REVISTA
Claudio Manetti
Frédéric René Guy Petitdemange
Roberto Alfredo Pompéia
Frédéric René Guy Petitdemange
Caio Rodrigues Ramos
COLABORADORES
Caio Rodrigues Ramos
Vania Cristina Cerri
CONTEÚDO GRÁFICO
COMPLEMENTAR
Claudio Manetti - Desenhos
Luiza Simionatto Budahazi – Desenhos
Eric Collette – Reprodução fotográfica, acervo do autor Étienne Louis Boullée – Reprodução fotográfica, Cenotáfio de Newton, 1784
Alex Plechko – Reprodução fotográfica
APOIO
Entrevista com a educadora Terezinha Fogaça de Almeida (Terê), realizada em abril de 2021.
Revista Fôlego: Roberto Alfredo Pompeia, Frédéric
René Guy Petitdemange, Claudio Manetti, Lucas Lavecchia de Gouveia, Julia Odonell.
Convidados: João Ricardo Mori, Flávia Santos Santana, Carlos Alberto Barbosa (Beto) e Marcos Pompéia.
Esta matéria está disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mhzWcMo2Kyg&t=198s https://www.youtube.com/watch?v=TlLfYyZflVw (edição de Julia Odonell e João Mirilli).
a natureza da estética, ou a estética quando a natureza impõe os seus limites ao ser humano
12 | entrevista com marcos d’ávila pompéia
parte 1: fundamento da ética: a sobrevivência da humanidade no meio natural parte 2: a sobrevivência da humanidade em meio à civilização
30 | entrevista com terezinha fogaça de almeida
a escola do futuro arte e ciência
52 | entrevista com luís raul weber abramo
66 | luiz cesar marques filho
1. pessimismo da razão
2. otimismo da vontade
EDITORIAL
“Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns de nossa vida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para muitas pessoas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas por outra coisa que não mudanças repentinas e estímulos constantemente renovados .... Não podemos mais tolerar o que dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos. Assim, toda a questão se reduz a isto: pode a mente humana dominar o que a mente humana criou?”
A natureza da estética, ou a estética quando a Natureza impõe os seus limites ao ser humano.
- Assim abrimos a primeira edição da Revista Fôlego, em 2023. Essa frase orienta reflexões possíveis sobre as necessárias transformações da humanidade, frente a situação global tão inédita quanto trágica. Perseguindo o eixo de reflexão sobre educação, formação e artes, a presente edição debate o significado das palavras “arte” e “ciência”, na busca por esclarecimentos sobre essa “transição significativa dos rumos da história” no que concerne à era do antropoceno¹ .
Historicamente, os termos “arte“ e “ciência“ determinam uma distinção entre dois campos do saber. Na busca pelo conhecimento acerca da verdade, as artes e as ciências propõem caminhos diferentes, que podem se opor, se relacionar ou ainda se integrar e se complementar. Como práticas humanas, as artes e as ciências pertencem ao movimento de desabrochamento da espécie humana e, quando empregados para distinguir duas formas de conhecimento, constituem ferramentas epistemológicas pertinentes para esclarecer alguns aspectos da percepção (entendimento) da condição humana na idade do antropoceno. O filosofo italiano Benedetto Croce, quando aponta o conhecimento como questão central do seu discurso estético, delineia essa dimensão epistemológica das relações entre esses dois termos. Benedetto Croce, distingue o conhecimento intuitivo, que seria o “sentir” da verdade e se exprimiria em imagens, referindo-se à arte e ao mito. A intuição como conhecimento elementar e primitivo seria historicamente a forma mais antiga do conhecimento, que precisa da matéria, segundo Henri Bergson² .
Notas:
O conhecimento lógico ou a ciência (logos), que por sua vez se apresentaria como o “compreender” da verdade através da razão, se exprimiria em conceitos e seria posterior ao conhecimento, já que ela precisa de forma, ainda segundo Henri Bergson³ . Mesmo sendo posterior, a ciência não aniquila (suplanta) a intuição e, nessa dinâmica, as fronteiras entre as formas de conhecimento se revelam permeáveis. Permeabilidade que se objetiva na emblemática expressão “instituição cientifica “. Essas distinções entre arte e ciência, entre intuição e razão (lógica) podem contribuir ao esclarecimento das nossas dificuldades em perceber, questionar e transformar nosso modelo de civilização. Por exemplo, Mario Pedrosa que procura as origens da crise do mundo na complexidade da “civilização moderna” deplora a discriminação do conhecimento intuitivo e anuncia a situação inédita que sua carência provoca na história do desenvolvimento da humanidade.
“A ciência matematizada, extremamente tecnicizada, torna-se social e filosoficamente isolacionista. Ela veda o universo aos sentidos, e logo à imaginação dos leigos, quer dizer dos homens nus, desarmados em face dos mistérios da Natureza. Renunciando a Ciência a uma imagem total intuitiva, ou realmente sensível do mundo, proclamando a insuficiência e a impotência dos sentidos para aprender o mundo ideomatemático que ela construiu, a humanidade encontra-se pela primeira vez na sua curva de desenvolvimento sem uma concepção cosmogônica intuitiva ou mesmo cosmológica do universo. ”
Quando Mario Pedrosa destaca a falta de uma “concepção cosmogônica intuitiva”, além de exaltar a intuição como forma de conhecimento inato da natureza, imprescindível companheira do homem no seu desenvolvimento, ele aponta para uma situação nova do conhecimento humano caracterizada pelo afastamento do homem da natureza, decorrente da racionalização da percepção da natureza, manifesto nos próprios modus operandi das ciências e das suas experiências de laboratório que isolam os fenômenos naturais para estudá-los.
1. “Para a humanidade, entrar nessa nova era é de se situar numa nova era geológica marcada pelos efeitos sistemáticos, globais e irreversíveis das ações humanas sobre a natureza. Essa constatação não concerne apenas aos geólogos. O antropoceno é primeiramente uma maneira de qualificar as responsabilidades que incumbem aos seres hoje em relação a natureza e as gerações futuras e as modificações dos comportamentos individuais e coletivos que isso implica. Pensar e agir no antropoceno é morar diferentemente a terra.” Bruno Latour: Face à Gaïa Edição La découverte. 2015 .
2. “Os filósofos distinguem entre a matéria do nosso conhecimento e a sua forma. A matéria é o que é dado pelas faculdades da percepção, tomadas no estado bruto. Forma é o conjunto de relações que se estabelecem entre esses materiais para constituir o conhecimento sistemático. » Henri Bergson. L´évolution créatrice. Editions PUF.1941-1996 (Página 151).
“Estamos vivendo uma transição significativa nos rumos da história da humanidade ”
Nessa busca das origens da tragédia do modelo moderno de civilização, diante do distanciamento do homem da natureza, Mario Pedrosa antecipa o pensamento de Bruno Latour , que situa no Renascimento a invenção do humanismo, onde ocorre também a invenção do não humano (fauna, flora e objetos). Essa separação do humano e do não humano marca a irrupção do espírito científico moderno e a noção de progresso técnico-científico , e provoca uma nova relação entre o homem e a natureza, que se constitui como uma relação dominadora e exploradora sem limites entre destruição de espécies e produção de híbridos. Esse isolamento do humano, que torna a empatia inútil para melhor eliminá-la, constitui a legitimação da percepção de uma superioridade do homem na sua capacidade de medir e moldar a natureza, conforme as suas necessidades ou caprichos. Hoje, embora sintamos os impactos climáticos devastadores e sabemos da insustentabilidade desse modelo moderno moribundo, vivemos a era da desinformação, do negacionismo, das pós-verdades; seria isso consequência da difícil aceitação de que a tragédia não é mais política, mas ecológica?
Essa pergunta aponta respostas empáticas, discernimento estético e ações educativas capazes de transformar a humanidade e torná-la capaz de se sustentar no planeta.
Arte e ciência; entre fantasia e intelecto, entre sentido e razão, entre imagem e texto, são dicotomias que o segundo número da Revista Fôlego busca contribuir diante da nossa justa percepção do momento atual.
MARCOS D’ÁVILA POMPÉIA
COM DESENHOS DE CLAUDIO MANETTI
O filósofo Marcos Pompéia ao contar duas histórias, nos remete ao conhecimento pré-lógico (para não dizer pré-científico), também nomeado de mito-lógico, quando localizado na Grécia antiga, antes da descoberta da Filosofia (momento de transição), quando sofistas e filósofos ainda usavam a forma do mito para explicar (ensinar) conceitos filosóficos. Marcos Pompéia mostra a eficiência didática das histórias e dos mitos entendidos como explicação de fenômenos reais com histórias imaginárias. Dentre as histórias contadas pelo autor, a segunda releva mais precisamente esse aspecto. Começando pelo mito (inventado / adaptado) de Protágoras, Marcos Pompeia comenta as consequências de uma humanidade, através desse mito adaptado, que trata das origens do progresso técnico-científico, como espécie superpotente que, dominando a natureza, se afasta dela e legitima a exploração desenfreada dos recursos do planeta, provocando o desregulamento de seu próprio equilíbrio. É pelo olhar do autor que se apresentam Ética, Natureza e Estética, numa jornada de aproximação em conflito.
Notas:
3. “A inteligência, naquilo que tem inato, é conhecimento pela forma de uma forma, o instinto implica o de uma matéria.” Henri Bergson. L´évolution créatrice. Editions PUF.1941-1996 (páginas 149-150).
4. Mario Pedrosa: Ciência e arte, vasos comunicantes. In Mundo, Homem, Arte em Crise. (página 73) 2ª Edição. Editora Perspectiva. 1986 (primeira edição 1975).
5. Bruno Latour: Jamais fomos modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica. Editora 34.2019 (primeira edição 1994).
6. É moderno – ou melhor, acredita-se moderno – aquele que pensa ter atrás de si um passado “arcaico” e diante de si um futuro “racional” carregado pela seta do progresso. Pelo menos, esta é a versão oficial – porque a realidade mostra exatamente o contrário: nossos apegos “arcaicos”, também os encontramos diante de nós, ainda mais profundos, intensos, desembaraçados do que antes, e não tão “racionais” como dizem!” Bruno Latour. Entrevista na Revista Télérama. dezembro, 2020.
7. “As ciências e o conhecimento são verdadeiros. Eles demonstram sua verdade por meio de sua técnica eficaz. A verdade de um conhecimento é essa eficiência: esse domínio que ele dá ao pensamento sobre o real.” Marc Le Bot L´art médiatique Revista Esprit, mai 1998.
marcos d’ávila pompéia
SOBRE O MARCOS
Formado em Filosofia pela USP e teve sua formação complementada em disciplinas nas áreas de Lógica, Epistemologia e Teoria Literária na Unicamp. Trabalhou em vários projetos de educação à distância e formação de professores. Colaborou em diversos projetos culturais, entre eles a série “O Povo Brasileiro” e o Museu da Língua Portuguesa. Desde 2001 ministra cursos e palestras em torno do tema “Brasil”.
Abrindo as discussões a respeito das condicionantes que integram a estrutura filosófica sobre Ética e Estética e suas implicações históricas, que nos conduzem aos fatos e problemas quanto ao dueto Meio Ambiente e Civilização Contemporânea, recebemos o filósofo e professor Marcos Pompeia. A partir do relato de quatro pequenas histórias – duas extraídas das narrativas gregas, nos remetendo ao ciclo da Filosofia Clássica [Platão e Sócrates], outra que sintetiza a história da civilização ocidental e uma mais recente que contempla a sapiência do caipira paulista -, Marcos vai tecendo as linhas da constituição dos conceitos de Ética e seus desdobramentos no campo da Estética, tendo como princípio as noções de civilidade e os parâmetros da compreensão e respeito nas relações humanas e da humanidade com o planeta.
NO MEIO NATURAL
Revista Fôlego (Roberto Pompéia): Entendo a relação entre Ética e Meio Ambiente da mesma forma que o Marcos também vê. Acho que são indissociáveis. São questões intimamente ligadas, mais do que suas correlações científicas e técnicas. Marcos, o que você traz é o que eu penso.
Marcos Pompéia: Eu me apresentaria da seguinte forma: a minha formação é em Filosofia. A minha ideia aqui hoje é, antes de mais nada, fazer uma abordagem do conceito de Ética de acordo com a tradição filosófica do Ocidente. A ideia é contar quatro pequenas histórias. Pode parecer estranho, mas boa parte da tradição filosófica ocidental, ao contrário do que se pensa, é feita por meio de narrativas, e as pessoas não se dão conta disso. Grande parte dos textos de filosofia são narrativas. Os Diálogos de Platão, como vocês sabem, são diálogos em que um dos interlocutores é sempre Sócrates e o diálogo é uma “historinha” que está sendo contada. Eu poderia fazer perfeitamente uma história em quadrinhos para cada diálogo de Platão. Eles, antes de tudo, são interessantíssimos do ponto de vista literário. São invenções literárias de Platão, que são uma coisa monumental.: O “cara” que inventa uma forma literária que tem uma tradição importantíssima. Outro exemplo, e aí estamos falando dos marcos inaugurais da filosofia moderna, é o exemplo das Meditações de Descartes. Não só são narrativas do ponto de vista literário, como são uma obra de ficção. Descartes inventa que ele vai para um castelo, que ele se isola, que ele se fecha numa sala, que acende uma vela.... Para forjar esta ficção ele
levou, se não me engano, algo como cinco anos. Tem um livro que é uma joia, uma pérola, de um inglês chamado Jonathan Ree, “Philosophical Tales” (ou seja, Contos Filosóficos). A primeira parte inteira do livro mostra exatamente em quanto tempo e como é que Descartes inventou a narrativa do Meditações que acabou se tornando um marco definitivo da filosofia moderna. Então, você pega as narrativas de Platão e a ficção de Descartes – as de Platão inaugurando a filosofia da tradição ocidental e a de Descartes pontuando a virada operada pela filosofia moderna.
Bom, porque é que estou falando disso? Existe um diálogo de Platão chamado Protágoras que é a primeira história que vou contar. Vejamos quem é Protágoras. Protágoras é o nome de um grande sofista grego. Curiosamente, o grande rival de Sócrates. É chamado de o “Rei dos Sofistas”, intitulado também de o “Inventor da Retórica”, mas que curiosamente é um “cara” muito respeitado por Platão e por Aristóteles. Então, não era um sofista qualquer.
Essa historinha começa com Sócrates saindo da casa de um amigo “ricaço” de Atenas, está andando na rua e cruza com um conhecido que pergunta ao Sócrates: Por onde você andava? Sócrates responde que está vindo da casa de “fulano” e o “cara” brinca com ele. Ah! Você estava à cata do Alcebíades¹? Alcebíades é um personagem real, um personagem supercomplexo. Então, ele pergunta se ele estava na companhia de algum belo mancebo e Sócrates, um pouco irritado com a pergunta, responde: para dizer a verdade, se eu puder dizer que a inteligência, a lucidez, o brilho de uma pessoa é o que caracteriza a sua beleza, então eu diria que sim, estive agora há pouco com um dos mais belos gregos que conheci. É assim que começa o Diálogo de Protágoras. É Sócrates se referindo a quem? Se referindo a Protágoras! O grande inimigo de Sócrates. Ele começa o diálogo fazendo um radical elogio a Protágoras! É uma coisa muito curiosa. E isso atiça a narrativa, porque você fica se perguntando: bom, mas como aconteceu isso, né?
Então ele começa a contar o dia dele para esse amigo. Eles vão lá num lugar, na sombra, e ficam conversando. Sócrates, então, conta que de manhã, de madrugada, ele foi acordado por um aluno. Tipo um jovem que era aluno da Academia, que veio bater na sua porta superexcitado. E ele acorda meio tonto dizendo “o que que você quer, fulano?” O menino fala: “Você sabe quem está na cidade?” Sócrates, acordando já fica meio irritado, [você percebe pela criação literária afiada de Platão que ele fica irritado] e fala: “quem? Quem está na cidade?” E o menino fala: “Protágoras está em Atenas!”
Protágoras nem era de Atenas. Ele per-
corria o mundo grego vendendo os seus serviços de professor de Retórica e, supostamente, de Filosofia. O menino quer que Sócrates o leve e o apresente a Protágoras, ele quer ser aluno de Protágoras. Ele quer aprender com o “grande mestre sofista”. É interessantíssimo, porque na composição literária dessa narrativa, você começa a perceber que Sócrates fica super irritado, enciumado, porque o aluno dele está querendo ser aluno do mais perigoso inimigo dele, que era o “rei dos sofistas”. Então, ele fala: tudo bem. Então, calma, vamos conversar antes. Afinal de contas, o que é que você quer? Você quer aprender o quê com Protágoras? Aí o menino começa a meter as mãos pelos pés, não sabe exatamente como explicar e chega uma hora que Sócrates diz: Então, está bom. Ele insinua que talvez, o menino esteja perfeitamente enganado sobre o que Protágoras prometia ser.
Então eles vão para a casa onde Protágoras estava hospedado em Atenas, que era a casa de um “cara” muito rico, que recebia as pessoas, e tal. Quando eles chegam lá, ainda tem todo um episódio para os dois conseguirem entrar na casa e eles chegam finalmente e presenciam uma cena curiosa. Platão descreve a cena de um pátio interno da casa, com Protágoras andando de um lado para o outro e falando, de um canto ao outro seguido pelas pessoas. Ele vai para um lado e as pessoas vão atrás dele. De repente Protágoras faz uma volta e as pessoas o seguem de volta. Aí o Platão faz uma caricatura dessa cena. Porque parecia uma coisa, como se o Protágoras fosse um pastor e os carneirinhos que seguiam o pastor para lá e para cá. Um tipo de ironia, de sarcasmo literário muito bem construído, muito engraçado.
Notas:
1. Alcebíades era um jovem muito famoso pela sua beleza e que tinha uma relação bastante intempestiva com Sócrates. Estou falando de uma “relação”, mas não uma relação de cunho estritamente erótico, embora ali tivesse um interesse erótico, sem dúvida. Um diálogo estratégico para entender quem era Alcebíades e a sua relação com Sócrates é O Banquete.
