falso-precário
Thadeu Dias
a casa-paraíso tem aparecido durante a escuridão. cubro os olhos e a vejo, aproximando-se de mim, o banheiro azul onde a gente não fecha a porta e fica se olhando, participando o mijo um do outro, rindo dos nossos desejos medrosos. somos um velho sal nessa casa tão antiga, tão dela mesma, tão auto-fecunda. todos os amigos estão por aqui, a pôr camas que abriguem corpos, pelo chão e onde houver telhado. o paraíso é uma estrutura precária, algo está exposto constantemente, em ponto de ruína e de mudança. nessa noite, não temos como irmos além desse lugar. a cada noite vivemos sem destino claro e dançamos no escuro. a dança pode ser uma nascente de impermanências. me ensina hoje algo sobre os nossos corpos? lembro que um ator internacional falou-me em outra língua, dentro de um sonho todo sonhado em outra língua, que aprendera a palavra barraquinha. digo-o o quanto gosto do náufrago que ele interpretou nas salas de cinema. lembro dele conversando sozinho com uma bola. a ilha que é um lugar constante, é precária solidão, o pedaço de lugar que
passa batido, o rabustreco escondido dos fundos do mundo. sou criança dos campos d’água, criança do mar branco. essa voz impermanente que em nós tem idade e feição, no molhado que a gente produz entre as pernas, como fosse maré alcançando o pedaço de terra, o desespero que fica na carne, morder o suficiente, espalmar lembrando da dor. um morro está ilhado também, as mensagens visualizadas sem retorno são ilhas, um quarto que esquenta após o horário do almoço é uma praia, você de longe, embarcada, olhando a esmo enquanto te amo, é casa e paraíso.
Cedo uma mulher grita que ama outra mulher. Quebrando o silêncio, seu grito ecoa entre as encruzilhadas de areia e logo encontra correspondência. Duas mulheres amam-se no início da manhã. A frente fria chega, é uma desconhecida para mim, e eu já compreendi que aqui ela virá com independência. Ela ajuda-me a saber a imutabilidade de algumas estâncias. Senti como estivesse de meias, entretanto nada cobria os meus pés. Apenas a dormência natural da noite do corpo, latência arauta do metabolismo persistente da nossa terra gentílica, nossa carne. Comi um caqui doce, a tez já mole, toda mole e transparente. Escutei os corpos no outro quarto, um cio que vem das paredes e no escuro, que tem risos abafados e pouca pressa. Desaprendemos a lógica do tudo para ontem para aprendermos o tudo para não se sabe quando dará. Durante o banho, pensei uma vida sem ti e sofri, sofri embaixo d’água. Hoje desejei possuir o ritmo de um cavalo calmo: o cavalo calmo deita-se para dormir, estirado ao chão. Não teme. Minhas vértebras roçam no silêncio frio, minhas vértebras já não tão novas. Está tudo bastante silencioso agora, e se você me der a palavra para que eu diga aquilo que desejar, para que eu seja escutado dentro de todos os labirintos do mundo, talvez eu chorasse. Eu seria o som das águas. Dentro das cabeças, inundando os labirintos. Tenho sonhado repetidamente o mundo livre da infância, naquela praia que eu cresci. É bom saber que este mundo que acontece agora, ao nosso redor, é o mundo livre de outras infâncias, e permanecerá acolhido do jeito que ele é, o jeito possível. Nesses sonhos a casa da praia pouco se reconhece, há tantas pessoas desconhecidas, camas por toda parte e no chão, como um estado de sítio. Os animais caminham livres lá, não há temor. Os sonhos são uma grande colheita, um trabalho. Como todo trabalho nós começamos sem saber e aos poucos vamos aprendendo. É importante entender que há um mistério incontrolável, algo que toda vez nos fará sorrir ou chorar. Durmo sob raízes, brotos do que comi com muito amor. Tenho hoje uma pequena floresta acima do travesseiro, medrando, e perguntam-me com frequência o cuidado que tenho com ela. O único segredo é que lhes dou de beber a mesma água que bebo, que mantém minha palavra molhada. Somos iguais. Creio que são muitos os modos de se imantar os caminhos; dar razões para o que é e o que será. Acho que
estou demolindo minhas memórias mais antigas por dentro, comendo-as vivas, para semear a possibilidade de outras colheitas. Você disse que eu falo durante o sono: penso que falo para fora do sonho, como uma flecha que voa mais alto do que o céu, sibilando entre os seus dentes de flecha a língua do outro tempo dos sonhos. A semente de outro tempo virá como um aluvião inesperado, cedo de alguma manhã, e espero ter na boca um grito de amor à alguém que é você.
abri os olhos e estava em uma vila litorânea, de areia clara, nhundú farto, habitações por toda parte, fora e dentro das águas. pareciam casas-grotas. entravam nas águas tanto quanto estas lhes penetravam as soleiras, passagens e vãos todos. a maré dava nas construções e havia uma igreja sobre um lajeado que era como um cais. a maré da hora lambia a boca da igreja. estava toda cheia de crianças e suas luzes, ou fossem velas e eu não sabia. não sei como conseguia distinguir o que via, era noite. tudo tinha seu jeito de fazer ver-se, mesmo assim, como se cada coisa abrigasse em si um dia manso. as crianças abrigavam algo, houvessem engolido uma vela, tivessem talvez peles feitas de fina cêra ou espuma de onda, eram belezas de sonho, mesmo. essas pessoas ainda pequenas, mas já tão sérias, continham dentro de si um pavio, um incêndio miniatura, um ruído de estrela, luz que apaga tanto quanto acende. vi um corpomenino, de olhos minguados, braços abertos em meia-lua ou orla, acolhendo feito berço um outro corpo, que podia ser humano ou corpo-embarcação. algo que estava a deriva ao pé do cais, esperando resolução ou fim de tempos. e esse corpo-menino move-se como um peixe manso, com expressão segura de si, face de sonolência ou de extremo despertar para a sexualidade da própria idade. o mar é belo, como aprontado para aquele momento, para ser bonito a quem o desejasse ali. as águas corriam em direção ao sol como um rio bravo, levando consigo embarcações, cercados de estacas e arames, as raízes da vegetação de restinga. o sol mostrava um quase nada de preocupação. eu estava com alguém, uma pessoa também calada, estávamos como todos ali. não parecíamos nada com os corpos-meninos. é um momento muito só para cada um. me vejo sem tocar o chão, tenho alturas sob mim, e meu umbigo aponta para a terra. não sabia como aterrar mais e fiquei calmo porque achei que parecia algo bom, mas a calma de quem deseja o peso ou a queda, e ficar junto. bati os pés ao vento e me molhei todo nas pernas. eu batia os pés no ar e o ar se fazia molhado: chovia água do mar de banhar a multidão, e eu sem sair do lugar nessa tentativa de impulso. tive um medo imenso. virei todo água e desapareci na pele do povo, que lambia-se a boca em sal e apetite. antes de desaparecer tive uma última lembrança: uma infância que tivemos juntos nessa mesma vila, você e eu, mas que nunca aconteceu, em que pedalávamos perto das dunas em uma única bicicleta, como vivêssemos o tempo do recreio dos colégios.