Revista AFROCULT - Ed. 001

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ED. 001 | NOV. 2018

FEIRA PRETA Adriana Barbosa fala do maior evento de empreendedorismo negro da América Latina DONA DE TUDO A cantora IZA conta sobre infância, carreira e representatividade

PEQUENA GRANDE SOFFIA RAP, racismo e empoderamento feminino entre as crianças


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AC // POR DENTRO DA AFROCULT

ÍNDICE EQUIDADE RACIAL

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RETRATO

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O MUNDO ESPIRITUAL É UM SÓ

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R(EXISTE)

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Uma reflexão sobre a busca incessante pela redução das desigualdades Conheça Junião, integrante da Ponte Jornalismo e premiado chargista brasileiro Um panorama sobre o sincretismo e as diferenças da umbanda e do candomblé Moda tenaz para quem veste e para quem vende

A SONORA FORÇA E INFLUÊNCIA DE

MC SOFFIA 26

EMPREENDEDORISMO

Adriana Barbosa conta detalhes sobre o sucesso da Feira Preta

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ESPECIAL LIDERANÇAS 40

Executivos falam sobre representatividade no universo corporativo

ENTREVISTA

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GASTRONOMIA

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Vida e empoderamento com a cantora IZA, atual destaque do Pop e R&B Restaurantes representam uma viagem do continente africano à mesa dos brasileiros 04

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Direção de arte: Victor Compani Coordenação fotográfica: Giovanna Monteiro e Marina Sá

PARCEIROS AFROCULT ALEXANDRE POSSENDORO Orientação e acompanhamento editorial AMANDA CAMILA Ilustrações DAVI VENÂNCIO Concessão de peças Camisaria Kilombo GABRIEL BERNARDI Coordenação fotográfica

LUCAS SARRI Produção de moda MARINA FARHAT Edição fotográfica MICHELE FERNANDES Concessão de peças Boutique de Krioula VICTOR COMPANI Coordenação fotográfica VICTORIA NASCIMENTO Revisão textual

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Foto: Acervo pessoal/Marina Sá

AC // PRIMEIRA PÁGINA

A herança cultural afro-brasileira pode ser apreciada em diversos cenários, como na música, literatura e gastronomia. Entretanto, não é algo assiduamente enaltecido pela mídia. A AFROCULT propõe aproximar o público afrodescendente de tudo o que envolve a contribuição dos negros para o Brasil, por meio de conteúdos sobre negócios, cultura e comportamento, que preenchem as páginas de forma cativante, levantando a bandeira da empatia e do conhecimento. Racismo é assunto de criança sim, e por isso decidimos conversar, nesta primeira edição, com a menina que fala feito gente grande. Ela impressionou nossa equipe de reportagem, logo no início da entrevista, pela maturidade de suas respostas. MC Soffia, nossa capa, esbanjou simpatia e conquistou nossos corações. Temos certeza de que você também irá se apaixonar depois de conhecer um pouco mais sobre seu trabalho. Em nossa edição de estreia também trouxemos diversos líderes engajados do mundo corporativo, na reportagem O topo é para todos. O texto tem a participação de, ninguém mais, ninguém menos, que Rachel Maia, ex-CEO da Pandora Brasil. Ainda sobre negócios, Adriana Barbosa mostra a força do empreendedorismo negro no País, em uma matéria sobre a Feira Preta, o maior evento de cultura afro da América Latina. Conversamos também com IZA, a intérprete da música que não sai dos nossos ouvidos: Pesadão. Empoderada e com um discurso firme, ela partilhou conosco um pouco de sua história e de seus anseios. Para terminar de ler a revista com um gostinho de “quero mais”, a reportagem Os sabores da África em terras tupiniquins traz referências de restaurantes incríveis para visitar em São Paulo. Esperamos que você tenha uma ótima leitura!

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EDITORA CHEFE Marina Sá DIRETORA DE ARTE E CONTEÚDO Giovanna Monteiro REDAÇÃO Giovanna Monteiro Marina Sá Mayara Oliveira Thais Morelli ACOMPANHAMENTO EDITORIAL E GRÁFICO Patrícia Paixão DIAGRAMAÇÃO Tiago Colombari IMPRESSÃO Gráfica P+E

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Ilustração: Amanda Camila

AC // ARTIGO

EQUIDADE RACIAL: ATÉ QUANDO ESPERAREMOS POR ISSO?

Por Mayara Oliveira

Temos visto o discurso da equidade prosperar na mídia, nas empresas, escolas e outras instituições. Mas será que entendemos o significado desse conceito ou estamos apenas vivendo uma tendência? A compreensão é o primeiro passo para a consolidação da equidade. Primordialmente, precisamos entender que esse conceito é ligado de forma intrínseca aos termos justiça e igualdade. Sua definição é dada por Aristóteles, como a necessidade de auxiliar a lei quando a mesma é insuficiente, fazendo-se assim, justiça. Sabendo que individualmente não somos iguais, é necessário buscar a equidade para que se possa criar uma comparação justa. Então, quando falamos sobre equidade racial, partimos do entendimento de que não existe uma igualdade real de condições e oportunidades em nosso país. A cor da pele e outros traços tornaram-se, ao longo da história, marcadores de raça, termo este que surgiu como tentativa de explicar a diversidade humana. Porém, essa separação culminou em diversos problemas. No século XIX, teorias racialistas e eugenistas, fundamentadas por renomados cientistas europeus, pregavam a superioridade da raça branca sobre as demais. Ao longo dos anos, essas teorias foram questionadas e derrubadas, mas de alguma forma deixaram sequelas na sociedade. Outro perigo se esconde no discurso da democracia racial. Trata-se de uma narrativa que defende que o Brasil é um país de convivência harmoniosa entre todas as raças 08

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e no qual não existe racismo. Entretanto, é através dos dados de pesquisas e de nossa vivência diária que descobrimos que esse discurso é mero mito e que as diferenças gritam nas estruturas sociais. Mesmo após 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, as disparidades sociais e econômicas entre negros e brancos continuam espantosas. Compondo 54,9% da população, os negros ainda são minorias nos cargos mais importantes de empresas e em salas de aulas universitárias – tanto como alunos quanto como professores. Em contrapartida, possuem maior chance de serem julgados e acusados injustamente e serem vítimas de homicídios. A desigualdade, inerente à sociedade brasileira há anos, é fruto do preconceito e do racismo, por isso devemos continuar a tomar medidas equitárias paliativas como a instauração das cotas raciais universitárias. Levando em consideração os quase quatro séculos de escravidão e toda a exclusão social sofrida pelos negros, não podemos tomar partido do discurso da meritocracia. Para sermos justos, devemos pensar no conceito de oportunidade. A igualdade só se consolidará quando as medidas de equidade forem tomadas. O racismo se encontra enraizado estrutural e institucionalmente no Brasil e precisamos lutar para a inclusão dos negros nas instâncias privadas e públicas. Assim, aplicaremos a equidade em seu conceito nato, e não apenas como um modismo.


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AC // RETRATO

ENTENDEU OU QUER QUE EU DESENHE? Por Giovanna Monteiro

REPRESENTATIVIDADE IMPORTA E QUANDO AS PALAVRAS NÃO SÃO O SUFICIENTE, É O DIDATISMO DAS ILUSTRAÇÕES DE JUNIÃO QUE TEM O PAPEL DE ENSINAR ISSO AO PÚBLICO

“Morena não, hein?! Sou negrona!! Capricha na tinta, aí!!!”, é o que diz Dona Isaura, principal personagem de Antônio Carlos de Paula Junior ou Junião, como é popularmente conhecido. Criada em 2000, Dona Isaura foi lançada na revista japonesa Look e depois continuou a ser publicada em tiras diárias no Correio Popular e no Diário da Região, impressos do interior de São Paulo.

bancada que dividia o cômodo da sala, ele acenou com a cabeça pronto para começarmos. Suas primeiras palavras me fizeram entender o porquê de termos desmarcado tantas vezes. A energia de Junião não era para inverno. Feito coisa que só o universo explica, nosso bate-papo tinha tudo a ver com aquele terceiro dia de primavera: revigorante, acalorado e, acima de tudo, florido.

Inspirada na avó, que Junião nem chegou a conhecer, a senhora revolucionária, debochada e com um humor cheio de ironia, personifica a luta das mulheres negras no Brasil. Hoje, após quase 20 anos desde a criação de Isaura, Junião tornou-se um dos mais reconhecidos ilustradores brasileiros, com passagem por veículos como Veja, Folha de São Paulo, Estadão e até pela revista francesa Courrier International.

“A TURMA DA MÔNICA NÃO ME REPRESENTA” Na infância, crianças desenham como uma maneira de expressar suas ideias e sentimentos, porém, na pré-adolescência, isso se torna cada vez menos frequente, até desaparecer de vez. Junião nunca parou. Afetuoso, ele seguramente atribui à família esse feito. “Sempre fui muito incentivado a desenhar e correr atrás do que era meu”, afirma.

Porém, não é apenas o seu invejável currículo que o traz até as páginas da AFROCULT. De bermuda e chinelo, fez questão de descer para receber a nossa equipe na portaria do prédio onde mora em Perdizes, Zona Oeste de São Paulo. Com uma simplicidade que impressiona e um largo sorriso no rosto, a camiseta estampada com o rosto de Luiz Gama – jornalista, escritor e Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil – já dizia muito sobre o tom que nossa conversa tomaria. Dentro do elevador, de forma descontraída, ele celebrou finalmente o encontro de nossas agendas. Antes daquele dia, devido à viagens e compromissos profissionais, ele já havia desmarcado conosco outras duas vezes.

Nascido em Campinas, interior de São Paulo, ele recorda que sua estrutura familiar não era nada tradicional. O patriarcado por lá passava longe, quem botava ordem na casa eram as mulheres. “Lembro que teve uma época que eu cheguei até a pensar que eram as mulheres que dominavam o mundo”, recorda em meio a gargalhadas. Filho de professora, conta que, apesar das limitações financeiras, dentro de casa, a arte e a cultura sempre foram elementos essenciais, principalmente quando se tratava da preservação de aspectos da cultura afro-brasileira. “Eu entendi muito novo que não existe outro caminho para o negro que não seja o da militância. A gente tem que se defender para conseguir viver”, pontua.

Ao chegarmos em seu apartamento e estúdio, os brinquedos espalhados pelo chão denunciavam que Bernardo, seu filho de 7 anos, estivera a pouco por ali. “Não repara a bagunça, casa com criança você sabe como é, né?!”, disse, aos risos. Então, sentado em uma cadeira que acompanhava a mesa da cozinha, e confortavelmente apoiado na

Leitor desde pequeno, sua história com a literatura começou nos livros que a mãe trazia da escola. Popular entre as crianças, é de se imaginar que as primeiras referências gráficas do cartunista tenham vindo dos quadrinhos da Turma da Mônica, entretanto, quando questionado sobre, Junião torce o nariz e lembra que, apesar de achar

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Foto: Giovanna Monteiro


AC // RETRATO interessante o universo criado por Mauricio de Sousa, a falta de representatividade nunca fez com que ele se identificasse com as histórias. Quando os livros e as revistas de casa acabavam, era a amizade com os jornaleiros que supria a curiosidade do jovem Junião. “Eles sabiam que eu não podia comprar, então sempre me deixavam folhear as revistas e ler por lá”, relembra. Com a internet ainda longe de existir, foram essas idas e vindas às bancas de jornais da época que contribuíram para o seu amadurecimento artístico. Já adolescente, o contato com o trabalho de artistas como Glauco, Angeli, Laerte, Luiz Gê e a turma da Circo Editorial foram determinantes para a formação de seu senso crítico. O SONHO VIROU MANCHETE Aos 17 anos, chegou à fase da vida mais temida pela maioria dos jovens. Ele precisava decidir o que queria ser. Apesar de gostar muito de desenhar, confessa que nunca enxergou o hobbie como algo que poderia se tornar o seu ofício. Negro e pobre, blindou-se através dos ensinamentos das tias, que diziam que pessoas como eles sempre teriam que brigar para ter espaço. E, assim, com a única certeza de que queria ser grande, foi para Bauru cursar Artes Plásticas na Unesp (Universidade Estadual Paulista). Em seu quarto ano de faculdade, conseguiu um emprego no Diário de Bauru,onde pela primeira vez, entendeu de fato o que era trabalhar com desenho. Lá aprendeu a fazer charges, infográficos, ilustrações editoriais e, então, começou a fazer o que chama hoje de jornalismo ilustrado. Trabalhou por um tempo na Agência Interior, primeira agência de notícias do Brasil, e voltou a Campinas, sua cidade natal. Durante os 11 anos seguintes, dedicou-se a publicações no Diário do Povo e no Correio Popular, contudo, a necessidade de ter mais contato com grandes editoras o trouxe até São Paulo. A união de seu talento e ideias revolucionárias – num período em que as minorias começaram a se manifestar – elevou o artista a um posto que jamais poderia imaginar. Se quando criança acompanhava o trabalho de outros ilustradores nas bancas, agora, era o seu que estampava os principais veículos da imprensa brasileira.

Dona Isaura #00175 publicada em 3 de julho de 2015 | Charge: Junião

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Colaborou com ilustrações, charges esportivas e políticas para a revista Veja, os jornais Folha de São Paulo e Estadão, para o esportivo Lance! e até em publicações internacionais como a revista francesa Courrier International. Ilustrou também livros didáticos, de ficção, infantis, adolescentes e adultos. Além disso, ganhou o primeiro lugar em premiações como o Salão Internacional de Desenho para Imprensa de Porto Alegre, em 2011, o Vladimir Herzog de 2005 e, também, o prêmio de cartoons sobre Aids do Ministério da Saúde em 2004. A partir de então, o mundo sabia quem era Antônio Carlos de Paula Junior.

