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apresentação

A Humanização do SUS como uma política do comum Este suplemento da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação é resultado de um conjunto de esforços da Política Nacional de Humanização (PNH) para sistematizar e socializar reflexões em torno do tema da humanização da saúde, notadamente da produção realizada no Seminário “Humanização do SUS em debate”, realizado nos dias 25 e 26 de Junho de 2008, em Vila Velha, ES. O diálogo, como opção política e como método de incluir sujeitos e coletivos, imprime à PNH mudanças e, assim, ela vai se alterando, acolhendo e incorporando novos elementos. Incluir não pode ser um discurso da moda, e o desafio é a sua afirmação como uma prática política. É por esta razão que, nestes cinco anos de existência da Política de Humanização, permaneceu a convicção de que não se constrói e fortalece uma política pública sem a inclusão de sujeitos, sujeitos no plural, sujeitos no singular. Este fascículo da revista Interface, plural e heterogênea, reflete este processo inclusivo. O SUS, como aposta ético-política, é um instrumento de luta, no campo da saúde, em relação às formas de autoritarismo e às práticas de captura da vida no capitalismo contemporâneo. Levar à frente tal luta pela democratização institucional das práticas de produção de saúde exige o compromisso dos diferentes atores envolvidos neste processo. Daí a importância de colocarmos, lado a lado, trabalhadores, gestores e usuários nos momentos de planejamento, execução e avaliação das práticas de saúde. O SUS como uma política pública de saúde busca garantir o direito à saúde. Política pública que, na nossa aposta, não se confunde com as políticas de governo. Por outro lado, lutamos para que seja uma Política assumida pelo Estado, já que talvez aí esteja alguma possibilidade de ela continuar existindo mesmo quando não existir como política de governo. Eis o dilema: queremos o público porque queremos fortalecer o plano do coletivo, o plano comum, mas não queremos que o Estado e os governos se tornem única expressão do coletivo, o que significaria a privatização das políticas. Temos vivido este debate, uma discussão conceitual-política, “mas também uma maneira de nos debater, tentando não afogar”, buscando a institucionalidade da política de humanização do SUS, mas procurando escapar da institucionalização que poderia nos deixar esvaziados de força instituinte. Reafirmamos a PNH como política transversalizadora, uma vez que argúi as práticas de verticalização e fragmentação. Assim, seu principio, seu caráter transversalizador, busca argui-la todo o tempo para diminuir o risco da sua própria institucionalização. Esta publicação se inscreve neste movimento e opção ético-política: espaço de apresentação, de afirmação, mas também de arguição, que impõe movimento de reflexão, de reposicionamentos. Este Suplemento é um instrumento de análise e de afirmação da Política de Humanização como estratégia de aprimoramento de nossa experiência civilizatória no campo da saúde. Alguns artigos, encomendados pela coordenação do evento, são assinados por pesquisadores que, como propositores do Seminário, apresentam questões para um debate com os pesquisadores da área, ampliando a interlocução dos formuladores da PNH com a comunidade acadêmica. Buscaram problematizar as práticas de saúde com base no tema da humanização do SUS. Outros foram produzidos por pesquisadores que, na função de debatedores no Seminário, são consultores da PNH e pretenderam fazer uma discussão da proposição feita para cada tema-eixo. Temos, também, artigos de pesquisadores que participaram do evento e, com sua diversidade de abordagens, enriquecem esse debate; e textos produzidos nos cursos promovidos pela PNH que apresentam questões importantes para o debate em pauta. Os artigos reunidos neste número da revista têm o sabor das práticas e de reflexões que afirmam permanentemente uma forma criadora de pesquisar e trabalhar no campo da saúde. Vislumbramos, com esses textos, a possibilidade de ampliar o debate no âmbito da produção acadêmica no campo da Saúde Coletiva, de forma a analisar os problemas enfrentados no cotidiano dos serviços de saúde em sua complexidade, e construir estratégias para superá-los. Entre os aspectos destacados nos textos aqui apresentados, está a necessidade de se envolver a comunidade acadêmica nessa discussão e produzir práticas, fruto de um debate ampliado, de forma a contemplar as múltiplas variáveis que compõem o processo de trabalho nos serviços de saúde e nas universidades. Dário Frederico Pasche, Eduardo Passos e Maria Elizabeth Barros de Barros Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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presentation

Humanization of SUS as a common policy

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This supplement of Interface - Comunicação, Saúde, Educação results from combined efforts within the National Humanization Policy (PNH) to systematize and socialize reflections around the topic of healthcare humanization, and notably the production achieved from the seminar “Humanization of SUS under debate”, held in Vila Velha, Espírito Santo, on June 25-26, 2008. This dialogue, in the form of policy options and methods of including subjects and groups, imprints changes on PNH, with ongoing changes through bringing in and incorporating new elements. Inclusion cannot just be fashionable discourse, and the challenge is to affirm this as practical policy. For this reason, over the five years of PNH existence, the conviction remains that public policies are not constructed and strengthened without including subjects, both plurally and singularly. This issue of Interface, which is plural and heterogenous, reflects the inclusion process. SUS, as an ethical-political precept, is an instrument for the struggle within healthcare against authoritarianism and practices that take over lives within contemporary capitalism. Moving this struggle forward through institutional democratization of healthcare production practices requires commitment from the different players involved in this process. Hence, it is important to put workers, managers and users side by side at the time of planning, implementing and evaluating healthcare practices. SUS, as a public healthcare policy, seeks to ensure the right to healthcare. We believe that this public policy should not be confused with government policy. On the other hand, we are fighting for it to be a policy taken on by the state, given that perhaps there will thus be some possibility that it will continue to exist even if not as government policy. This is the dilemma: we want it to be public because we want to strengthen it at a collective (common) level, but we do not want the state and governments to become the sole expression of the collective level, which would signify privatization of policies. We have gone through this debate – not only a conceptual-political discussion but also a “way of debating among ourselves while trying not to drown” – by seeking to institutionalize the humanization policy of SUS while also seeking to escape from institutionalization that might leave us drained through the instituting forces. We reaffirm that the PNH is a policy for horizontalization, since it argues against the practices of verticalization and fragmentation. Thus, its principles, i.e. its horizontal nature, continually provide arguments for diminishing the risk of its own institutionalization. This supplement forms part of this movement and its ethical-political choices: a space both for presentation and affirmation and for argumentation, thus giving rise to reflection and repositioning. It is an instrument for analyzing and affirming the humanization policy as a strategy for improving our civilizing experience within healthcare. Some papers, commissioned by the event coordinators, are undersigned by researchers who, as proponents of the seminar, presented questions for a debate with researchers in this field, thereby expanding the interlocution between PNH formulators and the academic community. These papers sought to pose questions regarding healthcare practices based on the humanization of SUS. Other papers were produced by researchers with the role of debaters in the seminar, who were PNH consultants, and these aimed to discuss the proposals put forward along each line of the debated topics. There are also some papers by researchers participating in the event that, through the diversity of approaches presented, enrich this debate; and some texts produced within PNH-promoted courses, which present important questions for the present debate. The papers brought together in this issue of the journal give a flavor of the practices and reflections that continually reaffirm creative ways of researching and studying the field of healthcare. Through these texts, we discern the possibility of expanding the debate within the sphere of academic production relating to public health, so that the full complexity of problems faced within the day-to-day routine of healthcare services can be faced, and so that strategies for overcoming them can be constructed. Among the points highlighted in the texts presented here are the need to involve the academic community in this discussion and, through wide-ranging debate, the need to produce practices that take into account the many variables making up the work process in healthcare services and universities. Dário Frederico Pasche, Eduardo Passos, Maria Elizabeth Barros de Barros Brazilian Ministry of Health, National Policy of Humanization

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artigos

Um seminário dispositivo: a humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em debate

Ana Lúcia Coelho Heckert1 Eduardo Passos2 Maria Elizabeth Barros de Barros3

HECKERT, A.L.C.; PASSOS, E.; BARROS, M.E.B. An instrumental seminar: humanization of the Brazilian Unified Health System (SUS) under discussion. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.493-502, 2009. This paper discusses the process of constructing the seminar “SUS Humanization under Discussion” and demonstrates its connection with the current challenges of the Brazilian Unified Health System (SUS) and with the propositions of the National Humanization Policy (PNH). It presents the principles and guidelines of the PNH for SUS and its construction process, and discusses the different meanings of the term “humanization”. It concludes by indicating the methodological stakes of the seminar, which aimed to promote a wide debate about the humanization of SUS by means of circles of conversation. These had the objective of forming an interface with professionals who are engaged in training workers for SUS and who are responsible for producing knowledge in the field of healthcare and for training students in this field.

Keywords: Humanization of assistance. Healthcare. Training. Health System.

O artigo discute o processo de construção do seminário “Humanização do SUS em Debate” indicando sua conexão com os desafios atuais do SUS e com as proposições da Política Nacional de Humanização (PNH). Apresenta os princípios e diretrizes da Política Nacional de Humanização do SUS e seu processo de construção, discutindo os diversos sentidos do termo humanização. Ao final é indicada a aposta metodológica do seminário que se destinou a promover um amplo debate sobre a humanização do SUS, por meio de rodas de conversação que objetivavam a interface com profissionais que atuam na formação dos trabalhadores do SUS, responsáveis pela produção de conhecimento na área da saúde e pela formação dos acadêmicos neste campo.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Saúde. Formação. Sistema Único de Saúde.

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1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Rua Moacir Avidos, 63/401-B, Praia do Canto. Vitória, ES, Brasil. 29.055-350 ana.heckert@gmail.com 2 Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense. 3 Departamento de Psicologia, Ufes.

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Introdução A Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS) chega ao seu quinto ano, momento em que podemos identificar importantes acúmulos, assim como a necessidade de ampliarmos o debate junto aos pesquisadores da área. Entendida não como programa, mas como política que atravessa as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, a PNH aposta na indissociabilidade entre os modos de produzir saúde e os modos de gerir os processos de trabalho, entre atenção e gestão, entre clínica e política, entre produção de saúde e produção de subjetividade. Tem por objetivo provocar inovações nas práticas gerenciais e nas práticas de produção de saúde, propondo, para os diferentes coletivos/equipes implicados nestas práticas, o desafio de superar limites e experimentar novas formas de organização dos serviços e novos modos de produção e circulação de saber e de poder. A PNH é uma política transversal que indica a inseparabilidade entre gestão e atenção (Brasil, 2008). Entende-se que a gestão dos processos de trabalho em saúde não pode ser reduzida à sua dimensão gerencial-administrativa separada das práticas de cuidado, ou seja, não pode se identificar com uma lógica gerencial marcada pelos valores de mercado (Schwartz, 2002). Apostar na inseparabilidade entre atenção e gestão é propor a transversalização destes domínios, frequentemente tomados como distintos e separados (de um lado as práticas de cuidado e, de outro, as de gestão). Superar essa dicotomia é defender a dupla interferência que altera tanto as práticas de cuidado a partir da problematização do seu processo de trabalho, quanto modifica os modelos de gestão, impondo aí a atitude analítica e de cuidado com os sujeitos implicados no trabalho em saúde: trabalhadores e usuários dos serviços de saúde. Gerir e cuidar tornam-se, assim, aspectos complementares. O cuidador cuida e gere seu processo de trabalho do mesmo modo que o gestor também não está dispensado da tarefa de cuidar. A gestão perde, portanto, o aspecto que tradicionalmente a associa ao autoritarismo, hierarquia e imposição de regras, que se destinam a normatizar previamente, ao máximo possível, os processos de trabalho, em sintonia com práticas hierarquizantes e de dominação. A direção proposta, então, é outra: enfatizar as dimensões dos processos do trabalho que afirmam valores do bem comum (Schwartz, 2002). Valores que escapam de qualquer tentativa de quantificaçãomensuração e que privilegiam uma relação singular e histórica com o trabalho a partir do que se efetiva localmente nos ambientes laborais. Não se trata, portanto, da gestão, mas de uma gestão, já que não está em uma coisa, nem pertence a coisa alguma, não depende de um objeto nem pertence a um sujeito. Do ponto de vista da PNH, os modos de gestão dos serviços são tomados como pura imanência, pois estão em todas as partes, em todos os momentos, é um processo de singularização que se atualiza nos sujeitos e nas maneiras como se organiza um serviço de saúde. Consequentemente, gerir não se identifica com um conjunto de normas exteriores àqueles que constroem cotidianamente os serviços, mas se desprende deles e, ao mesmo tempo, os incorpora; uma vez que está na imanência do território de forças moventes em que se funda uma organização e não se reduz à estratificação dura dos regulamentos e aos modelos dos planejamentos idealizados. O processo de gerir é tomado como arte das multiplicidades, que difere do gerenciar, uma vez que se coloca como organização própria do múltiplo e que se orienta pelas questões “quanto”, “como” e “em que caso” determinada realidade se produz e se institui (Deleuze, 2006, p.260). Assim, gerir um serviço, na direção definida pela PNH, implica considerar que se faz gestão de processos mais do que de coisas, se acompanha os movimentos de institucionalização de dada organização, e que se avalia a dinâmica das forças instituintes em constante contraste com as formas instituídas. E, nas organizações, as coisas com que a gestão está às voltas são encarnações de idéias, sendo, portanto, inseparáveis de um potencial, de uma virtualidade, não implicando qualquer identidade prévia de que se possa dizer do uno e do mesmo (Barros, Fonseca, 2008). Gestão como lugar de passagens e de conexões, que se constitui a partir da dessubstancialização do lugar do gestor, não está na sala do diretor ou da coordenação de um estabelecimento de saúde, mas considerada como conector de processos de subjetivação e de relações de poder. Gerir é negociar, é debater normas, regras, valores. É inventar modos de fazer. É inventar uma cadência. Juntos com Deleuze e Guattari (1997, p.40), diríamos que quando procuramos “singularidades” de uma matéria ou de um material, sem a preocupação de descobrir uma forma, somos forçados a seguir, nos engajando “na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes”. 494

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artigos

Trabalhar-gerir, portanto, inclui a criação de formas-subjetividades à deriva - trabalhadores que, no curso da atividade e na relação com os instrumentos de trabalho, criam permanentemente, reinventando-se, incessantemente, como trabalhadores; é “prática de tateio” (Kastrup, 1999). Os modos de operar nos serviços se confundem com o próprio processo de criação de si. Processos de subjetivação-modo de gestão-produção de saúde. Com este entendimento, a PNH busca fomentar, nos atores que constroem os processos de trabalhorede, o exercício de suas condições como protagonistas de análises compartilhadas e intervenções nos espaços de trabalho. Objetiva-se, assim: superar posturas legalistas e assistencialistas, fomentar o envolvimento dos trabalhadores na construção de projetos, incentivando a multiplicação de diferentes movimentos e rodas, fortalecendo as redes, colocando em análise o sucateamento e a precarização do processo de trabalho em saúde, o quadro atual do financiamento da Saúde Pública no Brasil. Nessa direção, compreende-se que os processos de trabalho se constituem como espaços concretos de invenção e reinvenção de regras e usos de si (Schwartz, 2003), e a gestão como função de quem está produzindo e conduzindo seu próprio fazer. Aqui se coloca um método: conduzir análises e intervenções com/nos espaços de trabalho, de forma a traçar um caminho no sentido da inclusão dos diferentes agentes implicados nos processos de trabalho-gestão. Um método que inclui gerência e trabalhadores no sentido da produção de autonomia, protagonismo e corresponsabilidade. A discussão da PNH nos vários espaços do SUS tem revelado sua força, traduzida em diferentes dimensões: de reposicionamento dos sujeitos na perspectiva de seu protagonismo, autonomia e corresponsabilidade; da potência do coletivo; da importância da construção de redes de cuidados compartilhados, em contraste com o mundo contemporâneo caracterizado pelo individualismo e pela competição que transforma a agonística do campo social em antagonismos. A força da PNH vem, então, apontar para o compromisso com uma posição ético-estético-política no campo da Saúde. Ética porque implica mudança de atitudes dos usuários, dos gestores e trabalhadores de saúde, de forma a comprometê-los como corresponsáveis pela qualidade das ações e serviços gerados; estética por se tratar do processo de produção/criação da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas; política, porque diz respeito à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS. No contexto contemporâneo, somos convocados a manter vivo o movimento constituinte do SUS quando nos confrontamos com as forças de privatização da saúde. Este é o momento da mobilização de universidades e de centros de pesquisa em defesa da Política Pública de Saúde. A humanização das práticas de atenção e gestão do SUS é uma das frentes que aposta no fortalecimento e consolidação da democratização das práticas de produção de saúde. A PNH afirma seus princípios e diretrizes apostando no SUS que dá certo. Tal aposta retoma a força constituinte do movimento ‘susista’ que, na elaboração da Constituição Federal em 1988, afirmou a saúde como direito e dever, como valor universal e distribuído equanimente, como sentido integral. Com os princípios do SUS temos, entre nós brasileiros, um compromisso que nos une, pois eis que o sentido de “único” ganha toda a sua complexidade. Não se trata apenas de afirmar a unidade de um sistema – um sistema único de saúde –, mas também um sistema que nos une ou que pode e deve servir como causa comum: o comum que nos permite a comunicação, a comunidade de interesses e compromissos e a comunhão de sentidos. Reativar este comum é, para a PNH, estabelecer um conjunto de princípios e diretrizes metodológicos que indicam um modo de fazer ou um modo de realizar a aposta do SUS. Por princípio entendemos o que causa ou dispara movimentos de mudança das práticas de produção de saúde. Nessa perspectiva, são princípios metodológicos da PNH: 1) a transversalidade, entendida como aumento do grau de abertura comunicacional intra e intergrupos; 2) a inseparabilidade entre atenção e gestão; 3) o protagonismo dos sujeitos e coletivos. Se há movimento, temos de definir, consequentemente, diretrizes que façam valer o sentido comum da mudança nas práticas de produção de saúde. Daí a PNH propor como diretrizes: a ampliação da clínica; a cogestão e a participação; os direitos dos usuários; a valorização do trabalho e do trabalhador; o acolhimento; a ambiência; o fomento das redes. Enfim, o SUS que dá certo é aquele que se afirma como prática contra-hegemônica aos processos de sucateamento da vida, de recusa aos processos de precarização do trabalho, de enfrentamento às práticas de tutela de trabalhadores e usuários, afirmando o direito a uma vida que difere e fabrica um comum. Trata-se de dar destaque, fazer referência explícita aos direitos dos usuários e dos trabalhadores de saúde, potencializando a 495


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capacidade de criação que constitui o humano, valorizando sua autonomia numa configuração coletiva dos processos de atenção e gestão. A PNH ganha a dimensão de política pública porque é transversal às demais ações e programas de saúde e porque atenta ao que, como movimento e rede social, dialoga e tensiona com suas proposições. De 2000 a 2002, o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar (PNHAH) iniciou ações em hospitais com o intuito de criar comitês de humanização voltados para a melhoria na qualidade da atenção ao usuário e, mais tarde, ao trabalhador. Em 2003, intensifica-se esta aposta e o tema da Humanização da Atenção e Gestão do SUS ganha nova inflexão: deixa de estar limitado a programas que incluem vários projetos importantes, tais como o “Parto Humanizado” e o “Humanização da Atenção Hospitalar”. A proposta da PNH foi a de se constituir como política que atravessa os diferentes setores e programas do Ministério da Saúde (MS), buscando traçar um plano comum e transversal por meio da valorização da dimensão humana das práticas de saúde. No início de 2003, o Ministério da Saúde decidiu fazer uma aposta na humanização como reencantamento do SUS. Ainda que, timidamente, este tema já se anunciava desde a XI Conferência Nacional de Saúde, intitulada “Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social” (Brasil, 2000). Completamos, em 2008, cinco anos de construção da PNH. Em 2003, esta política nascia na Secretaria Executiva do Ministério da Saúde (MS) com a tarefa de fomentar a transversalidade. O SUS, como processo de mudança dos modelos de atenção e de gestão das práticas de saúde, exige que os diferentes sujeitos nele implicados se mobilizem em uma ação coletiva. Para realizar esta ação coletiva, seria necessário alterar o padrão de comunicação no campo da Saúde, criando interfaces, conexões, redes de comunicação. Era preciso aproximar o MS do SUS e, por isso, definia-se a seguinte proposição: a construção do Ministério Único da Saúde (MUS). Transversalizar é aumentar o grau de comunicação entre os grupos e dentro dos grupos. Partíamos daí para a construção da PNH. A PNH nasceu dentro da máquina do Estado, gestada como uma política de governo, no entanto, sempre a quisemos como uma política pública, uma política do coletivo. A direção tomada nestes cinco anos foi fomentar o coletivo da PNH, buscando capilarizar os princípios, as diretrizes e os dispositivos da Política. Éramos poucos e, hoje, somos muitos, mas ainda insuficientes frente ao tamanho dos desafios do SUS. Construir o HumanizaSUS como uma política pública é encarnar um modo de fazer, uma atitude de corresponsabilidade, de protagonismo e de autonomia na realidade concreta dos trabalhadores e usuários de saúde. Cinco anos ainda é pouco, embora não queiramos envelhecer. O SUS nos exige o esforço de renovar, de nos renovarmos. Melhor do que envelhecer é o HumanizaSUS poder se dissolver como política de governo para se tornar um modo de fazer corporificado nos trabalhadores e usuários.

Humanização: entre uma moral piedosa e uma ética da alteridade O conceito de humanização é polissêmico, comportando diversos enunciados e é permeado por imprecisões. Os modos de abordar/compreender humanização não se dissociam das propostas/práticas de humanização. Deste modo, as diversas enunciações constituem distintas práticas de gestão e de modelos de atenção, que nem sempre coincidem. Dentre os sentidos comumente utilizados, quando discutimos com profissionais de saúde e usuários, encontram-se aqueles que designam humanização como: tratar com respeito e carinho, amor, empatia, capacidade de colocar-se no lugar do outro, acolhimento, aceitação do outro, diálogo, tolerância, tratar do outro com respeito e educação, aceitar as diferenças, resgatar a dimensão humana nas práticas de saúde. Outros sentidos também são evocados, tais como: acolhimento resolutivo, participação no SUS, corresponsabilidade, inclusão, controle social, ética, não discriminação, transformar o SUS, valorização do trabalhador, dentre outros. No que se refere à produção acadêmica, a polissemia se mantém e o termo humanização é abordado numa pluralidade de sentidos. Contudo, permanecem majoritários na produção acadêmica alguns sentidos de humanização que agrupamos de acordo com os eixos indicados a seguir. Um eixo que compreende a humanização como vínculo entre profissionais e usuários, efetuado a partir de ações pautadas na compreensão e valorização dos sujeitos. Nesse eixo podemos, ainda, 496

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artigos

abarcar os sentidos que compreendem a humanização como atitude ética e humanitária, que se constitui a partir de uma escuta sensível e compreensiva e uma ação ética. Nestas acepções a humanização circunscreve-se, prioritariamente, no domínio das relações interpessoais. Entende-se, também, que o desenvolvimento das tecnologias no âmbito da saúde acarreta a desumanização das práticas neste campo, e que a ética é uma escolha racional entre possibilidades existentes. Num segundo eixo, a humanização é associada à qualidade do cuidado, que incluiria a valorização dos trabalhadores, e ao reconhecimento dos direitos dos usuários. Neste eixo, as ações de humanização dizem respeito: às melhorias na estrutura física dos serviços de saúde; à presença do acompanhante nas consultas e internação; à capacitação/formação dos profissionais de saúde; às ações pontuais dirigidas aos trabalhadores, tais como atividades comemorativas; à contratação de maior número de profissionais, entre outras. Cabe ressaltar, que, mesmo se apresentando em menor número, algumas produções acadêmicas sinalizam que a humanização do SUS envolve: condições de trabalho, modelo de assistência, formação permanente dos profissionais de saúde, direitos dos usuários, avaliação do processo de trabalho. Boa parte das produções acadêmicas, publicadas após 2004, ainda estabelecem interlocução com o PNHAHMS, criado em 2001 e extinto em 2003. Como desafios aos processos de humanização do SUS, algumas produções como as de Gallo, Reis e Mazarina (2004), Deslandes (2004) e Hennington (2008) sinalizam para sua construção como política pública, ou seja, que não se restrinja a uma política governamental que sofre os efeitos de descontinuidade tão recorrentes em função do rodízio de governantes. Outro desafio diz respeito à interlocução com as instituições de formação, objetivando interferir na organização curricular dos cursos de graduação e pós-graduação em saúde, de modo a ampliar a compreensão dos formandos acerca dos modelos de gestão e atenção à saúde. Por fim, ações que interfiram nas práticas de gestão – ainda verticalizadas e autoritárias -, na saúde dos trabalhadores, e nas práticas cotidianas de assistência. No panorama destes desafios indicados pelos autores citados, mas também corroborada por gestores e demais profissionais de saúde, a formação dos profissionais é aludida como estratégia privilegiada para que se promova a alteração das práticas de saúde. Porém esse é um desafio que se depara com a permanência de ações de formação, pautadas, conforme alerta Teixeira (2005), por um viés transmissivista e doutrinário. O que se pode perceber é que os processos de gestão em sua conexão com os modos de cuidar pouco são tomados como um desafio na humanização do SUS, permanecendo na saúde a compreensão de gestão associada a um posto (gerência), a um sujeito (gestor) e aos espaços formalizados de gestão (conselhos, comissões, dentre outros). Entendemos, como já indicado, que gestão é criação de normas (Schwartz, 2002), regulação do processo de trabalho, operada por todos aqueles envolvidos no processo de produção de saúde. No que se refere à humanização das práticas em saúde, grande parte das produções acadêmicas e das ações de formação se situa, também, sobretudo, em um polo subjetivo nomeado como dimensão ética e que compreenderia os vínculos entre profissionais e usuários, ou seja, a esfera configurada como relacional (Schraiber, 1997). Humanização é aí entendida como esfera subjetiva de relações entre sujeitos idealizados e, portanto, abstratos. Neste sentido, a ética é reduzida ao plano intersubjetivo/ interpessoal, privado-íntimo, divorciando-a do plano da política que produz modos de existência. Do nosso ponto de vista, outro desafio no tocante à humanização do SUS, conforme já assinalamos, é afirmar um exercício ético que se faz por um método de tríplice inclusão: dos sujeitos, dos coletivos e dos analisadores sociais expressos nas crises e perturbações que o encontro com a alteridade, com aquilo que há de estranho em nós, nos desloca das posições nas quais tecemos nossa existência. O que se busca afirmar aqui é uma ética da alteridade que não se faz apartada do mundo em que criamos e convivemos. A aposta consiste em deslocar a humanização do campo de uma moral que faz escolhas entre o bem e o mal, ao acentuar os processos de produção de subjetividades. Assim, os vínculos entre sujeitos não se efetuam fora do plano das práticas de cuidado e dos processos de gestão. Conforme Campos (2007, p.11), “A humanização formulada pela PNH é uma estratégia política que tem funcionado ‘como um dispositivo valioso’, na medida em que amplia a agenda para a política de saúde no Brasil”. O autor destaca a PNH como uma política que vai na “contramão de práticas tecnocráticas e estratégias que se efetivam por meio de portarias e regulações de diferentes ordens”. 497


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Além disso, assinala que a PNH parte das experiências vividas no chão dos serviços de saúde, em sentido contrário da tradição verticalista e autoritária, muito comum no âmbito da saúde pública. Assim, a PNH enfrenta o desafio de atribuir um outro sentido ao termo humanização, vocábulo polissêmico e polêmico, certamente. Que sentidos são atribuídos ao vocábulo? Qual sentido a PNH atribui a essa palavra que delimita um campo problemático, um modo de trabalhar e que se expressa no esforço de formulação de uma política pública, o que não se faz sem essa disputa de sentidos? A PNH não pretende ter o monopólio e a exclusividade de imprimir à palavra humanização o sentido verdadeiro, mas, apenas, construir mais um deles. Busca redimensionar um modo naturalizado de concepção do humano e abrir possibilidades para o debate sobre esta questão, que tem sido tema sempre que se trazem, para a conversa: as mazelas dos serviços, a fragilidade da rede de atenção, a lotação dos hospitais, o descaso com a população, a suposta irresponsabilidade dos profissionais de saúde. Como indicamos, a partir de uma rápida visada no que tem sido produzido no campo da Saúde Coletiva, muitas são as concepções de humanização que tentam expressar as situações adversas encontradas nos serviços prestados aos cidadãos. A PNH colocou para si um outro desafio: quebrar a cristalização desse conceito, de maneira a deixar aparecer seus pontos dissonantes e surpreendentes. Um conceito é sempre singular e só pode ganhar terreno variando-se, bifurcando-se, metamorfoseando-se, de forma a dar conta dos movimentos incessantes do que parece imóvel. Os enunciados que são produzidos em torno do conceito de humanização da saúde não são imediatamente visíveis, mas ao mesmo tempo invisíveis e não ocultos. Esses enunciados não são imediatamente perceptíveis, já que estão encobertos por palavras e por silêncios, pelas práticas discursivas e não discursivas; e por modos de fazer nem sempre explicitados. Por isso, para tomarmos os sentidos do conceito de humanização é preciso buscar o enunciado, “é preciso descobrir o seu pedestal, poli-lo, e mesmo moldá-lo, inventá-lo” (Deleuze, 2005, p.27). Tal esforço de polimento conceitual tenta mostrar o vazio entre os diferentes sentidos de dado conceito, sua múltipla enunciação, e não a essência do vocábulo ou encontrar seu verdadeiro sentido, usando-o de forma generalizada. Polimento que se destina a permitir a construção de outros sentidos para o verbo humanizar, evitando que a inflação de seu uso ponha a perder seu valor de intervenção e se transforme em um conceito que tudo explica. Buscar seu transbordamento de sentidos é dar visibilidade a esse patrimônio, a esse retrabalho (Durrive, Schwartz, 2007) do conceito consoante com as expectativas de cada trabalhador do SUS. Retrabalho significa debate de normas, fazendo emergir outros sentidos para esse vocábulo, uma vez que fora desse debate temos imposição de sentidos, dominação. Dar visibilidade a esse debate é afirmar o plano comum que atravessa as diferentes práticas que revitalizam o SUS, o que não pode ser feito do exterior, fora do campo onde esta questão emerge, sem a inclusão dos diferentes atores que operam e constroem o SUS. Enfrentar este debate significa, portanto, afirmar a radicalidade da humanização do SUS como obra aberta, que recusa a totalização de um único sentido de humanização, ao mesmo tempo em que problematiza os efeitos destes mesmos sentidos nas práticas efetuadas no âmbito da saúde. Um conceito, portanto, se expressa no modo como o utilizamos. Espera-se, assim, que a produção do conceito de humanização seja capaz de responder ao apelo de problemas reais com os quais nos deparamos nos serviços de saúde. A construção de um sentido possível para a expressão Humanização da Saúde se expressa na PNH em um novo posicionamento que afirma um homem comum (com artigo indefinido), um ser humano na sua existência concreta, na sua diversidade normativa e nas mudanças que experimenta nos movimentos coletivos. Aqui se produz uma inflexão importante, uma vez que esse outro modo de colocar o problema da humanização na saúde implica a produção de outras formas de relação entre os sujeitos que constroem os cotidianos dos estabelecimentos de saúde; sujeitos concretos e engajados nas práticas locais onde são capazes de transformar os processos de trabalho e se transformarem nesse processo. Humanizar, portanto, não para encontrar o ‘bom humano’ ou o ‘humano ideal’, mas para fazer conexão com as forças do coletivo, sem o qual não se faz política pública. Partindo destes princípios e deste conjunto de questões, foi que consideramos a necessidade de se construir um dispositivo que pudesse colocar na roda os diversos modos de fazer o SUS, nem sempre consoantes. Então, a estratégia desse dispositivo foi a proposição de um seminário: “Humanização do 498

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SUS em debate”. O Seminário, realizado no município de Vila Velha (ES), reuniu diferentes setores envolvidos com as políticas públicas brasileiras neste ano de 2009 em que comemoramos os vinte anos do SUS. A construção desse Seminário foi pautada na responsabilidade ético-política de fazer desse encontro um momento de reflexão-crítica-invenção de caminhos para alguns dos impasses vividos no SUS, de publicização dos confrontos e crises no processo de construção das políticas públicas de saúde e de formação.

Um modo de fazer seminário O Seminário de Vila Velha (ES) teve como idéia e desejo promover um amplo debate sobre a Humanização do SUS. O diálogo aciona mudanças, altera, acolhe e incorpora novos elementos na construção de uma política pública. Nos cinco anos de existência da PNH, permaneceu a convicção de que não se constrói, bem como não se fortalece uma política pública sem inclusão de sujeitos, sujeitos no plural, sujeitos no singular. Incluir não pode ser um discurso da moda e o desafio é a sua afirmação como uma prática política. Em outras palavras: nestes cinco anos alteraram-se, no tempo, as motivações, mas permaneceu irremovível, como opção política e como método, incluir sujeitos e travar diálogos. Assim, esse Seminário se colocou como uma estratégia para reunir um conjunto relativamente amplo de pesquisadores e docentes cujas produções têm tomado por preocupação pensar e afirmar mudanças no SUS na perspectiva de consolidá-lo como política pública inclusiva, solidária e de qualidade. O SUS é um instrumento de luta, no campo da Saúde, às formas de autoritarismo e às práticas de captura da vida no capitalismo contemporâneo. Levar à frente tal luta pela democratização institucional das práticas de produção de saúde exige o compromisso dos diferentes atores envolvidos neste processo. Daí a importância de colocarmos lado a lado trabalhadores, gestores e usuários nos momentos de planejamento, execução e avaliação das práticas de saúde. É preciso, no entanto, ampliar esta roda, incluindo aqueles que participam da formação dos trabalhadores do SUS. Neste sentido, é importante priorizar também os processo de formação e a construção coletiva de discussão acerca do conceito de humanização junto às instituições de ensino superior e centros de pesquisa no campo da Saúde. O processo de formação é compreendido como modo de interferir nas práticas cotidianas dos serviços, nos processos de trabalho, nos modos de gerir e cuidar, de forma a potencializar os princípios do SUS. Com os processos de formação, pode-se enfrentar e desmontar a separação formação-trabalho, ao se considerar que os processos de trabalho se constituem como matéria-prima dos processos de formação. Por outro lado, o investimento na formação dos profissionais de saúde e redes sociais é uma posição de aposta na invenção de outras práticas. Por considerar a formação como aquilo que se dá como experiência singular-coletiva, produção de sujeitos que se querem protagonistas de sua história e de políticas públicas, é que entendemos fundamental estabelecer o compromisso com a consolidação de modos de fazer e de pensar políticas de saúde de maneira crítica e desnaturalizadora de problemas, aí incluído o próprio conceito de humanização do SUS. Em 2006 e 2007, as apostas da PNH nos processos de formação focalizaram, prioritariamente, a educação permanente em serviço dos trabalhadores da saúde. Com o Seminário de Vila Velha, ampliouse a confiança nos processos de formação, agora visando à interface com profissionais que atuam na formação dos trabalhadores do SUS, todos eles responsáveis pela produção de conhecimento na área e pela formação dos acadêmicos no campo da Saúde. O Seminário “Humanização do SUS em debate” organizou-se fazendo uma aposta metodológica, pois teve o sentido de Roda de Conversação. A Roda remete à criação contínua, ao que perece para ser reinventado. Símbolo do movimento que necessita sempre de conexões para se efetuar, a roda nos lembra que a vida é obra aberta. O momento da roda é o momento da troca, da pactuação, do compartilhamento das experiências, do comum e do diverso. A roda rodando nos convoca a driblar/ desviar as hierarquias e os lugares que ocupamos nas relações de saber-poder. Daí a afirmação do modo de fazer da PNH pautado pelo método da inclusão. Ao mesmo tempo, esse evento propôs a desespetacularização do evento acadêmico por meio da prática da lateralização do debate. Os participantes estiveram lado a lado, fazendo rodar a palavra em um espaço sem lugares privilegiados, sem mesas, sem púlpitos. Diferentes pesquisadores do país reuniram-se numa roda de discussão em torno de quatro eixos: 1) Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde; 2) Humanização e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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organização dos serviços e práticas de saúde; 3) Redes de produção de saúde e humanização; 4) Biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Cada um desses eixos norteou uma roda de debate em sessões de quatro horas, contando com 150 participantes (pesquisadores convidados e consultores da PNH). O modo de operar proposto para as discussões procurou escapar dos formatos tradicionais de seminários acadêmicos, criando funçõesdebate diferenciadas (mas não hierarquizadas) para atiçar o movimento da roda. Assim, a dinâmica dessa roda contou com seis funções: a. pesquisadores e consultores da PNH que qualificavam o debate, considerando a diversidade do campo da Saúde Pública; b. propositores que tiveram como função problematizar as práticas da saúde com base no tema da humanização do SUS; c. debatedores que tomaram as proposições feitas como oportunidade de ampliação do debate para a efetivação da humanização do SUS; d. observadores analistas que realizaram, em cada eixo, a cartografia das linhas de composição do debate, destacando os desafios enfrentados e os avanços indicados na problematização do tema-eixo; e. moderador que teve a função de mediar o debate, apontando os pontos de interseção e as linhas de desvio, viabilizando a emergência de novas proposições; f. coordenadores que garantiam a circulação da palavra. Para a formulação das proposições, foram convidados pesquisadores que têm tomado as temáticas propostas nos eixos em seus trabalhos no campo da Saúde, aos quais foi solicitado o envio prévio de um texto em sua primeira versão, que foi disponibilizado aos demais participantes do Seminário e apresentado na roda de debates objetivando disparar as proposições iniciais. Contudo, por entender que todos os participantes do Seminário constituíam-se como propositores na Roda de Conversação, todos foram convocados a posicionar-se frente aos eixos estruturantes do Seminário, integrando a roda para qualificar o debate. Ainda que os participantes tivessem diferentes implicações nessa roda, a partir desta diferença, esperava-se a corresponsabilização de todos na produção do debate. Convidamos, para cada eixo do Seminário, pesquisadores que estariam comprometidos em disparar as proposições iniciais. Neste contexto, para a função de debatedores, foram convidados consultores da PNH que elaboraram, junto com o coletivo da PNH, textos para discussão da proposição feita para cada tema-eixo. Assim, os temas propostos para o debate expressavam os inúmeros desafios com os quais os trabalhadores e usuários dos serviços de saúde e os pesquisadores desse campo vêm se deparando ao longo desses vinte anos de construção do SUS. Lidar com tais desafios implica, do ponto de vista da PNH, a criação de um modo de fazer afirmado no âmbito dessa política como o método da tríplice inclusão: dos sujeitos, dos coletivos e dos tensionamentos. Os eixos que nortearam o debate expressam a aposta da PNH no reencantamento do SUS. Logo, a idéia do Seminário foi, concomitantemente, expandir os graus de comunicação entre os atores estratégicos no campo da formação. Ressaltamos que, no ano em que comemoramos os vinte anos do SUS, quando enfrentamos desafios como o da crise de financiamento, é importante reunirmos os diferentes setores envolvidos com as políticas públicas brasileiras. O SUS, no cenário contemporâneo, não pode se furtar ao confronto com as forças de privatização da saúde. Sendo assim, este é o momento da mobilização das universidades e dos centros de pesquisa em defesa da Política Pública de Saúde. A humanização das práticas de atenção e gestão do SUS é uma das frentes de fortalecimento e consolidação da democratização das práticas de produção de saúde. Esta foi a provocação: construir um dispositivo-seminário consoante com esta direção ético-política em que o método de inclusão foi reafirmado, na medida em que se buscava incluir o que coloca em questão a humanização do SUS e, também, a própria PNH, como um dos enunciadores de uma política de humanização do SUS. Reafirmamos que é, no tensionamento de posições político-conceituais, que uma política pública pode se fortalecer constituindo-se como uma política do comum. Nesta direção, o método proposto no Seminário mostrou-se potente no sentido de promover a lateralização da comunicação e o tensionamento de posições acerca dos desafios atuais do SUS. O que se buscava não era, simplesmente, o embate de posições antagônicas, mas, sobretudo, alimentar uma agonística que não se sustenta com base em desqualificações de posições contrárias. O que atravessava o processo de discussão eram os desafios do SUS que temos nas mãos e para, com eles, tecermos uma 500

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política do comum, embora em diversos momentos os lugares instituídos buscassem se reafirmar em times e torcidas4 adversárias. O que esse dispositivo-seminário acionou? Um dispositivo se destina a produzir movimentos, deslocando processos naturalizados, colocando em análise as condições de emergência de concepções já reafirmadas no campo da Saúde Pública. A avaliação do Seminário “Humanização do SUS em debate” nos indica que sua eficácia residiu menos nos seus produtos resultantes e muito mais nos processos que disparou: seja na ampliação dos graus de transversalidade, no fortalecimento e ampliação de redes, seja no retrabalho do conceito de humanização em sua potência e risco, indicando uma possível inflexão nos modos de produzir humanização nos serviços saúde. O seminário-dispositivo-intervenção se destinou a fortalecer um SUS que dá certo e, portanto, deseja uma saúde impiedosa que afirma uma vida que varia, não teme a diferença e se faz como obra aberta. O reencantamento do SUS só se faz tecendo uma política do comum que não se efetua por meio de uma homogeneização de conceitos e perspectivas ou da confraternização de posições diferentes, mas se constitui entre o singular e o coletivo. A aposta do Seminário, entre outras já apontadas neste texto, foi a de que a potência das lutas que tece cotidianamente o SUS, desde sua criação, inspirasse as discussões e análises, de modo que a memória dessas lutas fortaleça nossa aposta em um outro humanismo, aquele que se tece entre o comum e o diverso na afirmação da reexistência como obra aberta.

artigos

Lançamos mão aqui da indicação de observadoras-analistas que, ao analisarem os movimentos das discussões no decorrer do seminário, referiramse às alusões a times e torcidas feitas por participantes no momento inicial de apresentação. 4

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARROS, M.E.B.; FONSECA, T.M.G. Gestão escolar. In: CORAZZA, S.M.; AQUINO, J.G. (Orgs.). Abecedário: educação da diferença, 2008. Obra inédita ainda não publicada. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. ______. Conselho Nacional de Saúde. O Brasil falando como quer ser tratado: efetivando o SUS, acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 11., 2000, Brasília. Relatório final... Brasília: Ministério da Saúde, 2000. (Série Histórica do Conselho Nacional de Saúde, 2). CAMPOS, G.W. A humanização é uma estratégia política. In: BARROS, M.E.B.; SANTOS-FILHO, S.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Unijuí, 2007. p.11-5. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. ______. Foucault. São Paulo: Edições 70, 2005. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. In: _____. (Orgs.). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. p.11-114. DESLANDES, S.F. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Cienc. Saude Colet., v.19, n.1, p.7-14, 2004. DURRIVE, L.; SCHWARTZ, Y. (Orgs.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EDUFF, 2007.

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GALLO, P.R.; REIS, A.O.; MAZARINA, I.V. A humanização na saúde como instância libertadora. Saude Soc., v.13, n.3, p.36-43, 2004. HENNINGTON, E.A. Gestão dos processos de trabalho e humanização em saúde: reflexões a partir da ergologia. Rev. Saude Publica, v.42, n.3, p.555-61, 2008. KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas: Papirus, 1999. SCHRAIBER, L. No encontro da técnica com a ética: o exercício de julgar e decidir no cotidiano do trabalho em Medicina. Interface – Comunic., Saúde Educ., v.1, n.1, p.123-40, 1997. SCHWARTZ, Y. A abordagem ergológica do trabalho e sua contribuição para a pesquisa em administração. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO, 2003, Vitória. Comunicação oral... Vitória: UFES, 2003. ______. Disciplina epistêmica, disciplina ergológica: paidéia e politéia. Pro-posições, v.13, n.1, p.126-49, 2002. TEIXEIRA, R.R. Humanização e atenção primária à saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.585-97, 2005.

HECKERT, A.L.C.; PASSOS, E.; BARROS, M.E.B. Un seminario dispositivos la humanización del Sistema Único de Salud (SUS) en debate. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.493-502, 2009. El artículo discute el proceso de construcción del Seminario “Humanización del SUS en Debate” indicando su conexión con los desafíos actuales del SUS y con las proposiciones de la Política Nacional de Humanización (PNH). Presenta los principios y directrices de la Política Nacional de Humanización del SUS (PNH) y su proceso de construcción, discutiendo los diferentes sentidos del término humanización. Se indica por fin la apuesta metodológica del seminario que trató de promover un amplio debate sobre la Humanización del SUS por medio de conversaciones conjuntas que objetivaron la interfaz con profesionales que actúan en la formación de los trabajadores del SUS, responsables por la producción de conocimiento en el área de la salud y por la formación de los académicos en este campo. Palabras clave: Humanización de la atención. Salud. Formación. Sistema Único de Salud. Recebido em 14/01/09. Aprovado em 11/05/09.

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Biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo

Claudia Abbês Baêta Neves1 Altair Massaro2

NEVES, C.A.B.; MASSARO, A. Biopolitics, healthcare production and another humanism. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.503-14, 2009.

The aim of this text was to reflect on the production of a humanization policy for the Brazilian Unified Health System (SUS) and its influences on healthcare management and production practices. For this, we have developed discussions on the concept of humanism, the ways in which capital power strategies function biopolitically and the presentday challenges of constructing public healthcare policies that have the aim of affirming the processes of autonomy, thereby registering another way to produce humanization of care and its management.

Keywords: Humanization of assistance. Biopolitics. Public healthcare policies.

O objetivo deste texto é pensar a produção de uma política de humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) em suas interferências nas práticas de gestão e produção de saúde. Para tanto desenvolvemos uma discussão sobre o conceito de humanismo, os modos de funcionamento biopolítico das estratégias de poder do capital e os desafios da construção de uma política pública de saúde no contemporâneo que tenha como objetivo a afirmação dos processos de autonomia, inscrevendo outro modo de se produzir humanização do cuidado e da gestão.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Biopolítica. Políticas públicas de saúde. 1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense. Campus do Gragoatá, bloco O, 2º andar. Gragoatá - Niterói, RJ, Brasil. 24.210-350 abbes@luma.ind.br 2 Área de Planejamento e Gestão, Secretaria de Saúde de Campinas.

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BIOPOLÍTICA, PRODUÇÃO DE SAÚDE E ...

Inspirados pelos ares do Estado do Espírito Santo, na chamada terra dos botucudos, impregnada pela memória intensiva das batalhas de indígenas, quilombolas e de lutas do Movimento dos Sem Terra, fomos amorosamente convidados a discutir uma Política de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS)3. Tal convite incluía, como oferta primordial aos convidados, a experimentação de um exercício antropofágico de devoração e deglutição do que pretende descolonizar a vida. Antropofagia aqui pensada como movimento que tem sua força disruptiva na produção de intoleráveis. Produção, esta, de outras inscrições perceptivas, sensoriais, éticas, que fazem ‘gritar os problemas’ engendrando possíveis aberturas e alargamentos nos modos hegemônicos de se viver e lidar com a vida, com o trabalho, com a alteridade, com as práticas cotidianas de produção de saúde. Falamos, então, de um exercício antropofágico inspirado no manifesto Oswaldiano de 1928 (Andrade, 1990), cuja proposta é devorar o que é diferente de nós, avaliar o que, nesta diferença, dá potência ao corpo, desviando de todas as catequeses. Convite lançado, convite aceito! Para a discussão do tema Biopolítica, Produção de saúde e um outro Humanismo, traçamos, como campo de problematização, o que é, para nós, um problema insistente: como pensar, contemporaneamente, interferências na produção social da existência em meio ao entrelaçamento imanente dos funcionamentos do capital e do desejo? No campo da saúde podemos modular este problema nas seguintes questões: como produzir interferências nas práticas de produção de saúde que potencializem o vivo em meio à laminação biopolítica do capital nos modos de cuidar e gerir a vida? Estas questões têm sua emergência nas experiências de apoio institucional e processos de formação em saúde que temos realizado junto aos serviços de saúde do SUS e na universidade. E ganham força, primordialmente, quando nos vemos envolvidos, desde 2003, na paradoxal construção de uma Política Nacional de Humanização do SUS, como dimensão pública das políticas de saúde, na Máquina do Estado e de governo. O que nos leva a entender esta construção como paradoxal? Pensamos que uma política de saúde conquista sua dimensão de pública (res-publica) - para todos e qualquer um - quando conectada com os processos coletivos, quando se constrói porosa às multiplicidades sociais em seus movimentos de tensionamentos e torção no fazer/pensar. Os processos coletivos afirmam a indissociabilidade entre pensamento e vida, entre o desejo e a política. Pois, fazer política implica experimentar, como campo problemático, os modos nos quais, em suas formas e intensividades, a integralidade da vida humana se dá. Assim sendo, como manter esta tensão/ torção, que lhe seria constituinte, numa estreita relação com as máquinas de Estado e de governo? Máquina híbrida, exímia produtora de ‘centripetismos’ que, em conexão com outros dispositivos de poder, desliza, estanca e modula os movimentos em seus programas, burocracias e transcendentes (des)regulações. Contudo, nos perguntamos: podemos prescindir da relação com a máquina do Estado/governo no que se refere à construção de políticas sociais, entre elas, uma política universal de saúde para todos e qualquer um? No Brasil, onde sequer pudemos experimentar o Estado de bem-estar social, a relação entre as políticas públicas e o Estado, no seu papel regulamentador, não pode ser banalizada. Nossa história recente mostra a importância do movimento sanitário, em suas articulações com outros movimentos sociais nas décadas de 1960, 1970 e 1980, na indução à reconfiguração do padrão de intervenção estatal brasileiro na saúde e no campo dos direitos humanos. 504

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3 Fazemos aqui referência ao “Seminário Humanização do SUS em Debate”, realizado em Vila Velha, ES (junho 2008), em que debatemos questões trabalhadas neste artigo, mais especificamente no decorrer das discussões efetuadas no Eixo 4 deste seminário: Biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Promovido pelo MS/SAS/PNH em parceria com a UFES.


