REGISTRAR O ABSURDO Registrar o absurdo é o esforço coletivo de dar palavra ao inominável; de desenhar na uniformidade cinzenta; de sentir em um mundo que nos anestesia; de burlar a máquina que não pára de girar; de correr na direção oposta ao relógio; de dançar em meio a inércia; de confrontar a morte pela vida; de amar em meio ao caos. Na sociedade engendrada pelo capitalismo, o absurdo vai se tornando rotina, apaziguando sonhos e desejos. Para a máquina continuar a girar, gerenciam vidas e mortes, naturalizando a morbidez seletiva. Buscam adormecer sentidos e afetos para que nos tornemos autômatos em meio ao caos. O capitalismo, e a sua engenharia catastrófica, alastra sangue por todos os lados - na destruição do nosso ecossistema, no flagelamento e aprisionamento de corpos, no racismo, na negação de direitos, no fortalecimento da propriedade privada e na não garantia da moradia como direito, no patriarcado, na LGBTIQ+fobia, na não demarcação de terras, na desconsideração da saúde como bem público, nas privatizações, no descaso das políticas de transporte público e dentre outros. São diversos absurdos que vão sendo socialmente introjetados, padronizando e ditando aquilo que é considerado “normal”. A pandemia pelo coronavírus evidenciou e acentuou toda a desigualdade que lateja, fragilizando ainda mais os corpos que vivem nos limites do absurdo. A necropolítica que rege
a sociedade dá coro ao absurdo, naturalizando as mortes de todas as vidas que se foram e aquelas que estão vulneráveis frente à pandemia. Vemos,também, mundialmente o oportunismo estatal ao estabelecer políticas autoritárias em relação à pandemia que podem ser, facilmente, utilizadas como práticas de vigilância constante nos demais contextos. Porém, lembremos que há urgência: podem brotar do caos novas possibilidades de construção e outras formas de organização social. Na atual conjuntura, evidencia-se todo o absurdo em relação à desconsideração às vidas, porém, de outro lado, vemos grupos autônomos se organizando, greves acontecendo, laços se estreitando e comunidades fortalecendo. De um lado vemos a faceta mais sombria da precarização do trabalho, de outro é escancarada toda a potência dos trabalhadores e das práticas autogestionarias. Os tempos de corona nos alertam que solidariedade e organização social deveriam ser a regra e não a exceção. Para além das nossas ações individuais, o que podemos fazer coletivamente? Acredito que a primeira coisa seria atarmos laços que perdurem e que impulsionem ações coletivas tais como brigadas de prevenção e promoção da saúde, hortas comunitárias, educação popular, organizações de coletivos, comunicações independentes, pensar em formas de direito à cidade e dentre outros. E que da solidão do isolamento floresçam afetos coletivos. O absurdo não está no silêncio, nas ruas vazias, nas pessoas em casa. O absurdo está nas mortes, no genocídio, no ritmo acelerado do trabalho, no barulho infernal das cidades, na destruição do meio ambiente. Que do cansaço possamos nutrir afetos transformadores que visam desnaturalizar o absurdo do cotidiano.
