo, ficou na defensiva. Sua coluna se travou e seu queixo se ergueu. O homem olhou para ela. E não disse nada. As luzes refletidas da entrada mostravam maçãs do rosto grandes e olhos penetrantes. Apenas por um instante, ela pensou num gato selvagem, alerta e contido. E perigoso. Perigoso? Ela lutou consigo mesma. Aquilo era apenas uma sombra do passado, pura e simplesmente. Não ia deixar a paranóia tomar conta dela depois de todos esses anos. Trincou os dentes. — Boa noite — o tom era agradável. Bem, suficientemente agradável. Significava que ela se reservava o direito de atacá-lo se ele não prestasse atenção. Companheiros de trabalho mais próximos teriam reconhecido o tom. — Sim? — Ele não era nada caloroso. Aquilo teria intimidado uma mulher menos valente. Mas não intimidou Natasha. E ela não perdeu mais tempo com civilidades. — Estou sendo aguardada — disse rispidamente. Aquilo também não o impressionou. — E você é quem? — Srta. Lambert, para ver a srta. Dare. — Falou como se estivesse telefonando para um daqueles grandes arranha-céus de Nova York e ele fosse o homem da recepção. — Preciso ficar repetindo? Eu disse isso no interfone. Natasha sentiu uma pequena satisfação. Mas não o suficiente para compensar o fato de estar de pé, ali fora, no vento frio de novembro com uma roupa de grife que definitivamente tinha sido criada para interiores. Ela se recusou a tremer, entretanto. — Lambert? — Natasha Lambert. — Ela estava quase rangendo os dentes. — A srta. Dare me convidou para o fim de semana. Ele fingiu pensar sobre aquilo, com uma vagareza insultuosa. — O fim de semana que começou na noite passada? Se não estivesse tão frio, Natasha teria dito que seus arranjos de viagem só diziam respeito a ela. Mas estava desesperada para entrar e fugir do vento cortante. — Eu me atrasei. — Esforçou-se para parecer razoável. Não estava acostumada a se desculpar. Contudo, ele não parecia estar interessado em desculpas. — Por quê? — A pergunta a atingiu como um raio. — Meu cliente em Nova York exigiu uma reunião extra. Ele a olhou, mas era quase como se não a visse. E franziu o cenho. — Quando foi a reunião?
Uma pequena rajada de ar gelado fez as folhas dançarem. Seu interrogador nem pareceu notar. Mas aquilo passou pela roupa de Natasha como um raio laser. — Quinta-feira à noite. — Por que não pegou um vôo noturno? — Estavam lotados. Depois, meu vôo foi adiado e desviado por causa da neblina... — Natasha tomou novo fôlego. — Olhe, o que é isso? Eu deveria estar passando o fim de semana com meus amigos, e não fazendo um relatório de meus compromissos recentes a... a... — ela olhou para cima, aquele rosto impassível, o corpo impenetrável ao frio, os olhos concentrados no nada, e o insulto perfeito surgiu, vindo diretamente de sua infância — ... ao mordomo Tropeço — terminou com alívio. — O quê? Agora ele estava olhando para ela de verdade. Diretamente para ela. Dentro dela, quase. Natasha o viu observar seu traje preto de corte perfeito, os sapatos nova-iorquinos finos e ultra polidos, os belos cabelos louros e curtos. E o viu decidir que não gostava nem um pouco da embalagem. Ela começou a se sentir melhor, apesar do frio. — Como disse — perguntou ele, vagarosamente. — Você é o mordomo, não é? — perguntou ela. — Quer dizer, alguém tem de apertar o botão para abrir esses portões. É você? Então você já sabe que estou sendo esperada — lembrou ela, triunfante. E acenou com a mão para a maleta. — Poderia carregar minha bagagem, por favor? Ele olhou para a maleta com... Seria aquilo espanto? Ela não pôde resistir a provocar toda aquela desaprovação glacial. — Não se preocupe, eu viajo com pouco peso. A boca do homem formou uma linha fina e feroz. Ela viu dois profundos vincos correrem por suas faces. Ai, pensou Natasha. Talvez tivesse ido um pouco longe demais, chamando-o de Tropeço. Talvez ele fosse sensível ao fato de ser mordomo, por alguma razão. — Então, onde está a srta. Dare? — perguntou num tom mais amigável. — Por que não posso entrar na casa? Ele não reagiu ao tom amigável. Mal abrindo os lábios, disse: — A festa é no jardim. — Bem, graças a Deus há alguma festa acontecendo em algum lugar. — Você tem alguma identificação? — Iden... ? — Todo o desejo de ser amigável foi embora abruptamente. — Você deve estar brincando. Ele avançou, rápida e repentinamente, como aquele gato selvagem ao qual ela o havia comparado. Subiu os degraus como uma onda rápida. Sem perceber, Natasha recuou. Aquilo a fez salivar de raiva, mas não conseguiu se controlar. Ela parou apenas ao encostar as costas na grande porta. — Que diabos você pensa que está fazendo? Ele ignorou aquilo e estalou os dedos.
— Passaporte. Você deve ter um passaporte, se acaba de chegar de avião. — Claro. Acabo de chegar de avião — respondeu Natasha, rapidamente. — Prove. Tremendo agora de fúria tanto quanto de frio, ela tirou todos os documentos de sua bolsa: passaporte, o canhoto do bilhete de avião, o itinerário impresso da licença de viagens. — O que você era antes de ser mordomo? — o tom de Natasha era venenoso. — Oficial da alfândega? Inspetor da receita federal? Ele ignorou aquilo também. Estava examinando o passaporte. Ela odiava a foto do passaporte. Tinha sido tirada quase 10 anos atrás, quando acabara de voltar da selva. Parecia uma estudante, toda cheia de cachos despenteados e sem maquiagem. — Não se parece muito com você — comentou ele. Havia um tom de diversão na voz cortante? A antipatia de Natasha pelo homem intensificou-se ainda mais. Como ousava rir dela? Arrancou o passaporte de volta, com a mão trêmula. — Satisfeito? Ele deu de ombros. — Contanto que a srta. Dare a reconheça. — O quê? — Existem passaportes forjados. — Você assiste muita televisão. Aquilo foi demais. Natasha puxou o telefone celular da bolsa e o abriu. — Ah, chega. Vou ligar para Izzy agora... O pequeno aparelho foi arrancado de sua mão e jogado no caminho de cascalho. — Meu telefone... — foi um gemido de puro ultraje. Gemido? Ela estava furiosa consigo mesma. Devia ter rugido como um vulcão. Aquela voz ofegante nem parecia a dela. Fraca, fraca, fraca. Natasha odiava ser fraca. Aquilo não acontecia há muito tempo. — Como ousa? — Ela estava engasgada. — Você não precisa de um telefone. Se é que isso é mesmo um telefone. Natasha sentiu o volume de sua maleta de rodinhas pressionando a parte de trás de seus joelhos. Percebeu que havia recuado novamente. Aquilo era demais. O simples amor-próprio mandava que ela lutasse. Tentou chutá-lo. Aquilo foi infantil e deselegante, e ela estava sem equilíbrio. Acabou chutando a mala, que caiu para o lado e depois vagarosamente tombou, degrau por degrau, escada abaixo. — Afaste-se de mim — ordenou, furiosa. Porém, ele não estava escutando. Nem mesmo olhando para ela. Olhava por cima do ombro dele, para a mala, como se estivesse viva. Ela tinha caído no facho de luz no pé dos degraus.
— O que está esperando? — perguntou Natasha acidamente. — Uma explosão? Ele voltou os olhos para ela. Por um instante, foi como se uma persiana se abrisse. Seus olhos eram duros. Sua testa se franziu. Finalmente a persiana se fechou de novo, com força. — Acho que não. — Você realmente pensou que ia explodir — disse Natasha vagarosamente. Sua raiva evaporou, transformando-se em algo bem mais complicado. Sem perceber, ela estremeceu. Ele a libertou daquela inspeção penetrante e deu um passo para trás. Natasha soltou um suspiro trêmulo. Estava preocupada agora. No que será que Izzy estava metida? Abruptamente, ele se virou e desceu os degraus para pegar a maleta. Natasha esforçou-se para banir a sensação de que ele a pegara como se estivesse lidando com dinamite. — Venha comigo — disse ele por cima do ombro. E saiu, sem olhar para trás. Natasha alcançou-o num caminho mal iluminado que dava a volta pela lateral da casa. Tinha recuperado a sensação de ultraje a essa altura. — Me diga — disse ela com afabilidade dissimulada. — Quando eles o demitiram da academia de polícia, foi por ser muito perspicaz? Caminhava com passos rápidos, que não podiam ser acompanhados por sapatos de Manhattan, em caminhos irregulares que desciam para a escuridão. Natasha era orgulhosa demais para lembrar isso a ele. Quando achou que estava ficando muito para trás, trincou os dentes e deixou os sapatos nas moitas. E emparelhou com ele. Depois disso, ela prosseguiu muito bem, dada as circunstâncias. Seus sapatos, mesmo que conseguisse encontrá-los novamente, provavelmente estariam arruinados, pensou ironicamente. Sem contar as meias finas e caras. Mas aquilo era um preço pequeno a pagar para não ter de admitir que precisava de ajuda. E, pelo menos, ele estava carregando a mala. Era uma grande festa. Devia haver mais de vinte pessoas ali. Eles riam e conversavam à luz bruxuleante da fogueira. As garotas usavam jaquetas quentes; os homens estavam com suéteres grossos. Menos aquele que tinha encontrado na entrada, claro. Ele usava um terno, sem fazer nenhuma concessão ao frio de novembro. Natasha olhou para as pessoas em volta e suspirou. Gente demais para um fim de semana de garotas! A imagem reconfortante de sentar-se no tapete, à frente do fogo, com Izzy, mais umas duas amigas e muitas garrafas de vinho evaporou. Era como uma visão perdida do paraíso. Mas se era isso o que Izzy queria... Natasha endireitou os ombros e fixou no rosto um sorriso social. A fogueira era grande e brilhava alegremente à beira de um pequeno lago. O ar cheirava a vinho quente, salsichas na brasa e batatas assadas. — É uma festa de fogos de artifício! — Natasha. Natasha. Achei que você ia me dar um bolo. Izzy surgiu do meio das pessoas em torno da fogueira e abraçou-a com força. — Desculpe. Tentei mandar um recado. — Natasha devolveu o abraço até ficar sem ar. Engasgando, ela lutou para respirar. — O que você está usando, Izzy?
— Uma jaqueta forrada de pele e encerada — disse ela, com ar profissional. — O que montanhistas usam. — Por quê? — perguntou a melhor freguesa de Prada, confusa. — Você quase me sufocou com essa coisa. E faz você parecer uma bola de futebol. — Ela me aquece — disse Izzy de maneira inquestionável. — Não ligo para minha aparência. Vamos ter fogos de artifício mais tarde. As pessoas não vão ficar olhando para mim. Natasha gemeu. — Você é um caso perdido. Ninguém pensaria que você trabalha com moda. — E ninguém pensaria que você não trabalha — replicou Izzy. Ela olhou por sobre os ombros da amiga e o viu. — Onde você a encontrou, Kazim? — Na porta — disse o adversário de Natasha, secamente. — Como um presente de Natal — disse Izzy, brilhando de felicidade. — Ou uma pizza que você não pediu — murmurou Natasha. Izzy ficou supresa. — O quê? Natasha não estava olhando para ela. Olhava para o homem chamado Kazim. — Acho que estou tão atrasada que você pensou que eu estava fora da lista de convidados. Os olhos dele se estreitaram à luz do fogo e cintilaram maldosamente. — Se você tivesse telefonado... — ela falava como um juiz. Izzy se desculpou. — É verdade, Tasha. Quando você não apareceu na noite passada, achei que não viria. — Mas deixei um monte de recados. — Nessa animação toda, esqueci de olhar meu telefone. Natasha sacudiu a cabeça. — Então você não recebeu nenhum dos meus recados? O que você acha que eu estava fazendo? — Achei que algo mais importante tinha aparecido. Natasha estava sinceramente chocada. — Não sou tão mal-educada assim, sou? — Não — disse Izzy, em tom de desculpas. — Só muito ocupada. Horrivelmente aquilo era verdade. Natasha não podia negar. — Não importa — disse Izzy alegremente. — Você está aqui agora. Mesmo à meia-luz da fogueira, estava claro que Kazim Quem-Quer-Que-Fosse não concordava. A consciência culpada de Natasha mudou rapidamente para algo bem mais combativo. — Bem, agora estou, depois de conseguir passar pelo teste da segurança na porta da frente — concordou ela, fervendo por dentro. — Mas meu telefone ficou por lá.
Izzy pareceu confusa. — O que aconteceu com seu telefone? Ai, Natasha, não diga que você foi assaltada. Natasha olhou diretamente para Kazim Quem-Quer-Que-Fosse. — É. Foi um assalto. Os olhos piscaram, mas ele não disse nada. Izzy abraçou-a de novo, aflita. — Que horrível. Natasha não tirou os olhos de Kazim. — Nada de que eu não possa cuidar — disse ela. Falava sério. E podia ver em seus olhos que ele sabia. As narinas dele se inflaram. Ninguém jamais tinha dito que poderia cuidar de Kazim antes. Ele estava ultrajado. O suficiente para fazer alguma coisa a respeito? Natasha não tinha certeza. Então viu a rigidez em sua boca. Ah, definitivamente estava ultrajado o suficiente para fazer alguma coisa. Por um instante, ela sentiu um pequeno arrepio de alarme. Mas se segurou. Ela nunca corria de um desafio. Bem, mostre suas armas, ela o provocou silenciosamente. As narinas dele se inflaram. Uma corrente de alguma coisa, que poderia ser medo, correu pela espinha de Natasha. Medo ou excitação. Subitamente todos os seus sentidos estavam em alerta. Ninguém mais pareceu notar. Mas ela sabia o que estava acontecendo. E ele também. Era como um vinho forte. Ou um vento forte. Ou a sensação de voltar à vida.
Capítulo 3 Porém, ainda não era hora. Natasha precisava colocar algumas roupas quentes antes que Kazim pensasse que seu tremor se devia a ele. Era arrogante o suficiente. — Na verdade, Izzy, preciso tirar estas roupas. Poderia me dizer onde fica meu quarto? Izzy sentiu-se imediatamente culpada. — Claro. Você deve estar congelando. — Já estive mais quente — concordou Natasha. — Na verdade, eu ficaria feliz se pudesse pegar um suéter emprestado também. Não sabia que ia precisar de um. — É, claro, você fez sua mala totalmente bá-si-ca. — Izzy riu e olhou para a maleta de Natasha. — Há quanto tempo você está vivendo só com essa malinha? Natasha sorriu. Era uma velha piada entre elas. — Uma semana.
— Então um suéter não é tudo que você vai precisar pegar emprestado — disse Izzy. — O hotel tinha serviço de lavanderia — retrucou Natasha — Um suéter basta, realmente. — Vou procurar algumas roupas boas e quentes para você. E botas de borracha também. — Fique com seus convidados. Posso mostrar a srta. Lambert o quarto dela. Há muitos suéteres sobressalentes no quarto egípcio. As sobrancelhas de Izzy ergueram-se, como se algo no tom de Kazim a surpreendesse. Talvez fosse a desaprovação fria, pensou Natasha com ironia. Provavelmente mordomos não deveriam sentir antipatia instantânea pelos convidados de seus patrões, mesmo se o patrão atual estivesse apenas pegando seus serviços emprestados durante o fim de semana. — Os fogos de artifício vão começar a qualquer momento — disse Kazim, como se aquilo bastasse. Natasha preferia o encontro com Izzy e as amigas que tinha prometido a si mesma. Mas sabia de suas obrigações sociais. — Vá e cuide dos fogos de artifício — pediu ela a Izzy. — Se... Kazim, não é isso? ...vai apenas me mostrar aonde ir... — lançou um sorriso manso na direção dele, com cuidado para não encontrar seus olhos — ...eu consigo me arrumar bem rápido. — Tudo bem — disse Izzy vagarosamente. — Vinho quente aqui depois, então. — Oops. Vejo você num instante — disse Natasha e correu atrás dele, o mais rápido que seus pés calçados apenas com meias permitiram. Ele pegou o caminho que subia para um grande terraço pavimentado. Natasha seguiu-o. A grama molhada grudava fria sob seus pés. Ela se arrependeu do impulso que a fizera jogar os sapatos fora. Explosões temperamentais sempre se voltam contra nós, pensou com tristeza. Mas agora era tarde demais e, pelo menos desta vez, ela estava conseguindo prosseguir sem deslizar e escorregar por toda parte! Ele ainda estava seguindo em frente sem falar nada. Ela decidiu abrir a sessão de hostilidades. — Então a identificação foi adequada? — perguntou para as costas dele. Ele olhou por cima do ombro. — Foi. — Que alívio! — Deve ser mesmo. Ela percebeu subitamente que havia um leve sotaque estrangeiro na voz profunda, esquivo como um perfume. Talvez não fosse nem um sotaque. Apenas uma leve imprecisão na pronúncia. Natasha disse, abruptamente: — Quando foi que você decidiu não gostar de mim? Ele continuou andando. — Se sou o mordomo Tropeço, não faz parte de meu trabalho não gostar de você.
Aquilo foi bastante neutro. Indiferente, até. Então, por que ela subitamente teve certeza de que ele estava rindo dela? E por que um homem com um quociente de arrogância de cem por cento decidiu se empregar como mordomo? Antes que pudesse perguntar, ele abriu a porta da casa para deixá-la passar à sua frente. Ela o olhou enquanto passava e surpreendeu-se com a força absoluta de sua presença física. Sim, ele era grande. Maior até do que ela tinha percebido do lado de fora. Mas não era sua altura que fazia todos os seus instintos acenderem o alerta vermelho. Nem sua aparência. Embora a luz da casa revelasse que ele era um dos homens mais bonitos que Natasha já conhecera. Era algo mais duro, mais feroz. Os olhos escuros podiam ser frios. Mas havia um fogo queimando sob aquela fachada imperturbável, pensou ela. Não gostaria de brigar com ele. Natasha estremeceu com o pensamento e imediatamente sentiu raiva. Não importava com quem brigaria. Podia cuidar de si mesma. Mais importante, podia cuidar do inimigo! Podia cuidar de tudo. Sempre pudera. Sempre poderia. Relaxe, disse ela a seus instintos. A porta levava a um laranjal à moda antiga, todo em madeira clara e vidro. Era quente e cheio de árvores cítricas. Impressionada, ela parou à porta, todos os sentidos ligados no aroma. E Kazim tropeçou nela. Foi como uma agressão, um choque elétrico diretamente nos nervos. Ela pulou, tropeçou... E praguejou. Ele a pegou pelo cotovelo e a colocou de pé. — Cuidado. Seus dedos estavam frios da noite gelada, mas não sua forma de pegá-la. Natasha sentiu como se um fogo dentro dele passasse, como uma corrente elétrica, e acen desse algo dentro dela também. Aquilo literalmente tirou sua respiração. Ele olhou para ela, surpreso. — Você está bem? Ela estremeceu novamente e não respondeu. — Você está nervosa? Natasha voltou à Terra. — Experimente perguntar se estou congelada até a morte — disse ela de modo agradável. Ele não pareceu acreditar muito naquilo. Mas deu de ombros e continuou andando, abrindo caminho entre as árvores de laranja e limão como se formassem uma rota de obstáculos que ele poderia correr com os olhos vendados. Abriu a porta da casa com um floreio. O que ele sabe que eu não sei? Mas não ia deixá-lo ver que a estava atingindo. Passou pela porta que ele estava segurando e olhou friamente para o saguão forrado de carvalho. — Impressionante! As paredes estavam cheias de gravuras vitorianas e retratos gigantescos de cidadãos em vestes de gala. Ela deu um assovio silencioso.
— Quem é o dono deste lugar? Deve ser um fóssil completo. A coluna dele ficou rígida feito aço. — O dono certamente valoriza a tradição. — Seu tom dizia que ela era uma coisinha moderna e inútil, incapaz de compreender. Natasha decidiu que era hora de um pouco de gozação. — Gente engraçada — observou ela, olhando um grupo familiar. — Até o cão de caça parece estar usando um colete. — Não é amante das artes, srta. Lambert? — Não sou fã de esnobes cheios de pompa — rebateu ela. — O dirigente parece mesmo estar em seus melhores trajes — admitiu pensativamente, para surpresa dela. Porém, antes que Natasha pudesse se aproveitar de sua pequena vantagem, ele a levou escadas acima e virou num corredor discretamente iluminado. — A srta. Dare achou que você gostaria do quarto egípcio. Disse que gostaria do lustre. E há um banheiro dos anos 20 de verdade. — O que há de tão especial num banheiro dos anos 20? — perguntou ela com desdém. A expressão de Kazim não mudou. Mas Natasha soube que tinha cometido outro erro. De alguma forma, ela o deixara marcar um ponto. — Ficarei feliz de lhe mostrar. — Ele foi muito suave. Como alguém fazendo o papel de mordomo no palco. As sobrancelhas dela se uniram com uma rápida suspeita. Mas antes que o pudesse desafiar, ele tinha aberto uma grande porta de carvalho. Acendeu a luz e recuou para deixá-la entrar primeiro. Ela parou à porta, piscando sem acreditar. O aposento tinha tudo. Não apenas um lustre, mas uma cama com dossel de veludo, alguns baús realmente antigos e uma pintura que parecia um Monet original. Ela engoliu em seco. Mas não tinha tempo para reverenciar o quarto. Seus pés estavam doendo muito agora. Na verdade, sua sola esquerda estava queimando. Devia tê-la ferido enquanto tropeçava atrás dele no cascalho e na grama cheia de gravetos. Recusando-se a deixá-lo ver em que estado ela estava, entrou rapidamente no quarto, concentrando-se totalmente em não mancar. Kazim seguiu-a. Colocou a pequena mala, com muito mais cerimônia do que merecia, num banco ao pé da cama. Deu uns tapinhas na rica colcha de brecado, como se estivesse testando a maciez da maldita cama, pensou Natasha, indignada. — Obrigada — disse ela rispidamente, dispensando-o. Ele não pareceu notar. Apenas assentiu, reconhecendo seu agradecimento. Estaria rindo dela novamente? Kazim abriu uma gaveta, depois outras, em rápida sucessão. Seu nariz cocou com o cheiro de lavanda e naftalina. — Realmente tradicional — disse ela, quase para si mesma. — A casa de minha avó tinha esse cheiro. Kazim não gostou daquilo. — Você vai encontrar suéteres aqui. E camisas. Por favor, sinta-se à vontade.
Natasha voltou para o presente com um pulinho. — Obrigada — repetiu ela com ênfase e abriu a porta, ficando ao lado dela de maneira clara. Ele ignorou a dica. Em vez de sair, cruzou o grande quarto e abriu largamente um par de portas duplas que ela não tinha notado antes. — E aqui está a resposta para sua pergunta. Seu banheiro! Quase podia ouvir o soar de trombetas, pensou Natasha. Estava claro que ele não ia sair até que ela o tivesse inspecionado. — Realmente não há necessidade de fazer uma visita guiada. Sei como torneiras funcionam. — Mas estas torneiras são excepcionais. Os lábios dele se curvaram? Ela o encarou com suspeita. Ele a encarou de volta, um mordomo sem expressão. Ela desconfiava profundamente dele. Mas não ia deixá-lo levar a melhor. Um banheiro era algo íntimo demais, claro. Mas não mais íntimo do que aquela batidinha de dono na colcha. Tinha muita certeza que ele sabia daquilo e estava deliberadamente se divertindo. Natasha fixou no rosto um sorriso tão enganador quanto o dele e mancou até ficar ao lado de Kazim. Mas não muito perto. — Obrigada. Muito bom. Isso... Depois ela percebeu o que era o banheiro e parou, congelada. Seu queixo caiu. — Decadente, você diria? — perguntou, satisfeito. — Eu nunca... — Ela se controlou. Não ia deixar aquele maldito sujeito fazê-la perder a calma tão facilmente. — Que interessante — disse com a voz fraca. — Egípcio? — Bem, egípcio de Hollywood — concordou Kazim. — Foi criado por um diretor de arte de cinema. Impressionante, não é? — Só falta o sheik — disse ela emocionada, esquecendo-se novamente de ser fria. Por um instante, ele não ficou mais impassível. Seus lábios curvaram-se perceptivelmente. — Isso pode ser arranjado. — Desculpe. O quê? Ele estava dando largas passadas em torno do banheiro, indicando sua decoração única com comentários prestativos. Natasha mal escutava o que ele dizia. Todas as superfícies horizontais do banheiro eram de mármore brilhante: chão, teto, toucador, até o peitoril da janela. As paredes, onde não eram decoradas com espelhos brilhantes, estavam cobertas de hieróglifos e figuras de virgens sagradas egípcias estilizadas, com mais maquiagem nos olhos do que vestimentas. A banheira era circular; na beirada de mármore havia entalhes que ela percebeu, de repente, que eram descansos de cabeça. Dois descansos de cabeça, para ser mais precisa. Se estivesse com Izzy, elas teriam se sentado na beira daquela banheira absurda e rido até chorarem. Mas aquela não era uma piada que podia compartilhar com esse mordomo. Não com Kazim, com seus olhos indecifráveis e sua risada reservada. E sua mordomia teatralizada.
A verdade é que ele era muito sexy para ser mordomo. Ele a desafiava. Deixava-a constrangida. Fazia-a pensar. E precisava falar sobre aquilo tudo com algumas boas amigas e uma garrafa de vinho. Natasha sentiu um toque agudo de tristeza. Ah, sim, realmente tinha aguardado ansiosamente aquele fim de semana com as garotas. Teria sido bom retirar a armadura por um tempo. Oscilou imprudentemente e estremeceu, enquanto seu calcanhar machucado reclamava. Descobriu que ele a estava olhando estranhamente. Será que havia percebido? Não queria que esse homem reconhecesse aquele momento pouco característico de fraqueza. — Obrigada por me mostrar o quarto. Agora eu gostaria de trocar de roupa. Entretanto, ele não saiu. Ao contrário, não mostrou sinal nem mesmo de ter notado que tinha sido dispensado. — Você está machucada? Ela se assustou. — O quê? — Você estava se encolhendo. — Não estava. Ele não a contradisse. Só olhou. Subitamente estava cheio de arrogância masculina de novo. Natasha reagiu àquilo. Seus olhos se estreitaram e seu queixo elevou-se perigosamente. — O que foi? — Agora que estou pensando no assunto, você também estava mancando no laranjal. — Tudo bem, talvez eu estivesse. E daí? — Daí que eu quero saber como você se machucou. — Bem, essa é uma boa pergunta. Poderia ter algo a ver com o fato de ter sido obrigada a marchar por um caminho acidentado no escuro à velocidade da luz? Certamente não! — Está dizendo que é minha culpa? Natasha caiu na gargalhada. Por um instante ele pareceu furioso. Depois aquilo passou e ele era o mordomo cortês novamente. — Então devo fazer o que puder para ajudá-la. — Por que você se incomodaria? — perguntou Natasha, rude como sempre. — Você é minha convidada. Ela mostrou os dentes num sorriso desafiador. — Sou convidada de Izzy Dare. Os olhos dele piscaram com um ar de aborrecimento, palpável como fumaça. Isso! Natasha marcou um ponto para a guerreira feminina. Um ponto pequeno, mas merecido. Contente com a vitória, ela fez um gesto na direção da porta.
— Agora, se você puder sair, descerei em alguns minutos. — O tom superior a agradava. Pela segunda vez ele ignorou que ela o estava dispensando. — Obriga... Ela não continuou. Ele a levantou do chão. — Coloque-me no chão — exigiu Natasha furiosamente, não se sentindo mais superior. Ele o fez. Mas não da maneira que ela queria. Não mesmo. Kazim a largou num banco e olhou sem expressão para suas meias arruinadas. — O que você fez? Natasha não se sentia tão imunda desde que tinha arranhado o joelho no playground e sua mãe a havia repreendido. Ela o olhou com raiva. — Perdi meus sapatos, não foi? Ela tentou reaver os pés. Mas não conseguiu. Ele os examinou rigorosamente. — O que acha que está fazendo? — Natasha estava trêmula. Kazim girou o tornozelo dela. Ele era gentil, mas firme. — Nada de ossos quebrados — decidiu. Natasha estava mexida. Para disfarçar, perguntou com desagrado: — Você também é médico? Ele levantou os olhos, com um lampejo surpreendente de brincadeira nos olhos. — Não, mas já corri riscos físicos o suficiente para saber o básico. Ela aproveitou a oportunidade para resgatar o pé. — Nada de ossos quebrados — disse ela laconicamente. — Você mesmo o disse. Agora por favor, você poderia...? Ele levantou o outro pé. Não havia nem um vestígio de meias rasgadas entre suas peles desta vez. E aqueles dedos eram tão quentes que ela pôde sentir o sangue pulsando contra sua pele fria. A boca de Natasha ficou seca. Esqueceu o que ia dizer; quase esqueceu como pensar. Tudo o que conseguia fazer era ficar ali sentada, sem ar, olhando para a cabeça abaixada dele, e pensar como seus cabelos eram crespos e escuros, como seus ombros eram surpreendentemente largos. Como suas mãos eram sensíveis... Natasha endireitou-se. Estava horrorizada. Aquele era o tipo de coisa que se pensava sobre um amante. Mas nunca sobre um estranho. Eu devo estar fora de mim. — Pare com isso — ordenou ela rispidamente. — Você está sangrando. — O quê? Ela se abaixou para espiar o pé. Seus rostos de repente ficaram muito próximos. Ela sentiu o cheiro de uma colônia muito cara. Desde quando mordomos usam Amertage?
