ÉREBUS
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Copyright© by Luiz Cézar da Silva. 2011
Livro Virtual/ E-book/ blog.
Esta é uma obra de ficção. Os personagens e eventos descritos neste livro são fictícios, e qualquer semelhança com pessoas da vida real, é mera coincidência.
Composto em formato PDF.
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Luiz Cézar da Silva
ÉREBUS
Rio de Janeiro Julho/2011
http://erebuslivro.blogspot.com/
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01 15 de Janeiro. Chuva grossa e pesada fora da casa. Os dois tiros estouraram o espelho grande e redondo pendurado na parede do quarto, o objeto se espatifou como se relâmpagos de vidro tivessem percorrido toda a superfície reflexiva e os estilhaços saltaram para várias partes distintas; o som dos pedaços caindo, tanto os maiores quanto os menores e mais uma chuva semelhante a purpurina, se misturaram aos ecos dos estampidos. Ricardo sorriu como um assassino furioso e enlouquecido, a face empalidecida pelo medo, apontando a arma na direção de onde antes estava seu reflexo, porém não era o reflexo o que ele tinha visto no espelho momentos atrás e sim um vulto amorfo que já o perseguia, uma figura disforme que o estava atormentando há muito tempo e com a qual ele não queria mais conviver. Naquele momento só havia um monte de estilhaços no chão. Ricardo se aproximou, olhou para os cacos espalhados no solo recoberto de tacos de madeira pouco encerados de seu quarto e viu vários reflexos seus em tamanhos reduzidos; era uma sensação como a de encarar os olhos multifacetados de um inseto qualquer que estivesse brotando do piso do quarto de uma maneira sobrenatural. Por um momento ele teve medo de que cada um daqueles pequenos Ricardo fossem saltar, libertando-se, de dentro de seus respectivos pedaços de espelho
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e ganhassem vida como miniaturas demoníacas de si mesmo. Estava enlouquecendo. _ Morra! Fantasma; morra!_ gritou. Pisou nos cacos de espelho espalhados com uma raiva incontida que surgiu afastando o medo temporariamente, e, fez questão de destruí-los ainda mais, ouviu o estalar de alguns deles sendo prensados e quebrados pela sola dos sapatos contra o piso; se uma pessoa o visse poderia julgar que estava dançando enquanto os vidros quebravam sob seus pés. A última coisa que ele queria era ter que enfrentar um exército de pequenos demônios em formato humano com sua feição; por um momento pensou em gnomos e duendes, diabretes diversos e homúnculos; durante muito tempo da vida ouviu falar de tais criaturas como sendo personagens integrantes de folclores antigos, de filmes e estórias de vários livros, mas da forma como as coisas estavam se desenrolando em sua vida, todo cuidado ainda seria pouco. Alucinado como uma pessoa que viu uma aparição medonha saída das profundezas; ele se virou assustado; pensou ter visto o vulto passando pelo corredor. O vulto de uma pessoa, o mesmo vulto que o observara poucos minutos atrás no espelho. Certamente a criatura não estava aprisionada lá, mas sim, livre para assombrá-lo fazendo um jogo de “gato e rato” com ele em sua própria casa. O quarto estava praticamente todo destruído e com marcas de tiros por todas as paredes e nos objetos também. As cortinas que antes emolduravam as janelas ao fundo tinham sido arrancadas de seus trilhos que estavam retorcidos, a cômoda jazia aberta e sem as gavetas onde antes havia um número exagerado de roupas e pertences pessoais tanto de Ricardo quanto de Mônica Soares Martins, sua esposa, na verdade exesposa; todas as gavetas estavam no chão e por debaixo da 6
cama totalmente destruídas. Dois quadros, que adornavam as paredes, comprados satisfatoriamente por ela numa pequena feira de arte em Paraty, município no Sul do estado do Rio de Janeiro, muito famoso por suas ruas históricas e as anuais feiras literárias, as FLIPs. Uma réplica barata de A persistência da memória do pintor catalão Salvador Dali e o quadro de uma pintora e artista plástica local retratando a igreja de Santa Rita de Cássia, igreja antiga localizada no centro histórico do mesmo município. Ambos os quadros jogados também ao chão e retorcidos como se tivessem sido submetidos a um fogo causado por combustão espontânea. O guarda-roupas não estava em seu devido lugar, fora arrastado por alguma força estranha que permanecia em atuação no local, havia uma presença dentro daquela casa, uma presença maligna que tornava o ar pesado, viciado e mais lento, mas Ricardo não sabia se aquilo era real ou se sua mente já perturbada estava criando sensações com as quais ele não conseguia mais lidar. As portas do guarda-roupa, abertas, também tinham as marcas de um fogo etéreo que Ricardo não vira queimar. O criadomudo, embora feito de cerejeira estava obscurecido como se fosse confeccionado de carvão puro, era o móvel que tinha sido mais vitimado pelo que parecia ser um fogo que surgiu e sumiu antes que Ricardo chegasse em casa naquela noite chuvosa. O computador tinha a tela do monitor rachada e certamente inutilizada, o material plástico do revestimento do gabinete também derretera e as partes metálicas estavam escuras, mouse, teclado, caixas de som e câmera de internet também já não poderiam ser usadas; tudo estava destruído. A televisão antiga jazia num canto com um buraco de bala bem no centro, tinha sido atingida pelo próprio Ricardo no segundo surto que teve logo que entrou no quarto e era uma das coisas
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ali que não haviam sido submetidas aos fenômenos caóticos que aparentemente dominavam a casa. A cama estava sem colchão e mostrava o estrado que fora destruído por golpes de ponta a pés; Ricardo viu a cama se mover sendo arrastada levemente e saltou sobre ela como se aquele objeto fosse o inimigo que o estava perturbando. Ele estava ficando mais do que atormentado, precisava sair da casa, sua própria casa, mas por outro lado sabia que se continuasse fugindo jamais teria sossego outra vez; o monstro ou a coisa o perseguiria aonde quer que ele se escondesse. Tinha certeza disso; podia sentir. Era como se a criatura fosse uma parte antiga dele mesmo. _ Você ainda está aí?_ Perguntou Ricardo. Sobressaltado, apontou a arma de um lado para outro. A arma que Ricardo empunhava naquela noite era uma pistola Beretta 93R, a arma de calibre 9 mm fora comprada de forma ilegal, era o tipo que ele mais gostava, suficientemente leve e pequena para ser transportada facilmente em um coldre ou sob a camisa e poderosa o bastante para ser mortal. Esta Beretta combina as funcionalidades de uma pistola com uma submetralhadora, disparando rajadas de três munições no modo semi-automático com um único acionamento de gatilho ou apenas uma no modo convencional. Embora na cabeça de Ricardo uma arma como aquela não fosse eficaz contra a criatura que o estava perseguindo, ainda assim ele usava, tinha passado por muitas coisas nos últimos meses, visto muitos seres estranhos e alguns deles eram tão reais quanto qualquer pessoa comum. Ao menos pareciam. Não ouve resposta alguma, mas ele sabia que a criatura estava dentro da casa, não entendia como tudo aquilo podia estar acontecendo; como podia ter atraído um mal tão pernicioso
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para dentro de sua vida, para junto dos que amava e para o seio de seu lar. Ele correu e se recostou na parede segurando a arma com ambas as mãos como um atirador profissional treinado faria. Não queria ser surpreendido pelo que quer que estivesse vagando dentro da casa. _ Não adianta se esconder; eu vou encontrar você._ gritou novamente, mesclando riso débil e choro engasgado. Não havia coragem alguma naquelas palavras, mas sim completo desespero. Alguns sons soaram vindos de outros cômodos, mas eram fracos e pareciam vozes sussurrando coisas. As vozes ora pareciam infantis, ora pareciam femininas e ora masculinas. Tentou entender o que diziam, mas não foi capaz; era como se estivessem conversando em uma linguagem incompreensível, talvez alguma língua estrangeira. Ou talvez uma língua morta. Ricardo falava três idiomas e além do português; falava bem o inglês, falava muito bem o espanhol e conhecia francês o bastante para se comunicar razoavelmente com qualquer nativo sem passar apertos, trabalhou muito tempo como recepcionista em um hotel em Botafogo, zona sul do Rio, isso na época que ainda conseguia trabalhar, antes das vozes se tornarem um tormento diário que o fez perder o emprego. Mas mesmo assim não conseguiu captar nenhuma palavra familiar no que estava sendo dito; talvez sua loucura recém adquirida estivesse atrapalhando as faculdades mentais. Pelo que ele estava ouvindo aquela linguagem poderia ser norueguês, ou suaíli, grego arcaico, siríaco ou qualquer outro idioma que desconhecia; mas também poderia ser uma forma de comunicação usada entre os mortos ou até mesmo desenvolvida por uma raça de anjos renegados ou demônios da antiguidade. Ricardo não tinha a menor idéia e estava 9
espantado com como sua mente desvairada podia viajar em suposições num momento tão crítico quanto aquele. O dono da casa olhou para a janela do outro lado do quarto, estava aberta, os tacos do chão daquele lado do quarto estavam parcialmente molhados e lá fora a chuva e a noite tinham dado as mãos para tornar aquela na pior madrugada de sua vida. Teve medo de que algo surgisse pela janela tentando pular para dentro do cômodo; algum pesadelo ancestral reanimado pela maldade da presença profana que pairava no ar. Percebeu que se aquela situação não fosse real e terrivelmente trágica, seria hilária e cairia muito bem em qualquer filme de paródia-terror do cinema. Um homem assombrado por algo que ele não sabia ser totalmente real ou não. Ele sorriu novamente de um modo lunático e trêmulo como um homem em avançado processo de perda da sanidade. _ Socorro! Pensou ter ouvido alguém pedir ajuda no outro cômodo, o que era impossível, não havia pessoas dentro da casa, só vultos. Se movendo lentamente para baixo Ricardo recolheu do chão um pedaço de espelho que não se partiu totalmente com sua dança histérica para quebrá-los; o espelho era grande o suficiente para produzir um reflexo do corredor para o quarto e pequeno o bastante para não chamar atenção. A arma 9 mm ficou na mão esquerda, ele era canhoto e atirava tão bem que podia acertar uma garrafa pet de refrigerante em uma distância de dez metros, mesmo se estivesse em movimento, com uma precisão assombrosa, claro que com a Beretta isso era improvável por se tratar de uma arma para curtas distâncias, mas com um pouco de sorte talvez fosse possível. Teve de aprender a atirar quando percebeu que a vida estava saindo do controle; Ricardo passou a ser assediado por sonhos ruins noite após noite, passou a ter visões, ouvir vozes em 10
pleno dia e pouco a pouco foi perdendo tudo o que tinha construído na vida com tanto esforço. Ficou neurótico, abandonou o emprego no hotel e foi abandonado por sua família; pensaram que ele estivesse envolvido com drogas pesadas. Eles não suportaram conviver com uma pessoa que dava claros sinais de insanidade, mas que nunca admitiu; ele sabia ou achava que aquilo não era loucura e sim uma espécie de dádiva não compreendida, sabia também que devia fazer algo com aquele dom, não podia deixar que ele se perdesse. Tinha uma missão a cumprir, mas não sabia qual era. As vozes não paravam de falar durante dias e Ricardo foi levado a cometer aqueles atos dos quais se arrependera amargamente. Quando sua família o deixou ele passou a praticar tiro para se defender; na mente de Ricardo ele julgava estar constantemente sendo seguido, diariamente, cada minuto do dia. Costumava ver um homem que o observava em várias ruas e lugares diferentes, nunca falou com ele, mas estava sempre lá como um espião ou um guardião. Tinha certeza de que o rosto do homem era conhecido, mas não se lembrava de onde e nem quem ele era. O pânico se instalou no coração dele e foi quando chegou ao fundo do poço, o lugar mais baixo e mais escuro em que já esteve na vida, até aquele momento, ficou semanas trancado dentro de casa sem querer sair, suportando as vozes que dia e noite tentavam impeli-lo a atos que não queria fazer, ele Julgava errado, mas as vozes asseguravam que eram para um bem maior e que daquilo dependiam vidas de pessoas inocentes, algumas que nem eram nascidas ainda. Segurou o espelho e inclinou-o levemente pelo limiar da porta num ângulo que pudesse observar o outro ambiente. Não havia ninguém lá. 11
O corredor de aproximadamente três metros de extensão possuía duas portas, uma de cada lado e uma última no final, todas abertas. Estava bem iluminado, mas tinha manchas de sangue nas paredes. O que não se justificava porque ninguém havia sangrado dentro de casa; podia ser apenas uma visão. O suor molhava totalmente a face do homem abaixado ali naquele quarto, seu coração batia como a máquina de um trem a vapor e cada músculo de seu corpo estava tenso a ponto de se romper. _ Que Deus me ajude._ sussurrou. Ele se levantou e deu o primeiro passo vacilante para fora do quarto, depois deu outro e começou a caminhar lentamente, estava em estado máximo de alerta; o peito doía no lado esquerdo e a dor começava a se irradiar para o braço também. Ouviu algo, mas não teve certeza de se era realmente som físico ou se foi produzido por sua mente. Como se não bastasse tudo aquilo ele tinha que tentar constantemente discernir ao que devia ou não dar atenção. Talvez um homem em perfeito estado mental pudesse se dar bem numa situação igual, mas uma pessoa com o estado mental terrivelmente alterado como ele não tinha muitas chances de êxito. As duas portas do corredor ficavam exatamente uma de frente para a outra e ambas estavam abertas, as luzes acesas como a do restante da casa. Ricardo mantinha a respiração presa sem perceber e caminhou até chegar às portas; ao fundo no final do corredor era a porta que dava para a cozinha e ele tinha certeza de que a criatura o esperava lá. O medo e a ira se misturaram no sangue dele gerando uma miscelânea de sentimentos estranhos. Cada pêlo dos braços e da nuca estavam eriçados, e o estomago revirando-se em contrações espasmódicas; a criatura estava muito perto; a casa parecia pulsar. 12
Encostado na parede direita exatamente ao lado da porta ele apontou a arma para o cômodo em sua frente, era o banheiro, depois cuidaria daquele lugar se fosse preciso ou se sobrevivesse aos demais; ergueu o pequeno pedaço de espelho e olhou o reflexo gerado pela porta a seu lado, era a sala e alguma coisa se moveu lá dentro fugindo do raio de ação do espelho, mas o som provocado foi surdo. O pulsar sobrenatural no ar continuava e aquilo causava nele uma sensação de que não conseguia puxar oxigênio para dentro dos pulmões como deveria, não importava quanta força fizesse para aspirar. Ricardo teve o pressentimento de que ao entrar na sala ia se deparar com alguma criatura insectóide gigantesca, algo como uma barata com suas antenas longas varrendo a sala, patas e corpo revestido por uma couraça avermelhada e envernizada e as peças bucais movendo-se freneticamente e deixando cair um líquido gosmento sobre o chão acarpetado ou a criatura também poderia ser uma aracnóide enorme com suas patas peludas e olhos triplos ou quádruplos. Lembrou de seus vários reflexos nos cacos de espelho no quarto. As criaturas que ele imaginava naquele momento poderiam ter sido facilmente libertadas do inferno por algum anjo-guardião desleixado, ou podiam ser fugitivas de alguma zona de caos absoluto, daquelas que os seres humanos sequer têm coragem de imaginar; pelo menos não os seres humanos sãos. Não tinha escolha; Ricardo devia enfrentar aquilo ou certamente morreria. Ele concordava que merecia isso, mas devia haver alguma forma de desfazer todo o mal que tinha propagado. Além do mais, o espelho em sua mão não tinha revelado inseto gigante algum na sala e todas aquelas imagens estavam apenas em sua cabeça.
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O braço segurando a arma estendido no ar em direção a porta do banheiro era uma precaução para o caso de alguma coisa sair e tentar contra ele; Ricardo não sabia quantos inimigos estava enfrentando exatamente, tinha visto um no quarto, dentro do espelho, e ao menos aquele ele tinha certeza de que não era invenção de sua cabeça, mas poderia haver uma horda inteira dentro da casa. Porém com o cansaço as forças de Ricardo estavam falhando e o braço tremia; parecia mais pesado do que realmente era. _Apareça de uma vez!_ Sabia que não surtiria efeito. Ele pensou em quantas pessoas já tinham passado por uma situação tão bizarra como aquela; estava cansado, e havia perdido tudo o que mais amava na vida, não tinha mais motivo algum para continuar vivendo. Lembrou de Mônica e o choro surgiu instantaneamente, mas foi contido antes de se tornar poderoso e fora de controle. Pensou nos seus pais e amigos e na quantidade de dor e sofrimento que ele tinha causado em todas aquelas pessoas. Ele sentia-se como se tivesse aberto uma caixa de pandora de onde só escapavam sofrimento, agonia, dor e tormento. Soltou o espelho no chão e entrou correndo com a arma apontada para frente apontando para todas as direções; a sala estava completamente revirada e a porta para o quintal da frente estava aberta, ele tinha fechado quando entrou. A chuva caia forte lá fora e o vento trazia um cheiro de grama e terra encharcadas; outro cheiro forte inundou as narinas dele trazida também junto com uma lufada úmida; era o cheiro de morte. Não havia ninguém ali também, mas... _ Ainda estou aqui Ricardo._ A voz brotou do ar ao redor dele que se abaixou num reflexo impulsivo. Ele girou no chão e apontou a arma para todos os lados novamente. Se outra pessoa também estivesse na sala 14
certamente teria ouvido a voz, foi alta e clara. Ele procurou a pessoa que falava, girou a cabeça de um lado a outro. Não via ninguém. Girou outra vez, tencionando o dedo no gatilho, pronto para disparar, a Beretta estava agora no modo semi-automático, mas não estava vendo inimigo algum. A voz retornou como um trovão vindo da chuva lá fora: _ Não terminou ainda._ ela retumbou pela sala. Era uma voz masculina, mas não humana; grossa e terrivelmente sombria; se ele pudesse discernir diria se tratar da voz de algum deus do submundo que por algum motivo escuso e profano estava sobre a face da terra para atormentar as pessoas comuns. Ricardo atirou mais uma vez, a esmo. Na verdade não queria fazer isso, mas o dedo escorregou pelo gatilho sensível, o nervosismo era insuportável, e o susto veio na mesma velocidade dos disparos. Três em seqüência. _ O que você quer de mim?!_ gritou. Não houve resposta. As lágrimas surgiram novamente. E ele não pode contê-las. _ O que você quer?!_ gritou Ricardo já quase sem forças. A garganta doía. _ Por que está fazendo isso comigo?! De repente, a arma saiu das mãos dele, foi arremessada para longe como se uma força invisível a tivesse arrancado brutalmente, seus dedos doeram, pensou tê-los quebrado; a pistola se chocou contra a parede e cuspiu mais três balas como fora condicionada para fazer; as balas entraram no teto deixando à mostra apenas os orifícios criados pelos impactos. Ricardo, pasmo com o que acabara de ver, tentou reagir, aquilo não era fruto de sua mente lunática ou imaginação corrompida, tinha certeza que não. Mas foi surpreendido antes que pudesse tomar qualquer atitude; quando se deu conta já havia sido 15
jogado contra a mesma parede; a única onde não havia os restos da estante, mesa, poltronas e eletroeletrônicos e domésticos destruídos pela mesma força que agiu no quarto. Ele ouviu o estalo do nariz contra o obstáculo sólido, sua cabeça se chocou de frente e tão rapidamente que tudo ao redor ficou branco imediatamente; certamente tinha quebrado o nariz. Aquela mesma força desconhecida que lhe tomara a arma agora estava arremessando-o para os lados como um ventríloquo demente massacrando sua marionete indefesa. Antes que pudesse sentir a dor total no nariz, foi puxado pelo pescoço e jogado para o outro lado da sala; parte do sofá estava no meio do caminho. Caiu por cima dele, o que amenizou um pouco a queda; procurou o inimigo e ainda não via ninguém, mas novamente antes de poder respirar foi puxado outra vez pelo braço esquerdo. Ricardo sentiu como que uma mão invisível envolvendo seu pulso que estalou imediatamente, os ossos se esfacelaram, seu grito veio em seguida, ele foi jogado conta a parede novamente, contra o chão mais uma vez e, por fim, lançado para fora da sala, na direção do corredor. As luzes da casa falharam, piscaram e tremeluziram, mas não se apagaram. Chocou-se contra o umbral da porta do banheiro, por um segundo pensou que fosse morrer ali mesmo, mas se levantou e correu desesperadamente para a cozinha, ignorando as dores que se iniciavam. O nariz sangrava, as lágrimas atrapalhavam a visão enquanto corriam e a mão esquerda com os dedos tortos doía violentamente. A voz de trovão retornou: _ Eu vim lhe buscar Ricardo. O homem correu sem dar atenção, queria salvar a própria vida.
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_ Vou levá-lo para outro lugar._ insistiu a voz._ Um lugar que você certamente ainda não conhece. Ao chegar à cozinha, ele chorava como uma criança e soluçava apavorado com a possibilidade de morrer em sua própria casa, abatido por alguma coisa que ele não conhecia; alguma coisa que havia entrado em sua mente e tirado tudo do lugar. Estava em agonia e olhou para a porta que dava para os fundos da casa, estava aberta e era a única saída provável daquela armadilha maligna. Ele segurava o pulso esquerdo com a mão direita, estava quebrado, não poderia lutar nem atirar, nem fazer coisa alguma sem sua mão esquerda. Sem ela estava inutilizado. A cozinha era o único cômodo em que as coisas permaneciam intactas e em seus devidos lugares, a força oculta, fosse o que fosse não tinha tocado ali, mas aquilo ia mudar. As coisas começaram a ser arremessadas pelo ar; um fenômeno sobrenatural do qual já tinha ouvido falar muitas vezes, visto diversos documentários na televisão com pessoas testemunhando a veracidade dos fatos fora do comum e filmes que abordavam o mesmo tema; Poltergeist. Mas agora estava presenciando horrorizado a tudo aquilo na posição de espectador e vítima. Facas, copos, garfos, colheres, panelas, pratos, enfeites de geladeira e todos os utensílios da cozinha saltando pelo ar e indo de encontro às paredes, ao teto e ao chão; as portas da geladeira e armários abriam e fechavam freneticamente permitindo com que todos os mantimentos contidos neles também fossem influenciados pelo fenômeno. Como se duendes insanos e invisíveis estivesse fazendo suas brincadeiras infernais com tudo ali. O barulho das coisas se destruindo era ensurdecedor e em poucos segundo tudo se resumiria a um amontoado de destroços. Os utensílios de vidro explodiam como se fossem 17
granadas de fragmentação, alguns pedaços do vidro, cortantes como fios de navalhas atingiram o rosto dele produzindo cortes profundos; os metais se retorciam criando uma lamúria bizarra e o piso de ladrilho se rachou sob seus pés. Ricardo jamais tinha ouvido falar de qualquer manifestação de Poltergeist com aquela intensidade. As luzes estouraram e subitamente toda a casa ficou as escuras, mergulhada numa bolha de sombras que poderia facilmente ocultar qualquer terror noturno insondável e antigo. Muitas das coisas estavam se chocando contra o corpo já machucado de Ricardo que para não ser novamente arremessado também como um mero objeto correu para a porta e passando por ela sob uma saraivada de pedaços destruídos de utensílios saiu para o quintal dos fundos e para os braços da escuridão da noite, do frio e da chuva. _Sua vida Ricardo, é isso o que quero._ Retumbou novamente a voz, mas desta vez ele não teve certeza de ter ouvido certo ou de ter imaginado. Tudo parecia uma grande mixórdia e até mesmo a própria noite parecia estar feliz de ver o que havia se abatido sobre a vida de Ricardo. Ao menos foi este o pensamento que atravessou a mente perturbada do homem. Por um tênue segundo ele percebeu que estava enfrentando dois inimigos ali, um era sobrenatural, desconhecido e real, o outro era imaginário, conhecido e irreal, mas o segundo tinha ligações fortes com o primeiro, afinal, sua loucura era um produto da relação que tivera com a coisa que agora o estava perseguindo. Ao passar para o lado de fora ele tropeçou no batente e foi ao chão encharcado pela lama provocada pela grande quantidade de água que descia dos céus, suas roupas também se encharcaram antes da queda tamanha era a torrente de chuva. O 18
queixo bateu com violência na lama contra uma pedra escondida e uma fenda não muito funda ou longa se abriu vertendo sangue no mesmo momento. O corpo bateu contra o solo em seguida num baque firme. O pulso doeu, estava perdendo a sensibilidade da mão esquerda, sentia um formigamento no pescoço, no braço e nas costas. _ O que eu fiz para merecer isso?_perguntou ao nada a sua frente. Foi quase um murmúrio. O cheiro do seu próprio sangue o incomodava. Tentou limpar o nariz com a mão direita, mas ao soltar o pulso esquerdo este foi inundado por uma dor pavorosamente pior do que a que estava sentindo antes; ele teve de segurá-lo novamente e apertar com a força que ainda restava. _ Eu vim para libertar parte de você, Ricardo._ a resposta veio das sombras à esquerda dele. Um vulto moveu-se em meio à escuridão do quintal; tinha chifres grandes e retorcidos para trás, mas as trevas noturnas o protegiam não sendo possível vê-lo totalmente. Ricardo tentou se levantar logo que viu a coisa nas sombras, mas sentiu uma intensa dificuldade, seu corpo estava por demais cansado; cada músculo doía terrivelmente. A chuva parecia mais pesada do que devia ser, a noite parecia mais escura e o terror se apoderava cada vez mais da alma do homem fraco e caído. Seria mais fácil se ele desistisse de lutar ou resistir e se entregasse para morrer de uma vez, talvez assim conseguisse paz, e nunca mais precisaria causar mal a qualquer pessoa como fizera tanto com desconhecidos quanto com conhecidos; amigos e família. A dor no peito aumentou. _ Levante-se Ricardo, ainda não acabamos_ disse a voz do vulto. Agora sem o estrondo retumbante de um trovão. Mas 19
com a mesma voz, só que mais humanizada do que antes, parecendo a voz de uma pessoa normal. Na verdade, Ricardo percebeu que em momento algum desde que a chuva tinha começado haviam surgido relâmpagos chicoteando os céus ou trovões, era uma chuva muito diferente das chuvas de verão normais para aquela época do ano no Rio de Janeiro; quando uma pancada sempre nos finais de tarde caía sobre a cidade com muita força, raios, trovões, por vezes muito vento também, e minutos depois se desfazia tão rápido quanto tinha se formado. Ele percebeu outra coisa também, o clima estava quente, mesmo com a chuva forte que já durava cerca de uma hora; o frio que Ricardo sentia não era climático, mas sim provocado pela horripilante sensação de proximidade com aquele mal. Aquela chuva tão diferente era provocada pela mesma força estranha que também o estava atormentando sem motivo. Ricardo ouvia tenuemente o barulho das panelas e coisas que haviam ficado em suspensão na cozinha saltando contra as paredes de um lado para outro; todas estavam caindo no chão com grande barulho naquele momento, mas o som da chuva nas telhas galvanizadas do terraço sobre a casa; no quintal, no solo e nas copas das árvores das casas mais afastadas sobrepujavam qualquer outro som exceto a voz da criatura que das sombras falava com Ricardo. Mesmo se ele gritasse a plenos pulmões por socorro, jamais seria ouvido no meio daquela cacofonia toda. Os olhos dele demoraram mais do que o normal para se adaptarem à falta de luz e quando isso finalmente aconteceu pôde ver que a criatura com os chifres retorcidos de um demônio na verdade era uma combinação improvável de galhos de uma pequena goiabeira que ele mantinha em seu terreno, a árvore estava curvada como um corcunda, e parecia arfar 20
sentindo o peso desproporcional que cada pingo d’água causava ao bombardear suas folhas a partir do céu. Um macabro jogo de sombras envolvendo, as folhas, os galhos e as trevas noturnas tinham formado, ao menos na visão de Ricardo, a aparência de um ser semelhante a um minotauro mitológico, mas o monstro não era real. Ele se odiou por pensar aquilo, ninguém sem sã consciência interpretaria todo aquele conjunto inofensivo de uma forma tão estapafúrdia e desorientada. Era seu inimigo imaginário agindo novamente. A água que caia nos olhos dele era tanta que parecia como se estivesse deitado sob uma cachoeira; o estava impedindo de enxergar com mais clareza e a falta de luz naquela noite medonha também não ajudavam nada, mas era possível notar que aqueles galhos retorcidos jamais poderiam possuir ou se assemelhar a uma forma humana, tampouco uma forma humana que possuísse longos chifres retorcidos para trás. _Ainda estou aqui. _ A maldita voz voltou, teimava em voltar e certamente só se daria por satisfeita quando aquele homem deitado na grama, ferido e à beira da loucura absoluta fosse totalmente engolido pela insanidade ou tragado de vez pela profunda escuridão. _ O que você quer comigo?_ Ricardo se colocou de joelhos, sentindo a dor lancinante que o pulso quebrado e os dedos deslocados impunham ao restante do corpo. A voz respondeu vinda de outro lado, ficava constantemente mudando de direção e Ricardo tinha de olhar para um lado e em seguida para outro se quisesse acompanhar com clareza o que estava sendo dito. Do contrário não era mais capaz de entender as palavras com clareza. _ Parte de você ainda precisa fazer um favor para mim. Nosso pacto só acaba quando você fizer essa última tarefa. Aí então
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irei embora e você estará livre novamente. Mas se você não conseguir, arrasto você comigo. Para sempre! Abismado com o que estava ouvindo, Ricardo tentou achar uma explicação dentro da própria cabeça, algo que justificasse o inferno pelo qual tinha passado nas últimas horas. _ Não fiz trato algum com ninguém. Não sei quem é você. _ Oh! Fez sim; parte de você fez. Afinal de contas o que é que você veio fazer aqui essa noite? Quem o mandou vir aqui? _ Essa casa é minha, droga!_ gritou, um pouco por indignação e um pouco por dor. Sentia calafrios provocados pelo pulso destruído que subiam pelo braço como ondas de choque e se uniam a dor do peito e ombro; pouco a pouco aquela sensação abria caminho em direção a cabeça dele. Respirou com estremo esforço logo que terminou seu protesto, o ar não queria entrar nos pulmões. _Todos os homens fizeram um trato comigo em algum momento da vida._ falou a voz, concluindo_ E eu cobro de quem desejar, quando desejar. Embora a casa realmente pertencesse a Ricardo, ele não morava mais nela; não conseguia ficar muito tempo dentro do domicílio sem lembrar da família que tinha perdido, a saudade triturava seu coração; tentou falar com Mônica algumas vezes desde que ela se foi, mas não era possível, a esposa estava convencida de que Ricardo era completamente louco, e, além de louco tinha se tornado perigoso. Mônica passou a só falar em um outro homem chamado Fausto, a quem Ricardo não conhecia, e, além disso, afirmava que nunca sabia quando o marido ia sair de casa dizendo que precisava fazer algo sem revelar o que era, mesmo nas madrugadas; ela perdeu a confiança no dia que Ricardo mostrou a arma que havia comprado dizendo ser para a proteção deles. Na manhã 22
seguinte ele acordou só, e sobre o criado mudo ao lado da cama restava apenas o número do telefone celular dela escrito numa folha de caderno e presa sob uma pequena estatueta de um anjinho querubim, uma criancinha pequena e rosadinha, barrigudinha, bochechuda envolta em uma miniatura de frauda, com cabelos aloirados e encaracolados adornados por uma coroa de flores; com asinhas pequeninas, brancas como de uma pomba e segurando uma harpa. Mônica amava aquele bibelô. Jamais soube para qual lugar a esposa tinha ido, e embora conhecesse a localização da casa do cunhado, irmão de Mônica; Leonardo Soares, nunca teve coragem de ir até lá nem mesmo para saber se ela estava morando com o irmão ou se ele tinha a informação de onde ela estava vivendo. Ligou várias vezes para o número; nas primeiras semanas não foi nem mesmo atendido, mas depois conseguiu falar com ela, sem sucesso. Mônica estava irredutível e considerava Ricardo uma ameaça à vida dela. Um mês após ser abandonado ele decidiu não ficar mais na casa, resolveu passar os dias vagando pelas ruas e dormia em pequenos hotéis e motéis; estava gastando as economias de quase dez anos de trabalho, mas não podia se dar ao luxo de ficar muitas noites no mesmo lugar sob pena de ser alcançado por seu perseguidor. Era o que acreditava. Naquela noite, entretanto, tinha voltado até a casa para aplacar um pouco da saudade que sentia, queria tanto se encontrar com a esposa outra vez; talvez o sorriso dela tivesse força suficiente para partir a couraça intransponível de loucura que se formou na mente de Ricardo e seu abraço quente, terno e cheiroso fosse o bastante para acalentar o coração cansado e aprisionado numa jaula de sentimentos ruins com relação à própria vida. Dentro da casa ele foi diretamente para o quarto, não percebeu que a chuva grossa tinha se iniciado momentos antes dele 23
chegar à residência, queria ver algumas fotos de Mônica e pegar o pequeno bibelô angelical para levar consigo, eram as únicas coisas da esposa que ainda tinha; era o que restava de um relacionamento que começou intenso e apaixonado e terminou sem uma única palavra sequer. Quando chegou ao quarto percebeu que tudo estava fora do lugar, pensou que seu perseguidor poderia ter ido até lá na esperança de achá-lo o que em não acontecendo foi o suficiente para que destruísse todo o lugar. Ele ia caminhar até a janela aberta, quando a cama se moveu do lugar arrastada repentinamente, vindo em sua direção, ele saltou sobre ela num ataque insano que simplesmente brotou, em seguida resolveu sair logo da casa e deixar tudo para trás, o lugar despertava nele a insanidade que queria tentar manter sob controle. Quando passou pelo espelho, viu pela primeira vez a face amorfa da criatura cuja voz conhecia há tempos; assustado, sacou da pistola e atirou contra ela duas vezes. Foi quando o inferno começou. _ Eu fiz você vir aqui hoje Ricardo._Rebateu aos gritos do homem no chão. _ chamei você. O corpo doía e a mente também. As sombras da noite dançaram diante dele; as alucinações estavam voltando. Ricardo era uma pessoa que se considerava especial desde muito jovem, ouvia vozes desde pequeno, vozes que revelavam segredos e costumava adivinhar coisas que ainda iam acontecer, não era algo que ele tinha controle ou que quisesse fazer; simplesmente acontecia. Quando grande passou a ter sensações; terríveis sensações, sobre pessoas que estavam prestes a cometer loucuras; pessoas comuns que matariam outras pessoas inocentes pelos motivos mais diversos e banais. Foi quando aquela voz; aquela que falava com ele no jardim encharcado, aquela que era diferente de todas as outras, 24
apareceu pela primeira vez dizendo que na hora certa ele teria de fazer algo grandioso e pediu que Ricardo não permitisse que as pessoas atormentadas matassem inocentes deu lhe a missão de interferir em algumas delas. Não podia haver falhas. Mas Ricardo se atrapalhou, enfiou os pés pelas mãos, e só foi bem sucedido uma vez. _ Não fiz pacto com você._ Ele balbuciou. _Ricardo._ recomeçou a sombra_ Você precisa fazer uma coisa para mim; só mais uma e eu vou embora. Mas não erre novamente. Pois não encontrará misericórdia alguma em mim. _ Minha mão. Minha mão dói demais_ disse como uma criança, já em lágrimas. Em seguida sorriu com a face envelhecida pelo tormento, um sorriso falso e melancólico, deformado pela dor. Parecia dez anos mais velho do que realmente era. Em seguida disse: _Você quer me matar; quer minha alma. Eu sei. Não houve resposta. Ele continuou chorando, fez uma força sobre humana para se sentar no chão, soltou um palavrão por causa da dor, levantou a cabeça, estava tonto, olhou para o céu negro como mármore fosco e seu rosto foi bombardeado pela fúria da chuva. _Pode me levar_ Ricardo falou, e continuou._ Não agüento mais; por favor. Acabe logo com isso; faça o que quiser, não ligo. Ricardo se preparou para o pior, sabia que a força contra a qual estava se digladiando era abominavelmente malévola, mesmo sob o manto sereno que a voz usava naquele momento, e pensou que o Poltergeist ou qualquer coisa parecida seria usado novamente para impedir seu coração de bater ou dominá-lo com uma loucura tal que retirasse sua sanidade e consciência para sempre, relegando-o a um estado vegetativo pelo resto de seus dias. 25
A dor e o medo se apossaram completamente dele; sua cabeça pesou para frente e ele não teve força para manter a coluna ereta. O corpo tombou novamente para frente, os sentidos fugindo tão rápido como as sombras fogem da luz; a vida escoria do corpo como as areias de uma ampulheta. A morte estava se aproximando. Finalmente a voz retornou: _ A dor liberta, Ricardo; purifica, trata, fortalece. Me ajude a construir um mundo melhor. Destruindo este. Enquanto falava a voz que até aquele momento era semelhante a uma voz comum, humana, foi se tornando novamente ribombante, como o trovão que fora antes. Como se recuperasse ou trouxesse novamente sobre si mesma suas características superiores ou profanas e estivesse novamente em pé de igualdade com a tempestade que o açoitava. _Encontre o jovem especial, encontre-o e traga-o pra mim._ Foram os últimos estrondos fantasmagóricos. Ricardo já não podia ouvir coisa alguma. A mente dele estava nas últimas convulsões, não conseguia separar mais o que era real do que era imaginário; havia perdido a capacidade de discernimento e esforçando-se muito pensou na esposa que não tinha mais. Caiu sob o efeito do peso do próprio corpo puxado pela gravidade; olhos fechados, coração batendo cada vez mais lentamente, sem respiração, nenhum pensamento, nenhuma dor, nenhuma lembrança e nenhuma alucinação. Só escuridão, escuridão, escuridão, e... Caos.
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02 28 de Junho. _ Olá, boa tarde; o que vão querer?_ Perguntou a balconista do restaurante McDonald’s, com um sorriso forçado na face. Já estava na décima hora de trabalho e ainda tinha mais três pela frente. Ângelo olhava para os cartazes promocionais nos quais estavam à mostra cada uma das promoções praticadas pela loja, grandes imagens de hambúrgueres com muito ou pouco queijo, uma ou duas carnes, bastante ou nenhum picles e várias opções de condimentos e combinações com os ingredientes diversos. Os cartazes também mostravam copos grandes de coca-cola em tamanho grande, médio e pequeno, sendo que o pequeno parecia médio, o médio parecia grande e o grande parecia enorme; todos acompanhados de batatas fritas extremamente sequinhas e douradas. Cada promoção era devidamente identificada por um número, 1, 2, 3 e assim por diante. Os cartazes estavam acima de sua cabeça, do outro lado do balcão e sob as máquinas de refrigerante ocupavam o espaço de quase toda a extensão do restaurante e ele olhava de um anuncio para o outro com uma séria indecisão, não pelos preços que demonstravam em tabelas laterais, mas sim, pelo grau de satisfação que cada um poderia proporcionar ao consumi-los. Diana Moura Lima, sua namorada, apertou a mão dele como que repreendendo-o pela demora em decidir, havia outras pessoas na fila atrás deles e todas tinham pressa para serem
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atendidas; a lanchonete estava cheia de gente por todos os lados. Ela pediu: _ Vamos querer o número dois, por favor._ sorriu para o namorado com um ar maroto de quem foi mais rápida no gatilho. Eles tinham passado uma agradável tarde juntos caminhando pelas lojas do Top shopping, localizado no município de Nova Iguaçu, cidade onde moravam; passearam bastante e compraram alguns itens, Ângelo comprou um relógio e uma caneta tinteiro em uma das relojoarias, colecionava canetas como hobby e também tinha prometido dar um par de brincos à namorada, mas faria uma surpresa, ela não saberia quando ele pretendia entregar o presente que já estavam comprados e devidamente escondidos em casa. Em seguida foram a uma das melhores lojas de calçados femininos onde Diana comprou dois pares, uma sandália prateada de salto alto, muito brilhante, para ocasiões festivas como natal ou réveillon e uma outra que na visão de Ângelo era muito semelhante a primeira, exceto pela cor que era branca e pelo fato de não haver tiras para segurar os pés, mas sim uma espécie de fivela. Ainda antes de sair da loja Diana gostou muito de uma bolsa que compraram sob a promessa da vendedora de que levando as três peças conseguiriam um desconto, que, levando apenas duas não poderia ser concedido. Era a velha conversa de vendedores que todo mundo conhece muito bem. A balconista do McDonald’s, uma jovem baixa e morena, usava boné estampado com o logotipo da firma e grandes óculos de grau na frente dos olhos negros, cabelos presos em um nó atrás do boné e aparelho nos dentes; ela bateu o pedido na máquina registradora e gritou para algum companheiro:
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_ Um big Mac, fritas, refrigerante; tudo grande!_ depois voltou-se para o casal e perguntou polidamente_ Quais são os refrigerantes? _ Guaraná. Ângelo respondeu rápido, para que a namorada não tomasse novamente a decisão. Ela deu língua para ele. Ele a beijou na face. _ Com mais quatro reais vocês também podem acrescentar duas sobremesas de sorvete._ falou a menina. Os namorados se olharam e responderam praticamente ao mesmo tempo: _ Pode incluir. _falaram quase em uníssono. A menina do caixa sorriu ao ver a brincadeira deles e fechou o pedido, entregou a nota fiscal e pediu que aguardassem só um instante. _ O pedido já vem_ disse ela apontando para a ponta do balcão. Eles saíram da fila e foram para o lugar indicado, mas tanto ele quanto Diana perceberam os olhares curiosos da balconista e caixa. Outra menina trajando o mesmo uniforme que a do caixa, porém com calças mais largas, já tinha colocado as bandejas sobre o balcão e com uma destreza impar enchia dois copos grandes com os refrigerantes tirados da máquina, não houve desperdício, nenhuma gota de refrigerante caiu dos copos. Ela colocou os copos cada qual em sua bandeja, pôs tampas plásticas sobre eles, colocou também canudos, guardanapos e condimentos em saquinhos individuais; maionese, mostrada, ketchup e sal. Em seguida foi para junto de outros funcionários que olhavam o casal de modo curioso e chamaram-na. Ângelo olhou para o chão quando percebeu que estavam falando algo e olhando em sua direção com curiosidade. Antes que o pedido chegasse a mesma menina voltou, após uma rápida confabulação com mais outras, trazia as 29
sobremesas de sorvete que colocou nas bandejas e foi até Ângelo e Diana que aguardavam na ponta do balcão longe da fila de pedidos; a pequena funcionária fez uma pergunta: _ Desculpe, mas, você é o cara do parque de diversões. Ângelo ficou sem graça e chegou a dar um passo atrás inconscientemente, ruborizado. A namorada riu um pouco e respondeu por ele: _ Sim, é ele sim. _ Vimos você no jornal. Foi muito legal o que você fez. Parabéns._ ela ria como uma colegial. Outros funcionários e funcionárias apontavam para ele lá de dentro e alguns dos clientes que faziam seus pedidos queriam saber quem era a pessoa de quem estavam falando. Alguns o reconheceram, mas sem se lembrar de onde. Um ou outro sabia exatamente quem ele era. _ Obrigado._ murmurou. _Ele é tímido_ disse Diana com ar brincalhão. Outro funcionário trouxe o restante do pedido e arrumou nas bandejas. Momentos depois os dois namorados estavam sentados comendo e conversando em uma das mesas da praça de alimentação do shopping. O top shopping era uma boa opção para tardes em que não havia muito o que fazer, mas a cada ano o lugar parecia estar ficando mais e mais cheio de gente. A cidade cresce a cada semestre e o reflexo podia ser nitidamente visto em lugares como o centro e o shopping. Eles costumavam vagar pelos corredores apinhados de pessoas, ir ao cinema, comprar algumas coisas e lanchar. Faziam isso com certa freqüência, mas não tanto que tornasse banal, geralmente uma vez no mês.
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_ E então; o que está acontecendo com você?_ Diana notou que Ângelo tinha ficado um pouco na defensiva desde que a menina o reconheceu. _ Não é nada, só não fico muito à vontade com essa coisa. _Ora, a menina só queria ser gentil. _ Eu sei, mas ainda é um pouco estranho para mim. Ele tomou um gole do refrigerante e comeu uma batata frita. Estava sem sal. _Acho que você vai ter que se acostuma com isso._Diana riu da timidez do namorado e também tomou um pouco do refrigerante. Ele não era tímido todo o tempo, na verdade, era muito desenvolto e articulado, falava super bem e era uma pessoa com conteúdo, daquelas com quem se gosta de conversar por longas horas sem se cansar, mas havia alguns poucos assuntos que o retraíam. _ Acho que você tem razão. Ângelo rasgou o saquinho de sal e espalhou sobre as batatas. Sempre gostou muito de batatas fritas desde pequeno, porém, com muito sal o que não era aconselhável. _Quanto tempo faz? Perguntou Diana_ Seis meses? _Quase. Uma outra menina acompanhada provavelmente do pai se aproximou da mesa onde eles estavam, era uma criança de aparentemente nove ou dez anos. Diana foi a primeira a ver. _ Boa tarde_ disse o homem. A menina olhava fixamente para Ângelo._ Me chamo Eraldo. Diana achava aquilo a coisa mais extraordinária do mundo, toda vez que seu namorado era abordado por alguém nas ruas, no shopping e em tantos outros lugares diferentes; não era uma constante, mas havia dias em que todo mundo parecia reconhecê-lo. Aquele dia parecia ser um. 31
As Pessoas o agradeciam e cumprimentavam várias vezes. _Boa tarde._Diana falou primeiro. _ Boa tarde._Ângelo ia se levantando educadamente. O homem disse: _Oh! Não se incomode, por favor, não quero atrapalhar._ estendeu a mão para ele com um sorriso enorme nos lábios. A filha dava pulinhos segurando à outra mão do pai. O homem continuou: _ Só queria cumprimentar a pessoa que salvou minha sobrinha. Tanto eu quanto minha filha, Karen, queríamos agradecer pessoalmente. Sempre tivemos vontade de conhecê-lo, mas nunca ouve condições para isso. Quando ouviu aquilo, Ângelo se levantou num pulo e totalmente sem jeito apertou a mão do homem; em seguida olhou para a menina que ainda olhava para ele com grande admiração. Diana acompanhava o encontro com interesse. _ Você é prima da Ingrid?_ Ângelo perguntou. A jovenzinha balançou a cabeça positivamente. Estava envergonhada. Há quase seis meses atrás, Ângelo foi o protagonista de um episódio de heroísmo que marcou a sua vida e a de muitas pessoas. Salvou uma menina chamada Ingrid de cair de uma roda gigante num parque de diversões da cidade. O homem disse: _ Foi muita coragem sua, obrigado. Diana perguntou à pequena Karen se ela queria algumas batatas fritas. _ Não foi coragem, não senhor, eu apenas agi por instinto, eu acho. _Seria muito mais fácil não ter feito nada, mas você ariscou a vida para ajudar a Ingrid. 32
Ângelo não lembrava de ter visto aquele homem no parque, mas na época tinham muitas pessoas, uma multidão, e obviamente ele não falou com todas, embora tenha parecido que falou. O pai de Karen podia estar acompanhando o irmão ou a irmã juntamente com esposa e filha numa espécie de passeio entre famílias. _ Desculpe, mas eu não o vi lá. Era bastante gente. Muitas pessoas cumprimentaram Ângelo no parque naquela tarde heróica. Recebeu muitos tapinhas nas costas, abraços, beijos e palavras de agradecimento; estavam todos muito emocionados com o que tinham visto. Ângelo se lembrava de um homem em particular que surgiu da multidão e lhe abraçou emocionado, um abraço forte e firme, e disse que ele era uma pessoa especial. Nunca mais esqueceria daquilo, o homem olhou bem no fundo dos seus olhos como se pudesse enxergar o espírito por dentro da carne e falou as palavras: “Você...é...muito...especial”. Aquelas palavras mexeram com Ângelo por um motivo que só ele sabia, mas antes que pudesse se concentrar naquela pessoa, muitas outras o puxaram de um lado para outro num verdadeiro turbilhão humano regozijante. Não viu mais o outro homem, porém não ia esquecê-lo jamais. _Não, não estive lá naquela tarde. Fiquei sabendo do acontecido pelo meu irmão, pai de Ingrid. _Um bom homem._observou Ângelo. Em seguida fez sinal com a mão para que tanto a pequena Karen quanto o pai se sentassem com eles. _Por favor, sentem-se conosco. Novamente o homem sorriu e ao ver a filha saboreando algumas batatas fritas com grande gosto, numa conversa de gente grande com Diana. Falou:
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_ Bem, como eu disse, não quero interromper nem incomodálo, além do mais; Karen, eu e a minha mulher, Lídia, vamos ao cinema e estamos encima da hora, a mãe dela foi comprar as entradas; estávamos passando e vimos você aqui, eu só queria agradecer pessoalmente._ e tocando o ombro da filha pediu:_ agradeça ao tio filha. _Obrigada tio._Disse finalmente a menina com a boca cheia de batatinhas. Karen engoliu as batatinhas em seguida e estendeu os bracinhos na direção de Ângelo que se abaixou e recebeu tanto o abraço quanto um pequeno beijo da criança como forma de gratidão. _ Que gracinha!_ Diana olhava a cena profundamente tocada pela singeleza do gesto da menininha. O pai falou novamente antes de ir embora: _ Karen e a prima são muito próximas; não sei se ela entende exatamente a grandeza do seu ato Sr. Ângelo, mas nossa família sempre vai ser grata pelo que fez. Não tenha dúvidas disso. Novamente o rapaz sorriu encabulado. _ Não foi nada. Antes de se retirar o pai da menina disse: _ Espero que possamos nos encontrar nas próximas festas que meu irmão organizar. _ Vai ser ótimo._ Respondeu Ângelo. Tanto o pai quanto a menina se afastaram e Ângelo sentou novamente à mesa, olhou para todos os lados e se recostou na cadeira quase indo parar debaixo da mesa. _ Ela não é uma gracinha_ Diana falava da pequenina que se afastava serelepe de mãos dadas com o pai. Ângelo mordeu o hambúrguer e não respondeu, estava com um olhar vago, pensativo. 34
_ O que foi que houve? _ Nada. Eu só estava pensando; o que foi que você disse? _ A menina não é um anjinho? _ É sim. Diana comeu mais algumas batatas e percebendo que seu namorado estava quieto, perguntou: _ Não é o máximo essa coisa de ser reconhecido nos lugares aonde você vai? Ângelo deixou escapar um som como de um espiro que ficou aprisionado e respondeu: _ No começo era, mas agora eu não sei. _ Não sabe o quê? _ As pessoas olham pra mim de uma forma diferente. Diana, sempre muito descontraída e inteligente, entendia o que o namorado estava dizendo, mas queria fazê-lo perceber que ele merecia receber os louros por uma ação tão altruísta e corajosa. Era normal. Sobretudo nos dias atuais. _ Ora. Você salvou a vida de uma menina, pelo amor de Deus, eles querem agradecer por algo que não há palavras que sejam capazes de fazer. _ Mas e quanto a todas as outras pessoas? Você viu o pessoal do McDonald’s. _Muito simples, todos viram você no jornal, aliás, você saiu em pelo menos três jornais escritos e apareceu em vários canais de televisão. Essa cidade nunca teve um herói de verdade, acho que a admiração deles é compreensível. Considere isso como um golpe de sorte, você estava no lugar certo na hora certa, foi só isso; em pouco tempo todo mundo vai esquecer de você; será notícia velha e vai ter saudades do tempo em que era o queridinho da cidade. Aproveite seus “minutos de fama”. _ Pode ser. Diana bebeu mais um gole do refrigerante e continuou: 35
_ Eu queria ter ido ao parque também, mas você não avisou a ninguém que ia. Ângelo ficou quieto mais uma vez como que trazendo de volta na mente todas as lembranças que tinha do incidente que lhe concedeu status de herói instantâneo. No episódio do parque, a roda gigante na qual ele estava apresentou um defeito mecânico que nunca ficou bem esclarecido e parou de funcionar de repente quando estava apinhada de pessoas em suas gaiolas. Ela era a maior atração dentre os brinquedos do lugar e a mais disputada também; a fila era enorme, mas valia a pena pela paisagem vista lá de cima. Era uma tarde com bastante sol e algum vento tranqüilo soprando vez por outra, mas nada que fosse capaz de afetar o funcionamento do equipamento; tudo aconteceu muito rápido e as pessoas, tanto as que estavam no brinquedo quanto as que aguardavam no deck de embarque no solo, só perceberam que algo estava errado quando viram a garotinha pendurada para o lado de fora de sua gaiola, presa apenas por um sinto de segurança que a conteve pela cintura; tanto os pés da pequena Ingrid quanto as mãos estavam soltas no ar a mais de vinte metros de altura. A mãe da menina, Patrícia, que tinha medo de rodas-gigantes por causa da altura não quis embarcar no brinquedo e ao ver sua filha sendo expelida da gaiola, aparada apenas pela fina correia do cinto de segurança que a segurou no ar e com um estalo grotesco; desmaiou e foi socorrida ali mesmo pelas outras pessoas que também aguardavam sua vez de usar o brinquedo. A correia do cinto puxou a criança que bateu com violência na grade externa da jaula suspensa e tombou como se fosse despencar de cabeça num mergulho mortal; várias mulheres no 36
solo gritaram desesperadas enquanto que os homens tentavam fazer com que o operador da máquina concertasse o que quer que tivesse acontecido. Alguns mais exaltados chegaram até a ameaçar de linchamento o funcionário do parque que nada pôde fazer. Muitas outras crianças que também aguardavam com os pais para ingressar no brinquedo olhavam para o alto com uma expressão de curiosidade e apreensão. Todas as pessoas que entraram na roda-gigante não perceberam nada de anormal, tudo estava perfeitamente em funcionamento, inclusive, os equipamentos de segurança como os cintos dentro das gaiolas e as travas e trancas das portas das mesmas. O parque havia passado por uma manutenção preventiva dois dias antes e todos os brinquedos estavam tão perfeitos quanto se nunca tivessem sido usados. Além disso, diariamente antes de abrir as portas ao público, um grupo de funcionários inspecionava cada um dos brinquedos no parque seguindo uma rigorosa lista de checagem; passavam em revista não só a roda gigante, mas também a montanha-russa, o barco viking e todos os outros, até mesmo o carrossel infantil. O cuidado exagerado na verdade se justificava, era uma forma de prevenção, porque nenhum parque quer ter de enfrentar um processo por negligencia na manutenção dos equipamentos causado por um acidente de usuário. E sem dúvida alguma os gastos com a manutenção preventiva era irrisórios se comparados com as quantias cada vez maiores pedidas em indenizações judiciais por lesão e ou danos morais. Antes de a roda gigante interromper completamente seu giro, ela emitiu um ruído alto, áspero e metálico, o som foi semelhante ao rugido do tiranossauro Rex do filme parque dos dinossauros, foi o que muitas crianças pensaram, mas também pareceu como se alguma polia ou roda dentada grande tivesse se retorcido dentro de suas engrenagens impedindo as demais 37
de funcionarem da forma correta, em seguida deu-se um solavanco forte seguido de outro ainda mais forte e foi isso o que abriu a porta da jaula onde estavam Ingrid e Héloi, arremessando a menina para fora. O trinco da grade da porta se rompeu e alguns dos ferros retorceram. Mais tarde tudo aquilo seria atribuído ao solavanco sofrido pela jaula que balançou com violência no ar catapultando a menina. O pai de Ingrid, Héloi, estava com a filha no brinquedo, crianças só podiam andar na roda gigante acompanhadas de um dos responsáveis, como Ingrid queria muito andar no brinquedo e a mãe dela sempre teve fobia de altura, coube ao pai servir de acompanhante. Ele ficou tão nervoso ao ver a filha saindo pela porta de sua gaiola como que arrebatada por um fantasma invisível que não conseguiu desatar a fivela protetora do cinto; num primeiro momento ficou sem ação por alguns milésimos de segundo e em seguida gritou horrorizado pelo nome da filha, certo de que a tinha perdido. Estavam na gaiola parada no ponto mais alto do trajeto, de lá podiam ver as redondezas do lugar onde o parque ficava situado e até mesmo a casa onde moravam. Não era longe do parque. Helói ouviu a pancada da menina contra a barra de ferro do lado de fora e o choro compulsivo da filha enquanto a correia do cinto se partia vagarosamente; ele soltou o seu depois de lutar contra ele por quase um minuto e foi até a porta da jaula, mas a menina estava fora de alcance. Ele viu a multidão que acompanhava tudo lá de baixo; por duas vezes tentou alcançar as pernas da filha que estavam a quase dois metros de distância de suas mãos. Era em vão. Ângelo estava na jaula ao lado e viu tudo o que aconteceu, presenciou o exato momento em que o corpo da criança foi jogado pelos ares preso pela coréia na altura da cintura como se a menina estivesse pulando de um “bumb junp” infantil. 38
Imediatamente soltou a fivela de seu cinto, retirou a correia e abriu a porta de sua jaula. O vento era um tanto forte lá em cima, bem diferente da brisa agradável que soprava lá em baixo no momento do embarque e a partir de um determinado momento a menina começou a pendular de um lado para outro, ela gritava amedrontada tentando se segurar nos ferros que passavam, mas estava numa posição desfavorável que a impedia; de ponta a cabeça, porque com o salto que sofrera na saída da gaiola a correia do cinto estranhamente foi parar nas pernas prendendo-as como um nó de forca faria no pescoço de um condenado. Ângelo não teve dúvida alguma, saiu da gaiola onde estava e agarrando-se nos ferros como se fosse o próprio HomemAranha começou uma decida em direção à criança; ouviu os gritos desesperados do pai, mas não se deteve para ver de onde vinham, não queria perder tempo, ele sabia que a correia que sustentava a menina presa estava se rompendo e que cada segundo podia custar caro. O mais rápido que pôde ele saltou de um ferro para outro sob os olhares atônitos da multidão lá embaixo, saltou de outro ferro para uma espécie de viga transversal repleta de grandes parafusos e porcas gigantes de metal. O brinquedo soltou outro grito metálico e um novo solavanco fez com que ele soltasse uma das mãos; as pessoas paradas e atentas lá de baixo prenderam a respiração e emanaram um ruído de espanto em uníssono. O rapaz que operava o brinquedo já havia telefonado para pedir ajuda técnica do parque que chegou muito rápido, mas ninguém conseguia achar o que estava causando aquela pane mecânica; os técnicos já haviam feito manutenção preventiva nos brinquedos e não faziam a menor idéia do que estava errado; talvez o nervosismo de todos vendo uma menina de 39
cabeça para baixo, um pai aos prantos, uma mãe desmaiada acudida por populares e um homem pendurado por uma das mãos na estrutura metálica do brinquedo, fosse demais e estivesse atrapalhando o processo de analisar e encontrar a causa da pane. Muitas das pessoas ali também tinham telefonado para o corpo de bombeiro, algumas rezavam, outras choravam e a algazarra que se formou atraiu gente de todos os outros brinquedos fazendo com que o parque literalmente parasse suas atividades e ficasse apenas acompanhando o desenrolar do incidente na roda gigante. A multidão se aglomerou e ansiosa esperava o desfecho de tudo aquilo, fosse ele qual fosse. Com apenas uma das mãos, Ângelo teve de fazer mais força do que o que pretendia, a respiração estava acelerada e ele pensou que fosse cair, mas logo recuperou a calma; tinha sido surpreendido pelo terceiro solavanco. O ombro direito reclamou, uma dor fina nos músculos que muito provavelmente era causada pelo estresse repentino sob o qual havia sido submetido, mas ele conseguiu se endireitar e segurar com as duas mãos; suas pernas balançaram no ar soltas como se fossem uma bandeira tremulando ao vento. Ele mordeu os lábios fazendo força para que seus pés alcançassem uma trave onde pudesse se apoiar novamente com segurança. A menina gritava mais alto e mais estridentemente e o pai com as mãos estendidas ao vento não tinha a menor chance de alcançá-la. Futuramente algumas pessoas da multidão diriam que não tinham esperança de que o salvamento fosse realmente acontecer; uma senhora chamada Maria Auxiliadora que também estava acompanhando os filhos e viu tudo acontecer, 40
ao ser entrevistada por uma das emissoras de televisão, quando perguntada afirmou que só estava esperando que a menina caísse porque era praticamente impossível que o homem pendurado nos ferros conseguisse chegar até ela. Essa declaração foi ao ar no dia seguinte, completando uma reportagem que deu todos os detalhes do incidente. Ângelo saltou da viga para uma barra diagonal e ficou bem perto de alcançar a criança, mas ainda não era o suficiente, teria de descer mais um pouco. Tentou esticar a mão e segurá-la pelo tornozelo, mas havia pelo menos um palmo de distância entre a mão dele e o pé de Ingrid. Outras pessoas que estavam nas demais gaiolas também acompanhavam o resgate; alguns gritavam palavras de incentivo para Ângelo e outras ligavam para parentes e amigos a fim de narrar o que estava acontecendo. Tudo aquilo era muito mais insólito do que qualquer coisa que já tinham visto. De fato, alguém teve a idéia de gravar tudo com seu telefone celular e provavelmente ao ver a primeira pessoa fazendo o registro através da pequena câmera de vídeo, muitos outros resolveram fazer o mesmo. Houve um momento em que a maioria dos que estavam presentes ali também estavam gravando. Vez por outra espocavam luzes no meio da multidão como se estivessem fotografando com câmeras digitais. Os braços e ombros de Ângelo doíam juntos e nem sempre havia suporte para que ele pudesse colocar os pés entre uma barra e outra o que tornava a empreitada ainda mais difícil e a decida mais extenuante na medida que às vezes tinha de fazer todo o esforço com os punhos, segurando-se firme nas barras de metal e sustentando todo o seu peso com os braços. Mesmo com o vento que soprava Ângelo suou frio e chegou a pensar novamente que não seria capaz de resgatar a menina antes dela se precipitar para o solo. Procurou manter o foco, era a única 41
chance que tinha, não admitia pensar em nada que não fosse alcançar a garotinha e levá-la para o chão são e salva. Foi preciso mais um salto calculado e bem realizado para colocá-lo numa posição em que pudesse alcançar Ingrid com certa comodidade e foi o que fez; agarrou ela rapidamente para não correr o risco de perdê-la com um novo solavanco grotesco do brinquedo e antes de decidir o que ia fazer ainda teve tempo de perguntar o nome da criança tentando fazer com que se acalmasse. Ouviu os gritos de alegria da multidão no solo e das pessoas nas outras gaiolas, mas estava tão concentrado naquilo que fazia que os gritos soaram para ele como sons distantes. Não teve a noção do alívio que proporcionou a todos naquele momento. A menina se agarrou ao pescoço dele com uma força tal que quase o sufocou; Ângelo pensou em escalar novamente até a jaula de onde pendiam os braços impotentes e desesperados do pai, mas logo desistiu dessa idéia, não havia possibilidade de efetuar uma subida bem sucedia, sobretudo, carregando um peso extra; os espaços vagos entre as barras e vigas de ferro eram largos demais e seu braço jamais alcançaria o apoio da viga superior, logo, a única alternativa era descer carregando a menina. Dois enfermeiros prestavam atendimento emergencial tentando reanimar a mãe de Ingrid, e ela estava retornando a si, mas não viu o exato momento em que a filha foi alcançada pelo homem que saltava nas vigas nem a explosão eufórica dos espectadores quando ele a alcançou. Algumas pessoas aplaudiram timidamente porque a tensão ainda era grande. Teve um pouco de dificuldade para soltar os tornozelos da menina, mas depois de alguns segundos tentando finalmente conseguiu.
