N0_2021
REVISTA
CORPO EDITORIAL Claudio Manetti
Frédéric René Guy Petitdemange Lucas Lavecchia de Gouveia Roberto Alfredo Pompéia
PROJETO GRÁFICO
Caio Rodrigues Ramos
PROJETO DE PRODUÇÃO João Mirilli Julia O’Donnell
ILUSTRAÇÕES Luiza Simionatto Budahazi
COLABORADORES Flávia Santos Santana João Ricardo Mori Juliana Lima Márcia Francisca Lombo Machado Conversa com Maria Amélia Pinho Pereira, Peo. Claudio Manetti, Frédéric René Guy Petitdemange, Lucas Lavecchia de Gouveia, Roberto Alfredo Pompéia. Convidados: Flávia Santos Santana, Gilson Domingues, Isabella Sollero, João Ricardo Mori, Márcia Moraes. Este material está disponível no canal do Youtube, em https://www.youtube.com/watch?v=RFCRZmRxsCY&t=1226s (edição de Julia O’Donnell).
SUMÁRIO PÁG. 08
VENTILAR JANELAS Claudio Manetti
PÁG. 10
EDITORIAL
PÁG. 12
ENTREVISTA PEO
Conversa com Maria Amélia Pinho Pereira PÁG. 34
PEO E A REVOLUÇÃO DO SUBLIME Corpo Editorial Revista Fôlego
PÁG. 36
A MÚSICA INTERROMPEU OS FLUXOS PARA UMA NOVA DIREÇÃO: A SIMPATIA E A AMIZADE PÁG. 48
Magdiel Silva
INTENTO CRIATIVO
Pedro Paulo de Siqueira Mainieri
PÁG. 58
PULSAÇÃO ARTÍSTICA Tatiana Stropp Carneiro
PÁG. 84
CRIATIVIDADE, DESIGN E CIDADE: DOS DESENHOS AO ALGORÍTIMO GRÁFICO DE RICARDO GUERRA FLOREZ Jonathas Magalhães Pereira da Silva
PÁG. 108
DE ADIAMENTOS E JANELAS Márcia Francisca Lombo Machado
Dizem que estamos vivendo uma transição significativa nos rumos da história da humanidade. Algo que a profecia já cogitava. Crentes e devaneadores enunciavam como sendo uma nova linha de passagem civilizatória, dos ciclos do planeta, dos astros, das culturas ancestrais ou das manifestações oníricas, das sensações estranhas que nos rondam. Diante da escalada das transformações extremas e dos exageros esquizofrênicos, o mundo se revela como um produto da natureza humana espantosamente muito mais perigoso do que se supunha. As grandes conturbações em larga escala populacional, ávidas por consumir qualquer coisa que aplaque a sede por idiotizar-se, foram surpreendidas por uma inusitada cepa viral. Tudo se acentuou. Todas as visões e ideologias, que já não conversavam, se extremaram. A compreensão e o significado da Vida foram postos à prova. Como um vírus de diminutos nanômetros de diâmetro entra em cena colocando toda a trajetória contemporânea, no seu “auge” tecnológico, em cheque, carregando consigo a desconfiança que paira sobre o discurso da eficiência, do desenvolvimento e das impressionantes conquistas humanas? A discussão se agrava e se acentua como um viés ideológico religioso, com fortes conotações de poder. Uma superposição de universos como uma manta sufocadora de ignorâncias sobre a calota planetária, que desafia a nossa arrogância, pois disso tudo conhecemos pouco. Surge a negação da premissa de que o porvir de nada vale se o agora não for economicamente lucrativo. Em meio ao susto de 2020, embrenhados numa onda de atrasos, retrocessos e sombras, e sob a névoa do mistério viral e das consequências mais desconcertantes, um grupo de amigos resolveu abrir uma janela. Assim como fizeram muitos outros, entendendo que a vida pede superação e transcendência. Nesse caso, em busca de novas fontes de oxigênio, emocional e reflexiva, no contraponto ao vírus biológico e antropológico que contamina exponencialmente o Brasil, resolvemos buscar novos fôlegos. Um espaço para respirar e provocar outras formas de insuflação pelas vias da inquietação. Algo que pudesse reunir ponderações e alavancas sobre a discussão educacional (sobejamente no centenário de Paulo Freire, neste ano, e na véspera do centenário de Darcy Ribeiro, em 2022), cultural e artística soprando ventos libertadores. Apresentamos aqui a Revista Fôlego. Espaço de experimentação e construção coletiva sobre o que julgamos serem as reflexões fundamentais do país. Lugar do exercício da abertura intelectual e das multiculturalidades. Oxigênio como combustão. Oxigênio como provisão de desígnios. Atmosfera que compõe a matéria-prima da alma brasileira.
EDITORIAL O primeiro passo é sempre o mais cautelosamente estudado. Para onde abrir uma janela?
Os interesses inicias, diante da possibilidade de constituição de um veículo de discussão aberto, vieram da necessidade de revisão da formação cultural e educacional de todos nós, começando, obviamente, pela origem. Este é o primeiro número da Revista Fôlego. É também uma homenagem à educadora
Maria Amélia Pinho Pereira,
a Peo, que se foi há pouco. Ainda que entristecidos pela perda dessa mulher incrível, temos a honra de trazer a conversa realizada em 18/07/2020, onde ela nos instigou a provocações sobre a formação da criança considerando o “brincar” como algo muito sério e balizador da constituição humana de qualquer geração.
Peo nos deixou a imensa responsabilidade de adubar essa terra brasileira, plantar, cuidar e distribuir os frutos da verdadeira educação, sem dogmas e sem fórmulas. Resta-nos a certeza de que o espírito de criança e a plenitude da vida devem nos resgatar da autodestruição que toma conta de nossa casa: o nosso planeta. Esperamos ser mais um canal de propagação de seu pensamento.
“O segredo que sagra a vida de cada criança que, podendo brincar em paz na Natureza, inicia-se na liberdade de expressar o sim à vida.” - Maria Amélia Pinho Pereira Fica aqui o nosso carinho e profunda admiração. Gratidão, Peo.
Como desdobramentos dessa reflexão, alguns nomes vieram contribuir para esta edição.
Magdiel Silva nos traz a visão de um mundo mais
amplo e lírico pela descoberta da música na infância em seu texto “A música interrompeu os fluxos para uma nova direção: a simpatia e a amizade”. Um inquietante testemunho sobre o processo de superação das realidades opressoras pelo viés do despertar da arte na formação da criança.
Jonathas Magalhães Pereira da Silva apresenta a possibilidade de buscarmos outros rumos na construção histórica de cada um em “Criatividade, Design e Cidade: dos desenhos ao algoritmo gráfico de Ricardo Guerra Florez”. Traz, por sua vez, uma preciosa reconstituição do que foi o encontro com Ricardo Florez, uma das figuras mais provocadoras do pensamento criativo, pela expressão das discussões públicas abertas e pelo inigualável desenho. Este número traz também alguns ensaios da Arte.
Pedro Paulo de Siqueira Mainieri
expõe um processo de construção de imagens pela captura dos pormenores que se escondem nos objetos mais singelos que nos cercam. Aqui, pela lente do autor, um fragmento de uma banqueta serve como disparo para desdobramentos imagéticos de primeira grandeza, uma homenagem ao mestre Almir Mavignier e as possibilidades criativas.
Outro ensaio arrebatador traz as obras da pintora
Tatiana Stropp Carneiro, apresentando uma série
de pinturas sobre suporte metálico, em cores cortantes que atravessam a superfície do alumínio e constroem paisagens inéditas. Horizontes de tal força ensejando dobras e formatos que sucumbem as chapas, recriando materialidades determinadas pelas lâminas cromáticas. Por último, um texto contundente de Márcia Francisca
Lombo Machado. Um olhar corajoso e fundamental para a reflexão contemporânea. Questões que nos estimulam aos enfrentamentos necessários. A ideia de construção incansável do Mundo.
Nesse sentido, inaugurando fontes de resistência, esperamos dizer “sim à vida”!!! Corpo Editorial Revista Fôlego,
12 maria amélia pinho pereira
PEO¹
SOBRE A PEO
¹Peo nasceu em Salvador, Bahia, em 03/08/1939. Pedagoga com formação em Cinesiologia, a partir de 1987. Tem uma história intensa na atuação e concretização da Educação desempenhando papel fundamental por onde passou. Foi sócia fundadora da Escola Experimental Vera Cruz em São Paulo, a partir de 1965; Coordenadora do Programa do Núcleo Experimental de Atividades Sócio Culturais da Prefeitura do Município de Salvador, BA, 1979; assessora pedagógica da Unidade de Tratamento de Paralisia Cerebral do Sarah - Instituto Nacional de Medicina do Aparelho Locomotor, 1978-1979; Fundadora e Orientadora do Centro de Estudos Casa Redonda, em Carapicuíba-SP, a partir de 1981; Membro do Conselho Internacional da IPA - International Playing Association for the Child’s Right to Play, 1990-1996; Professora do Curso de Formação de Educadores Brincantes no Teatro Escola Brincante-SP, a partir de 2000; vice-presidente do Instituto Brincante-SP, a partir de 2001; fundadora e orientadora da OCA - Escola Cultural, a partir de 1996. Faleceu em 02/11/2021.
Para inaugurar a Revista Fôlego, convidamos a Educadora Maria Amélia Pinho Pereira (Peo) , pela oportunidade de ouvirmos um dos nomes mais importantes da Educação brasileira, sobretudo pela luta e pela dedicação constante na formação da criança e do jovem. É, certamente, uma das grandes personalidades da pedagogia infantil do nosso tempo. Reproduzimos aqui a conversa que fizemos em 18/07/2020, pela abrangência e significado de seu pensamento e, sobretudo, de suas provocações à ideia de sociedade, formação e futuro. Infelizmente ela nos deixou recentemente. Mais do que uma homenagem justa, é um convite à reflexão sobre as razões do Brasil e a proposta de mudança de rumos para um mundo mais digno e inovador. Frente a tantas questões significativas, abrimos com a seguinte pergunta:
A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR
Veja o vídeo da conversa com Maria Amélia Pinho Pereira na íntegra
-VISTA
ENTRE-
²Tomás de Aquino (1225/1274), frade católico, influenciou a teologia e a filosófica contribuindo para a fundamentação da Escolástica. Dentre tantas obras, escreveu sobre a construção da ludicidade na Idade Média, do lúdico como atitude. Para aprofundamentos, sugere-se a leitura do texto Aspectos do Lúdico na Idade Média, de Luiz Jean Lauand, Revista Faculdade de Educação de São Paulo, V.17, ns. 1/2, pág. 35/64, jan/dez. ³Ludens significa “jogar/brincar” em latim, com derivações em Ludus – Lúdico.
Diante das incertezas que o mundo, especialmente o Brasil, experimenta no agora, acumulando posicionamentos equivocados e ações que vão no sentido do retrocesso político, artístico e multicultural, com agravantes sociais e econômicos (além das decorrências da pandemia), como você discutiria o papel formador das novas gerações, como potenciais propostas para um projeto de futuro?
Peo: Em primeiro lugar quero falar sobre esta Revista. O nome
de Fôlego, para mim, é muito pertinente e fala muito do agora, porque para essas “marés” que a gente vai ter que atravessar, vamos ter que ter muito fôlego para poder conseguir navegar. Quero também agradecer a oportunidade de estar com vocês.
A principal premissa para os projetos futuros, acredito, é a “revolução do brincar”. Quer dizer, o “brincar” tem que entrar como elemento inerente ao desenvolvimento humano. Recentemente eu encontrei, para minha alegria, um texto de São Tomás de Aquino² , em que ele fala sobre a importância do brincar na educação do ser humano. Isso, eu acho que é uma questão fundamental. Inclusive, ele fala sobre o homem medieval que brinca, que brincava, e que o brincar era uma coisa que se compunha em todos os ensinamentos. Ele associava isso a um trecho da Bíblia onde se diz que o brincar é a sabedoria Divina, é a obra da Criação. Inclusive tem um trecho muito interessante que diz assim: “ali estava Eu (a Sabedoria Divina) com Ele como artífice, brincando (ludens) diante Dele todo o tempo; brincando (ludens)³ sobre o globo terrestre, e minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Prv 8,30-31). A sabedoria é isso! É poder estar no mundo, e brincar com as coisas criadas. Nesse brincar é como a criança faz, ela vai se descobrindo e se revelando a si própria, a que veio nesse mundo.
Então, fica aqui já um ponto importante na questão de elaboração de projeto que venha para o futuro, a presença dessa qualidade, e digo a vocês o seguinte: eu acho que a presença dessa qualidade do brincar é aquela que trabalha, e sabe trabalhar, com o imprevisível. Acho que a gente não tem receitas para o futuro − justamente essa é a novidade − não há receita! E eu acho que há uma crença na vida e, principalmente entendendo-a, que a vida é muito mais inteligente que a matemática! E ela sabe encontrar o seu lugar para se manifestar. Então, nosso mundo em crise, como a que a gente está vivendo hoje, está nos convocando para rever os caminhos que já percorremos. O conhecido! E, a partir de aí, assumirmos a tarefa de reencantar o mundo, redescobrir caminhos novos, e que a gente acabe com os preconceitos, e com os códigos estabelecidos, porque, para a gente sair do lugar que está não podemos usar as mesmas ferramentas que usamos até hoje. Temos que aprofundar! Que elementos novos são esses? Acredito que temos que reencantar esse mundo que perdeu um pouco de sua anima, de sua alma. Temos que sair dessa tristeza, embora a gente saiba que está vivendo dores profundas, mas a tristeza nos abate, nos enfraquece, e vamos entrar na essência do brincar, que é a alegria que nos anima, nos abre portas, janelas para a gente ter os encontros e desencontros com o desconhecido. Eu acho que está todo mundo muito apreensivo com o futuro, querendo apreendê-lo no tempo e no espaço finito, quando na verdade ele resulta de um impulso criativo contínuo, um fluxo eterno no qual a gente está dentro 4 dele. Certa vez, conversando com Milton Santos , outro autor importante de ser lido neste momento brasileiro, eu ouvi dele a seguinte frase:
“O homem habita em dois lugares, na Terra e no Infinito”. Quando ele me disse isso, abriu dentro de mim um portal, um portal novo criando um elo entre esses dois lugares, e aí eu me entendi, a partir daí, num caminho sem volta, onde os recursos da imaginação, da fantasia, do sonho, da sensibilidade e da imprevisibilidade − tudo isso que está tão presente no brincar das crianças − me prepararam para a caminhada com a aventura, e aventura da consciência, que considero esse o caminho para a consciência como grande propósito da evolução de nossas vidas. Convivendo com crianças ao longo de quase 50 anos, dos 5 quais 36 anos aqui na Casa Redonda (mas anteriormente já era professora das crianças), eu vi como elas circulam com maestria nesses dois lugares, na Terra e no Infinito. E são eles os verdadeiros mestres que nos apontam esse “sim” à vida a todo instante!
E instante para criança não tem o relógio, não tem o Cronos. O instante da criança é a eternidade! Eles estão no mundo sem tempo, eles estão entregues à vida! 4 Milton
Santos (1926/2001), advogado de formação e geógrafo por convicção. Importante pensador brasileiro. Escritor, jornalista, cientista e professor, participou estruturalmente da renovação da geografia brasileira. 5 Casa Redonda. Escola infantil.