Distraído, Kazim disse: — Ah, aqui está. Você parece ter rasgado a pele. Fique parada um instante. — O quê? Por quê? Ai! Ela se encolheu com a dor aguda. Ele levantou um espinho de rosa de aparência selvagem e ofereceu-o a ela. — Uma fera e tanto — disse ele, satisfeito. — É — concordou Natasha fracamente. Ele ainda estava concentrado em sua tarefa. — Você precisa de um curativo. Vou procurar alguém para... — Ele parou abruptamente. Natasha estava desesperada para ficar sozinha. — Não se preocupe. Tenho gaze e esparadrapo na mala. Eu mesma faço o curativo. — Então eu pego para você. Natasha encolheu-se por dentro. Ela realmente não queria esse homem mexendo em suas coisas. Viajava muito que quase tudo na mala era profundamente pessoal. O conteúdo revelava muito sobre ela, da simples roupa de baixo de algodão até os lenços de seda colorida; sem contar aqueles ridículos chinelos felpudos. No entanto, ela não podia dizer isso, podia? Aquilo apenas mostraria o quanto ele a fazia se sentir exposta, até o instigaria a investigar mais. Então ficou observando, enquanto ele voltava para o quarto e abria a pequena mula. Tentando parecer indiferente, ela disse: — Há uma pequena bolsa de primeiros socorros em algum lugar. Kazim começou a esvaziar a mala, colocando suas roupas em pilhas caprichadas sobre a cama. — Muito eficiente, viajar com seu próprio kit médico. — Sou eficiente. Seu estômago revirou ao ver aqueles longos dedos entre suas sedas e cashmeres. E quando encontrou os amassados chinelos de gatinhos, ele fez uma pausa, olhando-os como se não pudesse acreditar em seus olhos. Ele não disse nada. Mas Natasha sentiu o rosto queimar. Ela olhou em torno ferozmente procurando uma distração. Encontrou-a na decoração egípcia. — Quem decorou isto aqui? Banheiros Egípcios Produções Ltda.? É ultrajante. Ele colocou os chinelos no chão e riu. Era um som sexy. Tão sexy que os cabelos de Natasha se arrepiaram suavemente na nuca. Aquilo a surpreendeu. Arrogância e sensualidade não andavam juntas. Não normalmente. Esse homem parecia estar revolucionando todas as suas reações normais. — É puro art déco — disse ele. — Eu já falei. Foi encomendado a um especialista de Hollywood. — Tinha de ser. Ou isso ou então nós teríamos um sério caso de roubo de túmulos aqui.
— Ah, aqui está. — Ele voltou ao banheiro com a bolsinha de primeiros socorros. Ela ainda podia sentir os vestígios do rubor. Era tudo sua culpa também! Que tipo de mulher profissional pensava que chinelos felpudos de gatinhos eram indispensáveis para uma viagem internacional de negócios? O que ele pensaria dela? E o que importava o que ele pensava? Mas ela não admitira que tivesse aqueles chinelos para ninguém, nem para a mãe, nem mesmo para Izzy. Muito menos que os levava sempre que viajava. E agora esse homem gozador, imprevisível e sexy era a única pessoa no mundo que sabia de seu segredo vergonhoso. Bem, pelo menos desse segredo. Ela estremeceu. — Obrigada — murmurou. — Meu... — Ele parou abruptamente. — Bem, o dono original era condenável, mas nunca foi ladrão de túmulos. Natasha seguiu seu olhar. As virgens eram magras como caniços e se contorciam em nós graciosos com suas musculaturas elásticas. Ela as olhou azeda. — São apenas mulheres jovens usando muita maquiagem nos olhos e não muito mais — afirmou ela. Eram bonitas, inteiramente confiantes em seu fingido hedonismo. Definitivamente não eram o tipo de mulher que ficava digitando num computador às cinco da madrugada. — Já se sentiu vencido alguma vez? — O tom de Kazim ficou bem mais confortador. — Elas não representam mulheres da vida real, sabe? Natasha pulou e voltou ao momento presente. — Obrigada por me tranqüilizar — disse ela secamente. — Desnecessário, tenho certeza. — Meu Deus, você é afável. Ela não disse aquilo alto. Um visitante educado não fazia observações pessoais para o mordomo, mesmo que fosse um mordomo emprestado, com uma atitude evasiva e um gosto extravagante para cosméticos. Ela quase arrancou a bolsa de primeiros-socorros da mão dele e rapidamente encontrou um curativo. Retirou o papel protetor e inspecionou o calcanhar. Kazim a observava com evidente desaprovação. — Você certamente vai desinfetar a ferida antes de colocar o curativo, não? Natasha respirou fundo. — Olhe, foi apenas um espinho de rosa, certo? Não um dardo venenoso. — Mesmo assim, seria mais seguro lavá-la. Seus pés estão muito sujos. Uma vez, quando ela tinha uns 8 anos, sua mãe tinha vindo pegá-la na escola. Era verão e a mãe usava um bonito vestido de voile com cheiro de flores de maçã. Satisfeita com o prazer inesperado, Natasha tinha saído correndo da quadra de esportes e se jogado em seus braços. Claro, ela estava suada e coberta de areia. Não foi surpresa a mãe ter recuado. Mas aquilo ficou, aquele pequeno, involuntário, incontrolável momento de repulsa. E doía. Natasha muitas vezes imaginava o que a mãe teria dito se tivesse visto a única filha vestindo camisetas e shorts que não eram mais que andrajos, sem tomar banho há dias, caminhando com dificuldade pela selva sob as ordens de um valentão arrogante. Porque sua vida dependia dele. Recuar não a teria protegido. Chinelos felpudos de gatinhos eram apenas parte das coisas que Natasha não contava a seus entes mais
próximos e queridos. E agora aqui estava Kazim, que tinha visto aqueles chinelos e usava a colônia mais cara do mundo. Certo, sua reação não foi exatamente de recuo. Mas ele não gostava de seus pés sujos, aquilo era bastante óbvio. — Obrigada por me lembrar disso — disse ela secamente. — Vou tocar a campainha para chamar alguém... — ele fez outra daquelas pausas abruptas. — Não há necessidade, obrigada — disse ela baixinho. — Há lenços anti-sépticos no kit de primeiros-socorros. Posso cuidar de tudo daqui para frente. — A ferida está num lugar chato. — Estou bem. Não preciso de ninguém. Fiz meus próprios curativos a vida inteira. E vou tomar um banho. Vou me esfregar da cabeça aos pés, prometo. Se você simplesmente for... Embora. Os olhos dos dois encontraram-se como espadas. Ele não foi embora. Ele não se mexeu. Depois a surpreendeu. Profundamente. — Quando a vi pela primeira vez — ele estava pensativo — Achei que você parecia um robô. Naquele ambiente reluzente e voluptuoso, ele colocou um dedo na veia que pulsava na garganta dela. — Você não parece um robô agora. Natasha ouviu-se ofegar como um balão explodindo. Kazim sorriu e inclinou-se para ela. Vagarosamente. Os olhos de Natasha estavam cautelosos, mas ela sentia um calor ardendo em fogo lento ali. E havia uma pergunta lá no fundo, uma pergunta que ele exigia que ela respondesse... Natasha se inclinou cada vez mais para trás até achar que sua coluna ia quebrar. Mas não o empurrou. E não ousou proferir nenhuma palavra de protesto. Kazim procurou seu rosto. Parecia muito sério; não estava mais provocando, nem mesmo questionando. Nenhum relance agora do homem cujos lábios haviam se curvado por causa de seus pés sujos. Nada daquela arrogância de arrepiar. Ele parecia estar partindo com ela para um território desconhecido e querendo saber se podia confiar nela... Natasha reteve a respiração, chocada. Estava excitada com a expressão dele e aquilo também a chocou. Então, enquanto ela o observava, seus olhos piscaram e ele se endireitou. Estava sorrindo novamente, mas seus olhos estavam camuflados. O fogo lento estava apagado, como se nunca tivesse existido. A pergunta, parecia, já tinha encontrado sua resposta. Ele sorriu. — Surpreendente. Ele parecia estranhamente satisfeito. E, antes que ela pudesse encontrar sua voz ou pensar em algo inteligente para dizer, ele tinha inclinado a cabeça e saído. Natasha descobriu que estava prendendo a respiração. Inclinou-se sobre o conjunto de mármore, respirando cada vez com mais força. Finalmente sua respiração voltou ao normal. Estava desnorteada. Que diabos tinha acontecido? Ela se olhou longamente no espelho veneziano. Seus cabelos bem cortados
estavam desarrumados. Mas ela os arrumaria com uma boa escovada. Depois os cabelos louros naturais voltariam à forma elegante. Era por isso que pagava uma fortuna ao cabeleireiro. Eles emolduravam seu rosto, enfatizando as maçãs do rosto sutis, diminuindo a boca grande, o nariz decidido, os olhos cinzentos assimétricos e cansados de viver. Bem, naquele instante aqueles olhos cansados pareciam inseguros. Sim, sem sombra de dúvida, Kazim, o mordomo, a tinha desorganizado completamente. Mas ela não ia aceitar aquilo. Ninguém desorganizava Natasha Lambert. O que precisava fazer agora mesmo era tirar a roupa de trabalho. Parecer um robô, francamente! Ela se transformaria agora em Natasha, a Convidada da Festa. E então, faria o maior sucesso com cada homem solteiro da fogueira, para variar. Incluindo Kazim Quem-Quer-Que-Seja, com seu interesse esquisito por passaportes e seu detestável senso de humor. Sem falar na maneira pomposa de realizar suas tarefas de mordomo. Involuntariamente, Natasha olhou de novo para o banheiro voluptuoso. Tinha sido construído exatamente para atiçar fogos lentos. — Oops. De onde aquilo tinha saído? Já faz bastante tempo desde que você resolveu seduziu alguém — disse a si mesma, pesarosa. — Hora de aplacar novamente. Limpou os pés imundos até que estivessem rosados e macios como um bebê. E tentou não se lembrar das mãos dele. Na verdade, esfregou-se durante o banho sem olhar nem mesmo uma vez para aquele espelho feito para a sedução. Desfez a mala com eficiência enérgica. Depois, encontrou um suéter na gaveta. Era grande demais. As mangas caíam sobre suas mãos e ela poderia puxar a gola pólo para cobrir todo o rosto, se quisesse. Havia algo tranqüilizador no cheiro: lã, sabão em pó e um toque de algo mais que ela não conseguia definir, mas era prazerosamente familiar. Serviria perfeitamente. Por baixo, ela colocou roupa suficiente para se manter aquecida. Pegou suas luvas forradas de pele e desceu, procurando as botas que Izzy tinha oferecido. E voltou para a festa.
Capítulo 4 Dominic Templeton-Burke estava servindo o churrasco. Levantou os olhos quando Kazim se aproximou. — Onde você estava? O pessoal da pirotécnica quer saber onde colocar os fogos de artifício. — Você decide. A festa é sua. — A casa é sua — lembrou-lhe Dom. — Tenho certeza que eles são suficientemente profissionais para explodir tudo para o alto. — Você é um otimista. — Eu delego o poder — corrigiu Kazim. — Emprego os melhores profissionais e depois acredito neles para fazerem seu trabalho.
— Você abusa do poder do dinheiro — provocou Dom. — Não nego. — Kazim mudou de assunto. — Conte-me sobre a amiga de Izzy. Dom estava inspecionando o carvão, mas, ao ouvir aquilo, levantou os olhos, surpreso. — Está falando da Senhorita Eficiente? Você a conheceu? — Encontrei-a na porta de entrada — disse Kazim cuidadosamente. — Aqui? Achei que ela não ia aparecer. Tem certeza? — Espero que sim. Caso contrário, acabo de levar uma assassina em potencial para a suíte egípcia — disse Kazim, irônico. E suspirou. — Relaxe. Foi uma piada. Izzy já a identificou. Dom ficou intrigado. — Elas são boas amigas. Mas ainda não a conheci. Como ela é? — Uma loura cheia de atitude — respondeu, saboreando as palavras. — Izzy diz que ela pode ser bastante mal-humorada. — Gentileza dela, acredite em mim. — Ah. — Dom sabia como interpretar aquilo. Eles eram amigos há muito tempo. — Já se enfrentaram, não é? — Digamos que ela não gosta de mim. — Que surpresa. — Muito divertido — disse ele calmamente. — Agora me conte tudo que sabe sobre ela. Dom ficou surpreso. Conhecia o gosto de Kazim para mulheres. Natasha Lambert, por tudo que ouvira dizer, não devia ser uma delas. — Bem, pelo que Izzy diz, ela é especialista em pesquisas de mercado. É dona de sua própria empresa. Ganha fortunas. Kazim lembrou das roupas levemente luxuosas na mala. Bem, tirando os chinelos peludos com caras de gato, e da expectativa de ser obedecida. Ele sorriu. — Isso se encaixa. Não há um Sr. Lambert? — Acho que não. Izzy parece pensar que ela é uma garota de programa par excellence. Kazim pensou na loura altiva sob a luz nos degraus da frente. Poderosamente vestida e furiosa! Ele sorriu. — Ela não se parece com nenhuma garota de programa que eu já tenha conhecido. — E você conheceu muitas. Nós dois conhecemos. Os olhos deles se encontraram em perfeita compreensão. Dom era um cavalheiro. Disse, desconfortável: — Como eu disse, não a conheço, mas... As notícias correm. Quando ela vai à cidade, normalmente há algum homem a reboque. — Ah — Kazim digeriu aquilo. — Algum homem. Não necessariamente o mesmo.
— Não. Nem o mesmo homem duas vezes, pelo que ouvi dizer. — Interessante — Kazim parecia mesmo interessado. Dom ficou um pouco alarmado. Kazim tinha a reputação de ser um amante generoso, muito além das flores e da poesia. Mas não ficava em nenhum lugar por muito tempo e se entediava facilmente. Olhe — disse ele. — Natasha Lambert pode comprar suas próprias pulseiras de diamantes e não parece que vá se impressionar com poesia. — O que quer dizer com isso? — Ela não faz o seu tipo. Não se envolva. Tem tudo para dar errado. Kazim parou de fazer o papel de sheik e pareceu surpreso. — E daí? — Daí que Izzy vai se aborrecer com isso. E eu terei de escolher um lado — disse Dom, chateado. — Você perdeu o gosto que tinha pela aventura. — Louras fatais nunca foram meu tipo de aventura — admitiu Dom. — Pois saiba que elas podem ser bem recompensantes. Kazim viu uma figura pequena e determinada descendo a colina do outro lado da fogueira. As botas eram grandes demais, bem como a roupa emprestada. Ele conhecia aquele suéter. Como ela tinha conseguido descobrir um dos seus entre todas as roupas descartadas naquelas gavetas? — Muito recompensantes — disse ele com sabor. — Desculpe-me, tenho de falar com uma mulher sobre um poema. E deixou Dom de boca aberta. Natasha andou rapidamente na direção do lago. Com aquele suéter irlandês emprestado, estava quente como uma torrada. Além do mais, agora que sabia onde todos estavam, a escuridão não parecia tão ameaçadora. Teve a previdência de levar sua pequena caneta-lanterna, mas ela não mostrava muita coisa nos arbustos densos. Nenhum sinal dos sapatos caros. "Devo me lembrar de procurá-los amanhã antes de ir embora", pensou. "Sem falar no telefone celular. Provavelmente um monte de ferro velho, mas mesmo assim devo procurá-lo. Mordomo? Ele está mais para demolidor". O pensamento veio involuntariamente: um demolidor muito sexy. Ela corou no escuro, piscou e errou o passo no chão lamacento. As botas enormes a faziam vacilar. Sua lanterna riscou o céu. — Ah, aí está você — disse Izzy carinhosamente, emergindo da escuridão. — Mandando sinais de socorro, né? — Ah, que bom. Você encontrou um belo e quente suéter — disse Izzy, distraída. — Finalmente — disse Natasha com raiva. — Depois da turnê no banheiro e de uma aula sobre higiene médica. Conte-me sobre esse mordomo. — O quê? Quem? — A criatura que me levou até o quarto.
— Kazim? — Esse mesmo. — Um pensamento horrível ocorreu a Natasha. — Ele não é o mordomo? Natasha fechou os olhos. A roupa bonita. A colônia de mil de dólares. Aquele ar de quem estava representando. Claro, ele não era um mordomo. Ela já sabia daquilo, no fundo. Se apenas não tivesse sido tão arrogante, se apenas não estivesse tão determinada a vencê-lo, se apenas tivesse ouvido seus próprios instintos! Ela gemeu alto. — Ele é o dono da casa — disse Izzy fracamente. — Dono... — foi a vez de Natasha perder a fala. — Ai, por favor, me diga que não o insultou, Tash. — Insultá-lo? Eu quase o beijei. — Natasha se recompôs. — Por que ele disse que era o mordomo, então? — Ele disse? — Bem, talvez não exatamente — admitiu ela. — Mas ele sabia que eu achava isso. — Provavelmente estava brincando. Dom diz que ele tem um grande senso de humor. Ah, sim, um enorme senso de humor. — Estou passada — disse Natasha. Izzy parecia estar pedindo desculpas. — Dom diz que Kazim não está sendo ele mesmo este fim de semana — disse ela em tom de desculpas. — Acha que ele deve estar preocupado com alguma coisa. — É. Ele parece um pessimista. — Natasha foi seca. — Não o odeie, Tash — implorou Izzy, subitamente séria. — Ele é o melhor amigo de Dom. E eu realmente preciso de seu apoio aqui. Era um apelo que Natasha não podia deixar de atender. Houve uma época, na selva, quando tudo o que tinham para seguir em frente era o apoio uns dos outros. Natasha tocou brevemente o braço de Izzy. — Não se preocupe, Izzy. Serei legal. — Mesmo? — Izzy observou-a na escuridão, meio esperançosa, meio descrente. Natasha endireitou os ombros e disse, com heroísmo verdadeiro: — Já gosto dele como se fosse um irmão. Não demorou muito para que sua resolução fosse testada. Ela já tinha comido salsichas defumadas e perguntado a Dom todas as coisas corretas. Brindara com os dois e bebera champanhe. Conversara e rira das histórias engraçadas de outras pessoas. Mas por dentro estava começando a se sentir mortalmente cansada e a pensar com saudade naquela grande e convidativa cama. Estava tentando estimar as chances de escapar de volta para a casa sem aborrecer Izzy quando... — Procurando um guia? — disse uma voz divertida em seu ouvido.
Natasha se retesou, mas não virou para olhar. Tinha prometido a si mesma que seria legal e precisava se controlar. — Acho que você deve estar rindo de mim — disse ela para a fogueira distante. — Está se tornando um hábito. — Ah. Deduzo que Izzy lhe deu meu currículo. — Não parecia nem um pouco arrependido. — Izzy me contou que você é dono deste... lugar. — A última palavra estava carregada de ironia. — Certo. Não é moderno o suficiente para seu gosto. Mas você tem de admitir que o banheiro egípcio, pelo menos, foi uma experiência única. Natasha lembrou-se que Izzy era sua melhor amiga e queria que ela se entendesse com Kazim. Então respirou fundo e permaneceu civilizada. — Você não desiste? — perguntou ela por fim. — De quê? — De tentar me deixar envergonhada. — Acredite em mim, não preciso tentar. Parece acontecer por conta própria. — Tudo bem — disse Natasha, irritada. — Eu nunca deveria tê-lo chamado de Tropeço. Aquilo não era razão para você se aproveitar. Esse tipo de mal-entendido pode deixar uma mulher nervosa. —Seria preciso mais que um mal-entendido para deixar você nervosa. Tenho certeza. — Não foi um mal-entendido. Foi enganação. Ele jogou a cabeça para trás e riu alegremente. — Você é impagável! — Você nega que, deliberadamente, me fez pensar que era o mordomo? — Nego. A história do mordomo foi totalmente sua. Natasha recusou-se a ceder. — E você simplesmente me deixou continuar pensando isso, não é? Foi estimulante para você? Até no escuro ela conseguiu ver o brilho cruel em seus olhos. As chamas bruxuleantes da fogueira o fizeram parecer o próprio demônio encarnado. — Foi a melhor diversão que tive este ano. Natasha não conseguia acreditar em seus ouvidos. — Melhor diversão...? — Não saio muito — disse ele, em tom de desculpas. Ela não acreditou nele nem por um momento. Se houvesse um sujeito que gostava de festas era esse homem, que brincava de ser mordomo porque achava divertido. Descobriu que ele a estava observando com profunda apreciação. — Vá em frente — pediu ele. — Grite. Você sabe que quer fazer isso. Era pura provocação. Depois de um instante de ultraje sufocante, Natasha percebeu.
— Não, obrigada. — O tom era impecavelmente polido. — Tem certeza? Ah, ele era um jogador. Seria melhor que ela o deixasse antes de fazer algo de que se arrependeria pela manhã. Como dar um tapa naquele rosto bonito e sorridente. Ela se virou. As botas enormes escorregaram e Natasha cambaleou um pouco. Imediatamente ele a segurou pelo ombro, o braço firme e forte. Seu corpo era quente. Como ele conseguia ficar tão quente usando apenas um terno, quando todos os outros estavam tão agasalhados contra o frio? Corno aquele calor queimava através dela, como se o sangue dele tivesse subitamente feito uma conexão com o dela? Seus ouvidos zuniram. — Cuidado — disse ele. A atração era tão forte que quase a fez perder a razão. Cuidado mesmo! Mas, por mais emocionada que estivesse, ela tinha anos de prática de autocontrole. — Pode deixar — disse ela depois de uma leve pausa. Ela retirou o braço. — Estou escorregando dentro dessas botas malditas. Não estou prestes a cair. Você não tem nenhuma desculpa para pular em cima de mim desta vez. — O que faz você pensar que preciso de uma desculpa? — ronronou ele. Natasha tomou novo fôlego. — Ah, por favor. Não essa cantada antiga. — Você é uma mulher difícil. — Ele pareceu ferido. Natasha virou a lanterna para o rosto dele. Ele estava tentando manter o rosto sério. Mas seus olhos o encararam. Ele estava se divertindo feito louco. Natasha viu tudo vermelho. Ela se esticou, dispôs seu peso naquelas botas traiçoeiras e deu um passo adiante. E disse com grande calma: — Difícil o suficiente para lidar com você, meu caro. Ele piscou. Era óbvio que as pessoas não falavam daquele jeito com Kazim QuemQuer-Que-Fosse. Natasha viu aquilo com satisfação. Ela sorriu, desligou a luz e virou as costas, pisando forte, colina acima a uma velocidade quase de foguete. Ele emparelhou com ela sem hesitar. — Onde você está indo? — Ele pareceu interessado. — Estou louco para ficarmos a sós, mas você acha que esta é a hora para um encontro entre os arbustos? Natasha não perdeu tempo dizendo a ele mentiras educadas sobre bolsas perdidas. — Vou para a cama — disse ela sem rodeios. Ele riu. — Boa idéia, mas não ainda, acho. — Não ainda...? — Ela levou dez críticos segundos para entender o que ele queria dizer. Na hora em que entendeu, ele já estava rindo abertamente. — Devo me sentir lisonjeada? Ou chocada?
— Tenho certeza que você é sofisticada demais para as duas coisas — disse ele. — Talvez um pouco curiosa? A respiração dela ficou inesperadamente difícil por um instante. — Não — disse ela por fim. — Não estou nem um pouco curiosa. — Então vejo que terei de fazer um esforço maior. Por um instante, Natasha ficou seriamente tentada a tirar a máscara dele. Kazim, ela estava começando a perceber, era um controlador com um senso de humor detestável. Mas não poderia estar falando sério sobre fazer amor com uma mulher que tinha acabado de conhecer e para quem não ligava muito, a não ser para rir à sua custa. Se ela se virasse e dissesse "Certo, então vamos, me leve para a cama", ele teria de voltar atrás. Só que ela não tinha certeza que ele voltaria atrás. E não se daria ao luxo de arriscar. Então disse apenas, secamente: — Tive uma semana difícil e estou exausta. Preciso dormir. — Não, não precisa. — O quê? — Ela parou abruptamente. As botas a fizeram oscilar. Ele aproveitou a oportunidade para colocar o braço em torno dela. Quase parecia um tio. Natasha afastou-o. — O que você quer dizer com não preciso? — perguntou ela. — Como sabe como estou me sentindo? Tenho todo o direito de estar sentindo os efeitos do fuso horário. — Ah, você tem o direito, é verdade. Só que você não está com efeitos de fuso horário. Está mal-humorada e quer sair correndo para ficar sozinha — disse ele, numa voz horrivelmente bondosa, como se realmente fosse seu tio. — Estou sentindo o fuso horário... — Até para os ouvidos de Natasha aquilo soou infantil. — As pessoas com fuso horário trocado não sobem colinas correndo como se sua vida dependesse disso. — Está com inveja de Isabel? — perguntou ele suavemente. — Você é louco. — Então você detesta Dom. — Não conheço Dom. No escuro, ela viu o brilho de seus dentes brancos. O maldito homem estava sorrindo. — Então fique e veja os fogos de artifício. — O tom era quase uma carícia. Sim, absolutamente não havia dúvidas. Ela o odiava mais do que a qualquer homem que jamais conhecera. E olhe que ele tinha muitos competidores. Enquanto ela o olhava na escuridão, ele disse calmamente: — Você sabia que Isabel fez Dom esperar para anunciar o noivado, pois queria você aqui? Os fogos de artifício deveriam ter acontecido na noite passada. Natasha parou de ferver por um instante, surpresa. — O quê? — Isso tudo... — ele fez um gesto para a festa na fogueira distante e depois para uma área cercada por cordas que ela não tinha notado antes — ...foi planejado para
acontecer na noite passada. Mas você não chegou. Nem mandou um recado. Natasha ficou muda. — Os fogos de artifício foram adiados por sua causa. Apenas por sua causa. — Ele não estava mais sorrindo. — Você realmente pode ir embora assim? — Tudo bem, você venceu. — Como? Mas ela não ia dizer aquilo novamente. — Você sempre consegue que as pessoas façam exatamente o que você quer? — Eu tento. — Bem, meus parabéns. Você é bom nisso. — É melhor que eu seja mesmo. Ela não entendeu e não ia dar a ele a satisfação de perguntar. Estava extremamente cansada. Mas Izzy era sua amiga. Se Izzy queria Natasha a seu lado quando os foguetes subissem, ela estaria lá. Contudo, não tinha de ficar ao lado de Kazim. Ela o largou e encontrou a amiga. — Ótima festa — disse ela alegremente. — Diga-me o que posso fazer para ajudar amanhã, estou vendo que todo mundo trabalhou hoje. Izzy hesitou. — Os rapazes vão fazer a limpeza hoje e Pepper fez o almoço ontem. Então talvez você possa preparar o café-da-manhã. Sei que você acorda de madrugada. — Muito antes do amanhecer em novembro — disse Natasha secamente, feliz por ter um problema prático. — Certo, tudo bem. Café-da-manhã inglês completo para... Quantas pessoas? — Ah, cinco ou seis, talvez. Depende de quem acordar. — Doze, assim que sentirem o cheiro do bacon — disse Natasha, realista. — Café completo para doze amanhã. Deixe comigo. Não havia tempo para mais nada. Um foguete subiu aos céus e explodiu como uma flor de ouro e prata e verde. Houve um "ah!" coletivo e todos tomaram seus lugares para ver. Círculos de luzes giravam e brilhavam e o ar estava cheio de alegria e do cheiro de pólvora. Izzy ficou de pé em frente a Dom, com a cabeça encostada em seu ombro. Natasha o viu passar os bravos em torno dela. Ele deu um beijinho nos cabelos de Izzy. Ela não se virou para olhá-lo, apenas chegou um pouco mais perto, como um animalzinho esfregando a cabeça na pele de seu companheiro. Era um gesto de total confiança. — Não faça isso — ela quis gritar. — Não se deixe ficar tão vulnerável. Mas, claro, ela não o fez. Apenas virou o rosto. E se descobriu olhando dentro de olhos negros que não estavam mais sorrindo. — Você de novo — disse ela, sem prazer. — Tem certeza que não está com inveja de Isabel? — Tenho. Os olhos dela ardiam. Ela os esfregou com dedos que tremiam levemente.
— Você está chorando. — Ele parecia surpreso. Pior, parecia curioso. — É a fumaça — disse ela. — Faz meus olhos lacrimejarem. E também acaba com minha garganta. — Ela deu uma tossidinha raivosa para ilustrar o que dizia. Ele pareceu cético. — Você acha que ela vai ser infeliz. — Não era uma pergunta. Natasha sacudiu a cabeça. Olhou por cima do ombro, constrangida, mas Izzy estava longe. — É de Dominic que você não gosta? Ou de qualquer homem que leve sua amiga para longe de você? — Pare com isso — disse ela, começando a ficar assustada. — Nenhum dos dois. — Não acredito em você. — Estou preocupada com ela — disse Natasha com cuidado. — O casamento é uma atividade de alto risco. Nas sombras, ela viu os olhos dele se estreitarem. — O casamento? Ou os homens? — Havia um leve tom de desprezo na voz. Aquele toque de desprezo era demais, vindo de um homem que tinha passado metade da noite fingindo ser seu próprio mordomo. Ela reagiu. — Quer a verdade? Certo, aqui está a verdade. Na minha experiência, os homens são úteis apenas para três coisas. E uma mulher pode fazer todas sozinha sem ter de arruinar a própria vida. Ele recuou, como se ela o tivesse chocado. Ótimo, pensou Natasha. Ela sentia muito por sua promessa a Izzy. Mas algumas promessas eram simplesmente impossíveis de serem cumpridas. Ela jamais poderia amar esse homem como um irmão. — Arruinar a própria vida? — Ele parecia estupefato. — Sim. — Quais são as três coisas? — Limpar ratoeiras. Abrir garrafas de champanhe. E uma rápida emoção sexual. — E... — E posso comprar um gato para caçar os ratos, ter um saca-rolha e... John Donne dura mais. — Donne? — Ele pareceu interessado. — Você gosta de poesia? — Muito. — Fico feliz por saber. Mas você tem certeza que não há espaço para um homem em sua vida? — Absoluta. Ele olhou para ela pensativo, quase com pena. Por um instante, ela quase pensou que ele ia dar um tapinha em sua cabeça. Os olhos dela o desafiaram a fazê-lo. Mas ele fez algo ainda mais perturbador. Tocou seu lábio inferior com uma carícia suave como
uma asa de borboleta. Natasha encolheu-se como se tivesse se queimado. O pequeno toque era mais íntimo que um beijo. — Eu precisaria de uma noite para fazê-la mudar de idéia — murmurou ele, a respiração eriçando o cabelo que circulava a orelha dela. — Apenas... Uma... Noite. Natasha arfou. Procurou, sem sucesso, uma resposta esmagadora. Mas era tarde demais. Ele tinha ido embora.
