História de VN Contos e Causos 2ª Edição

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Hist贸ria de Venda Nova em contos e causos



Este livro é resultado da 2ª edição do Concurso “História de Venda Nova em Contos e Causos”, criado com objetivo de incentivar a produção literária da comunidade, resgatar e valorizar a rica memória de nossa gente e transmitir a história de Venda Nova transcrita a partir da história oral e documental, recontada por pessoas da região.

Belo Horizonte Setembro/2005



Ficha Técnica: Comissão Organizadora do Concurso Ricardo Evangelista Tânia Cássia Cossenzo Claudia Andrade de Barros Andrea Lourdes Ribeiro Vicente Paula de Souza Comissão Julgadora do Concurso Ricardo Evangelista Tânia Cássia Cossenzo Claudia Andrade de Barros Nelma Aparecida Vieira Gonçalves Eliane Vieira de Sales João Batista Santiago Sobrinho Correção de redação João Batista Santiago Sobrinho Janete Dias Ribeiro

Gerência Regional de Comunicação Social Venda Nova Secretaria Adjunta Regional de Serviços Sociais Venda Nova Secretaria de Administração Regional Municipal Venda Nova


Apresentação O lançamento do primeiro livro “Venda Nova em Contos e Causos” tinha como objetivo estimular a pesquisa e fazer resgatar e registrar a história oral da região, rica em dados, porém sem registro. Diante do sucesso e do engajamento de todos os profissionais da Educação e Cultura em participar da organização naquela edição, estamos agora apresentando mais um livro para valorização da cultura, do patrimônio e da memória local. Foram realizados vários encontros entre professores, bibliotecários, pessoas da comunidade e integrantes da equipe da Educação e da Cultura, para levar adiante este projeto. De acordo com o regulamento foram selecionados 14 contos, dentre os 74 contos escritos pertencentes às categorias A,B,C,D e E. Entregamos à comunidade vendanovense um pouco de nossa história e esperamos que este projeto continue criando asas e galgando espaços no âmago de nossas mentes para não deixar esmorecer esta brilhante idéia.

A Comissão


Palavras do Secretário Prezado(a)s belo-horizontino(a)s de Venda Nova,

As obras literárias nos encantam. Têm o dom de transportar-nos para épocas passadas, antecipar o futuro, rever sonhos e sentimentos, inspirar atitudes, recordar-nos vontades e ocorridos tais, de modo que somente o escrever e o ler – estas formas mágicas de transmissão de vida – são capazes. Quando à obra literária junta-se a descrição dos valores, conhecimentos, impressões, crenças e vivências de um povo, mais ainda esta literatura se torna viva. Ao se acrescentar a esses ingredientes a história de uma região tão fértil e plena de vida quanto é Venda Nova, tem-se uma tocante narrativa, podemos dizer, do mundo, que não é mais que a extensão dos quintais e ruas – visto a partir das experiências de uma gente de muito boa qualidade. Este é o caso da obra que temos em mãos - guarnecida do fato de ser acessível, em sua linguagem, para crianças e jovens. A Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, através da Secretaria de Administração Regional Venda Nova, entrega aos belo-horizontinos esta coletânea, que completa a anterior, já publicada. Com ela, pretendemos colaborar para o resgate histórico desta região que ostenta quase trezentos anos de ocupação humana conhecida. Ao mesmo tempo, buscamos incentivar os jovens, de todas as idades, a manter viva sua história – ação necessária para a boa compreensão do presente e para a construção do futuro. Em nome de nossa equipe e do Prefeito Municipal Fernando Damata Pimentel, enviamos a todos os leitores nosso abraço. Até a próxima publicação!

Geraldo Magela Luzia da Silva Secretaria de Administração Regional Municipal Venda Nova


Caros leitores, No processo de correção das histórias do II concurso “História de Venda Nova em Contos e Causos”, procuramos respeitar, ao máximo, as escolhas escriturais de cada autor. Somente interferimos, delicadamente, quando o entendimento do texto ficou prejudicado e em questões de lapsos ortográficos, muito comuns no momento de escrever ou transcrever um texto. Também reduzimos, quando necessário o número de parágrafos de alguns textos, no intuito de obter uma melhor coerência. Portanto, o que fizemos, de maneira alguma interfere nas idéias e proposições dos escritores que nos deu a honra de compartilhar conosco suas histórias, as quais fazem parte do imaginário e da identidade do povo Vendanovense.

Obrigado.

Cordialmente,

João Batista Santiago Sobrinho Escritor, Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG e professor de Literatura na FAMINAS


Prefácio A vida da gente, de nossa família e de nossos antepassados é sempre rica em aprendizados. Recuperar a memória do lugar em que nascemos ou onde moramos é um bom caminho para preservar a cultura e as tradições de nosso bairro, de nossa região. É ainda uma oportunidade de saber e entender como chegamos até aqui. Conhecer nossas raízes nos ajuda a construir melhor nosso futuro. Esta é a importância que vejo neste livro sobre a história de Venda Nova narrada para crianças e jovens. As novas gerações têm muito a ganhar quando ouvem o que dizem e ensinam os mais experientes. Estes, por sua vez, prestam uma enorme contribuição à sua comunidade quando se dispõem a colaborar no resgate de sua história. Ainda mais se a história é a de Venda Nova, que é mais antiga que Belo Horizonte. É com grande alegria, pois, que apresento este belo volume ao público. Boa leitura!

Fernando Damata Pimentel Prefeito de Belo Horizonte



Índice

A LAGOA SECA.........................................................................................13 O DEMÔNIO DA QUADRA DO VILARINHO.........................................15 O HOMEM MISTERIOSO..........................................................................17 AS HISTÓRIAS QUE REALMENTE VALEM A PENA...........................19 UM CAIPIRA DIFERENTE........................................................................24 HISTÓRIAS E ESTÓRIAS..........................................................................27 UMA ÁRVORE PODEROSA......................................................................29 TODAS AS SAUDADES DO MUNDO......................................................32 CONTO DAS ÁGUAS.................................................................................37 CONTOS DE VENDA NOVA.....................................................................39 SIMPLESMENTE MEMÓRIA ..................................................................42 O CASARÃO DO EUROPA........................................................................44 ETERNAMENTE VENDA NOVA..............................................................46 EXISTE ASSOMBRAÇÃO?.......................................................................51 VÁ À VENDA NOVA!................................................................................53 A VELHA VENDA NOVA..........................................................................59



Histórias de Venda Nova

13 A LAGOA SECA Plínio Eliote da Silva Magalhães

Esta história aconteceu, não sei bem em que ano. Parece-me que recentemente, antes das novas obras com a Lagoa da Pampulha. Tudo começou quando a Prefeitura de Belo Horizonte iniciou o projeto da limpeza da Lagoa da Pampulha. Para isto foi preciso secá-la. Meus pais resolveram ir assistir a uma missa na igreja da Pampulha e chamaram minha avó e um primo meu para irem com eles. Eles foram e assistiram à missa. Chegada a hora de ir embora meu pai teve uma idéia. Sugeriu que todos atravessassem a Lagoa da Pampulha para encurtar o caminho. Para dar a volta pela lagoa demoraria muito tempo e como a lagoa estava seca, facilitaria a travessia e pouparia tempo a eles. Ao colocar o primeiro pé dentro da lagoa, tudo pareceu estremecer. Parecia que todos iam afundar. Meu primo, apesar do medo, decidiu ir. E andava rezando baixinho: “Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja Vosso nome! Venha a nós o Vosso reino! Seja feita a Vossa vontade! Assim na terra como no céu...” Até minha avó tremia. E tremendo, dando passo por passo, morria de medo e também rezava: “Ave Maria, cheia de graça! O Senhor é convosco! Bendita sois vós entre as mulheres! Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus!” Estava até engraçado os dois rezando. Não era possível entender nenhuma palavra do que eles diziam, pois tremiam tanto que as palavras se

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14 misturavam umas com as outras. Eles esqueciam-se de algumas partes das orações e retornavam ao início, tremendo e tremendo... Quando eles estavam chegando à outra margem da lagoa, meu pai pisou em um buraco e afundou o pé. Minha mãe tentava puxá-lo e não conseguia. Começaram a desesperar-se. Todos tentavam puxar meu pai. De longe, a cena parecia muito engraçada. Até que conseguiram arrancá-lo do buraco. Porém, ninguém conseguia andar adiante. Conseguiram sair do buraco, mas quem tinha coragem de tentar ir adiante? Tiveram que retornar pelo mesmo caminho que vieram. Acabaram por ter que dar a volta em torno da lagoa toda. MORAL DA HISTÓRIA: “ Todo caminho fácil pode tornar-se difícil”.