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Por isso, a capacidade extraordinária de atenção, e de compenetração que as crianças têm quando elas brincam. O mundo pode estar caindo ao redor, elas estão ali totalmente presentes.
E porque justamente o brincar, que é a linguagem de ela estar no mundo e de se apropriar desse mundo, elas fazem iniciação do processo criador que, ao longo da vida, vai se desdobrar tendo como elemento fundante a liberdade. Quer dizer, a criança diante de uma outra criança, quando ela começa a se movimentar, nós nunca descobrimos onde ela vai, mas ela vai e tem uma intenção! Essa liberdade inerente ao processo de desenvolvimento de uma criança, eu acho que é justamente um caminho que a gente tem de reabastecer nossas instituições educacionais. Nesse confinamento (da pandemia), me chamou muito a atenção esse desconhecimento das crianças, das instituições que lidam com as escolas, mesmo nas crianças pequenas. Eu acho que as crianças estão muito felizes de não estarem indo à escola. Aquelas que podem estar brincando ﹘ e mesmo na periferia, a gente está sentindo isso ﹘ elas estão brincando, elas estão felizes! Porque elas estão com o tempo livre que lhes pertence. Porque a gente sabe que as escolas limitam isso. E foi assim, um desconhecimento que eu percebi, em função de que não compreendem que as crianças por sua capacidade de viver o imprevisível, o aqui e agora, de se adaptar a novas situações que para elas se apresentam como estímulos para um repertório de brincadeiras, de explorações, de imaginação, elas não têm problemas nesse sentido. Elas estão aí, possivelmente, e eu esperaria que os pais pudessem estar com elas. Sei que está difícil para muitas famílias, mas era uma oportunidade extraordinária de rever, e começar a entender o que é uma criança e aprender com elas. 6 Mario
Há muito compreendi que as crianças gostam da escola pela vontade e necessidade de encontrar amigos, os parceiros que atuam como agentes dos afetos, dos vínculos que vão estruturando o conhecimento delas e de si próprias. Sem o outro a gente não constrói a nós mesmos. E as crianças têm fome, tem menino que tem fome de outro menino. A gente fala muito da importância da escola como espaço de socialização do mundo moderno, mas é preciso a gente olhar com mais atenção para o que isso quer dizer. Na ausência, em nossos centros urbanos, de espaços comunitários, parques que favoreçam o encontro seguro de crianças com adolescentes e com adultos, a escola se tornou o único lugar onde criança se encontra com criança.
de Andrade (1893/1945), poeta, romancista, historiador, crítico de arte e fotógrafo, escreveu Macunaíma e integrou o grupo da Semana de Arte Moderna de 22. Também teve papel importante na contribuição na política pública quando atuou no Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. 7 Florestan Fernandes (192/1995), sociólogo e político, também importante pela luta de fundamentação do povo brasileiro, tendo dentre outras frentes a Campanha de Defesa da Escola Pública. 8 Charles Darwin (1809/1882), naturalista, biólogo e geólogo inglês. Escreveu A Origem das Espécies.
A modernidade, eu acho, acabou com a sociedade das crianças, onde se dava o aprendizado da vida propriamente dita. Temos dois mestres brasileiros que já indicavam seus pensamentos so6 bre isso. O Mário de Andrade , quando criou a escola infantil, chamando Parque Infantil, dentro de um parque na praça Buenos Aires. Temos a escola Parque Anísio Teixeira, dentro de um espaço de natureza fantástico também, e temos 7 o Florestan Fernandes , que em 1940, na sua tese, já antevia o que seria o impedimento das crianças brincarem na rua, e que segundo eles, era o espaço da democracia. Porque as crianças ali, fora do período da escola, encontravam seus companheiros, e começavam a brincar. Nessas brincadeiras já as crianças maiores criavam suas próprias regras, respeitavam essas regras. A gente sabe
hoje que o espaço escolar não se permite a coisa mais importante, que é o grande aprendizado. Daqui para frente, quando a gente imagina que o mundo caminha para o processo de automação, e esse desemprego que a gente está vivendo hoje compromete a vida digna de várias pessoas, essa automação vai levar, na história da humanidade, que se tenha mais tempo livre. Agora, se eu tenho o tempo livre, e isso foi muito colocado assim também, a dificuldade das pessoas na hora que foi posto para elas uma pausa do seu cotidiano, da sua agenda, e que elas tiveram que conviver com um tempo diferente, com um espaço diferente, e a ausência de um exercício de viver sua espontaneidade, sua criatividade e conviver com a possibilidade de estar livre. Eu vi, para mim mesma, a dificuldade que foi de começar a entrar num movimento que eu estava aqui me vendo na Natureza, e, como nos primeiros dias (se referindo ao início do confinamento) foi difícil estar
na Natureza! Parecia que eu tinha que fazer alguma coisa, eu tinha que produzir alguma coisa,
e aos poucos eu fui vendo que a gente se ausentou de uma coisa fundamental, que é a capacidade de contemplar,
sem que esse contemplar fosse endereçado a aprendizados A, B, C ou D. Apenas contem8 plar! O avô de Charles Darwin dizia que a natureza era um templo, o templo do conhecimento! E aí eu convivi nesses dias com uma coisa muito importante que eu acho que não vou ser mais a mesma pessoa, quando tiver que voltar à minha rotina.
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Eu suponho que quase todos são arquitetos, os que estão participando desta reunião. Eu acho que o formato que essa escola tem hoje é um que estava presente enquanto a criança tinha ainda a escola como lugar de informação, e outro período ela brincava na rua, brincava no quintal, enfim, ela tinha um espaço de convivência, este que o Florestan falava. Por isso, essa escola sobrevivia, porque a criança tinha sua vida propriamente dita de aprendizado de valores humanos, de contato de compartilhamento, era brincando na rua! E nossa cidade, hoje, na medida em que constrange o encontro das crianças, praticamente, durante a semana dentro da escola com espaços reduzidos, você está machucando, ou você está impedindo que exista essa convivência com tempo livre, essa convivência com valores humanos que estão criados com esse brincar, que são os vínculos afetivos que se organizam no aprendizado de uma criança com outra, soluções de conflitos. Enfim, toda uma riqueza humana de valores, praticamente, hoje não existe no exercício de educação do ser humano. Isso é muito sério! Porque o que está se apontando aí, o vírus trouxe esse sinal bem claro, é de que tempo e espaço têm que ser redefinidos na vida do ser humano. O que aconteceu com essa carência dos espaços comunitários?
Eu acho que é o fato, hoje, do desenvolvimento dos centros urbanos, com essa ausência dos espaços, mostrou muito sentido a essa escola que está aí. Ela é, inclusive na medida que excluiu o brincar ﹘ porque é excluído o brincar nas escolas, hoje, são pátios onde as crianças têm que fazer determinadas coisas pela proposta da escola ﹘, na verdade, ela excluiu o corpo. O corpo não está presente. A criança tem quinze minutos, meia hora e olhe lá, para poder conviver com seus parceiros, compartilhando inclusive solidariedade entre eles, formando grupos. Quer dizer, toda a relação de amizade, de fraternidade, tudo isso, hoje, é muito pouco vivido, e se for vivido dentro da escola, é como normas moralistas. Tem que ser agradável. Tem que ser isso, tem que ser aquilo... não é por aí mais! Quer dizer, o homem tem que aprender seus valores pelo próprio exercício dos valores humanos no contato de um com o outro! Vejo assim, que pensar arquitetonicamente hoje numa escola na cidade é uma tarefa extremamente importante, para que se redefinam os espaços em nome da vida do ser humano, e não do confinamento. Quem está ocupando esse espaço vazio que está dentro dos espaços da educação? A droga! Está entendendo? As crianças vão para a droga para poder sair de situações confinadas, e permitir que percepções novas lhes tragam a possibilidade de entrar em contato com algo que lhes mobilize no campo imaginativo e perceptivo. E droga hoje não é só a droga sintética. A droga hoje que está aí presente e você pode considerar também, são os entretenimentos da tecnologia que passaram a ocupar esse momento, pondo a criança também sem esse corpo, porque ela fica sedentária diante da tela. Outro dia, eu li um artigo de um criador de games para criança, e ele disse justamente o seguinte: todo o campo de intenção dele é como ocupar os meninos! Ora, eu vejo assim, a escola ainda pensa assim, não é o lugar da vida fluindo, é o lugar que você ocupa, porque essa vida é perigosa.
Aliás, Guimarães Rosa dizia, “viver é perigoso! ” Mas, se a gente não tiver essa possibilidade, a gente não se experiencia como humano. E a gente está mutilado nisso. Eu acho que a gente privilegiou um só lado do cérebro e estamos capengas, estamos desequilibrados. Então, não dá para pensar hoje na educação de criança, principalmente. Eu estou me restringindo mais à criança, gente, porque é o que eu sei. E estou mais perto delas. Mas, pensar em espaços educacionais para criança, sem pensar em Natureza junto, é de fato um anacronismo, um paradoxo, não dá! Não dá para se pensar hoje em se criar creches, criar escolas de educação infantil onde a criança não tem acesso à Natureza, ao espaço físico.
Porque nessa primeira infância, o corpo é quem fala, a brincadeira nasce do corpo. E se não tenho espaço, esse corpo começa realmente a regredir. E, eu acho que quando a gente vê, estão sentindo sim um processo de decadência mesmo dos valores humanos, decadência em que você não vê mais pessoas alegres, está entendendo? As crianças estão realmente confinadas ao mundo que não lhes pertence, e aí eu desafio os arquitetos! Porque as escolas não podem ser só salas de aula para criança pequena, tem que ser alguma coisa que permita essa circulação livre, e espaços que permitam que elas possam de fato se apropriar dos elementos que pertencem ao habitat nosso, que são terra, fogo, água e ar. Quero dizer, à criança do futuro, na formação dos nossos jovens, a questão da Natureza é importantíssima, porque a gente está vendo ela sendo devastada. O homem se tornou o mais predador hoje do planeta Terra. Para que haja um vínculo com a Terra, é preciso que essa Terra esteja presente, é preciso pisar no chão, é preciso acender fogueira, é preciso pegar uma pipa e saber que o ar está ali, e que dependendo do tipo de vento a pipa sobe ou não sobe. Tudo isso a Natureza cria: um repertório de ações, de verbos, para ser vivido através do corpo, e se isso não é vivido pelo corpo não vai para o campo do abstrato. Aí, você fica um ser humano com pouca flexibilidade de pensamento, sem conseguir rodear um assunto, porque só vê de um jeito.
Que nem esses equipamentos dos parques, os trepa-trepas, que na verdade é uma coisa extremamente linear, extremamente fechada de possibilidades de movimentos. Ainda bem que a criança tem a capacidade de recriar aquele espaço, mas se ela permanece só naquela vivência é muito diferente de uma criança que sobe em diferentes árvores. Na árvore ela tem que se equilibrar, porque você tem galho grosso, galho fino, você tem diversidade de movimentos que ela pode fazer com os braços dela. Aquele corpo fazendo os movimentos, esses movimentos são possíveis fazendo, e quando entrar no nível da abstração a partir dos seus 12 anos é que começam nesse movimento mais mental ativo. Se a criança não tiver vivido isso vai faltar recurso, recurso repertório, repertório concreto. Não tem ali recurso para entendimento das coisas, porque ele não sabe se movimentar.
Eu estava me preparando para esse contato com vocês e tive 9 acesso a um texto de Rabindranath Tagore, em que ele conversando com os jovens, em momentos da Índia, também, com muita dificuldade, ele fez uma palestra em que ele contava uma história, que eu vou contar para vocês aqui, está bom? Ele dizia o seguinte: “Existe uma história popular em quase todas as
culturas do mundo sobre a bela princesa cativa, de um gigante cruel e o jovem príncipe que começa a querer libertá-la de sua masmorra. Quando ouvíamos essas histórias em criança, nosso entusiasmo agitava-se. Nos sentíamos como o príncipe que queria salvar a princesa, derrubando todos os obstáculos e perigos, e no final nos sentimos bem-sucedidos, por trazê-la de novo à liberdade. Hoje, essa princesa é a alma humana, aprisionada numa máquina gigante, à espera de jovens que sintam esse entusiasmo no coração, e queiram salvá-la das cadeias, da avidez, da ganância, do egoísmo, da prepotência, da arrogância, da indiferença, e intolerância. São esses valores que subjazem ao nosso enfoque econômico que hoje lidera todas as demandas do tecido social e cultural da humanidade”.
Claudio Manetti (Revista Fôlego):
Partimos da pergunta sobre a “construção criativa” e as possibilidades do resgate formador quando das linhas pedagógicas que levam as crianças para os rumos da formação subserviente ou competitiva no âmbito da ideia de eficiência pró capitalista.
Peo:
Eu concordo com você que essa geração hoje está reclusa, está extremamente fragilizada em sua constituição psíquica, tanto é que eu acho que essa ênfase no uso das tecnologias é muito mais uma fuga da vida do que uma entrada na vida. E isso os fragiliza profundamente. Eu tenho uma experiência aqui com crianças da periferia, onde a gente rompeu a estrutura da Escola Pública. Essas crianças noutro período vão para 10 esse lugar que se chama OCA . Vejo uma diferença muito grande do que está acontecendo com essas crianças na medida em que elas são postas em
contato com [o corpo], no sentido, inclusive, de pertencimento a uma cultura própria, através do corpo. As crianças ﹘ vou falar um pouco sobre a OCA ﹘, na hora que vimos a qualidade dessas crianças, onde essas crianças estavam dentro delas na escola pública. Na escola particular, está muito mais difícil porque o aprisionamento da nossa classe média e classe A é muito grande, e com uma doença muito séria que é no sentido da prepotência. Como se eles soubessem de tudo. E o contato com o outro, nesse “saber de tudo”, é uma defesa de se encontrar consigo próprio. Já na periferia, nesse trabalho que se pôs as crianças em contato com a cultura do nosso país, com a cultura brasileira, por
onde acha o canal criativo, se resgata, porque ali você dança, você canta, você toca. Essas crianças conseguiram preencher um sentido e pertencimento ao lugar. O que não está acontecendo com as nossas escolas privadas. Quer dizer, as crianças não pertencem a lugar nenhum. Isso é muito sério! E isso traz uma tristeza. Traz o que eu nunca ouvi falar, pelo menos, até a década de 60 e 70 (do século XX), que eu trabalhava com essas crianças, um tédio. Não existia isso. Hoje está existindo crianças com grandes problemas de depressão. Depressão é a falta de alma, de anima! Depressão é o que foi descolado desses seres de se encontrar consigo próprio.