Capítulo 5 O pensamento de Kazim não estava em suas mensagens quando ele passou os olhos por elas naquela noite. A loura era um desafio. Se as conversações de paz não estivessem enchendo sua agenda nos próximos seis meses, ele montaria o cerco. Ela não era seu tipo, claro. Mas há muito tempo uma mulher não o fazia rir assim, nem fazia seu sangue ferver tanto. Por um instante naquela noite ele se sentira impetuoso, até mesmo imprudente, ao invés de uma figura pública com responsabilidades internacionais. E havia aquela fresta em sua armadura: ela gostava de poesia. — Definitivamente um desafio — murmurou Kazim, pressionando o botão de resposta para Tom. — O quê? — Kazim voltou à realidade. — Nada. Recebi sua mensagem. Problemas? — Ainda não. Mas Suleyman sumiu do radar. Nossas fontes dizem que não é nada, mas tenho a sensação de que ele está planejando alguma coisa grande. Conte-me no instante em que algo incomum acontecer, certo? — Não faço isso sempre? — perguntou Kazim. Adeus, imprudência de estudante. Olá, cidadão responsável. — Vejo você amanhã, Tom. Ele desligou e foi para o quarto. Ficava apenas a uma porta do de Natasha. Na verdade, havia uma porta de ligação para o banheiro egípcio. Só por um instante ele imaginou o que ela faria se ele destrancasse aquela porta e entrasse. Mas não conseguiu imaginar. E a lembrança daqueles olhos cinzentos e desiguais. E aquela boca... Bem, ele não ia dormir. E fazia muito tempo desde que escrevera um poema. Sentou-se à mesa Chippendale, puxou uma folha de papel e começou a brincar com as frases. Natasha dormiu mal. A cama era muito mole e, quando ela acordava à noite, parecia que os travesseiros cheiravam a Amertage. Quando finalmente desistiu de tentar dormir, ainda havia uma fraca lua no céu. Levantou-se. Foi um alívio. A casa estava silenciosa e ninguém ia querer café-damanhã tão cedo. Pelo menos poderia conhecer a cozinha e conferir o estoque de comida. A cozinha parecia lúgubre na luz cinzenta da madrugada. Mas Natasha não se intimidou. Acendeu a luz e examinou tudo. Era uma grande cozinha com uma enorme
mesa de pinho no meio e todos os apetrechos culinários que ela poderia imaginar. Também tinha muitas despensas e três freezers. A estação de rádio do amanhecer estava tocando Sting. Natasha começou a se divertir, dançando levemente enquanto procurava os ingredientes para o café-da-manhã. Pegou bacon, manteiga, ovos, salsichas, cereais e leite; depois empilhou tudo numa mesa semicircular próxima à parede. Encontrou cogumelos e tomates e passou deslizando pela mesa de pinho. Ainda dançando, fez malabarismos com as torradas, terminando com uma manobra caprichosa por cima da cabeça. Pegou a torrada nas costas. — Beleza! — exclamou Natasha, satisfeita. Houve um estouro de aplausos vindo da porta. — Manobra perfeita. Natasha virou-se, assustada, e desequilibrou-se. Cozinhas estranhas eram perigosas. Mesas dobráveis, piores ainda. Sua mesa conveniente na parede não era tão conveniente no fim das contas. Natasha esbarrou nela, atingindo-a com força total. Num piscar de olhos o chão da cozinha estava coberto. Pão saindo do pacote, cereais espalhados, duas dúzias de ovos esmagados. — Ah, não! — Estou vendo que você gosta de grandes finais — disse Kazim, sem se alterar. — Impressionante. — Ele mirou na cozinha e olhou para os escombros da comida. O rosto estava absolutamente sem expressão, mas ela sabia que estava rindo. De novo. Foi quando Natasha começou a perceber a verdadeira extensão do desastre. Tirando os shorts, as meias de executivo e os tênis de corrida, ele estava sem roupa. Sem roupa e suando levemente. Seu peito era dourado e brilhava. Natasha não conseguiu tirar os olhos dele. Não se parecia nem um pouco com um mordomo. A casa devia ter um ginásio em algum lugar, pensou ela distraidamente. Ou ele estivera correndo na fria manhã de novembro? E que tipo de homem sai para correr no escuro? Um homem que fazia exatamente o que desejava fazer o tempo todo, pensou. Ela não conseguiu pensar numa única coisa para dizer. Pigarreou alto. — Eu... Hã... Não sabia que havia mais alguém acordado. Kazim estava secando o rosto molhado com uma toalha. Não era musculoso demais, mas assim, sem roupa, seu corpo era poderoso. Natasha sentiu a boca seca. Ele estava observando o chão sujo, divertido. A diversão de um homem que nunca tivera de limpar nada. — Você me assustou — ela tentou se justificar. — Não foi a primeira vez — disse ele. Contornou a bagunça no chão para ir até ela, chegando perto o suficiente para tocá-la, se quisesse. Natasha colocou as mãos para trás, por puro instinto. Kazim estava totalmente à vontade. Bem, aquela era sua casa. Ele tinha o perfeito direito de usar a quantidade de roupas que quisesse. E ela era uma mulher do século XXI. Um homem sem camisa não ia deixá-la com vergonha.
O que a preocupava era: por quê? Ele não deu mais nem um passo; nada a que ela pudesse se objetar. Mas seus olhos ficaram em alerta. Subitamente ela sentiu como se estivesse num precipício, sem a mais leve idéia de como tinha chegado lá. Aquilo era demais. A casa estava silenciosa demais. Kazim era vigoroso demais. Ela estava consciente demais do corpo dele. E, mesmo à distância de um braço, estava perto demais de todo aquele perigo dourado e quente. A cozinha era grande, mas não o suficiente. Não para o jeito como ele a estava olhando. Era a gota d'água! — Em certos dias — disse ela furiosa —, uma mulher inteligente não deveria sair da cama. — Em outras circunstâncias, eu diria que este é um convite muito elegante — retrucou ele. Desta vez, Natasha percebeu que era uma provocação deliberada. Seus olhos faiscaram, mas a raiva estava sob controle. Essa frase cairia muito bem num filme mudo. Por um instante, ele observou sua boca como se ela fosse fascinasse. Outro bom truque, pensou Natasha, e também observou a dele. A zombaria gentil parou abruptamente. Ele colocou uma camiseta sobre o torso musculoso e seus olhos faiscaram. — E você pode parar de tentar me seduzir disfarçadamente — acrescentou ela, irritada. Algo aconteceu no rosto de Kazim. Ele deu três passos para frente. Subitamente ela estava contra a parede, seus olhos se fixaram naquela boca firme e sensual. Natasha estremeceu. Como não tinha percebido que aquilo ia acontecer? Realmente achava que mulheres inteligentes iam mantê-lo à distância? Percebeu que aquele pequeno brilho de luxúria não tinha deixado seus olhos. Natasha escapou do abraço e se sacudiu levemente. — Obrigada — disse ela, afastando-se dele com um sorriso suave. — Mais uma técnica de sedução das antigas — confirmou docemente. Os olhos dele se estreitaram. Ela viu uma vassoura num canto e prudentemente se armou com ela. Não custava ficar preparada. — Tenho certeza de que isso é bem compreensível. — Ela parecia docemente razoável, mas ainda o observava. — Compreensível? Ela abriu seu sorriso mais brilhante. — Alto, moreno e bonito. E rico. As mulheres jamais dizem ‘não’ a você, não é? Natasha pensou que gostaria de não ter dito isso. Ele não vai esquecer, nem perdoar. Posso ter acabado de conquistar um inimigo muito ruim. Decidiu que havia coisas mais importantes a fazer do que ficar obcecada com o que Kazim pensava dela. Levantou o pé do chão grudento. — Melhor limpar isso. — E encontrar mais comida para substituir essa — concordou ele. — Obrigada por me lembrar — disse ela com educação. Ele não se ofereceu para ajudar. Presumivelmente, esfregar o chão era trabalho feminino, pensou Natasha de modo irônico. — Vou tomar um banho — anunciou ele.
Ele evitou cuidadosamente pisar naquela bagunça. Aquilo os levou a ficarem próximos novamente. Seus olhos se encontraram. Por um segundo, o verniz de sofisticação foi arrancado e eles eram criaturas primitivas na dança do desejo. Ela engoliu com dificuldade e afastou-se. — Vá tomar seu banho — disse ela numa voz dura. — Tenho trabalho a fazer. E, para seu assombro, ele foi.
Capítulo 6 Natasha limpou a bagunça no chão. Havia tempo que não fazia qualquer serviço de casa e seu método era ruim. Mas ela se entregou àquilo com fúria. Como ele ousava? Como ousava! Ela não se perguntou o que exatamente Kazim al Saraq tinha ousado. Subconscientemente ela sabia, claro. Ele tinha mexido com ela. E Natasha não queria isso de novo. Em vez disso, sentou-se e pensou nos problemas práticos. Tinha 12 pessoas esperando um café-da-manhã generoso e os suprimentos eram mínimos. Também não tinha carro nem telefone e não conhecia a região. — Este — disse Natasha, chateada — é um teste de iniciativa. Depois, pensou no pub pelo qual a limusine tinha passado no dia anterior. Pubs do interior tinham de tudo. Se não pudessem vender-lhe o que precisava, eles podiam dizer onde havia uma loja e até chamar um táxi, se necessário. Claro, pensou ela, poderia vagar pela casa até encontrar o telefone e um catálogo. Seria bem mais fácil. Mas era a casa de Kazim e ela se arriscaria a encontrá-lo novamente. Pior ainda, se arriscaria a ter de pedir-lhe ajuda para resolver seus problemas. — Sem chance — disse Natasha decidida, enfiando-se em várias roupas contra os ventos de novembro. No final, foi bem simples. Tirando os portões eletrônicos. Ela segurou um com o pé enquanto puxava o outro; depois os manteve abertos com um bom pedaço de pau para poder voltar. Seu plano funcionou maravilhosamente bem. O proprietário do pub ficou intrigado ao conhecer uma convidada de Serenata Place. O vilarejo sabia que a casa pertencia a um cavalheiro estrangeiro, mas ele raramente aparecia e os empregados não falavam sobre ele. Natasha trocou uma boa quantidade de informações sobre Kazim al Saraq e a festa de fogos de artifício por bacon, ovos, pão, salsichas e várias outras guloseimas. E até conseguiu uma carona para voltar. O gentil proprietário levou-a de carro até os portões e, quando viu como ela os mantivera abertos para passar por eles, ajudou-a a puxá-los para deixar o carro entrar. Depois a levou de carro até a porta da cozinha. Ali, a ajudou a descarregar as compras. A cozinha estava vazia, exatamente como ela a havia deixado. O dono ainda devia estar na cama, pensou Natasha, com um suspiro de alívio. — Obrigada — disse com verdadeira gratidão. — Você é um verdadeiro cavalheiro. Tem tempo para uma xícara de café?
Ele hesitou, claramente dividido entre seus compromissos de domingo e a curiosidade sobre a casa. — Talvez apenas um, bem rápido. Porém, Natasha mal teve tempo de ligar a cafeteira antes que não estivessem mais sozinhos. — Bom dia — disse Kazim al Saraq, entrando na cozinha em trajes casuais, o sorriso largo e os olhos observadores. — Encontrou um amigo? — Bem, acabamos de nos conhecer. Mas ele me poupou de uma longa caminhada até a mercearia mais próxima. — Natasha sorriu para seu salvador. O homem não sorriu de volta. Ao contrário, mal conseguiu olhar para ela. Não tirava os olhos de Kazim. Natasha não o culpou: apesar de tantos sorrisos, Kazim exalava hostilidade. Ameaça, mesmo. — Não se preocupe com o café — disse seu salvador, apressadamente. — Acho que é melhor ir embora agora, já é tarde. — Ah, mas... — Não vamos mais afastá-lo de seus compromissos — concordou ele afavelmente. — Minha convidada está muito agradecida. Ela ainda estava fervendo por dentro quando o homem saiu. No momento em que ouviu o carro partir, virou-se para Kazim. — Ah, pelo amor de Deus. Ele é o dono do pub lá embaixo. Tudo o que fez foi me dar uma ajuda. Muita gente teria dito obrigada. Por que você teve de rosnar para ele? O sorriso desapareceu como se nunca tivesse existido. — Precauções — disse ele, quase distraído. Natasha riu com desdém. — Você é paranóico. — E você é uma cabeça dura — disse ele. Havia algo ali que ela não entendia. Mas Natasha se recusou a deixá-lo intimidá-la. Começou a desempacotar a comida com movimentos rápidos e raivosos. — Ah, por favor. Em que século você vive? — Você não sabe nada sobre ele. — As palavras eram duras. Natasha arrumou panelas e ingredientes com precisão selvagem. — Bem, acabo de conhecê-lo. O que você queria que eu fizesse? Pedisse seu currículo e uma lista de referências? — Ela estalou os dedos, lembrando-se do gesto dele. — Ah, sim, eu devia ter pedido seu passaporte. — Seria preferível a pegar qualquer estranho que ofereça uma carona a você — disse Kazim, muito baixo. — Ou é isso que você faz normalmente? Ele está me chamando de prostituta. Natasha estava com tanta raiva que mal conseguia falar. — Saia desta cozinha agora! Ou então eu saio. E não haverá café-da-manhã para ninguém. Infantil também. Mas ele saiu. Como se não conseguisse se afastar o suficiente.
Natasha preparou o café-da-manhã mais suntuoso da sua vida. Depois, ela nunca mais se lembraria como seria difícil repeti-lo. Mas a raiva provocou uma performance culinária que surpreendeu Izzy e Jenine e arrancou elogios de todos os outros. Natasha aceitou-os com gratidão. Sabia como a sorte havia contribuído para sua produção. Depois escapou para o jardim molhado, a fim de procurar seus objetos perdidos. Descobriu os sapatos, ensopados, cobertos de lama e folhas mortas. Suspirou, pesarosa. Devia haver um jeito de ressuscitá-los, mas ela duvidava. Do telefone, entretanto, não havia sinal. Este era um problema mais sério. O número do serviço de limusines estava gravado lá. Natasha não tinha se incomodado em memorizá-lo. — Sinto-me uma idiota — disse ela a Izzy. Por trás delas, Kazim farfalhou o jornal de domingo como se estivesse endossando a observação de Natasha. Todos tinham ido para o estúdio depois do café. Era um largo aposento e Dom tinha feito uma fogueira profissional na lareira. Estavam todos agrupados em torno dela, com vários livros ou pedaços do jornal. O fogo crepitava e o cheiro de pinho enchia o aposento. Aquilo teria sido paradisíaco se Kazim al Saraq não estivesse sentado ali como uma aranha gigantesca, esperando que ela cometesse outro erro, pensou Natasha. Ela mal podia esperar para sair de Serenata Place. Sem conseguir falar com a empresa de carros, ela tentou empresas locais. Estavam todas ocupadas. Telefonou para o serviço de informações e conseguiu alguns números de empresas de táxi de Londres. Mas nenhuma delas pôde garantir um carro até a noite. — Londres? — perguntou Kazim, deixando o jornal de lado. Ele era todo charme e olhos indecifráveis. —Terei prazer em levá-la em meu carro. Izzy ficou claramente aliviada. Natasha quis gritar. Mas tinha acabado de provar que não havia outra forma de sair dali. E era uma adulta. Podia agüentar uma viagem de duas horas de carro em sua companhia sem perder a tranqüilidade de novo, certo? — Obrigada — disse ela sem expressão, ele insistiu para esperarem que todos tivessem saído. — Não há necessidade, honestamente — disse Izzy. — Natasha e eu podemos limpar tudo e esperar os empregados. Sou o anfitrião — disse Kazim. Foi o fim do assunto. Izzy e Dom foram os últimos a sair, num jipe surrado, empilhado até o teto com o equipamento de montanhismo de Dom. Pareceu estranho ficar na porta ao lado de Kazim; era quase como se fossem um casal. Natasha se afastou dele. Kazim não pareceu notar e olhou para o relógio. A equipe estará aqui em dez minutos. Preciso instruí-los. Aí poderemos ir. Natasha assentiu. O céu estava escurecendo e uma brisa fria chicoteava as folhas secas em pequenos redemoinhos antes de deixá-las cair. Passou os braços em torno de si mesma. Sentia-se muito só. — Você está com frio — disse ele. — Vamos entrar.
Abriu a porta, deixando-a passar. Obrigada. — Ela tremeu novamente, embora a casa estivesse bastante quente. — Só preciso conferir algumas coisas — disse ele. — Você já arrumou sua mala? — Está ali — disse Natasha, mostrando a maleta em cima da grande mesa do saguão. — Já estou com ela pronta desde cedo. — Você não gostou de sua estada. — Foi muito interessante — disse ela cuidadosamente —, mas sempre faço as malas de manhã. É um hábito que tenho porque viajo muito a trabalho. — Isso me consola — disse Kazim secamente, sem parecer que estava ligando muito. — Vá sentar-se perto do fogo. Estarei com você em vinte minutos. Natasha assentiu, mas ele já tinha saído. Kazim não ficou surpreso ao ver Tom Soltano com a equipe que voltava. Esperava mesmo que o chefe da segurança supervisionasse inteiramente a casa buscando dispositivos eletrônicos indesejados no momento em que os convidados tivessem ido embora. Não esperava, entretanto, compartilhar suas preocupações. Mas Tom disse: — Os portões eletrônicos foram abertos às 8h23 e ficaram abertos por mais de uma hora. Estamos tentando descobrir como isso aconteceu. Kazim não ficou surpreso, mas preocupado. — Também tenho más notícias. Acho que pode ter havido uma violação de segurança na casa. — O que aconteceu? Janela aberta? Fechadura forçada? — Mais simples que isso. Uma das convidadas saiu para caminhar esta manhã e o dono do The Feathers a trouxe de volta. Os olhos de Tom ficaram subitamente em alerta. — Quanto da casa ele viu? — Apenas a cozinha, até onde eu saiba. Mas... — Vamos percorrer tudo cuidadosamente — prometeu Tom. Pegou o Palm Pilot e começou a anotar. — Quem era a convidada? — Natasha Lambert — disse Kazim. Ele ficou surpreso com a relutância com que forneceu seu nome. – Amiga de longa data de Isabel Dare. Tem uma empresa de pesquisas. Bem-sucedida. Muito elegante. — E combativa. E impetuosa. E vulnerável. Tom era treinado em segurança. Ele sabia quando algo estava sendo escondido. — Certo — disse ele encorajadoramente. — Amiga da noiva, com certeza. Mulher de negócios do ano, talvez. Com quem ela sai? Quais são suas convicções políticas? Viaja muito, não é? Não havia sentido em tentar negar aquilo. — Muito, ela me contou. Tom não levantou os olhos da tela. — Quando ela chegou? — Sábado à noite — disse Kazim ainda mais relutante. — Chegou com um dia de
atraso. Algum tipo de contratempo com um cliente de Nova York, acho. — Sabemos o nome do cliente? — Não. Mas não duvido que você saberá até a hora do almoço de segunda-feira — disse Kazim irritado. Tom sorriu. — Ah, eu certamente saberei antes disso. Ele entendia a impaciência de Kazim com os procedimentos de segurança. Deviam ser uma intrusão intolerável na vida privada de um homem jovem e viril, pensou Tom, feliz pelo fato de que sua vida era menos pública. Mas era seu trabalho proteger Kazim e ele fazia isso muito bem. — O que mais sabemos sobre ela? — Bem, ela é loura. Tom o encarou. — Você está brincando. — Não. Eu disse que, se mandassem uma estilista para me matar, seria melhor que ela fosse loura, e então essa mulher apareceu. — Ele riu de repente. — Será que alguém pode ter grampeado o Land Rover? — Vou conferir — disse Tom, sem achar graça. — E onde a srta. Lambert reside? — Principalmente em Londres, acho. — Endereço? — Não sei, mas vou dar uma carona a ela. — Não acho uma boa idéia. Pode ser uma armadilha. Se ela estiver com algum tipo de localizador, eles saberão exatamente onde encontrar você. — Eu realmente não a vejo como agente secreta — disse Kazim, pensando nos chinelos de gatinhos. Uma ativista radical não usaria aquilo. — Não é o tipo. — Qual é o tipo dela, então? — Dona de si mesma. Não aceita ordens, eu diria. Pavio curto. Independente. Um pensamento súbito, novo e indesejável, apresentou-se a Tom. — Você a acha atraente, Kazim? Kazim hesitou. Por menos de dois segundos, mas aquilo dizia tudo. Então deu de ombros. — Sim. Muito. Tom pareceu horrorizado. Kazim estava divertido e irritado ao mesmo tempo. — Desculpe — disse ele secamente. Tom se restabeleceu. Era um homem prático, afinal de contas, um chefe de segurança sempre encontrava um jeito. — Vamos revistar a bagagem dela — disse ele. — Não parta até que eu tenha garantido que ela está limpa. Sozinha no estúdio, Natasha olhou para o relógio. O fogo estava morrendo e já haviam se passado quase 41 minutos desde que Kazim a deixara. Ela ouvia muitas vozes. Passos subiram as escadas e depois desceram. Portas bateram.
Uma vez, ela achou que tinha ouvido Kazim e foi até a porta do estúdio. Mas, quando a abriu, o corredor estava vazio. Na verdade, ela teve a estranha sensação de que, até abrir a porta, havia três ou quatro pessoas do lado de fora apontando dispositivos eletrônicos para vários pontos nas paredes. — Agora você está vendo coisas que não existem — disse ela. — Você precisa ir para casa e colocar a cabeça no lugar, Natasha. No entanto, não havia sinal de Kazim e ele era seu único meio de sair de Serenata Place. Então ela voltou e colocou outro pedaço de lenha no fogo, tentando se concentrar em todos os pedaços do jornal de domingo que conseguiu encontrar. Muitos pedaços depois, ele entrou no estúdio. — Desculpe mantê-la esperando — disse ele, como se tivessem sido apenas alguns minutos. — Ainda há algumas questões administrativas que precisam de minha atenção. Você deve estar com fome. Vou pedir para mandarem um chá. De que você gostaria? — De ir para casa — disse Natasha. — Talvez eu pudesse tentar uma das empresas de táxi da região. — Não precisa — disse ele firmemente. — Realmente não vai levar muito tempo. Em vez de ir cuidar do que tinha a fazer, ele se sentou em frente a ela, pegou o telefone numa mesa lateral e discou um único número. — Tom, a srta. Lambert está ansiosa para chegar em casa. Eu disse que não vai demorar, mas, enquanto isso, mande chá e alguns sanduíches, por favor. — Colocou o telefone no gancho e sorriu para ela. — Já faz muito tempo desde seu esplêndido desjejum. Você deve estar com fome. Vai se sentir melhor depois de comer um pouco. — Estou bem — disse Natasha a ele, cansada. — Apenas gostaria de chegar em casa. Tenho muito trabalho a fazer e amanhã começo bem cedo. Ele apenas continuou sorrindo. Ela disse, divertida: — Por que estou me sentindo como a última esposa de Barba Azul? — O quê? — Como se estivesse acontecendo alguma coisa que você não quer que eu veja, mas não vai me deixar ir embora caso eu veja — explicou Natasha casualmente. — Por que você diz isso? Os olhos dela se estreitaram. — E por que você não nega? Ele a examinou por um longo instante, os olhos negros pensativos. — Como posso negar? — disse ele suavemente. — Se é o que você sente, é o que sente. Não posso fazer nada. Natasha encontrou seus olhos. Ele não estava sendo sincero com ela. Tinha certeza daquilo. Mas também não estava contando mentiras absolutas. — Você é muito inteligente, não é? — perguntou ela devagar. A expressão dele não mudou, mas ela teve a impressão de que não era a resposta que ele queria. — Essa é uma maneira codificada de dizer que você não gosta de mim?
— É uma maneira codificada de dizer que não acredito em você — disse Natasha com honestidade. Mas nem aquilo o desconcertou. — E você tem sido tão perceptiva sobre meu caráter até agora. Com um movimento deliberado, ele se recostou na cadeira e cruzou as pernas. Ela sabia o que aquela pose estava lhe dizendo. E ele estava certo. Como podia ter sido tão burra a ponto de pensar que aquele homem lindo era um mordomo? Ela franziu a testa e desviou os olhos, envergonhada. — Isso não foi justo da minha parte — disse ele suavemente. — Você é encantadora demais para ser provocada. Porém, Natasha não achou que ele a estava provocando. Ou que ele estava particularmente se divertindo, tampouco. Cuidadosamente ignorando seu pedido de desculpas, ela perguntou: — O que você faz, Kazim? Quando não está provocando estranhas? — Ah, eu faço negociações — disse ele vagamente. — Aposto que você deve ser bom nisso — disse ela. Por ser uma boa negociadora, sentia como se tivesse tido dez rounds com um especialista. — Você é muito gentil. Mas na maior parte do tempo são coisas bobas. Não interessam a ninguém. Conte-me sobre seu trabalho. Acho que deve ser interessante. — Mesmo? — Ela estava cética e não tentou disfarçar. — Mesmo. O que é pesquisa de mercado? Você é uma daquelas pessoas que me abordam no aeroporto querendo saber qual água mineral bebo? — Não, o que você está falando é o material bruto para a pesquisa quantitativa de mercado. Trata-se de estatísticas, números. — Você não é uma mulher de números, então? Natasha engoliu o desgosto. — Posso trabalhar com números quando preciso. Mas minha especialidade é o que se chama pesquisa qualitativa de mercado. É mais interpretação, detectar mudanças de gosto antes que aconteçam, experimentar novos produtos em diferentes mercados. — Grupos focais — deduziu ele. O desdém era evidente. Natasha suspirou. Já tinha visto aquela atitude antes. — Grupos focais têm seu lugar, claro. Mas não são a resposta completa. Alguém como eu só é bom no que faz se conseguir interpretar o que o grupo focal diz. — Você quer dizer que espiona as pessoas — disse ele. Parecia uma acusação. — Não espiono conversas particulares. — Não? Natasha franziu a testa. Aquilo era mais do que uma aversão geral à pesquisa de mercado. Parecia sério. Mas antes que ela pudesse pedir uma explicação, a porta do estúdio se abriu e um homem apareceu com uma grande bandeja. — Finalmente o chá — disse Kazim com evidente alívio. — Obrigado, Tom. O homem colocou a bandeja, mas ali havia outro mistério, descobriu Natasha. Ele não era mais convincente como mordomo do que Kazim. Era até levemente desajeitado com a bandeja e, quando deu a ela uma xícara de chá e ofereceu o prato de sanduíches,
olhou-a muito mais detidamente do que um empregado bem treinado normalmente faria. O que estaria acontecendo? Natasha começava a ficar preocupada. — O carro está pronto — disse o homem para Kazim. — Pode sair assim que quiser. — Obrigado, Tom. — Então vamos agora. Vou apenas dar uma última olhada no meu quarto e encontro você no saguão. Foi imaginação dela ou os dois homens trocaram olhares consternados? Natasha não ligou. Apesar de tudo, parecia que ela ia conseguir sair de Serenata Place naquela noite. Correu para cima e passou um olhar rápido pelo quarto. Nada de suéteres esquecidos... Nada de lingerie suja embaixo da cama... Nada de maquiagem no banheiro... Droga! — Meus sapatos — disse ela e correu escadas abaixo. Ela os tinha largado no armário de sapatos depois que os recuperara no jardim. Provavelmente não tinham conserto, mas não queria deixar nada dela naquele lugar. Os dois homens estavam esperando no saguão, conversando com um ar sério, aparentemente absortos na conversa. Mas ela podia sentir seus olhos nela enquanto mergulhava no armário. E quando ela surgiu com os sapatos, o empregado já os tinha retirado das mãos dela antes que soubesse o que estava acontecendo. — O que são essas coisas? — perguntou, mais como um interrogador do que um mordomo. E depois, quando eles sujaram suas mãos limpas: — Estão imundos. Natasha pensou que as manchas de barro lhe caíam bem. — Um par de sapatos muito caros que eu... Bem... Perdi no jardim quando cheguei — disse ela rispidamente. — Culpa minha, sem dúvida — disse ele suavemente. — Deixe-os com Tom e ele fará o que puder para restaurá-los. Ou, se não puder, claro, eu compro outros. Natasha não gostou nada daquilo. Não queria deixar nenhum traço de sua presença em Serenata Place. — Não há necessidade — disse ela, agarrando rapidamente os sapatos. Porém, Tom movimentou-se ainda mais rápido para longe dela. E Kazim estava com aquele sorriso afável: — Eu insisto. Não havia nada que ela pudesse fazer. Eles passaram pelos portões, desta vez operados eletronicamente, e ele a levou com rápida eficiência através de alamedas e estradas pequenas. Ele estava dirigindo bem, mas estava sério. O carro era o que havia de mais moderno em luxo. Ela esticou as longas pernas à sua frente. Ele não falou até chegarem à estrada principal. E quando o fez, foi tão inesperado que ela quase caiu do assento de surpresa. — Quem deixou você entrar de volta em Serenata Place hoje de manhã? Ela sacudiu a cabeça sem entender. — Me deixou entrar?