NEVES, C.A.B.; MASSARO, A.

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As lutas em prol da construção de uma política social universalizante, pautadas na socialização da atenção e num novo pensamento para a saúde, em franca disputa com o ideário e o modelo liberal-privatista (Campos, 2007) emergente, desembocam na construção do SUS, e na sua promulgação na constituinte de 1988. O SUS, como sistema universal de saúde, garantido pelo Estado, se constituiu como valor de cidadania, diferente da concessão por “mérito laboral”. Contudo, sua constituição e implementação acontecem em anos onde o neoliberalismo cresce mundialmente e, no Brasil, vivíamos a crise do modelo desenvolvimentista e do regime militar, com todas as suas consequências administrativas, financeiras e sociais. Acrescido a isto temos a eleição de um novo presidente, Fernando Collor de Mello (1990/92), que assume com um programa de orientação claramente neoliberal. Podemos dizer que o processo de efetivação do SUS como Política de Estado foi, e é, ainda hoje, construído à “contra-pelo da história” (Benjamim,1996, p.225). Nestes vinte anos de SUS percebemos avanços importantes na garantia de acesso e na atenção integral, mas também muitos desafios a enfrentar para a efetivação concreta de seus princípios no cotidiano das práticas de atenção e gestão. É recorrente vermos a produção, pelos aparatos de poder midiáticos, de uma crise permanente da saúde pública. Estes, servis aos ditames neoliberais de um “Estado Mínimo” para as questões sociais, em favor de um “Estado Máximo” para a fruição do capital financeiro globalizado, têm decretado a ineficácia do SUS e do Estado brasileiro na gestão de uma política de saúde para todos e qualquer um, invisibilizando experiências concretas de um “Sus que dá certo”. Pensamos que, talvez, um dos mais importantes e difíceis tensionamentos a problematizar seja: o que, no funcionamento do próprio SUS, se hibridiza com uma “ordem liberal-privatista que se manifesta como resistência permanente ao SUS, estando dentro do SUS e, ao mesmo tempo, dentro do imaginário dominante dessa nossa época de globalização do capitalismo” (Campos, 2007, p.1870). Um dos riscos deste não enfrentamento é a enunciação da configuração do SUS como uma política de saúde ‘para pobres’, com baixa capacidade resolutiva, cuja função seria gerir sobrevidas. Merhy (2002) chama atenção para as proposições da Atenção Gerenciada (AG), que incorporando/ laminando a crítica às práticas de atenção medicocêntricas, se pluga nos processos do trabalho vivo por meio das proposições que deslocam a “microdecisão clínica pela administrativa, impondo nova forma tecnológica de constituir o próprio ato de cuidar e o modo de operar a sua gestão” (Merhy, 2002, p.34). Demonstra como a AG tem sido ‘olhada com carinho’ por governos locais, sobretudo da América Latina, e organizações internacionais que têm grande influência para criar temáticas para os projetos de reforma na saúde. No Brasil este ideário ganha força entre os prestadores de serviço de saúde vinculados aos seguros privados, e vem se difundindo nos veículos de comunicação como solução para a crise da saúde, sua inoperância e seu alto custo para o Estado brasileiro. Agrega-se a isto, hoje, o namoro do governo brasileiro com propostas de transformação dos hospitais públicos em Equipamentos Sociais, que buscariam complementos financeiros no mercado de consumidores individuais e/ou coletivos disponíveis. Na saúde, o campo de atuação privilegiado da lógica de reestruturação produtiva, expressa sob a ótica acumulativa do capital financeiro, tem sido o dos processos de cuidado e sua gestão. Ou seja, o território das tecnologias leves e leves-dura, campo este, paradoxalmente, o dos projetos antihegemônicos dos que lutam pela saúde como bem público e estão comprometidos com uma lógica vitalista e de dignificação do cuidado. Urge serem pautadas e enfrentadas as práticas de desassistência, negligência e descaso com a vida, seja de usuários, seja de trabalhadores de saúde, para que o SUS ganhe os “corações e mentes” (Campos, 2007, p.1873) da população brasileira e reencante os que nele, e por ele, militam já há algumas décadas. É neste campo de tensões, como aposta de ativação da dimensão pública, constituinte do SUS, que se constrói a Política Nacional de Humanização (PNH). Mas como produzir coletivo na Máquina de Estado, estando nela? Como construir ações em saúde implicadas com um outro humanismo, aquele comprometido com a experiência singular de qualquer homem, que se afirma numa autonomia ética na qual a vida vai conquistando as próprias condições da experiência? 505


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No âmbito deste artigo, abordaremos este campo de tensões fazendo uso de um método do pensar que, problematizando as linhas que tecem o contemporâneo, nos possibilite um debate acerca dos desafios de uma política de humanização do SUS em tempos de mercantilização e regulação da vida, desde seus aspectos biológicos, genéticos e afetivos, pelo biopoder.

Um método do pensar: de quando Anchieta devém Tamoio Lancetti, em seu texto-proposição “Notas sobre Humanização e Biopoder”4, faz uma provocação apontando o caráter paradoxal deste encontro, quando faz referência ao Seminário para discussão de uma Política de Humanização do SUS, sediado em terras onde um dos precursores da biopolítica no Brasil, o padre jesuíta José de Anchieta5, criou a sua Escola humanista ‘de amansar corpos’. Acolhendo a provocação e, com ela operando uma inflexão, vale lembrar que, nestas terras, por onde passou o padre José de Anchieta com sua máquina6 paranóica de captura, segregação e homogeneização do que difere do ‘meu igual’7, habitavam outros modos de existência. Modos de vida Tamoios, que se inventaram como Máquinas de Guerra8 para resistir à colonização de suas vidas no humanismo “pacificador e docilizador” do homem branco. Os tamoios (Dannemann, 2008; Alves Jr, 2006) eram os indígenas que, na época da invasão francesa, ocorrida ainda na primeira fase do período colonial brasileiro, organizaram uma coligação de tribos conhecida como Confederação dos Tamoios, aliando-se aos franceses e oferecendo tenaz resistência aos portugueses. O nome desses índios vem do tupi “tamuya” que significa “os velhos, os idosos, os anciãos”, e segundo os historiadores, era usado comumente como referência à aliança formada, em 1560, por três experientes caciques tupinambás e mais algumas aldeias de outras etnias (goitacazes, guaianazes e aimorés), visando combater os perós, nome que eles davam aos portugueses e às tribos que os apoiassem. Ainda que os efeitos visíveis desse encontro tenham sido, nos registros da história colonial brasileira, o extermínio e a tentativa de docilização quase massiva dos índios e de seus modos de vida, é preciso indagar sobre as interferências, os estranhamentos e tensões que se produziram nesse encontro em nada passivo. Que desarranjos os díspares modos de vida, os corpos nus dos índios puderam operar? Se Anchieta escapou de ser comido pelos antropófagos tamoios em 1563, quando foi por eles aprisionado, podemos pensar que, nele, algo da ordem de uma devoração antropofágica pode ter se dado. Anchieta realmente escapou de ser devorado pelos modos de vida índio? Em relatos de historiadores fazem-se alusão às missas por ele realizadas, recheadas de rituais indígenas e estranhas canções, que causavam estranheza a outros jesuítas que por aqui chegavam. Será que podemos afirmar que estas misturas foram somente efeitos, desde sua concepção, de estratégias de dominação? Esta breve digressão histórica objetiva trazer, para nosso campo de problematização, a idéia de que nossas interferências na produção, compreensão e reinvenção da realidade implicam uma torção metodológica que force, no pensamento, a abertura à porosidade de práticas e sentidos que (re)produzem a realidade para além, e aquém, das configurações e interpretações homogêneas nas quais se apresenta e é apresentada. No apêndice sobre Foucault, Paul Veyne (1978, p.181) diz algo que nos ajuda nessa direção: não se trata de “explicar as práticas a partir de uma causa única, mas a partir de todas as práticas vizinhas nas quais se ancoram. Esse método pictórico produz quadros estranhos, onde as relações substituem os objetos”. 506

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4 O texto de Lancetti (2009) ao qual fazemos referência foi produzido para o debate do Eixo 4: Biopolítica, Produção de saúde e um outro Humanismo, que teve, como propositores, Antonio Lancetti e Luis Fuganti, e, como debatedora, Claudia Abbês, no Seminário “A Humanização do SUS em Debate”. 5 Padre jesuíta que veio para o Brasil em 1553, na primeira leva de padres jesuítas da Companhia de Jesus que vieram ao Brasil com o objetivo de catequizar os índios. 6 O conceito de máquina é um conceito central nas obras de Deleuze e Guattari (1976), e utilizado para pensar o funcionamento do socius, seu caráter de produção e engendramento imanente a partir de um modelo ontológico. Ele é utilizado por Guattari, já em 1969, para fazer uma diferenciação da idéia de estrutura. 7 Expressão utilizada para designar o que serve de referência e modelo do homem quinhentista: branco europeu, racional e católico. 8 Máquina de Guerra, conceito construído por Deleuze e Guattari (1996), que faz referência aos movimentos de resistência ao aprisionamento da produção desejante em formas e sentidos instituídos. Funcionamento nômade, que se constitui como fora da Máquina do Estado.


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9 A Genealogia vai se utilizar da história para desmistificar a origem divina, asséptica, racional e/ ou transcendental de saberes, discursos, objetos e práticas, para expor os enfrentamentos de forças dos quais eles são somente seus efeitos. Para Nietzsche, nas palavras de Foucault (1979, p.35): “A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário se obstinar em dissipá-la; ela não pretende demarcar o território único de onde nós viemos, essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam”.

O conceito de Acontecimento, tal como formulado por Nietzsche (1998) ao pensar o tema da Verdade e da História, e, a partir dele, por Foucault (1979) quando traça seu método genealógico9, é também um outro bom intercessor, pois nos possibilita pensar a realidade como contingência histórica. Um emaranhado de díspares acontecimentos-movimentos, que expressam o embate entre forças no qual os fenômenos e as coisas ganham tantos sentidos/valor quanto as forças que deles se apropriam. Os acontecimentos, como experimentações ancoradas no real, trazem a vibração da multiplicidade caótica que é a vida bifurcando-se num mesmo acontecimento. Estes se apresentam em sua dupla face: como formalizações visíveis e como um efeito sem corpo imerso no labirinto do devir, do inesperado e do imprevisível. Em seus movimentos visíveis temos a estratificação dos processos do viver em estados de coisas, laminados em totalizações, objetivações e subjetivações. Em seus efeitos intensivos, o acontecimento é um rastro de linhas e percursos que cruzam “estruturas diversas e conjuntos específicos” operando rachaduras por entre os dispositivos de saber, poder e subjetivação, em meio aos quais se produz história e mundo. Ele não se dá a partir de uma intenção primeira ou como resultado de algo. Diferente disto, ele põe, em cena, “as forças em jogo que emergem no acaso da luta” (Foucault, 1979, p.28). Dele só podemos falar a partir dos agenciamentos e das conexões que produz como forças que dele se apoderam. No acontecimento histórico, anteriormente abordado, podemos pensar que, no encontro entre a ‘máquina de estado jesuítica’ e a ‘máquina de guerra Tamoio’, se produziu, entre outras coisas, a catequização e o extermínio como efeitos visíveis de formalização da realidade, em imanência com a produção de forças “infames” (Foucault, 1992) da história. Ou seja, resistência ativa operando estranhamentos e rearranjos no que quer colonizar o vivo em sua potência nômade de invenção e outramento. Este modo de pensar a história e o que, nela, se configura como ‘realidade em nós’ requer um exercício crítico do presente, e implica “desestabilização e deslocamentos dos lugares de saber e poder que instituímos e nos instituem, interrogando “o que somos” e, mais especificamente, aquilo que já não somos mais e estamos em vias de ser” (Neves, 2002, p.19). A realidade, assim pensada, se descola do primado da conservação e se afirma, também, como princípio de diferenciação, à medida que esta se dá nos movimentos em meio aos quais se faz a produção da vida como forças em luta que, dentre outras coisas, inventa o próprio homem. Sejam estas forças reativas (um investimento desejante numa vida obediente), sejam estas forças ativas (liberdade, criação e vida potente), o que elas colocam em cena é a vida como a melhor maneira possível de efetuar a sua potência; vida fluindo em seus movimentos de expansão e experimentação nas performances do devir. Performances, estas, que afirmam a produção da diferença e possibilitam a história em seu inacabamento produtivo. Nesta direção, é preciso fazer uso de um outro método de análise que invista “nas rachaduras mais do que nas configurações homogêneas com que uma realidade se apresenta” (Barros, 2007, p.199). Para tanto, é preciso experimentar a química do mundo, e, nela/com ela, acompanhar seus jogos, seus rastros de circulação, fazer sua cartografia. A cartografia é um método de estudo-intervenção do socius, proposto por Deleuze e Guattari, que nos convoca a uma experimentação problematizadora no acompanhamento dos processos de composição e decomposição de uma realidade ou matéria, apreendendo-a em seus índices imateriais e movimentos conectivos na produção do socius e dos modos de subjetivação. Neste sentido, 507


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implica menos a apreensão da realidade como matéria de desvelamento ou cognição, e mais a afirmação da realidade em sua potência de abertura de sentidos e invenção. Pois, é no encontro, no plano das forças, na potência de propagação de experiências, que afetamos e somos afetados pelos limites do saber, pelos constrangimentos da matéria, pela emergência de outras percepções e de qualidades inesperadas que expressam a heterogênese do processo em questão e a sua potência para a invenção de novas subjetividades e de novos mundos. Um fazer cartográfico requer um aprendizado da escuta e da atenção às forças do presente que trazem o novo em seu caráter disruptivo e nos possibilitam indagar: que espécie de vida este e/ou aquele agenciamento do desejo promove? É nesta convocação, a criar outros modos de estar nos verbos da vida, que reside a força éticopolítica deste método. Uma torção no fazer/pensar, afirmada na indissociabilidade entre pensamento e vida, entre o desejo e a política. Com estes princípios político-metodológicos é que queremos seguir em nossa tarefa de pensar os desafios que enfrentamos na criação e consolidação de uma política de humanização do SUS. Destacamos aqui dois ‘desafios-bússola’, quais sejam: a construção da PNH em sua tensa relação com a máquina do Estado/governo, e sua consolidação num contexto contemporâneo que se caracteriza por uma nova relação entre o poder e a vida. Deste modo, se faz necessário pensar em que terreno nos movimentamos, ou seja, o que vem marcando nosso contemporâneo do ponto de vista das estratégias biopolíticas de funcionamento do capitalismo na atualidade. Este exercício do pensar, indissociado das práticas de produção de si e de mundos, nos convoca a um mergulho nas estratégias de funcionamento dos poderes em nosso presente: as ciências, o capital, o Estado, a mídia, em seus hibridismos e flexibilizações no capitalismo contemporâneo.

Capitalismo contemporâneo e biopolítica Houve tempo em que acreditamos na possibilidade de estar fora de um determinado regime de produção capitalista e, em oposição a ele, montamos nossas estratégias de combate contra a exploração, contra a sujeição da expressão e da criação de modos de existência. Baseando nossas estratégias de luta num certo marxismo “revolucionário”, buscamos, nele, ideologias que nos garantissem interferências opositivas exteriores ao modo de funcionamento do capital. Vimo-nos, entretanto, tomados por ele do ponto de vista da produção de subjetividade. No chamado socialismo real, o que vimos foi a reprodução mecânica de um mesmo modo de produção ‘de si’ que acontece no modo de produção capitalista. As interferências maio de 1968, a queda do muro de Berlim, as metamorfoses da Guerra Fria, as ditas ‘Guerras justas’ contra o terror, entre outros acontecimentos, nos indicaram a necessidade de uma variação dos modos de combate, primordialmente, em nós. Essas interferências, em seus diferentes modos de expressão, produziram relações de vizinhança entre devires múltiplos que, em suas ressonâncias, afirmaram a coexistência das macro e micropolíticas, mostrando que a produção desejante e a produção social são uma só economia de fluxos. Ou seja, desejo e política se fazem num mesmo plano, um plano de variação imanente, construído nos encontros onde a vida, em sua errância constitutiva, cava saídas em meio à proliferação de intoleráveis. Pois, pensamos os intoleráveis como intensidade que faz gritar o campo problemático e pode servir de indicador para nossas interferências. Neste sentido ele não estaria “dominantemente no que não nos deixam ser, mas nos procedimentos que fazem de nós o que somos” (Rodrigues, 1998, p.43). Como se dá o entrelace dessas produções? Mapeando o contemporâneo, vemos que estamos vivendo um tal embaralhamento de códigos, de situações, de experiências e de existências, que as interferências/resistências ficam mais difíceis de visibilizar ou dizer, mas, sobretudo, de ‘habitar’. É como se estivéssemos num instante resistindo a um determinado movimento de alisamento do socius e, neste mesmo movimento de resistir, nos víssemos em meio a ele. Percebemos, então, que a questão está em outro lugar, ou melhor dizendo, num ‘não-lugar’, que é o plano de variação imanente do desejo onde a vida e as interferências se engendram como signos de movimentos. 508

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Vislumbramos, também, um funcionamento paradoxal da estratégia de produção capitalista que, em suas formas híbridas e globalizantes de dominação biopolítica, converte as Nações e seus habitantes, e mais especificamente a própria vida, em reféns das vicissitudes da bolha especulativa do capital financeiro. “Esta estratégia de produção funciona como modulação operatória que, serpenteando em meio a liberações e controles, é imanente nos processos em meio aos quais estas combinações se efetuam” (Neves, 2004, p.138). Foucault (1999) chamava atenção para a emergência, desde o século XIX, de uma nova tecnologia de poder que funciona tomando posse da vida desde o orgânico ao biológico. Ele a denomina de biopolítica e mostra que ela se exerce tomando a população como alvo de regulamentação, de cuidado. Trata-se, aqui, de um exercício de poder que não se faz de fora dos processos, mas em meio a eles. Podemos perceber este funcionamento ao observarmos o discurso midiático proferido pelas ações antitabagistas e seus efeitos de caça às bruxas contra o tabaco, e mais diretamente contra os fumantes. Biopoder que ganha legitimidade não só do discurso eficiente tecnocrático que se desdobra em programas e ações em saúde (afinal todas as estatísticas apontam para o maior aumento de câncer e infarto em fumantes), mas do público em geral, que vê, no tabagista, o demônio contaminador de seus pulmões (até os franceses têm sido perseguidos nos seus tradicionais cafés). Em princípio, tudo muito coerente, entretanto há uma operação invisível que, se não invalida as ações antitabaco (afinal são fato os males produzidos pelo tabaco), ao menos, nos convoca a mapear outras linhas que tecem e incitam esta caça às bruxas. Uma delas se atualiza na migração de investimentos de capital das indústrias de tabaco (produção de fumo) para as indústrias farmacêuticas (produção de nicotina transdérmica e dos ansiolíticos que minimizam os efeitos do tabaco e ajudam a suportar o período de abstinência deste). Assim como para as de seguridade e dos planos de saúde (diminuição de gastos com tratamento dos males causados pelo cigarro e com indenizações aos parentes das vítimas fatais do vício), que veem, no abandono do hábito de fumar, uma excepcional fonte de economia. Portanto, a quem interessa, de fato, uma política higienista de controle do tabaco? Se há prejuízo à saúde das pessoas que fumam, qual a relação que os profissionais de saúde podem ter com estes usuários no sentido de colocar em análise estas questões, sem que a vida destes se tome por submissão (biopoder)? O biopoder incita, conjuga, modula equilíbrios e médias visando otimizar estados de vida que ele submete. Já não toma mais o corpo para individualizar, docilizar e disciplinar, mas o toma para operar uma individualização que recoloca os corpos nos “processos biológicos de conjunto” (Foucault, 1999, p.297), como fenômenos coletivos que só ganham pertinência no nível das massas. Apesar de funcionar de modo inverso às antigas tecnologias de poder da soberania, - expressas na vontade e no direito do soberano de “fazer morrer e deixar viver” (Foucault, 1999, p.287),- e da disciplina, - que rege a multiplicidade dos homens para torná-los individualidades a serem controladas, treinadas e vigiadas, o biopoder não as apaga. Ele as conjuga, penetrando-as, perpassando-as e modificando-as e, em seu exercício de “fazer viver e deixar morrer” (Foucault, 1999, p.287), toma a vida do homem como ser vivo, como espécie. Negri e Hardt (2001), prolongando a intuição foucaultiana sobre o biopoder, mostram que o poder agora não é mais restritivo, punitivo e não se exerce verticalmente, mas sob a forma de uma rede horizontal esparramada, entrelaçada ao tecido social e à sua heterogeneidade, articulando singularidades étnicas, religiosas, minoritárias, e requerendo, com isto, novas modalidades de controle. Seus mecanismos de monitoramento são, agora, mais difusos, ondulantes, imanentes e incidem sobre as mentes, prescindindo de intermediações institucionais. Eles funcionam por meio de sistemas de comunicação, redes de informação, atividades de enquadramento e, também, de mecanismos de interiorização, que são reativados pelos próprios sujeitos. O que o capital faz funcionar é uma máquina axiomática, combinando os mais diferentes fluxos sociais, desejantes, culturais, afetivos, em prol de sua acumulação e de sua expansão. Seu funcionamento é marcadamente inclusivo, todas as hibridações têm lugar: ‘venha comer Big-Mac com Coca-cola na semana Mac Donald de combate ao câncer... quanto mais você comer, mais estará ajudando a casa Ronald Mac Donald no combate ao câncer infantil’. O capital investe, em especial, nos processos de produção da vida, em suas variações, apresentando-se como seu empreendedor ontológico. Este, como valor que se autovaloriza, precisa 509


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destas variações para expurgar seus limites internos de acumulação. E mais: incita e sustenta até mesmo, como aponta Rolnik (2002, p. 310), modos de subjetivação singulares, mas para serem reproduzidos e reificados como mercadorias de consumo de massa e “identidades prêt-à-porter” (Rolnik, 2002, p.311), separados do extrato intensivo da vida. A perversão do capitalismo está em desconectar a singularização do processo, em dissociar a força de criação do substrato intensivo, ou seja, de separá-la do que o corpo intensivo está pedindo. Desta forma, ele faz desaparecer a distância entre produção e consumo, no qual “o próprio consumidor torna-se matéria prima e o produto de sua maquinação” (Rolnik, 2002, p.310). Contudo, se é um fato que o desejo, como coextensivo ao social, se enleia com o capital, é também um fato, por outro lado, que o capital não recobre toda a incontrolável potência desejante conectada à vida. Os fluxos de conhecimento, de afeto, de desejo e de comunicação são valores indestrutíveis e imprevisíveis em suas conexões. Estes fluxos, ao mesmo tempo em que se tornaram o capital fixo ou a base dos vínculos produtivos imprescindíveis para acumulação do capital, são potencialmente perigosos a esta acumulação, pois portam a potência vigorosa das linhas de escape da resistência, cuja multiplicidade afirma-se num revolucionar-se constante. Ao tirar todos os limites para a subsunção real e total da sociedade capitalista, o capital, ao mesmo tempo, pôs a nu as sinergias da vida e a força coletiva do desejo. Podemos afirmar com Pélbart (2007, p.1) que “ao poder sobre a vida responde a potência da vida, ao biopoder responde a biopotência, mas esse “responde” não significa uma reação, já que o que se vai constatando é que tal potência de vida já estava lá desde o início”. Este breve mapeamento do contemporâneo nos possibilita entender que a produção social da existência se dá numa intrincada relação entre capital e desejo. Estamos imersos neste complexo envolvimento da serpente capital e da serpente desejo, nesta dupla face do incontrolável, apontando que não nos encontramos precisamente ante a dois opostos, a partir dos quais escolheríamos a melhor saída condizente com nosso modo de ser, mas imanentes nestas serpentes, em meio às combinações mais variadas entre esses incontroláveis. Não encontramos, neste sentido, uma entrada boa ou uma saída melhor; o que se apresenta, neste entrelaçamento, é uma indicação de múltiplos deslocamentos, múltiplas saídas e múltiplas entradas sempre pontuais. Nesta direção, nossas práticas de gestão e produção de cuidado em saúde se fazem em meio a este funcionamento paradoxal da biopolítica contemporânea, imanente nos funcionamentos do biopoder que quer colonizar e abstrair a vida e, ao mesmo tempo, imersos na potência constituinte do vivo, em sua biopotência, como produção de liberdade, de reexistência e autonomia. A análise destes funcionamentos nos possibilita indagar, entre outras coisas, sobre os processos de reestruturação produtiva no trabalho em saúde, que têm, hoje, como território em disputa “o campo de ação do trabalho vivo em ato” (Merhy, 2002, p.31), em sua capacidade de imprimir novos arranjos tecnológicos e rumos para os atos produtivos em saúde. Imersos nestes funcionamentos, como pensar interferências na produção da existência que se aliem a outros modos de se estar nos verbos da vida? Como interferir na produção de uma vida digna de ser vivida? Como afirmar um outro humanismo nas práticas de produção de saúde?

A produção de uma política pública de humanização do SUS no fio da navalha Benevides e Passos (2005b, p.391), ao discutirem o processo de construção da Política Nacional de Humanização no Ministério da Saúde, em 2003, sinalizaram que “[...] da política de governo à política pública não há uma passagem fácil e garantida. Construir políticas públicas na máquina do Estado exige todo um trabalho de conexão com as forças do coletivo, com os movimentos sociais, com as práticas concretas no cotidiano dos Serviços de saúde”. Temos experimentado, na construção e consolidação destas políticas, um campo de tensões que se atualizam na coexistência entre práticas que afirmam a construção de modos de gestão e cuidado aliados dos processos de democratização coletivos e, ao mesmo tempo, singulares, no qual a luta pela saúde se inscreve como “valor de uso” (Campos, 2000, p.228) e produção de autonomia, e a produção 510

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de práticas em saúde que reafirmam um funcionamento do biopoder. Funcionamento no qual se hibridizam processos de estatização e privatização que (des)regulamentam, modulam e controlam os modos de vida e do viver, desde seus aspectos biológicos aos da produção de subjetividade. Nossas interferências se fazem em meio a processos que podem expandir a vida extensivamente, por meio: de biotecnologias, da engenharia genética, de políticas antitabaco, de novas drogas e modalidades de intervenção no território e junto à população - (PSF), e, ao mesmo tempo, podem servir para regulá-la e constrangê-la. Estes processos se expressam: na ‘inclusão-exclusiva’ no acesso às tecnologias e inovações terapêuticas, na medicalização de questões sociais, no registro e controle de modos de vida da população na direção de uma nova modalidade de polícia médica. Os objetos (tecnologias), as práticas (programas, propostas) e as intenções (discursos, leis) não são ‘bons ou maus’ ‘em si’, fora das relações e do campo problemático que os engendram e podem produzir. Ou seja, é preciso acompanhá-los em seus exercícios, produção de sentidos e conexões; avaliando ético-politicamente seus índices de abertura às multiplicidades sociais, naquilo que promovem e atualizam como produção de realidade. Neste entendimento, podemos afirmar que o que nos move na construção de uma política de humanização do SUS é o que se passa entre. No encontro entre trabalhadores de saúde e usuários/rede social, entre os trabalhadores de saúde e seus parceiros de trabalho, imersos nas tensões cotidianas e paradoxos das práticas de gerir e de cuidar. Um ‘entre-meio’ afirmado como o plano de engendramento constante da vida, do coletivo, em todos os seus liames, e não como polos de uma relação, ou, mesmo, espacialidades e temporalidades inscritas em dualidades opostas, justapostas ou coincidentes. A vida não se compõe apenas de biologia, fisiologia, natureza e subjetividade como campos que se relacionam guardando suas delimitações, mas num plano de proliferação, de relações de forças. Estas, em suas criações e recriações, traçam, na molecularização de formas, funções e organizações, outras composições que podem reforçar estas formas e organizações, ou recriá-las. É no encontro, neste meio de proliferação, que os corpos expressam sua potência de afetar e serem afetados. É nele que o desejo flui e cria mundos, agenciando modos de expressão e a conectividade da vida em suas múltiplas experimentações. Pois os laços que estabelecemos conosco, com os outros, ou seja, com as multiplicidades sociais, que se atualizam e nos afetam, são catalisadores de acontecimentos, condições de encontros e produção de realidade. Assim, nos vemos distantes e pouco convocados a compor com algumas análises reducionistas que nos cobram uma identificação em polos ou unidades já constituídas, uma humanização programática ‘a la Anchieta’ versus uma política de humanização ‘a la tamoios’. Apostamos, outrossim, numa política de humanização que se faz em meio aos Anchieta devindo Tamoios. Entretanto, atentos à história das práticas que se configuraram como humanização da saúde para nelas e com elas desviar. Este entendimento implica, pelo menos, duas inflexões primordiais, quais sejam: nos sentidos instituídos de humanismo referidos a uma idealização do humano e, correlato a isto, nos modos verticalizados e prescritivos de se fazer uma política pública.

De quando a dimensão pública de uma política afirma sua potência de abertura Os entes - já nos lembrava Marx - não são entidades autônomas, e estão todos imersos em intricadas redes de relações com a natureza, com outros homens e com suas invenções. Ou seja, os homens não produzem diretamente sua própria existência, seja ela material ou imaterial; esta se produz e se reproduz numa tessitura movente de múltiplas conexões, nas quais e com as quais se entrelaçam na produção da vida material. Esta afirmação de Marx é, para nós, preciosa porque nos possibilita pensar a produção social da existência, o humano, em suas afirmações fundamentais; são elas: a não essencialização da existência humana e a potência criativa da atividade humana. Ao rejeitar a essência humana, este filósofo mostrou que não há uma separação entre produção social e produção humana. Ele as toma em sua dimensão de alteridade, pois o ser se objetiva, se exterioriza, nas relações que o confirmam, “um ser que não tem sua natureza fora de si, não é um ser COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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natural” (Marx, 1984, p.15) Este entendimento marca a indissociabilidade natureza - produção - vida genérica como processos de produção e reprodução que se entrelaçam e, em meio aos quais, todos os entes estão imersos em sua tessitura. Falamos, então, de um sentido de humano como produção, uma complexidade que se engendra como obra aberta. Uma humanidade que se constrói na experimentação, ou seja, entre a materialidade das formas humanas e a imaterialidade das afecções inumanas que nos compõem e se atualizam em práticas e modos de estar nos verbos da vida (viver, amar, trabalhar, produzir saúde). Esta compreensão descentra o que se configurou como senso comum nos sentidos instituídos de Humanismo e Humanização, a saber: o Homem-ideal (metro-padrão). Homem, este, abstrato e universal, que serviria de valor moral a partir do qual poderíamos rebater e classificar as práticas e condutas em boas ou más, certas ou erradas. Este descentramento inscreve a produção das práticas de humanização em saúde no campo das relações e, estas, se afirmam na indissociabilidade entre os modos de nos produzirmos sujeitos e os modos de trabalhar. Temos, então, um outro desafio, o da alteração nos modos de fazer, de trabalhar e construir processos de gestão em saúde. No campo da saúde podemos perceber, ainda hoje, que a humanização, embora reivindicada pelos usuários e por muitos trabalhadores, ainda guarda um sentido abstrato, caritativo e religioso; pouco envolvida com processos de produção de redes e mudanças na atenção e na gestão. Isto se expressa nas afirmações de que humanizar é: ser bom, sorrir, ser educado, dar um a mais de si, respeitar o paciente, criar/ter um grupo de humanização no serviço. Estes sentidos, em suas diferentes conexões e ressonâncias, têm produzido práticas de humanização em saúde marcadamente individualizadas, tutelares e “piedosas” (Fuganti, 2008, p.84). Práticas, estas, produtoras de um cuidado moral e/ou prescritivo que, bem ao gosto do biopoder, desconsideram as qualidades nômades da vida. Estas práticas de produção de saúde, sejam voltadas para usuários, sejam voltadas aos trabalhadores/ gestores, degradam e enfraquecem o caráter inventivo do trabalho em sua potência de produção de autonomia e protagonismo na lida cotidiana com a variabilidade constitutiva dos processos da vida e do viver. Quando fazemos coincidir os sentidos de trabalho a emprego e reduzimos seus processos de gestão a procedimentos administrativos, verticalizados e reguladores, jogamos nossa força nos processos de exploração, de submissão e de violência nos quais, no capitalismo, o trabalho vem sendo reduzido. Canguilhem (1990) nos indicou que a vida se afirma pela sua potência de criar normas, normatividade, e não por um assujeitamento a normas. Pensar a saúde como experiência de criação de si e de modos de viver é tomar a vida em seu movimento de produção de normas, e não de assujeitamento a elas. A humanização do SUS em que apostamos se constrói na afirmação da indissociabilidade entre gestão e atenção e na incitação à produção de autonomia e “produção de novos territórios existenciais” (Benevides, Passos, 2005a, p.570). Esta aposta se efetiva em meio aos processos cotidianos de produção de saúde, em seus envolvimentos e tensionamentos com especialismos, verticalidades e armadilhas privatistas pelas quais estamos também “na saúde, sempre em risco de nos ver capturados” (Benevides, Passos, 2005b, p.393). Trata-se, então, de uma política de humanização que reivindica, no seu fazer, o acionamento da nossa potência de normatividade. A diversidade normativa, constituinte do vivo, em meio ao qual experimentamos, nos movimentos coletivos, a criação de nossa humanidade. Pensamos que a potência e o desafio da PNH de se constituir como política pública está exatamente aí, na sustentação de sua capacidade experimental constituinte e no seu caráter de obra aberta.

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NEVES, C.A.B.; MASSARO, A.

artigos

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALVES JR, O. Uma breve história da língua tupi, a língua do tempo que o Brasil era canibal. Santa Catarina, 28 set. 2006. Disponível em: <http://www.staff.unimainz.de/lustig/guarani/lingua_tupi.htm>. Acesso em: 10 nov. 2008. ANDRADE, O. A utopia antropofágica. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Editora Globo, 1990. (Obras Completas de Oswald de Andrade). BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/Ed da UFRGS, 2007. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cad. Saude Publica, v.10, n.3, p.561-71, 2005a. ______.; ______. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005b. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Braziliense, 1996 (Obras Escolhidas, 1). CAMPOS, G.W.S. O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde. Cienc. Saude Colet., v.12, suppl., p.1865-74, 2007. ______. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 1990. DANNEMANN, K.F. Cunhambebe. Biografias, Recanto das Letras, 26 jun. 2008. Disponível em: <http://recantodasletras.uol.com.br/biografias/1052784>. Acesso em: 10 nov. 2008. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976. ______.; ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. v.3. FOUCAULT, M. Aula de 17 de março de 1976. In: ______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.285-315. ______. A vida dos homens infames e a escrita de si. In: ______. O que é um autor. Lisboa: Vega, 1992. p.89-128. ______. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.15-37. FUGANTI, L. Saúde, desejo e pensamento. São Paulo: Hucitec/Linha de Fuga, 2008. LANCETTI, A. Notas sobre humanização e biopoder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.797-9, 2009. MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, K.; ENGELS, F. (Orgs.). A ideologia alemã: 1º capítulo seguido das teses sobre Feuerbach. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Moraes, 1984. p.15. MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. (Saúde em Debate, 145). NEGRI, T.; HARDT, M. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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BIOPOLÍTICA, PRODUÇÃO DE SAÚDE E ...

NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. NEVES, C.A.B. Pensando o contemporâneo no fio da navalha: entrelaces entre desejo e capital. Lugar Comum – Est. Midia, Cult. Democr., n.19-20, p.135-57, 2004. ______. Interferir entre desejo e capital. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2002. PELBART, P.P. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, p.1-5, 2007. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shl>. Acesso em: 10 jul. 2007. RODRIGUES, H.B.C. Quando Clio encontra Psyché: pistas para um (des)caminho formativo. Cad. Transdisciplinares, v.1, n.1, p.33-69, 1998. ROLNIK, S. Despachos no Museu – sabe-se lá o que vai acontecer... In: RAGO, M.; ORLANDI, L.B.L.; VEIGA-NETO, A. (Orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2002. p.207-18. VEYNE, P. Como se escreve a história (1971) e Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora UNB, 1978.

NEVES, C.A.B.; MASSARO, A. Biopolítica, producción de salud y otro humanismo. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.503-14, 2009. El objetivo de este texto es el de pensar la producción de una política de humanización del Sistema Único de Salud brasileño en sus interferencias en las prácticas de gestión y producción de salud. Para ello desarrollamos una discusión sobre el concepto de humanismo, los modos de funcionamiento biopolítico de las estrategias de poder del capital y los desafíos de la construcción de una política pública de salud contemporánea que tenga como objetivo la afirmación de los procesos de autonomía, inscribiendo otro modo de producir la humanización del cuidado y de la gestión.

Palabras clave: Humanización de la atención. Biopolítica. Políticas públicas de salud. Recebido em 19/01/09. Aprovado em 04/05/09.

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artigos

Por uma clínica da expansão da vida*

Leila Domingues Machado1 Maria Cristina Campello Lavrador2

MACHADO, L.D.; LAVRADOR, M.C.C. For a clinic to expand life. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.515-21, 2009.

This is about the polysemy of the notion of suffering as a common and, at the same time, diverse experience among ‘users’, workers, managers and instructors within the field of healthcare. For this, Michel Foucault’s concept of “take care of the self” is invoked as backing for reflections on the fields of problems involving clinical and ethical perspectives. The outlines of a clinic that cuts across policies, criticisms and healthcare are examined, starting from ethical principles.

Keywords: Humanization of assistance. Suffering. Clinic. Ethics. Psycological stress.

Trata da polissemia da noção de sofrimento como experiência comum e ao mesmo tempo diversa entre ‘usuários’, trabalhadores, gestores e formadores no campo da saúde. Para tanto, é convocado o conceito de “cuidado de si” de Michel Foucault, como aporte para reflexões em torno dos campos problemáticos que envolvem a perspectiva clínica e ética. Interrogam-se os contornos de uma clínica que transversaliza a política, a crítica e a saúde, a partir de princípios éticos.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Sofrimento. Clínica. Ética. Estresse psicológico.

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* Elaborado com base em dados provenientes da pesquisa “Modos de vida contemporâneos: produção de adoecimento e consumo de psicotrópicos”, financiada pela FAPERJ. 1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Av. Fernando Ferrari, nº 514, Campus Universitário Alaor Queiroz de Araújo, Goiabeiras, Vitória, ES, Brasil. 29.075-910 leiladomingues@ uol.com.br 2 Departamento de Psicologia, UFES.

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POR UMA CLÍNICA DA EXPANSÃO DA VIDA

Enlaces e desenlaces entre cuidado e sofrimento Ao percorrermos as falas dos trabalhadores envolvidos na Política Nacional de Humanização, uma palavra ecoa: sofrimento. Sofrimento presente na população que recorre ao Sistema Único de Saúde (SUS). Sofrimento presente nos trabalhadores que acolhem o sofrimento. Sofrimento de quem não é atendido, de quem é atendido, de quem atende. Sofrimento de quem tem a expectativa de usufruir de um bom serviço. Sofrimento de quem anseia por prestar um bom serviço. Todos sofrem: usuários, trabalhadores, gestores, formadores. O sofrimento é uma experiência em comum. Mas qual o seu sentido? O sofrimento pode ser experimentado como algo que nos acomete. Sob essa perspectiva, sofrer significa ser vítima de algo, portanto, passivo frente a algo. Assim, o sofrimento desencadeia outros verbos: suportar, tolerar, consentir, padecer, permitir, aguentar, enfim, sujeitar-se, sacrificar-se. Alguma coisa vinda do exterior nos toma de assalto e, porque é contra a nossa vontade, nos faz sofrer. O que pode significar que algo aconteceu e/ou continua acontecendo contra a nossa vontade. Por isso sofrer também tem o sentido de reprimir-se, sofrear-se. É interessante observar que a percepção de que algo exterior nos acomete pode tanto envolver um binarismo entre sujeito e objeto, entre eu e o mundo, eu e os outros, bem como, entre eu e uma parte de mim, eu e meu corpo. A perspectiva de exterioridade produz o sofrimento como experiência de passividade, por isso sofrer se aproxima de vitimar-se. A compreensão da experiência de sofrimento fora do binarismo entre exterior e interior, nos implica, nos conecta ao acontecimento que dispara o sofrimento nos retirando de uma posição passiva frente ao mesmo. Neste sentido, o sofrimento pode ser experimentado como uma “sensação de passagem”. Propomos essa denominação com o intuito de introduzirmos algumas pistas para uma outra compreensão acerca da experiência de sofrimento. Consideramos que o sofrimento pode ser experimentado como uma “sensação de passagem” a partir da perspectiva de que, não havendo uma polaridade entre exterior e interior, os eventos que nos fazem sofrer são disparadores de desestabilizações. E, se sofremos, é exatamente porque o que acontece nos diz respeito e não nos é indiferente. O sofrimento ressoa um desassossego, um incômodo, uma mudança ou a necessidade da mesma. O sofrimento é da ordem do desejo. Não se trata de carência e nem de excesso. Sofre-se porque se vive e viver nos convoca à ampliação das formas postas ao nos defrontarmos com imprevisibilidades nas nossas relações no mundo. Sofre-se porque se experimenta uma perturbação que nos convoca à atividade. Contudo essa atividade diz respeito a um movimento que não distingue andar ou estar parado. Pode-se permanecer sentado e, entretanto, estar em meio a um turbilhão de processos em curso. Sofrer é experimentar algo diferente que perturba, que incomoda porque convoca uma ressignificação, uma reconfiguração relacional, que nos faz sair de um “ensimesmamento”, de uma clausura das verdades postas. Caso o sofrimento envolva algum momento de passividade, essa experiência será mais relativa à de ser arrancado desse lugar, ou melhor, experimentar uma “sensação de passagem” que nos lança em outras direções, que nos move em outros sentidos. A passagem seria da passividade para a atividade. Seria a experiência de uma passagem entre ‘estar alheio de si’ em direção a ‘tomar posse de si’. Sofrer seria a experiência de uma provocação: como temos habitado esse verbo? Uma “sensação de passagem” que nos incita a inventar um cuidado de si, pois não se trata de um culto ao sofrimento ou de ter o sofrimento como meta, ou de estagnar o processo da vida no verbo sofrer. O objetivo do “cuidador” deveria ser menos cuidar e mais incitar o desejo de cuidado, ou melhor, provocar no outro o desejo de cuidar de si. Todavia, é fundamental que se compreenda esse cuidado de si não como um voltar-se para uma interioridade ou como uma valorização das idiossincrasias ou como um culto ao ego ou à solidão. O “cuidado de si”, como nos propõe Foucault (2004), com base no estudo da cultura helenística e romana, implica um exercício ético. O cuidado de si é uma prática social, é uma intensificação das relações sociais. Isto porque o cuidado de si implica o desejo de uma transformação contínua destinada a uma avaliação do que seria melhor ser feito e/ou dito em função das peculiaridades de cada circunstância. Uma “boa ação” não está dada antecipadamente, esta não 516

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pode se confundir com uma “boa intenção”. É preciso haver uma distância entre a intenção e a ação que permita uma avaliação, que nos alerte quanto às vaidades, as ambições, as paixões pelo poder. Esse exercício ético envolve uma política, uma política em si. Dito de outra forma, a política de humanização não deveria ser experimentada como uma política estatal, exterior e/ou acima de cada um de nós, mas como uma política de governamentalidade ética, como governo de si (Foucault, 2004). Acreditamos ser este um desafio cotidiano que a política de humanização enfrenta. É nesse sentido que a prática do cuidar precisa constituir práticas de cuidado de si, onde ‘usuários’ e trabalhadores possam tomar ‘posse da vida’, ou melhor, possam inventar possibilidades de vida que escapem ao padecimento, à sujeição, ao vitimar-se. Conseguimos colocar em funcionamento práticas que resistam aos binarismos: “eu tenho um saber”, “você não tem um saber”, “eu sou cuidador”, “você é cuidado”? Por que sempre se atualizam, sob novas roupagens, as concepções de sujeito e objeto, de ativo e passivo? Por que o cuidado é percebido como unilateral? A clínica ampliada não é pensada como encontro, como um dispositivo que se reinventa nas relações? Ou o especialista, “cuidador” que detém o saber e a verdade sobre o outro, opera na prática clínica como “conscientizador” de um sujeito-objeto passivo e ignorante de si que precisa ser conduzido? O “cuidador” percorre a prática clínica sem se “sujar”, sem que o contato tenha lhe trazido questões, tenha lhe permitido sair de um encontro pensando algo diferentemente do que pensava antes? É possível sair de um encontro sem ter sido tocado por nada? Talvez. Caso não tenha havido encontro algum, pois encontro envolve confluência, tensão, contrariedades, diferenças. Caso não haja porosidade. Caso permaneçamos impermeáveis ao outro. Caso estejamos reproduzindo toda uma série de dogmatismos que reatualizam antigos pressupostos positivistas que dividem o conhecimento entre senso comum e ciência. O “cuidador” seria o arauto da ciência enquanto o usuário seria portador da doença e da ignorância do senso comum. As práticas discursivas e não-discursivas (Foucault, 1987) do cuidar podem funcionar como práticas morais, moralizadoras, moralizantes. Máquinas de julgamento, de produção de culpa pela doença ou pela não manutenção da saúde, enfim, máquinas produtoras da saúde como um dever. A moralização do cuidado se fundamenta na distinção entre verdade e erro, que não inclui as nuanças da errância, das diferenças, da escuta da alteridade. Entretanto, as formas de cuidar não estão dadas, ao contrário, precisam ser inventadas. Cuidar é um verbo que precisa ser encarnado em meio aos desassossegos que engendra.