Essa dimensão que você diria do “processo criador”, porque o “processo criador” vem da alma. Vem de lá de dentro. Ele não é colocado de fora para dentro. Ele vem de dentro. Se não temos uma escola, um processo de educação, que eu considero desde a infância até a universidade, em que eu me colocar no mundo com as minhas indagações, com os meus sonhos, com as minhas ideias, eu sou muito pouco recebido. Eu tenho que entrar numa forma que foi criada e foi engessado em questões básicas: a liberdade deixa de existir. Hoje, é interessante isso porque esses adolescentes se colocam como participantes do mundo, tudo isso, mas estão praticamente anestesiados. Essas mídias todas em que eles convivem diariamente e se ocupam hoje, estão escravizados. Uma máquina! São crianças que eu convivo na minha própria família, mesmo em férias os adolescentes todos com o celular na mão e a praia vazia. Não existem adolescentes nas praias porque estão nas redes, deitados olhando os celulares. Não é que eles não tenham culpa. Acho que isso é uma coisa extremamente criada para que isso aconteça. Para que a gente sirva a esse sistema louco que está aí. Querendo ir para Marte, vamos colonizar Marte, e não resolve o problema mínimo da fome no Brasil ou da fome do mundo!
9 Rabindranath Tagore (1861/1941), escritor e pensador indiano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1913.
Gilson Domingues:
Outra questão surge em meio às provocações da PEO. A ideia da geração reclusa e suas dificuldades nas relações humanas como um sintoma da falta de amor e falta de pertencimento. Associa-se a esse ponto a falta de coragem, pois o amor é risco e requer coragem. Amor é verbo, pois ação. Brincar é amar?
10 OCA Escola Cultural, desde 1996, localizada em Carapicuíba, São Paulo. Atua na formação de alunos dentro da visão da Arte e Cultura Brasileiras, pela construção humana e ética de seus alunos.
Peo: Ô meu filho! É isso aí! (risos) Está na essência do brincar: é amar! O brincar é o exercício do vínculo.
Uma criança vai brincar porque precisa se vincular ao outro. E ela só vai aprender de si, com o outro. Não tem como o ser humano se desenvolver sozinho. Não existe isso! E a essência do brincar é a vinculação e o vínculo é a morosidade, é relação, é estabelecermos contato. Então, eu acho que essa geração reclusa, geração anestesiada, eles perderam a alma. E isso é recuperável? É, mas com muito trabalho, com muita terapia, muita análise, que eu acho que, inclusive, não resolve tanto porque o negócio é o contato. É a abertura para a vida. Não tem como eu resolver meus problemas só no divã. Não tem como. A vida é a grande mestra! E eu acho que o que está acontecendo, também, hoje um aluno que está no Ensino Fundamental, no Ensino Médio que vai à procura...a dimensão sensível dele está tão amarrada que ele vai para as informações como se a informação fosse conhecimento, o que não é. E aí o que que acontece? Ele vai procurar tudo que seja mais fácil. Tudo que leve a um sucesso mais rápido. E, nesse sentido, você tem muita razão, não há coragem.
A palavra “coragem” é a ação do coração. Eu estou sabendo de professores que estão sofrendo muito com essa coisa do online, e a gente sabe que por trás de tudo isso aí tem a intensão de transformar o Brasil numa grande Educação à Distância, o que é um
absurdo. E os professores estão vendo que as meninas estão dizendo assim: “...professor, meu celular não está funcionando hoje...”, “professor, acabou a bateria...” Eles não estão querendo essa aula deslocada da relação. Eu sei de uma escola aqui em São Paulo, de classe alta, em que as crianças pediram para que o professor desse somente 30 minutos de aula, e os outros 15 dos 45 minutos, fossem para conversar com eles. Conversar sobre a vida! As crianças não estão tendo tempo. Os pais não estão tendo tempo para conversar, e eles (crianças) estão pedindo para o professor, e que a escola hoje parece que tem que compor a família também. Então, acho que a vida é uma coisa muito preciosa! Eles não têm nem a consciência da dádiva que é estar vivendo. Só isso! Essa gratidão à vida não é trabalhada. Porque a escola fica no plano cognitivo só. A sensibilidade não está sendo trabalhada. Esse universo sensível de onde parte todo processo criador, ele está em greve. Não existe. Então, eu acho que a gente não vai sair do lugar que a gente está com as ferramentas que usou até hoje, nesses 300 anos aí. Não vai. Temos que reinventar. Nem sei se é preciso escola mais. Se tivesse uma cidade com parques, com a natureza…Nós temos que repensar o processo comunitário. De vida comunitária. Essa família indivi-
dualista, isolada! Você vai num condomínio aqui da Granja Viana (que eu tenho alguns alunos) e você não vê uma criança de bicicleta andando, em nome de um negócio que se chama “segurança”, mas que é um medo instalado, que não existe. Não existe como se coloca. Você não vê criança brincando com uma criança ou, então, o condomínio arranja uma sala e contrata um professor para ir brincar com as crianças. O mundo está muito atrapalhado! Esse vírus, o Corona vírus, para mim com um nome dele de “coroa”, ele vem coroar isso, ele vem mostrar um caminho da morte nossa, da extinção da espécie. É sério! Não estou brincando não.
Revista Fôlego: O que será o futuro? Tarja preta ou tarja branca?
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Peo: Eu sou otimista! (risos) Eu sou pela tarja branca, porque a vida é muito maior. Eu digo o seguinte:
nós temos que chegar nesse momento a fazer uma reversão. Reverter a nossa pergunta: qual é o significado da nossa vida? Eu acho que a pergunta agora é assim: qual é o significado que a vida está nos propondo? É ela que tem que dizer a que veio, porque ela está dentro de nós. Nós somos experimentos do universo e ele pergunta a 12 gente. Eu acho que ele não vai deixar no barato não. Tanto é que o Corona já está aí! Nós vamos ter que passar. Fazer uma travessia de restauração da vida. Em todos os sentidos. Eu acredito que desde o Iluminismo a gente vem perdendo a nossa alma. E vem tendo descrédito da vida. A vida virou uma “forma”. Uma forma do “ter” e do “ter que”. E eu acho que a gente tem que romper com essa estrutura. E não vai ser com rompimento de corte não. Vai ter um rompimento de restauração da consciência. É uma mudança de consciência que está se propondo. Não é simplesmente mudar o partido, mudar o projeto econômico, porque tudo isso são crises menores do que a grande crise que é de valores humanos. Quem é o Homem? Quem é o nosso planeta? O que que é a vida? São essas perguntas que a gente tem que colocar de novo.
Lucas Lavecchia (Revista Fôlego):
Na sequência dessa proposta de reversão dos modos de vida que atrasam e retiram o que há de mais importante, surge outra pergunta que vai no sentido da fonte inspiradora pelas novas lições. Como você acha que as crianças poderão nos ajudar a entender essa “nova vida”, nessa ideia de futuro daqui em diante?
Peo: Como é? Convivendo com elas! Não tem outro caminho não. É convivendo com elas e aprendendo
com elas. Eu vou narrar rapidamente a experiência que eu tive no ano passado, ainda em novembro aqui na Casa Redonda, e que tinham muitas flores aqui. Uma criança de quatro anos chegou para mim e disse assim: “...vamos contar quantas cores de flores existe aqui na Casa Redonda? ” Eu saí com ele e fomos vendo. Passamos uma flor, passamos outra flor e de repente ele se deparou com uma orquídea muito bonita, com muitas cores dentro, enfim. E era um menino muito sensível. E logo ele ficou em silêncio olhando aquela flor. Logo chegaram mais dois e perguntaram o que que estava fazendo. Eu falei: olhe, fulano quer ver quantas cores de flores temos aqui na Casa Redonda. Eles começaram a olhar também a orquídea. Mas, em silêncio, olhando. Eu, com viés de professor (olha, eu já estou com 80 anos) (risos) que está dentro das nossas células, que é terrível, resolvi naquela hora informar a eles que as flores têm aquelas cores por causa dos raios do sol. E fui começando a narrar isso quando essas três crianças me olharam com o maior desprezo que já tive na vida e disseram assim: “ Eu não quero essas coisas de inteligência, eu quero é brincar”. E foram embora. Essa é a aula das crianças! 11 Em alusão ao documentário “Tarja Branca”, direção de Cacau Rhoden, de 2014. 12 Referindo-se ao coronavírus.
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As crianças estão diante das coisas, plenas. Eles estavam ali olhando. Tudo que eu queria de Educação estava acontecendo ali: eles estavam atentos, compenetrados, olhando, percebendo aquela coisa, contemplando em silêncio e veio o “professor” e....”vamos ensinar alguma coisa”. Você não tem que ensinar nada gente! Você tem que deixar os meninos recordarem porque a vida está dentro deles. E eles trazem histórias que estão além do DNA do pai. Eles lidam com a reminiscência da própria história humana. Nós estamos fazendo uma pesquisa sobre os desenhos das crianças. É a oportunidade de se conectar de novo com a essência da vida – estar com crianças! É isso! E infelizmente as famílias não sabem e uma criança quando cai dentro da família ela veio dizer o que é a vida! Ela reorganiza o sistema familiar para as famílias que ouvem as crianças. O problema é que elas não são ouvidas e isso que é o grande problema. A família não ouve, a escola não ouve e esse cidadão fica esperando o momento daquela alma se revelar em sua plenitude, porque está tudo ali dentro esperando ser expressado, ser revelado. O brincar é também a revelação do ser! Então, vai para as crianças! Se junta com elas! Você (Roberto Pompeia) que é um cara que, inclusive, brinca com elas com suas construções. Você viu na OCA como é que foi aquilo. Extraordinário! Que até hoje as crianças se lembram.
Roberto Pompéia (Revista Fôlego):
comenta o caso de uma professora que foi para o Acre participar de uma escola dos índios e levou muitos papeis coloridos e muitos lápis de cor e entregou para os meninos da aldeia. Enquanto desenhavam, ela reparou que um dos meninos pegava o papel e desenhava uma onça pintando-a de vermelho. E assim ele fez mais de dez desenhos da onça vermelha. Aí a professora perguntou a ele: “por que é que você desenha a onça vermelha? “ Por que você pinta a onça de vermelho? ” Ele virou super espantado e respondeu: “Isso não é uma onça! Isso é um desenho! “
Peo: (risos) Maravilha!
Figura 01- Fonte: Acerco pessoal Ayumy Pompéia
Falando da questão da criação, eu me lembro de uma escola particular, muito bem montada, com sala de artes, e as crianças tinham muito pouco tempo de recreio e eu propus que também as crianças pudessem ter uma hora de aula para brincar (além da sala de artes). Simplesmente brincar, não recreio. Brincar – ter a sua liberdade para fazer o que tinha vontade de fazer. Aí marcaram uma hora por semana. Tinha aquele momento da sala do brincar, que também não é a minha praia dar horas para fazer isso ou fazer aquilo.
Mas, achei interessante que a professora trouxe na primeira reunião o seguinte: “como é que eu faço com uma criança que, ela pode desenhar na sala, ela pode desenhar na sala de artes, e ela vai para este lugar que ela poderia brincar e ela quer desenhar”? Ué! Vai para essa criança e pergunta por que ela está desenhando ali quando ela tem outros momentos em que ela pode desenhar? E ela fez isso. Na segunda reunião ela me disse assim: “sabe o que ele me disse? Que ele prefere desenhar nessa hora porque ele desenha mais descansado! ” Ou seja, a própria sala de arte é um lugar de expectativa ao processo criador. Porque na hora que eu quero desenhar descansado eu falo “me deixe em paz porque eu quero fazer o que tenho vontade de fazer”.
Flávia Santana: A pergunta vem no sentido da forma como muitos adultos compreendem a infância – como uma fase de pre-
paração para a fase adulta. E nesse sentido, a forma que esses adultos estabelecem na correlação com o ato de brincar, ignorando que a infância é o momento da essência, de trocas...será que não é por isso que muitos adultos não percebem que a brincadeira é importante para a criança se desenvolver, até porque os adultos pararam de brincar ou passaram a chamar de brincadeira aquilo que fazem?
Peo: Sim. Brincar ainda para a maioria dos adultos é uma perda de
tempo. Para a escola é uma perda de tempo. A criança que está brincando não está fazendo nada (sic). Ali, o ser que não está aprendendo nada. Essa mentalidade ainda é muito presente e nossa educação toda, nosso pensamento de educação é de que a criança tem que se espelhar no adulto. Ela tem que olhar esse adulto e tem que se tornar o adulto. Ela tem que caminhar buscando a estrutura que o adulto monta para ela. E nisso, eu acho, que não se teve ainda, por falta de tempo também, não se olha isso porque a criança é menor. Eu digo, hoje criança e idoso não estão sendo olhados. Não estão sendo ouvidos. São duas pontas – uma que começa e a outra que termina a vida – e praticamente são excluídas da nossa sociedade hoje, da nossa cidade.
Figuras 02 e 03- Fonte: Acerco pessoal Ayumy Pompéia
Figura 04 - Fonte: Acerco Casa Rendonda
Márcia Moraes: Mais uma questão sobre a relaçãoentre o adulto e a criança
quando da figura do adulto como referência na formação da criança, tendo em vista que os adultos pararam de brincar ou buscaram outras formas de brincar que os tornaram infantilizados. Essa postura os colocam como ausentes no papel que poderiam ter (autoridade sem autoritarismo) como voz e lugar na construção da confiança recíproca, uma vez que as responsabilidades se diluíram diante das heranças das gerações que as antecederam.
Peo: Não, eu vejo que essa referên-
cia do adulto hoje está sendo difícil, né. Eu acho que, inclusive, a pandemia trouxe a possibilidade de as crianças conviverem com os pais e a gente está vendo que está cansando. Isso não está sendo visto como uma oportunidade de diálogo, de contato. Eu vejo um pouco isso. Estamos deixando o mundo em crise, justamente em virtude do desvio que a gente fez de 300 anos para cá. Mas, eu acho também que a gente tem que olhar essa pergunta: de que deixamos isso, meu filho, deixamos e o que é que você vai fazer? Não pudemos essa geração ser vitimada também, no sentido de que não tivemos condição para fazer.... Não!! A condição está dentro. É na coragem que foi falada aqui logo no começo, que o Rabindranath falava. Vamos embora gente! Nós estamos
no mesmo barco. Hoje nós habitamos a uma só casa. Nós hoje estamos com a consciência que somos humanidade. Não dá mais para se ver simplesmente como parte. Nós somos uma grande família. E eu acho que esses jovens vão atravessar processos difíceis por essa ausência, por essas referências de adultos. Eu, inclusive, tenho muita dificuldade, não em aceitar, mas de colaborar com toda essa questão de se buscar a criança no adulto. Sim, a criança está no adulto, mas não essa criança que o adulto infantiliza. E um adulto infantilizado é um horror, porque é a negação da criança. E isso é muito sério, porque a gente vê, inclusive, essa infantilização da criança como uma minimização do ser humano. Vai numa sala de aula, de uma educação infantil, de uma creche. Só de você olhar
a sala você já vê ali – ninguém entendeu criança! Porque além de tudo, a criança tem a capacidade de ver a beleza, de ser sensível e ela vive num espaço extremamente com a falta de estética terrível! Que as referências que vem do adulto, do qual eles participam do contato com as construções com os espaços institucionais, é de dar tristeza mesmo. Eles não têm ali o elã para ir adiante. Mas, a aula tem esse elã, porque um dia que uma criança possa ter contanto com um ser que esteja ali, vivo, um adulto vivo, um adulto maduro, ele resgata essa dimensão dentro dele, porque assim como uma criança quer amadurecer, ele tem dentro dele também um potencial de ver a maturidade do outro. Ele vê isso.