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15 O DEMÔNIO DA QUADRA DO VILARINHO Geisiane Gonçalves Ribeiro Aline Ramos Teixeira Esta história aconteceu em determinada época, entre os anos de 1988 e 1989, na região central de Venda Nova, mais precisamente nas quadras do Vilarinho. Ainda existe uma grande polêmica sobre o acontecimento e sobre as quadras! Tudo começou quando apareceu um rapaz aqui na região de Venda Nova. O rapaz era alto, tinha cabelos loiros, olhos azuis, usava capa e chapéu preto e sabia dançar muito bem. As pessoas tinham o costume de pular Carnaval na quadra do Vilarinho. Todas as noites de sexta-feira, sábado e domingo eram dias de festa, aqui em Venda Nova nas quadras do Vilarinho. O rapaz recém chegado à região de Venda Nova passou a participar sempre das tais festas. Não perdia uma. Ele escolhia a menina mais interessante e bonita da festa e passava a noite inteira dançando com ela. Ele tinha o costume de pendurar sua capa preta na parede, sem nada para segurar e sempre desaparecia misteriosamente. Estes fatos começaram a despertar a curiosidade de todos. Certa noite, o tal rapaz escolheu uma menina, como sempre, e dançou com ela a noite toda. Em um determinado momento ela resolveu perguntar: - Quem é você? O que você faz?

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16 Ele respondeu: - Meu nome é Alex! Eu não sou deste mundo! Eu sou o diabo! A menina começou a rir, pois não acreditava no que ele havia dito. Pediu-lhe então uma prova. Ele disse que daria. Ele sempre usava calçados que eram de formato redondo. Todo mundo achava que fazia parte de uma moda que ele inventou. Pois, além daqueles calçados, ele utilizava somente roupas pretas e diferentes, além de uma capa preta. Então ele resolveu tirar o sapato. Ao tirá-lo, mostrou a menina o seu pé. Era uma pata de bode. Nesse momento, o chapéu do rapaz caiu no chão. E em sua cabeça havia dois chifres. A menina ao ver tal fato desmaiou e nada foi provado. E quanto ao rapaz, mais uma vez, misteriosamente, no meio do povo, desapareceu. Até hoje se ouve falar nele, mas ninguém nunca mais o viu.

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17 O HOMEM MISTERIOSO Scarlat Fabielle Freire Uma velha de oitenta anos, que morava numa casa de madeira com mais cinco pessoas, conta que, antigamente, este local era uma grande e linda fazenda. O dono da fazenda resolveu viajar deixando sua esposa e sua filha. Viajou por três anos sem falar seu destino. O tempo passou, quando retornou não mais encontrou a esposa e a filha. Perguntou à vizinha Dona Carmém para onde elas foram e a vizinha disse que elas venderam a fazenda para uma construtora e foram embora, havia dois anos. O homem ficou espantadíssimo porque a fazenda era dele e não poderiam ter vendido e nem poderiam ter ido embora. Ele foi rapidamente procurar a tal construtora e exigiu a saída do dono imediatamente de lá, porque o dono daquele local era ele. O novo dono da fazenda levantou e disse que quem era ele para invadir daquele jeito a propriedade dele e falar esse absurdo. E logo chamou os capatazes, que levaram o homem até o portão e o jogaram na rua. Disseram que se ele pisasse naquele local de novo iriam matá-lo e enterrá-lo sem caixão. O homem, nem um pouco assustado, levantou-se e foi embora. No dia seguinte ele pareceu lá na antiga fazenda, mas não entrou, parecendo tramar alguma coisa. As quatro horas da madrugada, invadiu o local ameaçando matar o dono da construtora. Na mesma hora os dois capatazes chegaram por trás dele e cortaram seu pescoço. O homem morreu na hora, foi

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18 enterrado ao lado de uma árvore e de uma pequena casa de madeira (onde a velha mora hoje). Depois de muito tempo esse homem começou a gritar e gemer de dor e começou a aparecer escritas na árvore. Muitas pessoas do bairro ficaram aterrorizadas com esse fato estranho. A velha pediu ao genro para cortar a árvore. Diz ela que um dia a casa tremeu toda e todos ficaram com medo, as netas se esconderam num guardaroupa. Depois de quinze minutos, tudo se acalmou. Até hoje, ele continua aterrorizando os moradores com seus gritos e gemidos às quatro da manhã. A fazenda não é mais linda como antes, parece um pasto, continua sendo da construtora. O nome da rua da fazenda é rua Horácio Terena Guimarães.

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19 AS HISTÓRIAS QUE REALMENTE VALEM A PENA Paula Fernanda de Oliveira Souza Poderíamos, aqui, relatar diretamente a história de Venda Nova. Seu surgimento, seu desenvolvimento, suas conquistas e tudo o que podemos ver até hoje. Porém resolvemos resumir a história de uma única vida. Lídia nasceu no bairro Céu Azul, no dia 7 de novembro de 1964. Mesmo nascendo em um tempo de muitas repressões, Lídia trouxe a alegria e a esperança de que sua família tanto precisavam naquele momento. Em laços de ternura e aconchego, Lídia crescia e se desenvolvia, e com seus olhos atentos e curiosos desvendava, a cada dia, os mistérios que a vida colocava em seu caminho. Mesmo no auge da sua infância, sempre fora uma menina responsável: conseguia, com muita precisão, discernir o momento apropriado para suas brincadeiras daquele dedicado ao cumprimento de suas obrigações. E, a cada dia, crescia em sabedoria e conhecimento, sempre sabendo poupar alguns deles para que a vida não perdesse sua sutileza e seu sabor. Porém, mesmo tendo tantos conhecimentos e virtudes, havia algo que Lídia nunca tentara desvendar: seu interior. E foi, exatamente com a chegada da adolescência, que ela percebeu a necessidade de satisfazer suas dúvidas. Lídia procurou respostas em livros, enciclopédias, dicionários, mas tudo era vaidade. Em determinados momentos, desejou desistir da busca por seu conhecimento, pois não havia ciência no mundo que pudesse satisfazer

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20 seus questionamentos. E, como dizia nosso velho amigo Carlos Drummond de Andrade:

“só resta ao homem a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo! Pôr o pé no chão de seu coração experimentar colonizar civilizar humanizar o homem descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas A perene, insuspeitada alegria de con-viver.” (O homem; as viagens – Carlos Drummond de Andrade) Foi então, que ela percebeu que para conhecer a si mesma seria preciso conhecer os seres que a ela se assemelhavam. E, pela primeira vez, Lídia olhou a sua volta e notou que nunca havia descoberto os mistérios da vida.

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21 Neste momento, a pobre menina deparava-se com a missão mais embaraçosa de sua vida: vencer a timidez. Assim, observava cautelosamente quais pessoas poderiam corresponder a sua ânsia de se envolver com os que estavam a sua volta. Mas, para sua terrível sorte, Lídia se deparou com o monstro que há no homem. A inveja, a ganância e a falsidade foi tudo o que encontrou, depois de uma busca tão exaustiva e deprimente. E pela primeira vez, desejou abrir mão de uma novo conhecimento: o homem. Lídia viu-se tomada pela sombra. Seus dias se tornaram escuros e suas noites, negras e melancólicas. Temia procurar a si própria e encontrar o mesmo terror que encontrara no seu próximo. Mas, em meio a um céu que a muito não cessava de nublar, surge uma estrela que, com seu brilho discreto, porém glorioso, trouxe consigo uma esperança. Fernando era seu nome. Talvez nem tivesse tanta beleza quanto outros rapazes que estavam a sua volta, mas seus olhos tão firmes, fixos e brilhantes, como nenhum outro conseguia ser; e seu sorriso tão radiante, trazia consigo toda a magia e a alegria que uma vida, mesmo sendo a de um simples rapaz mortal, poderia trazer. A muito, este jovem rapaz observava os passos de Lídia. Até que um dia resolveu dar os seus próprios passos e tomar coragem para ir ao seu encontro. Mas ao se aproximar daquela jovem tristonha, todas as suas palavras se perderam restando apenas aquele intrigante olhar, que só ele sabia dar. Lídia acabou deixando-se levar pela magia contida naquele olhar. Sentiu

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22 uma leve brisa a lhe tocar a face, fazendo-a, assim, desviar os olhos de sua envolvente leitura e notar a presença daquele ilustre rapaz. E fingindo tirar os finos fios de cabelos castanhos que impediam sua visão, olhou para aqueles olhos que transmitiam tanta intensidade e sentiu-se tomada pela velha e conhecida timidez de sempre, que a impediu de acrescentar alguns segundos a mais àquele momento que será, por toda a sua vida, inesquecível. E notando a timidez que encobria o rosto de nossa heroína, o caloroso rapaz lançou aquele contagiante sorriso costumeiro, o que a deixou bastante surpresa, pois em sua busca pelo conhecimento da vida humana, ela nunca havia presenciado um sorriso sincero. No outro dia, naquela mesma praça dos ocorridos passados, a moça, que já podia perceber em si a presença de um novo sentimento, resolveu esperar para ver se encontrava aquele misterioso rapaz novamente. Horas se passaram, até que uma fúria incontrolável subiu à cabeça de Lídia, e quando ela percebeu, já estava atravessando a rua, e um carro desgovernado vinha em sua direção. Fernando, que estava do outro lado da rua, sentiu-se possuído por um desespero tão intenso que nem percebeu o quanto suas pernas se moveram para retirar Lídia daquela situação. E, agarrando-a com pressa, atirou-a contra a árvore que ficava no centro da praça, E deixando-se levar pelo impulso, atirou-se sobre ela. Os dois, que de tão assustados não conseguiam se mover, ficaram ali, parados, estagnados, surpresos com aquela fatalidade. Seus corações, que de tão próximos, batiam acelerados num mesmo ritmo, numa mesma condição. Até que Fernando olhou para dentro dos olhos de Lídia e lhe agraciou com

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23 aquele vagaroso sorriso. E a jovem, comovida, abraçou-o com força. Casaram-se, foram felizes, e acima de tudo, se amaram. E desse amor muitos frutos surgiram. Tiveram três filhos maravilhosos. E Lídia finalmente descobriu porque antes não encontrava a razão da sua vida. Viu que, simplesmente, não existe vida sem amor e quando se está sozinho. Lídia tem uma história. Venda Nova é como Lídia, pois, assim como ela, nossa cidade nasceu, cresceu, desenvolveu, buscou novos conhecimentos e aprendeu que mais importante que tudo é saber se relacionar com seus moradores. Alguns, que de certa forma, a desprezam, mas outros que, assim como Fernando, a amam e fazem dela, um lugar maior e ainda melhor.

