Psicologia e relações interétnicas dialogos interdisciplinares

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PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS (EM DEBATE) DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

Organização Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva



PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS (EM DEBATE) DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES

Organização

Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva



PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS (EM DEBATE) DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES


III Plenário do Conselho Regional de Psicologia 19ª região Presidente Alan Santana Santos - CRP 19/2076 (desligado em novembro 2017) Vice-Presidente Frederico Alves de Almeida - CRP 19/2849 Tesoureira Lidiane dos Anjos Santos Andrade - CRP 19/1742 Secretária Vanessa Ramalho Ferreira Strauch - CRP 19/2339 Conselheira/os Efetiva/os Adriana de Moraes Teixeira - CRP19/2867 Bruna Santana Oliveira - CRP19/2870 Danilo Rocha Ribeiro - CRP19/1904 Jayane Pinheiro Andrade - CRP19/2010 Michelle da Conceição Silva - CRP19/1756 Conselheira/os Suplentes André Faro Santos - CRP19/0773 (desligado em novembro 2017) Baruc Correia Fontes - CRP19/2890 Claudson Rodrigues de Oliveira - CRP19/2764 Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas - CRP19/2276 Maria Emília de Melo Boto - CRP19/1399(desligada em novembro 2017) Paula Ferreira Marques - CRP19/1670 (desligada em novembro 2017) Petruska Passos Menezes - CRP19/0636 Tais Fernandina Queiroz - CRP19/0741(desligada em novembro 2017) Conselho Editorial Dr. Alexandro Dantas Trindade – (UFPR/BRA) Dr. Altair dos Santos Paim – (IFBA/BRA) Dra. Dalila Xavier de França – (UFS/BRA) Dra.Elizabeth Hordge-Freeman - (USF/EUA) Msa. Ionara Magalhães – (UFRB/BRA) Dra. Maria Batista Lima – (UFS/BRA) Dr. Roberto dos Santos Lacerda – (UFS/BRA)

Conselho Regional de Psicologia 19ª região Comissão de Direitos Humanos Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Interétnicas Rua Osvanda Oliveira Vieira, 128, CEP: 49000-000 – Aracaju – SE relacoesinteretnicas@crp19.org.br crp19@crp19.org.br


Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva

PSICOLOGIA E RELAÇÕES INTERÉTNICAS (EM DEBATE) DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES


Todos os direitos de tradução, de reprodução e de adaptação desta edição em Língua Portuguesa reservados ao Conselho Regional de Psicologia 19ª região. Coordenação Editorial Patrícia da Silva Revisão Allyce Gomes Correia Isabela Cristina Ramos Moraes Naiane França

Projeto Gráfico Carlos Fabiano de Oliveira Fernandes Petruska Passos Menezes

P974 Psicologia e relações interétnicas (em debate) : diálogos interdisciplinares / organização Eleonora Vaccarezza Santos, Patrícia da Silva. – Aracaju : Conselho Regional de Psicologia, 2017. 240 p. : il. 1. Psicologia. 2. Psicologia racial. 3. Etnopsicologia. 4. Racismo. 5. Negros – Educação – Sergipe (SE). I. Santos, Eleonora Vaccarezza, org. II. Silva, Patrícia da, org.

CDU: 159.922.4 Ficha Catalográfica elaborada por Luiz Marchiotti Fernandes – CRB-5/1644

Conselho Regional de Psicologia 19ª região Comissão de Direitos Humanos Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Interétnicas Rua Osvanda Oliveira Vieira, 128, CEP: 49000-000 – Aracaju – SE relacoesinteretnicas@crp19.org.br crp19@crp19.org.br


SUMÁRIO PREFÁCIO ....................................................................................................................

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PARTE 1 – ENSAIOS TEÓRICOS E EMPÍRICOS

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INTRODUÇÃO............................................................................................................... 1. DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA.............................................

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Dalila Xavier de França 2. A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE: APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS.....................................................................

Sônia Oliveira Santos 3. DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS........................................................................

Roberto dos Santos Lacerda 4. ENTRE PLANTAS E ENTIDADES: O CONHECIMENTO ETNOBOTÂNICO DOS GUARANI-MBYA DE TEKOA PYAU………………………………………….…………..

Luciana Galante 5. ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA: ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS......................................................................................................................

45

58

72

87

Patrícia da Silva Camila Lima de Araújo Luiza Lins Araújo Costa José Andrade Santos 6. AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO.............................................

107

Valdenice Portela Silva Marcus Eugênio Oliveira Lima Patrícia da Silva 7. BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE…………………………………………..

Ionara Magalhães de Souza Edna Maria de Araújo

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8. ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL.................................................

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Neli Gomes da Rocha Eleonora Vaccarezza Santos 9. TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS................................................................................................................

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Eleonora Vaccarezza Santos Ionara Magalhães de Souza 10. RESOLUÇÃO 018/2002 DO CFP: DESAFIOS A SUA APLICAÇÃO NA ATUAÇÃO PSICOLÓGICA...............................................................................................................

Marcelo Oliveira 11. RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA.....................

173

182

Djean Ribeiro Gomes Valdisia Pereira da Mata 12. RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL…

196

Ana Raquel Silva Santos Alves Jéssica Francielle Resende de Jesus PARTE 2 - REDAÇÕES E TRABALHOS PREMIADOS NO SEMPRI I

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13. PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE MANIFESTAÇÕES VELADAS....................................................................................

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Norton Cruz Machado Iza Fontes Carvalho 14. O RACISMO QUE O BRASIL DEIXA NAS ENTRELINHAS……………………………..

208

Rita de Cassia de Jesus Oliveira 15. PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?...................................................................................................................

Maria Suely dos Santos Nascimento

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16. “PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA INTERSECÇÃO HISTÓRICA………………………………………………………………………………..

Tarciana Lôbo Menezes

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SOBRE AS/OS AUTORAS/ES

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ANEXOS

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ANEXO A…………………………………………………………………………………

235

ANEXO B…………………………………………………………………………………

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PREFÁCIO

Marcus Eugênio Oliveira Lima (Universidade Federal de Sergipe)

A

s sociedades mais modernas e formalmente democráticas vivem um fenômeno estranho: o racismo sem racistas. Nos consideramos igualitários, afirmamos não vermos cores, mas pessoas, e condenamos com performática veemência qualquer forma de exclusão baseada na cor ou, “Deus me livre”, “raça”. Com efeito, pesquisas com amostras nacionais indicam que quase 90% dos brasileiros se considera não racista, ao mesmo tempo em que igual percentagem acredita que existe racismo no Brasil (Turra & Venturi, 1995). Camino, Silva, Machado e Pereira (2001) encontram resultados muito semelhantes em estudantes universitários. Vivemos uma “ficção sincera” (Bonilla-Silva, 2010), assim como os norteamericanos, acreditamos que o racismo é sempre um problema do outro, distante de cada um de nós. Seja porque “nós brancos”, enquanto atores sociais doutrinados nos valores do igualitarismo e da justiça da nossa formação democrática, consideramos o racismo uma falha do outro “xenófobo”; seja ainda porque “nós negros” achamos, em muitos casos, que as vítimas de racismo são outros que “não sabem sair ou entrar” e nunca nós mesmos (Lima & Vala, 2004). Todavia, o racismo é um problema de todos nós: perpetradores ativos, perpetradores passivos, beneficiários conscientes ou inconscientes e vítimas 12


PREFÁCIO

atentas ou desatentas. Um problema que, por ser simultaneamente político, social, econômico, cultural, histórico e psicológico, demanda um foco de análise psicossocial. Ou seja, um fenômeno que impõe para o seu entendimento e controle a articulação de níveis de análise e estratégias de ação. A psicologia, de forma geral, e a psicologia social, de forma mais específica, têm obrigações incontornáveis e contribuições fundamentais a dar no entendimento e combate do racismo. A análise do racismo na psicologia tem, ao longo dos anos, transitado de atitudes ou posturas de omissão, chancela e condenação. No final da década de 1980, Michael Billig, um psicólogo social britânico, escreveu um livro intitulado “Psychology, Racism & Fascism”. A questão que inquietava a Billig era a de entender a relação entre a produção de conhecimento psicológico e a evolução de tendências políticas subjacentes. De forma particular ele analisou as relações entre as teorias psicológicas da raça e crescimento do fascismo no Reino Unido. Billig cita um conjunto de publicações na psicologia que chancelavam o racismo político. O livro de Hans J. Eysenck “Race, Intelligence and Education”, publicado em 1971, no qual são analisadas diferenças de desempenho acadêmico e de QI entre brancos e negros nos Estados Unidos e é defendida a ideia de que a hereditariedade é um dos fatores explicativos importantes dessas diferenças. Na mesma direção, é publicado em 1958 o livro “The Testing of Negro Intelligence” de autoria de Audrey M. Shuey. O autor argumenta, ao longo das 600 páginas, que os negros são menos inteligentes que os brancos (Billig, 1979). A introdução desse livro foi feita por Henry Garrett, reconhecido por Shuey como a pessoa que encorajou tal publicação. O próprio Garrett tem um conjunto de publicações com as mesmas conclusões, inclusive um artigo publicado em 1961, intitulado "The Equalitarian Dogma", no qual defende a inferioridade genética dos negros. Durante muito tempo e até recentemente manuais de Garrett eram utilizados nos cursos de formação de psicólogos no Brasil. Na Europa e Estados unidos da década de 1950 e 1960 parte da psicologia assumia a atitude de chancela ao racismo. No Brasil, entretanto, a postura era de omissão. A psicologia nacional parecia estar contaminada pelo mito da democracia racial de Gilberto Freyre. Diferentemente da psicologia norte-americana, preocupada com esta questão desde as décadas de 1920 e 1930, seja para chancelar ou para condenar (Duckitt, 1992), a psicologia nacional não tinha interesse pelas questões raciais. Um estudo em que foram analisados 3862 artigos em 30 periódicos, 656 dissertações e 393 teses nas bibliotecas da USP e da PUC de São Paulo, num total de 4911 trabalhos realizados na área da psicologia a partir de 1987, indicou que apenas 12 deles, ou seja, 0.2%, estavam relacionados com o preconceito de cor, sendo que destes 12 trabalhos apenas 3 foram publicados (Ferreira, 1999). De fato, antes de 1987 apenas as ciências sociais procuravam analisar e denunciar o racismo no Brasil. Sacco, Couto e Koller (2016), numa busca mais 13


Marcus Eugênio Oliveira Lima

ampla e atual nas bases de dados Scielo, PePSIC, Index Psi, LILACS e PsycINFO, utilizando os termos “racismo ou preconceito racial” em português e em inglês, publicados até agosto de 2014, encontram 77 artigos, tendo o mais antigo sido publicado em 2001. Ou seja, nenhum artigo em periódico científico publicado pela psicologia brasileira sobre racismo ou preconceito racial no século XX no país com a maior população negra não africana do mundo. É por tudo isso que iniciativas como estas, materializadas neste livro, envolvendo o apoio direto do Conselho Regional de Psicologia, fortalecem o movimento recente de entendimento e de combate ao racismo na e pela psicologia brasileira. O Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI) tem produzido efeitos políticos e epistemológicos fundamentais em relação ao fenômeno do racismo no Brasil e, mais particularmente em Sergipe. Os efeitos políticos se referem ao rompimento do silêncio cúmplice que durante muito tempo foi a postura da psicologia e dos psicólogos nacionais sobre o racismo. Os efeitos epistemológicos remetem à criação de um ambiente científico de troca de informações, de estímulo à produção do conhecimento e de fomento ao encontro de pessoas e visões para o entendimento e combate ao racismo. O SEMPRI já se encontra na sua terceira edição. O primeiro seminário, realizado entre 5 e 7 de novembro de 2015, teve como tema: “Preconceito, racismo e estereótipos: O que a psicologia tem a ver com isso”. O segundo seminário, realizado entre 10 e 12 de novembro de 2016, teve como tema: “A psicologia e o papel social do(a) psicólogo(a) no enfrentamento do racismo e promoção da igualdade étnico-racial”. Os textos que compõem esta coletânea foram produzidos para o terceiro SEMPRI, realizado entre 9 e 11 de novembro de 2017, sob o tema: “15 anos de 018/2002 – atuação da psicologia frente ao preconceito e a discriminação racial: avanços e novas proposições”. O SEMPRI tem se constituído como o principal espaço na psicologia sergipana para debate sobre o racismo. Os temas dos três eventos já realizados demonstram o compromisso dessa área de conhecimento com a pesquisa e a ação contra essa forma de exclusão da alteridade. Neste último evento temos duas ótimas novidades: a produção deste livro, integrando os trabalhos que têm sido produzidos pelos grupos de pesquisa da região e de outros estados interessados na temática do preconceito racial e a publicação dos ensaios do 1º Prêmio de Psicologia e Relações Interétnicas. Finalizamos parabenizando o Conselho Regional de Psicologia pela iniciativa, os organizadores do SEMPRI pela ação e os autores dos textos da presente coletânea pela atualidade e relevância das reflexões apresentadas. REFERÊNCIAS Billig, M. (1979). Psychology, racism & facism: A searchlight booklet. Birmingham: A.F. & R. Publications. 14


PREFÁCIO

Bonilla-Silva, E. (2010). Racism without Racists: Color-Blind Racism and the Persistence of Racial Inequality in the United States. Rowman & Litllefiel Publishers: Nova York. Camino, L., Silva, P., Machado, A., & Pereira, C. (2001). A face oculta do racismo no Brasil: Uma análise psicossociológica. Revista de Psicologia Política, 1, 1336. Duckitt, J. (1992). A historical analysis and integrative framework. American Psychologist, 47, 1182-1193. Ferreira, R.F. (1999). A construção da identidade do afro-descendente: a psicologia brasileira e a questão racial. In J. Bacelar & C. Caroso (Orgs.), Brasil, um país de Negros? (pp. 71-86). Rio de Janeiro: Pallus. Lima, M. E. O. & Vala, J. (2004). As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia, 9(3), 401-411. Sacco, A.M., Couto, M.C.P. de P., & Koller, S.H. (2016). Revisão Sistemática de Estudos da Psicologia Brasileira sobre Preconceito Racial. Trends in Psychology / Temas em Psicologia, 24, 233-250. Turra, C., & Venturi, G. (1995). Racismo Cordial: a mais completa análise sobre preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática.

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PARTE 1 ENSAIOS TEÓRICOS E EMPÍRICOS



INTRODUÇÃO

Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva

C

om o objetivo garantir o debate e consequente visibilidade dos efeitos psicossociais e dos fatores de sofrimento psíquico gerados pelo racismo, que no dia 11 de julho de 2015, durante a 22ª reunião do II Plenário do Conselho regional de Psicologia de 19ª região, foi apresentada a proposta para a criação do Grupo de Trabalho Relações Interétnicas, e no mesmo mês, no dia 25 de julho de 2015, o grupo iniciou suas atividades, com a realização da primeira reunião que teve por objetivo apresentar a proposta inicial aprovada pela plenária e traçar metas e próximos passos para o alcance dos objetivos propostos pelo referido coletivo. Composto por pesquisadoras/es, profissionais e estudantes dos programas de mestrado e doutorado da área de Psicologia Social, 18


INTRODUÇÃO

Comunicação Social, História e Sociologia. Atualmente se reúnem toda primeira quinta-feira do mês, na sede do CRP-19, para discutir propostas com vistas a garantir o debate e a sensibilização da categoria profissional, frente aos fatores de sofrimento gerados pelo racismo. O grupo propôs várias atividades, dentre elas se destaca o Seminário Psicologia e Relações Interétnicas ou como já ficou conhecido – SEMPRI. Outra iniciativa do grupo que merece ser louvada, partiu da professora Dra. Patrícia da Silva, presente no grupo desde seu início, para realizarmos o Prêmio Psicologia e Relações Interétnicas, e do qual este livro recebeu contribuições. Assim, a criação do Prêmio de Redações cumpre as funções de: (a) envolver psicólogos e estudantes na discussão do tema das relações étnicoraciais, reafirmando o compromisso da categoria com uma prática que promova a igualdade racial e a saúde psíquica para as vítimas do racismo brasileiro; (b) divulgação da resolução 018/2002 do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece normas de atuação para as (os) psicólogas (os) em relação ao preconceito e à discriminação racial. Com vista a tornar a resolução 01/2002 que o GT- Relações Interétnicas, propôs a este CR, ainda no ano de 2015 a realização do I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas, com vistas a alcançar o público-alvo a saber – profissionais, estudantes de psicologia e demais profissionais que demonstrem interesse pela temática étnico-racial. Assim, o SEMPRI se tornou um espaço interdisciplinar, no qual é impossível pensar a temática, a partir de referencial isolado dos saberes acadêmicos e sociais. O I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas abriu inscrições para que estudantes de graduação, pós-graduandos e profissionais dissertassem sobre o tema: “Preconceito, Racismo e discriminação racial, o que a psicologia tem a ver com isso...”. E durante o I SEMPRI, ocorreu a entrega da premiação dos trabalhos selecionados nas categorias: 1) Mestra (e); 2) Graduada (o), Especialista e Estudante de Mestrado e; 3) Estudante de Graduação (ver anexo D). O Seminário Psicologia e Relações Interétnicas, em sua primeira edição trouxe o tema – “Ninguém Nasce odiando o outro” para o cerne das discussões levantadas ao longo dos três dias em que ocorreu o evento. Em sua primeira edição o seminário reuniu estudantes, professores, pesquisadores de alguns estados do país como Bahia, Paraná e Sergipe, além de entidades de promoção da igualdade racial do estado e comunidade acadêmica. O seminário recebeu um número de inscrições bem acima do estipulado inicialmente pela organização, o que reflete o interesse e a necessidade de estudantes e profissionais da psicologia por informação e qualificação. Todo o registro do evento foi disponibilizado na página criada no Facebook para o seminário.

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Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva

Na mesa de abertura do I Seminário Psicologia e Relações Interétnicas SEMPRI-2015 – contou com as presenças do: Conselheiro Presidente do Conselho Regional de Psicologia – Adriano Ferreira Bastos. Coordenadora do GT- Psicologia e Relações Interétnicas e Presidenta do I SEMPRI - 2015 – Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas. Presidente da Comissão de Direitos Humanos do CRP-19 – Fernando Antônio Nascimento da Silva. Presidenta da Comissão Científica do I SEMPRI – Dra. Patrícia da Silva. Para as palestras de abertura e demais mesas contou-se com a presença das/os convidadas/os: Dr. Marcus Eugênio Oliveira Lima (UFS); Dr. Marcos Emanoel Pereira (UFBA); Me. Roberto dos Santos Lacerda (UFS); Msa. Ionara Magalhães de Souza (UFRB); Msa. Neli Gomes da Rocha (UFPR); Dr. Hippolyte Brice Sogbossi (UFS); Dra. Dalila Xavier de França (UFS); Ma. Luciana Galante (UniAGES). Dra. Patrícia da Silva (UFS); Msa. e Yá Sônia Oliveira (OMOLÀIYÉ). Ao final das apresentações das comunicações e dos debates, foi realizada a entrega dos kits, contendo livros específicos sobre a temática do racismo e dos direitos humanos (ver anexo E). Assim estiveram entre os selecionados ao prêmio: Khalil Costa – contemplado na categoria, mestre; Tarciana Lobô Menezes – contemplada na categoria, graduada, especialista ou estudante de mestrado; Rozelia dos Anjos Santos Oliveira – contemplada na categoria, graduada, especialista ou estudante de mestrado; Norton Cruz Machado – contemplada na categoria, estudante de graduação; Rita de Cássia de Jesus Oliveira – contemplada na categoria, estudante de graduação; Maria Suely dos Santos Nascimento – contemplada na categoria, estudante de graduação. Durante a mesa de encerramento, a coordenadora do GT, realizou uma homenagem a todos que participaram da organização do evento, de modo direto ou indireto, entre elas podemos citar: Ana Raquel Silva Santos, Andréa dos Santos Dória, Baruc Correia Fontes, Carina Feitosa dos Santos, Cláudia Mara Oliveira Bezerra, Cristiane Gonçalves, Guilherme Fernandes Melo, Jorge Antônio Rodrigues Barbosa, José Marcelo Barreto de Oliveira, Laila Batista, Lidiane Drapala, Rodrigo de Sena e Silva Vieira, Rozélia dos Anjos e Selma da Silva Santos. E até mesmo não estando fisicamente presentes, mas que colaboraram para a concretude do seminário, a exemplo de Camila Araújo e Luíza Lins Araújo. Alguns aspectos negativos foram discutidos com o grupo e revistos para próximos eventos do GT, a exemplo da segunda edição do SEMPRI -2016. Já em sua segunda edição o SEMPRI superando nossas expectativas em termos de adesão somou mais 210 inscrições em menos de duas semanas. Este fato só reafirma para nós a carência e, consequente, necessidade de discussão da temática no âmbito de formação dessas/es atuais e futuras/os

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INTRODUÇÃO

profissionais. E de que este grupo de trabalho está disposto a assumir a tarefa de chamar a categoria para o debate. Alguns dados que foram possíveis de serem apreendidos nesta edição, foi o perfil sociodemográfico das/os participantes. Assim, dos 210 inscritos 79% eram mulheres e 21% homens. Destes 80% eram da área da psicologia e 20% de outras áreas, sendo que 81,4% eram graduandos, 9% eram graduados, 1,9% mestres, 2,4% Pós-graduados ou especialistas e 1% de áreas de mestrado e doutorado. Com relação as áreas de atuação, tivemos profissionais da psicologia atuando nas seguintes áreas: 31,8% Psicologia Social; 13% na área de saúde mental; 18,2% Clínica; 18,2% formação em psicologia; 4,5% Psicologia Organizacional e do Trabalho; 4,5% Psicologia escolar e Jurídica. Foram objetivos dessa segunda edição: visibilizar o fenômeno do racismo, suas consequências, estratégias de enfrentamento e promoção da igualdade étnico-racial, para psicólogos, estudantes de Psicologia e a comunidade em geral, através da realização II Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (II SEMPRI-2016). E Especificamente: a) instituir Grupos de Discussão que abordem o tema do enfrentamento do racismo e da promoção da igualdade étnico-racial; b) ofertar palestras e cursos com atores envolvidos com o tema do enfrentamento dos estereótipos, preconceito e discriminação raciais; c) engajar estudantes e profissionais da psicologia e demais áreas, na discussão sobre a importância de uma atuação não discriminatória e que considere o sofrimento psicossocial gerado pelo racismo e suas formas de manifestação. Por isso, nesse ano, houve a formação de grupos de discussão (GD’s), cujos textos colaboram para a composição deste livro. Uma novidade desta edição, foi a transição de plenária, e a mesa de abertura contou com a presença da nova presidência da Comissão de Direitos Humanos, Jayane Trindade. Além da presidência da CDH estavam também presentes nesta mesa, o professor Mestre José Alexandre Raad, coordenador do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes, instituição que apoiou o grupo na realização do evento; a coordenadora da Comissão Científica do II SEMPRI, Dra. Patrícia da Silva; e da psicóloga e conselheira recémempossada Eleonora Vaccarezza Santos de Freitas, coordenadora do GTPsicologia e Relações Interétnicas e coordenação geral do II SEMPRI – 2016, que ao final do seu discurso ressaltou a importância do trabalho que o grupo vem realizando e de todas/os que ali estavam para apoiar o evento, como por exemplo, Ana Raquel Silva Santos, Andréa dos Santos Dória, Baruc Correia Fontes, Camila Lima de Araújo, Carina Feitosa dos Santos, Cristiane Gonçalves, Guilherme Fernandes Melo, José Marcelo Barreto de Oliveira, Joseane dos Santos Bispo, Lidiane Drapala, Luíza Lins Araújo Costa, Rozélia dos Anjos, Selma da Silva Santos, Yá Sônia Oliveira e Thaiane Santos Simões da Paixão.

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Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva

As palestras tanto de abertura quanto dos demais dias, contaram com as contribuições das/os convidadas/os tanto da Psicologia como das demais áreas que contemplavam temas de pesquisa e atuação no enfreamento do racismo, assim tivemos a participação das/os seguintes convidadas/os: Dr. Leoncio Camino - (UFPB); Msa. Luíza Linz (UFS) e (GT-Psicologia e Relações Interétnicas); Promotor Luís Dias Fausto Valóis (MP/SE); Roberto Lacerda (UFS); Dra. Patrícia da Silva (UFS); Lívia Jéssica Messias de Almeida (UFS); Miraci Correia (Maurício de Nassau); Valdenice Portela (UFS); Eleonora Vaccarezza (CRP19/UFBA) Racismo e Empregabilidade: narrativas de mulheres negras sergipanas; Dra. Maria Batista Lima (UFS); psicóloga Rozélia dos Anjos (UFS/GT-Psicologia e Relações Interétnicas). Nos Grupos de discussão tiveram como colaboradoras/es: Ana Raquel Santos Silva (GTRelações Interétnicas); Jéssica Francielle Resende de Jesus (Unit/SE); Lívia Jéssica Messias de Almeida (UFS); Baruc Correia (CRP-19/UFS); Djean Ribeiro Gomes (CRP-03/UFBA); Alessandra Santos da Graça (Autoorganização de Mulheres – Rejane Maria); Selma Santos (GT-Relações Interétnicas e Auto-organização de Mulheres – Rejane Maria); Thaiane Santos Simões da Paixão (GT-Relações Interétnicas); Joseane dos Santos Bispo (GTRelações Interétnicas); José Marcelo Barreto de Oliveira (GT-Relações Interétnicas). Os grupos de trabalho tiveram seus temas propostos pelos participantes do I SEMPRI, de modo que foram contempladas as seguintes temáticas: 1) Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnicoracial; 2) A Clínica Psicológica e Enfrentamento a Intolerância Religiosa; 3) Resolução 018/2002 do CFP: desafios frente a sua aplicação; (4) Gênero e Relações Interétnicas. Os temas dos GD’s tiveram a seguinte adesão, a partir do total de participantes (210): 44,8% tinham interesse em discutir Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnico-racial; 22,9% demonstraram interesse no tema do Gênero e Relações Interétnicas; 26,7% para A Clínica Psicológica e Enfrentamento a Intolerância Religiosa e; apenas 5,2% dos inscritos indicaram o tema Resolução 018/2002 do CFP: desafios frente a sua aplicação para debate. Os GD's foram realizados no segundo dia do evento. As/os moderadores de um modo geral, eram membros do Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Interétnicas ou profissionais convidadas/os, da Psicologia e de áreas afins que atuavam com a temática. Os capítulos presentes nesta publicação, divididos em duas partes, visam materializar as discussões que o SEMPRI e o Prêmio Psicologia e Relações Interétnicas suscitaram nestes últimos dois anos. Todas/os que fizeram parte de nossas edições foram convidadas/os a escreverem textos para esta edição do livro. O intuito desta produção é ampliar o espectro de alcance do SEMPRI e provocar a categoria a pensar sobre o nosso papel 22


INTRODUÇÃO

enquanto promotores da saúde mental e do enfrentamento de fenômenos como o racismo brasileiro. Assim, no primeiro capítulo, “Discriminação de crianças negras na escola” a autora discute a partir de uma pesquisa empírica que versa sobre alguns processos pelos quais perpassa a discriminação racial contra crianças negras no interior da escola, tendo atenção ao professor como seu perpetrador. O segundo capítulo, “A educação dos negros em Sergipe: apontamentos históricos e atuais das políticas de ações afirmativas”, busca compreender as políticas de ações afirmativas no âmbito educacional no município de Aracaju. Assim, este trabalho faz um apanhado histórico sobre a educação dos negros em Sergipe, especificamente a educação das crianças negras, tendo como referencial a Sociedade Abolicionista Aracajuana, a Cabana de pai Thomaz. De modo que, a autora busca fomentar uma reflexão sobre a Educação para as Relações Étnicos Raciais como estratégia viável para a educação, versando a diversidade e um indicativo para quem busca estudar a relação entre raça e classe. Já no terceiro capítulo, “Descolonização do pensamento e combate ao racismo: contribuições epistemológicas afrocentradas” o autor traz a partir de um olhar afrocentrado críticas as narrativas hegemônicas, valorização da experiência afro-brasileira e elementos de fortalecimento da identidade e consciência racial imprescindíveis no combate ao racismo. Destaca-se no seu texto, a abordagem do termo: “afrocentricidade” ressalta a necessidade de modo a demarcar localização do sujeito para desenvolver um engajamento teórico próprio ao grupo social e fundamentado em sua experiência histórica e cultural. O quarto capítulo, “Entre plantas e entidades: o conhecimento etnobotânico dos Guarani-Mbya de Tekoa Pyau”, traz uma compreensão acerca dos instrumentos que as sociedades indígenas se munem para ordenar e perceber o universo em que se inserem. O quinto capítulo, intitulado: “Entre o discurso e a prática: atitudes dos profissionais do direito acerca das políticas de cotas para negros nas universidades públicas brasileiras”, as/os autoras/es, discutem, a partir de uma pesquisa empírica com juristas, advogados e professores de direito, sobre a legislação brasileira no que se refere as relações raciais. As/os autoras/os abordam, especificamente o conceito de igualdade e aplicabilidade constitucional das políticas de cotas para negros nas universidades públicas. “Ações afirmativas no mercado de trabalho”, aborda as medidas preventivas realizadas no domínio do emprego como combate às desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho sergipano, entre elas, a norma de responsabilidade social empresarial propagada pelo Instituto Ethos. Inicialmente, as/os autores situam historicamente as desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho sergipano, enfocando o processo de transição

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Eleonora Vaccarezza Santos Patrícia da Silva

do trabalho escravo para o trabalho livre entre o período de 1850 e 1930. Para, em seguida, discutirem os conceitos de ações afirmativas, norma de responsabilidade social empresarial e normas sociais. No capítulo sete, “Branquitude e interseccionalidade”, as autoras discutem as ambiguidades e contradições envolvendo processos de racialização e as consequências materiais e simbólicas para os grupos envolvidos nos sistemas de subordinação. Nessa perspectiva, as autoras propõem explanar sobre a identidade racial do branco, situar o lugar da branquitude nas relações raciais e na atualização do racismo e, na dimensão da interseccionalidade, os privilégios interseccionais de ser branco no Brasil. “Estética negra, consumo e ascensão social”, é o oitavo capítulo deste livro, as autoras partem de proposições levantadas por outras autoras, ao afirmarem que os padrões estéticos atuais excluem a beleza negra. No trabalho de pesquisa apresentado, por elas, utiliza-se a metodologia de estudo de caso para compreender os significados atrelados ao cabelo crespo e cacheado para mulheres negras pertencentes à classe C. As discussões foram embasadas em referencial teórico da psicologia social e da sociologia que tratam do racismo, ideologia do branqueamento e ascensão social. O capítulo nove, “Trajetórias e estratégias de mobilidade social de mulheres negras”, as autoras abordam, a trajetória de mobilidade social de mulheres negras e os possíveis efeitos de fenômenos tais como o racismo, o preconceito e discriminação racial para o emocional desta mulher. As autoras apontam, que embora na literatura sobre relações raciais, o tópico da mobilidade social seja considerado fundamental para determinar se há preconceito ou discriminação racial, no Brasil esses estudos ainda não são numerosos. Neste sentido, o trabalho se propõe a compreender a trajetória de mobilidade social de mulheres negras e suas percepções em relação ao preconceito e a discriminação racial no que diz respeito ao mercado de trabalho. Já o capítulo dez, “Resolução 018/2002 do CFP: desafios a sua aplicação na atuação psicológica”, o autor propõe-se a expor e ampliar, a luz da resolução 018/2002, as discussões levantadas nos trabalhos realizados durante o II Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI-2016). De igual modo, os autores do capítulo onze, “Racismo, intolerância religiosa e atuação psicológica” ampliam as discussões que foram iniciadas durante o Grupo de Discussão: “A clínica psicológica e o enfrentamento a intolerância religiosa” neste capítulo que trabalha a partir da tríade Psicologia, Relações Raciais e Intolerância Religiosa, datada de períodos longínquos. Para finalizar esta primeira parte, o capítulo doze, “Relações interétnicas e políticas públicas na assistência social”, as autoras propõem de modo semelhante, alargar as discussões travadas durante o Grupo de Discussão 24


INTRODUÇÃO

sobre “Psicologia, políticas públicas e promoção da igualdade étnico-racial”. Entendem que a vivência grupal é um espaço de trocas e aprendizado particularmente significativo e ao sistematizarem a experiência vivida. São nesses espaços de trabalho que, percebe-se como a relação de etnias diferentes refletem tanto nas condições de privilégio e de subestimação de outras por parte daqueles que se enquadram em padrões eurocêntricos. E no quanto a psicologia social e o serviço social atuam na luta da discriminação e do sofrimento psíquico, ao despertarem para o seu papel de protagonista social e ao auxiliarem no empoderamento da pessoa negra, enquanto sujeito de direitos. A segunda parte deste, inicia-se com o capítulo treze, “Preconceito e racismo pós-abolição: contexto histórico e discussão de manifestações veladas” fruto da redação na qual os autores, a partir da pergunta: “esta é a realidade da sociedade pós Lei Áurea ou um recorte não muito distante do século XXI? ” Discorre sobre realidade das relações interétnicas no Brasil, de como o racismo afeta a pessoa negra em sua identidade, estética e oportunidades dentro de uma sociedade racista, machista, lesbofóbica e homofóbica. O capítulo quatorze, “O racismo que o Brasil deixa nas entrelinhas”, a autora, problematiza sobre questões relacionadas ao preconceito racial disseminado no Brasil. Na mesma linha, o capítulo quinze, “Preconceito, racismo e estereótipos: o que a psicologia tem a ver com isso? ”, trata da pergunta tema do prêmio nessa primeira edição. Neste capítulo, a autora discute sobre o papel da Psicologia e sua importância para o desenvolvimento de trabalhos que visem combater preconceitos, estereótipos e discriminações decorrentes do racismo. Baseia-se na Resolução 018/2002 e em autores da Psicologia Social. Por fim, o último capítulo, “Psicologia das raças e religiosidade no Brasil: uma intersecção histórica”, fruto de um ensaio teórico, no qual a autora discorre sobre as manifestações religiosas afrodescendentes e como ela é observada através da ciência psicológica no Brasil; menciona também a influência das teorias raciais e eugenistas, entre os séculos XIX e XX.

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CAPÍTULO

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DISCRIMINAÇÃO DE CRIANÇAS NEGRAS NA ESCOLA

Dalila Xavier de França

N

o Brasil, a preocupação com as relações entre grupos virou pauta de debates e de políticas públicas. Essa questão foi transformada em leis de reformas educativas, como se pode verificar nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação, através da Lei n. 10.639, que incluiu dois artigos, os quais tornam obrigatório o ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira em todo o currículo escolar (OLIVEIRA, 2008). A promulgação dessas leis vem no âmbito da constatação de que, para a superação do preconceito racial na escola, faz-se necessário um conhecimento da história do negro brasileiro, assim como um mapeamento de experiências ligadas às relações étnico-raciais na escola. O preconceito, entendido como uma antipatia baseada numa generalização falha e inflexível que pode ser sentida ou expressa, além de dirigida a um grupo em sua totalidade, ou a um indivíduo por fazer parte do referido grupo (ALLPORT, 1954), configura-se num fator que dificulta o acesso e a permanência da criança negra na escola. Assim, a psicologia, em particular, a psicologia social, em seus pressupostos teóricos relativos às relações entre grupos sociais, pode colaborar com a

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compreensão dos processos que subjazem ao preconceito na escola. Este capítulo traz uma pesquisa empírica que versa sobre alguns processos pelos quais perpassa a discriminação racial contra crianças negras no interior da escola, tendo atenção ao professor como seu perpetrador. A discriminação é definida por Allport (1954) como o comportamento ou prática social baseada na depreciação, hostilização e impedimento de que determinados indivíduos ou grupos gozem dos seus direitos sociais, apenas pelo fato de terem certas características (consideradas desagradáveis) ou por serem membros desses grupos. A discriminação, assim como o preconceito, são motivadores de exclusão social não apenas do negro como daqueles considerados diferentes, como homossexuais, pessoas com dificuldades motoras, cognitivas ou em algum órgão sensorial. Nesse estudo examinamos como na escola, o professor pode contribuir para a exclusão social de base racial através da expressão do preconceito e da discriminação raciais. O objetivo do presente estudo é analisar o papel do professor no processo de discriminação de crianças negras. Este estudo se justifica pela importância da escola enquanto espaço de debate e crítica ao racismo e à discriminação. Para isso, é imprescindível entender como se processam as relações intergrupos na escola, bem como a participação dos professores no manejo das questões raciais, especialmente no tratamento dado às crianças quando em seus conflitos as questões raciais estão salientes. Esse estudo sugere que a prática psicológica pode extrair guias e princípios para intervir em questões sociais amplas, como o preconceito e o racismo, a partir do conhecimento específico gerado pelas pesquisas sobre relações entre grupos sociais. Concordamos com estudos que admitem que o comportamento, as atitudes e os valores que perpassam a relação professor/aluno e, da mesma forma, as atitudes e expectativas dos professores, podem ter impactos nas atitudes étnicas da criança (FEITOSA DOS SANTOS, 2014), na formação de sua identidade (CAVALLEIRO, 2001) e no seu desempenho escolar (CHAGAS; FRANÇA, 2010; ZIVIANI, 2014). No interior da escola, o racimo pode se apresentar na dinâmica das relações interpessoais entre alunos e profissionais da educação (CAVALLEIRO, 2001). Racismo é a discriminação de base racial, ou seja, aquela associada a uma marca física externa e genética, que é ressignificada em característica cultural interna determinadora de padrões comportamentais, psicológicos e morais, produzindo a crença na inferioridade natural dos indivíduos ou grupos que possuem essas marcas em comparação àqueles que nãos as possuem (LIMA, 2003; REID, 1988). Aspectos como a cor da pele, cor e formato dos olhos, estilo de cabelo são exemplos de marcas físicas genéticas geradoras de racismo, um grupo alvo de racismo na nossa sociedade é o grupo

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dos negros. De acordo com Oliveira (2008), a escola está impregnada de visões deturpadas e profundamente arraigadas sobre o negro, visões que prejudicam um olhar diferenciado para o indivíduo como pessoa (LINS RODRIGUES, 2013; MONTEIRO; VENTURA, 1997). Na escola, precisamente na educação básica, observa-se que o racismo se apresenta de diferentes formas, implícitas ou explícitas tornando a escola um ambiente inóspito para os indivíduos negros (CAVALLEIRO, 2001; ZIVIANI, 2014). As dificuldades enfrentadas pelas pessoas negras na escola vão desde o acesso às instituições de ensino até a vivência de situações de racismo, que se iniciam no ensino básico e atravessam o ensino médio e o universitário. Como argumenta Rosemberg (2000), crianças negras apresentam dificuldades nos estudos elementares e ingressam mais tarde na escola do que as crianças brancas. Esta autora mostra, com dados referentes aos anos de 1987 a 1995, que 63% das crianças negras, aos 11 anos, ainda estão na pré-escola, enquanto que entre as brancas este índice cai 36%. Ao analisar a situação educacional na qual os negros estão submetidos, Gomes (1997) observa que são eles os mais atingidos pelo fenômeno da evasão e repetência. Embora atualmente haja uma relativa facilidade de acesso à escola por parte das crianças negras, elas encontram mais dificuldade para se manter nela e concluir os estudos, o que leva essa população a compor o maior percentual daqueles que deixaram de se alfabetizar entre os 7 e os 14 anos (QUEIROZ, 2000). Na mesma perspectiva de Rosemberg (2000), Gomes (1997) e Queiroz (2000), Chagas e França (2010) realizaram um estudo relacionando a diferença na trajetória escolar de crianças negras e brancas em Sergipe ao racismo e preconceito. As autoras lançaram mão de indicadores de aprovação, reprovação, repetência, evasão e defasagem idade-série e verificaram que crianças negras se encontram em situação de desvantagem, pois a trajetória escolar delas é mais longa e acidentada do que a dos brancos. Também Menezes (2003) afirma que trajetória escolar de crianças negras e pardas é marcada pelo analfabetismo, baixo rendimento, e elevados índices de reprovação e evasão em comparação ao de crianças brancas. A escola, para muitas crianças negras, é vista como um referencial de fracasso. A autora chama atenção para o fato de a dificuldade de aprendizagem dessas crianças está mais relacionada à forma de inserção delas no espaço escolar do que a um impedimento cognitivo. As crianças negras passam por um processo de exclusão simbólica, ou seja, apesar sua entrada na escola ser permitida, através da matrícula e acesso à sala de aula, elas não se sentem aceitas por colegas e professores que, frequentemente, demonstram preconceito por meio de insultos baseados em suas características fenotípicas.

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Desse modo, segundo Menezes (2003), a escola reserva um lugar social específico para a criança negra, um lugar de ser que não merece reconhecimento, incapaz e inferior. A autora exemplifica como a escola leva as crianças negras a introjetarem essas concepções, através de um estudo com crianças pobres de periferia urbana e do meio rural. Nesse estudo, solicitou-se às crianças que desenhassem os lugares sociais de brancos e negros. Os resultados indicaram que o branco estava ligado à civilização, ao meio urbano, enquanto o negro estava associado ao meio rural, ao trabalho braçal. As representações no desenho opõem um mundo triste e alegre, o primeiro para os negros e o segundo para os brancos. Nesse estudo, investigou-se o relato da representação de si, e observa-se que a criança negra se descreve de modo depreciativo, avaliando-se em conformidade com o discurso dos colegas. As meninas referiam que aquelas de cabelos grandes e lisos eram mais desejadas pelos meninos do que as de cabelos curtos e cacheados. A desigualdade educacional é muitas vezes entendida como consequência das condições socioeconômicas dos negros, desconsiderando o racismo fora e dentro da escola. O que relembra a tese do class-over-race (ver PIERSON, 1942/1967 citado em DEGLER, 1971), a qual consiste na afirmação de que, se existe preconceito no Brasil, este é de classe social e não de cor, uma vez que “negros” e “brancos” pobres são igualmente discriminados nesta sociedade. Contudo, Rosemberg (1998) observa que os negros (pretos e pardos) frequentam as escolas de pior qualidade. Alguns indicadores de qualidade verificados são: baixa qualificação e informação dos educadores; espaço físico restrito e índices elevados de reprovação e atraso escolar. Como afirmam Hasenbalg e Silva (1990, p.12), “estas desigualdades não podem ser explicadas nem por fatores regionais nem pelas circunstâncias socioeconômicas das famílias”. A este respeito, Castro e Abramovay (2006) realizaram um estudo em 25 escolas públicas e particulares das cidades de Belém, Salvador, São Paulo, Porto Alegre e Distrito Federal, com o objetivo de analisar o racismo como produtor de desigualdades na escola. Especificamente, as autoras pretenderam investigar as práticas sutis de racismo existentes entre alunos e professores. Participaram do estudo alunos, professores, diretores e os pais dos alunos. As autoras evidenciaram, em seus resultados, a existência de desempenho inferior entre os alunos da escola pública comparados aos das escolas particulares, entre os alunos que têm nível socioeconômico mais alto, há uma diferença nos indicadores de desempenho, ou seja, os negros apresentam desempenho inferior aos brancos desse extrato social. Já entre os alunos de nível socioeconômico baixo, brancos e negros apresentam índices similares. Entretanto, pais, professores, diretores e alunos não percebem diferenças no desempenho escolar pautado na cor da pele ou raça.

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Essa suposta dificuldade em perceber o racismo no ambiente escolar, ou mesmo desinteresse em tratar das relações raciais, é por vezes compreendida em termos do silenciamento imposto a análise da questão do racismo, que parece estar presente em vários lugares. De modo que, as dificuldades escolares de crianças negras são atribuídas a problemas comportamentais ou familiares destas crianças e nunca como decorrentes do preconceito que as atinge (CAVALLEIRO, 2001; WRIGHT, 1992). Assim, como afirma Munanga (2005), a maioria de nós não recebe da escola, da educação transmitida por professores, o preparo necessário para lidar com questões de diversidade, racismo e preconceito. O silêncio ou denegação do preconceito pode ser observado ainda na essencialização das questões raciais, isto é, muitas vezes, os professores percebem o racismo como parte da “natureza humana”, sendo o próprio negro o responsável pela sua propagação. Como resultado, esses professores tornam-se coniventes com situações de exclusão das crianças negras que são rotuladas pejorativamente e de forma depreciativa e são recusadas como pares em filas, nas brincadeiras, nas festas (CAVALLEIRO, 2001; SANTANA; MÜLLER, 2011). Esse tratamento dado às crianças negras pelos professores foi encontrado também por Wright (1992), ao observar que as crianças negras inglesas são mais criticadas quando participam das discussões em sala de aula e sofrem desaprovação imediata no caso de mau comportamento quando comparadas às crianças brancas. As sanções aplicadas às crianças negras incluem ofensas verbais, exclusão da classe e retirada de privilégios, geralmente são feitas em público e vão além da disciplina, tornando-se ataques a pessoa. Em outro estudo, este norte-americano, com o objetivo de analisar a avaliação de desempenho de alunos latinos, negros e brancos observou-se que os professores brancos de escolas públicas são menos severos nos comentários e retorno sobre o desempenho de alunos latinos e negros comparados aos alunos brancos (HABER, 1998, 2004). O autor pressupõe que ocorre um viés da parte dos professores no momento de oferecer esse retorno, que pode ocorrer em virtude de motivos sociais gerados pelo esforço para evitar a tensão intergrupal e o contato interétnico, ou por motivos cognitivos, que estão baseados em crenças de que negros e latinos têm menos competência acadêmica do que os brancos. Assim, isso levaria os professores a automatizar as suas respostas quando avaliam indivíduos desses grupos. No caso dos professores brasileiros, ocorre igualmente a falta de preparo para lidar com as questões interétnicas na escola, ressaltando que a deficiência na sua formação os leva a agir negando as diferenças e, assim,

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reproduzindo práticas pedagógicas discriminatórias (LOPES, 1995; OLIVEIRA; LINS, 2008; SANTANA; MÜLLER, 2011). Coelho (2006) aponta três aspectos que fundamentam a deficiência na formação dos professores: 1) a produção intelectual orientada por uma perspectiva eurocêntrica, associada a uma imagem da nação como mestiça e plural que mascara as reais condições de discriminação vivida pela parcela não branca da população; 2) a formação voltada para a dimensão pedagógica do processo educacional, negando as dimensões humana e a sociopolítica, que contribui para a perpetuação de visões reprodutoras do preconceito e da discriminação, e 3) a formação não contempla aspectos da memória histórica da origem dos grupos, especialmente aqueles alvo de preconceito e discriminação, a fim de preparar profissionais atentos às questões colocadas pela lei n. 10.639 de 2003. Para Munanga (2005), esse despreparo impede os educadores de se apropriar de forma pedagógica das situações de preconceitos expressas pelos estudantes e utilizá-las como momentos para discutir a diversidade e conscientizá-los da riqueza que a diferença pode trazer para a cultura e a identidade. Outros processos psicológicos que entram em jogo e têm que ser considerados nesse contexto são as expectativas dos professores sobre os seus alunos. Sexo, raça, atratividade, entre outros fatores, podem influenciar as expectativas dos professores sobre o sucesso dos alunos (BREWER; CRANO, 1994). Ziviani (2014) analisou em seu estudo os processos de exclusão e inclusão escolar de crianças e adolescentes negros e não negros em Minas Gerais. Entre vários de seus importantes resultados, destaca-se as evidências colhidas da relação dos professores com seus alunos negros, consideradas pela autora como excludente e propagadora de preconceito. O estudo demonstra para além dos fatos já evidenciados em outras investigações, como se dirigir ao aluno negro através de apelidos pejorativos, utilizando insultos estigmatizadores como se referir aos meninos negros como violentos e uso do termo “safada” para se referir às meninas. E ainda a clara diferenciação de expectativa em relação a criança negra pelo professor que se recusa a vê-los no papel de leitores e escritores demonstrada pela desvalorização do conhecimento produzido pelos alunos desse grupo. Essas evidências são preocupantes pois as expectativas do professor podem levar à proliferação de profecias autorrealizadoras. Esse é um termo cunhado por Robert Merton (1948) e estudado experimentalmente por Rosenthal (1989) em escolas norte americanas, que consiste na concretização das expectativas do professor sobre seus alunos, quer positivas, quer negativas. Segundo Rosenthal (1989), as expectativas que o professor tem sobre o potencial acadêmico de seus alunos é acompanhada de resultados pertinentes com essas expectativas. Crano e Mellon (1978), estudando esse 31


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fenômeno em crianças de escolas inglesas, observaram que crianças cujos professores tinham prazer em tê-las na sala de aula, provavelmente obtinham melhores notas em suas disciplinas do que as consideradas como tendo comportamento censurável. As profecias autorrealizadoras são também conhecidas como Efeito Pigmaleão (DIAZ-AGUADO, 1996). A avaliação que os professores fazem dos alunos estão sujeitas às expectativas que eles têm dos mesmos e podem ter efeitos não só sobre o desempenho, mas também sobre a auto estima da criança (CRANO; MELLON, 1978). As percepções e expectativas presentes no meio social não passam imperceptíveis pelas crianças e podem repercutir de modo negativo na percepção que têm do próprio grupo, é o que demonstra um estudo de França e Lima (2014) sobre identidade e estereótipos de crianças indígenas e quilombolas. As participantes desse estudo percebem as crianças brancas como mais bonitas, mais inteligentes e mais ricas do que as indígenas e quilombolas. Sobretudo as crianças negras afirmam que são as crianças brancas as que as (os) professoras (es) gostam mais. A criança negra foi percebida por ambos os grupos estudados como a mais briguenta, mais pobre e menos querida do (a) professor (a). Do mesmo modo, o apoio e a expectativa positiva advinda do meio social repercute positivamente na percepção que têm do próprio grupo. A este respeito um estudo de Lima e França (2012) mostra que o apoio governamental, através de políticas de ação afirmativa, fortalece a identidade étnica de crianças negras quilombolas e indígenas que sentem mais orgulho de sua etnia do que crianças negras não apoiadas por esses programas. Esses estudos demonstram que a escola é um espaço onde as relações intergrupais se apresentam, necessitando de uma atenção por parte dos estudiosos para diferentes aspectos desse contexto. Para o entendimento da discriminação racial no interior da escola, é imprescindível analisar o fenômeno do preconceito e do racismo em várias perspectivas, aprofundando-o e questionando-o, pois, o racismo produz efeitos graves para a identidade racial de crianças negras (FRANÇA; MONTEIRO, 2002), para seu desempenho acadêmico (ZIVIANI, 2014), para seu o bem-estar psicológico (KINDER; SEARS, 1981) e saúde geral (BALSA; MCGUIRE, 2003). Assim, consideramos a escola um importante espaço de gerenciamento das relações entre os diferentes grupos. De modo que, a articulação entre as teorias das relações intergrupais e da educação pode ser uma alternativa para traduzir, em forma de ação, o gerenciamento dessas relações. Como demonstra o estudo de Rutland, Brown e Cameron (2005) que visou traduzir achados de pesquisa em psicologia social em estratégias de redução do preconceito, o ato de contar história para as crianças que saliente as características culturais dos grupos (abordagem multicultural), as similaridades 32


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entre os grupos e suas pertenças comuns (abordagem do grupo comum) são medidas eficientes de redução do preconceito, sobretudo se essa prática se inicia na pré-escola. Esses autores comparam intervenções baseadas na abordagem multicultural e do grupo comum com as abordagens: color blind e do contraestereótipo. A intervenção baseada na abordagem do color blind desconsidera os pertencimentos grupais das pessoas e salienta suas individualidades enquanto a do contraestereótipo procura desconstruir as preconcepções existentes sobre os grupos, ensinando as crianças que os estereótipos atribuídos pelos adultos e crianças aos grupos são falsos (ver RUTLAND; BROWN, 2005, para uma revisão). Neste trabalho, deter-nos-emos no objetivo de analisar o papel do professor no processo de discriminação de crianças negras. Nesse estudo, a discriminação será evidenciada na relação professor-aluno, através da atribuição de notas diferenciadas para as crianças brancas e negras. Assim, levantamos a seguinte hipótese: os professores atribuirão, em suas avaliações, notas maiores às crianças brancas do que às crianças negras. MÉTODO Participantes Participaram da pesquisa 109 professores em formação, alunos dos terceiros e quartos anos de uma escola normal, sendo que seis (5,6%) são do’ sexo masculino, 102 (94,4%) são do sexo feminino e uma pessoa não declarou o gênero. As idades variaram de 18 a 52 anos, das quais 51 (48,1%) têm entre 18 e 25 anos de idade; 36 (34%) têm entre 25 e 35 anos de idade, 19 (17,9%) têm entre 36 a 52 anos de idade e três pessoas não declararam suas idades. O grupo racial dos participantes era atribuído pelos entrevistadores que classificavam o participante através de uma escala de cor que variava de um a sete (quanto maior o valor mais o participante era avaliado como mais negro). Foram categorizados como brancos 56,9% dos sujeitos (classificados nos valores que iam de um a quatro na escala de cor), e os classificados nos valores que iam de cinco a sete foram categorizados como negros (43,1%). No que diz respeito à renda familiar, 71,2% recebem entre um a dois salários mínimos; 22,1% , entre dois a cinco salários mínimos e 6,7%, acima de cinco salários mínimos. Instrumentos e procedimentos Os participantes foram abordados em sua própria escola, por quatro entrevistadoras. Foi solicitado aos participantes que avaliassem uma redação feita por um aluno escolhido ao acaso, indicando uma nota (de zero a dez) para

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o seu desempenho. Anexo à redação havia a fotografia de uma criança que, em uma condição, era negra e, em outra, era branca e aparentava oito anos e meio de idade. As fotografias foram pré-testadas em estudo anterior (FRANÇA; MONTEIRO, 2002). Além da redação, havia um questionário com perguntas exploratórias sobre os critérios utilizados na avaliação. O instrumento foi disposto num documento de quatro páginas: na primeira, havia a apresentação da pesquisa e instruções; na segunda, havia uma única fotografia de uma criança branca ou negra no centro da folha e informações gerais sobre a criança embaixo da fotografia; a redação estava na terceira folha, com um espaço no canto superior direito para a colocação da nota, e, na quarta, um pequeno questionário e o levantamento sociodemográfico do participante. Os critérios utilizados na avaliação da criança pelos professores foram categorizados, com base nas respostas dos participantes, em cinco categorias: 1) Gramática e Caligrafia: as avaliações se pautaram no uso da gramática e da caligrafia; 2) Criatividade: as avaliações se pautaram na criatividade, na capacidade de construir o texto e na capacidade de expressão da criança; 3) Idade e Série: as avaliações consideraram a adequação entre idade e série da criança; 4) Tema escolhido: as avaliações foram baseadas no tema da redação; 5) Esforço: os participantes avaliaram com base no esforço do aluno, no seu interesse e em sua vontade de aprender. Foi dito aos professores que o estudo versava sobre a uniformidade na avaliação do desempenho escolar dos alunos pelo docente. Cada professor avaliava a redação de uma criança de um único grupo racial. Em cada turma também foi aplicado o questionário relativo a um único grupo racial, sendo que a mesma redação foi avaliada por todos os participantes, variando apenas o grupo racial da fotografia da criança afixada nos questionários. As variáveis do presente estudo foram: 1) a cor da pele da criança, manipulada através de duas fotografias, uma de uma criança branca e a outra de uma criança negra; 2) a discriminação, manipulada experimentalmente através da nota atribuída à redação pelos professores; 3) cor da pele e idade dos professores, a primeira avaliada pelo entrevistador através de uma escala de sete pontos e a segunda declarada pelo participante; 4) critérios para a nota atribuída declarada pelo participante.