Dona Isaura #00185 publicada em 3 de fevereiro de 2016 | Charge: Junião

UMA PONTE PARA A INFORMAÇÃO Apesar de ser grato pelas portas que as premiações e os grandes veículos abriram em sua vida profissional, em 2015, Junião sentiu a necessidade de que a sua arte ultrapassasse as páginas da mídia tradicional. “Ser pautado no começo é interessante, mas com o tempo você se sente limitado”, admite. O espaço cedido era sempre pequeno demais. O cartunista conta que dificilmente tinha a oportunidade de falar sobre pautas como os direitos humanos, o combate ao racismo e a igualdade de gênero e, quando tinha, era apenas em datas comemorativas. “Eu cansei de falar sobre a cultura negra apenas no mês de novembro. As pessoas precisam ter consciência o ano inteiro”, e foi essa ruptura que o levou até a Ponte Jornalismo. Com uma proposta única no jornalismo brasileiro, a Ponte foi criada em 2014, inicialmente como apoio da Agência Pública, e atualmente, é o principal veículo que trata de assuntos como segurança pública e defesa dos direitos humanos no Brasil. “Lá eu voltei a me sentir parte de algo maior”, diz o artista, que, além de ilustrador e jornalista, contribui para a construção da linha editorial do veículo. Além disso, conta que o trabalho dentro da mídia independente o possibilitou falar não só através de desenhos, mas também por textos, sobre os cidadãos esquecidos pela imprensa tradicional. Abordando temas como o genocídio de jovens pobres e negros, ele destaca que a Ponte é uma importante ferramenta na democratização do discurso de grupos distintos da sociedade. Entretanto, esse processo é mais comple-


Junião em seu estúdio | Foto: Giovanna Monteiro

xo do que se imagina: “Se eu for falar sobre drogas, por exemplo, preciso falar com o usuário e também com o Estado, um lado nunca entende o outro e isso gera constante atrito entre as duas partes”, explica. Eu cansei de falar sobre a cultura negra apenas no mês de novembro. As pessoas precisam ter consciência o ano inteiro Questionado sobre como o fenômeno das redes sociais contribui para essa democratização, Junião diz que, apesar de serem uma ferramenta importante, esses canais são apenas um dos muitos caminhos. Ir onde as pessoas estão e participar de rodas de conversa e seminários, surte mais efeitos positivos “É essa a razão do nome Ponte. A gente atravessa as pontes ideológicas e de resistência para transportar informação”. Ele afirma que o objetivo é apenas facilitar a comunicação, “eles [pessoas que têm seus direitos humanos atingidos] têm a própria voz. Nós só existimos para garantir que eles tenham o direito de falar”. Com uma agenda sempre cheia de compromissos, o ilustrador e ativista também realiza palestras e cursos sobre os direitos humanos, além de realizar seu trabalho como cartunista em escolas técnicas, faculdades, Sescs e Sesis. REPRESENTATIVIDADE PARA QUÊ? Cartunista, ilustrador, jornalista, músico e pai. Dentre tantas, Junião brinca que ser pai é a sua mais importante profissão.

filho Bernardo nasceu, as ideias começaram a surgir e, em 2016, ele lançou a obra Meu Pai Vai Me Buscar na Escola, pela editora Zit. Na obra, o autor acompanha o olhar do filho ao desbravar o mundo em situações cotidianas. Com escrita simples e frases curtas, Junião conta que seu principal objetivo foi contribuir para que, quando Bernardo começasse a ler, se sentisse representado. “Quando criança eu nunca tive um livro com um personagem negro como eu. Eu queria que ele se enxergasse no personagem”, diz. Despretensioso, ele jamais poderia imaginar que a relação com o seu filho colocada nas páginas de um livro poderia render tanto. Contudo, como a grande maioria dos projetos do artista, a obra virou um grande sucesso, ganhando o Selo Seleção Cátedra 10 – Qualidade em Leitura Infantil e Juvenil. O prêmio foi concedido pela Cátedra Unesco de Leitura, entidade ligada à PUC-Rio que escolheu 20 narrativas infanto-juvenis publicadas em 2016 para receber o carimbo de qualidade. Junião é, como ele mesmo se define, um artista multiplataforma. Fala por charges, por textos, pela música e até pelo desenho pendurado de forma torta em sua geladeira. Independente de como ele escolhe se comunicar, sua voz se faz ouvir. Ele é daquele tipo de pessoa que você conversa por horas a fio sem se dar conta. Nosso papo ainda poderia render muito, mas infelizmente – ou felizmente – os ponteiros do relógio começaram a se aproximar das 16h30, indicando o fim de nossa entrevista. Nosso tempo acabou e era hora de Junião buscar seu filho na escola.

Em contato com o mercado editorial desde que chegou a São Paulo, ele conta que o trabalho com editoras como a FTD, Escrita Fina e Panda o instigou a ter o seu próprio livro como autor e ilustrador. Então, quando seu

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AC // REPORTAGEM

O MUNDO ESPIRITUAL É UM SÓ

A UMBANDA E O CANDOMBLÉ COM O SEU SINCRETISMO E SUAS DIFERENÇAS

Por Thaís Morelli

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Foto: Thaís Morelli


AC // REPORTAGEM Negro, alto, forte, com seus penachos brancos na cabeça e sua flecha entrelaçada nos dedos. Na umbanda, chamado de Oxóssi, no candomblé, Òsóòsi. Duas religiões que carregam muitas semelhanças, mas que não são iguais. Embora compartilhem a matriz africana, uma é genuinamente brasileira, trazendo influência de cultos africanos e de crenças do nosso país miscigenado, enquanto a outra é feita de rituais legitimamente africanos. Babalorixá Antenor Sant'Ana fazendo reverência ao culto africano | Foto: Thaís Morelli Duas tradições distintas e culturalmente afortunadas. Conhecer mais profundamente ambas essas matrizes reO “BATUQUE DE NEGRO” ligiosas sempre foi um desejo pessoal e, para tanto, enPara entender melhor o candomblé, conversei com trevistei Rodrigo Queiroz, professor de Filosofia e TeoAntenor Sant’Ana, que é babalorixá, chefe espiritual logia da Umbanda, fundador da plataforma Umbanda da religião. Ele explica a trajetória do candomblé enEAD e considerado um ícone de recolocação da religião tendendo-o como fruto de uma condino contexto social ordenado e ção histórica específica: a escravidão. desmistificado. Pude fazer uma Assim, fizemos uma viagem ainda viagem histórica ao século XX, “A umbanda seria mais longa no tempo, desde quansintetizada pela interação entre do ser brasileiro era ser católico e o a religião dos o catolicismo, a tradição dos candomblé passou a ser uma religião orixás e os espíritos de origem pretos e indígenas, subversiva, chamada de “batuque de indígena. negro”. que simbolizaria a A umbanda, do alfabeto adâO nome kandombele, ou seja, casa igualdade entre todos mâco aumbandan, e cujo signifide negro, expressa a sua origem. os irmãos, falaria aos cado é “o conjunto das leis diA religião foi iniciada com a opressão vinas”, foi anunciada no Brasil de um povo. Obrigados a trabalhar humildes e que teria em 1908 pelo Caboclo das Sete nas lavouras dos brancos colonizadocomo característica Encruzilhadas. Por meio do méres e defensores da igreja católica, os principal a prática da dium Zélio de Moraes, o caboclo negros praticavam suas crenças de fordeclarou que a umbanda seria a ma secreta nas senzalas e quilombos. caridade com base no religião dos pretos e indígenas, A tradição adentrou o Brasil junto evangelho de Jesus” que simbolizaria a igualdade endos escravos vindos do tráfico netre todos os irmãos, falaria aos greiro de diversas regiões do conhumildes e que teria como catinente africano, o que fez o Canracterística principal a prática da domblé ser dividido entre nações. caridade com base no evangelho de Jesus. “Embora seja A religião prosperou por quatro séculos e, com o fim uma religião monoteísta, ou seja, que reverencia apenas da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, exum deus, especificamente Jesus Cristo, a umbanda pospandiu-se e estabeleceu-se em milhares de templos. sui influências dos Orixás, como Oxóssi, Iansã e Xangô, Inicialmente, preservou muito de sua cultura de origem, sendo regida por essas divindades ancestrais”, explica. todas as suas práticas eram africanas, assim como a língua falada nos cultos, o Iorubá. Para melhor se comunicar e auxiliar a humanidade, as manifestações são feitas através das falanges desses OriO candomblé também é uma religião monoteísta e xás, que são, por exemplo, os Caboclos, Pretos Velhos e que, através das principais nações que congrega – Banmuitos outros. “Tudo isso acontece devido à umbanda tu, Nagô, Angola, Jeje e Ketu – nos faz pensar em difeser uma religião mediúnica e que traz manifestações esrentes maneiras de comunicação, mas sempre com algo pirituais, entendendo que esses guias são espíritos huem comum: propagar o amor e auxiliar na evolução da manos desencarnados que atuam por amor, auxiliando humanidade. “Diferente do que acontece na umbanda, a evolução da humanidade”, destaca Rodrigo. Além da os orixás no candomblé são cultuados como divindades incorporação, essa comunicação com outros planos se que representam força, possuem habilidades, personadá por diversos outros meios sensoriais, dentre eles a psilidades e não ficam somente no plano da influência cografia, a clarividência e a psicometria. energética. São incorporados nos cultos sem consulta,

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tendo apenas o Ifá, oráculo africano, para tal”, afirma o babalorixá Antenor. O candomblé ainda se diferencia em outros aspectos. A religião respeita uma hierarquia mais forte nos templos e realiza algumas cerimônias específicas, como os preparos dos alimentos de santo e os sacrifícios, que são até hoje um tabu na sociedade. A palavra sacrifício, do latim sacrificium, significa “ato de fazer o sagrado”, ou seja, sair da esfera profana e entrar na esfera sagrada. No candomblé, o ato acontece para oferecer a vida de animais ou alimentos às divindades como forma de culto, não como sinônimo de matança. Por isso, a religião acredita que é um erro crasso referenciá-lo à morte de animais. RELIGIÕES QUE RESISTEM Após entender em quais pontos ambas as religiões se diferenciam, foi importante compreender uma força maior que as une: a resistência. Com esse objetivo, conversei com José Maria Pereira, Dona Valdinéia Aparecida Pereira e Karen Cristina Pereira, uma família que está na umbanda desde 1976. Eles me proporcionaram uma experiência de vida, amor e humildade. Em tempos tão desafiadores para a população negra, que luta contra o racismo e a intolerância religiosa, não há dúvida de que as religiões de matrizes africanas, são alvos de discriminação. José Maria conta que no passado o preconceito era ainda pior: “Antigamente, era muito difícil eu dizer para os outros que eu era umbandista. No começo, dizíamos ser ‘espíritas’ para não sofrermos preconceito”. Karen, filha de José Maria, é engajada na defesa da umbanda e não nega as suas origens. “A cultura afro não faz só parte da minha religião, mas da minha história. O preconceito existe e, às vezes, vem até do negro por pura falta de conhecimento”, afirma. Mas acredita que esse panorama vem mudando: “Tá melhorando através de passos de formiga, mas está”, completa.

Orixá Obaluàyé (senhor da cura) em culto de candomblé | Foto: Thaís Morelli

No passado, nos terreiros de umbanda e nas roças

de candomblé, a predominância era de pessoas negras, hoje, a religião é frequentada por negros, brancos “e até por orientais”, como destaca Karen. Além do racismo, essas religiões sofrem ataques de cunho machista, já que têm tradição matriarcal e oferecem às mulheres maior liberdade e poder na prática da religiosidade. Antigamente, as mulheres negras eram as que dominavam o conhecimento da cura por ervas medicinais, tornando-se grandes líderes nessas religiões, semelhantes a divindades femininas como Iansã, Nanã e Iemanjá. São entidades ligadas à força e à luta, contrastando com o papel que foi designado à mulher na sociedade – frágil, submissa e domada pelo patriarcado. CONEXÃO ESPIRITUAL Ao compreender a forma como a umbanda e o candomblé se fundem, consegui entender algumas outras vertentes que vêm nascendo e se instalando nos templos, como o chamado umbandomblé, que é a prática das duas religiões em uma mesma casa. Dona Valdinéia – umbandista, médium, esposa de José Maria e ogã (pessoa que toca atabaque para o santo e possui algumas funções diferenciadas num culto de umbanda) – destaca a importância da união das duas religiões: “As pessoas precisam entender que a umbanda é como se fosse a irmã mais nova do candomblé, que fala aos filhos com mais simplicidade e de uma maneira ‘abrasileirada’ para que todos entendam e se sintam acolhidos, mas essas religiões caminham juntas, sem dúvida. O certo e o errado estão nos olhos e bocas dos seres humanos, dirigentes espirituais e por aí vai. O mundo espiritual é um só!”. Depois das entrevistas abracei essa família e o silêncio se fez presente, assim como todos os benfeitores espirituais que ali nos acompanhavam.

Axé!

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AC // (R)EXISTE

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Jornalista por formação e artista por vocação, Lucas Silvestre, 23 anos, gosta de trabalhar com as câmeras: atrás e a frente delas, como fotógrafo e modelo. Já trabalhou fotografando artistas como Tiago Iorc, Maria Gadú, Liniker e Karol Conká, e teve fotos divulgadas em trabalhos de proporções internacionais.

O jovem, que representa o público G da comunidade LGBT+, é o queridinho dos artistas da nova MPB e já posou até para uma campanha tendo a norte-americana Gigi Haddid como protagonista. Neste editorial de moda, Lucas preenche todas as páginas simbolizando algo muito além da moda: a resistência e a quebra dos padrões.