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24 UM CAIPIRA DIFERENTE Rosana Pereira Sathler Ariana da Silva Meu nome é Jorge Almerindo Santos. Sou de uma família que veio do interior de Minas para viver em Venda Nova no início do século XVIII. Já tenho 79 anos, mas ainda me lembro bem de como meus antepassados participaram da história de Venda Nova. As histórias de suas vidas vem sendo passadas de geração em geração, sendo a mais importante de meu “tatatata....tataravô”. Querem saber? Querem mesmo? Então me acompanhem: - “Uai! Mas que lugar movimentado sô! Disse meu tata...tataravô” ao chegar em Venda Nova. - Má é aqui memo que eu vô me ajeitá. Ele era um caipira “daqueles” e com o passar do tempo, ambicioso em mudar a vida das pessoas que viviam ali, deu início a um movimento que revolucionou a história daquele lugar (pois ainda não era a região de Venda Nova). Querem saber porquê? Esperem só mais um pouco que logo saberão... - Qui lugar doido sô! Tem vendinhas espaiadas por toda parte... mais... num sei não... Tá fartando alguma coisa... Uns tem muito e outros quase nada... Esse lugar precisa crescê. Disse ele, um sonhador. Para quem não sabe, naquela época, existiam muitas vendinhas em que muitos boiadeiros que percorriam grandes distâncias descansavam e eram também o ponto de desvio de bandeirantes que subiam pelo Rio das Velhas. Com tanta movimentação, meu “tata...tataravô” teve uma grande idéia!

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25 - Eu vô é aproveitá esse tantão de gente! Vô fazê o comércio crescê! Vô também ajudá os que mais precisa. Intão eu vô acabá primeiro com minha ignorânça e dá um jeito de trabaiá. Meu “tata...tataravô” estudou, formou e se tornou um grande comerciante. Agora, já uma pessoa culta, convocou secretamente as pessoas pobres da região para uma reunião à noite em sua casa. - Boa noite, obrigado pela presença de todos, iniciou o seu discurso. Não querendo tomar muito tempo de vocês vou direto ao assunto. Quero dizer que já passei pela mesma situação que a de vocês e peço que me deixem ajudá-los. Juntos vamos transformar esse lugar! Unam-se a mim e formaremos a maior venda de todas, que se chamará Venda Nova. E assim foi feito. Mas para que construíssem essa grande venda tiveram que enfrentar vários obstáculos: realizaram greves, protestos por igualdade social e finalmente a última e definitiva rebelião aconteceu. Uma batalha entre trabalhadores e militares (que defendiam os nobres), onde muitos se feriram e outros morreram. A batalha estava empatada, porém, os trabalhadores não desistiam, lutavam com muita bravura. E infelizmente no auge de tudo isso, Augustos José Almerindo Santos, meu “tata...tataravô”, adoeceu no meio de tudo aquilo. Ele contraiu tuberculose, doença para a qual, na época, não havia cura. Quando os trabalhadores quase venciam os nobres, Augustos morreu. Mas deixou um filho de 18 anos chamado Joaquim Eduardo Almerindo Santos, que concluiria sua obra. Talvez ele tivesse a certeza de que seu filho não fracassaria. Joaquim então passou a liderar o povo. Encarou com firmeza o seu

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26 cargo. Lutava pelas pessoas, mas principalmente para vingar a morte de seu pai. Queria completar sua obra tão sonhada que não conseguiu terminar. Então o dia final chegou: todos estavam cansados, mas os trabalhadores perseveraram até a última “gota” de força. Os militares já não conseguiam mais lutar e desistiram. Os trabalhadores vibravam e festejavam pela vitória. Depois de tudo isso, construíram a tão sonhada Venda Nova, que foi dedicada a seu pai Augustos. Conta-se ainda que todos faziam da venda um referência dizendo: “Vamos parar na Venda Nova! Vamos parar na Venda nova!” Devido então a essa expressão, aquele local começou a ser chamado de Venda Nova”. Essa realmente foi uma história incrível. E histórias assim acabam virando “contos”, como se nunca houvesse acontecido. Pessoas reais viram apenas heróis fictícios. Mas não devemos deixar de acreditar que isso ainda pode acontecer como no passado. Talvez nos dias atuais surjam pessoas com a mesma coragem de Augustos, capazes de quebrar regras. E como será Venda Nova no futuro? Pode continuar a mesma, mas também pode se transformar em algo melhor do que já é. É só acreditar...! E então, gostaram? Eu posso afirmar que essa é uma história verdadeira, mas... Acreditem se quiser!

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27 HISTÓRIAS E ESTÓRIAS Vânia Pereira Silvério Moradora de Venda Nova há vinte anos, minha idade atual, fico fascinada cada vez que ouço uma história ou estória de acontecimentos em Venda Nova. É realmente fascinante desde as histórias, onde visualizo com detalhes, do cotidiano de uma Venda Nova recém-descoberta, rodeada de matas e um córrego Vilarinho de águas cristalinas (que emoção!), até as estórias como a do capeta da quadra do Vilarinho, fantasmas das fazendas, casas mal assombradas, entre outras. Todas constituindo a história de um povo trabalhador e bem humorado que habita a antiga mas sempre Venda Nova. É, com efeito, que todos conhecem ou viveram essas hilárias, emocionantes e assustadoras histórias ou estórias. E eu, como legítima moradora vendanovense, venho relatar minha ativa participação em acontecimentos que constituem, também, parte nestas histórias contadas, sejam elas vividas ou inventadas, por nosso povo. Na rua Maria borboleta, no bairro Novo Letícia, há uma casa enorme, dois andares, paredes sem reboco, quintal cheio de árvores com todo tipo de mato dando ao lugar um verdadeiro ar sombrio, que provocava real excitação em todos nós que acreditávamos que aquela casa era mal-assombrada. Diziam, que todos os membros daquela casa haviam morrido, mas continuavam naquele lugar. À noite, afirmavam alguns, já terem ouvido os passos dentro da casa e ranger de correntes sobre o telhado. Muitos diziam não acreditar, mas não

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28 arriscávamos, passávamos do outro lado da rua e a noite, o jeito era sempre passar correndo. A casa ficou vazia por vários anos. Hoje, uma família mora na parte inferior da casa. Dizem que foi invadida. Não sei como conseguem morar lá, talvez seja porque eles nunca ouviram essa nossa história ou estória. Vizinha dessa mesma casa está o SESC de Venda Nova, outro lugar que afirma uma funcionária, já ter visto um vulto de machado na mão entre as matas do SESC. O tal fantasma do Sr. Raimundo Fernandes, antigo gerente do SESC, causa polêmica até hoje tantos anos após sua morte. Eu sou atriz e certa noite participava de um ensaio no teatro “Os Lusíadas” do SESC, no meio do ensaio uma porta se fechou sozinha, verificado por todos os presentes não havia passagem de ar para culparmos o vento. O ensaio continuava apesar do medo e nesta mesma noite ouvimos ruídos como se estivessem quebrando os banheiros da entrada, onde não havia mais ninguém. É verdade que dizem que todos os teatros abrigam um fantasma, mas pode ser bem verdade que o do Lusíadas seja o Sr. Raimundo, tentando nos pregar uma peça neste dia. Bom, verdade ou não, as situações foram vividas e o susto da hora faz com que a gente acredite em qualquer coisa. Não afirmo que o fantasma do Sr. Raimundo exista, mas confesso que não entro nunca nesse teatro sozinha. È sempre melhor prevenir do que remediar. História ou estória, sabe-se lá?