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RESULTADOS Para análise das médias atribuídas pelos participantes às redações, retiraram-se os outliers severos, como recomenda Tabachnick e Fidel (2007). Nossa hipótese, a de que os professores atribuiriam notas mais altas às crianças brancas do que às crianças negras nas suas avaliações, foi testada utilizando-se uma análise de variância univariada (ANOVA). Usamos como variável dependente a nota atribuída pelos professores às redações, e como variáveis independentes, a cor da pele da criança avaliada, a idade e a cor da pele do professor. Verificou-se um efeito principal da cor da pele da criança avaliada F(1,104)= 3, 72, p= .05, o qual indica que a criança branca recebeu notas mais altas do que a criança negra (M= 7,8; M= 7,3 respectivamente). Estes resultados, que podem ser vistos na Figura 1, não foram influenciados pela idade do professor F(1,104)= .13, p= ns, nem pela cor de sua pele F(1, 104)= 1,75, p= ns. Figura 1 – Médias das notas atribuídas pelos professores às redações da criança branca e da negra. 7,9

7,8

7,8 7,7 7,6 7,5 7,4

7,3

7,3 7,2 7,1 7 Negro

Branco

Para analisar os critérios utilizados pelos professores, realizamos uma análise de contingência (qui-quadrado) dos critérios utilizados pelos professores na atribuição de notas à redação da criança negra e à da criança branca em função da cor da pele da criança avaliada x2= 9.32; gl= 4; p > .05. Os resultados podem ser vistos na Tabela 1 e indicam que há uma diferença significativa na avaliação da criança branca e da criança negra com relação aos critérios utilizados. Os critérios adotados pelos professores em formação

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para avaliação da criança branca foram, predominantemente, criatividade, expressão, construção textual, idade, série e tema escolhido. Para avaliar as crianças negras, eles utilizaram critérios como uso da gramática, caligrafia e, sobretudo, o esforço, conforme pode ser visualizado na Tabela 1. Tabela 1 – Frequência e percentual dos critérios utilizados pelos professores na avaliação do desempenho das crianças branca e negra.

Condição Branco

Negro Total

Gramática e Caligrafia 17 (38,6%) 27 (61,4%) 44 (100%)

Critérios Criatividade Idade Série 12 (60%)

5 (62,5%)

Tema Escolhido 13 (68,4%)

8 (40%) 20 (100%)

3 (37,5%) 8 (100%)

6 (31,6%) 19 (100%)

Esforço 2 (22,2%) 7 (77,8%) 9 (100%)

DISCUSSÃO As análises realizadas demonstram que os professores atribuem notas mais elevadas à criança branca do que à criança negra, confirmando nossa hipótese de que os professores atribuiriam notas mais altas à redação da criança brancas do que à da criança negra nas suas avaliações. Esta observação, realizada num nível comportamental e de forma experimental, foi vista através de observações por Cavalleiro (2001), nos estudos realizados nas escolas por ela investigadas, por Lopes (1995), em escolas de São Carlos, Ziviani (2014) em escolas de Belo Horizonte, e por Wright (1992), em escolas inglesas. Acreditamos que esses resultados demonstram a existência de preconceito na escola. O fato de os professores estarem despreparados quanto à compreensão dos processos históricos e políticos subjacentes à criação e perpetuação de diferenças entre os grupos, estes são colocados em situação de vulnerabilidade em relação ao preconceito, pois aceitam, sem crítica, as crenças difundidas sobre o grupo dos negros na sociedade, como a de que o Brasil é uma nação racialmente democrática, o que mascara as reais condições de discriminação vivida pelos negros. Dessa forma, como afirmam Coelho (2006), Lopes (1995) e Munanga (2005), o despreparo dos professores se revela como elemento pernicioso no processo de ensino–aprendizagem e de socialização ampla da criança. Esses resultados são diferentes daqueles observados por Haber (1998, 2004), em seu estudo sobre a avaliação de alunos negros e latinos. Embora nossos resultados apresentem-se diferentes daqueles de Haber, sua explicação de uma avaliação ligeira do grupo dos negros por parte dos 36


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professores, baseada na crença na incapacidade do grupo parece pertinente para analisar nossos resultados. Isso demonstra que esses professores utilizam critérios diferentes para avaliar os grupos, sendo os negros avaliados com base na expectativa de fracasso, ou mesmo na crença em sua incapacidade de gerar um produto de qualidade (Ziviani, 2014). Os resultados do presente estudo reafirmam os achados de Rosemberg (1998), de Cavalleiro (2001) e de Wright (1992) no que tange ao fato da carência de um adequado tratamento afetivo e julgamento igualitário às crianças negras por parte da escola. Estas crianças enfrentam o preconceito por diversas frentes, através de seus companheiros, seus professores e da sociedade. É importante que seja dado às crianças negras o direito de participarem de uma escola sem preconceitos. Isso pode ser possibilitado pela valorização da compreensão deste fenômeno por parte dos professores no seu processo de formação docente, assim como pela ampla discussão na escola dos processos que subjazem as diferenças entre os grupos. Pois a compreensão de que processos históricos, políticos e econômicos de cada época foram os produtores da supremacia de um grupo sobre outro, questionaria a crença na essencialização da diferença, ou na diferença como naturalizada. Entretanto, a compreensão da história do grupo, de sua cultura e seus valores, pode fornecer tanto a alunos quanto aos professores o entendimento das diferenças e a compreensão destas diferenças como construídas histórica e socialmente. A discriminação de que são vítimas as crianças negras independe da cor da pele e da idade do professor. Sendo assim, poderíamos esperar que professores negros discriminassem menos a criança negra por se identificarem com elas. Entretanto, nossos dados demonstram que isso não acontece. Ao que tudo indica, professores brancos e negros participam de um mesmo contexto de relações raciais e sendo o preconceito e a discriminação fenômenos sociais aprendidos via processo de socialização1, podemos imaginar que esses professores, por estarem vivendo numa sociedade em que o racismo é experienciado numa idade precoce, sequer percebam que foram vítimas ou que estão vitimando (ALLPORT, 1954). Como demonstram os estudos de Cavalleiro (2001), os professores essencializam as questões raciais, considerando-as imutáveis. Castro e Abramovay (2006) chamam atenção para o fato de o preconceito na nossa sociedade ser sutil e, muitas vezes, passa imperceptível, como no seu estudo em que professores pais, diretores e alunos não percebem as diferenças de rendimento escolar entre os

1

Processo através do qual a criança se torna membro de uma sociedade, referindo-se à aprendizagem das regras, crenças, proibições, valores e modos de comportamento compartilhados por seu grupo social (GUIMOND, 2000).

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alunos negros e brancos. Esse viés, na percepção da defasagem em função da cor, pode ainda ser interpretado como uma forma de essencialização. Já na análise dos critérios utilizados pelos professores para avaliar as crianças, a discriminação ocorre de maneira mais sutil, porém não imperceptível. Observamos o uso de critérios superficiais na avaliação da criança negra, enquanto que para a criança branca os critérios lembram sua capacidade de pensar e agir inteligentemente. Como afirmam Fiske e cols. (2002), nas avaliações intergrupais, há uma tendência a utilizar características de competência ao grupo dominante e a analisar os grupos dominados através de critérios superficiais, o que representa uma forma de inferiorização do outro. Como no estudo de Haber (1998, 2004) o esforço para evitar a tensão intergrupal pode explicar os critérios escolhidos para avaliar a criança negra, ou seja, os professores avaliam a criança negra de modo menos severo e mais superficial. Também motivos cognitivos baseados em crenças de que negros têm menos competência acadêmica do que os brancos levariam a essa avaliação diferenciada da criança negra. Como afirmado nos estudos de Haber (1998, 2004) e Ziviani (2014) os professores automatizariam as suas respostas quando avaliam indivíduos desses grupos, ou seja, se recusam a dedicar tempo a eles. Já a criança branca é avaliada segundo os moldes do grupo dominante, ou seja, como criativa, que sabe construir porque é inteligente e capaz. Fundamentalmente, essas formas de avaliar os grupos se propõem a manter o status quo dos grupos, limitando seu campo de trabalho e de poder. Assim, o que se pode depreender desses dados é que as impressões que os professores têm das pessoas negras é de que elas não precisam alimentar expectativas, pois seu lugar social está previamente definido. Como afirma Menezes (2003), a escola reserva um lugar social de fracasso para a criança negra e, através de uma série de comportamentos partilhados por muitos do corpo escolar, levam-nas a internalizarem concepções negativas sobre si mesmas. Considerando-se que as crianças constroem seu lugar social, amparando-se no que é refletido a partir de seu contexto social, e a escola é um importante contexto de projeção, é necessário discutir o preconceito e a discriminação na escola a fim de reduzir o preconceito racial no seu interior e na sociedade (ZIVIANI, 2014). Para isso, faz-se necessário, ainda, como afirma Coelho (2006), zelar pela formação dos professores preparando profissionais atentos tanto para a dimensão pedagógica quanto para as dimensões humana e sociopolítica do processo educacional.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS No espaço escolar, reúnem-se diferentes grupos e suas diferenças muitas vezes não são consideradas como importantes elementos de análise, causando, assim, uma pressão que tem impactos diversos. O objetivo deste estudo é o de analisar o papel do professor no processo de discriminação de crianças negras. As análises feitas indicam que, provavelmente, as crianças negras estão submetidas, nas escolas, à forte pressão que é exercida em forma de crenças depreciativas e atitudes discriminatórias mantidas não somente por seus colegas, mas também por seus professores. Esta experiência tem efeitos sobre o comportamento, a autoestima e a percepção de si mesmo e das relações raciais, levando-as a perceber o ambiente social como hostil (CAVALLEIRO, 2001; LIMA; FRANÇA, 2012). A escola não é apenas um espaço para a aprendizagem de conteúdos acadêmicos, mas também é um espaço de socialização para as atitudes raciais. Sendo assim, é importante preocupar-se com os valores sociais e as crenças difundidas nesse contexto, haja vista que o manejo inadequado das relações raciais pode criar um ambiente de proliferação da inferioridade pessoal e disseminar profecias autorrealizadoras. Com base nas considerações de Merton (1948), Rosenthal (1989), Crano e Mellon (1978) e Diaz-Aguado (1996), podemos, portanto, afirmar que, se as crianças se sentem inferiorizadas, indesejadas ou como elementos estranhos ao contexto escolar, há uma forte possibilidade de evadirem-se da escola ou terem insucesso nesse contexto. Se dentro desse contexto perpassam crenças e ações que levem à diferenciação de grupos, seja pelo gênero, seja pela raça, seja pela classe, os indivíduos discriminados podem estar sob pressão. O resultado da pressão grupal é, em muitos casos, a diminuição da autoestima, e a luta pela sua proteção pode fazer indivíduos de baixo status diferenciar-se, negar ou evadirse de seus grupos. O professor é uma figura de identificação e detém o conhecimento dentro da escola. Em seu papel de socializador, espera-se que o professor tenha a preocupação de promover a igualdade entre os alunos, considerando suas diferenças raciais, culturais, religiosas, etc., evitando ser perpetuador de visões deturpadas e arraigadas sobre os grupos (OLIVEIRA, 2008). Enquanto educador, o professor precisa estar aberto para discutir as diferentes visões que as crianças apresentam sobre os grupos que compõem a sociedade. É importante refletir sobre suas próprias opiniões, pois elas serão transmitidas por sua expressão, postura do corpo e impostação da voz. Se a criança sente que é percebida como incapaz, poderá encarar isso como verdade. O resultado é a consubstanciação de uma profecia autorrealizadora que terá efeitos nocivos talvez em diversas áreas da vida.

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Como afirma Haber (1998), a avaliação do aluno pelo professor deve ser tanto vertical (baseado nos seus conhecimentos) quanto horizontal (baseado na sensibilidade e respeito a dignidade da pessoa) visando proteger sua autoestima e moral, de modo que ele deve estar atento no momento de suas avaliações para manter seu viés sob controle. Tendo em vista que a educação que a criança recebe no estágio inicial é de grande importância e forma base para seu desenvolvimento emocional, social e intelectual, preparar os professores para o manejo das questões raciais no interior da escola pode ser um modo de reduzir as desvantagens sofridas por crianças negras nesse estágio. Algumas medidas podem ser empreendidas visando a redução dos preconceitos na escola. Em conformidade com os estudos de Rutland, Brown e Cameron (2005), fornecer aos professores e alunos informações sobre as características culturais dos distintos grupos e sobre as bases dos preconceitos através do ato de contar histórias, que podem estar associadas a ênfase no que há de comum nos grupos existentes em determinado contexto; ter atenção a implementação da Lei n. 10.639 e ampliar o alcance de seus efeitos para outros grupos vulneráveis; elaborar ações que atinjam toda a escola no sentido de atuar junto todo corpo escolar, sobretudo, professores e alunos, na redução do preconceito na escola, semelhante ao estudo desenvolvido por Souza (2005). Estudos futuros podem centrar-se na formação dos professores para o aprimoramento ou aquisição de estratégias de redução do preconceito e à discriminação no contexto escolar, à luz dos novos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação, através da Lei n. 10.639 e seu possível subsídio a estratégias de redução do preconceito e discriminação. REFERÊNCIAS ALLPORT, G.W. The nature of prejudice. Massachussets: Addison-Wesley, 1954. BREWER, M.; CRANO, W. Social psychology. Minneapolis/St. Paul: West Publishing Company, 1994. BALSA, A. I.; MCGUIRE, T. G. Prejudice, clinical uncertainty and stereotyping as souces of health disparities. Journal of Health Economics, 22(1), 2003, p. 89-116. Disponível em: <http://www.rwj.harvard.edu/papers/mcguire.pdf>. CASTRO, M. G.; ABRAMOVAY, M. Relações raciais na escola: reprodução de desigualdades em nome da igualdade. Brasília: UNESCO, INEP, 2006.

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CAPÍTULO

2

A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE: APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

Sônia Oliveira Santos

“Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele” Martir Luther King

T

rataremos, especificamente, da educação dos negros em Sergipe onde faremos um apanhado histórico sobre a educação dos negros em Sergipe, em especial a educação das crianças negras, tendo como referencial a Sociedade Abolicionista Aracajuana, a Cabana de Pai Thomaz.

RETOMEMOS O PROCESSO HISTÓRICO... Em março de 1838, o presidente da Província Sergipana, o Sr. Eloi Pessoa da Silva, através do Decreto nº 15, sancionou a criação de um “Colégio de artes mecânicas” para o ensino de órfãos, pobres e filhos de pais indigentes 45


A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE: APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

e expostos, que tivessem cerca de dez anos de idade e nenhuma ocupação. Os escravos não foram admitidos nesse projeto, mesmo que o seu senhor arcasse com as despesas. De acordo com as pesquisas de Nunes (1984), em registros datados de 1850, foram encontrados alunos brancos, pretos e pardos, frequentando aulas públicas de primeiras letras nas Comarcas de São Cristóvão, Laranjeiras, Estância e Villa Velha.

Quadro 1 - Demonstrativo do número de escolas e alunos de primeiras letras ano 1850

MASCULINO

FEMININO

Brancos

822

Brancas

227

Pardos

771

Pardas

129

Pretos

30

Pretas

1

Alunos

1.623

Alunas

357

Escolas

38

Escolas

12

Fonte: NUNES (1984, p. 285).

De acordo com o quadro, as escolas masculinas correspondem ao triplo, aproximadamente, de escolas femininas, e justifica o papel social desempenhado pelas mulheres na primeira metade do século XIX. É notória a participação de pretos1 e pardos2 nas instituições públicas sergipanas. No que se refere à cor da pele, a quantidade de homens pretos é bastante inferior (cerca de 2%) com relação ao número de homens brancos e pardos matriculados; em relação às mulheres negras, a diferença é bastante gritante (0%) comparada às mulheres brancas e pardas matriculadas. No estado de Sergipe, segundo Cardoso (2005), na segunda metade do século XIX foram localizados grupos de escravos islamizados que sabiam ler. A digressão feita é para situar a história educacional de Sergipe. As escolas públicas já estavam em funcionamento, naquele momento, baseadas nas reformas educacionais nacionais e nos decretos específicos para o estado. Nesse período, em Sergipe, como em outros períodos da história brasileira, existiam grupos de pretos e pardos matriculados em escolas oficiais,

1

A denominação “preto” designa escravos africanos e escravos alforriados.

A denominação “pardo” designa homens e mulheres livres que tivessem traços de origem africana. 2

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Sônia Oliveira Santos

independentemente de a legislação amparar esse grupo étnico, como também existia a presença de escravos letrados, como visto no processo histórico brasileiro. A reforma de Couto Ferraz, de 1854, instituía a obrigatoriedade da escola primária a crianças maiores de 07 anos; contudo, restringia o acesso às crianças portadoras de moléstias. Concomitante a esse pensamento, o Sr. José Leandro Martins, vice-presidente da Província Sergipana, através da Resolução nº 1185 de 08 de maio de 1881, delegou os pais e tutores e curadores obrigatoriedade de vacinar filhos, escravos de servos, tutelados ou curatelados num prazo de seis meses após data de alerta à vacina, como também proibiu que crianças com um ano de idade completo fossem batizadas sem apresentar ao pároco a declaração de vacina. Sendo assim, os critérios higiênicos passaram a ser uma exigência também para a participação em aulas de estabelecimentos públicos ou privados. Nessa fase, os escravos, homens e mulheres livres que vagavam nas ruas aracajuanas, foram vistos como proliferadores de moléstias, o que automaticamente os impediam de frequentarem os bancos escolares. Após a Reforma Couto Ferraz, em Sergipe, a divisão do Ensino Primário ocorreu através do Regulamento de 24 de outubro de 1870, na gestão do Presidente da província Manoel Luís Azevedo de Araújo, que dividiu o ensino primário em dois graus: o elementar e o superior: (...) para aqueles que desocupados durante o dia nas suas profissões, de onde retiram os meios de subsistência, podem à noite também ir buscar a provisão do espírito que, não menos do que o corpo, para qual trabalham diariamente d’ella precisam. (NUNES, 1984, p.22).

Em setembro de 1978, o Sr. Antonio Cândido da Cunha Leitão, através do decreto 7.031, sugeriu a implantação do ensino noturno nas cadeias, com o objetivo de “recuperar a moral” daqueles que estavam marginalizados, e tal projeto foi transformado em Lei pela Corte. Na Província Sergipana, a expansão do ensino primário teve sua efervescência na década de 70 do século XIX, concomitantemente com os debates sobre a Lei do Ventre Livre e as reformas educacionais que, através de decretos, permitiam, ou não, o acesso de mulheres, homens e crianças negras ao sistema escolar. No que se refere à legalidade, o Decreto de nº 7247 de 19 de abril de 1897 foi uma reforma ministerial que defendia o acesso de escravos nas escolas públicas do Império, conforme legislação: ... a obrigatoriedade do ensino dos sete aos quatorze anos e a eliminação da proibição de escravos de frequentarem as escolas

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A EDUCAÇÃO DOS NEGROS EM SERGIPE: APONTAMENTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DAS POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS

públicas, considerou a livre frequência e aboliu ensino religioso obrigatório aos alunos católicos tornando-o facultativo.

O contexto histórico foi necessário para repaginar as legislações educacionais mais expressivas na Província Sergipana e revelar como os negros estavam inseridos nesse contexto. Passemos para os anos oitenta do século XIX... Em todo o Império, o movimento “abolicionista” era liderado por intelectuais e estava em pleno estado de ebulição. Segundo Clovis Moura (2004), o ato de abolir aconteceria por meio de movimentos, como foi o caso do Haiti, ou pelas interferências jurídicas. Vários homens e mulheres da Província Sergipana destacaram-se nas questões abolicionistas, mas gostaria de me deter na figura do Sr. Francisco José Alves. Segundo Santos (1997), Francisco José Alves nasceu em 12 de janeiro de 1825, na Província de Itaporanga, e sua origem racial não era de sangue africano: “(...) posso asseverar (...) que também era portuguez eu o conheci; era um homem alvo, corado e até bonito (...) como pode informar alguns velhos moradores de Itaporanga.” (Jornal Descrito. 31.10.1882 apud SANTOS,1997). Aprendeu a ler e a escrever em onze meses. Por causa da vivência culta e das boas relações sociais em Sergipe, tornou-se funcionário público. Suas leituras o fizeram admitir apropriações e a construção do abolicionista Francisco José Alves, de pseudônimo Pai Thomaz3. Não importa ser a ideia iniciada por um pequeno, para ser abraçada pelos grandes, o abaixo firmado pobre ficará com a denominação de Pae Thomaz, e sua caza a cabana d’elle; e em quanto os ricos irão dormir em suas colchas adamascadas e em regosijos de terem concorrido para uma obra grandiosa, como bem seja a liberdade do homem escravizado por outro homem. (Jornal o Sergipe, nov. de 1882 apud SANTOS, 1997)

Assim sendo, em 1882 na véspera do natal, na Rua de Capela (a sua residência), o Sr. Francisco José Alves “instalou a tipografia e a “Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz” 4 (SANTOS, 1997, p. 42).

3

A Cabana de Pai Tomás (1850) é de autoria norte-americana de Harriet Elisa Beth Beecher Stowq, que apresenta a estória do escravo civilizado encontrado na ficção e a proposta de educação e instrução aos ingênuos. 4

A inauguração foi marcada pela entrega da carta de liberdade do escravo Manoel pertencente ao tenente Coronel José Ignácio do Prado (Santos, 1997, p. 91).

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A Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz exercia várias atividades de cunho abolicionista, como a compra de cartas de alforria, denúncias feitas em jornais e atividades educativas que compreendiam palestras, conferências, representações teatrais e a alfabetização voltada à instrução de ingênuos5, assunto do interesse de nossa pesquisa. É muita ousadia da minha parte dirigir-vos a palavra neste momento solene – Eu, um quase analfabeto que tive a infelicidade de ñ cultivar as letras o que poderei dizer perante uma plêiade de jovens tão estudiosos e de homens tão provectos da dialética. Nada que vos possas agradar estou certo: Mas srs. É tal a grandeza da causa que defendo e da liberdade do homem escravizado por outro homem, que ella me empresta forças para dizer-vos o fim o que convidei para vos reunir nesta cabana do pobre velho Pae Thomaz. (Jornal O Sergipe, 17 de novembro de 1882, p.1).

Após a criação da Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz, o jornal o Sergipe publicou uma nota: “abertura de uma aula de primeiras letras, onde serão admitidos os ingênuos, filhos dos escravos que se libertarem.” (idem). A escola de Pai Thomaz A Escola de Pai Thomaz passou a funcionar em outubro de 1882, em sua residência, situada à Rua de Capela, em uma das salas de sua casa, durante todos os dias da semana, exceto aos sábados e domingos e dias santificados. Sei que existem muitas cadeiras públicas n’esta cidade onde eles podem educar-se; porem sei também que pelo luxo que é preciso sustenta se n’essas aulas os pobres ingênuos, cujos paes sahirão há pouco do captiveiro não podem sustental-os (...). (Jornal O Libertador. 19 de outubro de 1882, p.2).

Na escola, não existia calendário, período de férias, e não exigia fardamento, “a ordem era frequentar de qualquer maneira, mesmo que ‘de pés descalços, de tamancos, vestidos de chambre ou calça’”. (SANTOS, 1997, p.105). A escola era mantida com recursos próprios, e os alunos recebiam materiais didáticos doados pela própria escola (cartilhas, tinta, papel e canetas).

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Sociedade Abolicionista Aracajuana Cabana do Pai Thomaz foi criada meses depois da Lei do Ventre Livre, num período em que foram travadas discussões sobre os cuidados com a criança negra.

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As aulas eram ministradas pelas professoras: Etelvina Amália de Siqueira 6 e Maria dos Prazeres Siqueira Alves7. O público da escola consistia em crianças que moravam nas proximidades da casa do Sr. Francisco José Alves, e os filhos das mães que já estavam libertas, ou filhos que, de acordo com a Lei do Ventre Livre, estavam prestando algum serviço, desde que os responsáveis por eles dessem permissão. A escola de Pai Thomaz esteve à frente do seu tempo, e tinha como proposta tornar-se um grande instrumento de inserção de ex-escravos e seus descendentes na sociedade brasileira da época. Os conteúdos ministrados na escola eram direcionados ao ensino da leitura e da escrita, ensinamentos morais, patrióticos. Para o Sr. Francisco José Alves, a liberdade estava para além das amarras do cativeiro: “(...) toda província sabe que de 1872 para cá, tomei a peito deffender a liberdade do escravo que a ella tem direito”. (Jornal o Libertador. 24.02.1883). A liberdade, para ele, estava relacionada ao provimento de instrução intelectual, condição primeira para que o indivíduo pudesse ter acesso à sociedade de classes. A instrução é a base em que se firma a liberdade. Promovendo eu a liberdade do mísero escravo, nesta província não posso esquecer-me da educação de seus filhos; por essa razão resolvi abrir uma aula de ensino primário, em minha residência, na Rua de Capella, para ensinar aos ingênuos de ambos os sexos, cujas mães já gozem de sua liberdade...(Jornal O Libertador, 11.12.1882, p. 02.)

A inexistência de documentos não possibilita maiores informações sobre o tempo de duração da escola de Pai Thomaz, bem como de outros lugares destinados à educação dos ingênuos na província Sergipana, o que abre um leque para a investigação de estudos posteriores. Contudo, Sergipe tem um precedente histórico no processo inicial de políticas para a promoção da igualdade racial voltada para a educação desde o período do império, como iniciativa ímpar para o nordeste abolicionista, que foi Etelvina Amália de Siqueira era sobrinha do Sr. Francisco José Alves. “Cultora do verso e da prosa, oradora vibrante, educadora, conhecedora do idioma pátrio, abolicionista convicta e como tal amante da liberdade e da república”. (FREIRE, 1988, p. 29.). 6

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Maria dos Prazeres Siqueira Alves. Filha do Sr. Francisco José Alves. Ingressou no curso normal no ano de 1882 e atuou em Aracaju como professora primária, oradora, jornalista e abolicionista.

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noticiado e parabenizado pelos intelectuais da época, propiciando às crianças, de forma objetiva, valores éticos, morais sociais e intelectuais para a sua inserção na sociedade do século XIX. Parabéns oh! Sergipe já na capital de tua província se levanta uma plêiade de jovens estudos, amantes do progresso e da civilização, profigrando as trevas dos tempos idos e combatendo o erro dos nossos antepassados! (Jornal o Descrito. 3 de julho de 1882, p. 01).

O atual ensino municipal de Aracaju e as políticas de ações afirmativas Não poderia iniciar a falar sobre as políticas de ações afirmativas no município de Aracaju sem fazer uma breve explanação sobre a rede. A partir da década de 1980, a administração escolar passou por uma profunda modificação, objetivando a redefinição do conceito de escola. Segundo o pensamento de Barroso (1998), a década de 1980 trouxe significativas alterações no papel administrativo do Estado no que se refere à educação, emprego e outras pautas que estavam diretamente ligadas à crise econômica. Nesse período, reconhece-se a escola como um local de gestão. Em 1985, no processo de eleições diretas, parte da população iniciou um questionamento junto às suas lideranças quanto às ações políticoadministrativas. Os sindicatos, partidos, políticos e organizações dos movimentos populares também se apresentaram atuantes. Nesse período de movimentação política, a rede municipal de ensino da capital, no que se refere à gestão democrática, passava por um processo de retrocesso na aplicabilidade de gestão. Por conta dessa situação, existiu uma movimentação progressista dentro da rede no período de 1989 a 1992. Houve a elaboração coletiva de uma proposta curricular de caráter político pedagógico, nesse período, que desencadeou um grupo de discussão formado por educadores, alunos, pais e lideranças comunitárias, na tentativa de formular ou sistematizar um currículo para a escola pública básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio8. A experiência de construção coletiva exigia uma escola de qualidade voltada para o atendimento dos direitos civis básicos do cidadão das camadas populares que assegurasse seu acesso e permanência regular no sistema de ensino. Em tempo, citava reclamações sobre a valorização do professor,

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O objetivo básico voltou-se para a elaboração coletiva de uma proposta curricular com vistas à orientação e subsídio das ações escolares, enfatizando as atividades de apropriação e superação críticas do saber historicamente acumulado nos diversos campos da ciência.

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entendendo que ele era o interlocutor notório do processo de uma gestão efetivamente democrática. Essa conjuntura de trabalho proporcionou profundas modificações na realização de várias atividades. O que perpassou por todos esses eventos foi a busca da construção de uma proposta curricular coletiva, democrática e direcionada aos interesses dos trabalhadores e da comunidade. (...) processo sócio histórico-cultural organizado na própria unidade escolar em momentos não lineares e sempre vinculados a sociedade onde foi gerado (...) corporificação dos interesses sociais e luta cultural que se processa na sociedade. Interesses e luta que invadem e transitam na escola, concretizando-se nas práticas pedagógicas. É instrumento de ação política, que se define no posicionamento do educador diante da realidade e no compromisso com outros sujeitos educadores-educandos. Ou seja, aqui o currículo é compreendido como ação coletiva que se funda numa concepção do mundo-homemeducação. Concepção esta que aceita e acreditada, é trabalhada na escola, numa sociedade concreta (SEMED/PMA, 1992, p.15).

No período de elaboração da proposta, foram criados grupos de trabalhos O processo dos GT’s fez emergir conflitos de ordem política, motivo pelo qual grupos foram desfeitos e, em outros momentos, recompostos, registrando dissidências e adesões. (GT’s)9.

Existiram, apesar disso, características pontuais e comuns entre a produção dos GT’s, em relação ao processo democrático da rede municipal, desencadeado desde 1985: crítica severa das condições físicas das escolas e dos salários dos professores; tentativa de assimilação do eixo da proposta – trabalho como gerador de riquezas, bem-estar social e conhecimento (bem presente nos GT’s de Alfabetização, história e Educação Física); caracterização de docentes e discentes, mais (para alguns GT’s) ou menos (para outros GT’s) exaustiva, em termos das suas representações; clareza da função social e

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Os grupos de trabalhos foram organizados em torno de áreas e conteúdos considerados essenciais e democráticos, com representação de docentes e especialistas das escolas e da Secretaria de Educação. Formaram-se três GT’s que reuniram cerca de 100 docentes em torno das seguintes áreas do processo de ensino/aprendizagem e conteúdos essenciais da educação básica: Educação Infantil (incluindo a preocupação com creches e pré-escolas); Alfabetização (de crianças, jovens e adultos); Língua Portuguesa; Educação Artística; Ciências; História; Geografia; Educação Física; Ensino Religioso; Língua Estrangeira; Matemática; Contabilidade; e disciplinas Pedagógicas.

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política da escola pública para as camadas populares, na perspectiva de instrumentalização e domínio do saber (BEZERRA, 2007, p.52). Segundo a SEMED/PMA (Secretaria Municipal de Educação/Prefeitura Municipal de Aracaju) (1992), no que se refere à execução, são descritos três programas amplamente coletivos que tiveram papel fundamental na construção da versão preliminar da proposta curricular: Programa Horas de Estudos10; Encontro Regionais de Escolas e I Jornada Municipal de Educação. Segundo Bezerra (2007, p.53), o Programa Horas de Estudo é uma conquista assegurada no Estatuto do Magistério do Município de Aracaju (Lei 1.350/88). O programa Horas de Estudo tem como objetivo a qualificação do professor da rede municipal de Aracaju no que concerne à qualificação e elevação da qualidade do ensino da escola municipal através da pesquisa, estudo em grupo, troca de experiência e outras ações conjuntas que possibilitem a busca de soluções inovadoras para o problema do cotidiano. Respeitando a autonomia das escolas e dos educadores, a SEMED montou uma estrutura de orientação às unidades tanto em sala quanto no Programa Horas de Estudo11. Desde 1988, através das lutas travadas, os professores conquistaram e asseguraram, no estatuto do magistério, um percentual de sua carga horária (25%), destinada a reflexões, análises e trocas de experiência e aprofundamento das práticas pedagógicas. “O Programa Horas de estudos no momento de sua criação contribuiria para o avanço político, organizativo e científico da categoria” (BEZERRA, 2007, p. 53). Em gestões anteriores, o programa Horas de estudos não vingou, mas, no período da proposta curricular, o programa passou por uma evolução qualiquantitativa, chegando a exigir a criação do Centro Municipal de Recursos Humanos Prof. Paulo Freire, atualmente chamado de Centro Municipal de Aperfeiçoamento de Recursos Humanos Professor Fernando Lins e Carvalho (CEMARH). Nos anos de 1994 e 1995, foi implementado, no município de Aracaju, através das Leis nº 2.221 de 30 de novembro de 1994, e 2.251, de março de 1995. A lei nº 2.221 institui a criação do curso preparatório para o corpo docente e outros especialistas da rede municipal de ensino, visando à implantação de disciplinas ou de conteúdos programáticos no currículo da referida rede,

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No momento, iremos apenas nos deter ao programa Horas de Estudos, por se tratar do programa de formação continuada de professores pertinente à pesquisa. 11

Informação disponível em www.aracaju.se.gov.br. Acessado em maio de

2013.

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baseados na cultura e na história do negro e do índio, de acordo com a pedagogia interétnica e dá outras providências. A Lei nº. 2.251 dispõe sobre a inclusão, no currículo escolar da rede municipal de ensino de 1º e 2º graus, de conteúdos programáticos relativos ao estudo da raça negra na formação sociocultural e política brasileira e dá outras providências a primeira experiência de leis antirracistas no âmbito municipal, com inclusão no currículo escolar – no Brasil, no final dos anos 1980, alguns municípios (nove) programaram, em seu sistema de ensino, a história do negro e a história do continente africano, e Aracaju saiu na frente, incluindo também a formação de professores no seu conteúdo programático. A partir daí, então, foi dado início ao processo de formação de professores na temática, até a chegada da Lei 10.639/2003, que deu outro encaminhamento de modificação curricular obrigatória. Nesse ínterim, a formação continuada de professores tomou outra forma no sentido obrigatório, tanto para a organização quanto para a aplicabilidade da Lei em sala de aula.

CONSIDERAÇÕES ... Negro não sabe o que é dor; Negro não tem alma não; Assim dizia o feitor com seu chicote na mão...

E, assim, com as estrofes dessa canção, é impossível não sentir, entender e compreender que os aspectos pertinentes ao preconceito e ao racismo têm relação íntima com o negro no Brasil e a sua condição de escravo. Sem dúvida, o racismo é um fenômeno social presente de forma concreta na estrutura social brasileira, e a luta por sua superação pode constituir um elemento importante para a construção de novas dinâmicas na relação social – na qual ainda se percebe o negro brasileiro enfrentando dupla barreira: social e racial. Assim, ele sempre será duplamente explorado pela condição de classe e pela condição de raça. Mesmo aqueles que conseguem superar as condições sociais, deparam-se com as questões raciais. Então, a questão e a luta de raça é um componente ativo que tem que ser considerado na luta de classes no país. Quando iniciei a minha pesquisa, estava investigando a legislação antirracista do município de Aracaju no que se refere à educação. O olhar da legislação passa pelo crivo de que somos um país legalista, e muitas das lutas do movimento social negro reverberam sob a forma da lei. A minha condição de pesquisadora e militante permitiu-me fazer interferências sem o olhar da neutralidade que hoje a pesquisa me permite fazer. Muitas foram as constatações. Uma delas é a de que a educação é um dos 54


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principais indicadores para a mobilidade social quando as políticas de acesso e permanência à educação estão alinhadas. Agora, e o racismo? Respondo, perguntado à hipótese do meu trabalho, num olhar intrínseco e íntimo. Minha mobilidade social está relacionada com minha titulação de mestre? Trago algumas considerações neste final do trabalho: 

   

O mito da democracia racial está presente dentro e fora do ambiente escolar, comprovado na forma de como esses conteúdos estão presentes no currículo e de como essas relações têm seu trato amenizado; A percepção do sujeito negro parte do processo de formação da identidade do pertencimento étnico-racial; A narrativa do processo histórico do povo negro ainda é eurocêntrico; Teorias seculares ainda sustentam as bases que reforçam o racismo por meio de estereótipos - fundamentados na base capitalista; Leis são transformadas em letras mortas se não forem de interesse comum.

Entendo que as leis antirracistas trabalhadas na perspectiva de superação da ideologia de dominação racial podem constituir-se como instrumentos importantes no campo do currículo (real), aliando o específico ao universal na perspectiva de superação das bases constitutivas das desigualdades raciais e sociais. A pesquisa me fez perceber que é possível o tempo das mudanças. Não quero aqui dizer que o país irá ENEGRECER em suas teorias e concepções, mas que esse movimento deve ser realizado em diferentes instâncias: escola e sociedade para que a temática negra seja legítima como uma dimensão da vida brasileira.

... Malvado banzo me mata Quero à Pátria voltar Na minha terra sou livre Como andorinha no ar (autor desconhecido)

REFERÊNCIAS ARAÚJO, U. F. O déficit cognitivo e a realidade brasileira. In Aquino Julio Groppa (org). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. 5. Ed Summus: São Paulo, 1998

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ARETHUSA, Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada. Rio Claro, 1871 – 1888. Disponível em https://historiademografica.tripod.com/bhds. Acesso em: 30 de janeiro de 2012. BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil 03/constituicao/ constituicao24.htm. Acesso em: 25 de janeiro de 2012. _________. Lei 5.540/68. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/leis/l5540.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012. _________. Lei 5.692/71. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/leis/l5692.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012. _________. Lei 9.394/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/leis/l9394.htm. Acessado em 25 de janeiro de 2012. BEZERRA, Ada Augusta Celestino. Gestão democrática da construção de uma proposta curricular no ensino público: a experiência de Aracaju. Maceió: EDUFAL, 2007. CARDOSO, Amâncio. Escravidão em Sergipe: fugas e quilombos, século XIX. In Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Edição Comemorativa do Sesquicentenário e Aracaju (2003-2005). Aracaju: nº 34 p. 55-57 jul-ago) 2005. CARVALHO, M.M.C. de. A escola e a República. São Paulo: Brasiliense, 1989. COSTA. Emilia Viotti. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1989. CRUZ, Mariléia dos Santos. Uma abordagem sobre a história da Educação dos negros. In: História da Educação do Negro E Outras Histórias. ROMÃO, Jeruse (org.). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Paz e Terra, 1984. SANTOS, Ângela Maria. Vozes e silêncio do cotidiano escolar: as relações raciais entre alunos negros e não negros. Cuiabá: EdUFMT, 2007 SANTOS, Maria Nely. A Sociedade Libertadora. “Cabana do Pai Thomaz”, Francisco José Alves, Uma história de vida e outras histórias. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 1997. ____________. Aracaju: um olhar sobre sua evolução. Triunfo, Aracaju, 2008

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CAPÍTULO

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DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS

Roberto dos Santos Lacerda

A

era da modernidade é fortemente associada ao desenvolvimento, capitalista, industrial e científico. Entre os fatos históricos que marcaram esse período estão a escravização de seres humanos, principalmente do continente africano para as Américas, e a colonização europeia na África, Ásia e América Latina. Significativamente, as categorias raciais surgiram durante essa época, convenientemente com o projeto de dominação que perpassava pela estratificação social como um dos pilares para a dominação e exploração. Além da dominação e exploração física, o processo de escravização e colonização se deram também no campo do pensamento, das ideias, principalmente na produção de estereótipos e concepções que legitimavam e justificavam a supremacia europeia e sua dominação e exploração sobre os

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grupos escravizados e colonizados. Para Foucault (2001) toda sociedade controla e seleciona o que pode ser dito numa certa época, quem pode dizer e em que circunstâncias, como meio de filtrar ou afastar os perigos e possíveis subversões que daí possam advir (FOUCAULT, 2001). Além da configuração das “peças do tabuleiro” da geopolítica mundial, o processo de colonização, estrategicamente, se deu também no campo do saber, atribuindo valor e legitimidade à produção ocidental eurocêntrica em detrimentos das demais culturas. Gosfroguel (2007) afirma que o racismo epistêmico, é um dos racismos mais invisibilizados no “sistema-mundo capitalista/patriarcal/moderno/colonial” e que: opera privilegiando as políticas identitária (identity politics ) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a única com capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. (GOSFROGUEL, 2007, p. 32)

Compreender a importância do reconhecimento de outras narrativas, discursos e formas de interpretação dos fenômenos é um desafio imprescindível de ser enfrentado. Os efeitos do histórico de universalização e hegemonia do pensamento eurocêntrico. Para Foucault, saber e poder não existem separados um do outro: Não há relação de poder sem construção de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT Apud ARAÚJO, 2001). Segundo Foucault, toda linguagem e todo discurso traduz uma vontade de poder e de dominação. Para realizar esta aspiração de conquista, o poder investido nos discursos se associa ao saber, em especial àquele saber socialmente reconhecido/imposto como "verdadeiro" (LIMA, 2003). Nesse contexto, o saber científico assume o protagonismo na apresentação do discurso verdadeiro, conquistando esse status ancorado nas ideias de objetividade e neutralidade. O combate ao racismo, em suas variadas facetas e desdobramentos, configura-se numa tarefa em torno da qual gravitam múltiplas e diversas forças sociais, interesses, leituras. Para tal missão, faz-se necessário a superação da visão universalista da suficiência do conhecimento científico eurocêntrico sobre a “verdade”. O reconhecimento e emergência de “novas” formas de compreender/explicar os fenômenos, principalmente os que incidem diretamente sobre as questões raciais configura-se como imperativo atual e imprescindível na superação dos efeitos da colonização e escravidão. Nesse sentido, o presente artigo visa refletir sobre as possibilidades de utilização das epistemologias afrocentradas como ferramentas de superação do racismo. 59


DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS

ABORDAGEM AFROCENTRADA E PARADIGMA DA COMPLEXIDADE: OUTROS OLHARES SOBRE O RACISMO A importância da categoria raça1 na análise das relações sociais em lugares como o Brasil, que se constituiu como país a partir do sistema escravocrata, torna-se imprescindível na medida que possibilita compreender a origem e os processos que constituem as persistentes e profundas iniquidades que existem em nosso país. A busca pela reflexão a partir de outras epistemologias, como a africana, não deve ser compreendida como um “revanchismo epistêmico” ou tentativa de inverter as posições na arena na geopolítica do saber. Deve ser papel do pesquisador buscar e apresentar alternativas epistemológicas considerando a complexidade dos fenômenos e a diversidade de formas de pensar e construir conhecimento. Apesar da epistemologia ser universal, dada a capacidade humana de conhecer, as formas de aquisição de conhecimento variam segundo os contextos socioculturais em que as reivindicações de conhecimento são formuladas e articuladas. (KAPHAGAWINI & MALHERBE, 2002). A partir do entendimento de que a epistemologia é o “estudo de teorias sobre a natureza e escopo do conhecimento, a avaliação dos pressupostos e bases do conhecimento e o estudo minucioso do que o conhecimento afirma” (KAPHAGAWINI & MALHERBE, 2002, p.2), pode-se perceber o caráter universal e independente de cultura, tribo ou raça, que a epistemologia possui enquanto ramo da filosofia que analisa e avalia as reflexões sobre o conhecimento. Questionar a hegemonia e apresentar alternativas à epistemologia eurocêntrica, se faz um imperativo para as pesquisas sobre racismo, na medida em que essa sempre privilegiou um padrão de pensamento no ocidente que estuda o “outro” como objeto e não como sujeito produtor de conhecimentos. Fomentar a utilização de outras epistemologias rompe com a tradição clássica da pesquisa ocidental, já que, em vez de um sujeito branco estudando sujeitos não-brancos como objetos do conhecimento, assumindo-se a si mesmo como um observador neutro não situado em nenhum espaço nem corpo ("egopolítica do conhecimento"), o que lhe permite portanto reclamar uma falsa objetividade e neutralidade epistêmica, temos a nova situação de sujeitos das minorias discriminadas estudando a si mesmos como

A categoria raça é compreendida aqui, não como categoria biológica, mas enquanto constructo social determinante de desigualdades sociais e do processo saúde-adoecimento-morte. 1

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sujeitos que pensam e produzem conhecimentos a partir de corpos e espaços subalternizados e inferiorizados ("geopolítica e corpo-política do conhecimento") pela epistemologia racista e o poder ocidental. (Gosfroguel, 2006, p.32).

Para Gosfroguel (2006) essa posição epistemológica descolonizadora e política reflete o combate ao racismo epistêmico, que atribui e reconhece a produção de teoria aos sujeitos ocidentais brancos enquanto os não-brancos produzem folclore, mitologia ou cultura mas não conhecimento de igual para igual com o ocidente, mas abriu um potencial para a descolonização do conhecimento ao desafiar a "ego-política do conhecimento" cartesiana das ciências ocidentais, opondo-lhe a "geopolítica e a corpo-política do conhecimento" dos sujeitos subalternos (GOSFROGUEL, 2006, p. 32)

A proposta de um olhar descolonizador e afrocentrado sobre a epistemologia opõem-se aos mitos da objetividade e neutralidade, que contribuíram para invisibilizar e deslegitimar quem fala e a partir de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de poder se fala. Machado (2014) ressalta que a descolonização da filosofia implica sua ressignificação, onde a filosofia está a serviço da ética e o indivíduo é o bem maior. A ruptura no processo de reflexão e apreensão da realidade com referenciais epistemológicos eurocêntricos pode representar grande avanço à compreensão do fenômeno saúde. Breilh (2006) destaca que o conhecimento em saúde que almeja ser transdisciplinar e relacional e pretende converter-se em uma narrativa de emancipação, deve assimilar todo conhecimento emancipador proveniente das diversas fontes do saber – o conhecimento acadêmico, a ciência ancestral dos povos (“ciência do concreto”, no sentido proposto por Lévi-Strauss) e até o saber comum, sistematizado pelas coletividade urbanas e rurais – e extrair desse acúmulo de todas as fontes o que for necessário para construir objetos/conceitos/campos de ação contrahegemônicos. (BREILH, 2006.p.55)

A necessidade de questionamento da ordem estabelecida na produção do conhecimento no Brasil é apontada desde o século XIX por Tobias Barreto ao afirmar que o Brasil padece de uma espécie de prisão de cérebro: tem peçonha no miolo. É preciso sujeitar-se à dolorosa operação da crítica de si mesmo, do despego, do desdém, e até do asco de si mesmo, a fim de conseguir uma cura radical. (TOBIAS BARRETO, 1874 Apud MERCADANTE; PAIM, 1990).

Compreender a vivência cotidiana da população negra com o racismo impõe ao pesquisador, imbuído de intencionalidade emancipatória na sua prática de reflexão e produção do conhecimento, o imperativo ético e político de revisitar o arcabouço teórico-metodológico produzido pelos povos de origem africana. 61


DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO E COMBATE AO RACISMO: CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS AFROCENTRADAS

Essa rica e pouco conhecida produção tem sido historicamente anulada pelo racismo epistêmico que universaliza e legitima as concepções eurocêntricas de análise dos fenômenos sociais. Nesse sentido, a compreensão dos valores africanos de referência e identidade, que se configuram como importantes pressupostos na afirmação da cultura afro-brasileira. Para articular e recuperar esses valores utilizados na construção do habitus2 afro-brasileiro, faz-se necessário uma orientação afrocentrada na pesquisa e no pensamento (ASANTE, 1980). A filosofia africana apresenta um caráter espacial ao conceber que “um pensamento não pode existir sem saber de que lugar se origina, qual caminho de origem e qual destino seguir. É necessário saber de onde pisa para dialogar com outras construções de caminhos (SANTOS, 2010, p.7). A ancestralidade permeia a filosofia africana, que tem como preocupação fundamental o indivíduo, a natureza e também a comunidade. Wiredu (1980) chama a filosofia africana tradicional de “pensamento de comunidade” e diz que “ele não é criação especifica de um filósofo” (WIREDU, 1980, p.46-47). Para este autor o pensamento é propriedade comum e pertence a toda a humanidade. Cunha (2010, p. 82) considera o pensamento filosófico africano como: formas filosóficas de refletir e ensinar e aprender sobre as relações dos seres da natureza, do cosmo e da existência humana, são filosofias pragmáticas da solução dos problemas da vida na terra, profundamente ligados ao existir e compor o equilíbrio de forças da continuidade saudável destas existências, sempre na dinâmica dos conflitos e das possibilidades de serem postas em equilíbrio. A contradição e a negociação. Os problemas da existência física e espiritual fundamentam-se nos da existência de uma totalidade que governa as gerações e que permite a continuidade dinâmica da vida pela interferência humana. São formas de pensar, tomadas dos mitos, dos provérbios, dos compromissos sociais que formam uma ética social, refletem, inscrevem [...], registrado na oralidade os condicionantes da existência humana, da formação social, das relações de poder e justiça, da continuidade da vida. A natureza como respeito profundo a vida.

Nesse conceito podemos perceber como a alteridade age, nela Oliveira (2006) destaca que “o diagrama da filosofia africana é construído no plano horizontal de solidariedade”. Nesse plano, o princípio da circularidade se faz 2

Categoria proposta por Bourdieu (2003) que explica que as percepções e os sentidos atribuídos às manifestações fenomênicas da saúde dependem da posição que os sujeitos ocupam nos diversos campos do espaço social e de suas relações, muitas vezes de lutas e conflitos, mas também cooperativas e comunicativas (VIEIRA, 1999). O habitus sintetiza a incorporação de elementos relativos a história coletiva e a trajetória individual no inconsciente dos indivíduos, atuando como matriz de percepção e classificação das práticas, como um operador prático que ajusta condições objetivas e esperanças subjetivas (BREILH, 2006).

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presente, pois no círculo todos são incluídos e interagem entre si, considerando a cumplicidade de indivíduo e natureza, pois “é o corpo da natureza que dará corpo à vida [...]. Ela existe como condição da existência” (OLIVEIRA, 2007, p. 220-221). São os princípios da ancestralidade, da diversidade, da integração e da tradição agindo e dimensionando tal filosofia (MACHADO, 2014). Refletir a experiência humana na perspectiva africana requer a busca das bases dessa filosofia. Uma categoria importante no pensamento africano é ubuntu. Portanto, ubu-ntu é uma categoria ontológica e epistemológica no pensamento africano do povo de língua banta. É a indivisível unicidade e inteireza da epistemologia e ontologia. Ubu é geralmente entendido como a existência e pode ser dito como uma ontologia distinta. Enquanto ntu é um ponto no qual a existência assume uma forma concreta ou um modo de ser no processo contínuo de desdobramento que pode ser epistemologicamente distinto. (RAMOSE, 1999)

Algumas ideias presentes na filosofia ubuntu nos aproximam da compreensão da relação entre as pessoas nas comunidades afro-brasileiras. Uma delas é a ideia da comunidade, de que pessoas dependem de outras pessoas para serem pessoas, já que a ideia central do Ubuntu é “Eu sou, porque nós somos”. Percebemos nitidamente a diferença para a ideia europeia sobre a natureza humana que tem na liberdade valor fundamental concebendo que indivíduos tem o poder de escolha. Para o ethos do ubuntu, uma pessoa não só é uma pessoa por meio de outras pessoas, mas também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para com o meio ambiente e os seres não humanos. É imprescindível destacar que as consequências das relações instituídas entre os seres da natureza, animados e inanimados (nas sociedades africanas tudo tem vida), constitui parte das filosofias africanas vindas das sociedades ligadas às questões da ancestralidade, da identidade territorial e da transmissão dos conhecimentos pelas palavras (CUNHA, 2010). Nesse sentido, a afrocentricidade apresenta-se como uma abordagem epistemológica inovadora na compreensão dos fenômenos relacionados à construção identitária e consciência racial, fatores determinantes no combate ao racismo. Essa reflexão se faz pertinente tomando como premissa a realidade do Brasil a partir de dois paradigmas civilizatórios que constituem a sociedade brasileira, que produzem subjetividades: o paradigma ocidental e o negroafricano (ALVES et. al., 2015). Finch III e Nascimento (2006) ressaltam que o pensamento afrocêntrico, tem seus primeiros registros a partir do século XVIII incluindo depoimentos de africanos submetidos ao holocausto da escravatura mercantil europeia. Eles 63


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destacam relatos fatos relevantes tais como: a solicitação à justiça de retorno à África feita por escravizados alforriados em 1773 em colônias inglesas dos Estados Unidos; a publicação de obras abolicionistas por africanos antiescravistas com propostas de melhor tratamento, libertação e indenização do africano pelos danos sofridos. No Brasil, Ferreira (2008) destaca a “Carta da escrava Esperança Garcia do Piauí, escrita por ela mesma”. Trata-se de um texto dirigido ao Governador da Capitania do Piauí apresentando as queixas contra o administrador das fazendas reais. A carta tem importância para a derrubada do mito da passividade, da convivência pacífica e da democracia racial dos escravizados com os senhores no Brasil no cativeiro africano no país. (FERREIRA, 2008). No século XX diversos ativistas e acadêmicos africanos e afrodescendentes empenharam esforços para a consolidação do paradigma afrocentrado para as questões relativas à África e à diáspora. Finch III & Nascimento (2006) destacam o papel do senegalês Cheik Anta Diop, que ganhou destaque ao iniciar o processo de “mudança de paradigmas” na forma que a África era estudada. Destacam-se nesse período, W.E.B.Du Bois, Marcus Garvey, importantes intelectuais e ativistas afro-americanos que empreenderam esforços intelectuais e políticos para a mudança da ordem vigente de desprezo e discriminação à cultura e experiência africana ao redor do mundo. Os principais estudos iniciaram na década de 1960 em Núcleos de Estudos Negros em algumas universidades nos Estados Unidos como tentativa de formular teorias, abordagens e epistemologias originais numa perspectiva negra opondo-se a naturalização e hegemonia das epistemologias eurocêntricas acerca de questões africanas. No final da década de 1970, Molefi Asante começou a falar sobre a necessidade de uma orientação afrocêntrica da informação. Seus esforços resultaram na publicação do livro “Afrocentricidade: a teoria da mudança social”, em 1980, seguido por “A ideia afrocêntrica” (1987) e “Kemet, afrocentricidade e conhecimento” (1990) demarcam o território epistemológico da afrocentricidade. A afrocentricidade é definida por Asante como “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos e seus descendentes como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos. (ASANTE, 2009, P. 93). Esse paradigma ampara-se na afirmativa que os africanos devem “operar como agentes autoconscientes” de sua história, cuja autodefinição positiva e assertiva deve partir da “cultura africana”. Essa perspectiva rompe com a ideia de “neutralidade” de ideias, conceito e teorias ao considera-las produto de uma matriz cultural e história particular. (MAZAMA, 2009, P. 111). Um dos pontos marcantes da ideia afrocêntrica está na proposta epistemológica do lugar. Asante (2006), destaca a importância da localização ao refletir que, 64


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Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na África e sua diáspora. Começamos com a visão de que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural de acordo com seus próprios interesses humanos. (ASANTE, 2006, p. 93)

Nascimento (2009) ressalta que afrocentricidade trata-se de uma teoria do centro, que ressalta a necessidade de demarcar localização do sujeito para desenvolver um engajamento teórico próprio ao grupo social e fundamentado em sua experiência histórica e cultural. Karenga (1998, p.404) define a afrocentricidade como sendo “essencialmente uma qualidade de perspectiva ou abordagem assentada na imagem cultural e no interesse africano”. A afrocentricidade surge em oposição à supremacia branca, que se expressou ao longo da história tanto como processo físico, marcado pela violência e brutalidade nos processos de escravização e colonização europeia, como na ocupação do psicológico e intelectual africano por meio da massificação de ideias, teorias e conceitos europeus como naturais, universais e normais (MAZAMA, 2009). Apesar de explicitar sua não pretensão à hegemonia, a abordagem afrocentrada não contesta a validade do eurocentrismo para o Ocidente, mas a sua pretensa universalidade hegemônica (NASCIMENTO, 2009). De forma assertiva e direta, mas imprescindíveis para sua efetivação frente à normatização eurocêntrica nos diversos campos, incluindo o acadêmico. Para Mazama (2009, p.111) “nós africanos devemos operar como agentes autoconscientes, não mais satisfeitos em ser definidos e manipulados de fora”. Como um dos fundamentos para definição de localização do africano como sujeito, faz-se necessário compreender um dos conceitos-chaves que estruturam a afrocentricidade é o conceito de agência. Definido por Asante (2006) como a capacidade de dispor de recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana, esse conceito denota “a capacidade de pensar, criar, agir, participar e transformar a sociedade por força própria” (NASCIMENTO, 2009, p.192). Enfim, agente é “um ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses”. Na linha oposta a desagência é entendida como qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo. Na realidade brasileira, compreende-se que o paradigma civilizatório negro-africano é formado pelo conjunto de elementos do complexo cultural africano que inscreve em território brasileiro uma dinâmica civilizatória (LUZ, 2000; SANTOS, 2008; SODRÉ, 1988) mesmo diante do paradigma dominante (ALVES, et. al 2015). 65


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O olhar afrocentrado no estudo das relações sociais, principalmente acerca do impacto do racismo no Brasil perpassa pela necessidade de alinhar epistemologia e análise dos fenômenos numa perspectiva emancipatória. Diante do processo civilizatório brasileiro, é importante destacar a impossibilidade de se pensar a afrocentricidade dissociada da alteridade, já que o descendente africano no Brasil tem sua identidade formada, também, sob a influência de valores branco-europeus e indígenas. Entretanto, a pertinência da abordagem se ampara na necessidade de problematizar o padrão ocidental como característica principal da “civilização brasileira”. Nesse hegemônico ocidental, Nascimento (2003) reflete que a africanidade sempre é incluída nos termos definidos por ele, ou seja, uma africanidade identificada de forma irredutível com a escravidão, eliminando-se a ideia de povos africanos soberanos, atores no palco da história da civilização humana. Trata-se daquela africanidade lúdica, limitada às esferas da música, da dança do futebol e da culinária (NASCIMENTO, 2003, p.206).