Figura 05 - Fonte: Acerco Casa Rendonda
A gente vê aqui que as crianças, inclusive, têm um sexto sentido talvez. Porque se ele gosta, por exemplo, de histórias, ele vai procurar dentre os professores quem melhor conta história. Ela não vai procurar qualquer um. Se ele gosta de professor que gosta de fazer experiências, ele sabe quem é aquele professor e procura esse professor. Então, a capacidade de buscar o que ele precisa, a referência que ele precisa está dentro dele. O que nós não temos é, justamente…, hoje há uma pobreza dessas referências porque nem todo mundo um professor que sabe pegar as crianças e levar, para eles dominarem o conhecimento. Aparentemente, seria difícil, mas que é possível de construir junto esse conhecimento na medida em que esse professor tem dentro dele, não a forma do conhecimento, mas o conhecimento em si. E aquilo que significa para vida dele, constrói ele, então ele passa o quê? Ele passa entusiasmo! Está se precisando de entusiasmo, de alegria. Os espaços escolares hoje são lugares que a gente tem vontade de sair correndo. São feios! Uma criança da Casa Redonda que entrou numa outra escola, ele tinha que ir para o Ensino Fundamental, quando ele viu o corredor com duas portas ele perguntou para a mãe: “é hospital? ”
Frédéric Petit (Revista Fôlego): A questão está colocada pela possibilidade da busca criativa amparada pela condição da “inocência”, como uma linha inspiradora livre e descolada da ideia de maturação da criança que muitas vezes nega a sua natureza, na dicotomia entre adultos e criança como duas partes separadas e antagônicas. A questão está balizada, também, por um posicionamento do pintor Pablo Picasso em entrevista a um canal de comunicação francês em que, respondendo a uma pergunta, dada a sua trajetória de artista renomado e que aparentemente havia conseguido tudo, até mesmo ter obras no Louvre (um museu que contém em seu acervo somente artistas mortos), o que ele gostaria de ter feito e não conseguiu? Picasso responde que, apesar de ter produzido tanto e tido tantas conquistas como artista moderno, embora tivesse perseguido nunca havia conseguido pintar como a “inocência” de uma criança. Ou seja, qual o papel da “inocência” no século XXI nesse processo educativo e criativo?
Figura 06 - Fonte: Acerco Casa Rendonda
Peo: A “inocência” (eu acho que) é um estado de graça! É o estado da graça! Eu me 13
lembro muito do Fernando Pessoa , dizendo que para a gente lidar com os símbolos a gente tinha que ter um primeiro movimento que seria a “empatia”. Você precisa gostar dos símbolos para entrar no mistério deles. Depois viria a “compreensão” (eu não me lembro muito claro a sequência). Eu sei que ele vai para a “compreensão”, vai para a “intuição”, e no final ele fala que o último caminho é a “Graça”. E eu acho que a “inocência” é isso. É o estado de santidade. É a abertura para o sopro da vida! Sem entraves. Por isso que dois mil anos atrás foi dito: “deixar as criancinhas porque delas é o reino dos céus...” Essa inocência que a gente tem que entrar no “Céu”. E para ela ser recuperada hoje, a gente tem que fazer uma lavagem celular, porque estamos todos impregnados do “tem que ser”, “é assim”, enfim, todas as formas estruturantes estão nos bloqueando. Quando eu acho que a gente chegou aqui para este planeta com uma missão de resgatar a vida, de comungar... Eu não sei, mas eu acho que no que eu posso entender de “inocência” é justamente essa situação de estado de graça.
Gilson Domingues: Essas questões provocam mais uma pergunta
sobre a dimensão do brincar considerando a alusão ao “reino do Céu”. Que céu é esse? Os anjos brincam? E Deus? Deus brinca, Deus joga?
Peo: (risos) Eu acho que, se foi dado ao ser humano no seu início a
capacidade de brincar é porque Deus brinca e sabe que é bom! Vou contar uma coisa aqui que é muito séria! Tem a ver com a história do Brasil. É o mito milenarista. Lá pelos anos 1100 ou 1200, havia um monge Cisteriano que foi considerado herege porque ele dizia que o Reino do Pai, o Deus legislador, tinha acabado – que era o Velho Testamento. Que o Reino do Filho, o consolidador, estava acabando e que já estava em início o Reino do Espírito Santo. E que reino é esse do Espírito Santo? O Reino da Abundância! O reino onde a dimensão material possivelmente estaria resolvida no nosso país, porque, aliás a gente sabe que hoje o problema da fome pode ser resolvido. Só não se resolve por problemas políticos. Então, essa história chegou à Portugal através da Rainha Isabel (de Aragão), que era casada com Dom Dinis, e ela tem a consciência dessa história e a levou para Portugal, e dizia o seguinte: “Nesse Reino do Espírito Santo, o imperador seria uma criança. E ela teria que governar por causa da sua inocência, da sua imaginação e da sua liberdade”. E ela leva para Portugal essa história e não querendo se juntar a questão da Igreja, ela a transforma no culto popular do Espírito Santo, e se transforma numa festa que é a festa do Divino – que é a festa que hoje está no Brasil em vários lugares. Eu me lembro que quando criança meus pais me levaram para ver o dia da festa do Divino, onde uma criança era coroada a imperador. Eu não entendi – eu tinha sete anos de idade – e não entendia porque aquela criança ia para um lugar que teria um banquete, onde todas as pessoas poderiam comer, que teria alimento para todos e iam na prisão para soltar os presos. Então, essa Era do Espírito Santo, seria a 13 Fernando Antônio Nogueira Pessoa (1888/1935), Poeta português, escreveu dentre tantas obras Mensagem.
14 Mário de Miranda Quintana (1906-1994), poeta, tradutor e jornalista brasileiro nascido em Alegrete-RS, notabilizou-se por sua poesia que explora a musicalidade das palavras.
Era onde não mais se precisaria de prisões, e as vezes eu acho que a Escola é uma prisão. Talvez não tenham mais Escolas nessa Era! E teria comida para todos. Gente, é essa Era que tem que chegar! Ela já está aí como possibilidade. Não está acontecendo porque nós estamos debaixo de um sistema econômico perverso, onde o “cassino” financeiro vive a solta. Que é outra droga de uma classe que vive aí com dinheiro, e eu acho que é nessa que a gente tem que entrar. É nesse Céu que a gente tem que entrar. Não precisa a gente ir para o Céu. Tem que trazer o Céu para a Terra! É esse movimento. É diferente, embora eu acredite que existam outros mundos paralelos também (risos).
Gilson Domingues: Como desdobramento da questão outra colocação se faz a partir da con-
sideração sobre o Criador como um “brincante” – é por isso que ele cria – e do outro lado o “oponente”, 14 que é aquele que divide e destrói. Tem um poema do Mário Quintana que diz mais ou menos assim: uma criança está numa praia fazendo um buraco na areia quando passa o Diabo e pergunta: o que você está fazendo menino? O menino responde: Um buraco aqui na areia! E o Diabo indaga para que ele estaria fazendo um buraco, afinal! O menino, então, responde: Eu estou fazendo um buraco porque eu quero fazer um buraco. O Diabo não entende e vai embora muito nervoso porque ele não consegue compreender porque alguém faria uma coisa sem segundas intensões (risos). Então, complementando a questão a partir do poema, se coloca a perda da noção da função direta das coisas. Temos condições de levar recursos para todos e proporcionar dignidade. A gente vive uma sociedade louca atrás da felicidade, mas a felicidade é resultado das relações. Se todo mundo tiver dignidade, talvez sejamos felizes.
Peo: Nós estamos na porta da mudança. Nós temos todos os ingredientes para isso. E a gente
está amarrado a uma coisa que é o processo acumulativo, de ter coisa, de querer coisas, quando está tudo dentro da gente. É deixar fluir. A vida é um fluxo! É um impulso contínuo que a gente tem que entrar nessa onda e construir com alegria esse movimento. Eu queria falar para vocês também, trazer 16 15 um poema que o Mandela citou num discurso de uma mulher chamada Marrianne Willianson que diz o seguinte: “Nosso medo mais profundo não é de sermos inadequados. Nosso medo mais profundo é o de sermos poderosos além da medida. É nossa luz e não a escuridão que me assusta. Nós nos perguntamos. Quem sou eu para ser brilhante? Na verdade, quem é você para não ser. Você é uma criança do espírito. Você pretendendo ser pequeno não serve ao mundo. Não tem nada de elevado sobre se encolher para os outros não se sintam seguros ao redor. Nascemos para manifestar a glória do espírito que está dentro de nós. Não está só em alguns de nós. Está em todos nós. E a medida que deixemos brilhar damos permissão para outros fazerem o mesmo. E a medida que liberamos nosso medo, nossa presença libera os outros”. O caminho é esse! Não tem outra coisa. Ir por aí! Pela alegria, pela aspiração. A criança domina um brinquedo que ela cria. Imediatamente ela cria um novo desafio para ela. Ela não para no primeiro. Ela está sempre indo a diante. Isso é a pulsão humana. É a pulsão expansiva do ser.
Nelson Rolihlahla Mandela (1918-2013), advogado sul-africano, considerado o maior líder da África negra, com uma trajetória de insurgente a estadista, ganhou o Prêmio Nobel da Paz de 1993. 16 Escritora norte-americana (1952). 15
Estar em todo momento caminhando para um outro lugar. E aí vem a questão, também, de que a gente se afastou da transcendência. Nós ficamos resolvendo o “pequeno”. Não dá para ficar no “pequeno”. Não dá para desperdiçar quem dá mais. A vida é muito importante para a gente ficar com ninharias, resolvendo estas “bobageiras” que a gente está ouvindo aí. Não dá! Vamos descolar disso porque o Brasil não é isso que está aí. O Brasil é uma coisa muito importante. Nós temos aqui uma raça que sabe brincar. Os índios sabem lidar com o tempo livre. Nós temos a raça negra aqui dentro da gente, que trouxe a alegria, que trouxe o ritmo, trouxe a comunhão. E temos a raça ibérica também, que não é Europa, é uma outra coisa. Esse sincretismo nosso. Essa presença dessa mistura é um mundo novo que a gente tem que resgatar porque a história que a gente aprendeu nos livros não é a história do Brasil. É a história que a Europa pensa do Brasil. E o brasileiro tem uma capacidade extraordinária de querer ir para outro lugar. Só que, infelizmente, ele usa isso para uma coisa equivocada. Ele quer ir para a Disney, para a Europa, e deixa de olhar para isso aqui que é uma riqueza extraordinária, na sua diversidade e suas manifestações culturais.
Roberto Pompéia (Revista Fôlego):
Aproveitando a colocação da PEO sobre a Disney e o imaginário brasileiro, Pompeia traz uma história contada pelo escritor paraibano Ariano Suas17 suna, quando esteve num jantar com uma família muito importante no Rio de Janeiro. A anfitriã lhe pergunta se ele nunca esteve na Disney. Ele toma um susto e pensa que provavelmente essa mulher é uma daquelas pessoas que dividem o universo em duas categorias: as que foram à Disney e as que não foram à Disney (risos).
O povo vai salvar o Brasil se a gente der escola de qualidade para eles! Isabela Sollero: Mais uma consideração sobre o uso da rua na educação
das crianças, se apoia numa outra história que o Pompeia contou sobre a mudança do uso da rua. Quando menino, ao contrário do que se vê hoje, cujas mães prendem seus filhos em casa com medo da rua, a mãe dele incentivava que fosse para a rua brincar e, então a deixasse fazer o almoço em paz. Então a “rua” tinha uma outra concepção. A questão, portanto, se apoia na fala anterior da PEO sobre a importância do espaço da escola, sobre o uso desse espaço, das crianças estarem perto da natureza. Nesse sentido, gostaria que você comentasse um pouco mais sobre a importância do uso dos espaços públicos da cidade, dos espaços livres – das praças, dos parques, da rua, pensando nesses lugares de brincar das crianças.
17 Ariano
Suassuna (1927/2014), dramaturgo, romancista, poeta, professor e advogado paraibano.
Peo: Eu acho que cabe aos arquite-
tos, urbanistas [ou não] – não sei quais são as categorias (risos) – repensar essa cidade. Essa cidade não é feita para o ser humano. Nenhum deles. Outro dia eu ouvi uma senhora “muito bem-posta no mundo”, dizendo que o filho dela estava tomando aulas para ser pedestre. Ele nunca tinha andado num passeio de uma rua. Que só andava de carro, da escola para casa ou em passeios. Quer dizer, é uma loucura gente! Eu acho que é possível mudar as cidades. É simplesmente uma compreensão de quem são. Qual é o processo evolutivo da espécie humana para que ele se realize em sua plenitude. E esse corpo deve estar ajustado ao lugar. Que permita brincar. Que permita se deslocar. Que permita se encontrar com os outros, pois eu acho que nunca foi tão necessário, espaços públicos comunitários. Não para entretenimento de shows, não é isso. É o espaço livre, inclusive com poucas coisas para que as crianças criem suas atividades.
Não é nada disso que o menino precisa. Mais parques com árvores. Parques em que a criança possa encontrar uma madeira solta e criar sua cabana.Enfim a redefinição. É um problema de nova consciência. A consciência estava pautada sobre o ser humano formatado e que não é o ser humano que está aí hoje. Tanto é que eu acho tão simbólico esse vírus atacar o pulmão do ser humano no mesmo momento que o Homem está como um predador de tudo, destruindo o pulmão da natureza, o pulmão do planeta que é a natureza. Então, é uma analogia muito grande. Estamos sufocados. Estamos aprisionados. Não estamos respirando e é preciso respirar para sobreviver, porque de repente pode ser que haja a extinção da espécie humana. O que eu não acredito, porque o planeta Terra vai continuar. A gente sabe que o “pobre” do vírus, está aí porque tiraram o habitat dele que eram as florestas. A umidade. Aí ele foi para a árvore que é o nosso pulmão. Um lugar úmido. Ele se estabeleceu lá. Ele tem que procurar um habita de qualquer jei-
to. Por isso que eu tenho receio, mas fé em Deus, que vão aparecer continuadamente outros Corona vírus. Mas, se nós continuarmos como predadores como estamos sendo, a coisa é feia!
Roberto Pompéia (Revista Fôlego): Aproveitando a colocação da
Isabela, sobre os espaços livres e a dimensão formadora dessa prática aberta e pública do brincar, conta uma experiência que passou com a filha num parque de periferia de uma cidade grande. Nessa ida ao parque notou que havia uma placa de informações com os seguintes dizeres: “Proibido brincar nos brinquedos quem for menor de 0 anos e maior de 150 anos” (risos). Tinha escorregadores enormes com adultos velhinhos carregando crianças no colo e escorregando juntos. Balançando nos “balanços” – não tinha aquilo de “proibido para maiores de 10 anos – Não! E a gente tirou um monte de fotos desse parque que é muito legal! (risos).
Peo: Eu acho que tem muita coisa boa acontecendo! E são embriões de um novo mundo. Muita coisa boa acon-
tecendo! Tem muita gente acordando. O “Homem” tem chance! Simplesmente permitir que esse processo criador seja vivido. Porque é inerente à essência humana. Eu sou otimista! Por isso que eu gostei da palavra “fôlego”. A gente vai ter que ter muito fôlego (risos). Até para sonhar precisa do fôlego hoje, porque está dolorido o processo. Não está fácil! E fico me perguntando por que é que o Brasil teve a “sorte” de ter dois vírus e não um só! Porque isso está acabando com o Brasil! Foram dois vírus terríveis. Um matando nos hospitais, e o outro matando em todos os lugares. É uma tristeza! Mas, a gente está aí para a luta!