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29 UMA ÁRVORE PODEROSA Florisbela Vieira Sales Serra Minha protagonista é uma árvore mais que centenária, situada no bairro São João Batista, em Venda Nova. Seu nome? Ela é conhecida, popularmente por Pau d’óleo. É um exemplar de porte rijo e vigoroso, que venceu, através dos tempos modernos, a batalha pela sobrevivência. Impera num lugar onde já não há tanto espaço para vida verde. Muitos transeuntes que passam por ali têm o prazer de olhá-la. Deleitam-se diante de tanta majestade. Oxalá pudessem perceber que existe algo selvático naquela maravilha que produz um êxtase à alma e, logo após, transforma-se em uma calma assustadora, dando-nos a sensação de estar diante de um pedacinho do paraíso de Deus. É assim o Pau d’óleo para mim. Pena que hoje viva solitário em meio a uma confusão cinza e barulhenta, todavia é capaz de transmitir uma atmosfera de paz podendo assim irradiar sensações preciosas aos moradores daquele lugar. É com grande comoção que relembro minha infância, cujos melhores momentos passei perto dessa amiga poderosa. Relembro bem como vivia a nossa heroína: rodeada de companheiros altos, fortes, rasteiros torcidos, retorcidos dos mais variados tons de verdes e marrons. O “habitat” era mesmo aconchegante, com as mais variadas formas de folhas agitando-se ao som provocado pelo vento. Admirável era a quantidade de pássaros e borboletas

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30 que iam e vinham agitando o lugar, envolvendo-o numa sinfonia indescritível. Interessante, também, era poder observar os animaizinhos de asas que viviam em derredor. Na época, eu não tinha nenhum interesse por eles. Posteriormente, descobri que eram importantes, como eu também sou na natureza. Convém constatar, eles faziam parte do cenário, embora não fossem percebidos diante da beleza da minha amiga. Vale lembrar que os fenômenos apareciam: a chuva caía, o sol brilhava, o vento roçava pra lá e pra cá, e nada se perdia. Era como se cada milagre celeste tivesse um papel preponderante na vida de cada ser presente; sobretudo daquela beleza que a cada dia parecia mais próxima de um céu distante e misterioso. Nós, da Vila Santo Antônio, crianças felizes e saudáveis, normalmente aparecíamos por lá. Chegávamos afoitas e logo o rebuliço começava. É claro que os olhos buscavam primeiramente aquele Pau d’óleo místico: subíamos nos galhos mais baixos e ouvíamos o vento agitar de mansinho o cimo da árvore, escutávamos o grilo com seu canto estridente, brincávamos de esconder nas moitas cerradas, deitávamos e admirávamos as folhas miudinhas da amiga, embora respeitássemos a sua pujança e grandeza. Engraçado! As crianças dessa época, eram tão inocentes que procuravam tesouros escondidos no meio do mato. Mania estranha essa de procurar na natureza coisas mágicas, que parecem apenas existir nos livros de histórias de fadas! Mas, como diz a Bíblia, há tempo para todas as coisas debaixo do céu. Um dia a história mudou. Derrubaram o cenário da árvore e construíram um

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31 conjunto habitacional no lugar. Abriram estradas. Apareceram casas ao redor. Vale dizer (se assim posso dizer): coisas do progresso! A nossa velha amiga felizmente foi salva. Sobreviveu graças aos sentimentos ecológicos de alguns moradores da região que lutaram pela sua permanência. O lugar progrediu aos olhos dos homens, contudo, ela só teve perdas: perdeu os companheiros verdes, os cipos, as borboletas. Nós, as crianças da vila, crescemos e não voltamos ao lugar. Estamos ocupados com outros sonhos. A poeira e a fuligem do asfalto estão sempre rondando-a. A violência urbana está próxima dos seus galhos. Mas, mesmo assim, ela está lá, firme e forte. Foi preservada e ninguém conseguiu apagar a beleza exuberante da minha protagonista. Venda Nova deve se orgulhar de possuir em suas terras um tesouro de tão grande valor, porque a história dela foi escrita nos corações daqueles que a conhecem. Esse presente da natureza faz parte do nosso patrimônio cultural porque a ação do homem impediu que o cimento e a pedra a derrubassem. Enfim, ela resistiu ao tempo e ainda vive para mostrar a todos a importância de proporcionar uma sombra, um aconchego, e, sobretudo, um ar puro para os que vivem no planeta Terra. Quem não a conhece, passe por lá e a contemple. Veja com os olhos do coração. Sinta o que é imponência, altivez e tranqüilidade.

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32 TODAS AS SAUDADES DO MUNDO Vilmar Luiz de Sousa O sol se aproximava do poente. Chegaria ao distrito de Venda Nova à noite. Em pequeno cálculo mental adicionou o tempo que levaria para arrear a tropa ao que perderia pelo caminho: “No morro da fazenda de Joaquim Cândido é difícil acertar a trilha no escuro. O gado fica ruminando no deitado na estrada e não se move para a passagem. Os cachorros do Senhor Manoel de Matos podem desviar a égua madrinha, além do Ribeirão Pampulha, um atoleiro para quem erra a vereda de baixo”. Apertava a charrua do último animal quando “Coroné Candinho” se aproximou, garrou prosa e estendeu a conversa perguntando por quantos conhecia em Venda Nova. Quis saber de Zé Cleto, do povoado, das famílias, da igreja e ainda deu-lhe a nova de que Del Rei estava sendo visitada por ilustres figurões, responsáveis pela construção da nova capital do estado. Deixou o coronel ainda falando e soltou a guia da tropa. Num instante, enfileiraram-se todos os cargueiros em direção ao norte. O velho já ia indagar por detalhes quando percebeu que não dava mais tempo. Abílio havia passado a perna no pelego, em apenas um golpe, e já esporava o cavalo em rápida arrancada. O polaque da cabeça de tropa soava distante. Era de confiança a danada da madrinha. Sabia o melhor caminho para casa sem se desviar nas encruzilhadas. As encomendas chegariam...

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33 A Serra do Curral ficava cada vez mais azul acinzentado brilhando de um lado só, onde os raios fracos do sol se despediam. Não há qualquer outra visão mais bonita. Nada o afastaria desse lugar e por temê-lo, já pensava em quando não pudesse mais voltar. Correu os olhos pelo balanço das cargas. Nada de irregular. Provavelmente precisaria apertar a barrigueira de alguns. Evitava paradas inúteis. Muitos pontos críticos já haviam sido vencidos. Creditou na conta de Deus e agradeceu, mas o Ribeirão Pampulha prometia problemas. Não se detinha nas dificuldades e se imaginava chegando, desarreando os bichos, dando banho e colocando no pasto. As cargas poderiam dormir no tempo. Estavam cobertas com bolsas de couro cru. Já não identificava corretamente o lugar em que se encontrava. Contra a claridade das estrelas viu um cruzeiro no topo da colina. Estava no Cachoeirinha, certamente. Lembrou-se de que as almas de recém-nascidos, mortos sem batismo, vagavam por toda noite. “Não há de ser nada”. Além do mais, tinha uma oração para essas ocasiões: “Valei-me mar sagrado Valei-me Virgem Maria Valei-me Jesus Cristo Valei-me estrela guia Valei-me cordeiro divino Valei-me Jesus amado

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34 Que neste mundo veio Logo foi alumiado Da lua e das estrelas Todo foi arrodiado Varinha de condão Força de Sansão Valei-me No alto daquele morro Há um cruzeiro armado Virtude que ele traz Jesus crucificado Quem esta reza rezar Um ano continuado Nesta vida será rei Na outra será coroado Três dias antes que morra Aparecerá a Virgem Maria Dizendo: filho, confessa seus pecados que deus mandou te buscar Sua alma será salva Posta em bom lugar. Amém.” Sentia a alma em silêncio. Nenhum medo. De repente, os animais começaram a se amontoar em círculo. O coração de Abílio bateu forte. Teriam pressentido algum perigo. Não forçou-os com gritos ou estalos de soiteira

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35 como de costume. Algumas mulas se deitaram com a carga e levantá-las era trabalhoso. Nada enxergava direito. Torceu para que não quebrassem parte da carga. Desceu do cavalo e foi apalpando com uma mão e segurando a rédea com a outra. Tateava ainda quando deu de cara com a porteira de varas com que Manoel de Matos cercou um pequeno talhão. Sentiu alívio. Pelo menos sabia que ali não haveria risco de atolar. A égua madrinha seguiu a trilha da plantação e na verdade não houve as temidas dificuldades imaginadas. Avistou ao longe um fogo aceso. Outros tropeiros acamparam nas margens do Córrego Vilarinho para seguirem para o Rio das Velhas. Convidouos para a festa de Santo Antônio que se realizaria na capelinha e correu para alcançar os animais que já estavam se misturando aos demais. Naquele dia, dormiu em paz. As encomendas do patrão, festeiro de Santo, estavam no celeiro e D. Lucinda madrugou para a missa da manhã mexendo em tudo com leveza para não acordá-lo. Naquela época, a leveza de D. Lucinda o irritava. No casebre deles não faltavam sandices: a banca de lavar vasilhas fora feita de modo que se não estivesse sendo utilizada, a água se desviaria num bambu lascado até o pote. Assim era sempre fresca a água de beber. Não cansava de mostrar sua invenção às visitas e fechar o causo com uma gargalhada totalmente sem dentes. Dizia que cada pedaço de enchimento de seu rancho fora preenchido com lutas e bravuras. Colecionava uma extensa lista de inimigos contra os quais teve de lutar. Abílio desconfiava de que esta lista aumentava a cada versão da história.