Aline Ludmila emma_leguin@riseup.net https://medium.com/@ludmilalinelud Flana por ai com imagens e palavras
A fotografia e o programa: Inicio este texto com uma inquietação. Como entender o funcionamento da fotografia na atualidade? Vilém Flusser1 mostra-nos que a estrutura de nossa sociedade após a revolução industrial foi modificada e passa a seguir o seguinte modelo: temos as imagens técnicas, os aparelhos, os funcionários e o programas. De maneira simplificada, as imagens técnicas são todas as imagens produzidas pela intervenção de uma máquina. Os aparelhos são máquinas que são ferramentas dos programas. Estes últimos são códigos, leis e dados que regem uma estrutura, podendo ser ela social, política ou econômica. Os programas buscam sua imortalidade e fortalecem sua programação, transformando-as em mutáveis e sensíveis aos humanos para poder adaptar-se e garantir a sua sobrevivência. Por meio dos aparelhos, os programas chegam até os funcionários. As pessoas são funcionários quando colaboram com a perpetuação dos aparelhos e dos programas, seja por meio da utilização dos aparelhos e de seus produtos, ou pelo não questionamento dos programas vigentes. Mas o que isso tem de interessante ao pensar nas redes sociais e as imagens? Para Flusser, a primeira das imagens técnicas foi a fotografia. Com ela conhecemos a transformação de sujeitos em objetos. Por meio dela, transformamos segundos em cenas congeladas pela eternidade. Os sujeitos podem posar para a máquina e esperam que suas imagens sejam imortalizadas. Adaptando-se com o tempo, as máquinas fotográficas foram modificando-se, recebendo novas funcionalidades e com suas atualizações passam a organizar nosso modo de ver. Um exemplo são as primeiras fotografias. A socióloga Lorna Roth2 , explica que as primeiras revelações de fotografias precisavam de ajustes químicos para garantir as cores e um controle da quantidade de luz. O parâmetro utilizado pelos laboratórios da Kodak era o Shirley, que seguia os modelos de mulheres com tons de pele claros. Deste modo, nas primeiras revelações não imprimiamse as imagens de pessoas negras. A incapacidade de ver-se nas imagens e de reconhecer-se impactou negativamente, segundo Roth, durante décadas a autoestima das pessoas negras em relação a sua autoimagem. Isso mostra-nos que o ideal de beleza a ser propagado na sociedade e “digno” de ser eternizado, era o da branquitude. Vemos que as tecnologias evoluíram, mas o ideal de beleza ainda permanece, criando novas formas de exclusão. Com a difusão das imagens pela televisão, jornais e fotografias, pode-se observar a transformação da rotina dos indivíduos. A máquina fotográfica e seu poder de sedução, envolve os fotógrafos profissionais e atualmente qualquer um que tenha um dispositivo de tirar fotos. Essas pessoas praticam um movimento de capturar cenas que não só são lidas como um espelho da sociedade, como 1
FLUSSER, Vilém. Universo das imagens técnicas, São Paulo, Annablume, 2008.
Roth, Lorna. Looking at Shirley, the Ultimate Norm: Colour Balance, Image Technologies, and Cognitive Equity. Canadian Journal of Communication, Vol 34, 2009, p.111-136. 2
imagens técnicas na atualidade são entendidas como uma realidade ideal, um modelo a ser seguido. Porém, a imagem capturada e perpetuada pela eternidade por meio da fotografia é uma cena montada e organizada. As fotos não representam uma verdade e sim traços, fragmentos do que um dia já aconteceu. A imagem criada pela câmera é, em última análise, uma utopia do programa. Essa realidade propagada pelas imagens técnicas passa a ser utilizada como forma de controle da população, como norteadora de desejos e condutas. Na teoria de Flusser, os usuários das redes e de novos aparelhos são considerados funcionários que trabalham para os aparelhos. Se inicialmente os humanos usam as máquinas, hoje as máquinas transformam os humanos em funcionários e alimenta-se de suas subjetividades. A consciência desse fato não impossibilita a criação da imagem e de seu compartilhamento. Deste modo, é evidente o conhecimento e a informação não é suficiente para romper com a programação e com a difusão de imagens falsas em nossas redes sociais. Então, como emancipar-se dos programas? A solução, como diria Flusser, é observar as artistas. Os rompimentos e as fissuras que as artistas conseguem causar são danosas ao modelo social e moral propagado pelas ferramentas do capitalismo. As artistas conseguem ver na criação da imagem uma possibilidade para ir além da programação das máquinas. Elas vêm a aventura que uma imagem pode mediar e por meio das imagens ainda permitem-se entender o mundo e suas camadas de programações. Ao pensarmos em alternativas para a programação imposta para nós, temos algumas saídas. Com as artistas aprendemos a reordenar as perspectivas, a utilizar o vazio, a inexistência de imagens como obra e a internet como possibilidade de ocupação artística. Aprendendo com a arte, conseguimos modificar os exemplos moralmente aceitos e burlar as regras. O olhar da artista pode ser subversivo, pois consegue ver o sistema sem a necessidade de aparelhos. É preciso enfim distorcer o manual de instrução dos aparelhos e, deste modo, vingar-se do programa. Outra maneira de lidarmos com o fluxo de imagens é quebrar o padrão previsível, é interpretar e ter responsabilidade sobre o que é compartilhado nas redes. Consequentemente, é imprescindível uma educação imagética. Apenas ao ensinar oas sujeitos a lerem imagens e interpretá-las será possível cobrar uma postura crítica frente ao compartilhamento nas redes sociais.