Campos problemáticos que perpassam a perspectiva clínica A construção de uma clínica ampliada tem produzido a saúde como mais um produto a ser consumido? A saúde precisa se diferenciar dos serviços de saúde. A saúde se amplia, cria sempre novas normatividades. O serviço se transforma, produz redes, reconfigura territórios, mas nunca poderá conter a saúde. A saúde ou, como preferimos nomear, a potência de vida, ultrapassa as redes de serviços. Não porque haja uma carência na eficácia dos mesmos, e sim porque os serviços nunca poderão conter a saúde, a menos que o objetivo seja o da produção de adoecimentos. Nesse sentido, observa-se certa confusão em curso. Com o intuito de ampliar a clínica, de arrancá-la do modelo estritamente ambulatorial, e de ampliar os cuidados com a saúde, as Unidades Básicas de Saúde (UBS), por exemplo, ofertam oficinas, atividades físicas etc. Ora, as redes de saúde não deveriam ser entendidas ou reduzidas à oferta de atividades diferenciadas numa mesma unidade. Ao contrário, as redes precisam envolver setores e atores diferenciados da comunidade e a possibilidade de circulação e de troca entre estes setores. Assim, não se trata de fazer funcionar tudo em um mesmo espaço e nem, tampouco, de controlar a circulação do usuário pelos diferentes espaços. A ampliação precisa estar referida à invenção de outras possibilidades de vida, de outros modos de existência que possam constituir uma “comunidade por vir” (Agamben, 1993, p.11), e não a uma rede ampliada de tutela e/ ou uma pseudo-rede que funcione por encaminhamentos burocráticos para outros recursos/serviços, como se estivesse sendo passada uma ‘batata quente’ para o outro. Os encaminhamentos precisam ser conversados, compartilhados de modo que se produza uma corresponsabilidade nesse processo. Coloca-se em funcionamento um compromisso ético com o outro, com os ‘usuários’ que chegam até nós e, também, com os trabalhadores de outros serviços. Esse compromisso ético faz ressoar COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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algumas questões: O que nos move, o que nos faz ver e não ver, ouvir e não ouvir, falar isso ou aquilo, calar? Quais forças estão em jogo? Quais práticas estão sendo postas em ação? Como inventar comuns? Como tecer redes? Pode-se dizer que a rede é constituída e constituinte de entrelaçamentos os mais variados e plurais, essa é a sua força/potência. Faz parte de sua natureza se multiplicar ilimitadamente por meio de conexões e articulações com os mais variados materiais de expressão. Desse modo, pode-se operá-la dentro de um mesmo serviço de saúde - equipes sintonizadas que vivenciam entre si relações de confiança e de cumplicidade -; entre os serviços de saúde - encaminhamentos compartilhados -; com serviços/políticas de outros setores - intersetorialidade -, desconstruindo as posturas em que cada especialismo fala do seu ‘lugar’ de saber; construindo políticas transversais aos vários saberes - transetorialidade -; e, sobretudo, com a “constituição do comum” (Negri, Hardt, 2005, p.256; Negri, 1998, p.41), com a “comunidade dos sem comunidade” (Peter, 2003, p.145), com a “comunidade por vir” (Agamben, 1993, p.11). Portanto, abertura a uma potência de vida que se faz na invenção de alianças, de intercessores, num desejo de diferença que reparte diversamente o campo das intolerâncias e do intolerável. Dito de outra forma, muitas vezes, acolhe-se o intolerável, sob a forma de naturalizações imutáveis, e aciona-se a intolerância às diferenças que se processam, ao que difere de mim mesmo, ao que não replica minhas crenças, minhas idéias, meu ego. O intolerável pode ser pensado como: [...] aquilo que captura nossa potência de exploração dos possíveis, fazendo dela um ponto de aplicação de estratégias e táticas operadas pelo capital, desde suas esferas produtivas até sua exacerbação financeira, de orquestração midiática de opiniões e procedimentos artísticos, e de alinhamento mercantil dos desejos. (Orlandi, 2000, p.28)3

Desse modo, a produção da saúde não pode ser limitada aos serviços de saúde e aos seus trabalhadores. É preciso que o ‘usuário’ tome posse de si, do seu corpo/alma, do seu cuidado, enfim, que ele crie e amplie suas redes de saúde, que ele ative potências de vida que incluam os serviços, mas não se restrinjam aos mesmos. Ampliar a clínica envolve colocar em análise: as nossas posturas, as nossas concepções, os nossos preconceitos, os nossos endurecimentos, as nossas permeáveis impermeabilidades ao que difere, ao que é diferente de nós mesmos. Avaliando, a cada momento, ‘como’ e com ‘o que’ e ‘quem’ estamos compondo e o que estamos produzindo. Experimentamos a invenção do que se pode chamar de uma clínicainstitucional (Lavrador, 2006), ou melhor, a construção de uma clínica voltada para a análise das instituições que nos atravessam, que perpassam nossos modos de vida. Quando as instituições se institucionalizam elas se fixam em instituídos que são percebidos como formas naturais, universais, a-históricas, eternas. Mas as instituições também envolvem processos instituintes, históricos e provisórios. Ampliar a clínica envolve afirmar que ela é constituída pela tensão entre forças que compõem os processos de produção de subjetividade para além do sujeito constituído - instituição sujeito forjada na e pela história. Trata-se de uma clínica que coloca em análise a própria instituição clínica (Passos, Benevides, 2005, p.89). Uma clínica que transversaliza a política, a crítica e a saúde, uma clínica que se tece nessas tensões, intensificando e fazendo vibrar esse campo problemático, afirmando a potência da clínica. Desta forma, é preciso se situar na fronteira dessa 518

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3 ORLANDI, L.B. Anotações de aula, 2000.


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artigos

transversalidade. Entendendo, por clínica, um processo de abertura às diferenças intensivas que pulsam em nós, um lidar com a tensão entre as formas postas e os estados intensivos que se insinuam, um desmanchamento das figuras atuais e a possibilidade de construção de outros modos de existência. A clínica [é] indissociável da crítica, enquanto reativação da força que problematiza e transforma a realidade, possibilidade aberta de invenção de devires, contra o poder dos fantasmas que mantém a subjetividade sob a égide exclusiva de um jogo estabelecido qualquer e suas regras correspondentes, regida, portanto, fundamentalmente por um princípio moral. (Rolnik, 2000, p.9)

Talvez pensar em um devir clínica que desestabilize lugares e formas padronizadas. Pensar essa mistura que pode engendrar outro olhar, outra perspectiva, outra sensibilidade que excede a nossa consciência, que nos desloca de nós mesmos. Essa perspectiva implica que nos libertemos dos modelos abstratos, totalitários e transcendentes para nos defrontarmos com as turbulências que o viver nos traz. Para isso, é necessária a convocação de uma escuta aguçada e leve, pois, “trata-se de libertar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto” (Deleuze, Guattari, 1992, p.222). Enfim, trata-se de um processo de criação de si com suas paradas paralisantes e suas retomadas de potência na vida. Criação de si como “certa relação a si; essa não é simplesmente ‘consciência de si’, mas constituição de si” (Foucault, 1985, p.28) que implica um exercício ético no qual o homem “problematiza o que ele é, e o mundo no qual ele vive” (p.14). Uma experiência de criação de si implicada com uma postura ética-estética-política, que tenha, como princípio, uma potência de vida em seus modos indissociáveis de resistir/afirmar e de criar.

Campos problemáticos que perpassam a perspectiva ética Corre-se sempre o risco de cair nas regras de boas condutas, nas categorizações/classificações, nos julgamentos morais, nos enunciados imperativos, nas respostas/soluções apressadas. Mas, como fazer? O ‘como’ não precisa sempre ser reinventado, dado que estamos tratando de planos de imanência, de singularidades que se engendram nos encontros, no relacional, que não é um nem outro, que é alteridade, que é entre, que desfaz o espaço identitário de um e de outro? Esse é um tema delicado, porque tema de ‘uma vida’ e suas multiplicidades. Coloca-se, em pauta, uma política em si, uma constituição de si, um fazer sempre diverso, sempre polifônico, mas pautado por princípios ético-políticos que o delineam, que provocam análises sempre a serem refeitas com base no que está posto em funcionamento. Pode-se dizer que nada é bom ou mau em si mesmo; tudo precisa ser avaliado de acordo com as circunstâncias, com as situações, tendo, como critério, valores que não amesquinhem e desprezem a vida. Precisamos, ao mesmo tempo, de prudência e de ousadia para evitar os riscos de se grudar na ignorância dos valores morais, classificatórios, excludentes e mortificantes. Pois, quando não se ‘compreende’, moraliza-se e destila-se o imperativo de um ‘dever’ constituído pela “vontade de verdade”, ou seja, o desejo de dominar, subjugar, humilhar, desqualificar o outro, como se fôssemos donos de uma verdade absoluta sobre tudo e todos. Com isso, afirma-se uma perspectiva ética que difere de uma entidade abstrata e, ao contrário, entrelaça-se com eventos concretos, configurando-se em práticas, em exercícios, em experimentações que se dão nos encontros, nas relações, nas conversações entre os humanos. A postura ética não é garantida por meio de regras prescritivas, categóricas, absolutas, porque ela é processo. Diferentemente, a moral comporta um conjunto de regras prescritivas de conduta. Desta forma, esse conjunto de regras coloca, em funcionamento, a pretensão de gerenciar, bem como controlar, tanto ações quanto intenções, a partir de prescrições pautadas em supostas verdades universais. Trata-se de um conjunto de regras que se remete ao absoluto, ao transcendente, constituindo-se como entidades abstratas capazes, portanto, de estabelecer planos de ação e julgamentos desconectados do jogo de forças que envolve os eventos, as relações, a vida. Nesse sentido, os eventos, as relações, a vida, o mundo são desconectados de qualquer singularidade ao receberem o estatuto de universalidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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POR UMA CLÍNICA DA EXPANSÃO DA VIDA

Quando é dada uma maior importância ao ‘código moral’, podemos cegamente nos submeter e deixar que essas prescrições morais nos guiem, sem refletirmos sobre elas, e aí estamos no campo transcendente (separado do mundo) dos supostos valores superiores. Mas também podemos nos relacionar com a moral retirando-a do campo transcendente, por meio de “regras facultativas” de constituição de si (Foucault, 1985, p.28). O que significa que podemos concordar, transgredir, recusar ou criar outras regras morais em consonância com os jogos de forças que envolvem cada circunstância. Nesse caso, retira-se das regras seu aspecto universal, abstrato, transcendente e absoluto, conferindolhes nuanças que passam a reverberar o mundo e suas multiplicidades, fazendo-as dobrar-se, flexibilizar-se e recompor-se em seus contornos. Em lugar da rigidez e da intolerância, em lugar dos julgamentos, em lugar da indiferença ao que difere, coloca-se uma aposta na potência de vida que pode ser posta em funcionamento. Aproximamos-nos da ética e, ao nos aproximarmos da mesma, necessariamente, nos colocamos em análise. Para que escapemos das intolerâncias, da rigidez, dos julgamentos, precisamos nos despedir das culpabilizações e dos ressentimentos. A perspectiva ética implica um “cuidado de si”, que se faz sobre si e sobre nossas relações. Esse “cuidado” é ativado pelo sensível, pelos afetos de intensidades que nos percorrem. Assim, podemos operar no plano de imanência, privilegiando esse mundo, essa vida, ‘avaliando’, a cada momento, as composições de afetos que aumentam a potência de agir/sentir e as decomposições de afetos que restringem essa potência. A potência de agir ou força de existir não é regida ou movida por uma instância ou causa externa, não pressupõe apropriações de nenhuma espécie, nem de si e nem do outro. “O homem, o mais potente dos modos finitos, é livre quando entra na posse da sua potência de agir” (Deleuze, 2002, p.90). Aproximamo-nos dessa potência quando agimos/pensamos desinteressadamente, sem esperarmos recompensas, vantagens, elogios e reconhecimentos. Não se trata de agir em consonância com regras e valores que nos entristecem, nos envenenam, nos envergonham, e que pretensamente se justificam em nome do ‘deve e tem que ser assim’, ‘essa é a única solução possível’, ‘fomos obrigados a agir desse jeito’. Muitas vezes, escondemos-nos por trás dessas supostas ‘inevitabilidades’ e ‘impossibilidades’, e nos separamos do que temos de mais caro: a liberdade de pensar/agir. Pensar é uma potência de resistir à morte subjetiva, simbólica e física; pensar é inventar novos modos de nos relacionarmos, novas práticas cotidianas mais solidárias e menos ressentidas. “Em lugar de um conhecimento que se opõe à vida, um pensamento que afirme a vida. [...] A vida fazendo algo ativo, o pensamento fazendo da vida algo afirmativo. [...] Pensar significaria inventar novas possibilidades de vida” (Deleuze, 1976, p.83). Essa potência de vida pode ser afirmada, sentida e vivida, como uma potência de resistência que se afirma na contramão à desqualificação da vida, que se expressa nos ressentimentos, nos julgamentos morais, nas indiferenças, nos ódios e nas vinganças. Quem de nós não gosta de ser tratado com alegria, respeito, delicadeza e afeto? Quem de nós não gosta de ser cuidado, de ter amigos e amores? Quem de nós não gosta de ser ouvido sem os a priori dos julgamentos, dos endurecimentos, das intolerâncias, das indiferenças? As relações comportam um vaivém, são vias de mão dupla. Nossa alegria, nossa felicidade, nossa paz dependem - porque estão entrelaçadas, porque se processam em rede -, da alegria, da felicidade e da paz do outro. Ou melhor, trata-se de uma composição de afetos. Por isso, pensar a ética, intervir num plano ético, é pensar/ intervir, antes de tudo, sobre nós mesmos, na vida, no viver. Potência política de expansão das redes sociais por meio do exercício ético do “cuidado de si” em sua força estética de invenção de outras possibilidades de vida, de ampliação das normatividades, de transmutação de estados de coisa. Enfim, resistência contínua a todos os modos naturalizados de sobrevida/sobrevivência.

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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ______. A imagem-tempo: cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 1990. ______. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. FOUCAULT, M. Hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1987. ______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1985. LAVRADOR, M.C.C. Atenção psicossocial em saúde mental: uma perspectiva clínicoinstitucional. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE PRÁTICAS PSICOLÓGICAS EM INSTITUIÇÃO: PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS, 6., 2006, Vitória. Anais ... Vitória, 2006. p.44-8. MACHADO, L.D.; LAVRADOR, M.C.C. Subjetividade e loucura: saberes e fazeres em processo. Vivência (Natal), n.32, p.79-95, 2007. NEGRI, A. El exílio. Barcelona: El Viejo Topo, 1998. NEGRI, A.; HARDT, M. Multidão. São Paulo: Record, 2005. PASSOS, E.; BENEVIDES, R.B. Passagens da clínica. In: MACIEL, A.; KUPERMANN, D.; TEDESCO, S. (Orgs.). Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. p.89-100. PELBART, P.P. Esquizocenia. In: ______. (Org.). Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. p.145-50. ROLNIK, S. Os mapas movediços de Öyvind Fahlström. 2000. p.1-23. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm>. Acesso em: 20 jun. 2008.

MACHADO, L.D.; LAVRADOR, M.C.C. Por una clínica de expansión de la vida. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.515-21, 2009. Trata de la polisemia de la noción de sufrimiento como experiencia común y, al mismo tiempo, diversa entre “usuarios”, trabajadores, gestores y formadores en el campo de la salud. Para ello se convoca el concepto de “cuidado de si mismo” de Michel Foucault como cooperación para reflexiones en todos los campos problemáticos que comprenden la perspectiva clínica y ética. Se interrogan los contornos de una clínica que atraviesa política, crítica y salud a partir de principios éticos.

Palabras clave: Humanización de la atención. Sufrimiento. Clínica. Ética. Estrés psicológico. Recebido em 13/02/09. Aprovado em 14/05/09.

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Novos possíveis para a militância no campo da Saúde: a afirmação de desvios nos encontros entre trabalhadores, gestores e usuários do SUS

Gustavo Nunes de Oliveira1 Ricardo Sparapan Pena2 Simone Cristina de Amorim3 Sergio Resende Carvalho4 Bruno Mariani de Souza Azevedo5 Anderson Luiz Barbosa Martins6 Maíra Barros Guerra7

OLIVEIRA, G.N. et al. New possibilities for militancy in the field of healthcare: affirmation of deviations in encounters among SUS workers, managers and users. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.523-9, 2009. The authors make comments about militancy in the field of healthcare, especially for defending the Brazilian Unified Health System (SUS) as a universal public policy. After indicating some strategies for such militancy, the text discusses centralism and the identifying nature of these practices. It highlights and questions four forms of centralism: the “common good” in its representations; procedures as offers of health technologies; users and notions about their needs/demands; and careless protection of life. As an alternative, the authors propose a new form of militancy within SUS, as intensive practice produced at the meeting point within the dimension of the relationship between managers, workers and users.

Os autores tecem considerações sobre a militância no campo da saúde, em especial na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto uma política pública universal. Após apontar algumas estratégias desta militância, o texto discute o centralismo e o caráter identitário dessas práticas. Destacam e problematizam quatro formas de centralismo: do “bem comum” em suas representações; o procedimento como oferta de tecnologias de saúde; do usuário e as concepções sobre suas necessidades/demandas; e da proteção inadvertida da vida. Propõem, como alternativa, uma nova militância no SUS, como prática intensiva e produzida no encontro, na dimensão relacional, entre gestores, trabalhadores e usuários.

Keywords: Health system. Healthcare policy. Public health. Ethics. Production of subjectivity.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Política de saúde. Saúde pública. Ética. Produção de subjetividade.

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1 Doutorando, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (DMPS/FCM/ Unicamp). Rua Américo Ferreira de Camargo Filho, n.68, Colinas do Ermitage, Souzas, Campinas, SP, Brasil. 13.106-134 oliveiragn@gmail.com 2,6 Doutorandos, DMPS/ FCM/Unicamp. 3 Mestranda, Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. 4,5,7 DMPS/FCM/Unicamp.

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NOVOS POSSÍVEIS PARA A MILITÂNCIA ...

Introdução Quando evocamos a imagem de um militante, quem facilmente nos vem ao pensamento é alguém de fala firme e disposto ao sacrifício por uma causa. Frequentemente visto em manifestações, em cima de um caixote, aos berros, ou em um palanque empunhando um megafone, ou mesmo distribuindo panfletos com dizeres que se destinem a subverter algo. Algo este que encontra em sua voz um gritar que capta as supersonias abafadas das gargantas de multidões que, sem saber onde gritar, “engolem”, no cotidiano, as dores resignadas de tudo aquilo que, em nome da sobrevivência, foi-lhes enfiado goela abaixo. Este militante é dos poucos que reconhece uma dor que põe em risco o que estava ali vivo, embora frágil e anestesiado. Vemos que, frequentemente, é posto em cena um militante/mártir disposto até mesmo a morrer em nome de seus ideais. Para este militante, a bandeira que carrega confunde-se com o que ele acredita ser e, muitas vezes, não vê que a bandeira que tanto ostenta acabou sendo, aos poucos, ‘transplantada’ para a sua córnea. Então, para onde ele mira o olhar, só vê a bandeira e, por isso, deixa de enxergar o que se põe diante de seus olhos. Nesta militância há um finalismo totalitário, no qual o ideal em cisão com a prática é, frequentemente, posto como um fim a que se pretende chegar. A existência deste fim, alardeada no discurso do militante de sua bandeira/identidade, choca-se contra a bandeira de outro militante, que em uma guerrilha discursiva se põe a atacar o outro, combater o outro, tentando queimar a outra bandeira; necessita que o outro seja o mau para poder sentir-se o bom, o elevado, o justo (Nietzsche, 1998). Muitas vezes, os que não estão no foco do poder instituído acusam os que estão; por sua vez, os que estão acusam aqueles de não fazerem nada. E vai por aí a sucessão de acusações: eles, os que detêm o poder; eles, os teóricos; eles, os que só fazem práticas sem consistência teórica; eles, os que não têm cuidado com a vida; eles, os que não se importam; eles, os ativistas; eles, os que não refletem sobre o que fazem; eles, eles, eles... Acusação como estratégia para mostrar o nosso serviço, a nossa bandeira, a nossa militância/identidade como sendo a única legítima, modelo que deveria ser sempre copiado, porque se todos fossem como nós, aí sim tudo seria bom. Porque nós, sim, somos os revolucionários, nós, sim, fazemos um bom trabalho; a revolução deles não nos serve. E aí os encontros são impossibilitados, perdem sua potência transformadora, pois ora, o que vem deles é por nós negado. Essa “imagem” continua funcionando como uma das referências do que seja o agir militante. Exprime-se aqui um militante que pleiteia uma hegemonia na qual as relações que ocorrem são, antes de tudo, relações de dominação, uma vez que a validade do discurso do outro não é reconhecida. Este militante cobra do outro conscientizar-se de quão exemplar e bom é o mundo que ele propõe. Conscientizar, aqui, pode ser reduzido a aderir a um (mundo) “proposto”. Deste modo, esta militância se origina a partir de uma identidade afirmadora de certa forma de viver e de estar no mundo, baseando-se em representações sobre uma - ou qualquer - causa, constituindo-se como centralidade inquestionável, estanque. A reprodução dessas marcas ideológicas aglutinadas por esta centralidade modela e produz subjetividade, criando substratos para territórios nos quais o militante identitário encontra modos de existência baseados na exclusão da diferença. O centralismo constitui-se, portanto, no conjunto de estratégias de poder que são, ao mesmo tempo, expressão e reprodução da militância identitária, a qual, por sua vez, aciona mecanismos de reprodução dos centralismos existentes, assim como possibilita a criação de novos centralismos. As formas autoritárias de militância seguem presentes, convivendo, é bem verdade, com outros modos de agir mais dialógicos, conforme nos mostra a história recente de nosso país, com os exemplos de construção cotidiana, firme e paciente de novas práticas que se aceleram a partir de meados da década de 1970. Esta militância, porém, também nasce fundada nas mesmas raízes da anterior, qual seja a afirmação de um indivíduo, de um sujeito identitário que se coloca enquanto “o Homem” (Benevides, Passos, 2005, p.568). Todavia, muitas vezes, busca estratégias para se desviar das práticas autoritárias e afirmar uma resistência à própria base identitária que a origina. No campo da saúde, os centralismos e estas modelações identitárias se manifestam de distintas maneiras. Dentre elas destacamos: 1 - o “bem comum” em suas representações; 2 - o procedimento como oferta de tecnologias de saúde; 3 - o usuário e as concepções sobre suas necessidades/demandas, 524

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e 4 - a proteção inadvertida da vida. Temas que não são estranhos aos atuais debates a respeito dos desafios a uma Política Nacional de Humanização no SUS (PNH), conforme pudemos constatar no seminário “A humanização do SUS em debate”, ocorrido em Vila Velha, ES, entre os dias 25 e 26 de junho de 2008. Essa contextualização se faz necessária para reafirmar nossa participação neste debate, organizado pela PNH, enquanto um convite à pluralidade de interlocuções. Instigados por esse convite, partiremos da crítica aos centralismos aqui destacados, para propor uma outra militância no SUS.

A problematização dos centralismos: apostando em desvios para a construção de uma nova militância no SUS Neste tópico levantaremos considerações sobre o que apontamos como centralismos produzidos e produtores da militância identitária. Na defesa do referencial ético-político do SUS, a questão não se trata de qual é a melhor militância. Faz-se necessário problematizar a construção identitária na militância no SUS, trazer visibilidade às estratégias inscritas nesses movimentos, objetivando apontar caminhos para uma nova possibilidade de militância. Pontuamos a necessidade de se problematizar a noção de “bem comum” tantas vezes colocada como referência para a militância no SUS. Militar no SUS para o “bem comum”, dependendo de qual definição deste é tomada, pode se constituir em uma das formas de centralismo que aqui combatemos. Um “bem comum” que se aproxima de uma forma de senso comum opera em uma reprodução da conformação atual e hegemônica da produção de subjetividades, configurando-se em uma produção capitalística do desejo (Guattari, Rolnik, 2005). Buscando desvios, poderíamos utilizar a noção de comum segundo a definição de Hardt e Negri (2006). Para estes autores, o comum se constitui no próprio movimento de construí-lo. Menos um comum a priori, e mais um agir comum. Esse agir comum está relacionado à ampliação das fronteiras do possível, ao aumento de potencial em um encontro entre corpos, cujo efeito é a criação de modos de vida. É no sentido de que somos muito diferentes, que precisamos construir algo em comum para estarmos juntos e depois desfazê-lo, reconstruí-lo, e assim por diante. Este comum não implica afirmar uma forma de vida particular, mas as suas múltiplas formas e possibilidades, uma vida na qual o importante é como se vive. Para tanto o militante que se ocupa em dar passagem a modos não prescritivos de relação, amplia as possibilidades de construção do comum na convivência com a diferença. É, portanto, na dimensão relacional que se afirma e opera uma ética-militância/militânciaética para a construção do agir comum. Uma ética a ser produzida nos encontros, nos interstícios, no entre das relações - junto às forças que (i)mobilizam as ações, os afetos - portanto, uma ética do entre, uma militância do entre. Mergulhando na distinção que trazemos dessa idéia de comum, destacamos sua contribuição para problematizar, na temática das políticas públicas universais, qual sentido dar ao enunciado constitucional do SUS, que afirma “a Saúde é direito de todos e dever do estado” (Brasil, 1988). Em uma militância do entre, será preciso cuidar para que o ‘todos’ não assuma um caráter homogeneizante, no qual é produzido um SUS que se pauta por um ideal de igual para todos, a partir de uma forma de consenso construído no movimento incessante de exclusão da diferença. Afirmamos que essa estratégia de cuidado não passa apenas pela intencionalidade da construção de consensos, mas também pela possibilidade de fazer emergir, de forma produtiva, os dissensos. Incluir o dissenso para ampliar as possibilidades de emergência das singularidades, enquanto uma direção na produção de subjetividades. Os consensos necessários demandam, ao mesmo tempo, uma duração que os façam produtivos e uma transitoriedade que não anule as diferenças neles contidas. É neste processo que se pretende fazer do SUS uma política pública universal que supere uma idealização homogeneizante do que se pretende que seja o usuário, e passe a dar conta de incluir o usuário que existe - seja ele branco, negro, transexual, morador de rua, rico ou pobre ou qualquer outra denominação que se possa rotular sobre alguém que vive no mundo. O desafio posto às racionalidades gerenciais, quando assumem, como missão, responder às necessidades de saúde dos usuários do SUS, traduz-se no bom empenho do recurso público. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Antecipam-se e priorizam-se tais necessidades e como as mesmas serão respondidas. No cotidiano dos serviços criam-se programas, equipamentos e protocolos com base nas representações que os usuários trazem do que sejam seus problemas de saúde. O modo de operar procedimento-centrado já antecipa, aos trabalhadores, aos gestores e aos usuários, um agir específico em que, na maioria das vezes, não se produz o dissenso necessário à construção de ferramentas para o trabalho, mas sim um dissenso baseado em angústias e queixas que produzem uma linguagem caótica, a qual impede esses atores de se entenderem e, até mesmo, se escutarem. E assim, o dissenso torna-se o centro do problema, e não o contrário. Deste modo, a racionalidade gerencial, que confia todas as suas fichas na padronização dos procedimentos, tenta ignorar ou subordinar o cotidiano de constante estranhamento e desvio que as relações impõem às práticas de saúde, na busca de um modo seguro e previsível de funcionamento dos serviços. A questão aqui não é a desvalorização dos procedimentos, mas quais efeitos essa antecipação pode produzir nos trabalhadores, nos gestores e, também, nos usuários, uma vez que esse modo de operar dificulta a visibilidade das produções subjetivas nos encontros. Ao considerar-se a produção de saúde como produção de subjetividades, revela-se, no cotidiano dos serviços, a necessidade de se explodir a rigidez inerente a qualquer padronização. Neste caminho abrem-se possibilidades para a superação de situações típicas de muitos dos serviços, nas quais o usuário mostra seus sintomas e encontra uma resposta pré-formatada por parte de técnicos enquanto um modo operante que protege estes últimos do esforço de abrir-se ao encontro com o outro. Nesse regime, fica muito claro que não há condições de encontro entre profissionais e usuários, pois tal procedimento ou conduta está atravessado pelo poder enquanto instituinte do desencontro. É nesse território que o movimento de uma nova militância no SUS pode abrir-se para processos que se ocupem, efetivamente, da inclusão do dissenso como força motriz para a invenção de novos problemas, não com o objetivo de aniquilar a padronização dos procedimentos, mas produzir sua modulação na emergência das singularidades. Por essa razão, torna-se necessário, também, problematizar o pensamento e as práticas que procuram responder ao centralismo nos procedimentos, contrapondo a este outro polo: o centralismo no usuário. Vemos que alguns dos gestores do SUS justificam todo o tipo de subordinação do trabalhador baseados em uma visão naturalizada do que seja “responder às demandas da população usuária”. Em nome da “carência” da população, do “direito” do usuário à saúde, justifica-se todo tipo de autoritarismo e de precarização nas relações de trabalho. De acordo com Bauman, (2000), a precariedade é a característica mais difundida nas condições de trabalho na contemporaneidade. Ela pode ser entendida como uma experiência combinada de falta de garantias no trabalho (posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação à sua continuidade e à estabilidade futura) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhança e comunidade). Ouvimos muito que o SUS serve como um dos exemplos mundiais pela quantidade de ações desenvolvidas com recursos mínimos, o que, constantemente, gera o sofrimento de quem atua na área da saúde. Inevitavelmente, os trabalhadores se veem pressionados e criam linhas de fuga para sobreviverem a tal ritmo de trabalho. Não se pode ignorar que, simplesmente responder à “demanda”, sem uma problematização, entre trabalhadores, gestores e usuários, do que seja e do que se legitima como demanda, significa, frequentemente, uma forma de submeter o trabalho em saúde no SUS à ordem capitalística de produção de subjetividades. Fazer dos serviços de saúde “unidades de porta aberta” sem criar condições concretas para que as equipes dialoguem com essa demanda, configura-se também em uso inadequado dos recursos públicos. Isso pode significar a repetição de práticas travestidas de novos discursos sobre uma clínica degradada do tipo “queixa-conduta” (Campos, 2003; Gonçalves, 1994). Por exemplo, implantar o acolhimento como diretriz pode ser uma forma de estruturar um conjunto de procedimentos que pretende controlar e definir os modos de acesso e de relação das equipes com a “demanda”. Acolhimento sim, mas não como aquela repetição. Como afirmação de dispositivos que disparem novas subjetividades, outros modos de gestão (Merhy, 1994). Produção do acolhimento pensado como processo que oportuniza o cuidado com a relação trabalhador-usuário; como analisador das maneiras de se operar na clínica/gestão; como dispositivo que dispara algo que nos força a pensar em maneiras de fazer inovadoras. 526

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Discutir essas questões traz visibilidade à linha tênue que separa a defesa dos interesses dos usuários do controle dos seus modos de viver. E nos remete a problematizar outro centralismo: o ideal tão difundido de proteção da “vida”. Uma vez que o militante, quando identificado com uma defesa intransigente da “vida”, pode se tornar agente inadvertido de controle da mesma. A proteção da “vida”, dessa forma, também tende a ser um centralismo. Será preciso perguntar ao militante no que consiste proteger a vida. Responder a essa questão não é fácil, sobretudo quando não se trata de um campo de idealidades. Não é suficiente tratar a “vida” apenas no seu sentido biológico ou moral. Será preciso saber quais modos de vida ajudamos a reproduzir enquanto agentes de uma política pública e quais formas de viver estão sendo extintas com essa interferência. Foucault apontou para a crescente preocupação com a saúde da população. Em o Nascimento da Medicina Social (1999), sinaliza os efeitos de uma medicalização da vida e do espaço social, no qual os doentes tendem a perder o “direito sobre seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem” (p.96). Assim, a medicina, como um sistema de racionalização e de controle, invadiu o campo da saúde, expandindo a importância da doença. Ao proclamar o desejo de gerir a população, a medicina se torna uma instância normativa, um componente do biopoder. Em nome da saúde, constituiu-se uma nova moral, uma nova economia e uma nova política do corpo. Neste sentido, Foucault afirma que a vida se tornou o objeto das lutas políticas. Os mecanismos institucionais de afirmação desse sistema de racionalização e de controle agem tanto para dar forma ao ato de cuidar, quanto para fazer com que seja atribuída, às tecnologias duras (Merhy, 1997), fundamental importância na formulação das respostas às necessidades dos usuários, fazendo da dimensão relacional do cuidado não só algo que deva ser esvaziado, mas, sobretudo, um obstáculo. Todavia, os conflitos vivenciados nessa dimensão relacional insistem em gerar ruídos que, quando tomados como analisadores, podem revelar, em sua virtualidade, a criação, a invenção de novas tecnologias de potencialização do sujeito, assim como a perpetuação das tecnologias de controle do mesmo. Toda tecnologia sempre está encarnada no corpo e este, em relação, é capaz de construir as linhas de fuga. É, portanto, nessa dimensão relacional, do entre, conforme já nos referimos, que uma nova militância pode agir. Na vertente da biopolítica (Pelbart, 2003), quando acionamos o biológico em conjunto com sua potência agenciadora de afetos para a construção da vida, encontramos, talvez, uma saída legítima para a construção de uma clínica que atue nos processos de subjetivação (Carvalho, 2008). Uma clínica que demanda que a vida seja tomada como um movimento de produção de normas, e não de assujeitamento às mesmas. Passa, portanto, pela reinvenção da própria noção do humano e do homem que busca “menos a retomada ou revalorização da imagem idealizada do Homem e mais a incitação a um processo de produção de novos territórios existenciais” (Benevides, Passos, 2005, p.570). O SUS enquanto uma política pública que pretende fugir da proposta neoliberal deve reconhecer, de antemão, o desafio que constitui, nos dias de hoje, o enfrentamento deste modo de produção. Deve também enfrentar, com especial vigor, a captura subjetiva que se realiza no interior da ordem social contemporânea (Carvalho, 2008), buscando imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e totalização próprias às estruturas de poder moderno, sendo, para isso, necessário “[...] lutar contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contras as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros” (Foucault, 1995, p.235). É inerente ao projeto libertário do SUS repensar, dentro de suas práticas, estratégias que busquem romper com a imagem identitária e centralista que aqui problematizamos. É o que faz Teixeira (2003) quando propõe o exercício de uma clínica, de uma rede de conversações, que se afirma enquanto um ato cotidiano de afirmação democrática.

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Considerações finais A militância do entre aposta no encontro entre trabalhadores, gestores e usuários como espaço para a produção da vida, da invenção de si e do mundo. No momento em que estes atores estão em relação emergem multiplicidades de agenciamentos que podem apontar para a produção de algo que vá para além daquilo que é denominado produção de saúde. Nesse entendimento, os saberes constituídos, as técnicas, as experiências, os conceitos, as crenças, as incertezas, o não-saber, enquanto forçasferramentas, podem se misturar constituindo máquinas disparadoras de produção de subjetividades. Desse modo, o militante do entre, considerando a produção de saúde como produção de subjetividades, não se exime e mergulha nessa dimensão, procurando causar desvios nessas produções. Todavia, esse mergulho não é fortuito, a intenção é mapear qual o movimento da criação dos encontros e agir na dimensão política dos mesmos. Passa pelo movimento de buscar pôr em cena os vários instrumentos e seus atores na produção coletiva da vida. Essa militância parte das relações (com o usuário, com a gestão, com o trabalho etc...) mapeando seus múltiplos nós e favorecendo novas conexões que vão mais na direção de uma rede de produção coletiva. A relação como conexão. É possível, assim, despersonificar a dor, o sofrimento e dar vazão à construção de um plano de relações que fuja da formatação da subjetividade e se abra para a emergência de um trabalho pautado na singularidade. Mais do que contribuir para a construção de consciência crítica no militante, talvez o desafio atual seja o de afirmar a abertura para a incerteza. Correr riscos, e não, como muitos apontam, evitar o risco e deixar se congelar em uma vida repetitiva (Carvalho, 2004; Castiel, 2003). Que tipo de militância queremos produzir? Uma militância do entre, uma ética da militância na qual não haja primazia do a priori. Uma militância entre os corpos, sejam esses corpos quais forem: humanos, institucionais, históricos, virtuais... O que se pode sustentar em cada relação conforme o que se vive, e não tomando ideais como leis prescritivas. O deslocamento do objeto da saúde em direção à relação-entre-sujeitos no lugar do objeto-sujeito e a afirmação da diferença e do dissenso para a construção de consensos transitórios e mutantes, constituem indicativos potentes para uma prática intensiva e micropolítica de produção de saúde e produção de novas subjetividades. Tarefa, portanto, clínica e política de mudar o mundo e de mudança de si.

Colaboradores Os autores participaram igualmente da formulação, redação e revisões do texto. Referências BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cienc. Saude Coletiva, v.10, n.3, p.561-71, 2005. BRASIL. Nova Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 1988. CAMPOS, G.W.S. Por uma clínica reformulada e ampliada. In: ______. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. p.51-67. CARVALHO, S.R. Reflexões sobre o tema da cidadania e produção de subjetividade no SUS. Cienc. Saude Coletiva, 2008. (submetido à publicação)

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OLIVEIRA, G.N. et al.

artigos

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OLIVEIRA, G.N. et al. Nuevas posibilidades de militancia en el crampo de la Salud: la afirmación de desvíos en los encuentros entre trabajadores, gestores y usuarios del Sistema Único de Salud Brasileño. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.523-9, 2009. Los autores elaboran consideraciones sobre la militanoia en el campo de la salud, especialmente en defensa del Sistema Único de Salud (SUS) como política públioa universal. Tras presentar algunas estrategias de esta miliancia, el texto discute el centralismo y el caracter de identidad de estas prácticas. Destacan el conjunto de problemas de cuatro formas de centralismo: del “bien común” en sus representaciones; el procedimiento como oferta de tecnologías de salud; del usuario y los conceptos sobre sus necesidades/demandas; el de la protección inadvertida de la vida. Proponen como alternativa una nueva militancia en el SUS como práctica intensiva y producida en el encuentro, en dimensión nacional, entre gestores, trabajadores y usuarios.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Política de salud. Salud pública. Ética. Producción de subjetividad. Recebido em 05/11/08. Aprovado em 17/03/09.

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artigos

Um agir micropolítico e pedagógico intenso: a humanização entre laços e perspectivas

Ricardo Burg Ceccim1 Emerson Elias Merhy2

CECCIM, R.B.; MERHY, E.E. Intense micropolitical and pedagogical action: humanization between ties and perspectives. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.531-42, 2009. This paper deals with the challenges of a Brazilian strategy for the healthcare system to improve the quality of its caregiving and managerial response, i.e. the National Humanization Policy. Independent of political, conceptual or results analysis, it discusses the humanization of the healthcare body by means of comparison with its reifications in clinical practice, as seen in the sovereignty of the professional systems regarding practices, in the disciplinarization that legitimizes diagnostic/prescriptive conduct or in the dissemination of mechanisms that, in the name of individuals’ longevity, staunch the production of the singularity of life. The notions of the body of organs, body ex-organs and body without organs are used to question clinical practice (care) and the notion of ties and perspectives to discuss the transformation of realities (management). Education and participation are defined as indissociable from care and management.

Este artigo aborda os desafios de uma estratégia brasileira no sistema de saúde para melhorar a qualidade da sua resposta assistencial e gerencial, a Política Nacional de Humanização. Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados, discute a humanização do corpo na saúde por meio do confronto com suas reificações na clínica, tal como presentes na soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, na disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnósticoprescrição ou na disseminação de mecanismos que, em nome da longevidade dos indivíduos, estancam a produção de singularidade da vida. As noções de “corpo de órgãos”, “corpo exórgãos” e “corpo sem órgãos” foram usadas para problematizar a clínica (atenção) e a noção de laços e perspectivas, para discutir a transformação de realidades (gestão). A educação e a participação são tematizadas como indissociáveis da atenção e gestão.

Keywords: Healthcare education. Healthcare work. Body without organs. Medicalization. Humanization of assistance.

Palavras-chave: Educação em saúde. Trabalho em saúde. Corpo sem órgãos. Medicalização. Humanização da assistência.

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1 Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Dr. Raul Moreira, 550, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.820-160 burg.ceccim@ufrgs.br 2 Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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UM AGIR MACROPOLÍTICO E PEDAGÓGICO INTENSOS: ...

Introdução Este texto foi construído como uma conversa pedagógica, na expectativa de maior potencial comunicativo. A conversa favorece a aproximação, enquanto a intenção pedagógica – como pragmática dessa conversa – a troca de saberes. A aposta é por um texto-em-interação sobre os desafios da Política Nacional de Humanização na Saúde (PNH), uma estratégia que se propõe a melhorar a qualidade da resposta assistencial e gerencial do sistema de saúde e que configura projeto em construção. Para dar qualidade aos componentes da atenção e da gestão e melhorar a resposta assistencial e gerencial do sistema de saúde, entendemos que a PNH, desde sua identificação com o conjunto dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde – HumanizaSUS, precisou colocar em cena as tentativas de se alcançar um atendimento resolutivo e acolhedor sem despersonalizar seus usuários, valorizando seus operadores (trabalhadores) e apoiando mecanismos participativos de gestão na cotidianidade do trabalho em saúde. Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados dessa Política, a conversa que entabulamos ambiciona uma humanização do corpo, na saúde, pelo confronto com suas reificações na clínica, presentes na soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, na disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnóstico-prescrição ou, mais contemporaneamente, na disseminação de mecanismos que, em nome da longevidade dos indivíduos, estancam a sua produção de singularidade. Utilizamos as noções de “corpo de órgãos”, “corpo ex-órgãos” e “corpo sem órgãos” para tematizar a clínica (atenção), e a noção de “laços e perspectivas” para abordar a transformação de realidades (gestão) em face da humanização. De um lado, observamos, nas práticas vigentes, a passagem de uma clínica voltada aos sintomas para uma clínica da ausência dos sintomas: do silêncio dos órgãos sadios à dispensa dos órgãos sob controle. Essa clínica afasta-se ou diverge da produção de encontros e de sensações afirmativas do viver, ao passo que uma clínica do viver intenso precisa dos órgãos, mas também de um corpo sem órgãos para atravessá-los pela maior potência de vida. Nesse sentido, colocamos a clínica, na humanização, como ato de encontro e de ressingularização por alteridade. De outro lado, alertamos para a necessidade de laços da humanização com as várias vertentes de estudos brasileiros para qualificar o encontro e a alteridade na clínica e sua possível perspectiva de fluxo de rede: ativação das comunicações como rede científica de pesquisa-ação (escapando da sedução das totalizações), potência de transformar realidades como efeito de produção de conhecimentos que decorrem do contato vivo com processos cotidianos sob interrogação, e colocação em conexão da diversidade de estudos que ambicionam a saúde como viver intenso.

Políticas da vigência e políticas do minoritário De uma maneira geral, quando analisamos a prática de atender nos estabelecimentos de saúde, ou a censuramos, apontamos quanto as relações que aí se estabelecem estão marcadas pela presença de forças externas, antecedentes ao encontro, numa espécie de ausência de interação: relação fria, tecnicista, excessivamente objetiva, centrada em procedimentos, orientada pelo paradigma biologicista etc.; onde as pessoas são tomadas por objeto, por um diagnóstico de doença, por um histórico de queixas ou por uma situação de risco, entre outras condições que as dessingularizam/reificam. As imposições do mercado em saúde, a exemplo da indústria de medicamentos, por exemplo, entre outras disposições, definem o que é o atender/tratar. Emerge desta análise uma denúncia do trabalho em saúde, no qual conhecimentos técnicos, protocolares, disciplinares e dependentes, fundamentalmente do domínio de saberes formais, prescrevem certos modos de atuar. Trata-se da crítica ao trabalho capturado por seu gerenciamento, por sua protocolização, por sua corporativização ou pelas racionalidades em que se inscreve ou de onde se desdobra. A análise - ou censura - é a de que o profissional coletivo da saúde, ao atuar no cotidiano dos serviços, junto aos usuários, está submetido a ordenamentos que definem, de forma imperativa, suas formas de agir/pensar na prestação da atenção ou no exercício da clínica. Dizemos, portanto, que uma ordem profissional ou as condições de trabalho realizam a captura do profissional, que não age e nem pensa por si mesmo, atua como 532

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refém de políticas da atenção (modelos assistenciais), tal como vigentes em sua corporação profissional ou nos sistemas e serviços de saúde. Entretanto, quando olhamos com mais acuidade o cotidiano das práticas, vemos que os profissionais, mesmo aqueles de igual categoria profissional, atuam de modo distinto, no interior da mesma situação de atenção à saúde. Percebemos, por exemplo, que os profissionais são bem diferentes entre si na maneira de cuidar, parecendo - muitas vezes - que uns cuidam e outros não, ou que uma dada equipe de saúde ocupa-se do cuidado e outra não. Alguns observadores ou analistas do trabalho em saúde, diante disso, apontam, então, que uma micropolítica do trabalho em saúde se oporia - ou poderia resistir - à macropolítica do gerenciamento, da protocolização, da corporativização ou das racionalidades. Um trabalho vivo, em ato, faria oposição aos modelos assistenciais impostos ou impositivos, pois, na prática do atender, se presentificaria - resistiria - uma ordem do encontro e as condições da interação, não apenas uma ordem profissional e as condições de trabalho. Acontece que, entre os analistas que referem a micropolítica do trabalho, muitos anunciam essa avaliação sob uma condição esvaziada de criação e, portanto, sem potência de resistência, uma micropolítica apontada como macropolítica de menor escala, a do espaço microssocial (gestão do trabalho, local de trabalho, profissão), representante, portanto, das mesmas forças de captura. Em lugar de encontrar/reconhecer/ buscar as forças de liberdade, idealizam processos, caminhos ou estratégias: em geral, à custa de treinamentos, normativas e sistemas de fluxo/encaminhamento. Na micropolítica, não na microssociologia, encontramos/reconhecemos/buscamos a resistência às capturas, a luta pelo direito à criação, a exposição e a vivência, em ato, de uma relação. A micropolítica opõe-se à política das vigências disciplinares, das racionalidades hegemônicas, é a política do minoritário, das forças minoritárias, resistência aos instituídos, resistência ao saber-poder-desejo hegemônico, disputa por outros modos de ser-existir-agir, inventivos, criativos, em ato. A noção esvaziada da micropolítica refere-se à análise das decisões ideológicas, dos modos culturais locais, das regras de exercício da profissão ou do trabalho, onde as diferenças quase individualizantes teriam um peso mais significativo. A micropolítica não é local/individual, é força instituinte, transversalidade de processos e projetos, luta contra-hegemônica e anti-hegemônica. Não são regras de exercício da profissão ou do trabalho, nem diferenças de escala que marcam o território da micropolítica, mas coengendramentos de si e de mundos. Na análise do processo de trabalho, a micropolítica interroga que territórios de ser são criados, que rupturas são introduzidas, que acolhimentos são ofertados, que responsividade é buscada, que satisfação interessa. São territórios aquilo que constituímos quando estabelecemos uma relação. Então: o que tem e o que não tem pertencimento a esses territórios constituídos? São atores em relação que constituem territórios, territórios que dão ou não passagem aos devires ou para campos de possíveis. Pela dimensão micropolítica, detectamos - na prestação do atendimento - uma produção política da atenção, a produção política dos seres, não apenas o registro de assistências. A centralidade da atenção de saúde no usuário, defendida por aqueles contrários à dessingularização (observadores ou analistas das condições de interação ou da ordem dos encontros), diz de uma orientação da atenção ao outro, não para com os fatores externos ao encontro, como técnica, rotina, protocolo, profissão, instituição ou razão. Logo, essa centralidade no usuário é a centralidade no encontro/na interação, centralidade no contato com a alteridade. A atenção implicando a constitutividade de relações de alteridade, portanto, implicando encontros para além das forças a que chamamos por externas. Aí, o cotidiano do atender passa a ser visto como um campo singular da produção de saúde, e não como um campo particular da prestação de assistência. O cotidiano adquire natureza de produção de realidades, trabalho vivo em ato, constituidor de mundo, território de disputa com as ditas forças externas pelas forças de criação.

A humanização como desafio nos apresenta chances, não totalizações Os desafios apontados pelo HumanizaSUS tanto permitem disputar a desfragmentação do que antes aparecia como diversidade programática (humanização da assistência hospitalar; do parto e do nascimento; no contexto da atenção básica; nos serviços de saúde; do processo de morrer; como COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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qualidade de vida no trabalho etc.), quanto permitem imputar uma totalização ou constituir um equivalente geral às diversidades que cada programa colhia e suprimir a potência de comunicação das suas “desobediências” ao instituído/hegemônico/vigente. Se tornada uma “escola”, não porque promove cursos, mas porque unifica discursos, a PNH, em lugar de emprestar potência, enfraquecerá a potência dependente da maneira como desobediências, linhas de fuga ou desejo de disruptura comunicam-se e estabelecem a invenção de mundos (forjando redes pela surpresa, entrega, diferenciação, carona etc.). O maior desafio está na sua eventual capacidade de armar uma “rede de guarida”, rede de encontros, rede de potências. Quando apontávamos, antes de 2003, como críticos acadêmicos das ações programáticas de governo, o equívoco dos programas de humanização como lugares a humanizar, era pela ausência desse tipo de rede, a ausência da noção de sistema de saúde, a opção por uma dimensão local/individualizante. Agora, apontamos a necessidade de uma rede de interferências-em-interação, não uma rede de comunicações-coordenadas, trata-se de um cenário de difícil conquista e construção, mas, virtualmente, de instigante potência. A riqueza do nosso SUS é vir acompanhado pela dedicação ao conhecimento e à melhor resposta às necessidades das pessoas e coletividades. Muitas vertentes de estudos brasileiros vêm operando por esse caminho e têm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de atender nos serviços de saúde: a humanização dos cuidados em saúde; a integralidade; o cuidado como a alma dos serviços de saúde; o acolhimento como rede de conversações; as práticas de saúde como projeto de felicidade; a atenção integral como escuta à vida; saúde e cidadania de braços dados, entre outras designações. Iniciativas, muitas vezes, substitutivas das modalidades hegemônicas nas práticas de atender e, por vezes, desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho, ambicionando outra educação na saúde e uma ousada responsividade às necessidades em saúde sentidas pelos usuários. As modalidades hegemônicas são constituídas sob o manto das ações profissional-centradas, nas quais o outro é um caso a ser enfrentado por tecnologias duras ou leve-duras (intervenções invasivas ou cabalmente protocolares), das quais apenas o profissional detém saber-poder e justamente por elas se justifica. Novas intervenções - ou intervenções substitutivas - surgem das maneiras “em rede” de se construírem configurações tecnológicas ao atender, projetos pedagógicos ao formar, sistemas avaliativos por satisfação e responsividade e estratégias de gestão democráticas e participativas. Como “maneiras em rede”, pensamos em comunidades científicas ampliadas de pesquisa-ação: uma dimensão coletiva (encontros/interação) e uma dimensão individual (entrega/diferenciação), produção de conhecimento e produção da formação, para a pesquisa e para o trabalho (Pimenta, 2005). A aposta representada pelo HumanizaSUS é desafiadora por sua proposta de reconstruir ações institucionais, tendo apoiadores das ações de mudança na função de penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores diretos da atenção para o debate de suas ações, fazendo-os operar intervenções em si mesmos, conduzindo as situações de trabalho para a construção do campo singular da produção de saúde, ou seja, ativando a produção singular do atender e do encontro. Nessas apostas, duplos encontros - trabalhadores-trabalhadores e trabalhadores-usuários – exigem, das formulações do HumanizaSUS, processos de condução que levem a momentos de intensa singularização e quase nada de particularização, ou seja, não basta que apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuarem, tomando o outro como um caso a ser enfrentado e já conhecido a priori, instalando as práticas humanizadas. Há que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviço de encontros-acontecimento. Esse desafio implica não só colocar em análise, a todo tempo, o modo de se construírem os encontros, mas centralmente de tornar visíveis os atos cuidadores e os agires pedagógicos que esses encontros contêm. Muitos daqueles que também apostam na mudança das práticas de saúde, a veem como possibilidades inscritas em encontros, nos quais uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e, então, não contemplam o desafio da ressingularização das práticas, mas a instalação de boas práticas. Nessa forma de entender e agir, cada encontro é um momento particular de uma estratégia geral que já está dada a priori, para ser realizada no momento em que o encontro acontece. Não é diferente do modo como o modelo hegemônico de se produzir saúde é realizado. Esse modo - que é sempre o agir 534

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de um profissional de saúde que se legitima por ser o portador do saber em saúde que o outro deve adotar ou incorporar - vê o acontecimento do encontro, mesmo que o diga como cada caso é um caso, como momento particular: para o qual já tem tudo preparado. Estamos diferindo singular (criação) de particular (requalificação). Não será prudente verter “práticas em ato” em “equivalentes gerais de interpretação”, nem adjetivar as práticas para construir uma totalização de sentidos à humanização. Nos desafios do HumanizaSUS isso não é dilema, tampouco dialética, pois, levado às últimas consequências, na prática, é a sua própria negação como estratégia assessora, não a construção de superações. Ocorre uma implicação fundamental: toda arma que o trabalhador tiver para operar encontros tem de estar a serviço dos “movimentos em ato” de que um encontro é portador, não o contrário. Suas ferramentas tecnológicas só serão efetivamente tecnologias singularizadoras como encontros-acontecimento. O enfrentamento de tensões/paradoxos será necessário para dar substância à aposta que o HumanizaSUS declara, buscando aumentar, de forma significativa, as potências de produção de vida na organização da atenção à saúde. Esse enfrentamento não estará em justificações mas na surpresa - das interferências-em-interação.