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Iniciou a decida de modo cauteloso e muito mais vagarosamente do que o que tinha feito até aquele momento. Ingrid choramingava presa ao pescoço de Ângelo de modo que estava tornando os movimentos dos braços dele muito menos fluídicos; logo nos primeiros momentos de decida carregando a criança ele percebeu que o peso dela, embora fosse relativamente pequena, faria com que cansasse mais rapidamente, mas não tinha mais escolha e teria de agüentar firme. Não podia mais saltar de uma viga para outra e seus pés quando apoiados nas barras de cima não conseguia alcançar os mais inferiores, Ângelo tinha que soltar os pés, deixando as pernas livres no ar e se estender, ficando ele e a menina pendurados apenas pelos braços dele e mesmo assim tinha que se esticar o máximo que conseguia até que a ponta dos pés tocassem na viga abaixo. Foi preciso muito equilíbrio e uma força que Ângelo pensou não ser capaz de demonstrar. A todo o momento ele procurava falar com Ingrid tentado acalmá-la mais e mais, estava dando certo por mais incrível que pudesse parecer, mesmo arfando e respirando de modo ofegante ele perguntou para ela o nome dos pais, perguntou também se ela estudava, se tinha colegas, e uma série de coisas semelhantes. No começo Ingrid permaneceu de olhos fechados choramingando e apertando o pescoço dele com força, mas logo ela começou a responder, ainda que de forma chorosa, a cada pergunta que Ângelo fazia. Era uma menina mais forte do que seu corpo infantil franzino e sua pouca idade pressupunham. Rapidamente a menina conseguiu se desvencilhar do pesadelo pelo qual estava passando e percebeu que não corria mais tanto perigo quanto antes. A cada metro mais perto do solo, mais Ingrid se mostrava mais aliviada e afrouxava o abraço poderoso que dera em Ângelo. 43
Eles desceram os último cinco metros praticamente conversando, e embora a menina estivesse com os olhos vermelhos pelo choro e medo pelo qual passou, sua voz já não estava mais embargada quando os pés dela tocaram o chão. A multidão explodiu num frenesi de jubilo só comparado ao visto em dias de jogos da Seleção Brasileira quando do momento de um gol. Todos aplaudiram, assobiaram e gritaram sem parar; muitos desconhecidos se abraçaram demonstrando a felicidade que foi ver aquele resgate insólito bem sucedido, uma comoção que ele não esperava tomou conta das pessoas. Ângelo estava cansado e suado pela grande quantidade de energia que teve de desprender para realizar aquilo, ele não era um homem com porte físico avantajado, embora procurasse manter o preparo consideravelmente bem controlado, não era sedentário. Não tinha músculos definidos trabalhados em horas de academia, mas praticava esportes regularmente; gostava de nadar, jogar futebol, foi adepto do Taekowndo durante algum tempo e dava suas corridinhas três vezes por semana, mas nada daquilo o credenciava para fazer aquele salvamento. Mas mesmo contra todas as possibilidades o fez. Foi cumprimentado durante horas, todos ali queriam apertar a mão do herói da tarde, e quando pensou que já tinha terminado foi surpreendido pela presença de fotógrafos de um jornal local que foram acionados via telefonema de uma das pessoas do parque e chegaram em tempo recorde. Eles queriam algumas declarações e, obviamente várias fotos; a maioria delas seria descartada. A mãe de Ingrid já estava melhor e abraçava a filha com aquela alegria característica das mães, eram abraços repletos de alívio, alegria e amor. Algum tempo depois os técnicos finalmente conseguiram fazer com que a roda-gigante voltasse a funcionar, jamais souberam explicar o motivo da pane; pouco a pouco as 44
pessoas que também tinham ficado presas nas gaiolas que ainda estavam suspensas foram saindo, inclusive, o pai de Ingrid que fez questão de ir agradecer a Ângelo pelo feito digno de um anjo da guarda. Ele foi acompanhado de Patrícia que trazia a filha no colo, não se separariam tão sedo. Aquela era o tipo de experiência pela qual ninguém devia passar, mas que em acontecendo e sendo superada tornava os laços afetivos ainda mais fortes do que antes. Os três conversaram rapidamente em meio a multidão que comemorava, os pais da menina afirmaram que não tinham palavras para agradecer e depois de alguns abraços eufóricos e emocionados regados por lágrimas de gratidão e satisfação de todos eles, Helói deu a Ângelo o telefone de sua casa, sabia que não poderiam conversar por muito tempo ou demonstrar de modo pleno sua gratidão ali no parque, as pessoas gritando, comentando e aplaudindo com entusiasmo não deixariam, mas futuramente esperavam que o anjo da guarda de Ingrid se tornasse amigo da família. Ângelo recebeu o número anotado às pressas em um pedaço de papel rasgado de um saco de pipocas ou amendoim e sorriu encabulado. Aquele era um troféu de grande valor, mas não se comparava com a satisfação de saber que tinha ajudado uma família e salvado uma vida. Isso sim era incalculável. Depois daquele breve contato eles só foram se ver novamente uma semana depois, porque no parque cada um deles foi tomado para dar entrevistas tirar fotos e contar à sua maneira o que e como tudo tinha acontecido para os repórteres que chegaram bem mais tarde; espectadores também deram seus testemunhos. Aquela festa se estendeu até quase o início da noite, Ângelo foi o mais solícito que pôde e falou com a maioria dos repórteres, 45
tanto os locais quanto os de fora da cidade; tirou fotos batidas em celulares com diversas pessoas, deu sua versão resumida do que aconteceu e de como agiu para salvar a menina. Não queria puxar a glória do salvamento para si e preferia se esquivar dos elogios dizendo que qualquer outro em sua situação teria feito o mesmo. Quando já estava tudo praticamente resolvido, restando apenas alguns pequenos grupos querendo falar com ele, o homem apareceu. Aquele homem que ele jamais esqueceria. Durante dias Ângelo chegou a alimentar a idéia de que aquela pessoa podia ter causado o problema do brinquedo, talvez quisesse atingir o parque por algum motivo, alguém como um funcionário demitido de forma injusta, por exemplo; ou talvez estivesse mais interessado em ferir ou matar alguma pessoa que estava na roda gigante naquele momento. Poderia estar respirando uma vingança mortal por qualquer motivo. Na atual conjuntura social do Brasil e do mundo a única certeza era a crescente formação de pessoas desequilibradas. Nesse caso Ingrid seria um efeito colateral; mas tudo aquilo não passava de suposição. O certo era que a face daquele homem e a forma como ele dirigiu as palavras, olhando para o interior dos olhos de Ângelo ficaram gravadas na memória dele. Ângelo desistiria de fazer conjecturas concluindo que o incidente ocorreu e as causas poderiam ser qualquer coisa ou poderia não ser coisa alguma além de um simples defeito no maquinário. Nunca mais viu o tal homem e a história do salvamento no parque ganhou proporções que o herói não podia imaginar; na mesma noite a internet propagou as imagens gravadas no parque, mais de cem vídeos mostrando vários pontos de vista e perspectivas diferentes foram postados por internautas no site “Youtube” e as visualizações passariam de um milhão nos 46
meses futuros. O sucesso na rede referendava a bravura do ato e os vídeos também foram usados em rápidas reportagens na televisão. Ângelo chegou a ser procurado por um programa de entrevistas com um dos maiores apresentadores da televisão brasileira, mas incrivelmente declinou do convite. Nenhuma das pessoas mais próximas compreendeu a causa da recusa. Uma tarde que começou bem teve tudo para terminar em tragédia, mas o final foi feliz para a família de Ingrid que teve a sensação de nascer novamente. Ângelo alcançou os tão falados quinze minutos de fama e aquilo era apenas o começo, cinco meses depois ele ainda seria reconhecido por toda parte. E aquilo era um pouco incomodo para ele, não era um herói e nem queria tomar tal título sobre si; na verdade tinha medo de ser colocado sob as lentes da mídia ou sob os olhares ávidos e atentos das pessoas. Não era ou não se considerava especial como disse o estranho homem no parque e como a maioria da população do mundo, ele também possuía segredos escondidos que gostaria de deixar nas sombras à margem da luz. Segredos cuja face talvez pudesse assustar o mais corajoso dos homens. Ele terminou de comer o hambúrguer sob o olhar brilhante de Diana. _ Foi uma tarde e tanto, aquela._ disse. A namorada também estava terminando seu lanche. _Eu sei que você é um pouco tímido, mas isso é normal. _ Acho que você tem razão. _ É claro que tenho._ disse Diana brincando_ Eu sempre tenho razão; até quando estou errada eu tenho razão. Já devia saber disso. Ela conseguiu tirar um sorriso apertado do namorado. _ Às vezes eu não entendo essa sua recusa em receber elogios e felicitações pelas boas coisas que faz. 47
Ângelo balançou a cabeça de um lado para outro. _ É apenas um desconforto, sabe, não me sinto como eles dizem; não sou melhor do que ninguém. _ Ninguém disse que era. _Gosto de sua sinceridade! _Obrigado. Diana colocou a mão por sobre a mesa e segurou na dele que retribuiu o aperto carinhosos, ele recebia os louros da vitória, não somente pelo que tinha feito no parque de diversões, mas por ser uma pessoa sempre envolvida em procurar tornar a realidade a sua volta em algo melhor; costumava ajudar ainda que com uma pequena quantia a três centros de ajuda: um asilo, um orfanato, e uma casa de acolhimento de animais abandonados; da mesma forma, sempre procurava se engajar em projetos e programas sociais e de cunho ambiental. Ângelo era o tipo de pessoa que não fugia de fazer a sua parte no mundo, cada dia mais caótico, mesmo que todas as outras não fizessem as suas. Não era por acaso que os pais dele tinham dado aquele nome para ele, previam que seria um homem consciente de seus deveres junto à sociedade, politizado e sempre em busca de dar a sua contribuição. Diana o admirava também por isso. Porém na visão dele, Diana era muito mais forte do que ele jamais seria, era aquela força combinada à inteligência que tinham feito com que se apaixonasse. Ângelo não conhecia a si mesmo por completo e havia coisas dentro dele que o incomodavam, segredos que carregava desde que se entendia por gente e pensamentos que começavam a se tornar difíceis de sufocar. Gostaria de compartilhar suas dúvidas com a mulher que amava; talvez ela pudesse lançar luz sobre ele onde ele mesmo estava falhando em fazê-lo. Por
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outro lado teve medo de que seu segredo fosse algo com que Diana n達o pudesse lidar, mas tinha de tentar.
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03 Caminhando por uma calçada difícil de transitar onde os blocos de concreto estavam quase totalmente destruídos e esburacados; raízes de árvores antigas rasgaram o concreto em várias calçadas que se tornaram tão acidentadas quanto terrenos íngremes nas subidas de montanhas. Somando-se a isso anos de descaso tanto dos moradores locais, responsáveis pela conservação das calçadas, quanto da prefeitura municipal sobre quem recaía a responsabilidade da manutenção das árvores que estavam tão altas que seus galhos já ameaçavam romper com os fios da rede elétrica. Fausto ficou de olho em todas as direções, procurando se esconder de alguém que o pudesse identificar. Ele saiu de casa logo no início da tarde; sabia bem aonde devia ir, tomou o ônibus e meia hora depois estava caminhando num bairro diferente do seu. Um bairro que ele não visitava há muito tempo e no qual viviam algumas pessoas que o conheciam, ao menos conheciam sua aparência. Por isso tinha certa urgência em fazer o que devia e em seguida sumir o mais rápido possível. Por mais que gostasse de criar situações que colocassem os outros em perigo, não queria se demorar ali mais do que o necessário, tinha muita coisa para planejar e fazer. E começaria com alguns acertos de contas antigos; situações que ficaram pendentes quando da última visita; mas agora que estava definitivamente de volta ia cobrar algumas dívidas de sangue. Não havia encontrado nenhum rosto conhecido. Mas não abaixou a guarda, continuou sendo o mais incógnito que pôde. 50
Trajava calça jeans escura e antiga, mas não surrada nem desbotada ou rasgada, não gostava dessas coisas, preferia se vestir de forma pouco chamativa, mas sem modismos anárquicos típicos da juventude; usava tênis olympikus, camisa do time de futebol do arsenal de Londres sob um casaco de couro marrom cujas mangas estavam perfeitamente dobradas até os cotovelos. Uma arma também estava sob o casaco às suas costas devidamente escondida; embora pudesse fazer coisas que a maioria dos seres humanos não imaginava, ele também gostava de manejar armas de fogo sobretudo por causa do terror que elas incutiam nas pessoas. Muitos homens ao se depararem com fenômenos sobrenaturais ou coisas do desconhecido não demonstravam tanto medo quanto era de se esperar, tampouco pânico ou terror quanto quando eram colocados sob a mira de uma pistola, talvez isso se desse pelo fato de que por não entender plenamente tais fenômenos, o cérebro humano não conseguisse associar de forma satisfatória ou medir o grau de perigo ao qual estava exposto. E de certa forma aquilo frustrava Fausto na maioria das vezes, na opinião dele o homem era tão imperfeito que nem mesmo reconhecia quando estava diante de forças superiores. Mas tinha certeza de que um dia esse quadro ia mudar, quando ele começasse com o que chamava de “Sua Obra”. Por isso Fausto apreciava muito mais apontar uma arma de fogo para uma pessoa, porque aí sim o cérebro humano parecia entender perfeitamente a relação de poder envolvida. As pessoas preferiam se deparar com o próprio diabo, mas nunca ninguém desejaria ficar frente a frente com o cano de uma revolver. Essa era a mentalidade moderna dos indivíduos. Fausto adorava ameaçar pessoas com pistolas; primeiro porque sentia uma correlação revigorante de poder girando entre ele e suas vítimas, sentia o medo incontrolável jorrando pelos olhos 51
e sentia a sua superioridade sendo materializada nesse medo primitivo de todo ser vivo. O medo de morrer. Em segundo lugar, Fausto se regozijava intensamente em exercer autoridade sobre os outros e uma arma era o equivalente moderno aos relâmpagos de Zeus na antiguidade, ou seja, a ferramenta mais temida por toda a sociedade. Ele achava tudo aquilo extremamente delicioso e, fazê-lo, o elevava a um estado de espírito de quase perfeição. Fausto se sentia mais poderoso, mais temido e superior quando disparava uma arma do que quando lançava mão de seus outros atributos sobrenaturais, embora gostasse muito de usá-los também. Ao sair de casa Fausto também lançou mão de seus óculos escuros de lentes grandes e armação fina do tipo “Ray ban”, usava também um boné enfiado na cabeça de modo que a aba escondesse parte do rosto. O boné tinha a logomarca de um grande hotel localizado na zona sul do Rio de Janeiro, mais precisamente na Av. Atlântica em Copacabana; a aba era bordada na frente e com a bandeira do estado igualmente bordada na lateral direita. Ele caminhava com as mãos nos bolsos do casaco, o corpo curvado para frente como se sofresse de algum problema na coluna e a cabeça baixa para dificultar ainda mais qualquer identificação de uma pessoa que pudesse julgar conhecê-lo. O sol da tarde não estava tão quente quanto ele esperava que estivesse, fazia muito tempo que não saia da prisão e quis dar uma boa olhada nas coisas antes de acertar as contas com uma pessoa em especial. Na verdade seria a segunda numa série de quatro. Precisava eliminar essas pessoas porque conheciam seus segredos e Fausto não era burro, sabia que havia outros com propensão a ser como ele ao redor do mundo e não queria
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despertar mais atenção sobre si antes de alcançar a plenitude do que era. Ou do que deveria ser. Em certa ocasião Fausto esteve num parque de diversões e lá conheceu uma dessas pessoas especiais, viu exatamente como o rapaz era superior aos demais seres humanos aglomerados num grande turbilhão. Fausto fez questão de cumprimentá-lo, estava feliz por ver outro ser superior e prometeu a si mesmo que tão logo cuidasse dos assuntos mais urgentes; teria uma boa conversa também com aquele jovem promissor e especial. Enquanto andava olhando as pessoas que dividiam a rua e também as calçadas com ele, Fausto procurava algo diferente, estava feliz e sua cabeça estava cheia de idéias que ele queria colocar em prática o mais rápido possível; sentia-se extremamente alegre porque tinha certeza de uma coisa, não voltaria mais para a prisão agora que finalmente tinha conseguido escapar. Sentia-se muito diferente da última vez que esteve livre; agora sentia-se mais disposto, mais forte e muito mais preparado para iniciar e terminar a Sua Obra. Ao passar frente a uma loja, um estúdio de tatuagens, Fausto parou e olhou pela vitrine onde podia ver várias fotos contendo partes diversas de corpos tatuados; certamente eram fotos de clientes que viraram modelos a pedido do artista tatuador que atendia naquele lugar. Fausto ficou alguns minutos observando cada desenho com grande interesse, pensava ser uma boa idéia fazer uma tatuagem e ponderava cuidadosamente onde fazer e qual desenho seria mais oportuno para comemorar sua liberdade definitiva. A vitrina de fotos mostrava braços, pernas, cochas, pés, costas, pescoços, ombros, punhos, panturrilhas, cinturas, glúteos e outras partes do corpo de homens e mulheres, mas não mostrava os rostos de nenhum dos modelos.
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Os desenhos muito bem trabalhados e com riqueza de detalhes eram as representações perfeitas de animais como tigres, dragões, cães, lobos, cavalos e aves; ou insetos como borboletas, centopéias e escorpiões; seres fantásticos como fadas diversas, duendes e gnomos; ou mitológicos como centauros, faunos e minotauros. Fausto adorava minotauros. Havia também anjos e anjas com um ou mais pares de asas, bruxos e bruxas carregando seus livros de feitiços e vassouras encantada; demônios masculinos e femininos _ Fausto sorriu ao vê-las desenhadas, mulheres com curvas e trajes provocantes ostentando pares de chifres, asas de morcego e caudas em forma de seta_ outras tatuagens mostravam monges, reis, rostos de crianças, de mulheres, de homens, vultos históricos como Che Guevara, Mao Tse Tung, bandeiras de países e várias outras como bandeiras e escudos de times de futebol e grupos diversos; muitos objetos, desde tridentes até cruzes e uma infinidade de nomes tatuados com uma caligrafia bastante elaborada também completavam a coleção fotográfica devidamente exposta por trás do vidro frontal da loja. Sem dúvida o dono do estúdio era um artista digno de aplauso. Fausto teve a certeza de que iria fazer uma tatuagem tão logo conseguisse algum tempo para si. Mas antes deveria resolver um assunto que ainda estava pendente. Deixou a frente da loja de tatuagens imaginando qual daquelas obras de arte colocaria no corpo e também em qual parte do corpo ficaria mais satisfatório. Pensou em colocar um dragão enrolado ao tórax, mas achou que era muito chamativo e pouco significativo ou verdadeiro; qualquer pessoa podia fazer aquilo então desistiu, na época atual dragões já não representavam o mesmo que em eras anteriores, muito de sua glória se perdeu no tempo e principalmente com a banalização dos mesmos em toda parte soterrados pela boçalidade dos homens. 54
Imaginou se tatuar asas angelicais enormes em suas costas seria uma boa idéia, mas no fundo detestava anjos, sempre os detestou e não queria nada que pudesse estabelecer uma relação entre ele e os seres celestiais, mesmo que fosse apenas uma simples tatuagem. Ponderou a possibilidade, então, de pedir ao tatuador que fizesse uma daquelas mulheres com chifres e rabo de seta, uma diaba, como se dizia, mas também não fazia o seu estilo; vários caminhoneiros tinham desenhos como aquele e por mais bem tatuados que ficassem, por mais riqueza de detalhes que o artista conseguisse colocar, ainda assim seria somente uma imagem sem significado algum, ao menos para ele. Desenhos semelhantes podiam ser encontrados com facilidade em qualquer revista em quadrinho dos últimos dez ou vinte anos ou em jogos de vídeo game dos mais diversos. No mundo moderno demônios eram apenas mais um objeto de entretenimento; só diversão. Fausto conhecia muita coisa do submundo, sabia tanto sobre as criaturas do mal que já se considerava superior a muitas delas. Ele tinha esse conhecimento inato, nasceu com aquilo e se desenvolveu durante seus primeiros anos de vida e muito mais depois da prisão e do exílio. Anjos e demônios eram coisas que surpreendiam as pessoas comuns, mas ele não. Continuou caminhando por ruas secundárias com pouco ou nenhum movimento para aquela tarde e enquanto andava ainda tentava decidir qual tatuagem poderia ter o significado que ele desejava, na verdade tratava-se mais de satisfação pessoal do que qualquer outra coisa, devia ser perfeita e transmitir todo um conjunto de informações que resumissem quem era ele. Não tinha a intenção de mostrar a tatuagem para ninguém, mas como ainda não estava totalmente pleno de sua consciência queria ver algo que gostasse toda vez que olhasse no espelho. 55
Pensou em pentagramas nos ombros, mas novamente cairia na mesma barreira moral, afinal, pentagramas na cultura popular geralmente faziam menção as forças do mal, forças decaídas corrompidas que as pessoas não conheciam e fingiam temer, embora ele já tivesse constatado que homens temiam mais uma bala de chumbo do que magia infernal. Ele queria algo que remetesse a seres muito acima disso, seres da família das divindades absolutas; forças da natureza e ou do caos. Pensou em desistir de qualquer desenho por mais bonito ou bem feito que fosse e achou melhor recorrer a uma palavra, um nome na verdade, que fosse capaz de reunir as características que ele adorava e representasse o peso, o poder e a autoridade dos seres perpétuos; pensou num nome que denotasse tudo aquilo e ao menos num primeiro momento somente uma opção lhe ocorreu. Tânatos. _ Tânatos!_ disse para si mesmo enquanto andava ainda tranquilamente. Surpreso por encontrar uma opção tão boa e tão rapidamente. O nome era, ao menos em princípio, quase perfeito. Representava a única certeza da vida ao menos para as pessoas comuns; homens como ele e até mesmo como aquele jovem no parque de diversões não deveriam esperar ter o mesmo fim das demais pessoas, eles eram especiais; na verdade eram mais do que especiais. E podiam chegar a ser perpétuos. Por trás dos óculos de lentes grandes e escura os olhos de Fausto se moviam sempre que via uma pessoa vindo em direção contrária à sua, andando nas calçadas ou ruas por onde ele estava passando e o nome Tânatos lhe parecia cada vez melhor e mais oportuno a cada instante; de fato, era um nome que ao menos em parte combinava uma porção de sua própria essência. Segundo a mitologia o nome significava a
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personificação da morte e não havia nada que o animasse mais do que aquilo. Pensou em Jeremias e Mônica. Precisava encontrá-la. Finalmente chegou à rua que desejava, ao virar na esquina se deteve por um minuto tirou as mãos dos bolsos e apertou uma contra a outra como que medindo o quanto de força era capaz de colocar num aperto. Estava pronto. Andou rapidamente até uma das casas, poucas pessoas transitavam pelo lugar, mas um homem com o uniforme laranja da prefeitura da cidade varria cuidadosamente os paralelepípedos dos quais a rua era feita, retirando folhas secas de árvores em grande quantidade. E outro com a roupa da empresa de correios e telégrafos fazia seu trabalho apressadamente. Fausto parou na frente da casa; era uma residência tão simples quanto qualquer outra da rua, muro com mais ou menos dois metros em cimento sem tinta alguma por cima ou qualquer detalhe que visasse melhorar a aparência do imóvel, o portão de ferro gradeado estava encostado, mas, se conhecia bem o dono do lugar sabia que ele não costumava deixar fechado. Era um bairro residencial e muito familiar, os índices de violência eram mínimos e além do mais, as pessoas se conheciam muito bem; era uma vizinhança muito entrosada e amistosa. Muitos bairros dos subúrbios e de municípios da baixada fluminense ainda mantinham aquele ar pitoresco e até mesmo bucólico em algumas regiões mais interioranas. Experimentou o trinco de ferro do portão, puxando-o, e ele correu tranquilamente; não havia cadeado ou corrente para impedir. Entrou calmamente no terreno construído com blocos de cimento como se fosse um grande mosaico terrestre também sem nenhum atrativo visual, não tinha beleza alguma. O carro 57
do dono da casa estava ali do lado numa garagem improvisada sem cobertura e a mercê das intempéries da natureza, era um carro antigo e muito malcuidado, um Volkswagen Gol. A casa tinha somente a porta frontal e uma janela protegida com grades de ferro escovado, não pintado, chumbadas na parede o que sem dúvida era uma forma de impedir invasores de entrar no domicílio por ali. A casa era antiga, construída há quase um século e fizera parte de uma vila assim como as demais casas da localidade, embora todos os vizinhos que compraram os imóveis acabaram fazendo reformas que renovaram e remodelaram cada domicílio de uma forma diferente. Apenas aquela casa mantinha o formato original, apenas com algumas melhorias. Ao lado e quase junto da porta estava afixada no chão sobre um suporte também de ferro uma caixa de correspondências de um modelo antigo semelhante a uma pequena casa com telhado triangular, praticamente uma peça de museu; geralmente elas ficavam nos muros das residências, mas por algum motivo aquela estava dentro do quintal e possuía alguns envelopes colocados de forma organizada dentro do espaço preparado para eles. Certamente aquele carteiro que estava andando pela vizinhança já devia ter passado pela residência e deixado todas as correspondências que trouxera com aquele endereço como destinatário. Fausto retirou os envelopes sem nenhuma cerimônia, não pretendia abri-los, mas sim averiguar cada um deles, poderiam conter alguma informação que fosse útil para ele no futuro e caso isso acontecesse Fausto os levaria consigo, mas não foi o caso. Eram cinco ao todo, um da empresa de telefonia celular, outro da empresa de telefonia fixa; uma da caixa econômica federal, conta de luz e conta de água. Depois de olhar todas, não abriu nenhuma delas, mas estudou atentamente os 58
envelopes e em seguida colocou cada uma dentro da caixa exatamente como estavam antes de serem retiradas. Julgou que não haveria nada importante em envelopes de contas e cobranças. Fausto parou bem na frente da porta, havia uma pequena campainha redonda ao lado. Era velha e tinha uma aparência de que não estava funcionando há séculos, mantinha a cor de cobre envelhecido e parcialmente esverdeado, mas ele resolveu experimentá-la assim mesmo. Pressionou o botão com o dedo apenas por desencargo de consciência e ouviu um som de sinos em algum lugar dentro da casa, imediatamente, percebendo que o pequeno equipamento ainda estava funcionando bem, apesar da péssima aparência, a tocou outra vez e antes que o dono da casa viesse atender ele deu mais uma olhada ao redor, constatou que ninguém o estava observando da rua que deixara para trás. Ficou muito satisfeito com a tranqüilidade do bairro ao redor da casa, facilitaria muito o seu trabalho. Mônica, provavelmente não estava ali naquele lugar, era muito óbvio, seria o primeiro local a ser verificado por qualquer pessoa que a estivesse procurando, mas alguém sabia onde ela estava e esse alguém certamente era o irmão dela, Leonardo. O único morador do lugar. Fausto tocou a campainha mais uma vez e finalmente ouviu a voz de Leonardo vindo lá de dentro. _ Só um minuto. _ respondeu do interior da casa. O visitante se virou mais uma vez para checar se não havia alguém prestando atenção. Não havia ninguém. Fazia muito tempo que Fausto não via Leonardo, e gostaria de saber como é que ele reagiria ao vê-lo parado na frente da sua casa. Os passos vinham lá de dentro e Fausto divisou a silhueta de Leonardo através do vidro canelado da porta. 59
Ouviu o som da chave girando na fechadura e em seguida a porta se abriu parcialmente. O rosto branco e ossudo de Leonardo apareceu na fenda criada entre a porta e o batente lateral, cabelos desgrenhados e a cara amassada e vincada de quem estava dormindo e acabara de acordar. Parecia o rosto de uma fantasia de fantasma, branca, feita com algum lençol velho e recém saído de uma máquina de lavar. Estava péssimo. Mostrava o cansaço e os traços de quem havia exagerado nas bebidas. Quando viu quem o estava esperando do lado de fora interrompeu o ato de abrir a porta; franziu o cenho tornado a face tão dura e sem expressão quanto uma máscara. Disse: _ O que é que você quer aqui? Fausto foi seco na resposta e tampouco demonstrou alegria alguma ou qualquer outro sentimento amistoso em ver o dono da casa. _ Cadê a Mônica? _ Ela não está aqui._ rebateu o outro. _ Onde ela está? Os olhos de Leonardo correram de um lado para outro como que procurando ver se havia mais alguém do lado de fora. _ Não sei onde ela está._ afirmou. As palavras que trocavam eram totalmente desprovida de qualquer sentimento de amizade. Os olhos de Fausto se estreitaram por detrás das lentes escuras como se ele estivesse tentando enxergar além das palavras de Leonardo. Sabia que o outro estava mentindo. _ Preciso falar com ela. _ Ela não quer mais falar com você. _ O irmão de Mônica rebateu novamente, já demonstrando alguma impaciência. Leonardo trabalhava como vigilante particular no turno da noite em uma agência bancária, por isso estava em casa 60
naquela tarde e em todas as outras também, mas antes do emprego no banco ele tinha trabalhado com Jeremias no mesmo hotel durante quase cinco anos embora ocupassem funções distintas; Jeremias era encarregado de recepcionar as pessoas e trabalhar com o registro dos hospedes, liderava uma pequena equipe composta por quatro jovens mulheres talentosas, duas das quais eram apaixonadas por ele. Já Leonardo era um dos seguranças que atuava no primeiro turno, ou seja, diurno. Muito habilidoso e preparado, tinha pertencido ao corpo de fuzileiros navais da marinha do Brasil, por um período de cinco anos e serviu a maioria desse tempo no primeiro distrito naval na Praça Mauá, no centro do rio. Recebeu baixa por motivos que ele jamais compreendeu; em seguida pensou em entrar para a polícia do Rio de Janeiro, mas Mônica e a família acharam que era perigoso demais, depois de muito relutar ele resolveu partir para a área da segurança particular, assim poderia aproveitar o conhecimento de armas adquirido através do corpo de fuzileiros e faria algo que gostava. Logo que se formou no curso para segurança, ele não teve problemas para conseguir um novo emprego que foi justamente o hotel onde conheceu Jeremias, tornaram-se amigos e foi justamente Leonardo quem mais tarde ensinou Jeremias a atirar. De fato, foi Leonardo também quem apresentou a Irmã para o atual ex-marido, na verdade não era ex-marido na concepção total da palavra, eles não eram casados de verdade no papel, não houve casamento formal algum nem no civil nem no religioso, Jeremias e Mônica apenas se apaixonaram e foram morar juntos pouco tempo depois de se conhecerem, na casa dele. Julgaram que daquela forma seria menos oneroso para ambos; nenhum dos dois queria gastar rios de dinheiro para 61
bancar uma festa, ao menos não naquele primeiro momento, mas secretamente Mônica desejava que no futuro aquilo acontecesse, porém nunca forçou a barra, nem teve tempo. Leonardo saiu do hotel porque tinha recebido uma melhor proposta de emprego nessa agência bancária no centro do Rio de Janeiro, muito próximo do quartel naval onde ele havia trabalhado antes e a diferença salarial que ganharia com o adicional noturno e outros benefícios extras seria de grande ajuda para suas pretensões. Desejava se mudar para uma casa melhor, um pouco mais ampla, de preferência com garagem e comprar um carro mais atual, talvez até um zero quilometro. Durante muito tempo Jeremias e Leonardo foram muito amigos e quando Jeremias passou a morar com Mônica foi ainda melhor, ao menos no começo, porque algo aconteceu, muito rápido; algo que assustou a irmã dele, ela suportou o quanto pôde até que não conseguiu agüentar mais e saiu de casa deixando o relacionamento para trás sem dar maiores explicações. Na última vez em que os irmãos conversaram ela tinha falado sobre Fausto, mas não conseguiu explicar direito qual era sua relação com ele; Leonardo não entendeu, mas ainda iam conversar a respeito. _ Por que ela não quer falar comigo? _ Não sei, nem me interessa saber. Saia da minha casa. Agora! Logo que Leonardo soube que Jeremias, com seus ataques de insanidade, estava fazendo Mônica sofrer, a relação dos dois amigos ficou estremecida, tiveram vários bate-bocas por causa dela e certa vez quase chegaram às vias de fato esmurrando-se um ao outro. A amizade foi rapidamente substituída por um sentimento de raiva que foi sendo gradativamente alimentada por ambos, Leonardo não queria mais ver Jeremias em sua frente e deixou isso bem claro na última briga entre os dois. 62
Na visão de Leonardo, o mau-caráter do “ex-cunhado” se fingia de sonso e desconversava toda vez que alguém tentava falar sobre as coisas que estavam acontecendo no relacionamento deles. Jeremias fingia não saber do que Leonardo estava falando e jurava que Mônica estava inventando coisas para colocá-los um contra o outro e destruir a amizade que tinham construído no princípio. Depois de algum tempo a situação entre os ex-amigos ficou insustentável e pararam de se falar. Na verdade começaram a se odiar, cortaram todo e qualquer contato. _ Como eu encontro com ela?_ Fausto perguntou. _ Não sei. Saia da minha casa. _Acho que precisamos conversar. Leonardo respondeu de um modo violento e fulminante: _ Não!_ E já ia fechando a porta. Fausto colocou o pé entre a porta e o batente impedindo que ela se fechasse completamente. _ Acho que você não entendeu. Leonardo já ia falar alguns desaforos para o outro quando a porta bateu contra a sua testa com muita violência, não estava esperando aquilo e o impacto foi com tanta força que ele saiu cambaleando de costa com a mão na testa e xingando tantos palavrões quanto se lembrava. Uma luz branca apareceu nos seus olhos por um momento, pensou ter visto estrelas com a pancada. Fausto havia empurrado a porta de ferro contra o rosto de Leandro e em seguida entrou tranquilamente na casa fechando a porta atrás de si. Leonardo praguejou enquanto Fausto girava a chave na fechadura para trancar a porta e em seguida colocava a chave no bolso do casaco. _ Vamos ter uma conversa hoje._ disse o invasor. 63
_ Você ficou maluco!_ Vociferou o dono da casa. _ Onde está Mônica? _ Ela não está aqui. Rapidamente um hematoma avermelhado apareceu na testa branca e ossuda de Leonardo, a dor era localizada e certamente aquilo ia deixar uma marca roxa abominável no dia seguinte. _ Sei que ela não está aqui. Quero que você me escute bem; você vai me dizer onde ela está e será melhor para todos nós. Principalmente para você. Estavam na sala da casa, era pequena, mas bem arrumada, com todas as paredes pintadas em branco gelo e móveis dispostos de forma ordenada ao redor de uma mesa de centro baixa feita de vime e com tampo de vidro. _ Mas o que você está fazendo seu..! Fausto retirou os óculos Ray ban e os guardou no bolso do casaco junto da chave. _Sente-se aí Leonardo. _ Você ficou louco foi? Perdeu o juízo de vez?_ Leonardo passava a mão freneticamente sobre o lugar onde o ferro duro e frio da porta bateu, como se o esfregar continuo pudesse fazer desaparecer a mancha avermelhada que apareceu em poucos segundos. _ Senta logo aí nessa cadeira. _ Fausto apontou para o sofá pequeno encostado em uma das paredes. Parecia feito de borracha cor de vinho. _ Não vou sentar coisa nenhuma! Quero que você saia da minha casa. Agora. _O dono da casa levantou a voz, mas aquilo pareceu não surtir nenhum efeito. _ Acho que você não entendeu, eu não vou embora até você dizer em que lugar Mônica está se escondendo.
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Havia uma estante logo atrás de Leonardo, e nela Fausto pôde ver várias fotografias colocadas em molduras de acrílico em tamanhos médio e pequeno. _ Não pode vir na minha casa e me agredir. _ Pelo que sei a casa não é sua; é alugada._ Fausto se deliciou em dizer aquilo. A casa era mesmo alugada e Leonardo não teve resposta para dar. A testa doía e Leonardo xingou o outro mais uma vez, já que não conseguiu responder à provocação de modo igual. Em seguida disse: _ Você é mesmo um miserável; porque não deixa minha irmã em paz. Fausto não respondeu, caminhou para a estante ignorando momentaneamente o outro e viu mais de perto as fotos nas molduras de acrílico transparente. Rapidamente os olhos dele foram atraídos para uma foto onde estavam em primeiro plano, Leonardo abraçado a uma mulher que Fausto não conhecia, era morena e um tanto atraente; em seguida havia Mônica segurando uma menina sorridente com trancinhas em ambos os lados da cabeça e vestido florido que parecia, na visão de Fausto, caipira demais até para uma criança. Em segundo plano estavam um homem e uma mulher também desconhecidos, mas não de todo, já os tinha visto antes, e, por fim, ao fundo mais uma bela mulher e um rapaz do qual ele se lembrava muito bem. O Jovem mostrado em diversos jornais meses atrás e com quem havia se encontrado ainda que rapidamente e no meio de uma multidão no parque de diversões. Todos na foto estavam alegres e posavam descontraidamente num gramado verde e bem cortado sob a sombra de uma árvore grande e frondosa que a julgar pelo tronco devia ser uma mangueira. Em último plano estava uma bela casa. 65
_Onde é esse lugar?_Fausto perguntou. _Não te interessa. _ Está tornando tudo muito mais difícil e bastante desagradável. Quem são essas pessoas?_ insistiu. Leonardo olhou para a foto que agora estava na mão do outro, havia sido tirada na festa de aniversário de Ingrid na casa de Patrícia, Heloi e Ingrid, dois meses atrás. Patrícia era prima de Mônica e Leonardo. E Mônica, por sua vez, era também madrinha da pequena Ingrid. Naquela ocasião em especial, Leonardo tinha ido à festa acompanhado de uma pessoa com quem estava se relacionando, namorando, mas que não deu muito certo. Era a mulher que estava abraçada a ele na foto; terminaram dias depois. Relacionamentos longos e estáveis eram muito complicados para a mente linear dele conseguir trabalhar e suportar. Fausto sabia da ligação familiar que existia entre eles por isso tentou atingi-los no parque quando estavam na roda gigante. Mônica não tinha filhos com Jeremias e adorava crianças, principalmente aquela criança e sofreria terrivelmente se algo de ruim acontecesse com a pequenina Ingrid, na verdade a criança era praticamente o pilar central da família. Ele quase conseguiu no parque, mas ao fracassar não ficou de todo chateado, pelo menos conheceu outro ser especial. Outra pessoa que possuía as mesmas prerrogativas superiores que ele. Não sabia onde aquelas pessoas moravam, mas ia descobrir; já os tinha visto uma vez no parque de diversões assim como o rapaz que também estava na foto. O rapaz especial que salvou a criança e que certamente deveria ter forças diferenciadas agindo em sua vida. Sentiu isso ao olhá-lo nos olhos em meio aquela multidão. Fausto não pensava ser capaz de encontrar outra pessoa como ele e pensou que aquele jovem poderia ser de grande ajuda se fosse apresentado a verdade sobre a origem 66
de seus dons. Esperava poder convertê-lo aos mesmos propósitos que regiam sua própria vida. _E esse rapaz; quem é? Já totalmente impaciente e percebendo que Fausto não sairia de sua casa sem antes arrumar confusão, Leonardo falou: _ Vá pro inferno! Sai da minha casa ou eu... A foto já repousava no seu devido lugar e Fausto havia tirado a arma que trazia escondida nas costas, presa na calça, sob o manto do casaco de couro. Apontava o revolver segurando-o firmemente com a mão direita, dedo no gatilho e o braço estendido na direção do outro. Leonardo emudeceu instantaneamente. _ Então será desse jeito._ Fausto pronunciou cada palavra de uma forma melíflua e sem pressa alguma. Finalmente Leonardo sentou na cadeira, na verdade, deixou o corpo cair, ficou totalmente sem reação quando viu a arma apontada em sua direção. Fausto adorou ver os olhos do dono da casa, transmitiam exatamente aquela correlação de poder e autoridade que ele tanto amava; era como se a pistola tivesse conferido repentinamente ao invasor uma espécie de aura de divindade, e o poder sagrado de tirar a vida do outro. Ou mantê-la se assim o desejasse. _ Comece dizendo_ Propôs Fausto_ onde essas pessoas moram. _ Não sei onde moram._ mentiu. Fausto avançou um passo ainda com a arma apontada para o outro como se fosse a ponta de uma lança mortal pronta para desferir o derradeiro golpe. Ele disse: _ Vou simplificar para você. Você me diz onde ela está e eu não faço você sofrer; prometo. Mas se negar que sabe onde ela está se escondendo mais uma vez, vou lhe causar tanto 67
sofrimento que você vai amaldiçoar todos os poderes da criação por não aliviarem sua dor. Leonardo apenas piscou, estava ponderando o que poderia fazer, mas os olhos ainda transmitiam o medo primitivo que alimentava o ego do outro. _Você não é louco de atirar em mim aqui, o barulho vai chamar a atenção dos visinhos._ Foi o argumento mais plausível que encontrou. Mas não tinha tanta certeza sobre a veracidade de suas palavras. Fausto deixou escapar um sorriso de desapontamento e balançou a cabeça positivamente como se concordasse com o que foi dito. Em seguida num movimento repentino disparou para o lado; a bala acertou o centro da televisão desligada, mas o mais incrível, inacreditável, foi que a arma não produziu ruído algum, nenhum estampido seco, nem mesmo um estalo, nada. E ela não estava com silenciador. Aquilo era impossível. Havia um sorriso mais largo e muito mais maquiavélico na face de Fausto. Que disse: _ Se eu matar você agora ninguém jamais vai saber. Leonardo ainda não entendia como a arma disparou sem produzir som algum, ele conhecia de armas devido ao treinamento militar e sabia que uma pistola 9mm jamais poderia disparar silenciosamente sem que um aparelho silenciador apropriado estivesse acoplado ao cano. Tentou dizer alguma coisa, mas a saliva desceu garganta abaixo e impediu. Foi Fausto quem falou: _ Hora da verdade. Onde ela se escondeu? Não teve resposta, não porque Leonardo não quisesse falar algo, mas sim porque ele estava confuso com o que tinha visto. O medo aumentou.
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Vendo que a coisa não seria do modo que tinha programado, Fausto atirou mais uma vez e a bala acertou em cheio a perna de Leonardo que gritou de dor imediatamente e se contorceu de forma furiosa, mas nem o som do disparo nem o do grito apareceram no ar, simplesmente não ecoaram; era como se houvesse algum vácuo momentâneo que impedisse a propagação do som. Aterrorizado, Leonardo tentou gritar segurando o joelho e se surpreendeu quando a voz apareceu junto com o movimento da boca, o vácuo tinha sumido, ao menos por hora. _ Espera! _disse com a mão espalmada suja de sangue pedindo que Fausto não disparasse novamente_ Espera! Eu falo; pelo amor de Deus. Você atirou em mim! A dor quente subiu rápido do joelho para a perna e um calafrio percorreu todo o corpo dele. O sangue também começou a brotar pelo lugar onde a bala tinha entrado, mesmo com Leonardo pressionando o orifício com a outra mão. _ Dói não é?_ brincou fausto._ onde ela está? Leonardo fez força para segurar a dor, mas a cada segundo ficava mais difícil, ia precisar de ajuda médica e não podia perder tempo. _ Calma! Calma! Eu digo. _ Seja breve. Leonardo fez uma careta. _ Caramba! Essa porcaria tá doendo, você quer me matar. _ Logo vamos saber. Onde ela está? Pela última vez. Não vou perguntar mais. Leonardo precisava ganhar tempo, mas em contra partida não podia perder muito tempo tentando enrolar o outro, se perdesse muito sangue sua situação ia ficar muito complicada, mas não ia entregar a irmã nas mãos de um homem que certamente era um sociopata. Tinha duas opções desesperadas, mas eram as 69
únicas. A primeira era tentar se engalfinhar com o invasor e tomar-lhe a arma, mas isso seria praticamente impossível porque já estava com o joelho estourado e o outro mantinha uma distância calculada e segura, jamais o alcançaria com um simples rompante de heroísmo. A segunda opção era enrolar o adversário e lançar mão de uma arma que ele também mantinha na gaveta da estante atrás do outro, logo abaixo das fotos, mas não sabia como fazer isso visto que o inimigo estava bem no meio do caminho entre Leonardo e a estante, e novamente, o joelho não ia mais ajudar. Sentiu como se micro agulhas estivessem sendo fincadas logo abaixo e acima do joelho ferido. A dor impedia de pensar com mais clareza e pela primeira vez Leonardo teve a certeza de que não sairia mais daquela sala. _É hora de ir._ disse fausto ao perceber que o outro não ia colaborar. Leonardo não sabia que se conformar com o último momento era algo tão fácil, não teve remorso, nem arrependimento algum; apenas se conformou. Fausto puxou o gatilho com a precisão e frieza de sempre e Leandro recebeu o impacto no peito, rápido e limpo. O corpo absorveu o solavanco e foi de encontro ao encosto do sofá onde estava, permaneceu lá, imóvel e já sem vida. Fausto baixou a arma que mantinha apontada para o outro e contemplou-o apenas por um momento, não sentiu absolutamente nada com relação a ter ceifado a vida de mais um homem; em seguida retirou o vácuo que encobria a sala impedindo a propagação de qualquer som tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro da casa. Leonardo não contava com aquilo. Já que o irmão de Mônica não tinha revelado o lugar onde ela estava escondida, Fausto resolveu procurar qualquer coisa dentro da casa que pudesse dar uma indicação favorável e 70
começou com a foto que estava na estante e que já tinha visto, pegou-a e depois começou a revirar todas as gavetas da casa, sala, quarto, cozinha; roubou todo o dinheiro que conseguiu encontrar. Pegou uma mochila dentro do guarda-roupas e colocou o porta retrato com a foto, todo o dinheiro que achou, cerca de quinhentos reais, o telefone celular de Leonardo, um relógio Bulova que achou escondido dentro de uma caixa debaixo da cama e as duas armas que o dono da casa mantinha no domicílio; um revolver que era devidamente registrado e uma pistola ilegal exatamente igual a de Jeremias, com alguma munição para ambas. Antes de ir embora ele ainda teve o trabalho de enrolar Leonardo com lençóis e edredons, arrastá-lo pela casa até o quarto e colocá-lo dentro do guarda-roupa. Feito isso retirou os óculos escuros do bolso do casaco e colocou novamente sobre a face, saiu da casa e trancou a porta usando a chave que também estava em seu poder. Ao voltar para a rua, Fausto começou o trajeto de retorno, queria chegar em casa antes do anoitecer, mas primeiro pretendia finalmente fazer sua tatuagem.
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04 Ainda no estacionamento do Top shopping Ângelo e Diana caminharam até o carro dele que estava estacionado na segunda garagem superior. O shopping era composto de três pisos destinados às lojas e outros dois pavimentos destinados para estacionamentos; a primeira garagem era identificada pelo código G1, “Garagem 1”, e era coberta principalmente por causa das máquinas de caixas eletrônicos e serviços bancários 24h e também pelas pequenas lojas de peças automotivas de áudio e vídeo, chaveiros e máquinas de xérox; Já o segundo pavimento era identificado pelo código G2, “Garagem 2”, ficava totalmente exposta ao tempo e não oferecia nada a não ser uma das vistas mais espetaculares que se pode ter da cidade, o que para algumas pessoas já era o suficiente para compensar a falta de proteção a qual os automóveis ficavam expostos. Subiram pela escada rolante desde o terceiro piso, onde haviam lanchado, até chegar ao primeiro estacionamento, G1; e antes de subirem novamente para o outro eles pararam em um dos caixas eletrônicos onde Ângelo sacou uma pequena quantia de sua conta corrente, gostava de sempre ter algum dinheiro trocado na carteira para o caso de qualquer imprevisto, além do mais, a tarde de passeio e presentes com sua bela namorada tinha custado um bom dinheiro para ambos. Em seguida tomaram uma nova escada, sendo que esta era comum e não automatizada como as demais, e saíram no mais alto pavimento de estacionamentos, G2. Caminharam pelas fileiras criadas por carros de todos os modelos, marcas e cores parados uns atrás dos outros e antes de 72
irem até o carro dele, foram primeiro para a amurada do lugar, lá, se debruçaram por apenas uns segundos e contemplaram a vista que combinava um céu que estava se apagando no fim de tarde com as luzes da cidade que estavam se acendendo no início da noite. Foi uma bela visão, mas ambos ficaram calados enquanto aproveitavam aquele momento. _ É tão bonito aqui._ Ela disse. O namorado ficou calado por todo tempo em que ficaram ali contemplando o local. Finalmente rumaram para o lugar onde antes Ângelo tinha deixado o veículo estacionado. Estavam de mãos dadas, mas sem conversar, Diana sabia que algo estava incomodando muito o namorado e permanecia tentando traçar a melhor estratégia de penetrar na barreira que ele tinha levantado, mas sem ser agressiva demais ou desrespeitosa com o que quer que fosse que ele estava sentindo. Algumas vezes ela o tinha visto numa espécie de tristeza quando era elogiado por alguém nas ruas, mas naquela tarde no shopping ele tinha deixado à mostra muito mais do que uma simples tristeza passageira; Diana sabia que havia algo profundo que o namorado escondia; nunca se preocupou com aquilo, porque sempre vira que ele também não se preocupava, mas naquela tarde notou que de alguma forma, os segredos que ele guardava o estavam influenciando negativamente, ou seja, Ângelo estava se fechando cada vez mais e fazendo uma grande força para que ela não percebesse. O que seria difícil, primeiro porque Diana era muito perspicaz, percebia mínimas mudanças de comportamento nas pessoas; e segundo porque ele estava completamente introspectivo, algo que não era comum para ele. _ Você está bem?_ perguntou ela. Ele parecia desligado, mas num sobressalto respondeu: _ Estou sim. 73
_ Parece diferente. _ Só um pouco cansado, talvez. Ela o olhava lendo todos os sinais que ele dava de que algo o estava incomodando profundamente, já se conheciam muito bem e Diana tinha uma prática ainda maior em identificar as linguagens não verbais de todas as pessoas mais próximas a ela. Com Ângelo não era diferente, ela sabia que ele estava pensando se deveria ou não falar algo, e pelo jeito como estava se comportando devia ser algo bastante importante. _ Tem alguma coisa te incomodando? A resposta dele não foi clara, na verdade foi como uma espécie de sussurro, ela não entendeu, mas tentou ponderar a respeito. Ângelo retirou a chave do bolso e acionou o botão que destravava as portas do seu carro, um Peugeot 207 duas portas, preto, ano 2009, deu sinal emitindo dois apitos rápidos e piscando as luzes das lanternas; a namorada trazia as sacolas com os dois pares de calçados e a bolsa que tinha comprado, além da caneta tinteiro e do relógio que tinham colocado nos mesmos pacotes. Ele abriu a porta e entrou, ela fez o mesmo em seguida pelo lado do carona. _ Você está muito estranho hoje._ Insistiu Diana. Ela se virou e colocou as bolsas no banco traseiro do carro, bateu a porta e abaixou o vidro elétrico da janela com um simples toque num botão. _Desculpe. Ele colocou a chave na ignição e ligou o veículo; o carro respondeu imediatamente. Ele deu marcha à ré; havia uma fila de carros estacionados à frente do seu e ele saiu manobrando de ré até atingir o espaço que estava livre para tomar a rampa de descida que levava ao primeiro piso de estacionamentos onde um funcionário do shopping liberou a saída do carro.
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_Sabe?_ Disse Ângelo enquanto girava o volante para tomar a rua atrás do shopping; rua que levaria a uma grande ladeira que por sua vez desembocaria na avenida principal. _Sabe o quê?_ Rebateu ela._ O olhar de Diana estava perdido propositalmente em algum lugar entre o vidro dianteiro do veículo e o seu horizonte visual. Ela fazia isso para fingir estar dando pouca atenção ao que ele ia dizer, de modo que fosse o que fosse, pudesse parecer corriqueiro. Talvez desta forma o deixasse mais à vontade para se abrir. Ângelo continuou falando: _ Eu estava pensando. _ Em quê? A luz da tarde já havia quase totalmente saído de cena, e a iluminação artificial dos postes públicos começava a fazer seu trabalho. O carro desceu a rua em ladeira ao lado do shopping e chegou à rua principal. O edifício grande onde o shopping estava localizado ficava à direita e àquela hora o movimento ali era consideravelmente mais tumultuado do que na rua secundária de ladeira por onde tinha passado, tanto de veículos como de pedestres. _ Têm algo que eu quero falar para você, mas não sei como. Diana ligou o rádio, baixou o volume e abriu o porta-luvas, eles deixavam alguns CDs ali, CDs que continham músicas que ambos gostavam; desde Phil Collins até Frejat, Capital inicial e Legião Urbana; até U2 e Enya também, ambos tinham um gosto muito variado para música e aquilo os completava como casal, davam valor não somente às letras, mas também a toda a sonoridade empregada na construção musical. As músicas eram compradas em sites onde podia se pagar para baixar o arquivo digital MP3 de forma legal e depois gravavam nos CDs formando uma grande coleção musical particular. Muito 75
embora Diana preferisse manter todos os arquivos numa “Pen Drive”. Ela passou a procurar um sem nenhuma intenção real de querer ouvi-lo, mas ainda se esforçava para passar um ar de casualidade; estava mesmo interessada no que ele tinha para dizer; provavelmente não seria nada realmente sério, mas Ângelo demonstrava um pouco de teatralidade às vezes, ele não fazia por mal. _ É só dizer. O carro tinha seguido pela rua principal onde ficam localizados o cemitério e a prefeitura de Nova Iguaçu, mas ele seguiu na direção do fluxo que é contrário e se afasta desses dois lugares. Saíram na Avenida Governador Roberto Silveira, praticamente de frente para outro shopping, só que este era apenas de artigos de informática. Promo Info. Contornaram à esquerda na direção da Via Light. _ É um pouco complicado. Não. Na verdade é bem complicado. Ela finalmente parou de fingir que estava procurando um CD que nunca achava e olhou para ele, Ângelo permanecia com os olhos fixos na rua em frente e no trânsito parcialmente concorrido por outros veículos. Ela disse: _ Se você não disser; como é que espera que eu saiba do que se trata? Ele balançou a cabeça. _ É muito sério. O semáforo estava com a luz vermelha acesa e uma contagem regressiva na pequena tela ao lado indicava quantos segundos ainda faltavam para a luz verde surgir. Logo que parou o carro atrás de outro e enquanto aguardava a abertura do sinal, ele virou-se para a namorada. 76
_O que você diria se eu contasse que escondo um segredo? _Hipoteticamente?_ perguntou Diana. _ Por enquanto sim. Hipoteticamente. _ Que tipo de segredo? _ Do tipo que é capaz de mudar uma vida. _Desde quando você esconde esse suposto segredo? _ Desde criança, eu acho. Não sei bem._ Falou tentando recordar se de fato era isso mesmo, não tinha certeza. Ela soltou um sorriso antes de falar: _ Eu diria_ pensou em alguma coisa para dizer mais não achou nada naquele momento._ Diria que não deve ser nada sério. _ Você está brincando comigo, Diana? Estou tentando me abrir. _ O sinal abriu._ ela disse. Já havia automóveis buzinando atrás deles como se fizesse um século que o semáforo deixara a cor vermelha. O semáforo ostentava a luz verde e o carro que antes estava parado em frente ao deles já estava longe, na subida de um viaduto. Ângelo acelerou e seguiu pela Via Light no sentido Mesquita, Nilópolis e Pavuna, mas não ia tão longe assim; pretendia deixar Diana em casa no município de Mesquita e retornar para casa a tempo de ver alguma coisa na televisão. Ou algum filme em DVD caso a programação não estivesse boa. _Desculpe_ ela tentou se justificar_ Você não está sendo convincente com essa história de segredo. Todo mundo conhece você e não há nada escondido em sua vida que não seja semelhante ao que está escondido na vida da maioria das pessoas. Sabe o que quero dizer, coisas triviais. _ O que você quer dizer com isso?_ foi ele quem perguntou desta vez.