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36 Quando as pessoas iam embora, sentava-se na porta e olhava o caminho. Parecia estátua nesta espera pelo filho. O tempo passou e agora Abílio era um velho. Ou pelo menos se sentia assim. O progresso tratou de dar fim ao seu ofício. Tentou algumas vezes retomá-lo, mas não tinha mais idade nem alguém a esperá-lo. Fato é que Abílio ajuntava em si todas as saudades do mundo. Tudo o que passou eram visões de muitos lugares e de vários sentimentos que escaparam. Queira ver de novo como era Abílio jovem. De onde partira e nunca mais poderia encontrar-se. O consolo era que, pelo menos, fora longe buscar os sonhos e parecia que se perdeu. O desejo precisava de dinheiro e o dinheiro estava lá. Ele, garoto pobre, foi atrás, despedindo-se de alguns sonhos e fazendo outros. Deixando-os sozinhos a esperar em cada lugar que passou um dia. Ainda não voltou para retomá-los nas mãos. Em dias de falta de amor, ouve seus gritos lá no fundo e então os lugares de Venda Nova, as pessoas, as situações e os sentimentos se enchem de um brilho maior e de intensa ternura. Aí, ele percebe que o ontem valeu a pena porque sonhou e o hoje está ganho por ter sonhado.

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37 CONTO DAS ÁGUAS Luciana Cirino Lages Rodrigues Costa A história que lhes conto aqui, nas seguintes linhas, é possível de ser vista nos meses de dezembro a fevereiro, em um lugar chamado Venda Nova. Eu moro nessa região desde meus 6 anos, e já vi muita água passar por debaixo das pontes e por sobre a terra, e há alguns anos, por sobre o asfalto. É bem verdade que, hoje, muitas pontes foram substituídas por galerias subterrâneas, que nos impede de ver a água dos córregos, sejam limpas ou sujas. Quando pequena, esperava com ansiedade a época das chuvas, porque assim eu poderia tomar “banho de cachoeira” formada pelas águas da enxurrada. Claro que meus pais não poderiam saber disso mas, sempre tinha um irmão ou uma irmã “x9” para “informá-los” dos meus feitos. A água esteve muito presente em minha vida, especialmente em minha infância. Lembro-me das vezes que eu ia pescar peixinhos com peneira, aos 8/ 9 anos de idade, no córrego que hoje está coberto pela Av. Cristiano Machado. Lá ia a menina com sua peneirinha na mão, olhando para os lados para fugir dos olhos dos fofoqueiros ou procurando alguma companhia. Chegava ao córrego sem preocupar-se com a qualidade da água, apesar de saber que onde há peixe há vida! Até que um dia viu um sapinho que a assustou e fugiu de lá, como relâmpago em dia de chuva. Relâmpagos e trovões faziam a sonoplastia e os efeitos especiais nos

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38 dias chuvosos. Dentro de casa tinha também a contribuição do ritmo frenético das goteiras, que aumentavam sempre que a chuva caía com sua potência total! E eu que ficava querendo ir para a rua, curtir a cachoeira da enxurrada, mesmo tendo cachoeira particular para cada um dos sete filhos! Sete? É! Sete barcos de papel teríamos se cada um fizesse o seu para navegar nas poças da água da chuva. Poças que secavam sempre que o sol aparecia. Sol e chuva... O sol aparece nesse conto que lhes conto, nas inúmeras vezes em que eu desenho um, bem bonito e sorridente, para colocá-lo no terreiro ou na rua. Era na minha infância, como um ritual, uma oração. Era um pedido para Deus trazer algo mais confortável e menos molhado. Afinal, de água eu ficara por algum tempo, molhada.

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39 CONTOS DE VENDA NOVA Sueli de Abreu dos Reis Me lembro de anos atrás, eu gostava de ir ao campo de futebol, lá tinha festivais e muitas brincadeiras. Tinha o pau-de-sebo que era engraçado, a criançada subia e logo descia por causa do sebo passado na madeira. Meus irmãos eram espertos e deixavam que os colegas subissem para limpar o sebo, então eles subiam nas costas dos outros e pegavam a nota e isto era uma festa. O jogo de malha e o perna de pau tinha muita animação. As pessoas aproveitavam para vender coisas como: caneca de lata de massa de tomate e leite em pó. Era uma tristeza lavar aquelas canecas, pois elas enferrujavam e tinham que ser areadas com areia mesmo, que sufoco! Não me esquecendo da fantástica queima do Judas, quando, na praça, era feita a leitura do seu testamento deixando várias coisas como carroças, bacias, roupas, penicos e outros pertences que eles roubavam a noite nas casas. Então era feita a entrega para os proprietários, perto da capelinha que tinha na pracinha, onde hoje é um bonito jardim. Lembro-me também do chafariz. De dia, ficavam filas de pessoas com latas para pegar água, pois não havia água encanada nas casas. Fazíamos uma rudilha de pano e colocávamos na cabeça para equilibrar a lata d’água. Ficávamos com o pescoço encolhidinho por causa do peso da lata d’água. O chafariz ficava na rua Santa Cruz e lá tinha um bambuzal que muitos diziam

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40 ser assombrado. Eles afirmavam que lá aparecia um caixão no alto desse bambuzal. Venda Nova era muito animada. Tinha serenatas que os rapazes faziam para as moças, as quadrilhas marcadas pelo Senhor João Gualberto, as contra danças eram uma maravilha! A esposa do Sr. João não deixava ele dançar com nenhuma moça, pois ele era muito assanhado. Ele tinha apelido de João da Chica e sua esposa, Mariana Amélia de Azevedo, era conhecida como dona Inhá. Que animação! A Folia de Reis dançava noite e dia e tinha que dar um trocado para os dançarinos, senão eles não dançavam. Os comícios na pracinha de Venda Nova eram assim: o partido da vassoura de um lado e o partido do pintinho de outro. Ninguém falava em quem ia votar, era sigilo. Os parques que chegavam em Venda Nova eram uma festa. As moças ficavam esperando que os rapazes mandassem tocar músicas para elas. As moças ficavam passeando de braço dado de um lado para o outro e os rapazes, muitos até de terno, ficavam nos cantos da rua mexendo com elas. Falavam assim: “oi de cá, fala para a de lá, que eu quero conversar com a do meio.” A gente fingia que não tinha visto. Tinha uma figura interessante na praça. Era um senhor que se chamava tio Domiro. Mas, se chamasse ele de galo capão, era pedra voando para todos os lados, era uma correria. Venda Nova tinha também seu lado triste. Tinha os enterros que eram conduzidos pelas ruas. O cortejo seguia ao som do sino da Igreja até chegar ao cemitério. Venda Nova inteira ficava sabendo que tinha morrido alguém. Mas também nascia muitas crianças pelas mãos de Dona Inhá, a parteira de Venda

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41 Nova. Chegava gente de toda a redondeza e ela montava na garupa do cavalo e ia atender o chamado. Venda Nova não tinha maternidade e nem muitos comércios. Havia poucas vendas e butecos, padaria era uma só. A lenha para aquecer o forno era trazida por tropas de burros e o pão era levado de porta em porta dentro de balaios. Os pães eram pãozinho ou pão de meio quilo. Escolas, haviam duas: Santos Dumont, no centro de Venda Nova, e Sinimbú, que era muito longe e tinha-se que passar no meio do mato e em uma estradinha de terra. Mas éramos muito felizes, conhecíamos toda a comunidade de Venda Nova. Que saudades tenho da minha velha Venda Nova.

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42 SIMPLESMENTE MEMÓRIA Lecy Pereira Sousa Para dizer a verdade, não são poucas as pessoas que ajudam a compor a história de uma região ou de um bairro. O bairro Lagoa em Venda Nova, por exemplo, um dos mais simples da região, é pródigo em fatos dignos de nota, que remontam à época do seu surgimento e foram vividos ou testemunhados por vários cidadãos comuns, mas com uma memória extraordinária. Apenas uma dessas evidências é o Seu Carlos, 35 de Lagoa, ex-policial militar e eletricista aposentado. Trata-se de um desses cidadãos que atuam nos bastidores, mas sem eles as coisas não andam e o bairro não se desenvolve. Seu Carlos fala sobre um tempo em que, onde hoje viceja um campo de futebol, reinava uma perigosíssima lagoa, verdadeiro cartão-postal e atrativo para turistas onde, todo fim de semana, alguém morria afogado. Por se tratar de uma época em que energia elétrica, água tratada e encanada, rádio e televisão eram artigos de luxo, as mortes na lagoa eram acontecimentos que movimentavam todo o bairro e, por mais macabro que pareça, tudo era motivo de lazer. Afora as pescarias diárias, já que peixe não faltava. Traíras, lambaris, sarapós e tilápias incrementavam a fauna de água doce do local. Para matar a fome, muitos desses pescados eram fritados na famosa banha chapecó que tinha cheiro insuportável. Procurando contornar a frustração de não localizar o corpo de uma