Finalmente, Sócrates consegue abordar Protágoras. Olha, diz Sócrates, esse rapaz aqui diz que quer ser seu aluno. Então, eu estava questionando com ele, dizendo: o aluno de Fídias o escultor, vai aprender escultura com Fídias; o aluno de um médico vai aprender medicina com o médico; o aluno do construtor de navios vai aprender a construir navios; a questão é a seguinte Protágoras: afinal de contas, ele vai aprender o quê com você? Aí Protágoras diz: “Não tenho a menor dúvida! É muito simples! Se ele estiver comigo hoje, amanhã ele será um cidadão mais virtuoso do que ele é hoje. E se ele estiver comigo amanhã, depois de amanhã, ele será mais virtuoso do que ele seria amanhã”
Vejam, isso tem um traço cultural muito característico dos gregos, mas especialmente do ateniense. A questão da virtude do cidadão era um tema central do pensamento grego e, em especial, em Atenas à cidade consagrada à Deusa da Justiça.
Em seguida tem um momento em que Sócrates pergunta a Protágoras se ele gostaria de combinar com o rapaz à parte, em particular, protegidos do público. Com isso, ele estava insinuando que Protágoras teria pudor de combinar o preço das aulas que ele daria ao rapaz. E Protágoras, percebendo a ironia, o sarcasmo de Sócrates, responde com uma mal-
criação daquelas, ardida, dizendo: “Não. Você não me venha me dizer que eu tenho vergonha do que eu faço. Não tenho vergonha do que eu faço. Eu sou um profissional honesto. Não me venha encher com essa bobagem”. No fundo, é isso.
Sócrates, então, retoma: “Afinal, Protágoras, o que é que você ensina?” “Eu ensino aos homens como ser um cidadão virtuoso. Ensino a virtude”. Então, Sócrates começa a questionar se é possível ensinar a virtude, do mesmo jeito que se ensina a tocar flauta, a arte da medicina ou a construção de navios. Protágoras fala: “é possível sim!”. Então Sócrates faz o desafio: “apresente seus argumentos”. Protágoras faz a seguinte pergunta, voltando-se ao público que estava assistindo – (estava começando um duelo entre Sócrates e Protágoras para a excitação geral do público!): “Eu posso defender essa ideia, ou tratando ponto a ponto com argumentos ou contando um mythos (ou seja, uma historinha). O que vocês preferem?” Como ninguém se manifesta, ficando todo mundo meio tímido, Protágoras diz: “Bom, já que ninguém se manifesta eu vou contar um mythos porque, além de tudo, o mythos é mais divertido”. Aí ele conta um mythos inventado por ele, embora tivesse personagens da mitologia grega.
Esse mito passou a ser conhecido na tradição filosófica como “Mito de Protágoras”. A segunda historinha que narro a vocês aqui está dentro da primeira. Ela é justamente o Mito de Protágoras, e é, a gente pode dizer, um dos mais importantes fundamentos do conceito de Ética da nossa tradição filosófica, no caso, formulado por Platão.
Diz o mito: “Os Deuses tinham criado as criaturas da Terra. (Entendam as criaturas como a variedade das espécies animais que povoam o planeta). Aí ele precisava distribuir entre essas várias criaturas instrumentos de defesa e ataque, de maneira que nenhuma espécie dominasse completamente as outras e nenhuma fosse totalmente dominada pelas outras, porque era importante que todas as criaturas inventadas pelos Deuses sobrevivessem na face da Terra. Continuar a viver. Então, eles precisavam distribuir aqueles dons com sabedoria porque eles precisavam distribuir de um jeito que nenhuma criatura se tornasse forte demais e nenhuma frágil demais. Então, Zeus, chama dois personagens. Um é Prometeu e o outro seu irmão, Epimeteu. Prometeu é o “cara” que pensa antes de agir. Epimeteu (por causa do prefixo Epi) é o “cara” que faz o contrário – ele age antes de pensar. Supostamente, Zeus teria visto um equilíbrio entre esses dois opostos e chama a dupla. Leva-os para a “arca dos dons” que seriam distribuídos pelas várias espécies e pedem para eles distribuírem sob essa condição – de que não deixassem nenhuma espécie muito forte e nem uma espécie muito frágil – para não ter perigo das criaturas, divinamente criadas, desaparecerem da face da Terra. Prometeu e Epimeteu, como irmãos gêmeos (como Cosme e Damião), saem juntos e Epimeteu fala assim:
“Prometeu, vamos fazer o seguinte, eu vou lá e distribuo e você vai depois vai e checa para ver se fiz tudo corretamente, ok? ”
Depois de distribuir os dons, Epimeteu chama o irmão para ver como é que a obra tinha resultado. Quando Prometeu repara, entra em pânico porque percebe que ali existia uma criatura que dentro de um ano não iria aguentar sobreviver na face da Terra. Que espécie animal era essa criatura? Eram os Humanos! Os seres humanos eram absurdamente frágeis diante do contexto natural. No primeiro inverno morreriam de frio se não tivesse o domínio do fogo. Havia animais que corriam muito mais rápido que os homens; animais que nadavam muito melhor que os homens; animais que voavam, coisa que os homens não poderiam fazer; animais que tinham pelos, que tinham garra, que tinham dentes, que tinham muito mais força do que o ser humano. A previsão era a de que em pouco tempo a raça humana iria desaparecer da Terra. Então, ele fica apavorado e decide ir, curiosamente, ao tesouro de Zeus e roubar duas coisas desse tesouro para dar para a Humanidade. Uma, o domínio do fogo e a outra, a saga-
cidade técnica – o que permitiria às pessoas, por exemplo, criarem instrumentos, se comunicarem, etc. Ele leva esses dois dons para as criaturas humanas para que elas sobrevivessem ao primeiro teste em meio à natureza.
Então, de fato, os humanos conseguem sobreviver por um tempo. No entanto, ocorre que os humanos não conseguiam se reunir em comunidade e formar, por exemplo, uma polis. Isso é um conceito central para toda a tradição grega da filosófica. A meta, o ser humano, no sentido integral está na polis. E os Homens não conseguem se juntar para ter coisas em colaboração, porque se um tinha raiva do outro, matava; se um tinha tesão pelo outro, estuprava. Era uma briga, um conflito constante. E, com isso, a população de seres humanos foi diminuindo. Num determinado momento, Zeus olha para a Terra e exclama: “Desse jeito essa criatura vai desaparecer. Se esse pessoal não for capaz de se reunir e viver em comunidade não vai sobreviver”. Então, ele decide ir
para o seu tesouro, onde havia um baú dedicado às virtudes da “Arte de Gerir a Comunidade”. Isso era uma prerrogativa de Zeus, porque ele era o gestor da comunidade dos Deuses. Então, ele vai lá e tira dois dons específicos. Um era a capacidade (existem muitas diferentes traduções dos termos usados por Protágoras – vamos tentar fazer um jogo entre elas) de sentir vergonha, a vicissitude do envergonhar-se. A capacidade de experimentar a temperança. De você medir as coisas, de você não ser destemperado (de você fazer qualquer coisa movido por algum desejo súbito). Você tem que medir, você tem que ser capaz de se conter. A capacidade de se conter. E essa capacidade está muito ligada à experiência de sentir vergonha que a gente vê se desenvolver muito cedo nas crianças. (As crianças muito cedo são capazes de experimentar, em certas circunstâncias, o sentimento de vergonha). Então, uma virtude era o dom da temperança – da capacidade de contenção – e a outra virtude, o outro dom é o “sentido
de justiça”, a capacidade de medir, de aferir e conferir proporção aos atos e sentimentos, capacidade de conferir valor a sentimentos e ações.
Zeus então, chama Hermes, que é o mensageiro (entre os romanos seria Mercúrio) e diz: “Você vá para a Terra e distribua esses dois dons entre aquele povo de humanos lá embaixo, porque senão eles vão “dançar”
Aí Hermes já descolado, pergunta: como é que você quer que eu distribua isso para os Homens? Porque, por exemplo, o dom da Medicina a gente distribui para alguns Homens, e não para todos; o dom da Música, do tocador de flautas, a gente dá para alguns, não é para todos. Aí Zeus diz: “ Não! Pelo amor de Deus, você vai distribuir isso para todos os humanos sem exceção, porque basta um único humano que não seja sensível a esses dons para que a sobrevivência dessa espécie seja ameaçada. E quando Hermes está saindo, Zeus ainda diz: “Espera aí! Olha, não basta. Além disso, você imponha uma regra em meu nome de que quem não for sensível a esses dons – temperança (capacidade de se conter) e senso de justiça – será eliminado da Terra como se fosse a uma peste. ” Ou seja, ele compara o “cara” que não é capaz de ter temperança e senso de justiça a um vírus mortal e contagioso, a uma peste que pode atentar contra a sobrevivência da espécie humana. (Muito a propósito para o caso do nosso país, hoje, que convive com duas pestes simultâneas).
E Hermes obedece às ordens de Zeus e começa a História da Humanidade, é então que surge a polis, a civilização e tudo mais.
Protágoras, não contente em contar esse pequeno mito, que ele aparentemente “tirou da cartola” ali, oferece, no final, a seguinte argumentação: “Sócrates, você pode achar estranho que exista um professor de virtude. No entanto, você não acha estranho que exista um professor da língua materna (o grego, no caso). Na verdade, todos nós ensinamos o grego para as nossas crianças. Os pais, os escravos, os parentes, os professores, os pedagogos.... Todo mundo se torna professor da língua materna para as crianças. Da mesma forma, todo mundo, de alguma maneira, ensina a virtude para as crianças. É por isso que quando elas vão à escola, vão aprender mitologia e a História dos gregos para aprender os modelos de virtude dos heróis, para elas emularem os grandes homens e seus atos e obras.
Protágoras faz uma comparação entre o aprendizado da língua materna com o aprendizado do que a gente chamaria hoje de Ética; ou seja, o aprendizado da virtude. Ele argumenta que do mesmo modo que a gente corrige a fala das crianças (não é assim que se diz, é assado que se diz) a gente sinaliza e corrige as atitudes das crianças. (Isso não se faz; isso é muito feio, aquilo é bonito; isso é errado, aquilo é o certo). Ele acaba essa história, faz esse argumento e depois ele e Sócrates começam a entrar em um embate super técnico. Saber como é que ensina, quem ensina, não ensina, quem aprende…, que vira uma coisa árida, uma esgrima cansativa. E, de repente, os dois se dão conta de que estavam, curiosamente, trocando de posição entre eles: Sócrates defendendo que era possível ensinar virtude e Protágoras dizendo que não era possível ensinar virtude. Aí, eles caem na gargalhada,
ficam meio embaraçados e no final, o que acontece é que Protágoras fala: “Sócrates, eu vou dizer uma coisa. Você é o mais brilhante dos jovens gregos que conheci”. Ou seja, o diálogo que começa com um elogio rasgado de Sócrates a Protágoras, acaba com um elogio “rasgado” do Protágoras a Sócrates.
Então, essas são as duas primeiras historinhas da minha participação aqui. Uma o diálogo; a outra, o Mito de Protágoras. E o que a gente vê é que nós, os seres humanos, precisamos de um monte de dons extras, não compartilhados pelas outras espécies, para conseguir sobreviver. Ali, segundo a historinha, a gente precisou do fogo, da sagacidade técnica, da capacidade de se conter, do senso de jus-
tiça e de uma lei ameaçando de morte que fosse insensível a esses dons. Se trata de uma situação nítida que é a Humanidade dentro do mundo natural, sobrevivendo dentro do mundo natural. Todas as virtudes necessárias para que essa espécie sobreviva no mundo natural. Se a gente tivesse que espremer daí um sentido para um conceito de Ética, eu poderia, de maneira muito simples, formular o seguinte. A Ética é um know-how de sobrevivência e convivência em comunidade. Então, estamos falando de um know-how, de uma espécie de gramática das relações humanas em sociedade. A Ética seria esse know-how. Essa perspectiva é interessantíssima porque ela dispensa qualquer pressuposto religioso. Você não precisa de nenhum cânone religioso. Você mira a sobrevivência da comunidade, a sobrevivência da espécie e isso basta.
ÉTICA E ESTÉTICA
Não quer dizer que não tenha havido, ao longo da História da Filosofia, versões diferentes para fundamentar o know-how da Ética, porque você tem também os filósofos que defendem que a Ética tem um valor, não só utilitário, instrumental, mas tem um valor em si mesmo, que é justamente o que aproxima a Ética da Estética. A Estética tem essa característica curiosíssima, porque – para citar o famoso prefácio de Oscar Wilde – “a Arte não tem utilidade alguma”, ela é simplesmente um bem em si mesma. Porque a fruição do Belo e do Sublime é uma coisa que faz sentido por si mesma; é um bem em si mesma.
Pode-se defender que a principal obra de Aristóteles em torno do tema da virtude, a ‘Ética a Nicômaco’, apresenta a virtude, sobretudo como uma Estética do comportamento humano. Comportamento virtuoso é o comportamento belo. A gente se emociona diante de uma obra de arte bela, assim como diante de um comportamento belo. A ação humana também é uma obra.
PARTE 2: A SOBREVIVÊNCIA DA HUMANIDADE EM MEIO À CIVILIZAÇÃO
A terceira história é a que, curiosamente, está nascendo lá em Platão, a história de uma civilização que vai conferir aos seres humanos, na sua sobrevivência, na sua sagacidade técnica, no seu domínio do fogo – que a gente poderia dizer, o domínio da energia – e mais o know-how de convivência em comunidade, que vai nos trazer à civilização da era industrial. Por que eu estou falando da era industrial? Porque a gente tem que ter noção de que a história da Humanidade teve dois grandes saltos. Imensos saltos! Incomparavelmente imensos!
No primeiro momento, o Neolítico. A invenção da agricultura e criação dos animais que permitiram ao Homem se fixar num lugar, e que
permitiu a ele produzir alimentos num volume muito grande, o chamado “excedente”, o que permitiu justamente, tendo a garantia do sustento, o surgimento das cidades. Isto é, muita gente se ocupando de outras atividades que não exclusivamente a produção de alimentos. A Cidade é um elemento fundante da Civilização.
Quinhentos formatos diferentes de cidades, em condições naturais e sociais bastante diversos. É aí que vai surgir a ideia de propriedade da terra, e aí que vai surgir a política, vai surgir a hierarquia, e vai surgir o Estado e tudo mais. Enfim, é uma coisa imensa. É uma revolução de proporções catastróficas (risos).
Num segundo momento é o que acontece quando surge o modo de produção industrial – você tem a Re-
volução Industrial – que é uma revolução tão imensa, tão catastrófica como o Neolítico.
Tentando explicar: eu tive uma aula com um arqueólogo chamado Ulpiano Bezerra de Meneses² (acho que a gente poderia falar um pouco mais desse personagem importante) . Ele pegou uma caneta e disse o seguinte: imagine daqui a 10.000 anos (a gente não está mais aqui, a nossa civilização não existe mais), um arqueólogo acha uma caneta esferográfica e descobre que esse objeto era muito comum na nossa era. Chega num lugar como São Paulo e tem um monte de canetas em tudo quanto é canto. Ou seja, que isso é um objeto trivial, completamente trivial, como um isqueiro, um fósforo.... Imagine que esse “cara” tem condições de fazer um estudo arqueológico para saber como é que as pessoas faziam para produzir uma caneta. Então, ele consegue fazer a arqueologia da produção da caneta. Ele descobre o seguinte: a caneta é de plástico. O plástico é um derivado do petróleo. De onde vinha o petróleo utilizado por essas pessoas na década de 1960 em São Paulo? Aí ele descobre que vinha do Oriente Médio. Vem um carregamento de petróleo do Oriente Médio, vem para o Porto de Santos, sobe a serra (do Mar). Vai para uma petroquímica e dali se tira o plástico que fabrica o corpo da caneta. Mas, o tubinho da caneta que
tem dentro, é um tubinho feito de outro tipo de plástico. Tem uma molinha de metal e a ponta da caneta também é de metal. Aí, esse “cara” vai descobrir que essa ponta de metal é de tungstênio que vem de uma mina do Amapá, e que a bolinha de aço vem de Carajás, que, por sua vez, é mandado para não-sei-onde, que é transformado em aço, e depois o aço vira não-sei-o-quê, até uma fábrica que faz a molinha... Aí tem uma outra fábrica que junta o corpo plástico com o caninho, com a ponta, com a molinha e a tinta que tem outra origem numa indústria química lá no fim-do-mundo... Aí o “cara” imagina o custo para fazer uma coisa dessas, e é tudo tão astronômico que é impossível você imaginar que ele tenha sido feito do jeito que a gente está falando. O que você precisa pressupor para isso é que a produção em massa de plástico, de metal, de molinhas, de tinta esferográfica, e o transporte disso tudo, teria que ser uma produção imensa para que isso fosse possível, para que isso fosse comprado (adquirido) por um particular qualquer. Para ser uma coisa tão popular. Então, a gente está num mundo radicalmente distinto da Polis de Platão, porque a gente está num mundo em que o domínio que o Homem consegue da Natureza é incomparavelmente maior, e também mais catastrófico, do que era o domínio que os gregos tinham sobre o Mediterrâneo, por exem-
plo, naquele meio ambiente.
Então, a terceira “historinha” é a que liga o século IV ac de Sócrates ao estado atual da nossa civilização nos séculos 20 e 21. É muito comum as pessoas falarem assim: Ah! É o modo de produção capitalista. Não! Não é propriamente o modo de produção capitalista. (Não importa se o capital é privado ou estatal, o modo de produção que dominou o mundo é o industrial. As experiências de “socialismo” foram tão ou mais desastrosas que as do mundo capitalista em relação às questões ambientais). Antes de ser capitalista é o modo de produção industrial que usa energia, sobretudo fóssil, incluindo energia fóssil que gera eletricidade – e algumas outras formas de gerar eletricidade como a gravidade, a energia nuclear –que é uma novidade total. Quer dizer, até a Revolução Industrial a ação do trabalho era realizada por corpos, ou animais ou humanos. De repente você consegue ter 90% do trabalho físico, realizado no mundo todo, por energia fóssil não renovável. Isto é que possibilitou fazer a produção em série e em massa, e tornou você capaz de concentrar energia e controlar energia em todos os tipos de produção material possíveis e imagináveis.
A civilização industrial nos trouxe uma situação dramática. Ou a civilização industrial nos levou a uma situação dramática.
Notas:
2. Ulpiano Bezerra de Meneses (1936) Historiador, Arqueólogo, Museólogo e Professor. Curador do Museu Paulista, reformador da museologia brasileira.Posso me dirigir a cada um dos leitores deste texto, onde for onde quer que eles estejam e a perguntar: repare em todos os objetos que estão na sua frente e repare no recinto em que você se encontra. Você saberia como produzir qualquer uma das coisas que você vê? Desde a mesa em que apoia o impresso desta página, até o tecido que forra a poltrona, ou a janela de alumínio e vidro que ilumina o ambiente – para não falar do computador em que por ventura você tenha baixado este texto – quem sabe produzir sozinho qualquer uma dessas coisas? A probabilidade de alguém dominar as técnicas de produção de qualquer um desses objetos é mínima. Esta civilização nos condena inexoravelmente a este estado lamentável de alienação.