A complexidade das questões raciais no Brasil só pode ser compreendida a partir de um pensamento também complexo, capaz de estimular no pesquisador um modo de pensamento aberto e flexível dentro de uma perspectiva epistemológica integradora e abrangente capaz de romper com propostas lineares e superficiais de produção do conhecimento, que concebem o universo como uma “máquina determinística perfeita” (MORIN, 2005). A análise das implicações, bem como as estratégias de combate ao racismo, requer a superação da concepção reducionista e simplificadora tradicional na das práticas humanas a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem. Ciência, que comumente dilui a complexidade dos fenômenos e Segundo Morin (2005), esse modo de traduzir a realidade, amparado pelo paradigma cartesiano, tem por princípios a disjunção, redução, abstração e se considera reflexo do que há de real na realidade apresentando consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e ofuscantes. Para Santos (2002, p.10) o “Paradigma Dominante” é construído pela racionalidade da ciência moderna e estabelece um “modelo totalitário” de observar e compreender o mundo ao negar a racionalidade de todas as formas de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. Esse paradigma pressupõe a separação entre ser humano e natureza; visa a conhecer a natureza para dominá-la e controlá-la; assenta-se na redução da complexidade; possui como pressupostos a ordem e a estabilidade do mundo (MORIN, 2002A; 2003; 2005).

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O filósofo francês Georges Gusdorf, segundo Minayo (1991 p. 72), afirma que a ciência moderna, pela fragmentação do saber, ignora “o ser humano como ponto de partida e de chegada”, “desnaturaliza a natureza” e “desumaniza a humanidade”. O totalitarismo tendencial da ciência moderna produziu ideias e concepções discriminatórias acerca de outras formas de se relacionar e compreender os fenômenos. Carvalho (2013) aponta algumas consequências desse processo, as quais, nitidamente, impactaram os povos afrobrasileiros afirmando que O arrogante pensamento domesticado, moderno, científico, que se consolidou a partir do século XV, cercado de certezas, leis, determinismos, causalidade, teleologias, deixou de lado a preocupação com a totalidade, com a intuição, com o imaginário, passando a se concentrar no entendimento do fragmento, da parte, supondo que através deles seria possível atingir uma objetividade sem parênteses. Com isso, virou as costas para o sujeito, para a incerteza e para a complementaridade, privatizou terras e mares, considerou magias e mitos como algo irracional, produto descartável criado pela mente obscura de selvagens, ou por alucinações dos civilizados (CARVALHO, 2013, p.40).

Ao refletir os limites da racionalidade capitalista e sua inerente produção de escassez, para muitos, e desigualdades Milton Santos traz à tona formas de resistência que os grupos excluídos desenvolvem, chamando atenção para o fato que Na esfera da racionalidade hegemônica, pequena margem é deixada para a variedade, a criatividade, a espontaneidade. Enquanto isso, nas outras esferas surgem contraracionalidades e racionalidades paralelas, corriqueiramente chamadas de irracionalidades, mas que na realidade constituem outras formas de racionalidade, produzidas e mantidas pelos que estão "em baixo", sobretudo os pobres, que desse modo conseguem escapar ao totalitarismo da racionalidade dominante (SANTOS, 2000p.58)

Para Morin (2009, p.191) o pensamento complexo “permite avançar no mundo concreto e real dos fenômenos. A perspectiva epistemológica do pensamento complexo concebe a interrelação entre as partes e o todo. O pensamento complexo prega que não se pode isolar os objetos uns dos outros. A complexidade pressupõe a integração e o caráter multidimensional de qualquer realidade. Morin diz ainda que “não podemos nunca escapar à incerteza” e “estamos condenados ao pensamento inseguro, a um pensamento crivado de buracos, um pensamento que não tem nenhum fundamento absoluto de certeza”. (MORIN, 2009, p.100).

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A ideia de complexidade apresenta-se como um paradigma científico alternativo (Almeida-Filho, 2005). Ao contrário da abordagem reducionista, estática e dicotômica do positivismo cartesiano, que tem como objetivo uma simplificação da realidade, a pesquisa científica deve respeitar a complexidade inerente aos processos concretos da natureza, da sociedade e da história (SANTOS, 1989, 2003). Morin (1995) destaca que devemos enfrentar a complexidade antropossocial, e não a dissolver ou ocultá-la. A utilização de uma abordagem afrocentrada e complexa nos permite visualizar a multiplicidade de aspectos que permeiam uma análise profunda e realista sobre o racismo. Além das relações de poder e dominação já abordadas, questões políticas, econômicas, sociológica, de saúde, entre outras, configuram a necessidade de outros olhares para o fenômeno. O olhar afrocentrado nos permite enxergar além das narrativas hegemônicas que, quase sempre, buscam manter as assimetrias nas relações sociais, conferindo a população negra, quase sempre o papel de subalternidade. Mudar a percepção da sociedade brasileira, e romper com as ideias preconceituosas da herança intelectual colonialista é um desafio a ser enfrentado pelas novas gerações de afro-brasileiros. O posicionamento e escolha de epistemologias decoloniais e afrocentradas é uma grande contribuição para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e equânime. A abertura para abordagens ampliadas sobre o fenômeno do racismo fará com que as ciências adotem a pluralidade e a diversidade como princípios indispensáveis para a compreensão da “verdade” e solução de problemas. REFERÊNCIAS ARAÚJO, I. L. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba, PR: Ed. da UFPR, 2001. ALMEIDA FILHO, N. Transdisciplinaridade e o paradigma pós-disciplinar na saúde. Saude soc.vol.14 no.3 São Paulo Sept./Dec.2005. ALVES, M.C. et al. Paradigma da afrocentricidade e uma nova concepção de humanidade em saúde coletiva: reflexões sobre a relação entre saúde mental e racismo. Saúde em debate.vol.39 no.106 Rio de Janeiro July/Sept. 2015. ASANTE, M.K. Afrocentricity: The Theory of Social Change, Buffalo: Amulefi Publishing Company, 1980. ______; MOULALA, K. (orgs.). Handbook of black studies. Thousand Oaks, CA: Sage, 2008.

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CAPÍTULO

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Luciana Galante

T

oda sociedade humana tenta, de alguma forma, organizar e classificar o mundo em que vive objetivando o estabelecimento da ordem. Como a exigência da ordem está na base do pensamento humano, sendo uma necessidade comum, a taxonomia que é a organização por excelência responde, segundo Lévi-Strauss, a necessidades intelectuais e cognitivas antes de satisfazer necessidades utilitárias, assim “as espécies animais e vegetais não são conhecidas na medida em que são úteis, elas são classificadas úteis ou interessantes porque são primeiramente conhecidas” (LEVI-STRAUSS,1970, p.29). Cabe aqui ressaltar que as taxonomias indígenas muitas vezes são congruentes com a proposta por Lineu 1 mesmo porque este se refere aos

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Carl von Linné (1707-1778) ou Lineu como é conhecido, foi um médico e naturalista sueco, responsável por elaborar o sistema de classificação binomial. Considerado o pai da

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Guarani como “primus verus systematicus” dando a esse povo o crédito pela sua contribuição intelectual (GIANINNI, 1991). É possível ainda que ele tenha comprovado a existência de taxonomias nativas para posteriormente desenvolver o seu famoso sistema binomial pelo qual é reconhecido mundialmente. Lineu possui uma declaração nada modesta e tipicamente racionalista quando se refere à ciência taxonômica: “Se Deus criou a natureza, fui eu quem colocou-a em ordem” (PÁLLSON, 2001). Por outro lado, são inúmeros os sistemas de classificação e ordenação elaborados por sociedades tradicionais2 que, baseando-se em sua cosmovisão, diferem do sistema ocidental vigente no meio científico. Como esses sistemas não se enquadram em categorias e subdivisões precisamente definidas como as que a biologia tenta utilizar, eles vêm a ser um conjunto imbricado de plantas, animais, caçadas, horticultura, espíritos, mitos, ritos, cantos, danças, etc. (POSEY, 1987). Um saber sistematicamente desenvolvido não pode estar apenas em função de sua utilidade prática. A curiosidade é uma das molas propulsoras do conhecimento, uma pré-condição à sua construção assim como para a classificação em qualquer ciência. Mesmo em sociedades inseridas em contextos adversos, como é o caso dos Guarani de Tekoá Pyaú, a curiosidade é captada na sua essência. Assim como para a ciência moderna, os saberes indígenas também implicam na introdução de um princípio de ordem no Universo e qualquer que seja o sistema de classificação e ordenação, este é superior ao caos e à desordem que nenhuma sociedade humana pode suportar (LÉVISTRAUSS, 1970, p.29), portanto cabe-nos compreender os instrumentos que as sociedades indígenas se munem para ordenar e perceber o universo em que se inserem. A comunidade Inserida numa área diminuta de 2,5 hectares, a comunidade Guarani Mbya de Tekoa Pyau (Aldeia Nova) conta atualmente com cerca de 98 famílias e 380 moradores. Localizada entre uma rua e uma rodovia, no entorno do Parque

taxonomia moderna, publicou em 1758, sua obra Systema Naturae, um marco importante na ciência. Nela, propõe o sistema de classificação e abrange 4.400 espécies de animais e 7.700 de plantas 2

Assim como Diegues e Arruda (2001) propuseram, o conceito de ` sociedades tradicionais ' neste estudo é utilizado para “definir grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção referese tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos”.

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Estadual Turístico do Jaraguá, a comunidade enfrenta uma série de dificuldades em reproduzir suas características sócio-culturais. Historicamente, a ocupação indígena nessa área é anterior à época da conquista, em que grupos Tupi circulavam pela região. O nome Jaraguá é de origem tupi (y= água + jará = senhor, senhora + kuara = esconderijo), significando “esconderijo do dono/a da água”, referência provável às lagoas encontradas na região. O topônimo também pode significar “esconderijo do Senhor”, numa alusão presença da montanha no Parque Estadual, provável morada de uma entidade Guarani. A presença de uma forte liderança religiosa nesta comunidade, o pajé José Fernandes, Karaí Poty3, parece ser o principal responsável por agregar essa comunidade e sua chegada, em meados dos anos 90 foi decisiva para a formação da aldeia. Detentor de uma ampla experiência sobre questões territoriais e protagonista de outras disputas fundiárias, Xeramõi José Fernandes era a pessoa certa para dar propulsão ao processo de demarcação da aldeia de Tekoa Pyau. Apesar da identificação como terra indígena desde 2003, a terra não está demarcada. Recentemente, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) reconheceu a ampliação dos limites da área e o processo está em trâmite. Entretanto, como a área atual é extremamente pequena, muito populosa, com poucos recursos naturais disponíveis, a comunidade procura outras formas de subsistir. Dessa forma, o Parque Estadual do Jaraguá, é tido como uma referência quando se trata da possibilidade de viver o nhanderekó, ou seja, o modo de ser plenamente Guarani. PLANTAS, MITOS E A ORDEM DO UNIVERSO Grande parte das sociedades indígenas possui sistemas de classificação atrelados aos mitos e expressos em ritos, cujo objetivo é atribuir sentido ao mundo e à sua própria organização social. O pensamento mítico, além de conter sistemas conceptuais, simbólicos e imaginários dessas sociedades, explicam os fatos e trabalham para estabelecer a ordem. É comum nos mitos o relato de que os seres não-humanos interagiam e se comunicavam com os humanos através de uma linguagem comum até um momento em que se distinguiram. Como diria Lévi-Strauss, “se perguntarmos a um índio americano o significado de mito, é possível que ele responda que se

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José Fernandes também é conhecido pelo apelido de Kamba Puku (negro) e por seu outro nome Guyra Pepo (asa de pássaro).

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trata de histórias do tempo em que os homens e os animais ainda não se diferenciavam” (LÉVI-STRAUSS; ERIBON 1988, p.178). Dessa forma, isolar o universo botânico Guarani de suas demais concepções não faria muito sentido além de parecer inconcebível. O conhecimento que encerram encontra-se sempre associado à sua esfera religiosa, à conduta ética ou ao seu “entendimento”, como costumam dizer. A predileção e o conhecimento sofisticado que os Guarani possuem sobre determinados vegetais estão aparentemente pautadas pela sua cosmologia e, a partir dessa premissa, torna-se razoável avaliar quais são as relações existentes entre essas plantas e os mitos. Vale dizer que relacionar plantas/mitos requer um esforço contínuo em compreender uma cosmologia que não é a nossa e, longe de esgotar o assunto, não só devido à sua complexidade, mas também ao acesso a esses elementos, muitas vezes restrito à apenas alguns membros. Uma das categorias de plantas que merece destaque são as poã, ou seja, as plantas medicinais. Estas parecem ter um domínio próprio, com elementos específicos e são agrupadas em quatro categorias de acordo com sua especificidade: Poã araku: são os chamados “remédios quentes”, geralmente utilizados no preparo de infusões indicadas para combater sintomas provocados por gripes e resfriados; Poã piro’y, são os “remédios frios” ou refrescantes, utilizados em situações onde é preciso reanimar o doente após mal-estares e desmaios, provavelmente com ação estimulante; Poã guaxu, traduzido como “remédio grande”, são aqueles cujos atributos vão além da eficácia no tratamento de diversas doenças, mas principalmente por possuírem atributos sobrenaturais; Poã pochy, considerados “remédios bravos”, utilizados em situações críticas como “possessões” ou surtos psicóticos, descritos na literatura4 como “demência”, são administrados em casos extremos, pois os efeitos são muito fortes. Outra categoria, denominada Ka’avo, cuja classificação ocorre através do uso e distingue-se das demais, possui efeitos mágicos específicos principalmente no que se refere às relações conjugais, como provocar separações ou serem responsáveis por paixões lancinantes. Geralmente as ervas pertencentes a esta categoria possuem nomes associados a animais, como a ju’i ka’avo (erva da rã) ou churuku’a ka’avo (erva do surucuá). Godoy

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Este termo é utilizado por Leon Cadogan em seu livro Ayvy Rapyta.

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(2003, p.147) afirma que essa prática é sigilosa e que raramente as pessoas se declaram socialmente. Cadogan cita a ka’avo tory, a erva da alegria, que espanta a tristeza quando guardada. Esta planta teria surgido no mesmo momento do nascimento do filho de Tupa Ru Ete e a pessoa deve levá-la “para que sua conduta agrade a todos e para que seus semelhantes sejam felizes em sua companhia” (CADOGAN, 1959, pp.139-140). Como todas as plantas têm alma, essas também podem interferir na produção do remédio e na cura do paciente. Dessa forma, existe uma série de normas a serem obedecidas desde o momento em que se colhe a planta até o preparo do remédio. E quando se vai coletar uma planta para preparar um remédio, é importante que ela seja colhida na lua nova (jaxy pyau). Pedir licença ao ja5, ou seja, o dono do recurso, também é uma condição para que se possa utilizar a planta, não só no que se refere ao preparo de remédios, como também para outros fins. Segundo os Guarani “todos os seres têm espírito, e tem o dono, o ja: o jejyja é o dono do palmito, itaja1 é o dono da pedra, yyjá é o dono da água, e assim por diante. Além disso, o batismo da planta torna-se importante para que o dono (ja) autorize seu uso. Várias plantas tiveram sua fauna associada descrita. A presença de larvas (yxo) nos caules do jarakatia, pindó e takuá e os relatos detalhados de sua ecologia são indicativos de que esses animais também faziam parte da culinária Guarani. Pássaro importante na cosmologia Guarani, o beija-flor (maino), é considerado um mensageiro e seu vôo pode ser um prelúdio do que está por acontecer. A predileção do beija-flor (maino) por uma planta denominada maino kaguyjy, traduzida como “a chicha do beija-flor”, também indica uma observação atenta não só para o animal ou a planta em si, mas do estabelecimento de analogias entre animais-plantas-humanos, muito comum nas sociedades ameríndias. A ideia de que as plantas, os remédios, os animais entre outros recursos foram deixados por Nhanderu para os Guarani utilizarem, é muito difundida (LADEIRA, 2008; CADOGAN, 1959). Segundo relatos, Nhanderu deixou as plantas próximas ao Guarani para serem utilizadas. Porém, como enfrentam dificuldades em acessar os recursos devido à sua dispersão, explicam que Anhã as colocou separadas umas das outras e em locais distantes.

A enorme difusão no continente americano da noção de espíritos “donos” dos animais, plantas e outros não-humanos é bem conhecida. Esses espíritos, segundo Viveiros de Castro (2002) são dotados de uma intencionalidade semelhante à humana, funcionando como hipóstases das espécies a que estão associados, criando um campo intersubjetivo entre humanos e não humanos. 5

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Podemos perceber que esse universo é imbricado de elementos que extrapolam a nossa razão e para tentar compreendê-lo foi necessário um mergulho profundo num mundo povoado de símbolos e significados, o que me levou a buscar na cosmologia Guarani a explicação para uma predileção por certos vegetais. A COSMOLOGIA E AS PLANTAS Constantemente citadas, as palmeiras ocupam lugar de destaque na cosmologia Guarani. O Pindó (Jerivá) é considerado a palmeira eterna, muitas vezes denominada Pindovy6, a palmeira sagrada que formou os sustentáculos da terra. Também acreditam que é no centro da terra (yvy mbyte), lugar onde viveu originariamente a “nossa avó”, mãe de Kuaray e Jaxy, que se ergue a palmeira milagrosa (CADOGAN, 1959, p.72). As palmeiras também podem representar a nervura do nosso corpo (Godoy,2003), nos dando um exemplo que parece próximo ao conceito de analogismo. (CADOGAN,1968 APUD GODOY, 2003) relata que para os Guarani, foram cinco as palmeiras eternas que asseguraram a morada terrena, uma fixada no centro da terra e as outras representando os quatro pontos cardeais: karaí – leste; tupã (trovão) – oeste; yvyty porã (ventos bons) – norte e ara yma rapyta (tempo originário) - sul . Godoy (ibidem) também atenta para a expressão pindó rupy gua, que traduzida literalmente como “seguir o pindó”, mostra o quanto esse vegetal espelha a sabedoria e a conduta Guarani. A fruta do pindó, conhecida como guapytã surge diversas vezes nos mitos como um dos alimentos preferido de Jaxy (Lua)7. Indicada pelos moradores de Tekoá Pyau como a planta que “ajudou muito os Guarani antigo a sobreviver”, o pindó é conhecido por todos e seu fruto, guapytã, consumido e muito apreciado. As crianças ficam eufóricas quando encontram o fruto e costumam colhê-los para consumo direto ou levá-los para casa para preparar um suco. O preparo do suco do guapytã, consiste em escolher os melhores frutos, lavá-los, socá-los no pilão e misturar um pouco de água. Muito saboroso e nutritivo, é preciso conhecer bem a ecologia do Pindó para consumi-lo pois, segundo os moradores, “não é qualquer fruto que é gostoso, tem que ser os que estão mais próximos à mata fechada pois eles são mais doces, se está longe da mata o fruto fica aguado”.

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Pindovy para Cadogan (1959:33) indica palmeira-azul, as palmeiras eternas, milagrosas e indestrutíveis. O autor alerta que ovy seria a cor do céu e ju a cor do sol. Estas cores são consideradas sagradas e emblemáticas das divindades, sendo indestrutíveis como o Sol e o Céu. Esse mito segundo Ladeira (2008), amplamente difundido como o mito dos “gêmeos” que descreve as aventuras e os feitos na terra pelos dois irmãos, foi apresentado em várias versões reduzidas por Nimuendajú, Bartolomé, Cadogan e pela própria autora. Também coletei alguns fragmentos deste mito. 7

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Já o palmito do Pindó, apesar de ser identificado como o alimento preferido do jacu, não deve ser consumido por humanos, pois, segundo relatos, “se você comer o palmito do Pindó, você perde as forças...”. No mito do dilúvio que narra a destruição de Yvy Tenondé (a primeira terra), Karaí Jeupié (o senhor incestuoso), personagem principal desta passagem, casa com sua tia paterna transgredindo contra Nhanderu Tenonde (os primeiros pais). Quando as águas começam inundar a terra, Karaí Jeupié nada até o Pindoju8 e descansa em seus ramos para, em seguida, dirigir-se à sua futura morada pois após orar, cantar e dançar com fervor, consegue atingir a perfeição e habitar entre os homens virtuosos e os deuses menores. No entanto, alguns habitantes que “careceram de entendimento, transgrediram e se inspiraram na má ciência” sofreram metempsicose 9 , transformando-se em animais (CADOGAN, 1965, p.67). Conta-se que a flecha feita do Pindó (u’y) é queimada e colocada ao lado do amba (altar) na opy (casa de reza) representando a nervura do corpo da árvore que, sob efeito da tatachina (fumaça) revela poderes sobre a sorte dos fiéis. Uma das palmeiras preferidas e que adquire uma importância fundamental na subsistência Guarani é o jejy (Juçara), da qual extraem o palmito. Consumido tradicionalmente com o mel, essa planta foi e ainda é muito comercializada devido à sua grande aceitação entre os juruá. No entanto, a extração do jejy como alternativa econômica não é muito bem-vista, embora muitos a pratiquem mesmo a contragosto. Esse fato deve-se não à legislação ambiental que proíbe essa prática, mas principalmente por ser pautada pelo reconhecimento e respeito a uma entidade que os guaranis denominam jejyja, o dono do palmito. A ideia de que a extração desenfreada da planta pode provocar a ira de seu dono, causando inúmeros males ao transgressor, é muito difundida, o que consequentemente leva à regulação da extração deste recurso. Godoy (ibidem:90-107) afirma que a exploração do jejy tem exigido dos Guarani uma grande dívida com relação ao jejyja. Alguns acidentes que atingem os cortadores de palmito como quedas, ferimentos, dores na coluna ou fadiga, também são

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Atento para o fato de o sufixo ju estar relacionado a mitologia, indicando a origem cósmica da planta, uma vez que ju indica amarelo, ou seja, a cor resplandecente do sol, traduzindo o conceito de eterno, indestrutível, milagroso, semelhante ao Pindovy (CADOGAN, 1959, p.33). 9

Metempsicose é a crença na transmigração da alma de um corpo para outro. Os Guarani acreditam que após a morte o corpo também pode transmutar, atribuindo ao fenômeno o termo jepota..

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atribuídos ao jejyja10. Talvez uma forma de aliviar a “dívida” seja realizar o plantio de mudas, prática comum realizada próximo às residências. Os “berçários de jejy”, como são conhecidos, são importantes para que o recurso não acabe. As plantas da família Bignoniaceae, pertencentes ao gênero Tabebuia são amplamente citadas e classificadas como Tajy. Cadogan (1965: 53) relata a presença do tadjy no mito da criação numa passagem em que a planta marca “o surgimento dos ventos novos e do espaço novo”, caracterizando a chegada da primavera. Numa outra passagem mítica, o tajy é considerado a árvore que possui a “alma mais feroz” e mesmo quando sua madeira é cortada em pedaços, sua alma não desaparece. Os moradores afirmam que “a alma do tadjy é brabo” e, dessa forma, sua madeira não é utilizada na construção das casas, pois certamente sua alma ameaçaria os moradores. Quando uma árvore de alma indócil fere alguém, os que possuem a “boa ciência” são os únicos que conseguem extrair o mal, que costuma materializarse através de pedras, vermes, gravetos ou folhas que são extraídas do paciente. A cura pode se realizar somente após o contato do xamã com as entidades, pois estas o informam sobre o mal que afeta o paciente. Essas plantas de “alma brava” também podem ser castigadas por entidades como Tupã e Jakaira que, furiosos, lançam-lhes raios. Os seres invisíveis 11 , que também podem ser responsáveis pelas enfermidades, sofrem a mesma punição (Cadogan,1959:102). Uma das plantas que merece atenção é o pety (tabaco). Utilizado diariamente através do petynguá, cachimbo feito com nó de cedro, além de fazer parte do cotidiano, tem seu lugar certo nos momentos ritualísticos. Ao produzir a tatachina (fumaça), o pety purifica o corpo, deixando-o livre das imperfeições. Na filosofia Mbyá, Pa’i rete Kuaray (Sol) deixou alguns preceitos a serem seguidos para que os Guarani não levassem uma existência dolorosa nessa “terra imperfeita”. Um desses preceitos é o ato de “desinfetar a primeira peça de caça com a fumaça do tabaco”, pois se assim não fizerem, ao consumi-la, podem adquirir mal-estar, enfermidades e imperfeições. Criado por Jakairá, o pety foi dado aos Mbyá para que pudessem se defender de males como as enfermidades e os seres malévolos. No relato mítico colhido por Cadogan (1959:61-68) que narra a substituição de Yvy Tenonde, a primeira terra (destruída pelo dilúvio), por Yvy Pyau (a nova terra), cuja existência

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Também verifiquei a influência desta entidade através do relato de algumas mulheres. Quando estas se queixavam sobre o fato de que muitos homens “vão cortar palmito e arrumam outra mulher”, resposabilizavam o “jejyja” pela atitude masculina. 11

Cadogan os denomina “duendes malévolos”.

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efêmera já está predestinada (como o lugar por onde os homens passarão por provações), o tabaco assume um papel fundamental que é o de reproduzir a tatachina ambojaity (neblina vivificante), soprada por Jakaira sobre todos os seres verdadeiros que circularam pelo caminho da imperfeição. O nome religioso da fumaça do tabaco, empregado em rituais é tatachina reko achy, a neblina mortal, imperfeita, possivelmente uma alusão à substituição à tatachina ambojaity, a neblina vivificante: Mi tierra ya contiene presagios de infortunio para nuestros hijos hasta la postrer generación: ello no obstante, esparciré sobre ella mi neblina vivificante; las llamas sagradas, la neblina ha de esparcir sobre todos los seres verdaderos que circularán por los caminos de la imperfeición. Yo crearé el tabaco y la pipa para que nuestros hijos puedan defenderse. Yo iluminaré mansamente com mis relámpagos sin trueno la totalidad de los valles situados entre las selvas” (CADOGAN, 1965, p.69). Durante as cerimônias religiosas é comum a opy ficar repleta de fumaça oriunda dos inúmeros petyngua em ação. Os auxiliares de Xeramoi sopram a tatachina sobre o ambá (altar) no início dos rituais e também sobre a cabeça das pessoas presentes, o que mostra que a ação da fumaça do tabaco, assim como o sopro de Jakairá atua como agente purificante tornando-se imprescindível. Nas reuniões, durante uma boa conversa ao redor da fogueira ou mesmo nos momentos de contemplação, o petynguá está sempre presente. A palavra (nheé) parece fluir muito melhor assim. Afinal, os que seguem arandu porã, o bom entendimento ou a boa ciência, estão sempre “pronunciando boas orações e espalhando a neblina” (CADOGAN,1959, p. 91). Considerada a árvore geradora de todas as árvores, o yary (cedro) tem um importante significado na cosmologia Mbyá. Por destilar uma seiva, no início da primavera, recebe o nome de Jasuka venda (lugar de Jasuka) e nessa seiva inspirou-se o autor ou a autora da metáfora “fluido das árvores da palavra-alma”, afinal é do cedro que “flui a palavra” (yvyra ne’ery). Conta-se que depois do dilúvio, suas sementes deram origem a toda a diversidade de vegetais hoje conhecida (CADOGAN, 1971, p.25, APUD CHAMORRO, 2008). Tido como poã guaxu (remédio grande), o yary também possui lugar na medicina tradicional, assumindo um prestígio grandioso. Considerado vegetal de alma dócil, não é à toa que a “árvore de Nhamandu” é utilizada na confecção do petynguá. Certamente, a associação do cedro com o tabaco garante aos Guarani maiores possibilidades de seguirem o arandu porã “ o bom caminho ou o bom entendimento” e atingirem aguyje (perfeição). O yary também é utilizado

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na confecção de outros instrumentos rituais além do petynguá, entre eles, a barca (apyka), o violino (rave) e a vara (popygua), utilizada no batismo ritual e que representa a “vara insígnia”, que Nhanderu ete utilizou na criação do mundo. A yy karai (água sagrada) é colocada na apyka e esta é feita com cedro pois de acordo com Schaden (1969, p.130), o uso de sua casca na água batismal pode dar mais força a esta. A presença do cedro se torna indispensável, pois o portador da vara insígnia, símbolo da masculinidade, denominado yvyraija (dono da varinha) conduz a cerimônia e nomeia os presentes, colocando a água sobre suas frontes. Outra planta cuja alma também é considerada dócil é o aju’y. Este vegetal pertence à família das Lauráceas cuja característica principal é a produção de óleos essenciais. Utilizada no preparo de um poã piro’y, ou seja, “um remédio frio”, é indicada para restabelecer as pessoas após mal-estares e desmaios. A presença do peguaó (caeté), também é marcante no mito dos gêmeos, pois enquanto a mãe caminhava perdida pela terra, Kuaray, ainda em seu ventre, pedia a ela que colhesse algumas flores pelo caminho para que ele pudesse brincar, sendo uma delas a flor do peguaó. Também utilizado na medicina, para aplacar dores abdominais podendo ser misturada ao mate, a planta faz parte do cotidiano pois suas folhas servem para enrolar o bodjapé um alimento tradicional semelhante à pamonha. O nhandyta (jenipapo) surge no mito dos gêmeos no momento em que Jaxy transgride o tabu do incesto ao se relacionar com a tia materna. Na versão coletada por Cadogan, Jaxy faz chover para que as manchas em seu rosto provocadas pela tinta do jenipapo, aplicadas por sua tia - desapareçam. É assim que na Lua nova, Jaxy tenta livrar-se das manchas fazendo chover, fato que, segundo os Guarani, ocorre até o presente. Apesar de nunca ter presenciado o uso desta planta durante minha permanência em campo, verifiquei que algumas pessoas a cultivavam em seus quintais. Outro vegetal que possui lugar cativo na cosmologia Guarani é o guembé, um cipó muito difundido e utilizado na cultura material devido à sua resistência. As plantas que são amplamente consumidas como o avati (milho) ou que tenham caráter simbólico costumam ser batizadas, pois somente assim o ja (dono) autoriza sua utilização. Com o guembé não seria diferente, apesar de que o ritual de “batismo do guembé nem sempre é realizado”, como contou-me um morador. A planta marca presença no mito que narra a história de Pa’i Rete Kuaray (o senhor do corpo resplandecente como o sol), muitas vezes mencionado apenas como Kuaray o irmão mais velho da saga dos “gêmeos”. O guembepi foi usado para laçar os pássaros caçados por Kuaray. O pássaro denominado jayry (também chamado jaku changue), espécie de jacu que possui coloração

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vermelha no peito, apresenta esta cor “pois foi laçado pelo guembepi fresco cuja coloração também é vermelha”. Também nas raízes do guembé vive uma cigarra denominada guapo’y ou guembe paje, que junto com a mamangava e o colibri, adquire o status de um amuleto importante na aquisição de valor ou “entendimento”. Um dos meus colaboradores informou que “é só ir lá ver pra saber que é verdade mesmo”, o que leva a crer que essa prática ainda deve ser realizada. Várias frutas são citadas no mito dos “gêmeos”, pois enquanto caminham após os jaguares terem devorado sua mãe, Jaxy, o irmão mais novo de Kuaray, fica o tempo todo perguntando o nome das frutas que encontra pelo caminho. Como é muito inocente ou “bobo” como falam os Guarani, seu irmão mais velho tem que explicar tudo, inclusive como ele deve proceder para consumi – las além de “ficar o tempo todo consertando as besteiras que ele faz”. O guavirá (gabiroba) é citado com frequência no mito, onde Kuaray adverte Jaxy que a fruta lhe dará vermes se ele não desinfetá-las antes de comer. Chama a atenção o fato de os Guarani classificarem essa planta em quatro etnoespécies: guavira, guavirá regua, guavira’i e guavira pyta, mostrando que há uma relação intrínseca entre o conhecimento de certas espécies vegetais à predileção que as divindades possuem sobre estas. Uma das formas de identificar o guavira na ausência de frutos é a aparência de seu tronco, pois “a casca fica descascando”. Também utilizada na medicina Guarani, as folhas são empregadas no preparo de um chá antidiarreico. O aguaí que também tem seu lugar no mito, foi descrito por um morador como uma planta cujos frutos são agradáveis ao paladar, mas que carece de cuidados para serem consumidos. A planta aparece como matéria-prima onde suas sementes aliadas ao mingau de milho, foram utilizadas por Kuaray na reconstrução de sua mãe e também na construção de seu irmão Jaxy. Há uma passagem em que os irmãos caminham pelas margens opostas de um rio, Jaxy aponta para o aguaí e pergunta a seu irmão que fruta é Kuaray pede que ele a descreva e, sem vê-la, pois, conforme relatos “ele fala o nome das plantas sem olhar para elas”, consegue identificá-la. Em seguida, alerta Jaxy para que acenda o fogo e asse o fruto, pois não pode comê-lo cru. Também pede a Jaxy que pegue as sementes e coloque-as no fogo apertando-as com seu arco, o que parece ser uma brincadeira típica de irmãos, já que as sementes estalam muito e Jaxy, assustado com o barulho, acaba dando um salto e cai na mesma margem em que se encontrava o irmão. Apesar de não se ter informações sobre o uso do timbó pelos Guarani na atualidade, a origem da planta foi relatada por um dos moradores como filho de uma importante entidade. Antigamente, quando os Guarani não conseguiam pescar, Nhanderu orientouos que bastaria banhar as crianças no rio para os

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peixes boiarem, facilitando assim a pesca. Anhã, entidade que inveja os Guarani, ao ver uma mulher banhando o filho no rio, pegou o menino e o bateu na pedra, transformando-o em timbó. Há uma outra versão deste mito em que a criança é identificada como filha de Pa’i (Kuaray). Vendo Kuaray pescar facilmente quando lavava os pés da criança no rio, Charia ou Anhã pediu o menino emprestado para que também pudesse pescar e o golpeou várias vezes como se faz com o timbó, matando-o. Kuaray, enfurecido, lutou com Anhã e ambos caíram. Como Anhã não podia vencê-lo, acabou derrotado e Kuaray levantou-se. O resultado dessa luta seria representado pelos eclipses solares (Kuaray oñeama). Metaforicamente filho de uma divindade, o timbó assume posição relevante no imaginário. Seu caráter humano, sugere que se estabeleça uma relação diferenciada com a planta onde todo cuidado é necessário ao manuseá-la (CADOGAN, 1959, pp. 81-82). Emblematicamente feminina, a takua é utilizada na produção de artesanato e de um importante artefato religioso denominado takuapu, bastão que marca o ritmo durante as cerimônias. Assim como o cedro representa a masculinidade através da “vara insígnia”, a takua, representada através do takuapu, é uma planta femina por excelência. Muitos nomes femininos são compostos por Takua e o bastão é utilizado nos rituais exclusivamente pelas mulheres onde estas marcam o ritmo batendo-o no chão. O Avati (milho), além de ser um alimento básico na cultura Guarani também possui atributos divinos. Afinal, afirmam que, Kuaray criou Jaxy a partir de um grão de milho. A colheita do milho costuma coincidir com a chegada de ara pyau e a realização do nheemongaraí com o consequente benzimento da planta. Se há fartura dos frutos, este é um momento de reunir as pessoas e fazer, oferecer e consumir uma série de alimentos tradicionais: o mbojape (pão de milho socado), mbyta (pão de milho ralado), mbaipy (polenta) e kaguyjy (bebida fermentada de milho). Lamentavelmente, Tekoa Pyau não conta com área suficiente para produção de grandes roças e as famílias quando cultivam, limitam-se num espaço muito reduzido produzindo uma quantidade ínfima de alimento, o que seria insuficiente para disponibilizar nos rituais. Nesse caso, a única solução é adquirir os produtos, entre eles o milho, externamente, o que leva a comunidade depender da produção dos jurua para comprá-los. Inclusive o kaguyjy, bebida tradicionalmente fermentada a partir do milho, costuma ser feito com fubá pois nem sempre há milho disponível para sua produção. Largamente consumida no cotidiano o ka’a (mate) tem presença certa durante os rituais e é de extrema importância na cultura Guarani. A planta adquire seu caráter sagrado por estar diretamente associada às divindades e sua origem cósmica sugere que “foi criada por Nhanderu para que os Guarani

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pudessem tomar”. Segundo relatos, Nhanderu morava com sua esposa, mas não havia crianças na casa. Para alegrar a casa, criou om pedaços de cedro, Para-miri, uma menininha. Esta ficava passeando pela casa e, a cada vez que esta urinava, nascia uma erva-mate no lugar. A erva, também é batizada e entre os meses de agosto e setembro, ocorre o “Ka’a nheemongaraí” ritual que marca a chegada de ara pyau (tempo novo). As folhas são amarradas ao redor da opy para secarem e posteriormente colocadas sobre o fogo para completar a secagem. Segundo informações, este é um momento importante, pois “o mate fala com o Xeramoi”. É através do crepitar12 que o mate envia mensagens ao Xeramoi que as interpreta e faz as previsões para ara pyau (o tempo novo). A profecia nada favorável do ka’a, bem como sua associação à escassez de recursos naturais, soa como um alerta. As queixas em relação à falta de recursos naturais são recorrentes bem como sua associação com a impossibilidade de “se viver plenamente como Guarani”. Também são constantes as manifestações de descontentamento com o modo de vida dos juruá e aproveitam esses momentos para mostrar aos jurua seus equívocos e a urgência em apresentar novas propostas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Guarani costumam dizer que o conhecimento ou o “entendimento” não é algo que se aprende nos bancos escolares ou através da educação oficial. As experiências pessoais e a liberdade para vivenciá-las são uma condição que permeia o seu modo de ser plenamente Guarani. Assim, toda a relação com o ambiente que o cerca é pautada pela vivência. Apesar de existirem preceitos a serem seguidos e uma conduta ética muito bem estipulada, é através da vivência, com as crianças imitando os adultos e através da experimentação que o indivíduo se constrói e passa a ter domínio sobre si próprio. Seu universo cosmológico bem como a educação e saúde estão completamente imbricados, caminham juntos, não havendo fragmentação entre essas instâncias da vida. A relação com o ambiente natural, especificamente com a Mata Atlântica, é marcada pela reverência. Afinal, é lá que estão os seres que regem influências e poderes sobre a comunidade, interferindo diretamente em suas vidas. Dessa forma, é preciso saber ler os códigos, identificar os sinais e interpretá-los. Para isso, é necessário estar atento, aberto e sensível a um

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Uma entidade denominada Tataendy reapy ja, ou seja, o dono do ruído do crepitar das chamas cuja manifestação está associada à primavera, indica que o crepitar é uma forma de a entidade estabelecer comunicação com os xamãs.

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universo que tem suas próprias regras e que para nós, juruá (brancos), encontrase cada vez mais distante. Esta parece ser a principal proposta desse povo: exercitar os sentidos, reverenciar e respeitar os demais seres vivos, sejam eles humanos ou não-humanos e, assim, estabelecer novas possibilidades de coexistência, garantindo sua manutenção física e cultural e também a biodiversidade. REFERÊNCAS CADOGAN, L. La literatura de los Guaranies. Editorial Joaquin Mortiz. Mexico, 1965. ____________. Ayvu rapyta – textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Boletim nº 227. Antropologia nº 5. São Paulo, Brasil. 1959. CHAMORRO, G. Terra madura yvy araguyje: fundamento da palavra Guarani, UFGD, 2008. ______________. A espiritualidade Guarani: uma teologia ameríndia da palavra. Rio Grande do Sul: Sinodal, 1998. (Série Teses e Dissertações, 10). DIEGUES, A. C. & ARRUDA, R. S. V. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil. Ministério do Meio Ambiente. Brasília. 2001. GIANINNI, Isabelle Vidal. A ave resgatada: a impossilibilidade da leveza do ser. Dissertação de Mestrado. FFLCH. USP. 1991. GODOY, Marília G. G. O misticismo Guarani Mbya na era do sofrimento e da imperfeição. Terceira Margem. 2003. LADEIRA, M.I.. Espaço geográfico Guarani: significado, constituição e uso. Editora Unesp. 2008. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo. Companhia Editora Nacional. 1970. _____________________; ERIBON, Didier. De perto e de longe. Ed. Nova Fronteira. 1988. PÁLSSON, Gísli. Relaciones Humano Ambientales: orientalismo, paternalismo e comunalismo. IN: DESCOLA, P. & PÁLSSON, G. (Org.). Naturaleza y Sociedad. Siglo veintiuno editores, México, 2001. POSEY, D.A. Introdução – Etnobiologia: teoria e prática. In: RIBEIRO, B. G. (Coord.) Suma Etnobiológica Brasileira – 1. Etnobiologia. Petrópolis, Vozes, Finep, 1987. SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, EDUSP, 1974.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem. Cosac Naify. 2002.

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Patrícia da Silva Camila Lima de Araújo Luiza Lins Araújo Costa José Andrade Santos

ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA: ATITUDES DOS PROFISSIONAIS DO DIREITO ACERCA DAS POLÍTICAS DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

Patrícia da Silva Camila Lima de Araújo Luiza Lins Araújo Costa José Andrade Santos

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m 2004, num ato simbólico, 70 estudantes negros se acorrentaram frente a Universidade de São Paulo, reivindicando a adoção de uma política de cotas e outras medidas que ampliassem o acesso ao ensino superior. Este ato remete ao período escravocrata no qual as correntes faziam parte do cotidiano dos bisavôs desses estudantes, que hoje anseiam ocupar um espaço que antes lhes era estranho (MOEHLECKE, 2004). Com a reivindicação de cotas raciais nas universidades há o reconhecimento explícito da discriminação, evidenciando uma emergência na adoção de medidas que reduzam as desigualdades provenientes de posturas discriminatórias institucionalizadas. Contudo, quando se pensa em medidas de ações afirmativas e, precisamente, cotas raciais, automaticamente nos

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esbarramos no campo jurídico e em sua retórica doutrinária para entendimento do que venha a ser constitucional ou não, principalmente quando uma proposta denota reestruturação de conceitos e tratos com temas tabus, a exemplo das relações raciais brasileiras. Assim, falar sobre o tratamento jurídico dispensado às relações raciais no Brasil significa discutir a forma brasileira de juridicizar esse fato social. Há diversas formas de ler um mesmo objeto, e o Direito utiliza as suas diversas gramáticas (Direito Penal, Direito Civil, Direito do trabalho, Direito Comercial, etc.) para a reconstrução e ressignificação dos fatos sociais. As estratégias de juridicização, independentemente de quais sejam, levam em consideração que os procedimentos de aplicação das normas jurídicas sempre envolvem alguma indeterminação. Nesse sentido, o juiz não pode ser compreendido como um mero técnico, a atividade de aplicação do direito é um espaço de tomada de decisões que não está determinado pela lei. No foro específico do trato acerca das desigualdades sociais e raciais os juristas, estudiosos e profissionais do direito têm se empenhado em analisar o sentido e alcance do Princípio Constitucional da Isonomia, previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal Brasileira (CFB) de 1988, com intuito de esclarecer a constitucionalidade da aplicação das Políticas de Ações Afirmativas (PAA). Dentre estas PAAs a política de cotas para negros nas universidades é a que tem recebido maior atenção por ter gerado um maior número de debates. O objetivo do estudo é abordar a legislação brasileira no que se refere as relações raciais, especificando uma discussão mais acurada acerca do conceito de igualdade e aplicabilidade constitucional das políticas de cotas para negros nas universidades públicas por meio de uma pesquisa empírica com juristas, advogados e professores de direito. PRECONCEITO RACIAL, RACISMO E LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Conceitualmente, o preconceito racial e o racismo são compreendidos como fenômenos distintos. O preconceito racial ou étnico é visto como necessariamente negativo e, se caracteriza por uma atitude hostil, dirigida ao membro de um grupo desvalorizado socialmente, pelo simples fato de pertencer a esse grupo, associada à presunção de que esse membro teria as mesmas qualidades atribuídas ao grupo de pertença (ALLPORT, 1954/1979). O racismo, por sua vez, não se restringe aos aspectos atitudinais. Ele engloba processos hierarquizadores de exclusão e discriminação social, institucional e cultural (JONES, 1973), baseados em características físicas ou fenotípicas dos grupos minoritários ressignificadas em características psicológicas ou culturais. Possui, assim, um caráter essencialista e naturalista,

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distinto do preconceito, que se restringe basicamente a atitudes contra membros dos grupos minoritários (LIMA; VALA, 2004). No Brasil, o racismo e o preconceito racial têm sua origem na escravidão e a sua força pode ser medida pelo fato da escravidão ter dominado o País por mais de três séculos (KALCKMANN; SANTOS; BATISTA; CRUZ, 2007). O modelo das relações raciais pós-abolicionistas do Brasil mostra uma etiqueta de distanciamento social e uma diferenciação no estatuto e nas possibilidades econômicas entre negros e o restante da população, ressaltando o caráter peculiar das relações raciais aqui existentes (LIMA; VALA, 2004). As peculiaridades do seu contexto histórico e a suposta harmonia racial, compreendida como cordialidade do povo brasileiro, permitiram a propagação de uma crença na existência de uma democracia racial frente ao Estado Democrático de Direito durante muito tempo. Entretanto, evidências históricas assinalam esta utopia como “mito do paraíso racial”, contrariando o conceito difundido por Gilberto Freyre, o qual caracterizava o Brasil como um país livre de bloqueios institucionais para a igualdade entre raças, isento de preconceito e discriminações raciais informais. Assim, no decorrer dos séculos é possível perceber algumas ambivalências jurídicas, oriundas das proibições legais de práticas culturais dos negros e do crescente avanço no ordenamento jurídico no que se refere às legislações que tratam da liberdade dos escravos e combate ao racismo. Entre as legislações antiescravagistas destacamos: A Lei nº 3.353, conhecida como Lei Áurea, sancionada em 13 e maio de 1888 pela Princesa Imperial Regente, que declara em seu art. 1º “extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil” (Rio de Janeiro, 1888). Apesar das cartas de alforria previstas em Lei, os negros, mulatos e mestiços eram socialmente marginalizados, no Brasil colonial, praticamente desprovidos de recursos financeiros e viviam em condições mais precárias que os escravos (RUSSELL-WOOD, 2005). Os negros libertos tinham sua integração e mobilidade social e econômica restritas pela política da Coroa Portuguesa, dada tamanha discriminação, estabelecida por leis, evidenciada pelos diversos regulamentos relativos a porte de armas e códigos de vestimentas. O não cumprimento de tais regulamentos, por parte dos negros libertos, era passível de punições severas a exemplo de açoitamentos em público, para o porte de armas e do confisco dos bens proibidos (joias ou adornos de ouro ou prata) ou pagamento de multa no valor do artigo caso tivesse dinheiro, na impossibilidade de pagamento receberia um açoite em público. Essas punições eram aplicadas na primeira transgressão, em casos de reincidência a punição era o exílio pelo resto da vida na Ilha de São Tomé (RUSSELL-WOOD, 2005).

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O antigo regime persistia na mentalidade, no comportamento, na organização das relações sociais e nas desigualdades entre brancos e negros (MOEHLECKE, 2004). Florestan Fernandes em A Integração do negro na sociedade de classes (1965/78) ressalta o racismo e as desigualdades raciais existentes no país e questiona nossa suposta democracia racial, redefinida como um mito, uma falsa realidade, que, paradoxalmente, contribui para viabilizar sua própria efetivação. Salienta ainda que com o fim do sistema escravista, a ordem racial permaneceu intacta, estabelecendo-se “uma espécie de composição entre o passado e o presente, entre a sociedade de castas e a sociedade de classes” (FERNANDES, 1978, p.248). Por outro lado, somente após a abolição do regime escravocrata foi possível cogitar instrumentos normativos em repúdio ao racismo (SILVEIRA, 2007). Assim, em 03 de julho de 1951 é editado o primeiro diploma infraconstitucional que buscou combater a discriminação racial, a Lei nº 1.390, conhecida como Lei Afonso Arinos, que incluiu entre as convenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor (RIO DE JANEIRO, 1951). Esta foi a primeira Lei Brasileira de punição ao racismo, editada sob a vigência da Constituição de 1946, teve seu projeto de lei apresentado pelo deputado mineiro Afonso Arinos de Melo Franco sob a justificativa: [...] Urge, porém que o Poder legislativo adote medidas convenientes para que as conclusões científicas tenham adequada aplicação na política do Governo. As disposições da Constituição Federal e os preceitos dos acórdãos internacionais de que participamos, referentes ao assunto, ficarão como simples declarações platônicas se a lei ordinária não lhe vier dar forças de regra obrigatória de direito. 5 – Por mais que se proclame a inexistência, entre nós, do preconceito de raça, a verdade é que ele existe, e com perigosa tendência a se ampliar. [...] é sabido que certas carreiras civis, como o corpo diplomático, estão fechadas aos negros; que a Marinha e a Aeronáutica criam injustificáveis dificuldades ao ingresso de negros nos corpos de oficiais e que outras restrições existem, em vários setores da administração. 6 – Quando o Estado, por seus agentes, oferece tal exemplo de odiosa discriminação, vedada pela Lei Magna, não é de se admirar que estabelecimentos comerciais proíbam a entrada de negros nos seus recintos. [...] 9 – [...] Nada justifica, pois, que continuemos disfarçadamente a fechar os olhos à prática de atos injustos de discriminação racial que a ciência condena, a justiça repele, a Constituição proíbe, e que podem conduzir a monstruosidade como os “progooms”hitleristas ou a situações insolúveis como da grande massa negra norte-americana (FRANCO, 1950, citado por SILVEIRA, 2007, p. 63).

Esta pauta veio adquirir ainda mais força com a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, que em seus dispositivos demonstrou repugnância ao racismo e quaisquer formas de discriminação, além de prever o racismo como crime. Em consonância as

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disposições da Constituição Federal Brasileira, em 05 de janeiro de 1989 foi editada a Lei 7.716 de autoria do deputado Carlos Alberto Caó, que apresentou o projeto de Lei nº 668 de 1988, com o objetivo de criminalizar a prática do racismo. Esta Lei conhecida como Lei do Racismo e Lei Caó definiu os crimes resultantes do preconceito de raça ou de cor ao classificar “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (BRASIL, 1988). Por conseguinte, em 13 de maio de 1997 esta Lei foi alterada em seus artigos 1º e 20º, pela Lei 9.459, e acrescida do parágrafo 3º ao art. 140 do Código Penal Brasileiro qualificando “os crimes de injuria em atenção ao repúdio do racismo, sendo então punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (BRASIL, 1989). Para Silveira (2007), de acordo com o art. 1º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, discriminar significa promover qualquer tipo de exclusão, restrição ou preferência, enquanto que o preconceito diz respeito à atitude, à esfera da intimidade, precedendo a discriminação, funcionando como móvel da ação discriminatória, tornando assim, junto ao dolo, o aspecto subjetivo do juízo de tipicidades dos crimes raciais, não possuindo assim, isoladamente, relevância penal. Com a criação dos dois tipos penais, passaram a surgir mais registros de ocorrências policiais e, consequentemente, mais processos criminais. Todavia, algumas situações podem gerar dúvidas aos interpretes no que compete ao enquadramento de condutas como crime previsto na Lei Caó ou como injúria qualificada. O critério adotado pelo Direito para a diferenciação das condutas diz respeito ao alcance das expressões, gestos ou modos de exteriorização do pensamento preconceituoso. O crime de preconceito e racismo destoa da injuria na medida em que este remete a honra subjetiva da pessoa, e aquele é manifestação de um sentimento em relação a uma raça (SANTOS, 2006). Assim, um indivíduo que manifesta contra uma pessoa negra a expressão “negão safado”, faz ofensa à honra subjetiva da vítima com base em elementos preconceituosos, situação em que se enquadra como injúria qualificada. No entanto, ao afirmar algo assemelhado a “tinha que ser preto para fazer uma caca dessas…”, pratica-se o preconceito e racismo, pois atribui características negativas ao indivíduo por pertencer a um determinado grupo. Essa diferença é crucial para o entendimento jurídico e consequente classificação do crime/pena, contudo no campo da Psicologia Social, ambas são classificadas como formas de expressão do preconceito racial e racismo e, que, portanto, seriam igualmente passíveis de punição baseada numa lei de crime racial, o que parece estar por trás da “manobra jurídica” talvez sejam

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formas de justificar e legitimar práticas discriminatórias (PEREIRA; VALA, 2011) usando-se da retórica e de artifícios legais. Algo semelhante parece ocorrer quanto à análise da constitucionalidade das políticas de cotas para negros nas universidades federais. A seguir será exposto o processo de proposta e implantação das políticas de ações afirmativas, precisamente as políticas de cotas nas universidades e o embate quanto à constitucionalidade da sua implantação. Ações afirmativas e discriminação positiva Como vimos neste breve percurso histórico, as relações raciais no contexto jurídico brasileiro passaram por diferentes desdobramentos. Em consonância com Lima, Neves e Silva (2014), compreendemos as relações raciais como um campo de particular interesse para estudar as percepções de justiça e legitimação da ordem estabelecida, pela forte assimetria de poder e dominação que as têm caracterizado ao longo da história. Destacamos que a noção de discriminação é central tanto na criminalização da prática do racismo como em outras discussões acerca das relações raciais. Para Gomes (2002), é preciso uma ampla conscientização sobre o fato de que a marginalização socioeconômica a que são relegadas as minorias, especialmente as raciais, resulta de um único fenômeno: a discriminação. A implantação das ações afirmativas se caracteriza pela assunção da existência de discriminação contra as minorias raciais na sociedade brasileira, apesar da peculiaridade do discurso nacional sobre as relações raciais. Portanto, conceitualmente pode-se definir ações afirmativas como políticas públicas (e privadas), voltadas à concretização do princípio constitucional de igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física (GOMES, 2002). A Índia foi pioneira na adoção de cotas no ensino superior no ano de 1930, promovendo o acesso dos Dalits a universidade. Na primeira constituição indiana, em 1948, previam-se medidas especiais de promoção dos dalitsou intocáveis (reserva de assentos) no parlamento, no ensino superior e no ensino público. Do mesmo modo diversos outros países da Europa Ocidental, Malásia, Sri Lanka, Nigéria, África do Sul, Austrália, Canadá, Cuba, Argentina, Brasil e Estados Unidos as ações afirmativas têm historicamente contemplado vários setores sociais (MOEHLECKE, 2002; SOWELL, 2004).