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43 pessoa afogada no mesmo dia, os bombeiros criaram o mito de uma gigantesca serpente marinha que habitava a lagoa e devorava os corpos. Os moradores acompanhavam as buscas sem perder um detalhe. De repente, um dos bombeiros emergia das águas e gritava: “Olha a cobra!” Era o suficiente para que as pessoas corressem apavoradas. Para se ter uma idéia da dureza daqueles tempos, as missas eram celebradas praticamente no curral de uma fazenda, onde hoje está a Escola Estadual Professora Adir Andrade Albano. Trabalho e compra de mantimentos só era possível no centro de Belo Horizonte. Quanto ao ônibus, só o que atendia o bairro Justinópolis, em Ribeirão das Neves. A situação era tal que se comprava o frango vivo em BH, embrulhava-o em jornal e quando se chegava no bairro Lagoa ele já estava mortinho, tamanha a demora nas filas dos ônibus e a lotação. Seu Carlos, mesmo, foi protagonista de uma tragicomédia. Ao ir trabalhar num ônibus abarrotado de gente, sua marmita ficou presa do lado de fora da porta. Alguém, espertamente, passou a mão no rango. Naquele dia o eletricista ficou com os nervos em alta voltagem. No decorrer do tempo, muitas coisas mudaram naturalmente ou pela intervenção humana. Muitas soluções foram encontradas e novos problemas urbanos surgiram. Ainda assim, seu Carlos nem pensa em sair do bairro que viu surgir ao seu redor. Uma de suas mais recentes alegrias é que, após muitos anos, a antiga rua Sete, local onde sempre morou, está sendo preparada para receber o asfaltamento. Esse dia seu Carlos, cidadão comum, jamais esquecerá.

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44 O CASARÃO DO EUROPA William Pascoal da Silva Era idos de... Ah! Nem me lembro da data ao certo, só sei que era ali que a gurizada vivia de roubar goiabas e nadar na lagoa ali existente. A casa imponente (e abandonada) era o que mais impressionava a garotada e quem por ali passava. Os mais velhos do lugar afirmavam, com convicção, que o casarão era assombrado, pelo fato de um jovem donzela ter-se enforcado num dos esteios da casa, e que a causa do enforcamento foi um amor não correspondido. A história daquele lugar era controversa, pois havia os que confirmavam o suicídio da moça, por outro lado, outros afirmavam ter ali enterrado uma mala cheia de ouro, fruto de um pacto do proprietário (que queria ter poder e fortuna) com o “coisa ruim” e que o dito não cumprira o trato, ficando louco à gritar pelos caminhos do lugar (era a explicação para os gritos ouvidos à noite, sobretudo em noite de lua cheia). Isso só aguçava a nossa curiosidade de menino em descobrir o exato paradeiro da tal mala, que seria gasta com alegria em manivelas, linhas, papagaios, sacos de coloridas bolinhas de gude e carrinhos de guia. Qual garoto não sonhara com tal diversão? Até mesmo gente adulta ficava encantada com tais brinquedos de meninos! A ansiedade e a curiosidade eram forças que nos empurravam para aquela aventura. O medo, ao contrário, nos retraía da ação.

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45 Chegamos a montar um plano de ação (os filmes do Cavaleiro Negro e do Zorro assistidos em preto e branco – por aquela renca de garotos – na única televisão da rua, eram a nossa inspiração), para a semana seguinte, começamos a sonhar com a invasão daquela imponente e medonha casa; só faltava ela, já que sua lagoa e seus pés de goiaba nos pertenciam. Só a casa nos metia medo, que em breve iríamos derrotar. À véspera da empreitada, o final de semana parecera uma eternidade de tão longo. No domingo à tarde, as estratégias do plano foram cuidadosamente repassadas. A invasão tão sonhava, estava prestes a se concretizar. Dava “inté” arrepio na gente. Os pais descobriram o plano e alertaram para não “brincá com aquilo” que não se conhece. Para nossa surpresa, na segunda-feira pela manhã, fomos acordados por um barulho de estranhas vozes, ruídos de motores e martelos que desmanchavam o casarão da fazenda, que até ali, fora o maior mistério de nossas vidas juvenis e hoje conserva em nós lembranças e saudades daquele tempo. Será que os fantasmas continuam por lá? Mistérios!....

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46 ETERNAMENTE VENDA NOVA Liete Aparecida Bernardes de Paula Houve um tempo... em que eu ainda não existia, mas Venda Nova começava a engatinhar num povoado bem distante, onde havia uma pequena venda bem simples, mas que vendia de tudo um pouco. Era um povoado com poucas casa, mas cercado de muita natureza: extensas matas verdes, que abrigavam diversos animais, pastos imensos para sustento do gado. Tinha um córrego de nome Vilarinho, onde corria água transparente e sem poluição. E nele... os moradores gostavam de pescar. No meio deste povoado tinha um caminho; era uma estrada de terra por onde passavam bois e boiadas, tropeiros e viajantes, que iam e vinham, trazendo novidades do mundo de lá. Os moradores, eram amigos de verdade uns dos outros, e assim, formavam uma comunidade unida, que tinha o mesmo sonho: fazer daquele povoado, um lugar que perpetuasse na memória do tempo e das pessoas. Mas, o sonho do dono daquela pequena venda, era construir uma venda maior para atender melhor os moradores do povoado e ter mais comodidade para acolher os viajantes e tropeiros, que por ali passavam. Passa-se o tempo... E no passar do tempo, a nova venda foi inaugurada, para alegria de toda a comunidade. E depois deste dia, os moradores quando saíam tinham o prazer de dizer: Vou na venda Nova. Venho de Venda Nova.

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47 Comprei na Venda Nova.... “ e como a voz do povo é a voz de deus”, o povoado passou a ter um nome: Venda Nova. Era o primeiro passo de Venda Nova, e que por três centenas de anos, ainda iria caminhar até chegar ao progresso. E décadas foram passando e, em cada uma delas, Venda Nova viveu um novo tempo, tempo de crescer, mudar, progredir e tempo de se transformar. Casas começaram a brotar por toda parte, se misturando às árvores, mudando o cenário de Venda Nova. Tempos difíceis foram vividos, pois não havia água encanada, luz elétrica, nem rede de esgoto. Mas, mesmo assim, muitos lotes foram vendidos, ao redor de Venda Nova, pois os compradores tinha certeza de que um dia o progresso ia chegar. E assim... Venda Nova não parava mais de crescer, novos comércios iam se abrindo, bairros iam surgindo ao redor e moradores iam chegando para neles habitar. Pontes foram construídas e pinguelas foram feitas sobre o Córrego do Vilarinho. Girando ao redor de Venda Nova. O meu bairro surgiu lentamente como um pequeno planeta. Sabem que bairro era? Era a Vila Satélite composta pelas ruas Marte, Mercúrio, Urano, Saturno e Vênus. O bairro tinha muitas árvores e áreas verdes, mas as paineiras eram todas cor de rosa, parecia roça. As casas eram poucas e distante uma das outras e das poucas que tinham, umas, só eram habitadas nos finais de semana por famílias que queriam descansar da cidade. E, nos sábados, elas vinham trazendo as crianças para desfrutar desse pedaço de Venda Nova. E aqui as crianças jogavam bolinha de gude, pulavam amarelinha desenhada no chão e caçavam borboletas. E à tardinha, as crianças da cidade brincavam de roda com as crianças do bairro. E todas eram felizes.

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48 Mas quatro décadas se passaram, chega o progresso e tudo se transforma; o Cine São Pedro vira praça da igreja. O Córrego Vilarinho vira uma extensa avenida e o Shopping Norte passa a ser o norteador de Venda Nova. Sem fotos para registrar a evolução de sua história, Venda Nova quase nada guardou de sua forma original, mas na minha memória, guardo os fatos que vivi e outros de que ouvi falar: − Na margem da Estrada Velha de Santa Luzia, onde é hoje o Pronto Socorro de Venda Nova, havia um enorme pasto. Era o pasto do Moura e lá havia um campo, onde uma multidão se concentrava para assistir a uma partida de futebol. Seguindo em frente e virando a direita entrava-se na rua Lagoa Santa onde morava e ainda mora minha amiga Ana Luzia, e lá havia uma ponte, bem ali, onde hoje é o movimentado cruzamento da Vilarinho com a atual Maçon Ribeiro, ex-Lagoa Santa. Passando esta ponte e caminhando um pouquinho, chegava no posto telefônico, onde atualmente é o prédio Hermes Pardine. Era uma casa onde gostava de ir com minha mãe para telefonar. O telefone era um aparelho de cor preta com uma manivela, a qual era girada insistentemente até dar linha e depois de muitas tentativas conseguia-se falar. E em frente ao posto telefônico, onde hoje funciona o UPA, era um terreno baldio, onde circo e parque vinham habitar para a alegria e diversão de toda Venda Nova. E tinha também um cruzeiro para o qual os homens tiraram o chapéu. Ele ainda continua lá onde a rua Maçon Ribeiro e a Padre Pedro Pinto se encontram.