Mayã Fernandes Doutoranda em Teoria e História da Arte Podcaster no “Filosofia de Bar” Uma das editoras da Oribê e escreve no blog linha de fuga http://oribeeditorial.wordpress.com/ https://linhasdefugaa.wordpress.com/
Uma carta para Aline. Ou quando eu pensei em linhas absurdas Confesso, Aline que pensei três temas e não Aline, desde o dia do convite que você me
desenvolvi nenhum...
Comecei um texto sobre o meu corpo gordo e fez, eu acordo, tomo café e penso: “o que eu os olhares que ele atrai quando eu chacoalho poderia escrever pra Aline”. Como dispor as o meu quadril. Parei na terceira linha.
palavras. Como compor as linhas.
Comecei um texto sobre o meu projeto Bilhete. Toda vez que eu me masturbo com cristais, :::: lembro de algum homem que tenha me tocado ::: e resgato um microdetalhe do corpo dele e :: componho um bilhete ouvindo Ai amor de Reginaldo Rossi. Parei na sexta linha.
O que seria o absurdo?
Comecei um texto sobre o ato de produzir, Será que o absurdo não é a dança ser editar e circulação publicações anarquistas. permitida apenas a alguns corpos, sendo Eu fico pensando como seria uma biblioteca que todos os corpos são genuinamente livres. de publicações surradas. Levadas no corpo. Será que o absurdo não é a masturbação ser Lidas por tantos. Como seria uma biblioteca dada às mulheres apenas quando maduras, cheirando composições de séculos e séculos? sendo que todos clitóris são genuinamente Parei na sétima linha.
nervosos. Será que o absurdo não é a publicação de
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ideias existir apenas para algumas pessoas e
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aquelas muito insistentes, sendo que publicar
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é um ato genuinamente público. . Aline, eu te pergunto: A tal liberdade chegará se seguirmos apenas a esperar?
Fernanda Grigolin Pesquisa, traduz, cria e edita. Doutora em Artes Visuais. Escreveu Sou Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro.