Claudio Manetti (Revista Fôlego): Encerrando a jornada. Com os agradecimentos do
grupo da Revista Fôlego à Maria Amélia Pinho Pereira – PEO, pela entrevista e, sobretudo, por marcar posição de reafirmação do que foi dito sobre a dimensão educacional como um panorama estratégico de retomada do melhor do Brasil aos brasileiros. Tal universo se coaduna com a proposta da revista. Ser um canal de informação e interlocução da liberdade para tratar das questões que nos rondam. Nesse sentido, fortalecer a tese de que essa conversa tem um caráter essencial na inauguração dos trabalhos. Como uma “pedra fundamental. A chave que permite entender para abrir a “Caixa de Pandora”, que esconde o enigma inato deste país: um país fantástico maravilhoso que não pode perder para as sombras. Para o Reino das Sombras. E, por isso mesmo, que não poderemos esmorecer diante de tudo. Essa postura está engendrada na ideia do “fôlego”, e como você (PEO) nos disse, “um exercício de transcendência”!
Peo: Obrigada! Tem uma coisa que a gente tem que aprender. Eu tenho meus pre-
conceitos com as “lives”, mas quando a gente tem pessoas que estão na mesma empatia, na mesma procura, é muito bom conversar! A vida conversável é maravilhosa!
PEO 1939 - † 2021
PEO E A REVOLUÇÃO DO SUBLIME Qual o papel da infância na formação humana? Por que a criança em determinada idade, sob determinados códigos e valores, não encontra caminhos de superação e amadurecimento, diluindo tudo o que de maravilhoso já trazia dentro de si, sendo subjugada aos interesses das manobras sociais e econômicas? Essas crianças que são engolidas por um sistema de manipulação de futuro, como um novo cabresto evanescente, são bombardeadas assustadoramente pela máquina de desconfiança das intuições e da leveza de cada qual, reformatadas segundo ideais que as recolocam num projeto de eficiência rumo ao que se pretende ser “carreiras de sucesso”? Nos tornamos reféns da condição social e econômica, pela ausência do Estado, pela imposição estrutural da noção de valores das elites e seus privilégios fortemente protegidos, da violência cotidiana e da ausência absoluta do direito de sonhar. O modelo de formação da maior parte das instituições de ensino no país, sejam particulares ou mesmo nas políticas públicas,
adota um cabedal de “verdades”, que se coloca como modelo ideal na disputa por vagas de trabalho. No entanto, inegavelmente desigual, a trajetória de cada um será comandada pelas impossibilidades diante da realidade cotidiana. Por outro lado, a maioria da população que é pobre fica à mercê das políticas públicas, demasiadamente precárias, como que consentindo que o futuro daquelas crianças a Deus pertence. Quais seriam, então, as possibilidades de confrontar esses paradigmas? Afinal de contas, existe um contraponto que vá no sentido das alternativas aos modelos naturalmente aplicados, que traga luz ao processo de desenvolvimento da sociedade para valer? Em que medida as práticas e, substancialmente os resultados, implicam em avanços significativos ou mascaram as potencialidades desse povo?
Entende-se aqui a dimensão do povo brasileiro, compartilhando com o desejo do acreditar “darcyniano”; um maravilhoso laboratório de culturas e raças, inigualável pela possibilidade de materializar no espaço sua história imanente à sua paisagem. Além disso, acresce-se à utopia a necessidade de melhor aparelhar as bases sociais do país visando romper com a dicotomia socioeconômica que se mantém milenarmente no Brasil, quem sabe apontando ecos de equidade nacional. Por isso, a tomada de posição por voltarmos a respirar o melhor e mais brasileiro dos ares.
Um soberbo convite ao debate. Uma ótima oportunidade de revisão
Corpo Editorial Revista Fôlego,
magdiel silva
36 SOBRE O MAGDIEL
MAGDIEL
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Magdiel Silva, arquiteto e professor de arte. Especialista em Educação e Tecnologias pela UFSCar e mestre em arquitetura e urbanismo na área de Planejamento Urbano e Regional pela FAU-USP. Experiência em história e teoria do urbanismo e da urbanização, participação no desenvolvimento do plano urbano para o projeto “Mitigar Conflitos Fundiários: Ribeirão Vermelho e Esperança” em Osasco-SP, uma parceria de fomento do CAU/SP e realização da Ambiente Trabalhos para o Meio Habitado.
A MÚSICA INTERROMPEU OS FLUXOS PARA UMA NOVA DIREÇÃO: A SIMPATIA E A AMIZADE “A simpatia é o coração a sorrir no rosto”.
I
WILLIAM BLAKE,
poeta e pintor inglês, 1757-1827
José Ortega y Gasset afirma em Meditações do Quixote que “Eu sou eu e minha circunstância, se não salvo minha circunstância não me salvo a mim. (...) é preciso buscar o sentido do que nos rodeia” (ORTEGA Y GASSET, 1966 p. 322). Foi partindo dessa premissa metodológica de buscar o sentido do que me rodeia e das circunstâncias em minha vida que busquei reproduzir aqui minhas subjetividades e aventuras interiores nesse exercício de autoconhecimento. Foi um desafio empreendido em um momento delicado que enfrentamos. Eu, assim como quase todos que conheço, tive perdas nesse processo. Enfrentar o medo do vírus e suas possíveis consequências, a crise econômica associada ao desemprego e o genocídio negligenciado à nossa volta é revoltante e tenebroso. Fôlego, nome desta revista, não poderia descrever de forma mais concisa a necessidade de alguém que esteja privado do ar, dos que estão afogados e submersos, da premissa fundamental da existência. E aqui já lanço uma hipótese: o encontro com a beleza da música é um fôlego; é ouvir o consolo de Deus pessoalmente para os que têm fé, ou, minimamente, enxergar um sentido na existência que é curta e frágil.
38 Em certos momentos, em virtude dos poucos horários possíveis reservados à escrita pensei em desistir. No entanto, achei mais correto adiar, na esperança de que as coisas acalmassem. As circunstâncias da vida presente evocam a necessidade de se buscar novas fontes geradoras de vida, de afeto, vida e amizade nos entes próximos e nos mais distantes. Deixo aqui o meu agradecimento à equipe editorial da revista pelo convite, espero responder à altura do momento e da urgência que vivemos.
Mais do que nunca precisamos vislumbrar o imponderável, a beleza do mundo à nossa volta e refletir sobre o legado que deixaremos como civilização. O papel branco, seja físico ou na tela do computador, se apresenta como um desafio a ser enfrentado quando necessário, e bem sabemos que as palavras escritas ecoam pela posteridade. Existe um poder nas palavras e é preciso dosá-lo. É sempre difícil escrever sobre as emoções, sobre aquilo que acontece em determinada situação e que muda a rota da trajetória, quase como uma conversão. O texto está dividido em três movimentos: o primeiro é essa apresentação; o segundo eu trato um pouco da minha trajetória, desde o meu encontro com a música à formação em arquitetura e urbanismo e exercício profissional; o terceiro e último é uma conclusão na qual eu lanço algumas reflexões sobre a educação e simpatia que fui construindo ao longo do tempo, seja como estudante, arquiteto e professor de música e arte.
II Desde criança estive rodeado de música popular em casa. Meu primeiro professor de violão foi meu pai e em inúmeras ocasiões eu dormia próximo à sua cantoria ouvindo seus acordes. Em brincadeiras no cotidiano da minha infância eu me lembro bem fortemente de segurar o violão do meu pai nos braços. Achava-o muito instigante e despendia horas passando os dedos nas cordas, sentindo suas texturas e os sons distintos. Quando jovem, meu pai queria ser um artista famoso. Eu sei que isso é um tanto trivial, mas minha mãe vivia a dar risada em casa daquela época que eles viveram. São lembranças saudáveis e que acabei incorporando também. Minha mãe vivia a cantar pela casa seus louvores gospel e assim que aprendi as primeiras notas, comecei a tocar na igreja aos domingos ao lado das minhas irmãs mais velhas que cantavam. Apesar de ainda não entender as letras dos louvores, sentia que aquilo era algo especial: apresentar-me ao público de fiéis trazia uma satisfação pessoal e proporcionava admiração em meus pais. Hoje, vejo que a oportunidade de ser criado em ambiente cristão-protestante me conferiu um contato próximo com a educação musical. Eu tinha 12 anos quando escutei o prelúdio de Bach e já conhecia algumas notas. No entanto, aquilo foi completamente diferente de tudo que eu já havia ouvido. Aquela cena curta de aproximadamente 1 minuto e 12 segundos que está no filme O Pianista¹ ficou registrada como uma placa de conversão dentro da minha cabeça e eu não conseguiria mais esquecê-la. Aquele foi o encontro com o imponderável.
Na cena em questão, apesar de naquela época não entender muito bem do que se tratava, o olhar do protagonista, pianista e judeu, revela a fragilidade da existência diante do inexorável e conversor encontro com a música. O semblante do personagem ao escutar o prelúdio transpira a paz e ternura em meio à tragédia do holocausto, da perseguição nazista e dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Lembro-me que importunava minha mãe pedindo que rebobinasse a fita VHS à cena. Eu queria, de alguma forma, transformar aquilo em uma sequência repetitiva para os meus sentidos. A experiência estética da música consegue capturar nossa mente e as nossas emoções e direcioná-las para o belo. No entanto, creio que a música, hoje tão mercantilizada e industrializada, e o seu ensino e apreciação poderiam ser um fôlego para despertar o mundo desse pesadelo e confortá-lo de alguma forma. Em casa não era comum a presença de música erudita. Meus pais não conheciam Bach, mas eu procurei durante um tempo ouvir novamente aquela música que só bem posteriormente descobri que se tratava do Prelúdio da Suíte n.1 em Sol Maior “BWV 1007” para violoncelo de Johann Sebastian Bach. Foi naquele momento que decidi que aprenderia música “clássica” no violão, o instrumento que existia em casa, e que vem me acompanhando até os dias de hoje.
Para Jaime Pinsky, fumar cachimbo deixa a boca torta (PINSKY, 2021), ou seja, cada qual observa o mundo por suas inclinações, e assumo que desde o encontro com a música vejo o mundo à minha volta pela percepção musical. Estudar música me deixou inclinado, talvez torto. Costumo dizer para os meus alunos e alunas que estudar música é uma nova forma de alfabetização, é aprender uma nova linguagem e ler o mundo de outra forma;
e todo aquele que foi constrangido pela música um dia não escuta mais nenhum som da mesma forma, as cidades se tornam musicais, as brincadeiras se tornam musicais, os pássaros, o som do avião, de um rio. Como músico e arquiteto vejo que cada cidade tem a sua música própria, assim como cada arquitetura.
¹Essa cena está disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=YyU3isWIRSYhttps://www.youtube.com/watch?v=YyU3isWIRSY .
Certa feita, lembro-me de ter comentado que, de longe, a cidade de São Paulo parecia uma sinfonia orquestrada com notas soltas distribuídas num gigantesco tabuleiro de xadrez. Os faróis quando parassem uma via dividiriam o ritmo da cidade; alguns faróis seriam notas mínimas; outros, que seriam as semínimas, fariam com que os pedestres caminhassem mais rapidamente para atravessar a via. Buzinas dos veículos seriam os metais dessa orquestra, uma composição ritmada de caos, porém tem sua sutileza. As edificações arquitetônicas não ficariam de fora dessa orquestração ao dividirem o sopro da natureza, diferenciando sons e vibrações. Dá para perceber que a placa de conversão musical veio ao meu encontro e a partir daquele momento a minha rota foi alterada. Não consigo explicar de forma mais objetiva, trata-se de uma subjetividade que tange todos os aspectos da minha vida. Talvez a canção clássica de Dorival Caymmi “João Valentão” consiga descrever de forma musical e poética esse sentimento que estou descrevendo. João Valentão é dividida em duas partes. A primeira foi composta por Dorival Caymmi e o acompanhou por alguns anos inacabada e, anos depois, ele aparece com a segunda parte da música, uma verdadeira “porrada no estômago” revelando os sentimentos mais profundos vindos da angústia, incerteza e fragilidade da vida de João Valentão. Só a contemplação da beleza da sua terra, do Sol se pondo, do som das ondas do mar, conferem o conforto à João Valentão, que já não “precisa dormir para sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra”. Na época, lá para os meus 13 anos, fui apresentado à Universidade Livre de Música Tom Jobim, escola de referência no ensino musical localizada em edifício próximo à Sala São Paulo². Prestei o processo seletivo para o Curso de Violão Erudito e não passei. Foi frustrante pois havia estudado a peça musical nos meses precedentes. Na ocasião, eu estava nervoso para o exame prático e quando vi os professores avaliadores na sala os meus dedos tremeram, a música não saiu. Eu fui com a minha mãe refazer o teste nos anos seguintes, ela sempre procurava acalmar minha ansiedade.
Aos 14 anos meus pais me colocaram para estudar violão erudito com um professor particular próximo da minha casa, e eu estudei pelos 5 anos seguintes. Vilson Rodrigues foi mais do que um professor. Lembro-me quando o conheci e tenho na recordação o seu sorriso no rosto ao me cumprimentar pela primeira vez. Naquela ocasião ele foi muito simpático. Pegou meu violão e tocou “Jesus, alegria dos Homens”, também do Bach. Desde aquele dia mantivemos uma amizade até seu falecimento na virada do ano para 2018. Aos 18 anos, já na faculdade de arquitetura e urbanismo, prestei novamente o processo de seleção e fui aprovado, dessa vez para cursar Violão de 7 cordas. Eu não dei andamento ao curso, e essa foi a primeira grande decisão difícil que tive, pois as aulas de música aconteciam no mesmo horário da graduação em arquitetura .
²hoje essa escola é chamada de EMESP – Escola de Música do Estado de São Paulo
A música despertou em meu espírito uma profunda necessidade estética. No curso de arquitetura eu aprendia a projetar o espaço humano, e nas aulas de harmonia musical podia muito facilmente visualizar a modulação estrutural de uma edificação horizontal. Já não conseguia separar muito bem as duas coisas, visto que desenhava ouvindo música e tocava violão olhando para a arquitetura. Certa vez assisti ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha falando sobre o compositor e estudante de arquitetura na juventude, Tom Jobim, e o seu lado “arquiteto” quando compôs o “Corcovado” ao dizer: “da janela vê-se o Corcovado, Redentor que Lindo!”. Para Paulo Mendes, apesar da natureza exuberante e indiscutível do Rio de Janeiro, o Corcovado é visto por Tom Jobim da janela, do ambiente construído pela arquitetura.
Nos corredores da faculdade ele estava sempre comigo, além do tubo com desenhos em formato A1, o meu violão, ou o violão que pegava emprestado do curso de produção musical a poucas salas dos ateliês de projeto. Devo confessar: no começo da faculdade faltava em algumas aulas para ver o pessoal de música e me perdia no tempo, musical e do relógio na parede. Meu ensino médio foi concomitante ao ensino técnico de Comunicação Visual. Na formação técnica eu tive contato com matérias atreladas à educação artística, como história da arte, desenho (artístico e auxiliado por computador), fotografia e diagramação que, atrelados à formação musical, me despertaram a vontade de fazer um curso superior voltado às artes. Chegar à arquitetura e urbanismo foi o passo seguinte e eu me identifiquei com o curso.