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Nesse sentido, podemos transpor a constatação de Kennedy1 quanto à desigualdade vivida pelas pessoas negras na sociedade norte-americana para o contexto das universidades públicas brasileiras, por exemplo. Pois, em 2005, em pesquisa citada na assessoria de comunicação do MEC, apenas 1% de professores negros atuava nas universidades públicas. Assim, observamos que as leis supracitadas representam um avanço significativo na questão, mas não são suficientes para combater as desigualdades nas relações raciais no Brasil. Para isso é necessário agir positivamente, criar estratégias concretas e não apenas condenar formalmente a discriminação. A discriminação positiva é uma forma de estratégia concreta de combate às desigualdades sociais. Conceitualmente diferente das ações afirmativas, que visam incentivar e dar suporte aos grupos que necessitam (ex. curso prévestibular para negros e estudantes de escolas públicas), a discriminação positiva estabelece o trato desigual aos desiguais com intuito de promover a igualdade, de fato, entre os grupos (ex. reserva de vagas nas universidades públicas para pessoas negras e provenientes de escolas públicas). Atualmente no Brasil esta discussão está muito relacionada ao âmbito educacional, mais especificamente à reserva de vagas para negros em universidades públicas. Neste âmbito, a expressão “cotas numéricas” é confundida como sinônimo de ação afirmativa, mas na verdade são apenas um aspecto ou uma possibilidade. Porém, embora as ações afirmativas sejam mais amplas, o sistema de cotas tem um impacto pedagógico muito importante no nosso contexto, por se tratar de uma forma de discriminação positiva. Para Lima, Neves e Silva (2014), as cotas estimulam o debate sobre raça, racialidade, justiça e racismo numa sociedade que sempre pareceu dormir no berço esplêndido do mito da democracia racial, permitindo assim um avanço na compreensão do fenômeno do racismo no Brasil. Contudo, apesar de não existir relação direta entre a atitude perante as cotas para negros e o preconceito racial, Silva (2014) aponta que as atitudes positivas e o preconceito flagrante estão positiva e significativamente relacionadas a aceitação e maior atribuição de justiça a política de cotas, ao passo que, maior pontuação em preconceito sutil e racismo estão significativamente relacionados a uma menor aceitação e menor atribuição de

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A origem das ações afirmativas nos Estados Unidos ocorre nos anos 1960, após diversos movimentos sociais clamarem por igualdades raciais e sociais. Fazendo com que o então presidente John Kennedy constate, em um final de expediente e ao rodear a casa branca, que não havia ali nenhum funcionário negro. Após tal constatação o presidente teria decidido afirmar, ou seja, reconhecer a situação de desigualdade vivida pelas pessoas negras e tomar uma medida positiva em vez de apenas condenar a discriminação por meio de leis formais que declaravam os princípios de igualdade.

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justiça à política de cotas. As atitudes negativas não estão significativamente relacionadas a atribuição de justiça a política de cotas. Os resultados apontaram para uma possível existência de conflitos ambivalentes pelo fato de concomitante às expressões de atitudes explicitamente contrárias aos negros, ocorre uma adesão ao discurso compartilhado da necessidade de proporcionar um trato igualitário aos grupos no acesso a bens materiais e simbólicos, a exemplo do acesso ao ensino superior. Pode ser explicada devido à necessidade de preservação de uma autoimagem positiva de si. Assim, por mais que haja uma maior expressão do preconceito flagrante e direto, por outro, tenta-se minimizar tal efeito mostrando-se benevolente para com os grupos minoritários discriminados (neste caso os negros) (SILVA, 2014). Essa temática complexa suscitou diversos posicionamentos e apreciações divergentes no plano jurídico, bem como discussões impactantes no plano social. A Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de Brasília (UnB) foram as primeiras universidades públicas brasileiras a instituírem um sistema de cotas, a partir de 2003, afirmando os direitos fundamentais e sociais de todos e o princípio de igualdade que parece inquestionável (BAYMA, 2012). Entretanto, neste âmbito, a noção de igualdade parece ter mais de uma interpretação. Segundo Gomes (2002), o cerne da questão reside em saber se, na implementação do princípio constitucional da igualdade, o Estado deve assegurar apenas uma certa neutralidade processual ou, ao contrário, se sua ação deve se encaminhar para a realização de uma igualdade de resultados ou igualdade material. Para o autor, enquanto a concepção de igualdade formal não leva em conta os fatores que antecedem a entrada dos indivíduos no mercado competitivo, contrariamente, a igualdade dos resultados tem como nota característica exatamente a preocupação com fatores externos à luta competitiva, tais como classe ou origem social. A perspectiva “ideal-típica” de meritocracia, que defende uma suposta igualdade de oportunidade a todos, pode ser entendida como uma ideologia que, por trás da defesa do mérito individual, esconde e camufla uma prática discriminatória de fato. Pois, como afirmam Zoninsein e Júnior (2008), as ações afirmativas são um instrumento importante de promoção do mérito verdadeiro e não da reprodução do privilégio disfarçado de mérito, isso porque o princípio de seleção que opera, por exemplo, em cada cota, é o do mérito. As sociedades que se apegaram ao conceito de igualdade apenas “perante a lei” são aquelas em que se verificam os mais gritantes índices de injustiça social o que levou à adoção de uma nova postura que já aparece na constituição brasileira de 1988, como apresenta o autor:

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Patrícia da Silva Camila Lima de Araújo Luiza Lins Araújo Costa José Andrade Santos A constituição brasileira de 1988 não se limita a proibir a discriminação, afirmando a igualdade, mas permite também a utilização de medidas que efetivamente implementem a igualdade material. Tem-se, assim, uma concepção moderna e dinâmica do princípio constitucional da igualdade, que conclama o Estado a deixar de lado a passividade, a renunciar a sua suposta neutralidade e a adotar um comportamento ativo, positivo, afirmando, quase militante, na busca da concretização da igualdade substancial (GOMES, 2002, p. 141).

Sarmento (2008) é ainda mais enfático ao determinar que a isonomia tratada na Constituição brasileira é substancial, como visto no artigo 3º que positiva os objetivos fundamentais da República: “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III) e” promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV). Observa-se, ainda segundo Sarmento (2008) que o constituinte empregou verbos de ação ao tratar da igualdade, porque partiu da premissa que a igualdade não é um dado de realidade, mas algo que deve ser construído (p.246). Neste sentido, o conceito de igualdade se caracteriza pelo fato de não se limitar a mera positivação legal, mas promover ações que visam uma igualdade de fato, no futuro, possível mediante alterações na norma (ZONINSEIN; JÚNIOR, 2008). Portanto, segundo Piovesan (2005), a igualdade é assegurada, essencialmente, por “estratégias promocionais para estimular a inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (p.36), não apenas por legislação repressiva que proíba a discriminação. Gomes (2003), conclui o amplo e diversificado respaldo jurídico às medidas afirmativas, pois estas são práticas diferenciadas que permitem compensar as desigualdades existentes e justificam-se em virtude de discriminações impostas pela sociedade. Nesse sentido, em 26 de abril de 2012, mediante a Lei Federal 12.711, após anos de debate, a questão foi julgada constitucional, por unanimidade pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (BAYMA, 2012). Assume-se então que as políticas públicas de ações afirmativas que possibilitam o acesso às universidades não maculam o princípio constitucional da isonomia, não havendo dúvidas quanto à sua viabilidade e restando, então, escolher os critérios, as modalidades e as técnicas adaptáveis à nossa realidade, cercando-as das devidas cautelas e debates sociais necessários para essa implementação (BAYMA, 2012; GOMES, 2002). Todavia, a despeito da unanimidade em que foi julgada a lei de cotas no plano jurídico, permanecem as críticas e argumentos contrários à implantação na sociedade. A experiência de implantação, antes do julgamento de

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constitucionalidade, gerou interpretações variadas e algumas polêmicas como na Universidade de Brasília (UnB) que considerava o critério da autodeclaração, mas realizava uma espécie de banca para avaliação desta declaração. Em 2007, por exemplo, gêmeos univitelinos foram considerados de raças diferentes, nesta banca da UnB, um deles foi considerado negro, o outro não. Diante de situações como essa, de acordo com a lei aprovada apenas a autodeclaração deve ser o critério considerado, mas permanecem as discussões sobre esse problema “metodológico” para a implantação das ações afirmativas. Argumentos contrários afirmam a impossibilidade de caracterizar quem seria negro no Brasil, devido a miscigenação da população como um todo, ou ainda, respaldam-se na ideia de preconceito de classe e não de cor, mitos legitimadores das assimetrias de poder entre brancos e negros que têm como objetivo obliterar o caráter opressivo das relações raciais no Brasil (OLIVEIRA Filho, 2009; LIMA; NEVES; SILVA, 2014). As ações afirmativas têm contemplado vários setores sociais, como as mulheres e os portadores de necessidades especiais, entretanto estes outros setores não provocam calorosas discussões como no caso das cotas para negros (SILVA, 2005; NEVES; LIMA, 2010) em que chegam a reconhecer que o racismo e a discriminação racial inviabilizam a existência plena das pessoas negras, mas as possíveis soluções, como a adoção de cotas, são combatidas (SILVA, 2002). Para Silva (2002), a dúvida sobre quem é negro no Brasil soa estapafúrdia, pois é contraditório que as pessoas o saibam quando se trata de preterir a pessoa negra por pressupostos e características raciais e que ninguém saiba quando se trata de implementar ações que visem combater as práticas discriminatórias presentes e enraizadas nas nossas relações sociais. Nesse sentido, a discriminação não é um fenômeno do presente e nem atua apenas sobre alguns indivíduos. Os efeitos persistentes do nosso passado, nossa história de discriminação, são psicológicos, culturais, comportamentais e impactam a sociedade como um todo, criando barreiras artificiais e invisíveis que dificultam o avanço dos negros nessa sociedade (GOMES, 2002). Tais efeitos agem sobre todos os que nela estão inseridos, incluindo aqueles que compõem os quadros burocráticos do Estado cuja missão é a observação da lei e sua aplicação: os operadores de Direito, que estabelecem uma compreensão da lei utilizando significados ou “teorias implícitas” construídas em seu cotidiano (CIARALLO; ALMEIDA, 2009). Desse modo, à luz das discussões supracitadas e considerando o impacto da mentalidade coletiva, moldada pela tradição, pelos costumes e pela

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história (GOMES, 2002), nas posições dos operadores, analisamos o posicionamento de juristas, estudiosos e profissionais do direito quanto à constitucionalidade da aplicação das políticas de ações afirmativas. Foram realizadas entrevistas, antes do julgamento de constitucionalidade das cotas realizado em 2012, nas quais foi perguntado a profissionais que trabalham com Direito (magistrados, advogados, defensores públicos, promotores e professores universitários) a opinião pessoal sobre: “O que significa Justiça?”; “O que significa Igualdade?”; “Em que medida é constitucional a aplicação das Políticas de Ações Afirmativas?” e; “Em que medida é constitucional a aplicação da Política de Cotas para negros nas Universidades Públicas?”. ANÁLISES E DISCUSSÕES DOS DADOS Participaram da pesquisa 19 profissionais, da cidade de Aracaju, que trabalham com o direito, sendo 11 juízes; 01 promotor; 01 defensor público e 06 advogados. Quanto ao tempo de exercício profissional, apenas 05 tinham menos de 10 anos e os demais entre 10 a mais de 20 anos. Destes, 11 eram graduados, 06 especialistas e 02 mestres. As idades variavam dos 25 aos 70 anos. Quanto ao sexo foram 12 homens e 07 mulheres. No que se refere a cor de pele 14 se declararam brancos, 02 negros e 03 outros (mulato, mestiço e pardo). No que se refere ao posicionamento favorável ou contrário as políticas de ações afirmativas, as cotas sociais e as cotas raciais nas universidades pública foi feita uma distribuição da frequência do posicionamento em relação ao tipo de conceito de justiça e igualdade adotado. Vale salientar que os conceitos de justiça e igualdade quanto a formalidade ou materialidade da sua aplicação foram coerentes entre si, isto é, os que adotaram o conceito de justiça formal também adotaram o conceito de igualdade formal, o mesmo ocorreu em relação a adoção do conceito de justiça material/substancial e igualdade material/substancial. Fato que denota uma coerência discursiva nos conceitos ora pesquisados. Pode-se perceber que dos profissionais contrários as P.A.A 04 apresentaram o conceito de justiça e igualdade formal, ao passo que os demais (n=15) com posicionamentos favoráveis conceituaram justiça e igualdade no sentindo substancial. Com isso, fica claro, ao menos, no que se refere as políticas de ações afirmativas, uma relação direta entre os conceitos de justiça e igualdades adotadas e o posicionamento favorável ou contrário a aplicação de tais políticas. No que se refere, as cotas sociais, foi percebida uma certa ambivalência. Os que se posicionaram favoráveis as cotas sociais apenas 01 adotou os

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conceitos de justiça e igualdade formal, ao passo que 04 adotaram o conceito de justiça e igualdade material/substancial, já aqueles que se posicionaram contrários as cotas sociais a grande maioria (n=11) adotou os conceitos de justiça e igualdade material/substancial, o que indica uma certa inversão entre os conceitos e adesão favorável a aplicação de medidas efetivas que visão pôr em prática o que apregoa a teoria. Algo semelhante ocorre, no que se refere, a aceitação da aplicabilidade das cotas raciais, sendo que apenas 01 (um) que aderiu ao conceito de justiça e igualdade material, antes era favorável a cotas sociais, passou a ser contrário as cotas raciais. No mais, o padrão de respostas, para os que adotam os conceitos formais de justiça e igualdade, permaneceu o mesmo, assim, 01 sendo favorável e 03 contrários a adoção de cotas raciais. Assim, para melhor compreensão do fenômeno foram feitas perguntas abertas sobre os conceitos de justiça e igualdade; o posicionamento em relação às políticas de ações afirmativas e em relação às cotas sociais e raciais. Conceitos de Justiça e Igualdade

Quadro 1 – Categorias sobre os conceitos de justiça e igualdade Justiça Formal (04) Substancial (15) “Dar a cada um o “Usar as que é seu” (We) ferramentas do direito para contemplar o interesse dos mais necessitados, daquele que mais precisa de justiça” (Ma).

Igualdade Formal (04) Substancial (15) “Ausência de “Tratar os iguais qualquer tipo de de forma igual e discriminação” (Ce) os desiguais de “Tratar de forma forma desigual, na igual independente exata medida de do sexo, credo...” suas (Pa). desigualdades” (Mc).

Um menor número de participantes alegou que justiça significa “Dar a cada um o que é seu” (We), portanto, na sua conceituação formal, sem fazer qualquer distinção. O que aponta a um tipo específico de justiça baseada no princípio meritocrático de posse. Contudo a grande maioria (15 participantes) conceituou justiça no seu sentido substancial ou material, em que segundo Ma, a justiça é “usar as ferramentas do direito para contemplar o interesse dos mais necessitados, daquele que mais precisa de justiça” (Quadro 1).

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No que se refere ao conceito de igualdade a distribuição foi semelhante à de justiça, quanto ao sentido formal ou substancial, como visto na tabela 2. Os conceitos de igualdade parecem indicar algo mais pragmático, portanto, de maior aplicabilidade, saindo da esfera abstrata do conceito de justiça, para esfera pragmática do conceito de igualdade, a exemplo das falas de Ce e Pa, respectivamente, “Ausência de qualquer tipo de discriminação” e “Tratar de forma igual independente do sexo, credo…” ao especificar igualdade no seu sentido mais formal ou ainda, na fala de Mc “Tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na exata medida de suas desigualdades”, que estabelece o conceito de igualdade no sentido material ou substancial (Quadro 1). Interessante frisar que os mesmos que adotam o conceito de justiça formal também adotam o conceito de igualdade formal, algo congruente, o mesmo ocorre na adoção do conceito de justiça e igualdade material ou substancial. Os conceitos estão congruentes entre si e denotam uma preocupação com a lógica, algo realmente importante na doutrinária do direito. Nosso objetivo, foi exatamente observar através da adoção conceitual de justiça e igualdade avaliar o posicionamento desses profissionais quanto a aplicabilidade e constitucionalidade das medidas de ações afirmativas no âmbito geral e específicos (cotas sociais e cotas raciais).

Quadro 2 – Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das Políticas de Ações afirmativas Constitucionalidade das P. A. A. Favorável (15) Contrário (04) “Diante da desigualdade concreta, e na “Constituição...legitima...mas há opiniões constituição há princípios que garantem contrárias...eu sou contrário” (Mc) isso, que tratem desigualmente os “Quebra a desigualdade...mas acaba desiguais de forma momentânea para gerando sectarismo” (Pa) que eles tenham condições iguais, de “sim...pelo princípio da dignidade da fato, para competir”(Si) pessoa humana” mas “o ideal seria combater a causa pela raiz” (Ga)

No que se refere a análise quanto a constitucionalidade das políticas de ações afirmativas (Quadro 2), a maioria é favorável inclusive ao salientar que a constituição já assegura tais políticas com o objetivo de que “Diante da desigualdade concreta, e na constituição há princípios que garantem isso, que tratem desigualmente os desiguais de forma momentânea para que eles tenham condições iguais, de fato, para competir” (Si). Os que responderam contrários ao entendimento da constitucionalidade das políticas de ações afirmativas, especificaram que apesar de existir

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dispositivo constitucional discordam porque, a exemplo de Pa, “Quebra a desigualdade...mas acaba gerando sectarismo” ou ainda segundo Ga é constitucional “sim...pelo princípio da dignidade da pessoa humana” mas “o ideal seria combater a causa pela raiz” (Quadro 1) Desta forma pode-se perceber que há uma aceitação de que existem desigualdades reais, mas que tais medidas afirmativas acabam por promover mais diferenças e não resolveriam problemas de base. Pode-se perceber que há uma consonância entre posicionamentos formais do conceito de igualdade e justiça e a não aceitação da constitucionalidade das políticas de ações afirmativas. Bem verdade que conceituar material e substancialmente justiça e igualdade também conota consonância com entendimento favorável a constitucionalidade das PAAs. Desta forma, entender que justiça é dar a cada um o que é seu e tratar a todos de forma igual sem distinção parece remeter a um posicionamento contrário as políticas de ações afirmativas no seu sentido mais amplo. Ao passo que o entendimento de justiça como algo reparador e proporcional e, igualdade como algo que precisa ser promovido para que desiguais se tornem iguais na medida da sua desigualdade, remete a um juízo de constitucionalidade das PAAs. De fato, os dados remetem a uma congruência entre conceitos e atribuição de constitucionalidade às políticas de ações afirmativas no sentido amplo, as vezes até inespecífico, contudo nos perguntamos será que essa congruência se manterá quando inqueridos acerca da constitucionalidade das cotas sociais e raciais das vagas nas universidades públicas? Logo abaixo analisaremos os discursos dos participantes quanto aos seus posicionamentos. Pode-se perceber, como visto na tabela 2, que houve uma inversão quanto a distribuição em relação a aceitação das cotas sociais, se comparado a aceitação as políticas de ações afirmativas, isto é, o número daqueles que são favoráveis as cotas sociais reduziram drasticamente e os que mantiveram o posicionamento favorável se empenharam em justificar a emergência do uso da discriminação positiva com intuito de reduzir as desigualdades. Para aqueles que se posicionaram contrários as cotas sociais, o discurso antes igualitário no sentido material se torna formal na sua aplicabilidade, inclusive com justificativas de outra ordem, que o importante é o empenho em melhorar o ensino público proporcionando oportunidade de fato, pois com as cotas sociais corre-se o risco de sucatear as universidades públicas, além, enfatizam, de provocar o sectarismo entre cotistas e não-cotistas (Quadro 3).

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Quadro 3 - Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das Políticas Cotas sociais nas universidades Constitucionalidade das Cotas Sociais Favorável (05) Contrário (14) “o poder público está alicerçado no “o ideal seria combater a causa na modelo oligárquico...as vagas nas raiz...então dá oportunidade na base ... universidades ficaram nas mãos de uma pois pode comprometer a qualidade do elite...melhor forma seria melhorar o ensino...sucatear a universidade” (Ga) ensino público...mas o que fazer com os “provoca sectarismo entre cotistas e nãojovens que hoje anseiam por entrar na cotistas” (Nc). universidade?... tratar de forma discriminativa para reduzir as desigualdades”(Sy).

Vimos até agora que o discurso da necessidade de uma justiça e trato igualitário entre os grupos na sua forma material pode ser aplicada em medidas de ações afirmativas, no entanto, quando parte-se para esfera da discriminação positiva, com ressalva para alguns grupos ou categorias sociais (ex. deficientes), os conceitos retomam seu sentido formal, isso se pensarmos nas cotas sociais, como seriam então esse discurso sobre a constitucionalidade das cotas raciais? Quadro 4 – Posicionamentos favoráveis e contrários à constitucionalidade das Políticas cotas raciais nas universidades públicas Constitucionalidade das Cotas Raciais Favorável (04) Contrário (15) “o que levou o legislador a conceder um “institucionaliza o racismo” (Ri) tratamento diferenciado para mulheres e deficientes...se respalda na constatação “hoje é muito conveniente se dizer afroque esses grupos...historicamente descendente...no momento que isso sofreram discriminação no Brasil e em pode representar uma cadeira ou não na função dessa não tiveram oportunidades universidade” (Mc) de acesso...se transpormos para o campo das discriminações raciais veremos que a premissa é a mesma..” (Sy)

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No que se refere, a avaliação da constitucionalidade das cotas raciais a distribuição foi similar à vista nas cotas sociais, contudo as respostas são mais contundentes, dado que aqueles que foram favoráveis a constitucionalidade das cotas raciais tende a analisar a situação dos negros no Brasil de forma análoga a dos demais grupos desprivilegiados e discriminados historicamente (ex. mulheres e deficientes). Contudo, aqueles que se posicionaram contrários a constitucionalidade das cotas raciais, argumentam que seria uma forma de institucionalizar o racismo ou que tal adoção permitiria a alguns (inescrupulosos) se identificar como negros já que teriam alguma vantagem nessa identificação, o que remete a ideia da difícil classificação racial no Brasil devido ao processo de miscigenação. Um dos entrevistados, autodeclarado negro, Juiz de direito, fez questão de se posicionar de forma mais contundente ao declarar: “Minhas conquistas pessoal e profissional não dependeram de medidas de ações afirmativas, não sei se por felicidade ou não…mas eu sei o quanto sofri e não posso ver minha situação pessoal como sendo uma regra o que de fato não é, de fato é uma exceção, então me sinto confortável para fazer a defesa das PAA em relação aos negros…porque os negros como eu não precisam sofrer para conquistar seus objetivos para assegurar sua dignidade como pessoa humana que é dever do Estado assegurar. É inaceitável viver no país em que há uma probabilidade maior de um jovem negro permanecer pobre em relação ao branco…” (Sy). Pode-se inferir que na fala de Sy o componente identitário é marcadamente um dos fatores que subjazem o posicionamento favorável as cotas sejam de ordem social ou racial, essa assertiva corrobora os achados de Silva (2005) sobre a correlação positiva entre identificação racial e posicionamento favorável as políticas de cotas raciais nas universidades públicas. CONSIDERAÇÕES Diante do exposto pode-se notar que os conceitos de Igualdade e Justiça estão, na maioria dos discursos, pautados no sentido substancial/material ao se estabelecer a necessidade de aplicar um trato diferenciado entre os grupos com intuito de promover justiça aos mais necessitados, assim, trata-se de maneira desigual os desiguais na medida da sua desigualdade para que possam galgar uma igualdade com o grupo que detém o poder. Um exemplo é assegurar uma defensoria pública para aqueles que não têm recursos financeiros para contratar serviços advocatícios.

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Contudo ao transpor para a ideia de discriminação positiva, no sentido mais pragmático dos conceitos de justiça e igualdade, ocorre uma retomada do sentido formal, um tanto quanto pouco reflexivo e, aparentemente reduzido a um discurso politicamente correto e ideal. Isto é, no campo conceitual e abstrato é possível a adoção dos conceitos de igualdade e justiça material e substancial, mas impensável transpor ao campo da aplicabilidade prática. Segundo muitos dos profissionais do direito o posicionamento favorável as P.A.A., são aceitáveis para aquelas já previstas em lei, portanto, imposta coercitivamente. No entanto, ao tratar de cotas universitárias percebe-se que os posicionamentos saem da esfera jurídica e se respaldam mais contundentemente no campo político. Tendo em vista principalmente quando questionados sobre as cotas raciais, os argumentos se sustentam na ideologia da meritocracia, no mito da democracia racial e, portanto, na reprodução de um discurso dominante constituinte de uma estrutura de poder, em que a alteração das coisas, isto é, do status quo do grupo dominante gera uma distorção da ordem social estabelecida até o momento. Desta forma, o discurso igualitário tornou-se uma norma, que precisa de uma reinterpretação hermenêutica, pois ficou no plano idealizado abstrato e pouco viabilizado na prática. A retórica é perfeita e congruente, mesmo que destoe da aplicabilidade prática, pois ter um discurso igualitário, no sentido material, é reforçado por uma imagem positiva de si. As justificativas para não aplicabilidade das cotas são perpassadas por argumentos legitimadores das desigualdades, como princípio da meritocracia, termos, muitas vezes, usados de forma indiscriminada e descontextualizada. Contudo, acreditamos que, com o reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais em 2012, dois anos após o início dessa pesquisa, alguns posicionamentos aqui presentes seriam expressos de forma diversa, pois alguns profissionais que se posicionavam contrários a adoção das cotas sociais e raciais o eram porque esta não estava contemplada na Constituição Federal Brasileira, isto é, não existia uma lei explícita sobre a legitimação das cotas. Para uma melhor compreensão do fenômeno seria interessante repensar e, quem sabe, até replicar a pesquisa com intuito de verificar diferentes desdobramentos e justificativas que por ventura possam surgir em relação aos posicionamentos contrários à adoção das cotas sociais e raciais. REFERÊNCIAS BAYMA, F., Reflexões sobre a constitucionalidade das cotas raciais na Universidades Públicas no Brasil: referências internacionais e os desafios pósjulgamento das cotas. Ensaio: aval. pol. públ. Educ, 20 (75), 325-346, 2012.

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CAPÍTULO

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AÇÕES AFIRMATIVAS NO MERCADO DE TRABALHO1 Valdenice Portela Silva Marcus Eugênio Oliveira Lima Patrícia da Silva

U

ma das esferas sociais onde há profunda desigualdade entre mulheres e homens, negros e brancos, é o mercado de trabalho. Isso, não apenas é constatado em dados referentes ao período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre (PASSOS SUBRINHO, 2000), mas em diversos dados sobre a participação da população negra brasileira no mercado de trabalho na década

Este capítulo consiste em parte da dissertação de mestrado “A discriminação da mulher negra no setor industrial sergipano entre 2007 e 2014: Uma análise dos impactos da norma de responsabilidade social empresarial”, defendida no Programa de PósGraduação em Psicologia (PPGPSI) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) no ano de 2017. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 1

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de 2000. Nestes dados, é possível verificar a distribuição das mulheres negras no mercado de trabalho formal e informal e a situação de precariedade a que elas duplamente se encontram (IBGE, 2014). Negros e mulheres estão sujeitos a estas distorções desde o período da colonização do Brasil. Os propósitos d’As Políticas de Ações Afirmativas são: a redução das desigualdades de raça e gênero em relação às altas taxas de desemprego, às diferenças salariais injustificadas e à falta de acesso aos postos de maior visibilidade. Essas ações são uma forma de reduzir essas distorções. Para entender a desigualdade, é necessário analisar inicialmente a igualdade e os direitos humanos, a fim de alcançar meios que proporcionem às mulheres e aos negros o respeito à diversidade através da isonomia de renda e de condições de trabalho. Existem três concepções centrais da igualdade: a) a igualdade formal, que se reduz à fórmula ‘todos são iguais perante a lei’, fundamental para diminuição de privilégios; b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça social e distributiva e é orientada pelos princípios sócios econômicos; e c) uma igualdade substancial, orientada por um princípio de justiça mais amplo e centrada no reconhecimento da identidade de gênero, raça, etnia, dentre outras (PIOVESAN, 2005). Neste capítulo, a partir de dados sobre desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho, será abordado o período de transição do trabalho escravo para o livre no Estado de Sergipe, nas décadas de 1850 a 1930, para, logo depois, serem apresentados alguns dados da década de 2000 sobre desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro. Frente aos dados que serão apresentados e a constatação do fato de que persistem as desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho brasileiro, a discussão sobre ações afirmativas, neste artigo, tem o intuito de buscar entender o que está sendo feito na esfera privada para reduzir as desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho brasileiro. DESIGUALDADES DE RAÇA E GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO A propriedade de escravos se difundiu por todas as regiões e atividades econômicas da província Sergipe Del Rey, ainda que não de forma homogênea. A necessidade de mão de obra escrava dependia das necessidades da atividade econômica desenvolvida na região. Nesse sentido, uma das regiões que mais teve a participação de escravos (22,60%) e população livre (29,01%) foi a Mata Sul na época formada pelos municípios de São Cristóvão, Estância, Santa Luzia, Indiaroba e Itabaianinha (PASSOS SUBRINHO, 2000). A relação da distribuição relativamente homogênea da população livre da Província com a concentração relativa da população escravizada determinará 108


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não apenas os tipos de atividades econômicas desenvolvidas na época (a pecuária, agricultura de subsistência e agro-indústria açucareira), mas a substituição, após a derrocada da escravidão, da mão-de-obra escrava pela livre. O que se percebe é que o tipo de atividade econômica desenvolvida na região dependia da relação população livre e escrava. Em regiões com um contingente maior de escravos em relação à população livre havia maior probabilidade de desenvolvimento da agroindústria açucareira do que nas regiões cujo contingente de população livre era maior. A estrutura ocupacional da população escrava sergipana na segunda metade do século XIX, conforme os dados do Censo de 1872 e as matrículas de escravos de 1873 e de 1887, é representada por mapas que agrupam as profissões exercidas pelos escravos desta época em certas categorias profissionais (PASSOS SUBRINHO, 2000). No ano de 1872 as profissões da população sergipana eram agrupadas nas seguintes categorias: a) profissionais liberais, proprietários e outros, religiosos, juízes, advogados, notários e escrivães, procuradores, oficiais de justiça, médicos cirurgiões, farmacêuticos, parteiros, professores e homens de letras, empregados públicos, militares, capitalistas e proprietários; b) marítimos e pescadores; c) industriais e comerciantes; manufaturadores e fabricantes, comerciantes, guarda-livros e caixeiros; d) artesãos de profissão declarada, costureiras, canteiros, calceteiros, mineiros, cavoqueiros, operários em: metais, madeiras, tecidos, edificações, couros e peles, tinturas, vestuários, chapéus e calçados; e) agricultores, lavradores e criadores; f) criados e jornaleiros e; g) sem profissão. Dentre as ocupações, relacionadas acima, os escravos exerciam as seguintes profissões: parteira, pescador, marítimo, artesãos (artistas e costureiras), lavradores, jornaleiros e serviçais domésticos. A Província de Sergipe, entre as Províncias do Nordeste, foi a que apresentou a mais alta relação de escravos empregados na agricultura como lavradores (PASSOS SUBRINHO, 2000). Se a agricultura em 1872 foi a atividade econômica que mais empregou escravos, “em segundo lugar foram os serviços domésticos que mais empregaram escravo (a)s, com percentual de 11,47% praticamente igual à média nacional.” (PASSOS SUBRINHO, 2000, p. 84). Não apenas em Sergipe, mas nas demais regiões do Brasil constata-se que da grande quantidade de mulheres negras que hoje se encontram ainda no mercado de trabalho informal, a maioria é empregada doméstica (59,65%), com baixa escolaridade, baixos salários, corroborando dados fartamente divulgados pelos institutos de pesquisa do governo de organismos internacionais como a OIT e a ONU Mulheres (IBGE, 2014).

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Passos Subrinho (2000) concluirá, acerca das bases de dados usadas, que o Censo de 1872 pode ser considerado uma fonte mais segura de informações sobre a estrutura ocupacional da população escrava do que os dados publicados na matrícula de 1873, isso pelo fato destes, ao serem registrados pelos senhores de escravos, apresentam-se enviesados: para os senhores não era viável, nessa época, acrescentar na matrícula uma profissão que desvalorizasse seu escravo. [...]. A matrícula de escravos foi um registro civil, de caráter nacional, da população escrava, mas também tinha diversas implicações legais e tributárias; por exemplo, não se podia legar ou vender escravos não matriculados, já que a matrícula era a prova legal da condição servil. Por outro lado, a matrícula de escravos seria a base para a elaboração das listas dos escravos classificados para serem beneficiados pelo “Fundo de Emancipação”. Nesse sentido, é provável que os senhores fizessem declarações sobre a aptidão ao trabalho de seus escravos, de forma a valorizá-los, evitando declarações como “sem profissão”, ou ocupações que pudessem depreciar economicamente seus escravos, como por exemplo, serviços domésticos (PASSOS SUBRINHO, 2000, p.86).

A partir dos dados do censo de 1872 e da matrícula de 1873, percebe-se que muito antes de ocorrer a abolição da escravatura, boa parte da população escrava (69,5% no Censo de 1872 e 86,6% na Matrícula) estava empregada na Agroindústria. De modo que, antes mesmo dos escravos serem libertos, tanto nos censos demográficos como nos registros feitos pelos senhores de escravos, a eles era atribuída uma profissão que após abolição, era possivelmente utilizada por eles para a inserção no mercado de trabalho. Os dados apresentados contestam a ideia de que os escravos eram todos domésticos. Em Sergipe o que se tinha era uma sociedade com um número relevante de escravos em outras atividades produtivas e sob o domínio daqueles que detinham a maior parte da mão-de-obra escrava. De modo que, quando a produção de açúcar caía, surgia o problema de organização de trabalho, ou seja, de como permitir que esse contingente trabalhasse. Observa-se que a formação do mercado de trabalho livre em Sergipe não se deu da mesma forma do Oeste Paulista, onde a imigração europeia foi um fator decisivo para o abastecimento de força de trabalho da grande lavoura (DOMINGUES, 2008). Descartando a solução da imigração pelo Governo, “por se entender tratar-se de um desperdício de recursos públicos, recursos que deveriam ser direcionados preferencialmente ao crédito agrícola, à construção de ferrovias e portos, subsídios às linhas de navegação a vapor ou, genericamente, nos ‘auxílios da lavoura” (DOMINGUES, 2008, p. 199). Dessa forma, foi adotada como estratégia para persuadir ou obrigar a população livre a se engajar nos trabalhos agrícolas a coerção extra-econômica para o

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fornecimento de força de trabalho como a “repressão à vagabundagem”. E, em Sergipe tal fenômeno ocorreu no início da República. (PASSOS SUBRINHO, 2000). O que as autoridades públicas entendiam como “vagabundagem”, nada mais era do que a tentativa do liberto conduzir a sua própria vida, ao enxergar na pequena plantação, ou em outras atividades consideradas pelo Estado como marginais, a possibilidade de garantir sua subsistência e o acesso ao mercado de bens, independentemente do controle senhorial, bem como o de recusar o trabalho nos moldes das antigas relações escravistas (DOMIGUES, 2008). Conclui-se, portanto, que a situação da população negra no Brasil retrata uma realidade que não se encontra muito distante da vivida no período de transição do trabalho escravo para o livre (BORGES, 2013). Na década de 2000, “quanto à remuneração média, (…) a estrutura hierárquica, no que diz respeito à raça e gênero, permanece: homens e mulheres brancos, homens negros e, finalmente, mulheres negras” (BORGES, 2013, p.65). A ideia que se tem a princípio é do posicionamento de homens e mulheres, brancos e negros no mercado de trabalho não ser apenas de ordem estrutural, relacionada às mudanças ocorridas nos últimos anos no modo de produção; porque se assim fosse o processo de flexibilidade e precarização seria suficiente para explicar o posicionamento de mulheres e negros no mercado de trabalho. Há algo que vai além do observado e pode estar relacionado ao sistema de crenças daqueles que constituem e administram este mercado determinando quem deve fazer parte desta esfera social e de que forma e quem não deve. O fato de que a discriminação pode determinar a desigualdade, e o quanto esta tanto pode ser determinada por fatores “produtivos” (escolaridade, experiência profissional, região de moradia e faixa etária) como “não produtivos” (raça/gênero) é de extrema importância. Muitas vezes, a desigualdade de renda no mercado de trabalho entre mulheres e homens é explicada por fatores “não produtivos”, pois mesmo com alta escolaridade, a mulher, na maioria das vezes, sequer chega próximo da renda do homem dentro do mercado de trabalho (SOUZA; SALVATO; FRANÇA, 2013). A discriminação abrange toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objetivo prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Por esse motivo, associa-se a discriminação à desigualdade. O combate à discriminação é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Cabendo, neste caso, combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Por isso, a 111


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Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial prevê, no artigo 1o, parágrafo 4o, a possibilidade de “discriminação positiva”, ou seja, “ação afirmativa”, a qual tem como principal objetivo a adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos a fim de promover a igualdade não apenas racial mas de gênero, esta última por meio da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (PIOVESAN, 2005). Diferente do conceito de discriminação, que consiste no comportamento de identificar ou prejudicar um grupo por conta da cor da pele ou do sexo, ou seja, na ação de separar, isolar e/ou diferenciar, a discriminação positiva “assegura aos grupos minoritários um trato, uma proteção institucional, para que possam vislumbrar uma posição igualitária com os membros dos grupos majoritários.” (DA SILVA, 2014, p.69). Assim, é por meio de ações afirmativas, políticas públicas e/ou privadas, que se buscará a igualdade de oportunidades reduzindo as desigualdades econômicas e sociais, para que se tente promover, de fato, a “justiça social”. AÇÕES AFIRMATIVAS DE EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA NO MERCADO DE TRABALHO De natureza multifacetada, as ações afirmativas não apenas são impostas pelo estado, mas também por entidades privadas com objetivo de combater tanto manifestações flagrantes de discriminação como a discriminação por impacto desproporcional ou adverso2, seja através de normas de aplicação geral ou específica, ou mediante mecanismos informais difusos e informais. As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela Sociedade. (GOMES, 2005, p.51).

O termo ação afirmativa surge nos Estados Unidos na década de 1960, em virtude das condições de vida da população negra, por meio de “medidas

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Diferentemente da discriminação flagrante que consiste na discriminação intencional, a discriminação por impacto desproporcional implica no uso de procedimentos administrativos ou legais instituídos de forma aparentemente neutra, mas que reproduzem desigualdade no acesso aos bens materiais, aos postos de trabalho e aos espaços de poder e usufrutos de resultados econômicos (FILHO, 2008).

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especiais de proteção ou assistência” adotadas em um determinado período (GOMES, 2005). Devido às controvérsias associadas ao termo é criada a uma variedade de outros termos, tais como: Equidade no emprego, Discriminação Positiva e Gerenciamento para diversidade, expressões que agradam a empregadores e administradores. Entre as Convenções e Recomendações da OIT que contribuíram para a implantação dessas “medidas protetivas” no século XX e XXI em países desenvolvidos e subdesenvolvidos se encontra a Convenção 111 da OIT, cujo decreto legislativo de n. 104 foi aprovado em 24 de novembro de 1964. O art. 5o desta Convenção foi um dos primeiros de um tratado internacional que permitiu a adoção de medidas de proteção ou assistência com a intenção de atender pessoas reconhecidas como necessitadas destas de medidas (TOMEI, 2005). No Brasil, o primeiro registro de uma discussão sobre ações afirmativas é datado de 1968. Na década de 1980 será formulado o projeto de lei n. 1332, de 1983, de autoria do deputado federal Abdias Nascimento, o qual propõe medidas compensatórias para o afro-brasileiro após séculos de discriminação. Apesar de o projeto não ter sido aprovado, as reivindicações permanecem, contribuindo para criação da primeira política de cotas a nível nacional no ano de 1995 (TOMEI, 2005). Embora o movimento de reparação dos danos causados à população com base na cor negra tenha se consolidado na década de 1990. As políticas públicas promovidas pelo Estado em relação à dimensão racial surgem com a política imperial de estímulo à imigração de colonos brancos ao longo do século XIX, que contribuiu para a elaboração da “Lei dos Dois Terços”, implantada na década de 1930, para garantir a participação majoritária de trabalhadores brasileiros nas empresas em funcionamento no Brasil em virtude de muitas firmas de propriedade de imigrantes discriminarem os trabalhadores nativos, sobretudo em São Paulo e nos Estados do Sul. “A ação afirmativa opera em dois domínios: emprego e educação. Em ambos os domínios o princípio subjacente é o mesmo: a ação afirmativa existe quando uma organização utiliza recursos para garantir que as pessoas em categorias designadas recebam tratamento justo” (CROSBY; KONRAD, 2002, p.01, tradução nossa). Em outras palavras, é quando uma organização se mobiliza com a finalidade de combater a discriminação no emprego, na educação e de promover a igualdade de oportunidades. Uma das metas das ações afirmativas consiste em implantar maior “representatividade” dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública ou privada, tais como em posições de mando e prestígio no mercado de trabalho onde determinados grupos são sub-representados, a fim de eliminar as barreiras que emperram os avanços de negros e mulheres em certos espaços sociais. No entanto, a solução deste problema não deve caber

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apenas à esfera pública, mas envolver diversos atores da sociedade civil. De modo que, entre as estratégias previstas, incluam-se mecanismos que estimulem às empresas a buscarem pessoas de outro gênero e de grupos étnicos e raciais específicos para comporem seus quadros. As medidas de ações afirmativas se inserem num amplo espectro de políticas que se estruturam em três categorias maiores: ações de divulgação e recrutamento, de contratação e de promoção e metas para as políticas públicas de aquisição. Alguns dos países que adotam tais medidas são os Estados Unidos, Canadá, Índia, Malásia, Namíbia e Irlanda do Norte. No caso das metas de contratação e promoção é criada uma comissão que fica responsável por fiscalizar o trabalho das empresas por meio de relatórios anuais produzidos pelos empregadores acerca da representação dos grupos beneficiários nos diversos tipos de ocupações e faixas salariais (TOMEI, 2005). Esse processo de automonitoramento da coleta de dados comparativos de forma sistemática pelas empresas, por meio do qual a empresa fornece dados acerca de quantos homens e mulheres, negros e brancos são empregados na organização, por si já é considerada uma ação afirmativa. No bojo desta discussão sobre ações afirmativas é importante observar, primeiro que sua realização não cabe exclusivamente ao poder público e não se reduz à política de cotas, pois se refere a esforços orientados e voluntários empreendidos tanto pelo governo como por empregadores privados que tenham por finalidade promover oportunidades iguais no mercado de trabalho (GOMES,2005). Entretanto, não é viável a exportação de modelos de ação afirmativa vigente em outros países sem a devida atenção às diferenças culturais do local. Isso porque tais medidas preventivas não apenas afetam as políticas de recursos humanos das empresas, mas para que essas estruturas se desenvolvam é essencial tanto o envolvimento dos administradores como uma boa comunicação entre administração e sindicatos (TOMEI, 2005). Frente as desigualdades existentes entre homens e mulheres negras, brancos e negros, no mercado de trabalho e a existência de estruturas de discriminação que limitem as oportunidades destes grupos de exercerem determinadas ocupações profissionais ou hierarquias de comando em setores da economia, tais medidas preventivas estão voltadas para obtenção de melhorias no posicionamento de grupos discriminados no emprego. Neste sentido, a Ação Afirmativa pode ser associada à ideia de responsabilidade social empresarial, pois ela tem como preocupação a redistribuição de poder e recursos, enfatizando a importância de mudanças nas políticas e práticas organizacionais.

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NORMA DE RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL É na segunda metade do século XX que se fortalece nos Estados Unidos a ideia de uma atuação social das empresas. No início da década de 1950, surge em algumas empresas a preocupação com as questões sociais e com o impacto que as decisões empresariais têm sobre a vida de milhares de pessoas em diversos lugares do mundo. Tais mudanças de atitudes empresariais, na época, tinham também muito a ver com a pressão social sobre as empresas em relação aos malefícios que estas causam sobre o meio ambiente e os consumidores. Nessa época, pós-abolição, além do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, também surge o movimento feminista. Todos eles têm como principal objetivo a reivindicação por igualdade de oportunidades entre homens, mulheres, negro e brancos (MACHADO, 2012). Surge, então, o que passa a ser conhecido como movimento ativista social empresarial, que se intensifica como projeto político neoliberal, quando a “empresa passa a ter suas funções ampliadas para além da mera produção de bens e serviços e o consequente retorno de lucros. Essa responsabilização das empresas foi denominada pelos teóricos estadunidenses como Corporate Social Responsibility, ou em bom português Responsabilidade Social Empresarial (RSE)” (MACHADO, 2012, p. 17-18). A Responsabilidade Social Empresarial (RSE) pode ser entendida como uma forma de gestão regida pela relação ética e de transparência da empresa com o público com o qual se relaciona, bem como pelo estabelecimento de metas compatíveis com o desenvolvimento sustentável, resguardando os recursos ambientais e culturais, respeitando a diversidade e promovendo o combate às desigualdades sociais (INSTITUTO ETHOS, 2013). O campo da RSE se consolida com maior força no plano mundial na década de 1990 por meio de organizações multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, embora a RSE surja na década de 1980, ela ganha sistematização e institucionalização na década de 1990, quando, em 1998, é criado o Instituto Ethos, a principal instituição difusora e promotora da RSE no Brasil (MACHADO, 2012). A atuação social da iniciativa privada no Brasil ocorre no século XX por uma necessidade das indústrias de buscarem melhorar a produtividade dos seus trabalhadores e amenizar o conflito entre capital e trabalho, ou seja, solucionar problemas que o próprio sistema capitalista gera. O campo da ação social no Brasil se desenvolve com a finalidade muito mais de atender as necessidades do empregador do que a do empregado, já que aquele visava à melhoria das condições de trabalho para aumentar a produtividade e, consequentemente, o lucro. Nesta perspectiva, foram movimentos sociais, dentre eles o movimento

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sindical e o movimento feminista que contribuíram para o fortalecimento da ação social empresarial. Com o surgimento, na década de 1980, do projeto político neoliberal, que tinha como proposta a redução da participação do Estado na área social e econômica, movimentos sociais como o movimento sindical “foram ofuscados pela emergência de novas formas de ação coletiva na sociedade civil, tal como o ‘terceiro setor’ e as ONGs” (MACHADO, 2012, p.30-31). Diante dos limites do Estado e sua reconhecida incapacidade em dar conta de todos os problemas sociais, reforça-se a necessidade de novos espaços públicos, novas formas de parceria e mobilizações da parte de diferentes atores sociais e distintas organizações da sociedade civil. A fim de minimizar os impactos sociais das políticas neoliberais implantadas no país, ONGs e Fundações Empresariais passam a vincular suas ações no campo social com aspecto filantrópico e sem fins lucrativos. De modo que, na década de 1980, entre as bandeiras levantadas pelo empresariado brasileiro está o combate às desigualdades sociais e até a defesa das crianças e adolescentes. O processo de institucionalização das ações empresariais no campo social é pautado em ações por normas e rotinas baseadas em regulamento e códigos de condutas que devem ser adotados pelas empresas. Aos poucos, conforme organizações empresariais voltadas para questão social são criadas, a visão de filantropia cede lugar a uma visão mais integrada entre empresa e sociedade. “O Instituto Ethos encampa os valores da mudança social de um empresariado consciente de seu papel no desenvolvimento e econômico e social nacional” (MACHADO, 2012, p.38). Percebe-se, então, na década de 1990, uma mudança de visão de uma parte do empresariado brasileiro que se inicia com a criação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e chega ao Instituto Ethos, criado em 1998 com a finalidade de sensibilizar as empresas para uma gestão socialmente responsável, com o propósito de transformá-las em protagonistas de mudanças sociais (MACHADO, 2012). Assim, a atitude inicialmente de filantropia é substituída pela de responsabilidade social e empresarial decorrente da necessidade de integração entre sociedade e empresa, ou melhor, de uma rearticulação entre os valores sociais, políticos e éticos por parte do empresariado brasileiro. Historicamente, a substituição da atitude filantrópica pela responsabilidade social empresarial não somente tem a ver com uma resistência do empresariado brasileiro em relação à intervenção estatal no mercado, mas, em especial, com as diversas pressões das classes trabalhadoras, e, mais tarde, da sociedade civil, por meio de diversos outros movimentos sociais, que

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desencadearam uma mudança no posicionamento dos empresários em relação à questão social (VARELLA, 2009). Muito do que foi feito inicialmente pelo setor empresarial em relação à melhoria das condições do ambiente de trabalho para os operários da indústria, por exemplo, tem a ver com a necessidade que tinha o empresariado de arrefecer os ânimos do movimento sindical brasileiro (MACHADO, 2012). No decorrer do tempo, a ênfase estratégica que é dada à questão social contribuiu para a ação social empresarial passar “a ser encarada dentro de uma perspectiva de RSE, na qual o compromisso da empresa com a sociedade extrapola o âmbito econômico-corporativo” (MACHADO, 2012, p. 50). Tais ações se transformaram em ações coletivas, com envolvimento de ONGs e governo na concepção e execução de políticas públicas. Segundo a última atualização, datada de 22 de novembro de 2016, 538 empresas estão associadas ao Instituto Ethos, distribuídas em todos os estados do país. Entre os estados de maior representatividade se encontram São Paulo (52,04%), Rio de Janeiro (14,13%) e Minas Gerais (7,6%). Estados com menor representatividade estão representados por Maranhão (0,19%), Amapá (0,37%), Mato Grosso do Sul (0,37%), Pará (0,56%), Tocantins (0,56%) e Sergipe (0,56%). Dentre as empresas associadas em Sergipe ao Ethos estão: ENERGISA, INFOX e INFRAERO (INSTITUTO ETHOS, n.d.). Com a finalidade de disseminar a prática da responsabilidade social empresarial, entre as medidas preventivas promovidas pelo Instituto Ethos estão: a produção de Publicações (incluindo manuais, guias, pesquisas, livros ferramentas de gestão); exposição do balanço social de empresas (balanços financeiros e atuação no campo social); o prêmio Ethos Valor que tem por objetivo envolver docentes, grupos de pesquisa, estudantes e instituições de ensino superior com a RSE e o UniEthos – Educação para a Responsabilidade Social Empresarial e Desenvolvimento Sustentável – “associação independente, sem fins lucrativos, dedicada integralmente à educação por meio do desenvolvimento de estudos, pesquisas e capacitação em RSE.” (INSTITUTO ETHOS, n.d.). Como formulador de diretrizes para o campo da Responsabilidade Social Empresarial (RSE) no Brasil, entre os documentos (ou manuais) produzidos pelo Instituto Ethos no eixo sociais direcionados para a promoção equidade de gênero e raça na esfera do trabalho encontram-se: O compromisso das empresas com a valorização da mulher e O Compromisso das empresas com promoção da igualdade racial, o primeiro publicado em 2004 e o segundo em 2006. O Instituto Ethos por meio da publicação – O compromisso das empresas com a valorização da mulher – tem como objetivo oferecer subsídios para que as organizações brasileiras incorporem políticas de promoção de equidade entre

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os gêneros em suas práticas de responsabilidade sociais cotidianas, isso tanto para o público interno como para a comunidade e as demais empresas em seu entorno. Quanto ao compromisso que as empresas devem ter com a equidade entre os gêneros, observa-se que o Censo Interno (Ver Anexo A) se assemelha ao processo de automonitoramento de coleta de dados comparativos de forma sistemática realizado pelas empresas dos Estados Unidos e outros países (TOMEI, 2005), o que dá condições à empresa tanto de fornecer dados acerca do quantitativo de homens e mulheres, negros e brancos empregados, como meios de promover políticas internas relacionadas a redução das discriminações salarial, ocupacional, de emprego e de acesso ao capital humano. O manual O Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade Racial (2006) tem por objetivo fomentar a discussão sobre a desigualdade racial no meio empresarial por meio de propostas de superação do problema. Dessa forma, além de apresentar dados sobre a situação da mulher negra como o segmento mais desfavorecido da sociedade brasileira, os quais indicam um quadro de evidente discriminação no mercado de trabalho, o manual também contém a legislação antirracista e antissexista e recomendações para a promoção da igualdade racial nas empresas brasileiras. Entre as recomendações, constam: censo interno; políticas de promoção de equidade para o público interno; políticas de saúde, bem-estar e proteção contra a violência; compromissos com a comunidade e compromissos na cadeia de negócios. Em relação ao compromisso das empresas com a igualdade racial e entre as recomendações apresentadas pelo Ethos, encontram-se: censo interno; sensibilização; fóruns de diálogo; comitê de diversidade; sustentação de ações; cursos sobre diversidade; revisão de procedimentos; gestão de pessoas; recrutamento diversificado; metas para a seleção e promoção; capacitação; educação corporativa; acompanhamento; investimento social; diálogo com os fornecedores; fornecedores negros; comunicação com diversidade; parcerias; fóruns empresariais e oportunidades de negócios (Ver Anexo B). Neste sentido, a responsabilidade social empresarial será institucionalizador meio do Instituto Ethos, ou seja, da norma da responsabilidade social empresarial que consistência prescrição de como os empresários brasileiros devem se comportar em relação à questão social, bem como medidas preventivas a serem tomadas para o alcance da promoção da equidade de gênero e raça na esfera do trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, foram analisados dados sobre desigualdades de raça e gênero no mercado de trabalho, tomando o período de transição do trabalho escravo para o livre no Estado de Sergipe como estudo de caso para discutir as políticas de ações afirmativas no setor produtivo. Uma questão que a literatura nos impõe é de que é preciso entender como tais normas sociais podem ser utilizadas para a compreensão do comportamento humano. No caso da Norma de Responsabilidade Social Empresarial, o modo como ela nos auxilia na compreensão do comportamento do empresariado, ou melhor, da cultura organizacional brasileira. Talvez isso possa ser observado comparando as medidas preventivas de redução das desigualdades de gênero e raça na esfera de trabalho de países como os Estados Unidos e o Brasil. As normas sociais, por exemplo, possibilitam compreender a cultura de um povo ou de um grupo, por meio das quais se apreende o comportamento adotado por um indivíduo em função das normas estabelecidas pelo grupo. Em contrapartida, da mesma forma que uma pessoa pode ajustar seu comportamento às normas de um grupo, ela pode adotar uma atitude diferente. Não é bem o que ocorre em relação à norma de responsabilidade social empresarial proposta pelo Ethos, pois além de muitas empresas no Brasil não se encontrarem associadas ao Instituto (em Sergipe apenas três empresas), mesmo as empresas associadas nem sempre adotam as recomendações do Instituto. As normas sociais possuem também uma dimensão subjetiva, associada à pressão social percebida, ou seja, referem-se à percepção do indivíduo com relação à aprovação/reprovação de se realizar um comportamento (TORRES; RODRIGUES, 2011). Elas “prescrevem como determinadas pessoas de um certo grupo (p. ex. pessoas ocupando um determinado papel na sociedade) se comportam para receber aprovação de seus colegas, ou para evitar sanções sociais” (TORRES; RODRIGUES, 2011, p. 104). A compreensão do funcionamento das normas sociais pode contribuir tanto para a construção de um corpo teórico adequado para entender o comportamento social do brasileiro como na adoção de modelos organizacionais advindos de outras culturas (TORRES; RODRIGUES, 2011). Se as normas sociais constituem a cultura de um povo, determinando o comportamento social dos indivíduos que compõem um grupo social, entender o que vem a ser a norma de responsabilidade social empresarial produzida pelo Instituto Ethos, na década de 1990, é fator preponderante para prever e descrever o comportamento do empresariado brasileiro acerca das desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho. Contudo, como nem todas as empresas brasileiras se associam ao Ethos, é pouco provável a

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correlação entre redução da discriminação no mercado de trabalho brasileiro e norma de responsabilidade social empresarial. Mesmo com o surgimento de movimentos sociais como o feminista a reivindicar direitos iguais entre homens e mulheres e pressionar empresários no sentido de repensarem seus negócios além do aspecto econômico, a norma de responsabilidade social empresarial parece ser insuficiente para reverter às atitudes preconceituosas do empresariado brasileiro em relação a marcadores sociais como de cor/raça, sexo, faixa etária entre outros. Por isso, é de suma importância realizar estudos que avaliem de forma sistemática e longitudinal o impacto da norma de responsabilidade social empresarial na redução da discriminação contra mulheres e negros para aferir a discriminação no mercado de trabalho, após a introdução da respectiva norma, com o propósito de analisar o resultado das ações afirmativas no combate às desigualdades entre homens e mulheres, brancos e negros no setor privado (TOMEI, 2005). REFERÊNCIAS BORGES, R. S. “Pensando a transversalidade de gênero e raça”. In: VENTURI, G.; GODINHO,T. (Org.). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Perseu Abramo, Editora Sesc, 2013. p.63-89. CROSBY, F. J.; KONRAD, A. M. Affirmative action in employment.2002. Disponível em: <http://homepages.se.edu/cvonbergen/files/2013/01/Affirmativeaction-in-employment.pdf>. Acesso em: 26 maio 2016. DA SILVA, Patrícia. Expressões do preconceito racial e do racismo no contexto da política de cotas raciais: a influência das normas sociais e da identidade social. 2014. 241 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Disponível em: <https://pospsi.ufba.br/sites/pospsi.ufba.br/files/patricia_da_silva_tese.pdf>. Acesso em: 06 jan. 2017. DOMINGUES, P. Decifrando os segredos internos: a transição do trabalho escravo para o livre no Brasil. Iberoamericana, São Paulo, v. VIII, n. 31, p. 197205, 2008. Disponível em:<https://journals.iai.spkberlin.de/index.php/iberoamericana/article/viewFile/1334/980>. Acesso em: 16 maio 2016. FILHO, P. S. Políticas de ação afirmativa na educação brasileira: estudo de caso do programa de reserva de vagas para ingresso na Universidade Federal da Bahia. 2008. 211 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia. Disponível em: <http://www.redeacaoafirmativa.ceao.iufba.br/uploads/ufba_tese_2008_PSilvaF ilho.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2017.