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_ Sei lá. Todo mundo já escondeu multas de trânsito, notas baixas na época que estudava, algumas mentiras sem importância, um livro que tomou emprestado e nunca devolveu; e até alguns sentimentos mais embaraçosos; sei lá, essas coisas. Ângelo já estava se perguntando se realmente era uma boa idéia continuar com aquilo. E decepcionado resolveu encerrar o assunto: _Tudo bem; deixa pra lá. Vendo que ele havia se retraído, Diana ficou quieta um minuto e suspirando pediu que ele continuasse. _ Fale. O que você tem para me dizer? Ele ponderou rapidamente e decidiu tentar mais uma vez: _Diana, isso é muito sério, preciso falar com alguém e gostaria que fosse com você. Diana mordeu o canto do lábio inferior e olhou para ele que continuava de olhos na rua, havia mais um semáforo vermelho à frente. A luz do fim de tarde não existia mais, o crepúsculo esmaeceu até se tornar noite. _ Tudo bem, vou tentar novamente. _Sobre o que é? Quero dizer; é sobre nós?_ Por um curto momento ela teve a sensação de que podia ser algo referente ao relacionamento deles e aquilo a deixou momentaneamente inquieta. _ Não é sobre nós; é sobre mim. _ Você está doente? _Diana! Por favor! _Desculpe. Pode falar. O carro parou no sinal vermelho e ele finalmente olhou para ela; foi um olhar solene, o mais solene que ele já lançou sobre a namorada em todos os meses que conviviam juntos. Aquele 78
olhar foi o suficiente para ela perceber a seriedade do que seria dito. A face de Ângelo demonstrava uma gravidade que ela ainda não tinha visto nele, nunca tinha visto aquele rosto tão preocupado. _Você está me assustando. Ele desligou o rádio que mantinha um volume tão baixo que mal podiam ouvir coisa alguma do que estava tocando, mas não queria interrupções ou distrações por mais tênues que fossem. O sinal abriu, estavam no centro nervoso do município, mas curiosamente poucas pessoas transitavam pelas calçadas e a maioria estava aguardando os ônibus que paravam constantemente ao longo da via. O Peugeot arrancou novamente logo que a luz vermelha sumiu. _ Sabe por que eu fui até o parque de diversões sozinho naquele dia? Ela não podia imaginar o motivo, mas também não importava. Passara muito tempo se perguntando isso logo que toda a coisa explodiu nas mídias, mas não era relevante quase seis meses depois. _ Não sei. Por quê? _ Eu sabia. Ela esperou um minuto inteiro pensando que ele ia completar a frase, mas ele não o fez. _Você sabia o quê? Foi Ângelo quem suspirou antes de continuar, estava fazendo força para vencer as barreiras que ele mesmo levantara para sua segurança. _ Sabia o que estava para acontecer. _ Como assim? _ Eu sabia que a roda gigante ia travar, sabia que uma pessoa ia se machucar terrivelmente, sabia que a multidão ia entrar em 79
pânico, que linchariam o funcionário que operava a máquina; eu sabia de tudo. E tinha de fazer algo para impedir. Ele esperou por um comentário cético da namorada ou por uma de suas tiradas cômicas, mas nem o comentário nem a piada vieram e ele ficou ainda mais nervoso por isso. Não sabia o que esperar. Diana olhava para ele como se a pessoa sentada ao seu lado não fosse um homem mais sim uma coisa qualquer inanimada. Ela piscou uma vez, demoradamente, e depois outra, talvez estivesse procurando o que dizer. Ele dirigia e olhava para ela, ora olhava a rua e ora olhava a namorada, estava impaciente e queria saber que reação ela teria; nunca tinha falado tão sério na vida. Mas vendo que a resposta dela não vinha, ele continuou despejando tudo o que estava engasgado na garganta até aquele momento. _ Ninguém sabe disso; meus pais não sabem disso, nenhum colega sabe disso, A família da pequena Ingrid não sabe disso, nem meu antigo diário sabe disso. Só eu e Deus. Ninguém; entendeu. Ela continuou olhando, parecia não saber se ia rir ou se ia fazer alguma pergunta que desse o entender de que ela tinha se interessado por aquilo, na verdade não sabia como classificar aquela pseudo revelação. Ele continuou falando: _Eu soube no dia o que ia acontecer, fiquei desesperado, corri para o parque e fiquei vagando lá até descobrir tudo. Sem saber o que dizer, e ainda considerando que tudo aquilo não passava de uma brincadeira dele. Diana finalmente falou: _ Você sabia que ia salvar uma criança naquele dia?_ perguntou procurando manter um tom solene na voz. _ Não. Não que seria uma criança, mas sabia que era para eu estar lá; sabia que alguém precisaria ser salvo. _Como? 80
_ Às vezes eu sei de coisas. Coisas que vão acontecer. Coisas que já aconteceram ou que poderão e poderiam acontecer. _ Você está brincando Ângelo. Ninguém sabe de coisas dessa magnitude. Você está dizendo que sabia o futuro? _ Eu às vezes sei Quero dizer, não sei se é o futuro. _ Ele disse. Ela estava olhando para ele, e quando as últimas palavras foram ditas Diana viu o semblante dele decair com uma tristeza ainda maior do que a que tinha demonstrado antes._ Eu apenas sei. É como se meus pensamentos se tornassem verdade de repente, como se eles tivessem o poder de sair da minha cabeça e se materializar._ sussurrou. _ Você está querendo dizer que sabia antecipadamente que uma tragédia ia acontecer no parque; é isso? _É._ Ele a fuzilou com o olhar, mas estava em busca de aceitação e aprovação. Voltou a olhar para a estrada. _ Mais que brincadeira e essa Ângelo? _ Não é brincadeira Diana, você tem que acreditar em mim. Eu ouço uma voz e às vezes ela me diz essas coisas. _ Que voz? _ Não sei; às vezes acho que é minha própria voz, outras vezes acho que é uma voz desconhecido. Diana se calou novamente até resolver o que falar, ficou confusa, sem saber como uma pessoa tão centrada como Ângelo podia dizer uma bobagem tão grande. Ele balbuciou: _ É verdade._ Falou mais para si mesmo do que para a namorada. Um carro passou muito perto deles e se atirou na frente do veículo onde estavam de uma maneira totalmente imprudente; o motorista, obviamente, estava costurando os carros pela rua e transitando muito acima do limite de velocidade da via que era de 60 km/h naquele trecho. Ângelo freou drasticamente, mas 81
não chegou a parar, apenas reduziu e com um pouco de perícia afastou o carro do outro que seguiu apressado; em seguida olhou no retrovisor para verificar se outro carro tão precipitado quanto aquele não estava colado em sua traseira. Tudo o que ele não queria era provocar ou ser vítima de um acidente na estrada, mas estava prestes a descobri que ia se envolver em um de qualquer jeito, só que de uma maneira diferente. _ Esse pessoal não aprende nunca_ disse reclamando da barbeiragem do outro._ Só ficam satisfeitos quando causam um acid... Ele se interrompeu, ficou mudo, olhou novamente no retrovisor e em seguida numa atitude suspeita que Diana não percebeu; ele verificou o cinto de segurança; queria ver se estava bem travado. _Acidente._ disse ela completando a frase. _Como você sabe!? _Sabe o quê, Ângelo. Eu só estou completando o que você ia dizer. Ele começou a reduzir a velocidade e encostar o veículo no calçamento. _Você também ouviu?_ perguntou assustado. _ Por que está parando aqui? _Você não ouviu?_ Ângelo perguntou outra vez. _ Ouviu o quê? _ A voz. Diana conhecia o namorado muito bem, mas não compreendia mais uma só palavra do que ele estava dizendo e aquilo estava começando a perder a graça. _ Que voz? Ele soltou o volante por alguns instantes e pôs as mãos sobre os ouvidos. Disse: _ Parece um trovão. 82
Diana olhou pela janela, o céu estava limpo como um espelho d’água num lago cristalino, não havia uma nuvem sequer, a noite seria quente, aparentemente sem vento e não tinha escutado trovão algum. _Não ouvi nada. Ângelo já tinha parado o carro, subiu no acostamento de modo que o Peugeot ficou com as duas rodas do lado direito sobre o acostamento e as outras duas ainda na via, o carro ficou levemente inclinado. Ele soltou o cinto de segurança e abriu a porta, saiu do carro olhando ao redor, procurando alguma coisa. _ O que foi que houve Ângelo?_ Diana queria saber o motivo de terem parado naquele ponto sem mais nem menos. Ele não respondeu, andou de um lado para outro e parou de repente. _ Vai acontecer outra vez._disse finalmente. _ O quê? O que vai acontecer?_ Ela falou de dentro do carro. Ele olhou para um dos postes de iluminação que estava próximo do lugar onde ele parou o carro; do outro lado da via estava outro poste sobre a calçada, tão alto quanto os demais e derramando sua luz sobre o asfalto da pista e acostamento. A cerca de trinta ou quarenta metros adiante havia mais dois postes um de cada lado da via e assim seguia, sempre de dois em dois. Ângelo sabia que o poste também era parte do quebracabeças daquela noite, mas ainda não tinha tantas informações para descobrir com precisão o que ia acontecer. _Você sabia o que ia acontecer no parque?!_ Ângelo estava tão afastado do carro que Diana teve de gritar para ele ouvir. _Sabia._ respondeu também forçando a voz com mais força._ em seguida ele colocou as mãos sobre as orelhas, tapando-as como se estivesse ouvindo um som extremamente alto e olhou para o céu. 83
Diana viu e olhou para cima pela janela também, num reflexo que não soube explicar, pensou que se olhasse para o céu noturno e estrelado veria algum objeto sobrevoando suas cabeças, alguma coisa como uma nave extraterrestre vinda de fora do sistema solar e que iria aduzi-los ali mesmo, mas não havia nada lá; absolutamente nada. O céu continuava limpo, estrelado e bonito como antes. Ele voltou rápido para o carro e aproximou-se da janela onde a namorada aguardava atônita e sem entender absolutamente nada. _ Está diferente_ ele disse._ Geralmente não é assim. _ O que está diferente_ ela mal podia acreditar que estava perguntando sobre alguma coisa que só existia na cabeça dele, pensou que o namorado talvez estivesse sofrendo de alguma esquizofrenia passageira, ou qualquer tipo de delírio urbano estranho. Mas aquilo não era comum a Ângelo, ele não era dado a esse tipo de coisa, nunca conhecera uma pessoa tão lúcida quanto ele em todos os aspectos. _A sensação esta diferente; não era assim nas outras vezes. _ Que sensação? _ Vai acontecer aqui Diana; vai acontecer, a voz disse. A voz disse. _ Mais que voz, você ficou louco? _ Eu tenho que esperar, tem a ver com aquele poste ali._ Ângelo apontou para o poste do outro lado da via. Ângelo tirou do bolso o seu telefone celular e constatou intrigado que a carga havia acabado, mesmo ele tendo renovado totalmente a carga da bateria antes de sair de casa no início da tarde. _Mais que droga!_ Disse. _ O quê?_ rebateu Diana_ o que foi dessa vez?
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_ Meu telefone está descarregado; pega o seu aparelho e fique atenta; quando acontecer ligue para o corpo de bombeiros imediatamente. Eu vou tentar impedir o que quer que seja. Diana remexeu sua bolsa até encontrar o aparelho de telefone celular, não podia acreditar que estava fazendo aquilo. _ Vamos embora Ângelo, por favor. _ Ainda não, amor, precisamos ajudar essas pessoas, sejam elas quem forem. Acredite em mim. Ela olhou ao redor, não havia pedestres andando ali, apenas alguns carros passando em alta velocidade pela Via Light, deviam estar a mais de oitenta por hora mais ou menos. Não era possível precisar. Nenhum dos dois se deu conta de que estavam relativamente próximos do tal parque de diversões; a Via Light prosseguia por mais alguns metros em uma subida que ia inclinando levemente para a direita, mais uns duzentos ou trezentos metros à frente e já seria possível ver o topo da roda gigante onde ele operou o tão falado salvamento da pequena Ingrid; também era possível avistar o topo da montanha russa que eram os brinquedos mais altos e numa visão de longe dominavam o lugar. Porém naquele momento, o parque não era o mais importante, na verdade as memórias do salvamento, por mais gloriosas que fossem não tinham importância alguma porque ele estava perto de realizar outro exatamente ali. Ângelo estava muito ansioso; ele não sabia ao certo o que estava esperando ou como tudo ia se desenrolar, mas temia que de alguma forma não fosse suficientemente rápido para ajudar, ele nunca tinha revelações completas dos fatos, eram sempre retalhos. Em sua cabeça nunca teve visões ou arrebatamentos como já vira muitas pessoas que se diziam paranormais na televisão testemunhando ter, ver ou intuir, e, tampouco era algo que ele controlava. 85
Geralmente tudo não passava de uma forte sensação, embora às vezes não passasse de uma simples certeza; uma sensação forte o suficiente para disparar todos os mecanismos de defesa e prontidão de que o corpo dele dispunha. A respiração ficava acelerada, os músculos ficavam mais tensos, o coração batendo mais rápido, não se descontrolava ou descompassava, só ficava mais acelerado fazendo com que o sangue circulasse mais rápido pelo corpo para irrigar melhor o cérebro e melhorar o tempo de respostas das ações que teria de tomar, fossem ações de ataque, autodefesa ou fuga. Da mesma forma a tensão arterial se elevava e as glândulas suprarrenais estavam despejando o hormônio epinefrina, mais conhecido pelo nome de adrenalina, na corrente sanguínea; já prevendo e preparando todo o organismo para um provável aumento no esforço físico dado por um momento de stress que ainda estava no âmbito do desconhecido. Todo o seu corpo entrava em alerta vermelho. A voz que ele ouviu ali naquele início de noite, não era uma constante, na verdade ele só ouvira aquela voz revelando algo que ainda ia acontecer apenas uma única vez em sua vida e foi justamente no episódio do parque de diversões. Quando foi levado até lá pela sua já conhecida sensação de que algo muito ruim ia ocorrer e que ele deveria estar no local, mas chegando ao parque ele ouviu a voz, pela primeira vez, falando exatamente o que ele deveria fazer; entrar na fila do brinquedo, pagar pela entrada, embarcar na gaiola e esperar que tudo acontecesse. Ângelo só soube que devia salvar uma criança quando a viu sair praticamente voando da gaiola onde estava com o pai. A voz o tinha intrigado sobremaneira, mas como ele estava acostumado a saber de coisas antecipadamente ainda que apenas alguns instantes antes de que acontecessem e sempre 86
considerou aquilo como um dom, mesmo nunca tendo salvo a vida de qualquer pessoa ante de Ingrid; pensou apenas que seu dom de alguma forma estava evoluindo. Além do mais, depois do aparecimento daquele homem desconhecido que o marcara profundamente com o olhar penetrante e frio, deixou de pensar na voz, afinal ela o tinha guiado a uma excelente ação. Todas as sensações anteriores ao parque diziam respeito a coisas triviais do cotidiano principalmente quando ele ainda era menor, sempre eram coisas que tinham pouca influência na vida das pessoas ou na sua; como adivinhar os números que sairiam ao se jogar um dado ao ar, por exemplo. Mas depois de sua adolescência percebeu que pouco a pouco aquilo estava aumentando, evoluindo, mas de uma maneira muito lenta. Ele chegou até a ficar dois anos sem sentir absolutamente nada. Isso aconteceu no fim de sua adolescência inicio da idade adulta. Já quando adulto, ele podia pressentir quando um copo ia cair, ou quando uma pessoa ida dar uma topada na rua, algumas brigas, tombos, pequenas batidas de carro e coisas desse tipo, mas sempre breve momentos antes de acontecer, o que não lhe dava muito tempo para interferir. Jamais foi capaz de interferir, às vezes tinha o desejo, mas estava além de sua vontade. Até o episódio no parque. Com os olhos fixos no poste de iluminação do outro lado da rua, Ângelo viu finalmente uma pessoa, um homem passar caminhando tranquilamente pela calçada do acostamento, estava trajado com uma espécie de uniforme, algo como os usados por motoristas ou trocadores de ônibus, estava fumando; em nenhum momento desviou os olhos do caminho que fazia. Passou soprando pequenas nuvens de fumaça no ar como se nada mais na vida ou no mundo tivesse tanta
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importância quanto terminar de saborear e fumar aquele cigarro. Péssimo hábito. _ O que é que vai acontecer aqui Ângelo? _perguntou Diana ainda de dentro do carro e com o telefone na mão. Ângelo desviou os olhos do transeunte despreocupado do lado oposto da rua e voltou-se para a namorada. _Alguma coisa ruim. _Ruim?Como?!_ A paciência da mulher para com as brincadeiras do namorado já estava terminando. Diana olhou para a ignição do carro e percebeu que a chave continuava lá, Ângelo não tinha retirado. _ Mais eu posso impedir_ Falou ele procurando o homem do outro lado da rua e avistando-o muito longe ainda caminhado. _Você perdeu o juízo!_ Vociferou ela. _Eu posso impedir._ repetiu ele. Diana estava abrindo a porta quando ouviu o barulho alto do motor roncando e da primeira derrapagem. Um carro vinha em alta velocidade, provavelmente muito acima do limite permitido, devia estar beirando os 100km/h. A primeira derrapagem foi o suficiente para fazer o veículo perder a traseira e começar a riscar o asfalto lateralmente. A reação de Diana foi de espanto com o barulho, mas quando voltou a procurar o namorado, ele já estava correndo em direção ao outro lado da pista. O carro vacilou de um lado para o outro, o motorista certamente tinha perdido a direção e o som seco e áspero da segunda derrapagem foi substituído por outro ainda mais brutal. _ Ligue!_ gritou ele._Ligue agora, peça ajuda!_ continuava correndo. Diana demorou meio minuto para entender o que estava acontecendo ali, o som da colisão brutal do carro em alta 88
velocidade com o poste de iluminação do outro lado da rua foi tão violento que ela se abaixou com um susto enorme. O barulho de metal retorcendo, concreto rachando, vidros estilhaçando e uma infinidade de outras coisas se partindo terrivelmente, era, para ela, tão abominável quanto o som produzido por um dragão seria para um camponês da idade média. O barulho estrondoso formado por todos aqueles sons se expandiu como uma onda sônica turbulenta. Ângelo já tinha atravessado a via e chegou ao outro acostamento no exato momento da colisão. A onda de som foi tão alta e seca que ele se jogou no chão a tempo de não ser atingido por uma calota que passou voando sobre sua cabeça como um disco cortante. Ângelo não havia previsto aquilo, mas foi uma tremenda sorte. O carro chocou-se contra o poste com uma violência tal que certamente seria perda total; todos os vidros foram destruídos instantaneamente criando uma nuvem composta por estilhaços de vidros de todas as janelas, em pedaços, que foi arremessada para frente; para além do veículo amassado. O poste literalmente rasgou a frente do veículo e se curvou sobre ele amassando parte do teto do carro, destroçando motor, Filtro de ar, bateria, reservatórios de fluídos e tudo o mais que havia debaixo do capô; uma fumaça começou a sair do motor e logo uma poça de água e óleo estava se formando sob o carro. Ângelo se levantou o mais rápido que pôde, já sabia o que tinha de fazer; salvar o ocupante do carro. Com a força da colisão a traseira do automóvel tinha se erguido meio metro do chão e quando finalmente o carro repousou, a traseira caiu fazendo um ruído surdo e chacoalhando toda a lataria solta. A calota que tinha sido arremessada como um disco giratório e cortante repousava no meio da rua. 89
Diana olhava de longe ainda meio sem acreditar. Parcialmente atordoada pelo horror da colisão. Ângelo alcançou o lugar e contornando o carro até a janela dianteira esquerda logo viu que o motorista era um homem, quase de meia idade, cerca de quarenta ou quarenta e cinco anos, não mais do que isso, estava desacordado com a cabeça caída para frente e com um pouco de sangue pingando sobre a camisa. O carro era modelo popular, um Fiat Pálio quatro portas, logo, não dispunha de airbags; o cinto de segurança tinha feito todo o trabalho sozinho e evitado uma tragédia completa. Antes de qualquer coisa, ele procurou na janela de trás para ver se havia mais alguma outra pessoa no veículo, uma criança talvez, lembrou da face assustada de Ingrid. Não havia mais ninguém, só o motorista. Tentou abrir a porta; teve de fazer força porque tanto o teto quanto a lataria lateral do carro estavam terrivelmente amassadas, e a porta estava retorcida e travada; seria uma grande sorte se o motorista não tivesse com os pés presos nas ferragens. Ele sabia muito bem que a última coisa que se deve fazer com um acidentado é movê-lo de forma imprudente porque sempre existia o risco da vítima ter sofrido uma lesão na coluna vertebral e ao ser removida ou movida de qualquer forma, ter o dano na coluna agravado. Isso poderia fazer toda a diferença entre o homem sair de um acidente com todos os movimentos do corpo preservados, ou paraplégico ou tetraplégico. Portanto somente o resgate especializado poderia tocar na vítima e fazer a devida remoção depois de uma imobilização segura. Ângelo ficou em dúvida, não podia tocar no motorista, mas verificou pela janela mesmo que ele estava respirando; havia sangue escorrendo da testa, mas Ângelo não encostou no
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sangue, não estava com luvas apropriadas e essa era uma outra regra. Ele olhou por sobre o capô do carro para o outro lado da rua. A namorada olhava para ele de longe e pareceu despertar de um transe quando percebeu que estava sendo observada. Diana discou os três números do serviço de emergência do corpo de bombeiros com as mãos trêmulas, quase deixou o telefone escapar e cair. Ângelo não entendeu porque a sensação o tinha levado até aquele momento se ele não poderia fazer absolutamente nada para ajudar, a não ser, olhar o motorista desacordado até que o resgate chegasse para socorrê-lo. Até que sentiu o cheiro. O cheiro forte e conhecido de gasolina estava por toda parte; imediatamente Ângelo se lembrou do homem com o cigarro que tinha passado exatamente naquele lugar, onde ele, o carro batido e a vítima desacordada estavam. Olhou para o chão procurando a bituca do cigarro; tinha certeza que aquele transeunte despreocupado havia jogado por ali em algum lugar, não o viu fazê-lo, mas a sensação dizia que o fogo ia aparecer e era apenas uma questão de tempo, pouco tempo. Teria de tirar a vítima de dentro do carro mesmo com a possibilidade de agravar algum dano sofrido. Era melhor escapar com vida. O cheiro forte continuava entrando pelas narinas dele e tentou novamente abrir a porta do carro, mas não conseguiu; a porta ficou tão amassada que era impossível abri-la sem a ajuda de uma ferramenta. Como a janela estava totalmente destruída e não havia vidro algum à mostra, Ângelo se enfiou para dentro até a cintura, esquecendo toda a prudência que tinha mantido até aquele momento. Dentro do carro o cheiro de gasolina era ainda mais forte. Ângelo tentou alcançar a trava do cinto de segurança; foi
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difícil, mas ele conseguiu, soltou o cinto e o corpo que estava levemente tombado para frente, caiu sobre ele. Antes de sair olhou para o espaço onde estavam as pernas do motorista torcendo para que elas não estivessem presas por toda a ferragem da frente do carro que tinha sido compactada contra o banco onde o homem estava sentado. Saiu de dentro do carro e segurando a vítima pelas axilas começou a puxá-lo para fora pela janela; procurou fazer com o máximo de cuidado possível, mas só por estar mexendo no homem já poderia estar causando um dano irreparável. _Espero que eu não esteja fazendo uma loucura._ Disse para si mesmo. Ele sabia que poderia estar inutilizando uma pessoa e dessa forma seu salvamento não seria completo. Pensou nos desdobramentos que aquilo poderia ter, mas ainda assim era melhor do que deixá-lo dentro do carro para ser queimado enquanto esperava o resgate. Puxou o homem, que saia aos poucos como um peso morto; teve de fazer muita força e tentava a todo momento dar suporte a coluna e ao pescoço da vítima para que todo aquele pesadelo não se tornasse pior do que já seria. A vítima era alta e estava acima do peso, mas não era gordo, e isso foi o que permitiu o resgate porque se o homem fosse cinco ou dez quilos mais pesado Ângelo jamais o teria tirado de dentro daquele carro. Mas felizmente tudo correu relativamente bem, os pés da vítima não estavam presos, foi preciso apenas um pouco de força para retirá-los das ferragens, porém os sapatos ficaram. Ângelo considerou aquilo quase como um milagre; não costumava crer em sorte. Quando o homem estava fora do veículo Ângelo ainda teve de carregá-lo para longe temendo uma explosão; feito isso, deitou o corpo da vítima no solo, sempre mantendo a preocupação 92
com a coluna e o pescoço. Apenas alguns instantes após tirar o homem do carro ele avistou a chama que nasceu debaixo das ferragens da traseira, entre as rodas. Rapidamente o fogo ganhou volume e tomou o carro praticamente por inteiro, não houve explosão, mas o fogo passou a consumir avidamente todos os componentes de tecido, plástico, borracha e até a tinta do automóvel. Diana correu atravessando a rua no momento que viu o fogo; foi aonde Ângelo e o outro homem desacordado estavam, ambos, deitados no solo frio. _ O corpo de bombeiros já está a caminho_ falou com a respiração ofegante pela corrida e pela incredulidade do que tinha acabado de acompanhar._ eles devem chegar em mais ou menos dez minutos. O namorado respirava em haustos. Cansado pelo esforço de retirar e carregar um homem muito maior e mais pesado do que ele. Diana olhou para o fogo. _ Se você não estivesse aqui ele poderia morrer queimado._ disse. Ângelo se virou e sentou. Em seguida falou: _ Acho que não seria a batida que ia matá-lo, mas sim uma combinação estranha de fatores. A batida que o deixou inconsciente e espalhou gasolina e óleo por baixo do carro, somado a uma guimba acesa de cigarro que deu início ao fogo. _ Você salvou mais uma pessoa, Ângelo!_ Diana parecia não acreditar_ É verdade. Então é mesmo verdade! Você sabia antes de acontecer! Ele se limitou a olhando nos olhos dela, balançar a cabeça positivamente.
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Diana olhou para o cÊu noturno mais uma vez; continuava exatamente como antes; estrelado e limpo, sem nenhuma alteração.
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05 Mônica Soares Martins retirou uma garrafa d’água e fechou a porta da geladeira. Havia vários imãs agarrados do lado externo da porta, pequenas representações de frutas, animaizinhos, diminutas flores e até mesmo um calendário em tamanho muito reduzido. Caminhou pela cozinha até o balcão inox da pia, retirou um copo do escorredor de utensílios e preencheu com a água. Patrícia Lopes Melli, prima de Mônica, permanecia de costas para ela enquanto conversavam; cortava alguns tomates em rodelas finas que colocaria na salada que acompanharia o jantar daquela noite, a faca praticamente deslizava abrindo a tomate sobre uma tábua de carne, usava uma faca pequena e serrilhada com ponta muito fina. Gostavam muito de conversar desde que Mônica havia se hospedado na casa para passar alguns meses e, além do que, já costumavam conversar durante o dia no tempo que tinham juntas, geralmente a hora do café; gostava também, principalmente de conversar antes do jantar porque era um horário perfeito. Àquela hora Ingrid geralmente estava tomando banho, a menina passava muito tempo brincando na banheira e geralmente só deixava o banheiro quando a mãe ia chamar. Já o marido de Patrícia, Helói, que trabalhava no departamento pessoal de uma firma de Contact Center na Avenida Rio Branco, centro financeiro do Rio de Janeiro, ainda não tinha vindo do trabalho naquele horário e a casa ficava praticamente toda para as primas descansarem um pouco de seus dias de trabalho e conversarem o quanto quisessem. Patrícia trabalhava como analista de crédito num banco privado no centro de Nova Iguaçu, portanto relativamente perto de 95
casa, cerca de quinze minutos de carro entre a casa e a agência; trabalhava geralmente de dez da manhã às cinco da tarde, às vezes passava um pouco e geralmente chegava em casa por volta de sete horas porque ainda ia buscar a filha na casa do tio. Todos os dias pela manhã, Lídia, esposa do irmão de Heloi, Eraldo, passava na casa de Patrícia para pegar Ingrid e levar à escola. Lídia trabalhava apenas em casa e tinha uma filha da mesma idade de Ingrid; Karen. As meninas eram como irmãs também, a exemplo da amizade que Patrícia e Mônica sempre nutriram entre si. Ao sair da escola, Ingrid ficava praticamente todo o dia na casa da prima e do tio, até que a mãe ou o pai passassem lá depois do expediente para buscá-la. Mônica bebeu a água gelada de um só gole e foi até o fogão onde uma panela com água estava no fogo; a água fervia e ela colocou uma porção de macarrão talharim cuidadosamente no líquido borbulhante. _ Então_ disse Patrícia_ como estão às coisas com o tal cara do trabalho? Desde que abandonou Ricardo, Mônica largou o emprego antigo também, trabalhava como vendedora numa grande e conceituada joalheria, ganhava, portanto, relativamente bem com a comissão das vendas de jóias, relógios e outros acessórios sofisticados, mas pediu demissão às pressas para evitar ser encontrada e passou alguns dias na casa do irmão; mas em seguida recebeu o convite para se hospedar na casa da prima. Adorou a idéia e aceitou imediatamente, primeiro porque Ricardo, embora conhecesse Patrícia, o marido e a filha; não sabia onde eles moravam e caso não aceitasse a separação, não poderia encontrá-la. E segundo porque o “exmarido” sabia muito bem onde ficava localizada a casa de Leandro, portanto, lá podia achá-la e ficar importunando. Ela 96
não queria mais nada com ele. Ricardo estava completamente louco e aquilo tinha ficado perigoso. Pouco tempo depois de se mudar para a casa da prima ela conseguiu um novo emprego como vendedora numa grande loja de departamentos em Nilópolis. Não era o que ela queria para a sua vida, mas estava servindo para ajudar a esquecer o desastre de seu relacionamento. Pretendia muito em breve conseguir algo melhor e retomar a vida do ponto onde tinha parado; porém para isso ainda tinha de espantar alguns fantasmas de sua mente. _ Não estão._ respondeu Mônica._ ainda não o conheço o suficiente para aceitar o convite dele para sairmos. Patrícia sorriu como uma colegial. _ Ele já te convidou para sair? _ Sim várias vezes; ele não desiste, é daqueles que ficam o tempo todo cercando e olhando para mim. _ E qual é o problema?_ Patrícia terminou de cortar os tomates e colocou-os numa travessa plástica onde havia também cebola cortada em rodelas, pimentão fatiado, folhas de alface lavadas formando um forro para o fundo da travessa e um pouco de cenoura e beterraba raladas e depositadas como pequenos montinhos, o que dava um colorido especial à salada. _ O Problema é que estou fugindo de relacionamentos, ao menos por enquanto. Mônica mexeu o macarrão dentro da panela usando uma grande colher de madeira. _ Acho que você deve avançar, sabe, baixar a guarda um pouco; Ricardo já é passado e você é bonita, vai chamar a atenção dos homens todo o tempo. Isso é certo. Não estou dizendo que você deve sair com esse ou com qualquer um, mas para você começar a tentar reorganizar sua vida sentimental também. 97
A cozinha onde elas estavam era um cômodo relativamente amplo e arejado; possuía uma mesa retangular feita com inox tubular e tampo de mármore no centro do lugar com quatro cadeiras uma em cada lado, fogão, freezer, geladeira e um armário; tudo estava perfeitamente distribuído pelo espaço formando um harmonioso círculo e permitindo uma boa circulação de ar. Quem não conhecesse a dona da casa poderia, ao ver a cozinha, chegar à conclusão de que ela fosse adepta do Feng Shui o que não era verdade, mas parecia, pela forma como fazia questão de harmonizar todos os móveis dos ambientes. As paredes eram recobertas com pastilhas acrílicas de tom bege e isso combinava com as cores de quase todos os móveis e utensílios. Patrícia fazia questão de combinar as cores bege com bege ou com branco no caso do liquidificador, processador de alimentos, torradeira, espremedor de frutas, forno de microondas, panificadora e filtro de água. Tanto a geladeira quanto o freezer eram beges também. _ Não sei se já estou pronta, quer dizer, não é minha separação com Ricardo que está sendo um problema. _ Então o que é? Patrícia foi até a geladeira, abriu e pegou uma garrafa que estava acondicionada no primeiro espaço logo abaixo do congelador. Era vinho tinto. Desde que fizera uma viagem à Cidade do Porto, em Portugal, três anos antes, Juntamente com Heloi e Ingrid, tinha ficado apaixonada pela forma como nossos patrícios tratavam aquela bebida e mais apaixonada ainda pela própria bebida; passou a tomar quase todos os dias um copo de vinho tinto, mesmo que não fosse o verdadeiro vinho do Porto, mas ouvira falar que um pouco de vinho todos os dias ajudava na prevenção de algumas doenças por isso Patrícia passou a fazer aquilo quase como um ritual religioso, 98
uma espécie de liturgia particular; geralmente tomava antes do jantar quando estava conversando. Uma boa conversa e um copo de vinho deixava tudo muito mais agradável. Era isso o que ela pensava. _Foi muito estranho os últimos meses de relacionamento com Ricardo, sabe, ele estava muito diferente, ausente, descontrolado e insano em todos os sentidos. _ Todos?! _ Sim. Enquanto procurava na gaveta do armário por um saca-rolha, Patrícia perguntou: _ Até na cama? Mônica pensou por um segundo, como se estivesse rememorando algum fato do passado. E respondeu: _ Principalmente._ ela ficou em dúvida se contava sobre Fausto à prima, mas resolveu aguardar mais um pouco. Não tinha certeza de que a outra entendesse plenamente como Fausto se encaixava no relacionamento dela com Ricardo. No começo foi muito bom, mas depois se tornou desastroso. Com uma cara de curiosidade Patrícia comentou: _Você não costuma falar muito dos motivos de seu rompimento com ele. _ ela tentava retirar a rolha da boca da garrafa. O talharim estava quase no ponto, Mônica foi ao armário e em uma das gavetas inferiores retirou um escorredor de massas. Colocou-o na pia. _ Eu sei; é que foi muito surreal e estou procurando me desligar completamente dele e de tudo o que aconteceu, sabe, tenho medo de que se eu ficar falando possa sonhar, sei lá, quero me manter totalmente afastada, de corpo e alma. Patrícia e Mônica eram mais do que primas, desde pequenas eram confidentes e não tinham segredos uma para a outra, por 99
isso Patrícia achou tão estranho o fato de Mônica não se abrir totalmente com ela; as causas do rompimento com o “exmarido” deveriam ser, além de sérias, muito embaraçosas para Mônica continuar mantendo segredo quase seis meses depois; mas não fez pressão alguma, afinal, entendia que a prima tinha passado por maus momentos no relacionamento que culminaram com um rompimento brusco seguido de vários desentendimentos; além disso, sabia que mais algumas coisas que não tinham sido reveladas ainda viriam à tona no momento certo. Quando Mônica foi morar com a prima estava praticamente em frangalhos, muito assustada e pouco comunicativa, o que era muito estranho para uma mulher que desde menina falava o tempo todo e com todo mundo. Felizmente o contato diário com a pequena Ingrid e com a família bem estruturada da prima foi o tratamento intensivo do qual estava precisando; em pouco tempo Mônica se recuperou quase totalmente dos traumas sofridos no relacionamento, Passou a sair novamente, tanto sozinha como com a família para onde quer que eles fossem, museus, teatros, fins de semana na Região dos lagos, Cabo Frio e Saquarema; ou na costa verde, Angra dos Reis e Ilha grande; mas sobretudo, ela adorava as festas e almoços de domingo feitos na casa em que moravam, onde reuniram-se além das duas primas, Heloi, Ingrid; Eraldo, Lídia, Karen e Ângelo, o anjo da guarda da criança, sempre que podia ele fazia questão de estar presente; nas últimas vezes levou até a namorada Diana, moça adorável. Ângelo e a família tinham criado e nutriam um bonito laço de afeto mútuo. Como se não bastasse toda essa gente, às vezes Leonardo aparecia trazendo sua namorada do mês, sempre mulheres diferente; Patrícia achava que ou ele era muito dado às 100
pequenas aventuras amorosas ou estava pagando mulheres para sair com ele. Hélio não gostava de Leonardo sempre levando mulheres diferentes para as festas e almoços de família. E Mônica ficava extremamente envergonhada com o comportamento fútil do irmão. A rolha saiu da boca da garrafa com um ruído característico. _ Quer vinho?_ perguntou patrícia. _ Claro. A dona da casa derramou o líquido vermelho e aveludado, quase reluzente, no copo que a prima antes tinha bebido água e em seguida pegou um para si. _Você precisa de uma pessoa como Ângelo._ continuou a prima deixando o assunto “relacionamento passado” para trás. Mônica riu. _ Ele é uma graça mesmo, mas tem namorada, se amam e formam um casal muito bonito. Patrícia colocou vinho no seu próprio copo. _ Não estou falando que você deve ficar com ele, mas com uma pessoa como ele. È um homem responsável, honesto, fiel, trabalhador, politizado, centrado e que deseja uma família de verdade. Uma pessoa e tanto, eu diria que está um pouco difícil encontrar um desses no mercado hoje em dia. _ Você está falando isso porque ele salvou minha sobrinha. Embora aquelas duas mulheres fossem primas e Mônica também fosse madrinha da menina, dizia a todos que Ingrid era sua sobrinha. _ Isso também._ Arrematou Patrícia com um ar brincalhão no rosto e tomou um gole do vinho. O macarrão estava no ponto; Mônica colocou o copo na mesa e desligou o fogo, em seguida tirou a panela e levou para a pia, onde derramou todo o conteúdo no escorredor. Colocou a panela de lado e abriu a torneira sobre o macarrão fumegante; a 101
água rapidamente tratou de baixar consideravelmente a temperatura da massa, mas não por completo; Mônica desligou a torneira e ergueu um pouco o escorredor para que a água saísse pelos furinhos no fundo. Enquanto isso a outra retirou mais uma travessa, sendo essa de vidro e colocou sobre a mesa, foi ao fogão e destampou uma panela que tinha colocado previamente lá, dentro estava o molho de tomate; o aroma delicioso inundou a cozinha. Levou a panela para a mesa e colocou ao lado da travessa vazia. Ingrid apareceu correndo, vestida, mas enrolada na toalha de banho e com os cabelos pingando sobre a roupa, seus pés descalços estavam espalhando água por toda a casa. Ao ver aquilo a mãe se assustou: _ Filha! Não. Está molhando a casa toda! Ingrid não ligou para a repreensão, tinha algo em mente. _ Mãe depois de comer, podemos ligar para o Tio Ângelo? _Pra quê? _ Para dar o presente. A mãe que tinha ido até a menina e estava enxugando ela com a toalha ainda enrolada no corpo se voltou para a prima e disse: _ Cuida da mesa pra mim só um minuto que vou levar essa bagunceira aqui para arrumar a bagunça que ela certamente fez lá no banheiro. As duas saíram da cozinha e sumiram pela sala ao lado. Mônica ficou um tempo parada olhando para o lugar por onde as duas tinham saído; pensando em tudo o que Patrícia tinha dito até aquele momento. Ela tinha uma certa razão, estava mais do que na hora de prosseguir com a vida e deixar o passado recente de lado; já fazia quase sete meses. Quanto mais tempo ela ficasse guardando segredos, mais prejudicial seria; e já estava tão bem que queria realmente encontrar
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alguém que desejasse formar uma família sólida e tão bem estruturada quanto aquela em cuja casa ela estava hospedada. Só uma coisa ainda a incomodava; Fausto. Como ela poderia explicar sobre ele se também não entendia completamente como tudo tinha acontecido? E pior, sabia que fausto era muito mais possessivo e violento do que Ricardo. Mônica não tinha só fugido de seu “ex-marido”, mas também e principalmente de Fausto. Ficou em silêncio e continuou pensativa trabalhando no macarrão. Alguns minutos depois Patrícia voltou sozinha. _ Você não vai acreditar na bagunça que ela fez lá no banheiro; molhou tudo e tirou todas as coisas do lugar. Essa menina está ficando impossível. Mônica disse: _ O macarrão está pronto. A travessa de massa estava colocada sobre a mesa e o talharim ostentava um belo e aparentemente apetitoso molho vermelho; Mônica tinha até colocado uma folhinha de alecrim sobre o prato para dar um toque especial. _ Estive pensando no que você falou. Patrícia pegou o copo de vinho que permanecia sobre a mesa e perguntou: _ Sobre o quê? _ Sobre dar continuidade à minha vida. Acho que você está coberta de razão, devo continuar minha vida sem o Ricardo e recomeçar. Encontrar alguém pra ser feliz. _ É assim que se fala. _ A dona da casa bebeu mais um gole do vinho_ A comida está com uma cara ótima. Ouviram o toque do aparelho telefônico na sala. Ingrid voltou para a cozinha com o telefone sem fio na mão balançando de um lado para outro. _ Papai no telefone._ Disse com firmeza. 103
Patrícia pegou o aparelho e a prima observou enquanto a conversa se desenrolada entrecortada por momentos de escuta e perguntas. _ Alô...Porquê querido?...Fizemos macarronada... Tudo bem, não tem problema... Tchau; te amo. Quando finalizou a conversa devolveu o telefone e pediu que a filha colocasse novamente na sala. _ Leva pra mim amor? _Claro. Ingrid correu com o telefone na mão. Ainda estava descalça, e a mãe gritou: _ Coloca uma sandália! Patrícia voltou sua atenção para Mônica. _ Era o Heloi; vai demorar para chegar em casa._ disse. _ Por quê? _ Parece que está tudo engarrafado lá do centro pra cá. Cada dia o trânsito piora um pouco. Mônica deu de ombros. _ E isso não é o pior; Ingrid está há um bom tempo dizendo que quer dar um presente para Ângelo, ela fez o pai prometer que ia comprar alguma coisa para dar com dedicatória e tudo. Então hoje Helio ainda vai passar no shopping, eu acho, e ver se encontra alguma coisa. _ Que tipo de coisa? _ Não sei ainda. Talvez um livro, ou uma caneta especial. Ângelo mantém uma coleção de canetas. _Interessante. Patrícia chamou a filha para jantar, já que Heloi não ia chegar a tempo, gostavam de jantar todos juntos sempre que era possível e mantinham isso como se fosse outra tradição religiosa da família. Ingrid apareceu rapidamente com as sandálias devidamente colocadas nos pés e sentou na cadeira da 104
cabeceira da mesa. Mônica já tinha colocado também os pratos dispostos nos lugares tradicionais onde cada uma delas costumava sentar. As duas beberam o restante do vinho que estava nos copos enquanto saboreavam uma excelente macarronada; já a menina comeu com o acompanhamento de um copo de suco de laranja, era o preferido dela. Durante o jantar conversaram um pouco mais e foi uma refeição bastante descontraída como geralmente costumava ser; com muitos sorrisos de todas as três tanto das adultas quanto da menina. Falaram um pouco mais sobre o trabalho de ambas e do projeto de Mônica em voltar ao trabalho no ramo de Joalherias onde recebia melhor do que no atual emprego. Ela tinha alguns contatos antigos, ex-colegas de trabalho que migraram de uma joalheria para outra, pretendia ligar para algumas delas e ver se podiam ajudar de alguma forma. Gostava muito de trabalhar com jóias. Conversaram também sobre o dia de Ingrid na escola e depois na casa de Karen. A menina falou incansavelmente sobre tudo o que ela e as coleguinhas de classe tinham aprendido durante a aula, em seguida contou com o maior entusiasmo do mundo sobre as brincadeiras na hora do recreio. A mãe e a madrinha limitavam a rir e a concordar com tudo o que a menina dizia, mas não estavam fingindo interesse, pelo contrário, elas estavam profundamente interessadas em saber exatamente tudo o que tinha acontecido durante todo o dia de Ingrid. Patrícia gostava de praticar essa interação com a filha quase todos os dias, exceto quando trazia muito serviço para fazer em casa, mas mesmo nesses dias ela ainda fazia um esforço para ouvir a versão resumida de todas as atividades escolares da menina e tinha certeza de que aquilo era o suficiente para 105
deixar claro que havia vontade da mãe em oferecer toda a ajuda que a filha por ventura precisasse. Da mesma forma Mônica costumava dar vários conselhos de como a afilhada devia agir em determinados casos, mas nunca passava por cima da autoridade da mãe; em todo e qualquer assunto que Patrícia opinava e descrevia a forma de fazer ou agir, Mônica concordava com veemência, sempre acrescentando a frase: “Ouça sua mãe”. Era uma forma de solidificar o entendimento de que a menina devia manter sempre em mente que a mãe dela sabia exatamente como agir em qualquer situação. Depois de falar que escrevera até a mão doer, que um menino fez muita bagunça e foi colocado de castigo, que as professoras brigaram com outro aluno de outra classe e que havia tirado a nota máxima no teste semanal; Ingrid mudou o foco do discurso e trocou o tema “escola” pelo tema “casa da Karen”. Falou que tinham almoçado arroz com carne e purê de batata seguido de uma deliciosa sobremesa de sorvete, disse que tomaram banho de piscina, fizeram lanche, brincaram com a bicicleta nova de Karen e viram alguns desenhos na TV a cabo. Como se isso não bastasse, ficaram o restante do tempo brincando de tirar fotos para colocar em seus álbuns virtuais. Tanto Patrícia quanto Mônica fizeram objeções dizendo que tais fotos só seriam expostas na internet depois que fossem devidamente analisadas pelos pais e fosse visto que não representavam ameaça alguma nem para as próprias crianças nem para qualquer outra pessoa. Aquelas fotos infantis só seriam disponibilizadas na rede se fossem totalmente inofensivas sob todos os aspectos. Pouco tempo atrás a diretora da escola havia reunido todos os pais para informar e pedir maior acompanhamento das atividades dos filhos em ambiente virtual, como forma de 106
prevenir qualquer tipo de comportamento que não fosse aceitável. Muitas crianças estavam usando a grande rede, principalmente por intermédio dos sites de relacionamentos, para atacar colegas de forma pejorativa, outros, por falta de entendimento e experiência poderiam ser presas fáceis para espertalhões de todos os tipos. Era algo que estava acontecendo tanto em escolas públicas quanto em particulares como a de Ingrid e em todo o território nacional; a diretora queria apenas avisar e dessa forma manter os pais também no papel de vigilantes e guardiões de suas crianças. Não era o caso de Ingrid mesmo porque os pais dela já a mantinham sob rígida vigilância; sabiam dos perigos e armadilhas que o novo mundo digital podia esconder, sobretudo para os mais jovens. Quando terminaram o Jantar, a menina correu rapidamente para o quarto, para frente do computador onde passava horas navegando na internet e conversando com coleguinhas de escola. Patrícia continuava mantendo rédea curta no controle e monitoramento da filha em ambiente virtual. Só permitia que ela usasse o computador depois de fazer todas as tarefas passadas pela professora como dever de casa e trabalhos extras; mesmo assim, a menina só podia ficar no computador durante um período estipulado de tempo, precisava dormir cedo para que pudesse aproveitar bem os benefício de uma boa noite de sono. O período de uso do computador só era relaxado um pouco mais durante as férias escolares do meio e fim de ano. Após o fim do jantar e de ajudar a prima a lavar devidamente todos os pratos, copos e utensílios usados, bem como limpar e organizar a cozinha. Mônica foi até a edícula onde estava hospedada, localizada no quintal atrás da casa. Era uma construção bem menor do que a casa da frente, mesmo assim, tinha bastante espaço para ela se sentir perfeitamente
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confortável e ter sua privacidade respeitada sem agredir a dos donos da casa. Pretendia descansar um pouco já que Patrícia tinha levado alguns relatórios para analisar em casa após o jantar e precisaria de tempo para fazê-lo. Provavelmente fosse também repassar novamente as tarefas escolares com Ingrid antes de dormirem. O dia seguinte seria tão cheio quanto os outros. A edícula era composta de um quarto, sala, banheiro, cozinha e um pequeno cômodo que poderia servir como guarda tralhas, escritório ou ateliê de pintura se Mônica pintasse alguma coisa, o que não acontecia. Todo o lugar já estava previamente mobiliado quando ela se mudou para lá; Patrícia tinha tratado de colocar toda uma decoração independente na pequena casa dos fundos. Construíram o lugar justamente para o caso de ter de receber amigos mais chegados ou qualquer pessoas da família por um longo período de tempo. Tinham um ramo da parentela que morava em Portugal, mais precisamente na bela cidade do Porto, e se por ventura quisessem vir ao Rio de Janeiro, em qualquer época do ano, já poderiam ficar hospedados na edícula que era totalmente funcional, arejada e extremamente bem tratada. Enquanto não havia ninguém hospedado na edícula, os donos usavam como local de entretenimentos diversos, mas o lugar serviu muito bem para ajudar Mônica nesses meses que estava buscando um recomeço. Ao entrar acendeu a luz da sala o mais rápido que pôde, as sombras dentro do cômodo incomodavam; fechou a porta e pensou por um minuto o que podia fazer para ocupar um pouco mais o tempo e relaxar antes de dormir. Pensou em ver televisão ou assistir um filme em DVD, havia uma coleção de filmes na estante; Heloi tinha colocado uma excelente aparelhagem de som e imagem digital de alta definição na sala 108
da edícula; uma televisão LCD 42 polegadas, um Home Theater com DVD e quatro torres de som espalhadas nos quatro cantos da sala. Fez isso porque assim, toda vez que quisesse assistir filmes barulhentos de guerra ou com muita ação, tiroteios e explosões do jeito que gostava, não precisava ficar ouvindo as queixas de Patrícia por causa do barulho na casa principal. Isso sem falar no futebol, esporte pelo qual era apaixonado; assistia durante o ano inteiro a vários jogos do Campeonato Carioca, Brasileiro, Libertadores da América, Copa sul-americana, ligas italiana, inglesa e espanhola, UEFA e Liga dos Campeões da Europa. Tudo aquilo na paz e na tranqüilidade da edícula que agora era ocupada por Mônica. Ela Trancou a porta e foi até a estante com a aparelhagem áudio visual, geralmente ela mesma passava muitas horas ali vendo telejornais, programas de variedades e eventualmente alguns filmes também, mas não estava com muita vontade de assistir nada em especial naquela noite; mesmo assim se aproximou da prateleira com uma fila de discos de DVD, vários filmes, tanto produções de Hollywood como nacionais. Ela passou o dedo rapidamente como se fosse escolher algum deles, mas não achou que teria paciência para assistir até o fim e dessa forma o filme não ia ser útil para ajudar a num bom momento de relaxamento antes do sono. Uma coisa a estava incomodando intimamente e precisava pensar a respeito, principalmente para saber se revelaria à prima o principal fato que a fez abandonar o relacionamento antigo. Mônica precisava pensar seriamente sobre Fausto. Foi para o quarto, tomou o cuidado de acender todas as luzes da casa e até mesmo alguns abajures localizados na sala já iluminada pela luz convencional e no quarto também, três ao todo, como se a grande quantidade de luzes pudesse de algum modo manter afastado dela qualquer pesadelo antigo que a 109
estivesse querendo assediar durante a noite e madrugada ou impedir que sombras intensas fossem vistas nos cômodos. Pegou uma camisa regata branca e um short curto de mesma cor, assim como uma toalha de banho bastante felpuda e seguiu para o banheiro. Logo que acendeu a luz e olhou para o espelho, um calafrio percorreu sua coluna como uma pontada fria. Não era uma sensação real, mas sim um fantasma de sensações que ela já tinha sentindo meses antes; apenas um pequeno filhote do medo que a fez fugir da vida e dos braços do “ex-marido”. Lembrou-se de algo que ele costumava repetir várias vezes: _Odeio espelhos._ murmurou repetindo a frase de Ricardo. Ela mesmo não tinha nenhum problema em se olhar por longos minutos no espelho, mas a frase reapareceu em sua mente e ela apenas reproduziu. Já estava morando na casa dos fundos há quase cinco meses e sempre que se deparava com espelhos, não somente aquele como também qualquer outro principalmente à noite contanto que estivesse sozinha, lembrava dessa frase. Após o banho revigorante e a troca das roupas de dia pela camisa e short muito mais confortáveis, Mônica foi para o quarto e pulou sobre a cama cujo colchão era macio e maleável, retirou de uma pequena bolsa deixada ao lado da cama um pote de creme hidratante, um pente e um vidro de perfume. Os primeiros pensamentos brotaram como água de uma fonte. Ela pensava que Ricardo não era um grande problema para sua nova vida nem para o que estava projetando para o futuro, sabia que ele ainda era apaixonado por ela, mas respeitaria a decisão que ela tomou de dar um fim na história que tentaram construir juntos. Muito provavelmente ele estivesse psicologicamente doente e precisasse de ajuda profissional, 110
mas Mônica não se via com força suficiente para conseguir ajudá-lo contra a própria vontade dele que insistia em dizer que as vozes que ouvia eram um presente divino e não uma patologia mental. Ricardo ainda gostava dela, mas não queria abrir mão de seus delírios nem de suas manias de perseguição ele cria que alguma força superior o tinha escolhido para a realização de propósitos nobres. Além disso, havia outra coisa muito pior; havia uma terceira pessoa no relacionamento. Fausto. Fausto sim representava uma ameaça muito maior do que o “ex-marido”; era possessivo, violento e totalmente imprevisível; provavelmente ainda não tinha assimilado o rompimento entre eles e devia estar procurando por ela como um louco e por toda a parte; felizmente, assim como Ricardo, Fausto também não sabia onde era a casa de Patrícia, portanto estava a salvo de ambos. Preferia não ter de encontrar qualquer um deles durante ao menos um ano, porém sabia que mais cedo ou mais tarde esse encontro ia acabar acontecendo. Ela esperava que o tempo fosse suficiente para amainar a paixão de Ricardo e o desejo ardente de Fausto. Mônica abriu o pote de creme hidratante, despejou uma boa quantidade na palma da mão em concha, esfregou uma mão na outra e começou a massagear as pernas doloridas por causa de um dia inteiro de trabalho andando pra lá e pra cá usando salto alto. As mãos deslizavam desde o calcanhar até o início da coxa, pouco acima do joelho e em seguida voltavam para o tornozelo. Um aroma tênue semelhante ao perfume de talco inundou o quarto enquanto ela continuava a massagem gentilmente pelas pernas sem perder o foco de seus pensamentos. Ela tinha certeza absoluta de que Fausto estava lá fora em algum lugar e que devia estar procurando por ela. O 111
envolvimento deles foi rápido e intenso, no princípio ela não percebeu bem o grau de desejo que ele nutria por ela, não era amor, não era paixão; era desejo puro e carnal, mas conforme passou a se encontrar com ele algumas vezes, passou também a ver que a relação entre os dois seria muito mais física do que sentimental. Resolveu embarcar naquela aventura louca porque Ricardo era o contrário, sentimental demais e pouco viril, na verdade ele era um homem comum nessa área, mas Fausto era acima do normal; ele a satisfazia fisicamente de uma forma que Ricardo não era capaz de imaginar com seu comportamento metódico e convencional. Mônica passou a sentir o mesmo desejo violento por Fausto, e de certa forma se envergonhava disso, mas o que podia fazer? Com ele sentia-se adorada, venerada, enquanto que com Ricardo sentia-se apenas estimada, amada. Gostaria de ter os dois, mas como aparentemente não podia então tinha optado por ser adorada fisicamente em seu relacionamento estranho com Fausto. Às vezes ela se perguntava se aquilo foi um erro, mas nunca chegava a uma resposta sincera. Ela tentou conversar com o “ex-marido” antes de se separar e falar sobre Fausto, mas não teve coragem; não sabia como ele ia reagir e teve medo que uma revelação como aquela pudesse agravar o estado psicológico dele que, segundo ela própria, já não era dos melhores com aquelas histórias de vozes ocultas todo o tempo. Depois de algum tempo ela passou a não conseguir mais olhar o marido nos olhos sem pensar no outro e na volúpia de seus encontros, a casa lembrava Fausto, a cama, o banheiro, tudo lembrava ele. Quando fugiu, foi também de si mesma, tentando deixar longe de si aquele sentimento confuso de estar traindo outra pessoa, mais ou menos, por isso resolveu romper
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totalmente deixando Ricardo e o outro no passado. Se perguntava se realmente conseguiria. Retirou mais um pouco de creme hidratante e começou a espalhar nos braços e ombros, as mãos delicadas, com unhas bem manicuradas e pintadas com temas florais, porém firmes, corriam de um lado a outro de uma forma quase profissional. Se Mônica desejasse poderia facilmente trabalhar como massoterapeuta, de fato, já tinha feito pequenos cursos a respeito e desenvolvera uma boa técnica. Quando finalmente terminou a massagem já estava se sentindo fisicamente um pouco mais leve, porém mentalmente ainda havia muita coisa mal resolvida com sigo mesma. Gostaria de desabafar e resolveu que ia contar alguma coisa para Patrícia, mesmo que em doses homeopáticas no começo. Sabia que podia contar com a prima. Foi até o banheiro onde lavou as mãos voltou para o quarto; pegou o telefone celular e discou os números do telefone celular de Leonardo. Após algumas chamadas a voz eletrônica de uma atendente automática surgiu com a clássica mensagem: “O número discado está desligado ou fora da área de cobertura, sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal”. Quando a voz eletrônica desapareceu, Mônica disse: _ Léo, sou eu. Liga pra mim. Tchau._ Provavelmente o irmão estivesse em horário de trabalho naquele momento, mas como em outras oportunidades já tinha ligado para ele durante o turno e ele atendera, ela acostumou-se a fazer isso. Eles trocavam algumas palavras rápidas e em seguida desligavam. Mas não tinha problema, no dia seguinte ligaria para ele outra vez. Desligou o telefone e colocou embaixo do travesseiro. Ficou deitada olhando o teto, as luzes de toda a casa ainda estavam 113
acesas e ela só iria desligar quando o sono já estivesse quase vencendo sua resistência natural. As palavras Fausto, Ricardo, amor, adoração e várias outras ficaram girando e dançando na mente dela como se fossem pequenos fantasmas brincalhões esvoaçantes que trouxeram um sono sorrateiro que a dominou repentinamente. Ela dormiu sem perceber, estava cansada pelo dia de trabalho e por toda a reflexão que tinha feito até aquele momento; nem foi capaz de se levantar para apagar as luzes como fazia costumeiramente. Dormiu pesadamente e sem saber que um grande mal estava cada minuto mais próximo.