DESILUSÃO CRÔNICA Esta é uma estória de desamor. Antes, portanto, torna-se necessário definir o termo originário do qual a temática central prefixamente deriva. O que é o amor? O amor é cuidado, carinho e diligência. O amor é o pranto que se compartilha, a manta com o qual se cobre o outro quando a noite e as temperaturas caem. São as risadas trocadas enquanto as palavras voam livres pelo cômodo, perdendo-se ao vento, acompanhadas dos copos cheios de amargor etílico. O amor é querer o bem sem olhar a quem – vendo muito bem a quem se direciona, mas dispensando-se a fatura vindoura. É o comunismo dos afetos, pois não exige nada em troca e só almeja a felicidade. O amor torna-se completo quando visa ao bem do ser amado, ainda que o remetente não mais faça parte do produto final. Game over, zerou o jogo. O amor é tudo isso. E tudo isso para dizer que esta estória não abordará o amor. Abordará o desamor, que é uma forma chique de dizer que se falará de desilusão. Roteiro universal, todos já tiveram seus corações partidos. . Brasil, século vinte e um. São os anos de chumbo do capitalismo neoliberal. Viver é cada vez mais difícil e a manutenção dos afetos, à semelhança dos direitos trabalhistas, é cada mais precária. Os dias se arrastam em uma espiral de violência e perplexidade, naturalizados pelo frenesi daqueles tempos cíclicos. Rotina: trabalhar, estudar, sonhar. Na costa sudeste do país, ela vivia seus dias mergulhada entre os estudos e os anseios pelo dia em que a liberdade dos tempos calmos lhe sorriria. Experimentava os dias, tragando-os com vigor e acolhendo o novo. Há que se viver intensamente, chupando o âmago do cotidiano e deixando os bagaços para bater no liquidificador e fazer um suco de futuro. Às vezes, essa intensidade se resume em horas a fio sentada em frente à escrivaninha de estudos descobrindo os mistérios da vida e da morte. P. estudava na Escola das Belas Técnicas e dividia seus dias entre os estudos teóricos e práticos, reservando algumas horas para o cultivo das relações com seus familiares, amigos e eventuais pares românticos. Levava uma vida atribulada, pois o caminho profissional que escolheu para si requeria muito esforço e disciplina, mas atravessava as semanas com a leveza que uma discípula de Hipócrates poderia ter. Por vezes, questionava-se se seria capaz ou se a decisão tomada no passado e que agora sustentava esse caminhar era a mais acertada. Apesar das incógnitas, seguia com seu passo firme. S. sonhava em conquistar o mundo. Inspirado pelas palavras e exemplos de sua mãe, almejava poder, dinheiro e estabilidade. Apreciador das escrituras magnas que acalantam a alma e fortalecem o intelecto, deleitava-se com as palavras de
Assis e das inúmeras mãos anônimas que sequenciavam os códigos vigentes à epóca. Detinha clareza de pensamento e precisão oratória, mas faltava-lhe a maestria da continuidade. Abandonou o centro do país e refugiou-se no interior a fim de alcançar seus intentos. Entendeu que a beleza de se nadar contra a corrente é visar o fio de força aguática que faça das braçadas as mais suaves possíveis. Assim partiu em busca de desvendar o maquinário burocrático da vida. Tarefa difícil, requer mistura de prática com perícia. S. gozava de certa perícia, mas não possuía a prática que se adquire com a experiência. Adentrando em mundo novo, madurou-se. Sentia a leveza dos novos tempos que havia conquistado, ao passo que a asfixia do universo laboral balanceava as sensações. Estava construindo sua autonomia. S. e P. se conheciam há eras. Sua amizade remontava aos tempos jurássicos da internet e nos espaços literários daquele ambiente exercitavam seus dotes literários – foi assim que se conheceram. Sempre houve carinho mútuo e os sentimentos envolvidos eram perenes como o pó das estrelas. Dançavam em ritmo cósmico cuja coreografia era o movimento translacional de proximidade e distanciamento, aquecimento e arrefecimento. Havia o ensaio rotacional também, evidentemente. P. era seu próprio sol e irradiava brilho para os confins de seu universo particular, iluminando todos aqueles que consigo interagissem. S. era saturnal, pois recolhia-se em disciplina e sobriedade, buscando o equilíbrio das ampulhetas da vida. Buscava reconciliar-se com o Senhor Tempo, tropeçando nos fragmentos do estar presente. Presente. Cada um seguiu com sua vida, conheceu gente nova e outros amores. Ambicionou novos sonhos e fantasiou diferentes futuros. Os encontros são perpassados por inúmeros desencontros. S. e P. não se entrecruzilharam por algum tempo. S. apaixonou-se, quis morrer e quis viver. Conseguiu ambos. Guiado pelo barqueiro avarento através das intempéries da vida, adentrou domínios desconhecidos. Tanto quis localizar-se que se perdeu, morrendo em seu decurso – ressuscitou em seguida. Batizado pelas águas daquele que se situa na borda, observou o abismo. Quis jogar-se, declinou da ideia. Preferiu voar. Pousou em terras longínquas e desconhecidas, renovado. Mais tarde usou e abusou da expressão “divisor de águas” para se referir àqueles tempos, por fim entendendo que há certo valor na repetição. P. recolheu-se junto a seus antepassados. Precisava refletir, necessitava descansar. Permaneceu em reclusão por anos a fio e por muito poucos sabiam de seu paradeiro. Aqueles tempos ainda são um mistério, mas lá se embrionaram decisões existenciais fundamentais que deram início a uma nova era. Era carnaval e muitos outros se seguiram.