A produção da atenção na capilaridade das relações cotidianas Os componentes de singularidade que existem onde o atender é produzido não permitem que uma abordagem mais generalizadora lhe dê conta. Exatamente onde mais há captura, mais ocorrem transversalidades capazes de linha de fuga e capazes de operar transformações na delicadeza de cada encontro ou nas próprias linhas de fuga, muitas vezes únicas, pois os furos nas capturas só fazem sentido para aqueles implicados. Falamos da produção da atenção onde ela não é esperada, na capilaridade das relações cotidianas, não nas assistências profissionais em sua instância formal de intervenção como procedimento restaurador de funções orgânicas. Falamos da capacidade de acolhimento, encontro, não da clínica das profissões ou de uma cogestão de interesses negociados e pactuados. A produção da atenção não se esgota na prestação de práticas biomédicas ou normativo-cuidadoras, envolve nossa capacidade de acolhimento do outro, contato com a alteridade, produção de um dizer-se respeito em que a interação promove práticas de si, nascidas para cada agente em relação, produção de um ambiente-tempo comum ou, cada vez mais, comum entre dois, um momento intensamente intercessor, encontro, onde, de um jeito ou de outro, dele esperam seus agentes a mesma coisa: que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de saúde. O acolhimento em alteridade (encontro) é um momento que tem em si certos mistérios, pela riqueza dos processos relacionais que contém, por ocorrer segundo razões muito diferenciadas e por não ser apreendido por nenhum saber exclusivo. Damos contexto a esse plano da humanização - a construção de práticas de saúde cuja contemporaneidade esteja na atualização de processos intensivos de viver a vida, e não apenas sobreviver, ou de, acima de tudo, estar vivo, apesar da ausência de prazer, de compartilhamento, de potência de si e de produção de entornos criativos e audazes. A potência de si e de produção de entornos criativos e audazes é o viver intensamente a invenção do vivo, daquilo que afirma a criação ou que põe a vida como obra de arte da existência. Nessa condição, o cuidar do outro é operado por distintas modalidades de saber e fazer, não culmina com as práticas particulares das profissões, das tecnologias do cuidado ou dos protocolos, prolonga-se pela invenção de si, dos entornos, de mundos. Esta é uma pontuação necessária no momento atual em que vivemos, onde a conformação do campo da saúde, nas sociedades mais ocidentalizadas, vive uma contemporaneidade do fenômeno da medicalização e suas consequências, entre as quais: um perfil de prestação das práticas de atenção, de educação dos profissionais da área e de gestão dos sistemas de saúde para a oferta ampliada destas práticas em forma de diagnóstico, prescrição e condutas coletivas. Trazemos, então, como primeira aproximação, a noção de que um encontro é da ordem micropolítica. Os encontros estão sempre em aberto, sob alteridades intercessoras (Ceccim, 2004; Merhy, 1997), sob distintas possibilidades de subjetivação, que podem caminhar de um processo biopolítico para um processo de biopotência (Pelbart, 2003) e da serialização à singularização (Guattari, Rolnik, 1986). Além disso - e ao mesmo tempo -, os encontros, na micropolítica, são intensamente COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pedagógicos, operam, ante as práticas inculcadoras/homogenizadoras, com trocas entre domínios de saberes e fazeres, construindo um universo de processos educativos em ato, em um fluxo contínuo e intenso de convocações, desterritorializações e invenções. Uma segunda aproximação é a de que as interações são estratégias de resistência e criação, vividas como paradoxo num mundo habitado pela profusão de práticas clínicas e pela profunda fragilização da vida (despotencializada para conduzir processos intensivos, afastada da alegria, desumanizada). Em torno dessas duas aproximações propomos constatar laços e perspectivas: diversos solos de formulação da atenção convergem pela humanização das práticas de saúde e uma condição de rede pode abrir conexões inéditas. Diversos solos enlaçam-se pelo desejo de instituir práticas cuidadoras, práticas de atenção integral, o intercruzamento das necessidades biológicas e as de natureza existencial ou dos saberes humanísticos, agregando uma escuta sensível do outro e uma oferta de ambiência acolhedora e produtora da sensação de conforto, entre outras leituras/práticas necessárias da humanização. Uma condição de rede instaura possibilidades e potencialidades de uma comunidade científica ampliada de pesquisa-ação (vários e diferentes portadores e produtores de saber, com sua linguagem-ferramenta, ousadias e desobediências singulares); escuta aguda das realidades para compor saberes assessores; perspicácia de não veicular conceitos, mas saber cartografar; de não preencher imaginários por “melhores verdades”, abrir experimentações; captar as práticas em ato, dar-lhes lugar, ampliar incisivamente a existência de linhas de conexão. A atenção, nas práticas especificamente de saúde, envolve uma compreensão específica de corpo humano. Base da educação dos profissionais de saúde, tradicional ciclo básico da formação, o ensino da anatomia e da fisiologia humanas e a dissecção do corpo em seus órgãos são os percursos condicionais à apropriação da clínica. No ciclo profissional, o corpo já dissecado em órgãos surge como o território onde evoluem as doenças. Este tem sido o corpo pouco humano da clínica, limitado a seus órgãos e aos modos de evoluir da doença como uma história natural. Um corpo mais humano para a clínica, compreendido em sua natureza de desejo e sensação, território de afecções (capacidade de afetar e ser afetado), enseja a existência de um corpo sem órgãos, corpo do encontro ou corpo prépessoal (que se coloca entre os corpos agentes do atendimento), corpo virtual cuja atualidade faz-se no corpo pessoal. Todavia, uma outra clínica, da ausência de doenças, também detecta um corpo sem órgãos ou um corpo com seus órgãos virtualizados (órgãos em potência permanente de adoecimento), que dispensa a singularidade das sensações, onde a clínica se faz sem encontro, captando os corpos por tecnologias do imaginário e submetendo-os à prescrição impessoal.

O corpo como sede dos órgãos e a oferta da clínica Não é estranho falarmos e identificarmos, no cotidiano do mundo do trabalho em saúde, que as práticas de atenção estão orientadas pela clínica de um corpo sede dos órgãos ou por uma clínica do corpo de órgãos - essa é a maneira com que cada uma das profissões de saúde pratica a clínica e pensa o atendimento. É com base nessa condição que as profissões buscam distinguir-se e organizar o seu padrão de intervenções para provocar a cura, o que pode ocorrer em detrimento do promover a terapêutica (o sentir-se cuidado). Mesmo que cada uma das profissões de saúde procure dar sua marca ao campo de suas ações e opor-se entre si na disputa por territórios privativos de intervenção, isso, muitas vezes, não ultrapassa a condição de uma prática discursiva, porque tratar com qualidade, cuidar com integralidade ou escutar com sensibilidade não são oposições e nem fragmentos autossuficientes. Para provocar a cura, não concorrem saberes em oposição ou fragmentados, e para promover a terapêutica não convergem saberes parciais ou focados em padrões particulares. A distinção radical entre as profissões, na esfera do cuidado, do acolhimento do outro, da oferta de encontro para compreender processos de produção de saúde, em realidade, não se verifica. O que se verifica é a fragmentação da cura e do cuidado e a busca, pelos usuários das ações de saúde, de práticas não apenas profissionais, a fim de se sentirem cuidados e/ou curados. Muitas vezes, sob a denúncia profissional da não adesão dos usuários à prescrição, às orientações ou à terapêutica, está a denúncia da oferta fragmentada, particularizada e corrompida da clínica.

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Quando se fala do lugar da Saúde Pública, que procura compreender a instalação dos processos de adoecimento no plano das populações para produzir intervenções no âmbito coletivo, visando ao controle dos adoecimentos, vê-se que o pano de fundo também é essa mesma compreensão do fenômeno saúde-doença: a instalação de patologias nos corpos biológicos. O sistema profissional de saúde é o lugar para tratar as doenças e para a sua prevenção ou o seu tratamento; o lugar para a promoção da saúde e proteção da qualidade de vida é “o fora” do sistema profissional de saúde. Ainda que sejam introduzidos novos elementos nesse olhar, como, por exemplo, a distribuição desigual do processo saúde-doença entre os vários grupos populacionais, demarcados socialmente por questões de gênero ou de idade etc., o ideal da saúde é o do equilíbrio entre as funções dos órgãos. A combinação de saberes entre a clínica do corpo de órgãos e a epidemiologia deu substância, como conhecimento-ferramenta tecnológica, para a conformação de campos produtivos em todos os lugares de construção dos processos de tratamento, cuidado e escuta, inclusive de maneira dessemelhante, uma vez que é muito grande a variabilidade de composição dos recursos de saber dentro de cada profissão e, mesmo, dentro de cada campo de ação, como se observa na construção das especialidades profissionais. Na base das especialidades/especializações, estão práticas que reafirmam um corpo biológico que se patologiza no plano individual e/ou coletivo. Por dentro dos saberes operados como ferramentas para as especialidades, está o olhar que torna sempre visível apenas o corpo de órgãos e que anima a construção de certas formas do agir clínico em detrimento de outras. O particular suprime a demanda pelo singular, protege-se o exercício das profissões em detrimento do acolhimento do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam). Essa constatação ou a construção dessa modelagem de práticas não é óbvia, nem imediata, uma vez que foi processada nas sociedades ocidentais durante séculos, desenhando-se como a maneira mais comum de se olhar para o adoecimento humano: como processo de patologização do corpo biológico. Modelagem que se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres, acumulando/registrando um potencial de imposição de valor. Foucault (2004), em “O nascimento da clínica”, e Luz (2004), em “Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna”, mostram-nos de forma muito elucidativa como foi dura a disputa entre os diferentes “práticos” do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades, regimes de verdade, legitimidade. Disputas que ocorreram no plano epistemológico, no interior das organizações e estabelecimentos considerados lugares de cuidado em saúde e na vida em sociedade até o alcance da institucionalização do modo “certo” de ver a vida e o corpo humano. Esse “modo certo” passou a ser-nos revelado em oposição aos modos distintos, fossem as formas legítimas antecedentes, ou as formas em emergência, designadas, por contraposição, como charlatãs/de risco. Esse processo social, prático e discursivo, quando institui-se de maneira hegemônica como o modo de fazer a atenção em saúde e compreender o processo saúde-doença, passa a produzir intensa subjetivação nos vários grupos sociais, além da formação de seus próprios militantes: os novos profissionais de saúde. Estamos todos, os implicados com o campo da produção da atenção, diante de um sofisticado jogo de forças, pois, de modo não muito claro e explícito, estão em luta regimes de verdade e modos de subjetivação. Foucault (2004) revela como esse processo fez-se no momento histórico e social em que se instala, na cotidianidade do fazer, certa forma de olhar o corpo adoecido. O corpo, em lugar de ser território para sensações (contexto do sentir), é reconhecido como território onde evoluem as doenças, lugar físico da existência das lesões orgânicas/corporais (órgãos, tecidos, células, genes), que deveriam ser visualizadas para possibilitar a compreensão dos processos de adoecimento e, desse modo, do corpo, saúde, doença, tratamento e cura. O cruzamento da racionalidade científica com a razão médica colocou o pensamento em saúde e suas várias racionalidades no operar do cuidado ou da cura, sob a mesma lógica de saber, a do corpo de órgãos. O mistério do encontro - presente na atenção usuário-centrada, dependente do contato com a alteridade e, por isso, não normalizado/não regulado pelas forças externas - está em que, mesmo sob lógicas idênticas de pensamento racional, pode gerar práticas bem distintas. O saber não é, de fato, o elemento determinante das práticas, mas seu componente, estando submetido aos processos em ato da

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clínica que se oferece como acolhimento. O mistério do encontro está nos intercessores que a construção, em ato, da atenção põe em cena. A observação sobre a integralidade da atenção ou a análise sobre a humanização na produção de saúde pode promover essa visibilidade e ampliar a potência dos encontros, tornando a atenção voltada mais àquilo que produz do que à discussão sobre quais meios utiliza ou pode utilizar para o agir em saúde. Isso deve criar, em quem pensa a mudança das práticas de saúde, ocupação com a educação da saúde (o território de produção das novas gerações profissionais) e com a participação social (o território de produção dos movimentos na sociedade), não apenas o desenho da díade gestão-atenção em saúde (território de produção dos serviços). Apesar de verificarmos que a noção de corpo de órgãos é um dos lugares fundantes desses longos processos de construção discursiva e de pretensão de verdade, as nossas sociedades têm vivido e continuarão a viver intensas disrupturas, da mesma forma que estas estiveram presentes na instalação desse saber hegemônico. Olhando com delicadeza, podemos ver que existem disputas de práticas e inúmeras linhas de fuga pedindo passagem. É como se devêssemos preparar o nosso olhar para ver não apenas o mundo dado (instituído), também os mundos se dando (instituintes). O que vai acontecendo, insidiosamente nos cotidianos, são práticas de invenção da atenção, acopladas em práticas hegemônicas. Podemos deparar-nos com dois movimentos mais visíveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexões: um plano racional-cognitivo e um plano imaginal-afetivo. No primeiro, a captura ou disruptura/singularização pelo conhecimento, a razão, a elaboração interpretativa, e, no segundo, a captura ou disruptura/singularização pelo sensível, a afecção, a tomada do inconsciente. O primeiro movimento está marcado por um confronto explícito de campos de saberes, como o que nega a existência do corpo biológico, tal como foi construído, imaginária e simbolicamente, ao afirmar que o corpo é subjetivação, e não biológico, é potencialidade e representação de modos de existência, que por diferentes modos serão qualificadas como normais ou não. Porém, no fundo, isso é sempre um impor de uns sobre outros, pois modos de existência tomados como anormais ou patológicos serão sempre produtos da construção de relações de poder, entre distintos poderosos. Disputa-se não só o modo de se construir socialmente, o que é um problema para a produção das práticas de saúde, mas o modo como enfrentá-lo, abrindo-se um franco confronto sobre a que se refere esse campo de problematização e a quem interessa um ou outro olhar. Nesse movimento, explicita-se que há uma disputa pelo saber-fazer e pelo fundamento da ciência que lhe dá substância. É uma luta no campo da política do conhecimento. O segundo movimento é aquele que se dispara de dentro do campo simbólico e imaginário, o dos afetos, que vai se construindo nas fissuras do hegemônico, nos seus vazios, nos seus conflitos e contradições. Insurge-se por onde as respostas não estão prontas ou não são mais aceitas, onde há resistência ante o que temos ou ante o instituído, e, por isso, ousamos, criamos, fazemos, com o nãosaber, com a pergunta, com o desejo. Lugar fortemente produtivo que aparece de modo muito evidente em situações sociais e históricas nas quais os vários grupos sociais implicados com o mesmo campo de práticas emergem, não só operando-o, mas disputando-o de diferentes lugares situacionais, atravessando-o por vários outros focos de interesses a ponto de miná-lo por dentro, na ação. Tecnologias do imaginário (Ceccim et al., 2008), entretanto, operam permanentemente a captura do afetivo, promovendo impulsos para a ação, é quando esforços conceituais viram meras palavras de ordem e sensações são traduzidas em significados para os quais a resposta está aguardando. Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos desdobram-se um no outro, de modo muito evidente. Por isso, aqui não se dá um valor claro ou mais positivo a qualquer desses processos, pois parece que ambos não pedem licença para ocorrer e, muito menos, nos são dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro. Podem ocupar lugares diferenciados ou, mesmo, emergir um no outro. No Brasil, hoje, esse segundo movimento é muito rico e presente na sociedade como um todo, na medida em que a complexificação do campo de disputa social próprio da saúde vem permitindo a explícita luta de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo; abrindo-o para a aparição do primeiro movimento no seu interior.

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O corpo sem órgãos, a recuperação da clínica e a nova oferta da medicalização À semelhança do que vimos falando sobre a construção da clínica do corpo de órgãos, estamos, agora, como sociedade, inseridos, também, em uma disputa de construção de novas lógicas de gestão da atenção em saúde e pelo desenho de um novo campo para a clínica: a do corpo na ausência dos órgãos (ex-órgãos ou “com os órgãos exteriorizados”). Falamos da evidência contemporânea de uma clínica do corpo ex-órgãos, sem órgãos, do mesmo modo que se diz exangue (sem sangue). Corpo sem órgãos porque não requer mais a tecnologia disciplinar do exame ou de que sejam vistos para o diagnóstico que gera a prescrição “clínica”. O diagnóstico antecede o exame físico, é o diagnóstico do risco, e estamos todos sob o risco da doença dos órgãos. Esse corpo sem órgãos, em contrapartida, é um corpo sem forças, débil, exausto. A indústria de medicamentos alia-se a esse olhar, não mais a farmacoterapia, mas a farmacoprevenção, da orientação ao corpo doente a ser curado, para o corpo saudável que deve ser tratado (preventivamente) para não adoecer, para não correr o risco de ter de consumir atos de saúde custosos segundo o modelo médico-hegemônico do corpo de órgãos, que ambiciona o uso ambulatorial de atos profissionais de saúde, não mais os atos médico-hospitalares. Surgem maciçamente medicamentos para manter a normalidade do corpo biológico; o risco de adoecer passa a ser medicamentalizado. Surgem preocupações em empresas de seguro e planos de saúde pela promoção e prevenção e pela produção de hábitos de vida que possam minorar processos de adoecimento. A medicalização social fica intensamente mais sofisticada. A patologização de certos sofrimentos, sob a ótica do modelo médico-hegemônico (clínica do corpo de órgãos), com a finalidade de patrocinar cuidados individuais e coletivos e o consumo de inúmeros atos profissionais de saúde centrados em tecnologias duras ou leve-duras, objeto de estratégias disciplinares das profissões clássicas da saúde e da saúde pública em geral, agora, sob a clínica de um corpo que não tem órgãos a serem perscrutados e tratados, instaura um olhar que patologiza os modos de viver a vida, individuais e coletivos - em um corpo ex-órgãos (corpo sem sintomas). No bojo desse processo, um universo novo de patologias vai sendo construído. Há um processo de medicalização bem sofisticado. Comer certos alimentos, andar ou não, brincar de certo jeito ou de outro, por exemplo, passam a ser vistos como risco. Ser uma criança agitada é hiperatividade; viver a aflição com a mídia das violências é síndrome do pânico; fumar é matar-se; entrar na adolescência é agudizar riscos; o envelhecimento é uma nova nosologia. Iriart (2008) alerta sobre esses movimentos e novas estratégias produtivas da atenção, inclusive com intensa medicamentalização, e que nos colocam diante, não só da reestruturação produtiva, mas de uma forte transição tecnológica do campo da saúde (Merhy, Franco, 2006). Para esses processos, é indiferente se o cuidado é produzido para curar uma doença, para impedir o adoecimento, para alterar sensibilidades ou para mudar comportamentos. Agora, sob novo desenho, o que se pretende com os trabalhadores da atenção à saúde é regulá-los onde antes exerciam de modo fragmentado seus atos produtivos. Agora, o que interessa é agir de modo integrado e protocolizado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes vinculados à produção dos modos de existência, sob o tacão do olhar do risco de adoecer e morrer. A aliança estreita entre fazer uma nova forma de gestão da atenção para impedir a autonomia do exercício dos trabalhadores de saúde e a clínica ex-órgãos vem reposicionar e produzir, de modo mais conservador, as estratégias disciplinares dos momentos anteriores. Vem agora operar uma clínica sem o limite disciplinar do corpo de órgãos, uma atuação dirigida à produção do desejo ali onde se modulam as formas de viver. Vêm agregar-se estratégias de controle sobre os modos de cuidar de si. Tudo isso ocorre absorvendo, até certo ponto, o modo de agir do campo da clínica do corpo de órgãos, agora subsumida, e não mais como território imperativo de ordenamento das práticas e das profissões de saúde. Esse corpo (sem órgãos/desvitalizado, sem um viver intensivo, mas um viver normativo) é o corpo do sistema profissional de saúde, ampliadamente prescrito, muito mais independente da vida que se leva. A vida é explicada pelo laboratório. Medicamentos, alimentos e atividades podem ensejar o corpo do laboratório.

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Entretanto, em lugar de normalizar a vida, os trabalhadores de saúde podem participar da produção da vida, ali onde cada um pode gerar um cuidar de si, não para construir um jeito protocolar de viver, mas para construir seu modo original de viver. Essa seria uma clínica do corpo sem órgãos, onde cada indivíduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em redes de fluxos, em redes intercessoras, em efeitos de encontro. No fio da navalha, portanto, outra proposta de corpo sem órgãos. Do corpo sem forças, débil, desvitalizado (ex-órgãos) para o corpo que corre riscos, que sente a vida de todas as maneiras. Na contemporaneidade, esse corpo humano pede socorro, não para sobreviver, mas para viver. A poeta Alice Ruiz (1994) deu texto a essa condição em “Socorro”: “Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar, nem pra rir”. Para o corpo sem órgãos (exangue), a que Ruiz roga socorro, oferta-se o controle da alimentação, o controle da atividade física, o controle da sexualidade, o controle dos níveis de estresse; alimentosremédio, exercícios-saúde, relacionamentos-calmante, lazeres-descarga etc., sem necessidade de buscar o “comum de dois” (usuário e profissional que se dizem respeito): ou todos são iguais, de maneira identitária ou todos são diferentes de modos isolados, passíveis de uma prescrição ampliada. Ruiz pede de volta um órgão que sinta e para o sentir: “Socorro, alguém me dê um coração [...]. Por favor, uma emoção pequena, qualquer coisa. Qualquer coisa que se sinta”. Pede um terapeuta: “Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas. Já não sinto amor nem dor, já não sinto nada”. Não é o apagamento de sintomas que o corpo humano pede, é o sentir: “Socorro, alguma rua que me dê sentido, em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada. Socorro, eu já não sinto nada”. O corpo humano é um corpo de órgãos acoplado a um corpo sem órgãos, não se trata de um corpo saco de órgãos (anatomofisiologia). Deleuze e Guattari (1996) nomeiam esse humano do corpo (sem a forma homem) por Corpo sem Órgãos (CsO). Não haverá um anima ao corpo na sua ausência. Os autores falam, então, em substituição da anamnese pelo esquecimento, da interpretação pela experimentação. Dizem da necessidade de encontrarmos nosso CsO, de saber fazêlo, como uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. O risco, nesse caso, não é o de morrer, mas o de não viver intensamente. Um CsO possui uma tal maneira que só pode existir povoado por intensidades, as intensidades passam e circulam, não constituem órgãos, precisam deles. O contrário do corpo tornado corpo sem órgãos pela nova medicalização é o Corpo sem Órgãos exuberante, ardente. Para os autores, nesse corpo está a arte da medicina (“terapêutica”). Milton Nascimento (1982) diz desse corpo em “Änïmä”: “casa cheia de coragem, vida, todo afeto que há no meu ser”. Fala de uma saúde que “vai além de tudo que nosso mundo ousa perceber; onde se esquece a paz” e da necessidade de, em tal caso, “ir mais, atravessar fronteiras do amanhecer e ao entardecer olhar com calma, então”. Diz desse corpo: “te quero ser”.

Fechamento Vale a pena olhar para os lugares em que produzimos as relações humanas, dando-lhes visibilidade, buscando apurar certa perspicácia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropolíticas que estão agindo no mundo da produção social do desejo, desfazendo instituídos. As práticas de atenção ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivências em forma de sensação, sintoma, aflição, sofrimento e doença, que buscam cuidado profissional de saúde. Uma situação que não está necessariamente inscrita no interior de uma rede de serviços de saúde permite-nos mostrar o desenvolvimento de certa perspicácia para olhar a tensão relativa aos processos de subjetivação que a medicalização do corpo já sem seus órgãos vem propiciando. Castello (2007), em um ensaio sobre João Cabral de Melo Neto, relata que, no final da vida, esse poeta encontrava-se muito triste. Contava que os médicos diziam para ele que isso era depressão e ele contestava, dizia que era melancolia, completando que não haveria remédio capaz de lhe resolver essa situação, pois não era algo que se cura, tem-se. Talvez até a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspirações poéticas. O olhar médico continha uma explicação, as sensações do poeta, outra, revelando-se um plano de disputa sobre o projeto terapêutico a entabular. Situações como essa podem ocorrer em qualquer lugar 540

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- em um serviço de saúde de pronto-atendimento, em uma equipe de saúde da família, em um ambulatório, entre professores de uma escola qualquer e assim por diante - não são exceção, habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo. De fato, esse modo de ver certas situações e denominá-las buscando dar-lhes certo significado e não outro - propor, por exemplo, que ser gordo é ser doente, pelo risco de ser; que ser velho é ser doente, pelo risco de ser etc. - é termos um olhar armado para ver doença diante de algumas “coisas”. Não é um fenômeno casual e nem individual, é uma construção ampla de processos de subjetivação do olhar de cada um e de todos ou, pelo menos, de muitos. São agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domínio de recursos de manejo comunicativo e de poder, tais como os dos setores empresariais ou de certos grupos sociais como o dos profissionais de saúde. Podem ser também agenciamentos mais ocasionais, capilares, como no caso de explorarmos o poeta que temos em nós, mais do que o usuário de saúde que temos em nós, quando somos trabalhadores da atenção em saúde e disputamos sentidos mais plurais para nossas práticas. A produção do “comum de dois” culmina na produção de confiança, confiança que provê acolhimento de autopoieses, que culminam na produção de diferença (defasagem de si) e, portanto, singularização. Sem essa problematização, de fato, não construímos a possibilidade de um devir à humanização, no bojo dos princípios e diretrizes do SUS, pautada pela produção da saúde como produção de vida, um modo autopoiético e solidário de invenção das práticas de atenção. A grande perspicácia, entretanto, estaria na construção de um agir micropolítico e pedagógico intenso: apoiar as desobediências ao instituído/vigente/hegemônico que as humanizações ensejam (antigos ou novos programas) e aproveitar sua oportunidade de política para ser a causa ou motivo de possibilitar a interferência-em-interação, a circulação e a repercussão das vertentes brasileiras de estudo que inspiram e experimentam o contato vivo com processos cotidianos de encontro e alteridade.

Colaboradores Emerson Elias Merhy preparou o texto de base, indicando um argumento à problematização; Ricardo Burg Ceccim reorganizou o texto, reconstruindo sua argumentação final. Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de redação do artigo. Referências CASTELLO, J. Poesia na penumbra. Literatura. Bravo! (São Paulo), v.10, n.121, p.68-74, 2007. CECCIM, R.B. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec, 2004. p.259-78. CECCIM, R.B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Cienc. Saude Colet., v.13, n.5, p.1567-78, 2008. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Como criar para si um Corpo sem Órgãos. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. p.9-29. v.3. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

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IRIART, C. Capital financiero versus complejo médico-industrial: los desafíos de las agencias regulatorias. Cienc. Saude Colet., v.13, n.5, p.1619-26, 2008. LUZ, M.T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2004. MERHY, E.E. O SUS e seus dilemas: mudar a gestão e a lógica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropolítica do trabalho vivo). In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p.125-42. MERHY, E.E.; FRANCO, T.B. Reestruturação produtiva em saúde. In: BRASIL PEREIRA, I.; FRANÇA LIMA, J.C. (Coords.). Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: EPSJV /Fiocruz, 2006. p.225-30. NASCIMENTO, M. Änïmä. In: Änïmä (LP). Ariola, 1982. PELBART, P.P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. PIMENTA, S.G. Pesquisa-ação crítico-colaborativa: construindo seu significado a partir de experiências com a formação docente. Educ. Pesqui., v.31, n.3, p.521-39, 2005. RUIZ, A. Socorro. In: Cássia Eller - 1994 (CD). Universal Music, 1994.

CECCIM, R.B.; MERHY, E.E. Una acción micro-política y pedagógica intensa: la humanización entre lazos y perspectivas. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.531-42, 2009. Este artículo afronta los desafios de una estrategia brasileña en el sistema de salud para mejorar la calidad de su respuesta asistencial y gerencial: la Política Nacional de Humanización. Independientemente de análisis política, conceptual o de resultados, discute la humanización del cuerpo en la salud por medio del confronto con sus reificaciones en la clínica, tal como están presentes en la soberania de los sistemas profesionales sobre las prácticas, en la acción disciplinante que legitima las conductas del tipo diagnóstico-prescripción o en la diseminación de mecanismos que, en nombre de la longevidad de los individuos, estancan la producción de singularidad de la vida. Las nociones de cuerpo de órganos, cuerpo ex-órganos y cuerpo sin órganos se usan para los problemas de la clínica (atención) y la noción de lazos y perspectivas para discutir la transformación de realidades (gestión). La educación y la participación se consideran indisociables de atención y gestión.

Palabras clave: Educación en salud. Trabajo en salud. Cuerpo sin órganos. Medicación. Humanización de la atención. Recebido em 10/03/09. Aprovado em 19/05/09.

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A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio1

CECILIO, L.C.O. The death of Ivan Ilyich, by Leo Tolstoy: points to be considered regarding the multiple dimensions of healthcare management. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.545-55, 2009. The author uses the short story “The Death of Ivan Ilyich”, by Leo Tolstoy, to explore the theme of the multiple dimensions of healthcare management (professional, organizational and systemic) by pointing out the omnipresence and complementariness of these dimensions. Although recognizing that there is no hierarchy between these three dimensions, the discussion focuses on the professional dimension, within which professionals meet users, and highlights how this has been the favored territory for management strategies governed by the search for increasing rationality, predictability and control over current health practices, either in the public or in the private healthcare sector. The author points out the risk that “qualification” and “humanization” healthcare programs might be contributing towards instrumentalization and excessive formalization of the meeting point between workers and users, which adds further difficulty to truly caring encounters like the one narrated by Tolstoy in his short story, or even makes them impossible.

Keywords: Healthcare management. Healthcare work. Healthcare micropolicies.

O autor se utiliza do conto A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, para explorar o tema das múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde (profissional, organizacional e sistêmica), apontando para a imanência e complementaridade que guardam entre si. Mesmo reconhecendo não haver uma hierarquia entre essas três dimensões, focaliza a discussão na dimensão profissional - onde se dá o encontro profissional-usuário destacando como ela tem sido o território preferencial para as estratégias de gerenciamento pautadas pela busca de uma crescente racionalidade, previsibilidade e controle das práticas de saúde, hoje, seja no setor público, seja no setor da saúde suplementar. Aponta para o risco de que programas de “qualificação” e “humanização” do atendimento possam estar contribuindo para a instrumentalização e excessiva formalização do encontro trabalhadorusuário, dificultando ainda mais, senão impossibilitando, encontros verdadeiramente cuidadores como o relatado por Tolstói em seu conto.

Palavras-chave: Gestão do cuidado. Trabalho em saúde. Micropolítica em saúde.

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Assim, a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas. É em função de sua evolução própria que elas percutem uma na outra. Nesse sentido, é preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si. (Deleuze, 1992, p.156)

O acontecimento Ivan Ilitch é um juiz que vive na Rússia czarista da segunda metade do século XIX. Ele é o personagem central de um conto de Leon Tolstói (2008) que tem como tema a experiência do adoecer e do morrer, com base na vivência do enfermo. Ivan Ilitch levava uma vida burguesa, dividindo seu tempo entre o trabalho, o convívio com a família e o jogo regular com os amigos. Uma vida sem muitos sobressaltos ou dificuldades, até que, um dia, começa a sentir uma dor no baixo ventre, do lado direito. A dor, que parecia algo passageiro e sem importância, não só persiste, como vai aumentando com o passar do tempo, resistindo aos tratamentos médicos da época. Junto com a dor, há o emagrecimento e uma crescente deterioração física. Progressivamente, Ivan Ilitch vai tomando consciência da gravidade de seu quadro e de quanto sua antiga vida vai ficando cada vez mais para trás. À medida que o conto avança, somos arrastados, por Tolstói, a compartilhar o sofrimento do personagem. Sem nos darmos conta, aos poucos, começamos a ver os outros personagens, o médico, a família e os amigos, com os olhos do doente. Tolstói, com sua genialidade, nos leva a ocupar “o lugar do doente”, a experimentar “estar doente”. Esse lugar do doente, que vamos compartilhando progressivamente, é um lugar terrível por várias razões que se alimentam e se reforçam mutuamente, criando um campo de sofrimento insuportável. Primeiro, pela dor física contínua e crescente, sem trégua. Depois, pela perda de autonomia. A rotina do trabalho que não mais é possível manter, os jogos com os amigos que vão escasseando e o convívio com a família, que já não era muito bom, vai se tornando cada vez mais distante. Perda de controle sobre o modo de viver a vida. Mas o sofrimento de Ivan Ilitch não para por aqui. Além da dor e da perda da autonomia, o doente vive o tormento do medo da morte. A morte vai assumindo uma materialidade tal que, em dado momento, passa a ser quase uma presença física. Ele passa a conviver com a presença da morte. Dor, perda de autonomia, medo da morte vividos na mais absoluta sensação de desamparo e solidão. Mas, o pior de tudo, é a incomunicabilidade com os outros. Ninguém parece entender o que ele está vivendo. Os médicos, porque insistem em um linguajar técnico, preocupados em encontrar um diagnóstico da doença e a terapia correspondente. A mulher e os filhos expressam pena e culpa ao vêlo naquela situação. Ele sabe que é um estorvo para a família. O pior, porém, é que ele sabe que todos mentem, que todos fingem não ver o agravamento de sua situação. Seus encontros com o espelho são dramáticos, quase insuportáveis. A imagem que vê em nada faz lembrar o homem que era antes. Ele inveja a vitalidade e a autonomia dos que não estão doentes. Um mundo que lhe parece cada dia mais distante. Tal é a situação quando entra um novo personagem em cena: Guerássim, um serviçal, mujique (o camponês russo), analfabeto, é designado para ajudar o patrão quando ele já não consegue mais se cuidar sozinho nas atividades diárias. Guerássim faz a higiene de Ivan Ilitch quando ele vai ao banheiro, ajuda-o a se levantar e se acomodar na cadeira ou na cama, lhe traz a comida, ajuda no banho e no desempenho de todas as atividades cotidianas corriqueiras. Atividades que nos parecem tão triviais, mas que, quando estamos doentes, debilitados ou com alguma incapacidade física ou limitação de movimentos, nos parecem tão dramáticas. Tão dramaticamente impossíveis. Tão denunciadoras da nossa perda de autonomia. Ivan Ilitch descobriu, por conta própria, que deixar as pernas em posição mais alta, descansando sobre uma almofada, lhe traz algum alívio para a dor. Um dia, como a dor não havia cedido o bastante com a elevação proporcionada pela almofada, pensa em experimentar usar duas. Pede a Guerássim que levante suas pernas para colocar mais uma almofada. O empregado atende ao seu pedido. Ilitch descobre, então, que a dor praticamente desaparece quando as pernas são levantadas pelo serviçal. Ele pede que 546

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Guerássim mantenha as pernas bem erguidas mais um pouco. Este experimenta apoiá-las em seu ombro. A sensação de alívio vivida por Ilitch é maravilhosa. Como se fora uma primeira “intervenção terapêutica” eficaz. Algo que, mesmo paliativamente, lhe trazia alguma trégua em relação à dor. A cena passa a se repetir nos dias subsequentes. O ato de colocar as pernas de Ilitch no ombro de Guerássim vai construindo uma intimidade inimaginável entre um senhor e um servo na Rússia czarista do século XIX. Em um dado momento, o empregado passa a tratá-lo por tu. Um dia, Ilitch, preocupado com o desconforto do servo, pergunta-lhe se ele não se cansava e se não se importava de manter as pernas naquela posição durante toda a noite. Diante de tal interrogação, Guerássim lhe responde: “Se não estivesses doente, seria outra conversa; mas, no estado em que estás, por que não te ajudar um pouco?” (Tolstói, 2008, p.73). Progressivamente, o servo dava mostras de ser o único que não mentia e tudo indicava que também era o único a compreender plenamente o que se passava, e não considerava necessário ocultá-lo. “Singelamente condoía-se do patrão tão fraco e esquelético”. Um dia, incitado a ir descansar, disse com toda franqueza: “todos nós temos que morrer um dia. Por que não me sacrificar um pouco agora?” (p.74). Disse, explicitamente, que não considerava um fardo tratar de um moribundo e confiava que mereceria o mesmo quando chegasse a sua vez. Pela primeira vez, alguém não lhe mentia. “O que atormentava Ivan Ilitch era que ninguém o lastimasse conforme gostaria de ser lastimado” (p.74). Como diz Tolstói – e aqui vale a pena reproduzir integralmente para que o leitor tenha uma dimensão da sua percepção –, momento havia, depois de demorados sofrimentos, em que queria, acima de tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, ver-se tratado como se fosse uma criança doente. Queria ser acarinhado, mimado, beijado, tal com se faz com as crianças. Sabia que era um juiz importante, dono de uma barba já grisalha e que por isso mesmo o que ambicionava era impossível, mas ainda assim ambicionava. E no comportamento de Guerássim para com ele havia qualquer coisa próxima daquilo que queria e de tal forma sentia-se um pouco confortado. (Tolstói, 2008, p.74)

A doença progride implacavelmente e os médicos cada vez mais impotentes para encontrar uma solução. A mulher relata ao doutor que Ilitch é rebelde ao tratamento e que “fica numa posição que positivamente não pode lhe fazer bem: de pernas para cima”. Ao que responde o médico: “Que vamos fazer! Os doentes têm mania de inventar uma infinidade de asneiras. Devemos desculpá-los” (Tolstói, 2008, p.81). O conto termina com o momento da morte, vivida na perspectiva do doente. Um momento de libertação dos medos e de alívio da dor, “e de repente, percebeu com nitidez que aquilo que o atormentara e o oprimia se ia dissipando, escoando para fora de seu corpo por todos os lados ao mesmo tempo” (p.101).

O encontro Ivan Ilitch/Guerássim: elementos de uma micropolítica Podemos considerar a micropolítica nas organizações de saúde como o conjunto de relações que estabelecem entre si os vários atores organizacionais, formando uma rede complexa, móvel, mutante, mas com estabilidade suficiente para constituir uma determinada “realidade organizacional” – dessa forma, relativamente estável no tempo, podendo, assim, ser objeto de estudo e intervenção. Os atores são portadores de valores, de projetos, de interesses e disputam sentidos para o trabalho em saúde. É um campo, portanto, desde sempre, marcado por disputas, acordos e composições, coalizões, afetos. Um campo atravessado e constituído por relações de poder. Na micropolítica, há o “racional”, mas também o “irracional”. Na micropolítica há o que se mostra e o que se diz, mas há o que se oculta e o que não se diz tão claramente. Na micropolítica há liberdade, mas há também determinação. Na micropolítica se veem vetores de mudança, mas também muita conservação. Na micropolítica se produz o cuidado, portanto, os usuários são parte central da micropolítica das organizações de saúde (Cecilio, 2007). O encontro de Ilittch com Guerássim não é um encontro de homens “livres”. Estão ambos presos a determinações que, em princípio, delimitam suas possibilidades de ação. São atores que se movem em um campo estruturado por uma série de instituídos, a começar pela relação servo-criado, que é a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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materialização, em uma situação particular, de relações sociais que se inscrevem na sociedade russa précapitalista czarista do final do século XIX. O universal encarnado em relações particulares concretas (Lapassade, Lourau, 1972). Relações duras com certeza e que delimitam, em princípio, o campo do POSSÍVEL. Por exemplo, não era possível a um servo se dirigir ao senhor utilizando-se do “tu”. Como também, provavelmente, não era possível ou estava fora do imaginável, como norma social, patrão e criado manterem confabulações íntimas sobre suas dificuldades pessoais. Por outro lado, o espaço do encontro dos dois – um espaço de cuidado – é atravessado pela Instituição Médica que, entre coisas, estabelece o que é certo e o que é errado no cuidado. Basta lembrar como o médico afirma que “os doentes têm mania de inventar uma infinidade de asneiras” ao saber que Ivan Ilitch está com “mania de ficar com as pernas para cima”. O médico, falando de seu lugar de saber, desqualifica um modo de cuidar que não é o modo de cuidar da Medicina (Clavreul, 1983). No caso, desconsidera exatamente a única forma de cuidado que foi capaz de trazer alguma ajuda a Ilitch, à medida que “ficar com as pernas erguidas” não se enquadra nos cânones da Medicina da época, ou pelo menos o que os médicos julgam razoável e científico como cuidado. No entanto, apesar do encontro de Ilitch e Guerássim não ser um encontro de homens livres, ser um encontro marcado por “determinações” que lhe são externas, ele comporta, sempre, uma margem de liberdade, de possibilidade de criação, de invenção do inusitado, de atualização do virtual, que escapa aos determinismos que estão presentes na situação. Tal é genialidade de Tolstói ao narrar como, no “espaço intercessor” Ilitch-Guerássim (Merhy, 2002), há a invenção de um novo modo de cuidar que escapa dos instituídos e alarga e reinventa o mundo do possível. Uma “tecnologia de cuidado” que nasce do gesto, da proximidade física, da escuta e da generosidade do “cuidador”. A dor de Ilitch, a necessidade de Ilitch, o sentido que Ilitch dá ao seu sofrimento encontrando ressonância, sintonia, resposta por parte do humilde criado. Um momento de empatia (Chacra, 2002). O que ninguém havia conseguido fazer, até então, o servo consegue: inventa junto com Ilitch uma tecnologia de cuidado com potência para diminuir a dor, reconhece seu medo da morte e fala sobre isso, e lhe dá a atenção de que tanto necessita. Tecnologia levíssima de cuidado. Puro gesto. Contato físico. Descoberta em ato: cuidado/ proximidade/transgressão/criação. Erguer as pernas em certo ângulo é tecnologia leve de cuidado, algo que não foi aprendido, que não está em nenhum protocolo. Uma invenção de dois sujeitos no seu espaço de encontro. Em ato. O encontro da Ivan Ilitch e o movimento generoso de Guerássim. A tecnologia é simples: elevar as pernas, estirar os músculos, distensionar o abdômen. Uma criação a dois. A criação não existiria sem o encontro dos dois personagens: sem a necessidade de Ilitch e sem a disposição de escutar e ajudar do mujique. Ilitch, o doente, é protagonista na invenção do cuidado necessário. “Paciente” e cuidador são coautores de uma nova forma de cuidado. Esse é o núcleo do conto do Leon Tolstói que pretendo reter para apresentar sobre a complexidade da gestão do cuidado em saúde em suas múltiplas dimensões.

As múltiplas dimensões da gestão do cuidado A gestão do cuidado comporta, pelo menos, três dimensões, que poderiam ser representadas por três círculos concêntricos, para expressar a idéia de imanência entre elas: uma “dimensão profissional”, uma “dimensão organizacional” e uma “dimensão sistêmica”. A primeira dimensão, ou o círculo mais interno de nossa representação, é a gestão do cuidado na esfera de responsabilidade profissional. Ali onde se dá o sempre singular encontro trabalhador-usuário. É a dimensão em que ocorre o fato relatado no conto de Tolstói que estamos analisando. Três componentes são essenciais para a configuração da boa ou má gestão do cuidado na “dimensão profissional”: a postura ética do trabalhador, em particular como ele concebe esse “outro” (o paciente) que necessita de seus cuidados; a competência com que o trabalhador opera o seu “núcleo” de saber, o que nos remete ao maior ou menor domínio técnicocientífico para buscar as melhores respostas para o problema apresentado pelo paciente; a capacidade de criação de um bom vínculo profissional-paciente. Schraiber (1993), ao analisar o trabalho médico, destaca quanto a “boa prática” desses profissionais está pautada por uma dimensão especificamente técnica e uma dimensão “ética”, no campo dos valores e das representações, incluindo aí o modo como constrói a sua relação com o paciente - mesmo que a autora destaque quanto tal encontro está atravessado por 548

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determinações sociais que, em boa medida, configuram o encontro médico-paciente. Merhy (2007), ao escrever sobre o encontro profissional/usuário, enfoca menos as determinações e aquilo que está instituído, e destaca o que tal encontro tem de potência, de possibilidades de criação e de singularidade, ou seja, haveria, sempre, “encontros Ilitch-mujique” potenciais nos serviços de saúde, e a criação/ facilitação de tais encontros poderiam ser vistas como o eixo de qualquer ação gerencial. O que quero destacar é que há uma dimensão da gestão do cuidado que se realiza no “espaço privado” do encontro trabalhador-usuário. Um espaço de grande potência. O “núcleo duro” da gestão do cuidado. Espaço de irredutível responsabilidade e liberdade de ação do trabalhador. Território-alvo das novas estratégias gerenciais que buscam penetrar esse espaço e moldá-lo de forma heterônoma, seja em uma perspectiva governamental, pelos gestores do SUS, seja numa perspectiva mais empresarial, como no caso do setor da saúde suplementar (ANS, 2004). A outra dimensão da gestão do cuidado, o “círculo do meio” de nossa representação, é a “dimensão organizacional”. Com o irreversível processo de institucionalização das práticas de saúde, a gestão do cuidado, em sua dimensão profissional, desenvolve-se, inapelavelmente, em contextos organizacionais. Uma das características essenciais da transição da medicina liberal para a medicina tecnológica foi exatamente a institucionalização da prática dos médicos, isto é, ela passa a depender, de forma crescente, de contextos organizacionais para o seu exercício (Schraiber, 1993). Novos atores e novas questões vão configurar essa dimensão do cuidado. Trata-se, agora, centralmente, dos desdobramentos da divisão técnica e social do trabalho em saúde, com todas as suas implicações para complexos processos de coordenação de múltiplas práticas profissionais ou das múltiplas “gestões profissionais” do cuidado, para seguirmos com nosso raciocínio. A divisão técnica do trabalho resulta na fragmentação de práticas e exige um custoso esforço gerencial de coordenação dos trabalhos e da comunicação entre os vários profissionais. A divisão social do trabalho resulta em tensões decorrentes das diferentes valorizações – incluindo as remunerações e os status de poder e autonomia – dos diferentes trabalhadores, embora o trabalho de todos seja anunciado como igualmente imprescindível para a “finalização” do cuidado. Na “dimensão organizacional” do cuidado vamos, então, nos defrontar com novos e mais variados atores, novas questões, novos desafios e problemas. Se na “dimensão profissional” há um aparente espaço privado, onde se dá o encontro de dois atores (o profissional e o paciente), agora, na “dimensão organizacional” da gestão do cuidado, questões relativas ao registro e uso da informação, à criação de espaços de conversação e troca, ao estabelecimento de fluxos de pacientes, à normalização de processos de trabalho, ao compartilhamento de responsabilidades, entre outros aspectos, vão configurar uma nova lógica em que a responsabilidade gerencial e a conformação da dinâmica de relacionamento da equipe vão ocupar lugar central. A construção de um conjunto de relações mais complexo, se comparado com o encontro trabalhador-usuário, cuja referência segue ainda sendo a “relação médico-paciente”. Não é preciso chamar a atenção para quanto as dimensões profissional e organizacional do cuidado se interpenetram e se condicionam mutuamente. Assim, o trabalho gerencial ideal deverá se ocupar dessas duas dimensões, com suas especificidades e, ao mesmo tempo, notável interdependência. Por fim, nosso último círculo, o mais externo de todos, representa a “dimensão sistêmica” da gestão do cuidado. A gestão do cuidado pode ser pensada, em uma perspectiva sistêmica, como o conjunto de serviços de saúde, com suas diferentes funções e diferentes graus de incorporação tecnológica e os fluxos que se estabelecem entre eles. Tais fluxos serão definidos por protocolos, controlados por centrais de vagas ou de marcação de consulta, sempre na perspectiva de garantir o acesso dos usuários às tecnologias de cuidado de que necessitam, por meio da constituição e gestão de complexas “redes de cuidado” institucionais, operadas por intermédio de processos formais de referência e contrarreferência, que propiciem a circulação das pessoas por um conjunto articulado de serviços de saúde, de complexidades diferentes e complementares entre si. Este é, em princípio, um mundo razoavelmente estruturado, regido por regras e responsabilidades, e que pode ser objeto de gestão (coordenação, avaliação e controle). A visão sistêmica da gestão do cuidado, como expresso de forma mais recente no Pacto pela Vida (Brasil, 2006), é imprescindível para a consolidação do SUS, mas - e este é o ponto que quero destacar -, não será nunca suficiente se não for enriquecida com outras perspectivas ou o reconhecimento de sua imanência com as outras dimensões do cuidado que desenvolvemos até agora. 549


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Para além das regularidades sistêmicas, seria útil pensar a gestão do cuidado que resultasse na integralidade da atenção buscada pelas pessoas, por tudo o que vimos até agora, como fruto de uma incontável rede de encontros. Encontros nos nós de uma complexa rede de cuidado. Os nós da rede são conexões humanas, são encontros humanos. Há um potencial imenso de energia-criatividadeprodução retida nos nós. Quanto mais esses encontros se aproximarem de um acontecimento como foi o encontro Ilitch-Guerássim, mais criação será possível, mais cuidado, mais linhas de fuga em relação às determinações presentes em tais encontros.