(É por isso que insisto nos meus cursos sobre o povo brasileiro que os últimos seres humanos verdadeiramente livres do mundo são os índios e os caboclos que vivem em culturas de subsistência: por um lado, índios e caboclos não recebem ordens; essa categoria de diálogo simplesmente não existe: alguém que dá uma ordem, ou alguém que recebe uma ordem. Ali, nenhum verbo se conjuga no imperativo; simplesmente o conceito de ‘ordem’ não existe. Por outro lado, como diz o jornalista Washington Novaes, um índio sadio, num ambiente natural sadio sabe fabricar tudo que ele precisa para viver. É um ser humano de fato independente. Sem receber ordens e completamente autônomo, são de fato os últimos seres humanos livres no planeta).
Então, a terceira historinha é essa que desemboca numa civilização que consegue uma coisa espetacular que é esse domínio da natureza (entre aspas) e se espalha pelo planeta todo. Quer dizer, não tem nenhum lugar do planeta onde a civilização industrial e o modo de produção industrial não tenha chegado, direta ou indiretamente. O que acontece? Vivemos agora neste mundo em que a civilização – em parte, conformada, formada, formatada pela tradição racionalista ocidental – põe em cheque a sobrevivência da própria Humanidade.
Saímos de uma historinha lá dos gregos e viemos percorrendo a história que aquela tradição filosófica produziu e que paradoxalmente vai dar numa situação em que a própria civilização põe em xeque a sobrevivência da espécie humana.
De certa forma, pode-se dizer que, se na primeira historinha estivemos às voltas com o problema da “sobrevivência da humanidade no meio natural”, viemos dar numa circunstância em que é posta em xeque a sobrevivência do meio natural em meio à Civilização. Ora, nós dependemos do meio natural para sobreviver. No momento em que essa ameaça toma corpo, em que a civilização industrial atenta contra o equilíbrio ecológico do planeta – para falar de uma maneira bem sintética – é o momento em que a questão ambiental é catapultada para o domínio da Ética, porque de novo, estamos diante da ameaça à sobrevivência da espécie humana. Estamos voltando ao alerta de Protágoras, momento em que temos que encontrar um Prometeu que roube alguns dons divinos e mais um Zeus que seja caridoso, que resolva ceder alguns outros dons, e alguém que imponha uma lei determinando que quem não for sensível ao problema do equilíbrio ecológico seja banido da face da Terra como se fosse uma peste.
Eu não consigo imaginar, nessa circunstância, nada mais relevante para a Ética do que a questão ambiental. A Ética no sentido lato e no sentido universal, porque nós estamos falando do planeta, não falamos daqui ou de acolá. Não estamos falando da legislação de um município. Estamos falando de um problema planetário.
Notas:
Eu fiquei apaixonado por esse diálogo de Platão, entre outras coisas, primeiro, porque o mito de Protágoras é uma invenção genial. Segundo, porque Protágoras pergunta para o público dele, o que é que eles preferem, uma argumentação ou uma narrativa (um mythos), uma história. E, como ninguém responde, ele opta por contar a história, mas depois ele completa a narrativa com um argumento ao comparar o aprendizado da língua materna com o aprendizado da virtude. Ele mostra como, ao longo da educação de uma criança, de um adolescente, assim como todo cidadão pode e deve ensinar a língua materna, pode e deve também ensinar a virtude.
Quando eu me apresentei para fazer pós-graduação em Filosofia, escrevi um trabalho que mirava nisso. Trocando em miúdos, eu queria saber como é que uma narrativa pode funcionar como um argumento. A gente sabe que, em Filosofia, a argumentação lógica é o discurso modelo por excelência. No entanto, a importância do discurso da narrativa não pode ser subestimada. E a minha curiosidade era saber exatamente como é que funciona o metabolismo da narrativa quando ela é capaz de funcionar como argumento, e às vezes substituir o argumento e, talvez, às vezes, até mesmo superá-lo em eficácia. Isso me lembra quando eu enchia os meus alunos num curso de formação de professores, recomendando sempre: “Olha, o bom professor é o que coleciona bons exemplos.”
Você quer ver um exemplo de virtude? Você dá um exemplo. Você quer ver um exemplo de coisa bela? Você dá um exemplo. Exemplo de coisa feia? E a narrativa funciona muito bem assim. O mito de Protágoras funciona como um exemplo de como é, como é que funciona, ou como não funciona uma sociedade, com Ética ou sem Ética.
Isso vai aparecer muitas vezes na História da Filosofia. Montesquieu³ , por exemplo, também faz argumentos parecidos ao de Protágoras nas Cartas Persas, que, sendo também narrativas, integram a obra civilizatória desse didata do Iluminismo.
3. Charles-Louis de Secondat, Barão de La Bréde e de Montesquieu. Filósofo, político e escritor francês (1689/1755).
Toda vez que eu abordo esse assunto, me lembro de uma historinha contada pelo meu pai. Meu pai contava como sendo uma história real que aconteceu com um primo dele. Eu não sei, não tenho condições de saber exatamente se a história era real. Muito provavelmente era. Essa é a quarta e última historinha, aí eu encerro.
Meu pai tinha um primo advogado. Isso na década de 20 ou 30. A Light tinha se instalado aqui, com a represa Billings. A represa que tem ali no alto da serra (do Mar). Havia, então, um senhor em São Paulo, que era dono de um sítio na beira da represa e que se queixou a Light teria invadido o sítio dele. Teriam instalado a cerca da Light dentro do terreno do sítio. Então, ele contratou esse primo do meu pai para enfrentar o escritório de advogados da Light, que era uma empresa toda poderosa. Foram a julgamento. Num dado momento o advogado do proprietário da chácara, chama um “capiau”, um caipira, posseiro da região, como testemunha. O advogado pergunta para o caipira, analfabeto (você pode imaginar que existe isso ainda hoje, imagine em 1920 ou 1930. Em 1930, 85% da população brasileira era analfabeta!) Então, perguntou para ele: “o senhor viu os funcionários da Light mudando a cerca de lugar?” Aí o capiau falou: “Vi, sim senhor”. “E o senhor garante que eles mudaram a cerca para dentro do terreno do seu patrão?”
“Ah! Garanto, sim senhor”. “E como é que o senhor sabe disso?” “Porque essa cerca era para lá da jabuticabeira e agora a cerca está para cá da jabuticabeira”. Nesse momento o advogado entrega a testemunha para os advogados de defesa da Light. O advogado de defesa chega para ele e diz assim: “Então, o senhor garante que os funcionários da Light mudaram a cerca de lugar e que invadiram as terras do seu patrão?” “Ah! Garanto, sim senhor”. “Então me diga uma coisa, seu fulano, o senhor acha que os funcionários da Light fizeram isso de má fé?” “Ah! Eu acho, sim senhor”. “Muito bem. Então, o senhor poderia me definir o que é má fé?” Responde o caipira: “Má fé, seu doutor, é como essa preguntinha que o senhor está me fazendo!” (risos).
O que aconteceu é que a causa foi encerrada porque o tribunal veio abaixo quando o caipira disse: “má fé é como essa preguntinha que o senhor está me fazendo”. “Foi na pinta, foi no alvo, foi certeiro. Observe que ele não define “má fé”, ele dá o exemplo. O sábio caipira simplesmente mostrou que, embora não pudesse definir o conceito de ‘má fé’, sabia perfeitamente reconhecer o que é! Então, você pode não saber definir alguma coisa; aliás, se fosse um cara letrado teria caído na armadilha do advogado. Iria tentar definir o que é “má fé”, e ia se enrolar, porque é uma coisa dificílima de você precisar. Mas, do jeito que ele fez, ninguém, fosse minimamente honesto, discutiria se ele tinha ou não o domínio do conceito de “má fé”. E até esclarece melhor para a gente o significado de “má fé”.
Nessa circunstância, o bom exemplo funciona como argumento. Em certas circunstâncias, a narrativa funciona como um bom exemplo, como uma boa comparação: é exatamente o que Protágoras fez. É uma coisa simples, mas ao mesmo tempo ultrassofisticada. Infelizmente a gente não tem receitas, nem para definições, nem para dar bons exemplos. Muito menos para fazer boas narrativas. A gente aprende com a experiência.
Notas:
4. Light and Power Company (ou Light São Paulo), empresa canadense de capital aberto, operou em São Paulo desde o final do século XIX até meados do Século XX.
5. Noam Chomsky é o mais importante linguista do século XX. Foi considerado pelo New York Times o mais importante intelectual vivo e, pela Enciclopédia Britânica, um dos filósofos mais influentes de todos os tempos.
DISCURSO RACIONAL 5
Recentemente o Linguista e ativista Noam Chomsky realizou uma palestra dirigida ao público brasileiro que vem sendo apresentada pelo Instituto Conhecimento Liberta na forma de um curso de 6 aulas. O título da conferência é: “Como Parar o Relógio do Juízo Final”.
Nela, Chomsky explica que a instituição do “Relógio”, criada logo após o lançamento da bomba atômica de Hiroshima, reúne várias autoridades e cientistas que, todo ano, avaliam a quantos minutos ou segundos o mundo se encontra da meia-noite terminal do nosso planeta.
Atualmente, relata Chomsky, a avaliação mira em três ameaças fundamentais: “I- a ameaça da guerra nuclear ; II- a ameaça do aquecimento global e III- a ameaça da deterioração do discurso racional”.
Ele explica que esse terceiro item, a ameaça à racionalidade, se tornou tão vital quanto as duas primeiras, pela simples razão de que a única solução possível para aquelas duas emergências anteriores está na avaliação e no planejamento racionais da ação humana. A ameaça a uma abordagem racional para lidar com a guerra nuclear e a destruição do meio ambiente representa a ameaça à única forma eficaz de lidar, de fato, com esses problemas.
É sempre bom lembrar que o discurso racional não é o que exclui histórias, exemplos e comparações; ao contrário, é aquele que melhor usa narrativas e metáforas para se fazer compreensível e sensato.
TEREZINHA FOGAÇA DE ALMEIDA (TERÊ)
COM IMAGENS DE LUIZA SIMIONATTO BUDAHAZI
“A arte não é nem verdadeira nem falsa. A característica do pensamento artístico é desconcertar o conhecimento e os poderes do conhecimento.” ¹
Nessa entrevista, a educadora Terezinha Fogaça de Almeida (Terê) discute a “educação do futuro” e as relações entre a educação e sociedade moderna. Destacando faltas e falhas do modelo moderno de sociedade promotora de um analfabetismo social perceptível, ela aborda temas como sustentabilidade, costumes sociais e morais (ethos) para descrever os desastres de uma educação explorada como produto dentro de escolas pensadas como lugar de “entretenimento”. É a idade do capitaloceno, outras vertentes do antropoceno. Para Terê, “a educação é a arte de transformar o mundo”. É nessa perspectiva que ela discute com otimismo os desafios da educação do futuro, apontando os erros e os fracassos da educação moderna. Nessa tragédia da educação que prioriza o material sobre o espiritual, o individualismo em detrimento do coletivo, o espírito de competição em detrimento do espírito de solidariedade, “A Natureza e a Arte são os dois grandes caminhos de cura do ser humano”. A entrevista, com muita esperança, desenha caminhos possíveis para a educação na idade do antropoceno, resgatando a empatia perdida, restaurando a solidariedade e os valores coletivos, em detrimento do espírito de competitividade e do individualismo cego, Terê descreve possibilidades encantadoras de desabrochamento e emancipação da humanidade.
Notas:
1. L´art n´est vrai ni faux. Le propre de la pensée artistique est de déconcerter les savoirs et les puissances du savoir. Marc Le Bot. L´art médiatique Revue Esprit, mai 1988.
terezinha fogaça de almeida TERÊ
SOBRE A TERÊ
¹Formada em Letras, passou por escolas com propostas bastante diferenciadas dos modelos tradicionais de instituição de ensino, como “Mutirão” e “Crescer”. Na “Crescer”, dividiu a coordenação do curso de Ensino Fundamental com Madalena Freire. É fundadora da “Escola Ágora” (1985), que tem trinta e seis anos de vida e permanece até os das de hoje. Coordenou, também, o Projeto “Sementes da Toca”, oficinas de Meio Ambiente, Música, Artes, entre outras áreas, oferecidas aos filhos de funcionários da Fazenda da Toca (da família Diniz), interior de São Paulo. Neste trabalho permaneceu por cinco anos coordenando o referido projeto, trabalhando em contato direto com Pedro Paulo Diniz. Seu trabalho, em cada um desses espaços, visa, prioritariamente, a promoção do ser humano, ou seja, o movimento a favor de cada indivíduo em sua trajetória de vida.
Dando continuidade ao ciclo de discussões e reflexões críticas a respeito da Educação no Brasil, convidamos a educadora Terezinha Fogaça de Almeida (Terê), para uma conversa.
ENTREVISTA
A ESCOLA DO FUTURO
Roberto Pompéia(Revista Fôlego):
Veja o vídeo da conversa com Terezinha Fogaça de Almeida na íntegra
Iniciando a reflexão sobre os momentos que estamos vivendo, nada melhor do que ter a Terê aqui com a gente, principalmente para mim, que tenho uma visão muito particular dela, pelo conhecimento que tive em minha vivência durante anos na escola, na educação e nos grupos de estudos. Quando me pediram para passar o currículo da Terê, eu pensei que ela não deveria ter um currículo. Seria como formatar alguém que não tem nada a ver com a formatação. Então, ela é sem currículo. A Terê é sem dogmas, sem regras absolutamente rígidas. Por quê? Porque é natural de uma pessoa que vive o tempo todo a reflexão do está falando, do que está pensando e, principalmente, a Educação. A Terê é uma pessoa, para mim e penso que para muitos, que tem um amor visceral pela Educação, e isso é muito importante. Ela serviu para mim como fundamento, uma “fundação” da minha arquitetura na Educação, o tempo todo como uma “pulga atrás da orelha” que me pôs a pensar: Será que eu estou sendo narcisista ao falar com meus alunos, ou será que a minha intenção é de fato que os alunos possam evoluir e se constituir por meio das minhas reflexões? A Terê foi a pessoa com quem sempre aprendi sobre Educação, desde os grupos de estudos com Lauro de Oliveira Lima, com Dermeval Saviani, com Anísio Teixeira, foram importantes para minha formação. Então, eu acredito que nesse momento da Revista Fôlego, estamos precisando de gente não formatada, precisando de gente que pensa com muita clareza, visando construir caminhos tendo a educação como principal pilar da estrutura do Brasil.
Terê: Eu sou Terê, desde sempre. Meu pai e minha mãe nunca me chamaram por outro nome, a não ser quando estavam muito bravos. Aí, era: Terezinha! Eu trabalho com Educação há cinquenta anos, educação do Ensino Fundamental, que acho que nos dias de hoje tem o nome correto: Ensino Fundamental traz os fundamentos das ciências, das artes, das áreas todas de conhecimento. Para mim o Ensino Fundamental é o período mais inspirador da educação como um todo. É o momento da Educação que eu gosto de visitar, conhecer e trabalhar, embora eu ache que todo mundo se educa sempre, a vida toda.
A primeira coisa que eu quero dizer para vocês é que é muito difícil falar-se de “Futuro”, porque, neste momento, a coisa mais importante da nossa vida se chama “Sustentabilidade”. Sustentar a própria existência, ou seja, permanecermos vivos, por enquanto. Mas, eu não quero ser pessimista, aliás, acho que um educador não pode ser pessimista jamais. Não combina! É incompatível ser educador e ser pessimista. Vou lembrar a vocês que depois da Idade Média veio o Renascimento. Então, como é que a gente vai fazer o exercício de pensar o “Futuro”? O meu caminho – o caminho que eu entendo – é aquele de reafirmar os valores perenes. Valores eternos. Valores que estão absolutamente relacionados à Educação, para mim, porque é a minha área de atuação. Eu acho que falando de Educação, a gente tem que falar de Escola. Porque não estamos falando de Educação lato sensu. Estamos falando de Educação stricto sensu – o que o educador pode fazer para bem educar seus alunos. Ortega y Gasset² , aquele filósofo espanhol, disse que
Eu quero chamar a atenção para o termo que ele usou. Ele falou em “Arte”. Ele não falou: é a Técnica, é a Ciência... ele falou “Arte”
... E, de transformar. O que é que a gente faz para transformar? A gente oferece algo que não está presente naquele momento. Agora, se formos nessa linha de raciocínio, vocês vão pensar, com certeza, porque isso é senso comum, que a educação das escolas de maneira geral, não transforma. Ela reproduz, ela repete, ela oferece mais do mesmo. Aí, é muito engraçado dizer para uma criança, para um jovem, para um adolescente, quando ele sai da escola: “Vá transformar o mundo!” . Ele não vai transformar o mundo porque ele aprendeu a reproduzir, ele aprendeu a fazer mais do mesmo. Então, para fazer diferente, você tem que ensinar diferente. Esses termos tão usados no nosso cotidiano, que são poucos significativos, porque para fazer a diferença, obrigatoriamente, deve-se fazer o diferente. Obrigatoriamente! Então, sobre o que Ortega y Gasset dizia (que a Educação é a Arte de transformar a sociedade): o que a gente precisa fazer para transformar a sociedade? A gente tem que oferecer o que está faltando para ela. O educador deve ser um perseguidor, ele deve ser um “detetive”, um investigador de tendências. Ele deve tentar entender o que vem depois, ele deve projetar o aluno dele para anos depois e pensar: se ele continuar nessa linha, como é que ele vai ser? Isso, para conversar com o pai, para fazer um diagnóstico do aluno, para antecipar ações e procedimentos com esse aluno.
Ele tem que tentar ter a maior clareza possível das tendências porque o que está faltando para a sociedade é o que a gente tem que oferecer para o nosso aluno. E, o que está faltando para a sociedade? Está faltando convivência, está faltando a tolerância, está faltando respeito – lembre-
Notas:
“a Educação é a Arte de transformar a sociedade”.2. José Ortega y Gasset (1883/1955), filósofo espanhol, Escola de Madrid.
Então, o educador deve ser antes de tudo um perscrutador do futuro.