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AC // (R)EXISTE

Gênero pra mim é uma grande construção social, que limita e tenta nos definir

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Cada ser humano é tão diverso, múltiplo e plural, que as definições de gênero que tentam implantar na gente desde cedo, podem apagar tantos corpos. Eu, sendo um corpo jovem, negro, LGBT e artista, só o fato de existir, sou resistência

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AC AC // // (R)existe (R)EXISTE

Moda pra mim é arte, liberdade e conforto. Penso que vai muito além do que é ditado e “obrigado” a ser

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Se vestir pode ser uma arte, mas isso também tem que te trazer conforto. Nem sempre a beleza precisa doer e você necessita sentir-se livre para usar as criações que bem entender

Direção de arte: Victor Compani Produção de moda: Lucas Sarri Coordenação fotográfica: Marina Sá Assistência de produção: Lucas Cancian e Arthur Andrade Modelo: Lucas Silvestre LUCAS USA ACESSÓRIOS BOUTIQUE DE KRIOULA E VESTE CAMISAS KILOMBO AFROCULT 2 3


AC // ANÚNCIOS


AC // CRÔNICA

QUANDO VAMOS FAZER AQUELE

PINGADO? Por Marina Sá

“Sirva-me! Vá, coloque um pouco de café, mas, veja bem, não coloque muito, já está tarde da noite e você sabe bem como cafeína me deixa. É só um pingado tradicional. Estou levemente enjoado do mocha, é preciso diversificar às vezes. Cá pra nós, café com leite é muito bom, mas ainda assim não se compara a um mocha. Para o meu paladar, café nenhum está à altura do leite. Ei, calma! Sinto saudades do pingado, mas não é para tanto. Mais leite, menos café. Isso, isso! Ótimo!”. O diálogo ecoou em minha cabeça por semanas. Um senhor de engenho ordenando uma escrava a servir, por obrigação, aquilo que não era a sua primeira opção. Lembrei-me, então, da propaganda da Parmalat estrelada por casais inter-raciais nus. O ano era 1997 e a marca lançava seu café solúvel que carregava o slogan O café à altura do nosso leite. A peça publicitária ganhou o Prêmio Abril de Publicidade naquele mesmo ano. Conseguiu ligar os pontos? Espero que sim. Durante toda a minha vida fui comparada ao café pelo tom da minha pele. O incômodo só chegou no dia em que ouvi de um colega de trabalho: “Eaí, quando vamos fazer aquele pingado?”.

As palavras cortaram meus ouvidos e minha cabeça girou. O rapaz era o estereótipo social de beleza: loiro, olhos claros, alto e forte. Ele era o leite e eu o café. A pergunta foi sussurrada em meu ouvido enquanto a indecência segurava minha cintura e o bicho faminto se aproximava. Esquivei-me, pedi que se afastasse e me deixasse em paz e em resposta, o disparo “você diz isso agora, mas depois de dois copos de cerveja, sai comigo”. Foi depois desse episódio que os ecos do diálogo entre o senhorzinho e a preta começaram a consumir meus pensamentos. Senti como se tivesse entrado num túnel do tempo e fosse, de repente, obrigada a servir meu café não-tão-bom-assim. “Branca para casar, mulata para fornicar e preta para trabalhar”, materialização do inconsciente coletivo nas palavras de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. Senti-me a tal da mulata que só serve para sanar desejos carnais, até porque, mulata não reproduz – assim como a mula. Pelas testemunhas que viram a cena fui incentivada a contar aos superiores sobre o ocorrido. O dito cujo teve o pago que merecia. Na época, me arrependi, não queria tê-lo prejudicado, me culpei, chorei, berrei, descabelei. Pensei em quantas mulheres são abusadas diariamente e sentem a mesma culpa. Anos se passaram e isso ainda queima em minha memória, hoje, felizmente, sem culpa. O tempo me ensinou que o problema não é a roupa ou o jeito de falar de uma mulher, mas sim a cultura machista em que estamos inseridos, que nos diz exatamente o contrário e faz as nossas garotas sentirem culpa por exigirem respeito e justiça. Antes, não percebia essa faceta que une racismo e machismo. Achava graça e até gostava de ser chamada de Globeleza. Meu reconhecimento e auto-afirmação foram tardios. Tive que me magoar uma porção de vezes e ouvir de pessoas não-negras que estava sendo vítima de racismo, para me dar conta do que acontecia. Pergunto-me se aquele rapaz seria tão abusado e abusivo com outra garota, uma que se encaixasse em seu mesmo estereótipo. Certamente não. A hiperssexualização da mulher negra é algo que eu vivo na pele, literalmente. Um karma cor-de-café, amargo como os olhares, adoçado com as piadas. Acompanhamento da suposição de que a mulata quente está aqui para esquentar o leite frio e dar tudo que as outras não deram.

Ilustração: Amanda Camila

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AC // CAPA

RACISMO

É ASSUNTO DE

CRIANÇA SIM! EMPODERAMENTO E REPRESENTATIVIDADE NEGRA SÃO TEMAS LATENTES DA RAPPER MIRIM MC SOFFIA Por Giovanna Monteiro e Marina Sá

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“Sou criança, sou negra

Também sou resistência Racismo aqui não

Se não gostou, paciência”

Direção de arte: Victor Compani Coordenação fotográfica: Giovanna Monteiro e Marina Sá

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AC // CAPA Com um sorriso doce e euforia típica da idade, Soffia desceu do carro com os olhos fixos na tela do celular. O local era uma escola pública localizada na Zona Leste da capital paulista. Acompanhada da mãe e da avó, a pequena cantora se preparava para o terceiro de uma série de shows organizados pela Prefeitura de São Paulo. Com pouco mais de 200 mil seguidores nas redes sociais, a jovem MC é afilhada musical de ninguém menos que Karol Conká. Aos 14 anos, Soffia apresenta uma maturidade e engajamento pouco vistos até mesmo em adultos. Internacionalmente conhecida desde a sua apresentação na abertura das Olimpíadas do Rio em 2016, a jovem também ganhou, no ano passado, como artista revelação no prêmio Cláudia, uma das maiores premiações femininas da América Latina. E não foi só isso, ela também entrou na lista anual das 100 mulheres mais inspiradoras do mundo, segundo a rede britânica BBC. Nascida na periferia da região de Raposo Tavares, a pequena artista atrai os olhos e os ouvidos de multidões. Suas letras falam sobre distorções sociais para um público pouco óbvio: as crianças. Vinda de uma família militante, desde muito nova a rapper mirim entendeu – e viveu na pele – o preconceito racial. Com o incentivo da mãe e produtora Kamilah Pimentel, ela se apaixonou pela

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leitura, aprendeu sobre a história de seus antepassados e então começou a questionar a realidade a sua volta. Suas músicas falam sobre a falta de representatividade negra nos desenhos infantis, como ouvimos em Minha Rapunzel tem dread: “Era uma vez uma princesa Rastafari que nasceu no reino de Sabá / Na minha história quem disse que a bruxa é má? / Meninas unidas podem tudo mudar”. Em um mundo de valores invertidos e em que as situações de racismo são constantemente minimizadas, a voz de Soffia chega a cortar. A discriminação racial, infelizmente, não tem prazo de validade. Acontece diariamente e com pessoas negras das mais diversas idades. As crianças sofrem e os pais sofrem também. É preciso educar as crianças brancas e ficar atento aos sinais de crianças negras, pois muitas vezes elas não questionam os fatos e apenas se culpam caladas, passando a odiar e negar seus corpos como se fosse errado. Por isso o trabalho da MC Soffia se faz tão necessário. É preciso conversar com os filhos, sobrinhos, primos e amigos. Empoderar as crianças negras é fundamental. A luta se faz em conjunto e é isso que Soffia procura transmitir em cada uma de suas músicas. Confira abaixo como foi o bate-papo da AFROCULT com essa pequena grande mulher.


Eu sou a Barbie Black Eu ando de skate, curto um trap QUEREMOS SABER DA SUA RELAÇÃO COM AS Eu sou a Barbie Black CRIANÇAS. COMO ESSE PÚBLICO FOI ESCOLHIDO? Como eu comecei muito nova, as crianças me viam Eu sou a Barbie Black cantando e se inspiravam. No lugar delas, eu também adoraria ter uma menina da mesma idade que a minha Eu sou a Barbie Black me dizendo “se aceite, goste do seu cabelo, goste da sua cor, você pode fazer o que você quiser, independente do seu gênero e da sua raça”. Isso é muito importante porque E nenhuma se compara a mim elas estão numa fase de aprendizado, de se reconhecerem como negras. Então acredito que foi uma escolha mútua Eu sou a Barbie Black – nós nos escolhemos. Eu sou a Barbie Black VOCÊ ANSEIA FOCAR EM UM PÚBLICO DIFERENTE? Eu estou crescendo e isso me dá vontade de conversar Sou poderosa, sou uma diva mais com o público pré-adolescente, como eu. Mas eu espero nunca deixar de fazer shows para crianças. São que vão, chamam os pais para irem, ficam ansiosas e Barbie preta, Barbie linda,elassou impressionadas de ver uma menina cantando e ajudando na autoestima delas, e isso é incrível. Na verdade, quero sim ter todos os públicos, sem essa de um ou de outro! Um dia fazer só show para criança, outro dia para jovem e no Eu sou a Barbie Black outro misturado. Eu sou a Barbie Black QUAL A INFLUÊNCIA DA SUA MÃE EM SUA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL? Entrei no Futuro do Hip Hop porque minha mãe conhecia o projeto. Ela que me apresentava mulheres para pesquisar, para que as minhas músicas tivessem mais conteúdo e para que eu pudesse abordar mais assuntos. Ela sempre falava que eu era negra, que eu tinha que me aceitar, gostar do meu cabelo. Além disso, foi a minha mãe que possibilitou que eu fosse cantora. Se ela falasse não, se não me incentivasse, eu não estaria nem cantando agora [risos].

Barbies do meu setor são todas iguaizinhas Loiras, magras, ruivas, todas padrãozinhas COMO FOI O SEU PROCESSO DE ACEITAÇÃO E RECONHECIMENTO ENQUANTO NEGRA? Também sou Barbie, e sei bem Nunca tive problema para reconhecer que eu era negra, mas não queria ser negra. Então minha família, tanto materna, quanto paterna, sempre falava “você é negra, você o que tô dizendo tem o cabelo crespo”, enquanto ostentavam seus cabelos blacks – até que eu me aceitei. Falta mais diversidade, falta se VOCÊ SEMPRE CITA A BONECA MAKENA NAS olhar no espelho SUAS MÚSICAS E SHOWS. QUAL A RELAÇÃO DELA COM A SUA INFÂNCIA? Por que eles fabricam todas A Makena é uma criação da minha vó, Lúcia Makena. Eu sempre tive bonecas negras, nunca tive esse problema de “ela é branquinha, não tem como ser minha filha”, iguais? como acontece com a maioria das crianças. Eu podia faSe cada um é de um jeito, élar “essa é minha prima, essa é minha irmã, essa é minha sobrinha” e isso foi muito importante. assim que a gente faz De todos os corpos e de todas as AFROCULT 2 9


AC // CAPA

COMO VOCÊ LIDA COM A DUALIDADE DE PÚBLICOS QUE ATINGE?

COMO VOCÊ CONCILIA A QUESTÃO DE SER UMA CRIANÇA E FALAR DE ASSUNTOS TÃO SÉRIOS?

Eu acho que, enquanto cantora, eu tenho que saber que eu vou fazer shows para todos os públicos, todas as classes e todas as raças. Quando você é cantor, você quer atingir as pessoas independente se elas vão gostar ou não. Eu faço shows em escolas públicas e também para pessoas que são de uma classe mais alta. Acho muito importante eu sempre me adequar a qualquer espaço.

Levo tudo isso como uma brincadeira. Ao mesmo tempo em que estou brincando, estou dançando e passando uma mensagem. Se as crianças estão brincando, estão aprendendo. É uma troca com o público. Elas estão me ensinando e eu as ensino também.

PARA VOCÊ, QUAL A LIGAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E BRINCADEIRA?

Acho que a Beyoncé, porque ela está quase que no mesmo foco que eu. Mas eu faço muita coisa: canto, danço, pratico esportes... Não tem uma pessoa que faça o tanto de coisa que eu faço, então eu procuro me inspirar em mim mesma. Quanto mais coisas eu aprender e souber fazer, eu vou fazendo.

A brincadeira é uma forma de educação também. Você pode aprender muitas coisas brincando, estudando ou fazendo os dois. Tinham duas crianças brincando na hora do show e tudo bem, porque as crianças às vezes estão jogando e ouvindo a mensagem. Eu também adoro jogar na minha escola. 30

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QUAL A SUA MAIOR INSPIRAÇÃO NA CARREIRA?


QUAL O SEU CONSELHO PARA AS CRIANÇAS?

Não tem uma pessoa que faça o tanto de coisa que eu faço, então eu procuro me inspirar em mim mesma VOCÊ SENTIU UM IMPACTO NA SUA CARREIRA DEPOIS QUE VENCEU O PRÊMIO CLAUDIA? Foi muito importante para as pessoas verem uma menina negra e tão jovem participando de uma premiação tão grande. Estampei capas de revistas para adultos e crianças. As pessoas ficaram espantadas, o que ajudou muito.