Os ciclos dão sustentação à esteira da vida. . Ato contínuo, retomaram o contato. Tal como a Ipiranga e a São João, viram seus caminhos cruzarem-se novamente. O reencontro foi festejado e despretensiosos planos avivavam-se em seus corações: S. redescobria-se cada vez mais e conquistava novos domínios, almejando os ares meridionais ou qualquer outro que se avistasse ao longe. Os caminhos eram muitos e estavam todos disponíveis. P. seguia o passo firme e decidido em busca de sua sina fadada ao sucesso. Esteve sozinha, comprometida, enrolada, deprimida, fulgurante. Amou, partiu, acolheu-se. Vivia os dias, cultivava seus interesses e traçava o futuro nos planos pilotos reconvertidos em esboço final. Foi em uma tarde de janeiro que, distraídos pelo céu e calor de verão, tropeçaram um no outro. Da mesma forma que se sucede com os eventos cósmicos de grande magnitude, esse acidente do acaso gravitacional fez surgir outro universo. Navegavam no mesmo mar. Decididos a viver essa história de amor moderno, entregaram-se de todo ao imponderável da vida. Há certos amores que requerem coragem e atitude para que saiam do mundo das ideias e se materializem em afeto – esses amores exigem sacríficios à altura de sua grandeza. S. e P. sacrificaram a incerteza que com tanto apego se aferravam e envidaram suas esperanças e anseios na construção daquela relação. A incerteza, por mais paradoxal que pareça, era fonte de consolo e tranquilidade, pois, ainda que ferroasse com sua insegurança, trazia o conforto das janelas abertas e cômodos esparsos; sempre há espaço para fuga. Foi um grande sacrifício, portanto. Fizeram cerimônias e rituais para honrar a parte de si que abandonavam. Foram muitas as noites compartilhando copos abarrotados de cerveja, cigarros recheados de maconha e as dores de ser jovem em tempos tão sombrios enquanto ouviam os cânticos sagrados da música popular brasileira afrorreferenciada. Muitas outras foram as tardes em que saíam à rua a caçar móveis, imóveis, seguros e fiadores, todo o tipo de burocracia com que se monta um lar. Estavam felizes e apaixonados. Os dias, meses e anos se passaram e permaneceram juntos. Ajudaram-se um ao outro, alcançaram novos ares. Ficaram mais fortes ao passar pelas turbulências incontornáveis da vida compartilhada – acolheram-se mutuamente. Desentendiamse ocasionalmente, como é natural da vida, mas tinham o compromisso imaculado de exercitar a empatia que os fazia chegar a consensos. Compromisso era a palavra-chave. Essa jornada de autoconhecimento travada em conjunto os ensinou a respeitar os limites alheios e os seus próprios, observando a si mesmos continuamente e traçando os esboços cartográficos dos novos sítios que conheciam. A vida não era fácil, no entanto. Seria demasiado pretensioso querer viver um amor tranquilo com sabor de fruta mordida enquanto se vivia sob a égide das políticas de morte de então. Resistiram, porém. Cotidianamente faziam suas preces, protegendo-se contra o mal daqueles que arrotam o bem, e prefiguravam