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06 O Peugeot parou junto ao meio-fio em frente à casa de Diana; Ângelo desligou o motor, retirou a chave da ignição e os dois ficaram imóveis sentados dentro do carro sem falar palavra alguma por alguns minutos, ambos olhando para o vidro frontal do veículo como se estivessem esperando ver algo diferente nele. Diana estava confusa, ainda queria entender exatamente o que tinha ocorrido naquela noite, mas não tinha informações suficientes em sua jovem experiência de vida que pudesse lhe proporcionar uma explicação qualquer. Ela nunca achou que presenciaria algo como aquilo que o namorado havia demonstrado. Diana nunca teve qualquer opinião formada sobre a existência de fatos de cunho sobrenatural do tipo premonições, visões do futuro ou qualquer tipo de outra manifestação desse nível. Ela considerava que muito provavelmente um número bem pequeno, para não dizer minúsculo, de pessoas ao redor do mundo poderia de fato ter potencial para manifestar habilidades ou atrair fenômenos como os descritos e estudados pela parapsicologia. Fenômenos como precognição ou premonição, clarividência, psicocinese, retrocognição, telepatia, simulcognição e piroscinese. Mas ela cria que aquilo na verdade era irrelevante, nunca deu qualquer valor a informações sobre qualquer coisa ligada a paranormalidade quando via reportagens a respeito do tema vez por outra na televisão. Agora ela estava reconsiderando aquele paradigma que tinha desde que se entendia por gente; havia acabado de ser 115
testemunha de um fato que se tivesse sido relatado por qualquer pessoa, ela diria se tratar de uma boa invenção. Mas vira e ouvira com seus olhos e ouvidos o namorado falar em alto e bom som que um acidente estava para acontecer e logo em seguida o fato ocorreu. Diana virou a cabeça e olhou para Ângelo que permanecia sentado olhando de maneira dispersa à frente do veículo, ele respirava de uma forma calma e o semblante estava tranqüilo, nem parecia ter se dado conta de que havia evitado que um homem fosse morto pelo fogo causado pelo contato da gasolina com o cigarro aceso em algum ponto debaixo do carro batido. Finalmente Ângelo olhou para ela com uma expressão suave na face, os cenhos arqueados, a testa levemente enrugada e os lábios tão apertados que pareciam formar apenas um pequeno risco abaixo do nariz. No fundo ele estava ansioso para saber o que a namorada estava pensando, mas não ousava dizer nada, porque não sabia o que falar. Diana percebeu a inquietação disfarçada no olhar dele e retribuiu com um olhar complacente e carinhoso, em seguida passou a mão pelo rosto dele. Estava tudo bem; ela ainda não conseguia entender absolutamente nada do que havia ocorrido, mas realmente estava tudo bem. _ Você tem uma explicação para isso?_ perguntou ela. Ângelo balançou a cabeça negativamente. _ Não. Ele achava aquela mulher a mais magnífica do mundo, sentiase abençoado por tê-la ao seu lado, mas ao mesmo tempo sentia uma extrema vergonha por não ter sido capaz de compartilhar seus segredos mais íntimos com ela antes de ter de mostrá-los de uma forma tão abrupta. _ Desculpe não ter contado antes.
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_ Você não precisa se desculpar, eu também teria escondido uma coisa como essas, quer dizer, é algo espetacular e você tem de ter muito cuidado ao falar disso. _ Nunca falei com ninguém a esse respeito. _ Ninguém?_ Diana pensou que ele pudesse ter compartilhado com os pais e com alguns amigos mais íntimos. _ Jamais conversei nem revelei para nenhuma pessoa. _ Nem seus pais? _Não. Foi isso que eu estava tentando dizer no carro desde a hora em que saímos do shopping. _ Como conseguiu esconder algo assim por tanto tempo sem que nenhuma pessoa pudesse perceber que tinha algo estranho sendo omitido? Ele pensou um pouco antes de responder, já que estava revelando tudo resolveu ir em frente sem reservas, não tinha certeza de que conseguiria fazer, mas ia tentar. Ele respondeu: _ Não foi difícil; não me lembro de qualquer coisa desse tipo acontecendo comigo durante a infância, exceto umas poucas sensações que não revelavam nada sério, sempre foi algo como um Dèjá vu, não me incomodava, era só uma percepção leve. Na adolescência foi parecido, tive poucas sensações sobre pessoas, lugares, objetos e situações, mas nada relevante, nada que pudesse me dizer como e onde salvar a vida de outro ser humano. Entende? _ Então como aconteceu? Ângelo passou a mão sobre a testa como que para tirar uma camada de suor recém formada, mas não havia suor algum na testa, foi uma reação mais mecânica do que qualquer outra coisa. _ Alguns dias antes do que aconteceu no parque, eu acordei com o pressentimento de que algo diferente ia acontecer comigo, no princípio eu não podia imaginar o que seria, mas 117
ignorei porque essas sensações sempre sumiam depois de um tempo. Sabe, como a fumaça criada por um fósforo riscado; ela dança e desaparece. Comigo era semelhante. Efêmero. _ E então?_ Diana estava curiosa. _ Então, no dia em que salvei Ingrid eu só sabia que deveria estar no parque e que lá teria de fazer uma coisa, não imaginei que essa coisa fosse salvar uma garotinha que ia cair de um brinquedo com defeito. Pensei que eu ia ver algo acontecer, sei lá, alguma coisa qualquer. Nunca imaginei que eu seria o agente principal a ser guiado para dentro daquele brinquedo. Ela tentou mostrar-se compreensiva, afinal, aquilo era algo totalmente fora dos padrões; e enquanto falava sua mente ainda fazia giros e mais giros em busca de uma explicação que teimava em não surgir. _ Agora ouço uma voz, hoje foi estranho, mais forte, mais alta do que da última vez. Os olhos de Diana se arregalaram sem que ela percebesse. _ O que essa voz disse? Você conseguiu compreender bem? _ Sim, mas pareceu um trovão; falou que um acidente ia acontecer ali e que uma pessoa ia morrer. _ A voz não mandou você salvar a pessoa? _ Literalmente não, mas creio que estava implícito, senão, porque revelar algo como isso?_ Ele continuava coçando a testa. Diana se recostou novamente no banco do carro e voltou a olhar o pára-brisa. Falou de modo vago: _Será que você mudou o destino daquele homem? Ângelo não acreditava em destino nem ia se deixar levar por um debate tão complexo sobre desdobramentos e interrupções de algo que já estava traçado previamente para a vida daquele homem, mas se limitou a responder: _Não sei. 118
Ela emendou: _ Não sei o que dizer, isso é surreal, você sabe o futuro antes dele acontecer, mesmo sem saber direito o que isso significa só posso pensar que é uma coisa boa. Ângelo não coçava mais a testa, mas apertava com os dedos os olhos fechados como que para espantar uma possível dor de cabeça. _ Não. Diana, não posso saber coisa alguma antes de acontecer; isso não é uma constante, acontece somente às vezes, não tenho controle. E isso me amedronta um pouco. Ela o olhou novamente; ele também a estava encarando. Ele continuou: _ Entende agora porque eu nunca fiquei à vontade quando as pessoas me reconheciam nas ruas ou me elogiavam sem mais nem menos. Eu não sei se sou eu que faço essas coisas. A curiosidade e o entusiasmo crescente que estavam visíveis na face de Diana desapareceram momentaneamente. _ Como assim? O que você está querendo dizer? Vi você puxar aquele homem de dentro do carro batido hoje e uma multidão de gente viu você pendurado nas ferragens da roda gigante para salvar a vida de uma menina. Não estou entendendo. É claro que é você quem faz essas coisas. _Eu sei disso, eu fiz essas coisas, mas se não houvesse algo diferente em mim, nunca teria feito nada disso. Não sei se sou eu mesmo quem produz essa sensação ou se existe algo maior agindo em nosso redor, algo que por algum motivo eu consigo captar. E tem mais. Por que Ingrid e esse homem hoje? Por que não outra pessoa qualquer? Por que tanto tempo depois ou por que não antes? Entende o que quero dizer. Passo por centenas de pessoas todos os dias e nada acontece. Por que esses em particular? O que eles têm de especial? O que eu tenho de especial?_ lembrou novamente do homem no parque de 119
diversões; por mais que se esforçasse não conseguia esquecer a face dele nem o que foi dito. Diana respirou fundo e pesadamente tentando ganhar tempo para encontrar alguma coisa para dizer que fosse confortante para o namorado, ela entendia as dúvidas dele, e compreendia também que era necessário uma dose muito grande de cautela ao se afirmar qualquer coisa. Ela falou: _ São muitas dúvidas_ ela mantinha uma face indiferente_ e as possibilidades de resposta devem ser infinitas. _ Compreende agora a causa de eu estar sempre na defensiva com isso; não me sinto herói coisa nenhuma. Heróis são os bombeiros que levaram aquele homem acidentado hoje para o hospital, heróis são os soldados brasileiros em missão fora do país ou cada pessoa que tenta viver uma vida descente nesse país que os explora cada vez mais. Fico profundamente incomodado quando Heloi ou Patrícia dizem que sou o anjo da guarda de Ingrid._ Ângelo já tinha visto em algumas oportunidades os pais da menina o apresentarem para amigos e conhecidos dizendo exatamente aquilo: “Esse é Ângelo, o anjo da guarda da minha filha”. Para ele aquilo era terrível. Diana deu de ombros. _ Não sei, mas acho que isso é uma coisa boa._ ela sempre teve bons olhos, enxergava tudo em seu redor de uma forma agradável. Ele refutou: _ Não é. Essas pessoas têm uma expectativa monstruosa depositada sobre meus ombros, você não vê? Eles esperam muito de mim e não sei se posso corresponder todo o tempo; e depois que apareci em jornais e tudo aquilo aconteceu eu sinto que mais pessoas começaram a me olhar dessa forma, pessoas que nem conheço. Você viu as meninas na lanchonete do
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shopping? E quanto à pequena Karen e seu pai? Até você passou a me olhar dessa forma. Diana baixou os olhos, tentou identificar se tinha realmente feito aquilo, procurou ser muito sincera consigo mesma, mas não conseguiu notar mudança alguma no seu comportamento com relação a ele depois dos acontecimentos que o tornaram uma celebridade local, exceto pelo orgulho que havia aumentado, por ser a namorada dele. Pensou em negar imediatamente a afirmação feita por ele, mas achou mais prudente fazer uma análise introspectiva mais acurada. Ele continuou o discurso com um certo tom de tristeza na voz. Não estava triste pelas pessoas que o tratavam de modo diferenciado, mas sim com ele próprio que temia não ser capaz de corresponder a todo aquele carinho e por vezes admiração. _E se um dia eu falhar? E se eu falhar com você? E se falhar com a Família de Ingrid ou com qualquer outra pessoa que conheça a história e tenha me idealizado como um herói de verdade? Ou pior. E se um dia eu tiver uma dessas sensações ou ouvir essa voz apenas para ser levado a uma situação que eu não possa resolver? Alguém que eu não possa salvar._ Quase não pronunciou direito a última frase. Desde que salvara Ingrid, Ângelo teve, poucas vezes, um sonho repetido, na verdade era mais como um pesadelo e nesse sonho ele sempre falhava ao tentar salvar uma mulher, não sabia quem ela era porque não conseguia ver o rosto dela, mas o desespero daquela vítima pedindo ajuda era algo tão perturbador que só a lembrança era suficiente para fazê-lo tremer por dentro. Todas as vezes que sonhou aquilo ele acordou transtornado porque no sonho ele via a mulher morrer sem o socorro que ele devia dar, mas por algum motivo não dava. Ele não contou sobre o sonho para a namorada, guardaria consigo por mais algum tempo e revelaria dependendo de 121
como ela reagisse as descobertas iniciais. Precisava ter certeza de que Diana compreendia totalmente os sentimentos dele com relação a todos aqueles fenômenos. Diana não tinha nada com que argumentar, resumiu-se a dizer apenas: _ Essas pessoas acreditam em você e eu acredito em você. Talvez essa coisa passe, talvez não signifique nada. Ele virou o rosto para o vidro da janela ao seu lado, não estava fugindo de Diana, mas não tinha certeza de muitas coisas. A namorada continuou com mais uma frase: _ Talvez você realmente tenha um dom especial. Ele não disse nada, a visão estava perdida em algum lugar fora do carro. Naquela noite eles tinham ficado no lugar do acidente até que o carro do serviço de resgate do corpo de bombeiros chegasse, foram muito rápidos em toda a ação; rapidamente imobilizaram o acidentado que estava deitado no chão longe das labaredas que consumiam toda a lataria do carro batido. Levaram-no para a ambulância e procederam com a remoção imediata do acidentado para a unidade médica de referência da região, o HGNI ou hospital geral de Nova Iguaçu, mais conhecido como hospital da Posse, por ficar localizado num bairro com esse mesmo nome, muito próximo da rodovia Presidente Dutra, BR 116, que faz a ligação entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Lá o homem desacordado que, segundo a equipe de socorro, demonstrava um quadro de traumatismo craniano e diversas fraturas nos membros inferiores seria atendido de modo mais completo. O mais importante era que ele estava vivo e se não tivesse sido retirado do automóvel o fogo também o consumiria antes que o socorro pudesse sequer ser acionado.
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Uma segunda equipe com três combatentes ficou encarregada de extinguir com o fogo enquanto que um dos bombeiros perguntava a Ângelo se ele tinha assistido o que aconteceu. Ângelo disse que estava passando pela rua quando viu o carro que parecia ter perdido a direção bater contra o poste de concreto. Na versão que ele relatou, disse que ao ver o choque, parou seu veículo deixando Diana dentro do automóvel encarregada de telefonar pedindo ajuda e foi socorrer o motorista que parecia desacordado. Foi só isso; Ângelo torceu para que nenhuma pessoa o reconhecesse como sendo o homem que salvou a menina no parque, não queria mais um salvamento sendo atribuído a ele, não tinha nascido para heroísmos, era apenas uma pessoa com um dom diferente tentando entender seu propósito num contexto aparentemente maior. _ Só sei que foi incrível_ disse Diana recuperando o ânimo na fala_ literalmente incrível, você sabia que ia acontecer._ novamente havia um entusiasmo moderado nas palavras dela. Ele soltou uma respiração mais forte como se houvesse muito ar represado nos pulmões tentando abrir espaço pelas vias aéreas rumo à liberdade. Ângelo não sabia mais o que dizer, estava confuso, nunca tinha revelado aquilo para ninguém e talvez não tivesse tido coragem de contar para ela se a situação fosse outra. Porém entendia ao menos em parte o entusiasmo da namorada. Ele sentia-se completamente desprotegido, seu segredo mais estranho, incompreensível e antigo agora seria partilhado com outra pessoa e como aquilo nunca tinha acontecido ele ficou um pouco desconfortável, embaraçado. Sem saber o que falar, ele apenas concordou: _Eu sabia._ disse aquilo como se tivesse sido vencido numa contenda, mais expulsou as palavras do que pronunciou. 123
_ Acho que devemos conversar mais a respeito?_ Diana sentia que precisava oferecer apoio, não sabia bem como fazer isso, mas era seu dever. _ Sinto que devo, mas não sei mais o que te dizer. Ela segurou a mão dele. Estava fria. _ Vamos lá pra dentro, não podemos dormir no carro. _Ela sorriu com uma facilidade que o encantou. Ele percebeu que a face iluminada de Diana tinha ajudado a dissipar as sombras que cercavam o coração dele com uma enxurrada de dúvidas. Havia uma sensação pairando no ar, mas ele não conseguia identificar o que era. Só naquele momento ele voltou a se dar conta de que estavam ainda sentados no interior do Peugeot. Ângelo pretendia apenas deixar a namorada em casa e voltar para a sua depois daquela excelente tarde que passaram juntos no shopping, mas as coisas tomaram outro rumo e agora ele se via na eminência de tentar dar uma explicação mesmo que fosse a mais estapafúrdia que pudesse. Ângelo mesmo não tinha respostas para todas as perguntas que ela provavelmente faria; Diana era inteligente e possuía uma mente aguçada e curiosa. A casa de Diana tinha um muro alto com aproximadamente dois metros de altura, um pouco mais; não era possível ver a residência escondida por detrás dele, era adornado com telhas de cerâmica avermelhadas colocadas cuidadosamente, elas formavam uma espécie de chapéu sobre o muro de fora a fora. Havia apenas um grande portão retangular de alumínio por onde poderia passar um carro e, dentro desse retângulo havia uma porta que era usada normalmente para dar acesso a casa no caso de não estarem usando o carro. Diana saiu do Peugeot e sacou de sua bolsa uma chave, com ela abriu o portão menor e entrou fechando-o em seguida. Enquanto isso Ângelo manobrava o veículo de forma a colocá124
lo atravessado na rua e de frente para o grande portão de alumínio que se abriu correndo lateralmente sobre dois pequenos trilhos com Diana empurrando. O carro avançou e subiu a calçada por uma rampa de acesso até a garagem onde o carro da namorada permanecia parado e protegido, visto que era uma garagem para dois carros e coberta. Ângelo por um momento teve a impressão de que o carro dela, um Ford Fiesta 2007 preto, nada mais era do que uma grande massa amorfa em suspensão, mas logo que a luz dos faróis do seu carro iluminou o outro a ilusão se desfez imediatamente. O motorista piscou os olhos algumas vezes, devia estar apenas cansado. Diana fechou o portão de garagem e trancou tudo, Ângelo desligou o carro e retirou as sacolas contendo o que tinham comprado no shopping. Ao fundo da garagem havia uma porta de grades que era a entrada para a casa; ambos entraram. A porta dentro da garagem levava a uma espécie varanda fechada onde máquina de lavar e secadora de roupas, estavam encostadas na parede do lado esquerdo. Ao lado delas outra porta dava acesso a uma cozinha pequena que era seguida pela sala na qual havia uma escada levando para o andar de cima onde ficava o quarto e o local de trabalho da dona do lugar. Diana morava sozinha há dois anos e montou um escritório em princípio com a ajuda dos pais, para poder exercer sua profissão de design gráfica embora primeiro tenha feito a faculdade de Direito e somente depois de concluída passou a estudar design que era uma de suas paixões. No começo quase não apareciam trabalhos para ela e os poucos que surgiam não eram satisfatórios no que dizia respeito à parte financeira. Alguns meses depois ela foi contatada por uma editora que vira um de seus trabalhos na internet e desejava utilizar como imagem de capa para a versão traduzida de um 125
livro estrangeiro cujos direitos a editora havia acabado de negociar. Aquele foi o primeiro grande negócio de Diana que passou a trabalhar como “free lancer”, em seguida ela teve a idéia de passar a criar capas personalizadas para jovens escritores e anunciando seus trabalhos pela internet conseguia vender capas já prontas ou criava algumas sob encomenda e a demanda foi espetacular. Agora Diana estava trabalhando com uma fila de espera de duas semanas, trabalhava sozinha mais era, além de talentosa, muito organizada e dedicada ao serviço, porém sempre que conseguia fazer uma boa venda de capa para algum jovem escritor ou qualquer bom serviço extra ela se permitia um pequeno prêmio motivacional, geralmente era a compra de alguma coisa que desejava e foi exatamente aquilo que tinha feito no shopping com o namorado naquele dia. Aprendera a técnica de se presentear numa palestra motivacional voltada para profissionais liberais. Gostava dessas coisas, palestras, cursos e “work shops”. Costumava participar de tantos quantos pudesse e cria que todo aquele conhecimento que adquiria estava realmente fazendo a diferença em sua carreira. Para o futuro ela estava pensando em ampliar ainda mais o seu raio de ação, quem sabe criar uma pequena agência de design; a internet era uma ferramenta formidável para negociações, fechamento de trabalhos e com certeza a ajudava muito, mas ainda estava em fase de estudo quanto às novas oportunidades que se abriam. O pai de Diana, Dr. Maurício Moura Lima, insistia que ela devia ter um escritório mais formal localizado em algum endereço comercial; ele era advogado, ex-vereador do município de Mesquita e muito reticente a forma virtual da filha trabalhar; ele mantinha seu escritório jurídico no centro do município já há mais de trinta anos e mesmo quando 126
cumprira os quatro anos de mandato legislativo na câmara ainda manteve aberto o escritório que ficou a cargo da esposa também advogada. Diana não queria, ao menos naquele momento, um escritório em alguma sala comercial do centro de Mesquita pelo simples fato de que isso fatalmente acarretaria em despesas fixas mensais, mas não era certeza de aumento de receita na mesma proporção. Ela preferia manter seu “Home Office” que era funcional e sem nenhum custo extra. Já a mãe de Diana, Janete Alves Lima, era muito mais favorável ao modo de trabalhar da filha e deu o máximo apoio desde a criação do escritório em casa até uma pequena ajuda financeira para anúncios na internet a fim de começar a alavancar os negócios. O dinheiro que entrava com as vendas sob encomenda de trabalhos de todos os tipos estava sendo mais do que suficiente para se manter mensalmente e ainda restava um pouco para guardar e investir. Ângelo já tinha dormido na casa da namorada pelo menos duas vezes, portanto tinha algumas roupas lá que nunca se lembrava de levar para a sua casa, mas serviam para emergências como aquela. _ Você quer comer alguma coisa?_ Diana estava fechando a porta. _Sabe._ disse Ângelo_ Eu estou bem cansado. Não quero nada. Obrigado. Ela sorriu tentando ainda desanuviar o clima que tinha ficado nebuloso com a conversa no carro. Disse: _ Você puxou um cara bem maior que você para fora de um carro batido, tinha mesmo que estar cansado. Ele concordou balançando a cabeça, mas o cansaço que estava sentindo não era físico, mas sim mental; Ângelo sentia um peso
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enorme nos ombros e na base do pescoço, estava com dor de cabeça e com a boca seca. _ Vou beber água, tomar uma ducha e dormir, amor. Diana pareceu um pouco contrariada, queria saber mais sobre todo aquele negócio de adivinhar as coisas que ainda não tinham acontecido; poderia passar a noite toda formulando perguntas, mas ficou impassível e apenas disse: _ Não quer conversar? Ângelo estava tentando fugir de uma conversa da qual não teria controle algum, Diana queria respostas que ele não tinha, mas não estava fingindo, só queria que o dia acabasse e um bom sono certamente faria muito bem para ele e seus pensamentos. No dia seguinte talvez tivesse mais condições de falar a respeito. _ Amanhã conversamos Diana, minha cabeça está me matando. E ainda tenho que ligar para casa e tentar explicar que vou passar a noite aqui. _ Vai contar sobre o acidente? _ Não. _ Acho que devia. _ Por quê?_ Ângelo se mostrou surpreso com o comentário dela. _ Ora; são seus pais. Se eu tivesse um filho ia quere saber se ele andasse por aí tirando gente de carros batidos e salvando menininhas em parques de diversões._ Diana não fazia por mal, mas estava tentando dar um jeito de trazer o assunto a baila novamente para extrair qualquer informação extra que pudesse satisfazer sua curiosidade. _ Você sabe como eles sãos, já foi terrivelmente difícil fazer principalmente minha mãe aceitar que salvei Ingrid do jeito que foi, ela só conseguiu ouvir que eu fiquei pendurado no brinquedo e expus minha vida a risco, passou mal, foi um 128
desastre. Se eu contar qualquer coisa desse tipo ela vai ficar horas e horas querendo saber absolutamente tudo sobre o fato e ainda vai querer me dar alguma lição de moral, dizendo que eu fico por aí bancando o salvador do mundo. Não Diana, hoje eu só quero dormir em paz; amanhã penso com calma se conto para eles. Aos olhos da namorada pareceu um bom argumento. Diana foi tomar banho enquanto ele ligava para casa a fim de informar aos pais que ia dormir na casa da namorada. Ângelo, aos 30 anos morava com os pais e um irmão mais novo, de 24 anos, Luis Miguel dos Santos; em um apartamento tradicional no centro de Nova Iguaçu. Aliás, a palavra tradicional servia muito bem para caracterizar a família dele. Tanto o pai, Luis Roberto dos Santos; quanto a mãe, Ana Maria Aparecida dos Santos eram professores universitários a vida toda. Eles ainda trabalhavam e amavam o que faziam; lecionar era para cada um deles como empurrar o mundo centímetro por centímetro, às vezes, milímetro por milímetro para uma realidade melhor. A mãe dele ensinava matérias relacionadas à língua portuguesa e o pai, matérias da área Contábil. Após explicar que passaria a noite na casa de Diana; Ângelo desligou o telefone e ficou sentado no sofá da sala aguardando e tentando expurgar a insistente dor de cabeça que o dominava. A namorada reapareceu trajando um roupão bastante felpudo, branco com uma faixa enrolada na cintura; também trazia uma toalha. _ E então, falou com eles?_ perguntou_ O que disseram? Ainda encostado no sofá, com o corpo totalmente voltado para trás, sobre o encosto acolchoado, com os olhos fechados e ambas as mãos na testa ele respondeu:
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_ Está tudo certo._ Mantinha os olhos cerrados porque a luz estava incomodando a visão e aquele estímulo tinha uma resposta cada vez mais forte em forma de dor atrás dos olhos dentro da cabeça. Diana entregou para o namorado a toalha que trazia. _ Tome um bom banho e venha para o quarto, estou achando mesmo que você precisa de uma boa noite de sono. Vou preparar tudo. Ela subiu e deixou Ângelo sozinho na sala, ele tentou levantar, mas sentiu uma leve tontura que fez com que tudo a seu redor parecesse ter ficado repentinamente inclinado. Havia uma sensação indecifrável pairando no ar. Ele tentou interpretar aquela sensação que novamente era semelhante à de um Dèjá vu, algo muito familiar, mas ao mesmo tempo não parecia ser tão claro assim. Havia alguma coisa acontecendo com ele, alguma coisa subliminar que em parte era perceptível e em parte não. Foi para o banheiro logo que a tontura parou; entrou e fechou a porta. O banheiro pequeno tinha o box do chuveiro, a pia com o armário logo acima em cuja frente havia um espelho. Sobre a pia estavam alguns perfumes, loções e óleos corporais que Diana costumava usar, além de frascos de xampus e sabonetes líquidos. Ângelo tirou a camisa e abriu a torneira, jogou a camisa sob um suporte para roupas atrás da porta e inclinando-se para lavar o rosto ajuntou com as duas mãos em forma de concha a água que caía da torneira. Jogou a água no rosto sentindo um alívio quase que imediato de sua dor de cabeça. Refez o gesto mais duas vezes sem nem perceber que aquilo era praticamente desnecessário visto que ia se enfiar embaixo do chuveiro, mas tinha por costume, ou talvez fosse algum tipo de mania, molhar o rosto na pia mesmo antes de tomar banho. 130
Ele ficou um tempo debruçado sobre a pia e de olhos fechados enquanto a água pingava do rosto. Quando finalmente abriu os olhos e se aprumou Ângelo tomou um enorme susto. A imagem refletida no espelho não era a dele, viu o rosto de outra pessoa, um rosto sorridente e terrivelmente medonho. Com um sobressalto ele esbarrou em todos os potes de óleos, loções e perfumes sobre a pia, fazendo com que praticamente todos caíssem com um barulho alto, provocado pelo contato dos potes contra o chão recoberto por ladrilhos. Por sorte nenhum deles se quebrou. Ele andou para trás, o coração disparado, e ouviu a voz de Diana chamando por ele. _ Está tudo bem aí?_ ela disse de fora. Ângelo olhou para a porta fechada como se pudesse enxergar através dela, sabia que a namorada estava parada do outro lado demonstrando preocupação. Voltou o olhar para o espelho e a única imagem lá era a sua própria. _ Ângelo!?_ Diana estava mesmo preocupada. Ela bateu na porta algumas vezes porque não estava obtendo resposta. Confuso com a visão que acabara de ter, ele pensou o mais rápido que pôde. _ Está tudo bem, amor, só derrubei algumas coisas. Só isso._ Tentou fazer com que a voz não demonstrasse o grau de confusão que havia se formado dentro dele. Olhou novamente para a porta e em seguida para o espelho. Apenas seu reflexo exatamente como tinha de ser. Diana falou além da porta fechada: _ Nossa cama já está pronta. _Já estou indo._ estava tão nervoso que nem se deu conta de que ainda faltava tomar o banho. A torneira continuava derramando água que se perdia pelo ralo como se ela não tivesse valor algum. Ângelo passou a mão pelo 131
rosto, o susto fora tão grande que a cabeça quase não doía mais. Tentou se acalmar. A visão tinha sido muito real, não havia dúvida alguma de que ele vira um rosto sorridente que o encarava com curiosa felicidade. Respirou fundo e tentou entender o que estava se passando. _ O que está acontecendo?_ balbuciou. Não diria aquilo para Diana, ela poderia achar que ele estava ficando louco. Quando finalmente saiu do banheiro, depois de um banho rápido que não foi suficiente para relaxar e ainda pensando na visão assombrosa que teve no espelho. Ângelo foi para o quarto onde a namorada estava deitada sobre a cama e assistindo televisão, o ventilador estava ligado produzindo uma brisa suave e confortável. Diana bateu com a palma da mão na cama a seu lado chamando-o para se deitar ali. Embora morasse sozinha, Diana fez questão de colocar uma cama de casal no quarto, assim tinha muito mais espaço para se virar e rolar durante a noite, além do que, na visão dela uma cama maior dava um ar mais independente ao cômodo. Transmitia uma mensagem de que quem dormia ali era uma mulher auto-suficiente e não uma menina. Ela já tinha preparado a cama para receber o namorado, havia um travesseiro extra ao lado do usado por ela e também um conjunto de cobertores dobrados a seu lado. _ Vem deitar._ disse_ Acho que uma boa noite de sono vai ser o suficiente para recuperar nossas energias. Um relógio de cabeceira colocado no console lateral da cama mostrava que não passava de meia-noite e Diana assistia o último jornal da programação da emissora antes do programa de entrevistas de Jô Soares.
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Com um pouco de receio e tentando parecer o mais normal possível, Ângelo contornou a cama e se sentou ao lado dela, ainda sentindo aquele persistente Dèjá vu pairando sobre sua cabeça e com a face estranha que o viu no banheiro também assombrando sua mente. As coisas estavam muito diferentes, várias sensações estranhas juntas, e outras que ficavam o tempo todo escapando de sua percepção. Fosse aquilo o que fosse; ele estava começando a pensar que algo vinha em rota de colisão com ele, sua vida poderia perder o sentido ou ser afetada por algo que ele não conseguisse conter. Lembrou novamente do sonho e dos gritos aterrorizantes de socorro que a mulher pedia sem sucesso. Estremeceu por dentro só de pensar que por algum motivo alheio a sua compreensão tudo aquilo podia estar interligado. Olhou para Diana que se mantinha recostada e com os olhos brilhantes ainda fixados nas reportagens exibidas pelo jornal televisivo; não parecia preocupada com coisa alguma, mas sim totalmente relaxada. Ele por outro lado mantinha-se absorto nos pensamentos escuros que brotavam dos lugares mais escondidos de sua mente. E se aquele não fosse apenas um sonho comum, mas sim uma projeção de algo que de fato ia acontecer? Tal como a menina no parque e o homem na estrada. E se aquela mulher fosse Diana? Não podia sequer pensar naquilo. De repente, na mente de Ângelo foi como se uma sombra enorme estivesse abrindo suas imensas asas obscuras e com isso roubado toda a luz que havia antes. Era uma péssima sensação. Mas o pior ainda estava por vir e começaria naquela madrugada.
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07 Caos... Caos... Caos... e escuridão. Ricardo estava acorrentado, punhos, tornozelos e pescoço, as correntes que prendiam os grilhões de ferro frio eram pesadas, mas não tanto que impedisse os movimentos, estavam bem afixadas nas paredes do que parecia ser uma espécie de cela muito pequena e escura. No ponto onde as correntes eram presas à parede, elas pareciam ser uma coisa só, não havia distinção; de fato, as correntes pareciam ser uma extensão da rocha que constituía todo o lugar e a impressão era que as correntes também fossem feitas de rochas obscurecidas. Todo o local era pequeno com paredes muito próximas umas das outras e um teto irregular pouco acima da cabeça de Ricardo, lembrava uma espécie de cela que era composta de blocos grandes de uma rocha escurecida como carvão mineral, parecia mais com as paredes de uma gruta do que propriamente de uma prisão; não tinha catre, janela ou qualquer entrada de ar e tirando alguns pequenos buracos nas partes mais baixas das paredes rochosas, que pareciam ter sido feitos para escoamento de água; não existia mais nada lá. Ricardo estava deitado no chão. O solo também feito da mesma rocha estava úmido como se todo aquele calabouço estranho fosse uma caverna submersa nas profundezas de algum oceano esquecido cujas águas da maré alta inundavam e só voltavam a recuar na maré baixa. Não era esse o caso, mas Ricardo se pegou imaginando o que faria se aqueles orifícios começassem a jorrar água e toda a
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pequena câmara fosse completamente tomada por ela. Como sobreviveria sob tais condições? Naquele cárcere eram apenas três paredes, pois no lugar da quarta, na verdade, era uma grade feita com barras grossas de ferro, semelhante ao das correntes, que se estendiam da esquerda para a direita e dividia a cela do que parecia ser um corredor em frente. Ricardo demorou a perceber aquilo porque inicialmente estava deitado de costas para as grades, portanto sua visão estava voltada para a rocha sólida. Não tinha nenhum outro cubículo como o dele por perto, ao menos não à vista, nem outra cela ou calabouço que fosse maior ou menor do que a sua, tampouco havia qualquer sinal de que aquele lugar lúgubre já fora visitado por alguma alma humana um dia; ele estava completamente sozinho dentro daquela prisão. A escuridão do lugar só era quebrada por um pequeno archote onde as chamas bruxuleantes queimavam timidamente, quase a ponto de se apagar por completo; a luminosidade produzida não era suficiente para banir todas as trevas do lugar, algumas delas se mantinham parcialmente escondidas esperando o momento de sair, e principalmente dentro da cela a tênue claridade produzida servia para que as sombras não tomassem conta de tudo e reinassem absolutas. O archote estava preso por um suporte também de ferro praticamente corroído pela ferrugem, mas o mais estranho era que aquele suporte era na verdade uma espécie de escultura bizarra. Uma mão de ferro que brotava da parede exatamente como as correntes e mantinha o cabo do archote bem preso entre seus pesados dedos de metal muito bem forjados e tão perfeitos que até poderia ter sido, algum dia, a mão de uma pessoa, misticamente transformada em ferro mediante a uma alquimia do mal. Foi o que Ricardo pensou ao vê-la. 135
Toda aquela câmara parecia ser uma única coisa e mais do que uma reles prisão, parecia ser um único ser. Tanto as paredes como o solo, quanto as grades e a mão de ferro que segurava a tocha; tudo uma coisa só. Era muito estranho. Ricardo olhou ao redor, tentou ouvir algo, alguma voz, ou respiração, ou ronco, barulho, ruído ou qualquer coisa, mas o silêncio era brutal. As únicas coisas que conseguia ouvir eram as batidas de seu próprio coração e seus pensamentos, nada mais. Por um momento considerou ter sido abduzido por seres de outra galáxia ou raptado por alguma entidade inimaginavelmente mais antiga do que a raça humana; mas também desistiu de pensar aquelas coisas, sabia que aquilo não era verdade, não podia ser; tudo não devia passar de mais um delírio criado por sua mente sem controle e assim como havia entrado ali, tinha de encontrar um jeito de sair. Estava decidido a buscar ajuda, mesmo que tivesse de tomar remédios para manter seus delírios sob controle. Aquele era o desejo de Mônica desde o início, mas ele relutou o quanto pôde, porém depois do episódio em sua casa e agora aquilo, não podia mais fingir que tudo não passava de um grande plano cósmico que lhe concedeu poderes e dons sobrenaturais. Algo dentro dele estava errado embora no fundo ainda houvesse aquele sentimento de que nem tudo era loucura. Ricardo não fazia a menor idéia de como tinha ido parar naquele lugar funesto e por um momento não quis realmente saber o que estava acontecendo, sua vida estava cada vez mais fora de controle e a última coisa da qual se lembrava antes de acordar naquele buraco escuro foi de ter sido confrontado pela criatura no quintal de sua própria casa na noite da tempestade e dos fantasmas. Naquela noite pensou que fosse morrer. Ele lembrou que tinha sido ferido gravemente e olhou para o pulso esquerdo que havia machucado seriamente assim como 136
os dedos destroncados na ocasião; aquela força invisível tinha destruído praticamente todos os ossos da mão dele, porém a dor não estava mais lá, de fato, tanto o pulso quanto os dedos estavam completamente recuperados. Ele os moveu na medida do possível conforme o grilhão permitia e não sentiu dor alguma, estavam perfeitos como se nunca os tivesse quebrado. Tocou levemente a ponta do nariz com os dedos, mas este também já não oferecia a dor lancinante que antes tinha deflagrado por toda a sua face. Ricardo virou o nariz para um lado e para o outro, segurou-o com força e constatou que também não estava quebrado. Aquilo era ótimo, mas era péssimo ao mesmo tempo. Ótimo porque seu corpo parecia completamente livre dos ferimentos anteriores, mas era péssimo porque ele não sabia ao certo o que aquilo significava; ferimentos graves não desaparecem de uma noite para outra e muito menos sem tratamento médico adequado. Fez força para lembrar como tinha ido parar ali, mas foi em vão; tudo o que se lembrava era da voz medonha que ecoava no meio da tempestade como um trovão, mas sua memória estava tão curta que não se recordava nem mesmo o que aquela voz tinha dito ou o que ele mesmo falara, sabia que tinha conversado com a voz assombrosa, mas não lembrava sobre o quê. Ele estava sentado e levantou-se bem devagar porque temeu ficar tonto e não ter forças para se manter de pé, havia uma leve insinuação de tontura na cabeça, a sentia leve como um balão de gás, mas se ergueu sem problemas; em seguida testou o tamanho das correntes que o prendiam à parede, eram suficientes para permitir qualquer movimento dentro do cubículo de pedras, mas certamente não permitiria que ele fosse até o corredor sombrio na frente de sua cela ou além.
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Naquele instante Ricardo percebeu também que não existia porta na sua prisão, as barras de ferro em sua frente, subiam desde o chão até a rocha negra acima de sua cabeça sem nenhuma interseção ou passagem, por menor que fosse, que permitisse colocar ou retirar um prisioneiro. O que eliminava a hipótese de ter sido carregado desacordado para lá e colocado no cárcere. Era preciso uma porta nas barras para isso acontecer. _Como vim parar aqui?_ Finalmente se perguntou. O som de sua voz projetou-se no ar e em seguida se desfez como se fosse absorvido pelas paredes do lugar. Ele pensou que pudesse estar morto ou em coma; já tinha escutado inúmeros relatos de pessoas que passaram por experiências de quase morte e que relatavam viagens fora do corpo em lugares sombrios ou corredores escuros como túneis com uma luz branca ao longe para a qual eles deveriam caminhar. Ricardo não estava vendo luz branca alguma, portanto abandonou a hipótese de estar morto ou morrendo, pelo menos por enquanto. Mas então o que restava? Ele foi até as barras de ferro e as segurou, testou tentando sacudi-las, eram firmes, frias, rijas e muito bem afixadas; provavelmente entrassem muitos centímetros chão adentro e de igual modo na rocha sobre sua cabeça. Era uma prisão, se é que podia considerar daquela forma, preparada para impedir qualquer fuga ou para conter algum prisioneiro muito diferente. Tremeu com a idéia. O ar era viciado e um cheiro forte e indistinguível se misturava a outro conhecido que pairava aprisionado, como uma névoa invisível, junto com ele; não havia nenhuma brisa ou corrente de ar girando no interior do cárcere por mais tênue que fosse para levar aqueles cheiros horríveis embora. 138
Ele já tinha sentido um daqueles odores e era tão repugnante quanto podia se lembrar; a última vez foi em sua própria casa; era o cheiro de decomposição; coisas mortas que se desfaziam em algum lugar por ali exalando aquele cheiro terrível. Mas o odor que sentia naquele momento era um pouco diferente, modificado pela mistura desconhecida. Passou a mão na testa e depois na face. Tinha de lembrar como fora parar ali, ou pelo menos criar alguma teoria que pudesse servir de base para encontrar explicações, do contrário estaria condenado a ficar sabe-se lá quanto tempo preso naquele lugar fúnebre completamente perdido. Notou que suas roupas estavam esfarrapadas, completamente sujas e que em seu braço direito uma mancha estranha que ia da parte posterior do pulso até o cotovelo tinha aparecido. Tentou esfregar para ver se era apenas uma mancha causada por transferência ao encostar em algo, mas não adiantava passar a mão, a mancha não desaparecia. Ao prestar mais atenção percebeu que aquilo não era simplesmente uma mancha, mas sim uma inscrição, uma marca talvez; algo como uma tatuagem. TÂNATOS; estava escrito com uma caligrafia elaborada com muitas voltas em cada uma das letras. O que significava aquilo afinal? Ele não se lembrava de quase nada e achava pouco provável que pudesse ter mandado algum artista tatuar aquilo em seu braço. Ricardo jamais gostou de tatuagens, era a última coisa que poderia ter feito, mas alguma coisa estava acontecendo com ele, existia um lapso de memória em sua mente onde faltava uma série de atos e lembranças mais recentes. Ele não entendia a causa daquilo. Desolado, encostou a cabeça contra as grades e tentou olhar o máximo que pôde primeiro para a esquerda e depois para a direita; o corredor escuro parecia não ter fim. 139
_O que foi que eu fiz para merecer isso?_ Ricardo já estava se convencendo de que tudo o que estava acontecendo em sua vida; as visões, as vozes, as assombrações, as alucinações e a crescente loucura que o estava tomando, isso sem falar no abandono de Mônica; tudo isso deveria ser algum tipo de castigo que recaiu sobre ele sem que soubesse o motivo para tanto. Abaixou a cabeça encostando a testa novamente na grade, fechou os olhos numa infantil esperança de que quando os abrisse outra vez estaria em sua casa, deitado sobre sua cama e ainda com Mônica ao seu lado numa tarde quente de verão. Um exercício de tolice; sabia que não ia dar certo, mas fez mesmo assim. Com os olhos fechados e compenetrado em escutar o silêncio mortal que se fazia presente na prisão, ele ouviu uma respiração curta e fraca, pequenos haustos arrastados, mas tão fracos que provavelmente ele não escutaria se não tivesse se concentrado em ouvir alguma coisa oculta pela aparente falta de som; não era a sua, mas sim a de outra pessoa. Poderia ser outro prisioneiro em algum lugar ali perto ou alguém, bom ou mau, que pudesse dizer que lugar era aquele afinal. _Olá!_ gritou por impulso, antes mesmo de abrir os olhos. Quando finalmente abriu os olhos rapidamente e ergueu a cabeça foi surpreendido pelo que parecia ser um homem encostado nas paredes rochosas do corredor em frente; o homem trajava uma espécie de manto rasgado e tão negro quanto o restante do ambiente, usava uma máscara que tapava completamente o rosto, uma máscara também escura e sem detalhe algum, deixando visíveis apenas os lugares próprios para os olhos. A luz moribunda que quase não tinha forças para iluminar a cela onde Ricardo estava era ainda menos eficaz em mostrar os 140
detalhes daquela pessoa encostada nas rochas do outro lado do corredor sombrio. Era perfeitamente possível que ele estivesse ali desde que Ricardo despertou, observando sem ser notado, camuflado pelas sombras e pelo quase absoluto silêncio, aguardando o momento certo de se mostrar. Por um segundo Ricardo ficou olhando o outro que não se moveu ao perceber que já havia sido descoberto, ambos estudaram-se até que o estranho tomou a palavra repentinamente. _ Seja bem vindo Ricardo. Esse é o meu mundo._ A voz era conhecida, mas soava menos poderosa do que antes, sem a potência dos trovões, parecia uma voz perfeitamente humana, normal como outra qualquer, embora fosse grossa, empostada e sem nenhuma vacilação. Ricardo não respondeu, estava com um pouco de medo. O outro continuou: _ Você deve estar se perguntando que lugar é esse. O prisioneiro se afastou das grades. As correntes emitiram o seu ruído característico. O peso nos braços, pernas e pescoço não eram capazes de impedir os movimentos. _Que lugar é esse?_ perguntou finalmente. O outro respondeu tão prontamente que a pergunta de Ricardo ainda não tinha sido totalmente terminada. Parecia saber antecipadamente o que seria perguntado. _ Este é o exílio, a prisão, a cela, o cárcere; a cadeia, o cativeiro ou a clausura; chame como quiser. O nome é o que menos importa. A dúvida na cabeça de Ricardo era: “O que o outro queria dizer com prisão?”; no entanto perguntou: _ O que estou fazendo aqui?_ Ricardo podia estar louco e se fosse esse o caso não haveria problema algum em dar asas a essa loucura. Porém se não fosse o caso ele tinha uma tonelada 141
de perguntas se formando na mente e gostaria de conseguir o máximo de respostas para elas. _ Temos todo o tempo do mundo para responder suas perguntas, mas faremos por partes._ o outro disse sem cerimônia. Antes que Ricardo pudesse rebater o fato de o estranho saber sobre as perguntas antecipadamente, o outro respondeu: _ Você está ocupando o lugar de outro. _ Por quê?_ Tentou ser rápido na pergunta dessa vez a fim de não dar tempo de receber a resposta antes de terminá-la. O mascarado se moveu pela primeira vez, lembrava uma daquelas estátuas vivas que habitam as praças, ruas e avenidas; mudando de posição de vez em quando e parecendo, de um modo lúdico, congelar em seguida. Estátuas que na verdade são atores ou artistas performáticos e que cada vez mais são visto nas grandes cidades. Mas este possuía um ar muito mais nefasto do que qualquer ator ou artista jamais poderia pensar em interpretar. Uma aura maldosa o envolvia e emanava dele sem que este fizesse esforço algum e Ricardo percebia aquilo claramente. _ O lugar de alguém._ A resposta foi mais rápida do que a pergunta, mesmo com todo o esforço em pronunciar cada palavra rapidamente. _ De quem? De quem estou ocupando o lugar? A resposta foi confusa: _ Tudo a seu tempo_ falou_ por hora basta saber que você não poderá sair mais daqui, não até que o outro complete uma tarefa que dei a ele. Ricardo estava completamente livre de qualquer outro sentimento que não fosse um tênue medo; não era medo daquele ser ominoso parado na sua frente, nem da prisão em que estava, mas um medo que ainda não conseguira decifrar. 142
Quanto a todas as outras sensações e sentimentos; estava totalmente vazio. Por um momento não conseguiu se reconhecer, era como se ele estivesse incompleto. _ O que fiz para vir parar aqui? _ A pergunta pareceu oportuna. _ Do que você se lembra? _rebateu o outro imediatamente antes da pergunta anterior terminar. Ricardo parou por um momento tentou buscar as últimas recordações que tinha na mente antes de despertar naquele buraco. Era como caçar vaga-lumes num vendaval, as memórias mais recentes fugiam como se estivessem sendo carregadas por alguma força muito mais poderosa; não importava o quanto ele se esforçasse para agarrá-las, mas algumas poucas ficavam mais próximas como que deixadas para trás. Dessas ele se lembrava. _ Lembro da chuva forte, dos fantasmas, dos insetos gigantes, da minha casa sendo revirada por fenômenos sobrenaturais e da sua voz. _essas lembranças estavam mais claras e pareciam flutuar sob a superfície escura de um rio que as levava cada vez mais para longe. Se demorasse mais não conseguiria lembrar daquilo também. _ Só isso? _ Só. _ Tem certeza? Havia mais lembranças na memória, estavam estilhaçadas e todas elas diziam respeito a sua vida de casado com Mônica e para não relatar o que povoava sua cabeça, Ricardo disse apenas: _ Me lembro de Mônica. Aquele nome pareceu desencadear algo no outro, ele deixou escapar um suspiro de satisfação incontida e em seguida disse: _ Ela; sim, Mônica.
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Talvez o outro pudesse ver claramente os pensamentos de Ricardo e por isso estava se deliciando com as memórias que ele não conseguia conter, memórias estas sobre sua vida com Mônica, sobre o tempo que passaram juntos, os bons momentos desde que a conhecera; sempre gostou dela, mais sua loucura a tinha separado dele. Era uma perda enorme e provavelmente irreparável; talvez aquela mulher fosse a única corda capaz de puxá-lo de volta da terra da insanidade para o solo firme da lucidez novamente, mas não a culpava. Qualquer pessoa teria desistido dele logo que percebesse suas neuroses, esquizofrenia e manias de perseguição. _ Você não está e nunca esteve louco Ricardo, muito pelo contrário, está mais lúcido do que todas as outras pessoas que conhece._ novamente uma demonstração de que conhecia os pensamentos do prisioneiro. O acorrentado finalmente se recostou nas rochas ao fundo da cela, de onde pendiam as correntes que o prendiam como uma espécie de animal. Ficou quieto por um instante e o outro parecia observar atentamente por detrás da máscara a cada movimento feito dentro do cubículo. A estátua mascarada continuou falando. _ Acostume-se com esse lugar, porque você pode passar toda sua vida nele. Ricardo não deu ouvidos ao que o outro falava; estava pensando em uma forma de sair, mesmo contra todas as possibilidades. Percebendo os pensamentos do encarcerado, o mascarado voltou a falar: _ É inútil gastar seu tempo tentando encontrar uma solução de fuga; esse lugar foi criado para manter o encarcerado sem qualquer esperança.
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Tentando pensar o mais rápido que pôde Ricardo rebateu com a seguinte afirmação: _ Mas você disse que eu estou aqui ocupando o lugar de alguém. O homem-estátua se moveu novamente; Ricardo esperava que ele respondesse antes que a pergunta terminasse de ser formulada, mas não aconteceu. O mascarado avançou alguns passos na direção das barras de ferro; mesmo com a pouca luminosidade o prisioneiro sabia que os olhos, parcialmente escondidos por trás da máscara, estavam se movendo freneticamente, varrendo o pequeno espaço. _ E está._ respondeu finalmente_ Mas creio que ele não vai mais querer voltar. _ E como ele fugiu? Avançando mais um passo e finalmente tocando às grades, o mascarado foi novamente confuso na resposta: _ O que importa é que você só sai se ele retornar, o que não deve acontecer. Ele tem de fazer uma tarefa pra mim, mas o mundo exterior é tão fascinante que ele não vai querer retornar quando terminar seu dever para comigo. Não posso culpá-lo. As mãos do mascarado eram grandes, com pele queimada, dedos longos e esqueléticos, com cada falange parecendo muito maior do que deveria ser; as unhas também pareciam garras e eram sujas como se ele tivesse cavado pelo chão antes de aparecer ali. _ Estou ocupando o seu lugar, não é?_ Não poderia ser diferente e mais sedo ou mais tarde aquilo ia ficar claro para ele. Ricardo se lembrava muito bem daquela voz falando no meio da tempestade assim como lembrava de todas as manifestações sobrenaturais daquela noite. Tinha certeza que a criatura que vira refletida no espelho do seu quarto era a mesma com a qual 145
falava naquele momento, porém ela, fosse o que fosse, permanecia escondida sob aquele manto e a máscara. Não obteve resposta; o mascarado ficou mudo. Os olhos frenéticos continuavam dançando atrás da máscara e varrendo todo o pequeno cômodo imerso quase totalmente nas sombras. Ricardo atacou: _ Vi você no espelho. Além da voz conhecida, havia mais alguma coisa de familiar naquela criatura que certamente imitava um ser humano com extrema perfeição, mas que sem dúvida nunca foi humano; mesmo com aquele ar obscuro e aquela aura de maldade pairando sobre sua cabeça; mesmo assim, Ricardo sentia que algo no outro era muito familiar a ele. Tinham mais afinidades do que ele podia imaginar. A respiração fraca e arrastada do outro ganhou um pouco mais de intensidade, seus dedos se apertaram contra as barras que estalaram e reclamaram da pressão exercida sobre elas. Ricardo pôde, mesmo um pouco de longe, ver que o outro possuía marcas grossas do que pareciam ser queimaduras nos pulsos, o manto que ele trajava estava deixando a mostra quando ergueu as mãos para segurar nas barras. Ele percebeu e recomeçou a falar ininterruptamente: _Não. Você não me viu no espelho de seu quarto, tampouco é o meu lugar que você está ocupando, mas confesso que tive muito a ver com tudo o que está acontecendo com você já há muito tempo, fui eu quem o prendeu aqui no lugar do antigo prisioneiro; fui e sou eu quem o controla agora. E sou eu quem vai arrastar todos vocês para o fundo do abismo. Ricardo não compreendia muito bem o que estava sendo dito, e apenas ouvia tudo atentamente. Aquilo era o mais baixo que já tinha chegado em seus delírios insanos, mas agora estava com
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sérias dúvidas sobre se estava sonhando, delirando ou se tudo era real. O mascarado continuava falando: _Mas eu venho observando você e sua vida há bastante tempo, tenho falado com você desde a sua infância e preparado todas as coisas para que esse momento chegasse. _ Quem é você?_ finalmente perguntou Ricardo com um pouco da impaciência que lhe era característica. O outro soltou as barras, mas continuou muito próximo a elas ao responder. _ Sou “O Ninguém”; “O Nada”. Esse sou eu._ disse cada uma das palavras com uma satisfação aparente inundando a voz. E continuou._ Sou uma das estrelas que caíram do céu arrastadas pela cauda do Dragão. Sou o filho mais antigo do Caos. Sou a escuridão. Não tenho nome. Não mais. O prisioneiro não entendeu a resposta e ainda se esforçava para discernir porque sentia-se tão próximo do outro. E se perguntava o que poderia ter de comum com algo que julgava tão pernicioso. Logo sua dúvida foi respondida. Percebendo a indagação na cabeça de Ricardo o outro falou: _Você tem parte de mim, eu concedi parte do meu próprio ser para que parte de você se libertasse dessa cadeia. Ele ainda não entendeu por completo. Como poderia se libertar se ainda estava preso naquela gruta funesta? A resposta veio do mesmo jeito das outras. O homem-estátua intuindo, respondeu: _Esse lugar é a sua própria mente Ricardo, não a reconhece? Você está preso dentro de seu próprio corpo, no lugar mais escondido possível, porém eu dei vida à sua segunda consciência e com isso foi apenas uma questão de tempo até que ela, com uma pequena ajuda, pudesse tomar o controle de seu corpo e sair para o mundo exterior; agora temos um pacto, ela e eu. No princípio acontecia apenas algumas vezes, você 147
nem percebia; pouco a pouco sua outra face foi ganhando terreno, tomando volume lá fora, conhecendo as pessoas que o rodeavam até que finalmente no dia da tempestade ela tomou o controle e fugiu. “O Ninguém” fez uma pausa quase teatral, seus olhos frenéticos se fixaram sobre Ricardo que permanecia encostado nas rochas no fundo de seu cárcere aparentemente resignado com sua situação. Em seguida continuou: _No dia da tempestade, 15 de Janeiro, você estava buscando consolo pela perda da mulher que ama, estava mentalmente tão frágil e perturbado por mim que não foi nem um pouco difícil libertar seu outro lado. Agora os papéis se inverteram, seu lado mais pacífico e comedido está preso aqui e seu lado mais obscuro, visceral e profano está à solta no mundo lá fora sem saber que é apenas mais um peão no jogo real que o cerca. Por mais absurdo que tudo aquilo pudesse parecer Ricardo não ousava protestar porque no fundo ele cria que, de fato, havia algo de verdadeiro no que o outro estava falando. Mas estava com certa dificuldade em saber o quê. _Você está dizendo que minhas alucinações eram produto da sua influência? O mascarado recuou novamente até que a luz do archote tornasse a não poder iluminá-lo mais no fundo do corredor. _ Isso mesmo. E tenho novidades para você, encontrei outra pessoa com possibilidades muito semelhantes as suas. Esperamos poder usá-lo em breve também. Logo que eu consiga penetrar no âmago dele. De repente um nome reapareceu na mente de Ricardo. Antes que ele formulasse qualquer pergunta a resposta foi dada. _ Quanto a Mônica, não se preocupe. Pretendo sacrificá-la o quanto antes. Como você bem sabe, ela é a única amarra que ainda o mantém vivo aqui; as lembranças que você tem dela, 148
mas isso logo vai acabar quando meu caçador colocar as mãos nela novamente. _ Novamente? Como assim? _Seu outro Eu Ricardo, sua sombra, Tudo o que há de pior no ser humano, todas as características mais sombrias e mais maldosas, tudo aquilo que as pessoas se esforçam para reprimir e aprisionar, aquilo que passam a vida negando que possuam dentro de si. Tudo isso é “A Sombra”, todo ser humano tem preso lá no fundo, mas no seu caso ela está livre e vagando. No seu corpo. Deixou escapar uma pequena risada antes de continuar. _Algumas vezes sua sombra tomou seu lugar e a primeira pessoa com quem teve contato foi justamente com Mônica. Não previ isso, mas veio bem a calhar, serviu ainda mais para atiçar a sede de sangue. Como é parte de você, sua segunda personalidade, embora muito mais impetuosa e impiedosa, também se afeiçoou a mesma mulher que você ama, não pelos mesmos motivos, porém com muito mais volúpia; você a amava pelo que ela era e representava em sua vida, seu outro lado a desejava apenas pelo belo corpo que possui. Mantiveram relações não uma, mas várias vezes e somente para isso é que Mônica servia para a sombra, apenas para a satisfação carnal que você não era capaz de promover a ambos. Infelizmente a mulher fugiu abandonando você em um estado psicológico estilhaçado e em ponto de ruir completamente; você aceitou relativamente bem a separação brusca porque julga que foi o único culpado pelo fato, mas seu outro lado não encarou com a mesma maturidade e agora Mônica vai pagar por essa tentativa de desistência. Para seu outro Eu, Mônica é uma possessão, um objeto. Atônito com as revelações Ricardo caminhou rapidamente até as grades e com um tom de voz ainda mais alterado perguntou: 149
_ O que você vai fazer com ela?_ Segurou as barras praticamente no mesmo local onde antes o outro também tinha posto as mãos ossudas. Não percebeu. A resposta veio das sombras onde somente parte do manto podia ser visto e duas pequenas esferas luminosas emanando luz pálida dos olhos da máscara demarcavam a posição da cabeça. _ Não farei nada com ela, mas você fará. Vai matá-la e depois cumprir uma tarefa para mim. Ricardo jamais teria coragem mesmo em qualquer acesso de loucura para levantar um dedo contra Mônica, sabia disso, mas mesmo assim a afirmação vinda do fundo do corredor o fez tremer por dentro. _ Nunca!_ Afirmou. Ele pensava não ser capaz de matar pessoa alguma embora lembranças confusas teimassem em dizer exatamente o oposto. _Olhe a tatuagem Ricardo sabe o que ela significa? Ricardo rapidamente voltou sua atenção para o braço recém tatuado. _ Significa “Morte” o impulso primordial mais reprimido e ao mesmo tempo mais presente em todo ser humano. Não mandei que você fizesse essa inscrição, mas você fez; está agindo por conta própria agora e assim que encontrar sua ex-mulher vai matá-la. Todo ser humano pode matar; TODOS! Até você e mesmo sem motivo algum. Você vai matá-la. As últimas palavras ecoaram pelas paredes rochosas antes de desaparecerem no ar. _Matá-la... Matá-la... Matá-la._ Disse o eco fantasma da voz ainda humana do outro que parecia quase totalmente escondido pelas sombras. Estava tão camuflado que Ricardo não conseguia mais vê-lo. O eco pareceu mais sarcástico do que a voz original. 150
_ O tempo da conversa findou-se._ disse antes de ser ocultado completamente. Ricardo avançou sobre as barras e tentou em vão sacudi-las, não se moveram nem uma fração de milímetro sequer. As correntes presas às mãos, pés e pescoço fizeram barulho quando o corpo dele se sacudiu freneticamente. _ O que significa tudo isso?_ gritou. Precisava de mais respostas ou explicações, mas antes que conseguisse dizer mais qualquer coisa sentiu uma sensação estranha. De repente foi como se a cela se movesse levemente, uma pequena tontura acometeu a mente dele. Segurou às barras e parou toda a algazarra que estava fazendo, o som das correntes se interrompeu na mesma hora e pela primeira vez desde que percebeu que estava preso sentiu o peso do grande anel de metal ao redor do pescoço; de igual modo os pulsos e tornozelos também incomodavam. Como se a movimentação exagerada tivesse contribuído drasticamente para que sua pele sofresse os danos da fricção contra o metal que o prendia. A tontura aumentou gradativamente, o interior do cárcere começou um movimento giratório lento, mas foi ganhando velocidade a cada segundo; parecia que sua prisão era parte de um carrossel subterrâneo infernal. Ricardo se abaixou ainda encostado às grades, fechou os olhos tentando amenizar a sensação de tontura que o estava dominando e levou as mãos à cabeça, mas mesmo com os olhos fechados ainda sentia como se o cérebro estivesse rodando dentro da caixa craniana. Abriu os olhos outra vez; a luz do archote não iluminava agora mais do que uma pequena labareda de vela e tudo ainda girava rápido; todo o lugar, faltaram forças nos braços e pernas, as correntes e os grilhões pareciam ganhar mais peso a cada instante e finalmente 151
Ricardo encostou os joelhos no chão, algo se movia ali, olhou para baixo e tentou identificar mesmo no meio da escuridão quase absoluta. Uma pequena criatura, algo como uma mistura estranha de uma barata com um besouro com grossa carapaça, andava pelo chão alheio ao prisioneiro que o olhava. O inseto era bizarro e contribui para aumentar a sensação já desconfortável que Ricardo estava sentindo; a pequena criatura não parecia nenhuma das criações feitas pelo Todo-Poderoso; parecia sim, uma anomalia, ou uma brincadeira malsucedida da natureza, um erro genético da evolução. Detestava insetos. Ricardo ainda teve tempo de pensar nas criaturas das profundezas marinhas, grotescas sem dúvidas, mas todas as que se conhecia tinham uma aparência menos agressiva do que aquela pequena aberração. As paredes da caverna-prisão começaram a ficar cada vez mais próximas, não estavam se movendo de verdade, mas aquela sensação claustrofóbica era conseqüência da tontura cada vez mais forte que estava se abatendo sobre ele. Provavelmente seus sentidos fossem falhar e o abandonar novamente. E ainda ficaria pior. A chama fraca do archote preso na parede de repente bruxuleou, falhou e finalmente se apagou por completo. As sombras que ainda estavam escondidas saíram de seus esconderijos retomaram todo o lugar sem nenhuma cerimônia; eram suas donas legítimas. Ricardo pensou que fosse vomitar quando viu o inseto, mas não aconteceu. Ele se sentou no chão no meio da escuridão absoluta, ignorando a existência do besouro ou barata, tampouco se deu conta de que poderia haver muitos outros como aquele ou talvez piores, mais medonhos.