Eu falaria para elas seguirem os seus sonhos. Sempre que alguma pessoa falar “não, não siga, é coisa de menino”, “é coisa de menina”, “você não deve fazer isso”... sabe, essas coisas que as pessoas falam para travar os outros: não ouçam. Você tem que ter a sua opinião, ser resiliente e falar com convicção “quero ser estilista”, “quero ser engenheiro”, “quero ser médica”, "quero ser veterinária". Se você for deixar de ir atrás dos seus sonhos por conta de uma pessoa, ficará triste e entrará em qualquer coisa que te colocarem. Então é preciso seguir o sonho, porque ainda que não dê certo, pelo menos você tentou. Ah, e é importante se aceitar, em questão do seu corpo, sua cor, seu cabelo, e ajudar as pessoas que não se aceitam, que estão na fase de reconhecimento, de autoafirmação. E escutar minhas músicas. Ah, escutar músicas de outras pessoas também, senão é chato [gargalhadas].

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AC // EMPREENDEDORISMO

A FORÇA DO

EMPREENDEDORISMO

NEGRO

MAIOR EVENTO DE CULTURA NEGRA DA AMÉRICA LATINA, FEIRA PRETA, IDEALIZADA POR ADRIANA BARBOSA, REÚNE DONOS DE NEGÓCIOS DE DIFERENTES ÁREAS

Por Mayara Oliveira

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Paulistana, negra e criada numa família matriarcal, Adriana Barbosa é referência para muitas mulheres empreendedoras. Poderosa, ela está entre os 51 negros mais influentes do mundo e foi a primeira brasileira a ganhar um prêmio no MIPAD (Most Influential People of African Descent), premiação mundial para afrodescendentes realizada em Nova York, nos Estados Unidos. Foi graças à sua bisavó, com seu espírito inventivo e a necessidade de sobreviver na cidade de São Paulo, que Adriana começou a investir no seu próprio negócio. Para aumentar a renda da família, Dona Maria Luiza preparava e vendia coxinhas com aquilo que tinha na despensa. Anos mais tarde, contou com a ajuda dos bisnetos e chegou a abrir um restaurante na própria casa. “Meu primeiro contato com o empreendedorismo foi com ela”, conta. Seguindo os passos da bisavó, Adriana começou a empreender com o que tinha em mãos. Iniciou abrindo um brechó com suas roupas e acessórios, o Brechó da Troca: “Eu vendia minhas roupas em feiras e mercados alternativos junto com uma amiga que vendia pastel. Ela também estava desempregada e era da área de cinema, então era bem o que a gente tinha em mãos mesmo”. A empreendedora explica que começou a vender e trocar essas peças para conseguir dinheiro para se locomover, procurar emprego e comer.

Direção de arte: Alexandre Borges Coordenação fotográfica: Mayara Oliveira

Depois de muito tempo frequentando feiras alternativas e conhecendo as noites da Vila Madalena, bairro na Zona Oeste que, em 2002, era o maior cenário da black music de São Paulo, Adriana teve outro insight. Percebeu que a maioria das produções artísticas saia das mãos de jovens negros, mas que nenhum deles era de fato protagonista dessas produções. “No final da noite,

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AC // EMPREENDEDORISMO quando acabavam os eventos, quem contava o dinheiro eram os homens brancos e aquilo me deixava intrigada. Como a gente pode produzir riqueza e o dinheiro não passar pelas nossas mãos?”, lembra. Pensando em mudar esse cenário, teve a ideia de criar, ainda em 2002, a Feira Preta, um evento exclusivo para empreendedores negros mostrarem a sua criatividade e inventividade nas áreas de moda, música, gastronomia, audiovisual, design, tecnologia e muitas outras. O Instituto Feira Preta, responsável pelo evento, realiza o mapeamento de afro-empreendedorismo no Brasil e atua como acelerador e incubador de negócios negros, dando oportunidades àqueles que são deixados à margem pela sociedade.

Após tropeços e acertos, a feira, que começou com “zero reais no bolso”, como Adriana costuma dizer, hoje movimenta cerca de R$ 4 milhões. Contando com mais de 700 expositores em suas edições, acumula um público de mais de 150 mil pessoas. FEIRA PRETA O afro-empreendedorismo idealizado por Adriana Barbosa tem como objetivo a valorização da cultura e o fortalecimento da identidade negra. Apesar de todas as dificuldades, 60% dos jovens acreditam que o empreendedorismo é uma alternativa para a mudança social, segundo a pesquisa Juventude Conecta-da, realizada pela Fundação Telefônica Vivo em parceria

“No

final da noite, quando acabavam os eventos, quem contava o dinheiro eram os homens brancos [...]. Como a gente pode produzir riqueza e o dinheiro não passar pelas nossas mãos?”

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com Ibope Inteligência e Rede Conhecimento Social em 2018. Para que os jovens negros possam dar início à sua carreira no empreendedorismo, medidas estratégicas são tomadas para encorajá-los e prepará-los. Uma dessas medidas é o chamado Black Money, que tem como ideia principal o giro de capital dentro da comunidade afrodescendente, incentivando que consumidores negros comprem de produtores negros, fortalecendo o fluxo desse mercado. Outro fator importante é a representatividade: quanto maior o número de negros em posições de liderança, mais a população se vê representada e com vontade de arriscar e investir em seu próprio negócio. A Feira Preta proporciona o encontro de patrocinadores, empreendedores e clientes através de um evento que conta com shows, workshops, palestras e stands dos participantes, criando um ambiente de networking rico para quem quer fazer seu negócio crescer. Além disso, é nela que mulheres e homens negros passam a se ver representados na sociedade e no mercado de trabalho. EMPREENDEDORAS E SUAS HISTÓRIAS Luciane Barros, empreendedora que, em 2013, fundou o Africa Plus Size Fashion Week Brasil, uma forma promover desfiles com modelos negras e reunir empreendedores que tenham interesse em expandir o mundo plus size. Luciane conta que sentiu-se realizada por ter um local como a Feira Preta para mostrar o seu trabalho, espaço esse que a possibilitou alcançar exatamente o público com quem almejava trabalhar.

A empreendedora já frequentava o evento antes de se tornar uma expositora, por isso conhecia muito bem o público.“Eu percebi que eram escassos os trabalhos voltados ao corpo gordo trabalhado com a questão da estética afro. Comecei a pesquisar, a procurar modelos e roupas que a gente podia trazer para essas mulheres. Foi aí que eu entrei com essa de trazer um trabalho mais segmentado”, explica Luciane. Michelle Fernandes, fundadora, diretora-executiva e designer de turbantes e acessórios da Boutique Krioula, que também é participante da feira, nos contou que uma das maiores dificuldades é conseguir empréstimos em bancos, patrocinadores e empregar outros funcionários. Em desabafo disse: “A gente não tem acesso ao crédito do banco e nem do governo. Temos que ficar provando a nossa capacidade. Infelizmente, as pessoas fingem que dão oportunidade pra gente, mas, no final, não estão dando coisa nenhuma”. A Feira Preta é voltada para pessoas que querem valorizar suas raízes, estar em lugares com outras pessoas inspiradoras e se tornar um marco da representatividade na vida de quem já é empreendedor e de quem ainda será. Michelle lembra que o evento também traz a beleza negra à tona: “Antigamente, quando víamos as negras em um clipe de black, pensávamos: 'Nossa! Eu quero ser igual a ela, quero estar num lugar assim'. Quando você vai para a Feira Preta é justamente isso que acontece. É representatividade pura! Você quer estar naquele evento. Sempre foi maravilhoso e continua a cada ano".

RAIO-X DO EMPREENDEDORISMO NEGRO Segundo a pesquisa Os Donos de Negócio no Brasil: análise por raça/cor, que teve como base os microdados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizada no ano de 2014 pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), 50% dos proprietários de negócios são negros. Apesar desse número, e dos negros representarem 54,9% da população brasileira, eles ainda enfrentam sérias dificuldades no mundo dos negócios. Na mesma pesquisa, os dados apontam que 91% dos empreendedores negros possuem negócio de um só dono e apenas 9% são empregadores, enquanto que, no caso dos declarados brancos, essa diferença é reduzida substancialmente para 78% que trabalham sozinhos e 22% para empregadores. Os empreendedores negros sofrem na hora de investir, produzir e até mesmo fechar negócios por conta da discriminação. Por isso, têm menos dinheiro para empregar. Ademais, o número significativo de empreendedores reflete a falta de oportunidade para o trabalhador negro no mercado de trabalho. Muitos resolvem investir no próprio negócio depois de tentarem oportunidades dignas como empregados e não obterem sucesso.

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AC // ARTIGO

A SUB-REPRESENTAÇÃO

DOS NEGROS NA POLÍTICA Por Thaís Morelli

Mais da metade da população brasileira se autodeclara negra, grupo que, com base no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), reúne pretos e pardos. Mas isso é bem diferente no cenário político. No Estado de São Paulo, por exemplo, de acordo com os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), com base nas eleições de 2018, apenas 4,2% dos candidatos que se elegeram são negros, uma representação mínima que reflete de forma negativa o protagonismo negro. De acordo com o cientista social Osmar Teixeira, que defendeu uma tese de doutorado sobre a representatividade da população negra no Legislativo, “a ausência de negros no Parlamento representa um contrassenso, em que a maioria passa a resolver os problemas da minoria”. Nas eleições de 2018, o número de candidatos negros cresceu em comparação a 2014, mas esse grupo continua sendo sub-representado nas eleições. A falta de negros é detectada na maioria dos 35 partidos existentes no país, mas é mais intensa em seis deles, que têm mais de 70% dos seus candidatos brancos: Partido Novo, PCO, PSDB, PSD, PP e MDB. Em contrapartida, as siglas que apresentam o maior percentual de candidatos negros, com 50%, são: PCdoB, PTC, Rede, PSC, PMB, PSOL

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e PT, sendo que, nas eleições de 2018, PSOL e PT inscreveram respectivamente 715 e 639 negros na disputa. Já o partido Novo tem a menor diversidade racial, tendo 85% de eleitos brancos. Anna Karla Pereira é uma das líderes do partido Frente Favela Brasil, que surgiu inspirado na luta pelo protagonismo negro e pelo reconhecimento da dignidade da pessoa negra e das periferias do Brasil. De acordo com ela, “o negro está cansado de ver os outros falarem por ele, pessoas que não vivem a realidade social do negro no país. Precisamos de políticas públicas específicas para essa população e não adianta dizer que outras pessoas vão fazer, porque em toda a construção histórica do Brasil nunca foi feito”. A expectativa do partido para os próximos anos é eleger metade dos candidatos, mesmo que os dados de eleições passadas mostrem que pretos e pardos têm menos de 50% de chances de vencer a disputa quando comparados aos brancos. O fato é que, na política, o negro não fala por si e existe uma urgente necessidade de mudança. É preciso introduzi-lo nesse espaço de poder para que, assim, possa se iniciar a implementação de políticas públicas para reduzir a exclusão desse grupo social.


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Ilustração: Amanda Camila


AC // ANÚNCIOS


AC // ANÚNCIOS


AC // ESPECIAL LIDERANÇAS

O TOPO É PARA

TODOS?

UM OLHAR DE CIMA PARA BAIXO DA REPRESENTATIVIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA NAS GRANDES EMPRESAS E, PRINCIPALMENTE, NOS ALTOS POSTOS EXECUTIVOS

Por Marina Sá

Cabelos trançados, salto alto e batom vermelho. Eu a avistei no grande salão de mármore cercada do barulho de seus sapatos e depois de seus braços calorosos e receptivos num cumprimento. Com um sorriso largo no rosto e uma postura impecável, ela me conduziu do hall até o elevador onde conversamos sobre empoderamento e a liberdade de ser você mesma no local de trabalho. Há 16 anos, Priscila Nicolau, atual especialista de Regulação de Transporte na América Latina da The Dow Chemical Company, ingressou na corporação de produtos químicos por meio de políticas afirmativas – um processo seletivo exclusivo para recrutar estagiários negros. Hoje, Priscila é, também, responsável pela liderança da ANN (American National Network), uma das principais redes de diversidade com foco na equidade racial em que a Dow trabalha há 19 anos em nível mundial e há três em nível nacional. Atualmente, a ANN possui uma quantidade equilibrada de aliados brancos e negros – a luta pela equidade racial precisa contar com a sociedade como um todo, como afirma Theo van der Loo, ex-CEO da Bayer 40

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e grande entusiasta da causa: “A pessoa branca tem um papel. Cada homem branco em posição de poder precisa fazer a sua parte”. Expressamente feliz e orgulhosa de sua empresa, Priscila não poupa elogios à corporação e diz que essa está em excelência no quesito diversidade e inclusão. Em sua fala, destaca que quando uma empresa tem um ambiente diversificado e inclusivo, o relacionamento entre as pessoas melhora e, consequentemente, a sua dedicação ao trabalho: “Todos trabalham mais confortáveis porque não precisam se preocupar em se adequar ao ambiente corporativo”.