o novo através do amor de todo dia, pão de cada dia. S. prometera para si que faria tudo a seu alcance para tornar os dias de P. felizes, o que se revelava como verdadeiro exercício de atenção e cuidado, inclusive para consigo. Não era deus, onipotente e onisciente, que tudo podia fazer, mesmo a tristeza esvanecer em um estalar de dedos. Tampouco desejava isso, pois a felicidade não existe se não há o seu oposto; é preciso reconhecer a importância de cada entidade em seu estado da arte e se reconciliar com elas. A tristeza é, assim, uma outra faceta necessária da felicidade. Caberia a S., portanto, buscar continuinamente se constituir enquanto lugar de escuta e apoio, reverberando reciprocidade, a fim de zelar P. nos dias tristes e fomentar os dias alegres. Deveria, também, reconhecer seus limites e consigná-los em contrato solene junto ao ente amado. O amor é um organismo complexo. Amavam-se. A narrativa não é capaz de comportar os registros que esse marco histórico cunhou em ambos. Foram grandes os acontecimentos, belas consumações do destino. A vida cotidiana é perita em fazer-se escapar dos olhares atentos e mãos diligentes dos historiadores. Muitas foram as revoluções ocorridas em prosaicas tardes de domingo e que se perderam na abstração do passar do tempo. Curiosamente, desafiando a rígida lógica dos sequenciamentos cronológicos, S. sabia desde tempos imemoráveis que, em algum momento e lugar, haveria de estar com P. Os sentimentos não mentem, às vezes só esquecem de precisar data e hora. Sentia que deveriam ficar juntos, ainda que em outro universo, ainda que em sonho . A luz matinal esgueirava-se por entre as folhas da pata-de-vaca companhia de sua janela. Abriu os olhos, sentiu o vento acariciar seu rosto. Estava anestesiado. Respirou fundo, quis voltar para os confins de seu inconsciente onírico ou fazêlo emergir a sua frente para poder tocá-lo e cheirá-lo. Tinha gosto de felicidade quase alcançada. Olhou o teto, consolou-se em resignação. Havia um dia inteiro pela frente. Pegou o celular e viu que era cedo, mas tarde demais. Estava atrasado. Levantou de imediato, teve vertigem. Respirou fundo novamente. Recuperado, tratou de vestir-se e saiu à rua. O trabalho, as contas, os estudos, as preocupações, as virtudes, os vícios, todos eles lhe esperavam.
Caio Siqueira Natural de Brasília, vive atualmente em Uberlândia, Minas Gerais. Funcionário público federal e estudante de Letras, é editor do Folhetim Literário: Newsletter e escreve ocasionalmente em seu espaço no Medium. Sonha com um mundo onde muitos outros sejam possíveis.
A.L.
E se?
Era um, eram dois, eram cem pessoas mais ou menos. Verde, cinza, azul e amarelo sol. Aquela arquitetura moderna nos deixava à mercê do céu amplo. Eu estava lá junto com amigas na Praça dos Três Podres Poderes. Via lésbicas sentadas no gramado, pessoas segurando bandeiras: todas nós protestando pelos (nossos) direitos LGBTIQ+. Nós, uma pequena multidão no meio do gramado do imenso vão do Planalto Central do país. Fomos surpreendidas por um homem de terno que aproximou-se. Era um homem branco de meia-idade, aparentemente hetero e relacionado à política institucional, o que se podia observar pelo caminho que ele havia percorrido até nós. Nós, uma pequena multidão no meio do gramado do imenso vão do Planalto Central do país. Ouvimos vagamente seus xingamentos para nós. Logo, imagino as ofensas comumente dirigidas: sapatonas, travecos, viados, vagabundos, desocupados…Aproximo-me um pouco mais. A multidão logo se alvoroça no afã de responder àquele homem. O que é senão ódio o que leva aquela pessoa a desviar de seu caminho para ofender desconhecidas? Gritar a esmo, provocar gratuitamente… Ofender. Estávamos diante da imprensa, quase imóveis. Qual seria a manchete caso decidíssemos agredir àquele homem?