-se que respeito vem de respectum – olhar para trás, olhar novamente. Respeito é olhar para trás, é esperar aquele que ficou lá atrás ou examinar o passado. Mas, a convivência, o respeito, a tolerância, a aceitação do diferente, o (re) conhecimento do outro – eu chamo a atenção para o (re) conhecimento – porque eu conheço o outro. O outro do outro sou eu. Eu sou o outro de alguém. Então, reconhecer é se conhecer, é reconhecer no outro um ser que faz parte da espécie humana. Fala-se tanto em Humanismo, mas Humanismo nada mais é do que isso: do que cinco ou seis conceitos que infelizmente, são tão abstratos, tão raros e tão pouco frequentes na nossa sociedade, que a gente só pode esperar por um Renascimento mesmo. Para reumanizar as pessoas. Então, para a escola, cabe fazer esse trabalho de ensinar a
conviver, de ensinar a respeitar, de reconhecer que se esse outro é tão diferente e estranho para mim, eu sou o mesmo para ele. Então, esse exercício de colocar-se no lugar do outro é fundamental. E, como a gente ensina isso? Não é catequizando e falando, é agindo, é com ações, é com conteúdos escolares que revelam essa importância. Então, por exemplo, um dos trabalhos essenciais que eu vejo na escola é o trabalho de conhecimento de mitos. Mitos de criação. Lembre-se do Fernando Pessoa, que dizia que “O mito é o Nada que é Tudo”. Apresentar mitos de criação, judaicos, egípcios, gregos, africanos, indígenas, mostrar como é que os povos explicam a gênese do mundo, como tudo surgiu, é o trabalho por excelência da escola. A escola precisa apresentar a cultura, o domínio da cultura é o diferente.
Imagem 01: Croqui | Autora: Luiza Simionatto Budahazi, 2023.Vou citar Paulo Freire, é muito bonito esse exemplo que ele dá;
Cultura é algo que pertence a um grupo, a uma comunidade, a uma sociedade que é diferente da outra, e da outra, e da outra.... Então, eu vou ser até exaustiva (me perdoem por isso), mas esse é o caminho de educação, é o caminho de reumanizar, é o caminho de apresentar a Natureza e a Arte. A Natureza e a Arte são os dois grandes caminhos de cura do ser humano. As duas provocam, tanto a Natureza como a Arte, um tipo de emoção na gente que não sabemos nem nomear. A gente não sabe nomear essa emoção estética de ver uma ventania, de ver um bosque, de ver o mar revolto, ou de ouvir uma obra de Mozart, ou de ver um quadro de um pintor de quem a gente goste muito, ou de ler uma página de literatura. Então, a Escola é o lugar de se virar “gente”, de se virar “ser humano”. É aprender a olhar no olho. É falar “bom dia”! É observar as pessoas, é reconhecer essas diferenças todas que existem entre as pessoas. É um lugar de aprender a ser “roliço”. Eu vou fazer parênteses aqui: Meu pai tinha um caseiro no sítio e perguntava: seu Elpídio, o senhor sabe fazer cerca? Sei. O senhor sabe fazer galinheiro? Sei. Eu sei plantar, eu sei isso, eu sei fazer aquilo, eu sou “roliço”. É isso que a gente tem que ensinar, gente. O que rola é um ser que flui, é um ser que anda, que percorre, que não cria limbo. Que não fica no gueto, que não fica trancado. É isso que a gente tem que ensinar para os nossos alunos. Eu não acredito que a educação possa mudar o mundo, mas ela pode perfeitamente mudar as pessoas à nossa volta. Ela pode, certamente, fazer uma pequena revolução à nossa volta. Eu gosto demais de uma educadora argentina que se chama Sara Pain (1931). O Jornal da Tarde, nos anos 1980, fez uma entrevista com ela, e perguntou: “Professora, como é que é a Escola do Futuro? ” Ela respondeu: “A escola do Futuro é a casa da avó. É onde se aprende, onde se brinca, onde se sente o cheiro da comida sendo preparada, ganha-se um abraço se fizer coisa certa, ganha-se um croque na cabeça se fizer coisa errada”. O que a Sara Pain estava dizendo com isso, gente? Ela disse que a Escola do Futuro é um lugar onde se pratica o desenvolvimento, a promoção (mover a favor: promoção) do ser humano. É um lugar onde existe saber, prazer, amor e lei. É isso que ela está dizendo com a “casa da avó”. É aquela velha educação daquelas pessoas que faziam comida orgânica muito antes de saber que aquilo era comida orgânica. É a volta para alguns momentos da nossa civilização, da nossa cultura. Essa revisita tem que ser promovida por quem? Pela Escola, gente! Eu vou voltar a esse tema, da escola como for-
madora, mas eu quero falar um pouco sobre “aprendizagem acadêmica”. Em termos de “aprendizagem acadêmica”, o que é uma boa escola? Para mim, nos dias de hoje, com tudo que se conhece de tecnologia, com tudo que se conhece de fontes onde se pode buscar informações, ela não é mais um lugar de transmitir informação, apenas. É muito mais, é uma usina, é uma fábrica. Uma fábrica de ideias, de experiências, de objetos, de experimentos. É um lugar de pôr a “mão na massa”, sim. É o lugar de sentir o que se está fazendo. Dizia Confúcio: “O que eu aprendo eu esqueço. O que eu faço eu guardo”. É o espaço do artesão. É um espaço mais de perguntar do que de responder. Aprender a perguntar. É um lugar – voltando para esse conceito – onde se põem as “minhocas vivas” nas cabeças dos alunos. É um espaço onde o professor pergunta: “Gente, para onde vamos vai a partir deste ponto? ” É um lugar onde se ajuda o aluno a ver a área de estudo a partir de outras janelas. É onde se põe luz nos cantos mais escuros do conhecimento. Então, deslocar os trabalhos dos modelos tradicionais reaviva a curiosidade. Ressignifica a relação professor/aluno, que é desgastada no cotidiano. Fazer de outra maneira reconecta o aluno à própria participação nas aulas e estabelece a tensão produtiva na atividade. Estar minimamente tenso, um pouco daquele “friozinho na barriga” da boa experiência, é muito importante. É estar vivo! É não estar passivo, como gosta a escola tradicional.
ele fala “olha, a flor no jardim é natureza, a flor no vaso é cultura”.
ALFABETIZAÇÃO SOCIAL
Antigamente, as pessoas de uma família, os núcleos familiares, eram, geralmente, bem numerosos. Tia-avó – quem lembra disso, gente? Alguma criança de hoje sabe o que é tia-avó? Eu duvido muito. Primo de segundo grau? Eu duvido, muitíssimo! Os núcleos familiares eram, então, muito estendidos. A pessoa olhava para um primo mais velho, ou para uma tia – estou falando da minha experiência pessoal - e falava: Quando eu crescer, eu quero ser como essa pessoa. Então, você começava a desenvolver o seu projeto de futuro, a partir daquele momento. As pessoas eram muito diferentes entre si. Brigavam, brincavam.... Eu sou
de família de origem italiana. Muita briga, muito grito, muito canto, muito vinho, muito abraço, muito choro. Então, as festas eram intensas. E, nessa possibilidade, você ia fazendo uma leitura das pessoas à sua volta e vendo o quão diferente elas eram. Um outro aspecto muito importante, além desse núcleo mais expandido, mais numeroso da família, era a brincadeira na rua. Você via a mãe do fulano mais brava, outra mãe mais boazinha, você entrava na casa do amigo. Você percebia que a sua família não era a referência absoluta de um modelo de fa-
mília. Nossa! Pode-se ser pai dessa maneira, ou ser mãe desse jeito? Pode-se ser filho desse jeito? Quando você entrava na escola, portanto, você já tinha essa alfabetização social garantida. Você não era um analfabeto social. Eu percebo, no Ensino Fundamental (as crianças entram com seis anos na minha escola), uma dificuldade muito grande de deslocar-se, de transferir-se, de reconhecer-se – de conhecer-se e reconhecer-se – como um diferente entre outros. As crianças são analfabetas sociais quando entram na escola.
Então, toda essa riqueza de conhecimento humano, de know how, de como agem as pessoas, de como podemos ser modelos de referência, a escola precisa oferecer. Precisa haver um tempo e um espaço para as pessoas se conhecerem e se reconhecerem, esse encontro é algo que está fazendo falta à sociedade. Muitíssimo! A escola é um lugar de proporcionar experiências mais intensas, mais significativas. De ter espaços mais convergentes. Gente, experiência não é saber, experiência é algo que forma, que transforma as pessoas - ou faz parte da nossa formação,
ou faz parte da nossa transformação. Experiências significativas são muito raras na vida das crianças. Então, a escola tem que oferecer isso. A escola tradicional, de maneira geral, essa estrutura escolar, não abre espaço para o aluno “virar gente”. Tornar-se pessoa é o nome de uma obra superimportante, que foi muito influente quando eu estudava. Carl Rogers³, um psicólogo norte-americano, escreveu “Tornar-se Pessoa” (1956), ou seja, o que é virar gente. A escola precisa ser esse espaço. Ela precisa ser um espaço de valorização dessa formação do ser humano. Onde é que nós vamos formar o ser humano? Onde vão se formar as pessoas? Nos shoppings? Nos playgrounds? Com as babás? Nada contra a babá, mas acho que não, né? A escola tradicional consolida esse individualismo de que o Claudio (Manetti) falou lá atrás. Combater essa pobreza do espírito humano, é o que o Roberto (Pompeia) persegue; e, com certeza, vocês todos compartilham dessa busca. A escola tradicional, porém, constrói um caminho para cidadãos solitários, esses que vivem online. É a escola que abre espaço para isso: Vamos competir! Você é C mais! Você é A mais! Você é mais rico! Meu pai tem.... Isso não é conversa de criança! Isso não é conversa de gente que está se formando. Eu tenho, eu tenho! Então, a escola tradicional, é ela que constrói esse individualismo.
Olha, tem um estudo dos anos 70 (do século XX), que foi feito em vários países da Europa, que mostrava com muita clareza – e isso me impressionou muito na época – o triângulo formador, influenciador da formação de uma criança. Óbvio que o vértice principal era a família. O segundo vértice era a casa dele (o espaço físico – o lugar que ele tinha para estudar, o lugar que ele tinha para brincar, o lugar que ele tinha para comer, o lugar que ele tinha para conviver). E, o terceiro era a escola. Nós não podemos influenciar o espaço físico da casa e nem interferir na dinâmica familiar. Então, o que nós podemos fazer para refinar os espíritos, para humanizar essas crianças, para abrir espaço para construir a individualidade em contraposição ao individualismo? Um parêntese: não pensem que os individualistas são indivíduos com individualidade bem estabelecida. Não! Eles são frágeis. Eles desmoronam com muita facilidade. O déspota, o individualista exacerbado, é medroso, porque como não conhece o outro, como ele não tem essa convivência, como não teve essa oportunidade, o outro é uma ameaça. Então, é necessário favorecer a construção da individualidade, e ajudar o nosso aluno a saber quem ele é. Vou fazer uma interrupção aqui para contar, rapidamente, uma história: eu tive um aluno na escola há alguns anos, que entrou quando o irmão já estava numa
série bem mais avançada. Esse irmão era o ídolo dele, uns quatro anos mais velho que ele. No primeiro dia de aula desse aluno, ele perguntou para o irmão: você acha que o fulano (que era um menino de uma série mais adiantada), é capaz de bater em você? O irmão disse: claro que sim, ele está no nono ano e eu estou no sexto! Aí, ele foi lá e pegou um punhado daquelas farpinhas que tem no pinheiro – que lá na escola, são chamadas de feno (aquela folhagem que parece uma piaçava e que cai do pinheiro) e jogou no rosto do menino mais velho. O menino, então, foi falar comigo: Terê, esse moleque está entrando na escola hoje e, do nada, jogou um monte de feno em mim, eu não fiz nada para ele! Aí, eu chamei o menino. Ele já veio com os olhos lacrimejando. Eu falei: Fulano, por que você fez isso? Ele falou: porque eu soube que ele consegue bater no meu irmão. Uai! E daí? E ele continuou: me deu uma “raivinha”! Aí, eu falei: Ah! Deu “raivinha”? Todo mundo tem “raivinha”, mas, você não pode ir atacando os outros quando tem “raivinha”, tem que controlar sua “raivinha”. Então, olha a transparência do sentimento humano! É esse espaço que tem que existir dentro do âmbito escolar para se construir essa individualidade. Que aceita a diversidade, que é tolerante. Não adianta fazer discurso sobre isso, é na ação que a criança aprende. Nós vamos falar um pouco sobre brincar
Notas:
3. Carl Ransom Rogers (1902/1987). Psicologia da Abordagem Centrada na Pessoa. 4. Jean Willian Fritz Piaget (1896/1980), psicólogo suíço.depois, porque brincar é muito importante. Como dizia Piaget , a criança explica o Ho-
mem. Ela refaz caminhos ou ela perfaz caminhos que o Homem já percorreu em tempos passados.
A escola deveria ser o lugar – encerrando um pouco esse assunto da alfabetização social – de resgate, de reunião de grupos de diferentes idades, de experiências de vida diversas. As crianças deveriam conversar muito mais com seus avós para conhecer histórias de família. A gente acha muito bem-vindo os pais irem à escola ou estarem na escola falando sobre suas profissões. A gente acha muito bem-vindo o menino mais velho ajudar o menino mais novo, ensinar a tolerância. Ensinar as coisas que ele sabe, e obviamente, relembrar como ela foi, porque assim aquela arrogância natural da adolescência fica um pouco diluída.
NATUREZA E ARTE
Indo agora para a ideia de Natureza e Arte, esses dois grandes canais de reconexão do ser humano com a sua humanidade. Eles promovem em nós, como eu disse, essa emoção que não tem nome. O céu estrelado, o mar, uma montanha, uma flor, um passarinho. Esses são maravilhamentos. A tempestade dá medo, mas é aquele medo do frio na barriga, é a experiência que traz esse tipo de emoção. Uma pintura, um livro, uma história, uma música, também podem provocar essas mesmas experiências, o maravilhamento ou esse frio na barriga – o medo, o suspense. Então, quando eu estou em contato com a Arte, por exemplo, eu vivo outras vidas. Eu vejo outras imagens, eu penso, eu sonho, eu vou além da minha vida, da minha própria paisagem. Eu expando, eu amplio meus sentidos, eu amplio os meus pensamentos, as minhas emoções. Eu me transporto para outro ser humano, me ponho no lugar de. Eu me transporto para outro lugar. Eu me transporto para outro tempo. Então, a Arte e a Natureza mexem conosco, com a nossa humanidade de maneira muito singular, muito própria e, eu diria, essencial. Essa multiplicidade que tratei aqui, esse estranhamento, são eles que constroem o respeito, a diferença ao que não se parece comigo. Eu acho que o professor tem uma tarefa fundamental na construção disso tudo.
BRINCAR PARA TRANSFORMAR O MUNDO
Bom, eu vou falar agora um pouquinho do “brincar”. Na Ágora, a gente tem muito tempo e muito espaço. Se oferece muito tempo e muito espaço para as crianças. Se oferece também a oportunidade de elas inventarem brinquedos. Elas podem levar brinquedos. Elas não podem levar celular e nem dinheiro. Escola não é lugar disso. É o lugar dessa construção da criança como ser humano, então tudo isso fica de fora. O “brincar” promove um crescimento tremendo. Eu quero contar para vocês que no ano passado a gente voltou para o ensino presencial em outubro, porque a Ágora é muito privilegiada. Tem um espaço físico muito grande, de espaços abertos e poucos alunos. E quando a gente voltou a grande brincadeira do horário livre era ser médico, enfermeiro, cuidador. Todos de máscara. As meninas aplicavam vacinas com essa mesma “palhinha” do pinheiro. Elas aplicavam vacinas nos outros, nos professores, nos funcionários. Então, a criança brinca, e daí a importância do “brincar”. A criança brinca para entender o mundo que está em volta dela. A criança brinca para reproduzir o mundo para ser humano. Para imitar o adulto. Imitar o mais velho. Ela quer ser igual, ela quer pertencer a mesma espécie. Então, ela brinca para digerir a realidade. Para entender melhor. Para fazer aquela realidade, trazer para dentro dela e devolver essa realidade de outra maneira. Passando por ela.
Imagem 03: Croqui | Autora: Luiza Simionatto Budahazi, 2023.Passando pelos seus sentidos. Passando pela mente, pelo coração. Então, ela está recriando o que ela observa para melhor absorver essa realidade que a cerca. Através da brincadeira ela se apropria dessa realidade do mundo adulto para poder atuar e circular melhor nesse mundo. Para poder conviver com mais propriedade. E escola tradicional não abre espaço para brincadeira. Abre muito pouco espaço. A escola tradicional fragmenta muito a criança. Reduz muito a possibilidade de ousadia, de encarar o risco como parte da aprendizagem, da experiência de estar vivo. “Viver é muito perigoso”, já dizia o mestre Guimarães Rosa. Então, quando eu brinco de ser herói, quando eu brinco de ser um construtor, quando eu brinco de ser aventureiro, eu estou experimentando aquilo protegido pela brincadeira. Protegido por esse escudo que fica entre a realidade e a fantasia. A criança não está vivendo os perigos. Está brincando de viver os perigos. Acho muito importante falar uma coisa para ficar aqui como uma “pulga atrás da orelha”. Experimentar, ousar e errar são importantíssimos no ato de brincar. Você erra, você não acerta a brincadeira. Tem criança que fala para a outra: “você não sabe brincar, hein? ” Mas, como não sabe brincar? Não existe regra para brincar, mas tem gente que não sabe brincar. Então, ousar, experimen-
tar e errar, são importantes no ato de brincar. E eu quero chamar a atenção de vocês para pensar que experimentar, ousar e errar são importantes no ato de fazer ciência. Eu quero fechar com essa reflexão, porque eu comecei com o peso da pandemia em Florença, em 1348 (citando um trecho de Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313/1375).
Mas, eu acho que a porta aberta para a brincadeira, da reumanização, para a restauração, para o florescimento e renascimento dos humanismos e das humanidades, são mais do que bem-vindos.