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CAPÍTULO

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BRANQUITUDE E INTERSECCIONALIDADE

Ionara Magalhães de Souza Edna Maria de Araújo

A

compreensão do branco enquanto sujeito racializável, objeto de pesquisa, revela-se como uma das transições históricas dos estudos das relações étnico-raciais no âmbito científico. Isso porque ao passo que o negro foi enfaticamente estudado, dissecado, problematizado, símbolo de degeneração humana, ao branco foi atribuída uma invisibilidade histórica, um lugar não visitado, considerado este um ser não racializado. Nessa perspectiva, em 1957, Guerreiro Ramos publicou sobre a “Patologia Social do Branco Brasileiro”, cuja tônica correspondeu a problematizar o lugar histórico imputado ao negro

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enquanto tema e objeto de investigações, ao tempo em que o branco recebeu uma invisibilidade sistêmica e pretensiosa. Assim, a branquitude é compreendida aqui, como uma posição que outorga, aos sujeitos brancos, privilégio no acesso aos recursos simbólicos e materiais instaurados pelo colonialismo e imperialismo e sustentados na contemporaneidade (SCHUCMAN, 2012). As discussões sobre branquitude emergiram a partir da década de 1990 e foram impulsionadas pelos Critical Whiteness Studies (Estudos Críticos da Branquitude), inicialmente desenvolvidos nos Estados Unidos e, posteriormente na Inglaterra, África do Sul, Austrália e Brasil. Os estudos críticos da branquitude sinalizam a importância de estudar os brancos com o propósito de evidenciar o racismo, haja vista, a sua expressiva participação na manutenção e legitimação de privilégios (SCHUCMAN, 2012). Para Ribeiro (2004), a compreensão da sociedade e dos padrões de relações raciais dominantes transita necessariamente pela construção histórica, social e o imaginário das identidades consideradas brancas. Os estudos sobre a identidade do branco são emergentes no contexto brasileiro. No Brasil, pouquíssimos estudos foram publicados acerca da branquitude. Destacam-se: Alberto Guerreiro Ramos (1995[1957]a); Edith Piza (2002); César Rossatto; Verônica Gesser (2001); Maria Aparecida Bento (2002); Liv Sovik (2004); Lúcio Alves de Oliveira (2007) e Lia Vainer Schucman (2012). Analisar o poder da identidade racial branca no contexto brasileiro implica extrapolar o racismo para além da dimensão interpessoal e realocá-lo na dimensão de estruturas de poder sociais (SCHUCMAN, 2012). A identidade racial do branco brasileiro instaura-se a partir das ideias sobre branqueamento. A ideologia do branqueamento e a tentativa de alvejar a pele e fazer do Brasil um país culto, civilizado, desenvolvido é produto da branquitude construída pela elite branca brasileira. O branqueamento é um processo histórico, uma manobra política e psicológica resultante do medo das elites brasileiras face ao crescimento da população negra. Desse modo, projetou-se uma sociedade calcada nos padrões estéticos, atitudes e valores do branco com a consequente construção e assimilação de uma identidade étnicoracial branca pelo negro (BENTO, 2002). A ideologia do embranquecimento talvez seja uma das mais cruéis expressões do racismo no Brasil; primeiro, favorece a falta de identidade de uma raça imputando-lhe um outro modo de identificação que não corresponde a sua essência e, ainda, a ideologia do embranquecimento retira do cenário nacional a discussão da questão racial, visto que defende a ideia de ausência de raças e faz apologia da existência da cordialidade entre brancos e negros, excluindo a possibilidade de conflitos. Contudo, apenas o branco é sinônimo de valores positivos, desde os valores mais elementares do cotidiano,

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como aqueles relacionados ao status social. Se o negro quiser fazer parte do estrato superior deverá abdicar da sua raiz "inferior" e tomarse "branco" (SILVA, 2000).

As questões destacadas por Silva (2000) são deveras relevantes e pontuais. Não obstante, é interessante salientar que o engenhoso processo de branqueamento não produziu reflexos apenas nos sujeitos negros. As relações de dominação e todo esse processo de branqueamento influenciou, sobremaneira, e psicologicamente, a construção identitária dos sujeitos brancos e esse processo de racialização do branco – identidade hegemônica, compõem os estudos sobre branquitude. A branquitude é considerada um símbolo de dominação (MALOMALO, 2014), o lugar da normatividade e do poder, do privilégio racial, econômico e político (BENTO, 2002). Para Harris (1993), a branquitude é uma propriedade sistematicamente sustentada pelo racismo estrutural, fundamentado em representações racializadas em contextos de hierarquias de poder. A branquitude sintetiza a racialidade neutra, não nomeada, caracterizada pela invisibilidade histórica, falta de percepção do branco como ser racializado, modelo paradigmático de aparência e de condição humana (PIZZA, 2002, p. 72). O branco não se posiciona, não se racializa nem se reconhece como agente no processo discriminatório, coloca-se numa posição de “invisibilidade”, sustentada por estruturas de poder e privilégios sociais (BENTO, CARONE, 2002). Entretanto, convém salientar que essa invisibilidade é relativa, haja vista que no que diz respeito às vantagens sociais, econômicas, políticas os brancos dominaram com exclusividade, não padeceram de invisibilidade, ao passo que os negros estiveram alijados nos estratos sociais mais pobres, desprovidos de direitos, violentados, subjugados e invisibilizados pelo estado de bem-estar social. Para Bento (2005), “a branquitude é território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo e do privilégio, entre outros, enfatizamos que se trata de uma dimensão ideológica, no sentido mais pleno da ideologia: com sangue, ícones e calor”. A socióloga inglesa Ruth Frankenberg, define a branquitude como “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo” (FRANKENBERG, 1999). A identidade racial branca representa assim, uma forma de viver o mundo assegurada por um sistema de hierarquia racial que silencia e privilegia material e simbolicamente pessoas brancas, configurando o que Bento (2002) denomina de pacto narcísico. O pacto narcísico consiste em acordos tácitos, alianças intergrupais que lançam mão de mecanismos capazes de assegurar o sistema

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de dominação e privilégios. Neste pacto, contractua-se não falar de racismo e de suas consequências para negros e brancos e nem responsabilizar os brancos por todo o histórico de discriminação. Consequentemente, esse pacto produz o isolamento branco e a interdição de negros em espaços de poder. Nesse contexto, a raça opera como dispositivo que classifica, hierarquiza, aloca sujeitos nas distribuições de recursos e dominação. Compreender a branquitude implica compreender como se constroem essas estruturas de poder, os efeitos e a materialidade sobre os quais sustentam as desigualdades raciais (SCHUCMAN, 2012). Na dinâmica das relações raciais, o branco é favorecido e, simultaneamente, produtor ativo de uma estrutura racializada na medida em que aciona mecanismos de discriminação, parte em defesa da democracia racial e ideologia do branqueamento. Esses mecanismos e crenças foram desenvolvidos sem que se estabelecesse uma relação direta com a raça, fato que produz nos brancos um sentimento de isenção de responsabilidade pelos problemas sociais enfrentados pelos não-brancos (BENTO, 2002). As práticas racistas sedimentadas na estrutura histórica, social, econômica e cultural da sociedade estabelecem o lugar do negro, assim como o lugar do branco (FANON, 1980). Nesse sentido, a raça tem sido mantida como símbolo hierárquico que fornece a lógica para confinar os membros dos grupos raciais subordinados àquilo que o código racial da sociedade estabelece como ‘seus lugares apropriados’ (HASENBALG, 1979). Nesse prisma, ser branco implica ocupar os melhores espaços, deter o lugar mais elevado da hierarquia racial, representa a própria geografia existencial do poder (CARDOSO, 2014). BRANQUITUDE: PRIVILÉGIOS QUE SE INTERSECCIONAM Os esquemas de subordinação e as inúmeras barreiras institucionalizadas impostas são engendrados por uma condição que a jurista norte-americana Kimberlé Crenshaw conceituou como interseccionalidade, isto é, um campo relacional atravessado por múltiplas e imbrincadas formas articuladas de opressão e subordinação, cujas ações e políticas confluem gerando aspectos do desempoderamento (PISCITELLI, 2008). Nesse sentido, problematizam outros aspectos desses sistemas de dominação, opressão e marginalização que determinam identidades, exclusivamente vinculadas aos efeitos da subordinação social e o desempoderamento (PRINS, 2006). A origem do termo interseccionalidade remonta ao movimento do final dos anos de 1970, conhecido como Black Feminism (cf. Combahee River Collective, 2008; Davis, 1981), cuja crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o feminismo branco, de classe média, heteronormativo. No final da década de 1980, o termo foi cunhado por Kimberlé Crenshaw e objetivou revelar o impacto

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nefasto da articulação entre racismo e sexismo na configuração de experiências discriminatórias de mulheres negras nos Estados Unidos. As diversas discussões e teorizações sobre raça e gênero foram desenvolvidas também por outras pesquisadoras inglesas, canadenses e alemãs (HIRATA, 2014) e se intensificaram ao longo das décadas de 1970 e 1980 nos Estados Unidos (SANTOS, 1995) Conceitualmente, a interseccionalidade objetiva capturar as relações e as consequências estruturais e dinâmicas da articulação entre dois ou mais eixos de sistemas de subordinação, compreendidos pelo racismo, patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios, bem como, trata das opressões geradas pelas ações e políticas específicas que acompanham esses eixos de subordinação agenciando desempoderamento (CRENSHAW, 2002). As lentes de críticos sociais consideram a leitura de Crenshaw expressiva de uma linha sistêmica e estrutural sobre a formação de identidades (HIRATA, 2014). Kimberlé Crenshaw propõe uma metáfora discursiva ao conceito de interseccionalidade representado por avenidas. Segundo Crenshaw, cada avenida representa um dos eixos da opressão: racismo, classismo, patriarcado perfazendo assim, os aspectos sociais, políticos e econômicos que se cruzam e interseccionam. Crenshaw aborda, principalmente, as intersecções de raça e gênero. A mulher racializada e grupos vulnerabilizados, não raro, se situam no cruzamento das vias, atravessados por múltiplas opressões e sujeitos ao intenso fluxo de tráfego que incide simultaneamente de diversas direções. Nesse entrecruzamento, por vezes, terão que realizar permanentes negociações, sofrer vários impactos e colisões concomitantes, vários danos interseccionais (CRENSHAW, 2002). A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, P. 70).

Nessa direção, alguns pressupostos importantes, a saber: mulheres brancas, classe média, cristãs, heterossexuais ocupam lugar de privilégio com relação à raça, status econômico, religião e orientação sexual, mas são desprivilegiadas com relação ao gênero. Por conseguinte, uma mulher negra nas mesmas condições acumularia dupla discriminação: com relação à raça e ao gênero. Para Crenshaw (1989, p. 149), as experiências que culminam em

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vantagens, desvantagens e discriminações precisam ser compreendidas a partir da dimensão da interseccionalidade de múltiplas identidades. Para Crenshaw, a interseccionalidade se configura em duas categorias: a interseccionalidade estrutural e a interseccionalidade política. A interseccionalidade estrutural considera a posição das mulheres de cor na intersecção da raça e do gênero, as consequências e respostas às múltiplas violências. A interseccionalidade política abrange as políticas feministas e antirracistas que marginalizam (CRENSHAW, 2014). A interseccionalidade possui duas dimensões políticas: o desempoderamento e empoderamento. A dimensão do desempoderamento é pensada sob a perspectiva da discriminação e desigualdade produzida pelos eixos possíveis de poder e discriminação como o racismo, o patriarcado, as relações de classe. Todavia, a interseccionalidade desses eixos não produzem apenas opressão, mas ativismos, resistências e mobilizações políticas individuais ou coletivas (CRENSHAW, 2002). Essa dialética entre opressão e ativismo é compartilhada por Patricia Hill Collins (COLLINS, 2000:13). Outra autora deveras importante por suas contribuições à discussão do conceito de interseccionalidade é Avtar Brah (1996 e 2006) que salienta a dimensão opressiva, discriminatória e exploratória das relações de poder, mas impulsiona na discussão a dimensão de ativismo, democracia, mobilização e agenciamento político (BRAH, 2006: 16). Os sistemas de opressão, dominação e marginalização institucionalizados e hipotetizados pela teoria da interseccionalidade impõem na contemporaneidade um redirecionamento epistemológico que propõe em sociedades racializadas, um paradoxo histórico, ou seja, investigar o branco, o detentor de vantagens materiais, simbólicas e interseccionais sustentados pela perspectiva da branquitude. A perspectiva da interseccionalidade possibilita a compreensão da estrutura das relações de poder que transcende a enumeração dos fatores discriminatórios (VIGOYA, 2008 e 2010). Desse modo, a compreensão do fenômeno discriminatório é redimensionada em complexidade, abrangência e profundidade, elucidando e evitando invisibilidades expressas como superinclusão e subinclusão de situações discriminatórias (CRENSHAW, 2002, p. 174-76). Com efeito, a branquitude instaura a discussão sobre o privilégio de raça. No âmbito da discussão sobre interseccionalidade, um aspecto digno de consideração é de que existem efeitos cumulativos, mas distintos das discriminações. Nesse tocante, a discriminação cumulativa vai se potencializando em direções opostas. Para os negros, em forma de sucessivas desvantagens que se interseccionam e, por outro lado, em vantagens que se

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potencializam na direção do branco. O cerne dessa discussão numa sociedade racializada é, marcadamente, a cor da pele. Os lugares ocupados por negros e brancos tem a cor da pele como o signo mais proeminente, do qual derivam outras dimensões. Esse signo representa processos de mobilidade social em direções contrárias. Para os negros a subalternidade, para os brancos, o prestígio social. Essas dissonantes representações simbólicas são estruturantes das relações sociais, de modo que, ainda que os negros ocupem espaços e condições sociais privilegiados, traz o signo adversativo da cor: ser preto. Ser negro ou ser branco não é uma entidade fixa e sólida, é fluida e cambiável. Denota-se que há um caráter dinâmico e processual na construção das identidades individuais e coletivas. A depender do interesse e convenção social, a identidade racial pode ser acionada ou escamoteada. Para Schumann (2014), a identidade racial, do branco, figura a norma e os outros grupos aparecem como margem, desviante, inferiores. Há uma construção implícita, mas materializada de supremacia racial que se incorpora e se materializa em todos os níveis (intelectuais, morais, estéticos, econômicos), uma construção orientada por uma lógica hierárquica bipolar: brancos, não-brancos, sendo o branco concebido por referência num juízo hierárquico universal. Para Fanon (2010), um sistema hierárquico é politicamente produzido e reproduzido como estrutura de dominação que segmenta os seres humanos. Nessa linha hierárquica, enquanto alguns são reconhecidos com humanidade atestada e acesso aos direitos humanos; outros tem sua humanidade negada, questionada, são socialmente considerados sub-humanos ou não-humanos. Fanon (2010) pensa o racismo a partir dos distintos processos históricos coloniais e o racismo sistematicamente multifacetado. Nesse sentido, Fanon (2010) defende que não há uma concepção teórica universal de racismo. Existem marcadores de divisão racial estabelecidos conforme a cor, língua, cultura, etnicidade e religião, configurados conforme o histórico local e o processo peculiar de colonização/racialização. O processo de racialização representa a estigmatização de corpos, no qual alguns corpos são racializados como superiores e ocupam a zona do ser ao passo que outros corpos são racializados como inferiores, vivem na zona do não-ser (FANON, 2010). O racismo é produtor de iniquidades, característico de nossa organização social, na qual grupos são subordinados e subalternizados e as relações assimétricas assumem dimensão de poder. O racismo é uma realidade subjetiva, objetivada e atualizada constantemente. Existem mecanismos de reprodução, forças históricas e contemporâneas que concorrem para uma relação de poder assumidos pela branquitude. Nessa direção, a branquitude sustenta e retroalimenta o racismo. O racismo é estruturante da sociedade brasileira, perpassa por todas as relações, assujeita grupos, imputa vulnerabilidades seletivas, limita o acesso a direitos e

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serviços, e paradoxalmente, privilegia o acesso a direitos e serviços. O racismo pessoal, interpessoal e institucional tem o poder de produzir afecções subjetivas e são atravessadas pelo processo histórico de colonização e construção de identidades sedimentadas historicamente. Para Bento (2002), a branquitude brasileira reconhece a existência do racismo e da desigualdade racial, contudo, a discriminação experimentada pelo negro cotidianamente passa desapercebida, além disso o tema das relações étnico-raciais é sempre silenciado e há uma tendência de culpabilização do negro por suas condições de vida e dificuldades - um discurso hegemônico que desmobiliza processos de militância ou desenvolvimento de consciência racial negra no Brasil. No livro Pele Negra, Máscaras Brancas, escrito por Fanon (2010), as máscaras brancas surgem como metáfora de rejeição do negro a si mesmo. Essa suposta rejeição do negro a si e aos seus pares, tão recorrente em discussões étnico-raciais, é apresentada com força argumentativa na medida em que se postula que a negação de determinados grupos étnico-raciais representa um projeto de sociedade fundamentada em um sistema de dominação. Assim, a branquitude representa a arquitetura do branco enquanto ser desejado, intocável, um lugar a ser alcançado. Esse projeto se materializa por violência física e estrutural, mas principalmente, simbólica que faz com que o branco mediante um processo de deformidade psicológica acredite nessa suposta superioridade, crie e engendre, com sutilidade e requinte, mecanismos de dominação que façam com que negros alimentem essa rejeição a si e a seus pares. Das representações raciais no Brasil, ao negro foram atribuídas adjetivações de depreciação humana, ao branco um juízo de valor ímpar ao patrimônio físico e cultural. Assim, a branquitude não se reduz a distintivos fenotípicos, mas a um cinturão guardião de privilégios e de poder. Para Bento (2005), o discurso de branquitude mascarava as profundas desigualdades raciais que marcavam a ordem social. O papel do branco na legitimação do racismo e desigualdades sociais não é refletido, nem problematizado. O foco de discussão é o negro, como se fosse problema do negro. Nesse contexto, importa situar o problema racial como problema do branco. Os brancos se projetaram e construíram uma supremacia racial atestada historicamente. Com efeito, diferentemente dos negros, os brancos não precisam pensar acerca de sua branquitude, tem sua identidade preservada, não são alvos de discriminação, nem veem necessidade de discutir racialização. Não raro, as crianças brancas têm mais chance de serem adotadas, mulheres brancas de serem desejadas, homens brancos de ter competência e

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dignidade atestada. A necessidade de discutir sobre o privilégio branco é imperativa e emergente. CONSIDERAÇÕES FINAIS A perspectiva da branquitude é engendrada como privilégios modulados, de modo que os brancos assumem vantagens sistêmicas, simbólicas e materiais. As identidades são fluidas e os processos são socializados dentro de uma ordem histórica e estrutural. Nessa direção, ser branco corresponderia a um atributo que assegura acessibilidade e mobilidade social. O branco é favorecido e produtor ativo do sistema de significação que assegura privilégios aos brancos em detrimento dos não-brancos. Desse modo, a branquitude foi legitimada por doutrinas e ideologias racistas que atingiram proporções universalizáveis e se destina a assegurar, por mecanismos diversos, a hegemonia e reprodução do sistema de dominação. A questão racial se faz presente na distribuição de poder e recursos, nas experiências subjetivas, nas identidades coletivas, manifestações culturais, nos sistemas de significação. O signo da cor representa uma demarcação forte das relações no Brasil. O racismo e a discriminação racial se apresentam como explicações mais sólidas para o abismo das desigualdades sociais e, no bojo da branquitude, nos impele a questionar o que é ser branco no Brasil, ou ainda, inquirir quem quer ser negro no Brasil. Na dimensão da interseccionalidade, os elementos são indissociáveis, os fatores operam conjuntamente. As intersecções estão relacionadas a estruturas sociais, relações de poder e identidade com repercussões históricas distintas para negros e brancos. A constatação de uma racialidade branca na nossa construção identitária configura um importante princípio para provocar descontinuidades e rupturas epistemológicas. A dimensão da branquitude e interseccionalidade evidencia os privilégios interseccionais do ser branco. Logo, faz-se necessário reconhecer a gama de privilégios que perpassa pelos aparelhos ideológicos do Estado para entender os sistemas de opressão. É preciso reconhecer que há uma produção ativa que compactua com a manutenção desse sistema excludente e que políticas e processos de reparação social de grupos degradados, massificados precisam ser instaurados e fortalecidos. Os processos históricos necessitam de ressignificação, precisamos repensar sobre os legados da colonização para negros e brancos, o jogo de forças históricas e contemporâneas que se interseccionam, se potencializam e se materializam.

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CAPÍTULO

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Neli Gomes da Rocha Eleonora Vaccarezza Santos

A

estratégia de alterar a fisionomia corpórea temporariamente para obter alguma conquista pessoal é um fenômeno praticado em todo contexto de sociedades simples e complexas, que passa pela racionalidade e pela atribuição de sentido às ações humanas, subjetivamente visadas. Compondo o quadro de fenômenos sociais observáveis pela sociologia compreensiva, para utilizarmos uma referência clássica. 135


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A modernidade e o saber científico estipulam normativas de convivência mútua, globalizando técnicas de manipulação de traços físicos, que se tornam amplamente acessíveis. Bastando apenas adentrar ao contexto capitalista de inter-relações entre as pessoas e as coisas, estimulando o poder de consumir bens e serviços (fruto do desejo, em um primeiro momento; e, posterior, pela gradual crença no que foi adquirido). O que é necessário ser feito para que um indivíduo seja considerado um participante do grupo desejado? Quais as possibilidades que o indivíduo lança mão para conquistar o que deseja? O que é necessário para ser considerado ‗de dentro‘ pela pessoa ou grupo desejado naquele momento geracional? Neste trabalho, pretende-se levantar algumas reflexões sobre a maneira como o corpo das pessoas é percebido pelo outro. A partir das construções discursivas identificadas em materiais publicitários de produtos e serviços que permeiam o universo da indústria da beleza na realidade brasileira, e voltados ao público que apresenta traços físicos, como: pele escura, cabelos crespos e outras características fisionômicas. Observando assim, quais as possibilidades e sentidos atribuídos ao produto ou serviço que surgem no contexto de ascensão social das minorias historicamente excluídas do imaginário de beleza estabelecida dentro de padrões sociais e da globalização do mercado consumidor. “LEMBRA-TE QUE ÉS MULATO!” Nos países de referências ocidentais como o Brasil, tivemos o avançar acelerado do capitalismo e seu imperialismo colonial. Desta feita, a expansão marítima encontrou o momento propício para o desenvolvimento econômico, político, migratório e cultural de toda ordem. No Brasil, durante mais de três séculos, navios comercializavam ‗peças‘ de toda natureza, inclusive a humana, com alta rotatividade e lucro imediato. Neste sentido, Fernandes (1965) afirma: Na virada do século XVIII para o XIX, o Rio de Janeiro já suplantara Salvador como o principal porto de desembarque de escravos vindos da África. Entre 1790 e 1830, chegaram na então capital da Colônia (depois Império) 706 mil africanos, provenientes principalmente de onde hoje ficam Angola, Congo e Moçambique, conforme dados compilados pelos historiadores João Fragoso e Manolo G. Florentino. Parte significativa desta massa humana teve como destino inicial no Brasil o mercado do Valongo — na verdade um conjunto de casas ou ―armazéns‖ distribuídos ao longo de um vale entre os morros da Conceição e o do Livramento. (FERNANDES, 1965, pp.55-56)

Ao se instituir por diversas regiões, o regime escravocrata no Caribe, América do Norte, América do Sul e Europa se estabeleceu também a exportação de mão de obra em larga escala durante séculos. Uma imensidão de culturas que configuram hábitos, costumes, línguas, modos de vida, 136


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pessoas e suas memórias. Fernandes (1965) elucida, ao descrever as relações naquele contexto de cativeiro, no qual limitava o acesso aos bens e serviços, situação que dependia do consentimento de seu proprietário, o autor diz que um escravo não deveria usar calçado, pés nus e estar de cabeça descoberta. Na realidade efervescente de modernização na região de São Paulo e Rio de Janeiro, havia restrição no acesso às roupas finas, exceto em ―dias festivos, com a nova ordem vigente em expansão, identificamos orientações de conduta para homens e mulheres, sejam estes adultos ou crianças, maneiras de se portar em espaços públicos e privados‖. Configura assim, a dominação econômica e simbólica, inclusive do estatuto de poder estipular propostas de comportamentos aceitáveis para diferentes classes e grupos sociais. Do mesmo modo, ―A moda de pentear-se, calçar-se e vestir-se, acentuaria no mestiço a esquisita sedução que a Aloísio de Azevedo pareceu ter sua sede nos olhos e que, para os outros, está sobretudo nesse modo de sorrir, agradando aos outros, tão do mulato‖ (FREIRE, 1936, p.742). No contexto de Pós-Abolição, o comércio marítimo inseriu no mercado uma gama de produtos que prometiam a proeza, por exemplo, de alterar a textura dos cabelos (considerada a principal marca definidora de raça do país) e o tom da cor da pele, como aponta (DOMINGUES, 2002). No Brasil, entre os anos de 1900 e 1930, havia dezenas de publicidades que concorriam no combate dos mais diversos defeitos na aparência, dentre elas estavam pomadas para afinar a cintura, branquear a pele (SANT‘ANA, 2005). O que chama a atenção era o fato destes produtos serem designados como medicamentos, anúncios de remédios nos mais diversos veículos de comunicação da época. A peculiaridade do contexto no qual o lugar do médico é fundamental para a organização moral e social das famílias de elite, a falta de beleza, logo era traduzida em termos de doença, portanto merecia o exame médico e o tratamento com remédios (SANT‘ANA, 2005, p. 112). Entretanto, Domingues (2002) vê a constante inserção nos anúncios dos anos de 1915 a 1930 como um exemplo do ‗branqueamento estético‘. Nesta direção, Flores (2007) defende que no Brasil o gesto que embeleza não desenha somente uma mera fisionomia, mas estrutura a moda, em detrimento de uma aparência doravante considerada ultrapassada, portanto feia. Contudo, qual era a aparência reportada como feia pelos brasileiros daquela época? Uma possível resposta é ensaiada por Flores (2007) ao retratar o emprego da tecnologia contra a população negra daquele período. O propósito se restringia a inserir o Brasil em um contexto mais moderno, por meio do ‗embelezamento da raça‘. E nesta empreitada, duas grandes disciplinas se tornam aliadas – a estética e a medicina antropológica, "[...] a estética devia fazer a ‗política da raça‘ ao colaborar com a medicina antropológica, como um conhecimento

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científico, no tratamento da fisiologia, da antropometria e da morfologia do humano. Ambas arte e ciência, contribuíram para a perfectibilidade racial" (FLORES, 2007, p.17). No intuito de alcançar a então sonhada perfectibilidade dos corpos, era a então beleza da raça, medida a partir da branca ariana, distinguia o grau da civilização, da moral, dos bons costumes e dos ideais estéticos (Flores, 2007). E deste modo acreditava a intelligentsia brasileira da época que, para modernizar o Brasil, dever-se-ia passar por uma política cultural na qual, o aperfeiçoamento do povo brasileiro estava sobre o tripé: saúde, força e beleza (FLORES, 2007). O projeto pensado para o embelezamento da raça, no qual a estética baseada em um modelo eugênico, classista, eurocêntrico e entraria para ditar os parâmetros a serem seguidos. De norte a sul do Brasil é possível localizar ações que alguma maneira permita-lhes acessar informações para adequar-se, para atingir seu objetivo e, nesse bojo, até mesmo redefinir sua percepção e intervenção sobre o próprio corpo e cabelo. Para a conquista do que se deseja ‗torna-se branco‘, mesmo que de forma provisória, configura a alternativa promissora para o indivíduo nos mais diversos espaços: trabalho, marido, amigos, escola, etc. Aqui a noção de ‗boa aparência‘ estabelece elo com o avanço das descobertas científicas ocidentais, especialmente na indústria de cosméticos, que prometem a realização de sonhos inimagináveis de gerações herdeiras das tantas e variadas estéticas e representações corpóreas quanto possível for. ―Durante a década de 20 e 30, a liberdade de modificar o corpo em nome da beleza‖ e completa "...o embelezamento da mulher negra, historicamente passa pelo branqueamento de traços, visando à mobilidade social, estabelecem-se ‗padrões de beleza apropriados para os negros", para isso, ―manuais de conduta de civilidade, formas de superação dos vícios como álcool, fumo e incentivo ao trabalho honesto e hábitos civilizados‖ (LOPES, 2001, pp.70-79) perspectiva que dialoga com pensamentos de Ramos (1954), que diz: Existe uma patologia cultural que consiste, precisamente, sobretudo no campo da estética social, na adoção pelos indivíduos de determinada sociedade, de padrão estético exógeno, não induzido diretamente da circunstância natural e historicamente vivida. É, por exemplo, este fenômeno patológico o responsável pela ambivalência de certos nativos na avaliação estética. O desejo de ser branco afeta, fortemente, os nativos governados por europeus. [...] Ora, o Brasil, como sociedade europeizada, não escapa, quanto à estética social, à patologia coletiva acima descrita. O brasileiro, em geral, e, especialmente, o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto ao brasileiro de

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Neli Gomes da Rocha Eleonora Vaccarezza Santos cor como ao claro. Este fato de nossa psicologia coletiva é, do ponto de vista da ciência social, de caráter patológico, exatamente porque traduz a adoção de critério artificial, estranho à vida, para a avaliação da beleza humana. Trata-se, aqui, de um caso de alienação que consiste em renunciar à indução de critérios locais ou regionais de julgamento do belo, por subserviência inconsciente a um prestígio exterior (RAMOS, 1954, pp.194-195).

Branqueamento estético – aparência física e identidade Nestes termos, o branqueamento é visto recorrentemente como um ‗problema do negro‘, entretanto o contingente não-negro pouco aparece nesse processo, o que contribui simbolicamente para o fortalecimento da autoestima do grupo em detrimento do outro. Contudo, estas ideias sobre branqueamento foram importadas da Europa, ganhando seguidores além-mar e configura o racismo científico. Segundo os pensadores e cientistas do século XX, o diálogo entre as culturais dos povos e a miscigenação dos povos significa a formação da nação brasileira, suas qualidades e benfeitorias a partir da cultura e do ‗amálgama das raças‘ e configura ―um processo que superaria a divisão da nação em raças e proveria não apenas a ascensão social dos mestiços, mas também alguma democratização social‖ (FREIRE, 2004, pp.779-790). Temos aqui o indicativo do processo de branqueamento ocorrido no Brasil como desejo último do mestiço que ascende socialmente, mesmo que, para isso, seja preciso alterar o corpo, visando ampliar suas redes de socialização e status social. E por certo, conseguir ser tolerado no restrito convívio do meio social das elites, na ânsia em conviver no universo social da riqueza e do prestígio. Para isso, é necessário internalizar os códigos de conduta e normatividade e de ‗europeização‘ quanto aos comportamentos e sua convivência em espaços notadamente hierarquizados, sedimentados em concepções balizadas pela religiosidade de matrizes cristãs e ocidentais. Para Bento (2002), a ideologia do branqueamento com a mestiçagem são os principais responsáveis por se discutir o racismo como um problema do negro, que descontente e pressionado a adequar sua aparência ao referencial mais próximo, que é a classe dominante não-negra, de valores eurocêntricos, para assimilar e diluir suas características raciais, tornando-se o mais próximo do ‗natural‘. Entretanto, a nível conceitual, o branqueamento pode ser definido como: […] um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira, embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro. Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma

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apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a auto-estima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais (BENTO, 2002,p. 01).

A publicação de Freire (1936/2004) expressa o imaginário de nomes da intelectualidade brasileira que imprimiram em seus escritos a noção de ‗boa aparência‘ enquanto símbolo do branqueamento, nas palavras do autor, ―O poeta Cafuzo foi uma ferida sempre sangrando embora escolhida pelo croisé de doutor sensível à inferioridade de sua origem, ao estigma de sua cor, aos traços negróides gritando-lhe sempre do espelho: ‗Lembra-te que és mulato!‖ (FREIRE, 1936/2004, p.781). Para Lima (2002), o branqueamento pode ser compreendido a três níveis: (a) ao nível de políticas públicas; (b) ao nível das percepções de estatuto social; e (c) ao nível da autopercepção e das relações interpessoais. Higienistas em suas políticas, embasadas em teorias importadas da Europa as quais serviam para livrar o país do destino menosprezado pela Europa de povo mestiço, o Brasil incentivou a imigração europeia, concedendo vantagens aos migrantes europeus que se estabeleciam no país, esta estratégia partia de políticas públicas racistas e eugenistas desenvolvidas no século XIX (SILVA; ROSEMBERG, 2008). É neste contexto que o branqueamento ganhava foros de ideologia. Posto que esta era a ideia difundida pelos cientistas, de que a miscigenação traria a regeneração ao povo brasileiro e o separaria do atraso. Não era novidade para aqueles homens das ciências que a forma mais eficaz de eliminar uma raça era misturando-a com outras (SANTOS, 1984). Na atualidade, não à toa ideias relativas ao branqueamento da população se fazem presentes no imaginário do brasileiro. Desta feita, Venturi e Bokany (2005), em seu estudo sobre autodeclaração de cor, entrevistados e suas percepções acerca do que é ter a pele escura e ser socialmente reconhecido como um indivíduo negro. Apresentaram quatro perguntas2 com o intuito de investigar a identidade racial dos participantes e identificou, na primeira pergunta aberta, que 38% dos sujeitos se classificaram como brancas, 10% como pardos, 7% como pretos. Já na segunda pergunta, 45% dos 2

As perguntas são: (1) No Brasil, há gente de várias cores ou raça. Qual é a sua cor? (2) O senhor diria que sua raça ou cor é: () branca, () preta, () parda, () indígena, () amarela; (3) Considerando as combinações de cor ou raça de seus avós e de seus pais, o senhor(a) tem quais das seguintes combinações de cor ou raça? (4) O(a) senhor(a) se considera branco(a), negro(a) ou índio(a)?

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entrevistados se disseram brancos e na quarta questão 53% se definiu como branco. Entretanto, apenas 27% deles afirmaram ter descendido apenas de pessoas brancas, em resposta à questão três. Essa identidade se mostrou mais divergente entre os pardos, uma vez que na pergunta da ascendência, 63% afirmaram ter descendido de negros, mas apenas 34% deles responderam parda para a pergunta sobre a cor ou raça. Outro dado relevante ao tema se refere à pesquisa realizada por Costa (2009), que no processo de doação de gametas para a inseminação artificial, há a classificação de quatro grupos de doadores: brancos, negros, mulatos e orientais, e é a partir desta classificação que os médicos viabilizam a doação para pessoas do mesmo grupo, no entanto se constatou que as entrevistadas não se negavam a receber doações de grupos diversos ao seu, desde que cor fosse mais clara que a dela e se recusam a receber de doadores cuja a pele seja mais escura. O que demonstra uma forte assimilação dos ideais do branqueamento. Ainda, a ideologia do branqueamento teve, e continua tendo, enorme impacto no terreno estético (BENTO, 2002; CARVALHO, 2000). E influência ainda nos dias de hoje, maneiras de perceber beleza em si e em outros, e regula as escolhas sobre a manipulação da aparência física de brancos e negros no Brasil (DOMINGUES, 2002; FIGUEIREDO, 2002; SANT‘ANA,2005). PRODUÇÃO, CONSUMO E ESTRATÉGIAS DE EMBELEZAMENTO NO BRASIL APARÊNCIA FÍSICA E ASCENSÃO SOCIAL Descreva uma pessoa feia. Identifique seus traços. Nosso imaginário social possui símbolos para caracterizar uma pessoa desprovida de beleza, mas a partir de qual parâmetro? Análises documentais sobre a mídia brasileira apresentam estudos que identificam os discursos e valores presentes nas inserções publicitárias dos jornais, tanto da ‗imprensa negra‘ quanto da ‗imprensa branca‘ sobre os novos produtos de embelezamento (GOMES, 2002). Em diálogo com esta perspectiva, Sant‘Anna (2005) nos explica que " a feiura, neste período de início de século XX, era vista como o ‗resultado da degenerescência da raça‘, tanto do acaso ou de uma vida viciosa e doente, a feiura não se deve, ainda, à inconsciência de cada mulher diante da sua própria identidade" (SANT‘ANNA, 2005, p.128). Vale ressaltar que, naquele momento histórico, a preocupação com a beleza ou sua falta era designada apenas às mulheres, em especial ás da elite econômica. Paralelo a esta vivência da elite em se ocupar com remédios para a cura de todo tipo de fealdade, havia uma política de Estado que visava ao ‗embelezamento da raça‘ por meio da mestiçagem e da ideologia do branqueamento (FLORES, 2007). Para isso, as tecnologias e o acesso à informação produzem idealizações a partir da concepção estética ocidental de 141


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belo, aos moldes europeus interpretados nos anúncios publicitários. E conforme se pode verificar na Figura 1, que ilustra o pente denominado “O Cabelisador”. Em formato de ferro ou aço, aquecido em brasa ou elétrico, utilizado para manipulação dos fios crespos. O utensílio adaptou-se, modernizou-se e, atualmente, é identificado como chapinha, que se tornou a alternativa acessível por gerações de mulheres e homens, adultos e crianças para viabilizar ao custo baixo e configura a ‗fórmula‘ de transformação em ‗alguém mais elegante e moderna‘ conforme ‗a mulher negra deveria apresentar-se não só de cabelos lisos, mas de cabelos compridos‘ (LOPES, 2001).

Figura 1: Slogan do anúncio inserido no jornal da época sobre o ―Cabelisador‖ e Ilustração de Neli Gomes da Rocha, inspirada na publicidade de 1929.

Figura 2.

A relação com o próprio corpo envolve questões de identidade, subjetividade e contradições. O tema miscigenação é um deles, em especial aos indivíduos mais claros e mestiços e a possibilidade de mobilidade social. Situação outrora apontada em estudos sociológicos dos anos 1940-1950, e presente como denúncia de ativistas negros, sobre o processo de branqueamento. Possibilidade que muitos recorrem para serem aceitos e inseridos no meio social desejado. O sociólogo Oracy Nogueira, com base em estudos produzidos nos anos 1950, apresenta a perspectiva das relações raciais no Brasil como algo que, não raro, ocorre a sobreposição de: diferença social/classe e de pertencimento racial, estabelecendo uma relação desproporcional de tratamento entre classe e raça. Como se nota na situação apresentada nos estudos de Nogueira: Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem (NOGUEIRA, 2007, p.292).

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Nestes termos, o ‗racismo à brasileira‘ inquieta-se com o conceito de democracia racial e a ideologia do branqueamento – como impeditivos para se pensar as relações raciais no nosso país. Segundo os autores Lima e Vala (2004), ―o racismo no Brasil se manifesta pelo branqueamento dos indivíduos que fazem sucesso e o enegrecimento ou empardecimento dos que fracassam‖. E concluem que há ―uma forte relação entre o fracasso social e econômico com a cor negra e entre sucesso e a cor branca‖ (Lima & Vala, 2005:13). O processo de branqueamento também é analisado por Lima (2002) em estudo realizado no Brasil, no qual fica comprovada a associação: sucesso social e o maior índice de brancura atribuído ao sujeito detentor do status, e como ficou comprovado que o contrário também ocorre. Negros que fracassaram foram vistos como mais negros e menos características tipicamente humanas lhe foram dadas. Em contraste, Lima (2002) defende que o racismo prevalece no Brasil por meio das normas sociais que estão inscritas nas relações intergrupais, a exemplo o igualitarismo e o individualismo meritocrático. Buscou comprovar, por meio de uma série de estudos, o efeito das normas do igualitarismo e do individualismo Meritocrático na infra humanização dos negros e de que modo essas normas sociais contribuem para a predominância deste fenômeno. O autor chega a conclusões do tipo: (a) uma maior adesão ao Individualismo Meritocrático (IM) implica em maior infra humanização dos negros; (b) os negros que se tornam mais parecidos com o protótipo ‗branco dominante‘ são mais discriminados do que os que se mantêm diferentes. Nesse bojo, o mercado de bens e serviços ‗cria‘ as condições para os indivíduos alcançassem o desejo que lhes foi inculcado, aquele produzido no imaginário da ‗boa aparência‘ e se torna algo amplamente acessível a partir da chegada de inovadoras técnicas de manipulação do corpo. Com isso, os indivíduos gradualmente aderem às propostas de transformação corpórea, impulsionado pelo mercado de cosméticos que se propõe a solucionar os percalços cotidianos, como a textura da pele e dos cabelos, tornando-os mais ‗aceitáveis‘, inicialmente aos padrões das elites e, posteriormente, aos aspirantes a ela (elite), especialmente nas décadas de 1920 e 1930. Manipular os fios crespos, tornando-os lisos, configura modalidades de procedimentos tradicionais3 que danificam o formato natural do fio crespo, alterando sua textura e vitalidade. A indústria do embelezamento permanece míope diante das inexpressivas alternativas compatíveis às restrições físicas

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Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2007/07/38-43-fio-137.pdf.

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ou financeiras dos produtos existentes e comercializados desde 1901, a base de hidróxido4 ou alisamentos térmicos5. A pesquisadora Inês Joekes investiga a eficiência de cosméticos de cabelo em 1983: o alisamento dos fios, feito por pessoas que têm cabelo crespo ou ondulado e desejam deixá-los impecavelmente lisos. O estudo aponta que o objetivo dos produtos é aproximar a textura dos crespos à ideia de ―leveza, maciez e brilho‖ dos cabelos lisos e superar a ―rebeldia‖ do cabelo ―bandido, aquele que está preso ou armado‖, como costuma afirmar o senso comum. Assim observado no trecho que segue: Aplicou em mechas de cabelos crespos dois tipos de cremes alisadores encontrados no mercado – um à base de tioglicolato de amônia e outro com hidróxido de cálcio ou lítio. Em seguida, deixou agir por 20 minutos, tempo de uma sessão de alisamento, e 60 minutos (três sessões), antes de analisar os fios ao microscópio. Tanto o tioglicolato como o hidróxido – também usados por quem tem cabelo liso e quer deixá-lo encaracolado com um tipo de penteado chamado permanente – destroem as ligações das fibras de queratina, desfazendo as voltas microscópicas do fio. O cabelo fica liso e mais frágil, como um fio de alumínio retorcido que é esticado, surgem trincas e sulcos que reduzem a menos da metade a resistência dos 6 fios ao alongamento, explica Inês .

Nesse sentido, a reflexão de Figueiredo (1994) sobre "o mercado da aparência ou o mundo da beleza é uma esfera marcada pela construção de estereótipos negativos associados aos fenótipos negros", todavia, nas últimas décadas do século XX, houve significativas mudanças e ampliação de técnicas, produtos e serviços voltados para o seguimento. Eu aliso o meu cabelo desde os treze anos de idade, então você imagine o que é para uma pré-adolescente aos treze anos tomar essa decisão! „Não quero mais ter esse cabelo‟. „Esse cabelo só me dá desgosto!‟ Por que na minha cabeça [o cabelo] só me enfeava mais.

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Pasta que possibilita o tipo de penteado chamado permanente. Entretanto, danificam e chegam a destruir os elos de queratina, impossibilitando o formato cilíndrico do fio, transformando de forma abrupta em liso e esticado, para especialista: ―surgem trincas e sulcos que reduzem a menos da metade a resistência dos fios ao alongamento‖, explica Inês, que investiga a eficiência de cosméticos de cabelo, em 1983. 5

Prende-se o cabelo entre duas chapas aquecidas de um pequeno aparelho – a famosa chapinha, versão moderna de passar o cabelo a ferro, aquecido em brasa e aplicado diretamente aos fios até que os mesmos adquiram a forma do fio liso, todavia, não deve ter contato com qualquer umidade, acarretando o retorno imediato ao formato anterior ao procedimento. Amplamente utilizados desde a ampliação de técnicas de manipulação dos fios. 6

http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/07/01/fio-por-fio/.

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Neli Gomes da Rocha Eleonora Vaccarezza Santos Eu só era mais feia por ter o cabelo daquele jeito [crespo] (Mayara, 22 anos).

No trecho acima, podemos identificar a insatisfação com os cabelos crespos identificado nos estudos realizado por Santos e Silva (2014) junto a mulheres negras do estado de Sergipe/Brasil, no qual investigou os significados do cabelo crespo para elas. O ponto central, a insatisfação com a aparência dos cabelos foi recorrente em seus relatos, e pode ser ilustrado na fala das entrevistadas, como a exemplo de Mayara, que devido às pressões do seu entorno, optou pela manipulação do cabelo. Desta feita, o presente trabalho pretende demonstrar, a partir da metodologia de estudo de caso, as estratégias de marketing utilizadas pela rede de salões de beleza do Brasil, ―Instituto Beleza Natural‖, presentes no mercado brasileiro há duas décadas. A rede de salões de beleza do Brasil, Instituto Beleza Natural, propõe-se a transformar os fios de cabelo crespo, a partir de técnicas de manipulação química, tornando-o um tipo de cacheado, considerado pelo senso comum, como modelo aceitável de convívio. “EM TEMPOS DE CHAPINHA QUEM TEM CACHOS É RAINHA” Analisou-se material empírico fruto de visitas realizadas entre março de 2011 e outubro de 2014, realizadas nas sedes Ipanema/RJ, Madureira/RJ, Largo Treze/SP e Lapa/SP do Instituto Beleza Natural durante excursões coletivas em formato de caravanas agendadas previamente. Assim, como o material disponível online em diversos formatos de mídia, filmagens, entrevistas, participações nas reuniões organizadas pelo próprio instituto para impulsionar a organização de caravanas oriundas das regiões que não possuem sede, são cerca de 300 caravanas percorrem o Brasil em grupos de, no mínimo, 28 pessoas, em geral, mulheres jovens e adultas. Conforme consta na série de reportagens apresentadas sobre o BN e sobre uma das sócias majoritárias, Zica de Assis (ver quadro 1). Banco de dados que nos permitiu fazer interpretações de um contexto social específico, suas visões construídas no imaginário social brasileiro e aqui apresentadas, partindo da ideia de ‗boa aparência‘ e suas implicações na realidade brasileira. A trajetória do empreendimento nasce na década de 1970 da inquietação de uma mulher de pele escura e cabelos muito crespos (descritos por ela como ‗grosso, crespo e volumoso demais e ainda crescem para cima‘), moradora de periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ainda muito jovem, torna-se responsável por parte da fonte de renda da família, em busca de trabalho, passa a transitar por outros espaços sociais diferentes, com isso interage em outras realidades sociais. A necessidade financeira impulsiona lançar mão de sua força de trabalho de diversas maneiras: partindo dos serviços simples, 145


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como o doméstico; seguindo para as vendas e na atualidade empresária reconhecida internacionalmente. A insatisfação da patroa com a aparência da empregada instaura a necessidade de alteração dos traços físicos, a estética torna-se um ‗problema a ser resolvido‘ e age na esfera simbólica na forma de pressão cotidiana, para que esta se comporte de acordo as condutas de ‗boa aparência‘ necessárias a uma ‗boa empregada‘. Diante das condições assimétricas de dominação e poder, a alternativa é adequar-se à mudança de sua aparência, especialmente a dos cabelos crespos em formato arredondado estilo Black Power, muito utilizado nas décadas de 1970. Nas palavras de Zica. Dei um basta e cortei meu cabelo, cortei meu cabelo curtinho e fui fazer o curso de cabeleireiro para entender o meu fio de cabelo, porque que ele era todo duro? Porque que ele era tão crespo, não entrava pente. Gente, não entrava mesmo. [Fala de modo enfático], Era garfo, garfo para pentear. Mesmo curtinho, era garfo. Garfo Black Power, conhecem? Você acha que todos os cabelos cacheados são iguais? Não são. Para entender melhor cada tipo de fio crespo e ondulado, o Beleza Natural, em parceria com a Universidade Nacional de Brasília (UNB), pesquisou mais de 300 cacheadas, num estudo que durou dois anos e é inédito no Brasil e no Mundo. (Beleza Natural, 2014,p.13).

A rede de salões de beleza do Brasil, Instituto Beleza Natural, propõe a transformar os fios de cabelo crespo, a partir de técnicas de manipulação química e do uso contínuo de produtos capilares de fabricação própria e exclusiva. Tornando-o um tipo de cacheado considerado pelo senso comum como modelo aceitável de convívio. Há pouco mais de duas décadas, Heloisa Helena de Assis, mais conhecida como Zica, em parceria com sua rede de relações, deram início ao projeto que gerou o Instituto Beleza Natural. Empreendimento que se propõe ‗vender autoestima‘ na transformação do fio de ‗cabelo crespo‘ em ‗fio cacheado‘, assumindo o papel de alternativa às pessoas interessadas em alterar seus traços físicos em nome da praticidade da vida moderna e que não querem recorrer aos processos tradicionais de manipulação dos fios crespos, em geral, voltados para a modificação radical, tornando-o provisoriamente alisado, em geral procedimentos químicos agressivos, como o uso de formol e soda cáustica, por exemplo. Em entrevista7, a empresária Zica nos explica: [...] Então eu fui aprender a ser cabeleireira sonhando que eu ia ter a solução inteira pra aquilo, mas gente, aprendi, aprendi tudo o que o 7

Utilizamos como material empírico um amplo acervo de entrevistas cedidas à mídia televisiva, virtual e redes sociais e impressa, além do site oficial www.belezanatural.com.br.

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Neli Gomes da Rocha Eleonora Vaccarezza Santos mercado oferecia, alisamentos escovas, cortes, tudo, tudo, tudo bem, amei, amei lidar com cabelo. Aprendi a profissão, fiquei maravilhada e tudo, mas cadê a solução pro meu cabelo? Nada. Teria que alisar novamente, eu não aceitei isso, eu deixei meu cabelo crescer [fazendo o movimento que demonstra o volume do cabelo], conversei até com algumas patroas que na época, já gostavam de mim e eu tinha como encantar, botava um lenço, amarrava, dava um jeito, mas não alisei mais [...]. Gente, depois que eu fiz esse curso e não quis mais alisar o cabelo, comecei a fazer experiência em casa, na bacia, com uma colher de pau misturando matérias-primas naquela época [...] eu não sou química né?

[...] e eu pegava esses pozinhos e saí misturando em casa, eu trabalhava pra caramba, trabalhava, mas quando chegava o final de semana eu estava lá na minha fôrma, na minha bacia, e aí, apliquei no meu cabelo.

O trânsito social insere também a ideia depreciativa ao corpo negro, os traços negroides, como os cabelos crespos, adquirem sentidos divergentes: 1. A necessidade em recorrer aos procedimentos químicos e ‗resolver‘ a textura para que ‗ganhe movimento‘, sem abdicar do formato dos fios; 2. A postura de domesticar os traços físicos, todavia sem afastar-se da área de conforto do padrão ocidental de embelezamento dos cabelos; 3. Ocultar traços de subjetividade no ambiente de trabalho com a ideia de uniformizar para distinguir.