— Depois de sua expedição às compras. Quem abriu os portões para deixar aquele carro entrar? — Ah, foi o velho truque do pacote de cigarros. — Pacote de cigarros? — Foi a vez dele de não entender. — Nunca viu isso nos filmes? Para não deixar o alarme tocar, você coloca um pacote de cigarros entre o pêndulo e a campainha. Eu fiz isso para os portões não se fecharem. Bem, na verdade usei um pedaço de pau. Eu não fumo. Quando voltamos, eu só tive de empurrá-lo. — Só teve de empurrá-lo... — Ele parecia estupefato. — As soluções mais simples são as melhores — disse ela, presunçosa. — Sempre digo isso a meus clientes. Ele parecia estar com dificuldades para falar. Natasha virou-se e olhou curiosamente para ele. — Algo errado? — De jeito algum — disse ele numa voz estrangulada. Ele apertou um botão no painel e disse: — Pode parar de se preocupar com a maneira como desligaram os controles do portão. Descobri o que aconteceu. Uma voz fantasmagórica saiu dos alto falantes. — Descobriu o transmissor que usaram? Precisamos muito dele. — Nada de transmissor. — Kazim não parecia mais estrangulado. Na verdade, havia um tom de riso profano em sua voz agora. — Foi menos sofisticado que isso. A voz pareceu afrontada. — Menos sofisticado? Não pode ser! — Asseguro que sim. Uma de minhas convidadas abriu os portões manualmente, depois os manteve abertos com um pedaço de madeira. A voz começou a praguejar. Kazim olhou para o lado e sorriu. — Ela está comigo no carro. A voz parou abruptamente. — E devo levá-la para casa, Tom. Ligo para você. Ele desligou. Um silêncio horrível encheu o carro. Natasha não estava acostumada a estar errada. Não gostava daquilo. Finalmente, ela disse em voz baixa: — Fiz alguma besteira, não fiz? — Um pouco — concordou Kazim. Outro longo silêncio. — Desculpe. — Ela estava falando sério, de verdade. Mesmo assim, soou como uma adolescente chata. — Esqueça. Agora que sabemos o que aconteceu, todos podemos relaxar. Natasha era honesta demais para deixar as coisas assim. — Realmente sinto muito. Eu devia ter pensado. Se você tem portões eletrônicos, é porque quer manter as pessoas do lado de fora do lugar.
— É uma maneira de ver as coisas — concordou Kazim. — E eu não tinha o direito de ignorar isso. Peço desculpas. Mesmo. Ele deu um sorriso mais amigável do que ela jamais tinha recebido dele. — Obrigado. Mas não fique se torturando com isso. Foi um bom exercício para meu chefe de segurança. — Você é muito gentil — disse Natasha, ainda com dor na consciência. — Ei, essas coisas acontecem. Contudo, ela estava mortificada demais para responder. No final, ele parou de tentar conversar e concentrou-se na estrada cheia. Apenas quando se aproximaram de Londres ele pediu seu endereço. Natasha falou. Seu apartamento era num condomínio bem no centro de Mayfair, com uma piscina e corredores atapetados, bastante discreto. Tão discreto, na verdade, que nem tinha uma placa de identificação na porta. Mas não tão discreto nem tão caro que Kazim não conhecesse. — Ah, lá — disse ele. — Uma de minhas tias possuía um apartamento ali. Conveniente, claro. Mas não é um pouco de meia idade demais para uma gata como você? Natasha prontamente parou de sentir a consciência pesada e voltou a atacá-lo cordialmente. Foi um alívio. — Não sou uma gata. Acho o condomínio confortável. — Você é cheia de surpresas. — Vou interpretar isso como um elogio — disse Natasha. — Deveria mesmo. Francamente, já faz bastante tempo desde que uma mulher me surpreendeu. Houve um silêncio. — E já faz um longo tempo desde que ouvi um homem dizer algo assim — comentou ela. — Na verdade, acho que é a primeira vez. Ele ficou imperturbável. — Então eu aumentei sua experiência. — Ah, sim. — Ela era a doçura em pessoa. — Quem poderia imaginar que eu ia dar de cara com um dinossauro em plena luz do dia? — Dinossauro? — Ele estava surpreso. — Dinossauro machista — disse Natasha, caso ele não tivesse entendido. — Ninguém jamais me chamou assim antes. — Pois deveriam. — Ela reconheceu a rua em que estavam. — À esquerda aqui, depois à direita, depois à esquerda novamente — instruiu-o. Ele seguiu as instruções cuidadosamente. — Pode me deixar na entrada da frente. O estacionamento tem porteiro 24 horas, mas eles não deixam ninguém entrar a menos que eu avise antes... — começou Natasha. Entretanto, ele já estava virando na pequena rua lateral e entrando com o carro. — Agora você terá de dar marcha a ré — disse ela.
Para surpresa dela, quando ele pressionou o botão eletrônico para baixar a janela do motorista, a barreira já estava se levantando. — Boa noite, Sua Alteza — disse o interfone. — É bom tê-lo conosco novamente, senhor. — Boa noite, Hicks. Não vou ficar. Só estou levando a srta. Lambert a seu apartamento. — Boa noite, srta. Lambert. — Boa noite — disse Natasha em voz baixa. Kazim entrou com o carro e estacionou tão perto das portas do saguão que ficou claro que ele estivera ali muitas vezes antes. Ele desceu e deu a volta para ajudá-la, parando apenas para tirar sua maleta do porta-malas. Mas Natasha era rápida demais para ele. Desceu do carro antes de ele oferecer-lhe a mão. — Obrigada. Ela quase arrancou sua mala dele. — Você está muito ansiosa para se livrar de mim. — Nem um pouco — mentiu Natasha. — Simplesmente não quero causar mais problemas. Adeus. Ele ignorou aquilo. Calmamente pegou a maleta, antes que ela percebesse o que ele estava fazendo, e caminhou para a porta do elevador. Natasha foi batendo o pé atrás dele. Kazim parou e manteve a porta aberta para ela. Havia um leve toque de gozação no gesto cortês? Ela também parou, furiosa. — Eu já disse que não quero causar mais problemas — insistiu ela. Ele sorriu, como se estivesse se divertindo muito. — Digamos que gosto de pagar minhas dívidas. — Que dívidas? — perguntou Natasha, confusa. — Bem, por minha causa, você perdeu seu telefone com o número da empresa de carros. Então eu precisava compensar isso. — Então essa é a razão pela qual me trouxe até aqui? — Que outra razão poderia haver? Seus olhos se encontraram. Os dele eram castanhos e puros, límpidos de honestidade. Mas ela não acreditava nem um pouco nele. — Só queria mostrar a você meu lado humano — disse ele, sério. — Ah, você fez isso muito bem — murmurou Natasha, entrando no elevador e apertando o botão. — Qual é o problema agora? — perguntou ele. Natasha estava com tanta raiva que disse a verdade. — Sabe há quanto tempo moro aqui? Ele piscou com a mudança de assunto. — Bem... Não. Deveria? Ela não esperou resposta.
— Três anos. Três malditos anos. Foi o presente que me dei quando percebi que minha empresa seria um sucesso. — Muito bem — disse ele, ainda confuso. — E nesses três anos, nunca distingui um porteiro do outro — disse Natasha, enfurecida. — Muito menos soube os nomes deles. — Ah. — E você se lembra quem é Hicks. Pela voz? E você nem mora aqui! — A boa memória faz parte do meu trabalho — disse Kazim em tom de desculpas. E esperou. O que ela deveria dizer? "Que trabalho?" ou "Não me diga que você trabalha!", e depois convidá-lo para subir para que pudessem continuar brigando? Ele parecia gostar disso. Para ela já era suficiente. Desde que se conheceram, ele a provocara, a perturbara e ela acabara cometendo erros. Natasha não era má perdedora, mas já tivera derrotas suficientes este fim de semana. Virou-se para encará-lo e estendeu a mão. — Obrigada por me trazer, e por sua hospitalidade. — os olhos dela brilharam. — Mesmo que com relutância. E então, tarde demais, ele pareceu desconfortável. Segurou a mão dela. — Acho que, pelo menos por isso, eu lhe devo desculpas — disse ele, com um charme que Natasha tinha certeza que era planejado. — Hã? — disse ela, distante. — Isabel ficou muito chateada quando você não chegou na sexta-feira, como prometeu. Talvez eu tenha concluído precipitadamente que você não havia se importado nem de avisá-la. Percebo agora que foi um erro meu. — Não se desculpe — disse Natasha com seu sorriso mais falso. — Eu gostaria muito de continuar detestando você sem me sentir culpada. — Me detestando? — ecoou ele, como se pensasse que ela estava brincando. Era óbvio que ninguém jamais tinha dito aquilo antes. Subitamente, ele ficou furioso. — Ah, certamente — disse Natasha, satisfeita. — Quase desde a hora em que nos conhecemos. Na verdade, claro que seria uma boa idéia se não nos encontrásse mos novamente. A coluna de Kazim estava ereta. — Se é isso que você quer, claro.
— Tenho certeza que é um sentimento mútuo — disse Natasha, ainda sorrindo. — Então, adeus, pela última vez. — Continue pensando assim — respondeu ela.
Capítulo 7 O apartamento de Natasha nunca tinha parecido mais aconchegante. Nada de torres góticas nem banheiros egípcios, pensou ela. Apenas o chão encerado, móveis claros e grandes espaços. Era daquilo que gostava. Então, por que tudo parecia frio e vazio? Tirou todas as almofadas do sofá e fez um ninho no tapete chinês em frente ao fogo. Parecia bom. Durante todo o tempo em que estivera na casa de Kazim, ela sentira a presença dele, como se a estivesse observando. Aqui ela estava livre, pensou. O problema era que não se sentia livre. Parecia que alguém amarrara uma corda em seus tornozelos. — Você pode se mover — disse ela, entre os dentes. — Ninguém amarra você. Tomou um longo banho e depois se enroscou nas almofadas com um romance policial. Mas a cada cinco minutos, levantava os olhos como se esperasse o toque do telefone. Tentou escutar música. Não adiantou. Ficou pensando em todas as coisas ásperas e inteligentes que devia ter dito a Kazim al Saraq. E ficou lembrando daquele peito dourado e dos olhos divertidos. Particularmente dos olhos. Era como se pen sasse que estava flertando com ele. Forçou-se a pensar no trabalho, pois teria uma semana cheia. Mas, pela primeira vez, o trabalho não a interessava. Queria voltar a discutir com Kazim al Saraq. Só que, desta vez, queria ganhar. Colocou o robe de veludo e fez um pouco de chocolate quente. — Meu Deus, isso é um retrocesso — disse ela, surpresa, enquanto mexia o líquido cremoso e grosso. — Não tomo chocolate quente desde a época do colégio. — Pare de pensar nele — disse a si mesma. — Não é essa a vida que você quer. Todavia, Kazim era lindo. Aquela pele dourada ia ficar maravilhosa sobre suas almofadas claras... — Se você quer namorar, namore — disse a si mesma com severidade. — Mas não comece a sonhar com contos de fadas. Porque não se namoram homens como Kazim al Saraq. Até Natasha, detestando a arrogância e desprezando o machismo, sabia disso. Você se apaixona. Os Kazims do mundo ficam sentados e deixam você cultuá-lo. — Não eu, querido — disse Natasha a seu reflexo. — Nunca fiz isso. Nunca vou fazer. Kazim voltou vagarosamente para o carro. Sua cara estava fechada e foi
necessário um instante antes de ligar o carro. Ela não queria encontrá-lo novamente? Não podia estar falando sério. — Bem, isso é novidade — disse ele em voz alta. Para ele, as mulheres nunca eram hostis a um homem rico e da realeza. Mas Natasha Lambert era original em todos os sentidos. — Você não tem tempo para isso — disse seu lado responsável e inteligente. — Eu arranjo tempo. — E ela não quer vê-lo novamente. — Mudarei isso. — Ela acha que você é um dinossauro — lembrou seu lado prudente. — Então terei de fazê-la apaixonar-se por dinossauros. Aquilo o interrompeu por um instante. Quem tinha tempo de se apaixonar? Olhou para o relógio. Hora de contatar a segurança. Tom devia estar preocupado. Saiu vagarosamente do estacionamento, acenando para o porteiro conforme a barreira se levantava. Imediatamente seu telefone começou a tocar. Ele o atendeu em viva voz. — Estou a leste de Park Lane e a Sul de Oxford Street, estarei em casa em cinco minutos. — Levou Cinderela para casa, então? — perguntou Tom, mal-humorado. Tinha passado maus momentos por conta das falhas no sistema de segurança. — Levei. — Tem idéia do risco que uma mulher representa? — Ah, eu sei. Uma loura que morde. — Não tem graça, Kazim. Não sabemos nada sobre essa mulher. Ela pode ser um grande risco. Kazim riu alto. — Desculpe, Tom — disse ele, divertido. — Um homem deve correr alguns riscos. Por volta das cinco da manhã, Natasha parou de tentar dormir. Levantou-se e se vestiu. Do lado de fora, as luzes eram assustadoras nas ruas desertas. Estava mui to frio. Um carro solitário passou, as luzes formando um arco-íris com a água que espirrava dele. Natasha estremeceu e apertou a gola do casaco no pescoço. Um táxi apareceu e Natasha levantou o braço. O escritório foi um alívio abençoado. Pelo menos ela nunca tinha imaginado Kazim al Saraq nu sobre sua mesa! E também havia muito a fazer depois de uma semana em Nova York. Seu assistente, Leo Duvallier, encontrou-a em sua mesa com uma pilha de arquivos quando chegou, às oito e meia. — Ah, o frenesi da caixa de entrada — disse ele sacudindo o guarda-chuva molhado e pendurando-o num velho porta-casaco que Natasha mantinha porque a fazia lembrar de seu primeiro emprego. — Já encontrou algo assustador?
— Deveria ter encontrado? Leo mexeu-se de modo desconfortável. Ele era rápido e sensível, motivo pelo qual ela o havia contratado, mas diplomacia não era seu forte. — Jason Turville anda explodindo por aí. Eu disse a ele que você cuidaria de tudo quando voltasse. Turville era o cabeça de uma grande empresa de publicidade, com subsidiárias no mundo todo. Natasha franziu a testa. — Por quê? — Não sei. Parei de escutar depois de dez minutos. — Dez minutos? — Natasha estava impressionada. — Ele é louco. Imagino que ele tenha descoberto que nosso relatório acabou com sua última campanha publicitária para David Frankel. — Vai ligar para ele? — Não faz sentido adiar isso. — Tome cuidado. Ele estava cuspindo fogo. Natasha pensou em Kazim al Saraq e riu para si mesma. — Uau, alguma coisa nova, para variar. — Você é perigosa — disse Leo, admirado. — Sou um pacifista. Não vou agüentar escutar. Vou pegar café. Ele colocou um copo de papelão na frente dela. Natasha, pés na mesa, fone no ouvido, agradeceu com os olhos e depois colocou os pés no chão, decidida. Mudou o telefone para o modo viva voz e começou calmamente a retirar a tampa plástica do copo de café. — Mais três minutos — sussurrou ela para Leo. No final dos três minutos, ela interrompeu o fluxo de xingamentos e disse suavemente: — Jason, você está falando sério? Não pode ficar com raiva de mim porque estou fazendo meu trabalho. Jason Turville, o tubarão da publicidade internacional, ficou suficientemente surpreso para se calar por um instante. — Essa campanha foi premiada — disse Turville, começando a fumegar novamente. — Claro — disse Natasha secamente. — A indústria adorou. Muito artística. Muito sutil. Mas o público alvo não entendeu nada. Desculpe, Jason. Espero que tenha mais sorte da próxima vez. Ela desligou antes que ele pudesse encontrar as palavras. — Uau — disse Leo, meio divertido, meio horrorizado. — Mais um homem que odeia você. Está fazendo uma lista, não é? Natasha ficou surpresa. Você é uma mulher difícil, disse Kazim al Saraq subitamente em sua cabeça. Ela se encolheu, mas Leo não percebeu. — Apenas digo as coisas de maneira inteligente — respondeu ela, secamente.
— Não vou aceitar isso — disse Kazim entrando no escritório, sem cerimônia. Estava vestido com túnicas do deserto, preparando-se para um almoço de negócios. Seu rosto parecia um trovão. Martin levantou os olhos, surpreso. — O quê? — Mulheres. Detestando-me. — É a primeira vez que o ouço falar isso — disse o assistente pessoal. — A que horas você quer que o carro o pegue? — Eu telefono. A reunião pode entrar noite adentro. Quero convencê-los a mandar uma delegação para o encontro de reconciliação. Kazim deixou as negociações de lado. — Parece que sou um dinossauro. Martin encarou Kazim com fascinação horrorizada. — Alguma mulher o chamou de dinossauro? — perguntou ele com cuidado. — Não foi isso que acabei de dizer? — Ela não deve ter falado sério — disse o assistente. — Falou. — Kazim estava amargurado. — E o que você fez? Jogou-a sobre seu cavalo e galopou com ela para o deserto? — Ele deu uma risadinha, mas controlou-a com esforço. Kazim mergulhou em sua poltrona antiga. — Pode rir — disse ele, mal-humorado. Martin Page sacudiu a cabeça. Em público, ele só se referia a Kazim como Sua Eminência, e nunca uma palavra de crítica passava por seus lábios. Em particular, entretanto, Kazim pedia sinceridade total. E ele a conseguiu agora. — Isso já devia ter acontecido há muito tempo. Kazim reagiu chocado. — O quê? — Bem-vindo ao mundo real. — Como assim? — Relacionamentos de verdade dão trabalho. — A voz de Martin era neutra. — Muitos de nós não conseguem tratar como numa onda de diplomacia internacional, deixei um bracelete de diamantes para trás. Ele o encarou cautelosamente. Mas Kazim não estava ofendido. — Amargurado, Martin? — Morto de inveja — disse Martin. — É bom ver você passar pela mesma corda bamba que o resto de nós mortais. — Vai ficar do lado dela? — perguntou Kazim, indignado. — Então temos lados agora? Uau. Quem é essa mulher discriminadora? — Discriminadora! Isso é a última coisa que ela é! — Então você não tem nada com que se preocupar.
— Não, mas... — Kazim cedeu quando entendeu o que Martin tinha dito. — Você quer dizer que, se ela sai com qualquer um, vai sair comigo também? Está me insultando quase tanto quanto ela. Martin sacudiu a cabeça, incrédulo. Kazim nunca tinha levado as mulheres a sério. Kazim parecia perdido em pensamentos, andando de um lado para o outro. Martin o observou. Aquele não era Kazim. — Então, quando você vai ver a garota de novo? Kazim não parou de andar. Mas aquilo o retirou de sua preocupação. — Vê-la de novo? — Ele riu. — Não está falando sério. Por que eu ia querer vê-la novamente? A mulher me insultou! — Talvez por isso mesmo. Não quer fazê-la engolir suas palavras? Aquilo irritou Kazim. — Isso parece algum tipo de vingança. Martin era a imagem da inocência. — Faça ela se apaixonar por você... E depois a jogue fora como uma luva usada — sugeriu ele. —Pelo visto, você também acha que sou um dinossauro. — acusou ele. — Não um dinossauro — objetou ele. — Talvez um pouco antiquado. — Antiquado? — Kazim quase perdeu a fala. Martin não conseguiu mais se segurar e explodiu muna gargalhada. — Você devia ver o seu rosto agora — disse ele quando conseguiu falar. — Muito obrigado pelo apoio — disse Kazim com um sorriso relutante. — Você não precisa de apoio. Precisa de um curso intensivo para lidar com a Fêmea Feroz do Século XXI. — Não preciso de nenhum curso. — Os olhos de Kazim brilharam. — Você me convenceu. Vou cuidar disso sozinho. Fêmea Feroz do Século XXI versus Dinossauro do Deserto. Senhores, façam suas apostas! Natasha e Izzy combinaram de se encontrar para almoçar ao ar livre no Soho Square. Izzy já estava no jardim quando Natasha chegou. Tinha parado de chover e o sol de novembro brilhava através das árvores nuas. — Eu devia ter trazido os óculos escuros — lembrou Natasha, quase fechando os olhos por causa do brilho. — Mesmo assim está frio. — Izzy usava luvas de lã, mas esfregava as mãos como uma órfã de Charles Digais. — De que são os sanduíches? — Salmão defumado ou abacate com bacon. — Vou querer um de cada. Natasha dividiu os sanduíches e elas mastigaram calmamente enquanto caminhavam. — Certo — disse Izzy. — O que você quer? — Como assim?
— Vamos lá, Natasha. Você é uma mulher super ocupada. Nunca arranja tempo para me ver. E agora nos encontramos duas vezes em dois dias? Por quê? Ou posso adivinhar? — disse Izzy subitamente. — Você se desentendeu com Kazim al Saraq e agora quer saber tudo sobre ele. — Ele foi odioso comigo quando cheguei. Deu-me ordens como se eu fosse sua escrava. E não me disse que era dono daquela maldita mansão até que fosse tarde demais. — Tarde demais para quê? — Para eu me controlar. — Natasha podia sentir o calor no rosto. — Suas orelhas ficaram rosa. — O que você esperava, num frio desses? Elas se sentaram num banco. — Então você não quer o telefone dele? Natasha reagiu com desdém. — Por que eu ia querer o telefone dele? — Você pode ligar e chamá-lo para sair — murmurou Izzy, travessa. — Seria bom para ele. Mostre que a mulher moderna pode tomar a iniciativa. — Posso ser uma mulher moderna. Mas não sou masoquista. — Bem, estou desapontada. Pensei que você era a única mulher verdadeiramente independente que eu conhecia. Nunca pensei que deixaria outras pessoas interferirem no que você quer. —Não quero sair com Kazim al Saraq — gritou Natasha. Izzy riu até engasgar. Mal-humorada, Natasha jogou algumas migalhas de seu sanduíche indesejado para um casal de pardais. — Kazim é o melhor amigo de Dom, você sabe. — É? — Ela não poderia ter demonstrado menos interesse. — Ele dá a impressão de ser um machista incurável, eu sei. Mas é um cara legal — pressionou Izzy. — É? — Ele é uma espécie de príncipe — disse Izzy, tentando contar mais. — Tem muitas responsabilidades. Dom diz que ele às vezes acha tudo muito difícil. Kazim? Izzy não sabia do que estava falando. O homem simplesmente adorava dar ordens. Natasha grunhiu. Izzy desistiu. Começou a falar sobre o casamento. Mas logo Natasha percebeu que Izzy continuava tentando criar coragem para dizer algo. — Vamos sair desse vento — disse Natasha, levando a amiga para sua cafeteria predileta. Quando já estavam sentadas, com duas xícaras fumegantes, ela perguntou casualmente: — Então, o que está acontecendo com seu casamento que você não teve coragem de me contar? — Você me conhece bem demais — disse Izzy.
— Você não está acostumada a enganar ninguém. Eu sou. Conheço os sinais. Quais são as más notícias? Não está querendo que eu use tule azul, está? — Não é nada disso. É que... Bem... A parte de andar pelo corredor da igreja... — Pode deixar que não vou fazer disso um casamento duplo — disse Natasha firmemente. — Adoro seu pai, mas ele não faz o meu tipo. — É Kazim — disse Izzy, meio desligada. — Ah. — Ele é o amigo mais antigo de Dom. Foi convidado para ser o padrinho. Sei que você não gosta dele, mas é apenas por um dia e ele consegue ser bem gentil... — A voz sumiu sob o olhar irônico de Natasha. Houve um silêncio difícil. Os ombros de Izzy caíram. Dom tinha dito que Natasha e Kazim seriam amigos assim que se conhecem melhor, mas Izzy sabia que isso não ia acontecer. Não que Natasha odiasse os homens. Ela gostava da companhia masculina. Izzy sabia que tinha casos, mas Natasha dizia francamente que nenhum deles era importante o suficiente para apresentar à melhor amiga. Homens, dizia Natasha, eram uma boa diversão, mas não um investimento de longo prazo. Izzy tinha certeza de que houvera algum relacionamento profundamente sofrido no passado da amiga. Mas sempre que ela perguntava Natasha só ria e mudava de assunto. Ela estava dizendo agora: — Kazim al Saraq pode ser muitas coisas. Mas definitivamente não é gentil. — Por favor, não brigue com ele, Natasha. O casamento já vai ser difícil o suficiente. — Difícil por quê? — Ah, a família de Dom. Todos são lordes e duques e têm casas enormes e cavalos. Minha mãe poderia ter ajudado, se estivesse viva, mas meu pai... Bem, ele não é um organizador de casamentos por natureza. E a madrasta de Dom nunca perde a chance de me desvalorizar. — O quê? — Natasha disse, incrédula. — E Dom deixa? — Ele não está lá na maior parte do tempo — lembrou Izzy. — É por isso que eu... — hesitou. Isso era claramente o que ela estava tentando tomar coragem para dizer durante todo o almoço. — Que você...? — Que esperava que você pudesse lidar com ela — disse Izzy, falando rapidamente. — Sei que não faz parte das tarefas da madrinha. Mas você está acostumada a lidar com os chefões da indústria. Pode lidar com Janine. — Posso — concordou Natasha. — Então, qual é o lado negativo? — Como assim? — perguntou inocentemente. — Bem, como você não gosta de Kazim, imagino se você se incomodaria por ter de negociar junto com ele os preparativos do casamento. Padrinho e madrinha — continuou Izzy — têm de trabalhar juntos. Natasha deu um gemido do fundo de sua alma. Mas não disse que não faria aquilo. Izzy percebeu que tudo ficaria bem no fim das contas. Deu um tapinha na mão da amiga.
— Você vai se sair bem. Você é uma estrela, Tash. — Eu sei — disse Natasha melancolicamente. — E você será civilizada com Kazim? Natasha riu. Foi sua vez de dar um tapinha na mão da amiga. — Digamos que não vou começar nenhuma briga. Quando Natasha voltou para o escritório, encontrou Leo contemplando um embrulho em sua mesa com profunda fascinação. — Como você consegue ganhar telefones celulares de graça? Por que isso nunca acontece comigo? Natasha não entendeu. — Telefones? Ela abriu o embrulho. Dentro dele estava o menor, mais fino e mais brilhante celular que ela já tinha visto. — Platinum. — Natasha quase deixou a coisa cair. — Cuidado — disse Leo, chocado com tanta negligência. Natasha estava remexendo as caixas como um cachorro. — Quando isso chegou? Quem trouxe? — Isso é outra coisa estranha — disse Leo, girando o pequeno telefone entre os dedos. — Ele parecia um banqueiro, falava como um robô e tinha um claro fetiche por sapatos. — O quê? — Ele queria entregar pessoalmente. Quando eu disse que você não estava e que não sabia se ia voltar hoje, não quis me entregar. Ficou andando em torno de sua mesa algumas vezes antes de resolver colocar o pacote aí. E, quando ele saiu, seus sapatos "eu é que mando" tinham mudado de lugar. Natasha estremeceu. Ela mantinha uma muda completa de roupas no escritório, pronta para reuniões inesperadas. O que Leo chamava de seus sapatos "eu é que mando" eram da marca Chastity Fair, originais, com saltos de dez centímetros e tiras nos tornozelos. Eles moravam embaixo da mesa. Só que agora estavam encostados na parede. — Eu diria que ele andou cheirando-os — disse Leo, tom satisfação. — Não seja ridículo. — Natasha estava abalada. Leo pegou um cartão que ela não tinha visto. — Kazim al Saraq — leu em voz alta. Ele virou o pequeno cartão. — Eu disse que pago minhas dívidas. — ele levantou os olhos. — Que dívidas? — Nada — disse Natasha. — Um mal-entendido. — Você está vermelha? — Não seja ridículo — respondeu Natasha, rápida. Mergulhou atrás da mesa e recolocou os sapatos no lugar. — Que ótimo. Nunca ouvi falar de um homem que fizesse Natasha Lambert corar.
— E nem vai ouvir — respondeu ela, furiosa. — Então quem é esse tal de Kazim? — Amigo do noivo de uma amiga — respondeu ela calmamente. — Só o encontrei uma vez. E nenhum de nós quer repetir a experiência. — Isso era o que ela pensava. O almoço de Kazim com os negociadores demorou mais, como ele tinha previsto. No final, ele ficou de pé. — Obrigado, senhoras e senhores. Não parecemos ter avançado nada desde a última vez em que nos encontramos. Então acho que chegou a hora de parar de brincar com os rebeldes e convidá-los para sentarem-se à mesa de negociações. Kazim descreveu a cena para sir Philip Hardesty por telefone, em Nova York. — Sim, mas o que o relatório deles dizia, na verdade? — perguntou Philip. — Coisas previsíveis. Não devemos fazer nada. É cedo demais. Perigoso demais. Esse tipo de coisa. — Você precisa ter cuidado, Kazim. O mundo não pode perdê-lo. — Certo, serei cuidadoso — prometeu Kazim. — Mas alguém tem de fazer isso. — Pelo menos me deixe falar com nossos contatos internacionais de segurança. Você pode adiar tudo por 48 horas, não pode? Vá jogar tênis, ou algo assim. Kazim riu alto. — Ah, posso pensar em algo melhor para passar o tempo! — Então faça isso. Kazim ainda estava rindo quando desligou. Martin colocou a cabeça na porta. — E aí? — Dois dias de atraso enquanto Philip Hardesty consulta suas fontes. — Tom ficará aliviado. E você pode passar alguns dias agradáveis em Paris. — Ah, vou adiar Paris também. — Mesmo? — perguntou Martin, surpreso. — Vou ficar em Londres — disse Kazim suavemente. — Tenho de negociar com uma Fêmea Feroz. Dê-me o número daquela jornalista de moda que me entrevistou no verão. Preciso de algumas informações. Por volta das dez horas da manhã de quinta-feira, Natasha tinha conseguido ler todas as mensagens acumuladas em sua caixa de entrada. O que era bom, pois tinha uma reunião às onze. Leo também foi à reunião, que demorou mais do que o esperado, e eles não voltaram ao escritório até as sete da noite. A recepcionista do prédio não estava satisfeita. — Houve um monte de telefonemas, disse ela. — Alguns deles mal-educados. — Vamos ter de contratar alguém para atender ao telefone, se isso continuar — disse Leo.