Então, eu espero que vocês não tenham ficado doidos com a minha fala, porque eu falo muito intensamente, e como diz o Roberto (Pompeia) que me conhece muito bem, eu falo com toda a intensidade de uma crença muito grande. Eu acredito basicamente em gente. Na condição humana. A condição humana é absurdamente mágica, potente, vasta, emocionante, encantadora. Então, da mesma maneira – vou citar Machado de Assis - para terminar (minha mãe adorava falar isso quando a gente reclamava quando alguém brigava com a gente, quando a gente ficava triste) ela falava: “onde uma vida lhe cuspiu lama, a outra lhe porá uma aureola”. Acho que nós todos estamos aqui imbuídos dessa vontade muito grande de fazer renascer esse humanismo, essa humanidade que se perdeu na escola. Na escola eclesiástica – nesse modelo de Papa, Cardeais, Bispos... (quem mais sabe fazer escolas, gente, é a Igreja). A gente tem que reconhecer isso, mas é a sala do Papa, a sala dos Cardeais, sala do .... Os simples mortais não entram em nenhuma dessas salas. Ou, a gente tem outro modelo pós Revolução Industrial. Todo mundo de uniforme, faz fila, tocam sino, toca o sinal, entra, produz e recebe uma nota. Esse tipo de escola, que o Paulo Freire chamava de “educação bancária”, e essa outra medieval eclesiástica não respondem mais ao nosso tempo. A gente tem que fazer uma revolução, no bom sentido, para restaurar essa humanidade, essa humanização.
Roberto Pompéia (Revista Fôlego):
Na realidade, eu vou fazer três comentários que marcaram demais a minha vida na escola Ágora. Quando eu dei aulas para as crianças lá, eu tive a felicidade de dar aulas para desde os pequenininhos até os “aborrecentes” que eram da oitava série. A primeira coisa que eu gostaria que você comentasse, é a seguinte: a educação, como você bem falou, uma parte está em casa e a outra parte, que é a convivência com o outro como aprendizado social, está na escola. Aí, invariavelmente eu lembro de você falar, comentar com os professores, dizendo: “caramba, a escola não é um depósito de crianças – os pais precisam participar dessa educação! ” O segundo comentário é um comentário absolutamente arquitetônico, mas que para mim é um espetáculo na hora de colocar o projeto arquitetônico para os alunos. As salas de aula na Ágora não têm paredes. Aí vinha sempre aquela reclamação ou aquela dúvida de professor que dizia: “se uma sala fizer muito barulho vai atrapalhar a outra sala”. E aí você dizia: “se um dia uma sala de aula atrapalhar a sala vizinha (ou outras salas) deixou de ser um problema da sala e passou a ser um problema da escola”. E por último, que eu acho bárbaro, eu queria que você comentasse, dentro desse todo contexto que você colocou, com a sua fala: “eu quero uma sala de aula – um lugar – onde os alunos possam estar em roda por que eu não acredito numa educação onde o aluno fica olhando a nuca do seu colega durante dez anos”.
Terê: Essa questão da nuca, na verdade, foi uma experiência que eu tive. Eu venho de uma família com muitos educadores (muitas educadoras, na verdade), muita gente de escola. Eu ia na casa de uma colega e achava estranhíssimo não ter lousa. Eu falava, onde é a lousa da sua casa? “Não, na minha casa não tem lousa? ” Eu achava um absurdo aquilo! Então, a minha primeira reflexão sobre a escola foi aquele “estouro da boiada” quando acontece, quando acaba uma aula na escola tradicional, o professor abre a porta e todo mundo sai correndo. Eu falava: “isso depõe contra a aula, que coisa horrível! ” O que que essas pessoas estão fazendo correndo desse jeito para fora da sala de aulas? Essa foi a minha primeira questão. Essa questão de olhar
de nuca para nuca. Eu estava numa aula de Geografia. Eu tinha treze anos e éramos trinta e poucos alunos. Eu sentava lá atrás. Estudei no Mackenzie e as carteiras – naquela época - eram marcadas de acordo com a ordem alfabética. Como eu sou “T”, era a última fileira das mulheres só antes da fileira dos meninos. Então, você via um “mar” de nucas na sua frente. E a professora falou: “o grupo de vocês está muito – sei lá... – rebelde (qualquer coisa assim). A palavra “grupo” me chocou. Eu falei: “como grupo? Ninguém está vendo ninguém. Ninguém está olhando nos olhos de ninguém! ” Então, a primeira coisa que eu pensei quando fui pensar na Ágora como espaço físico, em primeiro lugar, era com salas abertas, porque eu sempre achei que o futuro iria trazer mais
espaços coletivos. Gente, quando o professor fecha a porta de uma sala de aula ele está automaticamente se desligando do todo. Ele está se desligando a si e a seu grupo do todo. E isso não é real. Isso não faz parte da realidade, do todo cotidiano. O nosso cotidiano aponta para cada vez mais encontros e tudo mais. Claro que não existia coworking quando abri a escola há trinta e seis anos atrás, mas eu pensava nisso. E eu ouvi uma história que me encantou muito. O Tom Jobim chegou na casa do Villa-Lobos (O Tom Jobim era um grande fã do Villa-Lobos), e ele chegou lá e o maestro estava compondo ao piano em meio a uma festa. O Jobim falou: “maestro, compondo no meio da festa?
” Villa-Lobos lhe respondeu: “ meu filho, o ouvido de dentro não tem nada a ver com o ouvido de fora! ” Então, eu comecei a pensar nisso. O aluno não vem para ouvir um sinal, uma campainha para se dirigir para qualquer lugar. Ele tem que olhar em volta. Ele tem que desenvolver a própria sensibilidade. Então, a gente não tem sinal na Ágora. Claro que o menino do primeiro ano vai chegar atrasado nos vinte primeiros dias de aula. A professora vai ter que buscá-lo no mato, nas brincadeiras. Mas, ele vai olhando em volta. Isso também é refinar o espírito, educar os sentidos. Ampliar essas possibilidades, olhar com os olhos de “ver” faz parte do trabalho de educação. A questão das salas abertas se revela hoje como melhor recurso para trabalhar disciplina. Porque o tempo todo você está preocupado em não falar alto. E olha! O grande desafio é muito mais do professor do que do aluno. Claro que depois de um tempo não. Mas, o professor que chega falando muito alto, ele tem dificuldade que vem da escola tradicional, como muito aluno. Ele tem dificuldade de modular a voz, de falar num tom. As vezes vai uma pessoa conhecer a escola (bons tempos pré-pandemia – mas vai voltar a acontecer isso) e falava: “ Mas, hoje os alunos não estão aí né? ”
Sentava comigo na biblioteca para conversar e eu falava: “Olha, estão tendo aulas”. “Mas, tem cento e vinte crianças e adolescentes? ” Eu levava a pessoa na mureta da escola para ela ver. Então, professor estava falando, os alunos falam baixo, o professor aprende a falar baixo e isso se revelou o melhor recurso. É uma estratégia de trabalho de disciplina sensacional! E essa coisa de ir e vir. Eu recebi uma aluna de uma escola muito tradicional aqui da região. Uma “escolona” enorme que tem aqui na Raposo Tavares (rodovia), e ela falou: “Olha, a melhor coisa dessa escola é não ter porta na sala”. E eu perguntei por quê. Ela disse que não gostava de falar: “dá licença que eu quero ir ao banheiro. Eu morro de vergonha! Na outra escola tinham trinta e poucos alunos na minha sala e eu falava: dá licença, eu preciso ir ao banheiro e todo mundo olhava para mim. Agora eu dou uma saidinha, discretamente, e volto e ninguém percebe. ” A gente nem sabe quando propõe alguma coisa, a extensão disso. É um trabalho muito especial, muito privilegiado, eu acho. Eu fui de trás para adiante, chegando no “depósito de crianças”. Você (Pompeia) se lembrou disso (retomando a questão número um) de um tempo muito passado. Porque quando você trabalhou na Ágora, os pais iam ainda levar os filhos. E eu, felizmente, nunca tive isso, porque eu sou muito exigente com pais. Eu falo para os pais que eles não são clientes da escola, absolutamente. Eles já estão formados. Não precisam da escola. Os clientes são os filhos deles. É o Homem do Futuro. É a Sociedade do Futuro. Então, não tem essa de que o cliente tem sempre razão. Mas, eu sei de escola que as babás com os motoristas vão a reuniões de pais. Pensando em “depósito de crianças”, Roberto (Pompeia), você não viu nada! Você não sabe como as coisas estão hoje!
Carlos Alberto Barbosa (Beto): Posso então colocar uma questão? Eu teria muitas questões para colocar segundo várias coisas interessantes que ouvi, desde a questão da transformação, a abstração, mas eu fiquei curioso e gostaria de te ouvir a respeito das experiências entre a escola pública e escola privada. Eu acho, principalmente, quando se pensa no universo da escola privada no Ensino Básico, a gente está falando de um universo que está abaixo dos 20% dos alunos dessa faixa. Esse percentual, bem ou mal, obviamente dependendo muito do tipo de trabalho que se faz na escola e proposta (que você bem marcou nessa última resposta para o Pompeia), as escolas privadas conseguem estabelecer alguns objetivos, ir atrás e bancar esses objetivos. Quando se fala de Ensino Público a realidade parece que é outra, e aí a gente está falando da grande maioria dos alunos do país. Quando a gente pensa de alguma maneira em algum tipo de mudança no ensino público, a gente entra nas políticas públicas de Educação, porque é ali que está a grande matriz ou as razões das grandes mudanças. Atualmente vivemos num governo que prima por “matar o carteiro” ao invés de discutir a mensagem. Um governo que demite o diretor do INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], ao invés de discutir os dados do INPE. Que culpa a Imprensa ao invés de discutir as questões da Imprensa. E agora, recentemente, andou fazendo mudanças ou propondo mudanças via ministro da Educação – assintomático, pois ninguém nem conhece seu nome – para matar mais uma vez o “carteiro”, com a estratégia de mudar a avaliação dos indicativos de educação do país, não bastasse também outro “carteiro” que foi morto com o Censo do IBGE. Agora, muda-se o índice de Educação IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). A minha pergunta é: que tipo de ação a gente pode ter, pensando no ensino nessa maneira mais ampla, no ensino na atual política - temos aí um PNE que vai terminar em 2024, se não me engano - o que é uma coisa interessante, pois o PNE (Plano Nacional de Educação 2014/2024) sempre perpassa governos, portanto, ele passa a ser do Estado e não do governo, mesmo diante das artimanhas do governo, como matar o IDEB, por exemplo. A gente fica sem parâmetros para poder ver de fato quais índices foram alcançados ou não. Eu gostaria, então, de te ouvir sobre isso.
Terê: Beto, eu vou te dar um dado que eu tive em mãos há não muito tempo. O Brasil gasta mais em Educação do que, por exemplo, a Eslováquia . Eu fiquei com a Eslováquia porque não é Cingapura. Cingapura está na moda agora em relação a educação. Tem “escolas verdes”, sustentáveis entre tantas coisas. Mas, a Eslováquia tem uma semelhança maior com o perfil do brasileiro. Gasta muito mais que a Eslováquia que tem índices excelentes! A gente tem má gestão, em primeiro lugar. Péssima vontade política. Tem algo nesse processo que vem desde a ditadura (1964/1985), por que é assim que começa a decair o ensino público no Brasil. É lá atrás com a demissão dos professores universitários, na ditadura militar (dos anos 70 para os anos 80 do século XX) que despenca o nível da escola pública. A gente vem carregando esse fardo há muito tempo, é um “buraco negro”. A gente sabe disso. Há vinte anos atrás a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, era a terceira autarquia mundial em termos de número de funcionários. Ela perdia para uma empresa russa e outra indiana. Era, portanto, o terceiro órgão mundial desse setor em número de funcionários. Eu concordo com você plenamente em relação a esse governo, mas isso vem sendo carregado. A gente já esteve “melhor na foto”. A gente já teve políticas mais competentes, mais produtivas. A gente já teve uma vontade política mais refinada, vamos dizer assim, do que essa que a gente tem agora. Mas, de fato, eu acho que é momento de descaso, na Saúde e na Educação. Porque obra dá voto. Obra, também, promove de outra maneira o governante. A primeira questão é a vontade política – a gente não teve ainda de fato alguém. Já tivemos quadros, mas eu acho que é uma
Notas:
5. Na entrevista Terê cita a Indonésia, mas pede que corrijamos para Eslováquia.
6. Mao Tse-tung (1893/1976), ex-presidente da República Popular da China.
história de trinta e poucos ou quarenta anos, enfim. A gente vai demorar muito para ter um trabalho descente. Agora, vou te dizer dessa minha última experiência em relação a escola pública que eu tive no ano passado (2020). Eu fiquei muitíssimo bem impressionada com a vontade das professoras do ensino municipal. Professoras da rede municipal, pelas diretoras, pela secretária de Educação, da Secretaria de Educação inteira –querendo fazer algo que pudesse ser feito. Então, assim foi um trabalho “pé no chão”, sem recursos, com mudança de mentalidade e que elas receberam todas. A minha outra experiência diretamente no ensino público (fazendo um parêntesis aqui) não foi bem-sucedida como essa de ultimamente. Então, eu acho que existe uma mudança de mentalidade. Existe uma vontade diferente – tudo bem, nós estamos no estado de São Paulo e o interior do estado de São Paulo não é Brasil (fazendo uma alusão as diferentes realidades brasileiras), a gente sabe disso – mas, existe esse pontapé inicial com essa vontade de fazer diferente, de ousar. Para você ter uma ideia, para você ver como foi produtiva essa relação, foram pessoas que foram visitar a Ágora, para ver in loco como fazer. Porque a gente é uma escola pequena e paga aluguel (se referindo a Ágora), que tem um nome muito bom, mas que tem desconto para filho de professor. Claro! Não estamos falando da “escolona” empresa, mas estamos falando de pessoas que foram conhecer essa experiência. Do meu ponto de vista a vontade de mudar, de fazer diferente, de ousar, de tentar fazer outras coisas.
Carlos Alberto Barbosa (Beto): A impressão que eu tenho, não sei se é uma impressão correta, é que a “ponta” de fato não é onde está o problema. Essa vontade, sentida aqui e acolá (claro que há exceções), no geral, a ”ponta” tem esse direcionamento. Por isso que eu insisto que há um problema sério de política pública efetivamente. A gente está falando de 48 milhões de alunos. As iniciativas isoladas por melhor que sejam, elas são “modelo”, mas é bom passar esse modelo para os quarenta e oito milhões. Acho que esse é o grande desafio.
Terê: Exatamente. Eu sou otimista com já falei e agora vou citar Mao Tse-tung : “a longa marcha começa com o primeiro passo”. Você mostrar um modelo diferente possível e replicável, por exemplo, como aconteceu com a escola pública que foi para os parques, foi para os jardins da cidade, foi espetacular! O jornal Estadão publicou uma matéria enorme. Você vê a escola pública se destacando, sendo objeto de uma matéria jornalística, porque está fazendo o possível. Tira seus alunos da sala de aula, leva para jardins, para parques, para o espaço público, ao ar livre. Eu acho que qualquer dessas experiências é muito bem-vinda.
Carlos Alberto Barbosa (Beto): É curioso! Levar para espaço público. A educação com a República ganha exatamente esse ar: é um problema do Estado. Essa República não era uma questão de Estado, agora é. É o espaço público! E o nosso governo tenta exatamente o homeschooling – sair do espaço público.
Terê: Mas, nós vamos chegar, viu?
Flávia Santana: Achei esse conceito do “analfabetismo social” muito interessante, porque, de fato, é uma série de habilidades que a gente vai desenvolvendo ao longo da vida. Vou perguntar mais em relação aos jovens, não que as crianças sejam menos importantes, mas eu fico pensando em quanto mais a gente treina habilidades mais a gente fica nela. Imaginando que esse jovem que vá treinando essas habilidades, ele vai conseguir fazer ali uma série de questões novas para o mundo. Particularmente, eu tenho contato com esse pessoal, jovens durante adolescência e no começo da vida adulta, e acho muito curioso como esse pessoal tem tido uma grande dificuldade em lidar com os sentimentos. Eu acho que nem é uma questão de controlar sentimentos, porque, simplesmente, você controla. A gente não tem culpa do que sente, mas em função daquilo a gente vai fazer alguma coisa no mundo. A gente tem que lidar com isso e o que eu percebo é que são jovens muito bem-intencionados, com uma preocupação considerável com o outro, por questões de gênero, por questões raciais, que é muito importante. Mas, ao mesmo tempo, os jovens sentem muita dificuldade de lidar com o conflito, de lidar com a crítica. E se a gente está falando de uma transformação de mundo, a crítica e o conflito serão inerentes, não é? É sair do lugar de conforto. É inerente ao crescimento, senão a gente não cresce. E como é que você vê isso?
Terê: Você tocou num ponto que é fundamental. Eu acho que eles são extremamente bem articulados no discurso, mas não considero que o discurso acompanhe tanto a prática desses jovens. Eu acho que tem uma dificuldade muito grande de fazer essa transferência que eu falei tanto, para o lugar do outro. Porque quando você faz isso, você faz também um exercício de humildade. Quando você pensa: eu não arredo pé, eu não saio daqui nem um milímetro. Eu sou o máximo... você não consegue fazer uma transferência, você não consegue se sentir na pele do outro. Eu percebo muito isso que você fala. Muito pouco contato com a própria emoção. Falando um pouco como a gente lida com os mais velhos: os mais velhos, a medida em que eles vão crescendo e avançando na escola, eles começam a ter funções diferenciadas e mais responsabilidade com a comunidade. A gente tem que prepará-los para sair da escola para ir
para um outro lugar, com essa alfabetização social garantida, sabendo ouvir. Temos os chefes de grupo que são os alunos mais velhos do nono ano da última série que “chefiam” grupos que têm gente desde o primeiro ao oitavo ano, antes deles. Ele tem que ser responsável por aquele menino lá do primeiro ano que quer falar, que quer dar uma ideia ao grupo. A gente faz muita atividade coletiva, muita mão na massa, muita coisa, juntos. Se é aniversário da escola, todo mundo, cada grupo faz seu bolo. Isso propicia esses encontros. O mais velho precisa garantir o espaço para o pequeno falar. Ele tem que falar de uma maneira que o pequeno entenda. Então, a gente vai fazendo esse refinamento para ele sair com uma prontidão social, vamos dizer assim. A gente trabalha toda essa alfabetização social para ele sair com essa prontidão social. De saber ouvir, de saber perguntar, de saber dizer o que pensa e o que sente, mas fundamentalmente, de ter como “mantra” esse respeito por todos que estão no grupo. Essa escuta. Acho que a gente refina muito a escuta dos alunos desde os pequenos. Vai escutar uma história, nenhum professor começa a ler a história sem um silêncio absoluto. Temos turmas de no máximo quinze alunos, ou seja, você consegue esse silêncio absoluto. Essa concentração, essa disciplina intelectual, a gente procura incutir no espírito dos alunos desde sempre. A pior coisa que existe é o jovem arrogante, sem escuta e que tem um discurso lindo sobre LGBT, da proteção a isso ou aquilo, mas aquele “cara” que está ao lado dele, ele não sabe nem conviver e nem respeitar aquela pessoa. Colar o discurso a própria prática, ou seja, buscar coerência é uma coisa principal para trabalhar bastante, porque o discurso em si é vazio. O discurso sem ação e atitude.