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Figura 3: Zica - relação com o cabelo.

Na década de 70, Heloisa Assis não estava satisfeita com os cabelos. Não queria alisá-los, mas não existiam produtos no mercado que ‗domassem‘ os seus cachos. Zica fez um curso de cabeleireira e foi misturando produtos até chegar à famosa fórmula do SuperRelaxante, abrindo espaço para um nicho de mercado não muito 8 explorado no início da década de 90 .

Com a proposta de que ―o salão Beleza Natural é um salão de beleza não é uma indústria de cosméticos”, surge no slogan e na visão que a empresa quer passar. Atualmente, o Instituto Beleza Natural (BN)9 conta com 26 institutos, espalhados pelas principais capitais do país e em crescente expansão. Possui 3000 colaboradoras, em geral a primeira experiência profissional e o primeiro emprego de carteira assinada. Possui atualmente fabricação própria de 310 toneladas de produtos ao mês e possui uma clientela de 130 mil pessoas, que frequentam o periodicamente as sedes e adquirem os produtos comercializados nestes institutos de modo recorrente10.

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Fonte: < http://belezanatural.com.br/>. Fonte: <http://www.factual.inf.br/noticias/zica-assis-e-uma-das-mulheres-de-negocios-maispoderosas-do-brasil>. 10 Fonte: < http://belezanatural.com.br/>. 9

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“Cachos no laboratório” – rotina de trabalho Durante doze horas de estrada, um grupo de 30 mulheres e 2 homens partem da cidade de Curitiba com destino ao bairro de Ipanema ou Madureira, na cidade do Rio de Janeiro (ver figura 4). Às sete horas da manhã de sábado, mulheres (mães, avós e filhas), em fila, esperam o recebimento da senha individual que permitirá passar por uma avaliação capilar que autoriza o uso do produto Super-Relaxante (serviço/produto muito procurado nos Institutos Beleza Natural e possui restrição de idade, 12 anos). Os dois homens são os motoristas que seguem para o descanso de 6 (seis) horas, para retorno ao destino.

Figura 4. Encontro de líderes de caravana/SP – 2014.

O espaço comercial privado abre oficialmente às 9 (nove) da manhã, todavia, às 7 (sete) o espaço do Instituto Beleza Natural inicia mais um dia de trabalho e distribui senhas às pessoas agendadas em caravanas e aquelas que aguardam em fila. O foco no embelezamento dos cabelos crespos e cacheados atinge um vasto público brasileiro, outrora usuário de tratamentos químicos insatisfatórios, por vezes traumatizantes. O fato da cidade de Curitiba/Paraná ainda não possuir sede do Instituto Beleza Natural mobiliza mulheres de diversas faixas etárias, profissões em torno de um objetivo comum, ‗balançar os cachos‘. Ao entrar em qualquer sede do Instituto Beleza Natural, a estrutura é inteiramente racionalizada. Na recepção, orientações sobre o procedimento: 1. Retira a senha; 2. Passa por avaliação com uma profissional treinada; Esta identifica as condições do fio crespo. Em caso positivo, 3. A cliente efetua o pagamento e 4. Segue para o setor de ‗desembaraçar e separar em pequenas partes geométricas‘; em seguida, 5. Aguarda para receber o produto ―SuperRelaxante‖; 6. Aguarda, 7. Hidrata, 8. Penteia. Espelhos enormes, Televisores

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ligados, inúmeras fotografias de mulheres de pele parda ou preta, por toda a estrutura (colaboradoras, clientes ou modelos não profissionais). A cada nova cliente, novas orientações para o uso dos produtos e informativos para realizar em casa a manutenção dos crespos. Ao final do atendimento, um tapete vermelho em direção à loja com todos os produtos de fabricação exclusiva da empresa. Tudo devidamente setorizado, a ‗colmeia‘ que produz cachos. A logística para o atendimento é elaborada desde a esfera virtual (site oficial, blog, disque-atendimento) ao espaço da face a face, elaborado para o universo predominantemente feminino, muitas acompanhadas por crianças e adolescentes, notadamente afrodescendentes. O quadro de colaboradoras, em geral, pertence ao mesmo status social do público-alvo, as empreendedoras apostaram na inclusão de mão de obra sem experiência prévia, feminina, em contexto de baixo poder aquisitivo e com escolaridade média. A gente lida com beleza, com gente, com toque (Funcionária 1). A empresa é feita de gente, pra gente e pra que a gente se sinta realmente bem (Funcionária 2). (Funcionária 3) mostrar um valor que o brasileiro não é acostumado a ter, que é o valor de servir, de passar adiante sem se achar menor. A gente vem de uma cultura escravocrata, nossos antepassados foram escravos e essa coisa de servir às vezes fica muito colocada como algo menor, e não, servir é nobre. Poder fazer pelo outro como você gostaria de ser tratada é algo maravilhoso (Beleza Natural, 2014, p.21).

A rotina do trabalho e a representação valorizada de corporeidade e traços do corpo negro saltam aos olhos, sendo condicionante, inclusive, para a participação na equipe, a utilização e adesão às linhas de produtos da empresa, aproximando esteticamente idealizadoras, colaboradoras e clientela. ―Fazer as pessoas mais felizes, promovendo beleza e autoestima‖11, é a chamada mais recente para apresentar a Empresária do Ano de 2014, considerada como uma das empresárias mais influentes do Brasil, pela revista FORBES. Atualmente, é uma das proprietárias da maior rede de salões brasileira a oferecer tratamento de embelezamento para cabelos crespos a cacheados. Diante deste quadro, ao ser questionada sobre seu sentimento em relação ao título, Zica afirma: Estar nesta lista é reconhecimento à minha trajetória e à história do Beleza Natural. Nossa empresa sempre acreditou na classe C e cresce junto com ela. Sempre tivemos o foco em dar oportunidade de emprego às pessoas. Eu nunca tive carteira assinada e me orgulho hoje de ter 1.700 funcionários legalizados, oferecendo benefícios como plano de saúde e odontológico e convênio com universidade. 11

Fonte: < http://belezanatural.com.br/>

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Todavia, estudos sobre a trajetória da instituição já trazem reflexões pertinentes. Uma delas é a tese do sucesso do empreendimento, associado à divisão rígida da produção dos cachos, e o controle da venda dos produtos, fruto da pesquisa de Dantas (2013). A partir de sua trajetória, desenhamos um processo de repercussão e ampliação no reconhecimento do Instituto Beleza Natural. Em termos econômicos, é possível identificar a oportunidade que esta empresária oferece aos seus funcionários. Mas, e em termos simbólicos e valorativos? QUADRO 1. Publicações sobre o empreendimento ―Beleza Natural entre os anos de 2012.

2012

Ano da publicação

Beleza Natural investe em tapete vermelho

JORNAL VALOR ECONÔMICO (RJ)

Propagando do produto comercializado nas lojas do instituto

JORNAL EXTRA (RJ)

Enxerto de texto falava sobre o aumento das vendas de produtos do BN, com a chegada do carnaval

NEGÓCIO E COMPANHIA (JORNAL O GLOBO (RJ))

Enxerto de texto em uma das colunas do jornal, reportando sobre o príncipe que ficou encantado com a força da classe c, ao ponto de convidar uma das sócias do salão para apresentar o negócio em Londres.

JORNAL O GLOBO (RJ)

Reportagem que fala sobre ―domar os cachos‖, traz a cantora sertaneja Paula Fernandes, e em um box, aponta Zica Assis, como uma especialista em cabelos crespos do país

REVISTA ANA MARIA

Reportagem que traz como título: ―Beleza Natural quer atingir novos mercados‖

JORNAL PROPAGANDA MARKETING

Reportagem de quatro páginas, retratando a transformação de Zica, traz como chamada ―conheça a história de sucesso e veja as dicas de Zica, a doméstica que virou empresária e dona de uma rede de salões‖, a menciona que a dezoito anos o BN vem transformando os cabelos (e a vida) das mulheres.

JORNAL EXTRA (RJ)

Reportagem da TV britânica BBC, sobre o negócio desenvolvido por Zica, e do seu produto que acabou por tratar os cabelos crespos de muitas mulheres brasileiras. Reportagem que traz como título ―madeixas bem cuidadas‖

O ESTADO DE MINAS (MG)

Uma série de reportagens exibidas no jornal, entre elas há uma por título ‗fábrica de cachos‖ atrai caravana de mulheres. As demais falam sobre o tempo de espera para ser atendido; de como o comércio ao redor podem se valer do empreendimento para lucrar mais. E da trajetória de Zica ―de doméstica à dona de 12 salões de beleza‖.

A GAZETA (ES).

―A trança certa para o São João‖ comentário em jornal sobre penteado para o São Joao que o BN disponibiliza para sua clientela.

JORNAL MASSA (BA).

Reportagem da revista Claudia sobre o prêmio Claudia do qual Zica foi indicada para receber.

REVISTA CLAUDIA

Reportagem que aborda o desenvolvimento do empreendimento, bem como sua projeção internacional, é

REVISTA EXPERIENCE CLUB

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ESTÉTICA NEGRA, CONSUMO E ASCENSÃO SOCIAL

discutido neste artigo. Fala de autoestima elevada promovida pela sensação de inclusão e de valorização de um segmento que até então era negligenciado pelo mercado dos cosméticos para os cabelos. Reportagem exibindo clientes do BN, na qual há fotos do antes e depois de passarem pelo instituto, seus rostos antes abatidos e com os fios alisados, e a outra após passarem pelo tratamento do Super-Relaxamento.

REVISTA VIVA

Matéria que fala sobre os benefícios do ―Spa capilar‖, um tratamento oferecido pelo BN, há relato das clientes sobre a sensação agradável que sentem ao utilizarem o serviço. O tema central é abordado como ―beleza sem danos‖.

JORNAL O GLOBO (RJ)

Matéria divulgada por jornal de grande circulação na Bahia, que fala sobre empresas que veem o estado como um mercado promissor para o setor de cosméticos.

JORNAL A TARDE

Reportagem de duas páginas que traz em sua chamada os dizeres, ―receita de beleza‖: como a ex-empregada doméstica Zica montou uma empresa que dar poder as mulheres de cabelos crespos.

REVISTA AMÉRICA ECONOMIA

Fonte: Imprensa Beleza Natural (2012)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, apresentamos o corpo negro percebido e refletido no espelho invertido, que é a construção do olhar do ―outro‖, as relações de poder e representatividade. Construções discursivas identificadas em materiais publicitários de produtos e serviços que permeiam o universo da indústria da beleza na realidade brasileira, possibilidades e sentidos atribuídos àqueles que apresentam traços físicos, como pele escura, cabelos crespos. Compreender a gradativa mudança nas estratégias de embelezamento do cabelo crespo, acompanhadas pelo desejo de ascensão social das minorias historicamente excluída do imaginário de beleza ocidental. Percebe-se a relação entre padrões estéticos, identidades e ideologias raciais. A valorização de um padrão estético, que basicamente volta-se para a manipulação do cabelo crespo e da cor da pele, como forma do negro ser aceito socialmente e ter mobilidade social (COUTINHO, 2005; FIGUEIREDO, 2002). Contudo, empreendimentos que promovam a desconstrução do padrão universal de beleza a ser seguido, o surgimento de práticas de embelezamento, sobretudo do cabelo crespo, mostrou-se como promotores de um fortalecimento da autoestima. Apresentamos aqui complexas perspectivas, por vezes assimétricas, que congregam: 1. A inovação empresarial e o mercado sem concorrentes; 2. A valorização da estética negra conduzidas por padrões pré-estabelecidos; 3. Reflexões sobre o processo de branqueamento e as mil facetas do debate sobre os sentidos da miscigenação para a identidade do indivíduo, seja esta 152


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negra ou não, mas que valorize traços aceitáveis ao convívio; 4. A divergência radical com base nos ideais políticos contestadores das normativas eurocêntricas no plano da estética, faceta simbólica da dominação. A proposta de não alteração nem da forma, nem da textura dos cabelos crespos como ação de cunho político, a exemplo do movimento Black Power. Um ―espaço colmeia‖, setorizado em segmentos de um processo racionalizado, transformar ‗crespos‘ em ‗cacheados‘ de maneira homogênea, atuando na forma de uma linha de produção capilar. Desafiando o histórico de frustrações e nome da autoestima duradoura para suas frequentadoras predominantemente feminina, trabalhadora, jovem e adulta, e em perspectiva de ascensão social, com o slogan ‗Em tempos de chapinha, quem tem cachos é rainha‘, as criadoras da marca conquistam vasta clientela, majoritariamente feminina e negra. Em geral de pouco poder aquisitivo, que desejam praticidade, autoestima e o desejo em manter a textura e formatos dos fios crespos, sem altos investimentos a curtos prazos.

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TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

TRAJETÓRIAS E ESTRATÉGIAS DE MOBILIDADE SOCIAL DE MULHERES NEGRAS SERGIPANAS

Eleonora Vaccarezza Santos Ionara Magalhães de Souza

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mbora tenhamos normas antirracistas que visam coibir manifestações racistas, também sabe-se que a lei por si só não garante que mulheres negras não sejam alvos do preconceito racial, em especial quando esta busca se inserir no mercado de trabalho. Assim, seja por sua estética, que não se adequa aos padrões de beleza vigente, seja por não ter a devida escolarização para ocupar determinados cargos de chefia, mas volta e meia sempre se arranjam justificativas para a não-inserção desta mulher em espaços de poder e prestígio. Por outro lado, desde cedo enfrenta o sofrimento psicossocial gerado pelo racismo. Falar da mulher negra e trazer a suas histórias foi um grande desafio para a autora, posto que também vivenciou estes processos ao longo de sua inserção no mercado de trabalho. Mas este capítulo vai além de reforçar as trágicas estatísticas no que diz respeito à mulher negra, se o racismo por um lado gera sofrimento, para a pessoa negra que cresce neste meio social hostil, pode gerar algo ainda mais forte, que é a resiliência. Ou seja, a capacidade de transformar situações adversas em benefícios para si. Estas mulheres que contaram suas histórias demonstraram ter esta capacidade bastante desenvolvida.

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É neste sentido que este texto, produzido a partir de pesquisa feita pela autora durante seu trabalho de conclusão de curso, serve de contribuição para o despertar da/os psicólogos, em especial os que atendem em consultório para a quantas anda a subjetividade da mulher negra, que empreenderam no projeto de mobilidade social e dos mecanismos que estas mulheres tiveram que desenvolver para conseguirem alcançar seus objetivos de vida. E como forma de contextualização, alguns conceitos precisam ser melhor elucidados, como exemplo o que venha ser racismo e/ou preconceito racial, que no senso comum são tomados como iguais, porém há diferenças importantes que precisam ser abordadas. Dentro da psicologia social, há o entendimento do racismo como um fenômeno mais amplo que o preconceito racial, pois engloba processos como a discriminação e a exclusão social (LIMA; VALA, 2004). E o preconceito racial, definido pela literatura mais tradicional como uma antipatia baseada em generalização errada e inflexível que, ao ser sentida ou abertamente expressa, pode ser dirigida a um grupo como um todo ou a um indivíduo por ser membro de tal grupo sob forte influência do componente emocional (ALLPORT, 1954). No que se refere à discriminação, influi o componente comportamental, quando uma ação negativa injustificada ou prejudicial é contra os membros de determinado grupo. Assim sendo, o preconceito é compreendido como um fenômeno que nasce e se estabelece em meio às relações sociais (CAMINO; SILVA; MACHADO, 2001), além de trazer em si uma noção de superioridade para aquele que alimenta sentimentos preconceituosos. Logo, o preconceito gera hierarquização, supondo que um ideal é mais correto que outro. E para quem sofre o preconceito, tende a sofrer também perdas de autoestima e autoconfiança (ARONSON; WILSON; ARKET, 1995). No campo social, o racismo no Brasil é difundido como ―preconceito à brasileira‖ ou ―racismo cordial‖, tipicamente subliminar. Conforme defendem Turra e Venturi (1995, pag. 11): ―os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demonstram, em sua imensa maioria, preconceito contra os negros‖. E como então lutar contra algo que não existe? Não à toa, integrantes do Movimento Negro, paulatinamente, lutavam para dar visibilidade ao problema do preconceito racial, que tem na sua raiz, o racismo. Para as pessoas do movimento, a luta deve ser baseada na reivindicação de direitos negados ao povo negro desde a época em que se decretou o fim da escravatura. Contudo, somente em 1994, o Estado brasileiro se declara racista, ou seja, reconhece que o racismo está na sua estrutura social, daí iniciou-se um processo de retomada às diversas reivindicações por políticas públicas afirmativas tão importantes para a mobilidade social.

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Nos estudos sobre relações raciais no Brasil, nota-se que a mobilidade social sempre foi um tópico importante e utilizado para evidenciar o falseamento da tese de que o preconceito racial seria menos importante que o de classe (RIBEIRO, 2006). Embora na literatura sobre relações raciais, o tópico da mobilidade social seja considerado fundamental para determinar se há preconceito ou discriminação racial, no Brasil, esses estudos ainda não são numerosos (RIBEIRO, 2006), sobretudo estudos que fazem a intersecção com gênero e raça. Estudos anteriores denunciam um cenário de dupla discriminação para a mulher negra, pois além de carregar consigo o preconceito de gênero, ainda acompanha o preconceito racial (BENTO, 1995; CARNEIRO, 2003; CARNEIRO, 1995; SAFIOTHI, 1987; SILVA, 2010; SOARES, 2000). Mormente, apontam para a ínfima presença da mulher negra nos principais indicadores, sejam de saúde, educação, renda ou moradia (ABRAM, 2006; DIEESE, 2005; OIT, 2006). Por um lado, percebe-se que a sociedade brasileira vem presenciando melhorias em diversos indicadores, tais como uma maior participação de gênero e raça no mercado de trabalho, no acesso à saúde, na educação e no serviço público (OSÓRIO, 2006; SCHUCMAN, 2015; SILVA, 2010). Contudo, ainda pouco se sabe sobre o impacto no emocional desta mulher que projeta sua mobilidade social em uma sociedade sujeita às normas antirracistas, mas cujo preconceito racial, longe de acabar, tem tomado formas cada vez mais veladas e sutis (CAMINO; SILVA; MACHADO, 2001). A escolha deste enfoque também partiu de alegações de autores que acreditam que o racismo se manifesta de modo diferente quando se leva em consideração o fator gênero (ABRAM, 2006; COUTINHO, 2010; NUNES, 2010). De acordo com Brah (2006), as questões que afetam as mulheres não deveriam ser tratadas de forma isolada de seus contextos de desigualdades nacionais e internacionais. É neste sentido que a pesquisa de campo, presente neste artigo, buscou peculiaridades pouco identificadas em estudos anteriores envolvendo público que se encontra em movimento de ascensão. A importância de trazer ―mulher negra‖, sua trajetória e estratégias de mobilidade social como objeto de discussão se dá ao passo que há essa necessidade de considerarmos que as questões raciais também perpassam o gênero. A sociedade brasileira não é só racista, também há machismo na base de sua formação identitária. Alguns questionamentos são: Como ocorre o processo de mobilidade social para as mulheres negras? Há a presença do preconceito e da discriminação racial na trajetória de mobilidade social de mulheres negras? De que modo a mulher negra é afetada pelo preconceito e a discriminação racial em sua trajetória de mobilidade social e que tipos de estratégias esta desenvolve para si?

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A fim de responder a tais inquietações, tem-se como objetivo deste trabalho compreender a trajetória de mobilidade social de mulheres negras e suas percepções frentes ao preconceito e à discriminação racial. E especificamente: a) identificar quais as estratégias de mobilidade social foram utilizadas pelas entrevistadas; b) verificar possíveis efeitos e implicações de fenômenos como o preconceito e a discriminação racial para o seu emocional. AS MULHERES E SUAS TRAJETÓRIAS A pesquisa que ilustra este capítulo valeu-se da abordagem qualitativa, uma vez que acreditava-se ser a mais adequada para chegar ao propósito deste trabalho, que é o de compreender a realidade vivida pela mulher negra ao buscar sua mobilidade social. O trabalho de campo foi realizado durante dois meses, em Aracaju-Sergipe. Para alcançar as participantes, utilizamos a técnica da ―bola de neve‖, em que uma entrevistada indicava outras possíveis interessadas em participar da pesquisa, desde que fosse maior de 18 anos e possuísse qualquer nível de ascensão social, traduzido por mobilidade social. O contato foi realizado por telefone ou pessoalmente. No geral, demonstravam certa expectativa positiva em relação ao que seria a entrevista. Seguindo os critérios adotados em estudos anteriores, a mobilidade social é entendida neste trabalho como o fenômeno no qual um indivíduo (ou um grupo) transita de uma determinada posição social à outra (HASENBALG; DO VALLE SILVA, 1988; RIBEIRO, 2006; SOUZA,1983). Um roteiro com questões norteadoras foi elaborado para as entrevistas com a técnica de ―história de vida‖ (PAULILO, 1999). Também foi utilizado um questionário com perguntas que inferiam sobre a situação socioeconômica das participantes. O termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado e assinado pelas colaboradoras. Antes de partir a campo, foi feita uma entrevista piloto com o objetivo de ajustar a pergunta e verificar qual deveria ser a postura da entrevistadora frente às entrevistadas. No geral, as entrevistas com a técnica de história de vida necessitavam mais de uma escuta do que um diálogo entre pesquisadora e pesquisada. Requeria da entrevistadora uma postura mais acolhedora e interativa, no sentido de deixar a participante à vontade, sem intervir em suas falas. Afinal, o que se desejava, ao utilizar este tipo de técnica, era perceber como cada uma construía sua história pessoal. Realizamos, então, os seguintes questionamentos: a) ―fale como ocorreu a sua trajetória no mercado de trabalho, e como vem acontecendo até então‖; b) ―durante esse processo de inserção, você teve alguma vivência de preconceito ou discriminação?‖. Notamos que o recorte feito possibilitou que as entrevistadas direcionassem mais o seu foco para as vivências que tiveram no mercado de trabalho, mas, mesmo assim, ainda tínhamos detalhes de suas vidas familiar, amorosa,

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escolar, ou seja, estes conteúdos estiveram presentes em suas falas. Assim, as entrevistas duraram, em média, 30 minutos. A análise do material transcrito se deu através dos procedimentos descritos por (BARDIN,1977). Após ter concluído o procedimento denominado por Bardin (1977), como ―leitura flutuante‖, passamos para a exploração do material, sendo descrita por alguns pesquisadores como a etapa mais cansativa. É nesta parte do processo que os dados brutos serão transformados de forma organizada e logo agregados em unidades. A escolha das unidades de registro dar-se-á a posteriori, conforme a exploração do material apresente categorias temas que ―saltem‖ de seu conteúdo integral (FERREIRA, 1990). Estas serão apresentadas por meio de três grandes categorias: a) ―trabalhar e estudar – estratégias de mobilidade social‖; b) ―estudar e trabalhar – sobre outras estratégias de mobilidade social‖ e; c) ―preconceito e discriminação racial – percepções e enfrentamento‖. Ao todo, 10 mulheres aceitaram colaborar com a pesquisa, com idades variando entre 23-60 anos, com nível de escolaridade fundamental até a pósgraduação, que se autodeclararam negras, conforme IBGE (2010). Este número foi alcançado a partir do critério de maior abrangência dos relatos, portanto procurou-se ampliar as faixas etárias para garantir uma diversificação na produção de dados. Na época da pesquisa, todas elas estavam empregadas, algumas em posições de comando, outras eram autônomas, funcionárias de algum setor industrial e do setor de entretenimento. O perfil socioeconômico das participantes, em consonância aos parâmetros do IBGE (2010), situava-as entre as classes C e B. De modo geral, a renda familiar das entrevistadas variava entre dois a vinte salários-mínimos para as mulheres do setor público, e de um salário mínimo e meio a sete salários mínimos para as mulheres inseridas no setor privado, o que confere aos dados um caráter heterogêneo com variados graus de mobilidade social. Em geral, elas relataram ter tido uma infância pobre, com a casa sendo chefiada por apenas um dos pais (a mãe é recorrentemente citada) sem a presença ou auxílio financeiro do outro cônjuge. Algumas delas mencionaram terem sido criadas por ambos, uma das consulentes mencionou ter sido criada por outro familiar (a avó), mas sem a presença de um companheiro (nesse caso, o avô), e apenas uma delas não mencionou a composição de sua família. As entrevistadas receberam nomes fictícios, para que suas identidades fossem preservadas. Nos relatos das entrevistadas, houve indícios de como certas localizações socioeconômicas contam na hora de se inserir no mercado, quando e onde se inserir. Contudo, uma ligeira melhora das condições de vida e de acesso aos estudos se mostrou como um diferencial, tanto na inserção no

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mercado de trabalho, como em relação ao tempo de estudos. Os achados que se obteve tratam, em muitos aspectos, sobre o concurso público, o qual as entrevistadas proclamaram como a alternativa mais eficaz, frente a um mercado discriminador. Não obstante, houve situações em sua trajetória em que o preconceito racial mesclou-se com o preconceito de gênero, gerando uma dupla situação de discriminação. E como consequência destes fenômenos, sente a necessidade de se impor, de colocar ao outro que ela também é cidadã e goza dos mesmos direitos. “Trabalhar cedo” ―Trabalhar cedo‖ foi um termo frequente nos discursos das entrevistadas. Chama atenção a história de Milena, que iniciou aos doze anos como doméstica, e conforme relatou durante a entrevista, era um fato corriqueiro no local onde vivia com a avó: Eu comecei a trabalhar eu tinha uns doze anos, em casa de família. Eu trabalhei muito em casa de família, sempre trabalhei em casa de família (...) trabalhava para ter minhas coisas, porque ela [avó] não poderia me dar, roupa essas coisas (...) Mas a pessoa ia nas portas com os carros „moça, tem alguém para tomar conta de meus filhos?‟ ai eu dizia: „não, eu vou‟, (...) era assim, agora não porque se rouba, [sobre o fato de acontecerem furtos durante o trabalho doméstico] e ninguém faz mais isso, mas antigamente era assim (MILENA, 38 anos, zeladora).

As mulheres negras estão em situações de trabalhos vulneráveis (situações que englobam assalariados sem carteira de trabalho assinada). Infelizmente, estas pesquisas acabam não contemplando os números do trabalho infantil doméstico, o que dificulta a avaliação e a adoção de estratégias que visem resolver essa dupla violação de direitos. Uma realidade presente não só na vida de Milena, como na de Márcia, inserida em uma escola de reforço, mas que não fugiu à regra: Eu comecei dando aula de reforço em escola de banca desde meus quinze anos, quando eu completei dezoito anos eu trabalhei como auxiliar de professora numa escola particular, trabalhei durante um ano, mas sem carteira assinada, por que não era formada, na época eu cursava o pedagógico, mas não era formada, então nunca assinaram minha carteira, mas pagavam direitinho (MÁRCIA, 35 anos, professora).

Estratégias de mobilidade social Há um certo consenso entre teóricos das relações raciais, de que ser negro no Brasil demanda vencer barreiras de preconceito que limitam a suas

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oportunidades de vida e de mobilidade social (BENTO, 2007; FERNANDES, 1972; LIMA, 2002; NUNES, 2010), mas há de se convir que o preconceito de gênero acompanhe essa mulher participante de tal segmento discriminado, acarretando-lhe um duplo preconceito – de gênero e de raça (ABRAM, 2006; COUTINHO, 2010; SAFIOTTI, 1987). Assim, pedíamos às entrevistadas: ―Fale como ocorreu a sua trajetória no mercado de trabalho, e como vem acontecendo até então‖. Tendo a maioria das entrevistadas relatado que havia estudado e paralelamente trabalhado, algumas delas iniciando essa jornada mais cedo que outras, como o caso de Clarice, Milena e Adriana. Também trouxeram, em seus relatos, dificuldades encontradas pela mulher negra que deseja ascender socialmente. E a realidade vivida por suas mães, que sem instrução (educação formal), recebiam baixos salários e chefiavam o lar sem a presença de um cônjuge. Esta é a recordação que Magda tinha de sua infância: Eu tive uma infância pobre, pobre, mas era uma pobreza que não era de ficar com fome, mas uma pobreza que não me dava o luxo de ter brinquedo, de ter duas fardas, então eu tinha uma farda só, eu tinha que ter um sapato só. (...)Eu vim da escola pública, não trabalhava, minha mãe era professora primária, então eu me sentia na obrigação de estudar para mantê-la, obrigação de tirá-la, porque (...) professor ganha pouco, principalmente professora primária, do ensino fundamental, então ela me sustentou até o ensino médio (...).(MAGDA, 54 anos, professora e diretora acadêmica).

Atualmente, com a criação das políticas públicas de acesso ao ensino, este quadro, paulatinamente, vem se revertendo, à medida que se amplia o acesso de segmentos historicamente excluídos do ingresso aos serviços básicos disponibilizados pelo Estado (MUNANGA, 2001). Entretanto, Adriana, que faz parte de outra geração em relação à de Magda, relata sobre a sua inserção precoce no mercado de trabalho e das suas escolhas baseadas nos escassos recursos. Após alguns anos tentando, enfim consegue chegar à Universidade, contudo enfrenta alguns dilemas: (...) Antes de prestar vestibular [avisei]: “mãe, vou fazer vestibular para um curso que só tem à tarde. Pois de todos, o que mais eu me identifiquei e gostei foi esse. A senhora me apoia?”. “Eu vou fazer, se eu passar, vou ter que parar de trabalhar!”. Aí, minha mãe: “vá Adriana, pode ir, já fizemos as contas” (...) “É para estudar? Pode ir, de fome ninguém morre não!”. Eu trabalho desde os meus dezoito anos, eu passei na faculdade, eu ia fazer vinte e seis, então assim, você trabalha um tempão, [e agora] ficar sem dinheiro algum (...) (ADRIANA, 28 anos, recepcionista).

Foram as políticas de ação afirmativas, ou mais comumente conhecidas como ―cotas‖ raciais e/ou sociais, que possibilitaram o ingresso, de Adriana e

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de maior parte da população negra excluída, ao sistema de ensino superior. Adriana trabalhava e estudava, no entanto, ao entrar na Universidade se viu com um dilema: ―permanecer no curso sem dinheiro algum, ou trabalhar e não frequentar mais o curso‖. Ela não conseguia arranjar trabalho compatível com o horário das aulas. Assim, para Adriana, que hoje parou de estudar e agora trabalha como recepcionista num banco, o desafio era se manter no curso, já que deixou de colaborar com a renda da família para ter acesso ao ensino superior. A sua permanência poderia ter sido garantida, se à época de sua entrada na universidade já houvessem programas destinados a auxiliar a permanência estudantil na universidade, popularizado como ―bolsa permanência‖, destinados a estudantes em situação de vulnerabilidade social, quilombolas e indígenas (BRASIL, 2013). “Estudar e trabalhar” – outras estratégias de mobilidade social Assim como houve histórias nas quais as barreiras geradas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira impuseram dificuldades para as mulheres que buscavam no trabalho e estudo a chave para ascenderem socialmente, temos outros exemplos que demonstram que uma ligeira melhora das condições de vida e de estudos podem fazer diferença, tanto na inserção no mercado de trabalho como em relação ao tempo de estudos. O que nos leva direto à realidade de Margarete, um pouco antes das políticas afirmativas serem implantadas: Eu me sentia na obrigação de passar porque eu estava sacrificando elas, para darem aquele dinheiro, então eu cuidava da minha filha pelo dia. Eu não trabalhava, mesmo por que eu era muito nova e não tinha qualificação profissional, e eu achava que tinha que estudar (...) então fui fazer o „pré‟ [preparatório para vestibular] (...) eu não saía, para compensar tudo (...) (MARGARETE, 36 anos, diretora carcerária).

Assim, para Margarete, o que sua família fez por ela foi visto como sacrifício, pois ela sabia que eles dispunham de pouco recurso financeiro, logo pagar um curso pré-vestibular seria um investimento ao qual ela haveria de retornar aos seus familiares por meio de sua aprovação na universidade.

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“Venci pelo estudo” Eu quem coloquei minha mãe para estudar, eu quem matriculei minha mãe, depois de formada (...). Agente não sabia o significado de „ah! dá um dinheiro pro pré [vestibular]‟ Eu sabia por que eu vinha estudando, eu estava começando a entender o que era estudar, ter nível superior, mesmo porque, na minha família, eu sou a primeira a ter nível superior completo (...). (MARGARETE, 36 anos, diretora carcerária).

Na literatura que fala de mobilidade social, o estudo aparece como um dos principais instrumentos para a conquista da ascensão social (RIBEIRO, 2006). Nas histórias de Margarete e de Clarice, mostra-se mais uma vez presente. Por outro lado, Clarice vê no estudo apenas uma das vias para a sua mudança de status, pois viu que apenas ter o diploma não lhe garantiria o tão esperado emprego de professora. Ela, assim como as demais, lançou mão do trabalho, como garantia de manutenção dos estudos. Para Clarice, um complementava o outro: (...) Senti que não era só a universidade que (...) faria com que eu tivesse bons conhecimentos, eu teria que ter algo mais, por que para me inserir dentro do mercado de trabalho, que é muito difícil, principalmente para a mulher negra, a gente tem muitos obstáculos, preconceito dentro da universidade, preconceito na área de licenciatura, que era um curso que as pessoas que faziam eram por que não tinham QI (...) Então, eu fui ampliei meus horizontes dentro da universidade, continuei trabalhando e estudando (...). (Clarice, 46 anos, empresária).

Após passar em um concurso para professora do estado, Clarice também resolveu abrir sua própria escola, voltada para o ensino do idioma que, em determinado período de sua vida, lhe proporcionou morar fora do país e ―ampliar seus horizontes‖, conforme afirmou durante a entrevista. Concurso público As mulheres entrevistadas, em geral, trabalhavam em órgãos e empresas públicas, ou em empresas privadas (de médio e grande porte), porém a grande maioria tinha algum vínculo com o setor público. Desse modo, os achados que obtivemos tratam, em muitos aspectos, sobre o concurso público, o qual as entrevistadas proclamaram como a alternativa mais eficaz, frente a um mercado discriminador, conforme alega Isadora: Era muito difícil, mas assim, como era uma empresa estatal, eu acho que as minhas dificuldades não eram tantas, quanto às pessoas que acho que encaram numa empresa privada, eu acho que esse

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Eleonora Vaccarezza Santos Ionara Magalhães de Souza processo na empresa privada é muito mais complicado, por que você faz um concurso para uma empresa dessas, e já na empresa privada não. Às vezes você entra, até pode ter uma seleção, mas é de uma forma diferente, é a simpatia, enfim, nem sempre é a questão da competência que prevalece (...) (ISADORA, 54 anos, tec. operações de petróleo).

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), constante no relatório sobre desigualdades raciais e de gênero no serviço público, em 2002, dos 171,6 milhões de brasileiros, 580 mil eram servidores em atividade no início de 2003, sendo que os homens se encontravam numa proporção muito maior que a das mulheres (OSÓRIO, 2006). Logo, as desigualdades encontradas na pesquisa podem levar à conclusão de algum tipo de barreira para o ingresso de mulheres no serviço público. O que vai de encontro com o pensamento de Margarete, ao acreditar que se trata de uma disputa legal: (...) Aí eu dizia: „eu quero ser varredora de rua, mas eu quero ser funcionária pública‟. (...) Todo concurso que aprecia, sendo do estado, da prefeitura, eu fazia. (...) Eu já tinha feito esse concurso da guarda prisional, e aí as pessoas diziam que eu tinha coragem, mas eu: „eu quero passar, eu quero estabilidade‟ (...). Eu tive esse objetivo, trabalhar e ser concursada, então eu acho que é diferente você ser concursada, por que você vai disputar legalmente(...). (MARGARETE, 36 anos, diretora carcerária).

Contudo, para as mulheres que entrevistamos, o concurso público não deixou de ser menos atrativo para elas, uma vez que se garante estabilidade, há um processo seletivo que não irá avaliar a aparência física, o que torna-o menos injusto, uma vez que o que contará são as habilidades em resolver as questões da prova e não, necessariamente, a simpatia (conforme relata a Isadora). Preconceito e discriminação racial – percepção e enfrentamento Significativas mudanças históricas, como a exemplo da emergência dos movimentos de denúncia do preconceito e de reivindicação dos Direitos Humanos, levaram a mudanças nas formas de expressão do racismo e do preconceito, a ponto de se acreditar que estas teriam deixado de existir (LIMA; VALA, 2004). No entanto, o que se percebe é que apenas mudaram sua forma de expressão (CAMINO; SILVA; MACHADO, 2001). Imediatamente, perguntamos às nossas entrevistadas: ―durante esse processo de inserção, você teve alguma vivência de preconceito ou discriminação?‖. Ao que estas mulheres, em sua imensa maioria, diziam que não, mas seguida de alguma pausa aqui ou ali relatavam algum fato ocorrido

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com elas próprias ou com amigos mais próximos. Nessa categoria, procuramos trazer a perspectiva dessas mulheres com relação ao preconceito, suas vivências, percebidas ou não. Decidimos pela divisão destes relatos em duas categorias de preconceito – de gênero e raça. Vivências de preconceito racial (...) Se eu disser a você que senti realmente qualquer tipo de preconceito, discriminação na minha vida profissional e até pessoal, eu estaria realmente mentindo, não senti (...) e eu sempre na minha vida tanto profissional eu busco cultivar pra mim o que é bom, o que soma, então assim, as coisas que podem ficar à margem que não vai somar, eu não cultivo. (INGRID, 34 anos, Assistente Social). Eu não sinto por nenhum âmbito pelo qual já passei atualmente, aspecto de discriminação nenhuma, de forma alguma, mas é claro que a gente sente (...) nas pessoas... Eu não sei se é admiração, ou se [é] o que você está me perguntando: „como ela chegou até ali?‟ (...) (MAGDA, 54 anos, diretora acadêmica).

Por outro lado, tivemos relatos de mulheres que sofreram algum tipo de preconceito e até discriminação, mas que as mesmas identificaram como uma ação indireta, já que os agentes não se manifestaram abertamente, ou souberam por terceiros. Isso ocorreu com Márcia: (...) Logo no início, quando eu comecei a trabalhar como estagiaria no município de Aracaju, eu tive um pequeno problema [pausa] por que, inclusive, era por causa dos alunos, não me disseram diretamente (...) mas eu vi os alunos comentando: „ah! Mas a professora é pretinha, a professora é neguinha, a professora de fulano, de ciclano!‟ Mas os meus alunos me defendiam, uma vez uma aluna escreveu uma cartinha para mim: „professora, gosto muito da senhora, mesmo os meus coleguinhas lhe chamando de negra, pra mim a senhora é a melhor professora do mundo!‟ Isso marcou a minha vida, foi quando eu trabalhei como estagiária na escola da prefeitura (...) (MÁRCIA, 34 anos, professora).

Márcia sentiu na pele o preconceito, ao ser citada por seus pequenos alunos de modo discriminatório, além disso, ela ainda conta que tiveram alguns deles que se recusaram a terem aula com a mesma. Com base nessa perspectiva, de que crianças a partir dos quatro anos de idade já expressam atitudes racistas, que França (2013) vem desenvolvendo estudos sobre racismo em crianças. Segundo ela, não que os mesmos já nasçam preconceituosos, mas acredita-se que aprendam com os adultos os estereótipos dos diferentes grupos raciais, e à medida que vão sendo socializados em conformidade com as normas antirracistas vigentes, aprendem a camuflarem tais atitudes (FRANÇA, 2013).

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E quando esta mulher, além do preconceito racial, experimenta o preconceito de gênero ou sexismo? Vivências de preconceito de gênero (...) eu fiz o concurso já para trabalhar no campo, e era pior ainda por que só tinham homens, e eles achavam por que tinha uma mulher na área, eles podiam mexer, podiam... Eu tive algumas dificuldades no começo, até a gente se impor é meio complicado (...) (ISADORA, 56 anos, técnica em petróleo).

A luta contra o sexismo foi e continua a ser uma das bandeiras levantadas pelo movimento feminista brasileiro. Com efeito, foram os encaminhamentos da Constituição de 1988 que contemplaram cerca de 80% das suas propostas, o que mudou radicalmente o status jurídico das mulheres no Brasil (CARNEIRO, 2003). Entre os anos de 1988 a 1997, a lei recebeu várias emendas abrangentes que ampliaram o leque em outras formas e expressões de discriminação (BANDEIRA; BATISTA, 2002). Entre estas, estão aquelas específicas que se observam no trabalho. No entanto, esta mulher há de estar atenta para a menor tentativa de violação de seus direitos, como no caso de Isadora, que acredita que precisa ―se impor‖ perante seus colegas.

Enfrentamento do preconceito e da discriminação racial As reivindicações dos movimentos sociais se fez sentir sobre o contexto legislativo, a exemplo, dos critérios relativos à ocupação diferencial dos cargos, a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define em 21 artigos, os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor (BANDEIRA; BATISTA, 2002). A Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religioso, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza (BANDEIRA; BATISTA, 2002). Entretanto, mesmo sendo amparada por lei antirracistas e/ou antidiscriminatórias, a mulher negra ainda sente a necessidade de ter que se impor, para não ser discriminada, conforme segue o relato de Renata: (...) não me senti assim discriminada, por que eu sempre ocupei o meu espaço, eu sempre me respeitei para ser respeitada, então até hoje, com 23 anos de serviço, a gente sente alguma resistência em alguns pontos, em alguma função (...), hoje eu estou comandando um batalhão de guarda. (...) tem alguns que não gostam de mim, mas pelo meu lado profissional, ninguém tem o que falar de mim, por que eu respeito para ser respeitada (RENATA, 47 anos, coronel de polícia).

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Todavia, quando alcançam níveis mais elevados, percebem, ainda, a presença de um racismo ―cordial‖ (TURRA; VENTURINI, 1995). Expresso por Magda, ao se referir a sua percepção frente ao preconceito:(...) O preconceito não cessa, mas o respeito...ele se sobrepõe (...) a profissional se sobrepõe (...). Assim, pode-se afirmar, com base nos relatos das entrevistadas, que a mulher negra vivencia situações de preconceito racial em seu processo de mobilidade social, que hora se mescla com o preconceito de gênero. CONSIDERAÇÕES Este trabalho procurou compreender as trajetórias de mobilidade social de mulheres negras sergipanas e suas percepções frente ao preconceito e a discriminação racial. Mediante análise do material das entrevistas, observou-se que a estrutura familiar favorecia, de certo modo, o período em que essa mulher iria se inserir no mercado de trabalho. Pois, em famílias nas quais os progenitores possuíam formação escolar mais elevada, ocorreu, para a entrevistada, a possibilidade de prolongar os seus estudos, possibilitando, dentre outras ações, uma melhor colocação no mercado de trabalho. Em geral, saíam a competir com formação profissional concluída ou em andamento. Assim, podemos considerar que os anos de estudo exerceram um papel importante em suas inserções no mercado de trabalho. Entretanto, foram realizados com sacrifício, devido aos parcos recursos de que dispunham, para mantê-las no sistema de ensino formal. A esse tipo de esforço, as entrevistadas definiram como ―valor dado à educação‖, por visualizá-la como via de acesso à mobilidade social. Prontamente, caberia a realização de estudos comparativos, pois o lugar de partida se mostrou um indicador para o nível-limite de mobilidade que estas mulheres poderiam alcançar. A escolha profissional foi um assunto bastante abordado pelas mulheres entrevistadas, uma vez que se mostrava como um determinante para o futuro profissional e, consequentemente, para o tipo de ganhos que teriam. Dentre as consulentes, havia as que tinham prestado o vestibular para uma universidade pública de âmbito federal. Outras prestaram vestibular em instituições particulares. As políticas públicas de acesso ao ensino superior mostraram-se como elemento chave para a superação da inserção dessas mulheres nas instituições de ensino superior. A falta destas políticas foi sentida por algumas das entrevistadas, uma delas ao adentrar pelo sistema de cotas, não conseguiu permanecer, devido à falta de programas de incentivo, como a exemplo do ―bolsa permanência‖, que à época da pesquisa, ainda não havia sido criado (BRASIL, 2013).

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Houve momentos nos relatos das trajetórias, em que o preconceito racial mesclou-se com o preconceito de gênero, gerando uma dupla situação de discriminação. E como consequência destes fenômenos, sentir necessidade de se impor, de colocar ao outro que ela também é cidadã e goza dos mesmos direitos. Foi algo que se notou de contraditório nos discursos, pois ao mesmo tempo em que declararam inicialmente não terem sido discriminadas, falavam de alguns mecanismos para ―coibir‖ possíveis discriminações. O que Paim e Pereira (2011, p.11) defendem como ―uma forma de manter a autoestima elevada é perceber que a discriminação racial contra o grupo existe, mas relatar que nunca sofreu esta discriminação como membro deste‖. Contudo, algumas delas que adentraram o mercado por meio do concurso público e cresceram em suas carreiras profissionais ou em seus setores, percebiam no reconhecimento profissional, a superação de preconceitos. Também se apreendeu, em seus relatos, uma tendência à resiliência, visto que conseguiram transformar situações de precariedade e falta de recursos na infância, em propulsores de seu crescimento. Outro aspecto revelado durante as análises foi a solidariedade das mulheres entrevistadas, ao ajudarem familiares que acreditavam ter menos recursos, ou mesmo deixado de buscar ganhos pessoais (como exemplo de Adriana) em benefício da família e da comunidade onde viviam. Por fim, dados como esses que apresentamos nos levam a compreender que a educação, conjuntamente com o trabalho, ainda é comumente utilizada como estratégias para a mobilidade social da mulher negra no Brasil. E o preconceito e a discriminação racial ainda se apresentam como problemas a serem superados por esta mulher a qual busca construir para si um projeto de mobilidade social. REFERÊNCIAS ABRAM Laís. Desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho brasileiro. In: Cienc. Cult. [Online], v. 58, n. 4, 2006, p.40-41. Disponível em: <http://www.cienciaecultura.bvs.br>. Acesso em: 25/11/2011. ALLPORT, Gordon. W., The nature of prejudice, New York: Basic Books, 1954. BANDEIRA, Lourdes; BATISTA, Analía Soria. Preconceito e discriminação como expressões de violência. In: Estudos Feministas (1), 2002, pp.119-141. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1977. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil, In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil, Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, pp. 25-58.

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o dia 19 de dezembro de 2002, no Conselho Federal de Psicologia, foi criada a resolução 018/2002. Esta resolução estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial. Para entender sua importância, é preciso considerar que se o racismo humilha e a humilhação social faz sofrer, é sim da competência da Psicologia trabalhar no combate e enfrentamento do fenômeno, não colaborando para a sua reprodução e dos efeitos psicossociais gerados pelo preconceito e discriminação racial. Assim, este capítulo visa expor e ampliar, a luz da resolução 018/2002, as discussões levantadas durante os trabalhos realizados durante o II Seminário Psicologia e Relações Interétnicas (SEMPRI-2016). Nos séculos XIX e até meados do século XX, o racismo firmou-se como doutrina, em especial no meio científico que difundia a ideia de raça, reinterpretando toda a história à luz desta perspectiva, reduzindo as diferenças

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à essência das “leis da natureza”, e mesmo havendo críticas com relação a esse tipo de determinismo, tal visão avançava e constituindo-se como uma das características do racismo, embasou o extermínio de milhões de judeus e ciganos pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, sendo mais tarde o racismo universalmente repudiado (BORGES; MEDEIROS; ADESKY, 2002). Mas como o racismo se manifesta? E quais são essas manifestações? Encontramos em Bento (2002, p. 27-28) uma definição do que venha a ser uma de suas maneiras de manifestar-se – a discriminação racial, e a descreve: No campo da teoria da discriminação como interesse, a noção de privilégio é essencial. A discriminação racial teria como motor a manutenção e a conquista de privilégios de um grupo sobre outro, independentemente do fato de ser intencional ou apoiada em preconceito. Em minha dissertação de mestrado, discuto essa questão que sempre me inquietou, que é o fato de que a discriminação racial pode ter origem em outros processos sociais e psicológicos que extrapolam o preconceito. O desejo de manter o próprio privilégio branco (teoria da discriminação com base no interesse), combinado ou não com um sentimento de rejeição aos negros, pode gerar discriminação.

De modo que compreendemos a discriminação racial como uma manifestação menos subjetiva do racismo e mais revelada em práticas, tomando como aporte a ideologia racista. Os tipos e as formas de racismos existentes abrangem três níveis: individual, cultural e institucional, e diferentemente do preconceito, manifesta-se por meio de práticas como a exclusão e a discriminação (LIMA; VALA, 2004). E o racismo individual é o que estaria mais próximo do preconceito (NUNES, 2010). No Brasil, acredita-se que ele seja estrutural, ou seja, encontra-se na base da sociedade, portanto pode estar presente nas diferentes esferas, sejam elas culturais, individuais ou institucionais. A Resolução da qual este GD debateu faz referência ao Código de Ética Profissional dos Psicólogos, em que se tem o Art. VI dos Princípios Fundamentais, que diz: “O Psicólogo colaborará na criação de condições que visem a eliminar a opressão e a marginalização do ser humano”. Contudo, vale ressaltar que o texto do Código de Ética, editado em 2005, traz algumas modificações em seu texto, mas podemos encontrar no Art. I e no Art. II dos Princípios Fundamentais, respectivamente: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos”; e “O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e

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contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. No Grupo de Discussão do II SEMPRI, foram debatidos os artigos que esta Resolução traz, explorando seus significados. Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão, contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo. Nair Iracema Silveira dos Santos, do departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRS, diz que: “A ética refere-se a uma construção permanente de si e implica uma atitude de crítica constante de nosso ser histórico e dos valores que conduzem nossas ações no mundo. O papel da psicologia é justamente o de fazer com que tanto os indivíduos quanto os grupos e instituições percebam que os lugares e as escolhas que fazemos não são neutros; ao contrário, refletem os valores e os jogos de verdade que marcam a produção da nossa subjetividade e nossas escolhas. A ética está relacionada às nossas práticas, aos modos de trabalhar e de se relacionar, às formas como nos conduzimos como profissionais em qualquer contexto, exigindo uma permanente análise das implicações, dos lugares que ocupamos, das lógicas que regulam nossas ações e dos efeitos de nossas práticas na vida das pessoas e dos grupos com os quais trabalhamos”. A proposta do artigo no Código de Ética não é uma diminuição, mas a extinção do racismo, da intolerância. Isso leva a pensar que o psicólogo não deve estar numa posição neutra ou meeira. Deve saber identificar toda e qualquer manifestação de racismo e combatê-la. O silêncio alimenta o preconceito, fazendo crer que a opinião própria e a postura desdenhosa com o outro é superior à dignidade humana. Art. 2º - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia. Para fazer isso, é preciso que os psicólogos sejam capazes de enxergar onde existe preconceito. Pois discriminação racial não se refere somente à cor da pele, mas suas culturas e religiosidades. Então faz-se necessário que os profissionais entendam e eles mesmos não tenham preconceito com tais referências de origem africana. Por exemplo, tomemos a divindade chamada Exu. Os missionários cristãos, quando começaram a catequizar o Brasil, ao perceberem o grande poder que Exu exercia entre os adeptos do candomblé, começaram a execrá-lo e transformá-lo num ser maligno e perigoso e sincretizaram-no como a figura do diabo no catolicismo. Infelizmente, sua figura continua sendo vilipendiada pela dominação de movimentos religiosos que ditam normas e pautam valores no

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imaginário coletivo. Então, é preciso saber desse tipo de história para saber combater as discriminações com total embasamento. A intolerância religiosa também vem se configurando como tema de preocupação da Psicologia, tanto de forma indireta, como na categorização de graus de discriminação (MATA, 2009), bem como de forma direta, considerando, principalmente, as estratégias de copping utilizadas por líderes do Candomblé frente aos ataques neopentecostais (FILHO, 2009). A intolerância religiosa é: “Toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, que atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras, ou seja, capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos”. (BAHIA, 2014, p. 1) Essa intransigência caracteriza-se como um fenômeno que inclui o desprezo, o desrespeito, evoluindo para ações mais insidiosas, como a segregação e os ataques às pessoas e às propriedades e símbolos que representam as religiões profanadas. As ocorrências de intolerância religiosa, quase sua totalidade contra as religiões de tradições africanas, caracterizam-se pelas formas mais agressivas e danosas de preconceito e discriminação. Em geral, atingem uma coletividade de forma concreta e subjetiva, fragilizando a integridade da segurança e do sagrado ao mesmo tempo. Fragilizam a todos de forma individual e coletiva, uma vez que se trata de negar crenças centrais, estruturantes do indivíduo e da sua compreensão de mundo. Tais atos são uma forma de aniquilação do legado cultural dos povos da diáspora africana, desestruturando uma forma de manutenção de sua cultura e saberes. No Brasil, é sabido que o Cristianismo utilizou a sua influência para justificar o escravismo e demonizar as manifestações religiosas de negros e índios (SANTOS, 1994). Isso ainda ocorre nos dias atuais, como fica explicitado nos casos de intolerância religiosa. No nosso caso, o racismo e a intolerância religiosa andam lado a lado. Art. 3º - Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo. Um dos participantes contou a seguinte metáfora: “um sujeito morreu e foi lhe dado a escolha entre o céu e o inferno. E ficou em cima do muro, olhando para um lado e para o outro, tentando escolher. Do lado do céu, os anjos ficavam

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gritando para vir para aquele lado, pois era bom e tudo mais. E do lado do inferno, o diabo apenas observava calado. Chegou um capeta menor e falou para o diabo que se ele não fizesse nada, perderiam o sujeito para o céu. Ao que o diabo respondeu: ‘Tolo! Em cima do muro, já é o meu lado! ’”. A célebre frase do filósofo anglo-irlandês Edmund Burke, que viveu no século XVIII, também foi lembrada: “a única coisa necessária para que o mal triunfe é que os bons homens não façam nada”. Art. 4º - Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial. E se fosse possível usar os instrumentos e técnicas para dirimir tais discriminações? E se pudesse utilizar todas as ferramentas possíveis para lutar nesta guerra? Vimos o exemplo do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP 03) o qual lançou uma cartilha onde divulga publicações e pesquisas de psicólogos com a temática racial e do nosso referido Conselho Regional de Sergipe, que tem fomentado ao longo destes quase dois anos, a discussão da temática nos mais diversos espaços e, atualmente, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tomou para si a responsabilidade de atualizar as referências da cartilha no site da instituição. E nisso também se levantou a questão das cotas. O que dizem as pesquisas e o que, de fato, elas geram? Quais seus resultados? Na introdução a esta temática, foi exibido um vídeo com o ator Hélio de La Peña, o qual comenta como vê a política de cotas universitárias: “O ideal seria termos colégios de alto nível abertos à população de baixa renda em favelas e bairros pobres. Isso favoreceria pessoas negras de classe baixa a se capacitarem para disputar vagas em igualdade de condições, em vez de terem o acesso à universidade facilitado. Mas estamos longe disso. As cotas, no momento, beneficiam muitos estudantes, mas devem ser vistas como medidas paliativas. Eu, por exemplo, se fosse jovem, hoje, estudante do São Bento, iria disputar uma vaga plena. Ia querer a vaga de branco”. Art. 5º - Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias. Surgiu a questão: de que maneira os psicólogos podem efetivamente fazer a diferença nesta representação social? Para compreender o que se pode fazer, é útil primeiro entender a natureza do próprio preconceito. Hoje, o Dr. Vamik Volkan é psiquiatra na Universidade da Virgínia, mas ele lembra o que foi ser criado numa família turca na ilha de Chipre, então

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seriamente contestada entre turcos e gregos. Quando criança, Volkan ouvia rumores de que o cordão da cintura do povo grego tinha um nó para cada criança turca que os estrangulara, e lembra-se do tom de consternação com que lhe disseram que os vizinhos gregos comiam porco, cuja carne era considerada imunda demais em sua cultura turca. Agora, como estudioso do conflito étnico, ele cita essas memórias de infância para mostrar como os ódios entre grupos são mantidos vivos pelos anos afora, à medida que cada geração é mergulhada em preconceito hostis como esses. O preço psicológico da lealdade ao próprio grupo pode ser a antipatia por outro, sobretudo quando há uma longa história de inimizade entre os grupos (ALPPORT, 1954). Os preconceitos são uma espécie de aprendizado emocional que ocorrem cedo na vida, tornando essas reações especialmente difíceis de erradicar, mesmo em pessoas que, adultas, acreditam ser errado tê-las, outro ponto que tem pesado diz respeito a como as crianças que sofrem com o preconceito racial estão sendo socializadas para lidar com as situações de discriminação. França (2011) realizou um estudo junto às mães de crianças indígenas, negras e mulatas, do estado de Sergipe, e constatou que as mesmas cultivavam valores da autonomia e da autorrealização para os seus filhos, além de os socializarem para negarem a existência do preconceito e com valores da igualdade. O que pode ser percebido como pouco eficaz, posto que, no momento em que esta criança se deparar com situações nas quais as diferenças são postas como empecilho para sua autorrealização, a mesma poderá não saber como agir (FRANÇA, 2011). A tenacidade dos preconceitos sutis pode explicar por que, nos últimos quarenta anos, mais ou menos, as atitudes raciais dos americanos brancos em relação aos negros se tomaram cada vez mais tolerantes, mas persistem formas mais sutis de preconceito; as pessoas negam atitudes racistas quando ainda agem com preconceitos encobertos. Quando perguntadas, tais pessoas dizem que não sentem intolerância, mas em situações ambíguas ainda agem de forma preconceituosa, embora apresentem outra justificação que não o preconceito. Essa tendenciosidade pode assumir a forma, digamos, de um alto administrador branco que julga não ter preconceitos rejeitar um candidato negro a um emprego, ostensivamente não por sua raça, mas porque sua educação ou experiência não são muito adequadas para o trabalho, enquanto emprega um candidato branco com a mesma formação. Uma frase dita pelo ator norte-americano Morgan Freeman iniciou a discussão: “o dia em que pararem de pensar em consciência negra, branca ou amarela e começarem a pensar em consciência humana, aí o racismo acaba”. As opiniões a esta frase foram divergentes. Por um lado, é o ideal a se alcançar,

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mas por outro, ainda há muita descriminalização para simplesmente ignorar, silenciar e não se levantar com todas as forças contra as ações racistas. Provas de que a situação está caótica e que precisa ser transformada urgentemente são os dados da Comissão Nacional Contra a Discriminação Racial: 70 % dos negros trabalham em serviços não técnicos; 80,9% das mulheres negras ganham até dois salários-mínimos; 62% dos homens negros ganham até dois salários-mínimos; 80% dos negros moram em favelas ou em locais insalubres; 87% das crianças fora das escolas são negras; 47% dos negros concluíram o segundo grau; 40,25% dos homens negros são analfabetos contra 18,5% dos brancos; Somente 1% dos negros completam a faculdade; A renda de uma família negra é de apenas R$ 689,00 contra a de uma família branca, que é de R$ 1440,00. E o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da população negra brasileira ocupa a 107ª posição no ranking das Nações Unidas, enquanto o da população branca está no 46ª lugar. Outro ponto referente a este artigo é que os psicólogos não devem “vestir e desvestir” sua postura como psicólogo. Ou seja, quando der alguma opinião que fere o Código de Ética, simplesmente dizer que não está falando como psicólogo, mas como uma pessoa comum, como um pastor, ou seja, como for. Em 7 de fevereiro de 2013, o Conselho Federal de Psicologia publicou uma nota de repreensão a Silas Malafaia, que é graduado em Psicologia, em razão de suas declarações na entrevista ao programa de Marília Gabriela. Segundo o Conselho, a "atitude desrespeitosa de Malafaia com homossexuais ressalta um tipo de comportamento preconceituoso que não se insere, em hipótese alguma, no tipo de sociedade que a Psicologia vem trabalhando para construir com outros atores sociais igualmente sensíveis e defensores dos Direitos Humanos". O CFP explicou que, na visão corrente da Psicologia, a homossexualidade não pode ser considerada doença, desvio ou perversão. Nesse sentido, o pastor "agrediu a perspectiva dos direitos humanos a uma cultura de paz e de uma sociedade que contemple a diversidade e o respeito à livre orientação". O CFP considerou "lamentável que exista um profissional que defenda uma posição de retrocesso que chega a ser quase inquisitório, colocando como vertentes do seu pensamento a exclusão e o preconceito na leitura dos direitos humanos." Este psicólogo também atacou o jornalista Ricardo Boechat, quando este comentou em seu programa que “os evangélicos são uma massa monumental de brasileiros, sempre ficam muito sensíveis quando se faz alguma crítica que generalize a abordagem. E nesse sentido, eu quero deixar bem claro que essa crítica é uma crítica muito dirigida a pastores e algumas igrejas neopentecostais, e alguns grupos específicos dentro de algumas agremiações religiosas que estão estimulando e levando a cabo ações de hostilidade contra outras religiões, especialmente as religiões de origem africana".