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O peso das correntes ficou tão grande que ele já não tinha mais escolha a não ser se deitar. As paredes estavam muito próximas; a tontura só aumentava. Ele tentou se concentrar o mais que pôde; lembrar de momentos bons de sua vida antes do tormento; aquilo poderia de alguma forma ajudar a suportar as ondas de tontura que fizeram com que finalmente perdesse os sentidos. Mas não ajudou.
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08 Ângelo abriu os olhos no meio da madrugada, o quarto estava escuro e tinha ficado totalmente sem sono. Virou-se para o lado e percebeu que Diana não estava lá, devia ter se levantado para buscar um copo d’água ou para ir ao banheiro. Ele girou novamente sobre a cama tentando fazer com que o sono voltasse, mas parecia que ia passar o restante da madrugada acordado. Ficou deitado um tempo com os olhos abertos e olhando para o teto enquanto pensamentos vagos e sem importância pairavam em sua mente. Também ficou com sede e resolveu descer para beber um gole de água gelada. Sentou na cama e recebeu a suave brisa que vinha do ventilador girando junto da parede. Ficou um tempo sentado no escuro, não havia luz alguma acesa, mas os olhos estavam perfeitamente adaptados à falta de luminosidade. A boca e os lábios estavam muito secos e tentou umedecê-los rapidamente usando a língua, mas não foi suficiente. Realmente precisaria se hidratar. Ao se levantar da cama pensou que o quarto estava ligeiramente diferente do que no momento em que se deitara para dormir, mas não sabia identificar exatamente o que é que estava fora do lugar; talvez algo estivesse faltando, mas não seria capaz de dizer com precisão o quê. Caminhou em direção a porta do banheiro, precisava se aliviar antes de descer até a cozinha e tomar seu refrescante pouco de água. Tinha o habito de beber muita água durante o dia, geralmente procurava tomar oito copos, às vezes era um pouco mais e outras vezes um pouco menos; portanto costumava também acordar uma ou
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duas vezes por madrugada para ir ao banheiro, mas não em todos os dias. Abriu a porta do banheiro, ela não fez nenhum ruído; o cômodo estava totalmente imerso na escuridão exatamente como o quarto. Acendeu a luz com um toque sutil no comutador, ao mesmo tempo a luz se fez presente. Ângelo acendeu a luz apenas por instinto, sentiu-se um pouco incomodado com a total falta de luminosidade no banheiro, mas não era nada sério, além do mais, não poderia urinar se a luz estivesse apagada. O banheiro já claro estava exatamente como antes, nada fora do lugar como parecia estar no quarto. A primeira coisa que Ângelo fez quando entrou e fechou a porta foi olhar para o espelho, pensou que fosse sentir alguma sensação estranha ou ver novamente alguma coisa, mas não aconteceu absolutamente nada. Tudo estava perfeitamente em ordem. Provavelmente as visões que teve tanto na garagem quando guardava o carro quanto no espelho do banheiro foram apenas provocadas por estresse pelo fato de ter passado por todo aquele processo que acabou fazendo com que ele tirasse a vítima da batida de dentro do carro, assim como toda a tensão que sentira quando teve de revelar seu segredo para Diana. Era bem possível que essa mistura certamente explosiva tinha mexido com a mente dele, e somando-se a tudo isso o cansaço, o resultado fora aquele. Duas visões perturbadoras. Agora, porém, depois de algumas boas horas de sono revigorante após um banho, que se não foi completamente relaxante, pelo menos ajudou um pouco; ele estava parcialmente recuperado. Não havia mais fantasma algum no espelho e ele até duvidou se de fato tinha visto realmente alguma coisa. Ângelo até sorriu lembrando-se do susto que levou. 155
Depois que terminou de urinar, ele lavou as mãos e em seguida juntou novamente um pouco de água da torneira com as mãos em concha, jogou no rosto e enxugou com a toalha. Saiu do banheiro e deixou a luz acesa. Nas vezes em que dormiu na casa de Diana ele sempre ouvia durante a noite caso ela se levantasse da cama e fosse ao banheiro ou descesse por qualquer motivo; até mesmo o estalar dos móveis às vezes eram capazes de acordá-lo, tinha um sono bem leve e ao menor sinal de movimento ele costumava despertar. Dessa vez aquilo não aconteceu e para ele era uma prova do quanto estava cansado. Ângelo era o tipo de pessoa cujo corpo costuma acumular cansaço continuamente e sem reclamar ou dar sinal algum até que um dia ele se sentia muito exausto e acabava sendo vencido pelo sono. Geralmente ele não precisava dormir muitas horas por noites para recuperar as forças, mas pelo menos uma vez a cada dois ou três meses acabava precisando dormir mais horas do que o habitual, por volta das sete ou oito horas da noite. Era o seu modo peculiar de recarregar as baterias e já estava acostumado com aquilo. Na verdade até gostava, tinha acostumado seu corpo com essa rotina desde a adolescência. Saiu do banheiro com a sede falando em seus ouvidos, a garganta também estava seca. A madrugada estava um pouco quente demais para a época do ano, mas não tanto que pudesse ser um incomodo de verdade. Diana não costumava ligar o aparelho de ar refrigerado a menos que o dia ou a noite estivesse beirando os quarenta graus, algo que geralmente acontecia com relativa freqüência no verão carioca, mas a relutância dela em usar o aparelho era muito em função de sentir que o nariz, boca e garganta ficavam muito secos e às vezes até doíam durante a madrugada, por isso evitava o máximo que podia. 156
Ângelo passou novamente pela cama contornando-a e recebeu outra vez a gostosa brisa do ventilador cuja cabeça girava constantemente da esquerda para a direita como se fosse uma sentinela do quarto às escuras, vigiando todos os movimentos das coisas e pessoas no quarto durante toda a madrugada, quer fossem animadas ou inanimadas. Passou pela porta do quarto para o corredor que levava à escada de descida; também nenhuma luz acesa ali. No corredor ficava a porta do escritório de Diana; Ângelo experimentou a maçaneta, estava aberta, mas o lugar também estava totalmente escuro, ele acendeu a luz e olhou toda a extensão do cômodo pequeno e apinhado de livros em estantes; tinha uma janela ampla trabalhada em armação de alumínio e vidro com película para filtrar a luz solar durante o dia. A janela dava visão para a casa do vizinho dos fundos, mas durante a noite não era possível ver nada através dela. Além daquilo havia também uma estação completa de trabalho com a mesa apropriada em “L” num dos cantos da parede próxima da janela, a mesa possuía várias gavetas e sobre ela estavam o computador pessoal de Diana e o notebook também; assim como pequenos cilindros de alumínio repleto de lápis multicoloridos, canetinhas, canetas esferográficas diversas, vermelhas pretas e azuis; pilot e canetas retroprogetor. Também havia réguas, elásticos, pequenos prendedores metálicos para papel, borrachas e uma infinidade de outras miudezas perfeitamente arrumadas segundo seus gêneros. Ela usava todo aquele material, mas ele ignorava completamente como. No outro canto havia uma espécie de pequeno armário branco de madeira que se assemelhava muito aos antigos arquivos de ferro muito usados em repartições públicas, porém aquele era de uma madeira fina e muito bem produzida; com quatro 157
grandes gavetas. Diana tinha bom gosto e arrumou todo o escritório de forma a deixar tudo com um ar bem ordenado. Sobre o arquivo de madeira estavam três porta-retratos com molduras idênticas em preto e prata; num havia a foto de Diana com a mãe e o pai numa viagem que fizeram a Recife, na foto ela era apenas uma criança, pois já fazia muito tempo que tinham ido a Pernambuco, porém Diana mantinha a foto ali porque dizia que fora a melhor viagem de sua infância. No outro porta-retratos estava uma foto dela com Ângelo tirada na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, logo que começaram o namoro. Na foto estavam os dois em primeiro plano no calçadão da Avenida Atlântica, estavam abraçados e sorridentes e ao fundo a areia e o mar mais ao longe. Eles adoravam Copacabana. E no terceiro porta-retratos, uma foto tirada no aniversário de Ingrid. Diana fora convidada juntamente com o namorado e na foto estavam toda a família da menina e mais eles dois; foi tirada por um vizinho da família que também compareceu na festividade a convite de Heloi. A foto mostrava todos embaixo da árvore do quintal, sorrindo como se o mundo fosse perfeito. Naquele dia pareceu perfeito. E havia tanta alegria representada ali que Diana colocou-a também em seu cantinho particular das melhores lembranças imortalizadas. Ângelo também tinha uma foto daquela em seu quarto, todos que estiveram na festa receberam uma. Fechou a porta do escritório e seguiu para a escada. Quando olhada a partir do patamar superior onde ele estava, para baixo, a escada parecia muito maior do que realmente era; possuía treze degraus, mas era como se tivesse dezenove ou vinte, uma ilusão causada apenas pelo fato dos degraus serem muito longos. Ângelo desceu coçando o olho com uma mão e segurando o corrimão de madeira polida com a outra. Toda a 158
casa estava às escuras, mas uma claridade pálida pairava lá no andar de baixo vindo a partir da cozinha. A escada levava para a sala e à direita dela estava a cozinha, acesa. Ângelo entrou na cozinha e viu que o fogão tinha uma de suas quatro bocas acesa com uma chaleira encima já com a água fervendo em seu interior. Vapor d’água saía pelo bico da chaleira como um pequeno spray quente vindo das regiões mais ardentes do centro da terra. Diana não estava em lugar algum, a menos que estivesse escondida na sala escura o que era pouco provável. Ângelo piscou algumas vezes e foi até a geladeira pensando o que Diana estava pretendendo fazer com aquela chaleira no fogo àquela hora da madrugada, talvez um chá. Abriu a geladeira e se assustou com o que viu. Não havia absolutamente nada dentro do eletrodoméstico, exceto duas garrafas de água e um copo, nada mais; nem prateleiras, nem gaveta, absolutamente nada. Ângelo olhou ao redor e desistiu da água, alguma coisa estava fora do lugar ali também. Diana jamais deixaria sua geladeira daquele jeito. O que estaria acontecendo afinal? Fechou a geladeira e foi até o fogão onde apagou o fogo fazendo com que o vapor de água parasse de sair pelo bico da chaleira quase que imediatamente. Coçou a cabeça, confuso. _ Dianaaa!_ chamou; nem muito baixo nem muito alto. Não houve resposta. _Dianaaaa!!_ chamou mais uma vez um pouco mais alto do que na primeira. Silêncio. _ Onde essa mulher se meteu?_ perguntou para si mesmo. Seu olhar correu por parte da cozinha e principalmente pela porta que dava passagem à lavanderia externa junto da
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garagem; estava fechada, mas ele experimentou a maçaneta também só por desencargo de consciência. Trancada. Diana não estava ali; ele ia acender todas as luzes da casa e subir novamente. Quando se virou o susto foi ainda maior do que quando achou a geladeira sem nada além de água. Parado bem na passagem entre a cozinha e a sala estava um homem que, embora estranho, era alguém que ele já vira antes. O homem do parque de diversões. Rapidamente o sangue de Ângelo pareceu gelar dentro das veias e artérias. Tentou falar algo, mesmo sem saber o quê. A voz não saiu, ficou presa na garganta. _ Deixa que eu começo._ disse o estranho colocando o dedo indicador na frente da boca como que pedindo para que Ângelo permanecesse em silêncio._ temos muito o que conversar e o tempo é curto para nós dois. Ângelo tentou se mover, mas logo percebeu que também não era mais capaz de fazê-lo. De uma hora para outra perdera completamente todos os movimentos do corpo e permanecia apenas parado, mesmo fazendo o de esforço. Os músculos pareciam entorpecidos sob o efeito de algum narcótico poderoso. O estranho trajava roupas escuras, casaco e calça de moletom preto assim como meias grossas da mesma cor; não usava chinelos, luvas, tênis ou qualquer outra coisa; nem relógio, nem cordão. Nada. _ Me chamo... e estou aqui para fazer uma proposta a você_ o estranho começou a falar, mas Ângelo não escutou quando o outro pronunciou o nome, o som não chegou até seus ouvidos. Foi como se uma bolha de vácuo tivesse surgido e sumido em milésimos, engolindo apenas o nome do estranho. O outro continuava falando: 160
_ Desde que vi você naquele parque de diversões fiquei intrigado, vi o que você fez, acompanhei tudo, todo o salvamento. Soube naquele dia que você era uma pessoa especial; tão especial quanto eu, talvez até mais. O homem de moletom preto entrou na cozinha com um passo comedido, pareceu ter medo que a luz do cômodo o transformasse em num monte de cinzas caso fosse tocado por ela, mas nada daquilo aconteceu. Ele avançou apenas um passo e saiu da penumbra na passagem para a sala. Ângelo viu algo se mexendo na escuridão da sala e pensou que fosse a namorada. _ Dianaa!_ chamou por ela, a voz saiu normalmente, mas não obteve resposta. Sem se incomodar com o chamado de Ângelo, o outro continuava falando como se eles dois fossem as últimas pessoas na face da terra. _ Ouça, Ângelo, você tem um dom, um dom maravilhoso que pode ser usado apenas de duas formas. Você pode mantê-lo sob controle, do jeito que está agora ou, pode desenvolvê-lo o máximo que for possível. Ângelo pensava em como aquela pessoa podia ter entrado na casa daquele modo tão sorrateiro sem ser percebido; lembrou que a porta que dava passagem para a área externa da garagem ainda estava fechada. Como ele entrou? Onde estava Diana? _Se você escolher manter seu dom sob controle, em segredo, como tem feito até hoje, ele vai hibernar por longos períodos como já aconteceu e vez por outra vai ressurgir cada vez mais forte e diferente, trazendo informações que os homens comuns com suas vidas limitadas não conseguem alcançar; coisas que poderão ocorrer, como um acidente, um assalto, um abuso; uma catástrofe, uma enchente, um deslizamento, um terremoto, destruições por vento, incêndios ou um simples ato que 161
desencadeie um efeito cataclísmico. Talvez ele lhe mostre apenas coisas normais, porém ocultas das demais pessoas como sonhos escondidos, reais intenções, sentimentos aprisionados, desejos sombrios e coisas desse tipo. E ainda há a possibilidade de que você veja as criaturas que estão por toda parte, mas não podem ser vistas, como as entidades das sombras, os espíritos da natureza ou do caos, e até mesmo os anjos e os demônios. Assim que ouviu aquilo Ângelo se lembrou involuntariamente de suas duas últimas visões; a criatura disforme e pulsante na garagem onde estava o carro de Diana e também o rosto medonhamente maníaco refletido no espelho do banheiro. Por um momento teve a sensação de que seus olhos podiam ter realmente visto dois seres sobrenaturais, quem sabe, dois deuses do submundo. Pelo que ele sabia, podia ser até mesmo duas faces distintas da mesma criatura. O homem de preto continuava falando como se seu tempo fosse realmente muito curto e ele já estivesse atrasado em transmitir toda a informação que tinha. _ Porém, dessa forma você pode perdê-lo. Perder um dom poderoso como esse é abrir mão da maior dádiva que um homem pode ter. Como ele sabia sobre seu segredo? _Pensou Ângelo. Ele testou a voz para ver se ela ia funcionar e pigarreou para desobstruir a garganta. _ Quem é você afinal?_ perguntou Ângelo_ Como entrou aqui? E como sabe sobre meu segredo? Os olhos do outro brilharam quando ele ouviu as perguntas. Podiam chegar a um acordo, afinal. _Antes_ disse erguendo o dedo mais uma vez como se estivesse pedindo a atenção total de Ângelo para o que seria dito em seguida_ Por outro lado você pode escolher desenvolver seu dom e nisso eu posso ajudá-lo. Imagine 162
doutrinar seus sentidos de modo que você não só saiba como receber suas visões, sentimentos e sensações, mas também saiba controlar tudo isso, tirar o máximo proveito; escolher de quem você deseja saber toda e qualquer informação. Não seria divino? _ Divino?_ Ângelo repetiu a palavra em tom de dúvida. _ Pessoas comuns não têm essa possibilidade; se entender seu dom poderá descobrir tantos segredos sobre o mundo que o cerca e as pessoas que nele vivem que, salvamentos como o da menina no parque serão coisa simples para você. Poderá salvar multidões ao invés de se limitar a resgatar uma pessoa por vez, eventualmente. A boca ainda estava seca e a sede ainda pedia para ser saciada. O outro ainda falava: _Já pensou nisso? Ângelo. Acredite em mim quando digo que você tem o potencial para evoluir mais do que a mente humana com suas pseudociências podem sequer imaginar. Você poderá ser um deus entre os insetos se assim desejar e eu estou oferecendo o caminho para que isso aconteça. Entende o que estou falando a você?_ O tom de voz do outro era quase de uma suplica religiosa. Ouvindo e entendendo, mas ignorando grande parte do que foi dito Ângelo perguntou: _ Onde está Diana? Com certa impaciência transparecendo na face o outro finalmente respondeu de forma clara: _ Em breve você vai vê-la novamente, ela está dormindo no quarto, você não a viu quando levantou? Lembrou a da cama vazia ao seu lado. Ele tentou se mover, mas o corpo ainda não obedecia. _ Por que estou preso aqui?
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_ Entenda, não posso sair daqui hoje sem uma posição sua meu jovem e só o libertarei quando obtiver tal resposta. Ângelo ponderou: _ Quem é você?_ perguntou novamente._ as coisas na cozinha não pareciam às mesmas de quando ele entrou na casa com a namorada, e naquele momento ele percebia que a luz brilhava de forma diferente do habitual, quase como uma luz falsa. Jamais saberia explicar aquilo. Ignorando a última pergunta de Ângelo o outro recomeçou. _ Pense bem rapaz, imagine ter em suas mãos o poder para fazer tudo da forma como bem entender, dobrar o mundo segundo sua vontade e a realidade de acordo com seus pensamentos. Seria ou não seria ótimo? Pense! _Por que motivo eu ia querer uma coisa dessas?_ a idéia era tão estapafúrdia que talvez só a tivesse imaginado em seus sonhos mais estranhos e delirantes. Mas a verdade era que aquilo jamais tinha passado por sua mente. Para Ângelo, sua capacidade de descobrir coisas ocultas devia ser um distúrbio qualquer; quem poderia saber quanto poder está encerrado na mente humana? E como só ocorria poucas vezes passando por longos períodos de hibernação como o outro mesmo tinha dito, ele não se preocupava tanto com aquilo até que aconteceu no parque e na batida da estrada naquela mesma noite. A resposta foi automática como se já soubesse o conteúdo da pergunta. _ Você poderia salvar muitas mais pessoas. Da forma como está, você é limitado por suas redomas morais, medos, dúvidas, crenças e incertezas. Mas permita-me mostrar o caminho, abrir as portas e remodelar você de um simples homem com potencial, para um deus urbano. As palavras “salvar pessoas” ficaram ecoando na mente dele com uma velocidade alucinante. Salvar pessoas era como uma 164
vocação intrínseca esperando para se manifestar, embora ele não tivesse total conhecimento disso. _ Sabe por que você se sente tão incomodado com o fato de fazer coisas que os outros não fazem?_ continuou o estranho_ É porque no fundo de seu ser você sabe que deveria fazer mais, ser mais, ter mais. Então seja, faça e tenha! Essa é a hora e eu sou seu passaporte para a glória definitiva. Todos os reinos da terra eu te darei se me pedires. _ Você está me pedindo para ser um deus? É isso?_ Ângelo pronunciou a frase com o máximo de cuidado que pôde, porque soava desproporcionalmente arrogante. Na cabeça dele nenhum homem poderia sequer imaginar uma loucura como essa. Querer para si as prerrogativas de uma divindade. Que loucura! Ângelo desviou o olhar por um segundo e vislumbrou por cima do ombro daquele com quem falava, ao fundo. Bem no limiar entre a sala e a cozinha, havia algo grande, algo como um vulto sombrio ou translúcido se esgueirando sorrateiramente como se estivesse bisbilhotando a conversa, mas ao mesmo tempo com medo de passar para o lado da luz. Piscou rapidamente e, fosse aquilo o que fosse, não estava mais lá no momento seguinte. _ Então me diga por que e para que você tem esse maravilhoso dom?_ A resposta do estranho foi outra pergunta. Ângelo não tinha uma contra-resposta para contestar ou sequer tinha qualquer outro argumento. Emudeceu. O tom da voz do outro ficou grave e urgente. _ Existe um grande mal se aproximando da sua vida, Ângelo, e se ele não conseguir derrubar você então vai levá-lo à força e em seguida atacar todos em seu redor. Imagine; Diana, Ingrid e suas respectivas famílias. Todos vão ser atingidos. _ Mentira!_ Disse indignado. Afinal aquilo não tinha o menor cabimento. O estranho avançou mais um passo na direção de Ângelo. 165
_A única forma de passar por isso sem danos violentos será se você aceitar sua natureza e abraçar sua vocação. Se sua moralidade o detiver agora, talvez você sofra desnecessariamente assim como muitos em seu redor, tanto conhecidos quanto desconhecidos. Mas ainda há tempo. Ângelo lembrou do sonho repetido que sempre tivera com a mulher desconhecida gritando em agonia extrema. Seu coração apertou; podia ser Diana, podia ser qualquer pessoa que conhecia ou mesmo que não fosse; jamais queria presenciar aquela cena onírica terrível na vida real. Seu maior medo era ter o poder para salvar uma pessoa e mesmo assim não ser capaz de fazê-lo e no fundo ele temia que aquilo um dia ainda ia acontecer. _ Que mal?_ perguntou com uma ponta de aceitação nascendo em seu interior._ Lembrou-se das pessoas que o reconheceram no shopping e da prima de Ingrid; Karen, o pai e a mãe dela. _O Caos, Ângelo; o Caos. Antes que Ângelo pudesse tecer qualquer comentário a respeito o outro continuou falando. Seu tempo estava quase no fim. _Você está sendo procurado por uma pessoa e ela já está bem próxima de lhe encontrar. Também por isso estou aqui. _ Pessoa. Que pessoa?_ finalmente foi mais rápido do que o outro para conseguir falar. _Uma sombra. Um assassino. _Sombra?! _ A mando dessa entidade; o Caos. O próprio assassino nem sabe ao certo a que propósito esta servindo, ele pensa que foi solto única e exclusivamente para matar uma mulher. _ E o que eu tenho com isso?_ Toda aquela conversa estava muito fora dos padrões, Ângelo sentia-se como se uma brecha espaço-temporal tivesse surgido enquanto ele dormia e o houvesse puxado para outra realidade muito mais estranha. 166
Levando em conta as coisas fora do comum que estavam acontecendo com ele nas últimas horas não seria de se admirar. Ele não entendia que tipo de ligação poderia ter com o tal assassino ou com a tal entidade. Considerando que tudo aquilo fosse real. _ O dom que você tem, enquanto estiver ativo, vai atrair o assassino para sua vida, é apenas uma questão de tempo até que ele encontre você, todas as coisas estão se arranjando para que isso ocorra. Sua opção única é torcer para que seu dom volte a dormir e passe o maior tempo possível assim. Do contrário será uma presa fácil. _Não compreendo uma só palavra do que você diz. O estranho avançou mais um passo e finalmente ficou bem próximo, frente a frente, com Ângelo que tentava desviar o olhar, mas não conseguia; algo nos olhos do estranho era terrivelmente familiar. Ângelo sentia como se estivesse face a face consigo mesmo. Era uma sensação por demais insólita. _ Sou sua melhor chance._ disse o outro_ Para salvar Diana, Ingrid e a família; e até mesmo a sua família. Eu sou o caminho para vencer esse mal. Se você aprender a desenvolver e controlar seu dom, vai poder escondê-lo tanto do Caos quanto de seus assassinos, e com um pouco de sorte sua vida vai permanecer tão comum quanto está agora, porém você vai ter muito mais recursos para fazer o que bem entender ou não fazer nada se for esse o seu desejo. Ângelo pensou nos pais e em Miguel, seu irmão mais novo. As faces de todos eles atravessaram seus pensamentos como raios vindos de alguma nuvem carregada dentro de sua mente. _ Isso é loucura! Loucura!_ precisou repetir a palavra para conseguir crer nela. O estranho começou a recuar. Um passo.
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_ Loucura é você não admitir que é um ser especial. Saiba disso: Seu dom não é mental como você pensa, ele é muito mais profundo, muito mais poderoso do que você pode imaginar. Por esse motivo, essa essência caótica fez contato com você em um nível subconsciente, é isso o que ela faz; procura pessoas como você e as “liberta” para serem seus escravos. O estranho fez um sinal com os dedos das mãos para representar as aspas quando pronunciou a palavra, liberta. Em seguida recuou mais um passo. _ Isso só pode ser um sonho_ disse Ângelo. _ E é._ Afirmou o outro. Recuou novamente e agora estava no ponto exato onde tinha iniciado toda aquela conversa; no limiar entre a cozinha iluminada com a luz falsa e a sala completamente às escuras._ Preciso de sua resposta rapaz. Ângelo logo percebeu que já podia se mover novamente; seu corpo não estava mais sob a paralisia forçada que o manteve preso nos minutos anteriores. _ Sua bela namorada vem vindo aí. _ O quê?! _ Preciso da resposta, agora. Tentando não se confundir entre perguntas e respostas em sua cabeça ele respondeu da única forma que julgava ser correta, fosse aquilo um sonho ou não. _ A resposta é não. _ Pense bem. _ Eu disse não! O estranho ficou visivelmente insatisfeito, mas deixou escapar um sorriso matreiro. _ Imaginei que você diria isso, mas eu tinha de tentar. Nosso primeiro contato foi mais amigável do que eu supunha inicialmente. 168
_Seja lá quem você for; é maluco. O outro recuou mais um passo e as sombras na sala pareceram o abraçar, fazendo com que quase não pudesse ser visto. _ Espero que possamos nos encontrar o mais breve possível._ disse das sombras. Ângelo ia contestar falando alguma coisa, mas acordou. Percebeu que tudo aquilo não passava de um sonho surreal, ou talvez não. Levantou da cama e correu para o andar de baixo, mas antes praticamente refez seus passou assim como no sonho. Estava muito confuso. *** Diana acordou e logo percebeu que o namorado não estava deitado ao seu lado; a luz do banheiro permanecia acesa e as portas do banheiro e do quarto estavam abertas. Ela esfregou os olhos e se levantou o mais rápido que pôde; foi ao banheiro e constatou que Ângelo não estava lá. Apagou a luz e acendeu a do quarto, saiu pela porta, passou pelo corredor e desceu os degraus da escada com uma curiosidade crescente se desenvolvendo em seu interior. A cozinha estava acesa. Logo que chegou à cozinha o viu parado bem no meio do cômodo; imóvel e concentrado como se estivesse querendo escutar algo subliminar no próprio ar. _ O que está fazendo aqui amor, são cinco horas da manhã._ Diana ainda mantinha o semblante sonolento. Ele não respondeu. _ Ângelo! Acordando do que parecia ser um transe passageiro, o namorado finalmente deu sinal de que estava ouvindo. _ O quê foi?! _ O que você está fazendo aí parado há essa hora?
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Finalmente ele se moveu e foi até a geladeira, abriu a porta e pareceu observar tudo o que tinha lá dentro cuidadosamente, a geladeira estava repleta. Ele pegou uma das duas garrafas d’água e fechou a porta. _Vim beber água. Ela relaxou um pouco mais. _ Ficou sem sono foi?_ o tom era de brincadeira. Ele pegou um copo e colocou água vagarosamente, como se estivesse ponderando alguma coisa para falar. Disse: _ Tive um sonho muito estranho. A tensão reapareceu. Diana caminhou até ele, deslizou a mão sobre o ombro do namorado fazendo um afago carinhoso e passando por detrás dele pegou um copo também. _ Um pesadelo? _Não; um sonho estranho. _Estranho como?_ ela pegou a garrafa de vidro que ele tinha colocado sobre a mesa e derramou um pouco de água para si. Ângelo ainda bebia quando ela fez a pergunta e logo que engoliu a última gota tratou de procurar acalmá-la. Depois do episódio da batida e do salvamento na estrada ele sabia que Diana estava trabalhando com um nível incomum de preocupação e não queria que ela se estressasse mais do que o que já estava. Teria que mentir. Ele contou todo o sonho, mas teve o trabalho de omitir a parte da conversa que teve com o estranho; disse apenas que, no sonho, tinha se levantado, procurado por ela e não havia encontrado; com isso, saiu pela casa procurando a partir do banheiro, escritório, sala e foi parar na cozinha onde a chaleira estava no fogo e a luz estava acesa. Então, logo que despertou sentiu sede e foi beber água. _Só isso?_ perguntou a namorada ainda em dúvida.
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_ É só o que me lembro._ sentiu-se péssimo por mentir para Diana, mas não tinha certeza absoluta de que seu encontro com o estranho tinha sido somente um sonho. Tudo parecia tão real que ele resolveu não revelar, por enquanto, até pensar bem a respeito e decidir o que fazer. Obviamente mesmo que fosse verdade ele jamais aceitaria uma proposta tão absurda quanto aquela. Por hora ele teria mais um segredo para guardar. _Não me parece um sonho tão estranho._ ela bebeu um gole da água logo que terminou de falar. _ Sei. Mas é que foi um sonho bastante real. E quando não achei você deitada ao meu lado fiquei confuso. _ Você só está cansado, vamos deitar._ ela abriu novamente a geladeira e guardou a garrafa. Ângelo não estava mais tão cansado quanto antes e o sonho ainda continuava recente na mente dele, tinha sido muito vívido e cada uma das palavras do estranho permaneciam se repetindo ininterruptas vezes. Percebendo que o namorado estava meio absorto, Diana disse quando já estava saindo da cozinha: _Seja o que for que você está escondendo aí, estou aqui para conversar se você quiser. Ele não conseguia enganá-la, mas não ia contar nada, não àquela hora. Talvez quando o sol surgisse. Diana saiu da cozinha na frente caminhando lentamente e subiu as escadas de volta ao andar superior para tentar aproveitar o restante da madrugada que já estava quase no fim. Em pouco tempo a claridade do novo dia já poderia ser vista pelas janelas e em seguida a luz dourada do sol também apareceria para banir o restante das sombras no mundo lá fora. Ângelo ficou parado durante mais alguns minutos no mesmo lugar em que sonhou que estava, ficou olhando para a 171
passagem da cozinha para a sala de onde o outro havia aparecido e conversado com ele. Fez aquilo como se estivesse tentando criar uma reconstituição do sonho. Uma reconstituição que lhe revelasse algo que ele não percebeu. Ficou olhando para a sala escura e teve a sensação de que ela estava pouco mais clara do que antes, provavelmente a claridade do dia estivesse começando a se insinuar fora da casa, não tinha certeza. Lembrou-se do grande vulto translúcido que vira brevemente se escondendo por detrás do estranho sem querer enfrentar a luz falsa do sonho. Só agora estava entendendo o motivo de achar que a luz estava brilhando de modo diferente; era um efeito provocado pelo sonho, algo que mostrava que tudo aquilo não era de todo real. Finalmente ele desligou a luz da cozinha e saiu, foi até a sala atravessou o cômodo e foi até a porta, experimentou a maçaneta. Trancada como as demais. Voltou subindo as escadas em direção ao quarto com as mesmas dúvidas marretando os pensamentos. Será que ele tinha criado aquele sonho? Será que tinha inventado toda aquela história sobre seu dom? Tudo o que foi dito era absurdo por demais para ser levado totalmente em consideração. Aquele foi o primeiro momento em que Ângelo teve a nítida percepção de que estava com a sua sanidade em perigo. Subiu e entrou no quarto onde dessa vez Diana estava deitada na cama e já parecia estar dormindo, ela dormia virada para o outro lado. Ângelo procurou fazer o mínimo de barulho possível ao se deitar. Não ia mais conseguir dormir e ficaria ali deitado esperando que o dia clareasse totalmente para decidir o que ia fazer.
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09 29 de Junho. Sábado. Assim que acordou, a primeira coisa que Fausto fez foi pegar o porta-retratos que trouxe da casa de Leonardo, tinha deixado no chão ao lado da cama antes de dormir, e deu uma boa olhada nas pessoas que estavam na fotografia; seus olhos passearam por cada detalhe da foto e por todos os rostos em busca de alguma coisa que denunciasse o lugar onde aquela cena tinha sido fotografada. Sentiu-se um pouco incomodado ao esquadrinhar a foto, havia alegria demais sendo demonstrada ali, todas as pessoas sorriam com prazer, como se o mundo fosse o mais perfeito dos lugares, como se aquela árvore em cuja sombra estavam fosse uma das árvores plantadas no jardim do Éden pelo próprio Deus. Achou toda aquela alegria terrivelmente sem propósito e por um momento chegou a pensar que todos deveriam estar fingindo; não era possível que pessoas conseguissem sentir tanta alegria quanto o que estavam demonstrando, mas por outro lado, o fingimento era uma emoção com a qual Fausto tinha muito mais intimidade e compreendia muito melhor do que a alegria. Fingir, assim como ludibriar e dissimular eram as características mais comuns às pessoas de todo o globo terrestre. Durante todo o tempo que esteve exilado, a única vontade que havia conseguido sustentar era a vontade de liberdade e o único sentimento que nutriu durante todos os longos anos que passou na escuridão foi a amargura, uma amargura incomoda, pungente e permanente, mas agora que estava livre tinha substituído aquele sentimento por uma coisa mais útil. Ódio; 173
um ódio incontrolável e visceral direcionado principalmente para Mônica e Ricardo, mas que certamente já havia se espalhado para outras pessoas também. Fausto odiava todos os outros seres humanos por vários motivos que para ele faziam todo o sentido; primeiro por causa da alegria; ele se perguntava como pessoas num mundo tão imperfeito e triste podiam ser alegres; fingimento, dissimulação e mentira eram as únicas respostas que ele tinha em mente e que cria poder se encaixar como explicação plausível. Fausto também detestava os outros por causa da hipocrisia latente em cada ser humano, ao contrário dele, os homens e mulheres faziam esforço constante para negar suas verdadeiras naturezas, escondiam os sentimentos mais poderosos e primitivos como a ira, a luxúria e a maldade; fingiam que aquelas coisas não faziam parte da natureza humana e as praticavam em segredo. Mantinham todas as suas depravações mais bizarras muito bem protegidas por trás de máscaras de moralidade puritana. Outros se doutrinavam para empurrar seus sentimentos, que para Fausto eram a essência da raça humana, para dentro e para o fundo de suas almas, aprisionando-os em celas obscuras como as que ele mesmo teve de suportar durante grande parte de sua vida. Na cabeça de Fausto se o Homem, ou seja, a humanidade, admitisse quem ele realmente era, e usasse todos os seus mais poderosos dons, como a violência e, com a força subjugasse todos os sentimentalismos falsos como a alegria fingida, futuramente a raça humana poderia desfrutar de um período de total plenitude. Obviamente que seria preciso, antes, passar por um interregno de purgação, onde os fracos e os que não quisessem aceitar sua natureza preferindo viver as farsas e mentiras de uma vida medíocre seriam extirpados de todas as formas possíveis do meio social. Uma nova sociedade nasceria 174
das cinzas da sociedade atual corrompida, mas que insiste em dizer que está em processo de constante evolução. Mentira. Fausto sabia que ele mesmo jamais conseguiria fazer com que aquela sua utopia brotasse, nem tinha a intenção de se contrapor abertamente a tudo e todos, não era tolo, mas daria sua pequena contribuição para que, quem sabe num futuro, mesmo que distante, as pessoas percebessem que de dentro do caos poderia surgir homens e mulheres mais verdadeiros, fortes; uma sociedade inteira de pessoas mais conscientes das realidades ao redor e que não escondessem suas características mais belas por detrás de moralismos descabidos. Por hora ele iria se contentar em fazer com que sua utopia fosse realidade em sua própria vida. Faria com Mônica exatamente como fez ao irmão dela e pretendia atormentar aquela família da fotografia como um bônus para si mesmo pelo simples fato de terem sido capazes de fingir, segundo ele, tamanha felicidade, Fausto pretendia fazer com que cada um deles conhecesse o pavor e a loucura que era o mundo real. E quem sabe se algum deles não poderia resistir e se tornar uma pessoa muito melhor. O caminho era a dor e o sofrimento, mas para muitos só a morte servia. Se existia algo que ele gostava de ver era o pavor nos olhos e nas vidas das pessoas e isso faria questão de mostrar para cada uma delas; fora isso, havia a questão daquele jovem especial que ele viu no parque de diversões. Ele era diferente dos outros, muito mais parecido consigo do que poderiam imaginar e tentaria fazer com que ele enxergasse as coisas pelo mesmo ponto de vista seu. No princípio não pensava em fazer concessões em suas intenções nem tinha muitos objetivos existenciais, mas quando percebeu que algo diferente estava acontecendo, ou seja, Fausto passou a ter controle sobre parte da realidade em seu 175
redor, soube que aquilo não era por acaso e concluiu que deveria usar suas forças para outros propósitos também; por isso, não podia desperdiçar alguém como aquele jovem, além do mais Fausto sentia algo dentro de si que o dizia para se aproximar do outro jovem; algo o impulsionava e mesmo de modo tênue deixava impressões de que aquele outro era importante para a sua própria existência no futuro. Era como se o caminho de ambos estivesse ligado por alguma força senciente que os estava gradativamente aproximando um do outro. Depois de acertar suas contas com todos eles decidiria qual seria seu próximo passo. As únicas certezas que tinha era que devia eliminar Mônica para não ter mais de se preocupar com Ricardo e fazer com que o outro jovem especial comprasse suas idéias. Porém se não fosse possível o eliminaria também porque de alguma forma ele poderia representar uma ameaça ao próprio Fausto, afinal, pessoas com forças tão maravilhosas agindo em suas vidas só podem se enquadrar em duas categorias; ou são luz ou são sombras. Fausto se considerava uma Sombra. Durante toda a noite e madrugada dormira como um bebê, um sono sem sonhos muito parecido com aqueles que teve em seus muitos anos de exílio e prisão. Estava sem blusa nem calça e seu único traje de dormir era um short curto de malha sintética e meias soquetes finas. Levantou-se da cama com o porta-retrato ainda na mão, o sol entrava pela janela e ele abriu totalmente as cortinas permitindo uma quantidade muito maior de luz penetrar no quarto, mesmo com o céu parcialmente nublado daquela manhã ainda havia luz e claridade abundante por todos os lados; na prisão a única luz que ele podia ver era a produzida pelo archote que quase não era suficiente para coisa alguma. Adorava a luz do sol, mas 176
não dispensava a boa e velha escuridão também; muitos sentimentos e preferências antagônicas como estas conviviam harmonicamente no interior de Fausto. Tinha dormido como uma criança, um sono totalmente ausente de sonhos exceto por uma tênue lembrança de Ricardo, Mônica e do rapaz do parque de diversões. Pareceu ter sonhado com eles no decorrer da madrugada, mas como sempre acontecia, ele jamais se lembrava dos sonhos que por ventura tinha; para ele aquilo não era nada incomodo, pelo contrário, era sempre muito prazeroso. Dormir era como descansar no esquecimento. Na cabeça de Fausto não havia problema algum em Mônica ter abandonado Ricardo, mas ele considerava que aquela mulher era propriedade sua e, portanto, devia recuperá-la, mesmo que fosse para usá-la mais algumas vezes e matá-la em seguida, ou, matá-la imediatamente como punição pela fuga. Desde que passara a andar no mundo externo completamente livre ele havia visto um número enorme de mulheres que se encaixavam muito bem em seus padrões de preferências e algumas até que excediam; via mulheres atraentes nas ruas, nas lojas, na televisão, nos transportes públicos e por toda parte, poderia substituir Mônica com extrema facilidade. Ela não significava nada para ele e só tinha certeza de uma coisa. Ia impor uma punição, sobre ela, das mais violentas que conseguisse. Durante as noites e madrugadas de sono Fausto costumava ter a sensação de que na verdade ele não dormia, mas sim abandonava seu corpo numa espécie de estado de torpor transitório retornando apenas na manhã seguinte; não era uma certeza, apenas uma suposição, sentia como se sua consciência fugisse do mundo material, abandonando o próprio corpo e passasse a madrugada vagando sabe-se lá por onde, como um fantasma; talvez em terras oníricas, invadindo sonhos alheios e 177
perturbando pessoas que dormiam ou recolhendo e se misturando com poderosas forças caóticas nos lugares celestiais; forças estas que o estavam inflando cada dia mais com poderes tão surpreendentes que nenhum homem jamais sonhou possuir ou sequer vislumbrou nem em seus sonhos mais delirantes; nem mesmo Fausto sabia ao certo em que grau sua atual capacidade estava. Além disso, havia algo parcialmente perceptível, algo que o estava influenciando para realizar alguma coisa ainda não revelada, mas por mais que Fausto se esforçasse para discernir o que era aquilo, nunca ficava claro, era como uma presença nebulosa, uma nuvem escura, constantemente ao seu redor. Às vezes ele conseguia notá-la, mas outras vezes não. Depois de um certo tempo passou a não ligar mais para aquilo, afinal, alguém como ele que estava gradativamente se tornando mais diferenciado a cada dia devia possuir algo especial a seu redor; Provavelmente descobrisse o que era no momento certo, mas até lá ia se concentrar nas tarefas que já tinha se predisposto a realizar. Toda manhã Fausto sentia-se melhor, mais revigorado e com mais vitalidade do que no dia anterior e naquela manhã em particular ele estava se sentindo muito mais livre e capaz do que um dia antes, tinha certeza de que poderia encontrar Mônica e dar a ela a punição que merecia. Ele olhou para a foto novamente e para o rosto sorridente da ex-mulher de Ricardo. Detestou aquele sorriso vibrante e iluminado. “Falsa!” _ pensou consigo mesmo. Colocou o porta-retratos sobre a cama, o quarto estava desarrumado ao extremo, um verdadeiro caos; foi até o banheiro que ficava quase de frente para a sala e logo que entrou olhou no espelho, viu sua própria imagem refletida. Era o único espelho ainda intacto na casa. Odiava sua imagem.
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Ele não se reconhecia naquele rosto embora fosse seu também, mas não era um rosto que ele gostasse, achava sem expressão, sem força, como um mero rosto exatamente igual ao de qualquer outra pessoa, talvez fosse amigável demais. Isso o incomodava porque Fausto jamais se considerou uma pessoa comum ou amigável, e de fato não o era; pelo contrário, ele sempre se considerou algo acima do normal, acima do comum, sobrenatural. Tinha todo aquele poder de mudar e moldar uma parte da realidade segundo sua vontade e a coisa parecia estar aumentando a cada dia. Seu dom estava recebendo influência, sendo insuflado por algo grandioso e aquele rosto comum não era condizente com o dom poderoso que possuía nem com a grandiosa expectativa que o rodeava. Tocou com as pontas dos dedos à face e examinou a si mesmo por alguns minutos, seus olhos, testa, nariz, boca e queixo. Não tinha jeito, ia ter que se acostumar com aquilo, afinal, era o único rosto que possuía. Em seguida abriu a água para lavar o rosto e deixou a torneira derramando uma grossa torrente enquanto ele observava sua mão esquerda. Espalmou a mão bem diante dos olhos e verificou cuidadosamente cada um dos dedos, assim como o pulso, estavam perfeitos, mas na manhã de 16 de Janeiro em que Fausto acordou no quintal de casa, úmido por causa da tempestade do dia anterior, recém saído do exílio, com a casa toda revirada; todos os utensílios da cozinha, da sala e do quarto destruídos e sua mão e pulso esquerdo completamente inutilizado, as coisas não fizeram muito sentido. Felizmente, ao contrário de Ricardo, ele, Fausto, era destro. Mas teve de procurar um serviço médico para remediar os dedos destroncados, o pulso quebrado e o nariz também, além de receber alguns outros curativos nas costas e pernas. Fausto ainda não tinha idéia das coisas incríveis que podia realizar só 179
com a vontade de sua mente e, portanto apenas seguiu para uma unidade de pronto atendimento como uma pessoa comum faria. Lá, recebeu o tratamento adequado, teve seus dedos recolocados nos devidos lugares e o pulso imobilizado. Foi colocado um gesso que ia da mão até pouco abaixo do cotovelo e recebeu também medicação para aliviar as dores, embora não estivesse sentindo nenhuma, o braço estava praticamente amortecido e todas as articulações daquele membro permaneciam inchadas. O posto de saúde no qual foi atendido ficava a cerca de três quilômetros de casa e ele percorreu toda a distância andando a pé como se estivesse indo comprar pão, prestando atenção em absolutamente tudo ao seu redor; às pessoas, nos carros, nos ambientes e em tudo. Fausto não tinha problema algum para se situar, ele possuía absolutamente todas as memórias de Ricardo; tudo que o outro conhecia, Fausto também conhecia; tudo o que o outro sabia, Fausto também sabia, à exceção de algumas poucas coisas. Era seu primeiro dia cem por cento fora da prisão de sombras na qual permanecera desde sempre, exceto por algumas breves escapulidas esporádicas para se relacionar com Mônica ou para resolver algo pendente que Ricardo não era capaz de lidar; quando preso só podia ver o mundo exterior pelos olhos de Ricardo que nada mais era do que a sua outra personalidade. E mesmo assim não era sempre que conseguia enxergar através dos olhos do outro; na maioria do tempo tudo em sua vida se resumia em um grande vácuo. Quando saiu, tudo ao seu redor era maravilhosamente real durante a caminhada seus pensamentos foram arrastados por uma correnteza de lembranças produzidas por seu outro eu, Ricardo; uma dessas lembranças era muito mais forte que todas as outras. Mônica. Por um curto segundo Fausto teve a certeza de que ela era o único cabo guia capaz de trazer seu outro eu de 180
volta e mandá-lo para as sombras da prisão novamente, portanto, eliminá-la era uma questão de sobrevivência para ele. A água na torneira ainda caia se desperdiçando aos montes ralo abaixo enquanto Fausto rememorava seu primeiro dia de liberdade depois de anos de solidão e profunda escuridão no interior da mente de Ricardo, sendo alimentado apenas com os sentimentos moralmente inaceitáveis e os comportamentos reprováveis que iam sendo empurrados para o fundo do seu ser. Fausto e Ricardo eram dois lados do mesmo homem, mas um era a pessoa em si, e outro era uma personalidade deturpada que poderia nunca vir à tona, mas que por uma sucessão incomum de combinações acabou se tornando mais forte do que a personalidade dominante original e com isso tomou definitivamente o seu lugar. Fausto assumiu o corpo de Ricardo empurrando a personalidade normal para o lugar onde antes ele estava aprisionado. Talvez se Ricardo tivesse aceitado a ajuda de Mônica e procurado tratamento psicológico adequado quando ela estava disposta a passar por qualquer coisa com ele; certamente seria diagnosticado como sendo portador de transtorno dissociativo de identidade, comumente chamado pelos médicos de Transtorno de múltiplas personalidades. Caracterizado pela condição mental onde um único indivíduo demonstra características de duas ou mais personalidades ou identidades distintas cada qual com sua maneira particular de perceber e interagir com o meio e o mundo. Ricardo tinha Fausto como outra personalidade, mas Fausto por si só não tinha força suficiente para sair e tomar o controle por completo e em tempo integral; ele só tomava o controle eventualmente e em ocasiões muito especificas quando por algum motivo Ricardo não conseguia lidar com alguma circunstância demasiadamente embaraçosa ou estressante de 181
seu dia a dia. Porém Fausto a cada ano fazia mais e mais força para sair e ser ele a personalidade dominante, mesmo sem força no começo ainda era capaz de produzir as sensações e os sentimentos que começaram a assustar Ricardo. Fausto era como um fantasma aprisionado na garrafa, sem força para fugir, mas com força suficiente para assombrar o dono da garrafa. As vozes que Ricardo ouvia no começo do que ele julgava ser seu processo de insanidade era Fausto falando com ele, mas com o passar do tempo outra coisa aconteceu, uma segunda voz passou a permear a vida de Ricardo e isso somado as investidas de Fausto para sair de seu aprisionamento escuro foram preponderantes para abalar o estado psicológico do verdadeiro dono do corpo definitivamente, criando rupturas. Com a mente afetada pelo que ele julgava serem delírios, mas que na verdade eram pensamentos de Fausto dentro de sua cabeça rivalizando com os seus próprios pensamentos, o equilíbrio mental de Ricardo foi se esfacelando pouco a pouco como um espelho rachando paulatinamente; criando uma brecha psicológica por onde Fausto podia sair com muito mais freqüência, embora só fosse capaz de fazê-lo totalmente durante os momentos de maiores intimidades entre ele e Mônica. Ricardo passou a sofrer de uma disfunção sexual acompanhada por outros sintomas como intensas dores de cabeça, ansiedade excessiva, palpitações, pulso acelerado e algumas outras alterações psicossomáticas. Fausto por outro lado era capaz de satisfazer sexualmente a ambos, ele e a mulher que no princípio não sabia da troca de personalidade e foram justamente aquelas relações com a mulher de Ricardo o cabo guia para a saída definitiva dele desde as brumas mentais até o mundo externo, mas não sem uma segunda ajuda externa e profana que ele ainda ignorava. 182
Mônica tinha sido a porta pela qual Fausto emergira das trevas mentais e peculiarmente era também a única forma de Ricardo voltar ao controle de seu corpo. Fausto sabia que assim como o desejo de possuir aquela mulher o tinha guiado à liberdade; era possível que o amor de Ricardo para com ela fosse capaz de fazer o mesmo por ele. Por isso era tão importante eliminá-la; matando Mônica, Fausto matava também a única chance de retornar para a prisão e encerrava de uma vez por todas a sua outra personalidade lá para sempre. Finalmente ele colocou a mão sob a água que saia da torneira e lavou o rosto, em seguida olhou com o máximo de admiração para a tatuagem que mandara fazer no braço. O nome Tânatos, bem legível e com letras clássicas como se tivessem sido escritas por uma pena de algum escritor ou poeta da idade média, a tatuagem se destacava com as formas arredondadas e finas de cada uma das letras; elas pareciam ser um conjunto bem trabalhado de tatuagens individuais tamanho o esmero com que foram feitas. Futuramente pensava em fazer muitas outras, funcionavam como marcas de individualidade para diferenciar quem ele era, já que não podia se livrar do corpo e do rosto de seu outro eu, então os modificaria segundo sua vontade para torná-los um pouco mais condizentes com a personalidade que agora dominava. Futuramente ele pensava em tatuar algo que representasse um símbolo de poder. Após lavar o rosto ele voltou para o quarto e colocou as mesmas roupas que vestira no dia anterior, tinha muito a fazer e ia começar o mais cedo possível. Quando terminou de se vestir pegou a mochila que havia trazido da casa de Leonardo e de dentro dela retirou o telefone celular que pertencera ao morto. Verificou na tela do aparelho que havia duas chamadas não atendidas e quando as listou viu que pertenciam a alguém 183
identificado como “irmã”, foi até a agenda numérica e não demorou muito até encontrar um número que estava relacionado com o nome “irmã” na lista. Não teve dúvidas, era o número de Mônica. Ela devia ter ligado para o irmão na noite passada enquanto Fausto dormia, por isso não ouviu o aparelho chamando. Antes de ligar para aquele número e se certificar ele espalhou as outras coisas de dentro da mochila sobre a cama. Notas de real caíram sobre a cama, quatro notas de cinqüenta, dez notas de vinte e dez notas de dez. O relógio também caiu na cama, era um belo relógio e Fausto colocou no braço logo que terminou de verificar todas as coisas. Caíram também as duas armas e a munição que ele recolheu na casa de Leonardo; Fausto municiou ambas as armas e resolveu que usaria uma delas muito em breve. Fora tudo aquilo também tinha as chaves da casa de Leonardo e pretendia usá-la também para armar uma emboscada para Mônica. Finalmente juntou todas as coisas na mochila novamente exceto o dinheiro que colocou em sua própria carteira, jogou os cartões de crédito fora porque embora pertencessem a Ricardo, ele Fausto, jamais poderia usá-los, não era capaz de assinar o nome do outro e tampouco possuía uma caligrafia igual, de fato suas letras eram completamente diferentes, talvez pelo fato de um ser canhoto e o outro destro. Ficou apenas com os cartões de débito para movimentações em caixas eletrônicos onde pretendia retirar o máximo de dinheiro que pudesse. Com poucos toques no menu do telefone celular, um antigo Motorola c650, ele ligou para o número indicado com a nomenclatura “irmã” e aguardou alguns instantes. Primeiro toque e nada, segundo toque e também nada, mas ao terceiro toque alguém atendeu do outro lado da linha, a voz feminina parecia parcialmente atrapalhada provavelmente pelo 184
sono matutino interrompido, mas não deixava dúvidas; era a voz de Mônica. _O que foi Léo, você me acordou!_ Disse a mulher com um tom severo no som da voz. Fausto não disse nada, estava imaginando o rosto dela enquanto acordava. _Léo_ ela disse_ Liguei pra você ontem, onde estava? Estava trabalhando ou saiu com uma de suas sirigaitas? _Mônica._ ele disse o nome dela da forma mais melíflua que conseguiu, e aguardou. Houve um hiato do outro lado, silêncio momentâneo e em seguida a voz dela reapareceu. Fausto se esforçou para imaginar a expressão no rosto da mulher. _Quem está falando?_era nítida a confusão na voz dela ao estranhar o tom vocal da pessoa com quem falava. Fausto se apressou: _ Que bom que encontrei você. Por um momento pensei que não íamos mais nos ver. Estou com saudades. _ Quem está falando?_ ela repetiu, mas praticamente já tinha certeza de quem era. _ Ricardo, ora!_ respondeu Fausto. _Meu Deus!_Ela disse_ Você não é o Ricardo. É o Fausto. Ele sorriu por ter sido reconhecido. Por um momento pensou que fosse capaz de enganar aquela mulher, mas obviamente tinha subestimado a perspicácia dela ao telefone. _Meu Deus! Meu Deus!_ ela repetia com uma intensa inquietação_ onde está o Léo? Porque está me ligando desse telefone?_ havia um crescente desespero na voz dela também. _ Você não achou mesmo que ia me deixar?_ ele rebateu. _Cadê o meu irmão?_ ela insistiu. _ Você vai poder vê-lo se vier até casa dele; vou esperar por você para conversarmos. 185
Mais uma pausa por parte dela antes de falar: _ De onde você está falando? _Ora! Estou na casa do Leonardo._ mentiu_ Vim fazer uma visitinha social e espero que você queira se juntar a nós para uma conversa sobre os bons e velhos tempos._ Fausto pretendia ir para a casa de Leonardo assim que desligasse o telefone e lá prosseguiria com o próximo passo. De repente o chão faltou debaixo dos pés de Mônica; ela perdeu completamente a percepção de que havia um solo firme sob a cama onde estava sentada. Nem bem acordara e já estava sendo açoitada por uma terrível expectativa, ainda não estava pronta para ficar frente a frente com Fausto, na verdade, ela não sabia se um dia estaria pronta para fazê-lo novamente. Algumas memórias de seu relacionamento brotaram, eram lembranças que se iniciavam doces com o relacionamento que tivera com seu “ex-marido”, um homem que era duas pessoas no corpo de uma. Lembranças que no desenrolar iam se tornando mais fortes e cada vez mais amargas; seu relacionamento foi ficando cada vez mais fora de controle, sobretudo quando ela descobriu a existência de Fausto; Mônica nunca soube se dentro da cabeça de seu “ex-marido” haviam duas mentes ou se uma única mente tinha gerado duas personalidades distintas, e mesmo tendo preferido ficar com ele por algum tempo chegou num determinado momento em que percebeu que já não seria mais possível manter aquela vida se relacionando com duas pessoas ao mesmo tempo; mesmo que seus dois amantes dividissem o mesmo corpo. Fausto e Ricardo eram muito distintos um do outro e se ela insistisse ia acabar ficando louca. Ricardo estava cada vez mais paranóico e passava os dias dizendo coisas que ela não compreendia e das quais ele mesmo não se lembrava momentos depois; além disso, durante as 186
noites geralmente na cama, Fausto tomava o controle e embora fosse um amante muito mais viril que Ricardo que era geralmente mais comedido e envergonhado; a idéia de continuar com aquilo começou a assustá-la. Mônica percebia na forma de falar que Fausto desejava muito mais do que somente tê-la em seus braços e satisfazê-la onde seu outro ego não conseguia. Ele a queria como uma espécie de escrava para fins luxuriosos. Com o passar dos dias suas desconfianças foram se confirmando à medida que em seu relacionamento iam surgindo desvios, inicialmente sutis, mas que certamente apontavam para alguns comportamentos que ela jamais julgara saudáveis, quem sabe onde poderiam parar se ela não tivesse interrompido seus encontros noturnos e abandonado a casa onde morava com ele. Fausto demonstrava tendências sádicas e Mônica não estava nem um pouco disposta a continuar com aquilo, sob pena de sofrer com fantasias depravadas que para ela eram inimagináveis e violentas. Fausto falou novamente ao telefone: _ E então? Mônica emergiu do lago de memórias no qual estava se afogando. _Fausto escute_ começou ela tentando ponderar para conseguir algum tempo a fim de decidir o que faria_ Não faça isso. Deixe-me seguir com minha vida, por favor. Ele sorriu. _ Precisamos conversar. _ Não quero mais nada com Ricardo_ ela disse o nome da outra face de Fausto para não causar algum furor desnecessário nele. Fausto adorou o começo da conversa, pois ainda nem tinha ficado frente a frente com a mulher e já podia notar uma 187
pequena nota de medo temperado com tons de súplica na voz dela; quase se deixou extasiar imaginando o que faria com ela quando se encontrassem novamente. Ainda não tinha definido em sua mente que tipo de sofrimento ia impor a ela, mas sabia que um dia seria pouco para o que ele ia desenvolver, certamente precisaria de dias para se satisfazer completamente e ficaria torcendo para que o corpo de Mônica fosse forte e resistisse o máximo de tempo possível. _ Se você achar mais conveniente podemos nos encontrar em nossa antiga casa._ Ele recomeçou já tramando o desfecho repentino na conversa_ Fico o dia todo esperando por você. A casa onde ela havia morado com ele ou eles, visto que eram dois; ela já não sabia mais o que pensar. Não queria voltar naquela casa, não gostaria de voltar. _ Deixe-me falar com Leonardo, Fausto, por favor._ pediu. A resposta que ele deu foi seca como um golpe de martelo: _ Estou esperando._ Fausto desligou o telefone sem dizer mais coisa alguma. Ele sabia que Mônica não queria se encontrar com ele, mas certamente ficaria preocupada com o irmão. E Fausto já tinha parte do plano bem formado na cabeça. Colocou o aparelho sobre a cama por um instante e contemplou a si mesmo no seu primeiro momento de glória daquele dia. Havia um prenuncio de que tudo sairia como o planejado, muito embora ele não tivesse planejado muitas coisas. Tinha chamado Mônica para se encontrar com ele na casa onde agora estava, a casa que pertencia a Ricardo e onde eles moraram juntos pelo tempo que o relacionamento durou, mas sabia que a mulher não iria direto para lá, se tinha fugido e estava fazendo tanta força para se manter afastada, ela certamente tentaria outras opções antes de atender ao convite de Fausto e ele sabia que opções seriam essas.