Interrogações sobre a gestão do cuidado que o texto de Leon Tolstói nos provoca Haveria modos de se fazer a gestão cuja lógica fosse ajudar a liberar a potência criadora retida nos nós da rede? O gestor poderia pretender entrar nesse campo sem correr o risco de torná-lo ainda mais estruturado e capturante? Seria possível inventar práticas gerenciais que conseguissem abrir esses espaços de encontro, sem destruir o que precisam ter de espontaneidade e liberdade? É possível tomar estes espaços de encontros como objeto de práticas gerenciais? Se afirmativo, quais os saberes que precisariam ser mobilizados? Não é difícil imaginar que questões referentes ao campo da ética, da visão de mundo, da construção da autonomia individual e coletiva, em um mundo atravessado por determinações e constrangimentos, estarão sempre presentes ao tentarmos responder tais questões. Será sempre um mundo em disputa de sentidos, uma triangulação sempre tensa dos interesses dos trabalhadores, usuários e gerentes/gestores. Voltando ao mujique cuidador: qual seria o segredo de tal encontro no qual se dá o cuidado mais genuíno? Como um serviçal ignorante e analfabeto consegue escutar, de forma radical e criativa, a necessidade de cuidado do outro, conseguindo, assim, aliviar a dor, entender o medo e confortar Ivan Ilitch? Imaginemos uma complexa rede de serviços em que tais encontros se reproduzissem em grande escala. Isso seria possível? Que trabalhador seria necessário “produzir” para sustentar, construir tais encontros? Será que a racionalidade instrumental que caracteriza as organizações formais - com suas metas, sua missão, seus recursos escassos, seus conflitos de interesses, suas hierarquias de autoridade, suas relações de dominação e violência - suportam conviver com a espontaneidade e generosidade da relação entre Ivan Ilitch e o mujique? É possível a generosidade na dureza das organizações formais? Apontei, antes, que nossos dois personagens não eram homens “livres”, mas presos a regras sociais e determinações institucionais muito rígidas. O campo em que se constrói a relação relatada por Tolstói, e que nos encanta, é atravessado por instituições muito fortes: a medicina, as relações de classe, a família. Como, em campo tão marcado, nasce uma forma de cuidado tão criativa e generosa? E se supusermos que houvesse um profissional de saúde “supervisionando” e ditando os “procedimentos corretos”, exigindo o cumprimento de “protocolos de cuidado”, estabelecendo de maneira precisa o que é certo e o que é errado, a relação teria acontecido na forma em que se deu? Basta lembrar que o médico desqualificou o ato de erguer as pernas, não reconhecendo nele nenhuma “validade terapêutica”, ao dizer: “Que vamos fazer! Os doentes têm mania de inventar uma infinidade de asneiras. Devemos desculpá-los”. Penso, também, ser correto supor que há incontáveis encontros Ivan-mujique acontecendo na rede de serviços. Anônimos, não reconhecidos, a não ser, é claro, por aqueles que são cuidados. Na quase brutalidade das relações cotidianas das organizações de saúde (demanda sem fim, precárias condições de trabalho das equipes, gerências despreparadas e autoritárias etc.) produz-se cuidado, produzem-se sentidos que escapam a qualquer lógica gerencial normalizadora e controladora (Cecilio, 2007). Reconhecendo que há muitos bons encontros cuidadores que acontecem sem o (re)conhecimento e a intervenção da gerência, o problema que se nos impõe é: e quando os encontros não são cuidadores? Quando quem procura os serviços de saúde não encontra o que precisa: escuta, atenção e resolutividade para seus problemas? Quem pode detectar que isso está ocorrendo, às vezes de forma sistemática e em vários pontos do sistema? Em pontos obscuros do sistema, ali onde os trabalhadores desenvolvem suas práticas em espaços quase privados, no sentido de não serem alcançados pelo olhar do gestor. Interrogar tais espaços intercessores, espaços Ilitch/mujique, pode ser objeto da gestão em saúde? Essa é a interrogação central de meu texto. 550

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A “dimensão profissional” da gestão do cuidado é o alvo das estratégias gerenciais É fácil reconhecer quanto os esforços institucionais empreendidos na direção da qualificação do atendimento - como definida pelas direções/gerências dos serviços de saúde - têm se baseado na criação de protocolos, de capacitações, de estabelecimento de normas, regras, fluxos e rotinas destinados a “modelar” comportamentos dos trabalhadores, tendo como alvo, justamente, o que denominei do “núcleo duro” da gestão do cuidado, ou seja, a “dimensão profissional”. São estratégias que buscam dar visibilidade, regulamentar, moldar, padronizar o encontro trabalhador-usuário para que critérios de eficácia e eficiência sejam alcançados. Estratégias gerenciais que se destinam, em última instância, a conferir visibilidade, padronização e previsibilidade ao espaço “privado” de tal encontro. O que torna muito complexo o processo da gestão do cuidado, quando pensado em uma perspectiva mais abrangente e articulada como “sistema de saúde”, seja ele o próprio SUS ou os “sistemas de saúde”, que são as operadoras de planos de saúde, é o fato de que as várias lógicas da gestão do cuidado são operadas na perspectiva de múltiplos atores, que, a partir de seus lugares institucionais, seus interesses e dos sentidos que dão às suas práticas, vão produzindo “vetores” (de sentido/ação) que nem sempre se alinham automaticamente à única pretensa macrorracionalidade organizacional. Basta lembrar que, em cada uma das dimensões, há algum ator ou atores que assumem papel diferenciado na gestão do cuidado: o profissional construindo a relação profissional-paciente, o gerente construindo a equipe que cuida e provendo os insumos para seu trabalho, e o gestor construindo as redes de cuidado. Como vimos, as várias dimensões do cuidado se interpenetram. As redes de cuidado que o gestor tem sob sua responsabilidade construir, por exemplo, dependem intimamente do modo como a gestão do cuidado é feita nas outras dimensões. A eterna insuficiência ou a inesgotável demanda por serviços de média e alta complexidade, todos sabem, depende muitíssimo de como a gestão do cuidado é feita pelo profissional e pela equipe. O outro lado da moeda: o cuidado ao paciente, feito pelo profissional, é altamente dependente do trabalho da equipe e de quanto o “sistema” pode ou não oferecer as tecnologias para que o cuidado se “finalize”. Assim, as estratégias gerenciais de disputa de sentidos da gestão do cuidado em sua dimensão profissional terão de dar conta, de forma sinérgica, de um duplo movimento: em uma lógica transversal, cuidar de uma articulação mínima das três esferas de gestão no sentido de conformação de “sistemas de saúde” razoavelmente estruturados e permeáveis às necessidades dos usuários e dos profissionais; e, ao mesmo tempo, em uma lógica mais focal, desenvolver estratégias específicas para o núcleo profissional, no sentido de “interrogá-lo” e promover sua integração às diretrizes ou “políticas de saúde”, tanto do campo público-estatal como das operadoras dos planos privados de saúde. Portanto, não seria demais afirmar que os atores que estão em situação de governo ou de direção superior, sejam eles dirigentes público-estatais ou executivos das operadoras, se deparam com o mesmo problema crucial, que é o de desenvolver a capacidade de, em alguma medida, obter certo controle sobre a dimensão profissional da gestão do cuidado, questionando o grau de autonomia com que ela tem sido historicamente operada, em particular quando se trata do profissional médico. Penso ser possível trabalhar com a idéia de que, no atual contexto da gestão em saúde, duas estratégias polares têm sido experimentadas na perspectiva da abertura do “núcleo profissional” da gestão do cuidado. Poderíamos designá-las, de forma simplificada, como “estratégias instrumentais” e “estratégias de base comunicativa”. As primeiras se caracterizariam por uma concepção instrumental do trabalho em saúde, o qual é visto como meio (“instrumento”) para o alcance de determinados fins, projetos ou políticas estabelecidos pelo gestor. “Gestão de recursos humanos” e, mais recentemente, “gestão de pessoas”, expressam bem essa forma de pensar o trabalho em saúde. Uma vez que os fins, os objetivos/metas e as finalidades do trabalho em saúde são estabelecidos pela direção superior, com base em seus interesses estratégicos, políticos e financeiros, todo o processo de gestão, via mediação de gerências intermediárias “fiéis” e bem capacitadas, se concentraria no COMO alcançar tais fins, objetivos e finalidades, isto é, o trabalho em saúde seria um meio (“instrumento”) para alcançar determinados fins. Por isso, a designação de estratégia instrumental. As estratégias de base COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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comunicativa, por sua vez, assentam-se no princípio de que tanto as finalidades, objetivos e sentidos do trabalho em saúde, como os meios para alcançá-los devem ser construídos por meio de intenso, regular e sistemático processo de negociação, conversação, convencimentos, criação de consensos, entre os vários atores institucionais, lançando-se mão, para isso, de um conjunto de estratégias gerenciais de orientação mais comunicativa, com especial destaque para a idéia de cogestão dos serviços pelos trabalhadores e direção. Isto posto, é necessário que se façam dois esclarecimentos. O primeiro é que, em princípio, a cada uma de tais estratégias corresponderiam modos distintos de se fazer a gestão. Enquanto seria possível associar ao paradigma instrumental um modo de se fazer a gestão mais “autoritário”, vertical (“topobase”) e heterônomo, no sentido de ser mais controlador e mais capturador da autonomia dos trabalhadores, ao paradigma de base comunicativa estariam associados modos mais “democráticos” e participativos de se fazer a gestão. O segundo esclarecimento vem quase no sentido de negar o primeiro, ao afirmarmos que tais estratégias nunca poderão ser encontradas como formas puras, como tipos-ideais weberianos (Weber, 1991). Nas condições reais do processo de gestão, as duas estratégias quase sempre se apresentam de forma mesclada. Um componente comunicativo há de existir sempre, mesmo nos modos mais instrumentais de se fazer a gestão, tendo em vista a incontornável necessidade de alguma negociação com os trabalhadores de saúde, por conta do seu protagonismo, da defesa que fazem de algum grau de autonomia no controle do seu trabalho e, não menos importante, pelo fato de que os trabalhadores são produtores, sobretudo por suas pertenças profissionais, de sentidos para o seu trabalho irredutíveis aos sentidos que a direção pretende impor. Por outro lado, mesmo nas propostas ditas mais democráticas, participativas, em grau menor ou maior, sempre será possível reconhecer alguma instrumentalização ou “funcionalização” dos trabalhadores pelos dirigentes, no sentido apontado acima. Como reconhece Campos (2007), “Não há trabalho em ato (vivo) que não se apóie em algum trabalho prévio (morto). O desafio estaria em lidar com este fato inexorável e não prometer ou sugerir a possibilidade de fluxos espontâneos em que haveria criação ex-nihil. Nesse sentido, admito que todo trabalhador, em alguma medida, estará obrigado a assumir algum grau de ’funcionalidade’. Todos somos, em algum grau, ´trabalhadores funcionais’ à organização, às necessidades e interesses dos outros, sejam usuários ou colegas de equipe”. O managed care (atenção gerenciada), tal como proposto e experimentado nos Estados Unidos, na década de 1990, talvez possa ser lembrado como exemplo mais expressivo de uma estratégia gerencial de base claramente instrumental visando o núcleo profissional da gestão do cuidado, na qual o dinheiro entra como elemento externo para intervir, regular e modificar o núcleo mais “interno” de todo o processo de gestão do cuidado (Iriart, 1999). O mais provocativo na atenção gerenciada é quanto ela toma como alvo exatamente a relação médico-paciente, cuja “privacidade” pode ser considerada como elemento constitutivo da prática médica (Schraiber, 1993). Por outro lado, modos de gestão assentados em uma concepção mais negociada e dialógica entre direção e conjunto dos trabalhadores, com forte ênfase no funcionamento de colegiados de gestão e outros dispositivos de encontro e negociação dos trabalhadores entre si e dos trabalhadores e direção, intencionalmente construídos como espaços de formulação e acompanhamento das políticas, frequentemente sofrem algum grau de instrumentalização pelos gestores, o que é rapidamente percebido pelos trabalhadores, que desenvolvem estratégias de resistência às propostas “participativas”, como apontado em trabalhos anteriores (Cecilio, 2004). De qualquer forma, o que vemos, hoje, de forma marcante, são: a valorização e a utilização de modelos gerenciais pautadas no uso intensivo de informação e sofisticados processos de avaliação, dos quais nenhum ator institucional escapa; a compulsiva protocolização de práticas e a regulamentação de processos de trabalho; uma grande preocupação com a “sensibilização” e a educação continuada dos trabalhadores, bem como o avanço do “gerencialismo” (Vieira, Carvalho, 1999), isto é, a adoção de métodos e práticas de gestão do setor privado no setor público, tudo isso caracterizando o que alguns autores têm chamado da racionalização crescente das práticas de saúde (Carapinheiro, 1998).

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Talvez não seja demais afirmar que [...] o gerencialismo, se adotado de modo acrítico, sem considerar as características do setor público, poderá ter graves conseqüências para o funcionamento dos serviços de saúde, em particular porque pode resultar na exacerbação da lógica instrumental normalmente presente em todas as organizações e, em conseqüência, em aumento das tensões e conflitos e do sofrimento dos trabalhadores e, em última instância, na própria piora da atenção prestada, se considerarmos que, na saúde, o sucesso desse encontro trabalhador-usuário depende, em boa medida, de um clima organizacional mais distensionado. (Cecilio, 2007, p.253-4)

Por tudo o que vimos até agora, é possível dizer que, no atual estágio de institucionalização das práticas de saúde, o encontro profissional-paciente tem sido, cada vez mais, alvo de estratégias gerenciais que disputam o sentido e a dinâmica de tal encontro. O encontro Ilitch-mujique assume, portanto, nas atuais condições de operação dos sistemas de saúde, uma complexidade bem maior que o conto de Leon Tolstói permite antever. O fato de o encontro trabalhador-usuário ser alvo de cada vez mais sofisticadas estratégias de modelagem das práticas dos primeiros, pode nos levar a uma visão bastante crítica e pessimista dos processos gerenciais em curso, se nossa intenção for favorecer encontros Ilitch-mujique que sejam presididos por tecnologias leves de cuidado (Merhy, 2002), produzidas em ato, facilitando uma convergência das necessidades dos usuários com prática de “trabalhadores mujiques”. Trabalhadores generosos, capazes de fazer uma escuta qualificada do que o OUTRO, que está na sua frente, lhe apresenta; e, o que é mais importante, tanto disponibilizar o que já sabe para melhorar a vida desse OUTRO, como ser capaz ou estar aberto para a invenção de novas formas de cuidado adequadas a cada situação singular. Tratar-se-ia, portanto, da possibilidade de se construírem práticas gerenciais que valorizem as “linhas de fuga” que escapam ao que está instituído e sacramentado pelos saberes que operam os serviços de saúde, possibilitando uma escuta mais fina das necessidades singulares de cada pessoa. Por tudo isso é que a interrogação que fiz antes - qual seja: como desatar a energia e a criatividade retida nos “nós” da rede de encontros, produzindo mais saúde e autonomia dos usuários?, como no encontro descrito por Tolstói - permanece em aberto quando finalizo minhas reflexões. Talvez seja correto dizer que ela permanece como o tema central da gestão hoje, quando pensada com base em uma perspectiva crítica. Diante da deterioração das relações nos serviços de saúde, de práticas cada vez mais serializadas e impessoais de cuidado, do angustiante “diálogo de surdos” entre profissionais e pacientes, da baixíssima capacidade para dar respostas mais complexas e matizadas às necessidades de saúde portadas pelos usuários, a imagem comovedora do rico encontro Ilitch/Guerássim funcionaria como um fugidio e, cada vez mais distante, ideal a ser alcançado. No seu lugar, parece-nos cada vez mais tentadora - e, o que é pior, aparentemente a única saída visível - a adoção de práticas gerenciais que se destinam a disciplinar, normalizar, padronizar a dimensão profissional da gestão do cuidado, impondo modos taylorizados de cuidado, por trabalhadores adestrados, controlados, rigorosamente capacitados para o exercício de suas funções. Trabalhadores executando funções perfeitamente projetadas e desencarnadas de qualquer contradição, falha, imperfeição e tudo o mais que, afinal, dá a dimensão humana de cada um de nós. Philippe Meyer (2003), ao descrever, de forma ficcional, um hospital que está sendo inaugurado às margens do Sena, em Paris, pela Comunidade Econômica Européia, em 2033, parece antever, de forma muito sensível, possíveis desdobramentos dos atuais vetores de racionalização das práticas de saúde, ao enumerar algumas das características do hospital do século XXI: “Uma medicina oferecida em amplas instituições dominadas pela ciência e pela técnica, privada de enfermeiras e exercidas por médicos esfalfados pela velocidade da ciência, sobrecarregados por inúmeras obrigações administrativas que exigem mais tempo do que o exercício da medicina” (Meyer, 2003, p.64).

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E fala, também, de uma “nova era de solidão no hospital”. E, como afirma o autor: “Isolamento agravado pela informatização dos dossiês e de alguns tratamentos, pela insuficiência quantitativa das fontes de compaixão e pela absorção dos médicos em tarefas cada vez mais numerosas e que não estão diretamente ligadas ao atendimento” (Meyer, 2003, p.64). Afora essas indicações de uma obra ficcional, o que resultará do triunfo de tais estratégias instrumentais ainda permanece em aberto no atual estágio de conhecimento. Diante do grau de desorganização, desumanização e ineficiência que boa parte dos sistemas e serviços de saúde têm operado hoje, com terríveis consequências para seus usuários, é justo pensar que, a curto prazo, o triunfo do gerencialismo e da exacerbação das tecnologias de gestão mais instrumentais possa resultar em benefícios para quem precisa de cuidados em saúde. Fica, porém, a dúvida sobre quanto tais conquistas de curto prazo poderão, no futuro, contribuir para que se (re)inventem novas formas de cuidado e novos modos de encontros trabalhadores-usuários que resultem na potência, criação e reinvenção do humano, que tanto nos encantam no encontro Ilitch-Guessárim.

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CECILIO, L.C.O. La muerte de Ivan Illitch, de León Tolstoi: elementos para considerar las múltiples dimensiones de la gestión del cuidado. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.545-55, 2009. El autor utiliza el cuento La muerte de Ivan Illitch, de León Tolstoi, para explorar el tema de las múltiples dimensiones de la gestión del cuidado en salud (profesional, de organización y sistémica) apuntando hacia la inherencia y complementación que guardan entre si. Aunque reconociendo que no hay una jerarquía entre esas tres dimensiones, enfoca la discusión en la dimensión profesional - donde se da el encuentro profesional - usuario - destacando como ha sido el territorio preferente para las estrategias de administración pautadas por la búsqueda de una creciente racionalidad, previsión y control de las prácticas de salud actuales, ya en el sector público, ya en el sector de la salud suplementaria. Señala el riesgo de que programas de “calificación” y “humanización” del atendimiento puedan estar contribuyendo a la instrumentación y excesiva formalización del encuentro trabajador - usuario, dificultando aún más, sino imposibilitando, encuentros verdaderamente cuidadores como el relatado por Tolstoi en su cuento.

Palabras clave: Gestión del cuidado. Trabajo en salud. Micro-política en salud. Recebido em 09/06/08. Aprovado em 04/09/08.

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Gestão participativa e corresponsabilidade em saúde: limites e possibilidades no âmbito da Estratégia de Saúde da Família*

Leny Alves Bomfim Trad1 Monique Azevedo Esperidião2

TRAD, L.A.B.; ESPERIDIÃO, M.A. Participative management and co-responsibility in healthcare: limits and possibilities within the scope of the Family Health Strategy. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.557-70, 2009. According to the National Humanization Policy of the Brazilian Unified Health System (Humaniza-SUS), participative management implies the involvement of healthcare workers, managers and users in a pact of co-responsibility based on contracts and commitments with the healthcare system. This paper discusses the limits and possibilities for incorporating participative management and the principle of co-responsibility within the scope of the Family Health Strategy. A multiple-case study was developed, integrating qualitative (dominant) and quantitative strategies, with emphasis on professionals’ and users’ perceptions. Six municipalities in Bahia, Sergipe and Ceará were included. The study showed that the process of social participation and the incorporation of the principle of co-responsibility within the scope of the management and healthcare of the Family Health Strategy is at a very early stage. It was observed that the professionals did not encourage citizen participation and that many users took an attitude of gratitude for the services received.

Keywords: Humanization. Coresponsibility. Social participation. Family Health Strategy. Participative planning.

De acordo com a Política Nacional de Humanização do SUS – HumanizaSUS - a gestão participativa implica o envolvimento dos trabalhadores da saúde, gestores e usuários em um pacto de corresponsabilidade baseado em contratos e compromissos com o sistema de saúde. Este artigo discute limites e possibilidades de incorporação da gestão participativa e incorporação do princípio da corresponsabilidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF). Foi desenvolvido um estudo de casos múltiplos, integrando estratégias qualitativas (dominante) e quantitativas, no qual se privilegiou a percepção de profissionais e usuários. Foram contemplados seis municípios da Bahia, Sergipe e Ceará. Evidenciou-se que o processo de participação social e a incorporação do princípio da corresponsabilidade no escopo da gestão e atenção na ESF é bastante incipiente. Constatou-se que a participação cidadã não é incentivada pelos profissionais e que muitos usuários assumem uma atitude de gratidão diante dos serviços recebidos.

Palavras-chave: Humanização. Corresponsabilidade. Participação social. Estratégia Saúde da Família. Planejamento participativo.

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* Artigo inédito, resultado de Pesquisa sobre Humanização no PSF, financiada pelo CNPq, edital 37/2004. A pesquisa não apresenta conflitos de interesses e o projeto base foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, registro 023-06/CEP-ISC/UFBA. 1 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/ UFBA). Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário Canela. Salvador, BA, Brasil. 40.110-040 trad@ufba.br 2 Doutoranda, ISC/UFBA.

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Introdução A Política Nacional de Humanização (PNH) reconhece claramente o princípio da democratização como um dos requisitos da humanização em saúde. A PNH, entendida como uma política que atravessa as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, propõe a transversalização destas instâncias, reafirmando o exercício da descentralização e da autonomia da rede de serviços e dos coletivos que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil 2006, 2004a). Entre os princípios desta política, destacam-se alguns diretamente relacionados com novos modos de produção e circulação de poder em saúde, a saber: a construção da autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos que constituem o SUS; o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos ou nos processos de gestão e atenção em saúde; o fomento da autonomia e do protagonismo dos sujeitos; o estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão (Brasil, 2006, 2004b). A PNH preconiza a construção de uma gestão participativa que envolva trabalhadores da saúde, gestores e usuários em um pacto de corresponsabilidade baseado em contratos e compromissos com o sistema de saúde. Campos (2005) é categórico ao afirmar que não é possível haver projeto de humanização, sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais e, em decorrência, da democracia em instituições. Ele defende o aperfeiçoamento do sistema de gestão compartilhada no SUS de modo a integrar os distritos, serviços e relações cotidianas na saúde. Reforça-se ainda a necessidade de estratégias que se destinem a aumentar o poder do usuário ou da população em geral frente ao poder e à autoridade sanitária. Trata-se de mecanismos preventivos que dificultem o abuso de poder, lembrando que a predominância de saídas jurídicas, post factum, é um sintoma da perversidade de instituições e das normas vigentes (Campos, 2005). O debate sobre democratização, participação social ou o princípio de corresponsabilidade contido tanto nas diretrizes da Estratégia de Saúde da Família (antes denominada programa), quanto na PNH, remetem inevitavelmente a questões de ordem ética e política que põem em evidência categorias como sujeito, igualdade e autonomia. Com efeito, o projeto de humanização em saúde que vem sendo delineado no Brasil persegue: a produção de um cuidado orientado pelo reconhecimento de pessoa [o sentido de ser membro, de pertencimento a um ethos, a uma cultura, a um grupo que define os próprios significados do “eu”] e de sujeito [o sentido de uma identidade a partir de uma biografia singular, articulada a uma cultura, capaz de dotar de legitimidade a autonomia de cada um]. (Deslandes, 2005, p.40)

Benevides e Passos (2005a) defendem a idéia de que a aposta da humanização do SUS se faz pela produção de subjetividades, e esclarecem que tal proposição não pressupõe a busca de uma equivalência ou indiferenciação entre os múltiplos atores presentes no campo da saúde. Eles refutam esta hipótese apoiados na convicção de que a posição diferenciada que ocupa o conjunto de sujeitos da saúde resulta em subjetividades díspares e conflitivas que produzem a realidade e são produzidas por ela. Ao entender que as subjetividades são produzidas, estes autores propõem que o trabalho de explicitação do plano de produção do instituído deve ser acompanhado por um outro trabalho, que é o de criar condições para a emergência de efeitos-subjetividades compatíveis com as mudanças das práticas de saúde preconizadas pelo SUS. Advertem ainda que a predeterminação daquilo que se espera alcançar em termos de ação inventiva dos sujeitos envolvidos com o processo de produção de saúde, dificulta o processo de valoração dos processos de autonomia, protagonismo, corresponsabilidade ou cogestão. Os desafios para a participação no âmbito da gestão em saúde no Brasil, particularmente pela via dos conselhos de saúde e/ou conferências, vêm sendo alvo privilegiado no debate na produção mais recente sobre o tema. Um entusiasmo inicial sobre as potencialidades destes mecanismos, enquanto vetores de participação política e de controle social, cede lugar a uma posição mais cética, ou quiçá mais crítica. Com efeito, termos como “dilemas”, “utopias”, “desafios”, “problemas” são evocados por diferentes autores para realçar as dificuldades evidenciadas nos processos de participação social no Brasil (Martins et al., 2008; Guizardi, Pinheiro 2006; Morita et al., 2006; Silva, 2006). 558

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Ribeiro (2007) destaca três questões essenciais na produção de políticas públicas comprometidas com a garantia do direito à saúde e valorização dos direitos humanos e da cidadania: a integridade e a dignidade como fundamentos para a organização e regulação das intervenções públicas; o reconhecimento e o respeito à diferença como condição para a realização do direito à saúde; a territorialização dos problemas e das políticas na produção de respostas às novas realidades. Discute-se menos, na literatura nacional, a corresponsabilidade referida ao cuidado em saúde. A concepção de humanização do cuidado, segundo Howard (1975 apud Deslandes, 2006), deveria se basear numa relação de igualdade, posto que as posições de inferioridade e superioridade seriam antítese de um cuidado humanizado. Compartilhar decisões e responsabilidades seria uma consequência e uma reafirmação do fato de se considerar o outro como igual. Entretanto, a literatura consultada pelo próprio Howard já questionava essa possibilidade, dada a assimetria entre o conhecimento específico que o profissional (médico em especial) detém no que diz respeito ao paciente (termo utilizado pelo autor), além de caber moralmente ao médico a tomada de decisões. Assim sendo, o acesso à informação sobre o diagnóstico, tratamento e suas consequências é apontado como condição necessária para se construírem relações menos desiguais no âmbito do cuidado em saúde. O trabalho de Delfino et al. (2004) descreve uma experiência de “cuidar participante” realizada com um coletivo de gestantes. O processo se desenvolveu por meio de ações que integravam momentos de análises, reflexões e sínteses abrangendo as seguintes dimensões: a gestante com ela própria; a gestante com o seu bebê e com os familiares; e os familiares e a gestante com a comunidade. Segundo o autor, esta experiência revelou que a adoção da abordagem participante influenciou na ampliação do conceito de saúde e de cidadania no contexto das gestantes e dos seus coletivos. Deslandes (2006) salienta que a questão da autonomia e legitimidade dos pacientes para a tomada de decisões é um tema bastante discutido no debate sobre humanização e, sem dúvida, suscita muitas polêmicas. Ela levanta uma série de questionamentos com respeito às proposições de Howard. Seria legítimo eleger, como faz Howard, os pacientes de determinado nível educacional? Numa sociedade hierarquizada, seria real pressupor a relação entre pessoa doente e cuidador como uma relação de iguais? Qual a diferença entre considerar a capacidade do paciente em dividir decisões como referência a ser construída em cada encontro real e tomá-la, de forma equivocada, como substituto da responsabilidade médica em arbitrar tecnicamente? Pode-se dizer que o lugar atribuído ao paciente vem sendo progressivamente transformado. A ‘passividade’ e ‘fragilidade’ do papel de paciente cederam lugar ao reconhecimento de um paciente-consumidor, sujeito e portador de direitos, entre eles: o de informação, autonomia (ainda que relativa) e arbítrio, aproximando-se do que denominamos hoje “usuário”. Em texto anterior (Deslandes, 2005), a autora trazia duas outras questões: de quais capitais de protagonismo e autonomia os diferentes atores usufruem? Quais as margens e mecanismos de negociação e ampliação destas fronteiras? No caso dos profissionais, a liberdade de ação pode ser restringida em consequência da limitação de recursos, de compromissos e exigências administrativas ou pela pressão dos seus pares. Os usuários, por sua parte, poderiam ter sua liberdade limitada pela ocorrência de determinadas enfermidades, pela falta de conhecimentos especializados ou pelas normas estabelecidas em protocolos institucionais. É preciso dizer que, a despeito dos desafios conceituais e práticos que possam permear o debate sobre mecanismos de democratização, protagonismo dos sujeitos ou autonomia, existe um consenso sobre a necessidade de se enfrentarem estas questões e se criarem as bases de um movimento realmente instituinte do projeto de humanização em contexto ao ideário do SUS (Ayres, 2006; Deslandes, 2006; Trad, 2006; Benevides, Passos, 2005b; Caprara, Franco, 1999). Na busca de possíveis alternativas aos dilemas apresentados, vislumbram-se possíveis vias no enfrentamento destas questões. Benevides e Passos (2005a) sugerem a ampliação do grau de transversalidade das práticas e relações em saúde, o que permitiria uma comunicação multivetorializada construída na interseção dos eixos vertical (que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários) e horizontal (que cria comunicações por estames). O conceito de transversalidade adotado pelos autores deriva de Guattari (1981) e diz respeito ao grau de abertura que garante, às práticas, a possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores sujeitos do processo de produção da realidade em que estão implicados. 559


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Ayres (2006) propõe um processo de diálogo e responsabilização mútua que comprometa tecnicamente e moralmente profissionais e usuários na tarefa do cuidado. Um movimento que será mais facilitado quanto maior for a confiança no outro, embora a responsabilidade prescinda dessa garantia: “responsabilizar-se implica tornar-se caução de suas próprias ações” (p.73). Outra alternativa, já referida em trabalhos anteriores (Trad, 2006), é conceber a interação trabalhador de saúde-usuário enquanto rede de relações e de comunicações, nos moldes sugeridos por Teixeira (2001). É preciso reconhecer, sobretudo, a complexidade inerente ao encontro entre estes sujeitos e as contradições que ele encerra. Vale destacar que, ao focalizar a questão da corresponsabilidade na gestão e no cuidado em saúde no âmbito da ESF, se reconhece a sua clara vinculação com a temática mais ampla da participação social. Neste sentido, considera-se que o conceito de autopromoção proposto por Demo (1996) permite estabelecer uma aproximação entre as categorias corresponsabilidade e participação social. O autor define “autopromoção” como característica de uma política social centrada nos próprios interessados, os quais passam a autogerir ou cogerir a satisfação de suas necessidades e a reconhece enquanto uma conquista processual e um expoente da cidadania. O presente estudo procurou investigar os limites e possibilidades da incorporação da gestão participativa ou corresponsabilização de trabalhadores da saúde, gestores e usuários com o sistema de saúde, conforme preconiza a PNH (Brasil, 2006, 2004b) no âmbito da ESF e pela PNH. Focalizou-se, especificamente, a experiência de seis municípios da Bahia, Sergipe e Ceará.

Metodologia Esta investigação consiste em um estudo comparado de casos múltiplos (Yin, 1989) de tipo qualiquanti, com primazia do enfoque qualitativo. O estudo foi realizado em três estados do Nordeste: Bahia, Sergipe e Ceará. Para a escolha destes estados, foram decisivos os seguintes aspectos: 1) o tempo diferenciado de implantação efetiva e cobertura da ESF: o Ceará destaca-se como um estado pioneiro neste processo e que apresenta maior cobertura, seguido pelos estados de Sergipe e Bahia; 2) a experiência prévia da equipe de pesquisa em estudos de avaliação da atenção primária de saúde nos três estados. Foram selecionados, em cada estado, dois municípios, considerando: o critério populacional, a cobertura do PSF e um quadro positivo em termos da implantação do PSF. No critério populacional, foram consideradas duas situações: um município de pequeno porte com até vinte mil habitantes com 100% de cobertura do PSF; um município de grande porte caracterizado como grande centro urbano e incluído no PROESF (Projeto de Expansão e Consolidação da ESF), excluindo as capitais. Destaque-se que, nos municípios de grande porte, a margem de escolha foi reduzida, uma vez que um dos estados (Sergipe) dispunha apenas de um município enquadrado no PROESF, além da capital. Com base nos critérios mencionados, foram selecionados os seguintes municípios: Madre de Deus (13.824 hab.) e Vitória da Conquista (285.925 hab.), no estado da Bahia; Nossa Senhora do Socorro (171.842 hab.) e Carmópolis (10.960 hab.), no estado de Sergipe; Maracanaú (193.879 hab.) e Pindoretama (17.138 hab.), no estado do Ceará. Em cada município foram eleitas áreas de estudo que contemplassem os seguintes critérios: quatro áreas nos municípios de grande porte que variavam segundo a qualidade de vida (boa, intermediária; precária e uma área rural, semirrural ou bastante periférica); uma área urbana e uma área rural, semirrural ou periférica nos municípios de pequeno porte. Para a abordagem extensiva (quanti) foram elaborados dois questionários de múltipla escolha aplicados, respectivamente, a uma amostra intencional de profissionais das unidades de saúde da família contempladas no estudo (168) e uma amostra aleatória de usuários residentes nas áreas de abrangência das mesmas unidades (1.223). Os questionários de usuários foram aplicados majoritariamente nos domicílios dos entrevistados. No caso dos profissionais, este processo ocorreu no seu local de trabalho. Ambos os instrumentos foram testados em estudo piloto e foram realizados ajustes prévios a sua aplicação. A abordagem qualitativa, que pretendeu explorar dimensões mais subjetivas associadas com as questões de estudo, foi realizada por meio de grupos focais envolvendo equipes e usuários. Foram 560

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realizados 18 grupos focais com usuários nas seis áreas selecionadas para estudo, nos três estados: quatro nos municípios de grande porte e dois nos de pequeno porte. Em média, os grupos contaram com o número de 12 participantes e duraram em torno de uma hora e vinte minutos. Os questionários e roteiros de grupos focais foram orientados pelas seguintes categorias de estudo: os sentidos ou significados da humanização para os usuários; a relação entre profissionais e usuários da ESF nos diferentes espaços de atuação da equipe, considerando aspectos como: escuta, comunicação (transmissão adequada de informações e orientações); acolhimento às demandas do usuário (consultas, orientações, medicamentos, encaminhamento para outras unidades etc.); infraestrutura (instalações, equipamentos etc.) disponível no programa. Na análise dos dados utilizou-se o programa EPI-Info para o tratamento dos dados coletados por meio dos questionários. Para a sistematização e interpretação dos conteúdos dos grupos focais, adotouse a análise de conteúdo. O estudo seguiu rigorosamente as recomendações éticas previstas na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto base foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Ressalta-se ainda que todos os nomes de usuários e/ou profissionais referidos no texto são fictícios.

Resultados e discussão Corresponsabilidade na gestão e no cuidado: a visão dos usuários Ao focalizar a visão dos usuários, sob uma perspectiva panorâmica, encontramos vários indícios da fragilidade de ordem conceitual e prática associada aos temas de participação ou controle social, cidadania, direito à saúde etc., nos seis municípios pesquisados. Foram recorrentes depoimentos que revelam uma postura de conformismo diante dos problemas do sistema de saúde local, mesmo aqueles que afetam mais diretamente o cotidiano dos territórios investigados. Apesar de reclamarem do tempo de espera e/ou da dificuldade de acesso a alguns serviços, ao adotarem uma análise retrospectiva, na qual comparam a situação atual com aquela anterior à implantação da ESF, muitos usuários tendem a reconhecer como “normal” ou, pelo menos, “aceitável” estas ocorrências. Chama atenção, sobretudo, o fato de que a maioria dos usuários consultados mantém uma postura de gratidão diante de avanços identificados em termos de ampliação do acesso ou qualidade dos serviços de saúde. São raros aqueles que reconhecem os progressos no sistema de saúde como um direito de cidadania. Nestes termos, a qualidade dos serviços e as melhorias no funcionamento da unidade são percebidas quase como favores. Por outro lado, é interessante identificar, entre os usuários, depoimentos que revelam um exercício de autocrítica diante deste quadro: Eu acho que há relaxamento, muitas vezes, por parte da comunidade [...]. Isso vem de longe, é uma falta de informação, mais por parte, por causa da questão social, que muita gente se acomoda mesmo. Nós estamos aqui, né? “Somos todos iguais. Então, eu acho que falta conscientização da comunidade de também buscar. A gente sabe muito reclamar em casa, com o vizinho, mas na hora de recorrer pras autoridades, a gente se inibe. Eu não sei porque, isso acontece muito. (Usuário, Jardim Bandeirantes, Maracanaú, Ceará)

A ausência de interesse da comunidade por questões relativas à organização ou qualidade dos serviços de saúde é justificada, também, como decorrência da postura adotada pelos profissionais de saúde ou pela descrença na efetividade da participação. Há também os que se interrogam sobre o “quê poderiam fazer”, indicando um desconhecimento quanto aos possíveis mecanismos de mobilização social diante dos problemas identificados no sistema de saúde: Antes, eles se preocupavam muito com a opinião da gente, hoje não tem mais isso...há três anos atrás...o último médico fazia reunião e tudo, agora não, teve mas eu não vou porque

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não resolve nada. Algumas pessoas quando tem reunião também não quer falar, ou não vai. Diz: Eu perdi o que lá? Tenho mais o que fazer! Depende da pessoa porque nem todo mundo quer ir, não sabendo que é muito importante ir. (Usuário, Programa de Saúde da Família (PSF) III, Madre de Deus, Bahia) Tem endoscopia, gastro e tudo demora demais. Então, eu achava melhor assim, se pudesse, né... O quê que a gente podia fazer pra não demorar tanto assim, né?! E também a respeito de médica, sabe?! É uma médica só. O quê que a comunidade podia fazer pra vir mais de um médico para aqui? (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia) Destoando da tônica dominante, encontramos, no discurso de um usuário da USF da Vila Serrana, em Vitória da Conquista (Bahia), o reconhecimento de que determinadas ações realizadas pelas equipes de saúde traduzem um direito conquistado pela sociedade: Tratar bem o idoso não é que eles estão fazendo de boa vontade não é obrigação, tem o estatuto do idoso que ta ai em vigor e todo mundo tem que obedecer, não é porque eles são bonzinhos não. (Usuário, Vila Serrana, Vitória da Conquista, Bahia)

A maioria dos usuários consultados nos seis municípios demonstra que desconhece o papel dos conselhos locais de saúde e as ações dos seus representantes nestes conselhos. No limite, desconhece a sua existência. Eu vejo falar que tem...Mas aqui acho que não têm conselho dos idosos, essas coisas. Só saúde mesmo, né? O conselho da saúde é aqui, né? O postinho. Das meninas, né? Porque a gente vem prai, né? (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

Os trabalhos de Vázquez et al. (2005) reforçam a importância de se investir na divulgação dos mecanismos de participação social para a população, ressaltando, contudo, que não é suficiente ter conhecimento sobre a existência destes. Em um inquérito populacional realizado com usuários dos serviços de saúde, em dois municípios de Pernambuco, constatou-se que cerca de metade da população entrevistada conhecia o Disque Saúde e o Conselho Municipal de Saúde (CMS). Entretanto, a taxa de participação era bastante inferior. Voltando ao nosso estudo, observamos que, entre aqueles usuários que demonstram uma postura mais crítica e participativa, encontramos um sentimento de descrédito em relação àqueles que deveriam representar os interesses da população (ocupantes de cargos políticos, representantes de associações etc.), ou mesmo uma lacuna em termos de lideranças que possam assumir o papel de porta-voz da comunidade: Aqui não tem algum trabalho de pastoral, de igreja, de comunidade... não tem nada.. Só político, que vem... Vem, mas só promete. Eles só vêm fazer promessas. (Usuário, Taiçoca, N. S. do Socorro, Sergipe) Aqui não temos representantes. Aqui não temos fiscal. Aqui não temos uma pessoa do prefeito que a gente possa se dirigir pra fazer, pra comunicar as ocorrências. Então, quando tem necessidade de falar sobre o trabalho administrativo municipal, fica de lado, né?! Porque não existe uma pessoa que tenha, assim, autonomia pra chegar e fazer e resolver os problemas. (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia)

Com relação à participação em reuniões promovidas pelas equipes da ESF, muitos usuários atribuem a baixa representatividade da comunidade nestes eventos a um “descuido” ou “descompromisso” por parte deles. Os agentes convidam, mas a população não vai (como se verificou em Madre de Deus). Tanto nas unidades urbanas, quanto na rural, nota-se certa apatia das comunidades estudadas. Outra 562

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posição frequente assumida pelos usuários é transferir para outro, “com mais tempo”, “com mais jeito para falar”: A gente fica calado [...]. Então se agente não é atendida aqui agente vai para Pindoretama, se faltar lá vai para Pratius ...se tiver ficha bem, se não tiver vamos se embora. (Usuário, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará) Eu pelo menos nunca reclamei, to falando agora, eu nunca cheguei para enfermeira chefe para reclamar nada não.... mas sempre alguém fala né? (Usuário, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará) E eu não podia participar. Mesmo assim, eu fiquei como suplente [do conselho local de saúde] porque não tinha outra pessoa. E foi Iraci... na hora de falar... Iraci é ótima. Porque Iraci é velha de idade, mas é nova em espírito. Iraci é muito mais jovem do que eu... Agora mesmo, tava olhando pro relógio querendo sair, mas ela não tá nem preocupada com isso. (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia)

Em alguns casos, a “apatia” aparece como resposta ao “medo” da perda do serviço, fazendo do usuário um “usuário cativo”, sem poder de escolha entre os serviços: Aqui as pessoas parece que tem medo de falar quando surge, mas não dá nem tempo né...não sei se é porque os médicos faltam muito né?...eles vão embora, mudam muito ai não dá tempo nem de reclamar para botar outro. (Usuário, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará)

Por outro lado, em diferentes momentos, os usuários relataram experiência de participação em reuniões entre as equipes da ESF e a comunidade, enfatizando a importância de terem tido a oportunidade de discutir / opinar / sugerir sobre o funcionamento do USF. Toda vez que teve reunião eu participei. A gente pelos menos sabia, falava o queria, ouvia o que eles queriam dizer, né? (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia) Eu acho importante estas reuniões porque eles passam a maneira deles lá de trabalhar, de fazer as coisas, mas nós passamos a maneira que a gente gostaria que fosse. (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

No caso de Madre de Deus, alguns usuários lamentaram o fato de que a frequência dessas reuniões ou a participação da comunidade tenha diminuído após a mudança de local da USF: Quando era lá em cima que tinha reuniões existia sugestões tudo isto, eu participei de algumas, agora depois que mudaram desapareceu isso. (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

No estudo quantitativo, observamos informações complementares no entendimento de atitudes dos usuários relativas à corresponsabilidade na gestão e no cuidado na ESF. Do total de usuários dos seis municípios investigados, 60,8% declararam conhecer as normas da unidade; 52,8% declararam ser consultados sobre as visitas domiciliares das equipes, contudo, 50% declararam não conhecer o horário de trabalho dos profissionais. Em Piratininga, nota-se um envolvimento dos médicos no fortalecimento do controle social dos usuários:

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Dr. Josildo sempre procura incentivar a gente a lutar pelos direitos da gente, se [a gente] quer tirar um funcionário [que a gente] acha que não tá servindo que a gente tem que fazer abaixo-assinado e tudo, ele sempre procura passar isso pra a gente. Ali na frente tem uma caixinha onde a gente dá sugestões, mas nunca vi ninguém fazendo. (Usuário, Piratininga, Maracanaú, Ceará)

Constata-se a dificuldade de estabelecimento de uma relação que respeite a visão do usuário como sujeito de escolha e da autorresponsabilização por sua saúde. Em conformidade com os achados de Schimith e Lima (2004), são observadas situações contraditórias, que vão desde o abandono do usuário à sua própria sorte, até a sobrerresponsabilização da equipe. Como ressaltam os autores, as equipes da ESF não reconhecem, no vínculo com os usuários, uma oportunidade para promover a autonomização do usuário ou a sua participação na organização do serviço. Não se deve esquecer que se trata de um campo onde as visões biomédicas e populares de saúde se cruzam, numa espécie de sincretismo terapêutico. Como ressalta Kleinman (1978), a maior parte dos sistemas de cuidados à saúde contém três arenas sociais, dentro das quais se experimenta e se reage à doença: o popular, o profissional e o folk. Desta forma é necessário que os profissionais de saúde mostrem-se sensíveis à diversidade de convicções e escolhas da comunidade assistida. Se, para muitos usuários, o único caminho eficaz, em caso de doença, é a consulta ao médico e a terapêutica por ele ministrada, para outros, não há conflito em conciliar alternativas caseiras com estratégias biomédicas: Chá pra mim, de pixilinga, noz moscada, isso não funciona. Reza também não. Pra mim só Deus e tratamento médico tossiu, já estou lá, tem que ir pra médica. (Sede, Carmópolis, Sergipe) Elas [a moça do posto e a Agente Comunitária de Saúde (ACS)] respeitam a gente. Ela mesma [a médica] mandou que eu tomasse chá.... ela aceita. (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

O estudo evidencia que mesmo na ESF – onde se preconiza a implementação de ações de educação e promoção da saúde – ainda são lentos os avanços em termos de práticas educativas. As práticas relatadas revelam a dificuldade em romper com as abordagens autoritárias e prescritivas baseadas, ora no discurso higienista, ora no processo de imposição ao tratamento e as medidas higieno-dietéticas exigidas ou indicadas pelos protocolos clínicos. A gente consegue entender o que os profissionais falam porque elas explicam mais de uma vez, devagar. Com educação [...] quando a Dra. Selma marcava, sempre nós vinha[...]. Pra discutir a folha de saúde da gente. O que a gente podia comer. Essas coisas [...] parar de fumar e ela (Dra. Selma) fazia caminhada... com a gente que tinha pressão alta. Nós ia pro balneário, andava mais com ela. (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

Quando analisamos os dados quantitativos referentes ao conhecimento que os usuários detêm sobre as práticas educativas desenvolvidas pelas equipes das USF, vimos que este é bastante limitado. Na análise global dos municípios, encontramos que 62% dos usuários declararam não conhecer os grupos educativos. O percentual daqueles que declaravam desconhecer subiu para 75,6% quando a pergunta referia-se ao horário de funcionamento dos grupos.