A pessoa branca tem um papel. Cada homem branco em posição de poder precisa fazer a sua parte


Da esq. p/ dir.: Rachel Maia, ex-CEO da Pandora Brasil; Priscila Nicolau, especialista de Regulação de Transporte da The Dow Chemical Company; Viviane Elias, gerente sênior de Continuidade de Negócios da Amil; Raphaella Martins, gerente de Atendimento da agência J. Walter Thompson. | Fotos: Marina Sá

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AC // ESPECIAL LIDERANÇAS

VIÉS INCONSCIENTE A empresa escolhe seus colaboradores, mas os candidatos também escolhem minuciosamente a empresa na qual querem trabalhar. A observação vem de Hamilton Amadeo, CEO da Aegea, que passou a se interessar pelo tema após um post sobre racismo no meio corporativo publicado por Theo van der Loo. Depois de muito refletir, reconheceu que, devido aos chamados vieses inconscientes, também era racista de alguma maneira: “Percebi que haviam raciocínios e atitudes minhas que eram racistas e eu não queria e não quero ser racista”, ressalta Hamilton. Foi então que se reuniu com lideranças negras da companhia de saneamento básico e criou o programa Respeito dá o tom, comandado por Josélio Raymundo, um dos diretores executivos da empresa. Hamilton conta que alguns líderes foram relutantes às mudanças na companhia pois acreditavam que perderiam os seus lugares para pessoas negras. Como não se pode obrigar alguém a contratar o diverso, é preciso mostrar para os tomadores de decisão que a contratação é boa, justa e que faz bem à empresa, segundo o CEO. “Ninguém é mau porque é mau. O homem é fruto do meio de certa forma”, pontua Brawner Ramos, especialista de Planejamento Financeiro da Aegea, sobre o preconceito racial. As pessoas sentem empatia por aqueles que são parecidos consigo mesmos e, por isso, os critérios de contratação são majoritariamente subjetivos. usca-se quem frequentou os mesmos espaços, estudou em universidades reconhecidas, etc. Esses são critérios incompatíveis com a diversidade, um problema estrutural. Para solucionar esse problema e gerar mais empatia entre seus líderes, a Aegea fez parceria com diversas organizações de inclusão, entre elas a Educafro, que leva jovens afrodescendentes à empresa para palestrar aos gerentes. Após a implementação do programa, das parcerias e da campanha Racismo é crime, muitas coisas mudaram na empresa, pois as pessoas passaram a ter conhecimento sobre a causa e, como acredita Brawner, isso é primordial na luta antirracista. Atualmente não há um processo seletivo exclusivo para negros, mas, segundo Hamilton Amadeo, se uma pessoa branca e uma negra chegam à fase final de entrevistas, sem dúvida a empresa opta pela negra. “Já me perguntaram até quando eu farei isso. Vou exigir que seja assim até que eu veja na equipe um reflexo do que é o Brasil, ou seja, pelo menos 55% de afrodescendentes”, afirma.

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JORNADA DA DIVERSIDADE Quanto às palestras dadas aos gerentes da Aegea, é uma ação que convém chamar de sensibilização do público interno. A ideia surge de um estudo sobre negros no universo corporativo publicado em março de 2018 pela Santo Caos (consultoria de engajamento que surgiu em 2013). Intitulado Black In: Como Engajar as Empresas com a Diversidade Racial, a pesquisa é um guia que reúne dados estatísticos e depoimentos de diversos grupos étnico-raciais em diferentes posições dentro de empresas: presidentes, gestores, recrutadores, etc. Para Angélica Moreira, publicitária à frente do estudo, o principal objetivo do Black In é a humanização dos dados: “Buscamos dar rostos aos números, mostrar que por trás das estatísticas, há pessoas com diferentes histórias”. Os sete passos para o engajamento propostos no estudo são uma forma de aumentar o comprometimento dos colaboradores, sejam negros ou não, com a causa da diversidade e a empresa em si. Prova disso, que segundo o mesmo estudo, profissionais de empresas que incentivam a diversidade são, em média, 16% mais engajados com a própria organização.

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Questionamento - conscientizar a empresa sobre o seu papel na redução da desigualdade racial Diagnóstico - mapear os colaboradores negros da empresa e compreensão dos desafios

Posicionamento interno - desmistificar o tema e engajar os profissionais, principalmente os líderes Ações internas - definir políticas e estratégias para solucionar esses problemas, incluindo comunicação e treinamento

Ações externas - evitar práticas preconceituosas e buscar incluir profissionais afrodescendentes Posicionamento externo - comunicar de forma mais explícita, divulgar boas práticas e fomentar o debate no mercado de trabalho

Mensuração - acompanhar quantitativa e qualitativamente das ações


DADOS ESTATÍSTICOS Certamente os números com relação as mulheres negras em altos cargos executivos publicado pelo Instituto Ethos em 2016 já estão desatualizados, tendo em vista que a única CEO negra da América Latina, Rachel Maia, deixou a presidência da Pandora Brasil em março de 2018. Antes de assumir o cargo na Pandora, onde ficou por quase nove anos, Rachel foi CFO (Cheaf Finance Officer) da Tiffany and Co por sete anos. Imersa num universo totalmente elitista, Rachel conta que seu legado começou quando assumiu uma postura diferente, mostrando que também era parte de um setor tão nichado quanto o de joias luxuosas. Se deu conta de que não precisava se esconder e que não só podia como devia sentir tanto orgulho quanto qualquer mulher branca do ramo: “As pessoas precisavam entender que eu não estava sendo inclusa como um favor e sim por qualidade e mérito. Não precisamos ficar enfiando o dedo na cara para falar que pertencemos a um espaço, precisamos trazer conteúdo e informação em um nível que chamemos atenção”, pondera.

As pessoas precisavam entender que eu não estava sendo inclusa como um favor e sim por qualidade e mérito FAVOR NÃO, OPORTUNIDADE Como costuma repetir Theo van der Loo, “negro não quer favor, quer oportunidade” e é nisso que outros grandes CEOs estão apostando. Gaetano Crupi, CEO da Bristol-Myers Squibb, tem como ideia de sua gestão ser um líder e um liderado inclusivo, mas sabendo que a maioria das pessoas não partilha dessa mesma ideia, acredita que as políticas afirmativas estão disponíveis para isso, para incluir. “O Brasil está há mais de 500 anos carregando o histórico da escravidão, ou seja, negros e brancos não estão saindo do mesmo ponto de partida”, observa. A fim de proporcionar maiores oportunidades, Gaetano aposta em processos seletivos mais flexíveis. Segundo o mesmo, a probabilidade de um estudante negro ter domínio de um segundo idioma, como o inglês, é mínima; então, anunciar o processo seletivo para determinada posição e exigir o inglês como base eliminatória, é excluir esse grupo, pois pouquíssimos vão atender às exigências da vaga. “Não queremos que o idioma seja um empecilho para contratarmos profissionais afrodescendentes”, declara. Para minimizar esse problema e auxiliar no desenvolvimento de habilidades de seus funcionários, Gaetano

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AC // ESPECIAL LIDERANÇAS

implantou na BMS um curso de inglês aberto para todos os funcionários que possuem interesse em aprender a língua. Além disso, a empresa conta com horários flexíveis, já que boa parte dos profissionais, principalmente os negros, moram e estudam longe do local de trabalho. Outra alternativa que pode ajudar muito é a mentoria de profissionais negros em ascensão – ação que acontece, por exemplo, dentro da Aegea. ATRAÇÃO DE TALENTOS NEGROS “Se as pessoas negras não participam dos processos seletivos, como as daremos oportunidades?”.Esse é o questionamento que se fez Patrícia Santos há 18 anos, quando começou a trabalhar com recrutamento e seleção. Desde que se deparou com a questão, passou a estudar profundamente o tema e se deu conta de que a escravidão foi uma atrocidade que privou a população negra de sua inserção no mercado de trabalho de forma igualitária, e então começou a criar planos de inclusão de afrodescendentes no meio corporativo. Fundadora da Empregue Afro, primeira consultoria voltada à empregabilidade de pessoas negras no mercado de trabalho, Patrícia é especialista de Recursos Humanos do programa Encontro com Fátima Bernardes. Com clientes como Avon, Bayer, Johnson & Johnson e Coca-cola, o desafio da consultoria é alcançar a comunidade negra e as empresas que desejam contratar pessoas desse grupo. Todo o trabalho que a Empregue Afro realiza dentro das empresas é voltado ao engajamento interno, com práticas de treinamento e sensibilização para que os gestores entendam a questão racial. Tratando-se dos candidatos, a ação da consultoria é baseada em um recrutamento especializado, com um head hunter específico a fim de encontrar pessoas, falar com elas e fazer com que queiram participar dos processos seletivos das empresas-clientes. Com a ajuda de uma assistente social integrante da equipe, a Empregue Afro trabalha a autoestima dos candidatos após a aprovação, em uma espécie de mini coaching para desenvolvimento desses profissionais. A questão da autoestima ainda é um desafio na empregabilidade e consequente ascensão de profissionais negros. Taís Araújo, Conceição Evaristo, Pelé, Arlindo Cruz e outras personalidades negras já possuem os seus discursos e espaços consolidados, trazendo representatividade para a população afrodescendente. Contudo, em uma observação muito pertinente, Viviane Elias, gerente sênior de Continuidade de Negócios da Amil e coordenadora do ABPRH (Grupo de Diversidade e Inclusão da As44

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sociação Brasileira de Profissionais de Recursos Humanos), pontua: “Quantos vão conseguir virar jogadores de futebol, sambistas, músicos? A grande maioria não está dentro da área esportiva ou artística, então essa lacuna de representatividade precisa ser preenchida por mais referências. E não estou dizendo só no cargo de CEO”. Theo van der Loo salienta que: "No Brasil, temos o mau hábito de acreditarmos que alguém vai solucionar problemas diagnosticados, e que, nós, individualmente, não temos responsabilidade com isso, delegando então a função para outras pessoas”. É nesse cenário que o trabalho de consultorias como a de Patrícia se torna vital. A Empregue Afro oferece às empresas um pacote chamado Engajamento Interno, em que realiza a consultoria, a pesquisa e diagnostica a forma como a corporação fala sobre diversidade. Essa ação faz com que todos tomem consciência de que a luta contra o preconceito é uma responsabilidade geral. Depois do diagnóstico inicial, a equipe traça um plano de ação junto com o RH, a comunicação e a área de diversidade para, então, desenhar o modelo mais adequado para a empresa. Boa parte desse trabalho gira em torno de uma mudança de cultura, pois de nada adianta colocar o que é diverso dentro de uma empresa sem, de fato, incluir essas pessoas no ambiente corporativo. DIVERSIDADE X INCLUSÃO “Diversidade é convidar para o baile, inclusão é chamar para dançar”, explica Viviane Elias, única mulher negra da América Latina com o certificado de MBCI (Member Business Continuity Institute). Ela conta que, mesmo com todas as suas qualificações, ganha menos do que mulheres brancas na posição de gerente sênior de Continuidade de Negócios, e ainda menos de que homens brancos. Viviane sabe que, após atingir um posto como o seu, a régua que define as suas oportunidades aumenta consideravelmente. Não acredita na viabilidade da meritocracia: “Quem decide a meritocracia é um cara que não passou por 10% do que eu passei”. Essa régua a qual todos os profissionais negros se referem é, muitas vezes, encurtada com relação à régua dos profissionais brancos. Por isso, ela ressalta que ações afirmativas para a inserção de negros no meio corporativo, até mesmo em altos cargos, se fazem necessárias. Um candidato pode não ter todas as habilidades que a empresa gostaria, entretanto, isso é algo passível de se fornecer. “Agora não é possível ensinar uma pessoa a ser enérgica, proativa e competente. Esses são adjetivos inatos ao ser humano”, diz Viviane.


Devido a essas questões, especialmente a de habilidades, é que implementar um programa voltado à equidade racial no meio corporativo não é algo simples, e se torna ainda mais complicado quando tratamos de altos cargos. Hoje já não se pode afirmar que não existem pessoas negras qualificadas para posições de liderança. Nos últimos anos, após a implementação da Lei de Cotas nº 12.711/2012, aprovada sob o decreto nº 7.824/2012, muitos jovens negros e periféricos conquistaram a oportunidade de estudar. A Lei reserva 50% de vagas em instituições e universidades federais para estudantes oriundos de escolas públicas com baixa renda familiar, levando em conta também o percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas de acordo com o IBGE. Com isso muitos mais jovens negros estão se formando e se profissionalizando.

Diversidade é convidar para o baile, inclusão é chamar para dançar UM IMPULSO PARA A ASCENSÃO Trabalhar com a diversidade é uma via de benefícios de mão dupla. Se por um lado a inserção de afrodescendentes no meio corporativo e consequente auxílio na ascensão dos mesmos é eficaz e válida para a redução das desigualdades sociais, por outro, também é um grande passo para as empresas que desejam abraçar, finalmente, o seu público interno e externo. “Empresas que pensam, no presente, da mesma forma que pensavam no passado, não farão parte do futuro”, observa Rachel Maia. Atualmente há uma maior cobrança no que diz respeito à diversidade. O Índice de Sustentabilidade Empresarial e o e-Social são ferramentas que ajudam a mapear a diversidade dentro das organizações, fazendo com que as empresas se movimentem em direção à inclusão. Gaetano Grupi, CEO da BMS, tem ciência de que a mudança precisa começar já, sem esperar uma colisão de valores com o código de conduta da empresa. Segundo ele, os programas de inclusão precisam ser proativos e não reativos, para que sejam, assim, sustentáveis. E ainda ressalta: “Na BMS olhamos para a diversidade como uma vantagem competitiva”.

Brawner Ramos, especialista de Planejamento Financeiro da Aegea | Foto: Marina Sá

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AC // ESPECIAL LIDERANÇAS CONHEÇA ALGUMAS INICIATIVAS DO MEIO CORPORATIVO

20/20 - J. WALTER THOMPSON Uma das maiores agências de publicidade do mundo, a J. Walter Thompson só tinha dois colaboradores negros no Brasil em um quadro com cerca de 400 funcionários. O programa 20/20 deu o pontapé inicial para uma mudança de cultura da empresa. O principal intuito da iniciativa é obter até 2020 ao menos 20% de colaboradores negros em cargos estratégicos. Baseada em três pilares principais, a agência busca conscientizar os colaboradores e a sociedade como um todo, capacitar jovens negros e reter talentos por meio de vagas efetivas.

BOLD - BRISTOL-MYERS SQUIBB Com uma ampla rede de diversidade, a BMS possui a Organização Negra para Liderança e Desenvolvimento (BOLD - Black Organization for Leadership Development), que tem a missão de promover um ambiente inclusivo e que valorize as contribuições dos funcionários negros, incentivando o envolvimento na comunidade negra e a conscientização cultural dentro da empresa.