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Mônica iria procurar por Leonardo, afinal de contas a ligação que recebera vinha do aparelho do irmão. Certamente na cabeça dela deveria estar havendo alguma ligação entre o irmão e Fausto, mas era justamente essa a dúvida que ele desejava incutir na cabeça de Mônica. Ela sabia muito bem do rompimento da amizade antiga de Ricardo e Leonardo e também jamais tinha contado sobre a existência da segunda personalidade de ex-companheiro, portanto não podia entender o porquê do telefone do irmão estar de posse do outro. Mônica iria até a casa do irmão antes de rumar para a casa de Ricardo e Fausto sabia disso. Ele caminhou pela casa, ia sair, precisava estar preparado para agir no momento em que a oportunidade se apresentasse diante de si e algo dentro dele dizia que a oportunidade seria ainda muito melhor do que ele podia imaginar. Fausto pegou a mochila e saiu da casa, não se preocupou em fechar o domicílio, afinal, quem poderia querer roubar algo de sua casa, não havia praticamente nada inteiro para ser roubado e, além disso, seria muito pior se Fausto voltasse para casa e encontrasse alguém bisbilhotando. Pior para o outro é claro; Ele chegava até a desejar intimamente que isso acontecesse, porque assim teria como testar até onde suas habilidades metafísicas podiam alcançar, ainda não estava acostumado cem por cento com tudo o que descobriu que podia fazer e a cada dia parecia poder fazer mais, porém sem um bom teste de campo não saberia com exatidão toda a extensão de suas “forças extras”. Antes de sair de casa ele recolheu o bibelô em forma de anjo que Mônica tanto gostava, estava caído num canto da casa há meses. Ele o colocou dentro da mochila também, junto com o porta-retratos que continha a fotografia detestável.
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Quando saiu de casa caminhou pelo quintal da frente até o portão e assim que se aproximou dele viu algo que lhe chamou a atenção mais do que devia. Sob o portão caminhando lentamente estava uma criaturinha bizarra, um besouro cuja carapaça parecia estar deformada; o inseto se parecia muito mais com uma anomalia da natureza do que com uma criatura criada com um propósito natural. Tinha o tamanho de um mouse de computador, as patas frontais eram muito maiores que as outras posteriores e sobre a couraça irregular havia inúmeras protuberâncias parecidas com espinhos, na cabeça estava dois grandes chifres, um maior e outro menor um frente ao outro e duas antenas semelhantes as de uma barata; era como se o inseto tivesse sido construído de partes mortas de outros insetos. O besouro-barata tinha uma cor forte, bronze, como se sua carapaça tivesse sido confeccionada artesanalmente em alguma fundição do metal. De repente a parte superior da carapaça se fendeu e se abriu afastando-se em duas partes uma para direita e outra para a esquerda; de baixo da proteção surgiram pequenas asas de inseto, mas também elas não pareciam terem sido feitas para aquele monstrinho, eram como asas de mosca, só que muito maiores do que deviam; transparentes como se fossem de plástico filme. O inseto as moveu freneticamente e o som produzido foi como o som de uma abelha ou grande vespa, mas não saiu do chão e em seguida escondeu as asas sob a carapaça de bronze e continuou seu caminho vagarosamente. Por um ou dois minutos Fausto não conseguiu desviar os olhos da pequena criatura que parecia oriunda de um pântano ou qualquer outro lugar inóspito, ele sabia que a cidade não era lugar para seres como aqueles assim como os peixes estranhos de profundezas oceânicas jamais nadam nas águas da superfície. Mas não entendia como aquele ser tão insignificante 190
estava exercendo uma atração tão profunda sobre ele; o besouro se movia desajeitadamente e muito devagar, Fausto observava e por um curto momento ele perdeu a noção do restante do mundo a seu redor, sem entender a causa de tudo aquilo. Procurou lembrar se Ricardo tinha qualquer tipo de atração ou aversão demasiada que justificasse aquele transe em sua mente, mas pelo que conhecia de seu outro eu, não havia nada nesse sentido que pudesse explicar aquilo. Ricardo não sentia absolutamente nada por insetos, na verdade não gostava deles, mas não era algo como uma fobia incontrolável. Assim que o transe inexplicável terminou Fausto conseguiu retomar sua presença de espírito para desviar o olhar do pequeno monstro que caminhava desligado do mundo. O mais estranho era que a cada dia a mente de Fausto ficava mais forte e de repente um simples inseto havia vencido sua força de vontade facilmente; a simples presença do besouro tinha derrubado as barreiras que mantinham a mente dele atenta na realidade ao redor e o havia aprisionado tão facilmente que fausto quase chegou a sentir medo. Pensou em pisar no besouro apenas para satisfazer sua vontade de punir o inseto pela petulância de existir, mas quando se deu conta o besouro não estava mais lá, devia ter levantado vôo e ido para outro lugar ou tinha sido arrebatado de volta para a dimensão da qual pertencia. Foi o que ele pensou. Fausto saiu portão a fora procurando se esquecer da pequena anomalia natural que aprisionara sua atenção; precisava estar totalmente focado nas coisas que tinha para fazer. * Mônica colocou o telefone sobre a cama sentindo uma pontada emocional que lhe fustigava o coração; de alguma maneira 191
Fausto a tinha descoberto e agora queria tentar fazer com que as coisas voltassem a ser como antes. Rapidamente ela saltou da cama e trocou suas roupas, não pretendia tomar o café da manhã com Patrícia e a família, tinha de ir para a casa de Leonardo o mais rápido possível; precisava falar com o irmão, esclarecer como e por que o telefone dele estava de posse de Fausto. “Será que ele se revelou?”_ pensou Mônica, mas logo em seguida desistiu dessa idéia. Leonardo jamais acreditaria que Ricardo possuía uma segunda personalidade por mais provas que pudessem ser apresentadas. O irmão de Mônica era uma pessoa de visão curta para uma série de coisas e achava que grande parte dos ditos distúrbios mentais eram na verdade engodos bolados por psicólogos, psiquiatras e terapeutas apenas para fazer com que as pessoas gastassem verdadeiras fortunas em suas mãos, fazendo anos de intermináveis tratamentos. Ele também achava que outra parcela das pessoas ditas portadoras desses distúrbios eram pessoas escondendo sua própria maldade por trás de falsas insanidades; segundo ele, o mundo podia tolerar qualquer atrocidade desde que ela viesse de uma pessoa dita desequilibrada, mas ninguém queria enfrentar o fato de que qualquer pequena maldade fosse praticada por alguém em perfeitas condições mentais. Aceitar esse fato seria como olhar no espelho e ver um demônio todas as manhãs. Mônica saiu da edícula onde estava hospedada e passou rapidamente pela casa da frente; viu Patrícia preparando o café da família com o telefone na mão. _ Já vai sair?_ perguntou a prima apoiando o telefone no ombro. Mônica parou para falar com a outra, mas a pressa era evidente ali. 192
_ Vou à casa de Leonardo. _ Aconteceu alguma coisa?_ a preocupação brotou instantaneamente no rosto de patrícia e era genuína. _Não. Creio que não; só quero esclarecer algumas coisas com ele, acho que Ricardo esteve lá me procurando ontem. A prima arregalou os olhos. _ Quer que Heloi leve você de carro até lá? _ Não, eu vou e volto rápido. De repente querendo desconversar e parecer menos tensa Mônica perguntou: _ Está fazendo o quê? Com um sorriso refrescante Patrícia disse: _ Estou ligando para Ângelo, Heloi finalmente comprou o presente que Ingrid queria dar e vou ver se ele pode dar uma passadinha aqui mais tarde. Mônica concordou meneando a cabeça. _ Preciso ir._disse._ mas volto logo. _Certo; estamos pensando em pegar a estrada e ir à praia passar o Domingo lá. Vamos hoje à noite para não pegar trânsito e teremos todo o domingo para relaxar; acho que você deve ir. _ Está combinado então._ Mônica finalmente se afastou e saiu.
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10 Quando Ângelo chegou em casa pela manhã, ainda não tinha esquecido completamente o sonho estranho que tivera na casa de Diana, não conseguiu dormir mais a partir daquilo e estava um pouco cansado. Havia alguma coisa diferente martelando em sua cabeça, uma sensação pesada como se ao redor dele houvesse uma grande e espessa nuvem de fumaça. Guardou o carro no pátio da garagem e percebeu que o veículo do seu pai, um Honda Civic 2003 ouro, não estava lá, ele devia ter saído; como não trabalhava nos dias de sábado costumava sempre sair com a esposa logo pela manhã após o café para fazer compras no supermercado. Certamente aquele seria o caso. O carro de Miguel, seu irmão, esse sim, um Corsa hatch 2003, azul metálico, estava lá em sua vaga especifica encostado junto ao canto mais longe do muro sob a proteção da laje sobre a qual fica o primeiro piso do apartamento. Ângelo passou pelo carro do irmão suficientemente perto para ver que necessitava de uma boa lavagem, uma película considerável de poeira estava formada sobre a lataria do veículo. Caminhando em direção a subida da escada que levava ao andar de cima, ele foi surpreendido com o toque de seu telefone. Tinha colocado toques personalizados que identificavam cada uma das pessoas que ligavam para ele, aquele que estava chamando era a música “Bitter sweet symphony” composta por Mick Jagger e Keith Richards e interpretada pela banda de rock britânica “The Verve”. Ele tinha escolhido e colocado aquela música para tocar sempre que Heloi ou Patrícia telefonassem. Gostava muito do som da 194
música que era uma de suas favorita; a tinha ouvido pela primeira vez há muito tempo atrás quando ainda era um adolescente numa sessão de cinema onde assistiu ao filme Segundas Intenções, à época ele era apaixonado pela atriz americana Sarah Michelle Gellar que ficou muito famosa com os filmes e a série de TV “Buffy a caça vampiros”. O fato era que a música tinha se colado à mente de Ângelo e ele a mantinha em sua lista de mais ouvidas constantemente. Tinha uma música específica para cada pessoa mais íntima de sua vida; para Diana colocara a música Boa Sorte – Good Luck; interpretada por Vanessa da Mata e com a participação do cantor americano Bem Harper; Diana sempre gostou muito de MPB e nos últimos tempos tinha dedicado muitos momentos para ouvir essa e outras músicas de Vanessa da Mata. Para sua mãe, seu pai e para o toque de Miguel colocou a música “Celestial” da Banda norte americana P.O.D. O telefone continuava tocando e ele finalmente atendeu: _ Alô _ disse e bocejou em seguida; não foi intencional, mas a falta de sono na madrugada estava começando a cobrar seu preço. _ Oi, Ângelo, é a Patrícia; eu estava pensando se você podia dar um pulo aqui mais tarde, Helói comprou um presente para você e Ingrid quer lhe entregar o quanto antes. Sabe como ela é. _Um presente? _estava realmente surpreso_ Mais não é meu aniversário nem nada desse tipo. _ Eu sei, mas você sabe que somos eternamente gratos a você por tudo que nos fez, além do mais é apenas uma lembrança, nada muito sério. Ele procurou pensar rápido; se estivesse em condições um pouco melhores certamente tomaria apenas um banho em casa, trocaria de roupas e ia para lá, mas não sem antes passar em 195
alguma loja e comprar um presente também para a pequena Ingrid, algo como uma boneca ou um daqueles relógios infantis que são vendidos acompanhados de uma bolsinha; mas como estava terrivelmente abatido por não ter dormido direito e com a cabeça doendo de tanto pensar naquele sonho, teve uma idéia. _ Escute Patrícia, Estou um pouco enrolado agora, mas vou pedir a Diana para dar um pulo aí e logo que eu puder apareço. Tudo bem _Está ótimo então._ Disse patrícia do outro lado da linha. _Não se preocupe, assim que eu for levo um presentinho para Ingrid também. _ Ora, Mas não é preciso! _ É claro que é. Patrícia sorriu e disse: _ Então vamos esperar por Diana. _ em seguida desligou. Ângelo recolocou o seu aparelho no bolso e finalmente subiu. Ele morava num apartamento, mas não era um prédio grande, e sim um construído na década de oitenta, e reformado no início do ano dois mil; era um apartamento de cinco andares em uma rua que mantinha o clima bucólico muito apreciado por todos os moradores locais. Embora no centro de Nova Iguaçu e com a expansão imobiliária a todo vapor por todas as partes nas redondezas, aquele trecho permanecia como sempre fora; havia uma brincadeira entre os moradores, eles apostavam para saber quando as grandes firmas de construção começariam a tentar aliciar os antigos donos de imóveis da área a fim de comprar suas casas para construir grandes condomínios. A especulação estava correndo solta. Os pais de Ângelo moravam na região há trinta anos; haviam se mudado para lá logo que o primeiro filho nasceu, precisavam de um lugar com mais espaço e o apartamento caiu
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como uma luva; ficaram tão satisfeitos que jamais pensaram em se mudar novamente. Ao abrir a porta ele encontrou o irmão Miguel deitado no sofá da sala com seu café da manhã sobre a mesa de centro de madeira e tampo de vidro; o irmão certamente tinha acabado de acordar e enquanto degustava seu copo de café com leite e pão com manteiga e queijo, aproveitava para ver um programa sobre esportes na TV por cabo. Miguel trabalhava num banco privado durante a semana, de segunda até sexta, das dez as cinco, às vezes seis. E todas as noites ia para a faculdade. Estava cursando o quinto período de Ciências contábeis na Estácio de Sá, Campus de Nova Iguaçu. Geralmente ele tinha o sábado de manhã para descansar e não fazer absolutamente nada a não ser ver televisão, e navegar na internet, mas à tarde sempre se encontrava com Isabela, sua namorada, passavam as tardes juntos fazendo alguma coisa, costumavam passear e conversar, uma semana na casa dela e outra na casa dele. Nos domingos pela manhã Miguel costumava ir à Igreja, fazia cerca de três anos que ele havia passado a freqüentar uma denominação evangélica; ele gostava, portanto todas as outras pessoas da família também gostavam, Ângelo não costumava acompanhar o irmão, mas achava aquilo muito bom para ele. Os pais também, mesmo de formação católica, não se opuseram diante da escolha do filho, pelo contrário, deram força, sobretudo quando ele comunicou que também faria parte de um grupo voluntário sempre que possível. _ Chegando agora?_ disse Miguel desviando rapidamente os olhos da tela. As chaves tilintavam enquanto Ângelo fechava a porta depois de entrar. Ele respondeu com outra pergunta: _ Onde está o pessoal? 197
Depois de uma mordida no sanduiche de queijo com manteiga Miguel respondeu: _ Foram ao mercado; acabaram de sair._ seus pais eram realmente muito previsíveis. _ Beleza. Tá vendo o quê? O irmão se endireitou no sofá. _ Um panorama da Liga dos Campeões da Europa; você sabia que existe um time grego chamado Aris Tessalônica e que ele está disputando esse ano. Ângelo gostava de futebol como a maioria dos homens, mas Miguel era um catedrático no assunto, sabia todo tipo de estatísticas dos times de vários campeonatos e não só do brasileiro, mas também do espanhol, italiano, inglês, francês, alemão e até mesmo do argentino; se não trabalhasse no banco poderia facilmente ocupar uma cadeira de comentarista em qualquer programa de jornalismo esportivo. Desempenharia a função com extrema facilidade. Ângelo bateu levemente na coxa do irmão para que ele desse passagem e suspirou de cansaço. _ Você parece cansado._ disse Miguel. _ Você não faz idéia do quanto. _ Passou a noite com Diana. _ O dia ontem foi cansativo e não consegui dormir à noite._ Não mencionou nada sobre o acidente na estrada e tampouco sobre o sonho, afinal, nada daquilo importava. O cansaço sobre os ombros de Ângelo parecia ficar mais denso, mais pesado à medida que ele caminhava; a cada passo parecia estar recebendo sobre suas costas uma quantidade um pouco maior de peso, o que o estava começando a curvar para frente. Nunca tinha sentido isso em toda a vida, ao menos não se lembrava.
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Miguel retirou as pernas que estavam no caminho e o irmão mais velho passou por ele. _Vou tomar um banho rápido e tentar dormir um pouco; quando o pessoal chegar diga que estou no quarto, por favor. _ Certo. Miguel voltou para a sua posição de observador profissional de programas esportivos, se deitando parcialmente no sofá e continuou saboreando o café da manhã do mesmo jeito que estava quando o irmão entrou na sala. Ângelo caminhou para o seu quarto. Chegando lá, colocou as chaves do carro sobre a cômoda logo na entrada ao lado da porta. O quarto estava com as janelas e cortinas abertas, certamente a mãe ele tinha feito aquilo, ela gostava de ambientes bem arejados e ele também, mas puxou a cortina para quebrar um pouco da claridade que estava aguçando sua dor de cabeça. Não se lembrava de já ter se sentido tão à vontade com a escuridão do quarto como naquele dia. Sentou na cama e ficou ali por um minuto. Tirou os tênis. Ele dormia num quarto e Miguel em outro, havia bastante privacidade para ambos, mas Ângelo estava planejando passar para uma casa só sua dentro em breve, já tinha conversado com os pais e tudo estava mais ou menos encaminhado, faltava poucos detalhes e talvez mais um ano até que aquilo se concretizasse tinha falado também com Diana e se tudo corresse bem morariam juntos muito em breve; ele pretendia comprar uma casa para eles e a namorada tinha concordado. Mas enquanto não acontecia ele mantinha em seu quarto tudo o que precisava para gerenciar sua vida. Atualmente Ângelo não estava trabalhando, mas foi uma decisão tomada por vontade própria; resolveu ficar um ano parado para repensar a vida, cada passo que deveria dar à 199
frente. Antes disso ele tinha trabalhado durante oito anos, dez se contasse os dois anos de estágio, no setor administrativo de uma firma farmacêutica multinacional localizada no município de Belford Roxo. Ângelo tinha se formado em Administração de empresas na mesma faculdade que o irmão agora estudava; na época recebia um salário relativamente bom para suas pretensões, trabalhava entre segunda e sexta, e cursara o idioma espanhol por completo além de fazer um curso preparatório para concursos públicos na sua área. Foi uma rotina puxada que durou um bom tempo, mas lhe rendeu frutos. No pouco tempo vago que ele tinha em meio àquela rotina gostava de escrever alguns contos, era um vício muito antigo; Ângelo se lembrava de ter escrito o primeiro conto por volta dos dez, doze anos de idade, talvez antes; continuou fazendo aquilo durante toda a vida; era uma das coisas que mais gostava de fazer e uma das quais mais o relaxavam, juntamente com a música. Depois de formado ele pediu demissão do antigo emprego para se dedicar totalmente a preparação para participar de um concurso público, participou de vários e não demorou muito até ser aprovado num dos concursos de nível superior para trabalhar na prefeitura municipal de Nova Iguaçu, era uma das melhores coisas que podiam acontecer e ele agora apenas estava aguardando o chamado para finalmente assumir o cargo, tinha passado pelas demais etapas que ocorreram no decorrer do ano. E passara esse tempo em casa sem trabalhar de maneira convencional. Mas antes de tudo isso, outra coisa extremamente incrível já tinha acontecido. Quando ainda estava trabalhando na empresa farmacêutica, juntou alguns de seus textos em uma coletânea e a inscreveu em um concurso cultural literário; fez isso de uma maneira um tanto quanto descompromissada, mas algo lhe dizia que podia 200
conseguir beliscar algum dos prêmios que não eram nada ruins. Três meses depois ele recebeu o contato da organização do concurso cultural lhe informando que seu livro fora escolhido como vencedor na categoria contos e crônicas e que o prêmio consistia em uma quantia em dinheiro no valor de cem mil reais além de ter o livro publicado por uma editora parceira da organização do concurso. Ângelo recebeu o depósito em sua conta corrente, e foi à festa de entrega do prêmio que aconteceu numa grande livraria no centro do Rio de Janeiro; foi lá também que ele viu Diana pela primeira vez; ela fazia algumas capas dos livros daquela editora. No fundo ele achava que sua capacidade estranha e adormecida de saber de coisas antecipadamente o tinha favorecido de algum modo no concurso, passou a pensar assim principalmente depois do episódio no parque de diversões; ele não pretendia seguir como escritor, embora adorasse escrever para desanuviar a mente. Obviamente o dinheiro foi muito bem vindo e ajudou Ângelo a ficar, durante todo o ano em que permaneceu parado após pedir despensa do emprego, de uma forma muito mais tranqüila. Porém ele sempre manteve uma leve sensação de que havia trapaceado de algum modo, mesmo não sabendo se de fato fora sua capacidade estranha que o tinha levado à vitória ou se apenas sua habilidade normal na escrita que realmente era muito boa. Lembrou que devia ligar para a namorada. Era melhor fazer isso antes do banho. Discou os números e aguardou. Quando Diana atendeu, ele explicou que tinha recebido um telefonema de Patrícia e pediu que Diana fosse até a casa dela para buscar o tal presente, informou que ela não precisava ter pressa para sair e que ele ia tentar dormir um pouco, mas que 201
mais tarde ia até a casa dela novamente e podiam sair um pouco ou, se ela preferisse, podiam pedir uma pizza com refrigerante e assistir a algum filme na TV por cabo. O programa da noite ficaria para Diana decidir o que seria melhor; havia também outras opções que ele não estava conseguindo considerar naquele momento. _ Eu pego o presente e passo aí depois._ disse Diana já no fim da conversa. _ Obrigado, amor. _Mas posso demorar um pouco porque tenho de passar na casa dos meus pais pra fazer uma visitinha rápida; sabe como é. Ficou acertado daquele jeito. Depois do telefonema finalmente Ângelo conseguiu tomar seu banho e caiu na cama, mas não sem antes fechar as janelas do quarto e puxar as cortinas totalmente, intensificando a escuridão do quarto, a claridade certamente incomodaria. Não demorou muito para a mente dele simplesmente desligar; os fantasmas do sonho da madrugada passada, da face no espelho e da criatura amorfa pairando na garagem da namorada desapareceram momentaneamente. Àquela altura um pouco de sono genuíno seria revigorante. Mais não foi. * Os pais de Ângelo chegaram em casa trazendo consigo as compras em sacolas feitas de material reciclado que geralmente usavam para colocar os pacotes, vidros e todos os artigos que compravam no supermercado. Luis Roberto, o pai, tinha cinqüenta e oito anos, mas não aparentava a idade que tinha. Embora possuísse os cabelos grisalhos, não era calvo; ombros largos e um pouco acima do peso, o que lhe conferia uma barriguinha proeminente, mas que ainda estava dentro da circunferência aceitável segundo o seu médico. 202
Roberto lecionava há trinta e oito anos, dos quais vinte e três dedicados ao ensino superior numa mesma instituição particular; era sua vocação e não pretendia parar. Ana Maria, a mãe, entrou comentando com o marido algo sobre os preços estarem levemente mais elevados do que de costume; estavam casados há trinta e dois anos. Ela tinha cinqüenta anos e era uma pessoa de extrema vitalidade, e partilhava segundo ela, da mesma vocação do esposo. Nunca chegaram a saber se aquilo era bom ou ruim para eles. Quando entraram em casa ela já tinha mudado a conversa e estava falando sobre uma conhecida que tinham encontrado nos corredores do supermercado. _ Muito tempo mesmo que não há vejo_ disse ela enquanto o marido fechava a porta depois de colocar as bolsas ecológicas para dentro da sala. Miguel não estava mais na sala vendo televisão como quando eles tinha saído, foram para a cozinha e começaram a retirar os produtos das sacolas e colocá-los sobre a mesa a fim de organizar tudo e guardar. Miguel entrou no cômodo. _ Ângelo chegou ainda agora tomou um banho e foi dormir._Miguel informou. _Como assim?_ Roberto consultou o relógio de pulso._ Dormir a essa hora? Em pleno sábado? _Eu acho que ele não está se sentindo bem. Creio que é dor de cabeça. Roberto terminou de tirar parte das compras das sacolas e informou que ia descer para comprar o jornal e jogar um pouco de conversa fora com qualquer um que encontrasse; disse que voltava antes do almoço. Ana Maria foi até o quarto de Ângelo e empurrou a porta devagar, não queria fazer barulho. O quarto estava escuro e o 203
som do ventilador ligado era o único som presente; ela entrou e ascendeu a luz. O filho estava deitado e virado para a parede e parecia dormir tranquilamente. Ana Maria não quis acordá-lo, ao menos não naquele momento. Naquele exato instante um pensamento esquisito atravessou a mente dela; um pressentimento comum às mães. * Mônica caminhava apressadamente na rua onde o irmão morava, não olhava para os lados, e mantinha a respiração acelerada pelo esforço que estava fazendo para chegar o mais rápido possível. Enquanto ainda estava no ônibus tentou ligar várias vezes para Leonardo, mas não obteve resposta alguma. Ela tentou achar um meio termo entre as teorias que estava formulando na cabeça de forma que não demonstrasse o grau de ansiedade que estava sentindo em seu interior; Fausto podia de alguma forma ter roubado o telefone de Leonardo e se fosse esse o caso ela não queria chegar na casa e encontrando o irmão alarmá-lo desnecessariamente. Por outro lado ela não conseguia conceber como Fausto podia ter feito aquilo de uma forma sutil; sutileza não era o forte dele e de igual modo também não era o de Leonardo. A mente dela quase podia ver os dois brigando e recordou as ríspidas discussões que tiveram anteriormente antes da ruptura da amizade entre ele e Ricardo. Embora fosse uma pessoa muito doce para com os parentes mais chegados e os amigos mais íntimos, Leonardo mantinha um tom de desprezo para com todas as inimizades que fazia, sempre fora assim desde a época de criança. Às vezes ele podia chegar até mesmo à violência física e era preciso muito pouco para que isso acontecesse em se tratando de pessoas que ele não gostasse; tinha o pavio curto e este era o medo de Mônica. Fausto por outro lado era uma incógnita, ela não conhecia o ex-amante tão 204
bem quanto conhecia o irmão, mas o pouco que tinha conseguido extrair dele pelo pouco tempo que ficaram juntos foi suficiente para saber que existia uma maldade real dentro dele. Fausto era o contrário de Ricardo, mas no começo pareceu não querer transparecer, mesmo assim Mônica conseguiu perceber pela forma como ele se portava quando estavam juntos; havia algo de primitivo nele. Por algumas vezes Fausto se gabou de ter ajudado Ricardo com problemas incômodos que ele não conseguira resolver. Fausto dizia que tinha eliminado esses problemas, mas nunca falava exatamente do que se tratava. Depois de se separar dele, Mônica chegou a pensar que se tratava de pessoas; mas não sabia nem quantas, nem como e nem onde. Ricardo tampouco falava sobre isso, provavelmente nem tivesse percebido que Fausto assumira o controle de seu corpo nessas ocasiões. De certa forma aquilo quase explicava as alucinações e síndrome de perseguição que Ricardo tinha desenvolvido nos últimos meses que ficaram juntos; talvez ele fosse capaz de ver o que Fausto fazia com as pessoas, porém, mais como um sonho do que como realidade e podia ficar imaginando que outros quereriam vingar-se e até matá-lo pelos atos cometidos pelo seu outro “Eu”. Mônica parou de caminhar a alguns passos do muro da casa de Leonardo, as coisas estavam fazendo um bizarro sentido, mas não podia ser aquilo, era loucura demais. Logo saberia se, de fato, tinha motivos para ter medo ou se sua imaginação estava descontroladamente fora do eixo. Abriu o portão sem nem olhar se ele estava trancado, pois sabia que sempre ficava aberto e encostado, em seguida entrou no quintal da frente; tudo parecia estar normal; o Gol de Leonardo estava na garagem. A porta estava aparentemente fechada assim como a janela. Na caixa de correspondência ao lado da
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porta Mônica retirou os cinco envelopes de contas, pretendia entregá-los ao irmão. _ Leo!_ chamou. Com os envelopes de cobrança na mão ela tocou a campainha e em seguida bateu na porta com o nó dos dedos; aguardou um pouco, mas o irmão, se estava em casa, não deu nenhum sinal. _Léo, sou eu!_ chamou novamente. Ela repetiu o ritual mais uma vez e novamente não houve resposta alguma. Sacou o aparelho celular e tentou uma ligação pela “centésima” vez, mas o resultado foi o mesmo. Mônica deu a volta na casa pelo quintal rumo à porta dos fundos; tentava se convencer de que o irmão não estava em casa, mas a falta de comunicação com ele era o que mais a perturbava. Tinha que conseguir encontrá-lo; lembrou de Fausto no telefone dizendo que tinha ido fazer uma “visitinha social”. Naquele momento ouviu a voz dele: _Olá Mônica!_ disse o outro._ Finalmente encontrei você. Fausto estava encostado à parede nos fundos e segurava uma arma apontada para a mulher. * Quando viu a face de Mônica surgindo ao chegar no quintal dos fundos onde ele já a aguardava, Fausto sentiu que tudo daria certo. Um ou dois minutos antes, ele estava ali parado com a mochila nas costas e ainda pensando no poder atrativo que o besouro anômalo tinha exercido sobre ele, mas ouviu a voz dela chamar o irmão na porta da frente; sabia que ela viria até os fundos do terreno para ver se poderia entrar pela outra porta. Fausto estava com as chaves. Logo que ouviu a voz de Mônica ele sacou a arma e esperou, não demorou muito e ela estava diante dele com o semblante mais surpreso que já vira em uma pessoa. 206
_Olá Mônica! Ela tentou falar, mas engasgou tamanho foi o espanto por vê-lo parado ali. Em seguida tentou se recompor e falou: _Fausto!?_ Havia um misto de dúvida e surpresa. E aquela arma apontada em sua direção a deixava ainda mais nervosa. Ela se perguntava se o outro teria coragem de atirar. _ Pensei que você fosse demorar um pouco mais_ ele disse. Mônica ficou um tempo imaginando o que ia dizer, o silêncio foi constrangedor e embaraçoso. Finalmente ela perguntou: _Onde está meu irmão? Fausto não respondeu, ao invés disso fez um pequeno comentário: _ Pensei que você fosse vir acompanhada por alguém. _Onde está meu irmão, Fausto?_ repetiu ela. Ele continuava ignorando. Disse. _Sabe; planejei muitas coisas para você e eu, mas agora estou um pouco confuso, esperava que fosse diferente, como uma grande reunião familiar. _avançou na direção dela, dois passos. Mônica ia recuar, mas não quis demonstrar medo. Péssima escolha. _Como assim?! O que você quer dizer com isso?_ ela ainda olhava para a arma que ele mantinha erguida à altura do abdômen. _ Sabe como é; você, eu e Ricardo. Mas creio que isso não vai acontecer. _ele suspirou pesadamente._Ah! Se você soubesse as coisas que estão acontecendo comigo. A quantidade de coisas que descobri que posso fazer. Coisas fenomenais; coisas que nem mesmo compreendo ainda. Ela não entendeu e por isso só conseguiu repetir a pergunta que fizera antes: _ Fausto, cadê meu irmão? Ele permanecia impassível. Novamente não respondeu. 207
_ Você me impressionou vindo aqui sozinha. Foi muita coragem mesmo. Mas também foi muita burrice Antes que ela pudesse perguntar novamente pelo irmão; Fausto finalmente disse: _ Seu irmão não está aqui. _ E para aonde ele foi?_ Aquela pergunta foi a mais ingênua que ela já fizera na vida. E a resposta: _Ele foi para um lugar melhor._ Fausto deixou escapar um sorriso macabro quando pronunciou as palavras pausadamente, como que se deliciando com cada uma das sílabas. No primeiro momento Mônica não percebeu o que o conjunto apresentado em sua frente somado com a declaração recém proferia queria dizer. Ela levou alguns milésimos, com a mente trabalhando na velocidade máxima, para fazer a ligação de Fausto, mais a arma de fogo, mais casa vazia, igual, a irmão morto. Não pôde acreditar. _Você matou ele?_ Balbuciou com os olhos se enchendo de lágrimas aprisionadas. O sorriso de Fausto se tornou ainda mais largo com a “brilhante dedução” da mulher. _ Fiz um favor a todos vocês_ disse num claro tom de zombaria._ Vamos ser sinceros; ninguém gostava do seu irmão. Nem Ricardo, nem muito menos eu; e acho até que no fundo você também não o suportava. As lágrimas rolaram pela face dela, que perdeu a cor, Mônica parecia um fantasma de si mesma; ficou pálida. Seus lábios finos tremeram quando ela tentou falar algo. Não podia ser verdade que seu irmão estivesse morto. _Você matou ele._ ela repetiu como uma criança._Por quê? A felicidade no rosto de Fausto deu lugar a uma expressão soturna, foi quase como ver uma mutação facial se 208
transfigurando diante de seu rosto. Por um momento Mônica teve sérias dúvida de se ainda era Fausto que estava ali ou se alguma outra personalidade ainda mais perversa tinha brotado das profundezas daquela alma atormentada. Ele respondeu: _ Pra chamar sua atenção. E agora que já a consegui é hora de pararmos com a brincadeira e partirmos para o que realmente importa. Mônica chorava, mas ainda parecia não ter compreendido exatamente a gravidade do que tinha escutado da boca de Fausto, tampouco entendia o perigo que sua vida estava correndo a partir daquele momento. Ela olhava para Fausto, o corpo dele, e via Ricardo, afinal, tinha convivido muito mais com a personalidade mais amável dele, dessa forma sua mente se recusava a acreditar que ele pudesse ter feito tamanho mal com a mulher que dizia amar. Mas uma olhada mais atenta poderia revelar que Ricardo não era mais uma carta no baralho, talvez jamais voltasse à tona. Havia sombras dançando nos olhos de Fausto revelando uma violência aprisionada e em ebulição pronta para destruir sua prisão e escapar. A emoção e a confusão não permitiram que Mônica fizesse essa analise. Com a mão esquerda Fausto retirou do bolso da jaqueta o pequeno bibelô em forma de querubim e mostrou a ela. Continuou apontando a arma que segurava ainda mais firmemente com a mão direita. Esperava que a mulher não fosse suficientemente burra para tentar fugir, porque isso ia obrigá-lo a disparar contra ela, e ele o faria. Mas preferia que Mônica não fosse ferida a bala durante as primeiras sessões de tortura; um orifício causado pelo chumbo quente ia ser como uma torneira de sangue e Fausto não conseguiria fazer a ela tudo o que tinha planejado; ele queria causar mais dor do que jamais uma pessoa podia imaginar sofrer e um tiro diminuiria 209
drasticamente o tempo de resistência da mulher. Mas atiraria se fosse preciso; sem dó nem piedade. O bibelô era como um símbolo de uma época que embora não fizesse muito tempo que terminou, ela guardava com muito carinho na memória. Os primeiros meses de relacionamentos ocorreram como se vivessem num paraíso. Mônica amava aquele pequeno anjinho. _ Trouxe um presente para você._disse Fausto mostrando a pequena peça. O olhar magoado dela se acalentou levemente quando viu o anjo, mas tudo não passava de uma tortura psicológica. Fausto deixou o objeto cair propositalmente; o anjinho infantil mergulhou de encontro ao chão e ao se chocar com o solo se espatifou de uma forma grotesca virando um conjunto de cacos que jamais poderiam ser recuperados. Ela se assustou com aquilo mais do que o normal. _ É isso o que acontece com os anjos_ disse ele, continuando._ Eles caem. E o que sobra são só pedaços mortos; pó de estrelas. Aquilo não fez sentido algum para ela. Ainda chorava e pensava em Patrícia, Heloi e Ingrid. O medo de não vê-los mais estava ganhando volume dentro dela. Fausto tinha falado mais coisas que ela não compreendeu por não estar prestando atenção, mas ouviu muito bem o tilintar das chaves quando ele as retirou do bolso. Eram as chaves da casa de Leonardo. Ele lançou as chaves sobre Mônica e recuou um passo. _ Abra a porta devagar e entre_ ele disse, fazendo um movimento com a arma apontando na direção da porta. Mônica se abaixou para recuperar as chaves porque não teve presença de espírito suficiente para recolhê-las enquanto viajavam no ar. Em seguida, trêmula, colocou uma delas na fechadura que parecia mais velha e enferrujada do que 210
realmente era, girou. A porta se abriu com um estalo revelando do outro lado uma cozinha que parecia não ser visitada por nenhum ser humano há décadas. O ar dentro do cômodo estava viciado, as coisas estavam parcialmente desarrumadas, mas não muito, apenas alguns copos sujos na pia que continha também um prato e dois talheres; garfo e faca. No canto ao lado do fogão estavam algumas latas vazias de cerveja. Provavelmente Leonardo as estivesse juntando por algum motivo; ou para vender ou para dar a qualquer um dos catadores que rotineiramente passavam pela rua procurando latinhas, garrafas pet e outros itens de lixos recicláveis. Havia um cheiro forte também, mas Mônica não conseguia identificar o que podia ser. Fausto entrou logo atrás dela com a arma ainda apontada para as costas da mulher, fechou a porta, mas deixou as chaves na fechadura. As lágrimas não corriam mais pela face dela enquanto averiguava todo o lugar. _ Não parece muito bonito, não é?_ perguntou Fausto claramente zombando. Mônica não respondeu. _Anda! Vamos até a sala. Mônica caminhou sem dizer palavra alguma até chegar à sala onde as coisas também estavam parcialmente fora do lugar; parecia que alguém tinha revirado a casa. A primeira coisa que chamou a atenção dela foi que a televisão tinha um buraco de bala bem no centro. Quando viu aquilo ela se voltou para Fausto que a observava curioso. O olhar dela correu da televisão quebrada para a arma na mão do outro e depois novamente para a televisão. _ Foi aqui que aconteceu?_ perguntou com a voz novamente embargada, mas lutando para manter o controle. 211
Fausto apontou com a arma para o sofá. Mônica pode ver um pouco da mancha de sangue praticamente seco que escorria para o chão. Ela chorou novamente; não foi capaz de conter. Aquilo aquecia o coração de Fausto. E sem que ele mesmo soubesse, também alimentava algo muito mais perverso que os rodeava incógnito esperando a hora de se mostrar. _ Por que está fazendo isso comigo?_ perguntou aos prantos. _ Tenho muitos motivos, mas não espero que alguém me entenda. Fausto se aproximou dela novamente; queria ver cada pequeno detalhe da expressão de dor que Mônica demonstrava; o olhar choroso e atormentado, a face retorcida e transtornada pela dor que a alma dela emanava pela perda de um ente querido. Aquilo era apenas uma prévia do que ele ainda faria. _ Por favor! Não fiz nada com você para merecer isso!_ O choro era compulsivo. A dor era como um alimento que Fausto quase podia saborear; era como se seu corpo pudesse absorver aquilo, era uma sensação boa e que ele pretendia aumentar por meio da tortura que ainda ia submetê-la. Aquilo era só o começo. Mônica se abaixou, não conseguia mais se manter de pé, seu abdômen doía por causa dos soluços em meio a todo o choro; a visão estava embaçada pelas lágrimas que brotavam descontroladas. O medo destruía cada um dos pensamentos que ousavam aparecer na mente dela, exceto um; a certeza de que não ia mais sair daquela casa com vida. _ Levanta Mônica; é hora de começar. Ela se virou para ele, mesmo abaixada e com a visão parcialmente atrapalhada pelas lágrimas, sabia que aquela mutação medonha tinha ocorrido novamente; o rosto de Fausto estava um pouco mais sombrio do que antes. Era quase como se ele estivesse passando fisicamente por uma mudança 212
estranha. Mônica tentou se controlar, mas era tão difícil, limpou os olhos molhados com as costas das mãos e focalizou o olhar penetrante do outro a observando; não era o olhar de Ricardo, estava muito longe de ser; no início Ricardo tinha um olhar amoroso e concentrado, mas com o tempo foi ficando cada vez mais distante, mas o que ela via ali naquele momento era um olhar pernicioso, corrupto, malévolo; era quase como se houvesse um outro ser muito mais maldoso escondido dentro de Fausto, olhando por detrás e através dos olhos dele como se o rosto não fosse mais do que uma máscara feita de pele e ossos humanos. Por um momento os olhos de Fausto dançaram freneticamente nas órbitas e aquilo foi tão pouco humano que assustou ainda mais a mulher. _ Levanta logo!_ vociferou. A frase foi acompanhada por um chute que acertou o braço dela. Assustada mais do que já estava com tudo aquilo, Mônica perdeu o equilíbrio e mesmo abaixada foi capaz de cair sentindo a dor no braço; engatinhou como um animal de quatro patas até o sofá e finalmente começou a se erguer. Fausto finalmente baixou a arma e a colocou presa ao cós da calça, cobrindo-a com a camisa; não precisava mais dela para deixar clara a relação de autoridade que tinha sobre sua vítima; a mulher estava mentalmente submissa pela fraqueza provocada por tudo o que tinha ocorrido desde que chegou àquela casa. Ela descobriu que o irmão estava morto e que ela era a próxima. Quando Mônica se levantou do chão, Fausto estava tão perto que seus corpos quase se encostaram. Ele a segurou tão firmemente pelos braços que a dor penetrou nos ossos dos cotovelos Ela ia deixar escapar um gemido de dor, mas Fausto a beijou. Ela resistiu, mas a força dele era ainda maior do que ela se 213
lembrava, moveu a cabeça tentando fugir dele e tentou se debater. Fausto a jogou sobre o sofá manchado com o sangue de Leonardo e o solavanco foi tão grande que as costas de Mônica doeram mesmo batendo contra a superfície acolchoada. _ Vamos nos divertir bastante aqui minha querida e não há ninguém que possa ajudá-la. Ele avançou sobre ela; Mônica pensou que o interesse dele fosse de possuí-la; lutaria o máximo que pudesse e não cederia; não ia se entregar para aquele demônio. Embora Fausto tivesse o corpo de Ricardo, não possuíam a mesma alma, tampouco o mesmo espírito. Mônica já preparava suas pernas para lutar contra o provável invasor, mas foi surpreendida com um soco tão forte no queixo que ela ouviu o estalar do maxilar forçando-se contra a articulação da boca. No mesmo momento ficou tonta viu luzes girando e apagou. Fausto não queria violentá-la.
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11 _Mônica!_ Ângelo despertou pronunciando aquele nome de forma assustada. O nome ribombava dentro de sua mente. Ele acordou com a cabeça estourando de dor. Sentou na cama com as mãos nas têmporas. Sabia que o que estava sentindo era tão sério quanto às outras sensações que o levaram ao parque de diversões e a salvar o homem que bateu com o carro na estrada. Ele se lembrava muito bem daquela mulher, prima de Patrícia; costumava estar nas festas e encontros na casa da família, se ele se lembrava bem, ela morava na casa dos fundos. Heloi chegou a comentar que ela estava morando ali porque tinha terminado um relacionamento complicado e Patrícia tinha oferecido ajuda. Era uma moça atraente, alegre e aparentemente feliz. Mas ele tinha certeza de que aquela mulher estava correndo sério risco de vida, sabia que de alguma forma ela estaria morta ao anoitecer. A dor da cabeça era tão forte que se irradiava para os olhos dele, Ângelo tentou pegar o telefone celular, mas tudo o que conseguiu foi derrubar algumas coisas do quarto, as cortinas estavam puxadas tapando qualquer claridade que pudesse entrar pela janela. Ficou de pé e abriu as cortinas, havia pouca claridade lá fora, a tarde estava começando a esmaecer; e nuvens carregadas ganhavam volume no céu. Um vento modesto fazia as copas das árvores à vista farfalharem. A chuva não estava longe de cair.
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“A mulher vai morrer”_ ele ouviu. Era aquela voz novamente, mas não estava verdadeiramente audível, mas sim dentro de sua cabeça. Ângelo não entendia agora, como também não entendera das outras vezes, mas sabia que tinha de encontrar Mônica o mais rápido possível e ajudá-la de alguma forma. Não imaginava como. O que poderia estar acontecendo, será que ela sofreria um acidente? Será que estava na estrada também? Seria um assalto? As possibilidades eram incontáveis, as pessoas estão sujeitas diariamente a uma gama gigantesca de possibilidades de que algo ruim aconteça. Tinha de localizá-la e para isso ligaria para Patrícia. Finalmente pegou o telefone e discou tão rápido que pensou ter discado o número errado, foi preciso perder mais um segundo verificando, mas no visor do aparelho já tinha aparecido o nome: Patrícia. Aguardou dois toques e a voz masculina sorridente atendeu do outro lado. _Oi Ângelo. _Era Heloi no telefone. _Heloi_ começou Ângelo_ preciso que você me ouça bem, não tenho muito tempo para explicar é questão de vida ou morte. Havia um fundo musical no ambiente onde Heloi estava, Ângelo julgou que ele estava escutando música ou podia estar vendo algum filme na televisão com o som alto. _ O que foi que aconteceu?_ O tom na voz de Heloi mudou para serio instantaneamente. _ Aquela mulher que mora com vocês, Mônica, ela está em casa agora. _ Por quê? _ Preciso saber e tem de ser agora, ela está em perigo.
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_Acho que ela está lá na casa dos fundos, vou perguntar à Patrícia, espere um momento. O tempo pareceu uma eternidade e quando o outro voltou para dar a resposta Ângelo ouvia a voz de Patrícia ao fundo perguntando o que estava acontecendo. Heloi disse à esposa que não sabia. _ Ela não está em casa_ retomou Heloi._ Saiu faz horas, mas disse que vai voltar para viajar conosco essa noite. _ Aonde ela foi?_ Ângelo deixava transparecer a gravidade do momento na voz. Houve mais um momento de consulta do outro lado, ele ouviu Patrícia dizer: “Na casa do Leonardo”. A voz de Heloi retornou: _ Ela foi à casa do irmão. Ângelo se lembrava do irmão dela, era um cara de bom papo, mas um pouco espaçoso, Patrícia e Heloi não morriam de amores por ele, sobretudo quando ele aparecia na casa deles sem avisar, era o tipo de cara que pede as coisas emprestadas e finge que se esquece de devolver. Segundo Heloi, Leonardo estava devendo dinheiro a ele e a várias financeiras, não conseguia se estabilizar na vida, mas muito por causa de seus vícios variados. Porém não cria que o próprio irmão pudesse representar perigo para Mônica; tinha de ser outra coisa. Cada minuto contava. _ Escute_ Ângelo voltou a falar_ preciso que você me ouça com muita atenção, não tenho tempo para explicar em detalhes, mas acho que Mônica vai morrer. Ele ouviu um som estranho do outro lado. Mas continuou falando.