Lucas Lavecchia: Muita coisa dita aqui eu não conhecia. Aprendi muito. Esse processo de troca também é um processo educativo, diria Paulo Freire. Minha pergunta que é mais do nosso tempo [agora]. Considerando essa ansiedade dos pais e mães, essa ansiedade da família, de colocar a criança no Mercado de trabalho, para falar todas as línguas, etc., a família tenta o mais rapidamente possível incluir a tecnologia na vida da criança. O mais cedo possível. Estava lendo um livro nesta semana que é O Caminho para um Ensino Humano, de Rudolf Lanz, que fala sobre como a tecnologia deveria entrar na vida da criança somente a partir dos 17 anos. Isso seria imprescindível, uma vez que já se veem crianças com dois anos com celular na internet. Como você vê a inclusão da tecnologia tão cedo na vida da criança?
Terê: Eu vejo da pior forma possível! A gente não usa computador na escola. Voltando àquele conceito que a escola deve oferecer aquilo que está faltando para a sociedade, tecnologia não está faltando para a sociedade. Absolutamente, tem em excesso. A gente não tem computador na escola para uso do aluno. Ele não leva celular, não leva tablet, não leva nada disso para a escola. Ele aprende a fazer conta, ele aprende a desenhar mapa. Para mim o Homem do Futuro é aquele que sabe, e desenvolveu todas as suas possibilidades e suas habilidades. Imaginem se houver uma pane elétrica no planeta e o “cara” não souber se virar, fazer uma conta, fazer um desenho, escrever sem os aparelhos tecnológicos. Ele estará perdido! Eu acho que o conhecimento serve para a gente se explicar, explicar o mundo e se tornar cada vez mais livre. Na Ágora tecnologia é “zero”. Os pais sabem disso de cara. Quando o computador começou a ser introduzido nas escolas eu perdi muitos alunos que iriam entrar e não entraram. Eu não me preocupei com isso, porque eu continuo fiel a meus
Notas:
princípios. Eu acho que a escola é o lugar que oferece o que está faltando para a sociedade. Vão aprender a trabalhar com argila, fazendo forno, fazer cerâmica, fazer pão, vai desenhar, vai escrever, aprender a fazer uma letra bonita. A gente faz questão, no Ensino Fundamental, que a criança aprenda a fazer os contornos do mapa. Aí alguém falou: vai lá e imprime o mapa. Não! Eu não quero que ela imprima, eu quero que ela aprenda. Desenvolva a coordenação fina, o instinto de observação, que ela desenvolva o sentido de direção, para onde vai indo esse mapa. É como um pai que fala: posso dar um dicionário eletrônico para meu filho? Eu falei, nem morto! Não! Quando você pega um livro na mão você tem uma identidade. O livro tem peso, tem cheiro, ele é um “ser”. Você vai mexer no dicionário, você topa com “N” palavras pelo caminho. Você vai trabalhar com classificação, com sequenciação, você vai e volta com um monte de coisas quando você pega um dicionário físico. Até os 14 anos é dicionário físico. Em casa ele tem eletrônico (com 14 anos). Não tem
problema nenhum. Nesse momento, por exemplo, a gente está fazendo trabalhos online. Fecharam as escolas. A gente teve que parar (do dia 14/04, retomamos) mas, eles têm aulas de tudo online. De Teatro, Educação Física.... Vou te dar um exemplo, a aula de Educação Física do primeiro ano, os alunos tinham que encontrar obstáculos na casa para pular, para ultrapassar. Aulas de tudo. De Música, aulas de Artes, aulas de absolutamente tudo. Leitura. Você pode ler uma história com seus alunos. É uma delícia você ouvir histórias. É muito bom! Ontem e anteontem aconteceram encontros entre os alunos e professores com os pais. Pai que trabalha com Sustentabilidade, que é o nosso “projeto do ano”, que conversou com alunos mais velhos e com os menores também. Você pode fazer um ensino criativo, mas nesse momento a gente usou a tecnologia da melhor forma possível, da mais criativa, da mais inventiva, da mais livre – mas, dentro da escola, nada de computador.
João Mori: Sua fala é muito enriquecedora para a gente. Traz novas reflexões, mais estímulos e provocações. Que a gente continue sempre nessa busca dessa boa revolução que você comentou, através do ensino, da Educação. Como a História é cíclica, você começou a falar trazendo a Idade Média. E como essas coisas vem se reproduzindo, poderia buscar isso em outros anos, outras épocas. Não só no que ocorre hoje, em termos das questões sanitárias, mas, enfim, econômicas, sociais. A História é cíclica e, penso que é uma das maneiras de resgatar o respectum do olhar para atrás. Se a gente não entender a importância de estudar a História, como a gente conseguirá ser o educador que prevê esse futuro? Se fizermos essa análise, me parece bastante claro aquilo que vai ocorrer. O grande desafio é não só fazer a previsão, mas aplicar, a partir dessa previsão, um trabalho de análise que se construa com a revolução. Que mude, que transforme esse futuro. Construindo a questão, depois de tudo que foi tratado aqui: quais são os lugares de atuação? De que maneira que (suprimir) esses métodos são tra-
zidos para alguns núcleos, para alguns grupos sociais, e como que a gente poderia expandir isso? Aí eu gostaria de pensar mais fora do espaço da escola, porque uma coisa é o espaço da escola como espaço físico, onde está a infraestrutura. Como você comentou sobre a Ágora, o espaço amplo que compõe a escola. Resgatando um pouco as sociedades “primitivas”, a sociedade indígena, onde o espaço da escola não existe e ainda assim as pessoas se tornam “gente”, o índio se torna gente. Como ele se torna gente? De que maneira ele se torna gente entre muitas aspas. Não existe esse lugar onde as pessoas vão, se sentam, saem de casa. É no dia a dia, pescando, caçando. É em casa, na “escola do futuro”, que é a casa da avó, né? Isso tudo me traz o seguinte questionamento: se a gente trabalha, dentro das grandes cidades como estamos, esse ensino, essa possibilidade de futuro proposta por nós educadores, dentro do espaço físico, como ele se desdobra no espaço da rua. Porque, uma coisa é trabalhar no espaço da escola. Outra coisa é a vivência dessa pessoa na rua. Como de fato é a escola, fora da escola?
Terê: A primeira reflexão que eu faço é que a “escola fora da escola” (tradicional) é aquela lá da sala de onde acontecia o “estouro da boiada”. Sai todo mundo correndo e ficou para atrás. É uma realidade estanque da minha realidade e da minha experiência de vida. Eu acho que a escola – instituição escolar – construiu isso. A instituição escolar não tem 600 anos. Em termos de História é uma coisa mais recente. Antes de existir escola, que vem muito com a Reforma Protestante, de Lutero , a escola como a gente conhece hoje, ele se põe como tarefa de encontrar um caminho para fazer uma escola democrática para todos. Como que o menino aprendia antes disso? Nós vamos falar da tribo também, porque eu acho muito interessante essa colocação que você fez. Mas, o menino aprendia, por exemplo: se o pai era ferreiro, o filho seria ferreiro. O pai trabalhava com ferro, o filho ia trabalhar com ferro, porque não existia o conceito de infância. Você vê isso nas obras de arte, você vê a criança medieval, era vestida como se fosse um anão, vestida como um homenzinho. Não tinha esse conceito de infância. O conceito de infância vem com esse período pós Reforma, com a ideia de mandar os filhos para um lugar onde os pais não estariam. Vários filhos ao mesmo tempo. Filhos de uma comunidade para ter um instrutor que ensinava. Geralmente, religião, matemática, música e a língua. Então, era isso. Essa era a ideia. Da mesma maneira que não existia a ideia de Natureza para o homem medieval. Até o homem medieval acreditava-se que o ser humano era parte daquela natureza. Não tinha essa separação: a Natureza e eu! Eu falo tudo isso gente, porque estudei muito esses conceitos para poder, inclusive, entender melhor como é que a gente aplica e percorre esse caminho. Fora, que eu adoro História! É um prazer para mim. Te respondendo João, nós vamos voltar para a coisa muito prosaica agora. Muito simples, muito banal, mas que eu acho que é essencial. É o exemplo de vida.
O adulto como modelo norteando a vida das crianças. Você sabe muito bem que as crianças de hoje têm seu próprio quarto, seu próprio computador, sua própria TV, seu próprio banheiro, seu próprio tudo. Não compartilha. E, agora, vou voltar para a questão da Flávia. Compartilhar te ajuda a não ser arrogante. A não ser tão centrado. Quando eu era criança, eu tinha 1 hora para ouvir vitrola (ouvir disco) durante o dia. Porque as 6 horas da tarde, era hora da minha mãe ouvir música (orquestra americana), as minhas irmãs queriam ouvir outra coisa. Era uma vitrola só (aparelho de tocar discos). Você tinha que viver em comunidade. Você tinha que fazer parte daquela comunidade. Mais atrás ainda, imaginem o que é acender o fogo numa casa, passar roupa, fazer comida.... Então, a comunidade toda da casa precisava funcionar para a casa funcionar. A gente foi se afastando. Por isso que eu falo da reumanização. Quando você citou o indígena, ele é profundamente autêntico, ele é profundamente vinculado a sua aldeia, ele é profundamente ciente de seu papel. O índio adulto educa o menor, e todos da aldeia ensinam as crianças. Não tem o pai, a mãe. Quando você vai ao supermercado e fala para uma criança pequena: não põe a mão, não aperte o queijo desse jeito! A mãe vem correndo e fala: a senhora é histérica, hein? Não. Eu estou falando para ele que o queijo, enquanto ele não comprar, não é dele. Então, isso virou do avesso. Eu vou te responder em uma frase, o que eu acho que posso te responder. O que você faz para mudar tudo isso? Torna significativas as experiências escolares do seu aluno. Faz com que aquilo faça sentido para ele. Tenta ser muito coerente, entre discurso e prática, e procure o tempo todo ser um exemplo. Algumas pessoas vão dizer: Ai, que hipocrisia! O adulto também tem defeitos. Não precisa mostrar para quem está em formação. Mostre o seu melhor lado.
Claudio Manetti (Revista Fôlego):
dro de inexorabilidade da “realidade” tal como ela é, e a vontade de ruptura com esse modelo na formação de alguns perfis de alunos mais ousados, pontos fora da curva, sementes de novas oportunidades reflexivas, rompendo drasticamente com essa noção de formação de mão-de-obra de reserva do capital. Então, diante do que você nos falou, fiquei pensando sobre uma escola para os pais, um reeducar a partir da arte, a ressensibilização formadora. Diante dessa premissa poderíamos fundar um país, um novo país, uma “República dos Roliços”. Finalmente a “República dos Roliços”! Um lugar com domínio das perspectivas, pelas vias da multidisciplinariedade de fato, essa multiculturalidade necessária, toda essa coisa explosiva que é fundamental para a formação da sociedade brasileira que precisa brotar da junção entre compromissos éticos e a ousadia pela sensibilidade, que já existe no seio das culturas nacionais e que está sendo dizimada pelo ódio e pela ausência de inteligência social. O que você acha disso?
Pelas questões apresentadas, que nos inspiram a refletir sobre a formação humana pela construção de fundamentos da Educação, fazemos aqui uma provocação à Terê: O que seria, então, a ideia de uma nova revolução sociocultural no Brasil? Por onde começarmos? Seria uma Escola para os pais? Uma Escola completa, de verdade, que poderia reeducar os pais. Temos a impressão de que grande parte dessa “culpa” que está nesse atraso, é cultivada em casa. É aquilo que você disse. Aquilo que é plantado nesse “útero” formador, que constrói essa visão tão atrasada, tão personalista, autocentrada, medíocre, apoiada pelo “mimo” dos pais, num ideal de mundo de olho nas oportunidades de Mercado. Esse olhar está apoiado, também, por muitas escolas particulares que precisam defender seu quinhão. A relação da bajulação recíproca, o ideal de desempenho da carreira, que tem em sua essência a ideia de competição. No contraponto, as escolas públicas parecem se resignar, nadando em oceanos revoltos que oscilam entre a formação básica de seus alunos diante do quaTerê: Eu adorei essa ideia! (risos). Encerrando, dizer que nós todos aqui acreditamos que “o pensamento é uma coisa à toa, e como é que a gente voa quando começa a pensar”.
Roberto Pompéia (Revista Fôlego):
Gostaria de agradecer muito a sua presença e dizer que estou profundamente honrado de ter mais uma aula com você. Ficou marcado para mim a questão do fazer sentido. A escola que faz sentido, porque afinal de contas, o sentido que dá significado. O significado é o valor da coisa. Não o valor daquilo que não tem significado. A gente diz que o que não tem significado é insignificante. Mas, significado é a História, é o signo que ficou, portanto ele está intimamente ligado ao respeito, o olhar para atrás. Ver a História e todo o seu processo, e cria o significado, que é o valor. Agradeço e espero ir somando cada vez mais o sentido da nossa revista.
LUÍS RAUL WEBER ABRAMO
COM IMAGENS DE ÉTIENNE LOUIS BOULLÉE
O cosmologista Luiz Raul Weber Abramo comenta lugares onde as ciências e as artes são tão próximas, que podem ser assimiladas em uma mesma e única coisa. Que sejam nos processos, nas realizações, na “coletivação” da obra, na avaliação de seus efeitos ou ainda nas próprias sensações do cientista ou do artista na hora da invenção e do encontro do novo. Luiz Raul Abramo localiza nas origens dessas práticas humanas o que elas têm em comum entre si, e aponta características estéticas na construção de uma necessária harmonia entre essas duas formas de conhecimento na transformação da humanidade na era do antropoceno.
luís raul weber abramo
SOBRE O LUIS
Físico pela Universidade de São Paulo e Ph.D em física pela Universidade de Brown, pós-doutorado pela Universidade da Flórida e pela Universidade Ludwig-Maximilians de Munique. É professor Titular de Física no Departamento Física e Matemática do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Trabalha com perturbações cosmológicas, evolução das galáxias e levantamentos astrofísicos. Recentemente, está envolvido em pesquisas sobre matéria escura, energia escura e gravidade modificada. Tem se dedicado à divulgação da ciência ao público em geral e aos estudantes de escolas e universidades por meio de apresentações.
ARTE E CIÊNCIA
Raul Abramo: Podemos
começar falando a respeito das barreiras existentes entre as diversas áreas do conhecimento. Algumas são reais e outras são fabricadas por séculos de diferenças entre culturas com práticas e profissões diferentes, barreiras essas que não existem. Uma delas é a diferença entre “Ciência” e “Arte”. Diferenças como se as atividades de cientistas não fossem totalmente impregnadas pelos mesmos impulsos e pelas mesmas técnicas e treinamentos que é muito próximo que artistas fazem. A exposição, um pouco simplista do que um cientista faz, acaba perdendo essa dimensão.
Começar dizendo que essa diferença entre ciência e arte seria o mesmo que dividir o cérebro em dois hemisférios ou em duas partes que não existem. Pensamos de forma humana, simplesmente. A parte que chamamos de ciência é, simplesmente conhecer como as coisas funcionam. Mas isso não significa absolutamente nada se você não sabe onde quer chegar ou para que se quer fazer aquilo. A técnica e a ciência são, basicamente a mesma coisa. A técnica, para um artista é fundamental para que possa fazer qualquer obra. Porém, na hora
que se quer criar, e a criação é um momento onde exercitamos a parte mais interessante, mais instigante de nosso cérebro de onde sai uma coisa nova. Criação é, necessariamente, algo novo. Nesse momento um artista busca em algum lugar da sua cabeça algo de uma forma que ninguém disse antes. Ao mesmo tempo, todo cientista vive para o momento de criação. A técnica e a ciência é uma forma de se preparar para que sua criação seja algo genuinamente novo, interessante e bonito, que seja apreciado pelos outros. A criação não é algo que se faz de você para você mesmo. É para o mundo. Portanto, esse impulso de criar algo novo para o mundo, é aquilo que vem da mesma fonte para todos. Esse ato de criação que nos une é tanto arte como qualquer outra coisa. A busca pelo momento de criação, essa ação de busca de um novo significado. Isso é que une todo mundo. Ou seja, o momento de inspiração em que você cria algo novo tem o mesmo poder e a mesma beleza sendo apenas uma fonte para todos.
O momento em que um cientista chega à “Eureka”, é o mesmo que um artista sente que criou algo novo e verifica a beleza em sua obra e as pessoas poderão sentir o belo. Essa
analogia não pode ser empurrada longe demais, pois a arte é uma universalidade um pouco diferente do que a ciência. A criação na ciência é um pouco mais difícil de ser comunicada. A inspiração e o momento Eureka, ou seja, a busca pela beleza, é a mesma. O belo e o novo se completam, são indissociáveis. Aquilo que todos buscam na arte ou na ciência, é o belo com o novo. O que dá para perceber é que, quando um cientista trabalha para uma descoberta, é extremamente parecido com a contemplação de um artista diante do novo e do belo. Há momentos em que o cientista diante de uma descoberta fica arrepiado e se questiona: será que alguém não fez isso antes? Certamente, deve ser o que ocorre com um artista quando está diante de algo novo. É preciso muito trabalho, muita técnica e inspiração.
Certa vez, um físico importante diante de um aluno disse: “Seu trabalho tem coisas boas e coisas novas. As coisas novas não são boas e as coisas boas não são novas. ” Muito artista já deve ter ouvido essa frase! (risos).