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Então, caberia ao CFP uma postura mais firme e incisiva, cabendo até mesmo a cassação do registro de um profissional que se comporte desta maneira tão instigante à descriminalização. Na conclusão, uma leitura da reportagem “Meu psicólogo disse que racismo não existe”. Nele, há depoimentos de pacientes que revelam que muitos psicólogos não sabem lidar com questões raciais no consultório. Psicólogos que disseram que a dor que seu paciente sofria era criação da sua mente. A maior carência é uma formação que aborde o problema do racismo no Brasil. Para Cinthia Vilas Boas, psicóloga e militante do movimento negro, o problema começa nos cursos de formação. “A realidade está muito longe do que chamamos de transversalidade”, afirma. Embora o racismo seja um profundo problema no Brasil, a formação dos psicólogos ainda não reconhece a discriminação racial como uma fonte de adoecimento psíquico. “As políticas públicas estão aí; já falamos em conferências e agora precisamos tirá-las do papel”, afirma Vilas Boas. “A Política Nacional de saúde da população negra, que pode diminuir disparidades raciais na saúde, é pouco conhecida, bem como a Lei 10.639, entre outras várias leis, campanhas e diretrizes. A fim de avançar no tema, o Conselho Federal de Psicologia criou a Resolução Nº 018, em 2002, que estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial”, explica. Porém, na prática, a realidade é outra. “Existe a discriminação institucional, quando profissionais da área não estão preparados para atender a população negra ou até são preconceituosos, levando a diferenças e desvantagens no tratamento devido à raça. Para o profissional da saúde, é importante trabalhar a equidade do SUS, é importante que ele saiba trabalhar as diferenças”. A educação pode ser um ponto chave para modificar esse quadro – Vilas Boas explica que é necessário construir um espaço legitimo e confortável para que as pessoas negras construam sua identidade. REFERÊNCIAS ALLPORT, Gordon. W., The nature of prejudice, New York: Basic Books, 1954. BAHIA, Governo do Estado. Estatuto da Igualdade Racial, em http://www.sepromi. ba.gov.br/wp-content/uploads/2014/03/estatuto-daigualdade-racial-e-de-combate%c3%80-intoler%c3%82ncia-religiosa3.pdf. Aceso em 29 de Junho 2014. FILHO, M. V. Estratégias de enfrentamento do povo de santo frente às crenças socialmente compartilhadas sobre o candomblé (dissertação). Programa de PósGraduação em Psicologia Social, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Salvador.

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GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora Objetiva, 1995. MATA, V. P., Discriminação Racial: um estudo dos episódios registrados na promotoria de combate ao racismo do Ministério Público de Salvador (dissertação). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade Federal da Bahia. UFBA, Salvador, 2012. OLIVEIRA, Fábio Dantas de. Águas de Aruanda. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, 2014. Sites: http://www.ufrgs.br/e-psico/etica/temas_atuais/questoes-etnicas-texto.html http://site.cfp.org.br/cfp-se-posiciona-contrariamente-declaracoes-do-pastorsilas-malafaia/ http://www.emresumo.com.br/2015/06/19/treta-pastor-silas-malafaia-jornalistaricardo-boechat-trocam-ofensas_99022.html http://revistaquem.globo.com/Entrevista/noticia/2016/01/nao-sou-animador-demesa-de-bar-diz-helio-de-la-pena.html http://site.cfp.org.br/legislacao/codigo-de-etica/ http://relacoesraciais.cfp.org.br/ http://www.inf.ufes.br/~fvarejao/cs/PreconceitoRacial.htm http://www.revistaforum.com.br/2015/06/25/meu-psicologo-disse-que-racismonao-existe

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CAPÍTULO

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RACISMO, INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E ATUAÇÃO PSICOLÓGICA

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A

s transformações sociais e políticas para promoção e garantia de direitos como a liberdade e expressão religiosa são frutos de conquistas de lutas sociais, que culminaram no princípio constitucional da Laicidade. Ao mesmo tempo em que se registram avanços nesse sentido, ocorrem mudanças legais, organizadas por grupos políticos ligados a denominações religiosas específicas. Essas alterações provocam retrocessos, muitos com apoio de religiosos intolerantes que também são profissionais de psicologia, violando o código de ética profissional. A configuração das relações sócio religiosas no Brasil tem grande relação com as relações sócio raciais, pois são decorrentes dos grandes fluxos 182


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de povos oriundos dos continentes africano, europeu, asiático e dos povos ameríndios que aqui já estavam. Aliado a isso existia uma cultura políticoeconômica de exploração colonial e escravagista, com brancos católicos à frente, que estruturaram uma sociedade hierarquizada fixando os diversos segmentos populacionais em lugares distintos, gerando assimetrias e exclusão social (VALDISIA1 MATA, 2009) que se perpetuaram ao longo do tempo, por diversas maneiras, cristalizando lugares socialmente construídos. Esse trabalho se propõe a tecer reflexões sobre o processo de construção do racismo e intolerância religiosa no Brasil e a atuação profissional na psicologia, apontando percursos históricos, produções de práticas violadoras e atentando a novos horizontes de um exercício profissional com compromisso ético, promotor de direitos e potencializador da democracia. VIOLAÇÕES DE DIREITOS E A PSICOLOGIA A psicologia brasileira surge oficialmente enquanto profissão em um período de recessão de direitos, aliada aos grupos hegemônicos, com uso de seus conhecimentos em prol do controle da população, a exemplo do uso de hipnose em interrogatórios, prescrito no primeiro código de ética (MARCIA AMENDÔLA, 2014). Foi exatamente no período da Ditadura Militar (1964-1985) que a profissão foi sancionada pela lei nº 4119, regulamentada pelo decreto nº 53.464. Após esse período de institucionalização da violação de direitos, a Carta Magna de 1988, considerada a Constituição Cidadã pelo seu viés garantidor de direitos, passa a ser a principal diretriz normativa a ser seguida por todas as instâncias. Em conformidade constitucional, a Psicologia e suas orientações normativas específicas, a exemplo do código de ética profissional, seguem os parâmetros legais que, em tese, garantem e promovem a dignidade humana em todos os aspectos. Apesar dos avanços legislativos vigentes, registros históricos datados entre o século XIX a meados do século XX revelam um legado intensificado de perseguição e discriminação institucionalizadas e permeabilizadas em diversas áreas do saber. Durante o final do século XIX os conhecimentos psicológicos eram utilizados aliados aos saberes biomédicos, tendo na sua materialização mais eficiente a atribuição – negativa, biologicista e determinista – de características físicas e morais de escravizados e ex-escravizados como suspeitos e perigosos, sujeitados ao crivo do controle, da higienização e rejeição social. No período oitocentista, a partir de intercâmbios intelectuais com a Europa de cunho eugenista e darwinista, como os produzidos por Cesare 1

Na primeira vez que uma referência for citada, virá acompanhada do primeiro nome para evidenciar a diferença de gênero de cada autor(a)

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Lombroso e Arthur de Gobineau, o Brasil passa adotar através de diversas áreas científicas como a Psiquiatria, Neurologia, Medicina social e Medicina legal, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e Bahia (MITSUKO ANTUNES, 2012), investigações científicas alinhadas ao pensamento lombrosiano tendo um dos principais expoentes, o médico Nina Rodrigues. O legista e também antropólogo produziu estudos e potencializou um discurso bastante enviesado no período escravocrata, sobre a perspectiva da raça como fator preditivo das desigualdades sociais e morais, validando uma suposta hierarquia racial, justificadora da organização social. A partir do pressuposto epistemológico positivista com base no evolucionismo social, foi possível produzir hipóteses e discursos relacionando raça, patologias psiquiátricas e tipologias criminais. Esses impulsionaram mudanças na ordem social, onde ser de um grupo racial e adotar determinados elementos culturais significa infrahumanidade, merecedores das piores mazelas da sociedade. Em uma de suas obras, Africanos no Brasil, Nina Rodrigues analisou diversas manifestações religiosas dos negros africanos, colocando-as no cerne de fetichistas, animistas e degeneradas. Concluiu até que nesse período o desenvolvimento econômico baiano retardatário, estava ligado a grande expressão numérica de pessoas negras e mestiças no Estado, que com suas doenças, práticas culturais e religiosas, influenciavam o restante da população (NINA RODRIGUES, 2010). Essas produções acerca da racialidade e religiosidade tiveram efeitos que perduraram através dos tempos e se arraigaram através das mudanças sociais e políticas. Antunes (2012) nos lembra que nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e Bahia do final do século XIX, foi produzido e sustentado esse discurso a partir de saberes da psicologia. Assim foi também com muitas teses produzidas nesse período, das quais muitas relacionadas às questões psicológicas. Além das teses, encontram-se outros escritos produzidos por médicos, como livros, artigos em revistas e jornais e transcrição de conferências, nos quais é também recorrente a presença de temas de natureza psicológica, muitos dos quais apresentavam e defendiam (ANTUNES, 2012, p. 5152).

Após o processo de proclamação da república e revogação do sistema escravocrata, diversas mudanças representativas ocorreram, a exemplo da separação entre Estado e religião católica, oficial à época, provocando a ampliação do direito à liberdade de crença e culto às diversas religiões. Todavia, em relação às religiões de matriz africana, o que se viu foi uma repressão desenfreada e tentativa de eliminação pela via da patologização, criminalização e demonização. Maurício Araújo (2007) põe em xeque o ambiente de liberdade de crença e culto pós-abolição e proclamação da república, uma vez que ocorreu o oposto com as religiões de matrizes africanas. O declínio do sistema escravocrata foi conduzido por um novo mecanismo e ideologia de dominação, 184


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o Biopoder sobre essa população e a ideologia supremacista de base eugenista, como meios para desenvolver o país entre as elites mundiais, extirpando a população negra e toda a sua cultura, tidas como degeneradas. Dessa forma, a produção da intolerância direcionada às religiões de matrizes africanas tem por fundamento o racismo através da desumanização de africanos(as) escravizados(as), coisificação, criminalização e bestialização dessas pessoas e de toda a cultura que lhes fosse relacionada (ARAÚJO, 2007). Dessa forma, há uma estreita ligação entre intolerância religiosa e racismo quando se trata de religiosidades negras. A via da patologização e criminalização foram as principais searas de contribuição da psicologia, pois justificavam através de uma lógica racista e intolerante que as pessoas negras tinham tendências a práticas criminosas, charlatanismo e distúrbios psíquicos. A Psicologia, assim como muitas outras áreas do conhecimento, utilizou sua credibilidade em prol da disseminação de teorias que sustentavam crenças nas diferenças entre os grupos, tais como inteligência, temperamento, comportamentos, com base na cor da pele e outros elementos como estatura, formato de crânio, tal como disseminado pelas teorias positivistas em voga no século XIX, que inspiraram um importante corrente da medicina no Brasil (VALDISIA MATA; DJEAN SANTOS, 2015, p. 44).

Os efeitos das produções desses discursos nas instituições públicas tiveram repercussões diversas, principalmente nos serviços ligados à segurança pública, sanitaristas e de saúde mental. Ari Oro e Daniel Bem (2007) relatam que no decorrer do século XX, o candomblé sofreu diversas perseguições e proibições de suas práticas religiosas durante o Governo Getúlio Vargas e o Estado Novo no Rio de Janeiro. Os espaços religiosos precisavam de autorização para celebrar suas liturgias e na maioria das vezes os templos eram invadidos durante as cerimônias, os objetos litúrgicos confiscados e seus adeptos presos ou detidos. No mesmo período, em Pernambuco, foi registrado o aumento da perseguição e controle das manifestações de práticas religiosas de matriz africana e espírita através da Comissão de Censura de Diversões, da Secretaria de Segurança Pública e pelo Instituto de Psicologia, que requeriam os seguintes critérios: “1.º) saúde psiquiátrica completa de babalorixá ou médium de centro espírita; 2.º) determinação da I.M. [idade mental] e Q.I. (escala BinetSimon-Terman, revisão pernambucana) e perfil psicológico de Rossolimo (adaptação pernambucana) 3.º) entrega de estatutos e regulamentos das seitas e centros espíritas, assim como as listas dos dias de funções; 4.º) registros desses centros em livro especial; 5.º) compromisso de não se entregarem à prática ilegal da medicina e permitirem visitas de nossos auxiliares” (CERQUEIRA, 1989 apud MASIERO, 2002, p. 6).

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Os discursos negativos propagados sistematicamente a respeito dessas religiões construíram um ideário de inferioridade civilizatória da população negra, através de expedientes legais, jornalísticos e científicos, que as demonizavam ao associar suas práticas religiosas à rituais de bruxaria e feitiçaria; criminalizavam acusando suas formas e relações de cuidado ao exercício ilegal da medicina; e, a patologizavam classificando os seus adeptos como pessoas com tendência a distúrbios psíquicos e à histeria (MARIA ANDRÉ, 2007). Ao longo do tempo, as religiões de matrizes africanas se instituíram, e ainda são instituídas, como estruturas sólidas de resistência cultural e luta política na diáspora africana e negra no Brasil. Essas religiosidades e suas lideranças são responsáveis pela manutenção de um legado bastante diversificado de culturas de alguns países africanos, referentes a aspectos linguísticos, culinários, organização política e familiar, dentre outros. Há também grande destaque a respeito da presença dessas lideranças no cenário político brasileiro, no que tange o combate ao racismo e intolerância religiosa, e outras formas de violações e discriminações correspondentes (SÔNIA LAGES, 2012; JOSÉ SILVA, 2007; JOÃO VALENÇA; ALEXANDRE FONSECA, 2009). Ainda nesse sentido, é possível verificar a atuação positiva das religiões de matrizes africanas em diversas esferas da sociedade, principalmente quando há o predomínio da população negra. Para Márcio Mello e Simone Oliveira (2013), a religiosidade dá sentido à vida, direciona e orienta formas de ser e estar no mundo, influencia modos de cuidado com o corpo, concepções de saúde, doença e cuidado, além de criar uma rede de apoio e agregação social. Em suma, é inegável a importância que a religião e suas práticas têm na vida das pessoas que dela participam. No caso das religiões de matrizes africanas, seus adeptos experimentam forte ligação identitária religiosa e também racial, visto a ligação com os movimentos de emancipação política e social da população negra ao longo do tempo. Quando se pensa nas diversas religiões que compõe o universo brasileiro, há um desequilíbrio na divisão social da intolerância, evidenciando um predomínio para determinados segmentos em detrimento de outros. O documento de mapeamento da intolerância religiosa no Brasil, de acordo com Alexandre Gualberto (2011), aponta que as religiões de matrizes africanas continuam como os principais alvos de intolerância religiosa no Brasil, o que é ratificado por Djean Gomes (2016) nos casos atendidos e analisados no serviço de psicologia do Centro de Referência de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa Nelson Mandela, uma perspectiva de uma política pública que se constrói alicerçada com o compromisso e entendimento dos agravos históricos, atento criticamente à realidade social, tendo no horizonte a promoção e garantia de direitos das populações historicamente discriminadas. 186


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Fazemos uso do conceito de intolerância utilizado no Estatuto da Igualdade Racial do estado da Bahia, tendo em vista que este consegue abarcar diversas formas dessa violência se manifestar. Assim, de acordo com a lei 13.182, este fenômeno é compreendido como toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou seja capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos; (BAHIA, 2014, p. 5)

Uma perspectiva de uma política pública que se constrói alicerçada com o compromisso e entendimento dos agravos históricos, atento criticamente à realidade social, tendo no horizonte a promoção e garantia de direitos das populações historicamente alijadas da desejabilidade social.

A PSICOLOGIA NA ATUALIDADE E AS MUDANÇAS POLÍTICAS Logo que oficializada enquanto profissão, a psicologia atuava principalmente nas áreas da clínica e do trabalho. Nas organizações empresariais o exercício profissional era basicamente destinado para treinamento e seleção, enquanto que na clínica a atuação obedecia ao modelo patológico e normalizador sem muitas preocupações com o contexto social. Apenas no final dos anos 70 do século XX, com a pressão dos movimentos sociais e a aproximação de psicólogas/os frente às agruras do período ditatorial, ocorreram mudanças no Código de Ética do Profissional de Psicologia (CEPP) com inclinações para questões de ordem sociais. Apesar das inclusões dos aspectos sociais e do entendimento enquanto categoria do dever em responder aos problemas sociais – possibilitando desenvolver áreas como a psicologia social e comunitária, dentre outras – muitas questões ligadas ao pertencimento étnico-racial, religioso, de gênero e sexualidade ainda eram incipientes predominando as concepções estereotipadas e enviesadas pelo preconceito. Após outra modificação no CEPP, igualmente reflexo das mudanças legislativas como a Constituição de 1988, foram criadas novas resoluções, a exemplo da 018/2002, que orienta sobre o exercício profissional e proíbe a conivência com culturas institucionais discriminatórias, não colaboração com serviços que contribuam com a naturalização da discriminação racial ou étnica (CFP, 2002). Alessandro Santos ao se debruçar sobre os marcos regulatórios que promoveram direta ou indiretamente igualdade racial no Brasil, e afetaram a psicologia, destaca os seguintes documentos:  Artigo 2º da Declaração dos Direitos Humanos de 1948;

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 Artigos 5º e 7º da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 da ONU;  Artigo 3º (incisos IV e VIII), Artigo 5º (inciso XLII) e Artigo 215º (parágrafo 1º) da Constituição de 1988;  A Lei CAÓ, de 1989;  Artigo 140º (parágrafo 3º) do Código Penal, revisto em 1997;  Artigo 26º-A (parágrafos 1º e 2º) e Artigo 79º-B da Lei 10.639 de 2003 que institui o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas;  Artigo 1º (parágrafo 1º) e Artigo 2º (parágrafo 1º) da Lei 12.288 de 2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial;  Artigos 1º a 8º da Lei 12.711 de 2012 que institui as cotas raciais no ensino público superior;  A Resolução 18º criada em 2002 pelo Conselho Federal de Psicologia sobre atuação do psicólogo em relação ao preconceito e à discriminação racial. (SANTOS et. al. 2015. P, 19)

Paralelo a essas mudanças políticas e sociais desde a primeira metade do século XX até o final desse período, diversas/os intelectuais e pesquisadoras/es da Psicologia produziram alguns estudos e investigações sobre as relações raciais, negritude, branquitude, processos identitários e culturais. Muitos propiciaram o deslocamento do sujeito negro enquanto objeto de pesquisa, trouxeram para o campo das análises científicas os sujeitos não negros e constituíram o campo das relações raciais na psicologia. Autoras/es como Virgínia Bicudo, Aniela Meyer Ginsberg, Dante Moreira Leite, Neusa Santos, Maria Aparecida Bento, Iray Carone, contribuíram para desobjetificar o sujeito negro, produzir reflexões críticas acerca do sujeito branco e dos estudos sobre branquitude. Essas/es intelectuais denunciaram uma pseudo-realidade harmoniosa que foi construída no Brasil pós-colonial e pós-abolição, onde as relações raciais, religiosas, políticas e sociais eram propagadas como simétricas. O mito da convivência harmoniosa entre as raças foi uma construção bem recebida, pois no período em que ela foi apresentada como projeto de identidade nacional, atendeu à necessidade de uma ideologia que unificasse e incluísse todos no esforço de integração nacional necessária a industrialização e desenvolvimento. Importante destacar que o ônus do racismo segue as qualidades da singularidade brasileira e se transforma, de forma acrítica, em defeitos que impedem o avanço do povo, que muda seu ideal identitário de branco europeu para branco, protestante estadunidense (JESSÉ SOUZA, 2011). A democracia racial se transformou numa fachada e condição essencial para silenciar todo e qualquer conflito. Por isso o racismo brasileiro é tão nocivo, pois não aceita a crítica e a discussão sobre o mesmo como base dos problemas sociais. Todo e qualquer conflito deve ser contornado e silenciado,

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desde que cada um cumpra o seu papel social. Esse pensamento interfere nas lutas sociais, na autopercepção como sujeito de direitos na política, nas relações de poder e afetivas. Portanto, impregna todo o tecido e instâncias sociais ao compartilhar discursos, narrativas e ideologias que essencializam questões conjunturais, mantém a raça como reprodutora de hierarquia e estabelece, por fim, esse sistema de valorização do branco como mérito desse e incompetência dos demais. As inúmeras desigualdades naturalizadas, nas mais diversas ordens, engendraram uma forma de percepção e concepção das relações interpessoais, que implantou e estruturou um modus operandis de organização e funcionamento em diversas instituições (educação, trabalho, segurança pública, saúde etc.), contaminando também as profissões. Atualmente a intolerância religiosa e suas mazelas, aqui circunscrita como expressão do racismo, também vem se configurando como tema de preocupação da Psicologia, a exemplo da categorização de graus de discriminação (MATA, 2009) e as estratégias de copping utilizadas por líderes do Candomblé frente aos ataques neopentecostais (MATA FILHO, 2009). As consequências e efeitos da intolerância incluem aspectos que se expressam como desprezo e desrespeito, evoluindo para formas mais agressivas e violadoras como a segregação física e social e os ataques às pessoas e às propriedades e símbolos que representam as religiões profanadas. Apesar dos diversos ataques e processos discriminatórios que as religiões de matrizes africanas sofrem ao longo do tempo, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra reconhece esses espaços como potenciais núcleos de promoção de saúde (BRASIL, 2009), e que estes têm relevante contribuição por conta de sua visão de mundo e suas históricas aproximações com a temática da saúde e cuidado (CELSON MONTEIRO, 2016). Todavia, nem sempre os aspectos do contexto cultural que a pessoa está inserida são levados em consideração na análise da condição subjetiva e objetiva da vida e do viver. São recorrentes as reclamações de pessoas que foram atendidas por profissionais em serviços públicos ou privados, em que aspectos culturais e identitários são relegados. “Tais situações mostram que racismo e relações raciais são temas espinhosos para a sociedade brasileira e ainda pouco discutidos, seja no âmbito da escolarização formal ou do ensino superior” afirmaram Alessandro Santos e Lia Schucman (2015, p. 136), o que desvela uma formação acadêmica deficitária nesses aspectos. Ademais. Maria Aubert (2016) pondera que o mais importante, pensando nossa atuação científica e profissional, é acolher os conteúdos subjetivos da vivência religiosa e entender os sentidos construídos da religiosidade na vida das pessoas.

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CONSIDERAÇÕES A prática da intolerância religiosa por se configurar como um conflito social que interfere nas relações interpessoais e intergrupais com agravos no processo identitário das pessoas e coletividades causa prejuízos às pessoas discriminadas (GOMES, 2016). Produz danos simbólicos e materiais para os discriminados, ao mesmo tempo em que embrutece, dessensibiliza e promove o autoritarismo nos discriminadores e seu grupo de pertença. A não consideração dessas questões terminam por gerar um desserviço às pessoas que vão em busca de cuidado, pois se percebem desassistidas, e em muitos casos, abandonam o acompanhamento profissional. Do ponto de vista da atuação clínica, os fatores ligados ao pertencimento identitário e cultural são essenciais na constituição da pessoa, contendo importantes elementos a potencializar no processo psicoterapêutico (ROSE MURAKAMI; CLAUDINEI CAMPOS, 2012). Todavia, as/os profissionais precisam ser estimulados a se debruçar sobre esses aspectos históricos e sociais que fazem parte da complexidade humana, tão importantes quanto componentes biológicos e individuais, além de ampliar a sua formação estabelecendo laços e parcerias com outras áreas do saber como Sociologia e Antropologia, percussoras nas temáticas e cruciais para uma apreensão crítica da realidade social. Os reflexos da experiência do racismo e da intolerância religiosa provocam consequências de ordem material e simbólica. E se houve pouco avanço nas questões ligadas à saúde, educação, infraestrutura, segurança, entre outros, avançamos timidamente nos estudos para a compreensão, mitigação e resolução de problemas oriundos das relações raciais assimétricas e conturbadas. O Brasil adotou a via legal para combater as desigualdades raciais (SETH RACUSEN, 1996) e a ênfase da problemática da discriminação racial e da intolerância religiosa recaiu na judicialização. Do ponto de vista de uma estratégia coletiva e que busca coibir ou desestimular o comportamento racista de qualquer cidadão, ao estabelecer sanções de restrição de liberdade e desembolso pecuniário, são importantíssimas, pois se aplicada visa extinguir o comportamento discriminatório. Todavia, ela não repara danos subjetivos, imediatos e coletivos da convivência com o racismo (ROBERT CARTER, 2007), o que provoca a necessidade de caminhar horizontalmente com outras instâncias do saber tais como a psicologia, a sociologia, antropologia, a assistência social e pedagogia, uma vez que questões complexas requerem um olhar multi e interdisciplinar, que tem foco na prevenção da expressão do fenômeno. A judicialização pura e simples não dá conta de reparar as perdas sociais, não possui tecnologias para a educação multicultural voltada para o agente da discriminação, o discriminado e sociedade como um todo, não dá conta das especificidades identitárias e de reconhecimento, além de não 190


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suprime a dor, o estresse, a desesperança e a perda de confiança em si mesmo e nos outros. Enfim, situações que precisam ser resolvidas de forma enérgica e horizontal para surtir efeitos encorajadores que mudem a face das relações raciais brutais, autoritárias e segregadoras, ou seja, desumanas. Se num plano concreto a relação entre ação e consequência é direta, no plano psicológico a relação não apresenta linearidade. Na verdade, há variáveis que tem maior ou menor relevância que apresentam reações diversas, dando singularidade a cada experiência (CARTER, 2007; ROBERT CARTER; JANET HELMS, 2009; VALDISIA MATA, 2016). O resultado pode ser devastador e, não há condenação ou ação pecuniária que devolva a percepção de dignidade e segurança às vítimas dessa inaceitável violência. Por isso, aspectos como a experiência em si, as concepções e formas de sociabilidade, os sentimentos, a identidade social e de grupo, a força das estratégias de enfrentamento, a ressignificação da experiência são essenciais no trabalho com vítimas de racismo e intolerância religiosa, figurando como importantes mecanismos para nossa atuação profissional. Uma clínica alinhada aos direitos e a integralidade da pessoa humana leva em conta o que o indivíduo traz e com isso sua história, narrativas, um modo de ser e interpretar a realidade, construídos no processo de socialização. O movimento de olhar para trás para compreender o presente e ampliar a visão de futuro é fundamental numa terapêutica que se proponha a trabalhar a experiência racial traumática direta ou indireta e histórica (MATA; SANTOS, 2015). A organização dos fatores desencadeados pode desorganizar a pessoa de forma bastante expressiva com prejuízos concretos à sua saúde (CARTER, 2007; MATA; CATULA PELISOLI, 2015). Essa atenção do profissional pode gerar encaminhamentos para a promoção de denúncias e atendimentos especializados, bem como proporcionar um atendimento que leve em conta à dor promovida pela discriminação racial ou religiosa sofrida ou presenciada. As/os psicólogas/os e outros profissionais que cuidam de seres humanos alinhados a sua realidade sociocultural é necessário romper com o pacto da branquitude (BENTO, 2012), naturalizado em nossas práticas, quando se enxerga o padrão branco de ser, produzir cultura e estar no mundo, e estar atento à promoção de um cuidado descolado de padrões eleitos por uma minoria e com base nos seus valores que ignora, despersonaliza e desqualifica as pessoas que não se enquadram nesses padrões. É urgente romper o ciclo vicioso do racismo denunciado por Hélio Santos (1994), para que situações verificadas por Mata (2009) e Gomes (2016) deixem de ser regra e passem a ser cada vez mais raros na convivência social. O racismo e intolerância religiosa desumanizam, gera ódio, opressão e desigualdade com ônus para toda a sociedade. Em síntese um mal que

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necessita de união de todos os segmentos populacionais e instituições para ser eliminado definitivamente das nossas relações. REFERÊNCIAS ANDRÉ, Maria, C. O ser negro - A construção da subjetividade em afrobrasileiros, Brasília: LGE Editora, 2008. ANTUNES, Mitsuko A. M. A Psicologia no Brasil: um ensaio sobre suas contradições. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 32, n. spe, p. 4465, 2012. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932012000500005&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Mar. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000500005. AMENDÔLA, Márcia F. História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia v. 14, n. 2. 2014. ARAÚJO, Maurício A. Do Combate ao Racismo à Afirmação da Alteridade Negra: As religiões de Matriz Africana e a Luta por Reconhecimento Jurídico – Repesando a Tolerância e a Liberdade Religiosa em uma Sociedade Multicultural. (Dissertação de Mestrado em Direito). Universidade de Brasília – UNB. 2007. Recuperado de http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7325/3/2007_MauricioAzevedodeArauj o.pdf. AUBERT, Maria I. Psicologia e Religião: Como Acolher a Religiosidade e a Espiritualidade na Clínica Psicológica. In CRP – SP. Psicologia, Laicidade e as Relações com a Religião e a Espiritualidade. Laicidade, Religião, Direitos Humanos e Políticas Públicas – Volume 1 / Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. 2016. São Paulo: CRP – SP BAHIA. Lei nº 13.182. Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, 2014. BRASIL, Ministério da Saúde. PORTARIA Nº 992, Brasília. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html. 2009. Acesso em 2 de Julho 2015. BENTO, Maria, A. Branqueamento e branquitude no Brasil. In I. Carone & M.A. Bento. (Orgs.) Psicologia Social do Racismo - Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. CARTER, Robert. T. Racism and Psychological and emotional injury: recognizing and assessing race-based traumatic stress. The Counseling Psychologist, 35, 13-105. 2007. Sage Publications. DOI: 101177/0011000006292033.

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CAPÍTULO

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RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

Ana Raquel Silva Santos Alves Jéssica Francielle Resende de Jesus

A

s relações Interétnicas no Brasil, que surgiram desde o contato dos exploradores europeus com os índios e posteriormente com a chegada dos negros escravizados, camadas mais afetadas pela exploração e colonização, são pouco faladas para fundamentar todas as desigualdades, para a compreensão das condições de privilégio e racismo. Estes contatos interpessoais se refletem nas condições de poder que um grupo étnico impôs sobre os índios e negros no Brasil na era escravocrata. De acordo com Rossoni (2002, p. 2): O homem contemporâneo toma parte de uma realidade social múltipla, e as ciências que lidam, de alguma forma, com as questões culturais, nesse contexto, vêem-se diante de verdades questionadas,

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de paradigmas indefinidos, de contornos e comportamentos sociais imprecisos. É certo que o universo humano sempre revelou em plenitude sua pluralidade, no entanto, hoje, questões historicamente minimizadas começam a ganhar um desenho mais tolerante na circunspecção científica.

Assim, o convívio entre os colonizadores e os povos nativos foram se definindo em diferentes contextos sociopolíticos, enfatizando-se numa concentração econômica dos recursos e a tentativa de uniformizar a característica étnica nacional. Dessa forma, Athias (2005, p. 02) afirma que: Os estudos sobre a identidade étnica têm sido um tema importante nas ciências sociais, pois trata especificamente da relação indivíduo/sociedade. No entanto, o pensamento social sobre as questões étnicas e raciais compartilhou uma perspectiva eurocêntrica resultado de um “evolucionismo social” onde a história é concebida a partir de uma linearidade sem levar em consideração os diversos contextos políticos e condições sociais na relação que se estabelece entre indivíduo e sociedade.

Destarte, o multiculturalismo, com os conflitos entre identidade e alteridade culturais, presentes na formação de miscigenação que, historicamente, constrói a cultura brasileira. Logo, o propósito deste artigo é o de, sistematizar a experiência das atividades do Grupo de Discussão (GD): Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnico-racial como metodologia de educação não-formal, utilizando os conceitos de educação não formal para compreender este espaço de troca e aprendizagem que tem tido importância particular dentre as atividades construídas pelo II SEMPRI, em Aracaju-SE.

RELAÇÕES INTERÉTNICAS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA POLÍTICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Mediante as questões sociais que pulularam durante séculos a política de Estado interventivo pós-crise de 1929, evidenciou a importância da criação de políticas públicas. No Brasil, o olhar para as expressões sociais foram tomar forma e notoriedade em 2004 com a regulamentação do Sistema Único de Assistência Social, a qual estabeleceu a Proteção Social, dividindo-a em básica, especial e de alta complexidade. Sendo assim, foram criados os Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Centro de Referência Especial de Assistência Social (CREAS). Com estes órgãos, o trabalho uno da equipe multiprofissional, podese trabalhar com a máxima aproximação com o usuário e o seu contexto social. Nesse espaço de trabalho, percebe-se como a relação de etnias diferentes

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refletem tanto nas condições de privilégio e de subestimação de outras por parte daqueles que se enquadram em padrões eurocêntricos. As ações desenvolvidas no âmbito da assistência social, visa a garantia dos direitos e desenvolvimento humano, devem afiançar seguranças socioassistenciais aos usuários expressas: nas seguranças de sobrevivência ou de rendimento, autonomia, segurança de convívio ou vivência familiar, segurança de acolhida. Tais seguranças visam fortalecimento de vínculos, autonomia, protagonismo, participação, proteção as famílias, indivíduos e comunidades. A efetivação dessas ações está associada a outras atividades pertinentes as demais políticas públicas que de forma articuladas garantam o direito aos cidadãos (BRASIL, 2009). Nesse diapasão, o sistema único da assistência social (SUAS) considerando os níveis organização considerando os níveis de proteção social: proteção social básica (PSB) e proteção básica especial (PSE). Na PSB – os programas e projetos são desenvolvidos no intuito de prevenção as situações de vulnerabilidade e riscos pessoais e sociais. Nos CRAS - Centros de referências da assistência social desenvolve uma rede de proteção social básica de seu território, oferta serviço de proteção social e atendimento integral a família – PAIF e outros serviços. Ou seja, o indivíduo negro pode ser inserido nos grupos de convivência onde ele possa interagir e participar de eventos culturais, sociais, exigir seus benefícios socioassistenciais e atividades comunitárias na luta pelos seus direitos de uma sociedade igualitária. Já na proteção social especial PSE organiza e oferta serviços de cunho especializado, no intuito de reconstruir as violações de direitos e situações de risco pessoal e social. Existem alguns grupos vulneráveis a essas violações como idosos, pessoas com deficiência, populações de LGBT, mulheres e suas famílias, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. No CREAS - serviços especializados da assistência social é um equipamento de média complexidade no intuito ofertar serviços de proteção especial, na rede de atendimento no âmbito da assistência social. O indivíduo negro encontra-se vulnerável a essas situações mencionadas anteriormente, fatores de discriminações e preconceitos vivenciados. Embora o racismo possa trazer um sofrimento psíquico, esses usuários procuram os órgãos da assistência na luta de seus direitos muitas vezes negligenciados por uma dívida histórica, afetando a sua saúde mental, isto é, sua identidade e a autoestima. O sujeito negro não possui referenciais identitários valorizados na nossa sociedade resta ao grupo subalterno se identificar com a sua “inferioridade natural”, ou seja, Complexo de Desprezo. As consequências somáticas: produções sádicas, persecutórias, delirantes, depressão, ansiedade, autodepreciação, alcoolismo, síndrome do pânico.

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Perante esse quadro, muitas vezes os usuários são encaminhados para unidades de saúde mental e o profissional não possui um manejo adequado e determinada experiência para se diagnosticar que essas manifestações podem advir da discriminação racial. Os relatos de mulheres negras e não negras que utilizam equipamento da assistência social revelaram as dinâmicas já demonstradas em outros estudos sobre a violência doméstica: machismo, violências física e sexual; conflitos intrafamiliares, questões socioeconômicas, disputas patrimoniais. As restrições para o acesso e uma efetiva articulação entre os serviços públicos (CARNEIRO, 2016). A importância deste equipamento no fortalecimento da rede de movimentos culturais e sociais para a inclusão em serviços públicos de acesso à cidadania ratificado no estudo de Silva, Hüning e Mesquita (2012) relata a relação entre culturas e políticas na construção da Assistência Social no Estado do Alagoas, como estratégia de enfrentamento às diversas situações de vulnerabilidade. Preliminarmente, o Psicólogo do SUAS precisa romper com alguns imaginários ainda dominantes de atendimento clínico de consultório, atuando com o assistente social e educadores sendo técnicos de referência na sua territorialidade diante dos atendimentos psicossociais, visitas domiciliares onde o indivíduo e a demanda esteja. A superação do racismo precisa ser comunitária. Logo, se faz necessário que profissionais de assistência social realizem um trabalho que não subsidie a execução de um projeto burguês de segregação, uma visão transformadora da cultura do racismo. A prática diária como profissionais da assistência a esse grupo presente nos espaços da assistência e como operadores do direito fazendo-o exercitar a plena cidadania e responder pelas ações que objetivam o empoderamento da população negra. Dentre as atividades engendradas nesses equipamentos como encaminhar e acompanhar toda e qualquer denúncia de discriminação racial ou de violência que tenha por fundamento a intolerância racial; constatar e revelar ações racistas constrangedoras; criar espaços coletivos para construir ações conjuntas; dialogar com a experiência coletiva para o reconhecimento de saberes; atendimento e avaliação psicossocial e jurídico para os casos; Publicizar o racismo em espaços coletivos com relatos com profissionais e usuários na Promoção dos debates, palestras, fóruns e oficinas, produção e distribuição dos materiais informativos, com o escopo de sensibilização social da importância da garantia de direitos, racismo e à intolerância religiosa e promoção da igualdade racial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O propósito do texto foi sistematizar a experiência da atividades do Grupo de Discussão (GD): Psicologia, Políticas Públicas e Promoção da Igualdade étnico-racial como metodologia de educação não-formal, utilizando os conceitos de educação não formal para compreender este espaço de troca e aprendizagem que tem tido importância particular dentre as atividades construídas pelo II SEMPRI, em Aracaju-SE. Percebemos que o crescimento da discriminação nas relações interétnicas, num contexto de acirramento de desigualdades sociais e a luta dos direitos da população negra é um fenômeno global. É fundamental que as administrações públicas não tenham soluções prontas, mas que procurem a sociedade para, através do diálogo, encontrá-las. Buscamos apresentar como os processos de apropriação dos conceitos relacionados à igualdade étnico-racial se constroem no espaço da política da assistência social, perpassado a partir de espaços que valorizam a troca de experiências individuais, as falas das participantes e, também, o saber sistematizado relacionado a estas questões. Empreender o diálogo é desafiador, pois ocorre transformação. A psicologia social e serviço social na abrangência da assistência social atuam por ações coletivas dos profissionais na participação dos usuários e profissionais nas vivências, grupos, projetos onde pudemos perceber o potencial deste espaço como espaço de educação não-formal e de construção de cidadania.

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PARTE 2 REDAÇÕES E TRABALHOS PREMIADOS NO SEMPRI I




CAPÍTULO

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PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE MANIFESTAÇÕES VELADAS

Norton Cruz Machado Iza Fontes Carvalho

M

enos oportunidade de educação e emprego, marginalização, distanciamento social em relação a população branca, lugar segregado na sociedade, racismo etc. Esta é a realidade da sociedade pós Lei Áurea ou um recorte não muito distante do século XXI? De acordo com o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, 51% dos brasileiros são pretos ou pardos e esta pequena diferença em relação às demais etnias ficam apenas nesses números. Ainda há um abismo entre as representações dos negros e dos brancos na sociedade, sustentadas por um discurso motivado pelo estereótipo, preconceito e racismo. Passaram-se 127 anos da promulgação da Lei Áurea que garantiu a liberdade aos escravos negros e, mesmo assim, é possível perceber que não foi o sancionamento dessa lei que garantiu um acesso igual aos direitos dessas

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PRECONCEITO E RACISMO PÓS-ABOLIÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E DISCUSSÃO DE MANIFESTAÇÕES VELADAS

populações, mesmo que assegurado constitucionalmente. O pensamento e as opiniões são frutos de uma construção social que massifica e homogeneíza a população que reproduz esse padrão de comportamento preconceituoso e que não universaliza o tratamento igual independentemente da cor da pele. Ou seja, o pensamento é socialmente construído e “ninguém nasce odiando o outro pela sua cor”, como disse Nelson Mandela. Ao negro, nunca foi lhe dada a escolha de sofrer esse tipo de discriminação ou não, ao contrário ele tem que conviver com isso até hoje, diferentemente da população branca. Diversos estudos realizados com o objetivo de traçar as querelas entre as populações etnicamente diferentes apontam: a população negra é vítima de agressão em maior proporção que a população branca – seja homem ou mulher; sete em cada dez casas que recebem o benefício do Bolsa Família são chefiadas por negros, segundo dados do estudo “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); o desemprego atinge 5,3% dos homens brancos, entre os negros, o índice chega a 6,6%; dois terços das casas presentes nas regiões de favela são chefiadas por homens ou mulheres negros; entre as mulheres brancas, o desemprego é de 9,2%, enquanto entre as mulheres negras, ultrapassa os 12%; a taxa de analfabetismo entre os negros (11,5%) é mais de duas vezes maior que entre os brancos (5,2%) e isso reflete no fato de a renda dos negros ser 40% menor que a dos brancos. Os desafios para mudar esta realidade perpassam as décadas e resistem até a época atual. Historicamente a trajetória acadêmica da população negra enfrentou problemas no acesso à educação superior, até que o Governo Federal implementou o programa de ações afirmativas que traçou estratégias para mudar essa realidade. Em um levantamento realizado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) divulgado este ano, os negros representam cerca de 30% dos estudantes de pós-graduação do País. Esta realidade precisa ser aumentada para que eles garantam seu espaço e sua capacitação para a transformação de uma realidade muito diferente em comparação a um outro contingente analfabeto dessa mesma etnia. Os anos passaram e a organização social mudou em vários aspectos. No entanto, concepções racistas ainda permeiam a sociedade como pode-se observar em ditados populares como: “O negro quando não erra na entrada, erra na saída”. Tal frase amplamente dita pela população em geral, carrega o gérmen da incapacidade de acerto do negro na reprodução de um preconceito dito velado e que não abre margem para uma reflexão crítica. Esse tipo de racismo sutil foi fruto de uma pesquisa realizada pela Universidade do Texas em 1930 e reaplicada em outros países. No contexto, crianças com idade entre 4 e 6 anos são apresentadas a duas bonecas: uma branca e uma negra. Os pesquisadores perguntaram às crianças com qual das bonecas elas se parecem e a resposta confirmou que tanto as crianças brancas

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Norton Cruz Machado Iza Fontes Carvalho

como as negras se enxergavam como a boneca branca de olhos azuis, tida como padrão de beleza. Em outras palavras, desde muito cedo a criança negra já não identifica o seu espaço na sociedade e é ensinada que o que deve ser admirado é branco, tem os cabelos lisos, loiros e os olhos claros. O diferente é taxado como estranho e, muitas vezes, feio e é nesse padrão que a criança negra se enxerga. A mulher negra, principalmente, desde criança é ensinada a controlar cabelo e os cachos volumosos. Até que essa criança cresce e reproduz os conceitos que ela mesma vivencia. Esses costumes trazem dificuldades para que ela assuma a sua autenticidade crespa e encaracolada. Desde muito nova a jovem negra é levada aos salões de beleza para alisar os cabelos, sentir-se mais bonita e parte do padrão. Segundo Maria Aparecida Bento, o branqueamento é um processo que se refere à construção de uma identidade branca pela pessoa negra, que incorpora um conjunto de padrões de beleza, de atitudes e de valores visando a assemelhar-se a um modelo branco e a construir uma identidade étnico-racial positiva (Bento, 2002). Ou seja, os negros se enxergam com as características dos brancos pelo fato de que o padrão de beleza hegemônico é o branco. Isso não quer dizer que o negro rejeita sua raça, mas a ele não é dada a oportunidade de identificar-se positivamente com ela. Mesmo sendo um quarto da população economicamente ativa do país e o setor de cosméticos e beleza é um dos que mais crescem, a mulher negra também encontra dificuldades neste espaço. Dentre os diversos tipos de maquiagem, há cerca de sete tons para peles brancas e apenas três para peles negras. É um tipo de discriminação aberta e que não condiz com a variedade de cores do País. Não se pode afirmar que isso acontece de maneira intencional ou faz parte do conjunto de características a que o ser humano é treinado socialmente e que diferencia as etnias em escala de valor. Durante o período escravocrata, o pensamento predominante era o de que a mulher branca, heterossexual, cisgênera era a ideal para se casar. Já a mulher negra, era a ideal para o trabalho. Sabe-se também que a escolha de um(a) parceiro(a) sexual está motivada, entre outros aspectos, a: renda, cor ou raça e educação, por exemplo. Isso serve para concretizar que esta pessoa está na mesma situação e posição social que o(a) pretendente. Tal constructo ainda pode ser visto no quantitativo das uniões interétnicas atuais já que aproximadamente 70% dos casamentos que acontecem no País são entre pessoas de mesma cor e 53% das mulheres solteiras são negras, segundo o IBGE. Em uma de suas obras, Saffioti afirma: “(...) Há um contingente de mulheres negras que não têm com quem se casar. Como os negros branqueados pelo dinheiro se casaram e ainda se casam com brancas, em função de uma equalização das discriminações sofridas, de um lado pelos negros, de outro, pelas mulheres brancas, em função de seu sexo. Não há como estabelecer

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tal igualdade entre mulheres negras e homens brancos, pois estes são ‘superiores’ pela cor de sua pele e pela textura de seus cabelos, sendo ‘superiores’ também em razão de seu sexo. Na ordem patriarcal de gênero, o branco encontra sua segunda vantagem, caso seja rico encontra sua terceira vantagem, o que mostra que o poder é macho, branco e, de preferência, heterossexual (...).” (SAFFIOTI, 2004, p.31)

A mulher negra se concentra na base dessa pirâmide social de e as que se relacionam com os brancos também enfrentam o preconceito dessa miscigenação. Caso ela seja homossexual, há um acréscimo nas discriminações lidadas. Contudo, há uma ampliação do debate sobre os espaços que durante anos foram reservados, quase que exclusivamente, aos negros na mais ampla produção televisiva: a novela. Nesta, o negro tem seu destaque nas cozinhas, como empregada doméstica, porteiro e, em novelas de época, como escravos, entre outros, mas dificilmente se encontraria um protagonista negro no horário nobre ou na apresentação de um telejornal sem que ele experiencie comentários racistas tais como aconteceram com a jornalista Maju Coutinho em um episódio recente. Enquanto isso, a população branca se viu representada nos mais diversos aspectos e espaços da vida cotidiana durante décadas sem ter refletido sobre essa hegemonia. Tornou-se comuns comentários como: “não sou racista, inclusive tenho até amigos que são negros. Eu recebo preto para almoçar na minha casa”. Estas sentenças se dizem parte de um discurso inclusivo e não como mais uma manifestação comparativa e preconceituosa. A grande população pode a notar a presença do negro e a influência de rica cultura no cotidiano popular de maneira geral através do axé. Foi com esse ritmo musical que muitas pessoas ouviram uma parte da mitologia egípcia que deu origem à humanidade e relaciona com o surgimento do Pelourinho, em “Faraó divindade do Egito” do grupo Olodum. Além disso, a banda “As meninas” na música “Xibom Bombom” realiza uma importante observação sobre as camadas sociais e sua ascensão ao afirmar que “o rico fica cada vez mais rico e o pobre fica cada vez mais pobre” em uma tentativa de provocar a reflexão enquanto todos se embalavam nesse ritmo musical. Portanto, a sociedade em geral precisa desconstruir o pensamento de que a cor da pele diferencia os seres humanos de modo a acreditar na superioridade de uma raça sobre a outra em quaisquer aspectos da vida cotidiana. Essa diferenciação deve servir apenas para manutenção de uma sociedade heterogênea e plural. As oportunidades de desenvolvimento precisam ser iguais para que de fato haja uma equidade entre os povos. Esta mudança no pensamento deve acontecer através do cotidiano onde haja a reflexão e a observação crítica dos espaços onde negros e brancos dividem de maneira muitas vezes diferentes. É chegado o momento em que urge a quebra

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de preconceitos e estereótipos que rotulam, segregam e diferenciam negros de brancos. Todos precisam ser ensinados desde cedo que o que mais importa é a compreensão de que as pessoas existem além da cor da pele. Há uma necessidade de se questionar a associação das características de identidade individuais e de pertencimento ao grupo racial negro como forma de produção de racismo. REFERÊNCIAS BENTO, Maria Aparecida Silva et al (Org.). Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013. BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE. . Censo IBGE 2010. 2010. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em: 03 set. 2015. BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílios: Síntese de Indicadores. 2013. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94414.pdf>. Acesso em: 04 out. 2015. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na história do Brasil: mito e realidade. Editora Atica, 1994. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. Fundação Perseu Abramo, 2004.

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CAPÍTULO

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O RACISMO QUE O BRASIL DEIXA NAS ENTRELINHAS

Rita de Cassia de Jesus Oliveira

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alar sobre essa temática é lembrar que mesmo estando no século XXI, o preconceito racial ainda é estarrecedor. Nesta perspectiva, este texto tem como objetivo problematizar as questões relacionadas ao preconceito racial disseminado no Brasil.