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Talvez não devesse iniciar o assunto daquela forma, mas já tinha feito e o efeito seria criar uma grande confusão ao invés de deixá-los mais alerta. Já era tarde. _ Estou com o pressentimento de que algo muito ruim vai acontecer e que se não agirmos em tempo ela vai morrer; sei que parece estranho e que talvez vocês não acreditem, mas foi assim que descobri que Ingrid ia sofrer o acidente no parque. Preciso saber como faço para chegar à casa de Leonardo. O tempo está contra nós. Ele percebeu que o barulho que tinha escutado anteriormente era que o telefone estava no viva voz. Patrícia perguntou: _ O que vai acontecer com ela. _ Não sei; por favor, só me digam como chegar lá. Patrícia e o marido explicaram da forma mais rápida que conseguiram, não era difícil, mas naquelas circunstâncias não conseguiram dar atenção a vários detalhes e estavam um atropelando o outro. Ângelo teve de praticamente interpretar o que foi dito, mas pôde pegar as partes mais importantes. Já sabia como chegar ao lugar onde ela estava. _ O que está acontecendo afinal_ perguntou Patrícia. _Não sei, mas vou descobrir. Eu ligo depois. Ângelo desligou o telefone sem nem parar para pensar que tinha feito um grande desserviço àquela família. A partir daquele momento eles iam ficar confusos e transtornados, quereriam descobrir o que estava acontecendo e iam acabar se envolvendo terrivelmente nos acontecimentos violentos cujas circunstâncias começavam a conspirar para criar. * Quando desligou o telefone, Heloi olhava para a esposa sem saber o que dizer; não entenderam o motivo daquela ligação, mas estavam completamente alarmados. Patrícia tomou o 218
aparelho das mãos do marido e discou imediatamente para a prima. Um, dois, três... cinco... dez toques e ninguém atendia. Desistiu do número celular e passou a discar o número residencial da casa de Leonardo. O resultado foi o mesmo; ninguém atendeu. _Por que ninguém atende?_embora fosse uma pergunta, soou como um comentário também. _ Fique calma “Paty”, vou pegar a chave do carro e vamos até lá pra ver o que está acontecendo. _ Ângelo disse que ela estava correndo perigo. Como ele pode saber disso? _ Não deve ser nada tão grave assim_ Heloi estava tentando manter o controle da situação e como a esposa já parecia estar emocionalmente abalada; percebeu que ele teria de manter a calma e a razão. _ O que vamos fazer?_ Patrícia ainda mantinha o telefone junto da orelha esperando que alguém atendesse do outro lado da linha. _Fale com a dona Rosa para dar uma olhada na Ingrid enquanto vamos até lá na casa do Leonardo; diga que é apenas por meia-hora. Dona Rosa era a vizinha mais próxima da família; uma viúva de sessenta anos que morava na casa ao lado e gostava muito de fazer bolos e outros quitutes. De fato, toda aquela vizinhança era composta em sua maioria por pessoas mais idosas que moravam em casas grandes com quintais amplos e relativamente afastadas entra si, aquele foi um dos atrativos que fez com que Patrícia e o marido escolhessem morar lá. A vizinha Rosa era a mais próxima da família e já tinha cuidado da filha deles por duas ocasiões e Ingrid gostava muito daquela senhora também; viam-se quase todos os dias. Era uma pessoa de muita confiança. Tivera dois filhos, um casal, ambos 219
já casados e com suas respectivas famílias; mas nenhum deles visitava a mãe já fazia anos. Tinham-na abandonado e ela sabia disso. Dona Rosa sobrevivia de uma pensão militar deixada pelo marido e passava os dias cuidando das flores de seu pequeno jardim na frente da casa, ou lendo sentada numa das cadeiras de seu quintal ou dentro do próprio lar. Adorava e tinha muito jeito com crianças, mas nunca vira os netos. Enquanto Patrícia ia até a casa ao lado levando a pequena Ingrid, Heloi foi ao quarto e pegou a chave do carro, correu para a garagem e já estava tirando o veículo quando a esposa voltou apressadamente. Ela entrou no automóvel enquanto o carro era manobrado, não queria perder tempo. Foram na direção da casa de Leonardo, não demorava muito quando a distância era percorrida de carro; o transporte público, ônibus, costumava dar algumas voltas, parava para embarque e desembarque de passageiros e ia por vias congestionadas; isso, dependendo do horário, transformava um trajeto relativamente curto em uma verdadeira saga. Com o carro nada daquilo seria um problema real, Heloi conhecia muito bem as vias principais tal como as secundárias, conhecia também os caminhos alternativos e tomaria um atalho para diminuir ainda mais o tempo do percurso. Enquanto isso Patrícia continuava tentando contato telefônico, mas sem sucesso. _ Ninguém atende._ Ela disse como num desabafo. Estava com o coração apertado. _Continue tentando._ Helio girava à esquerda numa rua sem nenhum movimento; em seguida engatou mais uma marcha no câmbio e pisou fundo no acelerador. O motor 1.8 do Chevrolet Meriva respondeu prontamente, os ocupantes do veículo 220
sentiram uma leve pressão que os empurrava de encontro aos bancos onde estavam sentados. Era provocada pela velocidade que o carro ganhava a cada segundo. Não estavam longe. _ Você acha que é algo sério?_Patrícia fazia as perguntas sem tirar os olhos da pequena tela do aparelho celular e os dedos do teclado. Heloi procurava ser sempre muito cuidadoso em momentos de crise principalmente quando a esposa estava envolvida; ele ainda se lembrava do dia em que a filha foi arremessada para o lado de fora daquele brinquedo no parque de diversões, ainda lembrava de vê-la se precipitando em queda livre, presa apenas pelo cinto. E lembrava também da reação de Patrícia que acompanhou tudo de longe; a esposa dele desmaiou imediatamente. Embora Patrícia fosse uma das mulheres mais fortes que ele conhecia no tocante a enfrentar diversidades de cunho cotidiano como problemas financeiros, domésticos ou de saúde; por outro lado, estava demonstrando uma certa instabilidade para lidar com momentos de crise mais agudas, mesmo que tais crises não passassem de boatos ou não se confirmassem. Aquilo vinha ocorrendo desde o episódio no parque; Heloi desconfiava que o choque emocional que ela recebeu naquela tarde foi tamanho que abriu alguma fenda dentro da esposa e ela estava tendo muita dificuldade de lidar com algumas situações desde então. Mas Patrícia fazia muita força para esconder aquilo não só do esposo como também da prima e dos colegas de trabalho e demais conhecidos. Por várias vezes durante as madrugadas ela teve crises de choro compulsivo, muito embora não demonstrasse nada durante os dias, ela pensava que o marido estava dormindo e não via, Heloi tentou uma aproximação sutil, por várias vezes, para saber exatamente do que se tratava, mas Patrícia tinha erguido 221
uma parede que protegia sua ferida, não aceitou nem mesmo a idéia que o esposo lhe deu, para procurar um analista e tentar um tratamento por algum tempo. Com a pouca informação que ele havia extraído dela em dias de menor fragilidade soube que a tendência era uma gradativa melhora, mas o tempo seria fundamental, desde que nada mais de anormal atingisse aquela família. Heloi estava procurando dar todo o suporte que achava bom para a esposa, festas com amigos e parentes mais íntimos, viagens constantes com a família para lugares mais calmos e passeios diversos. Tudo estava custando uma verdadeira fortuna, mas valia cada centavo. Procurava qualificar ao máximo o tempo que passava com sua esposa e filha. Mas agora uma nova possibilidade de tragédia estava tentando se materializar na vida deles e isso podia significar, além do óbvio, uma grande quantidade de seqüelas em Patrícia, caso se confirmasse o que Ângelo tinha dito ao telefone. _ Como Ângelo pode saber que Mônica está correndo perigo?_ ela perguntou. Já estava desistindo de tentar o contato via telefone. Percebendo que o estado de espírito dela estava cada vez mais alterado o marido disse: _ Procure se acalmar, logo vamos saber do que se trata. Faltavam apenas duas quadras para chegar na casa de Leonardo. _ Não posso me acalmar; e se realmente estiver acontecendo alguma coisa lá. _ Não vai estar. _ Então por que ela não atende o telefone? Heloi não teve resposta para dar; apenas desejava que Ângelo estivesse completamente equivocado. Uma quadra de distância. 222
Patrícia jogou o telefone para o banco de trás quando avistou a casa ao longe. _ Ali!_ disse ela_ rápido, pára o carro! Ainda não tinha estacionado quando ela abriu a porta, destravou o cinto de segurança e começou a sair. _ Espere um momento_ falou Heloi. Ela já estava caminhando na calçada, parou bem em frente ao portão de entrada e aguardou o marido. Ele por sua vez desligou o motor do carro e acionou o alarme, em seguida saiu, mas não sem antes recolher o telefone da esposa que ela tinha jogado no banco de trás do veículo; na correria para sair de casa ele tinha esquecido o seu. Foi se juntar a ela na frente do portão. _ Aparentemente parece que está tudo calmo aqui._ Ela disse olhando para dentro do terreno_ A casa está fechada. Heloi concordou com a cabeça. _ Não parece ter ninguém em casa._ falou. Patrícia emendou: _ Bem, se Mônica esteve aqui e não encontrou Leonardo, ela pode ter voltado para casa e algo pode ter acontecido no caminho. _Quem sabe._ suspirou o marido. _Vamos dar uma olhada lá dentro. Heloi empurrou o portão que abriu sem ruído ou resistência alguma; ambos entraram no terreno e caminharam em direção a porta da frente. Olharam para o lado onde costumeiramente o dono da casa deixava seu carro, Gol, estacionado, mas não havia carro lá, aquilo indicava que Leonardo não estava em casa ou tinha vendido o veículo. Fazia anos que eles não iam até aquele lugar. Ele experimentou a maçaneta da porta frontal, mas estava trancada. 223
_Está fechada._ disse. _Quem sabe em que lugar Leonardo se meteu dessa vez._ Observou Patrícia. O carro não está na garagem. _ Aonde ela pode ter ido. _Não faço idéia. Ela se recordou de que havia uma porta nos fundos. _ Venha, vamos dar a volta. Patrícia seguiu na frente sem se preocupar se estava correndo algum perigo e Heloi acompanhou de muito perto. Contornaram a casa e chegando ao quintal dos fundos, perceberam que a porta estava aberta e mantinha as chaves na fechadura do lado de fora. Olharam-se com desconfiança e pensaram a mesma coisa. Não chamariam pelo dono da casa, tampouco por Mônica porque se estivesse acontecendo algo dentro do lugar, não iam querer alertar ninguém. _Liga pra polícia. Heloi discou os três números, mas logo percebeu que a ligação não se completaria, pois o aparelho estava mostrando baixa carga de bateria e nenhum sinal. _ Que estranho! _O quê? _ O telefone está sem carga e sem sinal. _ Como assim? Ele estava totalmente carregado enquanto estávamos no carro, não pode ter perdido toda a carga de uma hora pra outra. Heloi concordava, mas não tinha o que fazer. Teve uma péssima idéia. _ Você me espera aqui; eu vou dar uma olhada rápida dentro da casa e volto já. _ Mas se tiver um bandido ou algo assim aí dentro?_ Patrícia logo percebeu que não era uma boa entrar sozinho e despreparado. 224
_ Só vou dar uma olhada, fique tranqüila._ Heloi queria poupar a esposa de qualquer impacto mais forte, o que não devia acontecer ali porque não estavam ouvindo som algum saindo de dentro da casa. Ele entregou o telefone para ela e entrou vagarosamente. _Fique calma_ insistiu. * Mônica acordou desnorteada, estava deitada na cama do quarto do irmão, havia um cheiro muito forte ali, um cheiro incômodo e nauseante. A cabeça dela doía intensamente e seu maxilar inferior estalava quando ela abria a boca. Sentia um gosto horroroso e amargo na língua, mas sabia que aquilo era efeito da tontura que dançava em sua cabeça. Tentou se mover, mas logo percebeu que estava amarrada com grossas tiras de lençol nos pulsos e nos tornozelos. Não eram tiras simples; Fausto havia cortado pedaços separados de um dos lençóis da casa e trançado três pedaços para cada um dos membros aprisionados, era quase como estar presa por correntes de pano muito resistentes. Cada membro estava firmemente amarrado a um dos quatro pés da cama, os braços dela estavam em posição de dez horas para o braço direito e duas horas para o braço esquerdo e as pernas foram presas ligeiramente abertas na posição de sete horas à perna direita e cinco horas à perna esquerda. Ela olhou ao redor, mas não viu Fausto em parte alguma do quarto que não era tão grande, só tinha espaço para a cama, o guardaroupas e umas poucas tralhas do irmão. Certamente Fausto a tinha amarrado enquanto estava desacordada e pelo visto tinha dado bastante trabalho confeccionar aquelas tranças de pano. Cada amarra estava tão apertada que Mônica sabia que em pouco tempo sentiria formigamento nos membros, estavam funcionando como torniquetes improvisados. Ela tentou se 225
mover, mas seu corpo fora tão bem preso que estava retesado e não havia possibilidade de movimentação, nem de um milímetro sequer. “Onde estaria Fausto afinal?”_ pensou. Os braços e pernas estavam ficando dormentes, ela queria se mover, mas a impossibilidade lhe causava uma agonia crescente. Ouviu alguns barulhos muito baixos vindo do outro cômodo; Fausto estava tentando não ser ouvido enquanto fazia alguma coisa lá por dentro, mas os sons vinham aumentando gradativamente e vindo em direção do quarto. Ele podia ter ido buscar ferramentas ou utensílios para torturá-la, poderia usar facas, garfos e sabe Deus o que mais. Mônica fez mais força para se soltar das amarras, mas o resultado foi o mesmo, os nós eram muito bem feitos e não cediam de forma nenhuma; poderiam facilmente ter sidos confeccionados por um velho marinheiro especialista no assunto tamanha a habilidade utilizada neles. Havia uma película fina de suor se formando rapidamente sobre a testa da mulher enquanto ela se debatia contra sua prisão de pano, espuma e madeira; a tensão estava aumentando dentro dela e a lembrança de que Fausto tinha matado o irmão emergiu repentinamente fazendo com que seus olhos se enchessem de lágrimas novamente, porém, ela resistiu, fez uma força brutal para não cair outra vez em choro, porque aquilo certamente roubaria o pouco de energia que ainda tinha para continuar lutando por sua própria vida. Continuou movendo freneticamente os pulsos e os tornozelos na esperança de que as amarras e os nós se afrouxassem, mas tudo o que estava conseguindo era esfolar a pele naqueles lugares. Os sons que vinham lentamente em direção ao quarto se tornaram mais claros, Fausto estava perto, ela pensou em fingir 226
que estava desacordada para tentar ganhar tempo, mas teve medo de que o outro a maltratasse mesmo assim. Fausto não era uma pessoa comum; era um homem desalmado e sem coração. Ele colocou a cabeça no limiar da porta e não foi o semblante de Fausto que Mônica viu, o alívio foi tão grande que o choro venceu a barreira erguida por ela; começou a chorar logo que viu o rosto de Heloi. _ Meu Deus! Mônica!_ Ele ficou boquiaberto logo que a viu amarrada na cama daquele jeito. Mônica soluçava em seu choro e tentava pronunciar o nome do amigo, mas não conseguia. _Quem fez isso com você?_ Heloi correu até ela e tentou desesperadamente desamarrar os braços e pernas da mulher, mas logo percebeu que com as mãos nuas não seria possível; teria de encontrar algum objeto cortante como uma faca ou uma tesoura. _ Se acalme, vou buscar algo para cortar essas amarras._ ele pensou em chamar a esposa, mas desistiu, não queria que ela visse a prima naquele estado deplorável amarrada como um animal e com uma equimose vermelha na bochecha e queixo. Numa primeira vista, parecia que Mônica estava pronta para uma sessão de masoquismo ou sadismo, Heloi não sabia a diferença. Uma coisa era certa, quem quer que tivesse feito aquilo tinha a intenção de machucá-la bastante, provavelmente por meio de tortura. E só um nome ocorria a ele naquele momento. Fausto, o ex dela. Obviamente que Heloi não sabia absolutamente nada sobre a dupla personalidade de Ricardo-Fausto, portanto também, não tinha a menor noção do nível de maldade que o seu inimigo possuía dentro de si; tampouco podia imaginar que ele mesmo assim como Patrícia e até sua pequena filha também eram alvos 227
daquele monstro e que em poucos minutos se veriam frente a frente. Ele se virou para deixar o quarto para procurar algo que pudesse ser usado a fim de cortar as cordas de pano, foi até a cozinha e encontrou uma faca que não parecia muito afiada, mas devia servir. Voltou para o quarto e com um pouco de esforço cortou cada uma das amarras que mantinha a mulher imobilizada sobre a cama. Minutos depois Patrícia viu ambos saindo pela porta dos fundos, ela estava com medo e ainda não era possível nenhum contato telefônico. Heloi saiu segurando Mônica que mantinha o braço ao redor do pescoço do outro e caminhava com certa dificuldade. Ao ver a cena Patrícia se sobressaltou: _ O que aconteceu?_perguntou ela. Heloi saiu olhando para os lados como se temesse encontrar o homem que a tinha amarrado. Ele disse: _ Conversamos no carro. Vamos sair rápido daqui e ir para casa. _ Mas Mônica está muito ferida, precisa de atendimento médico. Mônica se manifestou a respeito: _ Não! Nada de médicos; ainda não. Primeiro preciso contar algumas coisas a vocês. Já estavam no quintal andando com certa dificuldade, Heloi não queria forçar a outra a andar mais rápido porque tinha medo de que as pernas dela estivessem muito machucadas. Pediu ajuda à esposa. _ Me dê uma mão aqui Paty. A prima passou o outro braço de Mônica em volta de seu próprio pescoço e os três caminharam com maior facilidade até a parte frontal da casa. Mônica não chorava mais, mas seu 228
rosto ainda estava molhado e os olhos demonstravam o avermelhado do choro compulsivo. _ O que houve com seu rosto?_ Patrícia perguntou se referindo a mancha vermelha na bochecha e queixo da prima. _ Fui agredida por aquele monstro. _ Fausto._A prima e o marido pronunciaram o nome em uníssono. Mônica tratou de esclarecer. _ Fausto. Nenhum dos outros dois sabia quem era Fausto e não tiveram tempo de perguntar. Quando estavam chegando ao portão viram um carro parando junto ao acostamento bem na frente da casa, logo atrás do carro de Heloi, e de dentro do veículo um rosto conhecido surgiu. * Descendo do carro o mais rápido que pôde, Ângelo avistou os três amigos caminhando de modo lento, os pais de Ingrid servindo de apoio para a mulher que parecia bastante machucada. Ele correu até eles e percebeu que a face deles se iluminou ao vê-lo. Ângelo tomou o lugar de Patrícia para ajudar a levar a outra até o carro. _ O que aconteceu?_ ele perguntou. Heloi relatou o que tinha encontrado quando entrou na casa. _ E não havia mais ninguém lá? _ Não. Só ela. Ângelo temia que não fosse rápido o suficiente para salvar a mulher e temia também que avisar aos parentes dela tivesse sido um erro, mas se convenceu de que foi justamente aquele aviso que permitiu que os outros a encontrassem antes dele. Talvez ele não tivesse chegado a tempo. No meio do caminho ainda tinha ligado para Diana que estava se dirigindo para a 229
casa dos pais de Ingrid para buscar o tal presente; Ângelo pediu que a namorada ficasse lá esperando por ele, mas agora que via que estavam todos na casa de Leonardo imaginou que Diana fosse voltar para a casa dela. Melhor assim. Colocaram Mônica sentada no banco de trás do carro de Heloi; ela estava fraca pela quantidade de esforço que fez para se livrar das cordas de pano e suspirou longamente logo que se recostou no banco. Seus pulsos e tornozelos estavam parcialmente esfolados, mostrando marcas vermelhas intensas e pele machucada. _Vamos levá-la ao hospital._ Falou Ângelo. _Não. Ela disse que está bem, só um pouco cansada. Vamos pra casa. Ângelo não entendeu o motivo de levarem-na para casa e não ao hospital, mesmo que Mônica estivesse bem como eles afirmavam, deveria passar pelas mãos de um médico que constatasse sua saúde. _Então vou acompanhar vocês até lá._ ele disse. _Ótimo. Assim você nos diz como é que sabia que minha prima estava correndo perigo de vida. Aquilo não era nada bom; Ângelo já tinha sofrido bastante contando seu segredo para Diana e não pretendia revelar para mais ninguém, mas por outro lado como ia explicar o fato de saber sobre a iminência de um perigo na vida de outras pessoas. Não lhe restavam muitas opções a não ser falar a verdade e torcer para que os outros acreditassem e entendessem. Heloi, Patrícia e Mônica seguiram no veículo da frente rumo a casa deles, Ângelo foi com seu próprio carro seguindo-os de perto. Novamente não usaram as vias principais, mais movimentadas, retornaram andando mais lentamente do que quando tinham vindo para o resgate. 230
A cabeça já não doía tanto, mas ainda havia um leve desconforto pulsante; Ângelo ainda não tinha certeza se o perigo que rondava aquela mulher tinha realmente sido dissipado. Tudo parecia indicar que sim, afinal ela estava segura com seus parentes no carro da frente e logo estaria em casa, não tinha do que se preocupar a menos que suas sensações dissessem respeito a um acidente doméstico. O que não era o caso. Aquela certeza lhe dizia que o golpe que recairia sobre Mônica só tinha passado à frente para quando retornar, causar um estrago muito maior. Talvez Mônica não fosse o alvo e sim uma isca. Ele se endireitou atrás do volante. Enquanto dirigia Ângelo olhava atentamente para o carro à frente onde seus amigos estavam, permanecia alerta para o caso de que algo fora do comum acontecesse, não sabia o que podia ser, mas sabia que ia acontecer. Lembrou do acidente na estrada, da força da batida do carro contra o poste de iluminação e de como as coisas praticamente tinham se arrumado quase como numa conspiração astral para tirar a vida do motorista. E a voz? Aquela voz alta e forte como um trovão. O que significava? Ele não tinha as respostas que procurava, mas algo lhe dizia que logo teria. Podia estar ficando totalmente paranóico, mas preferia ser paranóico porque por algum motivo ele sabia que não era um acidente doméstico que ameaçava a vida de Mônica, nem mesmo era um acidente como aconteceu com Ingrid; Ângelo sabia que a vida de Mônica corria perigo, mas era algo diferente, um mal na forma humana. _Estou ficando completamente louco._ Disse para si mesmo. E continuou._ O que estou fazendo? Por que estou dando ouvidos a essas sensações e vozes interiores, tudo isso é loucura. 231
O carro da frente parou em um sinal e ele parou o seu logo atrás, subiu o vidro parcialmente escurecido de seu veículo para que as pessoas na rua não o vissem conversando consigo mesmo e não pensassem que ele era louco. Ninguém estava prestando atenção nele, as pessoas estavam ocupadas demais cuidando de suas próprias vidas e não tinham tempo para notar um homem falando sozinho dentro do carro, mas mesmo assim ele subiu o vidro da janela, se isolando do mundo lá fora. Os sons do exterior foram parcialmente impedidos de penetrar na cabine do carro e Ângelo podia ficar mais sossegado com seus pensamentos. O sinal abriu rapidamente. Estavam muito perto da casa deles. _ Estou perdendo o controle; tenho sonhos estranhos visões em espelhos e garagens e essas sensações que não me deixam. Talvez não haja nada ameaçando a vida dessa mulher_ tentou acreditar em suas próprias declarações, mas não era assim tão fácil_ então como é que ela foi parar naquela casa e amarrada? Ele sabia que fechar os olhos para as evidências não ia adiantar, tinha que aceitar e continuar. Lembrou outra vez das palavras do estranho no sonho que teve na casa de Diana. No sonho o estranho falou que Ângelo estava sendo procurado por um assassino que tentava matar uma mulher e que esse assassino nem mesmo sabia, mas estava servindo a algo chamado caos. As coisas fizeram um mórbido sentido naquele instante; Mônica era a mulher. A mulher cujos gritos de agonia o atormentaram repetidas vezes em sonhos que tivera seguidamente, mas que ele não conseguia salvar. E o que quer que estivesse atrás dela, estava também atrás dele e talvez nem o soubesse. Tudo aquilo não era coincidência, existia um sentido regendo todos aqueles acontecimentos; ele pensou que algo ou alguma coisa estava movendo todos eles como 232
pequenas peças num tabuleiro de xadrez, mas com que propósito? O carro de Heloi parou na frente da casa deles, havia mais um carro lá e era o veículo de Diana; ela estava encostada ao automóvel e esperava pacientemente, não tinha voltado para casa como Ângelo inicialmente supunha. * Os três carros estavam parados um atrás do outro bem na frente da casa dos parentes de Mônica, e praticamente todas as pessoas que ele tinha visto naquela maldita foto estavam ali com ela. Os dois homens estavam-na ajudando a caminhar; um deles era aquele que também possuía algo especial e as mulheres observavam atentamente, uma delas abriu o portão para que todos entrassem no quintal da casa. Nenhum deles percebeu quando o Volkswagen gol passou pela rua bem em frente da casa e numa velocidade extremamente reduzida; tampouco notaram que o único ocupante do carro os tinha seguido sorrateiramente desde a casa de Leonardo e que agora conhecia o lugar onde Mônica se escondera por todo aquele tempo. Fausto tinha amarrado Mônica e em seguida teve a sensação de que alguém se aproximava; saiu da casa e quando estava quase no portão olhou o carro de Leonardo na garagem improvisada. Voltou para dentro do imóvel e revirou o quarto até encontrar a chave do veículo, tirou o carro e ficou dentro dele estacionado a uma distância que julgou segura, mas de onde podia ter uma boa visão da casa. De lá ele viu o primeiro automóvel chegar e duas pessoas saírem de dentro dele, um homem e uma mulher, entraram no quintal depois de uma parada rápida no portão. Fausto imaginou quanto tempo levariam para retirar Mônica da cama; não demorou muito, eles foram bem rápidos. Será que 233
achariam o corpo de Leonardo? Se acontecesse seria dolorosamente saboroso ver o sofrimento no rosto de cada um deles, mas eles provavelmente não procuraram por Leonardo, seus semblantes ao sair para a rua era de alívio por escapar daquela armadilha com a vida da mulher preservada; talvez tenham imaginado que o dono da casa não estava, mas Mônica logo contaria a verdade. Gostaria muito de ver o terror dos rostos deles quando a mulher revelasse que o irmão estava morto, mas logo poderia mostrar a cada um deles o máximo de terror que jamais sonharam experimentar em suas vidas medíocres. Em seguida, enquanto Fausto esperava a distância dentro do gol com a sua arma no banco a seu lado, chegou um segundo veículo e o outro homem saiu e os ajudou a colocar Mônica num dos carros. Conversaram por alguns instantes, mais foi breve, estavam com pressa para sair dali e não faziam idéia de que estavam sendo observados. Um plano se formou imediatamente na cabeça de Fausto como que soprado por uma divindade obscura pairando sobre sua cabeça. Naquele momento ele soube que estava diante da oportunidade de atacar não somente Mônica, mas sim todos os que a ajudaram a se esconder e ao mesmo tempo teria a chance de ficar frente a frente com o outro homem especial e descobrir se teria nele um aliado ou se mataria ele ainda naquela noite que se aproximava. Logo que os carros saíram Fausto ligou o motor e deu a partida também, dirigiu mantendo uma distância apropriada para não ser notado, mas tinha certeza de que nenhuma daquelas pessoas estava esperando ser seguida. Ele estacionou o gol a quase quarenta metros de onde os outros estavam, pegou a arma do banco ao lado e colocou na calça,
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cobriu com a camisa. A mochila ficaria no carro até ele voltar depois do massacre. Saiu do carro e começou a caminhar na direção da casa onde os outros tinham acabado de entrar, ia pegá-los completamente desprevenidos, seria rápido e não daria chance para defesa de nenhum deles. Ainda queria torturar Mônica, mas teria mais opções se levasse em conta que havia mais duas outras mulheres na casa; poderia utilizar cada uma delas da forma que mais lhe conviesse, saciar seus desejos e quem sabe manter uma delas ainda respirando por mais dias do que as outras. Para os homens ele tinha um plano diferente, pretendia eliminar o dono da casa logo de início, por que dessa forma teria todas as outras pessoas que ali se encontravam, em suas mãos, eles perceberiam que Fausto não nutria nenhum apego pela vida e não tentariam nenhum tipo de heroísmo desesperado. Nem mesmo o jovem especial. Aliás, assim que desse cabo do dono da casa, ia expor da forma mais sucinta possível sua visão das coisas e estender o convite ao outro, mas não se demoraria na tarefa e pretendia perguntar uma única vez. Fausto podia identificar um potencial muito superior ao seu naquele jovem e não podia arriscar sua vida e liberdade recém conquistada a custo de um erro de cálculos. Se por ventura o outro já possuísse domínio de suas forças fora do comum poderia causar muitos problemas. Não pretendia dar opções a ele. Era hora de mostrar do que era capaz. Chegou frente ao muro da casa e olhou para dentro, os outros já tinham entrado no domicílio; Fausto empurrou o portão sem se preocupar se seria visto por outras pessoas da rua. Entrou e a primeira coisa que olhou foi a grande e frondosa árvore ao lado da casa; árvore sob a qual eles tinham posado para a foto abominável que ele tinha em sua mochila. 235
Sacou a pistola que trazia na cintura e espreitou. O clima mudou, os primeiros pingos grossos de รกgua comeรงaram a tocar o solo por toda parte. A chuva cairia em seguida. Fausto entrou na casa pela porta da sala, a primeira porta aberta que viu, por onde os outros tinham acabado de entrar poucos instantes antes.
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12 Ângelo tinha acabado de passar pela porta ajudando Heloi a carregar Mônica; as mulheres, Patrícia e Diana tinham acabado de sentar na sala, eles pretendiam conversar longamente sobre o que estava acontecendo de verdade para saber em que exatamente Mônica tinha se metido e como Ângelo estava sabendo das coisas sobre ela. Estavam todos com os rostos sérios e preocupados. Mônica não sabia como explicar sobre seu antigo companheiro e na verdade não sabia ao certo por que ele queria matá-la, mas teria de dizer sobre o assassinato de Leonardo, não podia esconder isso, já tinha omitido demais e o preço foi alto. Ela ia se expor o máximo que conseguisse, a família de Patrícia merecia saber a verdade, tinham-na ajudado muito não só naquele momento mais em praticamente todos os momentos difíceis que já tivera na vida e ela não podia pagar tal ajuda com mentiras e segredos. Ia contar tudo mesmo que parecesse insólito e surreal demais para se acreditar. Ângelo por sua vez estava preocupado por não saber ao certo como falar a respeito do que ele era capaz de fazer ou de saber, para ser mais exato, falar sobre como às vezes descobria coisas, ora por sonhos, ora por vozes e ora por sensações, ele mesmo não sabia o que dizer, nunca soube qual era a origem de todos aqueles fenômenos; sempre fez milhares, milhões de especulações e suposições sobre si mesmo, mas nenhuma delas era tão concreta quanto qualquer outra. Jamais encontrara uma resposta ou indício de resposta que pudesse lhe dar qualquer direção. Tudo o que ele podia dizer era o que já tinha contado para Diana no dia anterior, mas sabia que aquilo não seria 237
suficiente para aplacar as dúvidas que iam se erguer naquela sala. Teve medo de ser crucificado ou taxado como uma aberração. A própria namorada já fomentava uma quantidade enorme de novas perguntas e só esperava o momento mais oportuno para derramar todas elas sobre Ângelo, se começassem a falar sobre o assunto naquela sala ela certamente aproveitaria o cenário para procurar elucidar alguns fatos; porém ele sabia que tudo aquilo era em vão, não tinha as respostas e só queria que todas aquelas coisas parassem de acontecer. Se ele pudesse arrancaria aqueles sentimentos e sensações de dentro da cabeça com as próprias mãos e seria só um cara comum. _Sente-se aqui._ Disse Heloi ajudando Mônica a se sentar no sofá. Ângelo olhou ao redor como se algo estivesse faltando na sala, era mais uma de suas sensações; tão forte que ele por um segundo pensou que o teto do lugar fosse cair sobre suas cabeças. Ia contar às outras pessoas, mas antes, como que numa atitude de puro reflexo puxou pela memória que tinha da sala, olhou rapidamente os objetos tentando perceber qualquer irregularidade que fosse chamativa ao menos para ele, mas nada parecia relevante até que se ouviu fazendo a pergunta: _Onde está Ingrid? Patrícia levantou os olhos da mesa de centro na qual tinha colocado o celular que não funcionava mais e respondeu: _ Na casa ao lado com nossa vizinha. _ Dona Rosa_ completou o pai. Aquilo pareceu ser algo alentador embora ele não soubesse o motivo. Era a falta da menina que ele estava sentindo, era bastante apegado a ela e percebia que algo estranho estava gradativamente inundando a sala. _ Estão percebendo isso?_ perguntou. 238
Todos os outros se olharam fazendo movimentos com os ombros em sinal de que não estavam notando nada de diferente. _Isso o quê?_ Diana perguntou. Algo se moveu junto à parede, alguma coisa grande e translúcida que distorceu o lugar onde estava, uma coisa sem forma, mas bastante grande. Ângelo tentou identificar o que podia ser, mas não tinha a mais remota idéia do que aquilo significava. _Estão vendo aquilo?_ Perguntou enquanto apontava para o local do outro lado da sala. Todos se viraram quase que ao mesmo tempo, ficaram parados olhando para o lugar indicado. Diana olhou de volta para o namorado com um olhar duvidoso, em seguida Heloi e Patrícia também se voltaram para ele com o mesmo semblante de dúvida. _ Aquilo o quê. Ângelo? Ele soube naquele momento que nenhum deles estava vendo fosse aquilo o que fosse e logo as lembranças retornaram; o ser sem forma na garagem de Diana e a forma translúcida no sonho que ele tinha vislumbrado por detrás do homem que falava com ele. Era como se aquelas duas aparições fossem uma só coisa, algo que o estivesse rodeando constantemente, tomando conta de seus passos e até de seus sonhos. _ Só posso estar ficando louco._ comentou. Mônica observava tudo com um ar de quem estava vendo um filme repetido, tinha visto algo semelhante acontecer com Ricardo e o final foi o surgimento daquela aberração chamada Fausto, se é que aquele era o nome verdadeiro dele. Ela já começava a desconfiar se Fausto era mesmo uma segunda personalidade ou se era uma criatura errante que por algum motivo se apossou do corpo de Ricardo. Tolice. Talvez. 239
_O que você está vendo._ perguntou Mônica sob os olhares atentos dos outros. O vulto translúcido se moveu de um lado para outro e em seguida se desfez completamente como se nunca tivesse estado ali presente com eles. Ângelo se limitou a passar as mãos sobre o rosto como que com um cansaço pesando novamente sobre os ombros e suspirou. _ Tem coisas muito esquisitas acontecendo comigo e eu não sei como definir ou sequer explicar. _ É sobre aquele negócio?_ Perguntou Diana obviamente falando do segredo que até então ele havia confidenciado somente a ela. Ele olhou para todos os outros, seus olhares brilhantes esperavam, na verdade desejavam, ouvir qualquer coisa que desse sentido ao que parecia ser uma queda sobrenatural na qual toda aquela família estava começando a cair, embora nem todos ali acreditassem em coisas ligadas ao sobrenatural. Eles não sabiam, mas esse conceito ia mudar radicalmente. _ É sim._ respondeu. Todos eles naquele momento tiveram a leve, porém nítida sensação de que algo ruim estava ao redor, à espreita, e que tanto Ângelo quanto Mônica sabiam do que se tratava. Ângelo abriu a boca para dizer algo mesmo sem saber o que ia falar, ficou um tempo naquele estado tentando exteriorizar algo, organizar os pensamentos ou concatenar uma idéia, mas não havia nada que ele pudesse dizer. Suspirou. Mônica tomou a frente e perguntou: _ O que você viu? Uma sombra sem forma? Um inseto gigante ou um vulto transparente? As perguntas eram, aos ouvidos dos outros, completamente estapafúrdias, mas Ângelo respondeu com a voz arrastada 240
como se sua garganta estivesse repleta de arame farpado para tentar impedir o som de sair. _Vi uma coisa grande e transparente bem ali_ disse apontando novamente para o lugar._ Mas agora não está mais lá. Todos olharam para o lugar novamente e depois se voltaram para ele. Patrícia se virou para a prima. _ Como você sabia disso? O que significa? Novamente os olhares de todos os outros recaíram sobre Mônica que respondeu: _ Não sei o que significa, mas sei que isso aconteceu com Ricardo também logo que tudo começou. Ele via coisas translúcidas pela casa, seres sem forma, vozes estrondosas, insetos gigantes, fantasmas, tinha sonhos estranhos, pesadelos e outras coisas desse tipo; ficou neurótico com isso; pensei que fosse algum problema mental dele, um surto, mas agora vejo que alguma coisa está acontecendo com todos nós. _ Que coisa? E por que conosco?_ Patrícia perguntou. _ Não sei. Era pouca informação, mas Ângelo ficou curiosos com a menção do fato de que outra pessoa já tinha passado por aquilo que ele agora vivenciava na própria pele, Mônica tinha dito que seu antigo companheiro também tinha as mesmas visões, embora ele, Ângelo, nunca tivesse visto nenhum inseto gigante, não que se lembrasse. Mas aquelas informações ainda não eram o suficiente para estabelecer uma relação ou conexão entre eles, Ângelo nem o conhecia, jamais o vira na vida, apenas ouvira falar poucas vezes nesse tal Ricardo. Aparentemente não tinham nada em comum, exceto o fato de que conheciam Mônica. Usando de pensamento rápido e um pouco de imaginação ele concluiu que ela era a única ligação, o único ponto de contato entre as vidas deles, mas novamente não 241
passava de uma suposição baseada em absolutamente nada. Não tinha argumento algum que comprovasse a desconfiança de que de um modo muito peculiar Mônica estava ligando as vidas deles com algo fora da esfera comum da compreensão humana; além disso, Ângelo já tinha experimentado aqueles fenômenos muito antes de conhecê-la. Ou seja, novamente suas especulações tinham se mostrado inúteis. Certamente havia uma explicação para tudo aquilo, mas Ângelo achava que estava muito longe de descobrir qual era. Sentia como se estivesse andando em círculos o tempo todo. Antes que qualquer outra pessoa na sala pudesse dizer qualquer outra coisa Mônica tinha de revelar sobre a morte do irmão, era imprescindível alertar a todos sobre com quem estavam lidando e mesmo que ela não conhecesse a verdade sobre Fausto por completo, sabia que ele poderia arquitetar coisas terríveis e até matar novamente. Teriam de decidir se deviam envolver as autoridades e chamar a polícia; certamente era o mais sensato a fazer. Mônica se levantou do sofá com um pouco de esforço por causa das dores no corpo, resquícios de sua prisão feita de panos cortados e entrelaçados. _ Gente preciso falar uma coisa importante._ Disse com as mãos erguidas para chamar a atenção de todos. Os braços doíam e estavam pesados por causa do esforço que antes fizera para se libertar. Todos os pensamentos ali estavam dispersos, mas rapidamente confluíram para ela como se fosse a presidente de uma reunião importante prestes a fazer uma revelação bombástica. _ Leonardo está morto. _ Muitas lembranças de momentos que passou ao lado do irmão desde a infância inundaram a mente dela enquanto falava. O silêncio inicial foi quebrado por Heloi: 242
_ Morto! Como, onde? Novamente os olhos dela voltaram a se encher com as poucas lágrimas que ainda tinha dentro do corpo. _ Não sei onde ele está nem como isso aconteceu, mas sei exatamente quem fez. _Teve de fazer uma leve pausa porque teve a voz embargada, mas se controlou e conseguiu continuar._ Fausto o matou. Patrícia sempre pensou que Fausto era amante da prima e imaginava que Mônica não tivesse coragem ou sofresse vergonha de contar sobre seu caso com ele, imaginou que também por isso o relacionamento com Ricardo tinha se desgastado e terminado. Mônica nunca revelou direito qual era sua relação com essa pessoa e deixou muita margem para todo tipo de interpretações avulsas. Na cabeça de Patrícia, aquela revelação fez tanto sentido quanto o restante das coisas que estavam acontecendo durante o dia. Para ela, Fausto era apenas um nome mencionado vez por outra de uma pessoa da qual ela não conhecia absolutamente nada. Esperava que em algum momento Mônica tomasse coragem para revelar os fatos que a ligavam ao suposto amante, mas a prima sempre procurou manter distância de tais assuntos. _ Seu amante matou Leonardo._ Ela perguntou deixando escapar o que pensava ser Fausto. _ Amante!_ Heloi pareceu realmente surpreso. A esposa jamais tinha comentado que a prima tinha alguém além de Ricardo. Diana e Ângelo se limitaram a observá-la, não tinham nada a dizer sobre aquilo. Mônica se apressou em tentar desfazer o mal entendido. _ Fausto não é meu amante. _ Então quem ele é?_ Heloi perguntou e Patrícia achou que ele estava interessado demais, até mesmo para uma situação como aquela. 243
Em determinadas ocasiões, a dona da casa percebeu que o marido direcionava olhares diferenciados para sua hospede, Mônica parecia não notar ou ao menos fingia não notar. Era um tanto raro, mas Patrícia decidiu não fazer caso daquilo, porém ficou mais atenta, e no fim, nada mais sério aconteceu. Ela olhou de modo hostil para o próprio marido, poderia tê-lo fuzilado com aquele olhar, mas como todos mantinham a atenção em Mônica ninguém notou. _ Não sei se sou capaz de explicar._ ela disse num suspiro, procurando as palavras que permitissem dar a melhor idéia possível de tudo o que tinha a dizer. Mas o que aconteceu em seguida deixou todos sem ação. Atônitos. _Fausto sou eu!_ A voz vinha do pequeno corredor ligando a porta à cozinha. Os olhares se voltaram para lá e o homem estava de pé bem no limiar entre os cômodos, ereto como uma haste de ferro e segurava uma arma em direção a eles. O braço cuja mão segurava a arma estava tão estendido que mais parecia uma lança pronta para atravessar qualquer um deles que tentasse fugir; Mas não era uma lança, todos sabiam, era muito pior. Uma arma. Todos na sala o conheciam, porém o conheciam como Ricardo. _ Ricardo, o que está fazendo?_ perguntou Heloi sem entender bem o motivo que o levava a apontar aquela arma na direção deles. _Isso é uma arma de verdade?_ emendou Patrícia. Mônica ficou tão apavorada que perdeu a voz, estava tentando dizer que não se tratava de quem eles estavam pensando, mas sim do demônio que a tinha agredido com um soco, amarrado sobre a cama e feito sabe-se lá mais o quê. Ela estava apavorada, não podia imaginar como ele tinha descoberto
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aquele endereço. Agora não só ela corria um terrível risco, mas todos ali também. Diana ainda estava tentando entender o que se passava com aquele insólito encontro, mas seu namorado já tinha uma noção muito mais além do que todas as demais pessoas presentes. Ao ver a face do homem a quem todos chamavam de Ricardo, Ângelo sabia que algo muito ruim ia acontecer; aquele homem era a mesma pessoa que tinha falado com ele no parque de diversões na tarde em que salvara a pequena Ingrid da queda no brinquedo e por mais terrivelmente estranho que pudesse parecer, aquela mesma pessoa era que tinha aparecido em seu sonho na casa de Diana, na noite anterior, falando sobre deuses e caos. Era como se inicialmente ele não fosse capaz de perceber isso, mas foi como se um véu lhe fosse tirado dos olhos no momento que viu o outro. Ângelo ficou momentaneamente confuso. O sorriso na face de Fausto foi o mais maníaco que todos ali já viram em suas vidas, os olhos injetados denotavam o perfil de alguém em avançado estágio de consumo contínuo de alguma droga alucinógena poderosa, mas Mônica e Ângelo sabiam que não era esse o caso. Havia algo pairando de forma misteriosa no rosto transtornado dele, uma satisfação macabra, talvez. Fausto quase emanava a felicidade malévola que estava sentindo por ter encontrado todas as pessoas que pretendia punir. Imediatamente imaginou o que ficaria melhor para ser feito com cada um deles; detestou Heloi instantaneamente e concluiu que aquele não o serviria para nada, ia matá-lo rapidamente e não pretendia gastar mais do que uma única bala para isso. Já a mulher, Patrícia, podia servir a seus propósitos assim como a outra bela mulher, a qual ainda não sabia o nome, era visivelmente mais nova do que Mônica e sua prima, mas tão bonita quanto elas. 245
Ouviu uma voz chiante sussurrar em seu ouvido: _ Diana!_ revelou. Agora já sabia o nome dela. Elas possuíam belezas diferentes, mas nenhum olho masculino não as acharia atraentes e não as desejaria. Fausto planejou mantê-las como escravas logo que terminasse com tudo aquilo, quem sabe até não conseguiria montar para si um grande harém de escravas diversas. Pensaria nisso mais tarde, porque por hora precisava se concentrar em eliminar o dono da casa e fazer com que o outro homem que salvou a menina no parque aceitasse celebrar uma aliança com ele. Na cabeça dele, Mônica ainda teria o mesmo destino que tinha traçado para ela anteriormente, mas desejava matá-la com as mãos nuas; primeiro espancá-la, em seguida se aproveitaria dela deixando livre toda a sua imaginação sádica, seria delicioso, e por fim desejava sufocá-la pelo pescoço, apertando a garganta para sentir a respiração dela definhar até sumir e o coração parar de bombear. Fausto queria olhar diretamente nos olhos dela para ter a certeza de que a sua imagem ficaria colada eternamente na retina e na memória de sua vítima e seria a última coisa que Mônica veria em vida e que levaria esta imagem consigo para as profundezas. Ele queria ficar sobre o corpo sem vida dela esperando pacientemente que todo o calor corporal da mulher fosse se dispersando, como se ele mesmo estivesse drenando qualquer resquício final de vida que ainda pudesse existir, e, por fim, abandonaria o corpo dela em algum lugar onde não pudesse ser encontrada. Fausto se deliciou tanto com aquele pensamento que chegou a estremecer de alegria por dentro. Ainda mais rápido do que tudo o que tinha pensado até então, se configurou a parte mais complicada de seu plano, o herói precisava passar para seu lado ou então morreria também ali junto com os outros, mas antes mesmo que a dúvida de como 246
fazer com que o homem se dobrasse aos seus intentos se formasse na cabeça de Fausto, ele ouviu novamente: _ Diana!_ A voz chiante novamente em auto e bom som. Fausto soube que a chave para dobrar o herói era aquela mulher, então usaria de sua experiência em ameaças e violência para alcançar tal objetivo. Todos aqueles pensamentos não demoraram mais do que uma simples fração de segundo, foi como uma descarga concentrada vinda de alguma zona fora da matéria, de algum lugar habitado somente por espíritos do mal. _ Passei bastante tempo procurando por vocês._afirmou mostrando o sorriso largo que deixava aparecer os dentes. _Não estou entendendo. _ Patrícia disse assustada, mantendo o olhar fixo na pistola ameaçadora. O marido disse logo em seguida: _ Abaixa essa arma, Ricardo, que brincadeira é essa? Você ficou louco? Vai acabar machucando alguém. Para os donos da casa a situação se desenhava da seguinte forma: Ricardo estava transtornado provavelmente pela traição de Mônica com esse tal Fausto e desejava, como vingança, acertar as contas com ela. Esse era um quadro que todos ali podiam aceitar, mas não era o que realmente estava acontecendo. E estava muito longe da inexorável realidade. Fausto disse: _Eu só vou falar uma vez. Você vai morrer hoje_ apontou a arma para o dono da casa, em seguida continuou_ Vocês três vão ficar comigo por algum tempo_ apontou para as mulheres, Mônica, Patrícia e Diana. E você meu rapaz_ apontou para Ângelo_ temos algo a conversar; algo muito sério. Tenho uma proposta para você. É pegar ou largar e sem tempo para pensar desta vez.
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Nem mesmo Fausto sabia por qual pronunciou aquela última frase. Todos ouviram um som pesado que entrou na sala por todos os lados ao mesmo tempo, num primeiro momento não conseguiram discernir do que se tratava até que perceberam que era a forte chuva que o dia tinha prometido com suas pesadas nuvens do lado de fora desde o amanhecer. Finalmente Mônica conseguiu falar: _ Fausto, pelo amor de Deus! O que você está fazendo? Deixenos em paz! Os outros levaram mais uns milésimos para entender o que tinham acabado de ouvir e acertar seus pensamentos, ela estava chamando Ricardo pelo nome do amante. Não fazia o menor sentido. _O que significa isso, Mônica?_ Patrícia quis saber. A prima respondeu com o desespero quase tomando conta de todo o seu corpo: _ Ricardo e Fausto são a mesma pessoa!_ pronunciou a frase quase gritando. Antes que outro falasse, Fausto perguntou: _Onde está a criança? Ninguém respondeu. _ Ótimo, eu já esperava um pouco de resistência. Isso vai tornar as coisas mais empolgantes. Naquele momento Ângelo viu novamente algo se movendo por trás de Ricardo ou Fausto, ou fosse ele quem fosse. A mesma figura sem forma e translúcida que vira nas outras vezes, porém não estava sozinha, havia outras aparecendo por toda a sala, erguendo-se do chão como se fossem vapores transparentes escapando como gás saindo de uma provável tubulação sob o piso. Ângelo pensou que podia estar perdendo completamente a lucidez, mas tinha certeza de que não eram 248
nem vapores nem gases, mas sim coisas vivas; elas se moviam de um lado para outro como se observassem o que estava se desenrolando naquela sala. Ele quase podia distinguir silhuetas humanas sendo formadas pelas animações transparentes, mas não chegaram a tanto; mantinham uma aparência disforme e constantemente mutante, nunca assumiam uma forma inteiramente legível e identificável. Ângelo olhou ao redor na sala e contou cinco coisas daquelas. Era como num filme de terror onde pessoas comuns eram cercadas por espíritos ou fantasmas, pelo menos era assim que ele estava se sentindo, mas o pior era saber que ninguém mais ali estava vendo aquele fenômeno, todos estavam concentrados no invasor, Fausto, e sua arma nervosa prestes a disparar. _O que está acontecendo aqui._ Perguntou em voz alta para si mesmo. Todos os outros imaginaram que a pergunta tinha ligação com o evento em curso na sala e Fausto por sua vez respondeu sem perceber que a pergunta não fora direcionada a ele: _Está acontecendo que eu tenho contas a acertar com todos vocês e já é hora de resolvermos essas pendências._ Enquanto respondia, a arma passeava de um lado para outro, ora apontando para uma vítima, ora para outra; qualquer movimento mais brusco podia ser o suficiente para que ele disparasse e causasse uma verdadeira tragédia. Àquela altura dos acontecimentos Patrícia e Heloi agradeciam a Deus pela filha estar em outro lugar e não ali. Porque pior do que se submeter a qualquer atrocidade que aquele psicopata pudesse querer impor, seria ver a pequena Ingrid sendo torturada de modo igualmente medonho e doentio, só a cena produzida pela imaginação dos pais já era o suficiente para amedrontá-los terrivelmente. Independente do que acontecesse, não revelariam o paradeiro da menina, nem sob tortura. 249
Os donos da casa se entreolharam de modo tímido como que selando o pacto de silêncio em relação a filha, os outros no local não chegaram a perceber aquele ato rápido e heróico visando a máxima proteção do bem mais precioso que eles tinham. Fausto continuava falando: _ Vai ser tudo muito simples_ sorria_ primeiro vamos aos negócios e em seguida passaremos para a diversão._ olhou para Diana e Patrícia. Ângelo notando o olhar do outro, moveu-se para frente da namorada, ficando entre ela e o homem com a arma; em seguida segurou a mão de Diana, mantendo-a escondida de qualquer disparo acidental. O gesto foi repetido pelo dono da casa, mas com isso Mônica ficou completamente desprotegida, era a única com caminho livre na linha de tiro. _Diga o que você quer comigo._ Ângelo sabia que havia algo ligando ele próprio ao psicopata e talvez fosse a mesma linha que o conectava aos sonhos, visões e vozes; talvez conseguisse até algumas respostas sobre toda aquela loucura. _Se é dinheiro que você quer_ disse Heloi tentando uma solução para o que ele imaginava ser o problema_ Pode levar tudo o que desejar; não nos importamos, só deixe as mulheres em paz. Fausto ia responder a Ângelo, mas quando ouviu o que Heloi tinha acabado de falar, teve um rompante de ira. _ Você não entendeu nada ainda! Seu imbecil!_ gritou tão alto que as mulheres se assustaram com um sobressalto. Diana apertava a mão do namorado, Patrícia segurava os ombros do marido e Mônica tremia visivelmente, completamente desprotegida. Ela parecia muito mais fragilizada do que quando entrara na casa, sua presença marcante e vistosa tinha se resumido a uma mulher 250
amedrontada com os ombros curvados e o rosto deformado e envelhecido por sentimentos agressivos. Fausto continuou com a gritaria: _ Eu não quero seu dinheiro! _Então o que você quer aqui? Não lhe fizemos nada. A paciência de Fausto estava no limite, ainda mais porque sua carta inicial, a arma, que costumava estabelecer prontamente a relação de poder entre vítima e agressor parecia não estar fazendo o costumeiro efeito devastador. Ninguém ali tinha chorado, implorado pela vida, ou perdido o controle de forma histérica, ele esperava aquela reação de pelo menos uma das mulheres, não podia supor que todas fossem pessoas tão fortes a ponto de mesmo sendo submetidas a uma ameaça potencialmente letal, ficassem aparentemente calmas. Fausto sabia que em algum nível todos ali estavam sentindo exatamente o que ele desejava que sentissem, medo e terror, mas o fato de cada uma das pessoas estar conseguindo manter o autocontrole o incomodava e por isso ele resolveu aumentar um pouco mais a pressão. Apontando a arma para Mônica ele ordenou: _ Ajoelhe-se. Os olhos de todos se arregalaram. Fausto repetiu a ordem. Ângelo sabia que devia fazer alguma coisa ou teriam uma tragédia terrível; agora ele entendia exatamente o que sentira com relação a Mônica estar correndo perigo. Tinha de agir, mas como? A tensão alcançou níveis estratosféricos naquela sala. Fausto quase podia ouvir os batimentos de cada coração, todos trovejando como se fizessem parte da chuva que caia fora da casa. Porém, Mônica não havia se ajoelhado, ela olhava para ele com raiva nos olhos; também havia medo, mas estava
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misturado ao sentimento de incapacidade. A raiva que ela sentia era causada pelo que Fausto tinha feito ao irmão dela. Ele se aproximou de Mônica o suficiente para a arma encostar a cabeça da mulher. Patrícia estremeceu por detrás do marido. _ Eu mandei você se ajoelhar agora! Finalmente ela movimentou-se, ajoelhou devagar, sempre mantendo os olhos fixos nos de Fausto que apontava para ela. Mônica pensou em avançar sobre ele insanamente, sem se preocupar com o resultado, mas àquela distância não teria a menor chance de fazer qualquer coisa sem ser alvejada. A ira dentro dela era ainda maior naquele momento principalmente por sua incapacidade. Quando finalmente se ajoelhou cuspiu na roupa de Fausto num claro sinal de desprezo; acontecesse o que acontecesse ela já tinha decidido; não daria mais nenhuma satisfação àquele monstro. A bofetada que Fausto desferiu sobre o rosto da mulher ajoelhada foi tão forte que ela perdeu os sentidos instantaneamente. Patrícia gritou e teve de ser contida pelo marido que viu a arma sendo apontada ora para eles, ora para o outro casal que também esboçou uma reação. A cena foi tão violenta que finalmente conseguiu arrancar algumas lágrimas do rosto da prima de Mônica, mas também eram lágrimas de ódio; o som do golpe sobre os ossos da face já marcada da Mulher fora seco e bruto. _ Seu monstro! _Gritou Patrícia. Mônica jazia desacordada no tapete da sala. O rosto exibia uma grande marca vermelha por causa da forte pancada. Heloi tentou novamente uma mediação sem sucesso: _Escute Ricardo, o que você está fazendo é loucura, seja lá o que for que você ache que Mônica fez para merecer isso; saiba que já está indo longe demais.
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Balançando a cabeça em sinal positivo e constantemente apontando a arma ora para um casal, ora para outro Fausto disse: _ Já estou com o saco cheio de você._ Apontou a arma para Heloi. Estava pronto para disparar quando Ângelo lhe chamou a atenção. _ Ei! O que você tem pra mim?_ Disse. Estava tentando ganhar tempo para pensar em que fazer, e quando viu o outro apontar a arma para o dono da casa não pensou duas vezes; disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça._ Que proposta é essa que você mencionou? Fausto se interrompeu; queria puxar o gatilho e mandar o dono da casa para o outro mundo de uma vez, assim teria caminho livre para fazer o que bem entendesse com a esposa, mas já que tinha conseguido prender a atenção do jovem especial, devia dizer algo, porém não sabia o quê. Pensou que quando ficasse frente a frente com ele saberia o que falar, saberia que proposta fazer, mas as vozes em sua cabeça não diziam nada a esse respeito. _ Não sei o que dizer_ Fausto balbuciou._ Não é o que eu esperava._ o olhar se perdeu momentaneamente. Vagou pelo cômodo. Naquele momento ele também começou a ver as formas translúcidas se movendo junto das paredes da sala, não sabia o que eram, mas tinha certeza absoluta que estavam ali por sua causa. Soube imediatamente que alguma antiga essência primordial com a qual ele mesmo tinha ligação, mesmo sem entender, estava inundando aquele lugar e que logo apareceria por completo como um espírito do submundo atravessando aos poucos o véu que separa a sua realidade etérea do mundo físico.
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_Fausto!_ Chamou Ângelo_ O que você tem pra mim afinal?_ repetiu._ Eu quero ouvir sua proposta. Pela primeira vez desde que se libertou completamente da prisão na mente de Ricardo, Fausto não soube o que falar. Ficou parado com a arma apontada para Ângelo olhando como se tentasse enxergar o interior do rapaz. _ Fique quieto!_ Disse finalmente. Ângelo começou a ter novamente a mesma visão que o outro; as movimentações dançantes e sem forma das coisas translúcidas. Naquele momento percebeu que o homem armado também as via e estava curioso ou confuso com aquele fenômeno. _ O que está acontecendo, Fausto? Diga-nos._ Insistiu. Fausto se enfureceu. _ Eu já mandei calar essa boca!_ Gritou. Todos ali olhavam para Ângelo como se ele tivesse as respostas do que estava ocorrendo; eles já tinham percebido que havia mais coisas acontecendo ao redor do que seus olhos estavam vendo. Ângelo olhou para Diana e fez um sinal com a cabeça movendo-a levemente para mostrar que a namorada devia procurar abrigo, mas a moça não sabia como devia fazer isso. Novamente tentando colocar um pouco de sanidade na situação, Heloi tentou se intrometer; tinha de fazer alguma coisa embora não soubesse bem o que, afinal; não ia ficar ali sendo ameaçado por um maluco armado que colocava também em perigo a sua esposa e seus amigos. _ Ricardo._ chamou Heloi, sem perceber que cada vez que ele usava esse nome para chamar o outro, causava ainda mais furor no invasor_ Chega dessa palhaçada. Deixe as mulheres saírem e vamos resolver, seja lá o que for; que você tem contra minha família; como homens. Somos todos adultos aqui. 254
A voz sobrenatural finalmente falou no ouvido de Fausto: _ Elimine-o! _ Soou como uma ordem e não como um pedido. Mas ainda não era aquela voz trovejante que ele já ouvira em outras ocasiões. Talvez fosse sua própria imaginação. Imediatamente Fausto se virou deixando de apontar a arma para Ângelo e passando sua mira para o dono da casa. Fez aquele movimento de uma forma tão automática que nem pareceu ser uma pessoa dotada de vontade própria, mas sim um autômato, um sonâmbulo ou uma marionete macabra cujos fios que o movimentavam, presos aos braços e pernas eram tão finos que mal podiam ser vistos. Mas aquilo foi apenas uma sensação. Ângelo ouviu claramente a voz ordenando a eliminação de Heloi e quando Fausto se virou para atirar, Ângelo se lançou contra o corpo do outro da forma mais impulsiva que conseguiu. Foi uma ação inconseqüente, temerária e completamente equivocada que podia resultar em um terrível acidente não só para a sua própria vida como para a de todos os outros que estavam naquela sala. _ Diana! Sai daqui! _gritou. Seu corpo se chocou contra o de Fausto e Ângelo tentou segurar a arma apontando-a para cima, mas não foi capaz; Fausto se mexeu tão rápido que pareceu saber que seria atacado, mas Ângelo conseguiu segurar o braço dele. Ambos caíram sobre o sofá e rolaram para o chão. Imediatamente todos ouviram dois disparos que acertaram apenas o teto da casa, mas foi o suficiente para fazer com que tanto as mulheres quanto Heloi se arremessassem no chão buscando proteção. Ângelo conseguiu desarmar o outro mais rápido do que pensou que seria capaz, mas logo notou que a atenção de Fausto não estava no confronto corpo a corpo que estavam travando e sim em algo sobre suas cabeças. 255
Mônica despertou e foi ajudada a levantar pela prima e Diana correu para a porta que se fechou brutalmente bem na sua frente como se alguém ou alguma coisa tivesse puxado a porta pelo lado de fora. Diana segurou a maçaneta e tentou abrir a porta com toda a força que tinha, mas nada aconteceu, a porta parecia estar trancada. Mônica e Diana chegaram desesperadas junto dela logo em seguida. _ O que houve?_ perguntou a dona da casa. _Abra a porta._ emendou_ a prima. Diana só conseguiu responder que a porta não abria. As três puxaram com força, mas a porta não cedeu um milímetro sequer. Heloi levou quase cinco segundos para verificar que não tinha sido alvejado por nenhum dos dois disparos; viu as mulheres correndo para a porta, e, atordoado percebeu que um confronto corpo a corpo estava se desenrolando entre Fausto e Ângelo. Tinha de ajudar de alguma forma. Fausto não ofereceu resistência naquele primeiro momento, algo muito grande estava para acontecer ali, havia sobre eles, pairando sob o teto da sala uma forma nebulosa e disforme que enchia toda a sala, como uma nuvem pulsante que se expandia a cada segundo e se revolvia em si mesma. Era um espetáculo bizarro mais que estava prendendo por completo a força de vontade de Fausto. Ângelo tomou-lhe a arma e se levantou respirando ofegante; olhava para o outro que continuava deitado observando o teto. Finalmente Ângelo levantou a visão e contemplou o mesmo fenômeno sem explicação. _Mas o que é isso!_ Exclamou assustado. Estava vendo exatamente a mesma coisa que tinha vislumbrado na garagem da casa de Diana, só que numa proporção muito maior ali. 256
Heloi não via nada tampouco entendia o que estava se passando. Foi quando ouviram o chamado de Patrícia dizendo que a porta estava trancada e que não conseguiam abri-la. O marido correu para o lugar onde elas estavam deixando Fausto, que parecia em transe, deitado no chão da sala e Ângelo segurando a arma. Heloi chegou até ela e como tinha mais força do que as mulheres, tentou abrir a porta segurando e puxando a maçaneta com toda a sua força; parou por um segundo e olhou a porta assustado, o que poderia estar mantendo aquela porta trancada daquela forma? Não sabia. Encostou o ouvido nela na esperança de ouvir alguma coisa lá fora, mas não foi capaz de escutar nem um único ruído sequer, nem mesmo a chuva que caía e que antes tinha inundado a casa com seu som característico. Nem Heloi, nem qualquer outra pessoa presente ali podia imaginar que do lado de fora da residência, sobre a casa, naquele exato momento o mesmo fenômeno que Fausto e Ângelo estavam presenciando na sala estava se repetindo numa proporção muito maior. E que por aquele motivo nenhum som entrava ou saia das paredes do imóvel; era como se toda a casa com seus ocupantes tivesse sido engolida ou mesmo arrastada repentinamente para uma zona de vácuo. A escuridão havia finalmente descido sobre aquele lugar. O pesadelo estava para se revelar.