Figura 01: Trabalho desenvolvido no curso técnico. Fonte: Magdiel Silva.
Eu não conhecia a profissão. Não existiam arquitetos na família até eu terminar a faculdade. Fui agraciado com uma bolsa integral do Prouni³ para cursar Arquitetura em uma universidade particular, e apesar dos percalços, eu sempre procurei tirar boas notas. Lá, durante 5 anos conheci pessoas maravilhosas e que são importantes para a minha formação para além da graduação. As aulas e a paixão dos professores em ensinar arte e arquitetura e urbanismo, despertaram em mim a vontade de um dia ser professor de arquitetura e urbanismo também. Logo no segundo ano da graduação me inscrevi como professor de educação artística na escola pública estadual que havia frequentado quando cursei o ensino fundamental. Aquele período foi marcado por experiências que revelaram minhas dificuldades na relação de ensino e aprendizagem, no cotidiano com os estudantes, em saber passar o conteúdo e também da necessidade de encontro com os estudantes na atitude simpática e amistosa em sala de aula. Os anos se passaram, eu finalizei a faculdade, fiz estágios na área de arquitetura e descobri a dificuldade da inserção profissional na área. Trabalhei como educador em exposições de arte e ingressei na pós-graduação lato sensu em Educação e Tecnologias e no mestrado em Arquitetura e Urbanismo, ambos já finalizados.
Figura 02: Trabalho desenvolvido no curso técnico. Fonte: Magdiel Silva.
³O Programa Universidade para Todos (Prouni) do Ministério da Educação é um programa que oferece bolsas de estudo, integrais e parciais.
44 Desde a finalização da faculdade eu venho desenvolvendo algumas reflexões sobre a arte e a formação. São questões ainda bem primárias e que não estão relacionadas a nenhum tipo de pesquisa sistematizada em pós-graduação, com métodos e resultados. São impressões que venho anotando ao longo desses anos e que compartilho agora. Mas, já deixo a observação de que não sou filósofo. Essas considerações também finalizam este texto com conclusões abertas, tendo mais perguntas e sugestões do que afirmações. E mesmo se aparecer alguma afirmação tenham-na pela perspectiva de suposição. Eu finalizo aqui esse relato pessoal. Acredito que tenha sido minimamente sincero comigo mesmo e com vocês que estão lendo. Eu deixo aqui essa “linha” para que juntos costuremos novos mantos na busca do conhecimento.
III
Quando um corpo encontra outro, seja em sala de aula ou não, ocorre um acontecimento. Esse acontecimento pode ser intensificado pelo fenômeno da simpatia. Simpatia ao meu ver é um efeito externo, visível e percebido pelo interlocutor, aquele que vê, que escuta e que sente a presença do outro. Na minha limitada percepção, e na de William Blacke, citada na epígrafe deste texto, simpatia carrega um verbo, uma ação: sorrir, no infinitivo. Todavia, não sei se o sorrir é um efeito da simpatia ou vice-versa. Se adotarmos essa perspectiva, simpatia não é substantivo que vem adjetivar qualidade individual. Não existem os “simpáticos” ou “não simpáticos”.
Os indivíduos não são, nem deixam de ser simpáticos pois a simpatia, quando vista pela ótica do acontecimento, não é efeito de indivíduos, mas sim do encontro. Ninguém é simpático quando está só, é o outro, em sua singularidade, que enxerga sua simpatia como um fenômeno externalizado.
O prefixo syn que tem os significados de “junto” e “sincronia” e a famosa palavra páthos de “sintoma” ou “sentimento”, constroem a premissa de juntar sintomas, estados de espírito, sincronizar sentimentos. O sorrir enquanto ação sincera associada à palavra pronunciada é o “gesto de philia”, um conceito que venho desenvolvendo e que pude perceber no dia-a-dia em sala de aula ou nas exposições que participei. Etimologicamente a palavra filosofia, a raiz do conhecimento, é philis (amizade) e sofia (sabedoria), mas parece que existe um consenso de que a atividade filosófica seja a busca ou amizade pelo conhecimento. Bem, isso é verdade, mas não deixa de ser verdade também que quando pensamos em amizade e sabedoria encontramos duas palavras diferentes, ou será que elas não são tão diferentes assim? Amizade está próxima do cotidiano visto que todos têm amigos. Mas o que seria uma amizade? Como poderíamos entender uma aproximação à filosofia, ou a qualquer outro tipo de conhecimento, pela ótica da amizade? Quando dois corpos se misturam há um tecer de novos mantos. Uma aula, ou o encontro com o desconhecido, entre alunos e professores, é costurar mantos. Eles compartilham o devir e se multiplicam. Encontramos aí um acontecimento incorporal distinto da simpatia, que pode ser uma amizade, uma admiração etc. Cada corpo é uma linha e quando muitos corpos se encontram muitas linhas se cruzam, como em uma bonita e grande mandala. A amizade ou philia é um acontecimento, é uma mistura inominável entre dois ou mais corpos. É algo vivo e incorporal, como uma alma entre duas pessoas (Aristóteles).
Figura 03: Verbos Infinitos. Fonte: Magdiel Silva, 2017
A arkhê (princípio) é a palavra. A palavra dita tem o poder, esse poder é representado pelo verbo. O verbo é infinitivo, é um efeito incorporal das misturas dos corpos. Quando duas ou mais pessoas conversam existe uma força invisível, uma costura sendo tecida. A palavra é uma imagem em ação. Nesse sentido o “gesto de philia” é a palavra dita e pode proporcionar amizade. A lembrança da amizade é o verbo que nos consome e leva ao conhecimento, como uma vereda a ser percorrida. Quando alunos e professores caminham e costuram novos mantos automaticamente desdobram o universo. O papel de um educador, nessa perspectiva, é o de propiciar a costura de novos mantos. Os estudantes se envolvem mais e aprendem mais quando estão engajados emocionalmente e isso deve ser proporcionado. Aquecer, confraternizar, vislumbrar, aprender e ensinar, sempre no verbo infinitivo. As lembranças são infinitas, são linhas que carregamos do passado ao presente, e que carregarão por nós no futuro.
BIBLIOGRAFIA ORTEGA Y GASSET, J. Meditaciones del Quijote. In Obras completas de José Ortega y Gasset, 7° ed., v.1, pp. 310-400). Madrid: Revista de Occidente. 1966.
Figura 04: Espiral do corpo infinito. Fonte: Magdiel Silva, 2017
PINSKY, J. Educação judaica no Brasil. Revista Shalon, n. 97, ano VIII, 2021. Disponível em.: http://www. jaimepinsky.com.br/site/main. php?page=artigo&artigo_id=119
pedro paulo de siqueira mainieri
48 PEDRO
SOBRE O PEDRO
Arquiteto e Urbanista Curso de Aperfeiçoamento FAUP, Porto/ Portugal, 2001 Especialização em Urbanismo FAU PUC Campinas, 2003 Mestrado em Projeto Urbano FAU USP, 2008 Professor da FAU PUC Campinas, desde 2013 Concurso Nacional de Esculturas “Memorial Carlos Gomes”, juntamente com Daniela Salgado Galli e Carlos Adriano Lazanha, promovido pela Prefeitura Municipal de Campinas. Inauguração da obra em 2006. Integrante dos grupos: “Gatilho” de Criação em Arte Contemporânea, coordenado pelo artista visual Marcelo Moscheta. Ateliê 8 - Campinas / 2018; “Risco” de Criação em Arte Contemporânea, coordenado pelo artista visual Marcelo Moscheta. Ateliê 8 - Campinas / 2019; “Olhar Amoroso” de Criação em Arte Contemporânea, coordenado pelo artista visual Bené Fonteles. Unicamp - Campinas / 2019.
No começo de novembro de 2021, pedimos ao arquiteto Pedro Paulo de Siqueira Mainieri que realizasse um ensaio experimental para esta revista. Imaginávamos universos surpreendentes, pois Pedro Paulo é um destruidor de lógicas, desvelando mundos nas frestas do cotidiano. Digamos que seu olhar captura arte em mergulhos profundos nas entranhas do ordinário. Como resposta, obra e processo se apresentam aqui. A vítima, desta vez, é uma banqueta que estava discretamente disposta no canto da sala. Pela lente do celular, atravessando as moléculas do óbvio, nas dobraduras do espaço e do tempo, acelerando as explosões de luzes contra a resistência das sombras, invertendo escalas e amplitudes, a banqueta contém a sala. Uma banqueta como “buraco de minhoca”!
INTENTO CRIATIVO
Eu matutei em como participar desta empreitada. Lembrei de quatro ou cinco imagens que produzi a partir de fotos que bati de uma banqueta daqui da casa. Eu fiz as fotos, editei no celular. Talvez seja uma segunda série, irmã daquela das sombras da cadeira com encosto de "palhinha" que enviei para uma das Revistas Tulha¹ . A ideia é olhar para o cotidiano de um outro jeito. Fiz os registros e os editei aumentando o contraste e recortando as imagens para que elas chegassem a uma abstração. De alguma forma vejo paisagens ou situações onde o campo visual se tensiona e cria relações interessantes.
O desdobramento disso tudo, como pano de fundo, é que na época eu já havia assistido ao filme² sobre a Nise da Silveira e a experiência dela com os clientes/pacientes no Rio de Janeiro.E a relação dela com o Jung... Mas não conhecia um de seus assistentes, o Mavignier³. E não é que esse cara morre! Leio uma reportagem na Folha [de São Paulo] sobre a produção dele. E fiquei pensando... que coisa! Fiz algo na linha do que ele investigava, porém eu o desconhecia completamente!
Essa é a banqueta
¹https://issuu.com/petarquiteturaeurbanismo/docs/revista_tulha_final_jun2017 ²Nise: O Coração da Loucura, 2015/2016, do diretor Roberto Berliner; ou o documentário Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman, de 1988. ³https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/09/em-sutil-jogo-otico-almir-mavignier-sugere-formas-que-aparecem-e-desaparecem.shtml
Esses são os registros:
E estes são alguns trabalhos do Mavignier:
Figura 01: konvexe hälften öl auf leinwand 100 x 100 cm, Almir Mavignier, 1967.
Figura 02: zwei konvexe hälften öl auf leinwand 150 x 100 cm, Almir Mavignier, 1968.
Figura 03: vorn und hinten öl auf leinwand 40 x 30 cm, Almir Mavignier, 1968.
Figura 04: verschiebung und farbwechsel 3 öl auf leinwand 141 x 100 cm hamburger kunsthalle, Almir Mavignier, 1968.
O que mais me interessa é o processo criativo, o processo que envolve olhar para dentro e para fora, ao mesmo tempo. Tive a liberdade de montar uma sequência a partir de uma das imagens. 4
Outro dia aprendi que isso se chama CARTEMA ...
Rotação, espelhamento, cópia. E agora o vazio fazendo parte intrínseca da composição.
4 Cartema é um neologismo criado por Antônio Houaiss para designar a obra do pernambucano Aloísio Magalhães - construção compositiva de imagens repetidas, justapostas (colagens
de cartões postais) formando estruturas óticas como unidades coesas, muitas vezes negando a própria imagem embrionária ou a diluindo em corpo imagético único.
Talvez, agenciar fora do eixo X e Y ou... estruturar as faixas diagonais em eixos X e Y, e não os quadrados – módulo da composição.
Deve ficar dinâmico! Não está exatamente no eixo vertical x horizontal, mas vale o registro da ideia.
Miniatura
Miniatura
Talvez, sair de todas as ortogonalidades possíveis, também pode ficar interessante! (É um possível desdobramento, que não fiz, onde nada seria ortogonal, tudo explodido sem controle racional!) Particularmente gosto do parágrafo final, que demonstra o início de uma nova possibilidade inusitada... quase que evidenciando o mesmo método que foi demonstrado! Acabo de perceber que a cadeira que trabalhei a pandemia toda pode ser matéria-prima também! PPSM, 2021
Miniatura
Miniatura
SOBRE A TATIANA
TATIANA
tatiana stropp carneiro
Bacharelada no curso de Pintura da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2003). Possui obras em acervos de instituições como o MON – Museu Oscar Niemeyer, MUSA – Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná, CCAL – Centro Cultural do Alumínio e Fundação Romulo Maiorana. Foi indicada ao Prêmio PIPA nos anos de 2012 e 2013 e faz parte da plataforma de pesquisa em Arte Contemporânea Latino Americana – Abstraction in Action. Participou de diversas exposições, dentre elas destacam-se as coletivas; Afinidades, curadoria Marc Pottier e Juliana Vosnika, MON – Museu Oscar Niemeyer, Curitiba (2021/2022); Cromáticas Consonantes, com Érica Kaminish, Via Thorei Galeria, Vitória (2019/2020), tempo quando, com Marilde Stropp, Galeria Ybakatu, Curitiba (2017), Confluências Poéticas, curadoria Luana Oliveira, SESC Paço da Liberdade, Curitiba (2016); 20 anos de Arte, Galeria Ybakatu, Curitiba (2015); Estado da Arte: 40 anos de Arte Contemporânea no Paraná, MON – Museu Oscar Niemeyer, Curitiba(2010/11). Entre as individuais destacam-se: temporais, intemporais, Galeria Ybakatu, Curitiba (2021/2022), horizonte aparente, Centro Cultural do Alumínio, São Paulo (2018), 16.10l27.09l19.10 Curitiba: A coisa em si, Adelina Galeria, São Paulo (2017/18), Translucent, Igallery, Palma de Mallorca Espanha (2016/17), Diáfano, Galeria Via Thorey, Vitória (2014), Bienal Internacional de Curitiba, Solar do Barão, Curitiba (2013), Alume, Galeria Vertente, Campinas (2012), Pinturas 2003 – 2006, Casa Andrade Muricy, Curitiba (2006).
PULSAÇÃO ARTÍSTICA Primeiramente vou me apresentar; sou Tatiana Stropp Carneiro, nasci em 1974, em Campinas, São Paulo. Meu pai, poeta e bancário, minha mãe, artista e estilista, duas irmãs, a caçula formada em arquitetura e hoje atua na área da moda e minha irmã do meio, pesquisadora, sou a mais velha, artista também. Na infância, durante as férias escolares, nós íamos à casa de meus avós maternos, na cidade de São Sebastião, litoral do estado de São Paulo. Meu avô era um artista popular, sem estudos e com muita intuição. Nessas temporadas tínhamos contato com esculturas moldadas em pedaços de troncos de árvores e raízes. Ele produzia sua própria tinta, a partir de elementos da natureza, além de produzir também móveis como cadeiras, mesas e até relógios de corda. O contato com essas peças inusitadas despertou em mim a vontade de querer construir algo, talvez, inventado.