AFRO AMERICAN NETWORK - THE DOW CHEMICAL COMPANY A AAN é uma das redes de diversidade da Dow. Teve início em 2015 no Brasil e é voltada para a inclusão de negros na companhia. O seu objetivo é promover a equidade racial e estimular o diálogo sobre o racismo. Junto ao público externo, a Dow busca aumentar o interesse de jovens profissionais negros pela indústria química e, para isso, está trabalhando na inserção de negros nos programas de estágio (Jump to the Future) e de trainee da companhia.

Da esq. p/ dir.: Hamilton Amadeo, CEO da Aegea; Theo van der Loo, ex-CEO da Bayer; Gaetano Crupi, CEO da Bristol-Myers Squibb | Fotos: Marina Sá

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RESPEITO DÁ O TOM - AEGEA Programa de igualdade racial lançado pelo grupo Aegea oficialmente em 2017, seu maior objetivo é promover a equidade nas oportunidades de acesso à empresa e o crescimento profissional dos colaboradores que se autodeclaram pretos e pardos. Com a sua campanha intitulada Racismo é crime, a empresa é rigorosa em suas atividades cotidianas e em seus projetos, a fim de garantir que o ambiente corporativo esteja livre de racismo, preconceitos, discriminações e quaisquer atitudes que comprometam a postura de respeito, tolerância e cordialidade que desejam nesse ambiente.

ALIANÇA TODA COR Parceria entre a Dow, Boticário, Bradesco, KPMG, Microsoft e Unilever, o projeto busca influenciar diferentes indústrias, parceiros e clientes na discussão da questão racial. O engajamento de funcionários, a criação de parcerias externas com associações, instituições e universidades e o aumento da inclusão de afrodescendentes no mercado de trabalho, são as suas premissas. A união dessas empresas visa o compartilhamento de experiências sobre como estão, individualmente, trabalhando em ações que ajudem a promover a efetiva inclusão e desenvolvimento de negros.

Todo mundo precisa acreditar no poder bélico da doçura E QUE SEJA DADA A LARGADA! “Que seja porque está todo mundo se movimentando, que seja pelo modismo: em algum momento a razão certa vai aparecer ”, considera Rachel Maia. Por ora, de acordo com a executiva, as empresas têm de se movimentar para entender que o talento, a qualidade e o disruptivo não têm cor. Viviane Elias destaca que não faltam exemplos de negros que, após receberem uma oportunidade, passaram a se destacar na empresa. Ela conta que certa vez quis, pessoalmente, contratar uma garota negra para integrar a sua equipe: “Hoje ela é disputada a tapa por diversos times dentro da empresa, porque quando nós, negros, ocupamos um lugar, damos o nosso melhor, pois sabemos como foi difícil chegar lá”. Cada um dentro do meio corporativo, independente de sua posição e etnia, tem um papel nessa luta. Didatismo, conhecimento e oportunidade são essenciais para essa jornada de diversidade. É sempre válido lembrar que “todo

mundo precisa acreditar no poder bélico da doçura”, como diz Raphaella Martins, gerente de Atendimento da agência J. Walter Thompson. Há diversos perfis de militantes afrodescendentes, uns com discursos mais agressivos do que outros. A grosso modo, é como comparar a militância de Martin Luther King com a das Panteras Negras. Ainda segundo Raphaella, às vezes, por trás do “ser doce” existe uma estratégia muito poderosa de desconstrução. Os números, como os pontualmente apresentados nesta reportagem, provam por que ainda se faz necessário discutir as várias facetas do racismo. Com todas as ferramentas disponíveis atualmente no mercado para mudar o cenário e tornar a sociedade mais igualitária, dizer que não sabe como ajudar a incluir afrodescendentes é, no mínimo, desinformação. A leitura do estudo Black In, da Santo Caos, e do livro Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial, de Pedro Jaime, podem ajudar bastante. Conhecimento é poder e está apenas a dois cliques de distância. AFROCULT 4 7


AC // ANÚNCIOS


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AC // ENTREVISTA

Foto: Divulgação/Gabryel Sampaio

"EU SEMPRE LEMBRO A MENINA QUE FUI" ÍCONE DOS GÊNEROS POP E R&B, IZA SE DESTACA POR SUA SENSIBILIDADE E POSTURA CRÍTICA

Por Thaís Morelli

Com 28 anos, Isabela Lima, mais conhecida como IZA, cresceu no subúrbio carioca. Sua família, de origem humilde, apreciava música e reconhecia o seu talento desde pequena, quando fazia shows na igreja que frequentava. IZA se formou em Publicidade e Propaganda e chegou até a trabalhar na área, mas viu que a sua vocação era o canto. Com carisma e postura crítica, a cantora ganhou o mundo com seus vídeos no YouTube e, em 2016, foi 50

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oficialmente contratada pela Warner Music, uma das maiores gravadoras de música do Brasil. Dentro do Pop e R&B, com pinceladas de soul, IZA já coleciona quase três milhões de seguidores em suas redes sociais e é um dos principais fenômenos do gênero. Além do talento musical, ela se preocupa com seu papel social como artista, sendo um ícone de empoderamento negro e feminino para a sociedade.


O SEU CONTATO COM A MÚSICA COMEÇOU NA INFÂNCIA, EM QUE MOMENTO VOCÊ PASSOU PARA O POP E O R&B?

O ÁLBUM “DONA DE MIM” POSSUI PARTICIPAÇÕES REPRESENTATIVAS DE GLÓRIA GROOVE E RINCON SAPIÊNCIA. COMO VOCÊ AVALIA ESSE DISCO?

Minha família sempre foi muito musical, então desde pequena, eu tive modelos para me espelhar, como minha mãe e minhas tias. Eu sempre gostei desses estilos musicais, então, quando saí do coral da igreja, comecei a fazer covers e me adaptar a novos estilos. Fui treinando cada vez mais até que a música virou minha profissão.

Todos são artistas que eu admiro demais e, por isso, foi uma honra ter cada um deles trabalhando comigo. As músicas foram feitas pensando em cada um deles e eu fiquei muito feliz quando todos aceitaram o convite. Trabalhamos muito nesse álbum, quase um ano e meio. Ele é o retrato de muita dedicação, pesquisa e entrega. Quando o criamos, eu quis colocar tudo o que eu mais gosto de cantar nele, colocar um pouco de mim em cada letra. Existem muitas vozes, várias emoções e ritmos que me definem.

VOCÊ REVELOU JÁ TER SOFRIDO PRECONCEITO QUANDO PEQUENA POR SER A ÚNICA CRIANÇA NEGRA DA TURMA. COMO ISSO IMPACTOU NA SUA CARREIRA?

Que todas possam se aceitar como são VOCÊ VENCEU NA CATEGORIA REVELAÇÃO DO ANO NO PRÊMIO WOMEN’S MUSIC EVENT AWARDS. QUAIS OS BENEFÍCIOS DISSO PARA A SUA CARREIRA E COMO FOI VER OUTRAS MULHERES NEGRAS SEREM REPRESENTADAS?

Z

Eu sempre lembro a menina que fui quando era mais nova e como era importante me ver nos lugares, me sentir representada e ter uma mulher forte me dizendo todos os dias que eu era capaz e que “quem sabe sou eu”. Então, vou passar essa mensagem através do meu trabalho sempre que possível. QUAL O PRINCIPAL MOTIVO DE TER NEGRA LI E BEYONCÉ COMO EXEMPLO?

Acredito que elas tragam mensagens inspiradoras e histórias de vivências com diversos aprendizados. COMO SE SENTE EM SABER QUE VOCÊ É A INSPIRAÇÃO DE DIVERSAS MENINAS?

Tem sido muito especial saber que diversas meninas e mulheres incríveis me têm como representante. Espero continuar passando uma boa mensagem à elas e que todas possam se aceitar como são e sentirem-se bem consigo mesmas. Isso é muito importante! DE QUE FORMA A SUA FORMAÇÃO BENEFICIOU SUA CARREIRA COMO ARTISTA?

Eu sempre gostei muito de me comunicar, contar histórias e criar. A Publicidade foi um caminho para realizar essas coisas. Com certeza a faculdade me ajudou a ser a profissional que eu sou hoje, a traçar objetivos e alcançar metas. Quando eu comecei, foi algo muito despretensioso, nunca imaginei a dimensão que tomaria em minha vida, foi tudo muito rápido.

Foi uma experiência incrível, que me ajudou a crescer como artista e querer continuar crescendo. Assim como eu, acredito que elas também já sofreram preconceito na vida, então foi ótimo tê-las ao meu lado. Quanto mais estivermos em lugares de destaque, mais conseguiremos passar para o mundo que tudo é possível. EM UMA ÉPOCA QUE SE FALA TANTO SOBRE EMPODERAMENTO, QUAL O SEU PAPEL COMO INFLUENCIADORA?

Acho que ainda temos muito o que conquistar. Não somente em prol da mulher, mas da mulher negra. Acredito que a gente ainda é sim a parcela da população que mais sofre com homicídios e racismo, por exemplo. Gostaria de conseguir, cada vez mais, oportunidades para que todas essas mulheres tenham lugares de protagonismo. APÓS O ÁLBUM “DONA DE MIM”, QUAIS SÃO AS EXPECTATIVAS PARA OS PRÓXIMOS TRABALHOS?

No momento estou focada na turnê de divulgação do “Dona de Mim”. Quero passar pelo Brasil inteiro e fazer muitos shows.

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AC // NAS RUAS PALAVRAS CRUZADAS: LUGARES DE FALA CONTEMPORÂNEOS Sesc Vila Mariana | 21 de setembro a 23 de dezembro

Foto: Divulgação/Pedro Figari

Foto: Divulgação/Rosana Paulino

Foto: Divulgação/Sesc Vila Mariana

Estimulando reflexões sobre problemas sociais como machismo, racismo, homofobia e desigualdade, a exposição multimídia e interativa chega ao Sesc para trabalhar a questão dos preconceitos. O público é convidado a percorrer espaços cercados por vídeos – que são acionados por sensores de presença – com debates que abordam a questão da visibilidade.

ROSANA PAULINO: A COSTURA DA MEMÓRIA Pinacoteca | 8 de dezembro a de 4 de março de 2019

O artista uruguaio Pedro Figari expõe sua coleção de pinturas inspiradas em suas raízes históricas e étnicas. Grande representante modernista, o autor dá como foco para a sua exposição as narrativas afro-uruguaias ao retratar danças, festas e passeios.

Paulistana e doutora em Artes Visuais, Rosana Paulino apresenta a sua mostra em São Paulo. Sua produção de estreia aborda questões étnicas, sociais e de gênero, com foco na mulher negra e nos tipos de violência deixados pelo período da escravidão.

SONIA GOMES: AINDA ASSIM ME LEVANTO MASP | 14 de novembro a 10 de março de 2019 Com uma produção visual que promete recuperar práticas artesanais brasileiras, Sonia Gomes nos traz o universo da costura e do bordado da cidade de Caetanópolis – Minas Gerais. As esculturas e instalações remetem às técnicas das amarrações, patuás e nós de expressões culturais afro-brasileiras e de tradição das rendeiras.

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Foto: Divulgação/Bruno Leão

PEDRO FIGARI: NOSTALGIAS AFRICANAS MASP | 14 de dezembro a 10 de fevereiro de 2019


Autor: Lázaro Ramos Editora: Objetiva ISBN: 8547000410 Páginas: 152 Preço: R$28,90

NA MINHA PELE

Autora: Ana Maria Gonçalves Editora: Ática ISBN: 8508171277 Páginas: 200 Preço: R$ 35,90

QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA Em formato de diário e com uma narrativa totalmente envolvente, o livro é o relato de uma catadora de papel e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, na década de 1950. Além de inúmeras dificuldades sociais, Carolina conta como é a rotina dentro de uma favela e como se transformou em uma pessoa tão centrada, sonhadora e com uma enorme consciência política.

Foto: Divulgação/José Olympio

Foto: Divulgação/Ática

Falar sobre racismo e intolerância não é nada fácil, ainda mais para um negro bem-sucedido. Esses foram alguns dos questionamentos que povoaram a cabeça de Lázaro Ramos quando foi convidado pela Objetiva para escrever Na Minha Pele, um livro que materializa questões sociais, vivências e, principalmente, a importância que se dá à pele que habitamos e sua cor.

Apesar de não ser uma biografia, o prelúdio do livro fala sobre Lázaro e sua infância humilde na Baía de Todos os Santos, em Salvador, e como, mesmo depois de se tornar um ator internacional, esse início teve grande impacto em sua vida, pois tudo foi conquistado através de muito esforço e trabalho desde aquela época. Nos primeiros capítulos, o autor conta sobre a sua adolescência e como era ser um dos únicos negros na escola. Também fala sobre a sua formação, seus primeiros empregos e o seu ingresso no Bando de Teatro Olodum, um marco para o seu amadurecimento pessoal e profissional. Tudo isso serve apenas como uma introdução para fundamentar o objetivo da obra, que não só carrega memórias, mas também disserta sobre conflitos de opinião, questões políticas e as dores do racismo. Lázaro afirma que decidiu ampliar as discussões sobre racismo a partir do nascimento de seus filhos João Vicente e Maria Antônia, 6 e 2 anos. Ele e sua mulher, Taís Araújo, se preocupam em criar e educar as crianças em meio a essa sociedade tão racista e machista. Ao final do livro, o pai, ator e autor se debruça sobre o empoderamento negro e a inclusão social, citando exemplos desse movimento vindos de diferentes manifestações artísticas como livros e canções, teses acadêmicas e até a contribuição de jovens na internet em seus canais no YouTube.