Além de momentos de inspiração existem métodos de inspiração. Por exemplo, o astrônomo e astrólogo Johannes Kepler (1571 – 1630) tinha essa força interior que o movia na tentativa de encaixar os poliedros regulares, ou sólidos platônicos, em seu modelo cosmológico dos planetas em torno do sol. Não só isso, ele pensava que os planetas tinham uma harmonia musical, ou a “Harmonia das Esferas”. A história do Kepler é emblemática para se saber até onde a inspiração te leva e o quanto a técnica e o conhecimento precisam entrar juntos. Ele não teria descoberto nada e nem chegado às suas três leis sem a inspiração – o que é o que essencialmente importa. Isso é que foi revolucionário! O que é decisivo nisso é que a base de ciência do Kepler – que era um bom matemático - se deu sobre um tripé. Um deles foi o apoio técnico do nobre e excêntrico dinamarquês Tycho Brahe. Tycho tinha um grande conhecimento técnico, mas não era um cientista completo, pois lhe faltava a inspiração. Ficou décadas mapeando com precisão o movimento dos planetas, porém, nun-
ca soube o que fazer com essas anotações. Enfim, não fez nada de novo. Já o Kepler, com o “pé” da inspiração, unida à estética dos poliedros fundamentais e da “Harmonia das Esferas”, teve que abandonar a sua ideia inicial e que, posteriormente, passou a ser uma âncora que o levou às três leis. Essa revolução, com o sol no centro do sistema solar e a terra num movimento em torno do sol – que não era circular e sim uma elipse. Todos acreditavam que o círculo era o certo, já que era a forma “perfeita”. Ou seja, teve que juntar essa inspiração à ciência para conseguir esse grande feito. É interessante observar como a inspiração provoca para um grande salto. A ciência mostrou que Kepler deveria buscar um outro tipo de “perfeição”. As formas elípticas tinham uma outra beleza e uma outra matemática. Nenhuma dessas conquistas seriam possíveis se Kepler não buscasse algo novo e belo.
Imagino que um estudante de artes ou arquitetura venha com muitas ideias e noções estéticas, mas não tem a menor noção da técnica ou de como se constrói uma obra.
Claudio Manetti (Revista Fôlego):
Temos essa busca da beleza. O Oscar Niemeyer falava que “o que está bonito está certo”. Será que a busca da beleza e do novo tem a ver com a busca da verdade? Estaria o cientista atrás de uma verdade para desvendar os mistérios do mundo ou gosta dos mistérios do mundo como uma forma de beleza?
Raul Abramo: Essa é uma pergunta que me faço há algum tempo. O que me faz levantar e mergulhar num problema dificílimo que ninguém descobriu até hoje e tentar descobrir coisas novas? Penso que, embora cada um tenha uma noção de belo, é quase necessário dizer que “aquilo que é belo é verdadeiro e aquilo que é verdadeiro é belo”. Essa analogia vai muito além de qualquer afirmação científica.
Em ciência nunca há uma verdade última e absoluta. A gente sabe que o que estamos fazendo contém um tanto de verdade. Progressivamente, ganhamos um pouco mais de verdade, à medida em que avançamos um pouco mais. Quando você explica uma coisa nova, quando descobre um novo efeito ou vê um fenômeno novo, você avança e consegue extrair um pouco mais de verdade. É belo fazer isso. Veja bem, a novidade sem verdade não tem valor. Isso não deve ser diferente em arte. Como é que se mede o valor de uma obra de arte? O quanto se percebe, universalmente, o impacto nas pessoas? Aquilo que o artista quis passar, uma vez percebido, é uma verdade. É uma verdade universal humana. O belo é algo que qualquer ser humano em qualquer época vai conseguir apreciar aquela beleza. Esse é o mesmo significado para uma descoberta nova em ciência. Ela só será bela se for verdadeira. Algo que é apenas uma criação da minha cabeça, sem conexão alguma com a realidade, não será bela nem verdadeira. Há muitas teorias em física, hoje - num momento que a nossa criatividade andou muito mais rápido do que nossa capacidade de descobrir mais a fundo os segredos do universo - que são criações rebuscadas das cabeças de físicos e matemáticos, mas que não têm qualquer indicação de que o
mundo funciona daquele jeito. Por exemplo, existe uma teoria das “supercordas” feita na década de 70, 80, para explicar a impossibilidade de juntar a “relatividade geral” do Einstein, que explica a força da gravidade e a evolução do universo, com a “física quântica” que explica as partículas elementares e o funcionamento dos chips de computadores e celulares. Foi uma criação de físicos e matemáticos geniais, inspirados pelas mais belas noções de simetria e beleza. Porém, não há nenhuma evidência de que ela tem relação com o mundo real. Até agora ela é apenas uma criação curiosa de mentes brilhantes. Não há evidências de que ela seja verdadeira. Portanto, ela tem sido vista como um exagero ou um capricho de técnica. Se, um dia, alguém perceber que há uma evidência de que ela exista no mundo real, de que ela possa ter algo de verdadeiro, ela vai se tornar bela. Até esse momento, ela não é bela. Assim, ela ainda não passa de uma criação refinada, porém não verdadeira.
Ao ver o teor da entrevista, verifica-se que entre a arquitetura e a ciência básica, como a física, têm grandes similaridades. De vez em quando, a física descobre coisas práticas como, por exemplo, o funcionamento dos chips de computadores. Cinquenta por cento da economia americana vem da física quântica. Mas a astrofísica e cosmologia que faço, certamente não deverá ter aplicação alguma. Não há nenhum uso ou interesse prático para isso. Na arquitetura encontramos coisas práticas, como uma casa, e arquiteturas cuja função é ser bonita, simplesmente. O interessante é que alguém paga por isso, mesmo que não tenha um uso prático evidente. Esse é o meu caso. Recebo para fazer algo que não tem utilidade imediata
ou remota. Ou melhor, a única utilidade do que faço é explicar como é que funciona esse universo infinito. E tem gente que gosta de ouvir essa história. É para isso que serve. É que nem poesia. Qual é a utilidade da poesia a não ser mostrar o belo? Da mesma forma as pessoas gostam de ouvir sobre a infinitude do universo, de como se formam as estrelas e de como existem esqueletos de outras galáxias dentro da nossa e assim por diante. Que utilidade tem esse conhecimento? Nenhuma.
Esse fenômeno de dar valor ao que é belo não é universal. Há momentos em que a sociedade deu valor à obra de arte e ao conhecimento. Há momentos em que, ao contrário, não se deu valor algum. A “idade das trevas”, por exemplo, é a regra e não a exceção na humanidade. Todos nós da sociedade temos que ficar relembrando o tempo todo que essas coisas são de todo mundo. Caso contrário, voltamos às trevas.
Vivemos, atualmente, uma certa aproximação às trevas, mas, penso, é um momento de autocrítica. Quando se separa a sociedade e não se olha para ela como um todo, perde-se a dimensão dos princípios na antiga Grécia: “Ética, Lógica e Estética”. Há grande parte da sociedade que virou as costas para esses princípios e valores. Nós mesmos acabamos virando as costas para isso. Quando você vira as costas para a sociedade como um todo, ela também acaba virando as costas para você. Penso que é um equívoco achar que vivemos uma barbárie. Penso que o que está acontecendo hoje é uma tribalização da sociedade.
Claudio Manetti (Revista Fôlego):
Algo que nos aflige nesse processo histórico que tem idas e vindas são os confrontos. É nesse momento que aparecem pontos de inflexão críticos e será que, para um cientista, isso é uma estrutura lógica? Não seria propriamente uma linha que se advoga, mas uma espiral de embates. Esse processo é científico ou escapa da mão?
Raul Abramo: Não pensei a fundo sobre isso. Você acha que o que está acontecendo hoje com o Brasil, nos EUA e em boa parte da Europa é uma lei natural? Ou se conseguimos visualizar forças mecânicas inexoráveis da sociedade? Para mim, que não olha a sociedade como um especialista nesse assunto, tendo a ver o fenômeno de forma muito mais caótica, sem uma ordem comparável às leis da física.
Claudio Manetti (Revista Fôlego):
Muitas vezes as coisas avançam e, logo em seguida, aparecem forças contrárias a esse avanço. Dá a impressão que a ciência quer acabar com a graça do mistério, como se a ciência fosse uma desmancha prazeres e sobre a qual não poderia criar conversas que não sejam pautadas por uma, de novo, a verdade ou a busca de uma solução ou formas de esclarecimento das questões que nos cercam. Se pegarmos a história humana, veremos que esses ciclos sempre aparecem, não em forma de linha, mas como feixes que, se entrelaçando, constituiriam processos onde saímos mais fortes ao sair dele, ficando com mais elementos para enfrentar o que vier por meio das novas descobertas. Será que tudo se engendra numa regra previsível?
Raul Abramo: Vejo ciclos em uma ordem que se repete por meio de padrões que se propagam sem que a gente perceba. O que vejo são forças que agem e que a gente só reconhece depois de muito tempo. Estamos sujeitos a limitações práticas, limitações naturais e até de ordem tecnológica. Essas limitações moldam a sociedade de maneira definitiva. Algumas mudanças foram determinantes para a sociedade. Por exemplo, a grande revolução industrial foi no século XIX trazendo a eletricidade. No entanto, ninguém poderia imaginar que a eletricidade fosse influenciar tanto a urbanização como vimos no século XX. Nem mesmo os escritores de ficção científica previram algo semelhante.
Por exemplo, as forças como a química, a criação de novas armas e a energia nuclear foram determinantes para a sociedade que surgiu depois. Mais recentemente a internet, trazendo novas formas de comunicação, transformou enormemente a maneira de se comunicar em como se “pega e se troca” a informação. No final dos anos 1980, o e-mail foi uma revolução, mas só se tornou popular na virada do século. Essa facilitação na comunicação entre setores da sociedade, sem intermediários, foi pouco apreciada o quanto isso independe do lugar onde você está no mundo. De forma radical, as mídias sociais mudaram o comportamento de como as coisas socialmente funcionam.
Na década de 1970, um escritor de ficção científica inferiu que, no dia em que as pessoas conseguirem se comunicar por fotos, vídeos e sons, e editar ou transformar, a qualquer momento, a realidade, transformando-a em uma nova realidade, as relações sociais serão inteiramente subvertidas. As pessoas poderão, só pelo seu lado, editar e mostrar aquilo que mais querem que as pessoas pensem que são. A realidade será editada. A sociedade irá se pulverizar em pequenos grupos cada vez menores e as pessoas irão se identificar com um subconjunto da sociedade onde se comunicam diretamente com o seu repertório levando a inevitável fragmentação da sociedade. Esse fenômeno está acontecendo em todo o mundo. No Brasil, era perfeitamente previsível se estivéssemos nos EUA há dez anos atrás quando as mídias sociais e as Fake News surgem na emergência de um líder carismático que joga com o que há de pior nos instintos de um setor da sociedade ligado num outro canal de comunicação. E isso veio para ficar. É permanente. Alguns países controlam mais como a China. É o resultado de uma condição de contorno da sociedade que veio, de certa maneira dos avanços da ciência e não há, a princípio, como controlar. Não dá para restringir as pessoas nesse lugar em que elas vivem. Surge aí uma tribalização progressiva da sociedade. Essa é a força. Gente que fala entre si, de si para si. Falando como físico, a força externa do sistema é essa até que surja algo para substituí-la. Desculpem a resposta. Quando a gente não sabe o que responder, falamos o que bem entendemos. (risos).
Roberto Pompéia (Revista Fôlego):
Se as pessoas e suas vidas são editáveis, hoje, com uma maquiagem que se afasta da “verdade”, não poderá a sociedade ser vítima de um desastre?
Raul Abramo: Existe um grande contraste entre o que é profundo e verdadeiro e o que é superficial e falso. Assim, a estética superficial das relações construídas por edições da vida é consumida cada vez mais – o que se tornou corriqueiro. O que podemos fazer é trazer um conteúdo mais profundo mostrando que há algo mais interessante além daquilo. Não sei se isso é satisfatório, se tem qualquer viabilidade ou se esse tipo de diálogo funciona. Sou um tanto pessimista em relação a isso. Sei ver o que está errado, mas a solução, realmente, não sei. Resta-nos mostrar à sociedade as coisas belas e verdadeiras. Não tenho a menor ideia de como sair da tribalização das redes. Não sei se levei a coisa para um beco sem saída.
Imagem 02: Cénotáfio de Newton | Fonte: Étienne-Louis Boullée. Bibliothèque National de France. Cénotaphe de Newton, élévation géométrale. Dessins aquarellés (encre et lavis), 1784. Paris, BNF, Estampes, Ha 57 Rés. format 4, pl. 7, et 9, 50X 75 cm.Frédéric Petit (Revista Fôlego):
Você estava falando sobre o belo e a verdade e queria citar um poeta francês Boileau Despréaux (poeta, teórico da poesia e das artes) que fala sobre isso. Concordo que a sociedade tribal, como coloca um sociólogo francês Georges Ballandier, colega do Maffesolli que falava isso nos anos 1990. O que você entende sobre o objeto novo? O que uma coisa nova tem que uma não nova não teria? Um professor de filosofia dizia que o novo é o desconhecido, pois quando se reconhece alguma coisa, ela não é nova. O lado desconhecido é o que diverge em relação à sociedade. Outra ideia é a questão da invenção. Nas artes se falava muito em invenção como se fala um pouco na ciência, que não serve muito para nada, não tem objetivo. Às vezes essas descobertas científicas e tecnológicas são ótimas, porém o uso que é inadequado. Talvez você tenha sorte de fazer uma pesquisa que não tenha uso prático direto, mas cuja função seja deixar outras pessoas felizes. Acho que isso é importante. Como você vê a questão do novo e o desconhecido, da invenção e da descoberta? Como você avalia em relação à ciência?
Imagem 03: Cénotáfio de Newton | Fonte: Étienne-Louis Boullée (1728-1799). Bibliothèque National de France. BNF-EST Ha 57, ft 4, Ekta Rc B 7797 Pl. 9, Coupe du Cénotaphe de Newton.Raul Abramo: É preciso distinguir “tecnologia” e “conhecimento”. A tecnologia vem depois do conhecimento, ela surge no contexto de uma aplicação específica. Quando se vê o lançamento do “novo iPhone”, por exemplo, ele não embute nada de novo do ponto de vista científico, e sim do ponto de vista do design e da tecnologia. E a mesma ciência por trás da tecnologia do iPhone e do reconhecimento dos seus amigos está por trás da tecnologia das câmeras que vigiam as pessoas 24h por dia na China.
Mas de qualquer forma, talvez a questão que se coloca aqui é sobre o reconhecimento de algo que seja genuinamente novo.
Permita-me fazer novamente um paralelo com a física. Nós estamos sempre em busca de como o Universo funciona naquilo que ele tem de mais básico: as leis fundamentais da Natureza. Se essa busca fosse sempre pautada apenas pelo que é familiar, por nosso conhecimento adquirido e por nossa intuição, talvez nunca teríamos avançado além de Aristóteles. A História da Ciência mostra que os avanços são quase sempre quebras de paradigma, saltos no ar que subvertem totalmente aquilo que antes julgávamos natural e intuitivo. Há um impulso humano, um apego àquilo que é familiar, e que resulta numa imensa resistência ao novo. E de fato, boa parte da educação de um cientista consiste na destruição de noções que rotineiramente consideramos naturais ou mesmo auto-evidentes e sua substituição por idéias e paradigmas que inicialmente parecem absurdos. Então, o próprio reconhecimento do novo pode ser algo desconfortável, pelo menos inicialmente.
Imagem 04: Cénotáfio de Newton | Fonte: Étienne-Louis Boullée (1728-1799). Bibliothèque National de France. BNF-EST Ha 57, ft 4, Ekta Rc B 7797 Pl. 9, Coupe du Cénotaphe de Newton.
Por outro lado, há ocasiões em que a Ciência se mete por becos sem saída, e quanto mais nos embrenhamos nessa floresta escura, maior o caos que se instala, maiores a desordem e a incoerência. Nessas situações, muitas vezes só somos salvos por alguma descoberta extraordinária que joga luz sobre algo mais profundo, ao mesmo tempo revelando algo mais simples e mais belo.
Para retomar a discussão anterior e fazer um paralelo com o que foi colocado acima, estamos talvez em uma era de caos nas nossas noções de sociedade: a atomização das relações humanas está nos metendo num beco escuro onde não há mais verdades nem fatos sólidos, apenas narrativas desconexas que se desmancham no
ar. Tenho dúvidas se a superação desse caos pode emergir apenas dos nossos melhores instintos humanos, num processo de adaptação que seria essencialmente cultural. Minha impressão é que esse aspecto da natureza humana, que prefere o familiar e tende a rejeitar o que nos parece estranho, é mais um desses aspectos do Homo Sapiens que terá de ser domado pelas sociedades para que elas possam sobreviver. E, assim como em diversas outras encruzilhadas na história da humanidade, a saída pode inclusive passar por novas tecnologias — por exemplo, em termos de algoritmos de mídias sociais que não estimulem tanto os nossos piores instintos.
LUIZ CESAR MARQUES FILHO
COM IMAGENS DE ERIC COLLETTE
O convite para o historiador Luiz Marques integrar o conjunto de textos desta revista aconteceu entre a edição de seu livro ”Capitalismo e Colapso Ambiental“ (Ed. Unicamp. 2019) e antes do lançamento do seu último livro, “O Decênio Decisivo” (2023). No primeiro livro, Luiz, com um rigoroso trabalho, descreve a gravidade da situação: poluição, aquecimento global, extinção em massa das espécies; os sinais que diagnosticam a urgência em repensar o modelo de civilização moderna para manter a viabilidade do planeta. Como contribuição à Revista Fôlego, ainda que numa atmosfera de tragédia anunciada, Luiz Marques discute o otimismo e o pessimismo frente aos desafios do homem na era do antropoceno.
luiz cesar marques filho
SOBRE O LUIZ
Graduou em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas / FESPSP, Diplôme d’Études Approfondies (DEA) em Sociologia da Arte - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris e Doutorado em História da Arte - EHESS. É livre-docente do Departamento de História do IFCH da Unicamp, considerado um dos maiores especialistas em história da arte italiana dos séculos XV e XVI neste país. Foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo e diretor do Instituto de História da Arte. Escreveu o livro “Capitalismo e Colapso Ambiental” que venceu o Prêmio Jabuti em 2016. Recentemente, lançou o livro “O Decênio Decisivo” “propostas para uma política de sobrevivência” alertando para o risco de desaparecimento precoce da humanidade, dadas as atuais ameaças ambientais.
Revista Fôlego:
A questão ambiental passa muito por uma postura ética que tem de vir de dentro de cada um de nós. Uma das possibilidades seria como a Ética se une à Estética nesse “Antropoceno”. Como ter esperança de um novo renascimento?
Como repensar o progresso e o papel da Arte para o futuro e sobrevivência do planeta?