Corresponsabilidade na gestão e no cuidado: a visão dos profissionais De modo geral, se apreende uma grande dificuldade das equipes da ESF investigadas em reconhecer o usuário enquanto cidadão, estimulando-o, assim, a participar ativamente de processos relativos à sua saúde e da sua comunidade. Ainda que muitos enfatizem a importância de promover o engajamento da população por eles assistida, na prática não incentivam de forma mais contundente a participação social. 564

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Alguns chegam mesmo a questionar o direito do usuário de reclamar da ESF, tendo em vista os benefícios a ele associados. Eu acho assim porque Madre de Deus em termos de PSF é exemplo [...] temos muito benefícios, muitos benefícios mesmo, e eles reclamam muito entendeu, eles não esperam [...] ele quer uma coisa imediata, chega quer ser atendido de imediato, que passar na frente do outro, ele chega no momento da dor ele reclama, a gente vai orientar ele não quer saber. (Auxiliar de Consultório Dentário (ACD), Madre de Deus, Bahia)

Os municípios do estado do Ceará investiram no desenvolvimento de estratégias permanentes de escuta aos usuários, a exemplo das ouvidorias ou caixa de sugestões. Entretanto, estas foram sendo, progressivamente, desativadas. Nós tínhamos aqui, mas não só aqui, mas em todas as unidades do município um sistema de ouvidoria. Nós tínhamos na unidade uma urna onde as pessoas colocavam seus questionamentos, suas reflexões, reclamações e sugestões também. Esse material era levado à secretaria e lá era aberto na auditoria e fazia um levantamento de como é que estava a unidade, mas nesses últimos meses esse sistema parou de funcionar [...] agora as reclamações são feitas diretamente a secretaria (Médico, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará)

O caráter burocrático do sistema de ouvidoria, a ausência de uma cultura de formalização de queixas por parte da população, bem como a baixa utilização dos dados coletados pelas equipes foram referidos como fatores que conduziram à sua desativação. A sistemática atual, em que as queixas ou reclamações da população são remetidas diretamente à secretária ou gerente (dado comum a unidades dos outros dois estados), foi criticada pelas equipes. Os profissionais alegaram que nem sempre os gerentes ou coordenadores da ESF repassam para as equipes as questões trazidas pelos usuários em relação aos serviços ou outros problemas de saúde no território: O coordenador [gerente], às vezes, ele mesmo resolve e não passa pra gente. Agora, importante que tivesse um maior acesso, tanto das enfermeiras como os médicos, com o coordenador pra que tudo que se passasse lá também fosse transparente pra gente. Pra gente saber realmente o que é que tá acontecendo na Unidade. (Médico, Jardim Bandeirantes, Maracanaú, Ceará)

Para os profissionais com menos tempo nas unidades, se agravam as dificuldades na mobilização de usuários e no endereçamento das suas queixas. Além disso, se evidencia aqui a necessidade de que os trabalhadores dispusessem também de espaços para expressão de suas dúvidas, problemas etc.: Por que nunca foi passado nada para a gente [sobre não ter ouvidoria, caixa de sugestões], a gente tá muito solto, nós estamos trabalhando por amor, nós estamos trabalhando por amor, é isso que eu digo nós estamos trabalhando por amor, porque nós não temos uma coordenadora da ESF, nós não temos aquela pessoa que a gente confie contar nossa mágoa, ninguém tem ainda, por que vocês sabe? (Médico, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará)

Um dos fortes empecilhos a uma maior participação da comunidade, seja em atividades de planejamento ou avaliação, ou em processos ligados mais diretamente ao cuidado em saúde, consiste na dificuldade de os profissionais valorizarem o saber popular. Sobre este aspecto, foram observadas claras contradições nos depoimentos das equipes de saúde. Muitos relatos, como nos exemplos abaixo, enfatizam a necessidade de se colocar no mesmo nível dos usuários, recusando uma relação de tipo hierárquica. Entretanto, o mesmo profissional define o seu conhecimento como superior ao do usuário:

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A gente fez uma vivência que foi muito interessante, a gente avaliou desenhos de crianças [...] ela e o pai, ela pequenininha e o pai grande, ela e a professora, aí porque ela se sente diminuída em relação ao pai. A gente não pode se comportar assim frente ao paciente, seja ele um paciente que esteja lhe pagando, seja do próprio SUS [...] ou do PSF. A gente tem que se colocar no mesmo nível, é claro que a gente tem um conhecimento maior, a gente vai passar este conhecimento pra ele. (Dentista, PSF III, Madre de Deus) A equipe em geral... Tá orientando o paciente a família, o responsável, porque sempre tem aquele que é responsável pela família [...] tanto o agente comunitário na casa, como a enfermeira como a médica, todo mundo falando a mesma linguagem [...] tem este ponto positivo, todo mundo tá entendendo que o paciente também é responsável pela sua saúde. O papel da gente é orientando mesmo. (ACS, Madre de Deus, Bahia)

Ambos os depoimentos incorporam a noção de “igualdade”, mas, em ultima instância, enfatizam o papel doutrinador dos profissionais. No limite, a responsabilidade do “paciente” nos processos de cuidado em saúde é traduzida pela obediência às prescrições dos especialistas, referendadas pelo conhecimento científico. Desconsidera-se, neste caso, a importância do conhecimento prático das pessoas, fruto de suas vivências e histórias de vida, bem como das crenças socialmente compartilhadas. É comum que o reconhecimento e a valorização dos saberes não-técnicos sejam entendidos como obscurantismo ou atraso; no entanto, valorizar a dignidade dessa sabedoria prática é uma tarefa e um compromisso fundamental quando se quer cuidar (Ayres, 2006). Por outro lado, não se pode atribuir aos profissionais toda a responsabilidade da incipiência dos processos de participação social ou da apatia da comunidade diante dos problemas de saúde que afetam a coletividade. Os dados anteriores referentes à postura dos usuários corroboram as queixas das equipes da ESF de que a comunidade não responde de forma expressiva às oportunidades que lhe são oferecidas de maior integração (ou engajamento) com os serviços. A baixa frequência da população em determinadas reuniões convocadas pelas equipes da ESF foi apontada como um indicativo deste fato. Um aspecto importante na análise da gestão participativa diz respeito ao grau de democratização existente no ambiente interno dos serviços. Em um dos grupos focais, os profissionais denunciaram o fato de que, nos municípios de pequeno porte, as questões políticas e a precariedade das formas contratuais de prestação de serviço impedem que profissionais exponham as más condições de trabalho e lutem por melhores condições, sob pena de serem destituídos de suas funções. O temor a perder o emprego é referido também como um fator inibidor de processos de mobilização social: Olhe eu vou falar não especificamente do município que eu estou [...] mas em relação a municípios do interior de uma forma geral, creio que isso seja um problema pior nos municípios de pequeno porte... Assim devido ao nosso vinculo trabalhista, que é zero, nós não temos carteira assinada, não temos direito, podemos ser demitidos a qualquer momento sem justa causa, sem nada[...] e no interior você sabe que todo mundo sabe de tudo, você fala uma coisa hoje e amanhã já tão falando o que você falou... muitas vezes se você estimular uma ação do cidadão paciente, isso é às vezes interpretado pelo prefeito como critica né? (Médico, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará)

Em outro município de pequeno porte, também encontramos a alusão à ingerência política nos processo de gestão da ESF, desta feita, interferindo diretamente nos processos de avaliação realizada pelos usuários. Denuncia-se a manipulação da opinião dos usuários, vinculando os serviços municipais de saúde, incluindo as Unidades de Saúde da Família a uma determinada corrente ou grupo político no município. Tais estratégias incluem, por vezes, a veiculação de informações distorcidas sobre a USF e o trabalho das equipes. Apesar das dificuldades assinaladas, encontramos indícios do empenho de alguns gestores e de equipes da ESF em fomentar o controle social e a participação comunitária. Na unidade de Piratininga,

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destaca-se o relato de uma experiência de compartilhamento com a comunidade de decisões relativas à gestão dos serviços: Existe a participação da comunidade, por exemplo, qualquer decisão que a gente quer tomar a gente não toma só. A gente toma ouvindo a comunidade [...] eu atendo hoje hipertenso, hoje à tarde, mas se a comunidade acha que a hipertensão tem que ser de manhã [...] então, a comunidade decidiu, a gente acata, transfere, faz o horário [...] ninguém faz aqui decisão de cima para baixo não, até porque quando você acerta com o povo você vai junto com eles, se você acerta fora dele, você tá frito né? (Médico, Piratininga, Maracanaú, Ceará)

Alguns profissionais reconhecem que uma maior participação da comunidade nos processos de discussão sobre os princípios da ESF, seu funcionamento e problemas cotidianos iria contribuir para ampliar o entendimento da população sobre esta proposta. Vale notar que o entendimento incipiente da comunidade acerca das diretrizes e normas da ESF é apontado, em alguns relatos, como um fator que gera dificuldades na relação com a comunidade atendida e concebe uma responsabilização da equipes e dos usuários nos rumos da ESF: Eu tento mostrar ao paciente que ele faz parte deste programa, faz parte do projeto, sem ele não vai adiantar nada, ter o agente explicando, ter a médica se ele não contribuir , a gente põe desta forma, mostrando que ele faz parte do meu programa, faz parte do PSF [...] todo mundo tá entendendo que o paciente também é responsável pela sua saúde. O papel da gente é orientando mesmo. (ACS, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

Compartilhar com os usuários os problemas enfrentados pelas equipes no dia-a-dia do seu trabalho na unidade e no território pelo qual são responsáveis contribuiria para tirar o usuário de uma posição de ‘demandante’: alguém que espera pacientemente (ou não) que suas necessidades de saúde sejam atendidas. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer a complexidade de categorias como corresponsabilidade e participação social, especialmente em contextos sociais marcados pela desigualdade de capital cultural, econômico e político. Demo (2005) ressalta que, na avaliação da dimensão participativa, é preciso distinguir e considerar os seguintes elementos: intensidade comunitária, coesão ideológica e prática, identidade cultural, envolvimento conjunto e o clima de presença engajada. Todos estes aspectos devem ser dimensionados em processos que se destinem a promover uma participação efetiva de usuários dos serviços de saúde e da comunidade em geral.

Considerações finais O estudo evidencia que o processo de participação social e a incorporação do princípio da corresponsabilidade no escopo da gestão e atenção na ESF é bastante incipiente. Constata-se que as ações empreendidas pela equipes de saúde da família no âmbito da participação comunitária e do controle social não incentivam à autonomia ou protagonismo dos sujeitos nos processos relacionados com a gestão ou o cuidado em saúde. O cenário encontrado distancia-se, assim, de um projeto pautado no reconhecimento de singularidades e direitos referidos a pessoas e sujeitos (Deslandes, 2005) e na construção da responsabilização mútua de trabalhadores de saúde e usuários na produção de saúde (Ayres, 2006; Benevides, Passos 2005a). Contata-se que muitos usuários mantêm uma atitude de gratidão pelos serviços prestados ou de passividade diante dos problemas encontrados. Por outro lado, a despeito de uma aparente despolitização dos usuários, nota-se o interesse da comunidade na resolução dos problemas de saúde locais e na melhoria da unidade. Os dados reforçam a tese de que a participação comunitária, um dos princípios destacados do SUS, não se garante apenas pelas conquistas obtidas no plano legal, é preciso que ela se expresse na prática

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cotidiana dos serviços de saúde (Cohn, 2000; Côrtes, 2000). Para avançar na efetivação da pretendida corresponsabilidade na gestão e no cuidado, seria recomendável apostar na implementação dos seguintes dispositivos propostos pela PNH: a ampliação do diálogo entre os trabalhadores, entre os trabalhadores e a população, e entre os trabalhadores e a administração, promovendo a gestão participativa, colegiada, e a gestão compartilhada dos cuidados/atenção; a implementação de sistemas e mecanismos de comunicação e informação que promovam o desenvolvimento, a autonomia e o protagonismo das equipes e da população, ampliando o compromisso social e a corresponsabilização de todos os envolvidos no processo de produção da saúde (Brasil, 2006).

Colaboradores Leny Alves Bomfim Trad coordenou o estudo, participou de todas as etapas da pesquisa e da redação do artigo, sendo responsável pela definição do seu escopo, redação do seu núcleo básico e pela revisão geral da versão final do manuscrito. Monique Azevedo Esperidião coordenou o trabalho de campo no estado do Ceará, participou de todas as etapas da pesquisa e da redação do artigo e dividiu com a primeira autora a responsabilidade na revisão da versão final do manuscrito. Referências AYRES, J.R. Cuidado e humanização das práticas de saúde. In: DESLANDES, S.F. (Org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. v.1. p.49-83. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005a. ______. Réplica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, 404-6, 2005b. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS – Documento Base para Gestores e Trabalhadores do SUS. 3.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2004a. ______. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Gestão participativa: co-gestão. Brasília: Ministério da Saúde, 2004b. CAMPOS, G.W.S. Humanização na saúde: um projeto em defesa da vida? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.398-400, 2005. CAPRARA, A.; FRANCO, A.L.S. A relação médico-paciente: para uma humanização da prática médica. Cad. Saude Publica, v.15, n.3, p.647-54, 1999.

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artigos

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TRAD, L.A.B.; ESPERIDIÃO, M.A. Gestión participativa y co-responsabilidad en salud: límites y posibilidades en el ámbito de la Estrategia de Salud de la Familia. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.557-70, 2009. De acuerdo con la Politica Nacional de Humanización del Sistema Único de Salud brasileño, la gestión participativa implica la cooperación de los trabajadores de la salud, gestores y usuarios en un pacto de co-responsabilidad basado en contratos y compromisos con el sistema de salud. Este artículo discute los límites y posibilidades de incorporación de la gestión participativa e incorporación del principio de coresponsabilidad en el ámbito de la estrategia de salud de la familia. Se ha desarrollado un estudio de casos múltiples, integrando estrategias cualitativas (dominante) y cuantitativas en el que se privilegia la percepción de profesionales y usuarios. Se contemplan seis municipios de Bahia, Sergipe y Ceará, estados de Brasil. El estudio ha puesto en evidencia que el proceso de participación social y la incorporación del principio de la co-responsabilidad en el escopo de la gestión y atención en la Estrategia de Salud de la Familia es bastante incipiente. Se constata que la participación ciudadana no es incentivada por los profesionales y que muchos usuarios asumen una actitud de gratitud ante los servicios recibidos.

Palabras clave: Humanización. Co-responsabilidad. Participación social. Estrategia de Sálud de la Familia. Planificación participativa. Recebido em 02/12/08. Aprovado em 12/05/09.

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artigos

Humanização em Unidade de Terapia Intensiva Adulto (UTI): compreensões da equipe de enfermagem*

Silvio Cruz Costa1 Maria Renita Burg Figueiredo2 Diego Schaurich3

COSTA, S.C.; FIGUEIREDO, M.R.B.; SCHAURICH, D. Humanization within adult intensive care units (ICUs): comprehension among the nursing team. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.571-80, 2009. This was a descriptive study with a qualitative approach that aimed to understand how nursing professionals (nurses and technicians) perceive the humanization policy within the scenario of an intensive care unit (ICU) and their importance in this process. It was developed in a private institution in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, with 18 participants. Data were gathered through a structured interview. Issues relating to elements and characteristics that define humanization came out from the analysis, along with questions present within the process that facilitate it or cause difficulties. It was concluded that empathy, respect and value recognition are essential elements and that nursing professionals believe that they can make a difference in the process of humanization, with a view to improvements in care practices based on ethics, dialogue and the autonomy of patients, their family and the nursing team.

Keywords: Humanization of assistance. Intensive Care Units. Nursing. Hospital care.

Trata-se de estudo descritivo de abordagem qualitativa cujo objetivo foi compreender como os profissionais da enfermagem (enfermeiros e técnicos) percebem a política de humanização no cenário de uma UTI e sua importância nesse processo. Foi desenvolvido em uma instituição privada no município de Porto Alegre/RS, com 18 participantes. A coleta dos dados ocorreu por meio de entrevista estruturada. Da análise emergiram aspectos referentes a elementos e características que definem a humanização, bem como questões facilitadoras e dificultadoras presentes no processo. Conclui-se que a empatia, o respeito e a valorização constituem elementos fundamentais e que o profissional de enfermagem acredita fazer a diferença no processo de humanizar, com vistas a melhorar as práticas de cuidado baseadas na ética, no diálogo e na autonomia do paciente, de sua família e da própria equipe.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Unidades de Terapia Intensiva. Enfermagem. Assistência hospitalar.

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* Elaborado com base em Costa (2005). 1 Centro de Terapia Intensiva, Hospital Mãe de Deus, Porto Alegre. Av. João Ferreira Jardim, 700, casa 11. Bairro Rubem Berta. Porto Alegre, RS, Brasil. 91.180-290 enfcosta@terra.com.br 2 Departamento de Enfermagem, Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/Canoas). 3 Doutorando, Curso de Pós-Graduação, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista Capes.

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HUMANIZAÇÃO EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA ...

Introdução Em virtude, sobretudo, da complexidade do conhecimento biomédico, do avanço tecnológico e da qualificação do cuidado em saúde, foram criadas as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), locais em que é possível aumentar as chances de se recomporem as condições estáveis do paciente e de propiciar sua recuperação e sobrevivência. Porém, com o passar do tempo, a UTI tornou-se um local em que a técnica se sobrepõe aos aspectos relacionais de cuidado, uma vez que os profissionais que ali desenvolvem suas ações estão sobremaneira envolvidos com máquinas e monitores e tendem a esquecer que, velados pelos problemas de doença, existem um paciente e sua família. Assim, compreende-se que não só o cenário específico das UTIs, mas também os espaços das instituições e organizações de saúde viraram locus de reprodução do modelo biomédico cartesiano instituído histórico-socialmente. Constata-se que a recuperação de conceitos e práticas humanizadoras tem se tornado urgente, bem como desafiadora. Em meio aos desejos e necessidades emanados dos sujeitos nas práticas e nas relações no campo da saúde, estratégias governamentais começaram a ser traçadas e culminaram com a publicação do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar – PNHAH e, posteriormente, com a Política Nacional de Humanização da atenção e gestão em saúde – PNH (Brasil, 2003, 2001). A política da humanização tornou-se, nos últimos anos, temática recorrente em investigações e reflexões na área da saúde, interessando aos diferentes ramos do conhecimento científico. Vários estudos têm sinalizado a urgente necessidade de gestores e profissionais da saúde se adaptarem e desenvolverem, em seus locais de trabalho, uma assistência de acordo com a preconizada pela PNH (Beck et al., 2007; Bolela, Jericó, 2006; Falk et al., 2006; Casate, Corrêa, 2005; Backes, Lunardi Filho, Lunardi, 2005). Esta pesquisa, portanto, tem a finalidade de compreender como os profissionais da enfermagem (enfermeiros e técnicos) percebem a política de humanização no cenário de uma UTI e sua importância neste processo.

Fundamentação teórica A humanização tem se constituído em uma temática central na atualidade, configurando um dos elementos que podem permitir o resgate do cuidado humanístico ao indivíduo que vivencia o estar saudável e o estar doente e a sua família. Isso porque, ao longo dos tempos, a formação de profissionais e a organização dos serviços de saúde têm privilegiado e priorizado, sobretudo em virtude do paradigma cartesiano, o conhecimento parcelar e especializado, a supremacia do poder médico, a valorização da técnica e da destreza manual e a visão do ser humano como máquina (Deslandes, 2005). Entende-se, desta maneira, que quanto mais especializado for o serviço de saúde, mais presentes estarão as condições que sustentam o paradigma cartesiano. Sendo assim, as UTIs podem representar um espaço que, por sua concentração de tecnologia de ponta, caracteriza-se pela manutenção do saber científico especializado e fragmentado, em que pacientes e familiares acabam destituídos de sua humanidade (Gotardo, Silva, 2005). Em virtude desta realidade, há um movimento profissional e governamental pelo resgate e valorização da humanização no cuidado em saúde, especialmente a partir de 2001. Tendo em vista este contexto, o Ministério da Saúde elaborou o PNHAH, visando, dentre outras questões, humanizar a assistência hospitalar pública prestada aos pacientes, assim como aprimorar as relações existentes entre usuários e profissionais, entre os profissionais, e entre o hospital e a comunidade, com vistas a melhorar a qualidade e a eficácia dos serviços prestados (Brasil, 2001). Com o intuito de unificar as políticas, em 2003, o PNHAH, juntamente com outros programas de humanização já existentes, acabou transformando-se na PNH – o Humaniza-SUS (Brasil, 2003) – o qual passou a abranger, também, os cenários da Saúde Pública (instituições primárias de atenção) na busca por melhorar a eficácia e a qualidade dos serviços de saúde.

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COSTA, S.C.; FIGUEIREDO, M.R.B.; SCHAURICH, D.

artigos

A PNH, assim como os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), se compromete em possibilitar atenção integral à população e a propor estratégias que possibilitem ampliar as condições de direitos e de cidadania. Há que se considerar, ainda, que a humanização, como estratégia de qualificação da atenção e gestão do trabalho, busca “transformações no âmbito da produção dos serviços (mudanças nos processos, organização, resolubilidade e qualidade) e na produção de sujeitos (mobilização, crescimento, autonomia dos trabalhadores e usuários)” (Santos-Filho, 2007, p.1001). Compreende-se que o termo humanização, mesmo considerando o texto base da PNH, apresenta uma polissemia conceitual e uma plasticidade, variando as possibilidades interpretativas desde aquilo que é tido como do senso comum até as leituras de um humanismo ancorado na ética da vida (Benevides, Passos, 2005). Em virtude disso, a PNH não define e delimita um conceito único, apenas circunscreve um entendimento sobre o que é a humanização, ou seja a: valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores; fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos; aumento do grau de co-responsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; identificação das necessidades de saúde; mudança nos modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a produção de saúde; compromisso com a ambiência, melhoria das condições de trabalho e de atendimento. (Brasil, 2004)

A política de humanização, portanto, precisa ser considerada uma construção coletiva que acontece a partir da identificação das potencialidades, necessidades, interesses e desejos dos sujeitos envolvidos, bem como da criação de redes interativas, participativas e solidárias entre as várias instituições que compõem o SUS. Compreende-se que, como política, “ela deve traduzir princípios e modos de operar no conjunto das relações entre profissionais e usuários, entre os diferentes profissionais e entre as diversas unidades e serviços de saúde” (Mota, Martins, Véras, 2006, p.324). A política de humanização deve ser tratada como um elemento de transversalidade para o SUS, estando presente desde a recepção e acolhimento do usuário no sistema de saúde, até o planejamento e gestão das ações e estratégias, sejam elas de promoção, prevenção e/ou reabilitação. Sendo assim, quando se considera o cenário hospitalar, é necessário entender que a humanização precisa estar voltada não só ao paciente internado e aos seus familiares, mas também à própria equipe de saúde, uma vez que será pela inter-relação efetiva e afetiva existente entre eles que o cuidado poderá ser desenvolvido de maneira mais humana, ética e solidária. Segundo Mezzomo (2001, p.276), um “hospital humanizado é aquele que sua estrutura física, tecnológica, humana e administrativa valoriza e respeita a pessoa, colocando-se a serviço dela, garantindo-lhe um atendimento de elevada qualidade”. É, portanto, da convergência de vários aspectos presentes nos contextos hospitalares que se conseguirá implantar e implementar a política de humanização como estratégia eficaz para um atendimento resolutivo e acolhedor ao usuário, e garantir educação permanente aos profissionais, bem como sua participação nos modelos de gestão, para alcançar melhorias na produção de cuidados de saúde. Assim, em meio a estas necessidades presentes nas instituições de saúde e os diferentes aspectos que compõem a política de humanização, entende-se como relevante o desenvolvimento de pesquisas que contemplem o processo de humanizar relacionado às UTIs, seja para o que tange às percepções e significados atribuídos pelos profissionais, quanto para as aplicações e dificuldades práticas de sua implementação. Acredita-se que o principal objetivo da humanização em unidades de alta complexidade como as UTIs seja o de manter a dignidade do ser humano e o respeito por seus direitos, sendo importante dar voz aos profissionais para compreender como eles se percebem em meio a esta política e prática em saúde.

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Metodologia Trata-se de uma pesquisa de natureza exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa, uma vez que teve por intuito explorar em profundidade a temática em voga. O estudo foi desenvolvido na Unidade de Tratamento Intensivo Adulto de um hospital privado do município de Porto Alegre/RS, tendo como participantes 18 profissionais de enfermagem (oito enfermeiros e dez técnicos), que atuavam na referida unidade quando da coleta de dados. A escolha dos participantes foi intencional, de acordo com a disponibilidade em participar do estudo. A coleta de dados foi realizada por meio da técnica de entrevista estruturada (Triviños, 1987) para o preenchimento de um questionário que continha sete perguntas abertas relacionadas ao objeto deste estudo – a política de humanização. A coleta foi feita de forma individual, em sala reservada da própria instituição hospitalar, com data e hora marcada com cada profissional. Este instrumento continha, também, um espaço destinado à caracterização dos informantes para o que tange à idade, categoria profissional e tempo de atuação em UTI. Optou-se pela análise de conteúdo (Bardin, 1977) das informações, a qual deve desdobrar-se em três fases, quais sejam: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Durante a pré-análise ocorreu uma leitura flutuante do material que compõe o corpus para análise; em momento posterior, realizou-se a exploração do material, sendo a fase em que foram feitas as operações de codificação, classificação e agregação em função dos significados. Para finalizar, ocorreu o tratamento dos resultados obtidos, a inferência e a interpretação das unidades qualitativas de significação. No que tange aos preceitos éticos, foi entregue, aos participantes da pesquisa, juntamente com o instrumento de coleta de dados, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, no qual estavam contemplados: os objetivos da pesquisa, que a participação era voluntária, que a identidade dos entrevistados seria preservada, que não sofreriam nenhum tipo de interferência em seu desempenho profissional, e que estavam totalmente isentos de qualquer custo, conforme prevê a Resolução n° 196/ 96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1997). Assim, para evitar a identificação dos sujeitos, optouse por se usarem os códigos S1 a S18, levando-se em consideração que esta ordem sequencial não tem relação com a ordem em que as entrevistas foram realizadas.

Resultados e discussão Apresentar-se-á, a priori, a Tabela 1, que permite a caracterização dos sujeitos que participaram do estudo quanto à idade, categoria profissional e tempo de atuação em UTI. Ao analisá-la, constata-se que a maioria dos informantes encontrava-se na faixa etária entre os 25 e os quarenta anos, tendo tempo médio de trabalho em UTI entre cinco e 15 anos, o que revela o conhecimento das rotinas e cuidados desenvolvidos nesta unidade, bem como a experiência destes profissionais. Entende-se que esta caracterização foi importante pois revelou que as falas obtidas são oriundas de profissionais com experiência em cuidados de alta complexidade e que já desenvolviam suas atividades antes mesmo de a política entrar em vigor, o que justifica, muitas vezes, ao longo dos discursos, uma análise crítica referente à humanização. Dos discursos dos profissionais podem-se extrair elementos que caracterizam as definições que possuem acerca do processo de humanização em saúde e que, de certa forma, norteiam as práticas de cuidado desenvolvidas, conforme segue: é ver o paciente como um todo. (S 4) é ter em primeiro lugar empatia pelo paciente. (S 7)

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Tabela 1. Caracterização dos informantes de acordo com a idade, categoria profissional e tempo de atuação em Unidade de Terapia Intensiva. Porto Alegre, Brasil, 2005 (Costa, 2005). Sujeitos

Idade

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

41 26 40 29 41 30 34 43 31 30 27 31 37 53 25 24 36 22

Categoria profissional Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Enfermeiro Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de Técnico de

Tempo de atuação 18 anos 1 ano 20 anos 5 anos 20 anos 5 anos 10 anos 2 anos 7 anos 11 anos 5 anos 9 anos 6 anos 22 anos 2 anos 3 anos e meio 10 anos 9 meses

enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem enfermagem

Pode-se compreender que os profissionais da equipe de enfermagem relacionam a humanização em saúde como uma política que propicia o resgate de características humanas durante o ato de cuidar, como a empatia. A empatia, como um movimento na tentativa de colocar-se no lugar do outro a fim de melhor compreender o que este outro vivencia, experiencia e sente, tem sido uma importante característica destacada pelos profissionais, juntamente com a responsabilidade, a ética e a sensibilidade (Beck et al., 2007; Amestoy, Schwartz, Thofehrn, 2006). Ainda em relação a estas falas, depreende-se que os profissionais acreditam que a política de humanização possa oportunizar uma visão mais integral do paciente, ou como referiram, é uma possibilidade de vê-lo “como um todo”. Nas entrelinhas deste discurso, entende-se que a humanização significa um meio para superar o modelo cartesiano hegemônico nos serviços de saúde, a partir do desenvolvimento de um cuidado holístico e humanístico, tanto ao paciente quanto a sua família. Outros discursos auxiliaram, também, a definir humanização como: acredito que humanizar está muito além do cuidar, tocar e realizar algumas tarefas. (S 1) valorização e respeito ao ser humano. (S 2)

Com base nestas falas pode-se perceber que os profissionais da equipe de enfermagem consideram que a humanização em saúde vai além de um outro modo de escutar, dialogar, cuidar. Entendem que ela preconiza, ainda, uma valorização dos próprios trabalhadores da saúde, das estruturas físicas dos serviços e da organização destas instituições. Isto é, para humanizar o cuidado é necessária a implementação de várias medidas, como: diminuir o tempo de espera (em filas), melhorar os espaços destinados à equipe e aos pacientes e familiares, fornecer informações compreensíveis e adequadas, rever certas normas e rotinas, entre outras (Beck et al., 2007; Bolela, Jericó, 2006; Falk et al., 2006; Casate, Corrêa, 2005). Sendo assim, humanizar pressupõe resgatar e revelar as características humanas como partes constitutivas do funcionamento hospitalar e como forma de valorizar o paciente, a família e a equipe de saúde, com vistas à mudança paradigmática e ao cuidado humanístico. Além disso, outros estudos (Mota, Martins, Véras, 2006; Martins, 2001) sinalizam benefícios trazidos pela política de humanização aos hospitais, como: a redução do tempo de internação, a diminuição das faltas ao trabalho, o aumento COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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da sensação de bem-estar entre pacientes, familiares e funcionários e, com isso, consequentemente, a redução dos gastos em saúde. A partir destes discursos anteriormente apresentados, pode-se perceber que o conceito de humanização, na perspectiva dos profissionais de enfermagem, encontra-se extremamente arraigado às questões mais relacionais do ser humano, bem como àquelas que envolvem a sensibilidade, o respeito, a empatia e a responsabilidade do/no ato de cuidar. No entanto, faz-se premente ressaltar e problematizar o fato de que a política de humanização projeta-se para além destes aspectos do humanismo, uma vez que ela considera a necessidade não só de melhorar o acesso, o acolhimento e o cuidado prestado, mas também o modo de gerir e administrar as práticas de saúde com vistas a qualificar os serviços. Desta forma, corrobora-se com a afirmação de Amestoy, Schwartz e Thofehrn (2006, p.446) de que a “humanização está muito enfatizada na figura pessoa-cliente, e ainda disponibiliza pouca atenção ao cuidado e a humanização do sujeito-trabalhador”. Além disso, é importante aprofundar estudos e pesquisas que envolvam a equipe multidisciplinar visando clarificar os princípios, métodos e diretrizes que fundamentam a PNH. Isso porque ela envolve tanto o cuidar, quanto o gerir dos processos de trabalho em saúde para que se alcancem mudanças individuais e coletivas, assim como pessoais e estruturais nas organizações de saúde. Neste sentido, é relevante destacar que os profissionais da equipe de enfermagem descreveram alguns fatores que podem influenciar de maneira positiva o processo de humanização de uma UTI. Dentre estes, pode-se mencionar a motivação profissional, o ambiente da unidade, a assistência integral aos clientes e familiares, e a necessidade de educação continuada. Alguns destes fatores podem ser observados nos relatos abaixo: a UTI em que trabalho utiliza iluminação natural, divisória entre os leitos, climatização, garantia de visita diária dos familiares, flexibilidade no horário de visitas, privacidade aos pacientes e familiares, posto de enfermagem centralizado. (S 5) treinamentos, educação continuada, número suficiente de profissionais. (S 6) reuniões da equipe com profissional da psicologia, maior envolvimento com familiares do paciente. (S 10) número suficiente de funcionários para trabalhar, harmonia entre a equipe de enfermagem. (S 12)

Estes fatores positivos e que facilitam a implementação do processo de humanização vêm, também, ao encontro dos achados de outros estudos (Beck et al., 2007; Bolela, Jericó, 2006; Backes, Lunardi Filho, Lunardi, 2005) que indicam serem estes aspectos recorrentes nos discursos dos profissionais. Nota-se que muitos destes aspectos considerados positivos, e que são provenientes da necessidade de adaptação das instituições de saúde para a implementação da PNH, estão relacionados a mudanças e (re)organizações da estrutura física e das rotinas dos serviços. É importante salientar que “além das mudanças internas nos trabalhadores, são necessárias, concomitantemente, alterações no ambiente de trabalho e nas relações interpessoais” (Amestoy, Schwartz, Thofehrn, 2006, p.447), o que vem sendo percebido pelos profissionais da enfermagem. Sendo assim, compreende-se a complexidade de fatores que interferem para que uma efetiva humanização em saúde aconteça, desde questões relacionadas ao paciente e familiares (maior privacidade, climatização) até questões relativas à equipe de saúde (número suficiente de profissionais, harmonia entre a equipe), perpassando por questões estruturais das instituições (iluminação natural, posto de enfermagem centralizado, educação continuada) e redefinição de normas e rotinas (flexibilidade no horário de visitas, garantia de visitas diárias). Por outro lado, também foram elencados fatores que podem dificultar a humanização das UTIs:

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o automatismo das funções, às vezes as pessoas acham que estão lidando com máquinas. (S 10) as “brigas” entre funcionários, o mau humor dos mesmos. (S 10) dificuldade na comunicação não verbal, pouco interesse por parte de alguns. (S 13) as rotinas que são pré-estabelecidas e que às vezes não nos permitem dedicar maior tempo ao paciente e sua família. (S 6)

Com base nas falas, depreende-se que os fatores existentes e que podem dificultar o processo de humanização estão relacionados a três questões: a) ao modo de cuidar, ainda fundamentado no modelo cartesiano de atenção; b) às relações interpessoais entre os membros da equipe de saúde; e c) às normas e rotinas estabelecidas pelos serviços de saúde. Assim, segundo Bolela e Jericó (2006, p.304), “o mecanicismo e robotização das ações da equipe de enfermagem, que por serem rotineiras e, muitas vezes rígidas e inflexíveis, tornam o cuidado ao paciente impessoal, impositivo e fragmentado”, dificultando a prática de um cuidado humanizado, e constituem-se nos principais obstáculos à implementação da política de humanização em saúde. Outra questão que merece ser ressaltada é a formação dos profissionais da área da saúde, uma vez que muitas das instituições educacionais ainda privilegiam as metodologias de transmissão de conhecimentos, muitas das quais descontextualizadas da realidade vivida pelos educandos e mais interessadas na parte fisiopatológica e técnica do processo saúde-doença. Acredita-se, então, na necessidade de reorientação e revisão dos currículos que formam tais trabalhadores, pois não basta a existência de uma política transversal como a da humanização se não houver profissionais competentes e comprometidos com as mudanças paradigmática e dos serviços de saúde. A respeito disso, corroborase com a seguinte afirmação: “as propostas de humanização em saúde suscitam repensar o processo de formação dos profissionais, pois tal processo ainda está centrado no aprendizado técnico, racional e individualizado, com tentativas de crítica, criatividade e sensibilidade” (Souza, Moreira, 2008, p.333). Para implantar e implementar a humanização no cenário hospitalar, os profissionais precisam desenvolver uma consciência de aprimoramento profissional para que possam acompanhar a evolução das novas tecnologias e aliá-las à escuta, ao diálogo e à solidariedade durante o processo de cuidado. A humanização precisa ser sentida e percebida pelos pacientes, familiares e equipe de saúde, sendo que cada processo de humanização é único e singular, dependendo de cada profissional, de cada equipe e de cada instituição (Casate, Corrêa, 2005). Então, não há possibilidade de transformar as relações entre pacientes e equipe de saúde em mais humanas, se os próprios profissionais não se derem conta da sua importância dentro deste processo. Portanto, na busca por descobrir a importância que cada profissional atribui a sua participação dentro do processo de humanização da UTI, foi solicitado aos sujeitos que pontuassem essa importância, tendo, como referência, uma escala que variava entre zero (para nada importante) a dez (para muito importante). A média de importância individual obtida foi oito, o que é significativo para o contexto de humanização. Os sujeitos justificaram suas respostas da seguinte maneira: nota dez - A enfermagem faz diferença nesse aspecto. (S 4) nota nove - O enfermeiro é o profissional mais qualificado para conduzir esse processo. (S 5) nota oito - Me vejo no papel de profissional empenhado em criar um time de trabalho. (S 3)

Considerando que a política de humanização configura estratégia recente de reorientação e reorganização dos serviços de saúde, pode-se compreender a média obtida pelos entrevistados. Além disso, representa um processo dinâmico, complexo e contínuo, bem como que está sendo apreendido pelos profissionais de saúde, ao mesmo tempo em que está em fase de implantação/implementação. Com base nas falas, ainda, pode-se perceber que a grande maioria sente-se importante e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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comprometida com o contexto da humanização, e acredita fazer a diferença neste processo, valorizando sua participação como profissional. Entende-se, como fundamental, este reconhecer-se como importante no processo de humanização por parte da equipe de enfermagem, uma vez que são estes profissionais que desenvolvem os cuidados diretos, bem como são eles que acompanham os usuários durante tempo integral. Assim, é importante que eles se sintam comprometidos, pois, provavelmente, o cenário da UTI seja o mais complexo para se fazer-valer a política de humanização devido à supremacia do modelo biomédico hierarquizante, da fragmentação do ser humano e dos processos de cuidado e da lógica técnico-burocrática existente. Por isso, conhecer e compreender como ocorre a implantação e implementação da PNH neste cenário específico é tão relevante e, por que não afirmar, desafiante para profissionais e gestores dos serviços de saúde.

Conclusões O processo de humanização das relações no ambiente da terapia intensiva é uma preocupação dos gestores e dos profissionais da saúde por envolver a compreensão do significado da vida do ser humano. À medida que novas tecnologias vêm se incorporando às UTIs, é exigida maior qualificação dos profissionais para operá-las com precisão, segurança e eficácia, sem com isso velar os valores éticos, estéticos e humanísticos que norteiam a profissão. Este estudo mostrou que os profissionais de enfermagem definiram humanização como ter respeito pelo ser humano, ver o paciente de forma holística e valorizar o paciente e sua família. Foi destacada a empatia como importante característica que possibilita, aos profissionais, um fazer diferenciado com vistas à humanização da assistência. Foram destacados aspectos que influenciam positivamente o processo de humanização da UTI, como: uma adequada área física, a garantia da visita diária em mais de um turno, ter recursos humanos em quantidade suficiente e com capacitações periódicas, além dos mesmos atuarem em sintonia e com respeito mútuo. Foram apontados, como aspectos que dificultam o processo de humanização da UTI: as relações interpessoais entre as equipes, o despreparo dos profissionais da saúde para o que tange aos princípios, métodos e diretrizes da PNH, e o pouco tempo que estes profissionais possuem para se dedicar ao paciente e sua família devido às rotinas preestabelecidas. A equipe de enfermagem atribuiu nota oito a sua importância como profissionais dentro do processo de humanização, justificando que a enfermagem faz a diferença nesse aspecto e que o enfermeiro é o profissional mais qualificado para conduzir e implementar esta política. Acredita-se que o processo de humanização da UTI propicia: melhorias das práticas cuidadoras, um cuidado comprometido com a ética, o diálogo e a autonomia do paciente e de sua família. Acredita-se, também, na possibilidade de maior participação da família no cuidado ao paciente na UTI, e que a equipe pode ser solidária no desenvolvimento dos cuidados, respeitando a individualidade do paciente e de cada família. Porém, há que se considerar que este processo passa pelas condições de trabalho dos profissionais da UTI e, portanto, é preciso que sejam estimulados ao aprimoramento profissional e incluídos nos processos decisórios de gestão e, assim, sentirem-se valorizados e apoiados pela sua instituição.

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Colaboradores Os autores Silvio Cruz Costa, Maria Renita Burg Figueiredo e Diego Schaurich participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências AMESTOY, S.C.; SCHWARTZ, E.; THOFEHRN, M.B. A humanização do trabalho para os profissionais de enfermagem. Acta Paul. Enferm., v.19, n.4, p.444-9, 2006. BACKES, D.S.; LUNARDI FILHO, W.D.; LUNARDI, V.L. A construção de um processo interdisciplinar de humanização à luz de Freire. Texto Contexto Enferm., v.14, n.3, p.427-34, 2005. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BECK, C.L.C. et al. A humanização na perspectiva dos trabalhadores de enfermagem. Texto Contexto Enferm., v.16, n.3, p.503-10, 2007. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BOLELA, F.; JERICÓ, M.C. Unidade de terapia intensiva: considerações da literatura acerca das dificuldades e estratégias para sua humanização. Esc. Anna Nery, v.10, n.2, p.301-8, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. 2004. Disponível em: <http://www.portal.saude.gov.br/saude/area.cfm?id_area=390>. Acesso em: 16 jul. 2008. ______. Ministério da Saúde. Manual do Humaniza SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. Disponível em: <www.saude.gov.br/humanizasus>. Acesso em: 3 fev. 2008. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. ______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comitê Nacional de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Resolução 196, de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde, 1997. CASATE, J.C.; CORRÊA, A.K. Humanização do atendimento em saúde: conhecimento veiculado na literatura brasileira de enfermagem. Rev. Latino-am. Enferm., v.13, n.1, p.105-11, 2005. COSTA, S.C. A equipe de enfermagem no contexto da humanização de uma Unidade de Terapia Intensiva Adulto. 2005. Monografia (Especialização em Enfermagem em Terapia Intensiva Adulto) - Universidade Luterana do Brasil, Canoas. 2005. DESLANDES, S.F. O projeto ético-político da humanização: conceitos, métodos e identidade. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.401-3, 2005. FALK, M.L.R. et al. Contextualizando a Política Nacional de Humanização: a experiência de um hospital universitário. Bol. Saude, v.20, n.2, p.135-44, 2006. GOTARDO, G.I.B.; SILVA, C.A. O cuidado dispensado aos familiares na unidade de terapia intensiva. Rev. Enferm. UERJ, v.13, n.2, p.223-8, 2005. MARTINS, M.C.F. Humanização das relações assistenciais em saúde: a formação do profissional de saúde. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. MEZZOMO, J.C. Gestão da qualidade na saúde: princípios básicos. Barueri: Manole, 2001.

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MOTA, R.A.; MARTINS, C.G.M.; VÉRAS, R.M. Papel dos profissionais de saúde na Política de Humanização Hospitalar. Psicol. Estud., v.11, n.2, p.323-30, 2006. SANTOS-FILHO, S.B. Perspectivas da avaliação na Política Nacional de Humanização em saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cienc. Saude Colet., v.12, n.4, p.999-1010, 2007. SOUZA, W.S; MOREIRA, M.C.N. A temática da humanização na saúde: alguns apontamentos para debate. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.12, n.25, p.327-38, 2008. TRIVIÑOS, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

COSTA, S.C.; FIGUEIREDO, M.R.B.; SCHAURICH, D. Humanización en Unidad de Terapia Intensiva para Adulto (UTI): comprensiones del equipo de enfermería. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.571-80, 2009. Se trata del estudio descriptivo de planteamiento cualitativo con el objeto de comprender como los profesionales de enfermería (enfermeros y técnicos) perciben la política de humanización en el terreno de una UTI y su importancia en tal proceso. Se desarrolló en una institución privada en el municipio de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, con 18 participantes. La colecta de datos transcurrió por medio de entrevista estructurada. Del análisis emergieron aspectos referentes a elementos y características que definen la humanización, así como cuestiones que facilitan y las que dificultan presentes en el proceso. Se concluye que la empatía, el respeto y la valorización constituyen elementos fundamentales y que el profesional de enfermería cree que establecen la diferencia en el proceso de humanizar, con vistas a mejorar las prácticas de cuidado basadas en la ética, en el diálogo y en la autonomía del paciente, de su familia y en la de su propio equipo.

Palabras clave: Humanización de la atención. Unidades de Terapia Intensiva. Enfermería. Atención hospitalaria. Recebido em 11/03/08. Aprovado em 03/11/08.

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artigos

Desafios da humanização no contexto do cuidado da enfermagem pediátrica de média e alta complexidade Camila Aloísio Alves1 Suely Ferreira Deslandes2 Rosa Maria de Araújo Mitre3

ALVES, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Challenges of humanization in the context of pediatric nursing care of medium and high complexity. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.581-94, 2009. This paper analyzes situations and contexts that favor or cause difficulties in relationships of welcoming and autonomy, including moments and contexts in which participation and coresponsibility are expressed in relationships between nursing and users and their accompaniers. A qualitative approach was used, with an ethnographic perspective and a three-month observation period. The study location was the pediatrics ward of a referral institute for Women’s, Children’s and Adolescents’ healthcare, and the subjects were the nursing staff, users and accompaniers. The results indicated that the welcome was the initial point that was most observed, thus showing that this was a central element of the discussion. The levels of autonomy, participation and co-responsibility correlated with the duration of hospitalization, thus allowing relationships to be established with professionals and knowledge about care to be acquired. It was concluded that there are comprehension gaps in the humanization project for this service, involving management and care.

O presente artigo analisa as situações e contextos que propiciam ou dificultam as relações de acolhimento e autonomia, compreendendo os momentos e contextos em que o protagonismo e a corresponsabilidade são expressos na relação entre enfermagem, usuários e seus acompanhantes. Utilizou-se da abordagem qualitativa, por meio da perspectiva etnográfica e um período de observação de três meses. O local de estudo foi a enfermaria de Pediatria de um instituto de referência no cuidado da Saúde da Mulher, Criança e Adolescente, e os sujeitos foram equipe de enfermagem, usuários e acompanhantes. Os resultados apontam que o acolhimento foi o princípio mais observado, mostrando-se como elemento central da discussão. Os níveis de autonomia, protagonismo e corresponsabilidade relacionaram-se ao tempo de internação, permitindo estabelecer relações com os profissionais e adquirir conhecimentos sobre a assistência. Conclui-se que existem lacunas na compreensão de um projeto de humanização para o serviço, contemplando gestão e cuidado.

Keywords: Humanization of assistance. Welcoming. User embracement. Participation. Co-responsibility.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Acolhimento. Autonomia. Protagonismo. Corresponsabilidade.

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1 Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua das Palmeiras, 93/603. Botafogo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.270-070 camila.aloisioalves @gmail.com 2,3 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz.

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DESAFIOS DA HUMANIZAÇÃO NO CONTEXTO DO CUIDADO ...