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49 Lembro também de um fato que minha mãe contava, sobre uma cantora mineira que fez um show aqui em Venda Nova e no dia seguinte, no seu programa de rádio, fez um agradecimento à hospitalidade do povo da cidade de uma rua só. Era Venda Nova e a rua Padre Pedro Pinto. Ônibus só passava na rua Padre Pedro Pinto. Era um ônibus monobloco movido a óleo diesel, seu barulho parecia ronco de avião e seguia a lentidão da avenida Nossa Senhora da Piedade atual Dom Pedro I, rumo a Belo Horizonte, soltando fumaça preta para o ar. Não tinha roleta, ao pagar a passagem os passageiros recebiam do cobrador uma ficha colorida para, na hora de descer, ser colocada numa espécie de cofre que ficava perto do motorista. Na rua Cascalheira com Padre Pedro Pinto, lembro que tinha a farmácia Santo Antônio, nela trabalhavam dois farmacêuticos, um negro e um branco, ambos de nome Antônio. No local onde havia esta farmácia, hoje é um açougue. O Grupo Escolar Santos Dumont foi, por muito tempo, a única escola de Venda Nova e funcionava onde hoje é o CESU. E agora funcionando em outro local, é Escola Estadual Santos Dumont, uma das mais conceituadas da região de Venda Nova. E eu... me sinto feliz porque fiz o primário lá. Não podia me esquecer da loja Bisteni, que ficava na rua Padre Pedro Pinto esquina com a rua que desce da Igreja Santo Antônio. Hoje só restam muralhas que sustentam outdoor. Recordo também do bar do Paulo Japonês, era o ponto de referência mais tradicional de Venda Nova. Era fascinante ver as lenheiras passarem todas as tardes. Eram mulheres brancas de pouca, muita e de meia idade. Usavam saias longas e rodadas e

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50 carregavam na cabeça feixes de lenha, iam uma atrás da outra, pareciam formiguinhas. E eram chamadas lenheiras, porque vendiam lenha para as pessoas de Venda Nova cozinhar. A idade de venda Nova, com certeza não sei, o que importa é que ela foi, é , e sempre será, eternamente Venda Nova!!!

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51 EXISTE ASSOMBRAÇÃO? Lucília Alves Miranda Foi com imensa alegria que recebemos a grande notícia! O circo do Carequinha estava chegando no bairro. Minha irmã caçula e eu ficávamos olhando de longe com uma louca vontade de ver o que se passava por baixo da lona. As músicas animavam fazendo a alegria da criançada que marchavam em direção ao circo. A bandinha tocava a canção “o bom menino”, do Carequinha. O cheiro da pipoca misturava-se com a poeira do “campinho” (hoje panificadora O pão de todos, São João Batista). Com jeitinho de moleque, despistamos o vigia, passamos por baixo da lona, e deslumbradas conseguimos ver um número de trapézio. Estávamos encantadas com a leveza e a coragem daqueles artistas. A criançada batendo palmas, admiradas e contentes gritavam: Viva! Viva! O palhaço Carequinha era mais bonito do que eu imaginava, e como ele era divertido! De repente, uma mão bem grandona e peluda pegou-me pelo suspensório do uniforme. Suspensa no ar, vi que minha irmã estava na outra mão do vigia grandalhão. Aquele homem peludo nos jogou para fora do circo, fazendo ameaças. Resolvemos então, seguir a rua do cerrado, em direção à igreja do padre Mathias. Tamanha foi nossa surpresa! Percebemos que não havia ninguém na igreja, sendo dia de missa. Resolvemos então, apanhar flores perto do

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52 cemitério na rua da Matriz, mas desistimos porque ventava muito e tínhamos pavor da assombração. Não havia outro jeito de voltar para nossa casa na rua Olhos d’água, sem passar pelo circo. Resolvemos então, enfrentar o medo e seguir a trilha do Pau D’óleo ( lugar onde hoje está construído o conjunto Bolivar de Freitas ). O vento estava cada vez mais forte. Vez por outra, passava por nós um redemoinho levando folhas e gravetos e muita poeira para o céu. Parecíamos ouvir a voz do vento com seus uivos e gemidos. De repente ficamos “petrificadas”, com os olhos arregalados, fitávamos um frade, com um cordão de São Francisco na cintura e um rosário na mão. Passou por nós sem nada dizer, sabíamos que aquele lugar era mal assombrado, mas nunca havíamos visto aquilo, assim de perto. Não sei como foi, só sei que de uma hora para outra criamos asas nos pés e voamos em direção à nossa casa. Passando pela rua do “Zé capeta” (rua Pedra do Indaiá), encontramos uma procissão que ia em direção ao orfanato Santo Antônio. O padre Mathias estava lá. Tremendo de medo, embolamos no meio daquele povo até chegar em casa. Naquele dia não conseguimos fazer mais nada, nem dormimos à noite. No dia seguinte fomos ao catecismo no orfanato. Logo que terminou o catecismo nossa catequista nos levou à capela. Começava a missa, quanto entrou o padre. Darcy me cutucou, olhei e não contive o riso. A assombração que vimos no Pau D’óleo era nada mais nada menos que o “Frei Otto”, capelão do orfanato Santo Antônio. Ficou-nos uma pergunta: será que assombração existe mesmo?

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53 VÁ À VENDA NOVA! Eleciana Tavares da Cruz Quando passamos na Rua Padre Pedro Pinto em Venda Nova, o vai e vem das pessoas é tão grande e com tanta rapidez que não temos tempo para nos perguntar se o centro deste distrito sempre foi assim. A resposta é lógica. Claro que não! No entanto, quem foram as pessoas que contribuíram para o desenvolvimento desta região? A urbanização rápida e recente permitiu que ficassem apenas poucos vestígios da história de Venda Nova. E quem possibilitará a reconstrução desta história serão os próprios moradores. Naquele dia Pedrinho estava preocupado. Sua professora havia dado o trabalho para a turma fazer uma investigação sobre Venda Nova. Não tivera tempo, esteve ocupado demais com suas brincadeiras de criança. Seus pais trabalhavam durante todo o dia e quando chegavam a noite mal queriam conversa com o filho. “Tentar eu bem que tentei, mas não havia ninguém que pudesse auxiliar-me”, pensava ele em voz alta. “Ah, vou dizer para a professora que fiz o trabalho, mas um vento muito forte fez com que ele caísse em um bueiro da Av. Vilarinho”. Naquele momento, acabava de atravessar a avenida, subia a rua Cascalheira para chegar à rua Padre Pedro Pinto. Já estava de frente para a escola, mas havia chegado muito cedo. Resolvera então subir para a praça da igreja e aguardar até que desse a hora para entrar para a aula. Sentou-se na porta da igreja que estava entreaberta. Havia apenas algumas pessoas, que pareciam fazer orações. Sentiu um pouco de remorso

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54 quando lembrou-se que iria mentir para a professora. “Mas vai ser por uma boa causa, afinal de contas preciso dos pontos para mudar de série. E depois, se eu repetir não ganharei minha bicicleta”. Resolve entrar na igreja. Passa pela água benta, benze-se e senta em um banco onde encontrava-se uma senhora. E foi assim que Pedrinho conheceu dona Josefina, uma senhora já de idade que freqüentava a igreja todos os dias para fazer suas orações. “Naquele dia encontrei-a no primeiro banco da Igreja de Santo Antônio, fitava a imagem do Cristo crucificado a sua frente. Sentei-me ao seu lado e, como de costumes, ajoelhei-me para iniciar minhas orações. Aquela senhora segurava entre seus dedos um pequeno rosário e embora não proferisse qualquer palavra, eu conseguia identificar em teus olhos uma grande fé. Parecia realmente que conversava com aquela imagem que ali se encontrava. Ao notar minha presença, começa a conversar comigo: “você me faz lembrar meu filho caçula. Seus olhos demonstram travessura assim como os dele”. E eu deixo minhas orações para me por a ouvi-la: “Pensas que quando eu vim para cá esta igreja era assim, toda pomposa cheia de luxo? Nada disso! Era apenas uma capelinha, tudo muito simples assim como o povo que aqui freqüentava. Não tínhamos nada, mas a gente era feliz e o nosso povo tinha muito mais fé do que hoje”. Parecia que naquele momento ela havia voltado no tempo. “Quando cheguei aqui, trazia comigo apenas alguns utensílios domésticos, meus cinco filhos e a esperança de uma vida melhor. Acabara de ficar viúva, meu falecido marido, que Deus o tenha, (e fazia o sinal da cruz, em respeito ao defunto) havia morrido na pedreira onde trabalhava no interior.