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13 Aquela coisa começou a ganhar volume e de repente abandonou seu estado semi-translúcido para adquirir uma tonalidade acinzentada que foi escurecendo mais a cada segundo. Ângelo começou a perceber uma forma surgindo no meio daquela massa de névoa pulsante; parecia-se com um grande inseto, mas não estava totalmente claro. Diana permanecia junto da porta, mas percebeu que alguma coisa estava acontecendo na sala, teve medo pelo namorado e recuou para ver o que estava ocorrendo. Ficou boquiaberta quando viu aquela grande concentração nebulosa pulsando suspensa no ar bem no meio da sala. Nada jamais poderia explicar que tipo de fenômeno era aquele, nem mesmo todos os cientistas da terra. _ Ângelo!_ gritou Diana fazendo sinal para que ele saísse de tão perto da coisa. Mônica apareceu junto de Diana e também viu a mesma imagem. Era como olhar para uma pequena tempestade com nuvens revoltosas bem no meio da sala. De repente ela viu uma face formada pela fumaça, um rosto medonho sem olhos que apareceu diretamente em sua frente e em seguida se desfez entrando novamente na pulsante coisa giratória. Girava e pulsava. _ Meu Deus do céu!_ ela disse_ o que é isso!? Diana também tinha vislumbrado a face macabra que com um giro pareceu olhar para tudo e todos na sala antes de se desfazer ou voltar para dentro da coisa que pulsava. Ângelo gritou de volta: _ Saia daqui! 258
_ A porta está trancada_ respondeu a namorada com a voz vacilante. Patrícia e Heloi que ainda estavam tentando abrir a porta, escutaram os outros falando e foram averiguar, ficaram momentaneamente sem saber o que pensar ao se depararem com o fenômeno. Mas aquilo ainda não era o pior. Fausto sentia uma sensação de que algo nele estava se tornando cada vez mais forte. Era como se alguma parte oculta dentro de seu corpo estivesse respondendo a um estímulo provocado por aquela criatura desconhecida que se formava bem a sua frente. Pensou em onde sua arma poderia estar, viu que ainda estava nas mãos de Ângelo, mas em seguida se deu conta de que não precisaria dela para dar cabo das pessoas naquela sala, sabia que aquele fenômeno era algo ligado a ele próprio e que podia ser a causa das coisas fora do comum que ele conseguia realizar; ou seja, a real origem de suas capacidades misteriosas. Fausto imaginava que de alguma forma poderia usar seus dons e sua força sobrenatural para atacar as pessoas na sala, mas o que aconteceu em seguida o surpreendeu completamente. De repente aquela sensação boa de vigor desapareceu, Fausto se sentiu enfraquecer tão rapidamente que não houve tempo nem mesmo para falar alguma coisa, caiu novamente, suas pernas perderam as forças e ele tombou para a frente, teve de se apoiar no sofá. O coração doía, a cabeça latejava e a respiração fora de ritmo denunciava que alguma coisa não estava correta. O corpo de Fausto que antes estava passando por um processo aparente de “vitalização”, passou em poucos segundos a perder completamente as forças. O fenômeno não o estava insuflando como pensou em princípio, mas sim drenando algo de dentro dele, retirando uma parte importante sem a qual ele não seria nada além de uma personalidade distorcida e corrupta que jamais teria, por si só, forças para tomar o controle do corpo 259
onde estava aprisionada. Sem a força da criatura Fausto era apenas o lado escuro, a sombra de Ricardo; e este poderia conviver com ele como muitos homens fazem visto que a sombra é apenas o conjunto de impulsos mais primitivos e destrutivos de um ser humano. Obviamente a ajuda que a personalidade de Fausto teve para sobrepujar a de Ricardo tinha sua origem naquela criatura, mas Fausto se perguntava por que libertá-lo para depois destruí-lo sem permitir que ele completasse seus planos. Não fazia sentido algum. Ele não sabia que a escuridão nada mais é do que um filho do caos e por isso não obedece qualquer sentido. _ Ora! Mas o que está acontecendo?_Fausto disse para si mesmo, mas em voz alta, de modo que todos ouviram. Porém não deram a mínima atenção, estavam todos com os olhares fixos no fenômeno sobrenatural que ganhava volume e escurecia mais a cada instante. Finalmente a voz retumbante ecoou por toda a sala: _Ah...!_ o som era poderoso como um trovão produzido pela chuva lá fora, embora nenhum som pudesse sair ou entrar na casa, mas soou ao mesmo tempo como um suspiro melancólico de um titã que esteve preso e agora estava se soltando. Todos na sala tiveram a impressão de escutar a voz de um fantasma, uma voz chiante e arrastada, mas tão forte que por um segundo todos acharam que as paredes da sala tremiam. Naquele momento Mônica se lembrou das vezes em que Ricardo dizia estar ouvindo vozes e perguntava se ela também tinha escutado. Mônica nunca ouvira nada, mas naquele momento sentiu o medo do desconhecido invadindo sua mente e seu corpo já cansado e machucado. Àquela altura dos fatos, todos estavam tão atônitos que nem perceberam que Fausto perdera as forças, tombou num baque 260
surdo e permanecia caído no chão, completamente sem sentidos, parecia morto. Nem as mulheres nem os dois homens estavam se dando conta disso; todos eles só conseguiam olhar para a monstruosidade que aparecia e revolvia-se bem diante deles. Havia uma atração estranha naquilo, uma atração da qual não conseguiriam se desvencilhar facilmente. Como o canto da sereia das histórias mais antigas dos relatos de marujos ou da épica saga de Ulisses. Patrícia pensou que fosse desmaiar e segurou o braço do marido; muitas coisas passavam em sua cabeça, mas a única coisa que importava era que sua filha estava bem segura longe dali. O terror de ver algo completamente sem explicação a tinha paralisado por completo. Heloi mantinha a boca aberta embasbacado com o fenômeno; sentiu as duas mãos da esposa envolvendo seu braço e apertando com força, mas não conseguiu dizer ou fazer nada que não fosse permanecer vidrado na grande esfera de fumaça etérea. Era incrível e indescritível ao mesmo tempo; Heloi nunca fora dado a sensações estranhas em toda a sua vida, nunca tinha sentido qualquer coisa que pudesse ser classificada como sendo sobrenatural, mas naquele momento cada célula de seu corpo parecia estar gritando frente a uma legítima manifestação de algo oriundo de qualquer esfera fora do reinado da matéria, algo proveniente de uma zona onde nenhuma força humana tem acesso, a não ser, talvez, em seus pesadelos mais violentos e desconexos. Sentiu um arrepio dançar em sua coluna e em seguida se irradiar por todo o corpo. Em breve toda a sensibilidade deles seria retirada. Diana tinha certeza de que todos estavam com a mesma impressão que ela, todos estavam sentindo cada vez mais, uma presença perniciosa se insinuando no ambiente, enchendo a 261
sala. Era como se aquela presença estivesse expulsando o ar da sala na medida em que ganhava corpo e aquilo causava uma sensação de sufocamento crescente que começava a transformar a atmosfera do lugar em algo pesado, espesso e insuportável. A mulher sabia que devia sair dali o mais rápido possível, procurar outra forma de fugir e abandonar aquela casa imediatamente, do contrário, correria o risco de jamais sair dali, mas se deu conta de que já não tinha mais força de vontade suficiente para se desvencilhar daquela presença; sua atenção havia sido capturada e ela não conseguia se libertar não importava o quanto fizesse força para isso. De fato, quando ela percebeu o que estava acontecendo, já não restava muita força para lutar. Estava presa àquele ser amorfo e hediondo assim como os demais. Na verdade todos estavam na mesma situação; olhos tão vidrados que mal podiam piscar; seus corpos já não respondiam mais a qualquer ordem dada pelo cérebro era como se um feitiço os estivesse envolvendo e impedindo que tomassem qualquer atitude, mas o que estava de fato acontecendo só um deles conseguiu entender. Ângelo também sentiu os efeitos da sedução que ocorria na sala, sua mente divagou sobre vários acontecimentos de sua vida e não se deteve em nenhum específico. Olhando mais atentamente para aquele fantasma amorfo que pairava entre eles, Ângelo teve a impressão de que toda aquela fumaça estranha era composta na verdade por uma infinidade de pequenos insetos alados, mas aquela visão não ficou clara para ele. Teve de fazer bastante força para se desvencilhar da vontade de continuar olhando o fenômeno e finalmente se deu conta de que todos estavam completamente paralisados de pé cada qual em seus lugares, exatamente como se tivessem sido hipnotizados. 262
Olhando para o chão ele finalmente notou Fausto desacordado. “Deus!”_pensou_ “Devo estar ficando completamente louco”. Mas não era loucura. Estava acontecendo de verdade. _Diana!_ Ele chamou a namorada, mas não obteve resposta. Foi até ela o mais rápido que pôde. Antes que pudesse chamá-la novamente ele ouviu a voz da criatura outra vez. _ Tantas pessoas._ reverberou. As paredes pareceram tremer em seguida com o eco das palavras. Ângelo chegou a se abaixar momentaneamente impelido pelo instinto de proteção, mas em seguida olhou a grande bola de fumaça, insetos ou o que quer que fosse. Continuava lá. Voltou sua atenção para a namorada e chamou a segunda vez: _ Diana! Olha pra mim. Os olhos dela continuavam perdidos na direção da coisa. Diana já não piscava mais; seus belos olhos vivos estavam sonolentos. Ângelo segurou-a pelo braço e sacudiu levemente como quem tenta acordar alguém de um sono, mas não funcionou. Ele verificou que Heloi, Patrícia e Mônica também se encontravam no mesmo estado. Era terrível vê-los daquele modo. A voz estrondosa retornou: _Ângelo._ chamou. Ele se deteve logo que ouviu seu nome, não respondeu; a voz retornou outra vez: _Ângelo._ Disse outra vez. Ângelo continuou sacudindo a namorada na esperança de que ela despertasse, mas foi em vão. A voz novamente: _Eu conheço você. Ele não queria responder, tinha certeza de que seria engolido se trocasse qualquer palavra com aquilo. 263
_Eu acompanho você._ Naquele momento a coisa suspensa no ar parecia-se com um grande coração negro pulsando e pulsando repetidas vezes. A cada novo pulsar era como ouvir um poderoso trovejar. Ângelo sabia que fosse aquilo o que fosse, estava brincando com a percepção de realidade de todos eles; a verdade era que aquela coisa não estava só suspensa no ar da sala, mas já havia se infiltrado em suas mentes; desvendava e jogava com seus pensamentos, medos mais profundos, conceitos e tantas quantas informações conseguia extrair deles; como um parasita mental hediondo devorando e assimilando tudo o que encontrava. O homem sabia que não estava vendo realmente um coração negro e trovejante, sabia que aquilo não tinha forma alguma exatamente como o vira na garagem da casa da namorada, porém a criatura permanecia fingindo mudar de forma. Ângelo arriscou uma pergunta. Sua guarda estava baixa: _ O que é você?_ Disse medindo as palavras quase como se estivesse travando um contato imediato de primeiro grau com uma entidade alienígena que viajou milhões de anos luz até chegar a este planeta. Enquanto falava, ele apertava a mão da namorada na esperança de que ela despertasse do transe no qual estava mergulhada ou que o feitiço se quebrasse, mas ao mesmo tempo tentava não forçar muito para não machucá-la. _ Não está me reconhecendo?_ perguntou a voz. Ângelo não entendeu a pergunta, mas sabia que de alguma forma realmente já conhecia aquilo, a voz era familiar, não era a primeira vez que a escutava em sua vida, de fato, era a mesma que tinha falado com ele no dia do acidente na estrada e também no parque de diversões, porém jamais poderia imaginar que tal voz fosse algo tão horrendo e fora de 264
compreensão. Poderia imaginar que se tratasse de algum dom psíquico ou qualquer coisa desse tipo, não se importava, na época só queria compreender o que acontecia com ele. Agora, entretanto, lhe ocorria a idéia de que sua capacidade eventual de ouvir vozes e saber coisas estranhas não era proveniente de alguma dádiva bondosa e celestial ou de algum distúrbio mental não documentado por especialistas, mas sim, tinha uma origem profana com a qual ele, Ângelo, não queria ter nenhum contato. Já era tarde demais para tentar voltar atrás. Espantosamente ele se viu respondendo contra sua própria vontade: _ Eu conheço você. Já o ouvi antes._ por que disse aquilo? Imaginou. Na cabeça dele, aquela experiência era ao mesmo tempo tremendamente amedrontadora, mas surpreendentemente familiar. Por mais incrível que pudesse parecer, Ângelo estava se sentindo como se estivesse olhando num espelho, como se aquele amontoado pulsante e sem forma de matéria estranha fosse o seu próprio rosto refletido numa lâmina de vidro. Ele não se deu conta, mas tudo aquilo, cada sensação que o corpo de Ângelo manifestava era causada pela sedução da criatura que esquadrinhava e abria caminho dentro da mente consciente e inconsciente dele, envolvendo e se apoderando de tudo o que encontrava; recordações, memórias, estilhaços de sonhos e sentimentos; só os pensamentos dele ainda não tinha sido completamente corrompidos, mas os tentáculos invisíveis da criatura continuavam avançando pelos labirintos mentais, indo cada vez mais fundo até o âmago, procurando se ramificar dentro do homem até que estaria pronto para tomar o controle total da vida dele assim como tinha feito com Ricardo e com tantas outras pessoas antes dele.
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Na visão de Ângelo não havia mais ninguém ali na sala com ele, estavam frente a frente apenas a criatura sedutora e ele mesmo; foi como se sua namorada, os donos da casa, Mônica e até o corpo caído de Fausto tivessem sido arrebatados do cômodo e desaparecido em pleno ar. Naquele momento o rapaz ouvia vozes variadas, ele não sabia, mas eram vozes das várias pessoas que já tinham sido dominadas e aprisionadas pela criatura durante anos e anos, décadas e décadas, séculos e séculos de ação sorrateira, oculta e indefectível; vozes de homens e mulheres, adultos e crianças, jovens e idosos, todos condenados a se tornar parte da criatura. Seres humanos que desapareceram sem deixar vestígios e nunca mais foram encontrados, alguns dos quais se tornaram apenas fantasmas translúcidos errantes, memórias ambulantes servindo aos desígnios da própria escuridão. Os esquecidos de Érebus. Todas as vozes falavam coisas diferentes e a cacofonia era quase ensurdecedora. Ele as escutava claramente, muito embora elas estivessem sendo incutidas diretamente em seu córtex cerebral como uma injeção concentrada contendo várias e várias vidas em agonia. A voz disse: _ Você é uma pessoa especial, muito diferente dos outros, mais forte. Preciso de você comigo. Ângelo não percebeu mais deixou a arma que tinha tomado de Fausto cair de suas mãos sobre o tapete; estava sucumbindo. Encurralado em algum lugar dentro de sua própria mente, o pouco que ainda restava de lucidez lutava para romper o feitiço delirante que pesava sobre ele; agarrava-se às lembranças de seus pais, sua namorada, seus amigos, da pequena Ingrid e sua família; mas as sombras eram densas demais, quase intransponíveis e avançavam sem piedade, sem misericórdia e em breve possuiriam todas essas lembranças e memórias; não 266
restaria nada em que Ângelo pudesse se agarrar para voltar à superfície, nada que servisse como cabo guia para libertá-lo das trevas interiores; ele ficaria preso e perdido dentro de si mesmo e outro assumiria o controle, talvez alguém como um novo Fausto ou talvez alguém muito pior. _Entregue-se a mim._ disse a voz. Mais como uma ordem do que como um pedido. A cacofonia de vozes em sua mente impedia o pensamento claro de fluir e dificultava o pouco de possibilidade que ele tinha de resistir ao ataque tenebroso do espírito obscuro. Àquela altura a mente de Ângelo já estava vagando dentro das brumas da própria criatura, vez por outra ele se deparava com uma imagem surgindo repentinamente em sua visão, retalhos de outras mentes destruídas e assimiladas, mas que ainda faziam parte da criatura; ele via pessoas desconhecidas, lugares desconhecidos, vidas desconhecidas e épocas diferentes; tudo passando tão rapidamente quanto num filme sendo exibido em alta velocidade. Ângelo não chegou a perceber, mas foi carregado em meio aos estilhaços de vidas que a criatura tinha engolido, saltando de imagem em imagem como se sua mente estivesse se teletransportando numa velocidade absurda e sem saber chegou às mais recentes, antes dele mesmo. As imagens da cabeça de Ricardo. Praticamente toda a vida de Ricardo se desenrolou bem diante dos olhos de Ângelo, mostrando claramente desde os desejos mais infantis até o medo mais oculto. Ricardo jamais havia contado a qualquer pessoa, nem mesmo a Mônica, mas desde pequeno tinha uma intensa repulsa a insetos, não chegava a ser uma fobia, não era nem mesmo um medo, apenas repulsa. Repulsa esta que com o passar dos anos evoluiu para um patamar um pouco mais inquietante e que ele fazia questão de 267
não revelar a ninguém, sentia vergonha do que considerava uma espécie de fraqueza, mesmo sabendo que praticamente todas as pessoas têm algum tipo de medo, fobia ou repulsa de alguma coisa, em maior ou menor grau. Ricardo escondeu de todas as pessoas que conhecia, mas não foi capaz de manter seu segredo oculto diante da sombra que esquadrinhou sua mente e usou aquilo contra ele mesmo atormentando-o com visões constantes e sonhos aterradores repletos de grandes insetos que o perseguiam; principalmente dos que ele mais detestava; aranhas, baratas e besouros ou misturas horrendas e malsucedidas de todos eles. Aquele foi o caminho que a criatura achou para fragilizar Ricardo e dar abertura para o surgimento de seu outro “eu”. Fausto. Da mesma forma o monstro procurava encontrar em Ângelo algo que pudesse usar para também aprofundar seu terror e embora não tenha encontrado algo tão claro quanto em Ricardo, ainda assim conseguiu se ramificar o suficiente dentro da mente do homem, violando e assumindo tudo o que encontrou no caminho. As coisas não faziam sentido e estava tudo perdido dentro de uma grande tempestade cerebral até que os fragmentos de memórias e lembranças alheias trouxeram à sua visão o rosto de Diana, sorridente e radiante como no dia em que a conheceu. Por um segundo inteiro aquele rosto sorriu para ele e em seguida desapareceu soterrado por várias outras imagens. Eram, naquele momento, as imagens de sua própria cabeça, de sua própria vida, reverberando dentro da nebulosidade na qual estava envolvido e foi precisamente aquilo que o fez acordar. Se demorasse alguns segundos a mais, não conseguiria se desvencilhar da sedução que o engoliria por completo. O coração pulsante e nebuloso que pairava no centro da sala mudou sua forma pela última vez. Passou a se parecer com um 268
entrelaçado de tendões, músculos e artérias criando extensões nebulosas como os tentáculos de um enorme cefalópode formado somente por sombras e névoa escura. Toda a luz do cômodo começou a enfraquecer e falhar, como se a simples presença do monstro fosse o suficiente para roubar parte da luminosidade natural do ambiente. Se ele continuasse por mais tempo toda a luz dentro daquela casa seria substituída por um manto espesso e pesado de sombras que envolveria tudo e todos, não permitindo nem mesmo que algum deles pudesse se mover, caso tentassem. A força que Ângelo fez para despertar do meio daquele pesadelo acordado foi tão extrema que sua cabeça disparou em uma dor brutal quase imediatamente, foi como se abruptamente a conexão que ligava o homem ao monstro tivesse sido cortada abrindo feridas profundas em seu cérebro. Ele piscou algumas vezes e a visão do que realmente estava acontecendo na sala voltou a ser como antes, seu corpo estava parcialmente adormecido, mas a sensibilidade retornou logo em seguida como que despertando de um sono. Ângelo viu a criatura cujos tentáculos escuros e fantasmagóricos já estavam quase que todos em seu redor; jamais esqueceria aquilo, tinha certeza de que não era humano, ou seja, ele tinha certeza de que aquela visão aterradora não era fruto de sua própria mente; Jamais uma mente humana poderia produzir uma imagem tão hedionda. Parecia saído de um filme de horror antigo, porém era muito pior. Ângelo saltou para trás com o susto; deixou um grito de terror escapar garganta a fora, seu coração chegou a doer dentro do peito e perdeu a respiração por um segundo. Por uma fração muito pequena de tempo ele chegou a pensar que seria devorado pela criatura bem ali naquela sala, embora o monstro não tivesse qualquer boca ou dentes ou presas. O
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horror o dominou naquele instante com um toque gelado em seu corpo. No momento seguinte o fantasma moveu os vários tentáculos em sua direção tentando alcançá-lo e quem sabe, puxá-lo novamente; movia-se lentamente e quando não conseguiu o que desejava, desmoronou caindo por terra, tornando-se translúcido novamente e se desfazendo como serpentes que rastejaram pelo chão da sala e sumiram em questão de segundos. Não ouve som algum naquele processo; a aparição tinha desaparecido, mas a presença estranha permanecia ali. As luzes voltaram ao normal. Assustado com o que tinha acabado de ver, finalmente Ângelo gritou o nome da namorada. _ Diana!_ disse_ Acorda! Diana piscou também, estava tonta, cambaleou e as únicas palavras que conseguiu pronunciar foram a da seguinte pergunta: _ O que houve? Percebendo que ela não tinha visto nada daquilo, ele também não disse nada, iria guardar a visão demoníaca para si mesmo ao menos por um tempo, mas não cometeria o mesmo erro das outras vezes; logo que tivesse um momento a sós com a namorada iria revelar as visões que teve naquela sala, se é que eram visões. Um a um foram despertando do transe, Patrícia, Mônica, Heloi e Ricardo demonstraram o mesmo grau de desorientação. Ricardo ao ver Mônica se apressou em falar: _ Como vim parar aqui?_ o tom de voz dele era totalmente diferente do que tinha demonstrado momentos antes. Mônica percebeu a mudança na forma de falar, na verdade todos ali perceberam. Ela correu para abraçá-lo enquanto este se levantava do chão, tonto e com pouquíssimas forças no 270
corpo, afinal, tinha passado os últimos meses de sua vida em algum recôndito mental lúgubre criado por uma criatura desconhecida que de alguma forma havia sido atraída para ele. Os outros dois casais fizeram o mesmo e se abraçaram quando perceberam que a aparição que tinham visto na sala havia sumido completamente. O que se seguiu foi uma enxurrada de perguntas: _O que era aquela coisa?_ disse Heloi._ Aonde ela foi?_ ele olhava em volta assustado procurando pela visão assombrosa que todos ali tinham presenciado. _O que aquilo fez conosco?_perguntou Diana referindo-se ao fato de que sua cabeça estava levemente atordoada. Nenhum deles podia sequer imaginar, mas várias de suas memórias tinham se perdido para sempre dentro do turbilhão sombrio do fantasma, em sua maioria seriam apenas memórias antigas e já quase totalmente esquecidas, mas de uma forma ou de outra a violação a qual foram submetidos traria conseqüências mais acentuadas para todos eles no futuro. Naquele momento eles não tinham idéia de tal fato e nada importava mais a não ser estarem todos bem. Ângelo não revelou tudo o que tinha visto e certamente sabia que os outros não tinham presenciado as mesmas coisas que ele, porque se fosse esse o caso estariam todos extremamente fragilizados. Ele sabia que aquela coisa estranha formada por névoa escura queria alguma coisa que só Ângelo tinha para fornecer. Mas ele não sabia que todos ali tiveram suas mentes quase totalmente reviradas do avesso. E tinha razão; a aparição não só buscava algo especial dentro de Ângelo, como já tinha encontrado, e enquanto vasculhava cada canto da mente do homem, manteve as demais pessoas da sala num estado semelhante a um transe, mas ao mesmo tempo se alimentava também de cada um deles. 271
Nenhum deles percebia que ainda não conseguiam ouvir o som da chuva que continuava caindo do lado de fora da casa, pois estavam tentando entender o que tinha se passado ali e muitos detalhes ainda estavam passando despercebidos. O feitiço ainda não tinha se quebrado. _Foi algum tipo de delírio em grupo?_ Perguntou Patrícia, tentando colocar firmeza nas palavras. Não estava conseguindo. _Acho que não. _disse Diana. Ela estava procurando ser racional para tentar trazer um pouco de sanidade àquela sala, mas não seria assim tão fácil. Antes que qualquer um pudesse comentar mais alguma coisa, Ricardo se apressou em afirmar: _ Não foi delírio._afirmou_ Foi tudo real. O tom de voz de Ricardo era grave e firme, parecia ter certeza absoluta do que estava dizendo. E tinha. _ Então o que era aquilo?_ Heloi finalmente conseguiu falar e também queria respostas. Mas sua voz soou quase como a de um garoto. Não estava recuperado da experiência fora do normal. Ricardo suspirou e em seguida fez uma careta provocada pelas dores que sentia. Respondeu: _ Não sei o que é aquilo, mas tenho certeza de que ele quer você._ Apontou para Ângelo. Todos olharam imediatamente para o namorado de Diana. Ricardo continuou_ Quer você muito mais do que já quis qualquer outro antes de nós. Ângelo ficou em silencio por dois motivos; primeiro porque já sabia que a afirmação que acabara de ser feita era verdade, ele mesmo havia sentido toda a volúpia do fantasma enquanto este se ramificava dentro de seu corpo. E segundo, ele não sabia o motivo de tudo aquilo. Ficou calado.
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Diana o abraçou com força tentando produzir algum conforto para o namorado, mas Ângelo estava praticamente impassível. Muita coisa estava faltando em sua cabeça e o pensamento não estava fluindo como deveria. Ricardo não tinha lembrança alguma da prisão escura onde passara todo o tempo em que Fausto estava livre para caminhar sobre a terra, tampouco podia imaginar as atrocidades que sua outra face, motivada pelo fantasma obscuro, tinha praticado. Não se lembrava de ter feito a tatuagem, nem de ter matado a sangue frio o irmão de sua amada Mônica, mas ele sabia que muitas coisas ruins tinham sido praticadas e no momento certo o medo da revelação destes atos o atormentaria quase tanto quanto seus antigos delírios. _ O que vamos fazer agora?_ Mônica perguntou. As mulheres pareciam ter sido menos afetadas pela experiência surreal, mas na verdade elas eram muito mais fortes do que aparentavam. Estavam todas com muito medo, mas não podiam ficar ali sem saber o que fazer; eles tinham que decidir logo alguma coisa. Ângelo olhava para os cantos inferiores das paredes procurando qualquer indício da presença estranha e sombria; procurava algo translúcido, algo se esgueirando, algo fora do normal; fumaça, sombra, qualquer coisa. Não havia nada. Patrícia teve um estalo, correu para a porta que antes estava trancada e verificou que o que quer que estivesse mantendo a casa fechada não estava mais surtindo efeito. A porta se abriu facilmente e ela finalmente viu a chuva caindo do lado de fora. Somente naquele momento o som da chuva entrou novamente na casa e o mundo pareceu recuperar um pouco de sua vida; não estavam percebendo o quanto a atmosfera dentro da casa estava pesada até que aquela porta foi aberta. Foi como se a presença densa e sufocante que saturava o ambiente tivesse se 273
esvaído pela porta e deixado o ar natural voltar para as dependências do domicílio. Foi exatamente isso o que aconteceu. O feitiço tinha finalmente se partido. _Ele não está mais aqui._ disse Ricardo. O alívio no ambiente foi tão perceptível que todos notaram a saída do mal. _Meu Deus! O que foi que aconteceu conosco?_ Mônica ousou perguntar mais para si mesma do que para qualquer outro. Aquela era uma dúvida que todos ali queriam ver respondida, mas não seriam capazes. Porém havia algo muito mais perturbador que todos perceberiam horas depois. Eles saberiam quem era aquele fantasma, pois todo aquele contato havia deixado marcas profundas e indisfarçáveis; se qualquer um deles desejasse realmente saber quem os tinha violado, saberiam, mas logo que percebessem essa possibilidade, todos prefeririam não olhar para dentro de si e descobrir a verdade; alguns deles por medo e outros por pensar que o episódio já tinha acabado e que se tentasse fazer contato com qualquer resquício do monstro, isso poderia atraí-lo novamente para a vida deles. De certo modo estavam corretos. _ Acho que não estamos em condições de tomar qualquer decisão_ Diana argumentou_ Não sabemos nada sobre o que nos aconteceu, é possível que nosso discernimento esteja de alguma forma, corrompido, se não pela experiência em si, mas pelas nossas próprias emoções. Qualquer julgamento agora pode ser precipitado. Precisamos de tempo para tentar entender o mínimo do que aconteceu. Os outros concordaram sem falar. A sobriedade e a lucidez de Diana eram impressionantes. Só a partir daquele momento eles conseguiram ter coragem para se sentar, tomaram assento no sofá, mas antes Ângelo e Heloi ajudaram Ricardo, que continuava tonto, a se sentar. E 274
sentados permaneceram por mais quase uma hora sem falar absolutamente nada, cada qual remoendo os fatos Ă sua maneira.
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14 Finalmente estava de volta ao lar, a chuva tinha diminuído de intensidade, mas ainda caia com força suficiente para fazer com que pessoas não ousassem caminhar pelas ruas sem a devida proteção. Ele estava parando o carro na garagem e sua mente permanecia repleta de pensamentos referentes ao episódio pelo qual passou. Como digerir aquelas visões? Como assimilar as vozes? E pior, como fazer para superá-las? Em pouco menos de dois dias ele tinha ouvido mais vozes e tido mais visões do que na soma de vários anos anteriores. Estava tão perdido quanto um barco à deriva ou um piloto no meio de um terrível vôo cego. Além disso, Ângelo estava experimentando um cansaço físico e mental nunca antes sofrido e também sentia como se muita informação tivesse sido retirada se sua cabeça, havia espaços enormes faltando em suas memórias; não sabia o que havia desaparecido, mas tinha certeza de que perdera muita coisa, apesar disso, outra sensação tão estranha quanto essa estava solta nele. Sentia o corpo muito mais pesado do que antes, como se tivesse dobrado de tamanho, talvez tudo aquilo fosse provocado pelo estado físico em que estava, mas ele não tinha certeza. Sob circunstâncias normais atribuiria tudo aquilo ao cansaço, mas naquela noite não; naquela noite todas as coisas tinham algum significado oculto e tudo estava intimamente ligado ao acontecido na casa de Patrícia e Heloi. Ao sair da casa de seus amigos Ângelo acompanhou Diana até a casa dela, não quis ficar, mas fez questão de entrar e olhar 276
todos os cômodos antes de deixá-la entrar; não sentiu segurança alguma ali. Diana queria ficar na casa e foi com muita relutância que se deixou convencer pelo namorado a não dormir na residência sozinha, ao menos naquela noite. Seria melhor que ela fosse para a casa dos pais. Diana só concordou porque notou o quanto ele estava preocupado e ela não queria fazê-lo sofrer mais com pensamentos quanto ao seu bem estar. Na verdade ela não acreditava que o fantasma visto na casa dos amigos desejasse fazer qualquer mal físico a ela mesma, porque se fosse esse o caso já o teria feito no momento de sua aparição. Diana não tinha as explicações capazes de tranqüilizar os ânimos de todos ou nortear os pensamentos deles, mas estava procurando se convencer de que tinham sido alvos de uma trama casual definitivamente sem explicação. Quantas e quantas vezes tinha ouvido relatos de pessoas que juravam ter visto fantasmas, assombrações e até mesmo extraterrestres; quem não se lembra do caso Varginha em Minas Gerais. Muitas destas histórias eram contadas por pessoas conhecidas dela desde a infância, portanto, Diana, com sua mente racional, tentava equacionar toda a situação e buscava encontrar um fio de ordem que pudesse servir de guia para seus pensamentos, estava obtendo êxito, mas só estava conseguindo porque não tinha visto todo o espetáculo aterrorizante ao qual seu namorado foi exposto. Ângelo não entendia como a namorada podia estar tão calma depois de tudo o que tinham passado naquele dia e depois de tudo o que tinham visto, mas já tinha decidido não pensar em absolutamente mais nada naquela noite. Tudo o que queria era chegar em casa e dormir, no dia seguinte com a cabeça mais fresca depois de uma boa noite de sono e com o corpo muito mais descansado ele pensaria com mais calma e atenção acerca
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de todos os acontecimentos pavorosos que vivenciara e, só então, decidiria o que fazer. Heloi, Patrícia, Mônica, Ricardo, Diana e ele tinham decidido voltar a se encontrar na tarde do dia seguinte; tinham muito a conversar a fim de tentar encontrar as explicações que lhes faltava. Ele tinha não certeza, mas imaginava que Mônica e Ricardo, que passariam a noite na casa dos pais de Ingrid, usariam este tempo para falar sobre tudo o que estava pendente entre eles, provavelmente não fosse muito, pois Ângelo notou uma clara desorientação em Ricardo; todos notaram. Talvez ele realmente não se lembrasse dos fatos do passado; talvez suas memórias tivessem sido devoradas pela sombra e tudo o que restava dentro da cabeça dele fosse um grande vazio escuro toda vez que tentava se recordar de algum fato. Muita coisa estranha tinha acontecido e Ângelo jamais acreditou tanto assim em coincidência para creditar tantos fatos inexplicáveis na conta dela. Estacionou o carro na garagem de casa e quando desligou o motor ouviu o tamborilar dos muitos pingos grossos e pesados sob alguma superfície metálica em algum lugar por ali, nas proximidades, provavelmente numa telha ou algo parecido. Permaneceu parado dentro do carro tentando espantar o fantasma que ainda rondava sua mente; estendeu as mãos sobre o volante e percebeu que ambas estavam tremendo um pouco. Tentou contê-las, mas não foi capaz; estava mais abalado do que podia imaginar. Cerrou os punhos para tentar fazê-los parar de tremer, em uma das mãos ele segurava as chaves do automóvel e da sua casa, elas tilintavam levemente de encontro umas às outras. Passou rapidamente os olhos pelo espelho interno, pensou que fosse ver o rosto que vira antes no espelho da casa de Diana ou
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alguma formação nebulosa surgindo no banco traseiro, mas não havia nada lá. Estava um tanto desconfortável. _ Estou perdendo o controle?_ indagou a si mesmo, e concluiu._ Fique calmo Ângelo. Mantenha a cabeça no lugar. Sorriu ainda com os olhos fixados no seu próprio reflexo no espelho e ficou assustado com sua feição. O sorriso soou alterado e seu rosto ganhou uma aura lunática, destorcida provavelmente pela fadiga, não era nada sobrenatural, mas apenas parecia o sorriso de um homem cujas faculdades mentais estivessem seriamente afetadas. Desviou o olhar rapidamente; seu rosto parecia envelhecido. _Talvez seja o cansaço._ Disse sozinho. E logo em seguida se odiou por estar falando em voz alta coisas para si mesmo. Não era seu costume fazer isso, fazia uma ou outra vez como todo ser humano comum, mas algo o estava incomodando desta vez. Segurou o volante com força por um instante tentando se concentrar, e quando estava se preparando para deixar o automóvel viu algo do lado de fora, um vulto pequeno e escuro que desceu como uma pluma bem ao lado da janela. Ângelo pensou que fosse mais uma de suas visões sem explicação, mas logo viu outro e mais outro; seu carro estava sob uma chuva de pequenos retalhos negros que pareciam se desprender do teto da garagem. Ele colocou a cabeça sobre o volante e aproximou a face do vidro dianteiro para ver o capô do carro; estava coberto daquilo, fosse o que fosse. A chuva comum também continuava, mas aqueles pequenos retalhos negros desciam sabe-se lá de onde aos montes e provavelmente já tinham coberto todo o teto externo do veículo também. Ângelo agiu rápido, mas levou um milésimo para decidir se estava delirando ou não. Abriu a porta o mais rápido que pôde 279
e saiu do carro; o chão estava coberto daqueles pequenos objetos leves e negros, muitos outros continuavam caindo sobre ele vindos do nada. Ângelo olhou para todos os lados esperando ver a sombra nebulosa com tentáculos, mas não havia nada em nenhum lugar. Abaixou e recuperou do chão um daqueles retalhos negros, ficou desconcertado ao averiguar que não se tratava de um retalho de tecido como ele pensava ser, mas sim de uma pena preta, exatamente como a pena de um pássaro, um urubu talvez, media cerca de dez centímetros e era de um tom de preto vivo, quase reluzente; o chão estava repleto delas e muitas outras caiam sobre ele também. Era como ser alvo de uma daquelas chuvas de pétalas de rosa, porém não eram pétalas. Com a pena na mão e ainda procurando algo que pudesse denunciar se realmente era um delírio, Ângelo fechou a porta do carro e ouviu a voz do desconhecido retumbante dizendo: _ Achei que já era hora de nos conhecermos melhor, frente a frente, só nós dois. Finalmente. O carro de Miguel estava parado poucos metros à frente e parecia nunca ter saído daquele lugar. O som pareceu sacudir tudo ao redor, mas obviamente só ele estava ouvindo, era a mesma voz com quem já tinha falado nas outras ocasiões. Tentando deixar o medo de lado, principalmente porque não havia mais nada a fazer, Ângelo fez as mesmas perguntas que sempre teimavam em aparecer nesses momentos: _ O que é você e o que quer comigo?_ A sua voz era tão comum, tão normal, tão demasiadamente frágil se comparada com o estrondo sônico da outra. No fundo não esperava receber resposta alguma, mas a voz retornou: _ Eu conheço você Ângelo dos Santos, conheço seu nome, conheço sua família, conheço seus amigos, conheço a mulher 280
que você ama._ houve uma pausa, E em seguida_ Conheço sua vida, suas recordações, seus sonhos. Conheço suas vontades, seu coração, seu espírito e sua alma. Essa última frase soou como um estrondo ainda maior. As penas negras já não caiam mais, mas o chão ainda estava coberto com elas, era como um tapete de extremo mau gosto confeccionado com dezenas de aves mortas. Como uma peça de mau agouro. _Você não é como Ricardo, na verdade você não é como os outros antes dele; você é diferente, especial. Com poucos medos verdadeiros. _Não sou especial!_ Gritou, mas não havia mais som algum no ambiente, nem a chuva recaindo sobre a superfície metálica em algum lugar próximo, nem o som de sua própria voz; nada. Mas a voz estrondosa ainda soava soberana; o único som capaz de vencer o vácuo repentino que se formou, e foi quando Ângelo percebeu que ela estava apenas dentro de sua cabeça; mesmo que mais alguma pessoa estivesse ali com ele, não ouviria a voz em forma de trovão. Ele queria distinguir até onde aquilo era um pesadelo e até onde era real. _Hoje você vai me conhecer como apenas poucos já o fizeram. E será como eu, seremos um só. Não precisarei de artifícios como os usados em Ricardo, dando vida à porção mais fraca e escondida da personalidade dele; não com você, você é perfeito para fazer tudo o que desejo. Ele é fraco, você não é. Uma névoa negra finalmente brotou do chão como fumaça e cobriu em segundos todo o tapete de penas, em seguida aquilo se ergueu quase que tomando a forma de uma pessoa, não estava muito bem distinta, mas parcialmente disforme, a visão era brutal; parecia haver tentáculos se movendo em lugar dos membros, asas malformadas às costas e uma espécie de grande manto obscuro pendendo dos ombros, se arrastando pelo chão 281
como se estivesse vivo. As luzes da garagem diminuíram e ficaram a ponto de se apagar totalmente. Todas. Ângelo correu para a chuva, tinha que sair dali o quanto antes; gritou, mas a falta de som não permitia pedir socorro. Enquanto corria para o centro do pátio da garagem, fora da proteção contra a chuva ele ainda segurava firmemente a pena negra que recolheu do chão, estava desesperado e não olhou para trás. O vulto pairou sobre sua própria névoa e como um dos anjos decaídos da primeira rebelião que perderam seus corpos, bateu as asas como uma gárgula espalhando mais penas feitas de sombra e em seguida avançou tão rápido quanto o vento. A criatura parecia impedir a propagação da luz e do som ambiente, criando uma espécie de vácuo de pura treva. Qualquer observador que por ventura olhasse a cena que se desenrolava ali veria um homem correndo como se estivesse fugindo do próprio diabo e uma grande nuvem de fumaça escura e sem forma avançando sobre ele, certamente seria a visão mais surreal que um ser humano poderia ter em sua vida, mas não havia ninguém olhando, nenhum observador, nenhuma testemunha, ninguém que pudesse tentar ajudar. Ângelo estava completamente sozinho naquela batalha e não tinha muitas chances de vitória. Talvez ele nunca tivesse corrido tanto na vida, mas nem toda a velocidade do mundo seria capaz de colocar uma distância segura entre o homem e a sombra. Ângelo sentiu as pernas vacilarem por causa do cansaço que inundava sua mente e corpo combinado ao esforço extremo que estava fazendo para fugir, perdeu o equilíbrio por um instante apenas, tropeçou, e foi o suficiente para que a sombra já estivesse sobre ele. Não houve confronto. Ângelo sentiu o corpo sair do chão e ser arremessado contra o solo por uma força desconhecida, bateu a cabeça no 282
calçamento molhado pela chuva com grande violência, gritou de dor, não havia som; ficou tonto na mesma hora. Tentou se levantar, mas o peso da tontura e do cansaço já era demasiado para suas forças comuns. A chuva o açoitava com seus pingos grossos, ele girou de um lado para o outro, estava sobre uma grande poça d’água, tentava se levantar, mas não tinha força para tanto. Pela primeira vez Ângelo teve a certeza de que a origem de suas antigas sensações e das vozes que escutou durante a vida não era divina como tentou se convencer desde sua infância e adolescência, mas sim era originado por aquela coisa que agora o perseguia. Obviamente, uma origem não menos do que profana. As luzes ao redor se apagaram completamente e a escuridão tomou conta de todos os lugares do pátio da garagem, uma escuridão tão densa que parecia sólida, palpável. Ângelo sentia o peso das sombras sobre ele, inutilizando seus movimentos como se houvesse sido engolido por um fosso de areia movediça ou alcatrão, embora não pudesse ver coisa alguma; sentia a movimentação lenta da criatura sobre ele, aquilo gerava uma grande aflição que só foi substituída pela dor que o tomou de repente. _Acompanho você desde sempre, Ângelo._ A voz sussurrou dentro da cabeça dele_ Acompanho todos vocês; procuro alguém que resista, alguém que possua os atributos para suportar a dor. A minha dor. A dor aumentava e a sombra continuava. _ A dor que vai purgar suas dúvidas, seus medos e sua humanidade. A dor que vai transformar a sua mente, seu corpo e vai torná-lo muito mais do que uma simples pessoa; muito mais do que um homem comum. A dor que vai torná-lo um de nós. 283
A vítima não pôde deixar de pensar em “Ricardo, Fausto”; foi um pensamento tão rápido quanto um relâmpago errante atravessando os altos céus naquela noite chuvosa. _ Ricardo não é como você. Tudo o que ele queria era a mulher de volta, eu tive de liberar sua outra personalidade, muito mais vingativa e violenta para que ele se tornasse uma pessoa mais forte, humanamente mais verdadeira. Mas aquele a quem chamaram de Fausto era instável e não compreendeu a grandiosidade do que estava acontecendo, não entendeu que era o meu poder em suas mãos e se infiltrou numa busca particular. Por isso o aprisionei novamente nas profundezas de seu lugar de origem, cuidarei dele no tempo oportuno. Mas agora tenho você. No meio da escuridão mais um som pôde ser ouvido além da voz da sombra e era o farfalhar de asas. Ângelo tentou gritar, mas não foi capaz, estava fraco demais para fazê-lo. Porém todo e qualquer pensamento que brotasse na cabeça dele era imediatamente devorado pela criatura, como se o monstro pudesse decifrar cada sinapse de seu cérebro interpretando-as antes que ele mesmo o fizesse. Ângelo pensou, embora já não tivesse mais força para fazê-lo, em perguntar por qual motivo estava sendo submetido a tal condenação. A criatura respondeu mesmo sem que a pergunta fosse efetivamente feita. _ Você será o meu arcanjo, o meu anjo, meu profeta, meu sacerdote, meu juiz e meu carrasco. Você será uma faísca do Caos, o braço da escuridão; o mensageiro da dor. A dor aumentava; as sombras que tinham roubado toda a luminosidade do ambiente e obscurecido toda a visão de Ângelo pareciam estar tentando entrar através dos poros de sua pele e a vítima estava lutando com o pouco de força de vontade que ainda restava; não tinha mais forças físicas, a lucidez já 284
começava a falhar, a respiração diminuía e os sentidos estavam muito perto de um colapso. A voz continuava a sussurrar: _ Em pouco tempo você vai compreender; tudo vai fazer sentido e a dor será só um mero detalhe. Resistir só tornará tudo muito pior. Ângelo tentou pela última vez se libertar, mas quanto mais ele tentava pior ficava a dor e por mais que a voz das sombras estivesse falando sobre transformação, o que ele sentia era que estava sendo devorado.
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15 Um mês depois. Diana ainda caminhava dentro de casa esperando um telefonema que teimava em não vir. Ela tinha passado o último mês envolvida numa busca que se mostrou completamente infrutífera e ainda nutria esperança de que o namorado a contatasse. Procurou por ele em todas as partes desde que desaparecera misteriosamente naquela noite chuvosa em que a tinha acompanhado até a casa dos pais dela depois de não se sentir suficientemente seguro para deixar que ficasse em sua própria casa. Desde então nunca mais o viu. Ela foi procurá-lo na casa da família dele no dia seguinte ao dia em que tinham presenciado a estranha forma nebulosa na casa de Patrícia, mas os pais de Ângelo já mostravam grande preocupação pelo fato de ele jamais ter chegado em casa. Estavam todos muito nervosos, mas aquilo não os impediu de sair para procurar nas proximidades. Encontraram o carro dele devidamente estacionado no pátio da garagem, mas as portas não estavam trancadas; dentro do veículo não havia nada de diferente ou que chamasse a atenção, pelo contrário, tudo estava exatamente como deveria estar. Os pais de Ângelo, Miguel e a própria Diana averiguaram as redondezas, conversaram com vizinhos e tentaram incontáveis contatos telefônicos com ele, mas nada deu qualquer resultado. O telefone chamava e a chamada sempre terminava indo parar na caixa de mensagens. Ele parecia ter desaparecido completamente da face da terra; algo que não podia ter ocorrido. Ao menos, não de uma forma comum. 286
Diana desconfiava firmemente que o desaparecimento tinha ligação com a criatura hedionda que haviam visto, mas não contou absolutamente nada à família do namorado, não podia falar algo tão estranho como aquilo e, além disso, quem acreditaria se ela contasse? Limitou-se a pedir ajuda a Patrícia, Heloi e Mônica. Estava completamente desesperada e não sabia mais a quem recorrer, não poderia conversar com ninguém mais no mundo a respeito de seus temores. Todos se engajaram completamente na busca pelo paradeiro de Ângelo, mas nenhum deles conseguiu encontrar um fio de cabelo que fosse. Assim se passou o mês inteiro. A família de Ângelo entrou em contato com a polícia para comunicar o desaparecimento logo na primeira semana, todos foram ouvidos, assim como Diana também por se tratar da namorada dele e também por ter sido a última pessoa que o viu naquela noite quando se despediram. Paralelamente a investigação da polícia, a família confeccionou cartazes com uma foto de Ângelo e espalhou em vários pontos do município e também de municípios vizinhos; Diana ajudou levando vários folhetos a lojas e estabelecimentos comerciais enquanto Miguel colava cartazes em postes. Nada surtiu efeito, não receberam nenhuma ligação que pudesse dar qualquer dica sobre onde Ângelo podia estar. Os dias seguintes foram de ansiedade e aflição; a total falta de notícias foi minando principalmente as esperanças de Diana porque ela sabia sobre a criatura, sobre as visões e vozes que perseguiram Ângelo durante quase todo o tempo de vida, mais ninguém na família dele sabia sobre aquele assunto e por esse motivos ainda mantinham vivas as expectativas de que pudessem encontrá-lo novamente mesmo depois de um mês inteiro de buscas que não deram em nada. 287
O telefone finalmente tocou. O aparelho estava sobre a mesa do escritório de Diana, ao lado do computador portátil; ela entrou correndo no cômodo, tinha saído para buscar algo para beber enquanto aguardada o telefonema. E embora estivesse constantemente vasculhando a internet, já não conseguia trabalhar fazia duas semanas, estava impossível se concentrar. Por um momento ela quis acreditar que Ângelo estaria do outro lado da linha e que todo aquele circo era apenas um sonho ruim que teimava em se estender, mas logo que se aproximou do aparelho e o tomou nas mãos viu na tela que o número que estava fazendo contato era na verdade o número de Patrícia. Tocando a tecla para receber a ligação Diana atendeu: _ Oi. A voz soou triste, decepcionada._ passou os últimos três dias tentando se convencer de que seu namorado ia ligar para ela, mas a cada telefonema de outra pessoa que atendia, suas expectativas diminuíam mais e mais. Patrícia respondeu do outro lado: _ E então, alguma novidade? Diana se sentou atrás de sua mesa com um suspiro escapando pelos lábios. _ Não, Nenhuma. Patrícia estava ficando tão preocupada com ela quanto com tudo o que estava rodeando-os nos últimos dias. _ Como você está? Diana balançou a cabeça negativamente como se a outra pudesse ver o gesto do outro lado da linha. _ Estou péssima; isso tudo esta acabando comigo. Não sei quanto tempo ainda vou suportar. _ E quanto aos pais dele? _ Estão ainda piores do que eu. Mas são fortes e persistentes, estou buscando forças no exemplo deles.
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Patrícia estava sendo de grande ajuda, sobretudo no tocante a manter Diana com o ânimo elevado, conversavam todos os dias pelo menos alguns minutos, fora assim durante todo o mês, mas estava ficando cada vez mais difícil mantê-la firme. De todas as pessoas próximas que estavam envolvidas na busca Diana era a única que ainda não tinha chorado desde que Ângelo desaparecera, não tinha derramado nem uma única lágrima, mas aquilo se devia especialmente pelo amor que sentia por ele; Diana imaginava que se chorasse ou demonstrasse desespero estaria demonstrando fraqueza para si mesma e fraca era algo que ele jamais foi. Porém, não ter se entregue completamente ao desespero, mesmo que fosse somente por um instante, estava se tornando um peso cada vez mais insuportável para carregar e a constituição emocional dela talvez não permitisse suportar por muito mais tempo. Diana tinha prometido que não choraria até que encontrasse ele novamente e todas as noites tinha que sufocar a vontade e reprimir o aperto em seu coração. _ Você acha que aquela coisa pegou ele? _ Patrícia já tinha feito essa mesma pergunta várias vezes durante o último mês, mas não sabia muito bem o que dizer daquela vez, sempre que isso acontecia, ela repetia as perguntas. _ Eu sinceramente não sei mais. Queria ter certeza, mas todos os dias me pergunto por que a criatura não o pegou quando se mostrou a todos nós, ou por que não levou qualquer outro de nós, ou Ricardo?_ Suspirou outra vez. Não ouve resposta ou comentário algum do outro lado da linha e Diana continuou falando: _Às vezes penso que ele está muito mais perto do que nós pensando, ontem à noite tive a sensação de que alguém ou alguma coisa estava me observando através da janela. Sabe do que estou falando? 289
Tentando contemporizar, Patrícia falou: _ Acho que você deve descansar um pouco._ ela achava que Diana estava gradativamente sucumbindo a vontade de crer que o namorado estava por perto. _ Eu sei que parece loucura, mas nós duas sabemos bem que o que parece loucura pode muito bem ser verdade._ estava se referindo novamente a aparição. _ Eu sei de tudo isso, mas ainda acho que você deve descansar, todo esse estresse pode fazer mal a você. _ Prometi que não ia parar até encontrá-lo. Como posso descansar? _ Todos nós prometemos Diana, ou você se esqueceu de que ele salvou a vida da minha filha. Devo muito a ele, todos nós devemos muito a Ângelo. Ele vai aparecer. As duas sempre evitavam aventar a possibilidade de que ele jamais aparecesse ou algo pior. _ Está certo, acho que você tem razão. Vou procurar descansar um pouco. _Então está bem. Qual é o próximo passo? _ Devo me encontrar com a família dele para saber das últimas informações no tocante a polícia e logo que tiver qualquer novidade ligo pra você. _ Certo. Amanhã ligo novamente. Diana desligou o telefone e recolocou sobre a mesa, ficou pensativa olhando o aparelho por um segundo e resolveu sair de casa para respirar um pouco, era como se o ar dentro de casa estivesse ficando sufocante e os cômodos mais estreitos. Precisava de ar puro. Porém quando se virou para deixar o escritório o telefone tocou mais uma vez; Diana já tinha caminhado e se encontrava no limiar do corredor, ficou imóvel um instante até que o aparelho tocou novamente. Ela se virou outra vez e olhando o telefone 290
de longe caminhou devagar até a mesa, o aparelho tocou pela terceira vez. O coração dela batia acelerado, Diana queria acreditar que desta vez era Ângelo do outro lado da linha, mas sua racionalidade tentava mostrar que havia poucas chances disso se concretizar. Pegou o telefone e ficou espantada, pois o monitor não revelava número algum; como era possível? O aparelho, ainda na mão dela, tocou pela quarta vez. Diana engoliu em seco e finalmente apertou a tecla para receber a ligação. _Alô!_ disse, não sabia ao certo o que esperar daquela ligação. Nenhuma resposta surgiu do outro lado, ninguém, falou ou se apresentou. _Alô!_ Diana repetiu a palavra e ao mesmo tempo tentava escutar qualquer coisa do outro lado, mas não havia nada para ser escutado, nenhum som passava pelo fone, era como um vácuo. Diana não quis esperar e começou a falar: _ Ângelo, é você? Por favor, responda. Nenhum som. _ O que aconteceu meu amor? Onde você está? Estamos todos preocupados_ Diana falava sem considerar que talvez não fosse seu namorado do outro lado, mas como não escutava coisa alguma vindo pela rede telefônica então resolveu se arriscar. Nenhuma resposta. _Fale comigo Ângelo. Diga qualquer coisa; qualquer coisa. Estou desesperada._ ela estava quase se entregando completamente ao desespero, tentava se conter, mas não estava sendo bem sucedida. Ela parou de falar e ficou ouvindo o nada do outro lado, perdeu a noção de quanto tempo ficou parada e agarrada ao telefone
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tentando manter a esperança de que fosse ouvir a voz de Ângelo dizendo algo. Nenhum som, nenhuma palavra, nenhum ruído. Nada. Quem ligaria para ela se não desejava falar nada, durante o último mês ela não tinha recebido nenhum trote, na verdade não se lembrava se já tinha recebido qualquer trote em seu telefone celular, provavelmente nunca tinha acontecido. _Fala comigo._ ela balbuciou_ Me dê um sinal. Nada aconteceu. E de repente a ligação se encerrou. Completamente desapontada ela recolocou o aparelho mais uma vez s obre a mesa, mas fez aquilo o mais lentamente possível, porque se tocasse novamente ela o atenderia ainda mais rápido. Ele não tocou. Tinha que seguir o conselho de Patrícia; precisava descansar ou não teria forças para prosseguir. Resolveu ir para o quarto deitar um pouco, sua cabeça estava começando a doer, não era nada sério, apenas uma dor fraca, mas insistente. Talvez com um cochilo melhorasse. Quando se virou para deixar o escritório foi surpreendida por uma coisa estranha que caia do teto esvoaçando e rodopiando em pleno ar. Era um pequeno objeto negro e leve, não maior do que um lápis; o objeto capturou a atenção de Diana enquanto descia e logo que chegou ao chão ela teve a certeza de que se tratava de uma pena negra. Não teve coragem de abaixar para pegá-la, olhou em redor e para cima, mas tudo estava exatamente como antes, não havia sombras subindo pela parede ou qualquer névoa maligna brotando do chão. Diana abaixou e tomou a pena na mão, examinou cuidadosamente o objeto mesmo sem entender como ele tinha ido parar dentro de sua casa; a janela estava fechada, portanto não havia a possibilidade de uma lufada de vento ou qualquer brisa levá-lo para dentro do cômodo. Seu coração se apertou 292
porque ela teve certeza de que aquilo era um sinal, porĂŠm jamais conseguiria interpretĂĄ-lo.
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16 Bateram na porta. Ricardo estava sozinho em casa deitado no sofá da sala, tinha passado os últimos dias isolado e pouco havia se envolvido na busca por Ângelo, sabia que ele estava desaparecido a cerca de um mês, mas não tinha coragem de aparecer frente as pessoas as quais prejudicara tanto. Não conseguira explicar a Mônica o que tinha acontecido com ele próprio, não conseguia nem explicar a si mesmo, e se sentia terrivelmente culpado por ter sido o instrumento usado por aquela força caótica para tirar a vida de Leonardo e sabe Deus de mais quem. Todos os dias ele se perguntava o que mais teria feito, tinha medo até de pensar, mas de tudo que possivelmente fizera quando esteve aprisionado pela criatura, uma única coisa havia restado, uma marca física terrível; uma tatuagem com o nome Tânatos, que parecia ter sido confeccionada com ferro e fogo e não com uma agulha especial. A tatuagem tomava o braço direito desde o punho até o cotovelo. Ele não conseguia se perdoar mesmo sabendo que no fundo teve pouca culpa dos prováveis atos insanos que cometeu, jamais foi sua vontade fazer tanto mal principalmente à mulher que sempre amou. Porém sabia que seria muito difícil para todos aceitarem e acreditarem nisso. Portanto teria de carregar esse peso para o resto da vida. Teve pouco tempo durante este último mês para conversar com Mônica, queria tentar esclarecer algumas coisas, mesmo sem saber o que ia dizer, tinha a esperança de que ela percebesse a verdade em seus olhos e a sinceridade em suas palavras, mas Mônica, assim como todos os outros, tinham sofrido demais e 294
agora estavam muito ocupados fazendo todo o possível para tentar encontrar o rapaz desaparecido. Além disso, as feridas emocionais entre eles ainda permaneciam abertas e qualquer toque poderia ser extremamente doloroso. Ricardo queria ajudar de alguma forma, mas tinha medo de que se tentasse se envolver acabasse despertando a sombra dentro dele e por isso achou mais prudente permanecer afastado, porque, assim como os demais, ele sabia que aquele desaparecimento era obra da mesma criatura que o tinha usado e se infiltrado em seu corpo em algum momento de sua vida; aquela coisa que o aprisionara dentro de si mesmo e que passou anos assediando-o e se alimentando das emoções negativas que todo ser humano desenvolve durante a vida, e por algum motivo escuso a criatura acabou por usar exatamente isso para dominá-lo por completo. Um monstro que possivelmente devorasse homens fazendo-os desaparecer completamente da face da terra como fizera com Ângelo, ao menos era isso que Ricardo achava. Havia passado tempo demais sob o domínio da criatura e sentia como se parte dela ainda estivesse dentro dele, observando por trás de seus próprios olhos e esperando o momento de fazer o mesmo a ele. Era apenas uma sensação, mas podia ser causada pelo medo. Ao contrário de Ricardo, nenhum dos outros queria se entregar a essa realidade porque se aceitassem o fato de que uma criatura tão hedionda existisse e fosse capaz de tragar seres humanos a esmo então tudo o mais em que acreditavam desde sempre perderia o sentido. Admitir a existência da criatura era o mesmo que admitir que a humanidade nada sabe sobre as forças que a rodeiam ou sobre os poderes que governam o universo, era jogar na lata de lixo toda a base do pensamento que norteia a sociedade, o pensamento que diz que tudo pode ser explicado mais sedo ou mais tarde, um pensamento tão 295
reconfortante quanto mentiroso, mas Ricardo não tinha dúvidas, nem poderia, agora ele sabia que nem tudo pode ser explicado e que todas as pessoas vivem na verdade bem no meio de coisas tão grandiosas e incompreensíveis que é melhor ignorá-las e torcer para que elas jamais fiquem frente a frente conosco. Infelizmente já era tarde demais para ele. Queria que aquela coisa nunca tivesse cruzado o seu caminho ou ele tivesse cruzado o dela, como poderia saber quem achou quem ou, quem atraiu quem? Perdera tudo o que mais amava, não tinha mais emprego, perdera grande parte de suas memórias, perdera a mulher que amava, amigos, suas referencias e todas as suas convicções. Ricardo era apenas uma sombra do homem que já fora um dia. Além disso, ele não estava conseguindo dormir bem durante as noites, muito embora não tivesse nenhum pesadelo desde o episódio na casa da prima de Mônica, de fato, Ricardo não ouviu mais vozes, não teve mais nenhuma visão de insetos gigantes ou deformados e aquilo que parecia ser uma loucura aguda desaparecera completamente desde aquele dia. Nunca teve semanas tão tranqüilas nesse sentido. Bateram novamente na porta. Ricardo permanecia tão absorto em seus pensamentos que nem estava ouvindo. Tudo o que ele tinha era o momento presente, porque o passado distante desapareceu de sua mente deixando apenas poucos vestígios e o recente estava irremediavelmente manchado com a marca obscura do caos. Por isso passava os dias mergulhado em pensamentos; embrenhado tão profundamente que por vezes era difícil até mesmo retornar. Se pudesse falar com alguém a respeito do que ele achava que tinha acontecido com sua vida nos últimos tempos, diria que por algum motivo de força maior ou apenas por uma brincadeira maldosa, algum anjo expulso do céu teria estendido 296
suas asas negras como a noite sobre ele. Talvez fosse isso o que os anjos decaídos e lançados para fora dos muros da cidade celestial faziam com as pessoas, por puro ódio, maldade e vingança, acabavam com a vida do seres humanos através das eras, roubando, destruindo e por fim matando tudo em seu caminho. Ricardo passou todo o mês pensando naquilo, mas quem saberia se era verdade ou não. Ouviu a voz de Mônica chamando à porta e foi aquilo o que conseguiu arrastá-lo de volta do vendaval de pensamentos e elucubrações para a dureza da realidade. _Mônica?! _ disse para si mesmo, mas num tom tão alto que qualquer pessoa que estivesse presente na casa poderia escutar. Um filete de alegria e até de esperança apareceu dentro dele, poderia finalmente conversar com ela e colocar pra fora tudo o que estava fustigando seu coração, quem sabe ela até o perdoasse por todas as maldades. _Um momento. Já estou indo._ gritou enquanto se levantava do sofá da sala. Ele tinha conseguido arrumar a casa de forma que ela voltasse a ter a aparência de um lar, teve muito tempo livre para isso, não foi capaz de comprar novamente os móveis e utensílios que quebrou durante toda aquela crise, mas sua arrumação foi o suficiente para tornar a casa habitável novamente, mesmo que fosse habitada apenas por ele. Mônica poderia até se orgulhar de ver o que tinha conseguido fazer. Ricardo olhou ao redor para ver se tudo estava de acordo, sabia que estava, havia pouca coisa para arrumar e o lugar se parecia com a casa de um homem sem emprego e sem dinheiro cujos móveis ele não possuía mais. Correu para porta. _ Um minuto Mônica, já vou abrir.
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No sofá; Ricardo havia se levantado e não percebeu a presença de uma pena negra sobre a qual ele próprio estava deitado, ela certamente não estava lá quando ele se deitou para descansar. Ricardo girou a chave no contato da fechadura e pressionou a maçaneta para baixo liberando a porta para abrir. Se ele tivesse prestado bastante atenção nos sinais, teria percebido que a criatura estava na sala, observando-o, mas queria falar com Mônica, só isso importava, sua alma precisava pelo menos tentar colocar um pouco de sentido em toda aquela desordem emocional; tinha certeza de que suas chances com ela não existiam mais, mas não queria que ela passasse o restante da vida achando que ele deliberadamente promovera todo aquele mal por vontade própria. Era apenas uma questão de conseguir um pouco de paz interior para a partir de então recolher os cacos e continuar com a vida da melhor maneira possível. Como se um homem que olhou dentro dos olhos do abismo pudesse fazer isso. Ricardo se lembrou de uma frase que ouvira muito tempo atrás, não sabia onde nem sabia quem tinha dito, mas dizia-se que, quando se olha para o abismo por muito tempo o abismo olha de volta para você. Ricardo tinha olhado e tudo o que ele vira foi a escuridão, sua própria escuridão e uma outra pior, viva por si mesma e que muito provavelmente iria voltar para buscálo algum dia. O encontro foi cedo demais. A porta se abriu e o susto foi tão rápido que ele não teve tempo de se sobressaltar. Não era Mônica. _ Você. _Disse o dono da casa. _ Todos estão lhe procurando já faz um mês, sua família, seus amigos e a polícia. Por onde você andou? _Não queira saber._ A voz era diferente.
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Ricardo olhou de um lado para o outro tinha certeza de que ouvira a voz de Mônica, mas ela não estava lá. _ Não foi Mônica quem chamou por você, fui eu._ o outro respondeu sem que Ricardo fizesse o comentário. Algo estava errado. _ O que você quer? Como chegou aqui se não sabia onde eu morava? Ângelo entrou na casa olhando fixamente para o outro e disse: _ Ainda não acabamos com você._ logo que terminou de dizer aquilo todo o som do ambiente desapareceu. Ricardo tentou correr, mas as sombras surgiram por todas as partes, vindas sabe-se lá de onde e o dominaram como uma serpente que quebra os ossos de sua presa antes de devorá-la ainda viva. A criatura e Ângelo agora eram um só.
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Luiz Cézar da Silva http://luizcezar.blogspot.com/
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