Introdução A humanização é um conceito polissêmico que se refere a reflexões e proposições sobre novas formas de agir, relações mais simétricas entre os sujeitos, por meio das quais o saber formal e científico, as experiências e saberes de pacientes e acompanhantes contribuem com a produção de conhecimento (Deslandes, 2006; Ayres, 2005). No campo da saúde, o conceito de humanização é assumido oficialmente, por intermédio da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2003), como uma proposta voltada para uma nova relação entre usuários, suas redes sociais, trabalhadores da saúde e gestores, apostando no trabalho coletivo na direção de um Sistema Único de Saúde (SUS) acolhedor e resolutivo. A PNH possui alguns de seus princípios norteadores - o acolhimento, a autonomia, o protagonismo e a corresponsabilidade - que devem servir como base para as mudanças na relação entre profissionais e usuários. É uma política que coloca em questão as práticas em saúde, construídas com base no modelo biomédico, principal referencial epistemológico para a formação dos profissionais do campo (Brasil, 2003). A crítica não está em apontar um modelo desumanizado, mas considerar que, ao longo do avanço científico, as práticas e as formas de reflexão superespecializaram cada parte do corpo humano, cindindo com a unidade dos sujeitos. No âmbito da assistência pediátrica de média e alta complexidade, a cronicidade e gravidade dos casos colocam os profissionais frente à necessidade de desenvolver um fazer que considere: o uso de tecnologias de ponta, a incorporação constante de novos conhecimentos sobre doenças raras, limitações do desenvolvimento e maturação dos pacientes, além da relação com usuários e acompanhantes. Para tanto, este trabalho buscou entender como a humanização podia ser percebida nas relações dialógicas entre a equipe de enfermagem, usuários e seus acompanhantes, privilegiando o acolhimento na assistência e a participação dos atores no cuidado. Seu objetivo é analisar as situações e contextos que propiciam ou dificultam as relações de acolhimento e autonomia, e compreender os momentos e contextos em que o protagonismo e a corresponsabilidade são expressos na relação entre enfermagem, usuários e seus acompanhantes.

Acolhimento, corresponsabilidade, autonomia e protagonismo O acolhimento envolve a observação e escuta atenta, capaz de perceber as diversas demandas. Como conceito norteador da PNH, pode ser entendido como princípio voltado para uma reflexão das práticas de saúde, pois reconhece o outro em suas diferenças a partir de um compromisso de responsabilização no encontro terapêutico. Além disso, a PNH toma-o também como dispositivo que opera mudanças concretas nos processos de trabalho e na gestão dos serviços (Brasil, 2006). O acolhimento reacende a capacidade de alteração das práticas, pois convoca à análise e à revisão cotidiana das mesmas no âmbito do sistema de saúde, provocando incômodo ao salientar que promover saúde e cuidar são atos de corresponsabilidade entre os sujeitos. Para Campos (2003), corresponsabilidade refere-se à construção de parcerias entre profissionais de saúde e usuários, elaborando alternativas para a condução de um caminho e considerando valores culturais dos diferentes coletivos. A corresponsabilização implica produzir sentido para as diferentes ações dos sujeitos, além de proporcionar, por meio dos espaços coletivos, a manifestação do saber do outro. Considerar as redes de relações que envolvem os sujeitos e os valores que os permeiam é uma das reflexões que impacta na construção de uma responsabilização compartilhada e permite entender que o ser humano é um ser dependente de suas redes. No cotidiano de uma enfermaria, um amplo conjunto de fatores envolve os profissionais, pacientes e acompanhantes. Considerar o que os permeia é o caminho para canalizar força para a produção de subjetividades protagonistas e responsáveis pelo cuidado. Valorizar o fortalecimento das redes de relações entre pacientes e profissionais da saúde, entre pacientes e seus familiares, é entender que essas redes de autonomia/dependência são importantes para a saúde (Soares, Camargo Jr., 2007). A autonomia refere-se à capacidade de decisão dos atores baseada em informações, diálogo e 582

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valorização da rede de relações que permeiam os indivíduos. É um valor que se constitui de forma relativa, relacional e inseparável da dependência entre os sujeitos. Fortalecer a autonomia dos mesmos requer incentivo à rede de relações que os sustentam (Soares, Camargo Jr., 2007; Fabbro, 1999). Ofertar e construir uma via de diálogo em que a autonomia possa ser exercida passa pelo conhecimento dos limites e das alternativas em jogo e requer pensar o indivíduo como dependente do coletivo. Para Soares e Camargo Jr., (2007, p.75) “ser humano autônomo é aquele que reconhece sua necessidade do outro em todos os planos – afetivo, intelectual, emocional”. O exercício da autonomia também está diretamente relacionado com a qualidade de informação disponibilizada durante o encontro terapêutico. É na medida em que paciente e acompanhante disponibilizam e compreendem o contexto em que estão inseridos, que a autonomia de ambos pode ser exercida de forma mais plena. Compartilhar informações necessárias que envolvem o tratamento permite estabelecer uma participação construtiva no processo terapêutico, possibilitando aos sujeitos a manifestação de sua capacidade protagonista. O protagonismo é um princípio que implica: troca de aprendizados, construção de novos saberes, democratização de informações e desenvolvimento de ações em parceria (Rabello, 2002). O ser protagonista refere-se à ação baseada nos conhecimentos existentes e naqueles que são aprendidos no contexto da assistência, atuando de forma construtiva e compartilhada nas relações entre usuários e profissionais de saúde. Nesse sentido, o acolhimento como princípio base e que possibilita a construção de relações mais dialógicas, pode facilitar a produção de vínculos, entendendo o usuário como capaz de exercer sua autonomia e sua capacidade protagonista, compartilhando a responsabilidade pelo cuidado.

Metodologia O presente trabalho elegeu a perspectiva etnográfica como meio para apreender os fenômenos elencados no estudo, já que permitiu a entrada no universo de diferentes sujeitos a partir de suas rotinas de trabalho e de cuidado (Creswell, 1997; Peirano, 1995). A etnografia é uma abordagem originária da antropologia que, de forma integrativa, leva em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade (Laplantine, 2003). A preocupação de um estudo com enfoque etnográfico incide em definir como um ethos de determinado grupo ou coletivo se atualiza na prática. O pesquisador que escolhe esta abordagem espera que, por meio da ampla e profunda observação do cotidiano do grupo a ser pesquisado, consigam se compreender as características do comportamento, dos costumes e das formas de vida de um coletivo (Creswell, 1997). O local de estudo foi a Unidade Pediátrica de Internação (UPI) de uma instituição de referência no cuidado, ensino e pesquisa da Saúde da Criança, Adolescente e da Mulher, no Município do Rio de Janeiro, que possui 22 leitos para atender crianças e jovens entre as idades de zero a 18 anos. Como sujeitos participantes de estudo, foram escolhidos: a equipe de enfermagem (técnicos e enfermeiros), pacientes e acompanhantes. Destaca-se a exclusão dos pacientes com osteogênese imperfeita que se internam para a realização de um tratamento inovador na área, com medicação intravenosa, o que exige uma preparação da equipe para receber esses pacientes. É uma internação programada, o que estabelece uma relação diferenciada com os profissionais da equipe de enfermagem. A escolha pela enfermagem, como elemento central do grupo de sujeitos, partiu da compreensão de que a mesma mantém uma relação mais intensa e contínua com os pacientes e acompanhantes. A entrada no campo foi, previamente, preparada por meio de um encontro com a chefia de enfermagem. A recepção foi positiva, demonstrando entusiasmo e apostando na perspectiva de contribuição para o trabalho desenvolvido na enfermaria. O período de observação foi de três meses, contemplando diferentes horários dos plantões de trabalho, bem como as diferentes equipes e a movimentação de admissão e alta dos pacientes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A entrada no campo exigiu da pesquisadora, psicóloga e sanitarista, abrir-se a um mundo diferente de suas práticas. O contato com uma enfermaria pediátrica produziu um considerável estranhamento. Entretanto, no decorrer do trabalho de campo, foi possível estabelecer relações de parceria e troca, determinantes para a compreensão de lógicas e práticas de cuidado. Segundo Laplantine (2003), para alcançar o homem em suas dimensões, é preciso dedicar-se à observação de fatos sociais cotidianos, que podem parecer pequenos, mas cuja significação só pode ser encontrada nos seus papéis assumidos dentro de um coletivo. Para acessar os fatos cotidianos e os papéis desempenhados pelos sujeitos da pesquisa, foi desenvolvido um roteiro, que norteou a entrada no campo com foco nas rotinas de cuidado da enfermagem, trocas de plantão, admissão e alta de paciente, dentre outras. O diário de campo foi utilizado como instrumento para o registro das observações, experiências e reflexões do estudo. Após o período de imersão no campo, a maior riqueza de um trabalho etnográfico está relacionada à análise mais refinada dos dados iniciais, por meio da qual poderá ser verificada a ocorrência de novos indícios, de dados que ampliarão a capacidade de reflexão e que permitirão uma abordagem diversa (Peirano, 1995). Primeiro foram revistas as observações registradas no diário de campo, depois estas foram mapeadas segundo as categorias de análise, respeitando os princípios da humanização e os objetivos desse trabalho. No item de análise e discussão, será apresentado o material analisado segundo as categorias elencadas no estudo, oriundas dos princípios da humanização, e trechos do diário de campo serão descritos com o objetivo de validar as interpretações. Além disso, será desenvolvida uma caracterização da enfermaria com objetivo de ilustrar o campo de estudo. Cabe destacar que esse trabalho foi submetido à aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) e aprovado sob o número 0012/028.

Caracterização da enfermaria A enfermaria possui 11 boxes, contendo: dois ou três leitos, cadeiras dos acompanhantes, pertences dos pacientes, como roupas e brinquedos, além de televisão e aparelho de DVD. A enfermagem compõe equipes que contam, durante a semana, com dois enfermeiros diaristas e cinco plantonistas (entre enfermeiros e técnicos de enfermagem). Aos finais de semana, o quantitativo diminui para cinco plantonistas, sendo a carga horária do plantão de 12 x 60 horas. Na parte da manhã, as rotinas estavam concentradas nos procedimentos médicos e de enfermagem e nas atividades dos demais profissionais, como fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais e voluntários do Projeto da Biblioteca Viva4. No horário do almoço, havia uma divisão da equipe de enfermagem para suprir o cuidado na enfermaria e os acompanhantes desciam para se alimentar no refeitório. Por meio dessa dinâmica, a parte da tarde contava com um ambiente mais tranquilo, em que a enfermagem conseguia estar mais próxima dos pacientes e acompanhantes. Na parte da manhã, a sequência de procedimentos (banho, medicação, limpeza de curativos etc.) era automatizada para conseguir ser realizada dentro do tempo hábil. Com relação ao período noturno, a tranquilidade era maior ainda, pois apenas a equipe de enfermagem ficava completa e os médicos eram representados por seus plantonistas. 584

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4 Projeto que tem como objetivo promover um espaço de estímulo à criatividade e organização do pensamento das crianças internadas ou em atendimento ambulatorial. Os espaços de leitura são compostos por livros de literatura infantil e juvenil, com a mediação de leitura para bebês, crianças, jovens e seus acompanhantes, respeitando as restrições de contato e cuidados especiais (http:// www.iff.fiocruz.br/ textos/prog_bibiviva.htm)


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Durante a pesquisa, as mães dos pacientes representaram a maioria dos acompanhantes, enquanto a minoria era de parentes da família e amigos. Os pais frequentavam mais a enfermaria em momentos de visita. Apenas o pai de uma paciente mantinha uma relação de maior permanência na enfermaria, substituindo a mãe em alguns dias. Com relação ao horário de visitas, logo após o início do estudo, foram ampliados para todos os dias da semana. Dentre os pacientes internados, a maior parte era representada por bebês e crianças de até três anos. Em segundo lugar, estavam as crianças com idades entre cinco a dez anos. Ao todo, apenas três adolescentes passaram pela internação no período. Todos os pacientes internados e observados no período apresentavam patologias graves e crônicas, como as neurológicas e de origem genética.

Análise e discussão Observar a materialização de princípios presentes e defendidos pela PNH no contexto estudado foi uma tarefa que exigiu um olhar diferenciado para a rotina de trabalho da enfermagem e uma compreensão que procurasse entender mais detalhadamente os meandros existentes nas relações entre esta equipe, os pacientes e seus acompanhantes.

Acolhimento Comparativamente com os demais princípios da humanização, o acolhimento foi o princípio que mais facilmente foi observado nas relações entre enfermagem, pacientes e acompanhantes, bem como o seu inverso, ou seja, as situações de não acolhimento. Foi possível observar situações em que os profissionais procuraram desenvolver um cuidado diferenciado para as crianças, respeitando o cuidado da mãe e mantendo uma interação com a criança durante o banho, a troca de curativos e a administração de dietas. Ao final de uma manhã foi realizada uma visita no leito de uma paciente que apresentava muitas feridas espalhadas pelo corpo devido a sua enfermidade. Conforme os curativos foram sendo tirados, a criança chorava e gritava muito. Diante do desconforto da paciente, a reação da enfermeira foi cobri-la novamente, num movimento de compreensão do constrangimento, ainda que a paciente não verbalizasse uma só palavra. (Diário de campo, 09/06/08)

A situação de internação de uma criança ou adolescente, em geral, é um momento delicado para a família e que requer reconfiguração da rotina de vida e assimilação do processo de adoecimento. O momento da hospitalização é uma experiência marcada pela ruptura com o cotidiano da escola, dos amigos, da família e das brincadeiras. “A atividade e a liberdade características da infância são substituídas pela passividade, deixando-se poucas opções para que a criança faça escolhas” (Mitre, 2006, p.286). Essa modificação produz um estranhamento da experiência de hospitalização que diferirá entre pacientes e familiares. As referências do contexto de vida da criança e do adolescente são substituídas pelas paredes claras, procedimentos invasivos, medicamentos, maquinários, novos termos e palavras e sensação de dor e sofrimento (Mitre, 2006). Nos casos de pacientes pediátricos crônicos e agudos, a relação com o adoecimento se modifica e novos conhecimentos são aprendidos pela criança. Muitas cresceram convivendo com situações de vida limitantes e aprendendo a incorporar o espaço hospitalar ao seu cotidiano. Destaca-se a diferença existente entre a apropriação do espaço hospitalar e o estabelecimento de vínculos pelos pacientes internados há mais tempo e seus acompanhantes, em detrimento daqueles que estavam recém-admitidos.

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Ao longo dos plantões, as acompanhantes que estão há mais tempo internadas mantém relações de amizade e discutem os casos de suas crianças, além de apoiarem-se. Em caso de necessidade de algum insumo ou orientação sabem onde procurar. Em contraposição, uma mãe recém admitida permanecia com dúvidas em relação ao caso de sua filha, o que a deixava desorientada. (Diário de campo, 16/06/08 e 02/07/08)

Entre os primeiros, puderam ser observadas relações de afeto e de parceria, desenvolvidas com o tempo, além de terem adquirido maior conhecimento sobre o funcionamento do hospital e sobre a assistência, tornando o cotidiano menos hostil. Entretanto, para os segundos, a recente experiência gerava expressões de medo e insegurança diante do desconhecido mundo hospitalar. Cabe destacar a existência do grupo de mães, que propicia a integração e a troca de experiências por meio de encontros semanais. Como veículo que propicia o acesso aos saberes de pacientes e acompanhantes, o diálogo foi observado em diversas situações na prestação da assistência. Ainda que os pedidos de mães e acompanhantes não tenham sido respondidos prontamente em função do excesso de trabalho para uma equipe reduzida, elas foram atendidas na totalidade dos casos, seja fornecendo-se algum insumo, seja para auxílio à beira do leito, como na troca de curativos e orientações gerais. Segundo Coa e Pettengill (2006), o papel da enfermeira em Pediatria é de defensora e educadora da criança, sendo de sua responsabilidade prepará-la e informá-la sobre o procedimento ao qual será submetida. Ainda que haja discordâncias entre a definição desse papel e perfil, sabe-se que, na relação com a criança internada, vários fatores envolvem a condução do caso, passando pela rede de relacionamentos que se estabelece. Despontando no primeiro nível de relacionamento, estão os acompanhantes - na grande maioria representados pela figura da mãe -, que passam a desempenhar um papel fundamental para a recuperação do paciente. A experiência das mães na assistência aos filhos é permeada pela dinâmica das atividades do cuidado. Muitas delas, sobretudo aquelas que estavam há mais tempo com seus filhos internados, já adquiriram conhecimentos sobre os cuidados, desde o banho até a troca de curativos e monitoramento de equipamentos. Contudo, como esse cuidado não é técnico e especializado, ocorreram problemas que precisaram de correções e ajustes segundo a avaliação da enfermagem. Em muitos casos, o diálogo prevaleceu como instrumento de contato para esclarecimentos, reduzir fontes de problema e minimizar os conflitos. Durante uma conversa entre uma acompanhante e a enfermeira foram solucionados problemas referentes ao curativo que a mãe fizera. Foi explicada à mãe a seqüência dos passos para a realização do curativo, e a mesma tanto se posicionou crítica ao conhecimento, quanto parceira da enfermeira. (Diário de campo, 30/08/08)

O desenvolvimento do cuidado dos acompanhantes não partia de uma opção dos mesmos, eles foram sendo inseridos na rotina, aprendendo e atuando. Não existia um projeto terapêutico que integrasse os saberes e delimitasse os graus de atuação dentro de cada esfera do cuidado. A mudança de postura dos profissionais, englobando a família e/ou o acompanhante no universo da internação, é apontada por Collet e Rocha (2004) como uma modificação do foco antes centrado apenas na criança e sua patologia para aquele centrado na família. A assistência pediátrica passou a ter, como meta, a família, considerada a unidade primária do cuidado, não desconsiderando os avanços tecnológicos conquistados, mas agregando valor ao incluí-la na perspectiva do cuidado, cabendo à enfermagem entender o indivíduo e prestar assistência. O primeiro reflexo dessa mudança refere-se à organização do trabalho, que precisa ter um novo arranjo em âmbito teórico e prático. A permanência dos pais vem imprimindo outra dinâmica no processo assistencial, pois se abre a oportunidade para que aprendam algumas habilidades técnicas e ampliem o conhecimento sobre o funcionamento do hospital e da terapêutica (Lima, Rocha, Scochi, 1999).

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A presença do familiar no contexto da internação da criança e do adolescente representou um avanço para as relações entre os usuários com o hospital, mas como iniciativa isolada não dá conta da necessidade de se compreender a dinâmica que envolve o processo de adoecimento da criança e do adolescente. A presença do acompanhante precisa ser seguida de um projeto terapêutico de integração do cuidado, pois seu sentido relaciona-se à doença do paciente. Nesse momento entram em jogo as habilidades e capacidades de comunicação, diálogo, acolhimento de diversas demandas e oportunidades de expressão da autonomia. No contexto observado, essas habilidades e capacidades estavam sujeitas à sensibilidade individual dos profissionais, o que tornou o encontro entre estes e os acompanhantes sujeito à sorte das características como afinidade, paciência e tolerância de ambas as partes. Cabe destacar que essa enfermaria conta com o trabalho de profissionais que apresentam formações distintas no campo da saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e terapeutas ocupacionais). Esse fato tanto privilegia que o paciente receba um atendimento permeado por diversos olhares, quanto desafia a equipe a construir um trabalho que favoreça a integração interdisciplinar. A enfermagem - como equipe para qual são delegadas, na grande maioria dos casos, as funções de informar e conduzir o cotidiano da assistência - vivenciou, em muito casos, momentos de dúvida e de nebulosidade na definição de papéis dentro da enfermaria, seja na relação entre os profissionais de saúde, seja na relação entre os acompanhantes. Para Collet e Rocha (2004, p.194), [...] Tudo fica subentendido nessa relação. A partir do momento que a mãe adentra no mundo do hospital, não tem claro qual a natureza ou extensão de sua participação no cuidado, vai descobrindo no cotidiano da assistência. Existe cooperação na assistência, contudo, fica caracterizada uma relação entre enfermagem e mães mais de dominaçãosubordinação do que de colaboração, de co-participação no cuidado à criança hospitalizada.

Compartilhar os cuidados com a mãe é desejado pela enfermagem, mas isso é feito sem uma coparticipação materna, estabelecendo relações de mando. O diálogo nem sempre faz parte dos instrumentos da enfermagem para negociar os cuidados com a mãe e para acolher as demandas do serviço (Collet, Rocha, 2004). Durante uma consulta ambulatorial, mãe e filha foram encaminhadas para a internação, dado a gravidade do caso da menina. Ao subirem para o andar da enfermaria, ficaram seis horas esperando, sem receber qualquer tipo de informação e alimentação. (Diário de campo, 16/06/08)

Ao se admitir a paciente, observou-se o relato da mãe que dizia ter tentado contato com profissionais e nenhuma resposta ou encaminhamento recebera. O diálogo falhou, também, em situações de dúvidas sobre a condução do caso pelas equipes médica e de enfermagem. Uma das mães, com pouco tempo de internação e em busca pelo diagnóstico da filha, não conseguiu saber informações mais claras sobre o que estava acontecendo. Por não encontrar uma via clara de diálogo, optou por não verbalizar suas dúvidas. Tempos depois, essa mesma mãe conseguiu se sentir mais habilitada para emitir questionamentos à equipe. O diálogo também não ocorreu em situações como: Durante a passagem de plantão, o pai de uma criança recém internada adentrou a enfermaria, muito nervoso, em busca de informação sobre o caso da filha. O técnico de enfermagem ao presenciar a situação disse: “o senhor aguarda lá fora, até o procedimento da sua filha acabar”.. e foi encaminhando-o para fora da enfermaria em meio aos prantos paternos. (Diário de campo, 16/06/08)

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Para Sabatés e Borba (2005), é um dever da enfermeira fornecer informação completa, apurada, correta e clara sobre as condições e as reações à doença, o tratamento da criança, e verificar como os pais compreendem a situação. As autoras apontam que há um descompasso entre a satisfação dos pais pela informação recebida e a percepção das enfermeiras acerca do entendimento dos pais sobre o fornecimento das informações. Para além da informação clara e objetiva, está a necessidade de se estabelecer um espaço de diálogo, que habilite os diferentes atores a expressarem suas dúvidas e sentimentos. Esse espaço não pode estar atrelado ao tempo de internação, mas instituído como forma de gestão do cotidiano do serviço. Ter um espaço de diálogo representa uma forma de acolher o outro e sua demanda. Em internações prévias, uma acompanhante sofreu uma queda da cadeira. Como sofria de dores nas costas, pediu que alguém trocasse a cadeira antiga que encontrou ao reinternar seu sobrinho. Diante da solicitação uma enfermagem falou: “se ela tem problemas, melhor não ficar por aqui”. (Diário de campo, 16/06/08)

A troca ocorreu dias depois, pois a equipe colocava como problema ter de transferir uma cadeira de outro boxe, o que poderia danificá-la. Até a transferência da cadeira se efetivar, sucederam-se dias de um relacionamento distante entre a enfermagem e a acompanhante, que julgava ser simples a resolução de seu problema.

Autonomia As situações que mais caracterizaram o princípio da autonomia foram: as referentes aos cuidados das mães em relação aos seus filhos, as conversas com as equipes por meio da apropriação do espaço e do processo de tratamento. As mães que estavam há mais tempo na enfermaria conseguiram exercer um maior grau de autonomia no exercício do cuidado por terem adquirido conhecimentos sobre a assistência em detrimento daquelas com pouco tempo de internação. Durante o movimento inicial da manhã, no horário de banho das crianças, muitos acompanhantes, prontamente, encaminhavam-se para o banheiro ou realizavam a higiene do paciente ao leito. (Diário de campo, 25/05/08) Ao chegar a alimentação dos pacientes, alguns acompanhantes de crianças dependentes de alimentação enteral, iniciavam os procedimentos necessários como lavar as mãos, e ir passando a alimentação, observando o andamento da absorção dos pacientes. (Diário de campo, 29/05/08) Ao finalizar a higiene da criança, uma das acompanhantes conduziu a troca do curativo. Houve extravasamento do líquido abdominal e diante da dificuldade de resolver o problema, dirigiu-se à enfermeira solicitando ajuda: “já tentei limpar o curativo, mas continua a sair aquele líquido, não sei o que fazer... e ela (paciente) está chorando muito”. (Diário de campo, 27/06/08)

Para os pacientes, o cuidado pode ser ofertado por vários atores que os envolvem durante a assistência, e a ação de um não minimiza os efeitos do outro, mas agregam valor e benefícios. Para os pacientes, podem ser traduzidas como fontes de cuidar e de sentir-se cuidado (Gonzaga, Arruda, 1998): a presença dos pais, dos profissionais da saúde, profissionais do hospital, de visitas e de companheiros de quarto. Contudo, as fontes do não cuidar remetem às atitudes de desinteresse manifestadas pelos profissionais, tais como executar os procedimentos de forma fria e mecânica. Todas essas ações contribuem para o aumento da angústia e estresse que o paciente está vivenciando no momento da hospitalização (Gonzaga, Arruda, 1998). 588

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Durante a passagem de um cateter intravenoso profundo, procedimento invasivo feito na sala de procedimentos, a criança estava extremamente assustada e com muito medo. A enfermagem conduziu o processo, mas em nenhum momento foi explicado para a paciente, que já tinha 12 anos, o motivo do procedimento. Quando foi preciso fazer um ajuste do cateter, a paciente novamente ficou amedrontada. (Diário de campo, 27/06/08 e 02/07/08)

Essa observação exemplifica falhas no diálogo entre a enfermagem e o paciente, e entre a enfermagem e a equipe médica, pois em alguns casos a enfermagem executa um procedimento solicitado pelo médico sem averiguar a compreensão da criança e/ou da família sobre a situação.

Protagonismo O protagonismo também esteve atrelado ao tempo de internação. Destaca-se a capacidade de negociação de uma paciente de 15 anos, com várias internações recorrentes desde o início de sua vida. Para a internação de uma criança a enfermeira solicitou a uma colega que pegasse um saturímetro. A colega encontrou um aparelho disponível com a paciente de 15 anos e solicitou que emprestasse para outra criança. A adolescente disse: “não me importo de emprestar, desde que ele volte para mim a noite... Não posso dormir sem o saturímetro”. (Diário de campo, 02/07/08)

5 Programa interdisciplinar, que utiliza o brincar como estratégia de intervenção no adoecimento e hospitalização infantil, por meio da criação de espaços lúdicos dentro das enfermarias pediátricas e junto aos ambulatórios, destinado às crianças, suas relações com os acompanhantes e equipe de saúde. Funciona regularmente há 14 anos, duas vezes por semana, na enfermaria de Pediatria.

Em outro caso, a mãe utilizou seus conhecimentos sobre as reações da filha para solicitar à fisioterapeuta que trocasse o horário do atendimento, atuando como mediadora entre a técnica e a filha. A proposta de trabalho da fisioterapia comprometia o estado de saúde da sua filha, pois iria ser feita antes da passagem da dieta, afetando a disposição da criança para o cuidado. Uma outra forma de denúncia de desarticulação entre as equipes fez de uma mãe protagonista do cuidado de sua filha, pois utilizou seu conhecimento sobre o funcionamento do serviço para solicitar maior atenção ao quadro da paciente, exigindo, criticamente, integração da equipe. A capacidade de exercer o protagonismo nas relações no contexto observado passa também por uma “habilitação” da expressão e da fala conquistada por meio do maior tempo de permanência no serviço. Além disso, o protagonismo exercido pelas mães não vem acompanhado de outra relação protagonista da enfermagem. Como os papéis no cuidado com a criança não estão claramente definidos (mães e enfermagem se alternam em certas tarefas), a capacidade protagonista, tanto da mãe quanto da enfermagem, não se manifesta com a mesma facilidade. O que mais facilmente se observou foi uma relação de protagonismo da enfermagem versus um posicionamento antagonista da mãe. Entretanto, os momentos de maior protagonismo vivenciado pelas crianças internadas estavam relacionados à entrada da equipe do Programa Saúde Brincar5. Nesse momento, a expressão das crianças mudava e era dada a chance de outro tipo de comunicação por meio do lúdico. O ambiente hospitalar, o desconforto dos procedimentos e as experiências advindas dos mesmos encontravam outro canal de comunicação.

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Corresponsabilidade Já em relação à corresponsabilidade, o mesmo foi observado em relação ao cuidado dos pacientes desenvolvido somente pela mãe/acompanhante ou enfermagem e em parceria entre os dois atores, demonstrando que a prestação do cuidado ao paciente é central e todas as relações giram ao redor das práticas assistenciais. Por intermédio do exercício da técnica, acompanhantes e enfermagem vivenciaram situações de proximidade e de distanciamento em suas relações. Transmitir conhecimentos técnicos aos acompanhantes gerou problemas a serem gerenciados pelas equipes, pois abriram caminho para a ocorrência de erros e colocaram a enfermagem em alerta diante dos fatores que envolviam o paciente. Existia, como norma entre a equipe, a obrigação técnica dos profissionais, e somente eles, de fornecer os cuidados aos pacientes. Contudo, diante do acúmulo de trabalho da enfermagem, contar com alguém que conseguisse ministrá-los, como os acompanhantes, produzia uma situação paradoxal de ajuda. Entretanto, para os acompanhantes, as ações do cuidado não eram vistas como obrigação, pois existiam dias em que se queria fazer tudo e outros dias em que nada se queria fazer. A confluência dessas duas situações gerava ambiguidade no trabalho e conflito nas relações, comprometendo o andamento das rotinas. O investimento na relação entre a enfermagem, usuários e seus acompanhantes - a partir de fatores como o acolhimento pautado pelo diálogo, o conhecimento que se adquire e os papéis que são assumidos no contexto da internação - poderá incentivar o protagonismo e a autonomia das crianças e dos seus acompanhantes. Nesse sentido, Castro (2001) traz à luz um novo conceito sobre a infância por meio de sua teoria da ação, a qual enfatiza a importância de legitimar a criança como um ser capaz de exercer seus direitos mediante sua capacidade de ação no mundo e de compreensão do mesmo. A autora considera que a infância possui distintas possibilidades de intervenção a partir das diferentes categorias sócioetárias e das inserções nos espaços de convivência. Com isso, a autora questiona a visão desenvolvimentista sobre a criança como um ser em processo de formação e que, portanto, necessita de normas para que o débito social e cultural possa ser saldado por meio de ações educativas. Como um ser incompleto e desprotegido, a criança teria, na figura do adulto, um porta-voz de seus desejos e direitos. A valorização do saber dos pacientes pediátricos sobre seu processo de adoecimento e sobre as relações experienciadas no contexto de internação são tão importantes quanto a experiência dos familiares e acompanhantes. O direito de expressão destas crianças pode fornecer valiosos subsídios para que as práticas em saúde possam ser repensadas em prol de uma assistência mais integral e acolhedora. Entre as crianças observadas, ficou clara a existência de possibilidades de expressão do corpo e da fala sobre o que estava sendo experienciado, demonstrando os diferentes canais de comunicação. Durante a aspiração de secreções de uma paciente portadora de uma síndrome grave, que a impossibilitava de falar, suas expressões faciais manifestavam o desconforto da situação. Essa mesma paciente também expressava contentamento ao ver a mãe e profissionais voltados para seu cuidado. (Diário de campo, 29/05/08)

A partir dessa compreensão, é possível construir relações em saúde que não sejam pautadas pelo assujeitamento e pelo controle, e apostar na capacidade do paciente de expressar, criar e reinventar normas que possibilitem a administração, de forma autônoma, da sua margem de risco na vida, ampliando as capacidades de enfrentamento da doença junto às relações que lhe são mais importantes. O reconhecimento, por parte da equipe de saúde, das condições nas quais se encontram o corpo e a subjetividade do paciente é o passo inicial para a incorporação de uma nova forma de compreensão do acolhimento, considerando os fatores que envolvem a vida do paciente. Assume-se, como proposta, tomar o cuidado como valor (Pinheiro, 2007), apreendendo-o como uma ação integral que tem significados e sentidos voltados para a compreensão da saúde como direito 590

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ao tratamento médico e das demais especialidades, possibilitando ao paciente participar ativamente das decisões sobre a condução de seu próprio caso. O cuidado começa quando se inicia uma relação dialógica entre paciente e profissional de saúde que transcenda o simples jogo de perguntas ativas do médico e respostas passivas do paciente, em direção à construção de um campo de trocas, em que ao saber do médico incorporam-se as experiências do indivíduo. Com isso, é possível se estabelecerem relações pautadas pela parceria de pessoas que têm, como objetivo, encontrar o caminho mais curto que as leve ao restabelecimento da saúde. Caprara e Franco (1999) salientam a necessidade de se superar o modelo informativo, que repassa a informação, e o modelo paternalista, que protege o paciente da sua própria doença, para um modelo de comunicação que inclua outros atores importantes na vida dos pacientes. Para Deslandes (2004a), as possibilidades comunicacionais estão relacionadas à posição social que os indivíduos ocupam. Na relação entre médicos e pacientes existe, historicamente, uma diferenciação entre o lugar e valor de suas falas. Contudo, a construção de uma via de diálogo inicia-se por meio do reconhecimento do lugar do paciente como sujeito na relação. Segundo Deslandes (2004b), o movimento necessário para mudar essa lógica da atenção em saúde não passa só pela incorporação de um novo entendimento acerca dos pacientes e de suas vivências, mas de uma mudança que trabalhe, também, com vistas para a cultura organizacional, a qual concentra as relações de saber-poder, de gênero e status social. Esses fatores são capazes de alimentar determinadas formas de relacionamento entre os atores nas instituições. O cuidado assumido como valor (Pinheiro, 2007) propõe que se reconheça o ethos do ser cuidado e do cuidador, o que requer incluir, na relação, a dimensão da vida individual, com seus hábitos e costumes, e a vida em comunidade, sendo ambas promotoras de identidade nos sujeitos. É ser capaz de incorporar o ethos do outro, num processo de alargamento de si mesmo e fazendo daquele momento terapêutico um momento único de contato e diálogo. Para tanto, destacam-se duas situações que servem como exemplos breves para uma reflexão sobre a possibilidade de abertura à proposta de humanização pelo coletivo. Uma delas é a de uma paciente que, com poucos meses de vida, foi internada no instituto, apresentando uma doença genética rara e que compromete todo seu desenvolvimento, pois é completamente dependente de equipamentos. A mãe, de origem nordestina, vinha tentando sua transferência já há algum tempo e, durante o trabalho de campo, verbalizou esse desejo de estar com a filha perto do restante da família. A dificuldade estava em conseguir um transporte aeroviário que fosse habilitado à transferência de paciente com seus equipamentos. Meses se passaram até que fosse viabilizado o transporte por meio da Força Aérea Brasileira. Para tanto, a equipe do Departamento de Pediatria, incluindo médicos, enfermeiros e demais profissionais, mobilizou-se para promover essa transferência da maneira mais segura e acolhedora possível. A mãe pôde atuar como corresponsável no processo de transferência, tendo reconhecida, pela equipe, sua necessidade de proporcionar um cuidado para a filha amparada pela rede familiar presente no outro estado. O segundo caso traz o falecimento de uma paciente cuidada pelo serviço por muitos anos que, depois de uma cirurgia cardíaca, voltou dependente de equipamentos e com pouca capacidade de interação com as outras pessoas, inclusive com a mãe. Sua história era permeada pelo afeto e carinho que os profissionais já possuíam pela menina. Ao final do trabalho de campo, ocorreu seu falecimento, e a forma como médicos e enfermeiros conduziram o processo do luto da equipe e da mãe merece destaque. Primeiramente, ao perceberem que a paciente estava falecendo, conseguiram acolher a mãe e conduziram, de forma corresponsável, os cuidados clínicos, além de terem procurado manter a calma do setor para que os demais acompanhantes não ficassem abalados. Com a comprovação do óbito, reintegraram a mãe ao boxe, onde estava o leito da filha, mantendo uma postura de acolhimento à dor materna. Ao final, apesar da dor de todos os presentes, profissionais e a mãe apoiaram-se e abriram-se à sensibilidade de cada um dos sujeitos. A mãe foi acolhida e, em parceria com os profissionais de saúde, envolveu-se corresponsavelmente pelos últimos cuidados com a criança. Pode-se compreender que o coletivo observado não está anestesiado da chance de reverter os distanciamentos existentes entre as categorias profissionais e os acompanhantes, e alcançar um modelo de trabalho que invista no arranjo interdisciplinar da equipe, pois, em ambos os casos, foram construídas parcerias envolvendo acolhimento e corresponsabildade. 591


DESAFIOS DA HUMANIZAÇÃO NO CONTEXTO DO CUIDADO ...

É por meio do processo de trabalho que se pode experienciar uma ética definidora de práticas em saúde (Deslandes, 2007), na qual se articulam os conhecimentos adquiridos ao longo do tempo de formação profissional com posturas e atitudes em relação ao outro, a si mesmo e a própria relação terapêutica. O diferencial entre tornar essa conversa um meio de apenas informar, questionar e responder está em tornar o acolhimento do outro a mola-mestra da lógica tecnoassistencial, a partir da sua potência em conectar uma conversa à outra (Teixeira, 2007). O acolhimento como elemento central dessa discussão implica assumir um caráter de produção de mudanças para a proposição de reformulação do modelo de cuidado. Estas podem ser pensadas na medida em que, antes do manejo específico da técnica, exame ou procedimento, tem algo que modula a relação que está vinculado ao contato, à escuta sincera e aberta e à valoração do saber do outro.

Conclusão Os resultados encontrados com o estudo etnográfico demonstram que o projeto de trabalho pautado na humanização - considerando seus princípios fundamentais: acolhimento, autonomia, protagonismo e corresponsabilidade - não se efetiva nas relações tecidas entre equipe, pacientes e acompanhantes. Os níveis de autonomia, protagonismo e corresponsabilidade estiveram atrelados à capacidade de se estabelecerem relações com os profissionais desenvolvidas com o tempo de internação. Quanto maior o tempo de internação do paciente, mais estreitos eram os laços com a enfermagem e maior era a aquisição de conhecimentos sobre os cuidados com as crianças. Existem lacunas na compreensão da proposta de um projeto de humanização para o serviço, que contemple sua gestão e as relações entre pacientes e seus acompanhantes. O imaginário da humanização que permeia a equipe é de prestar uma atenção de qualidade sem discussão sobre como a mesma será prestada e sem refletir sobre os obstáculos e possibilidades de mudança das práticas. A atuação de um projeto de Educação Continuada, que integrasse os conhecimentos de acompanhantes com os de profissionais, e os preparasse para a construção coletiva das práticas na enfermaria, poderia contribuir para o estabelecimento de relações mais simétricas. Como lacunas a serem preenchidas por estudos futuros, deve-se aprofundar a discussão de estratégias que materializem a incorporação dos princípios da humanização para a equipe e na relação com usuários e acompanhantes. É preciso consolidar as iniciativas de acolhimento já desenvolvidas nesse coletivo pelos profissionais, enquanto um projeto de gestão da assistência, mas também permitir que os demais princípios sejam incorporados por intermédio de novas relações, com sujeitos implicados e produtores de saúde.

Colaboradores Camila Aloisio Alves foi responsável pela pesquisa de campo, análises e redação do texto. Suely Ferreira Deslandes e Rosa Maria de Araújo Mitre orientaram o projeto e a elaboração do manuscrito. 592

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DESAFIOS DA HUMANIZAÇÃO NO CONTEXTO DO CUIDADO ...

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ALVES, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Desafíos de la humanización en el contexto del cuidado de la Enfermería Pediátrica de media y alta complejidad. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.581-94, 2009. El presente artículo analiza las situaciones y contextos que propician o dificultan las relaciones de acogida y autonomía, comprendiendo los momentos y contextos en que el protagonismo y la co-responsabilidad se expresan en la relación entre enfermería, usuarios y sus acompañantes. Se utiliza el planteamiento cualitativo por medio de la perspectiva etnográfica y un periodo de observación de tres meses. El local de estudio ha sido la enfermería de Pediatría de un instituto de referencia al cuidado de la Salud de la Mujer, Niño y Adolescente y los sujetos fueron equipo de enfermería, usuarios y acompañantes. Los resultados indican que la acogida ha sido el principio más observado, mostrándose como elemento central de la discusión. Los niveles de autonomía, protagonismo y co-responsabilidad se relacionan al tiempo de internamiento, permitiendo establecer relaciones con los profesionales y adquirir conocimientos sobre la asistencia. Se concluye que existen huecos en la comprensión de un proyecto de humanización para el servicio contemplando gestión y cuidado.

Palabras clave: Humanización de la atención. Acogimiento. Autonomía. Protagonismo. Co-responsabilidad. Recebido em 03/03/09. Aprovado em 19/03/09.

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Humanização na atenção a nascimentos e partos: breve referencial teórico

Daphne Rattner1

RATTNER, D. Humanizing childbirth care: brief theoretical framework. Interface Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.595-602, 2009.

In spite of increased coverage of prenatal care and hospitalized births, maternal mortality coefficients have stabilized at relatively high values. This is attributed here to inadequate quality of care. One of the components of the process of care is interpersonal relationships, and these have been associated with the concept of humanization. A strong international movement with increasing theoretical production can be identified, in which humanization of childbirth care is taken to be a response both to the mechanization of the way in which professional work is organized and to institutional violence. However, ‘humanization’ is a polysemic term, and the perspective that is adopted and the sense that is conferred need to be identified when this term is used.

Apesar da ampliação da cobertura da atenção pré-natal e hospitalização do parto, houve estabilização no coeficiente de mortalidade materna em valores relativamente altos, atribuída aqui à qualidade inadequada da atenção. Um dos componentes do processo de assistência é a relação interpessoal, à qual tem sido associado o conceito de humanização. Identifica-se um forte movimento internacional que aborda a humanização da atenção a nascimentos e partos como uma resposta à mecanização na organização do trabalho profissional e à violência institucional, com crescente produção teórica. Todavia, o termo é polissêmico e faz-se necessário, ao deparar-se com a expressão, identificar que perspectiva está sendo adotada e qual o sentido que lhe é conferido.

Keywords: Humanizing childbirth. Technology. Evidence based medicine.

Palavras-chave: Parto humanizado. Tecnologia. Medicina baseada em evidências.

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1 Área Técnica de Saúde da Mulher, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, bloco G, sala 629. Brasília, DF, Brasil. 70.058-900 daphne.rattner@gmail.com

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HUMANIZAÇÃO NA ATENÇÃO A NASCIMENTOS ...

O ser humano e a “máquina de nascer” No início do século passado, o parto era atendido majoritariamente no domicílio por parteiras. As famílias tinham muitos filhos, para que alguns resistissem às dificeis condições de vida à época, e não havia antibióticos para prevenir e curar infecções. A partir dos anos quarenta, começou a crescer a tendência à hospitalização dos partos, e chegamos ao final do século passado com mais de 90% dos partos realizados em hospitais. Com os avanços na antibioticoterapia e na disponibilidade de meios tecnológicos para diagnósticos e terapêuticas, assim como com a melhoria nas condições de vida, conquistamos a efetiva redução na mortalidade materna e neonatal. Contudo, nos últimos vinte anos a mortalidade materna no Brasil tem se mantido constante e muito superior à dos países desenvolvidos, independentemente dos avanços do conhecimento e da incorporação de novas tecnologias de suporte vital. Em que pese a melhoria da qualidade da informação e a ampliação do acesso ao pré-natal por meio da Estratégia Saúde da Família, ou ao parto hospitalar, a tendência de estabilização da mortalidade materna em nosso país em torno de 55 por cem mil nascimentos vivos (ou 75 por mil nascimentos vivos, se aplicado o fator de correção de 1,4) ainda pode ser explicada por questões referentes a acesso sobretudo a serviços com qualidade na atenção à gestação, ao parto e ao pós-parto. Ressalte-se que todos os trabalhos de análise dessa mortalidade identificam que, nos países em desenvolvimento, mais de 90% dessas mortes seriam evitáveis. Faz-se necessário, então, refletir sobre as razões da estabilidade da taxa. No século XX, presenciou-se um entusiasmo crescente com as possibilidades do desenvolvimento industrial, que influenciou todos os setores da atividade humana. No setor Saúde, o componente técnico foi privilegiado em relação ao componente do cuidado, e a racionalidade mecânica ou industrial, apenas em função da produtividade, foi aplicada ao entendimento dos muitos aspectos da atenção, como exemplifica um livro-texto de Administração em Saúde Pública: Como uma analogia, o corpo humano pode ser considerado semelhante a uma máquina. Seu funcionamento adequado depende de vários componentes físicos e bioquímicos. Ele pode ser comparado a uma máquina de combustão interna com membros em lugar de pistões e o sistema endócrino atuando como carburador. Fica super-imposta a função supervisora da mente humana. Similarmente, o corpo humano pode ser encarado como uma unidade humana cuja existência tem propósitos produtivos, potenciais e mensuráveis (Hanlon, Picket, 1984, p.27). [tradução da autora]

Para Braga e Paula (1986), esta abordagem industrial e tecnicista em relação à atenção à saúde também contribuiu para o desenvolvimento dos hospitais como locais privilegiados para a provisão de serviços de saúde. Estes estabelecimentos eram os que conseguiam centralizar equipamentos sofisticados e caros, e técnicos habilitados a utilizá-los, além de médicos, cada vez mais especializados e subespecializados. Destarte, a assistência poderia ser organizada como uma linha de produção – tanto é assim que, nos Estados Unidos, é usual a denominação de indústria da assistência médica (Health Services Industry). A teoria de administração hospitalar adaptou a compreensão industrial à assistência, denominando os usuários de input – matéria-prima, o processo como throughput e o resultado de output – desconsiderando, assim, o componente humanístico do cuidado. E na clássica tríade proposta para avaliação de qualidade (estrutura-processo-resultado), um dos componentes do processo de assistência é a relação interpessoal, à qual tem sido associado o conceito de humanização. A assistência a nascimentos, ainda que “dar à luz não seja uma doença ou processo patológico” (Wagner, 1982, p.1207), também seguiu o padrão industrial, e algumas maternidades que agendam cesarianas como se fosse uma linha de produção de nascimentos, por conveniência de profissionais e das instituições, ostentando taxas de 70% e até 100% de cesáreas, são bons exemplos dessa interpretação de economia de tempo e produtividade. Por outro lado, um estudo epidemiológico mostrou clara associação entre a variação de indicadores econômicos e mercadológicos, como o potencial de mercado e agências bancárias por habitantes, e a variação das taxas de cesárea (Rattner, 1996), sugerindo que este procedimento cirúrgico também adquiriu características de bem de consumo. 596

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Lo Cicero (1993) focaliza os aspectos psicológicos da interação entre parturientes e obstetras, que seria modulada pelas relações de gênero, uma vez que a abordagem do atendimento segue uma lógica masculina e muitos provedores de atenção obstétrica são do gênero masculino, sendo que, durante a atenção ao parto, se explicita uma grande vulnerabilidade feminina, permitindo a expressão dessa diferença. Já é tradicional a opressão sobre a parturiente nas instituições, com frases como “Na hora de fazer, você não gritou...”. Um estudo de D’Oliveira et al. (2002) identificou quatro formas de violência que se manifestam no cenário do parto: a violência por negligência, a violência verbal e/ou psicológica, a violência física e a violência sexual, contribuindo em muito para constituir, no imaginário da sociedade, uma visão do parto e nascimento como experiências traumáticas e dolorosas. A abordagem da violência institucional durante o parto foge ao escopo do presente trabalho, mas acreditamos que o enfoque mecanizado do processo acrescenta uma violência que poderíamos denominar de despersonalizante. Em muitos serviços, essa despersonalização é agravada pelo despojamento da mulher de seus pertences por ocasião da admissão (como óculos, anéis, brincos, dentadura e roupas pessoais), e lhe impõem o uso de uma camisola que parte cobre e parte expõe o corpo – práticas características do que Goffman denominou ‘instituições totais’ (1985). Gomes et al. (2008) expõem como essa violência estrutural, institucionalizada e simbólica é exercida, adotando, como exemplo, o processo de internação num hospital geral do Nordeste. Já Pizzini (1989) apresenta o processo de medicalização, dessexualização e despersonalização durante o atendimento a partos como um drama, com: prólogo, primeiro, segundo e terceiro atos e epílogo. Essa visão desumanizada e mecanizada tem sido adotada acriticamente na academia, e os profissionais a incorporam ainda durante a sua formação, uma vez que um dos mais tradicionais livrostexto de obstetrícia utiliza a metáfora “motor-objeto-trajeto” para explicar os mecanismos do parto: o útero seria o motor, o feto seria o objeto e o canal vaginal se constituiria em trajeto (Rezende, 1992) uma redução que desconsidera os seres humanos envolvidos e a riqueza desse processo que, além de biológico, tem sido abordado como fenômeno cultural, social, sexual e espiritual, numa concepção holística (Davis-Floyd, 1998). Marsden Wagner foi, por muitos anos, o responsável pela atenção perinatal no Escritório da Organização Mundial de Saúde da Europa e participou ativamente na organização da antológica Conferência sobre Tecnologias Apropriadas para Partos e Nascimentos (Appropriate Technology for Birth), realizada em 1985 em Fortaleza, e cujas recomendações foram publicadas em seguida no Lancet (WHO, 1985). Em seu livro Pursuing the Birth Machine. The search for appropriate birth technology (À procura da máquina de nascer, a busca de tecnologia apropriada para nascimentos e partos, numa tradução livre), Wagner (1994) tece críticas a essa abordagem mecânica e às suas consequências práticas, além de descrever as iniciativas da OMS de criar consensos em torno de políticas de atenção perinatal. Também Emily Martin (2006) identifica metáforas do processo de produção e da linha de montagem no discurso sobre parto dos livros de obstetrícia e na prática obstétrica.