Tinham tido um dia cheio. A blusa de Natasha tinha perdido um botão durante a reunião e os pulsos de Leo estavam doloridos de digitar durante a apresentação. Natasha retirou o casaco amarrotado e pendurou-o nas costas da cadeira. — Quer um drinque? Eu pago. — Quer dizer que vou trabalhar até tarde com você no novo relatório? — deduziu Leo. Natasha mandou um beijo para ele. Então, a porta se abriu e Kazim al Saraq entrou. Natasha congelou, a mão a meio caminho dos lábios. — Pois não? Posso ajudá-lo? — Leo adiantou-se com um sorriso. — Não — disse Kazim secamente. Leo olhou para Natasha em busca de orientação. Ela se recompôs. — Um pouco, bem, isso é... Inesperado. — Eu telefonei — disse Kazim austeramente. — Várias vezes. Ninguém me retornou. Ele parecia ofendido. Claramente aquilo nunca tinha acontecido antes. Os olhos de Natasha estreitaram-se. — Desculpe — disse ela —, minha reunião passou da hora, — Mesmo? — perguntou ele, como se não acreditasse. — E você permitiu isso? — Foi algo inesperado. Ele a encarou. — Achei que você era uma profissional muito competente — disse ele, maliciosamente. — Suas reuniões nunca passam da hora? — Nunca. Eu as mantenho sob controle. — Ah, claro. Posso me ver controlando David Frankel, — Frankel? Da Continuum? — reagiu ele, incrédulo. — Você trabalha para a Continuum Consolidate? Natasha endureceu. — Não trabalho para ninguém — disse ela, gelada. — A Continuum me contrata quando precisa de meus conhecimentos e de meu julgamento. — Que tipo de conhecimento? — Eu — disse Natasha com satisfação — sou uma das três maiores pesquisadoras de mercado independentes do mundo. Kazim não disse nada. Apenas a observou, sem piscar. Ela não conseguiu saber se ele estava impressionado. Ou se acreditava nela. Ele olhou para o pequeno escritório. Percebeu a iluminação tênue e a ausência de arquivos. E sua sobrancelha levantou-se em descrédito. Leo gemeu. Ele já estivera com Natasha quando clientes em potencial tinham feito aquilo. Até quando ela estava de bom humor aquilo normalmente merecia uma repreensão de tirar o couro. E hoje ela estava cansada e com sinais de exaustão. — Acredite em mim, sou uma especialista. E muito, muito cara. Kazim deu uma risada.
Natasha respirava com dificuldade. Uma pequena voz em sua cabeça lembrava a ela de permanecer fria. O melhor amigo desse homem ia se casar com sua melhor amiga. Ela não podia quebrar a cabeça dele. — Você queria alguma coisa? Acho que esta não é uma boa hora para nós. Kazim olhou intensamente para Leo. — Eu... Bem... Acho que vou trabalhar em casa — disse Leo rapidamente. — Até amanhã, Natasha. Ele passou pelo visitante e saiu. — Vou levá-la para jantar — anunciou Kazim. — Você está brincando. — Nem um pouco. Cancelei uma noite em Paris para levar você para jantar. Natasha olhou para ele com profunda suspeita. — Devo ficar lisonjeada? Certamente. É uma oportunidade única. Mesmo? Bem, aqui está outra. — Ela estava com muita raiva que mal conseguia falar. — Nunca saio com estranhos. — Eu também não. — Seu olhar estava cheio de contida fúria. — Por isso passei algum tempo pesquisando sobre você na noite passada. — Você fez o quê? — Na Internet. Nem pedi a meu assistente. Fiz a pesquisa pessoalmente. Você deveria ficar lisonjeada com isso também. — Saia daqui — disse ela entre os dentes. — Você é presunçoso, arrogante e definitivamente não faz o meu tipo. Por favor, vá embora. — Reservei uma mesa para as oito e meia. Você deve querer ir em casa se trocar. — Você é muito insolente. Alguém já lhe disse isso? — Se quer dizer que não tenho medo de tomar decisões, encaro isso como um elogio. — Não foi um elogio. — Não lute contra mim, Natasha — disse ele suavemente. — Só tenho algumas horas. Houve algo na maneira como ele disse que quase soou como se fosse Dom saindo para o desconhecido perigoso. Aquilo fez ela se acalmar um pouco. — Acha que vou me jogar a seus pés num gesto de gratidão? — Seria uma perda de tempo — murmurou ele. Era mesmo um ditador. Tinha o nariz de um imperador romano e não tinha vergonha de olhar por cima dele. E era muito, muito alto. Mas seus olhos... — Me dê dez minutos — disse ela abruptamente.
Capítulo 8
Natasha também mantinha uma muda de roupa de baixo no escritório, junto com uma elaborada jaqueta de lantejoulas. A jaqueta era mais engraçada que elegante, mas servira para mais de um coquetel. Infelizmente não tinha uma blusa limpa, mas descobriu em uma gaveta de roupas de baixo um corpete de veludo que havia comprado numa loja para adolescentes. Então, se Kazim al Saraq pudesse encarar o fato de ser visto com uma enérgica garota da noite, poderia levá-la para jantar. E se não gostasse, ela teria certeza que o calor nos olhos dele tinha sido um engano deliberado. Ela desapareceu no pequeno banheiro e se trocou rápido. Depois, olhou-se no espelho e ficou desanimada. Nada poderia ocultar o belo corte de seus cabelos louros, mas eles pareciam empoeirados e sem vida. Não havia muito que ela pudesse fazer agora, nem com os cachos e nem com as olheiras de cansaço. Deu de ombros, bem, não era a primeira vez que tinha de ir para algum lugar diretamente do trabalho. Ela poderia dar um jeito. Concentrando-se, espalhou uma leve sombra colorida nas pálpebras com gestos firmes e práticos. Depois passou rímel nos cílios, secou bem a pele do rosto e espalhou base e um pó sedoso sobre ela. Um toque de blush para acentuar as maçãs do rosto, um batom vermelho cuidadosamente escolhido para fazer a boca parecer voluptuosa, e estava pronta. Ou quase. Ela hesitou em relação aos sapatos. Mas algo lhe disse: "Vá em frente. Se vai fazer o papel de uma garota da noite, faça mesmo." Ela procurou as sandálias de saltos altíssimos com tiras no tornozelo, muito sensuais. E percebeu que estava pronta para qualquer coisa. — Não preciso ir em casa para me trocar. Se quer me levar para jantar fora, é assim que vou. — Era um claro desafio. — Estou vendo. Ele foi até ela e abriu a jaqueta colorida. O corpete apresentava um decote espetacular. — Essa sua blusa beira a indecência. — Está reclamando? Ele sacudiu a cabeça vagarosamente. Muito vagarosamente. — Achei que não — disse Natasha. Kazim, pensou ela, tinha saído do primeiro round desta noite bem melhor do que ela. Certo, ela tinha feito um bom trabalho com as roupas, a maquiagem e um excelente brilho labial, mas qualquer um que olhasse de perto veria como era artificial. Ao passo que Kazim estava muito natural. Ele usava outro de seus temos escuros bem cortados, com uma camisa branquíssima. Abotoaduras de platina brilhavam discretamente nos punhos. A gravata era de seda, claro, uma estampa brilhante de cinza e azul. O contraste com a pele castanho dourada era estonteante. Natasha não tinha dúvidas de que ele sabia daquilo. Exalava um cheiro de roupa limpa e sapatos engraxados, sem contar aquela colônia cara. E estava muito bonito. Ele a levou a um restaurante do qual ela já tinha ouvido falar, mas aonde nunca tinha ido.
— Banqueiros — disse ela, olhando a fachada discreta com um olhar profissional. — Comida maravilhosa que custa os olhos da cara. Cheia de contas caríssimas, ela estava um pouco desapontada. — Você não quer comer aqui — percebeu ele. — Bem, não é exatamente o tipo de lugar íntimo aonde normalmente vou no primeiro encontro. Mas não tenho dúvidas de que o suflê é sensacional. Os olhos dele piscaram. O que ela tinha dito? Primeiro encontro? Pelo amor de Deus! Um encontro? Ela parecia uma adolescente. Pior, uma adolescente faminta pela atenção dele. Ai! No entanto, eles não foram para o salão de jantar principal, com o burburinho milionário e as mesas cheias de ternos quase tão bonitos quanto o dele. Em vez disso, foram levados escadas acima até um aposento pequeno e intimamente decorado. Então ele não queria que ninguém visse que estavam juntos, mesmo que fosse por algumas horas! Era como um soco no estômago. Kazim deu instruções em voz baixa que ela não entendeu. Ajeitando a jaqueta com o decote desafiador, Natasha olhou o pequeno aposento. Tentou esquecer o insulto e se concentrar nas pinturas na parede. Um garçom impassível chegou, trazendo drinques e aperitivos. Natasha virou-se para contemplar o desenho de uma gueixa em preto e branco. Kazim fez um gesto em sua direção e o garçom andou silenciosamente até ela, tão submisso quanto uma gueixa. Entregou-lhe um copo grande com algo rosa e efervescente. Depois ofereceu o outro copo, cheio do gelo e uma fatia de limão, para Kazim. Ele saiu. A porta fechou-se sem qualquer ruído. Natasha estava tentando se divertir, mas, para sua surpresa, aquilo doeu no coração. Ela era esperta o suficiente para perceber que Kazim simplesmente não queria ser visto com ela em público. Kazim estava olhando para ela com um meio sorriso — Isto é o que na literatura francesa se chamaria um chambre séparée. — É mesmo? — É — respondeu Natasha. — Certamente a sedução é uma idéia muito antiquada para uma mulher do século XXI — Certamente. Desta vez, o silêncio parecia um instrumento de corda, vibrando com a tensão. — Você acha que eu a trouxe aqui para seduzi-la? — perguntou ele, muito suavemente. — É uma possibilidade. — Você está sendo fria sobre isso. — Não sou facilmente seduzida. Ele deixou os olhos mergulharem em seu decote cheio de sombras. A jaqueta tinha se aberto novamente. — Então você gosta de jogar.
Natasha resistiu à tentação de fechar a jaqueta sobre o busto. Em vez disso, levantou o copo para ele num brinde zombeteiro. — Todo mundo gosta. — Achei que você era muito séria. Mulheres de negócios gostam de jogar? — Elas fazem exatamente o que querem — disse Natasha, com mais bravura do que sinceridade. — Acho isso muito encorajador. O pulso de Natasha começou a bater forte por puro desejo. Como não devia bater. Aquele olhar continha muitas promessas sexuais e ele sabia disso. Cuidado, disse para si mesma. — Pode parar de tentar me seduzir. Não está funcionando. — Então você tem de me dizer o que funciona – disse ele, com educação. Natasha quis gritar. Mas deixou de lado o drinque que mal havia provado e sentouse à mesa belamente arrumada. — Eu não ia querer fazê-lo perder seu tempo — disse ela, com seu sorriso mais charmoso. Kazim assentiu, como se ela tivesse acabado de lançar um desafio. — Agradeço a consideração — disse ele, ainda muito calmo. Ela assimilou isso. Não tinha certeza de que gostava das implicações. — Então você não vai parar com essa enganação? Seu charme falhou um pouco. Por quê? — Você é deliciosamente modesta. Essa enganação como você chama, é irresistível para qualquer homem com sangue nas veias. — Quer dizer que tem de fazer todo esse teatro de sedutor do deserto só porque estou dizendo a você que é perda de tempo? — Não inteiramente — murmurou ele. — Por que, então? Sou algum tipo de desafio? Uma oponente à altura? Uma nova experiência? — Tudo isso junto. — Ele fez uma estranha e pequena reverência, como um duelista saudando o adversário. — E também é uma mulher muito bonita. Aquilo a fez silenciar. Kazim deu um sorriso afável e sentou-se em frente a ela. Natasha trincou os dentes. Sexy, sedutor e sorridente. Não era justo. Ele devia ter apertado uma campainha oculta porque, num passe de mágica, o garçom voltou com o primeiro prato. Ela deu um risinho seco, de diversão. Sexy, sedutor, sorridente e controlador. Ai, ai, a sorte estava contra ela. — O que foi? — Piadinha particular — disse Natasha. — Você não apreciaria. Ela jamais conseguiria se lembrar do que comeram. Lembrava que ele servira vinhos, mas ela também não os tocou. E viu que ele não bebeu nada além de água. Ele disse:
— Nossos melhores amigos vão se casar. Não é hora de uma trégua? — Sim — disse Natasha, sorrindo também. — Vamos ser civilizados. A comida chegava e era removida e eles conversavam o tempo todo. Falaram sobre o trabalho dele. — Dirijo as obras de caridade da família. Pelo menos em teoria. Na prática, temos tantos diretores que eles fazem tudo praticamente sozinhos. Hoje em dia, passo a maior parte do tempo sendo um mediador internacional não oficial. Ela ficou surpresa e impressionada, apesar da relutância. — Isso não é terrivelmente difícil? — Ah, sim. Mas as pessoas têm de começar a conversar em algum momento. Alguém tem de dar início a isso. E posso muito bem ser eu. — É perigoso? Era sua imaginação ou ele recuou levemente? Mas o tom era leve quando falou: — Apenas entediante, a princípio. Quero dizer... — Você é alvo de extremistas? — Quem não é? Tudo de que você precisa é estar no lugar errado, na hora errada. Ela começou a ver que tinha subestimado Kazim a um interrogatório. Ele podia ser mais ditatorial do que era possível de se acreditar no século XXI. E podia ter um gosto perverso para provocações sensuais. Mas havia algo mais nele do que o dinossauro machista de que ela o tinha chamado. — Estou impressionada — disse ela com simplicidade. Também falaram sobre a vida dela. Bem, a empresa dela, mas para Natasha aquilo era sua vida. — Por que pesquisa de mercado? — Sou boa em decifrar as pessoas. — Comigo você não foi tão boa assim. — Certo. Grupos de pessoas. Nem sempre sou muito boa com indivíduos. — Vou me lembrar disso. — Ele se reclinou na cadeira, bebendo um gole de água. Seus olhos não deixaram o rosto dela. — Como você entrou nisso? — Você acreditaria se eu dissesse que foi com uma prancheta nos aeroportos? — Achei que você só fazia pesquisas qualitativas. — Você se lembra disso? — Tenho uma boa memória para coisas importantes — concordou ele gravemente. — Lisonjeiro. Por um instante, ele ficou em silêncio. Depois disse, devagar: — Não. Isso não foi lisonjeiro. Foi a verdade. Kazim parecia surpreso. Mas ela estava sacudindo a cabeça para ele, rindo, sem acreditar. — Você está certo, claro. Os números por si só não dizem muito. Mas mesmo assim foi como comecei. Eu estava desesperada por um emprego, e não é necessário ter
qualificação para perguntar às pessoas que tipo de sabonete elas usam. — Ninguém jamais me perguntou qual é o sabonete que uso — reclamou ele. — Provavelmente porque você é estatisticamente insignificante. — O quê? — Ele estava ultrajado. Os olhos dela brilharam. Ela estava se divertindo. — Você compra os mantimentos de sua casa? Não. Você manda alguém fazer isso. O fabricante quer saber o que o consumidor tira da prateleira. Quem compra o aquilo que você usa? Sua governanta? Seu criado? Sua namorada? Sua esposa? Houve um pequeno silêncio. Os olhos se encontraram. Os dele, impenetráveis. Os dela, brilhando. Ele respondeu devagar: — Se quer saber se sou casado, me pergunte. — Não quero saber — disse ela secamente. Os olhos dele perfuraram os dela. Não estava sendo firme, mas de alguma forma era implacável. Como se ele fosse deixá-la sair antes de dizer-lhe a verdade. Homens ricos, poderosos e bonitos tendem a ser casados. — Então pergunte — provocou ele gentilmente. — Você é casado? — perguntou ela, como se aquilo a estrangulasse. — Não. E nada mais. Mas, já que tinha perguntado, ela não viu motivo para parar por ali. — Por que não? Ou vai me dizer que nunca encontrou a mulher certa? — Você acreditaria em mim se eu dissesse isso? — Sou velha demais para acreditar em contos de fada. — Nem um pouco romântica, hein? — Não — concordou ela. — Quer me dizer por quê? — Responda a minha pergunta primeiro. — Meu estado de solteiro? Hoje em dia ando muito ocupado. Quando eu era mais jovem, não tive muita sorte. — Sorte? Ele sorriu. — Eu fui abandonado — disse ele, com completo sangue frio. — Não acredito — disse Natasha, por puro reflexo. Ele riu alto. — Obrigado. Mas é verdade. Quarenta e oito horas antes da cerimônia. O estrago social foi inacreditável. Natasha jamais teria acreditado que pudesse senti qualquer simpatia por aquele sujeito arrogante. Mas descobriu que queria inclinar-se para frente, pegar sua mão e consolá-lo. Consolar Kazim al Saraq? Ela devia estar fora de si. Natasha procurou falar com ironia.
— Acredite em mim, não parece. Os olhos dele brilharam. — Fico feliz por ouvir isso. E você está muito convencida. Se tivéssemos nos casado, ela teria ido comprar o sabonete. — Por que não escolheu uma outra compradora sabonete desde então? — perguntou ela suavemente. Ele riu e fez uma pequena saudação, como se tivesse encontrado um oponente à sua altura. — Minha vida é complicada — disse ele com cuidado, mudando de assunto. Porém, Natasha era uma mulher do século XXI. Além do mais, estava acostumada a lidar com evasões charmosas. — Complicada em que sentido? Ele deu de ombros. — Ah, eu viajo muito — disse vagamente. — Uma esposa não poderia viajar com você? Ele pareceu horrorizado. — Eu jamais pediria isso a ela. Até uma mulher do século XXI ficaria muda com aquilo. Depois de uma pequena e estranha pausa, ela disse calmamente: — Onde é sua casa, quando não está viajando? — Boa pergunta. Tenho apartamentos em Nova York. Uma casa aqui em Londres. Serenata Place, que você conheceu. E um pequeno refúgio perto do mar, em meu próprio país. Ele sorriu, como se apenas pensar no lugar o fizesse sentir bem. Aquilo fez Natasha gostar um pouco mais dele. E gostar, ela sabia, era uma armadilha. Desviou os olhos dele rapidamente e não perguntou sobre o refúgio perto do mar. — E você? — ele disse depois de um instante. — Onde é o seu lar? — Nasci num subúrbio de Londres — contou Natasha. — Minha mãe ainda mora lá. Apareço de vez em quando. — Sente falta de lá? — Não. — E agora você vive num condomínio de apartamentos cheio de duquesas de oitenta anos — provocou. Ele sacudiu a cabeça. — Então, onde é seu lar espiritual, Natasha Lambert? No centro de Manhattan ou na selva tropical? — Por que está dizendo isso? — perguntou ela asperamente. — O que eu disse? Natasha quis morrer. Estava exagerando novamente. — Nada. Esqueça — disse ela, cortando. — Foi uma noite ótima, mas preciso ir embora. Ela esperou que ele protestasse. Afinal de contas, não estava tentando seduzi-la? Mas tudo que ele fez foi assentir polidamente e perguntar:
— Tem certeza? Natasha ficou surpresa ao descobrir que estava desapontada. Mas escondeu aquilo com um tom alegre. — Tenho. — Então, claro, vou levá-la para casa. — Kazim estava dando ordens novamente. — Por favor, Michael, pode chamar meu carro? — Imediatamente, Sua Excelência. O garçom desapareceu. Kazim desceu as escadas à frente dela. Natasha ficou olhando para sua bela cabeça. — Mas e a conta? — preocupou-se. Ele acenou com a mão. — Nunca pago contas. — Mas... — Ela não conseguia acreditar. — Isso é desprezível — exclamou, impetuosamente. Ele se virou para olhá-la. Sua expressão era indecifrável. — Como você é puritana. — Não é exclusividade dos puritanos pagar o que se deve — disse Natasha, nervosa, procurando loucamente na bolsa seu próprio cartão de crédito. — Você faz o que quiser. Mas eu vou voltar e... A mão dele se fechou sobre a dela. Natasha sentiu aquela eletricidade agora familiar e levantou os olhos, encontrando os dele involuntariamente. Sua expressão não era mais indecifrável. Ele estava rindo abertamente. — Você é muito fácil de se provocar — disse ele, se desculpando. — A conta vai para o meu escritório. Meu assistente a pagará amanhã de manhã. Venha. — Mas... — Garanto a você, que não engano donos de restaurantes honestos — disse ele impacientemente. — Janto aqui desde que Michael abriu o restaurante. Ele sabe como faço as coisas. — Bem, sorte de Michael — murmurou ela. — Sabe, você acharia a vida mais fácil se, de vez em quando, me desse o benefício da dúvida — disse. Ela o olhou com raiva. E depois três coisas aconteceram simultaneamente. A discreta limusine de Kazim parou em frente a eles; ela ouviu o ruído de pés correndo; e Kazim agarrou-a num poderoso abraço e virou-a para que ficasse entre ele e a parede do restaurante, coberta por seu corpo. Uma luz brilhou. Duas. Mais. Os pés saíram correndo por uma ruazinha lateral. O funcionário do restaurante pulou do banco do motorista e veio até eles. — Sua Excelência, sinto muitíssimo. Eu não os vi. Eu... Kazim soltou Natasha e pegou as chaves sem uma palavra. Abriu a porta do passageiro e quase a jogou no assento. Depois deu a volta no carro e pulou para o banco do motorista. A porta do motorista mal tinha se fechado quando ele deu a partida.
Natasha esforçou-se para sentar direito. — O que está acontecendo? — Tinha perdido um sapato e teve de remexer o grosso tapete para recuperá-lo. Kazim olhou para ela rapidamente. — Provavelmente papparazzi. — Ah. Ali estava novamente. Uma completa resistência a ser visto com ela. Aquilo gelou Natasha por dentro. — Não se preocupe. Posso despistá-los, se for preciso. — Não estou preocupada — disse ela rispidamente. — Não ligo para quem me fotografa. Não fiz nada de que precise me envergonhar. Kazim não respondeu. Estava dirigindo furiosamente, avançando sinais fechados e levando o grande carro por ruas que ela teria jurado que eram muito estreitas para ele. — E aposto que também não paga as multas de trânsito. Ele a ignorou e falou ao telefone. — Tom? Eles estavam esperando do lado de fora do Michael. Houve uma pausa. Tom havia feito uma pergunta. — Não sei. Tiraram fotos. O tom de Kazim era quase normal. Mas por alguma razão Natasha ficou sentada ereta e virou-se para olhar pela janela. — Eu e a srta. Lambert. Sim, é isso. Lambert. A co-organizadora do casamento Templeton-Burke. Ai, pensou Natasha. Co-organizadora do casamento. Esta sou eu. Como posso ter pensado que aquilo seria um simples encontro? Como sou tola. — Vou deixá-la em casa e depois encontro você — disse Kazim finalmente. — Meia hora no máximo. — Ele desligou. Quando chegaram ao condomínio, ela arrumou o cabelo e disse: — Por que não me deixa na porta da frente? Sei que está morrendo de vontade de ir embora. Ele simplesmente sacudiu a cabeça, estacionou o carro numa vaga de moradores e escoltou-a até a porta do apartamento. Apenas quando chegaram à soleira ela se lembrou de sua desconfortável noite de domingo, com aquela figura imaginária sobre seus móveis. Nu sobre seus móveis. — Obrigada. E... Boa noite — disse ela precipitadamente, evitando seus olhos. Ela ficou muda quando percebeu que ele tinha trazido uma sacola grande e elegante do carro. Era preta o dourada e ele agora estava tirando uma caixa dela. Nem bolsa nem caixa tinham qualquer nome escrito, mas Natasha sabia reconhecer um artigo caro quando o via. — O que é isso...? — Eu disse que você deveria me dar o benefício da dúvida. Eu pago minhas dívidas — disse Kazim al Saraq, suavemente. — Sempre.
Depois ele abriu a caixa e apresentou o conteúdo a ela. Natasha olhou lá dentro e arfou. Eram artigos milionários! A caixa continha sapatos, cada um carinhosamente embrulhado em suave tecido aveludado cor de marfim. Natasha amava sapatos. Ela conhecia aquele tecido. Sem acreditar, levantou um canto do tecido. Algo brilhou, fulminante como um punhal. Natasha soltou o veludo e recuou tão rápido que se poderia pensar que a caixa continha uma cobra. — São sandálias incrustadas da Chastity Fair — engasgou ela. Ele sorriu satisfeito. — Fico feliz por elas terem encontrado uma dona tão perspicaz. Natasha abaixou os olhos para os sapatos Chastity Fair que estava usando. Eram sexy e bonitos e faziam suas pernas parecerem muito longas. Eram os sapatos mais caros que já havia comprado, e custavam pelo menos cinco vezes mais que qualquer outra coisa em sua sapateira. Mas não eram incrustados. A coleção de sandálias incrustadas era algo que a estilista tinha lançado no Natal. Natasha tinha lido sobre elas na revista Elegance. Era uma edição limitada, incrustada com pedras preciosas. "Coisa para um milionário presentear a mulher com a qual ele não vai passar o Natal", descrevia a revista. Cuidadosamente, Natasha pegou uma na discreta caixa preta. Era de suede preto, macia como a asa de uma águia, e na tira do dedão do pé havia diamantes espalhados, como estrelas numa noite escura. Ela acariciou o sapato com amor. Era belo, pouco prático e pecaminosamente extravagante. Mais ainda, era o tipo de coisa que um homem dava para a mulher que amava ou, como disse a revista, que um homem muito rico dá para a mulher com a qual não se importa muito, mas deseja agradar. Natasha colocou-a de volta na caixa como a sandália a tivesse queimado. — Como você ousa? — gritou ela. Kazim ficou aturdido. Desde o início, a noite não tinha corrido como ele planejara. Ela era muito sensível. Muito difícil. Nunca sabia o que ela ia dizer. E agora essa reação explosiva por causa de um par de sapatos! — O tamanho não está correto? Ela piscou, como se aquele pensamento jamais tivesse ocorrido a ela. Seus olhos pareciam enormes e ele percebeu com um choque que estavam cheios de lágrimas. Ele franziu a testa. O que havia de tão errado com os malditos sapatos que traziam lágrimas aos seus olhos? Ela engoliu em seco e depois disse, mais suavemente: — Não queria gritar. Desculpe. Devo estar mais cansada do que pensei. — Então... — Quis dizer, claro — disse ela cuidadosamente —, que não posso aceitar nada tão... — Caro? — disse ele, com um leve tom de desdém. — Asseguro a você que esses pequenos pedaços de absurdo não significam nada para mim. Natasha fez um pequeno gesto de assentimento como se aquilo fosse exatamente o que ela esperava. Aquilo o irritou profundamente. — Mas talvez eles pudessem significar algo para mim — disse ela quase
inaudivelmente. — O quê? — Eu ia dizer que não posso aceitar nada tão pessoal. Colocou a tampa de volta na caixa e devolveu-a cuidadosamente. Seu sorriso estava torto. — A não ser que realmente significasse algo para mim, de qualquer forma. — O que, é claro, seria uma loucura. Uma loucura total. — Ele teve a impressão de que ela endireitava os ombros como se estivesse indo para a guerra. — E agora, acho, você realmente tem de ir embora. Ele não sabia o que dizer, então não disse nada. Natasha piscou muitas vezes, rapidamente, e quase jogou a caixa nele. — Por favor. Obrigada pela lembrança. Mas não. E, por favor, eu realmente gostaria que você fosse agora. — sua voz cresceu. Kazim viu o brilho faiscante de seus olhos; o sorriso que ela estava tendo dificuldade de manter no lugar; aqueles ombros, tensos como se ela estivesse encarando um inimigo... Ele pegou a caixa automaticamente, procurando o rosto dela, inquieto. — Eu jamais quis afligir você. — Não, tenho certeza que você quis ser gentil. Ele disse, desajeitado como um garoto: — Você perdeu seus sapatos nos arbustos em Serenata Place. O mínimo que eu podia fazer era substituí-los. — Mas nós dois sabemos que estes sapatos são muito mais do que uma substituição, não é? — Está dizendo que não vai aceitar um presente meu — disse ele, com um tom vagaroso de descoberta. A boca de Natasha estava tremendo? Ele se inclinou para tocá-la e ela recuou. Ele congelou como se ela tivesse batido nele. — Estou dizendo que não vou aceitar um presente seu — concordou ela baixinho. Aquilo o ofendeu, mas havia uma estranha lasca de dor também. A dor o surpreendeu tanto que ele não conseguiu pensar em nada para dizer. — Agora, por favor, você pode ir? Estou muito cansada. Num lampejo de compreensão, Kazim pensou: "Ela quer que eu saia antes que as lágrimas caiam". Aquilo o chocou até o fundo do coração. Quem teria pensado que um gesto tão simples pudesse dar tão terrivelmente errado? Não teria ficado surpreso se ela tivesse jogado os sapatos nele com raiva. Desprezo, até. Estava altamente preparado para o desprezo, dada a briga mais cedo. Mas lágrimas? Quem teria imaginado aquela mulher de negócios, a feroz Natasha Lambert, chorando por causa de sapatos? Ele não conseguia acreditar. Pela primeira vez em anos, ele estava totalmente confuso. Não tinha idéia do que fazer. A coisa mais simples era fazer o que ela queria. Ele saiu sem uma palavra.
No momento em que a porta se fechou, Natasha se jogou no chão. Estava tremendo desde o centro do corpo. Fazia um longo tempo desde que tinha se sentido assim: confusa, invadida, fora de controle. Em perigo. Tudo porque um homem a tinha levado para jantar e a tinha paquerado? E depois tentado dar a ela umas sandálias totalmente inadequadas? Aquilo era ridículo. Ele não tinha dito aquilo esta noite, mas a frase tinha estado ali entre eles, o tempo todo. Eu precisaria apenas de uma noite para fazê-la mudar de idéia. Apenas... Uma... Noite. Natasha socou o travesseiro, frustrada. Mas no final se entregou à insônia. Passou-se uma semana. Em todo aquele tempo, para seu alívio - pelo menos era o que dizia a si mesma -, ela não ouviu falar nada sobre Kazim al Saraq. A não ser por sua aparição regular em todos os seus sonhos, claro. Na oitava noite quase sem dormir, Natasha traçou um plano de ação. — Isso tem de parar. Amiga ou não, Izzy vai ter de se virar sem a madrinha.
Capítulo 9 Kazim vagava pelos magníficos aposentos do palácio al Saraq, inquieto como um leopardo enjaulado. — O que há de errado? — murmurou Tom para Martin. — A campanha fracassou — sussurrou Martin de volta. Tom pareceu alarmado. — Com as Nações Unidas? — Não, não — acalmou-o Martin. — A campanha Dinossauro do Deserto. Parece que a Fêmea Feroz venceu o primeiro round. — Ou talvez o segundo. Kazim estava vestido com suas túnicas do deserto para o encontro de cúpula que ia liderar em alguns minutos. O traje branco balançava enquanto ele andava. — Ela o rejeitou? Isso é uma novidade — murmurou cie. Kazim disse: — Quero saber quem tirou essas fotos no restaurante do Michael. Como estamos indo com isso, Tom? Tom pegou o computador de bolso e digitou um comando. — Ninguém as ofereceu para venda. — Ele levantou os olhos. — Talvez estejam tão borradas que não valham a pena. — Talvez. — Kazim não parecia acredita naquilo. — Talvez seja melhor você não sair com ela novamente.