A descoberta da possibilidade de que é possível criar a partir de coisas, materiais, elementos disponíveis e que de alguma maneira instiga a curiosidade. No período da adolescência, minha família começou a frequentar um ateliê de criação. Me lembro que a abordagem nas aulas não era escolher uma técnica específica, desenho, pintura ou escultura, mas procurar maneiras de se expressar visualmente, lidar com sentimentos através do fazer artístico e pela transformação de materiais. Em 1998, recém-casada, fui morar em Curitiba. Cheguei de Campinas sem conhecer nada da nova cidade. Resolvi então dar continuidade ao fazer e a pesquisa artística que havia iniciado, me inscrevi em diversos cursos ligados à arte, gravura, escultura em argila, história da arte e até aprendi um pouco de caligrafia japonesa. Foi nesse momento que despertou em mim uma vontade de conhecer mais sobre arte contemporânea e o ambiente artístico na cidade. Cada vez mais passei a frequentar museus e galerias, além de conhecer as pessoas que à época estavam participando da cena cultural na cidade. No ano de 2000 eu iniciei a graduação em pintura na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Embora meu curso fosse de pintura, fiz matérias sobre gravura e escultura. O estudo em diferentes meios, influenciou a pesquisa e a busca por diferentes materiais. Foi nesse processo de ensinamentos, descobertas e experimentações que descobri a chapa de alumínio, material que me acompanha até hoje como um suporte ativo para as pinturas.
60 Em meados de 2003, no último ano da graduação, juntamente com quatro amigos, montamos um ateliê coletivo. Era uma casa de madeira, próximo a um parque, em uma ciclovia. Mantivemos o simpático espaço por uns dois anos, foi um período muito rico de trocas entre todos recém-formados. Com os anos, o espaço para o ateliê sempre me acompanhou. Considero esse ambiente um lugar especial, pois é ali que a rotina de trabalhos e experimentações são estabelecidas. Hoje, quase vinte anos depois do primeiro contato com o ateliê, ainda me surpreendo na rotina e a fertilidade de ideias que o espaço emoldura. Como todo trabalho autônomo, o dia a dia exige disciplina, organização e dedicação. Durante o processo de produção das pinturas há, principalmente, duas fases de preparação. A primeira envolve cortes e dobras em oficinas metalúrgicas, e a segunda é o tratamento químico que prepara a superfície do alumínio para poder receber a tinta. Depois dessas etapas, penduro as chapas no ateliê e passo a definir a continuidade do trabalho. Fico algum tempo olhando, elaborando e imaginando como serão. Inicio uma conversa silenciosa que me indicará qual caminho a seguir. Ao explorar a “tela vazia” dialogo com a intuição e a técnica. Não há um projeto fechado para cada obra, há a escolha de possíveis direções. Penso que a escolha inicial das cores seja, de alguma maneira, guiada pelo afetivo e intuitivo. Quando me coloco à frente das tintas, escolho a cor que me atrai naquele dia, próximo de um sentimento de diálogo. A partir daí, começo a estabelecer as relações que formarão aquela pintura. Me interessa explorar e ampliar as relações cromáticas que as próprias cores reclamam, e aos poucos a relações cromáticas se estabelecem junto com a forma construída do objeto quadro.
Exposições em cartaz: Afinidades, Museu Oscar Niemeyer. Coletiva com curadoria de Marc Pottier
e Juliana Vosnika. https://www.museuoscarniemeyer.org.br/exposicoes/exposicoes/afinidades Até abril de 2022.
Temporais, intemporais, Galeria Ybakatu. Curitiba.
https://ybakatu.com/temporais-intemporais-de-tatiana-stropp/ Até 23 dezembro 2021.
Figura 01: 13.05, 2016, 124x99,5cm óleo s alumínio, tatiana stropp (509x640)
Figura 02: 23.05, 2016 óleo s alumínio, 75x125cm, tatiana stropp (640x388)
Figura 03: Translucent, Palma Mallorca, 2016,017
Figura 04: Translucent, Palma Mallorca, 2016,017.
Figura 06: 16.02 27.09 17.10, Curitiba. a coisa em si, Tatiana Stropp, curd. Paulo Gallina e Adelina Gal
Figura 05: 27.09, 2016. 123x200cm. detalhe óleo s alumínio. tatiana stropp
Figura 07: 19.10, 2017, Tatiana Stropp (397x576)
Figura 08: 27.02, 2017. Óleo s alumínio, 124x200cm, Tatiana Stropp. Foto: Rafael Dabul
Figura 09: exp. Tatiana Stropp, Bienal de Curitiba. Solar do Barão, 2013.
Figura 10: exp. Tatiana Stropp, Bienal de Curitiba. Solar do Barão, 2013.
Figura 11: exp. Tatiana Stropp, Bienal de Curitiba. Solar do Barão, 2013.
Figura 12: 22.09.2017, 28x48cm, óleo s alumínio, tatiana stropp.
Figura 13: 06.09.2017, 28x48cm, óleo s alumínio, tatiana stropp.
Figura 14: 12.09.2017 28x48cm, óleo s alumínio, tatiana stropp.
Figura 16: 21.03.2015,16 óleo s alumínio, 75x62,5cm, tatiana stropp (530x640).
Figura 15: 24.05.2021, 116x150cm, óleo e acrilico s alumínio, tatiana stropp.
Figura 17: 22.03.2016, óleo s alumínio, 75x62,5cm, tatiana stropp.
Figura 18: 23.03, 10.02, 2015.2018. 96x125cm, óleo s alumínio, tatiana stropp (pintura em Curitiba).
jonathas magalhães pereira da silva
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SOBRE O JONATHAS
JONATHAS Sócio Diretor da MPS Associados; Professor Dr. e pesquisador do Programa de Pós Graduação em Urbanismo (POSURB PUC-Campinas). Arquiteto Urbanista pela FAUUSP (1989). Mestre (1999) e Doutor (2005) em estruturas ambientais urbanas na FAUUSP. Pós Doutoramento no ProArq da UFRJ (2015-2016). Foi Presidente da ABAP entre 2011 e 2013, período de formação do CAU. Atua como consultor na MPS associados desde 1994 onde destaca-se a consultoria para GIZ - Governo Alemão - Projeto Andus - Recomendações para incorporação da lente clímatica na PNDU -Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (2020-2021); a coordenação técnica do Plano Diretor de Infraestrutura da UNIFESP (2016 -2019); Plano Sócio Espacial da Rocinha Rio de Janeiro (2007-2009); coordenação de 11 planos participativos da região serrana do Espírito Santo (2005-2006); desenvolvimento dos projetos urbanos dos corredores de transporte em São Paulo (2005) e na da Área Portuária do Rio de Janeiro (2003-2004). jonathas.silva@puc-campinas.edu.br
CRIATIVIDADE, DESIGN
Queria fazer arquitetura, mas na verdade ainda não sabia muito bem o porquê. Com seis irmãos a bordo tinha que ser em uma universidade pública. Tentei dois anos e nada. Foi quando meu pai, aproveitando que estávamos apenas os dois em São Paulo, (os meus irmãos e minha mãe estavam passando férias na casa de meu avô materno) me chamou para ir jantar na casa de um amigo dele. Era julho e eu acabara de entrar na FAU-Santos, mas sabendo das dificuldades e da inflação galopante dos anos 80, nem cogitava esse caminho, apesar da insistência de meu pai. Eu logo entendi que aquele jantar teria esse assunto como pauta.
Esse amigo de meu pai era mais jovem que ele. Arquiteto que não trabalhava com projetos residenciais, o que para mim já soava algo diferente. Logo de saída ele engatou no assunto: “então você quer fazer arquitetura. Arquitetura é algo extremamente criativo!”. Contei das minhas tentativas e dos incansáveis estudos para enfrentar o vestibular. “Você tem que fugir um pouco desse ambiente bitolado de cursinho. Quer passar na FAUUSP, saia do cursinho e vá fazer a FAU-Santos ou fique sem fazer nada durante um tempo. Você precisa abrir a cabeça e se soltar para desenhar o que quiser. Desenhar o que é importante. Para desenhar não tem regra. Vale tudo! Só tem que saber errar para o lado certo”.
E CIDADE:
DOS DESENHOS AO ALGORITMO GRÁFICO DE RICARDO GUERRA FLOREZ
Aquelas ideias para um garoto de cursinho eram revolucionárias para não dizer absurdas, mas faziam todo o sentido.
O nome dele era Ricardo Guerra Florez. A contradição já vivia em seu nome. Algo de Tolstói misturado com a versão abrasileirada da canção de Vandré. O processo criativo de Ricardo Florez ia além do intuitivo questionamento de valores tradicionais. Aquela criatividade era movida a romper processos de elaboração de projeto, obra e qualquer outro tipo de conserva. Estava na compreensão e desafios dos valores, ofertas, demandas, materiais e processos de produção.
Passou a me mostrar os desenhos que fez quando se envolveu em projetos de aeroportos: Guarulhos, Congonhas e tantos outros, mas logo o assunto passou para a descrição de uma palestra de Richard Buckminster Fuller (1895 -1983) que falecera no início daquele ano. Ricardo descrevia a palestra que havia assistido nos EUA, onde Bucky falou sobre suas paixões pela geodésica desde antes de 1967, quando projetou o pavilhão norte-americano da Exposição Mundial realizada na Ilha de Santa Helena, Montreal, Quebec, Canadá.
E logo emendou no projeto de uma residência que estava desenvolvendo em homenagem a Bucky. O cliente era o próprio Ricardo e família. Era um exercício criativo de exploração de possibilidades espaciais. Não havia reparado, mas no canto da sala havia uma maquete do projeto em desenvolvimento. Uma geodésica onde as aberturas da casa estariam programadas para seguir a posição solar conveniente. Aquela leve estrutura girava posicionando as aberturas em relação à entrada de luz. Ricardo descrevia com detalhes como havia pensado o trilho e o problema que mais lhe afligia: a leveza do material e a brutalidade do vento. Guerra e Flores. Pensar uma residência reinventando a espacialidade tradicional e tendo a consciência de fazer parte de um ambiente.
E saltou logo para os desenhos de uma jaqueta que ele estava costurando para si e um vestido que costurou para a esposa ir a uma festa de casamento. Falava da espacialidade necessária para planejar a confecção das vestimentas. E por fim me convidou para ir assistir a uma palestra que ele daria, por coincidência na FAU-Santos, sobre o mobiliário que desenvolvera no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas – com madeira de reflorestamento. Design onde cada detalhe se relacionava ao processo de produção e o entendimento do material. Saí de lá sabendo que nem meu pai imaginava o resultado de tudo aquilo.
A capacidade de desenhar proporcionou a Ricardo Florez oportunidades muito interessantes com diferentes equipes e projetos: aeroportos, infraestrutura portuária, complexo Cantareira, planejamento na prefeitura de São Paulo junto à equipe da Erundina. Lá estavam os desenhos de Ricardo Florez possibilitando a compreensão de processos, edifícios e cidades.
Figura 01: Estudo para aeroporto de Guarulhos. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 1980 (data aproximada).
88 Figura 02: Estudo para aeroportos de Congonhas. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 1975 (data aproximada).
Figura 03: Estudo para aeroportos do Galeão. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 1980 (data aproximada). 1970 (data aproximada).
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Figura 04: Estudo para EMURB, Gestão de Luiza Erundina. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 1980 (data aproximada).
No início dos anos 90, Ricardo Florez saiu do IPT e abriu um escritório próprio que tinha como logotipo o avião "The Spirit of Saint Louis" de Charles Augustus Lindbergh (1902-1974). Um símbolo do planejamento em design. Aquele aviãozinho havia enfrentado a travessia do oceano Atlântico, decolando do Aeródromo de Roosevelt Field, em Long Island, Nova York, e pousado no Aeroporto de Le Bourget, em Paris, França. O ser e sua máquina, genialidade e limites. No escritório, apelidado carinhosamente por familiares e amigos de “Fundação”, Ricardo trabalhou intensamente com design de objeto e formou grandes equipes que por lá passaram desenvolvendo produtos e processos para grandes clientes (Grandene, Sony, Flytour, etc.). Nessa época eu acompanhava esporadicamente os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos e algumas discussões a respeito da relação cliente e produto. A criatividade se expressava até na organização do espaço de trabalho. Cada dia que passava por lá (em intervalos de um a dois meses) todo espaço havia se alterado.
Por que “Fundação”? Pergunta importante para entender o que movia a equipe que por lá passou. Discussões, hipóteses, questionamentos, sempre no sentido de romper o que era óbvio e facilmente aceito. É certo que a constante ação de explorar a criatividade, diferentemente do que Ricardo julgava, não ajudava a manter determinados clientes. Pode-se afirmar que alguns fugiam por não saber ao certo onde aquilo tudo iria dar. Ele pouco se importava. Outros clientes eram envolvidos pelo processo ao perceber que a criatividade ali engendrada era potente e poderia abrir novos caminhos. Tudo se passava como se o processo de projeto fosse mais importante que o próprio resultado.
O que a produtividade racional exigia era desconsiderada em prol do processo criativo. Mas, não se engane, as datas pactuadas eram cumpridas à risca, embora sempre a custo de uma intensa dedicação de todos envolvidos, que enfrentavam as madrugadas e experimentavam a elasticidade do tempo. Essa postura resultava em esforços que apenas quem busca algo novo é capaz de empreender. Pouco prático, mas certamente muito criativo. Ah! Faltou explicar: Fundação? Justamente por não estar preocupado em acumular os lucros por meio da exploração da equipe. Ali tudo se dividia sem uma racional hierarquia. A potência empoderava a equipe e a confiança gerava o inusitado. Nesse intenso processo criativo Ricardo Guerra Florez começou a trabalhar na construção de um método próprio para compreender o mundo e a contribuição do design na sua transformação. Seu método foi inicialmente influenciado por Lawrence Halprin¹ , por meio de seu livro “The RSVP Cycles: Creative Processes in the Human Environment”, publicado em 1970, que revela a filosofia de design presente na obra de Lawrence no qual a interação entre ambiente e sociedade é essencial no processo criativo.
¹Para saber mais ver o vídeo: Lawrence Halprin on Design: RSVP Cycles https://youtu.be/QbIi966lOLs
A partir de Lawrence Halprin, Ricardo Florez caminhou na busca por um algoritmo do design que possibilitasse orientar processos para a criação de produtos novos. Tomou a concepção de David Berlinski apresentada em seu livro “O Advento do Algoritmo” onde declara que “o algoritmo é a ideia que rege o mundo”. O autor investiga a maneira pela qual o algoritmo foi descoberto, abrindo caminho para a era digital. Para Ricardo Florez, a formulação de um algoritmo que regesse os processos de design passou a ser quase uma obsessão. Na forma gráfica desenvolveu sua capacidade argumentativa da relação entre sujeitos e produtos. ALGORÍTMO GRÁFICO - REFERENCIAL PARA AÇÕES / ROTEIROS / REGISTROS
Figura 05: Algoritmo: processo de Design na relação indivíduo e produto. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos desenvolvidos entre 1994 e 2004.
92 Essa busca incessante levava a uma imersão absoluta nos trabalhos que a equipe de seu escritório costumava alavancar. Por inúmeras razões, não muito facilmente mapeáveis, os trabalhos no escritório começaram a rarear. Sem clientes, Ricardo continua trabalhando no algoritmo tentando formas de representá-lo tridimensionalmente.
Figura 06: Desenho da área portuária do Rio de Janeiro para proposta de projeto Porto do Rio desenvolvida pela MPS associados, IPP – Instituto Pereira Passos. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2004.