Agredir não, desculpe pelo termo: revidar. Responder. Reagir. Ainda sim, imputariam-nos a culpa. Alguém chegou a verbalizar: não podemos bater nele. O que sairia nos jornais? São detestáveis os altos valores dos adeptos do oferecer a outra face. São os paladinos dos bons modos, os guardadores da etiqueta. Aqueles que não tem sentimentos ruins, bons de coração. Aquela gente boa com muita “urbanidade” em suas ações. O cidadão de bem, enfim: “gente civilizada”. É como se houvesse uma falsa simetria, como se pudéssemos pesar essas ações opostas com o resultado igual: 3 kg de ódio para cada um dos lados. O que aconteceria seria a sórdida invenção (inversão): Homem é agredido por multidão furiosa na Esplanada Homem é assassinado por militantes raivosos
Homem é…Homem é…Homem é… Esse homem valeria essa imagem? Ainda que injusta, não podíamos
reagir, arrostar, contrapor-se, enfrentar, insurgir-se, lutar, obstar, obviar, opor-se, resistir, protestar. Ao menos não como gostaríamos, como deveríamos. E se? Escolhemos. Aquela imensa multidão depois de 2 ou 3 minutos em sintonia ponderou e continuou apenas respondendo grito a grito, olho a olho. E se aquele homem fosse uma multidão? O que ele faria conosco? Aquele homem era um capitão reformado, político eleito através de diferentes partidos ao longo de sua carreira. Em março de 2016 ele foi anunciado como pré-candidato à Presidência do Brasil pelo PSC. O resto da história você já sabe e está sendo escrita agora. E se. E se…E se a gente reagisse agora? Ana Carolina Lima Mestranda em Filosofia da Arte. É professora de cursos livres sobre Artes Visuais e Feminismos e Pintura. Coordenadora na Oribê Editorial e membro do projeto “Fissura: mulheres nas artes visuais” para divulgação da produção de mulheres artistas. Escreve desde 2017 define-se como uma poeta e multiartista.
Eu custei entender o que está acontecendo e me adaptar. E aceitar que as visitas mais frequentes que tenho recebidos são lembranças adormecidas, que não tinha tempo de hábil de digerir quando aconteceram na época.
Essa pandemia só expôs o fracasso de um sistema falido. Mostrando ainda que algumas desgraças mundiais, como essa, podem ser chamadas de pandemia racial e classicista. Porque quem é mais atingido nisso tudo?
Dessa forma, nĂŁo me sobra alternativa: tive que olhar para dentro, entender alguns porquĂŞs, olhar para fora e com olhar diferente de antes. Entender que viver pode ser uma experiĂŞncia diferente do que apenas ser um consumidor no mercado.
Isso tem sido uma percepção emocionalmente dolorosa, mas ainda libertadora
Aceitar que a mudança precisa existir. Entender que ela precisa partir de mim, e ainda que precisa ser coletiva e plural, traz um sentido de direcionamento de como viver e experiência o mundo e as relações humanas com muito mais sentido pra mim
Com o fim do mundo como conhecemos, a autogestĂŁo deixa de ser um sonho e passa a ser uma necessidade
Jaqueline Nobre Tatuadora aprendiz
Maria Thereza Gonรงalves Designer, ilustradora e tatuadora aprendiz
Créditos Aline Ludmila Capa e colagens Aline Ludmila Ana Carolina Lima Caio Siqueira Fernanda Grigolin Jaqueline Nobre Mayã Fernandes Textos Jaqueline Nobre Maria Thereza Gonçalves Ilustrações Maria Thereza Gonçalves Diagramação