Kazim fechou a cara. — Tom quer dizer que você não vai querer que a srta. Lambert se torne uma pessoa por quem você pagaria resgate — disse Martin, impaciente. — Isso poderia colo cá-la em perigo de verdade. Kazim não olhou para ele. — Sei o que Tom quer dizer. — A voz era áspera e ele olhava duro para o conselheiro de segurança. — Ele não confia em Natasha Lambert. Kazim pegou os papéis do canto da mesa e jogou-os com tanta força na parede do outro lado que eles se espalharam como confete. Os outros dois trocaram olhares surpresos. Jamais tinham visto seu controlado e cortês chefe fazer nada parecido com aquilo. Houve um instante de silêncio gelado. Um músculo trabalhou na jugular de Kazim. — Ela devolveu meu presente. Metade do tempo ela está interessada, depois subitamente ela se lembra de alguma coisa e não quer ficar no mesmo aposento que eu. — Aquilo escapou como se ele não pudesse suportar mais. Eles o observaram, impotentes. Tom apertou os lábios. Kazim viu. — E não, isso não significa que ela é uma agente disfarçada — explodiu ele. — Apenas significa que ela tem a mente de um saca-rolhas. — Passou a mão de modo impaciente pelos cabelos. — E agora eu nem posso falar com ela? — Você vai seguir meu conselho? — Sim. — Era como um xingamento. — Que escolha tenho eu? Se a levar para sair novamente, me arrisco a colocá-la no holofote para muitas pessoas desagradáveis. — Bem, você a verá no casamento. — Se ela não fugir antes. Natasha telefonou para Izzy para dizer que o trato de ser sua madrinha estava desfeito. Ela tinha ensaiado tudo cuidadosamente. Até tinha anotações à sua frente. Primeiro ponto: Izzy era muito eficiente para precisar da ajuda de uma amiga. Mas, na ausência de Dom, sua madrasta tinha convidado Izzy para ficar na casa da família. — Para um treinamento para o casamento — disse Izzy, arrasada. — Eficiente? Deveria ter me visto. Eu me enrolei o tempo todo. — Ah — disse Natasha, frustrada. Ela riscou o primeiro argumento. — Mas você ainda pode contar com Dom. — Em teoria. Só que ele está andando sobre bancos de gelo e me deixou a tarefa de agüentar a bruxa. Natasha riscou o segundo ponto com tanta força que rasgou o papel. Só sobravam as outras madrinhas. — Bem, você terá todo o apoio da família. Pepper e sua irmã e... — Jay Jay disse que estará fora do país e volta apenas na véspera do casamento. E agora Pepper está grávida e não quer ser madrinha de jeito nenhum... — A voz de Izzy cresceu e seu riso tinha um toque de histeria.
Natasha amassou a lista e jogou-a com força na parede. — Certo. Você ainda tem a mim O que posso fazer? — Você iria comprar roupas comigo? Quero dizer, se você tiver tempo. — Jay Jay não seria uma companhia melhor para as compras? Roupas são o negócio dela. — Ela está fora — disse Izzy. — E você é sempre tão elegante. — Ela tentou outro daqueles risos terríveis. Não foi muito mais bem-sucedida desta vez. — Se não comprar meu vestido logo, a madrasta vai tomar conta disso também. Não sei nem por onde começar. Numa onda de raiva e simpatia, Natasha esqueceu que queria passar o casamento de Izzy escondida sob um grande chapéu e bem longe de Kazim al Saraq. — Eu sei — disse ela com energia. — Venha comigo, garota. Vamos acabar com essa mulher. No entanto, quando olharam para suas agendas, foi impossível marcar antes do Natal. Natasha estava mergulhada na loucura dos prazos de fim de ano e o trabalho de Izzy também não estava muito melhor. — Depois do Ano Novo — disseram uma à outra. — Desta vez você realmente perdeu o limite — disse Leo, desanimado. — Nós não podemos pegar todo esse trabalho extra. É humanamente impossível. Não se tratava apenas de ser possível. Era essencial, se ela quisesse tirar Kazim al Saraq de sua mente. Durante semanas, Natasha voava entre o escritório e as reuniões. Dormia em média quatro horas por noite. E, mesmo assim, a cada vez que entrava em seu apartamento, ela sentia um cheiro de Amertage, um leve ruído de passos atrás da porta fechada, uma respiração quente contra sua nuca exposta... — Isso não faz sentido — disse a si mesma. Ela encheu o lugar com velas com aroma de lavanda e deixou todas as portas internas abertas. Até deixou o cabelo crescer até a altura dos ombros. Tudo aquilo ajudou um pouco. Entre seus arranjos em casa, o novo corte de cabelo e o trabalho, ela chegou à véspera de Natal sem estar completamente obcecada com Kazim al Saraq. — Vou gostar de ficar em paz — anunciou ela para o apartamento vazio. E fingiu não escutar o eco de um uso zombeteiro. Ela realmente teve de se esforçar para manter a imagem de Kazim distante naquele dia. Assim que se enroscou em seu velho amigo, o sofá, a primeira coisa em que pensou foi a fantasia que tivera na primeira vez em que ele a trouxera para casa: Kazim reclinado ali, nu. Ela se levantou, com o rosto pegando fogo, e se ajeitou no tapete. Passou o dia de Natal andando pelo apartamento com um robe de veludo e seus chinelos de gatinhos. Mas nem os chinelos eram mais o conforto que tinham sido antes de Kazim levantar as sobrancelhas ao vê-los em sua maleta. Que droga, em quantas partes de sua vida ele tinha conseguido se enfiar? Mas aí foi para a cama. Os sonhos começaram quase na mesma hora em que fechou os olhos. Às vezes estava sozinha numa praia. Às vezes estava no meio de uma festa lotada. Subitamente, uma figura poderosa surgia bem no canto de sua visão. Ela se virava para encará-lo. E ele tinha ido embora. Mas ela sabia quem era.
E acordou chamando seu nome. Chocada, ficou ali deitada no escuro. O coração batia tão forte como se tivesse corrido atrás dele na realidade. Estava consciente de uma enorme sensação de perda. Perda, sim. Mas desejo também. Natasha pulou da cama quando percebeu. Um chocante lampejo de desejo percorreu-a. Quanto tempo havia se passado desde que isso acontecera pela última vez? Nunca. Nunca se sentira assim. Eu precisaria apenas de uma noite... Ela acendeu a luz. Ligou para a amiga no dia seguinte. Mas Dom tinha feito um seqüestro surpresa, levando Izzy para uma caminhada romântica sobre as charnecas geladas. Quando Izzy voltou, Natasha tinha ido para os Estados Unidos. Depois houve a Semana de Moda de Londres e Izzy estava trabalhando 24 horas por dia. Elas não conseguiram se ver até um dia frio de primavera. Até então, Natasha tinha decidido que poderia manter sob controle a situação de Kazim. Afinal, ele não tinha tentado contatá-la. Seus sonhos também estavam quase de volta ao normal. Se ela mantivesse a cabeça fria, e a distância, poderia passar pelo casamento sem se sentir uma idiota completa. Izzy também estava melhor. Uma semana com Dom na charneca tinha feito maravilhas com sua auto-estima. — Acho que vai ser divertido, no fim das contas — anunciou ela. — Certo, minha família é repleta de traidores. Mas você e eu podemos lidar com qualquer coisa. Até com madrastas bestiais. Dinossauros sensuais?, pensou Natasha instintivamente. Reprimiu o pensamento logo e pegou um laptop coberto com capa de couro. — Certo. Vamos fazer uma lista de afazeres. — Já tenho uma. — Izzy tirou uma folha toda dobrada da bolsa. — Vestido. Traje para sair do casamento. Sapatos. Roupa de baixo, ponto de interrogação. — Ela levantou os olhos. — Roupa de baixo, ponto de interrogação? Izzy Dare, está me dizendo que quer caminhar pela igreja sem vestir nada por baixo do vestido de seda? Izzy pareceu pensativa. — É uma idéia. — Assanhada — disse Natasha admirada. — Estou trabalhando para isso. — Você certamente está. A pele de Izzy brilhava e os olhos castanhos também. Até os cabelos cacheados rebeldes brilhavam, cheios de vida. Natasha comparou-a com a mulher tensa e magricela que tinha conhecido na selva e mal pôde acreditar. Disse isso à amiga. — É o amor — disse Izzy com convicção. — Você deveria experimentar — disse Izzy gentilmente. Uma visão de Kazim, reclinado nu em seu sofá e rindo para ela, invadiu a mente de
Natasha espontaneamente. Ela se encolheu. — Alguns homens são confiáveis, sabe? Entretanto, essa era uma discussão que ela nunca tivera com ninguém, nem mesmo Izzy. — Talvez. — Natasha baniu a imagem provocadora e chamou um táxi que passava. — Vamos ao Odell, para ver seu traje de saída do casamento primeiro. Eles de vem ter alguma coisa que você goste. Também podemos ir até a Sloane Street e ver os sapatos. O táxi levou-as até uma discreta loja num terraço elegante. — Minha amiga, a noiva. — Natasha apresentou Izzy com um floreio. — Ela quer um vestido que vá estontear a oposição, impressionar a madrasta má e fazer seu marido querer tirá-lo o mais rápido possível. — Tash! — protestou Izzy fracamente. No entanto, Caro Odell estava acostumada às instruções de Natasha. Ela assentiu seriamente. — Podemos ver isso. Dê-me cinco minutos. Em três ela estava de volta com um bule de café cheiroso e algumas idéias inspiradas. Levou menos de uma hora para Izzy encontrar o traje perfeito. Depois Caro mandou-as para as lojas certas para achar sapatos que combinassem e lingerie atraente. Quando terminaram, Natasha e Izzy estavam rindo como colegiais. Mas, durante o chá no Ritz, mais tarde, Izzy perdeu um pouco do brilho. Começou a brincar com uma colher de chá e seus olhos evitavam os de Natasha. — Solte logo — disse Natasha, devorando sanduíches de pepino com uma expressão beatífica. — Mas, se quiser me vestir com cetim e babados, deve procurar uma madrinha substituta. — Não comece novamente — implorou ela. — Não, é nada disso. — O que é, então? — Bem, é essa coisa da madrinha. — Izzy respirou fundo. — A história de... Andar pela nave... — Entro atrás de você, mantendo uma das mãos livre para pegar suas flores — disse Natasha, que já tinha memorizado suas obrigações. — Sigo você até a sacristia para assinar o livro de registros. Devolvo as flores e saio de braços dados com seu pai. É isso. — Não é com meu pai. Natasha encarou-a. Aquilo era pior, bem pior, que os babados. Subitamente o delicioso sanduíche de pepino do Ritz tinha gosto de serragem. Ela o deixou de lado. — O que quer dizer? — A voz não parecia a sua própria. — Kazim é o amigo mais antigo de Dom. Foi escolhido para padrinho quase antes de Dom me pedir em casamento. — Izzy estava gaguejando. — Eu sei que vo cês dois não se dão bem, mas é só por um dia e ele pode ser bem gentil... — A voz foi desaparecendo sob o olhar irônico de Natasha. — Gentil? — Bem, ele... Ele... Nos emprestou Serenata Place para a festa — disse Izzy, na defensiva.
— Gentil? — E ele nos deixou soltar fogos de artifício. — E se comportou como se fosse o poderoso chefão. — Bem, ele é um sheik. O que você poderia esperar? Natasha disse numa voz fraca: — O quê? — Dom diz que ele é um pouco antiquado com mulheres. Mas pode ser bem charmoso... — Você disse que ele é um sheik? Izzy notou que a amiga não estava prestando atenção. — É. E daí? Natasha fechou os olhos. Por um terrível instante, ela voltou àquele banheiro egípcio hollywoodiano, mancando ao lado de Kazim e tentando parecer indiferente. Só falta o sheik. Ai, droga, ela até podia se ouvir dizendo aquilo. E também podia escutá-lo dizendo "Isso pode ser arranjado". Ah, aquele tom cruel. Ela devia saber que ele estava rindo dela. Devia ter imaginado que ele era um sheik. — Queria estar morta. Aquilo surpreendeu Izzy. — Tash? — Ela estava preocupada. — O que foi? Natasha abriu os olhos. — Ele é um idiota detestável, difícil e que se acha superior — disse ela. — Ele brincou comigo desde o instante em que nos conhecemos. Não confio nele. E ele aparece muito nos meus sonhos. — Ah, é isso! — disse Izzy, aliviada. — Ainda estamos falando de Kazim? — Quem mais? — Você não precisa confiar nele. — Izzy era prática. — So tem de andar com ele pela igreja e sorrir para as câmeras. Tirando isso, não precisa fazer mais nada com o sheik Kazim al Saraq. Prometo. — Ah, certo — disse Natasha secamente. As semanas se passaram. Ela e Izzy mandaram os convites, receberam as confirmações, falaram com empresas de bufê e tentaram manter os problemas de últi ma hora longe da madrasta de Dom. Enquanto isso, Natasha lembrou secamente, a parte masculina da produção estava num silêncio suspeito. Numa ligação via rádio cheia de interferências, diretamente do Círculo Ártico, Dom disse que não havia nada com que se preocupar: Kazim tinha todas as providências em mãos. Kazim, onde quer que estivesse no mundo, não disse nada. O alívio deu lugar a um sério aborrecimento. E o aborrecimento se transformou em fúria quando Natasha percebeu que teria de tomar a iniciativa para contatar Kazim. Aquilo ia contra todos os seus princípios e instintos. Mas Izzy era sua melhor amiga... Trincando os dentes, ligou para o escritório dele. Uma vez. Duas. Não teve
resposta. Mandou e-mails para o escritório, o que não teve nem uma resposta automática. Disse a si mesma que era mesmo de se esperar aquilo de um sheik que viajava o mundo todo, e tentou rir. Mas aquilo ainda a fazia ficar loucamente irritada. Primeiro ele a provocava. Depois ria dela. Depois tentava seduzi-la com sandálias de milhares de dólares. Depois quatro meses de silêncio. Aquele homem era um insulto à mulher moderna. Se entrasse em seus sonhos novamente, ela ia jogar uma mangueira de incêndio contra ele! Kazim foi e voltou entre Europa, Oriente Médio e Oceano Índico. Previsivelmente, as conversações de paz falharam várias vezes. Os líderes brigavam e os negociadores eram expulsos. E, nas agências internacionais, conversações de paz decisivas eram consideradas prematuras e acabavam sendo interrompidas. — Então agora tudo depende de mim! — reclamou Kazim. — Não tenho diretoria, nem prêmios de seguro com que me preocupar! — Nem mulher ou família. — Graças a Deus existe o jato particular — murmurou Martin para Tom. — Devo dizer a Dominic Templeton-Burke para conseguir outro padrinho? Kazim não quereria aquilo. E não importava o quanto sua agenda estivesse cheia, a primeira coisa que ele sempre olhava pela manhã era o relatório de Tom sobre Natasha Lambert. Então, quando os e-mails dela finalmente chegaram até eles, Martin preparou-se para uma explosão. — Desculpe — disse ele. — Acho que o escritório de Londres pensou que isso era baixa prioridade. Kazim quase arrancou o papel de sua mão. A relutância de Natasha em contatá-lo transparecia em cada palavra. Ele sorriu pela primeira vez em muitos dias. — Melhor telefonar para ela. Pelo menos ela vai ficar feliz por ter notícias minhas depois de tanto tempo. Porém, Kazim não teve a recepção que esperava. Natasha estava numa limusine, em trânsito entre uma apresentação e outra. Estava digitando no laptop com uma das mãos e fazendo anotações com a outra. Quando a voz de Kazim passou pelo fone de ouvido, ela deu um pulo e apagou um parágrafo inteiro sem querer. — O que você quer? — chicoteou ela. — Tive a impressão de que você me queria. — Sheik Kazim — disse Natasha, ameaçadoramente — Não comece a tentar me paquerar agora. Estou avisando que não estou no espírito. Sheik? Então alguém tinha contado a ela. Natasha não gostara daquilo. — Paquerando? Estou respondendo a sua mensagem. — Ah, bom, isso faz toda a diferença. — O que houve? — O que houve — disse Natasha muito calmamente — Eu pedi para você me ligar duas semanas atrás. Desde então, comprei alianças, organizei o serviço, o transporte e
encontrei o presente dos recém-casados para as madrinhas. — A voz dela aumentou. — Cada droga de ajuda que devia ter sido sua. — Eu ando muito ocupado... — E acha que eu não? Acha que não estou ocupada agora? Agora saia do telefone, seu parasita, e me deixe falar com alguém que tenha alguma utilidade. Ela desligou com tanta força que quebrou uma unha. Mesmo assim, ficou satisfeita. Abandonado no telefone, Kazim começou a rir. Enquanto seus assistentes o observavam com descrédito, pois ele riu até ter de se curvar. Quando conseguiu falar, ele disse: — Mais uma coisa para a agenda, Martin. Natasha Lambert quer me ver. Ela pode não admitir isso, mas quer muito me ver. Arranje isso, por favor. Foi assim que Natasha estava sentada em seu escritório às dez horas certa noite, com um rascunho final de um relatório sobre água mineral, quando ouviu a porta se abrir. — Oi — disse ela quando a porta se abriu. — O que você...? — A voz sumiu. Ele estava lá, à porta, observando-a com prazer. Grande e bonito, com seu impecável terno cinza e aquele meio sorriso gozador de sempre. Ela conhecia aquele olhar, uma mistura de competência e perigo. Ele invadia seus sonhos, fazendo-a ficar com raiva, fazendo-a sentir-se uma tola, fazendo-a desejá-lo. — Você! — soltou Natasha, detestando sua própria fraqueza. — Bom ver você também — Ele entrou vagarosamente, fechando a porta. — Você parece bem. — É? Ele chegou perto da mesa. — Você deixou o cabelo crescer. Ela resistiu à necessidade de arrumar o cabelo e ficou de pé. — O que está fazendo aqui? Ele a ignorou. — Gostei. Ficou bonito. — Bonito! — repetiu Natasha, com raiva. Ele pareceu ainda mais divertido. — Você é uma mulher muito estranha. O que há de errado em parecer bonita? — Por que você disse que estava aqui? Ele pareceu ferido. — Achei que você queria me ver. — Por que achou isso? — Você me mandou várias mensagens. — Isso foi semanas atrás, quando poderia ter usado você. Ele abriu os braços.
— Estou aqui agora. Use-me. Natasha fez um grande esforço para não pensar em seus sonhos com visitantes indesejáveis em seus móveis. — Um e-mail teria resolvido. — Não para mim. Ele deu a volta na mesa e subitamente estava mais perto do que ela queria. Ela se manteve firme no lugar, mas seus olhos desviaram, recusando-se a encontrar os dele. — Você parece cansada. — Resultado de 18 horas de trabalho por dia. — Conheço essa expressão. Não consegue dormir? — perguntou ele suavemente. Natasha trincou os dentes e encarou firmemente a pintura atrás do ombro direito dele. — Sei que deve ser difícil você entender — disse ela com uma incrível civilidade —, mas há uma correlação direta entre as horas que trabalho e minha capacidade de pagar as contas. Se não trabalhar, não consigo comprar comida. — Parece que precisa de alguém para cuidar de você. — Não acredito que você disse isso. — Dezoito horas de trabalho por dia é loucura. Tem de haver uma solução melhor. — Gosto do meu trabalho. — Eu também. Mas sei que trabalho melhor se tiro uma folga de vez em quando. Agora que estava olhando para ele, Natasha podia ver que os olhos castanhos estavam curiosamente atentos. Pela primeira vez, Kazim não parecia estar rindo dela. Era um olhar gentil, quase carinhoso, como se quisesse olhar dentro de sua alma. — Acho que você está usando o trabalho para fugir. — Você é louco — disse Natasha, roucamente. — Eu lhe disse. Conheço essa expressão. Quer saber como? — Não. Ele deu um passo adiante. E outro. Ela teve de se inclinar levemente para trás para não tocá-lo. Sentiu o leve aroma de Amertage. Ah, Deus, aquele cheiro significaria Kazim pelo resto de sua vida. Não conseguia tirar os olhos dos dele. — Porque também o vejo todas as manhãs no espelho. Sonhos, não é? Os cílios de Kazim eram maravilhosamente longos, Como seria tê-los acariciando sua pele? Natasha sentiu todo o corpo se contrair de desejo. Mordeu selvagemente o lábio inferior. — Não faça isso. Houve um momento de total silêncio, como um feitiço. Natasha engoliu em seco. — Natasha... Ele não estava rindo agora. Quando estava rindo, ela podia resistir. Sério, ele era fatal. Ela se afastou. Por puro reflexo, mas aquilo quebrou o encanto.
— Queria conversar com você sobre o casamento — disse ela apressadamente. — Deixe-me pegar o arquivo. Kazim parecia se divertir novamente. — Não há pressa. — Ah, acredite em mim, há pressa — disse Natasha. — É isso que você quer. — Ele pegou as páginas, sem expressão. — Isso...? —Preparativos. Ela os listou, marcando nos dedos. Números de telefones, endereços, horários. Convidados importantes. Recepcionistas. Izzy e eu confirmamos os convites e onde os convidados se hospedarão, tudo o que você tem de fazer é cuidar de Dom, pegar o anel e fazer um discurso. Ele fez um movimento sutil, rapidamente interrompido. Ela o espiou. — Você preparou um discurso, não é? — Já o tenho em mãos — disse Kazim com dignidade. Natasha tinha certeza que ele nem tinha pensado sobre aquilo, mas jamais admitiria. Pela primeira vez desde que ele tinha entrado, ela riu sem reservas. —Ah, eu quase esqueci. — Ela procurou numa gaveta da mesa. — O anel. Ele pegou a pequena caixa de veludo que ela lhe estendeu. — Você é muito eficiente. — Ele parecia desconfortável. — Alguém tem de ser. — Você não tem uma opinião muito boa sobre mim — disse ele por fim. Natasha ficou imóvel. Se ela continuasse provocando-o, não precisava imaginar como aquele corpo ficaria sem o terno. Significava que não precisava notar que ele estava mais magro e com os olhos cansados. Se ela se permitisse notar essas coisas, começaria a sentir, e então estaria inteiramente perdida. — Não penso em você — disse ela, tentando atingi-lo. — Você mente mal. — Minto muitíssimo bem — rebateu Natasha. — Isso é um desafio? — Não seja ridículo. — Ela olhou para o relógio, incomodada. Ele estava gostando de seu desconforto. — Não me diga. Quer que eu vá embora para poder voltar ao trabalho. Aquilo era exatamente o que ela queria. Mas Natasha ficou muito surpresa ao se ouvir dizer: — Não acho que nada que eu faça agora será de alguma utilidade. Estou exausta. Ele também pareceu surpreso. Levantou as sobrancelhas. — Então, posso levá-la para casa? Ele claramente esperava um não. Mais uma vez, ela se surpreendeu.
— Obrigada. Eu adoraria. Do lado de fora do prédio, Natasha estremeceu de frio e apertou o casaco contra o corpo. Kazim olhou para o céu. — Quase não há nenhuma estrela lá em cima. — Estamos em Londres — disse ela suavemente. — A luz das estrelas está apagada. — Não apenas em Londres — disse ele enigmaticamente. — O quê? — Tenho a sensação de que a luz das estrelas não é delimitada em nenhum lugar no universo de Natasha Lambert. — Eu poderia lhe mostrar as estrelas, Natasha. — O quê? — Você teria de ser um pouco mais corajosa do que a lua, claro — murmurou ele. Ela reconhecia uma provocação deliberada quando a ouvia. Levantou os olhos para o céu encoberto e disse: — Você não é apenas um dinossauro. Tira suas frases sedutoras de filmes dos anos 30. — Fico feliz por você poder pelo menos reconhecer uma frase sedutora. Eu estava começando a estranhar. — Suas namoradas normalmente caem nessas frases ridículas de cinema? — Minhas namoradas caem por mim. Você é a primeira a reclamar do roteiro. — Não sou sua namorada — gritou Natasha. Aquilo ecoou na rua vazia. Ela se sentiu imediatamente tola. Ele a irritou novamente! Outra vitória para o sheik! Droga! Lágrimas de raiva encheram seus olhos. Para seu azar, ela o viu segurando um lenço branquíssimo com simpatia. Ela o dispensou. — Eu nunca choro — disse ela em tom de guerra. — Acredito em você — disse ele, surpreendendo-a. — Não é justo provocá-la. — O tom era quase, se aquilo não fosse uma loucura total, afetuoso. — Você está trabalhando muito. E tenho de admitir que não coloquei minha energia neste maldito casamento. Vamos para casa. Natasha lembrava daquele carro. O banco era como uma cama de couro. Ela entrou com um suspiro de contentamento e deu a ele o endereço, sonolenta. — Eu sei — lembrou ele. — Por que não dorme? — Não preciso. Entretanto, Natasha abriu um enorme bocejo. Depois estremeceu novamente. Kazim estendeu um braço e pegou uma manta no banco traseiro. — O aquecimento estará funcionando em um minuto. Pode dormir — aconselhou Kazim. — Eu a acordo quando chegarmos. — Não posso... — Mas ela dormiu.
Kazim se divertiu ao ver que nem as luzes brilhantes, nem as buzinas de Londres acordavam Natasha, Sentiu uma pontada na consciência. Ela devia estar exausta e ele não deveria tê-la deixado cuidar sozinha de todos os preparativos do casamento. Bem, agora ele lhe devia uma reparação por aquilo também. Ele abaixou os olhos para ela enquanto sua cabeça caía para os lados no estofamento. Como parecia frágil. Os cílios eram bem mais escuros que os cabelos. Pareciam manchas de fuligem contra a pele de porcelana. Adormecida, a boca tinha uma curva doce. Nenhum sinal da independência selvagem que o deixava furioso. Ela deu um suspiro suave e a cabeça encostou no ombro dele. Kazim se manteve muito ereto. Natasha se virou, adormecida, e enfiou a cabeça no travesseiro. Fazia muito tempo que não se sentia tão em paz, e agora estava balançando numa rede sentindo cheiro de árvores exóticas e ouvindo o ruído do mar. Ela precisava mesmo de um feriado, pensou preguiçosamente e se alongou com volúpia. — Quer que eu a carregue para dentro? — Mmm — disse ela, apreciando. — Isso é totalmente inesperado — disse Kazim. Ele a endireitou gentilmente no assento. Natasha murmurou protestando e lutou para manter o travesseiro de onde estava. Kazim retirou firmemente o braço dela e saiu do carro antes que pudesse agarrálo novamente. Natasha acordou com um choque. Por um instante, não sabia onde estava. A batida da porta do motorista ainda ecoava em sua cabeça, mas a escuridão a desnorteou Onde estava o cheiro de temperos? Onde estava o mar? Depois houve uma lufada de ar frio quando sua própria porta se abriu e ela se viu olhando para os olhos brilhantes do sheik Kazim al Saraq. Ela piscou. — De volta ao mundo? — perguntou ele suavemente. — Que pena. — O que...? — Eu a trouxe para casa — explicou ele. — Ah — ela olhou em torno. — Venha. Ou você realmente gostaria que eu a carregasse? Aquilo a fez acordar de vez. — Não, obrigada — disse ela apressadamente e abafou um bocejo. — Boa noite. — Levo você até a porta. Ela desceu do carro e cambaleou quando o ar da noite de primavera atingiu-a. — Você está dormindo em pé. — Colocou um braço forte em torno dela. Aquilo a fez estremecer. E não era de cansaço. O coração de Natasha começou a bater forte como um martelo. Tinha esperado por isso a vida inteira. Não disse uma palavra quando entraram no elevador. Quase podia ouvir o sangue correr em suas veias. E nas dele também. Isso é loucura, pensou ela. Não estou pronta. Mas quando estaria pronta? Como alguém se prepara para uma mudança dessa magnitude?
Metade dela queria pegar a mão dele. A outra metade queria sair correndo. Então ela se lembrou do estado de seu quarto! Nos três últimos dias, ela simplesmente tirava roupas e jogava-as no chão antes de cair na cama. Tentou lembrar se ainda era possível enxergar o tapete, decidiu que provavelmente não. A moça da limpeza viria amanhã. Kazim al Saraq não podia ver aquela bagunça... Ah, por que não tinha pelo menos pendurado as roupas antes de sair de manhã? Havia alguma chance de fazê-lo entrar sem acender a luz? Chegaram à porta. Kazim pegou a chave e abriu-a. Finalmente a razão voltou. Deixá-lo entrar no apartamento novamente? Bem, talvez apenas desta vez. Mas deixá-lo entrar no quarto? Sem chance. Kazim não pediu permissão. Levou-a pelo apartamento com determinação... E... E... O quarto estava pior do que ela lembrava. Ainda não tinha desfeito as malas da última viagem. O tapete estava cheio de livros e papéis espalhados, bem como roupas sujas. Não estavam realmente sujas. Apenas amarfanhadas e precisando ser lavadas. Como eu, pensou Natasha. Fez uma careta e deu um passo para longe dele. Dois passos. Muitos. Kazim parou, congelado, e olhou em torno, em silêncio. Conhecendo bem os quartos femininos, ele normalmente gostava daquela sensação de estar visitando um país estrangeiro. Mas isso era diferente. — Você dorme aqui? Como? — Como assim? — Todas essas coisas... Ela estremeceu, mas falou firmemente: — Pessoas criativas são sempre bagunçadas. Kazim parecia fascinado. — Você quer dizer que é sempre assim? Ela colocou a mão na cabeça. — Por favor. É tarde demais para discutir minha falta de habilidade para cuidar da casa. Ele pareceu surpreso. — Era isso que eu estava fazendo? — Bem, você não estava fazendo amor apaixonadamente comigo — retrucou Natasha sem pensar. — Ah. Ela fechou os olhos. — Por que eu disse isso? — gemeu ela. — Boa pergunta. — Ele parecia loucamente interessado, como se fosse ficar feliz em começar um debate sobre o assunto. Mas não como se aquilo tivesse mesmo importância.