Autor: Harper Lee Editora: José Olympio ISBN: 9788503009492 Páginas: 350 Preço: R$31,90

O SOL É PARA TODOS Eleito o melhor romance do século XX e ganhador do prêmio Pulitzer de literatura, O Sol é para todos conta a história de Jem e Scout Fincher, duas crianças norte-americanas que vivem no início dos anos 1930. Eles testemunham o preconceito e a ignorância em Maycomb, sua cidade natal, além de presenciarem inúmeros confrontos entre negros e brancos.

Foto: Divulgação/Grupo Editorial Record

Foto: Divulgação/Editora Objetiva

AC // NAS PÁGINAS

Autora: Carolina de Jesus Editora: Record ISBN: 9788501071750 Páginas: 952 Preço: R$65,70

UM DEFEITO DE COR Com título auto-descritivo, a obra faz referência ao decreto colonial brasileiro que impedia os negros de exercerem empregos públicos e outras profissões. O livro narra a história de Kehinde, mulher que viveu a sua infância em Savalu, atual Benin, e veio para o Brasil como escrava, vivendo na Bahia e no Rio de Janeiro.

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AC // NOS FONES LIBERTE ESSE BANZO Artista: Luciane Dom Gravadora: Mondé De uma musicalidade que transmuta entre o Jazz, a MPB, o R&B e o Afrobeat, o primeiro disco de Luciane Dom não é apenas a trilha sonora perfeita para diversas ocasiões, como também carrega em suas letras todo o histórico da população negra. Em faixas que se completam, o álbum conta a história de uma realeza que é raptada e trazida ao Brasil. Entre sons levíssimos e outros tão pesados que fazem batucar mais forte o peito, o disco retrata loucura, desânimo, consciência e luta. A capa, que diz muito sobre o conteúdo do álbum, retrata um corpo negro gigante tomando conta de uma cidade. Luciane Dom retoma em Liberte seu banzo a ancestralidade do afrodescendente brasileiro. “Guardo sorrisos que censuram qualquer dor, dias breves de um tempo a refletir, casa cheia de tudo o que deixou”, canta em uma de suas letras. Libertar o banzo é quilombo, é dança, é rua. É se colocar no mundo, ser parte, ser presença. É resistência! Foto: Divulgação/Mondé

Foto: Divulgação/Universal Music

Foto: Divulgação/Deck

Foto: Divulgação/Best Laid Plans

PARA DIAS RUINS Artista: Mahmundi Gravadora: Universal Music

RATIONALE Artista: Rationale Gravadora: Best Laid Plans

DEUS É MULHER Artista: Elza Soares Gravadora: Deck

Com músicas leves, no estilo que flutua entre Pop, R&B e Soul, o segundo disco de trabalho de Mahmundi é carregado de sentimentos bons. Alegria abre alas para a sequência de faixas perfeita para embalar os dias ruins. Esse é um daqueles álbuns para ouvir na tranquilidade de um dia no parque ou no almoço de domingo em família.

Oriundo do Zimbábue, Rationale tem ganhado muitos fones de ouvidos mundo afora. As músicas em inglês ficam ainda mais vibrantes com o seu sotaque, influenciado por dialetos africanos. Suas músicas misturam o eletrônico com o R&B e o synthpop, e o álbum autointitulado é ideal para dar uma animada no dia a dia, a exemplo da música One by One.

“O meu País é meu lugar de fala”, dispara a senhora de alma juvenil nas frases iniciais da faixa O que cala, primeira de seu disco Deus é mulher. De maneira provocante e avassaladora, a cantora que mescla MPB, Jazz e Samba em suas canções, traz para esse álbum temas latentes da desconstrução social como política, sexualidade, violência e religião.

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AC // NAS TELAS FELICIDADE POR UM FIO Direção: Haifaa al-Mansour Lançamento: 2018 A comédia romântica é baseada no primeiro livro da série Nappily Ever After, da autora norte-americana Trisha R. Thomas. O título é um trocadilho com a frase Happily Ever After (em português felizes para sempre), que em sua versão é algo como “crespos para sempre”. O livro, assim como o filme, conta a história de uma mulher em busca de si mesma e de seu cabelo natural. O longa, disponível na plataforma Netflix, é dividido em capítulos, cada um deles correspondendo a uma fase da protagonista Violet, uma publicitária bem-sucedida e com a vida amorosa dos sonhos, interpretada pela atriz Sanaa Lathan. Desde pequena, Violet é sujeitada pela mãe a se encaixar nos padrões da sociedade, ou seja, não entrava na piscina e nem tomava chuva, pois acreditava que, para ser notada, precisava sempre estar com seus cabelos lisos e sua maquiagem impecável. Até que se frustra com um pedido de casamento não realizado. O acontecimento faz a protagonista reavaliar o seu estilo de vida e a sua identidade. O enredo vai muito além de uma comédia romântica. Após alguns drinks, Violet se vê sem chão e raspa o seu cabelo, criando uma história incrível de auto-aceitação!

Foto: Divulgação/Buena Vista Internacional

Foto: Divulgação/IMOVISION

Foto: Divulgação/Globo Filmes

Foto: Divulgação/Netflix

MENINO 23 Direção: Belisário Franca Lançamento: 2016

EU NÃO SOU SEU NEGRO Direção: Raoul Peck Lançamento: 2016

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO Direção: Steve McQueen Lançamento: 2014

O documentário dinâmico que não deixa a temática e os personagens cansativos, conta a história de garotos órfãos que foram adotados por famílias poderosas e com uma grande promessa de escolaridade e profissionalização na década de 30. Os relatos trazem à tona uma enorme crítica social ao conceito de raça.

Amigo do ativista Martin Luther King, o escritor negro James Baldwin morreu em 1987 e deixou algumas páginas de um texto inacabado sobre o racismo nos EUA. Isso foi o suficiente para que fosse adaptada. Um longa-metragem, que conta a incrível trajetória de um intelectual que não aceitava a cultura de supremacia branca.

Terceiro filme de Steve Mcqueen, o longa ganhou três estatuetas no Oscar. A produção conta a história de Solomon Northup, um negro nascido nos EUA na época escravagista e que foi parar em uma senzala junto de outros escravos. A narrativa, então, percorre os 12 anos que antecederam a sua libertação.

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AC // REPORTAGEM

BLACKGROUND: ONDE ESTÃO OS NEGROS NO CENÁRIO AUDIOVISUAL?

A AUSÊNCIA DA REPRESENTATIVIDADE NEGRA POR TRÁS DAS CÂMERAS Por Mayara Oliveira

A desigualdade racial abrange diversos setores do mercado de trabalho e é no cinema que enxergamos essa disparidade com mais clareza, em especial no Brasil. Onde estão os negros no cenário audiovisual? Quantos deles participam desde o início do processo à atuação nos filmes? Como é, hoje, a representatividade negra por trás das câmeras? Por décadas, os negros foram representados na mídia e na arte – cinema, televisão, rádio e teatro – de maneira estereotipada. Lembremos do blackface, prática teatral em que atores brancos pintavam as faces com carvão de cortiça para representar personagens afro-americanos de maneira exagerada, exótica e, muitas vezes, jocosa, fazendo apenas reforçar o racismo. A prática pode ter sido extinta dos palcos, mas os negros continuaram a ser alvo de discriminação nas novas mídias, tanto por sua imagem, quanto por sua posição social. O sociólogo e historiador Carlos Machado é mestre em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), estudioso do movimento negro e da cultura africana e autor do livro Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente. De acordo com ele, o artista branco não é capaz de representar o negro, como esclarece: “É muito complexa a situação de um branco contar a história de um negro, sem estar no seu lugar. É basicamente falar sobre uma cultura que não é a sua”. Em 1930, com a ascensão dos movimentos sociais e consequente visibilidade ao povo marginalizado, é que se iniciou a inserção do negro como representante do povo brasileiro nas mídias. No entanto, o problema fundamen56

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tal permanecia: homens brancos escreviam sobre a cultura e a história de homens negros sem a terem vivenciado. Somente a partir da década de 1960, com o chamado cinema novo, o mercado cinematográfico brasileiro passou a ter cineastas negros, como Zózimo Bulbul, Cajado Filho e Agenor Alves. A pesquisa intitulada A cara do cinema nacional, publicada pelo Instituto Gemma (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa), sobre a produção audiovisual no Brasil, mostra que 74% dos roteiristas são homens e, desse total, apenas 4% são negros. Em contrapartida, apenas 26% são do gênero feminino e, dessa porcentagem, não há nenhuma mulher negra. Na direção, o cenário se mostra ainda pior: 84% dos diretores são do gênero masculino e de cor branca, enquanto que 13% são mulheres brancas. Apenas 2% dos diretores são homens negros e, novamente, não há nenhuma porcentagem de mulheres negras na categoria. Mesmo com mais da metade da população composta por pessoas que se declaram negras e um crescente protagonismo negro dentro do audiovisual brasileiro, ainda podemos perceber a alarmante desigualdade de gênero dentro desse mercado. Poucas mulheres dirigem filmes no Brasil, reforçando a ideia de que o cinema foi, desde seu início, produzido por homens e para homens. Lygia Pereira, 25 anos, é graduada em Midialogia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e atualmente realiza o seu mestrado pela ECA/ USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo). Ela afirma que os problemas de representatividade co-


meçam no currículo tradicional do curso de audiovisual: “As referências acabam sendo sempre homens e brancos. Então, para você estudar algo diferente, é preciso correr atrás. Percebo que as referências ainda estão carregadas por essa tradição que por muito tempo não foi contestada”. Na opinião da mestranda, apostar em histórias reais, escritas por pessoas que sentem na pele as situações retratadas, é o caminho ideal para acertar na visibilidade e na representação da população negra.

fazer parte do catálogo. Apesar dos problemas de desigualdade e falta de incentivo público, é através de iniciativas privadas como essas que o cenário audiovisual passa a se diversificar, seguindo o ritmo de evolução da sociedade rumo à equidade em todos os níveis.

Além do problema da desigualdade de gênero, ainda percebemos a questão do déficit de políticas públicas e financiamentos de projetos que fomentem as produções audiovisuais pelos negros. A Apan (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro), fundada em 2016, é uma das únicas instituições brasileiras voltadas à fomentação da produção audiovisual negra. Além da valorização e divulgação de suas realizações, fazem também a promoção de profissionais negros dentro do mercado audiovisual brasileiro. A principal ideia da Apan é combater estereótipos da imagem de negros e negras nas produções audiovisuais, para isso buscam construir pilares políticos de valorização da negritude e da defesa desses interesses de maneira inclusiva. A roteirista e diretora Carol Rodrigues, premiada pelo edital Curta-Afirmativo, feito para possibilitar a realização do curta-metragem A Boneca e o Silêncio, é a criadora do site Mulheres Negras no Audiovisual Brasileiro, página que, de acordo com a sua fundadora, tem por objetivo dar mais visibilidade às mulheres dentro do cenário do audiovisual, combatendo assim a desigualdade de gênero no nicho. Outra iniciativa que caminha no sentido da representatividade dentro do mercado audiovisual é o AFROFLIX. A plataforma disponibiliza conteúdos audiovisuais online e garante que todas as suas produções tenham ao menos uma pessoa negra como responsável pela área de atuação artística ou técnica, possibilitando que o usuário encontre filmes, séries, web séries, clipes, vlogs e programas diversos produzidos, escritos, dirigidos e/ou protagonizados por pessoas negras. Além da experiência como espectador, a plataforma permite que produtores e diretores disponibilizem seu conteúdo ou indiquem outras produções que possam AFROCULT 5 7 Ilustração: Amanda Camila


AC // GASTRONOMIA

Attieke (peixe, molho de tomate, vinagrette e banana da terra) | Foto: Giovanna Monteiro

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OS SABORES DA ÁFRICA EM TERRAS

TUPINIQUINS

HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E TEMPEROS QUE NEM O OCEANO ATLÂNTICO PÔDE SEPARAR Por Giovanna Monteiro

Pequenos crustáceos aquáticos, os camarões são seres, no mínimo, peculiares. Apesar da fama de “lixeiros do mar”, dada por seus hábitos alimentares tidos como duvidosos – composta predominantemente por resíduos orgânicos e em decomposição –, esses bichinhos são uma importante parte da equação que compõe o ecossistema marinho. Com centenas de espécies e mais variados tamanhos, são sinônimo de requinte e sofisticação em qualquer mesa. Não há como negar, seja no prato ou nos oceanos, os pequenos animais são imensamente significativos.

Não muito distante dali, outro camaronês se destaca. Na rua Cantagalo, no meio do Tatuapé, está o Mama Africa Labonne Bouffe, do simpático Chef Sam. Aberto há apenas dois anos, o local é discreto por fora, mas não há quem não se surpreenda ao adentrar o restaurante. Com administração familiar, não sabemos se é a atenção de Sam ou a fofura do pequeno Jojo – filho de 3 anos do Chef que está sempre a passear pelas mesas –, mas tudo no local faz o cliente se sentir como se estivesse comendo em sua própria casa.

Impressionados pela quantidade de camarões no Rio Wouri, no continente africano, os portugueses o nomearam de Rio dos Camarões, nome esse que, tempos depois, intitularia o território localizado na região ocidental da África Central, que hoje conhecemos como a República de Camarões. É por lá que iniciamos a nossa viagem gastronômica. Não, não cruzamos o oceano para fazer essa reportagem na África. O nosso encontro com o país dos crustáceos aconteceu em um pequeno salão na Alameda Barão de Limeira, quase esquina com a Rua Vitória, no Centro Velho de São Paulo.