Luiz
Marques: As questões que você me propôs suscitam muitas interrogações e poucas respostas assertivas. Como em tudo o mais no âmbito das relações interpessoais e sociais, a ética é uma premissa, não um receituário ou uma solução. O ato mesmo de se colocar o problema ambiental, ou seja, o problema dos limites planetários e de nossa ação destrutiva na biosfera e no sistema Terra, já supõe a presença de uma postura ética. Portanto, eu diria que a ética é a condição de possibilidade de se colocar o problema. Mas a ética, em si mesma, não oferece respostas específicas ao problema. Evidentemente, numa sociedade capitalista globalizada em estado avançado de degradação, como é o caso da sociedade em que estamos vivendo – uma sociedade regida pela antinomia brutal entre “winners” e “losers” e pela obsessão do “sucesso”, do dinheiro, do consumo, da visibilidade nas redes etc., a ética já não é talvez mais apenas uma premissa, é uma conquista, é quase uma forma de resistência e até mesmo de protesto.
No que se refere aos nexos entre ética e estética, esses nexos sempre existiram, de Fídias a Rodin, para nos ater à arte ocidental. A arte da frisa do Parthenon, as tragédias gregas e dos séculos XVI ao XIX, as fachadas das igrejas românicas e góticas, a “Divina Comédia” de Dante, a “Eroica” do Beethoven são todas obras imbuídas de senso ético, porque nasciam e se destinavam a sociedades nas quais o que chamamos hoje de “arte” tinha uma importância primordial para a vida social. Eram uma espécie de psicodrama da sociedade. E isso, obviamente, importava! Por isso a arte era algo perigoso, e a transgressão era de fato uma transgressão, com todos os riscos penais e existenciais aí implicados. No século XX, muito dessa importância primordial se perdeu. E também, por conseguinte, o perigo e o risco. Tanto se perdeu, que o século XX suscitou a dilema, estéril e de triste memória, entre arte pela arte e arte “engajada”. Esse dilema não faria nenhum sentido para a arte anterior ao século XX pois a arte era então um fenômeno orgânico na sociedade. Seria absurdo discutir se um retábulo num altar de uma igreja, ou uma Missa do Bach ou uma paisagem, uma natureza morta, um retrato de um aristocrata ou de um burguês caberia na categoria “arte pela arte” ou “arte engajada”. Não sei se a arte pode voltar a ser um fenômeno orgânico da sociedade. Acho di-
fícil e não veja nisso nenhuma crítica ou rejeição à arte contemporânea. Há lugar para tudo, no âmbito da sensibilidade. Mas tendo a achar por vezes que uma obra de arte contemporânea alheia ou indiferente ao fato de que seu tempo é o tempo do caos e da ameaça existencial parece, a mim ao menos, mais um sintoma do que uma resposta vigorosa à realidade que nos circunda.
Você me pergunta como ter esperança de um novo renascimento. Não sei realmente como responder. Esperança é, felizmente, algo irracional. Não é algo que nasce de um cálculo de probabilidades e tanto menos quando a situação é de fato crítica e quando o que está em jogo é nossa própria sobrevivência como indivíduos, como sociedades e mesmo como espécie.
Justamente por isso, esperança não tem nada a ver com autoengano ou com enterrar a cabeça na areia ou com dourar a pílula. Temos aqui a famosa fórmula de Romain Rolland: “pessimismo da razão, otimismo da vontade”, atribuída por vezes a Antonio Gramsci. É documentadamente do Romain Rolland, mas bem que gostaria que ela fosse do Gramsci, pois ele viveu uma situação-limite, de certo modo muito parecida com a nossa. Comecemos, portanto, pelo pessimismo da razão, isto é, por recapitular o essencial do que temos que saber.
I. PESSIMISMO DA RAZÃO
A razão nos mostra um quadro absolutamente assustador, que pode ser descrito em quatro faces:
1. Estamos presenciando em nossos dias um processo de aniquilação da biodiversidade. Além de ser eticamente inaceitável, essa aniquilação é uma ameaça à habitabilidade do planeta, seja por sua ação direta e suas sinergias com outros elementos do sistema Terra (o sistema climático, os oceanos, as florestas etc.), seja por seus impactos irreversíveis. Nos últimos 70 anos, vêm se desenvolvendo no planeta os estágios iniciais do sexto evento maior de extinção em massa de espécies. Contrariamente às cinco anteriores, a grande extinção em curso não foi deflagrada por um desastre natural, cósmico ou tectônico. Trata-se da primeira grande extinção de caráter antropogênico na história da vida em nosso planeta, e ela pode erradicar, mantida a atual trajetória, três quartos das espécies pluricelulares hoje existentes, e não por
último a nossa. A causa primeira dessas perdas de vida selvagem é a antropização de seus hábitats, vale dizer, a supressão e degradação de dezenas de milhões de quilômetros quadrados de florestas e de outros hábitats selvagens em quase todas as latitudes do planeta. Essa causa foi ressaltada recentemente pela mais importante avaliação do estado atual da biodiversidade, proposta em maio de 2019 pelo IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos): “75% da superfície da Terra [não coberta de gelo] está significativamente alterada, 66% da área oceânica está sofrendo impactos crescentes e cumulativos e mais de 85% das áreas úmidas foram perdidas”. O número de árvores desde o início das civilizações humanas caiu quase pela metade (46%), queda
que vem se acelerando, posto que hoje em dia mais de 15 bilhões de árvores são derrubadas anualmente. O modelo econômico vigente opera agora como se pudesse dispor de uma área 73% maior do que a do nosso planeta, com crescente contração e degradação da biosfera. A destruição da natureza pelo sistema econômico é um processo ao mesmo tempo criminoso, imoral e estúpido, cujo absurdo foi posto em evidência por Edward O. Wilson:
“destruir uma floresta tropical para obter ganho econômico é como queimar uma pintura do Renascimento para cozinhar uma refeição”.
Não uma pintura, mas inteiros museus da biosfera estão sendo queimados nesse processo. Sobre suas cinzas, objetos manufaturados já nascem como lixo ou amontoam-se na antessala do lixo.
2. A emergência climática. A superfície do planeta está hoje, em média (temperaturas terrestres e marítimas combinadas), cerca de 1,2°C acima das temperaturas do período pré-industrial. Esse aquecimento médio global superficial, que vinha progredindo entre 1970 e 2015 à taxa média já vertiginosa de 0,18°C por década, mostra nos últimos anos uma nova aceleração. Mantida a atual trajetória, o planeta deverá se aquecer em média à taxa de 0,36°C por década no período 2016-2040. Essa velocidade alucinante do aquecimento implica uma virtual certeza de que um aquecimento médio global de 1,5°C acima do período pré-industrial (1850-1900) ocorrerá até 2030, em direção a um aquecimento de 2°C no próximo decênio. Esse aquecimento iminente entre 1,5°C e 2°C coloca a humanidade definitivamente além da zona de segurança climática, implicando secas e inundações sem precedentes, eventos meteorológicos extremos muito mais destrutivos, novas pandemias, picos de calor mais letais, crescente insegurança alimentar e hídrica e elevação muito mais rápida do nível do mar, com extinção da riquíssima biodiversidade costeira, salinização dos deltas, perdas catastróficas de infraestrutura, inclusive de usinas nucleares. As gerações nascidas a partir do último terço do século XX, viverão em um planeta sempre mais hostil, vítimas de um sistema climático sem precedentes em toda a história da espécie humana.
3. Os cientistas categorizam agora a Terra como um planeta tóxico. A letalidade e os danos para a saúde humana e de outras espécies de muitas das mais de 140 mil novas substâncias químicas e pesticidas sintetizados desde 1950 começam a ser mais conhecidos. Uma nova linha de pesquisa emerge desde 2005 no âmbito da toxicologia, a exposômica (exposomics), que almeja mensurar os níveis de exposição dos organismos (da fase embrionária à velhice) a essas substâncias e associar os riscos dos impactos dessa exposição sobre nossa saúde, distinguindo-os da suscetibilidade genética. Os cientistas sistematizaram oito vias biológicas distintas através das quais essas substâncias podem afetar a saúde dos organismos: (1) estresse oxidativo e inflamação; (2) alterações genômicas e mutações somáticas; (3) alterações epige-
néticas; (4) disfunção mitocondrial; (5) perturbações endócrinas; (6) alteração na comunicação intra e intercelular; (7) alteração nas comunidades de microbiomas e (8) prejuízos no sistema nervoso central. De modo geral, esse conjunto de doenças em humanos causadas pela poluição foram responsáveis em 2015 por cerca de 9 milhões de mortes prematuras (prematuras = até 69 anos), ou 16% das mortes no mundo todo. Outra estimativa sugere que esse número pode ser ainda mais alto, atingindo 12,6 milhões de mortes prematuras¹. Apenas para pôr esses números em perspectiva, eles representam “o triplo da soma das mortes por AIDS, tuberculose e malária, e 15 vezes mais que as mortes causadas por todas as guerras e por outras formas de violência. Nos países mais gravemente afetados, ela foi responsável por uma morte em cada quatro”.²
Notas:
1. Cf. Annette Prüss-Üstün et al., Preventing disease through healthy environments: a global assessment of the burden of disease from environmental risks. World Health Organization, 2016.
2. Cf. Philip J. Landrigan et al., “The Lancet Commission on pollution and health”, 391, 10119, 3/II/2018.
Imagem 02: Marabá. Imagem arqueológica da fome e do analfabetismo. Crânio humano, ferro, alt. 70 cm. Autor: Eric Collette, 2017.4. O aumento das desigualdades, sobretudo da desigualdade socioeconômica entre os países ricos e pobres, mas também no interior de cada país. A desigualdade econômica medida em termos de riqueza patrimonial fornece os seguintes números: os 50% mais pobres do planeta detêm apenas 2% da riqueza global, ao passo que os 10% mais ricos acaparam 76% dessa riqueza. Os 10% mais ricos da humanidade possuem mais do triplo (76%) da riqueza patrimonial dos “restantes” 90%, e 38 vezes mais do que os 50% mais pobres da humanidade. O relatório da ONU de 2020, “Desigualdade em um mundo em rápida mutação”, acrescenta outros dados a respeito da desigualdade de renda³: “Os países onde a desigualdade cresceu (desde 1990) abrigam mais de dois terços (71%) da população mundial. (...) A parcela da renda destinada ao 1% mais rico da população aumentou em 59 de 100 países com dados de 1990 a 2015. (...) A renda média das pessoas que vivem na América do Norte é 16 vezes mais alta do que as pessoas na África Subsaariana, por exemplo”. A pobreza, e mesmo a pobreza extrema, é hoje, mais que nunca, uma realidade que mesmo os países ricos já não conseguem disfarçar. De modo geral, os EUA, o país mais rico do mundo, capitaneiam esse processo. Segundo Luke Shaefer e Kathryn Edin, “o número de famílias vivendo com US$ 2,00 ou menos por dia durante ao menos um mês num ano nos EUA mais que dobrou em 15 anos, passando de 636.000 famílias em 1996 para 1.460.000 famílias em 2011”.
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Essas quatro crises sistêmicas em que vamos naufragando – aniquilação da biodiversidade, emergência climática, poluição letal e desigualdades crescentes - estão profundamente interligadas e atuam em sinergia, isto é, reforçam-se reciprocamente. Eles estão conduzindo a humanidade a um colapso socioambiental de proporções ainda insondáveis e num horizonte de tempo já claramente discernível. Há sempre uma margem de incerteza em toda a projeção, e tanto mais em projeções envolvendo sistemas complexos como são os sistemas naturais e os sistemas sociais. Mas é certo e seguro que, mantida a trajetória em que estamos, essa incerteza é decrescente.
Notas:
Imagem 03: Marabá. Imagem arqueológica da fome e do analfabetismo.Crânio humano, ferro, alt. 70 cm.
Autor: Eric Collette, 2017.
3. Cf. ONU, Department of Economic and Social Affairs, “World Social Report 2020. Inequality in a Rapidly Changing World”. <https://www.un.org/development/desa/dspd/wp-content/uploads/sites/22/2020/02/World-Social-Report2020-FullReport.pdf>.
4. Cf. H. Luke Shaefer & Kathryn Edin, “Extreme Poverty in the United States, 1996 to 2011”. National Poverty Center, 28/II/2012.
II. OTIMISMO DA VONTADE
Onde entra o “otimismo da vontade”, a esperança, nesse quadro horrendo? Longe de ser um motivo de desânimo e de derrotismo, esse quadro é um chamamento ainda mais imperioso à luta e à mudança social e individual. Não estamos de antemão condenados ao pior. O pior não está dado como se fosse uma imposição das leis da química e da física. Ele é algo que deriva do modo elementar de funcionamento de nossas sociedades. A boa notícia, portanto, é que, se o problema não reside em um meteoro, por exemplo, como há 66 milhões de anos ou como no filme “Don’t look up”, mas reside no modo como nossas sociedades se organizam, então a solução está em nossas mãos. Construí-la politicamente é algo de imensa dificuldade, e é por certo o maior desafio já enfrentado por nossa espécie. Trata-se, entretanto, de um desafio, não de uma impossibilidade.
Esse desafio é ao mesmo tempo político, intelectual e espiritual. Ele requer, em suma, uma mutação civilizacional. Seus agentes são os movimentos sociais e uma organização política voltada para a construção de uma alternativa sistêmica ao capitalismo. Estamos falando, é claro, de algo que vai muito além da capacidade de ação de cada indivíduo, isoladamente. Isso posto, muito pode e deve ser feito por cada um de nós, individualmente. Se tivermos em mente que as nossas escolhas pessoais e políticas devem se orientar doravante pelo senso de urgência, dada a gravidade extrema da situação atual, o impacto de nossa ação individual na sociedade vai aumentar radicalmente.
No meu entender, a ação de maior impacto imediato que podemos ter, individualmente, é a opção por uma nova dieta, na qual a carne, e sobretudo a carne bovina, saia de nosso prato. Mudar a matriz energética baseada em combustíveis fósseis não é algo que podemos realizar como indivíduos, e nem da noite para o dia. Mas mudar a dieta, sim. Ela é uma decisão individual e que não requer uma longa transição. E seu efeito é espetacular.
O sistema alimentar globalizado é responsável por cerca de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE). Sim, um terço! Os cientistas demonstraram que, mesmo se as emissões provenientes dos combustíveis fósseis fossem eliminadas imediatamente, as emissões de GEE provenientes do nosso sistema alimentar por si só tornariam impossível limitar o aquecimento nos níveis almejados pelo Acordo de Paris. Dora Hargitai, dos movimentos Extinction Rebellion e Animal Rebellion, explicita o nó da questão: “não podemos resolver o problema climático sem resolver ao mesmo tempo a crise animal e a crise alimentar”. No Brasil, essa é realidade é ainda mais gritante. Basta lembrar que cerca de 80% do desmatamento da Amazônia deve-se à abertura de pastos para o gado bovino e que a soja, outro fator maior de desmatamento da Amazônia e do Cerrado, destina-se basicamente à ração animal. Em 2021, segundo o IBGE, o rebanho bovino no Brasil montava a 224,6 milhões de cabeças de gado. Trata-se do maior rebanho bovino do mundo. Há mais gado bovino do que gente no Brasil. E desses 224,6 milhões, quase 100 milhões (96,7 M) pastavam nos nove estados da Amazônia Legal, em pastagens que haviam substituído mais de 800 mil km² de floresta primária. E a destruição do Cerrado pela pecuária bovina é ainda maior! E ninguém pense que a carne bovina produzida na Amazônia e no Cerrado é um produto de exportação. Segundo dados da Embrapa, 80% dessa carne é consumida por nós, brasileiros de classe média e alta. Apenas em 2022, a Amazônia perdeu cerca de 600 milhões de árvores, ou mais de 1,6 milhão de árvores por dia, grande parte das quais foi suprimida para fornecer o bife nosso de cada dia.
Vamos parar com isso? Não depende de nenhuma revolução social. Depende de cada um de nós, individualmente.
A decisão de cessar o consumo de carne ou de diminuir esse consumo drasticamente é extremamente encorajadora.
A rápida descontinuação do consumo de carne pode estabilizar os níveis de gases de efeito estufa (GEE) por 30 anos e
compensar 68% das emissões de CO2 neste século. Michael Eisen e Patrick Brown quantificaram os benefícios dessa mudança, combinando os efeitos de longo prazo da redução das emissões de GEE provenientes do atual sistema alimentar e da recuperação da biomassa que essa descontinuação propiciaria:
“Mostramos que, mesmo na ausência de quaisquer outras reduções de emissões, quedas persistentes nos níveis atmosféricos de metano e óxido nitroso e acúmulo mais lento de dióxido de carbono, após a eliminação da produção de gado, teriam, até o final do século, o mesmo efeito cumulativo sobre o potencial de aquecimento da atmosfera que uma redução de 25 bilhões de toneladas por ano nas emissões antropogênicas de CO2, fornecendo metade das reduções de emissões líquidas necessárias para limitar o aquecimento a 2°C. A magnitude e a rapidez desses efeitos potenciais devem colocar a redução ou eliminação da pecuária na vanguarda das estratégias para evitar mudanças climáticas desastrosas”.
Notas:
<https://drive.google.com/file/d/1pVpYTNQKAE_izp8tsVK3tQ4fNWPgoQIz/view>.
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Um relatório de 2020 do WWF, Bending the Curve: The Restorative Power of Planet-Based Diets, coordenado por Brent Loken, chega a conclusões ainda mais ambiciosas no que se refere aos benefícios de uma dieta baseada em nutrientes vegetais. Essa dieta tem potencial para:
(1) reduzir as emissões de GEE diretamente relacionadas à produção de alimentos dos atuais 16 bilhões de toneladas de CO2-equivalente (2018) para 5 bilhões de toneladas de CO2-equivalente!
(2) tornar a agricultura um sumidouro de carbono, ao permitir o aproveitamento dos espaços das pastagens para o reflorestamento;
(3) alimentar a humanidade com a mesma área de terras agrícolas hoje utilizadas ou ainda menos;
(4) reduzir as mortes prematuras em mais de 20%.
Um programa pessoal e político baseado nesses quatro pontos é o caminho mais rápido e eficiente para transformar círculos viciosos em círculos virtuosos, diminuindo o impacto dos dias terríveis que virão. Suprimir o consumo de carne, e especialmente de carne bovina, é bom para a nossa saúde, é bom para os bichos e é bom para a biosfera e o sistema Terra. Se não conseguimos ver esperança em algo tão concreto e tão ao alcance de qualquer indivíduo, acho que não veremos esperança em lugar nenhum.