— O que você acha? Ela abriu os olhos. Definitivamente não ia fazer uma grande mudança de vida esta noite. Não com ele falando daquele jeito. Ela se controlou. — Cansaço — disse rispidamente. Kazim estava muito parado. Ele procurou seu rosto por um longo instante. Por fim, disse gentilmente. — Estou captando mensagens conflitantes aqui. Qual delas está certa? — Eu já disse. Não sou sua namorada. Houve um pequeno silêncio. Depois ele se endireitou. — Você disse, mesmo. Como eu poderia ter esquecido? — Muito bem. Vou embora. No entanto, ele ainda estava de pé à porta. E ela não conseguia desviar os olhos dele. Ela disse seu nome baixinho. Toda a sua resolução, todo o desejo daqueles sonhos famintos estava em sua voz. Ela ouviu aquilo. Ele ouviu? Aquilo a chocou. Suas mãos subiram até o rosto e ela fechou os olhos. — Ai, não! Quando abriu os olhos, ele tinha saído. O apartamento estava em silêncio.
Capítulo 10 Não acredito nisso. Quase fiz amor com ele. E eu queria. Quase implorei, na verdade. O que está acontecendo comigo? Essa fantasia tem de parar. AGORA. Era um belo dia para um casamento. O sol do final da primavera brilhava. A brisa soprava apenas o suficiente para encrespar o véu da noiva numa nuvem mágica enquanto ela entrava na velha igreja. A noiva estava de olhos arregalados de felicidade. O noivo estava radiante e falava com orgulho. Eles trocavam sorrisos particulares, cheios de confiança, enquanto faziam seus votos. A pequena congregação transbordava de sentimento. O órgão cascateava música sobre suas cabeças triunfantes. A primeira madrinha distribuía buquês e controlava tudo com eficiência sorridente. A única vez em que vacilou foi quando teve de seguir noiva e noivo pela igreja, de braços dados com o padrinho. Certamente uma mulher deveria parecer mais feliz ao estar acompanhada de alguém tão espetacularmente bonito. Mas saiu do lado dele logo que pôde. Qualquer um que observasse veria que também não ficara perto dele durante a recepção. Nem mesmo quando a noiva e o noivo foram embora. Kazim esperou vinte minutos para a festa dispersar e depois foi procurá-la. Natasha tinha se servido de uma caneca de café preto e foi até o pomar. Aquele
olhar entre Izzy e Dom - total confiança, ternura total - a deixara muito abalada. Aquilo e o jeito como Kazim tinha apertado sua mão na hora, até que ela pensasse que os ossos de seus dedos fossem se quebrar. Vagou entre as árvores frutíferas, tomando o café reconfortante, quando subitamente uma figura alta assomou das sombras. Ela deu um gritinho e quase entornou a xícara. — O que você está fazendo aqui? — perguntou ela, chocada, perdendo toda a cortesia impessoal que tinha se esforçado para manter ao longo do dia. — Estava procurando você. Fiquei imaginando se havia alguma coisa que eu pudesse fazer para ajudar. Onde você estava? Natasha passou a mão no cabelo. A guirlanda de rosas tinha descido até a orelha direita. Sacudiu a cabeça impacientemente, mas a coisa estava alojada. — Na cozinha — disse ela secamente. — Tive de pagar os garçons. Kazim endureceu. — Eu teria feito isso. — Ainda bastante educado, mas havia algo diferente em sua voz. — Na verdade, não acho que essa seja uma de suas funções. A recepção é responsabilidade da noiva. — Não é algo que uma mulher devesse fazer — disse Kazim friamente. Natasha olhou para ele sem acreditar. — Ah, por favor. — O pai dela estava aqui — Kazim continuou, com sua própria linha de pensamento. — Por que ele não pagou essas pessoas? — Porque ele não é esse tipo de pai — disse ela rispidamente. A cortesia contida de Kazim finalmente foi embora. — Ou porque você não deu oportunidade a ele. Ela parou de brigar com o cabelo. — O que quer dizer? — Você é uma controladora. Só sabe dar ordens. Tem de fazer tudo do seu jeito o tempo todo, nunca concilia. E nunca escuta. Natasha estava totalmente surpresa. — Tudo isso porque eu paguei alguns garçons? Kazim estava furioso. Natasha fez uma descoberta. — Acho que você está com a consciência culpada por ter me deixado sozinha para fazer toda a sua parte do serviço nos preparativos do casamento. — Eu não... — Eu o perdôo. — Lá vai você, sem escutar novamente. Não tenho nada de que me culpar — anunciou ele. — Acho que tratei você com a maior paciência. Até com cavalheirismo. — Cavalheirismo? — Isso mesmo. Da última vez em que nos encontramos, se você se lembra —
disse ele deliberadamente —, eu fui embora. Embora você tivesse praticamente me convidado para ficar naquela noite. Natasha ficou vermelha até a raiz dos cabelos. — Não sei do que você está falando — ela vociferou sem pensar. — Acho que sabe. — Não faço a menor idéia. — Você me chamou de volta, você disse "Kazim". — Achei que você não tinha ouvido! — Ouvi. — Eu estava muito cansada para saber o que estava dizendo. — Muito. Por isso não tirei vantagem daquilo. Isso é cavalheirismo. Você poderia tentar ter um pouco de apreço aqui, srta. Controladora. Ele estava rindo dela novamente! Aquilo era demais. Natasha jogou a caneca nele. Na semi-escuridão, sua mira foi fraca e a caneca se quebrou no tronco de uma macieira, mas aquilo o fez pular. Depois ela viu que não tinha terminado o café antes de jogá-la. Os resíduos se espalharam por seu imaculado terno. Observando-o limpá-las, Natasha sentiu uma satisfação infantil. Aquilo lhe deu coragem para dizer: — Eu teria mesmo de estar semi-adormecida para deixar você tocar em mim. Kazim deu um sorriso suave. — Tudo bem por mim. — E acrescentou, para ultraje final de Natasha: — Você é muito sedutora quando está semi-adormecida. — Você... — Ela não conseguiu encontrar as palavras. — Não fique assim — disse ele asperamente. — Assim como? — Ela umedeceu os lábios. — Horrorizada. — A voz era suave, mas era fácil ver que não estava mais se divertindo. — Não estou horrorizada — respondeu ela com dificuldade. — Então você representa bem — disse ele secamente. — Qual é o problema? Num instante, estamos flertando alegremente. No outro, você parece ter sido jogada de uma grande altura. Ela sacudiu a cabeça, controlando a voz com esforço. — Fiquei chocada — disse, tentando ser petulante. — Normalmente não flerto com ninguém. — Ela deu uma risada artificial. — Não tenho tempo. — Então arranje tempo. — O quê? Natasha fixou os olhos no colete e na gravata prateada e começou a tagarelar. — Minha nossa, esse café realmente se espalhou por todo canto, não? Sinto muito. Vou pegar um pano... Kazim pegou as mãos dela.
— Esqueça o café. Vamos conversar sobre por que você não flerta. Ela sacudiu a cabeça, tentando remover as mãos. — É só... Que não é minha especialidade. — Eu percebi. Gostaria de saber por quê. — Quem pode saber por que alguém faz alguma coisa? — Suspeito que você sabe tudo sobre suas próprias motivações. Você é a mulher mais retraída que já conheci. Kazim suspirou. Soltou suas mãos e deu um passo atrás. — Vamos dar uma caminhada? Após um instante, ela assentiu. Ele não a tocou novamente, mas indicou um portão no canto do pomar. Claro, ele era amigo de Dom, pensou ela. Já devia ter ido ali muitas vezes. Ela o seguiu através das árvores. Kazim levou-a para uma pequena área arborizada. O chão era um tapete de violetas e prímulas, salpicado com pequenas flores de anêmona. O ar da noite cheirava a vida nova. Cada galho explodia em milhares de brotos verdes. Em algum lugar, um riacho gorgolejava. — Ah, isto é o paraíso — disse Natasha involuntariamente. Ele sorriu suavemente. — Um paraíso bem inglês. Mas tampouco tem estrelas. As saias do vestido de madrinha roçaram as folhas caídas enquanto pegavam o caminho em direção ao rio. Kazim seguiu-a, vigilante. A certa altura, ela virou o salto e ele instintivamente estendeu a mão para segurá-la. Mas ela já tinha se equilibrado. — Você sempre foi independente assim? — perguntou ele. Ah, pensou Natasha. Hora da verdade. E por que não? — Não — disse ela, sem rodeios. — Fiquei assim depois de ver que as pessoas não cumpriam suas promessas. Sério, Kazim examinou o rosto dela. — Um homem abandonou-a? — Ele pareceu surpreso. — Não é tão simples assim... — Imagino que não — concordou ele. — Quer me dizer o que aconteceu? Na selva, não foi? Natasha parou, congelada. — O quê? — Então estou certo. — Você andou me espionando. Mandou um de seus capangas remexer meu passado, não foi? — Não. — Ele pareceu triste. — Eu não faria isso. — Não acredito em você. — Ela foi ríspida. — Pense um pouco. Quando saímos para jantar, perguntei onde você se sentia em
casa. A maneira como você reagiu à palavra "selva" me preocupou. Frustrada, Natasha encarou-o, com os olhos faiscando. Ele retribuiu o olhar calmamente. — Vai me falar sobre isso? — instigou ele. Ela fechou os olhos. Nunca tinha contado aquilo a ninguém. Não as coisas ruins. — Já passou — disse ela laconicamente. — Se isso é verdade, então não vai se importar de me contar — disse aquela voz calma e cheia de razão. — Certo — disse ela, tensa. — Depois da universidade, resolvi viajar. Acabei na selva, como você imaginou. — Com um homem? — Sim. Achei que estávamos... juntos, que éramos parceiros. Nós dois contra o mundo, esse tipo de coisa. Confiei nele. Kazim não disse nada. Mas um pequeno músculo começou a saltar em seu rosto. — Bem, ele se envolveu com um grupo do qual não gostei. No final, eles disseram que iam pedir um resgate por nós. Ele fez um trato e escapou. Sem me levar. Entendi, então, que não se pode esperar que ninguém cuide de você. — Você estava apaixonada por ele. — O tom era de descoberta. Ela tinha os dentes tão apertados que ele podia ver o tremor. — Eu consegui sair. — Eles a machucaram? — Aprendi algumas lições valiosas sobre pessoas, geografia e táticas de fuga. E fugi. Tudo isso se mostrou muito útil quando eu estava numa excursão que sofreu uma emboscada, anos depois. Ele levantou os olhos. — Quando conheceu Izzy? — Exatamente. Consegui sair com ela da selva. Eu. Consegui. Porque não confiei em ninguém além de mim mesma — disse ela ferozmente. — Nem em Izzy? — Izzy é maravilhosa. Mas, mesmo que não estivesse lá, eu teria conseguido sair. Talvez os outros não, mas eu teria conseguido. — Acredito em você — disse ele de repente. — Mas isso significa que você desistiu de confiar nas pessoas? — Sim — disse ela sem rodeios. Ele pensou por alguns segundos. — Certo. Mas, também teve de parar de se divertir? Aquilo a desconcertou. — Eu me divirto. — Mesmo? Trabalho intenso durante o dia e noites vazias não parecem muito divertidos.
Aquilo foi como um soco. Natasha nem tentou responder. — Por que você não se dá uma chance? — Que tipo de chance? — A voz dela parecia sufocada, até para si mesma. — Tire uma folga. Deixe seu assistente cuidar de tudo. Coloque em prática algumas de suas táticas de paquera. — Não estou entendendo — disse ela, distraída. — Estou oferecendo a você a chance de um aprendizado em alto estilo — disse Kazim. — Venha comigo. Você mesma disse que precisa de umas férias. Os olhos dela se arregalaram. — Com você? Os cantos dos olhos dele se enrugaram. — Posso oferecer-lhe palmeiras ao vento, brisas cheirosas e água do mar morna — disse ele. — E algumas estrelas maravilhosas. — O que você acha de passar alguns dias em perfeita paz? — Com você? As rugas desapareceram. Ele não estava mais rindo. — Você pode achar o que quiser de mim. Mas já lhe disse. Cavalheirismo. Natasha ficou insuportavelmente tentada. Se ele a tivesse tomado em seus braços... Se apenas tivesse tocado sua mão... Se tivesse dito uma palavra de afeto... Subitamente, Natasha sentiu-se enjoada. Percebeu que, por uma palavra de amor, teria ido com ele a qualquer lugar. Mas aquilo não era amor. Era apenas uma tentativa de Kazim para recuperar uma viciada em trabalho com um pequeno exercício de paquera incluído. Ele era muito sofisticado para algo tão simples como amor. Pela primeira vez em anos ela se arrependeu da frágil sofisticação que cultivara tão cuidadosamente. Ah, claro, aquilo significava que ela poderia se virar em todas as situações profissionais e pessoais. Mas não queria dizer muita coisa quando se tratava de honestidade e gentileza. Vagarosamente sacudiu a cabeça, virando-se para que ele não pudesse ver seus olhos molhados. — Não é meu cenário predileto. — Ela falou aquilo rápido demais. Ele fez um movimento instintivo na direção dela, mas se conteve. E ela se recusou a enxergar. — Tenho de ir. Já passa da hora de voltar a Londres. — Ela voltou para o pomar num ritmo rápido. — Desculpe — disse sobre o ombro enquanto saía. Não se importava se estivesse parecendo tão pouco convincente para ele como para ela. Tudo que queria era escapar. Agora. Não olhou para trás, para o caso de ele tentar persuadi-la. Não seria necessário muito esforço para fazê-la mudar de idéia. E aquilo mudaria sua vida inteira. Kazim a seguiu vagarosamente. Estava furioso consigo mesmo. O que tinha dado nele? Tinha traçado tão bem a estratégia, paquerá-la um pouco, fazê-la rir, fazê-la sentir-se segura. Depois sugerir que ela deveria conhecer seu país.
Que seria engraçado e até educativo. Em vez disso, tinha olhado para aquela boca trêmula tentando fingir indiferença e esqueceu qualquer vestígio de seu cuidadoso plano. Ah, realmente muito bom para um negociador profissional! E então cometeu o pecado mortal: encurralou-a. Kazim gemeu alto. E, para coroar tudo, tinha oferecido aulas de paquera! Não teria feito pior se fosse um adolescente, ou o sedutor frio que ela claramente achava que era. — Muito gentil, Kazim — murmurou ele. Devia correr atrás dela e fazer o que fosse preciso para consertar tudo. Ele parou. — Eu nunca desisto — disse o neto do emir. — Mas não seria justo com ela — disse o negociador internacional. Foi aí que seu telefone celular tocou. Irritado, ele olhou a tela. Era Tom. Se fosse qualquer outra pessoa, ele não atenderia. Mas seu chefe de segurança não telefonaria a não ser que fosse urgente. — O que foi, Tom? Eram más notícias. A foto de Kazim e Natasha no restaurante finalmente tinha aparecido. Pior, uma das agências de segurança a tinha deixado escapar dias atrás. Muitos grupos de oposição às iniciativas de paz de Kazim já tinham demonstrado interesse. Kazim ficou gelado e furioso. — Quer dizer que o serviço secreto transformou Natasha Lambert em isca para fazer os rebeldes aparecerem? Tom não respondeu diretamente, mas a voz era de urgência. — Quanto antes você a retirar daí, melhor, Kazim. — Há apenas um lugar onde tenho certeza que posso protegê-la — disse ele dolorosamente. — Mande o jato para um campo de pouso local e vamos voar esta noite. — Vai levá-la para a casa de seu avô? — Não. Vou levá-la para o deserto. Diabos, foi para isso que meu avô me deu Sultana's Palace. Diga a Martin para mandar prepararem alguns aposentos. Era possível ver as estrelas do telhado do pequeno palácio; vê-las e respirar os ares repletos de especiarias do oceano Índico. Podia levá-la ao telhado e mostrar as estrelas que ela jamais encontraria em Londres. E talvez, quando tudo tivesse terminado, ela pelo menos teria uma boa recordação dele. Talvez. — Ah, Tom... — Sim? — Melhor conseguir algumas roupas para ela também. — Er... O de sempre? — perguntou Tom discretamente. Ele tinha ouvido falar dos encontros românticos de Kazim, embora Kazim sempre mantivesse seus compromissos pessoais longe da equipe. Esta era a primeira vez que ele pedia a Tom ou qualquer outra pessoa para ajudar a organizar um encontro amoroso. — Roupas para o clima, Tom, não para o quarto.
Ele achou vergonhosamente fácil atrair Natasha para o aeroporto. Mandou um dos garçons levar-lhe um recado de que Izzy tinha esquecido uma bagagem essencial. Natasha poderia levar a bagagem ao aeroporto? Ele até deu ao homem uma mala para levar. Ficou escondido sob as flores de cerejeiras para observá-la entrar no carro. Ainda estava usando o vestido de madrinha, mas arrancou a guirlanda arruinada e enfiou num arbusto antes de entrar no carro. Quando o carro desapareceu na estrada, ele pegou a guirlanda e acariciou suas pétalas tão gentilmente como quando tocara seu rosto naquela noite em que ela tinha adormecido em seu ombro. Ela jamais adormeceria em seu ombro novamente, pensou. Teria sorte se ela voltasse a falar com ele novamente. Natasha estava tão cansada que cochilou no banco de trás do carro enquanto ele corria por estradas desconhecidas. Apenas quando entrou num declive, ela se sentou e percebeu algo errado. — Onde estamos? Mas não precisava perguntar. A resposta estava ali à vista, com todos os pequenos aviões estacionados ao longo do campo. — Houve um engano... — começou ela. Contudo, o carro foi para a beira da pista, onde um jato executivo estava estacionado. Era bem grande e, na semi-escuridão, ela pôde ver que havia um piloto de uniforme e funcionários da alfândega ao lado. Mas não foi preciso que a alfândega dissesse a quem pertencia aquele avião. Ela segurou as saias de tafetá em torno de si e saiu da limusine. — Onde está ele? — perguntou duramente. Kazim apareceu no alto dos degraus. — Boa noite, Natasha. A primeira sensação foi uma ridícula alegria. A segunda, terror de que ele descobrisse. — O que está fazendo aqui? E como chegou antes de mim? — Vou levá-la embora. E usei um helicóptero. Natasha resistiu ao desejo de se permitir ser carregada em seus braços para as palmeiras e brisas cheirosas. — Você não vai me levar. Achei que tinha deixado isso bem claro. — Deixou — concordou e andou rapidamente até ela. — Você gostaria que eu a carregasse para dentro? Em vez de jogá-la nas costas, quero dizer. — Dinossauro — disse ela suavemente. — Sou mesmo — concordou ele. — Você é louco — suspirou Natasha, satisfeita. — Não tenho nem meu passaporte. — Você é minha convidada — disse Kazim, como um rei. — Em meu país, isso basta como passaporte.
Ele a fez subir os degraus até o avião e levou-a para o interior luxuoso. Natasha o seguiu. Apenas por curiosidade, garantiu a si mesma. — Mas sem passaporte nunca me deixarão voltar para casa. — Meu pessoal está cuidando disso. — Kazim a fez sentar num luxuoso assento de couro creme. Sentou-se em frente a ela, os olhos brilhando. — Como você se sente sem estar no controle? — Não é exatamente uma experiência nova para mim — disse ela bruscamente. — Claro. Desculpe. Eu... Esqueci. — Isso faz parte do passado. Ela viu um homem andando apressado na direção do avião. — Quem é esse? — perguntou asperamente. — O co-piloto — disse ele com indiferença. — Ah. Ele ia embora. Indo ela ou não, ele partiria naquela noite. Depois não haveria razão nenhuma para eles se encontrarem novamente. Não tinham nada em comum. Não estariam nem no mesmo país. Jamais se encontrariam de novo. A menos que ela fosse com ele... Aquilo era absurdo, claro. Nenhuma mulher do século XXI que se respeitasse se deixaria ser carregada dessa forma. Claro que ela não iria. E Natasha tinha mais razões do que a maior parte das mulheres para resistir a comandos dirigidos por testosterona. Seu coração disparou. Ela estendeu a mão. — Kazim... Aquilo o trouxe de volta. Os olhos dele se ergueram, quase tristes. — Certo. Você venceu. — O quê? — Se você está absolutamente determinada a não experimentar as palmeiras, agora é a hora de descer do avião. As palavras dele eram propositadamente leves. Então, por que ela tinha certeza absoluta que havia algo mortalmente sério ali? Levantou-se e encontrou seus olhos. — Você realmente quer que eu vá? — perguntou ela baixinho. Um músculo moveu-se na mandíbula dele. — É a única coisa que quero. — Eu devo estar louca — disse Natasha. E sentou-se novamente. Kazim olhou para ela como se não acreditasse. — Você virá? — Não tentou tocá-la. Mas seus olhos queimavam. Natasha descobriu que não conseguia encarar aquela intensidade e desviou os olhos. Para descarregar a atmosfera pesada, disse, tentando ser delicada: — Parece que sim. Ele fechou os olhos brevemente, como se não pudesse acreditar; como se não ousasse ter esperanças. Ela esfregou os braços e fez uma tentativa corajosa de aliviar a atmosfera carregada.
— Contanto que eu possa pegar emprestada uma muda de roupas. Não vou galopar no deserto com um vestido de madrinha de tafetá. — Claro. — A voz dele era contida. — Maryam vai encontrar algo para você. — Ele levantou a mão e uma aeromoça uniformizada apareceu. Ele não a olhou. — Uma túnica para a senhora. Kazim não tirou os olhos de Natasha. — O que a fez mudar de idéia? — Ah, não sei. — A leveza estava se tornando tensão. — Talvez porque você tenha tido tanto trabalho para me trazer até aqui. Acho que estou curiosa. Kazim piscou. — Curiosa! — Ele parecia afrontado. — Bom marketing — ela disse com petulância. — Essa não foi a minha intenção... — começou ele. Mas foi interrompido. Era um dos pilotos. Atrás dele estava o homem que vira pela última vez em Serenata Place olhando para seu sapato como se fosse uma bomba de fabricação caseira. Natasha encolheu-se com a lembrança. Kazim foi até eles. Falou brevemente, baixinho, ao piloto, que assentiu e foi para a cabine. Quase ao mesmo tempo o avião começou a funcionar. Ele trouxe o outro homem até Natasha. — Este é meu conselheiro de segurança, Tom Soltano. A srta. Lambert decidiu ir ao Saraq para uma visita, Tom. — Bom tê-la conosco, srta. Lambert. Kazim, há alguns relatórios que você deve olhar assim que puder. Kazim curvou-se para ela, se desculpando. — Terei de trabalhar agora. Você está bem aquecida? Pode dormir quando levantarmos vôo. Maryam vai trazer aquela túnica para você agora. E você deve tomar um pouco de nosso café árabe. Aquilo deu o tom da viagem. Kazim e seu conselheiro de segurança sentaram-se numa pequena mesa e falavam em vozes baixas e urgentes ou consultavam um fino laptop prateado. Era como se Kazim sentisse que não precisava mais fazer nada. Natasha tinha concordado em ir. Fim de conversa. Natasha esperava que Kazim se juntasse a ela, se não de início, logo que tivesse terminado de trabalhar. Mas foi a carinhosa Maryam quem a ajudou com a túnica leve de lã e o amassado vestido de madrinha e enfiou-a sob um luxuoso cobertor. Natasha tentou manter os olhos abertos, porque ele certamente viria logo. Mas ainda havia um zumbido de conversa na outra parte da cabine e ela não conseguiu manter os olhos abertos. Dormiu de forma intermitente. Toda vez que acordava, o ruído dos motores era um choque. Mas depois se lembrava que Kazim estava no avião em algum lugar e voltava a dormir. Eles tinham assuntos a terminar. Kazim não a deixaria até que tivessem levado aquilo a uma conclusão, de uma forma ou de outra. Ela sabia daquilo, tão certamente quanto conhecia a si mesma. Estava escuro quando chegaram a Saraq. Maryam acordou Natasha antes da aterrissagem, ela ainda bocejava quando desceu os degraus para a pista de pouso deserta, com apenas um pequeno bangalô servindo de torre de comando. Um vento frio
levantava a túnica. Ela estremeceu e percebeu um braço forte em torno dela. — Você ainda está meio adormecida — disse Kazim, ajudando-a a descer o último degrau. Natasha irritou-se. — Bem, tenho um bocado de sono para compensar — retorquiu ela. — Andei fazendo o trabalho do padrinho e da madrinha, lembra? — Se você quer me fazer sentir horrível, está conseguindo. — Ótimo. O vento soprou novamente e ela cambaleou. O braço dele apertou-a, não tanto quanto na igreja. Mesmo assim, o sangue de Natasha começou a pulsar desconfortavelmente. Para disfarçar, ela falou alegremente. — Ei, me prometeram palmeiras e sol. Isto aqui parece mais a Sibéria. — O deserto é muito frio à noite. Espere até o meio-dia. O sol é tão forte que fará seus olhos marejarem. Ela estava tremendo muito agora. A leve túnica de cashmere simplesmente não era adequada para protegê-la dos ventos da madrugada. Kazim estalou a língua com impaciência e levantou um dedo imperioso. Imediatamente um grande veículo off-road cruzou a pista e parou ao lado deles. O motorista saltou e ofereceu as chaves respeitosamente. Mas Kazim sacudiu a cabeça. Abriu a porta para o assento traseiro e ergueu-a para entrar. Lá dentro estava abençoadamente quente. Natasha começou a sentir-se mais humana. Até sorriu para ele. Mas ele não sorriu. E não entrou ao lado dela. — Vá com Ali. Há uma coisa que preciso fazer. Depois encontrarei você. Seus aposentos estão preparados. — Ele fechou a porta. — Leve-a para o Sultana's Palace — disse laconicamente ao motorista. Ele acenou quando o carro afastou-se. Na verdade, ficou de pé observando-a partir. Natasha virou-se no assento para olhar. Ao lado dele, Tom estava tentando atrair sua atenção, mas Kazim olhava o carro que partia como se ela estivesse indo para a lua. Natasha pensou de repente: parece que ele não espera me ver nunca mais.
Capítulo 11 — Eles estavam esperando Natasha no apartamento dela — disse Tom rapidamente e estendeu um papel para Kazim. — A polícia de Londres prendeu-os. Mas... Kazim assimilou o conteúdo rapidamente e reconheceu um nome. Sua cabeça levantou-se, surpresa. — Ele está aqui? — Está em Saraq — concordou Tom. — É possível atravessar Saraq de carro em dois dias — lembrou Kazim. — Com um helicóptero, eles estariam aqui antes do café-da-manhã. Ele tem um helicóptero?
Tom assentiu vagarosamente. Kazim pensou. — Certo. Vamos falar sobre as opções. Aquela viagem de carro pelo deserto na madrugada, foi a pior da vida de Natasha; pior até do que as caminhadas pela selva. As sombras eram disformes. Os faróis iluminavam apenas dunas. E ela só conseguia pensar em Kazim parado, olhando o carro como se fosse a última vez. Era o pior tipo de pesadelo. Ela mal notou o palácio no deserto, com seu grande muro e a torre medieval elevando-se sobre uma baía em forma de lua. Tudo que queria era ver Kazim novamente e espantar o pesadelo. — Para você — disse uma mulher sorridente, levando-a para um quarto cheio de sofás de franjas e almofadas bordadas como jóias. Uma belíssima porta entalhada dava para um closet bem servido de roupas, e outra abrigava uma geladeira. Atrás das persianas delicadas, havia o suave murmúrio do oceano. Natasha ignorou-o, bem como as roupas e o conteúdo da geladeira. Ela torceu as mãos. — Obrigada. Mas e Kazim? — Com os cumprimentos de Sua Excelência. Ele virá quando a senhora tiver descansado. Natasha teve de se contentar com aquilo. Ele não estava lá quando chegou o amanhecer, transformando a areia lá fora primeiro em prata, depois em ouro. Natasha levantou-se de um sono sem descanso e colocou as primeiras roupas que suas mãos pegaram: calças sedosas e camisa sem mangas — simples, mas as etiquetas mostravam sua origem. E o cheiro era familiar. Amertage, pensou Natasha, o coração doendo. Então qual das namoradas de Kazim tinha usado essas coisas delicadas antes dela? Estremeceu e depois pen sou firmemente que não importava. — Somos ambos adultos. Eles ririam daquilo tudo quando ele viesse encontrá-la. Só que ele não veio. Não estava lá quando uma mulher sorridente trouxe-lhe frutas e chá aromático no pequeno terraço que se derramava sobre a baía, do lado de fora do quarto. Não estava lá quando o sol queimou sobre as cabeças ao meio-dia e todas as sombras ficaram finas como agulhas e depois desapareceram. A mulher trouxe uma limonada. — Sua Excelência? — perguntou Natasha. — Ele virá. — A mulher ainda sorria. Natasha sorriu de volta com esforço. Não conseguia esquecer a expressão no rosto dele quando saíra de carro. Como se pensasse que jamais a veria novamente. Inquieta, começou a vagar pelos silenciosos aposentos. Kazim chamara aquilo de palácio, mas o lugar não era grande. Quando muito parecia uma torre de vigia que alguém tinha adaptado para ser um esconderijo ma ravilhosamente confortável. As paredes eram de pedra, mas os aposentos eram cheios de belas portas esculpidas e quadros; arcos e colunas; e, por toda parte, tapetes que pareciam jóias, com cores vivas de rubi e coral, lápis azul e turquesa. Com Kazim ao lado dela, teria sido um conto de fadas. Com esse medo horrível no coração, era um horror.