A JORNADA ATÉ O BRASIL Natural de Yaoundé, capital da República de Camarões, Melanito chegou ao Brasil em 2003. O que era para ser apenas uma visita, tornou-se uma oportunidade de negócio e, então, ela decidiu ficar. Formada em Marketing, sempre se interessou em fazer coisas que ninguém fazia. “Quando cheguei aqui percebi que, apesar do Brasil ter um pé no continente africano, o brasileiro não sabe nada sobre a África”, diz ela num português bem articulado.

As paredes pintadas de amarelo vibrante até chamam a atenção do público, mas são as máscaras e figuras com traços típicos penduradas na parede, que instigam a curiosidade dos passantes. Não há quem passe pelo Biyou’Z e não sinta uma pitada de interesse. Criado em 2008 pela camaronesa Melanito Biyouha, não é por acaso que o Biyou’Z é hoje a maior referência quando se trata de gastronomia africana na cidade. Cada detalhe no local foi cuidadosamente planejado. Os clientes entram para comer, mas, quando se dão conta, estão em meio a uma deliciosa viagem ao continente africano.

Após viver por quatro anos em Brasília, onde se dedicava a fazer penteados africanos em salões de beleza, foi uma visita a São Paulo que mudou a sua vida. Encantada com a diversidade cultural da cidade, afirma que, como típica turista, visitou diversos restaurantes, uma das principais riquezas da capital. Haviam italianos, árabes, franceses, mexicanos e até japoneses, mas foi a ausência da representação africana na gastronomia que inquietou a camaronesa. De sorriso fácil, pele brilhante e com um olho sempre na cozinha e outro no caixa, Melanito recorda como foi tomada a decisão: “Não foi nada preparado, aconteceu

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AC // GASTRONOMIA “Meu objetivo sempre foi servir as pessoas com algo muito mais do que comida. Eu quero alimentá-las de conhecimento, de informações sobre a cultura africana”, conta Sam com um sotaque que mistura o português, o inglês e o francês. Ainda na Argentina, tomou conhecimento do carnaval e decidiu conferir de perto a festança. Casou-se com uma brasileira no interior de São Paulo e, em 2016, decidiu que, assim como fez com os argentinos, estava na hora de ensinar um pouco sobre a África para os paulistanos. E assim surgiu o Mama Africa Labonne Bouffe.

Meu objetivo sempre foi servir as pessoas com algo muito mais do que comida. Eu quero alimentá-las de conhecimento, de informações sobre a cultura africana

Melanito Biyouha, dona do Biyou’Z | Foto: Acervo pessoal

de um dia para o outro”. Assim, no centro da cidade, devido à alta concentração de imigrantes africanos, nasceu o Biyou’Z.

GASTRONOMIA DE RESISTÊNCIA Cerca de 4199 milhas náuticas separam o continente africano do Brasil, porém o que poucos sabem é que os sabores da África podem estar muito mais próximos do que se imagina – logo ali na nossa cozinha. Conhecidos como tipicamente brasileiros, pratos como o famoso acarajé baiano ou a popular feijoada, vão muito além de seu inestimável sabor. Eles representam, na

Em diversos pontos, a história de Melanito se cruza com a de Chef Sam. Também nascido em Yaoundé, se formou em Engenharia Eletrônica, mas não demorou a perceber que seu futuro não estava ali. Destemido, ele queria o mundo. Porém, como o mesmo afirmou, isso não é muito fácil para um africano. Com destino à Europa, ele tomou um ônibus e percorreu países como Nigéria, Mali, Bukina-Faso, Niger e Chade. Presenciou a morte por fome e sede durante a travessia do deserto do Saara. Passou pelo Marrocos e Magnia, mas foi ao embarcar clandestinamente em um navio de carga em Dakar, capital de Senegal, que enfim percebeu que estava no caminho certo. Desembarcou em Rosário, na Argentina, e viu então a sua vida se transformar. Em Buenos Aires, encantou-se com a cultura da América do Sul e, após um pedido de extradição, firmou morada por lá. Com muito esforço, teve a sua primeira experiência gastronômica ao abrir o seu restaurante. Chef Sam, dono do Mama Africa Labonne Bouffe | Foto: Giovanna Monteiro

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Monica (feijรฃo com milho e linguiรงa, bacom, frango e salada) | Foto: Giovanna Monteiro

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AC // GASTRONOMIA

o interesse pela gastronomia africana surgiu através do gosto pela comida baiana, mais especificamente pela descoberta do Arroz de Hauça. Com influência nigeriana, o prato afro-baiano contém uma incrível e curiosa mistura de carne seca, camarão, leite de coco e dendê. “Na hora pensei: se existe um prato de origem africana tão maravilhoso assim, com certeza ele não é o único”, diz a chef. Dandara então define o que faz como gastronomia de resistência, uma maneira que encontrou de resgatar e se conectar com a sua própria ancestralidade. “Brasileiros de origem portuguesa ou italiana conhecem as suas raízes e sabem de onde vieram as suas famílias. Isso não acontece com nós que somos negros”, relata.

Dandara Batista, criadora do Afro Gourmet | Foto: Mariana Santos

verdade, uma aula de história à mesa, de acordo com Flávia Portela, autora do livro Gula d’África – O sabor africano na mesa do brasileiro, ganhador do prêmio internacional Gourmand Awards na categoria melhor livro de culinária estrangeira do mundo. Aprisionados na África e trazidos ao B-rasil pelos portugueses durante o período da colonização, os africanos chegavam aqui acompanhados apenas de suas roupas. “Eles chegavam sem nada, não tinham como trazer suas comidas e costumes, então tiveram de se adaptar aos alimentos disponíveis aqui”, afirma ela. Surgiu-se a necessidade da improvisação gastronômica. Na falta do inhame, aprenderam a usar a mandioca, sem o azeite de palma africano, o dendê surgiu na cena. A rabada, prato típico da África do Sul, perdeu o cravo da índia e as alcaparras quando chegou aqui. “As pessoas não percebem, mas a culinária africana está completamente enraizada na nossa cozinha”, complementa a escritora. Apesar de parecer óbvia toda a contribuição dos povos africanos para o Brasil, sua gastronomia e diversos outros aspectos de sua cultura seguem desconhecidos pela maioria. É o que afirma a jornalista e chef de cozinha Dandara Batista, que conta que, em todo o seu curso de gastronomia teve contato até com comida húngara, porém nada sobre a África. Criadora do Afro Gourmet, projeto gastronômico itinerante que em agosto ganhou uma sede no bairro do Grajaú, Rio de Janeiro, Dandara conta que 62

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Aberto há apenas três meses, o Afro Gourmet é o primeiro restaurante de comida africana no Rio de Janeiro. Por lá, os clientes encontram desde os populares Vatapá, Caruru e Acarajé, até os mais diferentes pratos, como a Cachupa, caldo tradicional de Cabo Verde que mistura diversos tipos de feijões, milho branco e carne de porco. NA PANELA, TEMPEROS E NAÇÕES SE MISTURAM Culinária continental, é assim que Melanito define o Biyou’Z. O restaurante, aberto com a proposta inicial de servir pratos da República de Camarões, não demorou a expandir o menu, que agora também inclui pratos típicos da Angola, Congo, Nigéria, Marrocos e Cabo Verde. A chef explica que a principal razão da mudança foi a adaptação ao público. Primeiro, sentiu que os africanos que viviam na região precisavam de um lugar para “matar a saudade de casa”, porém, ao perceber logo que a sua comida não era mais novidade, decidiu que deveria trabalhar para atrair os clientes brasileiros. E conseguiu. Atualmente, cerca de 90% do público do Biyou’Z é composto por brasileiros que vêm de todas as partes do país para provar o seu famoso fufu – massa encorpada de farinha cozida com milho, mandioca ou inhame e muito popular no continente africano. O prato mais pedido é o camaronês DG, que leva galinha (segundo ela não adianta trocar por frango), tomate, cenoura, pimentão, muito alho e banana da terra frita. Seu nome vem de Diretor-Geral, pois é o prato que os executivos costumam pedir nos happy-hours antes de ir para a casa. Para os mais curiosos, ainda há opções como o Macala (bolinho de chuva com feijão) e o Ndole (pasta de amendoim cozida com folhas de boldo, banana da terra cozida e pedaços de carne).


DG (galinha, tomate, cenoura, pimentão e banana da terra) | Foto: Divulgação/ Biyou’Z

CONTRA O PRECONCEITO, A INFORMAÇÃO É POSTA À MESA Apesar de também ter os brasileiros como principal público, Chef Sam reclama de algumas barreiras que ainda cegam grande parte da população.“Não é comum alguém passar aqui na porta e querer entrar. Pelo contrário, tem gente que passa aqui e mesmo se eu oferecesse comida de graça, não aceitaria, por ser africana”, conta ele. Localizado no Tatuapé, bairro paulistano famoso por suas inúmeras opções gastronômicas, a principal forma de divulgação do Mama Africa Labonne Bouffe é o famoso “boca a boca”. De todo modo, é a persona de Chef Sam que faz o local ser tão especial. Ele, que também é especialista em cultura africana e ministra palestras em Sescs e escolas sobre o assunto, afirma que todo o atendimento é criado de forma com que o cliente tenha vontade de sair falando para os outros. O cardápio é um objeto meramente ilustrativo no restaurante. Sempre atencioso, Sam faz questão de conversar

individualmente com cada cliente. “Não adianta só olhar o cardápio, quem lê não consegue entender. É por isso que eu faço questão dessa interação, para conhecer o cliente e sugerir um prato de acordo com o gosto dele”, diz. Atencioso em proporcionar aos clientes uma experiência completa, Sam sugere até a melhor forma de comer. Segundo ele, o tempo que as pessoas perdem tentando utilizar os talheres influencia no sabor de alguns pratos, que ficam muito mais saborosos se comidos com as mãos. Diariamente, um prato inédito e adaptado ao paladar do freguês é criado. Logo, quem visitar o Mama Africa Labonne Bouffe poderá encontrar uma grande variedade de pratos exclusivos com muita batata, arroz vermelho, banana da terra, boldo – sim, o mesmo do chá da vovó – pasta de amendoim, peixes variados e até carne de jaca para os veganos. Seja no Biyou’Z, no Mama Africa, no Afro Gourmet ou nos livros de história: preconceito se combate com informação. E, para a fome de conhecimento, não há nada que que encha mais a barriga do que uma bela pratada de cultura africana.

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VEM CÁ,

DEIXA EU TE FALAR SOBRE

A DONA ANELITA

Por Giovanna Monteiro

Dona Anelita não fazia ideia, mas assim que pisasse na capital paulista, sua história se entrelaçaria com a de milhares outras Donas Anelitas. Teve três filhos para chamar de seus. Marido, teve dois. Um saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou, o outro bebia demais e se tornava agressivo. Encaixava-se em tudo quanto era minoria, mas nunca se deixou minimizar. Morou na pensão, na favela, no quartinho dos fundos e até na rua. Seus filhos? Foram todos criados em meio ao tráfico e a bandidagem. Mãe solteira, preta, pobre e favelada. Reconheceu a história agora? Ela era estatística. Perdeu a saúde vítima do besouro barbeiro. Além das chagas da vida, passou a ter chagas no coração. Seus rins também pararam com o tempo. Suas duas filhas morreram cedo demais. Era como se tudo a impedisse de continuar, mas turrona que era, decidiu seguir. Depois de tantas perdas, ganhou uma neta. A menina, nova demais, não entendia as metas de vida da avó. “Estou cansada. Quero viver apenas para ver minha neta chegar na 5º série”. E viveu. “Já vivi demais. Agora só quero aguentar ver a formatura da oitava série”. E aguentou. “Se eu conseguir chegar até a formatura do colégio dela, vou morrer feliz”. Não conseguiu.

filhas. Digeriu durante quase duas décadas o desgastante processo da hemodiálise. E foi num refluxo repentino que perdeu a vida. Morreu sufocada. Tentou regurgitar a sua estatística e não conseguiu. Ao passo que termino esse texto, por fim liberto as inquietas lágrimas que embaçam meus olhos desde que escrevi o primeiro Dona Anelita lá no início. Como um estalo, entendi a questão toda. Esse texto não era para ser sobre a Dona Anelita, minha avó, mas sim sobre todas as Donas Anelitas, Mafaldas, Nadirs e Margaridas que se tornam estatística todos os dias. Juntas, as histórias dessas mulheres me fizeram enxergar a da minha própria avó como eu nunca antes havia visto. Então, pela primeira vez, quando fecho meus olhos e penso em Dona Anelita, não lembro apenas da mulher que fazia bolos incríveis, que me presenteava escondida do meu pai, que me super-protegia do mundo ou que projetava suas metas de vida em mim. Hoje, lembro de uma mulher que, durante toda a vida me presenteou com quantidades homeopáticas – pois a vida era já era dura demais – de ensinamentos que sempre me pareceram banais, mas que agora reconheço, sentada no quarto que um dia foi dela, como parte fundamental do motivo pelo qual participo de algo como a AFROCULT. E assim, sem ter nada, Dona Anelita me deu tudo.

Muito obrigada, vó.

Ilustração: Amanda Camila

Dona Anelita era como a casa muito engraçada de Vinicius de Moraes. Filha do meio dentre dez irmãos, aos 16 anos registrou-se sozinha e largou a casa onde morava no Alto do Jequitinhonha, Minas Gerais. Ali já não tinha mais teto. Decidiu que não queria viver na roça e veio para São Paulo em busca de uma vida melhor. Chegou aqui sozinha e, adivinhem, não tinha nada.

Dona Anelita engoliu durante a vida inteira uma sociedade cheia de preconceitos. Seu estômago foi castigado pela miséria e a fome. Engasgou com a morte de suas duas

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