Nesse período, acabou por se aproximar bastante de nosso escritório onde tivemos a oportunidade de desenvolver diferentes projetos de intervenção em favelas e também na cidade formal (Porto do Rio - 2001 - RJ; Projeto Favela Bairro - 2001 - RJ, Revitalização do Morro do Livramento - 2002 - RJ; Corredores de Ônibus - 2004 - SP). No início, Ricardo colaborava com sua capacidade de desenhar pouco intervindo nos processos de projeto.
Figura 07: Desenho do Projeto de Paisagismo do CEMPES – Petrobrás, desenvolvido pela MPS associados. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2004.
Figura 08: Desenho do Projeto do Sistema de Espaços Livres de Betim - MG, desenvolvido pela MPS associados. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2010.
Aos poucos foi colaborando com os processos de planejamento (Plano Diretor de Avaré - 2004 - SP; 11 Planos Diretores na Região Serrana - 2005 - ES; Processo Participativo junto a Ribeirinhos - 2006 - RO) a partir de sua aproximação com as teorias do psicodrama de Jacob Levy Moreno (1889 - 1974). Com as experiências de planos urbanos e a formação (incompleta) em psicodrama, o algoritmo de Ricardo Florez, focado inicialmente na relação entre produto e indivíduo, ganha uma nova dimensão: a sociedade e os grupos que a compõem passam a fazer parte de seus estudos e do algoritmo.
Figura 09: Desenho da área portuária do Rio de Janeiro para proposta de projeto para os Galpões da Gamboa - Porto do Rio, desenvolvida pela MPS associados, IPP – Instituto Pereira Passos. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2005.
ALGORÍTMO GRÁFICO - REFERENCIAL PARA AÇÕES / ROTEIROS / REGISTROS - SOCIONOMIA
Figura 10: Algoritmo: processo de planejamento na relação indivíduo, grupo e sociedade. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos desenvolvidos entre 2004 e 2015.
Figura 11: Passeio de ônibus urbano em São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Nesse período, passou a frequentar um grupo de estudos sobre a obra de Jacob Levy Moreno, composto por grandes nomes do psicodrama associados à Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP). E participou intensamente do programa “Psicodrama Público Centro Cultural” realizado no CCSP - Centro Cultural da Cidade de São Paulo – onde a cada sábado era realizado um psicodrama aberto ao público dirigido por diferentes psicodramatistas. Nesse processo, aproximou-se de diferentes visões de mundo e por meio do diálogo com moradores em situação de rua passou a revisitar a cidade de São Paulo com seus desenhos. A essa altura da vida criou uma rotina onde o desenho era o instrumento de compreensão e diálogo com o mundo. Saía diariamente com um caderno e um banquinho para desenhar diferentes trechos de São Paulo. Ao fim do dia, carregava a sensação de dever cumprido facilmente comprovado por meio dos desenhos elaborados. Dialogava com os passantes e desenhava, desenhava, desenhava.
Figura 12: Avenida Vinte três de Maio, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
98 Figura 13: Centro Cultural São Paulo, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 14: Avenida Vinte três de Maio próximo ao Centro Cultural São Paulo, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 15: Passeio Público do Centro Cultural São Paulo, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 16: Rua em Cerqueira Cesar, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 17: Marquise do Parque Ibirapuera, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 18: Metrô São Bento, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 20: Praça Ramos de Azevedo olhando em direção à Praça Patriarca, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 19: Estação da Luz, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 21: Anhangabaú, Viaduto Santa Efigênia, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017.
Figura 22: Praça 14 Bis, com a silhueta de Walter, morador em situação de rua que acompanhava às vezes Ricardo em suas incursões pela cidade, São Paulo - SP. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2013 e 2017. Cabe aqui uma nota: quando Ricardo faleceu Walter aguardava a família na frente do hospital. Nunca se soube como ele ficara sabendo que Ricardo estava ali internado. Walter disse que sentiu que devia ficar ali. Nem guerra nem flores para explicar.
Quando a mobilidade passou a prejudicar seus passeios, voltou-se com maior intensidade para os aviões. Milhares de aviões. Consegui agrupar 1126 aviões desenhados de memória e outros tantos inventados por ele, mas sei que deve existir muito mais. O desenho de aviões era uma paixão à parte. Talvez em homenagem a seu pai, piloto de uma fazenda. Talvez para homenagear seu brevê de avião. Em qualquer intervalo de 2 minutos, durante as reuniões de trabalho, uma folha branca era grafada com um avião, helicóptero, carro, bicicleta. Talvez uma maneira de declarar que as ideias deviam circular para a criatividade ser percebida.
A força criativa que impulsionava sua vida nunca o deixou. Sem ser professor, formou uma legião de arquitetos, comunicadores e psicólogos que passaram por seu escritório ou compartilharam de alguma atividade ao longo de sua vida.
(no sentido oposto o "The Spirit of Saint Louis", de Lindbergh)
Figura 23: Uma pequena amostra da grande coleção de desenhos de aviões e helicópteros. Desenho: Ricardo Guerra Florez. Desenhos feitos entre 2010 e 2017.
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E finalmente deixou registrado em inúmeros desenhos o afeto pela família: filhos e netos.
Figura 24: Autorretratos. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2015.
Figura 25: Autorretratos fazendo referência ao personagem Carl, de “Up” (Disney), e seus netos. Desenho: Ricardo Guerra Florez. 2015.
Ah, sim!!! Faltou falar sobre o resultado daquela primeira conversa? Larguei o cursinho e cursei seis meses na FAU-Santos. No final daquele ano, dominando um pouco mais o desenho, entrei na FAUUSP. As amizades que fiz ali na FAU-Santos, naqueles poucos meses, carrego comigo até hoje. A impressão de que arquitetura é uma forma criativa de ver a vida segue também comigo. A certeza de que a vida é para ser vivida no aqui e agora, e que estar vivo é não estar acomodado, me faz lembrar de “Ricardão”, como era chamado por nós, amigos. De que a capacidade criativa de se reinventar é a expressão maior da arquitetura que fazemos. Saber desenhar e questionar nossa existência num mundo contraditório. Guerra para a indiferença, “Florez” para a vida.
márcia francisca lombo machado
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SOBRE A MÁRCIA
MÁRCIA Dedica-se há 23 anos ao trabalho e estudo envolvendo pessoas com autismo, pessoas com deficiência e suas famílias. marcialombo@gmail.com
DE ADIAMENTOS E JANELAS “Se nos tornarmos apenas um pouquinho mais violentos, ignorantes e egoístas do que já somos, é quase certo que não teremos futuro”. CARL SAGAN,
astrofísico e escritor, 1936-1996. “Pálido ponto azul”, p.461
A pátria da procrastinação, onde adiar soluções é o sacramento que não distingue ideologia e mantém todos cativos. Um “país do futuro” desde o passado alicerçado na escravização de raças, na alienação do povo, na exclusão de vulneráveis, paradoxo histórico de nossa formação que se consolidou em habitat do oportunismo favoravelmente ambientado na falta de manifestações de discernimento, inteligência e bom senso. Haverá futuro para tal país? Há saídas? Do abandono da caverna à reforma paradigmática, da antiguidade à era do pensamento complexo, aberturas vêm da escolha consciente pela cisão e revogação do modelo. Ou da espera até o rompimento da barragem. Ante nossa letargia incompetente a ruptura foi imposta, se pela natureza ou providência divina pouco importa. Quando a suspensão da continuidade cumpre o requisito inicial à mudança e põe em cheque a retórica de buscar e articular outras frentes, o que desejamos? Quem e quantos estão dispostos a fazer novas escolhas? A abrir mão do lugar seguro, do conformismo, da acomodação?
Aqui chegamos, por décadas alternando posições entre os top 10 da economia mundial, enquanto a exclusão salta aos olhos na escassez e precariedade para multidões relativamente ao acúmulo de bens, oportunidades, meios e acessos de alguns. Historicamente alicerçada na negação de direitos que marginaliza grupos e indivíduos, exclusão é o relevo social, expressão visível do processo estruturador da ocupação do espaço físico-social-político que dicotomiza a nação, encadeando abundância de necessidades e de gente cada dia mais plenamente desinteressada, por não divisar perspectiva alguma. Entendo que cada ser se constitui e se educa a partir de três ambientes: família, escola e espaço público. Na mesma linha, sob a diretriz jurídica da Educação, os processos formativos abrangem variedade de instâncias, como a vida familiar, a convivência humana, o trabalho, movimentos culturais, sem omitir, é claro, as instituições de ensino.
Sendo a família a principal responsável pela transmissão da tradição e dos valores ancestrais, escola e cidade são as esferas (idealmente integradas) que oportunizam e dão suporte às rupturas e consequentes mudanças em estruturas excludentes. Fato é que a criança que não testemunhou discriminação manifesta estranhamentos inerentes à sua investigação natural e às constatações que ela tece acerca do mundo em redor, mas crianças em tenra idade não discriminam. Na escola, as crianças se educam na interação com o outro, juntas relacionam-se com suas diferenças, mas é na vida cotidiana que o espaço público convida e a cidade produz o ambiente amplo do processo de individuação, do tensionamento que possibilitará relações de reciprocidade e alteridade – o ser em relação a si próprio e ao que lhe é externo elabora e reelabora seu eu e seus valores, compreende como se configura o “eu-outro-mundo”. Nesse ambiente, infância e juventude em constituição reconhecerão e consolidarão o que modelaram na escola. Esse espaço, cadinho de realidades díspares que conflitam a tradição familiar, é onde se dão os confrontos simbólicos nas proximidades divergentes que abalam os muros da discriminação e do preconceito¹ . O espaço em que os componentes se organizam.
¹Discriminação, ou cristalização do preconceito, é manifestação elaborada do desrespeito à diversidade. Preconceito resulta de um processo histórico de estigmatizar indivíduos ou grupos, e sempre existirá, pois não se apaga a historicidade que nos constituiu. O ato de discriminar, por outro lado, é passível de ser banido e seu combate contínuo inflexiona o próprio processo histórico do preconceito.
Deixando o desenvolvimento integral do ser humano para depois, nossa herança e atual legado são escolas e cidade que mal se relacionam, a educação para todos não existe porque o espaço da vida cotidiana não é de todos: um ciclo de retroalimentação. Sistematicamente evitando saídas, tomando o todo pela parte investimos tempo e energia na formulação de esquemas protelatórios. Nessa estratégia, políticas de inclusão são respostas programáticas que mal arranham o cerne da falta de equidade. Não somos uma sociedade inclusiva, nem sequer temos comunidades inclusivas – para alguns grupos, sim, para todos, não. Se toda a Educação está embutida na concepção de mundo, como afirmou Paulo Freire, só há Educação inclusiva no pressuposto da sociedade excludente, onde a meta natural é o mundo não ser para todos.
Referida como antagonista da exclusão histórica, a denominada “inclusão” são ações processuais e contínuas que, à medida que envolvem e são assimiladas pelo conjunto da sociedade, reformulam concepções e práticas. Idealizada em caráter transformador, ou seja, de um conjunto integrado de mudanças, tem âmbito educativo, ambiental, cultural e político que dialogicamente atua sobre o fazer artístico, científico e tecnológico – é influência e influenciada. Desnecessário informar que a sociedade mais justa é o objetivo. Possível consequência dessa reformulação, o respeito à diversidade passou à pauta mais ampla de debates, incorporou-se aos discursos. E o que são as efetivas ações que executamos até aqui para a existência desse respeito e dessa diversidade? Na realidade da cidade, acessibilidade é uma resposta simplista, mais formalidade que solução por só ter sentido em espaços e sistemas que não se supõem para todos desde a concepção. Acessibilidade tem sido muito mais facilitação e fomento do consumo, bem como a viabilização da absorção de mão de obra (ainda mais) barata. Gestão pública e atores sociais se perdem em achismos de quem nunca foi ostensivamente discriminado e jamais experimentou a realidade de ser excluído. Fácil, portanto, tomar inclusão como ideologia, seguir o vitimário judaico-cristão e, não obstante a noção de solidariedade empreender um modo de aferir responsabilidades que muito destoa de parca caridade, superlativar ações voluntárias e de filantropia, disfarçando o que são direitos. Deixar para depois, desperdiçar o hoje, banalizar a intrínseca opressão da situação de vulnerabilidade e justificar a guetificação que consolida sentenças de invisibilidade.
Uma das armadilhas é a resistência, ou recusa, de encarar discrepâncias. O foco, que deveria ser a melhoria das condições de vida da população excluída, vulnerável e discriminada (a acachapante maioria), inevitavelmente se dilui ante projetos de reprodução dos cânones que a cada grupo de privilegiados foram dados. Na arrogância de quem se vê seguro em vislumbres de mundo e convicções imutáveis e sacralizadas, a própria miopia já não lhe é perceptível – apenas a miopia alheia incomoda. Neste momento histórico, todos sabemos o que é viver confinado. Já não há inocentados pela “involuntária” ignorância, a pandemia ofereceu um laboratório do que seja viver à parte dos espaços, da convivência, da proximidade e (fundamental) dos conflitos inerentes a tudo isso. Ela ofereceu a degustação de uma vida pobre de sentido ante a cidade e seu pressuposto de acesso a equipamento, serviços, consumo e chamamento à interação, sociabilidade e confronto. Há quanto tempo a justificativa é a meta do país do futuro? Mudar é verbo de ação que só se conjuga no presente, neste exato instante encravado entre história e possibilidade, e o amanhã nunca está no domínio da ação. A ruptura está dada. Continuaremos sendo tão incapazes a ponto de continuar acalentando equívocos em exercícios argumentativos quando a escolha é já? O que pretendemos? Se a resposta é o retorno mais breve possível do “mundo seguro” que construímos até o ano de 2020, os questionamentos não têm sentido algum e este é o ponto em que retornamos à contemplação dos reflexos nas paredes² . Estamos condenados a viver contradições. O momento desafia enquanto oportuniza escolhas e mudança. Mas, desejamos abrir frentes concretas algo além de nosso incômodo intelectual? Podemos debater por outras tantas décadas, justificando-nos no dogma da cautela e (auto) preservação por cada momento desperdiçado, duvidar e, como sempre, esconder a coragem que, em verdade, até aqui pouco ousamos ter. No aguardo de um desembarque mágico no futuro, ver pela janela as ocasiões favoráveis passarem, desconfiar de respostas e calcular riscos. Podemos protelar polemizando soluções. Ou podemos agir. Se admitimos a dimensão histórica da trajetória compreendemos que o amanhã já está em curso com o que ontem se designou, e o que fazemos agora é janela constante, perene chance de saída, nosso “ponto de mutação”³.
²“Habitantes desde a infância a contemplar estas imagens vãs, a escutar estes sons confusos cuja origem ignoram, vivem em um mundo de fantasmas que tomam por realidades. Porque se um deles, liberto de suas cadeias, for arrastado para a luz, sentir-se-á de início ofuscado e nada distinguirá do que o circunda. Por instinto dirigirá o olhar para as sombras que não lhe feriam os olhos e durante algum tempo crê-las-á mais reais do que os objetos do novo mundo para onde o transportaram.” (Platão, “A República”, livro VI). ³Referência à obra de Fritjof Capra, “O Ponto de Mutação”, título original: “The Turning Point” (1982).
DEZ/2021