— Sou uma mulher ou um rato? Se estiver com medo, só há uma coisa a fazer: encará-lo. Percorreu o palácio buscando resolutamente alguém que pudesse encarar. No final, desceu por um estreito corredor de pedra que cheirava a café e pão saído do forno e encontrou-se numa espécie de escritório. O conselheiro de segurança - aquele que caçava sombras de assassinos - estava de pé perto de uma mesa, examinando as mensagens numa tela de computador. Natasha endireitou os ombros e marchou até ele. — O que está acontecendo? — perguntou ela. Ele se virou, surpreso. — Srta. Lambert! Não a ouvi entrar! — Onde está Kazim? — Ela estava muito calma. E totalmente séria. — Acho que é hora de me dizer, não? Ela o viu avaliá-la, notar os olhos resolutos e o queixo determinado ceder ao inevitável. Ela escondeu sua diversão. Mas, quando ele começou a falar, ela perdeu toda a vontade de rir. Ouviu-o sem acreditar. No final, ela repetiu a única coisa que conseguiu compreender. — Kazim tem medo de ter me colocado em perigo apenas por ter me trazido aqui? — Diabos, não. Nós a trouxemos aqui para tirá-la do perigo. Nós trouxemos você aqui? Natasha de repente sentiu muito frio. — Kazim não gostou disso — assegurou ele. — Nós somos os mocinhos. Não saímos por aí seqüestrando pessoas. Os lábios dela ficaram anestesiados. — Claro que não — murmurou ela. — Mas não pudemos pensar em nada mais a fazer. Tiraram uma fotografia de vocês dois juntos, sabe? Normalmente ele é muito cuidadoso para manter suas... amigas fora dos holofotes. Natasha estremeceu. Tom não percebeu. — O problema é que aquilo passou a imagem de que você seria alguém que Kazim... — Ele hesitou. — Levou uma vez a um restaurante público? — completou Natasha rapidamente. — Grande coisa! — Sei que parece maluquice. Mas espalhou-se a notícia de que você é importante para Kazim. — Ele riu cordialmente. Natasha também riu. Para seu grande alívio, ele não pareceu perceber como aquilo era falso. — Aquela foto foi feita para parecer todas as coisas que não era. Nós suspeitamos que os serviços de segurança tenham feito aquilo deliberadamente, usando-a como isca para uma armadilha. De qualquer forma, o estrago está feito. Então, Kazim e eu decidimos que poderíamos protegê-la melhor aqui. Natasha sentiu como se seus membros tivessem se transformado em gelo. — Como eles são criativos — disse ela mecanicamente. Tom deu um sorriso aliviado. Estaria esperando que ela gritasse e desmaiasse?
Em algum lugar, no limite do bloco de gelo em que seu coração tinha se transformado, aquilo realmente a irritou. — Kazim achou que meteu você nisso. Então era nosso dever tirá-la. Eu pago minhas dívidas. Claro que pagava. Como ela poderia ter pensado qualquer outra coisa? Ah, ele era um sedutor, mas nunca tinha dado nenhum sinal de que queria fazer amor com ela. Tinha até ido embora naquela noite no apartamento dela. Ele chamou aquilo de cavalheirismo, mas Natasha achava que agora sabia. Simples indiferença. Que boba eu fui. — Muito cavalheiresco — disse ela com amargura. Tom estava distraído e achou que era um elogio. — Ele é muito consciente de suas obrigações — comentou com um sorriso. — Nenhuma tarefa é grande demais; nenhum detalhe pequeno demais. Ela sorriu tão largamente que pareceu que sua boca ia quebrar. — Verdade. Afinal de contas, ele até cuidou de um pequeno detalhe como eu, não é? Agora Tom havia captado o tom da voz. E começou a ficar preocupado. — Eu não quis dizer que... Natasha pegou seus próprios óculos de sol e colocou-os sobre o nariz com dedos quase firmes. Sorriu alegremente. — Não se preocupe. É sempre melhor saber a verdade. — Sim, mas... — Obrigada por me explicar — cortou ela. — Avise-me quando eu puder partir. Imagino que você esteja providenciando meu passaporte. Kazim disse que cuidaria disso. — Vou procurar saber. — Obrigada. — Deus, ela era boa naquilo. Parecia tão firme e decidida como se ele fosse um cliente seu. — Enquanto isso, tenho certeza de que vi espreguiçadeiras ao sol no terraço. É hora de me aquecer, acho. — Não é muito sábio ficar deitada lá fora quando o sol está alto. Kazim diria a você... — Mas Kazim não está aqui — lembrou Natasha, sua alegre cortesia transformada em tensão. — Então vou fazer exatamente o que eu quiser. Certo? Tom desistiu. Para sua irritação, Natasha descobriu que ele estava certo sobre o sol. Por fim, ela se refugiou no frescor do quarto e ficou sentada olhando para o mar. Era como estar num sonho onde ela era a última pessoa viva. O palácio estava silencioso, embora em algum lugar houvesse pessoas trabalhando. A costa era uma grande faixa de areia dourada, sem uma marca de pés para maculá-la. Nada de vento. Nada de sombras. Nem mesmo um pássaro no céu quente e parado. Era como se todo o mundo estivesse prendendo a respiração, esperando que algo acontecesse. — Esperando que eu dê um ataque e grite — Natasha disse a si mesma com humor ácido. Ou chorasse, talvez.
Agora, tudo o que ela queria era esvaziar a mente de tudo, a não ser a necessidade de ficar muito, muito calma. E voltar para casa o mais breve possível. — Preciso de uma estratégia — disse Natasha ao oceano, com os olhos secos e determinados. E Kazim? — Ah, não preciso de nenhuma estratégia para lidar com ele. Posso nunca mais vê-lo, de qualquer maneira. E se o vir, devo dizer-lhe que ninguém é responsável por mim. Ninguém. Então ele pode apenas me dar meu passaporte e me riscar da lista de coisas com as quais ele tem de se preocupar. Ele pode simplesmente me esquecer. É o que vou dizer. Se nos encontrarmos novamente. Estava totalmente despreparada para os passos fortes na escada de pedra. Quando uma figura em trajes brancos chegou ao terraço, ela ficou boquiaberta. — Você está aqui — disse Kazim numa voz rápida e dura que ela jamais tinha ouvido antes. Ele tirou os óculos escuros que estava usando e esfregou os olhos como se não pudesse enxergar bem. Natasha ficou de pé vagarosamente e saiu. O sol atingiu-a. Podia senti-lo em cada centímetro da pele, podia sentir os olhos dele passando através de suas roupas. Ela engoliu em seco. Tudo que ia dizer sumiu de sua cabeça. Kazim disse, carrancudo: — Você está bem? Ela assentiu. Kazim soltou um longo e doloroso suspiro. — Graças a Deus. — Os ombros relaxaram e ela viu como ele devia estar tenso. — O que foi? — perguntou ela, preocupada. — Estava com medo... — Ele parou, examinando o rosto dela. — Você realmente está bem? Não está magoada? Nem com medo? Subitamente, Natasha lembrou de todas as coisas que tinha ensaiado dizer a ele. — Escute — disse ela calorosamente. — Você não é meu protetor. Sou uma mulher independente e posso cuidar de mim mesma. Ele passou as mãos pelos cabelos. — Em circunstâncias normais, claro... Ela interrompeu. — Em todas as circunstâncias. Então, veja bem, se você estiver se sentindo responsável por mim, pode parar. Eu absolvo você. Está livre. Dê-me meu passaporte e eu pego o próximo vôo. E você nunca terá de pensar em mim novamente. Ele a encarou por um longo instante. Natasha manteve o olhar, sem recuar, o queixo erguido. Depois, ele deu um riso que foi quase um gemido. E puxou-a para seus braços com tanta força que ela perdeu o equilíbrio. Kazim não a beijou, apenas a manteve abraçada a ele, como se não pudesse acreditar que ela estava ali. Natasha sentiu o rosto dele esfregando seus cabelos. Com o rosto apertado contra as dobras de seu traje suave, ela sentiu novamente o cheiro de Amertage, só que agora estava misturado com o cheiro da pele quente dele, da roupa aquecida pelo sol e de um leve toque de óleo diesel.
Ele estava murmurando em seus cabelos palavras que não faziam sentido. Ou faziam todo o sentido do mundo. — Calma — disse ela. — Calma. Estou aqui. Estou bem. Não se preocupe. Os braços dele a apertaram até que ela achou que suas costelas fossem se quebrar. Ela deve ter protestado, porque ele relaxou o abraço. Ele levantou a cabeça e riu, trêmulo. — Não percebi como estava com medo... Natasha mal reconheceu seu rosto. Havia profundos sulcos da boca ao nariz e os olhos estavam vermelhos de cansaço. Mais do que cansaço. Pegou a mão dele e levou-o do sol impiedoso para o frio refúgio do quarto. — Acho que é melhor você me contar — disse ela gentilmente. — Tem certeza? Eu lhe prometi privacidade. Um cavalheiro fica do lado de fora do quarto — disse ele, rindo. — Tenho certeza — disse Natasha firmemente. E quando ele ainda hesitou, ela acrescentou de modo provocante: — Confio em você. E descobriu, para sua surpresa, que era verdade. Kazim deu um grande suspiro e entrou para a sombra, agradecido. Natasha o levou na direção de um divã com franjas enquanto pegava água gelada. Ele bebeu sofregamente, depois se reclinou nas almofadas, puxando-a para ele como se não pudesse suportar deixá-la. Natasha, a independente, a combativa, deixou o corpo cair com o dele como se tivesse se enroscado contra seu coração durante toda a vida. — Me conte — repetiu ela suavemente. Ele acariciou seus cabelos com o queixo. — O que você sabe da minha vida? Natasha pensou na conversa com o conselheiro de segurança e estremeceu. — Mais do que sabia 24 horas atrás — ela respondeu. — Como é mesmo o nome dele? Tom... Contou-me que você achou que eu fui envolvida de propósito. — Isso foi imperdoável. Eu deveria ser mais cuidadoso. — Deveria? — Claro. Sou um adulto. Devia ter lembrado o que era necessário. Que o que eu queria não importava. Ele estava brincando com seus cabelos. Ela sentiu aquela mão roçar seu pescoço exposto e quase derreteu de desejo. Natasha passou a mão sobre a túnica branca que cobria o peito dele. Formulou a pergunta com cuidado. — Isso significa que você me quer? A mão carinhosa parou como se ela tivesse enfiado uma agulha nele. Natasha levantou-se e virou-se no divã para olhar seu rosto. A expressão dele era tensa e indecifrável. Podia estar prestes a declarar amor eterno ou estar espantado por ela levar uma paixão passageira tão a sério. Não havia
meio de saber o que ele sentia. Se é que sentia alguma coisa. Mas era sua vida que estava em jogo. Agora ela sabia. Reuniu toda a coragem e encontrou os olhos dele. — Bem? — Era um desafio. — Ah, Deus, sim, eu quero você. Mais que isso. — Ele parecia exausto. E seu braço caiu. Natasha não conseguia acreditar. Mesmo que ele não a estivesse mais abraçando, toda a tensão em seus ossos sumiu. Saiu flutuando e encheu o aposento de alegria. — Bem, então... Ele abriu os olhos. A voz era baixa. — Natasha, o que eu faço... Tem de ser feito e não há ninguém para me substituir. Bem, há organizações, equipes e projetos. Mas no final as pessoas querem negociar com alguém em quem confiam. O glorioso brilho do sol de Natasha se apagou um pouco. — E tem de ser você? — Acabou acontecendo assim. Tem de ser alguém independente. Alguém que não seja político. Alguém que não ganhe um salário. — Ele deu um sorriso fraco. — Não há muita gente com essa qualificação. A luz dourada subitamente não era mais dourada. Ela disse em voz baixa: — Mas você tem de deixar isso devorar toda sua vida? — Devo sempre estar a postos. E sempre serei um alvo. A luz vacilou e sumiu. Natasha pegou uma almofada e abraçou-a. Finalmente ele disse: — Tirei qualquer idéia de uma vida normal da minha mente anos atrás. Ela respirou devagar e cuidadosamente, para o caso de o nó na garganta se refletir na voz. — Isso eu entendo. Ele deu um arremedo de sorriso. — Alguma coisa temos em comum. Só que, em seu caso, é porque um homem a abandonou na selva anos atrás. A garganta agora estava tão cheia que ela não conseguiu falar. Assentiu como uma idiota. — Exatamente da mesma forma que eu provavelmente a deixaria. Como agora. Levei você diretamente para as lentes de um papparazzo. E pronto, você está na linha de frente. Por minha causa. Exatamente como seu namorado. — Não! — disse ela numa voz estrangulada. — Irônico, não? A única coisa importante que faço é a única coisa que dá horror a você. — Você não é nem um pouco parecido com meu primeiro namorado — disse ela claramente. — Que tipo de idiota você acha que sou? Não caio por um idiota irresponsável duas vezes. Ele a encarou.
— Você é arrogante e um verdadeiro ditador. Um dinossauro total — lembrou ela. — Mas não é irresponsável. Veja como me trouxe para cá porque achou que era responsável por mim. — E sou responsável. Coloquei-a em perigo. — E cuidou de tudo. De uma maneira extremamente autoritária, praticamente me seqüestrou, mas cuidou. — Ela fez uma pausa. — Aliás, como você cuidou de tudo? Desta vez, o sorriso chegou aos olhos dele. — Temo que você ache completamente jurássico. Concordei em me encontrar com o líder. A sós. — O quê? Está me dizendo que me tirou da linha de perigo entrando nela? Isso não é jurássico. É medieval — disse Natasha, furiosa. — Você deve estar certa. Ela descobriu que seus olhos estavam cheios de lágrimas e secou-as com impaciência. Ele fez um movimento em sua direção, mas parou quando ela o fulminou com os olhos. — É raiva. — Claro que sim — disse ele suavemente. — Eu nunca choro. — Tenho certeza que não. — Conte-me sobre esse duelo, então. Ele riu alto com aquilo, mas muito gentilmente. Seus olhos estavam tão quentes que ela quase não o reconheceu. — Não foi exatamente um duelo. Chame de negociação. — Uma negociação armada? — Detalhes... — Quando e onde? — perguntou ela secamente. Os olhos dele a acariciaram. — Que necessidade de precisão! Estou vendo por que você é uma mulher de negócios bem-sucedida. — E eu estou vendo por que você também é bem-sucedido no que faz. Nunca dá uma resposta direta se puder escapar sem dá-la. Bem, comigo não. Onde e quando? Para sua surpresa, ele cedeu com um pequeno sorriso. — Amanhã, ao amanhecer. — Ele acenou na direção das portas duplas. — Lá fora. — Lá fora? No mar? Como assim...? — Você é uma delícia. Sempre acho que não vai mais conseguir me surpreender, mas aí você consegue. Não, não no mar, minha querida. No deserto. — No deserto? Minha querida? Querida? Mas Kazim nem pareceu notar como a tinha chamado. — É uma negociação do deserto. Cerimônia completa. Ele a chamara de sua querida! Ela não tinha se enganado com aquilo.
— Não entendo — disse Natasha, tentando se concentrar. Querida. — Se soubesse que você estava interessada, ou a teria levado para conhecer nossa história e nossas tradições com prazer — provocou ele. — Você ainda pode. Sempre haverá o amanhã. O riso sumiu de seu rosto. Vagarosamente ele sacudiu a cabeça, virou-se para o terraço e olhou o mar. A brisa estava mais forte agora. Natasha viu que o céu estava escurecendo numa velocidade tremenda. Sobre o murmúrio do oceano, uma curva de lua já tinha aparecido sobre o horizonte. Ela ficou de pé ao lado dele, olhando para o mar também, sem tocá-lo. — Tudo bem. Não amanhã. Depois de amanhã, então. — Depois de amanhã você estará a caminho de casa. Tom me disse que você já está preocupada com seu passaporte. Prometo a você que chegará amanhã. Depois você poderá voltar para Londres. — E você? Para onde vai? — Aonde quer que precisem de mim. — Contanto que eu não esteja lá — disse Natasha levantando os olhos para ele num lampejo de amargura. — É isso que você quer dizer? Ele não respondeu. Ela se virou para ele tentando desesperadamente continuar racional. — Diga-me honestamente. Que perigo você vai correr amanhã? Ele disse cuidadosamente: — Não mais que o normal. Não mais do que estou acostumado a correr. — Isso não é resposta. — É sim. Você não entende? Minha vida é uma longa negociação do deserto. — Ele soltou um suspiro profundo. — Sou um péssimo risco, Natasha. Ela o encarou. O sol já tinha quase ido embora. Estava frio, mas Natasha recusou-se a tremer. A túnica de Kazim estava balançando, girando em torno dela como um abraço. Ele disse: — Se fôssemos pessoas diferentes... Se vivêssemos num mundo diferente... Mas não somos. Ele a havia chamado de sua querida. Ela disse suavemente: — Você me quer. Você disse isso. — Também disse que sou um risco ruim — lembrou-lhe ele. — E se for um risco que eu quero correr? Ele ficou estático. — Você não sabe o que significaria. — Eu já disse, não sou idiota. Avalio riscos há muito tempo. E você foi muito claro sobre o assunto — acrescentou ela secamente. — Então...
— Então não estou interessada em seus escrúpulos — disse Natasha secamente. — Estou interessada em seu coração. E seu corpo. Nessa ordem. Mas vou pegar o que puder. — Natasha! — Interessado? A resposta dele não teve palavras. Fez a respiração dela parou por uns bons 90 segundos. Finalmente ele retirou os lábios dos dela. — Você é louca — disse ele em seus cabelos, emocionado. — Talvez. — Ela pegou a mão dele e levou-o para o quarto com seus entalhes e almofadas e a grande e convidativa cama, agora banhada na luz da lua. — Eu também sou. — Mas ele foi com ela, sem resistir. — Você é um risco. Eu sou uma pessoa que corre riscos. Eu diria que fomos feitos um para o outro. Os dois estavam tremendo enquanto tiravam as roupas pouco familiares, incapazes de ousarem deixar de se beijar enquanto as jogavam longe. A pele de Natasha era alva como a lua. Kazim prendeu a respiração. Ela o procurou, o coração nos olhos... E um pequeno toque eletrônico arruinou o mundo de Natasha. Kazim parou como se tivesse levado um tiro. — O que estou fazendo? Ele se afastou dela, procurando o telefone nas roupas caídas. Ele o descobriu e virou as costas para ela. — Sim? Ah, é você, Tom. — Ele parecia áspero e totalmente controlado. — O quê? Não, nada importante. Aquilo doeu fundo no coração de Natasha. Puxando o lençol sobre sua nudez, deslizou para o outro lado da cama e recuou para o canto mais escuro do aposento cheio de sombras. Kazim não desperdiçou palavras. — Certo. Estarei com você imediatamente. — Ele desligou e começou a vestir as roupas, sem olhar em volta. — Algo aconteceu. Tenho de ir. Ele não disse, Natasha notou, que ia voltar. E ela não perguntou. Já sabia a resposta. Ela tinha lutado por sua vida com todas as forças que tinha. E havia perdido.
Capítulo 12 Parecia que Natasha não tinha dormido. Parecia que tinha ficado acordada a noite inteira na cama estranha, e se abraçava aos lençóis para parar de chorar com a dor que sentia. Parecia que não tinha fechado os olhos. Mas, claro, não era verdade. Quando os primeiros sinais do amanhecer surgiram no céu, eles a acordaram. A boca parecia uma lixa e a cabeça pulsava com os restos dos pesadelos. Natasha viu que as cortinas finas
estavam soprando para ambos os lados das portas duplas. Tinha esquecido de fechá-las na noite anterior! Kazim poderia ter voltado a seu quarto a qualquer hora, se quisesse. — A conclusão — disse Natasha, com ironia — é que ele não queria. Fim de história. A verdade vos libertará. Saiu da cama se arrastando e esvaziou uma pequena garrafa de água na garganta seca. Depois vestiu um robe atoalhado aconchegante e saiu para o terraço. — E agora? — perguntou ela em voz alta. Kazim não a queria. Ou não a queria o suficiente. — Então vou voltar a fazer o que faço de melhor. Tocar meus negócios e ver meus amigos. — Estremeceu subitamente e apertou o robe no queixo. — E ser madrinha está fora de cogitação a partir de agora. O mar estava azul escuro à luz do amanhecer. Súbitas lufadas de vento sopravam pequenos redemoinhos de areia na praia vazia e perfeita. Parecia que não havia mais ninguém vivo no mundo inteiro. Então ela se lembrou. Kazim ia enfrentar seu inimigo no deserto aquela manhã. Subitamente, todas as suas resoluções evaporaram. Ela só conseguia pensar que devia vê-lo, apenas mais uma vez. Falar com ele antes que saísse. Encontrá-lo. Enfiou a primeira roupa que encontrou e jogou uma túnica do deserto por cima para se proteger do frio do amanhecer. Depois, desceu pela escada externa até o pátio principal do palácio. Também estava vazio. Mas ela pôde ouvir um cavalo bufando em algum lugar perto e havia um convidativo cheiro de café. Seguiu o cheiro até um pátio menor - e finalmente encontrou alguém. Tom estava lá, parecendo tenso, falando com outros dois homens de terno. Um homem segurava as rédeas de dois cavalos. Outro circulava com uma bandeja com xícaras e um bule. Assim que ele a viu, se apressou para oferecê-lo a ela. — Kazim? — perguntou ela. O homem não entendeu e acenou mostrando-a para Tom. — Kazim já saiu — disse ele sem nenhum sinal de sua habitual educação. — Ele sabia que eu seria contra isso. Então simplesmente foi sozinho. Antes do amanhecer. Natasha sentiu uma mão fria apertar seu coração. — Podemos alcançá-lo? Tom olhou para ela com um novo respeito. — Podemos tentar. Você cavalga? — Se for preciso. — Você precisa — disse Tom secamente. — Kazim nos deixou sem carro. — Ele se virou para o outro homem. — Certo, Martin, a srta. Lambert virá comigo. Dê a ela seu chapéu e seu cavalo. Conte ao emir, se não voltarmos todos dentro de duas horas. Ele pulou na sela com a facilidade de um homem que tinha uma longa linha de caubóis em seus ancestrais. Natasha enfiou o grande chapéu de palha nos cabelos desgrenhados e subiu de maneira bem deselegante, mas não ligou. Tudo o que importava era encontrar Kazim e dizer a ele...
Bem, dizer o quê a ele? Adeus? Que ele era um idiota? Que ela esperaria por ele para sempre? — Todas as respostas acima — murmurou Natasha, furiosa consigo mesma e com Kazim. Estava tão furiosa, entretanto, que não teve tempo de ficar nervosa com a cavalgada com a qual não estava acostumada. Concentrou-se em ficar perto de Tom. Ele parecia saber onde estava indo. Ela estava tão concentrada que mal percebeu as dunas suaves e esculpidas, embora fossem como a paisagem de sonhos das Mil e Uma Noites. Mas reteve a respiração quando eles subiram uma leve colina e viram o cenário acima deles. Kazim estava num monte, como uma estátua. No horizonte, cavalo e homem olhavam o belo amanhecer. As túnicas claras voavam com o vento da manhã. Sua sombra era uma fina adaga preta no chão dourado. Se estava consciente da presença de Tom e Natasha, aparecendo ao nascer do sol, ele não reagiu. Havia cerca de vinte homens em torno dele, alguns a cavalo, alguns a pé, e um amontoado de tendas no monte oposto. Kazim ignorou-os todos. Estava profundamente concentrado na figura montada diretamente à sua frente. Estavam se encarando como duelistas, percebeu Natasha. O outro homem era menor, mais atarracado e seu cavalo estava infeliz, atirando a cabeça para trás e relinchando. Parecia um assassino, pensou ela, o coração na boca. Ela gemeu. A montaria de Kazim levantou as orelhas. Ele está pronto para qualquer coisa. Por estar parado feito rocha, ela sabia instintivamente que iria esquivar-se ou até pular da sela no momento em que o outro homem fizesse um movimento. Ela mordeu o lábio até sangrar. O oponente de Kazim recuou com o cavalo e afastou-se; depois, virou-se e posicionou o cavalo como se quisesse derrubar o outro homem. Kazim não se moveu até o último instante, quando levou seu cavalo dois passos para o lado. Houve um brilho de diamante. Uma faca? Uma arma? Algo voou e aterrissou na areia, a uma certa distância dos combatentes. A mão de Natasha voou até a boca, para segurar o grito de alerta. Kazim, ela viu, não precisava de nenhum alerta. Tudo de que precisava era não ser distraído. Os cavaleiros começaram a circular um ao outro. Mas desta vez estavam claramente falando. Natasha ouviu Tom dar um grande suspiro. — Graças a Deus — disse ele com fervor. — Agora é festa. Espero que você goste de carne de bode. Enquanto ela e Tom desciam para o acampamento, Kazim cavalgou na direção deles. Não parecia satisfeito. — O que você está fazendo aqui? — perguntou ele rispidamente enquanto a ajudava a descer da sela. — Não havia garantia do que esses sujeitos iam fazer. Você poderia ter se machucado seriamente. — Você também. — Ela sacudiu as pernas. — Droga, vou ficar dolorida hoje à noite. — Bem-feito — disse Kazim, antipático. — Tem idéia de como me senti quando vi você sentada naquele cavalo?
Natasha parou de massagear os músculos doloridos. Endireitou-se e olhou-o diretamente nos olhos. — Ah, sim. Sei exatamente como você se sentiu. Bem-vindo ao clube. Ele piscou duas vezes. E não disse mais nada. Mas a observou pensativamente durante a celebração. Felizmente era muito cedo para carne de bode. Em vez disso os homens nas tendas haviam preparado café e um pão maravilhoso, fofo como um bolo, crocante como torrada, que eles serviam com um mel quente e cheiroso por cima. Eles comeram num ritmo rápido. — Todo mundo sabe que é sensato sair do sol antes que ele fique alto — murmurou Tom, explicando. — Isso não vai durar tanto quanto outras festas. Natasha não tinha maneira de saber se ele estava certo ou não. Soube, quando Kazim levantou-se para partir, que todos os seus músculos nas coxas e ombros estavam começando a se apavorar com a jornada de volta. Ela conseguiu, mas apenas o necessário. Quando os três passaram pelo portão do palácio, ela caiu sobre o pescoço do cavalo. Foi maravilhoso não ter mais de fingir que estava controlando o cavalo. Kazim deu uma risada - uma risada insensível à visão de Natasha - e pulou agilmente para a areia, jogando as rédeas para um dos homens que vieram encontrá-los. O cavalo dela parou. Kazim abriu os braços e ela caiu sobre eles. Natasha gemeu - e seu chapéu caiu. — Você precisa de um banho — disse Kazim. — Banhar esses músculos antes que você os sinta. Ele subiu os degraus externos do terraço carregando-a. — Ponha-me no chão — disse Natasha, bem-humorada. — O que todos vão pensar? — Exatamente o que pensaram quando você me seguiu até o deserto esta manhã. — Ah. Eles haviam alcançado o terraço. Kazim a colocou gentilmente no chão. — Por que você fez isso? Subitamente, surpreendentemente, ela estava tímida. — Você sabe porquê — resmungou ela e desviou os olhos. — Faça-me um agrado — disse ele. Acariciou amorosamente uma mecha de cabelos louros cheios de areia. — Fale. — Quando você estiver em perigo, quero estar com você. Kazim pegou a mão dela e pressionou-a contra o coração. Ela sentiu a batida forte de seu sangue sob a palma, através do algodão fino. Era tão familiar quanto seu próprio pulso. — Você está — disse ele. — Sempre, acho. — Kazim fez uma pequena pausa. — Banho — disse ele. — Ou você não será capaz de andar amanhã. Ela estava desapontada, mas sabia que ele estava certo. — Tudo bem. Não vou demorar...
No entanto, parecia que ele não tinha a intenção de deixá-la tomar banho sozinha. Encheu uma banheira quente para ela, acrescentou gotas de óleo que cheiravam a flor de limão e depois a ajudou a tirar a roupa empoeirada e a entrar na água cheirosa. Natasha entrou com um suspiro de felicidade total e fechou os olhos. — Então, para onde vamos daqui? — perguntou Kazim, sentado de modo companheiro na beira da banheira. Ela abriu os olhos. — Vamos? — É justo colocar você nesta situação toda vez que algum extremista resolver que pode me usar? — Não — disse ele, respondendo a si mesmo. — Por outro lado, eu também devo passar por isso. Os olhos de Natasha voaram para o rosto dele. — Acredito muito na igualdade no casamento — disse Kazim a ela. — Particularmente igualdade de ansiedade. Ela ignorou o tom provocador e fixou-se na única palavra que fazia sentido. — Casamento? — Ah, acho que sim. Se uma coisa vale a pena ser feita, deve ser feita direito. — Mas nós nem... Quero dizer, na noite passada você foi embora... — É. E ainda tenho certeza que não posso viver sem você. Isso tem de ser amor, não acha? — Eu... Eu... — A menos que não seja por mim. Talvez você esteja apenas fascinada pelo romance do Oriente. — Eu li que as mulheres gostam de ser colocadas nas costas e carregadas para o deserto. — Ele sacudiu a cabeça. — Talvez isso seja tudo que sou para você. A realização de uma fantasia. Para ser jogado fora depois de algumas semanas... Natasha devia estar sobrepujada de amor e desejo, mas ela era uma mulher independente. — Você precisa atualizar suas leituras — disse ela secamente. Ele riu e a beijou tão intensamente que toda a sua túnica ficou ensopada e grudada a ele quando terminaram. — Agora você vai se casar comigo? — Vou pensar. — O que há para pensar? — Como você colocou, cavalguei atrás de você no deserto — observou ela. — Você acredita em igualdade. Quer se casar comigo? Prove. Mergulhou de volta na banheira e abaixou as pálpebras no que esperava ser um desafio à altura. Kazim ficou de pé. E o sangue de Natasha começou a correr mais forte nas veias. Mas, em vez de arrancar a túnica e mergulhar na água cheirosa, ele procurou cuidadosamente no bolso molhado e puxou algo que parecia um ninho de passarinho.
Ela o encarou, sem entender. — Eu disse que você estava comigo hoje de manhã — disse Kazim com um sorriso que ia dos olhos até o coração. Algumas pétalas de rosas murchas caíram na água. Natasha olhou fixamente para elas. Aos poucos começou a entender. — Minha guirlanda de madrinha — disse ela, surpresa. — Você a guardou. — Achei que era tudo que eu teria — disse ele com simplicidade. — Isso é uma prova suficiente? Os olhos dos dois se encontraram em perfeita compreensão. Natasha não tinha percebido que era possível ser feliz assim. Soltou um longo suspiro e saiu da banheira. Kazim colocou os braços em torno dela e segurou-a como se jamais fosse deixá-la sair. — Mais que suficiente — disse ela. E finalmente tirou a túnica dele.