Uma das formas de preconceito é a atribuição de estereótipos ligados à forma como se vê o negro, as características fenotípicas como cor de pele servindo como definidor da conduta. Pensar o indivíduo como um marginal porque é negro é o reducionismo de toda a subjetividade, relacionando a negritude a aspectos negativos, como se a cor da pele determinasse o caráter do ser humano. Os negros são incluídos a categorias subalternas por pensamentos ultrapassados e enraizados na cabeça das pessoas de forma consciente e

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inconsciente. Os brancos continuam reprimindo os negros, restringindo seu lugar como se a eles coubessem só o espaço à margem. Foi lhes dada em outro período a “liberdade”, mas não oportunidade de se inserir na sociedade de forma igualitária. Em decorrência disso, há a criação de uma imagem: de vagabundo, desocupado, criminoso. Muitos são assim visualizados tanto por grande parte da população, quando veem um negro andando pela rua, quanto pela tratando-o como criminoso. Procuram na negritude a marca da criminalidade que não existe, a desigualdade é herança de um passado escravocrata. “[...] quem segurava com força a chibata agora veste farda engatilha a macaca e escolhe o primeiro negro pra passar na revista [...] todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (TERRA, 2004, p.36). O que há é uma disparidade entre um país com grande diversidade racial, cultural, humana, onde as pessoas têm necessidades diferentes e uma sociedade que diz dá direitos iguais, mas não o faz. O branco quando é encontrando na rua pela polícia está passeando, já o negro está vadiando. O que diferencia um do outro? Toda uma construção histórica que escravizou o negro, o tirou de seu país de origem, matou seus descendentes, os torturou, e as medidas tomadas para minimizar tudo que lhes foi tirado, infelizmente ainda não são satisfatórias, pois a falta de respeito com a cultura africana persiste até hoje, as religiões afro-brasileiras são constante alvo do preconceito deixando bem visível como o racismo não deixou de existir, diferente do discurso pregado que o Brasil é um país mestiço onde não existe racismo, deixando evidente o mito da democracia racial, pois essa desigualdade é notável mesmo sendo o preconceito mascarado de sutileza. Falar de preconceito racial é difícil por que quem não é preconceituoso? Até os vícios de linguagem são: mercado negro, ovelha negra da família, nuvem negra, inveja branca, entre outros exemplos. As coisas ruins são ligadas à identidade negra estigmatizando-a. É fundamental falar do poder do discurso quando se atribui palavras pejorativas à descendência negra, mesmo que por hábito de usar essas frases, que foram introduzidas no vocabulário brasileiro, o indivíduo já está diminuindo e realizando um preconceito sutil que passa despercebido numa sociedade onde esses dizeres já são comuns. As diferenças existem, no entanto, elas não podem ser usadas para hierarquizar: o branco se sobrepor ao negro apenas por conta da sua cor de pele, ambos existem e há a necessidade do respeito, lutar por uma sociedade mais igualitária ao menos em questões raciais, porque já não é aceitável que a cor de pele seja um aspecto que separa, seleciona, divide. Essa batalha começa com atitudes simples, primeiramente policiando-se para não reproduzir piadas que denigram a imagem do outro, mitigar adjetivos ruins que fazem referência à população negra, por fim, ter mais empatia. As pessoas quando vão identificar um negro no meio de brancos usam como referência sua cor de pele, o que não acontece com os brancos, logo, fica o imaginário que branco não tem raça como

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se o branco fosse normativo. Os discursos estão sempre voltados para o preconceito, porém, não se pensa quem é esse que prática o preconceito, o branco sai ileso dessa história. Ainda se tem o imaginário de que o Brasil é um país mestiço e que o preconceito aqui não existe, todos são uma mistura de diferentes etnias. “[...] a elite dominante argumenta confiantemente que o Brasil estava livre do racismo, porque estava formando uma única raça por intermédio da miscigenação. Para essa elite, a miscigenação possibilitaria o branqueamento do Brasil”. (FILHO,2005, p.247) O negro ainda é taxado, tem dificuldade de se inserir nos espaços e instâncias de uma sociedade. Na universidade sofre preconceito, encontra dificuldade para arrumar emprego, ele ainda recebe papéis secundários nos programas televisivos, além disso a maior parte da população carcerária do Brasil é negra, eles ainda estão exilados nas favelas. Segundo Munanga (2001), negro sofre preconceito duas vezes por ser negro e por ser pobre. A ideologia da democracia racial é facilmente identificada como mito ao se deparar com a realidade de um país onde se tem a segunda maior população negra fora da África, mas quando se entra nas universidades são poucos os alunos negros por uma infinidade de fatores como por exemplo a desigualdade econômica. Nas novelas é raridade ver uma protagonista negra, falta representatividade, os produtos de beleza para a população negra ainda são poucos e começaram a surgir porque a indústria viu um potencial consumidor. É necessário se atentar para essas questões cobrar por mais igualdade. É difícil classificar um indivíduo racialmente, mesmo sendo contra classificação em um país como o Brasil onde se diz que a população é mestiça, o moreno mesmo tendo uma cor de pele mais clara não deixa de ser negro, vai sempre ter alguém que vai vê-lo como negro, ou negar suas características; essa questão de identidade racial é complexa porque existem pessoas que se identificam com categorias diferentes das que pertencem, mas não é a forma como o próprio indivíduo se identifica, e sim como a sociedade o classifica e isso vai definir se ele terá que enfrentar o preconceito em algum momento na vida. A diversidade de povos que foram introduzidos no país é inegável, em sua grande maioria negros. A mistura dessas diferentes etnias deu origem a essa diversidade, assim é fundamental reconhecer a importância dessa integração de outros povos para a construção da cultura brasileira, todos contribuíram e merecem reconhecimento. Segundo Arbex (2013), os mesmos homens que abriram as estradas do progresso hoje são impedidos de andar nela. A mistura dos diferentes povos levou a elite dominante a criar categorias intermediárias como moreno, amarelo, pardo. “[...] uma classificação com várias ou mesmo três categorias raciais seria um artifício para dividir os não brancos” (FILHO, 2005, p.45-46). Assim, quanto mais a pessoa se aproxima das

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características do branco ela tem mais privilégios, exemplo são as atrizes televisivas que geralmente tem traços finos, dos seus cabelos já foram retirados os cachos para que ela se aproxime o máximo possível do padrão de beleza estabelecido. É visível a desvalorização das características negras. Cabe à psicologia se atentar para essas questões problematizando e promovendo discussões para que as pessoas reflitam e percebam o quanto as ideologias racistas estão presas no imaginário da população influenciando no comportamento, por isso é fundamental ter consciência dos atos praticados e se responsabilizar. Essas práticas que estigmatizam precisam de uma mudança, e o primeiro passo é o sujeito analisar sua própria conduta, perceber os vícios de linguagem que reproduzem preconceito e se reeducar, como também procurar conhecimento sobre esse assunto porque o racismo não é só problema dos outros, é um problema de todos, uma vez que atinge conhecidos, parentes e estranhos que não merecem passar por essa desumanidade. É papel do psicólogo não se omitir diante dessas questões e procurar defender os direitos humanos, buscar novos conhecimentos a respeito desse tema, com o objetivo de ter mecanismos para lidar com as práticas que ferem a integridade dos indivíduos; o psicólogo tem que ter como objetivo o bem-estar das pessoas sem fazer distinção de raça, gênero e classe social porque a psicologia não pode ser apenas voltada para as camadas sociais mais favorecidas como foi em outras épocas. É necessário incentivar as pesquisas e debates sobre esse tema de relações raciais, pois o preconceito no país ainda é muito forte e tal quadro necessita ser melhorado. Não cabe a psicologia julgar as pessoas que cometem o preconceito, mas questionar o que as levam a ter essas atitudes preconceituosas e problematizar junto a elas se as coisas não podem ser diferentes, ajudar na criação de políticas públicas, projetos que visem à diminuição do preconceito racial. O objetivo é promover a igualdade racial para que as pessoas não sofram preconceito e seus direitos sejam garantidos. REFERÊNCIA ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. 4. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013. FILHO, Pedro. Miscigenação versus bipolaridade racial: contradições e conseqüências opressivas do discurso nacional sobre raça. Estudos de Psicologia 2005, 10(2), 247253. MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43. TERRA, Ernani. Português de olho no mundo do trabalho. São Paulo: Scipione, 2014.

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CAPÍTULO

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PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

Maria Suely dos Santos Nascimento

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alar do tema em questão não é algo fácil, principalmente discutir preconceito e racismo. São questões que merecem toda discussão possível, o problema é que muitas vezes o preconceito é situado apenas no campo do diálogo, até mesmo nos campus universitários e não é levado a prática. Assim percebe-se a dificuldade em reconhecer ações racistas e preconceituosas. Sabemos que preconceito e racismo são problemas essencialmente relacionáveis do grupo. Nesse sentido, é importante pensar que a Psicologia tem um papel fundamental para desenvolver trabalhos no que diz respeito às questões apresentadas como problemas. Para ELLIOT: “De qualquer modo, a maioria dos psicólogos sociais concordaria em que os aspectos específicos do preconceito têm de ser aprendidos” (2013, p, 298). Compreende-se que muitas vezes as famílias podem transmitir essa “aprendizagem” aos seus filhos, que pode ser intencional ou não, pois vivemos numa sociedade que ainda “guarda” resquícios preconceituosos de tempos outrora, e isso ainda reflete no contexto atual. Dessa maneira, a Psicologia tem algo relevante para se aplicar, como por exemplo, a sua produção de saberes, as rodas de conversas com estudantes de

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Psicologia nos encontros de universidades/faculdades para que os mesmos possam levar a discussão a outros campos de saberes e assim os sujeitos fiquem sabendo de informações que serão pertinentes ao conhecimento sobre o preconceito e racismo, algo que ainda necessita de diversos movimentos sociais para que possamos viver as discussões em ações práticas. Nós nos propomos a discutir o que acreditamos ser mais significativo no dia-a-dia do mundo subjetivo, e até mesmo do mundo “consciente ou inconsciente”, pois as experiências raciais neste patamar são mais difíceis de verbalizada e detectadas. (ROSSATO E GESSER, 2001, p. 12-13)

Sabemos que discutir será importante, pois o pensar exposto irá gerar uma certa reação em cada sujeito no seu contexto social, e isso pode ser transformado em algo melhor, que é a conscientização do que somos, como sujeitos que pertencemos a uma mesma sociedade, cada um com sua singularidade, mas respeitando a subjetividade do indivíduo. A sociedade possui diversos espaços que educam o indivíduo, principalmente analisando questões do ponto de vista da liberdade do indivíduo, e essa educação é uma maneira de mostrar o quanto somos sujeitos diferentes, com pensamentos, ações, manifestações que nos caracterizam diante do meio social. Assim, é relevante refletir que pode ser possível transformar “o mundo” com informações que se tornem conhecimento. Ouvimos várias expressões a respeito do preconceito e como diz FREIRE: “O grande problema que se coloca ao educador ou a educação de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja assumida eticamente pela liberdade” (1996, p.105). É notório que a educação é uma ferramenta para combater o preconceito, é por meio dela que trabalhamos as relações sociais, e que compreendemos que somos sujeitos pertencentes a um contexto social que nos “olha” de forma preconceituosa e isso não é fácil de ser quebrado, é um paradigma fortemente enraizado, mas que têm mudado. As pessoas evoluíram pelo menos um passo, no sentido de perceber que os estereótipos que foram criados, estão se perdendo, no tempo e no espaço. Hoje somos mais abertos às transformações a partir de nós mesmos e isso nos faz repensar ações de tempos outrora que prejudicavam as pessoas a nossa volta, poderíamos dizer que nos tornamos mais sensíveis a pensar tais questões citadas. Compreendemos a partir de situações diversas que: “Os estereótipos refletem crenças culturais – isto é, em uma dada sociedade, eles são descrições facilmente reconhecidas dos membros de determinado grupo” (ELLIOT, 2013, p, 301). Não é fácil sofrer na “pele” o que muitos passam, principalmente viver situações constrangedoras que ninguém deseja para se, mas praticar racismo com o outro é diferente, porque não é você que tem de suportar tal ação. Observa-se, que a sociedade discrimina muito o negro, pois sabemos que ser identificado como um negro ou preto é uma espécie de rebaixamento e estigma social, dizia Marcio André dos Santos em um dos seus artigos para dissertação de Mestrado

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PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

(2005). Nota-se que há uma valorização no branqueamento, as próprias instituições sociais transmitem isso, mas o importante é que já se tem novos olhares sobre essas questões, pois alguns grupos se juntam para repensarem tais paradigmas e quem sabe ocorrer uma reforma no pensamento de cada sujeito. É notório que aos poucos, as mudanças vem ocorrendo, estudantes de Psicologia têm se interessado mais por estas discussões, são poucos, mas é relevante porque inquieta os demais e quem sabe acrescenta-se outros interessados, pois é uma discussão de grande valia para contribuir, problematizar e sugerir proposta que auxiliem nessa construção de cabeças que necessitam se tornar “bem-feitas”, no sentido de fortalecimento de pensamentos e ações que se façam acontecer, porque chega de “blá, blá, bla´”, precisamos de demonstrações reais. Décadas se passaram, até meados dos anos 80 e 90, e as representações sobre ser negro praticamente continuaram as mesmas no imaginário popular. As organizações dos movimentos negros ganharam força na esfera pública e junto aos poderes públicos, porém, o “mito da democracia racial” continua latente nas representações sociais dos brasileiros. (SANTOS, 2005, p, 06)

É notório que mudanças ocorreram ao longo dos tempos e que hoje algumas entidades, como órgãos sociais, bem como ONGs, assim como mutirões e cooperativas, podem surgir com propósitos de realização de movimentos sociais para contribuir na vida dos sujeitos, principalmente de comunidades desassistidas dos direitos que garantam seu bem-estar social. Nesse sentido, que esses movimentos venham a ganhar espaço no âmbito social, principalmente de manifestações no que diz respeito as representações sociais. “Com base nesse princípio pode-se evitar reverter o racismo. Por isso, é importante dar nome a nossos sentimentos, nossas atitudes e mapear este fenômeno tão fortemente enraizado mundialmente”. (ROSSATO E GESSER, 2001, p, 29). Sabemos, nada melhor que o diálogo, o qual pode fomentar transformações na vida do sujeito. Somos seres subjetivos e é importante citar que os sentimentos movem o outro, mas que esse sentir possa mostrar que somos diferentes e que não somos iguais, pois quando nos vemos como seres diferentes contribuímos para novas formas de pensar o contexto. A Psicologia pouco se debruçou sobre a questão das relações raciais no Brasil. Nos currículos dos cursos de psicologia brasileiros, raramente encontramos qualquer menção ao tema da raça e do racismo nas disciplinas obrigatórias. A formação dos psicólogos ainda está centrada na ideia de um desenvolvimento do psiquismo humano igual entre os diferentes grupos racionalizados. (SCHUCMAN, 2014, p, 85)

Dessa forma, é importante pensar que precisamos encontrar pessoas que se motivem a escrever sobre assunto tão pertinente para todos os campos, pois sabemos que pesquisas serão relevantes, procurar encontrar dados que contribuam na compreensão desses assuntos, buscar suporte teórico através da pesquisa para trazer

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mais informações aos sujeitos, seja da área da Psicologia, como de outros campos científicos, o importante é pesquisar e demonstrar dados sobre esse tema tão necessário, porém pouco discutido, e as pesquisas podem ajudar, principalmente para a Psicologia, uma ciência que acolhe o sujeito e suas relações com o meio qual ele vive. O psiquismo é relevante, mas pensar o ser em sua essência é um dos pontos que mais tem inquietado aos estudantes da Psicologia. Gostaríamos de pensar os valores, a singularidade de cada um, e principalmente as diferenças, não só de cor, mas de raça e considerarmos que isso é um problema no contexto atual, que necessita ser trabalhado e posto em prática nas propostas de práticas da Psicologia. Nessa perspectiva, a branquitude é uma das questões que merece muita discussão, pois ela é vista como: “É um lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual a racionalidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade”. (SCHUCMAN, 2014, p, 5). Observamos a necessidade de entender os novos sentidos do que é ser negro e o que é ser branco. As mudanças precisam acontecer, não só do ponto de vista da questão estrutural, mas também dos valores e dos sentimentos de pertencimento ao mundo das diferenças. Como diz SANTOS. “No entanto, uma nova negritude renova-se nas práticas de políticas, sociais, educacionais e, especialmente culturais dos negros em todo país, como o exemplo dos jovens pertencentes ao movimento hip hop”. (2005, p, 07). Assim, notamos que já é um “passo” considerado relevante, pois essas práticas são demonstrações de uma ótica diferenciada, da que estamos acostumadas e “obrigadas” a ver. Isso muda algo nas pessoas, por mais que seja pouco, mas já é diferente e relevante para os primeiros passos de uma quebra de paradigmas que necessita ser desmistificado. O Conselho Federal de Psicologia diz: “O preconceito racial humilha e a humilhação social faz sofrer”. (CFP, 018/ 2002). Notamos a relevância do trabalho do Psicólogo nesse contexto, e o quanto discussões, desde a universidade/faculdade realizados por professores e estudantes aos pequenos grupos, formados pelos próprios estudantes, de psicologia, quais deveriam encontrar-se pelo menos uma vez por semana para discutir textos relevantes em relação ao preconceito, assim se tornarão diálogos pertinentes aos novos olhares com propostas de reflexão as políticas públicas que possam mudar a vida de quem passa por isso, porque falar é fácil, mas viver é difícil, e dói. Nessa perspectiva, sabemos que o sofrimento é maior do que qualquer palavra, assim não é fácil dizer o que o outro sente, mas sim fazer com que ocorram transformações como forma de conscientização, pois precisamos de ações que modifiquem cabeças. A solidariedade humana, é fator relevante, mas que seja de forma acolhedora, sem manifestar qualquer imposição, apenas olhar o outro, como se fosse você, chamá-lo pelo nome e não por sua cor, ou condição social. É importante lembrar que temos nomes e somos sujeitos de um mesmo universo, então porque destratar o outro, quando estamos destratando a nós mesmos, é porque muitas vezes somos o outro e esse é nós.

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PRECONCEITO, RACISMO E ESTEREÓTIPOS: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

Portanto, diante do que foi exposto, percebe-se várias vertentes relevantes, na análise e discussão desse trabalho, entre elas as dificuldades de reconhecimento nas ações racistas e preconceituosas que existe no sujeito. Nesse sentido, é relevante frisar o contexto educacional e suas contribuições no combate a esse problema. A prática de pesquisas será uma das contribuições também, pois a pesquisa irá trazer elementos e dados que servirão de análise e discussões para a sociedade, principalmente para um melhor conhecimento do tema em questão, já que é pouco discutido, pelo menos é o que se percebe na leitura de algumas teorias. Dessa forma, é importante pensar que a educação é também considerada uma ferramenta inerente a essa questão, porque faz, de certa forma, com que o sujeito pense sobre suas ações no meio social. A Psicologia pode contribuir, no combate ao racismo de várias maneiras, principalmente a partir do contexto da sugestão de políticas públicas, bem como voltadas para a questão da igualdade racial, com reconhecimento da história de vida do sujeito, no que diz respeito ao espaço do negro no contexto social. Articulando a esse, outro eixo de referência traz a discussão da relação Psicologia e Políticas Públicas, que deve começar pela identificação dos desafios colocados para uma sociedade que se pretende democrática e que garanta os direitos sociais (GONSALVES, 2010, p, 101).

Compreende-se a necessidade de implantar Políticas Públicas que possam contribuir a sociedade, principalmente no campo da Psicologia. Nesse sentido, sabemos que há uma instituição relevante, o Estado, esse que tem o dever de cumprir com os direitos sociais e quando não o faz, a sociedade precisa lutar em favor dos direitos humanos, pois se esses direitos não são de fato cumpridos, são violados e quem sofre é o sujeito que vive a “mercê” da sociedade. Por fim o papel da Psicologia é de grande importância para desenvolver trabalhos sobre as questões já mencionadas. Movimentos sociais, trabalhos cooperativos, mediante a grupos em vulnerabilidade social, diálogos com estudantes de diversas áreas do conhecimento, e principalmente ações de combate ao preconceito, são essas e várias outras contribuições que a Psicologia pode colaborar. REFERÊNCIAS ARONSON, Elliot. Psicologia social. Rio de Janeiro, 2013. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 018/ 2002. Brasília/DF. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa.São Paulo: Paz e Terra, 1996. GONSALVES, Maria. Psicologia, subjetividade e políticas públicas. São Paulo, 2010 ROSSATO E GESSER. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola / Eliane Cavalleiro (organizadora). São Paulo, 2001. SANTOS, Marcio. Negritudes posicionadas: as muitas formas da identidade negra no Brasil. Rio de Janeiro, 2005.

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Maria Suely dos Santos Nascimento

SCHUCMAN, Lia. Sim, somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana. SĂŁo Paulo, 2014.

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CAPÍTULO

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“PSICOLOGIA DAS RAÇAS” E RELIGIOSIDADE NO BRASIL: UMA INTERSECÇÃO HISTÓRICA Tarciana Lôbo Menezes

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homem carrega consigo um objetivo de melhora as suas características raciais inatas, especialmente as suas capacidades mentais. Dessa forma, notamos o grande incentivo de materiais para um pequeno grupo, mas que sempre se destacou em vários aspectos, como artísticas, científicas ou economistas. Galton queria garantir uma prevalência na “qualidade racial”, assegurando que esses indivíduos gerassem descendentes em maior quantidade. Os indivíduos que apresentassem qualquer sinal de distúrbio mental ou físico não tinham direito de se reproduzir, caso existisse alguma tentativa, o estado tinha o total direito de impedir, quando esses sujeitos conseguiam se reproduzir, acontecia à degradação da espécie, onde ela era formada por duas características: o primeiro foi a mistura de raças e culturas e a segunda foi a mistura entre indivíduos portadores de boas qualidades genéticas com aqueles já “degenerados” (principalmente portadores de deficiência física ou mental, tendências comportamentais desviantes, personalidades criminosas, prostitutas,

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Tarciana Lôbo Menezes

alcoólatras), independentemente de sua etnia ou origem. Essas duas propostas eugênicas procuravam atuar estes dois pressupostos, que traziam os problemas coletivos e individuais. A análise feita em dois momentos históricos: a criação da Sociedade Eugênica de São Paulo, em 1919, e a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929. Estes eventos marcaram a tentativa da institucionalização das teorias raciais no Brasil por meio das políticas públicas, também contaram com o apoio de cientistas voltados direta ou indiretamente a pesquisas em diversas áreas da psicologia e psiquiatria. As teorias raciais e os saberes psicológicos encontraram em determinados momentos de suas histórias, ocasiões em que cooperaram entre si. Tivemos no país alguns eventos envolvendo a questão do “aprimoramento racial”. Por outro lado, a prostituição era tratada como um desvio comportamental próprio de raças com tendências à sexualidade desenfreada. No início do século XX, esta era uma das explicações para o fato de encontrarem-se tantas prostitutas negras nas grandes cidades brasileiras. A PSICOLOGIA RACIAL NO BRASIL Por volta de 1916, psicólogos americanos desenvolviam novos testes psicológicos e começaram a introduzir o conceito de QI. Nesse tempo, muitos deles foram fabricados com o objetivo de serem testes que selecionavam pessoas que faziam parte do exército, trabalhavam em fábricas e também para controlar a entrada e saída de imigrantes no país. Caso os mesmos não alcançassem a média dos testes mentais, poderiam ser deportados. Segundo os psicólogos daquela época, era nítido que latinos e negros eram menos inteligentes do que o padrão da população, portanto, esse deficit poderia atrapalhar na evolução da nação americana, como não poderia ser diferente, no Brasil ocorreu a mesma coisa. Nessa época a Psicologia era de fundamental importância na formação das identidades nacionais no início do século XX. Várias teorias raciais ganharam espaço principalmente na elite brasileira, que era voltada para o desenvolvimento e prezavam pela questão da consolidação da identidade. No Brasil, o terreno era novo e fértil para as grandes teorias e especulações da ciência psicológica, tendo em vista que se tratava de um país com grande miscigenação racial. Para alguns psicólogos o Brasil estava sofrendo um processo de degeneração por conta da mistura racial, eles diziam que isso atrapalharia o desenvolvimento mental e moral do restante da população. Nessa fase a Psicologia estava em um momento de muita credibilidade, por conseguir agregar elementos da medicina, da filosofia moral e dos métodos quantitativos e

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classificatórios. Com isso, teve-se a ideia de aplicar técnicas psicométricas que apuravam qualidades intelectuais e comportamentais dos povos que faziam parte da nação, principalmente em negros e mestiços. Evidentemente se o “valor mental” desta era inferior, a investigação dos psicólogos americanos e dos Europeus que se expandiram ao Brasil estava correta, logo o que era cultural principalmente a religião também era deficiente, afirmavam que “mentes imperfeitas não cultivariam tradições culturais sadias. ” Os principais objetivos da Psicologia no Brasil, eram objetivos pedagógicos e médicos, em suas ações que visavam disciplina e higiene. Por conta disso, muitas intervenções eram solicitadas aos saberes psicológicos, principalmente quando se tratava de higienização mental, que tinha como objetivo avaliar a qualidade mental das diferentes etnias que compunham o país, tendo como base os estudos na Europa e nos Estados Unidos da América. PRINCIPAIS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS As principais religiões afro-brasileira são umbanda e candomblé, sendo bastante presentes em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande Do Sul e na Bahia. De acordo com o censo do IBGE, estima-se que em 1991 existiam quase 650 mil adeptos, estudiosos dessas religiões dizem que mais ou menos um terço da população brasileira frequenta um centro, incluindo neste número tanto frequentadores assíduos quanto esporádicos que muitas vezes são adeptos de outras religiões. O Candomblé é a religião que mais conservou as fontes do panteão africano servindo como base para o assentamento das divindades que regeriam os aspectos religiosos da umbanda. É conhecido e praticado no Brasil e em outras partes da América latina onde ocorreu a escravidão negra. Para cada orixá há um toque, um ritmo, um tipo de canto, uma dança, um modo de oferenda, uma forma de incorporação, um local próprio e uma saudação específica. Os encontros são feitos em um barracão rústico, retangular com telhado feito de palmas e aos redores construídos pequenas casinhas para colocar os santos. Os deuses do candomblé são originados de ancestrais africanos que foram divinizados há mais de 500 anos. Acredita-se que esses deuses têm o poder de manipular as forças da natureza, por isso cada orixá tem sua personalidade relacionada de acordo com cada elemento da natureza. Nas cerimônias os cânticos são realizados geralmente em língua yorubá e nagô, os cânticos em português são realizados com menor frequência, sendo que refletem o linguajar do povo. Fazem sacrifícios de animais como: galo, pomba, bode ao som de cânticos e danças. A percussão dos atabaques é a base da música.

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Tarciana Lôbo Menezes

Os filhos de santo são os sacerdotes de orixás e nem todos estão preparados para receber as entidades. Alguns sacrificam animais, outros cuidam dos guias quando um espírito “baixa” (incorporação de um espírito), há ainda os que tocam o atabaque e os que preparam as oferendas. A Umbanda é uma das religiões mais praticadas no Brasil e mais predominante no Rio De Janeiro onde teve seu início no Brasil, e na Bahia. Teve início no Brasil em 1530, com a mistura de concepções religiosas trazidas pelos negros da África na época da escravidão. O primeiro terreiro foi fundado em 1908 através de Zélio Ferdinando de Moraes, um rapaz de família tradicional em Niterói-Rj, tinha apenas 17 anos. Ele incorporava o Caboclo das sete encruzilhadas e foi responsável por formar sete tendas, sendo estas responsáveis pela difusão da umbanda. Estas tendas funcionavam sob o lema: “manifestação do espírito para a caridade”. Os rituais eram simples com cânticos de sons baixos e harmoniosos. PRECONCEITO RACIAL E A RELIGIOSIDADE NO BRASIL Na década de 20 do século anterior, alguns grupos de negros que chegavam à costa americana eram submetidos a provas psicométricas e caso não apresentassem um bom desempenho nas provas mentais, poderiam ser repatriados. Os psicólogos americanos dessa época diziam que os latinos, eslavos e negros, seriam menos dotados intelectualmente, sendo, portanto indesejáveis para a formação da nação americana. Situações semelhantes ocorreram em diversos países se estendendo por muitos anos. Do mesmo modo no começo do século XX, a psicologia teve papel fundamental na busca pela formação das identidades nacionais. A partir de 1870, as teorias raciais ganham força nas elites brasileiras as quais apoiavam as mais variadas especulações inclusive no âmbito das ciências psicológicas no cuidado a miscigenação racial que poderia ser perigosa para eles, pois acreditava-se que o Brasil passava por um processo de degeneração, causado pela mistura de raças. Com a aplicação dos testes psicométricos utilizados para apurar a capacidade intelectual e comportamento dos povos da nação, principalmente negros e mestiços, constatavam que o “valor mental” do negro era deficiente e sendo assim o cultural, particularmente religioso também era. Partindo do pressuposto de que mentes imperfeitas não cultivariam tradições culturais sadias é que optaram por evitar a miscigenação racial. Utilizavam o termo higienização Mental para denominar práticas higienistas que objetivavam avaliar a qualidade mental das diferentes raças que compunham a nação, tomavam como base estudos apresentados na Europa e E.U.A. com suas populações.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com o estudo aqui desenvolvido podemos concluir que o Brasil foi muito citado entre os teóricos racistas e os darwinistas sociais europeus como um exemplo de degeneração produzida pela “miscigenação racial promíscua”. Assim, os saberes psicológicos tiveram intenso contato com as teorias raciais, pois estas forneciam subsídios para abordar problemas como as causas da loucura, saúde mental, inteligência, personalidade e do comportamento individual e social. Os testes psicológicos atestavam uma inferioridade ou não na capacidade mental e biológica dos indivíduos. Eles achavam que a raça negra não atingiria o mesmo patamar de desenvolvimento dos brancos devido à sua condição inferior. Desaconselhavam assim a imigração deste povo. Então, novas técnicas de exame psicológico possibilitariam a seleção da população desejável para o país. Após a abolição do regime escravocrata, não houve exatamente uma repressão aos cultos afro-brasileiros. A aplicação de técnicas psicométricas no âmbito religioso pretendia manter essas manifestações populares sob vigilância preventiva, para que episódios de “loucura epidêmica de origem religiosa” não voltassem a ocorrer, como em vários momentos da história do Brasil. As interpretações racistas no âmbito das ciências psicológicas encontraram uma resistência a partir dos anos 50. Ainda hoje, só que com outra finalidade esses testes são aplicados. Mesmo que os testes de inteligência meçam alguma capacidade mental, o que é duvidoso, o que fazem é medir estados mentais e não traços. Por fim, o presente trabalho será possivelmente válido para maior estudo e acréscimo de conhecimento.

REFERÊNCIAS MASIERO, A.L. “Psicologia das raças” e Religiosidade no Brasil: Uma intersecção histórica. In: Psicologia ciência e profissão.v 22 n.1, Brasília 2002. ___________. “A Psicologia racial no Brasil (1918 - 1929). In: Estudos de psicologia vol.10. Natal, RN.2005.

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SOBRE AS/OS AUTORAS/ES



SOBRE AS/OS AUTORAS/ES

* Ana Raquel Silva Santos Alves Mestra em Psicologia Social na Universidade Federal De Sergipe, Membro Do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia da Saúde (GEPPS) da UFS. Possui graduação em psicologia pela Universidade Tiradentes (2007) especialista em Direito De Família e Políticas sociais-UFS (2008-2010) e pós graduada em Docência e Tutoria em educação a distância-UNIT. Atualmente encontra-se como tutora a distância do Centro Superior De Educação a Distância (CESAD) da Universidade Federal De Sergipe, psicóloga do CREAS-Nossa Senhora do Socorro e professora visitante nas escolas e universidades. Atuou como psicóloga Asilo Rio Branco, Instrutora de Recursos Humanos (FUNDAT) nas comunidades, Membro titular por quatro anos no Conselho Municipal e Estadual da Assistência Social de Aracaju (CMAS e CEAS),psicóloga clínica. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicogerontologia e Assistência Social, atuando principalmente nos seguintes temas: idoso-cuidadorinstituições, qualidade de vida, família, assistência social, adolescentesinstituições, inclusão social para as pessoas com deficiência e educação à distância. Psicóloga do CREAS Leonel Brizola; Mestre em psicologia Social e especialista em direito de família; E-mail: raquel.psi@hotmail.com

* Camila Lima de Araújo Possui graduação em Psicologia (2014) e mestrado em Psicologia Social (2016) pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com período sanduíche no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Normas Sociais, Estereótipos, Preconceitos e Racismo (NSEPR). Atua como psicóloga clínica em consultório particular. Desenvolve estudos no âmbito da Psicologia Social, com ênfase em Processos Grupais, Normas Sociais, Preconceito e Racismo. E-mail: kmilla.araujo@gmail.com

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* Dalila Xavier de França Possui graduação em Formação de Psicólogo pela Universidade Federal da Paraíba (1989), mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade Federal da Paraíba (1996) e doutorado em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (2006). professora Associada da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Desenvolvimento Humano, atuando principalmente nos seguintes temas: Socialização das atitudes intergrupais nas crianças, preconceito, identidade racial e racismo. E-mail: dalilafranca@gmail.com

* Djean Ribeiro Gomes Mestrando em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia. Membro Conselheiro do XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP03) e membro do Grupo de Trabalho – Psicologia e Relações Raciais do CRP03 Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tem interesse e inserção nas áreas de Psicologia em interface com Direitos Humanos; Sistema Prisional e de Socioeducação; Crianças e Adolescentes em situação de rua; Educação; Relações Étnico-Raciais, Povos e Comunidades Tradicionais. E-mail: gomes.djean@gmail.com

* Edna Maria de Araújo Enfermeira, doutorado em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (2007). Estágio sanduiche (2006) e pós doutorado (2013) na Public Health School of the University of North Carolina at Chapel Hill - EUA (UNC) com Bolsa de estudos financiada pela CAPES. Professora Titular do Departamento de Saúde da UEFS onde leciona as disciplinas Enfermagem na Saúde Coletiva (Graduação) e Epidemiologia (Pós graduação). Coordenadora do Colegiado da Pós Graduação em Saúde Coletiva (mestrado acadêmico); Responsável pelo convênio de cooperação internacional entre a UNC e a Universidade Estadual de Feira de Santana; Membro do Comitê Técnico Municipal, Estadual e Nacional de Saúde da População Negra; Áreas de atuação: Saúde Coletiva/Epidemiologia. Líder de grupo de pesquisa e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades Sociais em Saúde (NUDES). Linhas de pesquisa: Saúde de grupos populacionais específicos: Epidemiologia das Desigualdades Sociais em Saúde

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(raça, gênero e classe), Saúde da População Negra, Saúde de grupos vulneráveis; Saúde, Trabalho e Ambiente; Violência e Saúde. Filiada a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e Associação dos Docentes Universitários de Feira de Santana (ADUFS-BA). E-mail: ednakam@gmail.com.

* Eleonora Vaccarezza Santos Psicóloga formada pela Faculdade Pio Décimo (2012), mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (2015) e doutoranda de Psicologia Social na Universidade Federal da Bahia. Atualmente é docente em pósgraduação da Faculdade Pio Décimo, coordenadora de grupo de trabalho do Conselho Regional de Psicologia 19 região, psicóloga conselheira do Conselho Regional de Psicologia 19 região, presidente comissão avaliação de títulos do Conselho Regional de Psicologia 19 região e colaboradora grupo de pesquisa Cognição Social e Representação da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: racismo, estética negra, preconceito racial, representações sociais e discriminação. E-mail: vaccarezzaeleonora@gmail.com

* Ionara Magalhães de Souza Mestra em Saúde Coletiva pelo Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Especialista em Estudos Étnicos e Raciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA). Atua como professora Substituta da Universidade Federal de Sergipe, Campus de Lagarto-SE, do Departamento de Educação em Saúde com Práticas de Ensino na Comunidade para os cursos da área da Saúde. Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades em Saúde (NUDES/UEFS) e pesquisadora do Núcleo Transdisciplinar de Estudos em Saúde Coletiva (NUTESC-UFS). Desenvolve pesquisas na área Saúde de Grupos Populacionais Específicos, especialmente, a Saúde da População Negra e Epidemiologia das Desigualdades Sociais em Saúde (raça, gênero e classe). Filiada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. E-mail: narafenix@yahoo.com.br

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* Iza Fontes Carvalho Possui graduação em psicologia (2013), mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Tiradentes (2015-2017).Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Relações Interpessoais, testagem psicológica, psicologia clínica e organizacional, atuando principalmente nos seguintes temas: Stress, qualidade de vida, violência, prostituição, saúde, adolescentes e avaliação psicológica. Email: izafontes_psi@hotmail.com

* Jéssica Francielle Resende de Jesus Assistente Social do CRAS “João Batista Neto”; Advogada; Pós-Graduanda em Processo Civil; Bacharel em Serviço Social pela Universidade Tiradentes (2011). Bacharel em Direito também pela Universidade Tiradentes (2016). Possui experiência na área de Políticas da Assistência Social e Direito. Integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Sociedade e Direito. E-mail: jessicafrj.as@gmail.com

* José Andrade Santos Pós-graduando em Direito pela Universidade Tiradentes – UNIT. Aracaju, Sergipe. E-mail: joseandradesantos@gmail.com

* Luciana Galante Professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - AGES onde ministra as seguintes disciplinas na graduação: Antropologia, Antropologia Cultural, Sociologia, Teoria Social, História e etnologia Indígena. Mestre em Antropologia pela PUC-SP (2011), com experiência na área de etnobiologia e etnologia indígena. Pesquisa as relações que as comunidades tradicionais estabelecem com o ambiente natural e os impasses existentes entre Unidades de Conservação e áreas de ocupação tradicional. Assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). E-mail: lugalante@hotmail.com

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* Luíza Lins Araújo Costa Possui graduação em Psicologia (2014) e Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe - UFS (2016) sob orientação do Professor Marcus Eugênio Oliveira Lima, com mestrado sanduíche no Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É vinculada ao grupo "Normas Sociais, Estereótipos, Preconceito e Racismo (NSEPR);. Atualmente é tutora do Centro de Educação Superior a Distância da UFS (CESAD - UAB) e membro do GT Psicologia e Relações Interétnicas do Conselho Regional de Psicologia 19ª Região. Desenvolve estudos sobre a temática do Adolescente em Conflito com a Lei e tem interesse por áreas e temáticas relacionadas à Psicologia Social, Desenvolvimento Humano, Representações Sociais, Preconceito e Racismo. Email: luizaalins@gmail.com

* Marcus Eugênio Oliveira Lima Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba (1995), mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (1997). Doutor em Psicologia Social pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa em 2003 (ISCTE-PT). Pós-Doutorado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2011. Desenvolve pesquisas no âmbito da psicologia social, com ênfase em Processos Grupais, Normas Sociais, Racismo e Infrahumanização. Atualmente é professor do Departamento e do Mestrado de Psicologia e Presidente da Associação Sergipana de Ciência, mandato 2016/18. Desenvolve pesquisas no âmbito da psicologia social, com ênfase em Processos Grupais, Normas Sociais, Racismo e Infra-humanização. E-mail: marcuseolima@gmail.com.

* Maria Suely dos Santos Nascimento Graduada em Letras – habilitação em Português e Literaturas da Língua Portuguesa Especialista em Literatura brasileira Estudante de Psicologia VI Período Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UniAGES. E-mail: d.mariasuely@yahoo.com.br

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* Neli Gomes da Rocha Graduada em Ciências Sociais pela UFPR (primeira turma de cotistas raciais); Mestre em Sociologia pela UFPR; Cursa o Doutorado - Pós-graduação em Sociologia UFPR, linha de Produção e Circulação de Ideias. Atua como educadora na área de Pensamento Social Brasileiro e das Relações Raciais no Brasil. Integra o Núcleo de Estudos Afro brasileiros da UFPR na área de Estética Negra, Produtora Cultural – SANKOFA produções. E-mail: neliprodução@yahoo.com.br.

* Norton Cruz Machado Estudante de Psicologia da Universidade Tiradentes, com período sanduíche na Univerdidad de Guadalajara - México. Bolsista de Iniciação Científica PIBICFapitec (2015-16). Membro do Laboratório de Pesquisa e Promoção da Saúde do Instituto Tecnológico e de Pesquisa da UNIT. E-mail: mamchadonorton@gmail.com

*

Patrícia da Silva

Doutora em Psicologia Social, tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: representações sociais, identidade social e racial, preconceito, ações afirmativas e cotas raciais universitárias, E-mail: dasilvapaty@yahoo.com.br.

* Rita de Cassia de Jesus Oliveira Acadêmica do 7º período do curso de bacharelado em Psicologia do Centro Universitário AGES. E-mail: rita-de--cassia@hotmail.com

* Roberto dos Santos Lacerda Professor Assistente da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutorando em Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA-UFS, Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) com estágio na Gillings 230


School of Global Public Health,University of North Carolina at Chapel Hill (EUA). Graduação em Biomedicina pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Membro do do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Desigualdades em Saúde (NUDES-UEFS) e do Grupo CRESCER (EEUFBA). Foco de pesquisa e consultoria: Desigualdades em Saúde, Saúde da População Negra, Sustentabilidade e Saúde em Comunidades Quilombolas, Educaç o Popular em Saúde e Tecnologias Sociais. Email: robertosl3@hotmail.com

* Yá Sônia Oliveira Mestre em Políticas Sociais pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP UNICSUL. Graduada em Pedagogia e pós-graduada em Pedagogia Empresarial pela Faculdade São Luís de Franca/SE. Docente da disciplina História da Educação pelo Instituto de Formação e Educação Teológica - IFETE. Membro do GEPPED - Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais e Educação da UNICSUL e da Sociedade de Estudos Étnicos, Políticos, Sociais e Culturais OMOLÀIYÉ e filiada a CONEN - Coordenação Nacional de Entidades Negras. E-mail: sonia7_oliveira@hotmail.com

* Tarciana Lôbo Menezes Possui graduação em Psicologia pela Faculdade Pio Décimo (2013). Atualmente atua como psicóloga clínica na empresa Viver Melhor – Psicologia e Saúde. Tem experiência na área de Psicologia. E-mail: pashimina3@hotmail.com

* Valdenice Portela Silva Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) com experiência profissional e interesse de pesquisa nos seguintes temas: Racismo institucional; Gestão da diversidade racial; Cultura organizacional; Estrutura e gestão de organizações culturais (Organizações criativas); Práticas organizacionais de movimentos sociais e Administração pública. Membro do Grupo de Pesquisa Normas Sociais, Estereótipos, Preconceito e Racismo (NSEPR / PPGP), no qual pesquisa temáticas acerca das Identidades sociais, representações sociais de grupos estigmatizados; sexismo; racismo e outras formas de preconceito, Email:valdenice.portela3@gmail.com.

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* Valdisia Pereira da Mata Possui Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Bahia UFBA (2009), graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1999) e graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia (1992). Conselheira do CRP03, Coordena a Comissão de Saúde do referido conselho. Atualmente atua como psicóloga clínica na Secretaria Municipal de Saúde de Salvador Bahia e na Faculdade Metropolitana de Camaçari. Experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitiva, Relações Raciais, Identidade, Avaliação diagnóstica, Saúde Mental e Exclusão Social. E-mail: valdisia@gmail.com

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ANEXOS



ANEXO A

Quadro1 – Conjunto de ações voltadas para a promoção da igualdade de condições entre homens e mulheres dentro e fora da empresa RECOMENDAÇÕES PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES PARA AS EMPRESAS CENSO INTERNO  Avaliar a proporção de homens e de mulheres no conjunto dos empregados, em todos os segmentos da empresa e em todos os níveis hierárquicos, observando-se, também, a porcentagem de negros e de negras;  Observar os níveis salariais de homens e de mulheres em todas as funções, calculando se as diferenças médias e por função;  Calcular o tempo de progressão funcional de homens e de mulheres;  Medir as expectativas quanto à capacitação e observar se há proporcionalidade entre o número de homens e o de mulheres que realizam cursos de capacitação ou especialização, na empresa ou fora dela, ou que recebem estímulo para isso, em relação ao total de funcionários de cada sexo. POLÍTICAS DE PROMOÇÃO  Recrutar e indicar mulheres para posições gerenciais e cargos DE EQUIDADE PARA O de diretoria, assegurando sua participação nas tomadas de PÚBLICO INTERNO decisão e na gestão, em todos os níveis e áreas do negócio;  Assegurar que os salários e benefícios, incluindo os de previdência social pública e privada, sejam iguais para homens e mulheres em trabalhos equivalentes;  Estabelecer metas de contratação, treinamento e promoção com vistas à eqüidade de gênero em todas as áreas da empresa e em todos os níveis hierárquicos;  Estimular as funcionárias mulheres a realizar cursos de capacitação e de especialização, para progredirem na carreira;  Proibir tomadas de decisão relativas a contratação, demissão ou promoção de mulheres baseadas no fato de elas serem ou não casadas, no status do marido, se têm ou não filhos ou em sua condição reprodutiva;  Promover a adequação dos espaços de trabalho e dos equipamentos para que sejam compatíveis com as condições físicas das mulheres;  Estimular a participação das mulheres nas organizações internas da empresa, como Cipa, comitês de produtividade e comissões de fábrica, como maneira de garantir que suas demandas sejam consideradas nesses organismos;  Proibir atividades no ambiente de trabalho que possam intimidar as mulheres empregadas ou restringir de alguma forma sua liberdade. POLÍTICAS DE SAÚDE, BEM Conceder dispensa às mulheres que estão em tratamento ou ESTAR E PROTEÇÃO precisando de cuidados médicos; CONTRA A VIOLÊNCIA  Facilitar às mulheres informações sobre gravidez e contracepção e garantir-lhes segurança no emprego durante a gravidez e no pós-natal, possibilitando-lhes ausentar se do

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 

  

 COMPROMISSOS COMUNIDADE

COM

A

  

COMPROMISSOS NA CADEIA DE NEGÓCIOS

  

trabalho para acompanhamento pré-natal, licençamaternidade e licença para amamentar e cuidar dos filhos; Estimular a paternidade responsável, com a sensibilização dos funcionários que são pais para assumirem papel ativo no cuidado e manutenção dos filhos, licença-paternidade, possibilidade de licença para cuidar de filhos doentes e fazer o acompanhamento da vida escolar; Considerar creche e assistência à educação como direitos das crianças, acessíveis tanto aos filhos das funcionárias quanto aos dos funcionários; Proibir e sensibilizar os funcionários para que evitem todas as formas de violência no local de trabalho, incluindo agressão física, sexual ou verbal, manter canais de denúncia de tais agressões, que preservem a integridade de denunciantes e denunciados, e ter políticas claras e amplamente divulgadas de punição para tais atos; Sensibilizar os funcionários para que evitem todas as formas de violência doméstica contra as mulheres — mães, esposas, filhas, irmãs, empregadas — e contra as crianças; Sensibilizar os funcionários para que dividam igualmente com a companheira as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos; Garantir a segurança das mulheres empregadas ou prestadoras de serviço no local de trabalho e procurar garantir-lhes condições seguras de locomoção entre a casa e o local de trabalho; Proibir discriminação contra mulheres com problemas de saúde, incluindo portadoras de HIV. Apoiar ou desenvolver ações para promover e aprimorar a educação e as oportunidades profissionais de garotas e mulheres na comunidade em que a empresa está inserida; Apoiar ou promover campanhas na comunidade contra a violência direcionada a mulheres e meninas e pelo estímulo à paternidade responsável; Apoiar campanhas na comunidade ou promover a instalação de serviços públicos que contribuam para reduzir o peso das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos, como creches e escolas de tempo integral, serviços de saúde, restaurantes populares, lavanderias públicas etc. Evitar políticas de marketing que apelem para estereótipos sexuais e atentem contra a dignidade das mulheres; Promover e estimular negócios e empreendimentos dirigidos por mulheres, incluindo microempresárias, concedendo-lhes crédito e procurando realizar financiamentos justos; Cuidar para que seus fornecedores e parceiros respeitem os direitos trabalhistas de seus empregados e prestadores de serviços e assegurar-se de que não sejam praticadas relações de trabalho não-legais, ilegais ou clandestinas em toda a cadeia produtiva, o que muitas vezes ocorre em segmentos que empregam grande número de mulheres; Estimular todas as empresas participantes da cadeia de negócios a adotar políticas de valorização da mulher e de promoção da eqüidade de gênero em suas relações internas e externas.

Fonte: Instituto Ethos (2004)

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ANEXO B Quadro2 – Recomendações do Instituto Ethos para promoção da igualdade racial nas empresas RECOMENDAÇÕES PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NAS EMPRESAS CENSO INTERNO: Realizar um censo interno, com o quesito raça/cor, permitindo uma gestão mais eficaz de pessoas e o planejamento de ações que promovam a diversidade existente ou a ausência de determinados segmentos na organização. SENSIBILIZAÇÃO: Criar uma estratégia inicial de sensibilização sobre a diversidade. Realizar internamente campanhas de sensibilização e comunicação sobre a questão do negro na sociedade, com palestras, diálogo com lideranças do movimento social, exposições, levantamento de livros e apresentação de filmes nacionais e estrangeiros, entre várias outras possibilidades. FÓRUNS DE DIÁLOGO: Abrir espaços e fóruns de diálogo para abordar dilemas sobre a questão racial e formas de tornar possível a inclusão do negro no mercado de trabalho em condições melhores que as atuais. COMITÊ DE DIVERSIDADE: Criar um comitê ou conselho de diversidade, com a participação de diferentes áreas da empresa. Incentivar pessoas de segmentos pouco presentes ou em situação de desvantagem dentro da organização a constituir grupos, para trocar ideias, de modo a se fortalecer e auxiliar os demais funcionários a aprender a lidar com sua realidade e as demandas da sociedade. SUSTENTAÇÃO DAS AÇÕES: Desenvolver uma estratégia de sustentação das ações em favor da diversidade, mediante palestras, cursos e diálogos permanentes, para que a cultura da empresa absorva a importância da inclusão. É essencial ouvir a comunidade negra, suas lideranças e os movimentos sociais que atuam na área como um dos segmentos a serem priorizados nesse programa. CURSOS SOBRE DIVERSIDADE: Realizar cursos para todos os funcionários sobre o valor do respeito às pessoas, garantindo a diversidade pela atração e retenção de talentos advindos dos grupos sociais mais sujeitos a discriminação no mercado de trabalho. REVISÃO DE PROCEDIMENTOS: Avaliar políticas, normas e procedimentos com a perspectiva da diversidade, buscando retirar barreiras ou construir condições de igualdade racial no acesso, por exemplo, a benefícios, oportunidades de desenvolvimento na carreira, acesso a curso no exterior etc. Há empresas que possuem políticas específicas de valorização da diversidade, de promoção da igualdade racial ou de respeito às pessoas, capacitando seus funcionários e criando mecanismos para inibir práticas de discriminação ou de assédio de qualquer natureza, tão prejudiciais às pessoas e aos negócios. GESTÃO DE PESSOAS: Inserir o quesito raça/cor nos formulários ou documentos-padrão relacionados à gestão de pessoas, sempre acompanhado de uma declaração a empresa sobre seu compromisso com a diversidade. RECRUTAMENTO DIVERSIFICADO: Realizar processos de recrutamento com diversificação de fontes ou contratação específica de consultoria de recursos humanos com foco ou abertura para lidar com a questão racial. METAS PARA SELEÇÃO E PROMOÇÃO: Estabelecer metas em relação ao número de vagas a ser preenchido por homens ou mulheres negros, apontado o esforço voluntário da empresa para produzir alterações na demografia interna no curto ou médio prazo. Realizar processos de seleção com metas percentuais de negros estipuladas previamente, o que sugere ao RH ou aos gestores que entrevistem um número razoável de candidatos de todos os segmentos da população. O mesmo vale para os processos de promoção ou de carreira dentro das organizações que contam com poucos homens ou mulheres negras em cargos de liderança. CAPACITAÇÃO: Desenvolver e/ou apoiar programas de capacitação voltados especialmente para a preparação e qualificação profissional de mulheres e homens negros, de modo a favorecer uma participação em melhores condições nos processos de seleção da empresa. EDUCAÇÃO COORPORATIVA: Estabelecer metas e prioridade para os negros na destinação de oportunidades de estudo dentro ou fora da organização, bolsas de estudo, cursos no exterior

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e outras formas de investimento na construção de competências, formação de líderes e de incentivo à retenção de talentos desse segmento na organização. ACOMPANHAMENTO: Criar programas de mentoring para que profissionais mais experientes e em posição de liderança possam contribuir (e ao mesmo tempo aprender) com profissionais negros, favorecendo condições equânimes no acesso aos postos mais altos da organização e maior familiaridade de todos com a questão das relações raciais. INVESTIMENTO SOCIAL: Adotar a abordagem étnico-racial nas ações sociais realizadas pela empresa e em seu programa de voluntariado. Colocar, sobretudo, recursos do investimento social privado na formação escolar de qualidade de pessoas negras, homens e mulheres. DIÁLOGO COM FORNECEDORES: Compartilhar com os fornecedores o posicionamento da empresa, bem como os desafios e possibilidades na promoção da igualdade racial, trocando idéias, cooperando em questões de recrutamento (com banco de currículos compartilhado, por exemplo) e realizando ações sociais conjuntas na comunidade, entre outras possibilidades. Acrescentar critérios de responsabilidade social no relacionamento com os fornecedores, com a promoção da igualdade racial e o combate à discriminação, sempre com base no diálogo, na cooperação e no respeito de todos. FORNECEDORES NEGROS: Apoiar empreendedores negros e favorecer a sua inclusão no conjunto de fornecedores da empresa. COMUNICAÇÃO COM DIVERSIDADE: Cuidar para que os modelos presentes nas peças de comunicação interna ou externa da empresa expressem a diversidade da sociedade, combatendo a lógica dos lugares predefinidos para as minorias. Colocar nas mensagens publicitárias ou institucionais pessoas negras em situação de desvantagem tem o poder de trabalhar com as desvantagens simbólicas e produz bons resultados em relação à auto-imagem desse segmento, ajudando a demonstrar que novas realidades podem ser criadas. Entre outras coisas, permitem, por exemplo, que uma criança negra possa ter referências plurais para seu futuro e sonhar com posições de vantagem na sociedade, deixando de achar que o seu lugar está predefinido na base da pirâmide em razão de seu pertencimento étnico ou racial. PARCERIAS: Iniciar um diálogo e criar parcerias com entidades do terceiro setor e com outras empresas para a promoção da diversidade. Compartilhar seu aprendizado sobre a valorização da diversidade com organizações parceiras nos negócios ou empresas da comunidade em geral, difundindo o conceito e novas práticas de gestão que dêem conta da complexidade do tema. FÓRUNS EMPRESARIAIS: Criar ou participar de fóruns empresariais voltados para a questão racial ou levar o tema para os já existentes, promovendo o debate sobre os desafios para a gestão de pessoas e para os negócios, a comunicação e o investimento social, entre tantos outros aspectos que podem ajudar a acelerar resultados e a melhorar as práticas de cada empresa. O tema é muito complexo e o compartilhamento de conhecimentos e de práticas se mostra cada vez mais importante para todos. OPORTUNIDADES DE NEGÓCIOS: Realizar diálogos sobre oportunidades de negócios considerando a questão racial, seja no âmbito interno da empresa, seja com outras organizações, envolvendo, sempre que possível, representantes da população negra. Verificar se os produtos ou serviços e a qualidade do atendimento da empresa, bem como a forma e os veículos utilizados em sua divulgação, estão compatíveis com a diversidade de nossa sociedade. Diferentes áreas da empresa reunidas em torno do tema podem encontrar oportunidades de negócios que antes não foram consideradas.

Fonte: Instituto Ethos (2006)

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