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55 E a única saída que tive foi vir morar em um pequeno rancho. Hoje, próximo a garagem do ônibus. Meu cunhado viva lá sozinho e arrumou para que eu pudesse morar com meus filhos. Restara-me somente uma pensão mensal para manter-me e à minhas crianças. Aqui não tinha nada, a grande avenida era tanto mato, que só deus vendo! Lenha? Tinha de sobra, que servia para nós cozinharmos, aquecer água para nosso banho e fazermos fogueiras nas épocas festivas dos santos. No meu casebre apenas encontrei um pequeno fogão à lenha, uma velha mesa com algumas cadeiras e uma cama onde dormíamos eu e meus filhos. Também, coitado do meu cunhado! Era pobre tanto quanto nós. Cansado do sofrimento em que vivia aqui, foi-se embora para São Paulo na esperança de melhorar de vida e deixou-nos o que possuía. Existia uma casa, a mais luxuosa da região. Era a que ficava mais próxima da capela. Mais abaixo tinha o brejo, onde podíamos retirar “tabôas” com as quais fazíamos esteiras para a gente dormir. Através deste brejo somente era possível passar pelas pinguelas existentes e, à noite, somente escutávamos o coaxar dos sapos e os grilos. Corujas! Era sinal de agouro. A vizinhança era pouca e afastada, mas isso não nos impedia de ser solidários uns com os outros. E em noites de lua clara, reuníamo-nos ao redor de uma fogueira para lembrar dos bons tempos do sertão. Cada um possuía sua pequena horta, sua criação de galinhas e porcos. Aos domingos, depois de ouvirmos o sermão do padre Pedro Pinto, podíamos contar proezas: qual galinha dera mais cria, qual seria o próximo porco a ser abatido. Já as crianças, faziam suas diabruras ao redor da capela e, muitas vezes, eram repreendidas pelo vigário (este que, por sinal, contribui

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56 com o desenvolvimento da região), que não se agradava com a situação. Com o passar do tempo, a casa que existia próxima da igreja foi derrubada e em seu lugar foi construída uma pequena venda, onde podíamos encontrar de quase tudo. Se fartava o açúcar nas minhas latas eu dizia pro Maurício, meu minino mais véio: vai na venda do Sô Zequinha, ele liberô pra gente inté qui saia o ordenado de seu pai. E nisso, todos que precisavam de alguma coisa procuravam a venda. Se faltava o querosene para o lampião, dizia ‘vai à Venda Nova’ que acha, a vela para a procissão: ‘vai a Venda Nova’, o sabão para a lavadeira: ‘vai a venda Nova’ e assim surgiu o nome. Depois da missa, todos se reuniam na Venda Nova para saber das novidades que haviam chegado, as crianças se enfaravam de doces de todas as espécies, os namorados marcavam seus encontros para os sorvetes. Os mais velhos trocavam novidades da capital. Sô Zequinha, o vendeiro, era muito bom para o Padre Pedro e sempre ajudava nas quermesses com alguma prenda, que era sempre a melhor. Em frente à venda foi construída uma pequena praça. Quando o padre Matias veio pra cá, a região ainda era muito carente e buscávamos água em latas nos poços artesianos ou em bicas da região. Aqueles que tinham melhores condições, compravam água, que era trazida da região da Pampulha, em caminhões pipa. Então o padre abraçou a causa dos vendanovenses e conseguiu, depois de muita campanha com os moradores, que a Copasa trouxesse a água até as nossas casas. ‘aquele dia foi tanta alegria, só Deus vendo!’ A região foi crescendo, ao lado da venda, que dera o nome ao lugar. Mais tarde foi colocada uma farmácia, a Pharmacia do seu Antônio, podíamos

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57 encontrar todo medicamento para nossas mazelas. As crianças já podiam estudar em escolas ministradas pelas irmãs de caridade e também ter sua iniciação na catequese. Aos poucos, era possível ter um parque de diversões, circos e cinemas. O desenvolvimento foi rápido, as casas foram sendo modernizadas. As avenidas e o córrego do Vilarinho foram pavimentados. Meus filhos cresceram, uns casaram, outros também foram embora por este mundo de meu Deus. Do meu filho caçula, fiquei muito tempo sem notícias. Houve uma época que as galinhas sumiam e não entendíamos o que acontecia. Achávamos que eram as raposas que estavam comendo. Mais tarde ficamos sabendo que havia um grupo que andava aterrorizando a região, e soube que Firmino, meu filho mais novo, era o chefe do bando. Começaram a praticar pequenos furtos e depois matavam suas vítimas, deixando-as sempre com uma marca de tortura. Devido a tais atrocidades, mais tarde foram denominados como Esquadrão do Torniquete.” Pedrinho ao terminar de narrar o que havia ouvido, conseguiu deixar bem claro para a sua turma e professora, que aquela era uma das histórias do suposto nome Venda Nova. E que todos os lugares que aquela senhora narrara ele conhecia muito bem, pois eram os locais por onde passava todos os dias para ir para a escola. Como aquela senhora já era bastante idosa, calculou que o surgimento da região se dera há mais de seis décadas atrás. Hoje Venda Nova está desenvolvida, encontra-se de tudo desde bancos até hospitais. No entanto, as pessoas passam umas pelas outras e sequer se conhecem. O tempo é muito curto, pois todos estão sempre com muita pressa, A Pharmacia agora virou Farmácia e o vendedor, não mais o farmacêutico,

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58 somente fica sabendo o nome do cliente pela receita. O “freguês” que agora passou a ser cliente, era reconhecido pelo seu caráter e não pelo que possuía. Dona Josefina acabou de relatar sua história dizendo que estava ali agradecendo à Deus por que soubera que o filho agora estava morto, pois preferia ver seu filho morto do que sendo um marginal. E dizendo que a modernização encurta os caminhos para se conseguir desenvolvimento material, mas distancia as relações humanas. Sequer conhecia-me, mas sentiu uma imensa vontade de contar sua história. E que, apesar dos benefícios trazidos pela modernização, era mais feliz em tempos passados. Hoje no lugar onde foi construída a Venda Nova, existe uma imensa loja de eletrodomésticos, o Ponto frio. No lugar da farmácia do senhor Antônio, está a drogaria Santa Marta. Pelo conceito da professora, que era irmã de caridade, Pedrinho não tirara total no trabalho porquê faltou algo escrito. No entanto, ele carregará por toda vida aquela história, porquê, a partir daquele momento, ele também fazia parte dela.

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59 A VELHA VENDA NOVA Lilian Aparecida de Lana Manhã ensolarada de domingo, pessoas caminhando pelas ruas e trânsito tranqüilo, com exceção do fusca verde que pára em um cruzamento sem saber para onde ir. O velho que dirigia o veículo aparentava uns setenta anos de idade e parecia muito perdido. O barulho da buzina dos carros mais apressados o deixava ainda mais atordoado. Acelerou e alcançou uma rua de menor movimento. Parou, desceu do carro, coçou a cabeça e olhou ao seu redor. Sentado no meio-fio havia um garoto arrumando sua bicicleta. - Garoto, você sabe como eu faço para chegar em Venda Nova? - Mas o senhor já está em Venda Nova. O velho mordeu o lábio inferior, pensativo. Caminhou até o garoto e sentou-se ao lado dele. - O senhor não é daqui? - Bom, na verdade, eu já morei aqui, mas faz muitos anos. Mais de trinta. Quando meu pai faleceu, no interior de Minas, eu tive que ir cuidar da minha mãe que ficou muito doente. Agora, um ano depois dela também ter partido resolvi voltar, porém, está tudo tão diferente... - E o senhor não gostou? Ah! Exclamou o velho pesaroso. Não sei te responder não. Sabe, no meu tempo era mais bonito. Cheio de árvores e de muito verde. Não tinha este

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60 tanto de carro buzinando na cabeça da gente. Tinha até um córrego onde pescávamos sempre. - E tinha peixe grande lá? - Claro! Disse o velho entusiasmado. Uma vez pegamos um peixe de... de... cinco quilos, isto mesmo, cinco quilos. - Que barato! Deve ser o córrego Vilarinho que minha mãe falou. Agora ele está canalizado e é uma grande avenida. - Que pena! E a venda do sô Bento, você sabe onde é? - Eu nunca ouvi falar desta venda. Eu nem sei o que é uma venda. - Não sabe? É o lugar que vende um pouco de tudo: arroz, queijo, feijão, milho e muitas outras coisas. Antes só existia uma venda pequena e velha aqui, aí o sô Bento construi uma venda grande e muito bonita. A notícia se espalhou e pessoas vinham de outros lugares para comprar. Eles diziam: estamos indo na venda nova. Todos passaram a comprar na venda nova. É de tanto as pessoas dizerem que iam à venda nova que o lugar passou a ser, definitivamente, chamado assim. - E a venda velha fechou? - Sim fechou. Disse o velho que havia se levantado e agora caminhava em direção ao carro. - Aonde o senhor vai agora? - Vou voltar para o interior. Prefiro guardar a velha Venda Nova na memória e com ela as boas lembranças deste lugar: os amigos, as pescarias e principalmente as recordações de Maria, o meu grande amor. Carrego comigo meu passado. Fique com Deus, garoto!

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61 O menino que olhava atentamente para o velho foi surpreendido pela mãe. - Com quem você estava conversando, filho? - Com aquel... O velho já havia desaparecido e, com ele, uma grande história. O garoto voltou-se para a mãe e fingiu não se lembrar da pergunta. Vamos mamãe, ainda temos que construir nossa própria história.

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