Alguns entendimentos de humanização no parto e nascimento Num importante trabalho de reflexão, Diniz (2005) discorre sobre os possíveis sentidos que o termo assume em seu estudo de maternidades de São Paulo, encontrando que cada um deles explicita uma reivindicação de legitimidade de discurso, embora possa haver superposição entre eles. Analisando as respostas, encontrou: a) Humanização como legitimidade científica da medicina, ou assistência baseada na evidência, que é considerada como padrão-ouro. Nessa leitura, a prática é orientada pelo conceito de tecnologia apropriada e de respeito à fisiologia. Ela comenta que, “na interpretação dos ativistas, a humanização, no caso do parto, pressupõe que a técnica é também de natureza política e que inscritos nos procedimentos de rotina – na imobilização, na indução das dores do parto e cortes desnecessários, na solidão, no desamparo – estão ‘encarnadas’ as relações sociais de desigualdade: de gênero, de classe, de raça, entre outras”. Nesse caso, há uma apropriação política do discurso técnico – o que considera uma estratégia não isenta de riscos.

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b) Humanização como a legitimidade política de reivindicação e defesa dos diretos das mulheres (e crianças, famílias) na assistência ao nascimento – ou uma assistência baseada nos direitos, demandando um cuidado que promova o parto seguro, mas também a assistência não-violenta, relacionada às idéias de “humanismo” e de “direitos humanos”. Nesse entendimento, as usuárias têm o direito de conhecer e decidir sobre os procedimentos no parto sem complicações. Seria uma estratégia mais diplomática do que falar da violência no parto e de gênero, permitindo um diálogo com os profissionais de saúde. Entre os direitos, estão: o direito à integridade corporal (não sofrer dano evitável); o direito à condição de pessoa (direito à escolha informada sobre os procedimentos); o direito de estar livre de tratamento cruel, desumano ou degradante (prevenção de procedimentos física, emocional ou moralmente penosos); o direito à equidade, tal como definida pelo SUS. Esta abordagem busca compor uma agenda que combine direitos sociais com direitos reprodutivos e sexuais e tem base nas reivindicações do movimento de mulheres. c) Humanização referida ao resultado de tecnologia adequada na saúde da população. Segundo a autora, uma vez que a assistência apropriada oferece melhores resultados nos indivíduos, isso incorre numa dimensão coletiva, com a reivindicação de políticas públicas no sentido da legitimidade epidemiológica – a adequação tecnológica resultando em melhores resultados com menos agravos iatrogênicos maternos e perinatais. Esse sentido torna-se mais importante na medida em que se avolumam as evidências de que excesso de intervenções leva ao aumento de morbidade e mortalidade materna e neonatal. A redução de intervenções iatrogênicas seria uma forma de promoção da saúde: “O objetivo da assistência é obter uma mãe e uma criança saudáveis com o mínimo possível de intervenções que seja compatível com a segurança. Essa abordagem implica que, no parto normal, deve haver uma razão válida para interferir sobre o processo natural” (Organização Mundial da Saúde, 1996, p.4). d) Humanização como legitimidade profissional e corporativa de um redimensionamento dos papéis e poderes dos atores intervenientes na cena do parto. Essa compreensão representa o deslocamento da função de cuidador exclusivo no parto normal do cirurgião-obstetra para a enfermeira obstetriz – legitimado pelo pagamento desse procedimento pelo Ministério da Saúde. Desloca também o local privilegiado do parto, do centro cirúrgico para a sala de parto ou casa de parto, a exemplo dos modelos europeu e japonês de assistência. Essa perspectiva envolve disputas corporativas e de recursos, e tem sido um campo de grande conflito, uma vez que médicos sentem seu campo de trabalho invadido e reagem de várias formas, a exemplo do projeto de lei do Ato Médico que, se efetivada na forma como originalmente proposta, criaria um impasse na proposta de mudança de modelo de atenção. e) Humanização referida como legitimidade financeira dos modelos de assistência, ou seja, da racionalidade no uso de recursos. Este sentido é utilizado tanto como desvantagem (economia de recursos e sonegação do cuidado apropriado para as populações carentes, a “medicina para pobres”), quanto como vantagem (economia de recursos escassos, propiciando um maior alcance das ações e menos gastos com procedimentos desnecessários e suas complicações). f) Humanização como a legitimidade da participação da parturiente nas decisões sobre sua saúde, com melhora da relação profissional-usuária. Há ênfase na importância do diálogo, inclusão de acompanhante no parto, seja o pai ou doulas, e há negociação sobre os procedimentos de rotina. Nessa abordagem prevalece a tradição liberal, dos direitos da consumidora à escolha, surgindo uma “rede privada de assistência humanizada” e reiterando a legitimidade da Medicina Baseada em Evidências, que estava restrita ao setor público. g) Humanização como direito ao alívio da dor, da inclusão para pacientes do SUS no consumo de procedimentos ditos humanitários e antes restritos às clientes do setor privado. Esta é uma abordagem mais frequente entre médicos menos próximos do ideário baseado em evidências ou baseado em direitos. Para eles humanização é sinônimo de acesso à analgesia de parto. A autora recorda que a dor no parto pode ser potencializada por medidas que o iatrogenizam, como: a solidão, imobilização, uso abusivo de ocitócicos, manobra de Kristeller, episiotomia e episiorrafia desnecessárias, entre outras. Finalmente, a autora comenta que Humanização é um termo estratégico, menos acusatório, para dialogar com os profissionais de saúde sobre a violência institucional. Acreditamos que é possível correlacionar esses diferentes sentidos de legitimidade nos pontos em que se tangenciam, a exemplo da legitimidade científica e a do uso racional de tecnologias (a+c); a 598

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legitimidade política de defesa de direitos, reconhecendo os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos, e a de participação da parturiente nas decisões sobre seu corpo, que se constituíram historicamente como evolução das reivindicações dos movimentos de mulheres (b+f); e a legitimidade profissional fundamenta-se na discussão do modelo de atenção e está relacionada com a lógica epidemiológica, como se verá a seguir (c+d). A Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde adota uma perspectiva abrangente de compreensão do termo, integrando várias dimensões, uma vez que entende que “no campo da saúde, humanização diz respeito a uma aposta ético-estético-política: ética porque implica a atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde comprometidos e corresponsáveis; estética porque relativa ao processo de produção de saúde e de subjetividades autônomas protagonistas; política porque se refere à organização social das práticas de atenção e gestão na rede do SUS” (Brasil, s/d). A PNH conceitua humanização como a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde (usuários, trabalhadores e gestores), enfatizando: a autonomia e o protagonismo desses sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão. Pressupõe mudanças no modelo de atenção e, portanto, no modelo de gestão, tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a produção de saúde. Assim, estabelece que para haver humanização deve haver: compromisso com a ambiência, melhoria das condições de trabalho e de atendimento; respeito às questões de gênero, etnia, raça, orientação sexual e às populações específicas (índios, quilombolas, ribeirinhos, assentados, etc.); fortalecimento de trabalho em equipe multiprofissional, fomentando a transversalidade e a grupalidade; apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde e com a produção de sujeitos; fortalecimento do controle social com caráter participativo em todas as instâncias gestoras do SUS; e compromisso com a democratização das relações de trabalho e valorização dos profissionais de saúde, estimulando processos de educação permanente (Brasil, 2004).

Discussão Aprofundando a primeira interpretação, de legitimidade científica, cabe salientar que a maior parte das práticas adotadas no atendimento ao parto o foi à medida que iam sendo criadas, não havia critérios para sua avaliação. Nos anos noventa do século passado, intensificou-se um movimento na Medicina que foi denominado Medicina Baseada em Evidências, e que tem sido muito difundido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Sua origem deve-se à proliferação de técnicas de diagnóstico e terapêutica, sendo que se verificou, após anos de uso, que muitas eram inefetivas, ou mesmo provocavam problemas maiores do que os que se destinavam a tratar. No campo da atenção perinatal, foi criada a Biblioteca de Saúde Reprodutiva da OMS que, em parceria com a Colaboração Cochrane (Enkin et al., 2000), estudou as práticas adotadas na atenção a partos e nascimentos, publicando um manual (Organização Mundial da Saúde, 1996) em que as classifica em quatro grupos: Grupo A, das práticas que são benéficas e merecem ser incentivadas; Grupo B, com as práticas que são danosas ou inefetivas e merecem ser abandonadas; Grupo C, de práticas para as quais ainda não há evidências suficientes e que necessitam mais pesquisas; e, finalmente, o Grupo D é de práticas que até são benéficas, mas que frequentemente têm sido utilizadas de maneira inadequada. Paralelamente, houve uma convergência entre as ciências biológicas e as ciências humanas, com estudos antropológicos sobre modelos de atenção ao parto. A antropóloga Robbie Davis-Floyd, acadêmica norte-americana de renome e prestígio internacionais, tipificou esses modelos em tecnocrático, humanista e holístico (1998). O modelo tecnocrático foi adotado no mundo ocidental, sobretudo nas Américas, e caracteriza-se por: institucionalização do parto, utilização acrítica de novas tecnologias, incorporação de grande número de intervenções (muitas vezes desnecessárias), e acaba por atender, preferencialmente, à conveniência dos profissionais de saúde. Uma consequência dessa concepção são as altas taxas de cesarianas, monitoramento fetal, episiotomias e outras. O modelo humanista privilegia o bem-estar da parturiente e de seu bebê, buscando ser o menos invasivo possível. Faz uso da tecnologia de forma apropriada, sendo que a assistência se caracteriza pelo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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acompanhamento contínuo do processo de parturição. Nessa concepção, além dos hospitais, o parto tanto pode ocorrer em casas de parto ou ambulatórios, sendo que se reservam os hospitais para casos em que comprovadamente são esperadas complicações, de forma a reduzir o tempo de transferência do setor de partos normais para o de partos cirúrgicos. A presença de acompanhantes é incentivada e a parturiente pode escolher a posição que lhe é mais confortável para ter seu filho. Nesse modelo, a profissional de eleição é a parteira (midwife, sage-femme, hebamme), responsável tanto pelo acompanhamento do processo de trabalho de parto como pela detecção precoce de problemas, quando então indica remoção para instituição com condições de atender. Esse modelo continua sendo adotado em muitos países europeus, como Holanda, Suécia, Alemanha, Inglaterra, França e, também, no Japão. Na Inglaterra, país que pauta o funcionamento de seu sistema de saúde em diretrizes fundamentadas em evidências científicas, já em 2006, a Secretária de Saúde do Reino Unido (cargo equivalente a Ministro da Saúde) divulgava a política pública de que “uma mudança estratégica em direção a mais partos domiciliares é parte do movimento do Governo para que mais assistência seja oferecida na comunidade e no domicílio, afastando-a de hospitais” (Woolf, Goodchild, 2006). Essas diretrizes são parte do movimento de desospitalização e pelo cuidado domiciliar, como resposta do sistema de saúde ao aumento de infecções hospitalares por bactérias multirresistentes, e podem indicar uma transição do modelo humanista para o holístico. A discussão de modelo de atenção é a que fortalece o sentido de legitimidade profissional e corporativa. E o modelo holístico se pauta pela individualização do cuidado e incorpora, além do entendimento do parto como evento biológico, social, cultural e sexual, o enfoque do nascimento e do parto como eventos da vida espiritual. No Brasil, foi interessante constatar que muitas das práticas adotadas pelos profissionais que preconizavam o modelo de atenção humanizada eram referendadas pelas evidências científicas e estavam classificadas no Grupo A. Por exemplo, hoje em dia, reconhece-se que a presença de um acompanhante da escolha da mulher é a melhor “tecnologia” disponível para um parto bem-sucedido: mulheres que tiveram suporte emocional contínuo durante o trabalho de parto e, no parto, tiveram menor probabilidade de receber analgesia, de ter parto operatório, e relataram maior satisfação com a experiência do parto. Esse suporte emocional estava associado com benefícios maiores quando quem o provia não era membro da equipe hospitalar e quando era disponibilizado desde o início do trabalho de parto (Hodnett et al., 2007). Dessas evidências deriva a Lei 11.108/2005, denominada Lei do acompanhante (Brasil, 2005). Por outro lado, muitas das práticas adotadas rotineiramente nas maternidades foram classificadas no Grupo B, como: a raspagem de pelos, a lavagem intestinal, o jejum, ou colocar soro de rotina, ou manter a mulher deitada durante o trabalho de parto. Finalmente, a cesariana e a episiotomia, por exemplo, foram classificadas no Grupo D (Enkin et al., 2000; Organização Mundial da Saúde, 1996). A avaliação internacional de modelos de atenção evidencia que países que mantiveram o modelo de atenção ao parto, valorizando a atuação de enfermeiras-parteiras (midwife ou nurse-midwife), como os países escandinavos, a Inglaterra, Japão, Holanda, França, Alemanha e outros, conseguiram manter baixos seus indicadores de morbimortalidade materna e fetal/neonatal, assim como o índice de intervenções, a exemplo de cesáreas, episiotomias etc. O atendimento a partos e nascimentos nesses países prima pelo respeito à fisiologia e à dignidade da mulher e sua família. Sendo gestação e parto processos fisiológicos, poderão receber atendimento no nível da atenção primária. O parto poderá ocorrer no domicílio, no ambulatório e em casa de partos (denominada Centro de Parto Normal no âmbito do Ministério da Saúde), além do hospital. Ademais, nos países supracitados, os partos sem complicações são atendidos pela enfermeira-parteira que, por conhecer a intimidade da maioria das famílias e ter papel importante em momentos cruciais da vida - como o parto e o nascimento -, conquista liderança e reconhecimento, além de tornar-se referência para as famílias que atendeu, numa vinculação que, em nosso país, é recomendada pela Política Nacional de Humanização. A opção por essa profissional para atendimento ao parto eutócico é referendada por recente publicação da Colaboração Cochrane (Hatem et al., 2008). Saliente-se que a reflexão do presente trabalho aborda os diferentes sentidos de humanização, especificamente no campo da atenção a nascimentos e partos. A conceituação de humanização da PNH é transversal aos vários sentidos elencados, incorporando questões referentes a: ambiência, 600

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universalidade, processo de trabalho, gestão do sistema, controle social, subjetividades de cuidadores e receptores do cuidado, e outros aspectos relevantes. A proposta / aposta ética-estética-política é um projeto de sociedade baseada na equidade, em que o acesso a serviços de saúde com humanização e qualidade reflete a garantia da cidadania numa sociedade democrática.

Considerações finais A estabilização dos coeficientes de mortalidade materna certamente está associada à inadequação na qualidade da atenção, preponderando a deficiência no componente do processo de atenção. Um dos aspectos desse componente é a relação interpessoal, à qual a humanização está fortemente associada. Neste trabalho identifica-se um forte movimento internacional que aborda a humanização da atenção a nascimentos e partos como uma resposta à mecanização na organização do trabalho profissional e à violência institucional, com crescente produção teórica. Todavia, o termo é polissêmico e faz-se necessário - ao deparar-se com a expressão - identificar que perspectiva está sendo adotada e qual o sentido que lhe é conferido.

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HODNETT, E.D. et al. Continuous support for women during childbirth. Cochrane Database of Systematic Reviews, n.3, 2007. Art. n.: CD003766. DOI: 10.1002/ 14651858.CD003766.pub2. LoCICERO, A.K. Explaining excessive rates of cesareans and other childbirth interventions: Contributions from contemporary theories of gender and psychosocial development. Soc. Sci. Med., n.37, p.1261-69, 1993. MARTIN, E. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Assistência ao parto normal: um guia prático. Relatório de Grupo Técnico. OMS/ SRF/ MSM/ 96.24. Genebra: Organização Mundial de Saúde, 1996. PIZZINI, F. The expectant mother as patient: a research study in Italian maternity wards. Health Promotion, v.4, n.1, p.1-10, 1989. RATTNER, D. Sobre a hipótese de estabilização das taxas de cesárea do estado de São Paulo, Brasil. Rev. Saude Publica, v.30, n.1, p.19-33, 1996. REZENDE, J. Obstetrícia. 6.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1992. WAGNER, M. Pursuing the birth machine: the search for appropriate birth technology. Camperdown: ACE Graphics, 1994. ______. Getting the health out of people’s daily lives. Lancet, n.8309, p.1207-8, 1982. WHO. World Health Organization. Appropriate Technology for Birth. Lancet, v.2 n.8452, p.436-7, 1985. WOOLF, M.; GOODCHILD, S. Childbirth revolution: mummy state - more women should have babies at home, not in hospital, says Health Secretary. The Independent, London, 14 maio 2006. Disponível em: <http://news.independent.co.uk/uk/ health_medical/article448999.ece>. Acesso em: 18 jun. 2009.

RATTNER, D. Humanización en la atención a nacimientos y partos: breve referencial teórico. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.595-602, 2009. A pesar de la ampliación de cobertura de la atención prenatal y hospitalización del parto, el coeficiente de mortalidad materna se ha estabilizado en valores relativamente altos, lo que aquí se atribuye a la calidad inadecuada de la atención. Uno de los componentes del proceso de asistencia es la relación interpersonal a la cual se ha asociado el concepto de humanización. Se identifica un fuerte movimiento internacional que plantea la humanización de la atención a nacimientos y partos como una respuesta a la mecanización en la organización del trabajo profesional y a la violencia institucional, con creciente producción teórica. No obstante el término es polisémico y se hace necesario, al deparar con la expresión, identificar la perspectiva que se adopta y el sentido que se le confiere.

Palabras clave: Parto humanizado. Tecnología. Medicina basada en evidencias. Recebido em 11/01/09. Aprovado em 17/06/09.

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A Política Nacional de Humanização como política que se faz no processo de trabalho em saúde Serafim Barbosa Santos Filho1 Maria Elizabeth Barros de Barros2 Rafael da Silveira Gomes3

SANTOS FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B.; GOMES, R.S. The National Humanization Policy as a policy produced within the healthcare labor process. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.603-13, 2009. This paper had the aim of conducting an analytical exercise about how the National Humanization Policy is undertaken, with regard to the institutional support function, based on different mechanisms, guidelines and principles. The text is divided into three parts. The first part provides reflections concerning the concepts of humaneness and humanism on which the analyses are based. The second seeks to expand the debate regarding the indissociability of healthcare and management and the way of providing institutional support. The third covers the indissociability between the production of services and the production of subjects and moves the discussion on these three parts forward for them to be developed in other planes of analysis. Throughout the text, emphasis is placed on banking on including different subjects and on analysis and collective management of labor processes as a strategy for creating productive destabilization and humanization practices within the healthcare services.

Keywords: Humanization of assistance. Institutional support. Co-management. Collective labor process analysis. Public policies.

Este artigo tem como objetivo realizar um exercício analítico do modo de fazer da Política Nacional de Humanização (PNH) sobre a função apoio institucional, com base em diferentes dispositivos, diretrizes e princípios. O texto está dividido em três partes: na primeira, traz reflexões acerca da concepção de humano e humanismo que fundamenta as análises; a segunda busca ampliar o debate sobre a indissociabilidade entre atenção e gestão e o modo de fazer apoio institucional; a terceira aborda a indissociabilidade entre a produção de serviços e produção de sujeitos, e encaminha a discussão dessas três partes que se desdobram em outros planos de análise. Ressalta, em todo o texto, a aposta na inclusão dos diferentes sujeitos e na análise e gestão coletiva dos processos de trabalho como estratégia para criar desestabilizações produtivas e práticas de humanização dos serviços de Saúde.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Apoio institucional. Cogestão. Análise coletiva dos processos de trabalho. Políticas públicas.

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Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização (MS/PNH). Rua Gonçalves Dias, 60/901, Lourdes, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30.140-090 serafimsantos@terra.com.br 2 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. 3 MS/PNH. 1

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Introdução O presente artigo nasce de reflexões pautadas em experiências concretas que temos vivenciado como consultores da Política Nacional de Humanização (PNH) e como trabalhadores do campo da formação de profissionais de saúde. As questões e discussões que iremos abarcar no texto emergiram e são atravessadas por essas práticas, pelas nossas ações de apoio institucional4 e pelas experiências de formação que temos desenvolvido tanto no âmbito dessa política como fora dela. Neste artigo nos propomos a articular os referenciais da PNH com alguns aspectos dos processos de trabalho em saúde, perspectivando sua análise a partir de um diálogo com a proposta metodológica dessa Política. Buscamos pensar, portanto, questões sobre a contribuição da PNH, no que tange à discussão dos processos de trabalho e da organização de serviços de saúde. A PNH coloca-se como uma “política” que se constitui com base em um conjunto de princípios e diretrizes que operam por meio de dispositivos5 (Brasil, 2006, 2004). Por princípio, entendemos o que impulsiona ações, disparando movimentos no plano das políticas públicas. No caso da PNH, o movimento a que se propõe é o da mudança dos modelos de atenção e gestão fundados na racionalidade biomédica (fragmentados, hierarquizados, centrados na doença e no atendimento hospitalar). Ela se afirma como política pública de saúde com base nos seguintes princípios: a inseparabilidade entre clínica e política, o que implica a inseparabilidade entre atenção e gestão dos processos de produção de saúde; e a transversalidade, entendida como aumento do grau de abertura comunicacional nos grupos e entre os grupos, isto é, a ampliação das formas de conexão intra e intergrupos, promovendo mudanças nas práticas de saúde (Passos, 2006). As diretrizes da PNH são suas orientações gerais e se expressam no método da inclusão de usuários, trabalhadores e gestores na gestão dos serviços de saúde, por meio de práticas como: a clínica ampliada, a cogestão dos serviços, a valorização do trabalho, o acolhimento, a defesa dos direitos do usuário, entre outras. Os dispositivos, por sua vez, atualizam essas diretrizes por meio de estratégias construídas nos coletivos concretos destinadas à promoção de mudanças nos modelos de atenção e de gestão em curso, sempre que tais modelos estiverem na contramão do que preconiza o SUS. Entre os dispositivos propostos pela PNH, estão: acolhimento com classificação de risco, colegiado gestor, visita aberta e direito a acompanhante, equipe transdisciplinar de referência, Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST), projetos cogeridos de ambiência. A implantação desses dispositivos se efetiva caso a caso, considerando-se a especificidade dos serviços, partindo sempre da análise dos processos de trabalho, processos que nunca se repetem. A PNH traz, em seu escopo, a articulação de um conjunto de referenciais e instrumentos, operando com eles para disparar processos. Em alguma medida, a contribuição da PNH assume, em nosso entendimento, um caráter singular, haja vista que sua finalidade tem sido alterar a maneira de trabalhar e de interferir nos processos de trabalho no campo da Saúde. Com esse objetivo, uma das direções de abordagem da PNH materializada nos/e com os serviços é a criação de formas de trabalho que não se submetam à lógica dos modos de funcionamento instituídos. Formas de trabalhar que superem as dissociações entre os que pensam e os que fazem, entre os que planejam e os que executam, entre os que geram e os que cuidam. Parte-se do entendimento do trabalho como atividade situada, como espaço coletivo de produção de saberes, de negociação e gestão (Schwartz, Durrive, 2007). Associada a essa premissa, impõe-se, então, a necessidade de uma reflexão sobre os usos do que tem sido nomeado como princípios e diretrizes dessa Política. 604

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4 A noção de apoio institucional será desenvolvida ao longo do texto.

5 O conceito de dispositivo utilizado na PNH, a partir da formulação foucaultiana, é o que coloca em análise o instituído e destina-se à desestabilização do que está naturalizado.


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Neste artigo, afirmamos a PNH como aporte e articulação de um conjunto de referenciais e de instrumentos, que tem como finalidade maior estar em meio aos processos de trabalho, no movimento de sua constituição, buscando ajudar a desequilibrar seus arranjos e produzir desvios nas relações instituídas, instigando novas composições, outras possibilidades de ser e trabalhar no âmbito da Saúde. O que importa, nessa direção analítica dos processos de trabalho, inseparável de uma perspectiva de intervenção, é potencializar outros modos de trabalhar que emergem cotidianamente nos serviços, partindo do que ali é experimentado pelo trabalhador. O enfrentamento do que está instituído acontece constantemente pela invenção de outras formas de agir nos espaços de trabalho, pela produção incessante de saberes realizada na atividade laboral, porém, muitas vezes, esse enfrentamento é invisibilizado ou enfraquecido. Colocar os processos de trabalho em análise, dessa maneira, não se dissocia de uma perspectiva de intervenção, na medida em que fomenta e potencializa movimentos, desvios e rupturas, que sugerem transformar os modos de trabalhar e de ser no trabalho. Os processos de trabalho são processos de produção de sujeitos, uma vez que homem e mundo não são realidades já dadas, constituídas a priori, logo o processo de trabalho é processo de constituição de sujeitos. De acordo com essa premissa é que fazemos um convite à reflexão sobre os usos dos dispositivos da PNH. O que pode a PNH? Qual sua potência disruptora? Que forças de naturalização podem nos fazer sucumbir ao “deve ser assim”? Tais interrogações nos forçam a pensar sobre o que tem sido feito ao se atualizarem os princípios e diretrizes da referida Política no cotidiano dos serviços de saúde. Com esse objetivo, o texto será dividido em alguns subitens. Neles, apresentamos reflexões acerca da concepção de humano e humanismo, que fundamentam nossas análises e ações, a partir do que tem sido formulado pela PNH. Buscamos, também, ampliar o debate sobre a indissociabilidade entre atenção e gestão e o modo de fazer apoio institucional no âmbito da PNH. Focalizamos, ainda, a indissociabilidade entre produção de serviços e produção de sujeitos, e encaminhamos a discussão desses aspectos que se desdobram em outros planos de análise, apresentando um modo de intervir e de fazer apoio institucional, dialogando com referenciais que selecionamos para esta discussão. Entre os referenciais que permeiam a discussão, estão: as concepções trazidas por Campos (2006, 2003, 2000, 1998, 1997) para o campo da Gestão em Saúde, bem como algumas produções efetivadas no âmbito da PNH por Benevides e Passos (2005), Barros, Mori e Bastos (2006), Brasil (2006), Heckert e Neves (2007), Barros e Santos Filho (2007), Campos (2007) e Santos Filho (2008).

O conceito de humano: um outro humanismo comparece... A PNH indica uma concepção de homem que se constitui no concreto das experiências, nas lutas cotidianas e em uma direção ético-política em que se opõe “o homem” a “um homem”, a todos nós, procurando resistir ao que se concebe como “homem ideal”. Assim, a concepção de humano com a qual trabalha subverte “o homem” como abstração, modelo ou idealidade a partir do qual se ajusta a existência humana (Benevides, Passos, 2005). Trata-se, portanto, de uma concepção de humano que parte das formas de ser que se constituem no concreto das experiências dos serviços. Uma forma de ser humano que não está dada desde sempre ou que se define a partir de um modelo geral de humanidade. Por conseguinte, não parte de um entendimento da humanização como um processo que objetiva aproximar os diferentes sujeitos desse ideal, do homem-padrão. A humanização, tal como nos indica a PNH, efetiva-se nas práticas em saúde a partir delas, ou seja, das formas como agimos no cotidiano dos serviços. Está voltada para homens e mulheres comuns que compõem o SUS, em suas experiências, com os trabalhadores e usuários que habitam e produzem o dia-a- dia dos serviços de saúde. É no encontro entre estes sujeitos concretos, situados, que a política de humanização se constrói. Partindo desse referencial, toma-se como princípio do trabalho nos serviços um enfoque que contribui para desidealizar a concepção de humano e de humanismo, assim como de “serviços idealizados”. Nesse caso, o objetivo não se confundiria com um objetivo geral de mudar o serviço e, sim, de viabilizar a compreensão de como se institui um serviço e um processo de trabalho em saúde. Um serviço e um processo, sempre conduzidos por “humanos”, sujeitos em constante processo de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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diferenciação, de produção de novos modos de existência, processos que desestabilizam formas instituídas de ser trabalhador e experimentam outras. Então, como tem se construído um modo de ser humano nos serviços de saúde? Certamente isso vai depender dos atributos com os quais se propõe compreender o humano e os processos de humanização. Para a PNH, esse princípio se operacionaliza colocando-se em análise os serviços, vendo neles e com eles, com aqueles que o compõem e habitam nele, o que funda seus modos de constituição, seus diferentes modos de ser e de agir no SUS. Em nosso entendimento, a PNH não propõe um tipo de serviço específico, um SUS ideal, mas também não deseja qualquer tipo. Aposta em uma abordagem em que os coletivos do SUS são convocados para pôr em análise os diferentes serviços e as formas de agir neles. Com isso, destina-se à instituição de outras modalidades de agir em Saúde, que possuam, como uma aposta ético-política, a defesa da vida, apoiada em valores como a produção de autonomia e protagonismo dos sujeitos que constroem o SUS (Brasil, 2006). No entanto, como fazer isso? Entendemos que esse processo tem se efetivado no âmbito da Política em pauta por meio de algumas estratégias: a) convocando todos aqueles que militam no SUS, num movimento de inclusão, para discutir o serviço (inclusão dos trabalhadores, gestores e usuários); b) incluindo variáveis que atravessam e constituem todo o serviço, todo o processo de trabalho local para análise do processo de trabalho, possibilitando a emergência do que seriam os vetores que produzem os modos de ser e fazer daquele serviço; c) ajudando a disparar esses movimentos e assumindo suas consequências, isto é, exercitando um apoio institucional (Campos, 2006, 2003) no sentido de intervenção-oferta para ajudar a ressignificar a compreensão do serviço e de suas bases de organização. Assim, a própria compreensão do que estamos considerando “intervenção”, que se efetiva nas ações de apoio institucional, contribui para essa ressignificação. O apoio institucional é uma estratégia metodológica para o enfrentamento dos inúmeros desafios que o trabalho no campo da Saúde nos coloca, uma vez que, como nos aponta Campos (2003, p.86), os trabalhadores em Saúde: [...] lidam com o limite humano, com nossa impotência, com a evidência de que não somos deuses [...]. Lidam com a morte, a doença e a dor. Trabalham em ambientes perigosos (germes, fracassos, competição, etc.), logo, precisam, além de planos de carreira e salários, de Apoio, o que tem o sentido de estar sempre em análise. Trata-se de uma função que se expressa num determinado modo de fazer, que não está localizada numa pessoa e persegue a criação de grupalidade, de forma a fortalecer e montar redes de coletivos.

O apoio institucional, no sentido que lhe é atribuído na PNH, instaura uma relação dinâmica entre o apoiador institucional e a equipe apoiada: nem uma postura de passividade ou omissão (dos apoiadores), nem de ações à revelia dos grupos ou de elaboração de pareceres, planos ou protocolos e normas para as equipes. Trata-se de um apoio à cogestão que destina-se a afirmar e a atiçar a produção de coletivos organizados. A função do apoiador institucional é de contribuir para a gestão e organização de processos de trabalho, na construção de espaços coletivos onde os grupos analisam, definem tarefas e elaboram projetos de intervenção. Apoio, portanto, que envolve a discussão-problematização dos modos como a gestão nas relações de trabalho se expressa. Por conseguinte, esse trabalho de apoio se afirma com base em um pressuposto essencial: a recusa de qualquer forma de tutela. Apoiar, para PNH, é estar junto com os diferentes sujeitos que constituem os sistemas de saúde - gestores, usuários e trabalhadores - discutindo e analisando os processos de trabalho e intervindo nas formas como os serviços estão organizados, potencializando aqueles que trabalham e utilizam os serviços como protagonistas e corresponsáveis pela produção de saúde, combatendo qualquer relação de tutela ou deslegitimação do outro. Em que medida se tem dado conta disso? Em que medida esse tipo de atuação tem viabilizado a qualidade da atenção aos usuários e a reorganização dos processos de trabalho na direção da gestão efetivamente partilhada? Aqui, certamente, não estamos procurando respostas. A construção de modos que afirmem os princípios do SUS na sua radicalidade precisa sustentar essas questões que buscam afirmar o aspecto constituinte do SUS. 606

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SANTOS FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B.; GOMES, R.S.

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No rastro da premissa de indissociabilidade entre atenção e gestão... Partindo do que a PNH adota como princípio, ou seja, a indissociabilidade entre atenção e gestão (Brasil, 2006), a proposta seria contribuir com o modo de discutir e construir, no coletivo, estratégias para melhorar o acesso e a qualidade dos serviços, entendidos como indissociáveis dos modos como esses são geridos. Nesse sentido, também, o objetivo da PNH não se confundiria com um objetivo de assegurar o acesso e a qualidade da atenção a partir de concepções e determinações externas aos serviços. Pelo contrário, teria como objetivo ajudar os coletivos organizados na produção e na articulação de arranjos, pactos e ações concretas, capazes de viabilizar mudanças na gestão, indispensáveis para que haja também mudanças nos modos de atenção (Campos, 2003). E como se faz isso? Como se efetiva a operação desse princípio? As rodas de conversa, espaços coletivos que incluem os diferentes atores dos serviços, são um dos caminhos que se acredita potente para abrigar e ampliar essas discussões. No entanto, o que agregaria, de modo mais incisivo e especial, seria a intensidade e a qualidade do apoio institucional, que se efetiva em meio aos processos, que se concretiza ajudando a pôr em análise os processos de trabalho. Esse caminho proposto opõe-se e diferencia-se de estratégias baseadas na prescrição de regras para implantação de um dispositivo, o que é incompatível com a própria concepção de dispositivo com a qual trabalha a PNH. O caminho é a afirmação de uma perspectiva participativa que permitiria aos coletivos atribuírem sentidos, fazerem e sustentarem conexões no/e do processo de trabalho. Novamente ressaltaríamos o modo de estar, de operar, de atuar no “entre”, de estar junto, de intervir... (Barros et al., 2007; Barros, Benevides, 2007; Barros, Mori, Bastos, 2006). Não basta, portanto, ter como direção a “gestão participativa” dos serviços se essa diretriz se operacionaliza como prescrição verticalizada de modos de fazer ou de metas a serem alcançadas. Em muitas situações, deseja-se um produto e não se tem dado muita importância ao modo como ele se viabiliza. O processo de trabalho fica reduzido ao produto. As ações, no âmbito da PNH, destacam a importância de se (re)organizarem os processos de trabalho para mudar a oferta de serviços, priorizando o modo de se discutir e articular essa (re)organização em equipe, o “que fazer” não pode suplantar o “como fazer”. O dispositivo do “Acolhimento com Classificação de Riscos” ilustra isso muito bem: o interesse institucional, o projeto, a meta e, às vezes, até os “decretos” pelos quais esse dispositivo tem sido implantado nos serviços, parece pressupor uma reorganização natural da equipe, para melhorar a atenção ao usuário, como se fosse intrínseco à proposta. Sem se dedicar atenção e estratégias para efetivar essa reorganização - como se fosse possível pensar o serviço fora da rede em que este se efetua, isolado das demais práticas de produção de saúde e independente dos que nele trabalham - o dispositivo se transforma em um instrumento a ser implantado, perdendo sua potência de transformação das práticas. As reflexões levantadas até aqui nos levam a um outro cenário de questões sobre o exercício efetivo desse saber-fazer da PNH. Saber-fazer em construção e, por isso, mantendo-se aberto para interrogarse permanentemente: em que medida esse saber-fazer da PNH tem dado conta de sua proposta éticopolítico-metodológica? Em que medida esse tipo de atuação-intervenção, numa perspectiva avaliativa, tem sido capaz de fazer uma cobertura ampliada das ações e da qualidade da atenção como indicadores dos efeitos produzidos por essa intervenção? Em que medida se tem dado conta desse tipo de apoio? Fazendo um desdobramento das questões anteriores, diríamos que a proposta é atuar e ajudar os coletivos locais a se fortalecerem para protagonizar essas discussões e articular os componentes do processo de trabalho (arranjos, pactos, ações, dentre outros). Chamamos a atenção para um aspecto: não se trata, na PNH, de ocupar um ou outro polo extremo da discussão, nem se influenciar pelas pressões de resultados, nem pela idealização de um modo harmônico de trabalho, que se efetiva a partir de perspectivas abstratas, descoladas do que se vive efetivamente no dia-a-dia dos serviços. Trata-se do desafio de construir e ocupar o lugar de chamar para a análise, de pôr em análise o próprio trabalho, fazendo isso nos espaços coletivos onde é essencial a inclusão dos atores, trabalhadores, gestores e usuários. Conforme indicamos no início deste texto, tratase de tomar o plano de produção dos serviços e dos sujeitos, como plano estratégico, uma vez que se busca acompanhar um processo e não, apenas, representar uma dada realidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No rastro da premissa de indissociabilidade entre produção de serviços e produção de sujeitos O âmbito de inseparabilidade vai-nos permitir recuperar um eixo que a PNH estabeleceu como um dos seus pilares, focado no que se passa “em meio aos processos de trabalho”. O princípio, nesse caso, seria o de contribuir para provocar a mobilização dos trabalhadores da Saúde em torno de análises e intervenções em seus processos locais de trabalho. Aqui a indissociabilidade deve ser perseguida na perspectiva de um trabalho em Saúde que se deseja ampliado e articulado em uma tríplice direção: produção de serviços, produção-sustentação da organização e produção de sujeitos (Campos, 2003). Em seu escopo, a PNH assume convocar os trabalhadores a olharem para seus processos de trabalho, analisando-os como um processo histórico, instituído por quem os compõe (trabalhadores, gestores e usuários). Logo, trata-se de um processo que pode ser modificado a partir da mobilização desses mesmos atores. Mobilização que traria em si a perspectiva de um protagonismo, (re)invenção do trabalho, produzindo serviços e produzindo-se, reinventando-se como sujeitos (Santos Filho, Barros, 2007). A operacionalização desse princípio tem sido um desafio e vamos nos deter um pouco mais nessa questão, dialogando com alguns referenciais que ajudam a marcar a especificidade dessa intervenção. Por condições de trabalho, compreendemos uma estrutura-organização mais ampla, destacando o que tem sido apontado como precarização do trabalho em saúde, desde as questões relacionadas com os vínculos trabalhistas até a degradação dos ambientes e processos em sua dimensão cotidiana, na rotina do trabalho. As reações locais mais visíveis em meio a essas condições aparecem como imobilização dos trabalhadores, permeadas por descrença, apatia, raiva, sofrimento patogênico, dor, desprazer, adoecimento. Aqui queremos enfatizar uma contradição que, frequentemente, é presenciada no cotidiano dos serviços de saúde: ao mesmo tempo em que se propõem e se exigem mudanças, incluindo um discurso de fomento à autonomia e ao protagonismo dos trabalhadores em suas equipes, tenta-se, muitas vezes, restringir os espaços concretos de exercício de autonomia e protagonismo. Um desses “espaços concretos” é o âmbito de planejamento e avaliação local, de definição e validação de metas nos processos de trabalho, que deveria ser explorado de forma coletiva, participativa, na realidade local. Outra situação que nos interessa ressaltar é a prerrogativa do “trabalho em equipe”, em muitas ocasiões, tornando-se não um modo de “conexão” - de saberes, poderes e afetos (Campos, 2006, 2000) -, mas como um “fardo” vivido pelos trabalhadores, uma vez que a compreensão de “trabalho em equipe” é frágil e a constituição de equipes multiprofissionais não superou a fragmentação manifestada nas ações cotidianas dos serviços. Ela se mantém presente na dissociação dos procedimentos e tarefas de cada profissão, bem como na relação entre os trabalhadores de diferentes formações (Gomes et al., 2005). Isto é, não se mobilizam estratégias, a partir de uma perspectiva formativa, necessárias para se reinventar o trabalho, reinventando-se como trabalhadores articulados em equipes de trabalho, superando-se as cisões produzidas e mantidas pelas relações de saber-poder e pelas assimetrias entre as corporações profissionais. Vale enfatizar que o estilo de gestão local é uma das variáveis que mais contribuem nesse contexto. No âmbito das práticas na PNH, o desafio que se coloca, e que não é tomado como problema senso estrito, é a construção de um caminho metodológico que considera os enormes e reconhecidos avanços na organização dos serviços e as situações comuns no dia-a-dia. E aí, em nosso entendimento, está o desafio do apoio institucional nesse campo, uma vez que a intervenção é disparada a partir de uma postura metodológica de inclusão das diferentes variáveis que compõem as situações-problema, sem propor soluções para as situações adversas, nem “promessa de solução”. Também não se trata de acolher problemas e queixas em uma perspectiva fatalista (como se condicionados e imutáveis em um dado ambiente que os determinam), muito menos pactuar com a usual percepção dos trabalhadores de que tal situação se deve a uma culpa exclusiva do outro, num contexto de culpabilização e vitimização. No rastro dessa premissa, a direção de intervenção que nos parece afinada com o que estamos indicando é a de provocar “efeito nos grupos”, incitando e apoiando a análise das situações vividas, perseguindo a alteração nos posicionamentos e atitudes diante dos fatos. Tomando esse eixo 608

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Utilizamos a noção de analisador com base na proposição da Análise Institucional: “Os analisadores são acontecimentos, aquilo que produz rupturas, que catalisa fluxos, que produz análise, que decompõe. No curso dessa análise, novos arranjos se impõem, passa-se da quaseimobilidade ao movimento e ocorrem transformações” (Silva, 2002, p.36). 6

metodológico como um dos princípios constitutivos da PNH, consideramos a adversidade e a própria posição dos sujeitos-trabalhadores como um analisador 6 da gestão, que questiona o que está instituído e aponta para seu processo de constituição, sempre histórico. Assim, indagamos: com qual concepção de gestão se opera nesse caminho metodológico?

Uma concepção de trabalho e de gestão: um caminho metodológico ou modos de fazer o apoio institucional Na direção proposta neste texto, a partir do diálogo com a PNH, ainda concebemos como relevante tratar a temática tomando uma concepção de trabalho e gestão que se abre nas seguintes vertentes: a) compreensão de que o trabalho é produção-invenção de serviços, de produtos, de si mesmo e do mundo (Schwartz, 2007) e de que, no processo de trabalho, a conexão construída é a das relações entre os atores que habitam os serviços (trabalhadores entre si e com gestores e usuários); b) compreensão de que o trabalho em saúde é um espaço por excelência dessa produção de serviços e de sujeitos (autonomia, protagonismo (Campos, 2006, 2003, 2000); c) compreensão de que o trabalho é produção de saber, processo de formação permanente, e que essa formação se efetiva na vivência das situações concretas de trabalho, “tornando-se competente” para enfrentar as demandas, criando estratégias para isso (inclusive aprendendo a trabalhar em equipe). Zarifian (2001) compreende competência como atitudes, posições, ações e aprendizados que se constituem no confronto dos sujeitos com o que se apresenta nas situações de trabalho que vivenciam. O autor entende que “[...] uma das características mais interessantes e inovadoras da lógica competência reside, justamente, no fato de ela associar responsabilidade pessoal e corresponsabilidade, [relacionando a postura de] assumir responsabilidade” à perspectiva de autonomia (Zarifian apud Santos Filho, 2008, p.25). Nesse sentido, pode-se correlacionar essa visão de competência com o que se deseja com a PNH, que é o aumento de autonomia e protagonismo dos sujeitos (Brasil, 2006), aumento da capacidade de análise e de intervenção dos sujeitos no contexto em que se encontram e vivem (Campos, 2006, 2003, 2000). Essa competência, portanto, não se refere a um indivíduo ou a uma qualidade inata a esse indivíduo; ela sempre nos remete ao coletivo de trabalho e é desenvolvida no encontro entre os sujeitos. É essa vivência, exercício da competência, com assunção de responsabilidade para o enfrentamento de uma situação, que equivale à atitude protagônica, autônoma, emancipatória. Com esse fio condutor, compreende-se o espaço de trabalho como coconstruído pelos atores que estão em cena, e cada um é gestor de seu próprio fazer (Schwartz, 2000), tendo em conta que toda atividade pressupõe negociações e debates de normas para ser realizada. Logo, é sempre preciso gerir as infidelidades que o meio apresenta, pois todos que trabalham o fazem imprimindo sua marca (suas regulações) na medida em que vão fazendo-aprendendo e aprendendo-fazendo. O processo de trabalho local, assim, não se resume ao que se materializa em produtos ou ao que é visível, mas também, como nos indica Clot (2006, p.116), abrange “[...] aquilo que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se busca fazer sem conseguir – os fracassos –, aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures [...]” e, ainda, o “[...] que se faz para não fazer aquilo que se tem a fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer” (Clot, 2006, p.116). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A atividade de trabalho é sempre marcada pela relação dramática entre autonomia e heteronomia. Trabalhamos sempre em meio a negociações, escolhas e arbitragens, nem sempre conscientes, que consideram o tipo de inserção de cada um e de todos que compartilham aquele meio de trabalho, mas, também, as políticas de saúde, os valores e as práticas de saúde instituídos, as relações de forças e de poderes presentes em cada situação de trabalho. Enfim, todos nós somos corresponsáveis pela gestão das situações de trabalho e temos o potencial de ajudar a transformá-las ou mantê-las como estão. Consideramos, então, que a direção proposta para o apoio institucional na PNH é de intervir no sentido de ajudar a compreender que a desestabilização faz parte dos processos de trabalho e que o caminho é a mobilização para provocar outras e novas desestabilizações. Ou seja, compreender que, ao contrário de se conceber idealmente os processos de trabalho como “equilíbrios esperados”, é preciso analisar e gerir os desequilíbrios. Esses desequilíbrios compõem o viver, daí a importância de entendêlos como potentes, quando temos como meta a produção de coletivos fortes, que podem acionar modos de trabalhar que afirmam a invenção própria dos vivos. Portanto, muito importa aqui a concepção de Humano e Humanismo, que indicamos no início deste texto, pois as desestabilizações serão provocadas e perseguidas, ou negadas, dependendo do esforço coletivo (corresponsabilização) na direção do que se tiver compreendendo e desejando como “humanização do serviço”, num dado momento histórico. Reafirmamos, a partir da PNH, que os processos de trabalho estão inseridos em contextos “multivetorializados”. Esse referencial é tomado como princípio para operarmos com “rodas” no cotidiano dos serviços – onde os trabalhadores se encontram para levantar problemas vividos, suas dores e “impossibilidades”, com dificuldades de tratar as situações –, a partir de um método de inclusão (dos problemas-conflito e de todos os sujeitos; inclusão dos jeitos de trabalhar, de se relacionar e de viver). Ou seja, partir do concreto da experiência, das variabilidades e imprevisibilidades que se expressam, e tecer processos de trabalho, partir do saber da experiência que será problematizado. Esse é o desafio que a PNH julga necessário ser incluído como matéria do trabalho, e é com essa matéria que nos propomos operar. Isto é não neutralizar os movimentos que emergem nos cotidianos de trabalho para começarmos a trabalhar, mas, sim, lidar com tudo isso, esperando transformações que alterem posicionamentos, que produzam outras formas de subjetividade e outros modos de subjetivação. A produção de saúde não está desarticulada da produção de sujeitos. Aqui há uma especificidade do apoio institucional/PNH (Brasil, 2006). As estratégias metodológicas utilizadas primam por situar essa discussão no âmbito da gestão: tanto no sentido de como compreendemos a inserção dos sujeitos no trabalho (em que toda atividade de trabalho os mobiliza para diferentes níveis de gestão dos seus fazeres e saberes), mas também no sentido da gestão do processo de trabalho como desafio coletivo, como cogestão. O que essa “escolhadireção” traz de desafio? O de deslocar a discussão de “precarização”, “insatisfação”, “desgaste” e “adoecimento” no trabalho para o campo da análise coletiva do próprio trabalho. Isso significa deslocar ou superar o polo que tradicionalmente abriga essa discussão, reduzindo-a à esfera de “tratamento” (dos casos, dos problemas, dos doentes, dos absenteísmos, dos afastados etc.) e de “higienização” dos ambientes. Portanto, as mudanças que se desejam efetuar são tratadas no/ e a partir dos processos de gestão em curso. A função de apoio institucional é, então, atravessada por uma provocação do exercício coletivo de regulação, nos moldes em que compreendemos essa lógica, que permite ajustar o previsto (normas, regras, metas etc.) às necessidades e jeitos dos sujeitos, com interesses, demandas, a partir de uma potência de invenção própria do viver (Santos Filho, 2008). E é nesse ato de ajuste que a PNH vislumbra uma emancipação. É por aí que podemos indicar, de forma mais concreta, o protagonismo e a autonomia na organização e reinvenção de si, das equipes e da prestação de serviços. Foco no “processo de trabalho humanizado”: necessária inclusão dos usuários e dos trabalhadores/gestores Frequentemente podemos presenciar, nos serviços de Saúde, algumas situações que se expressam a partir da fragmentação das ações e sensação de isolamento-solidão no trabalho. Tais situações indicam a 610

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dificuldade de se efetivar o trabalho em equipe (Santos Filho, 2007a). A fragmentação do trabalho dá-se em meio a uma contradição que se expressa no embate entre novos modelos de atenção-gestão, que pressupõem processos de trabalho pautados no diálogo, e uma cultura da comunicação vertical e estilo de gestão que não fomenta momentos para comunicação-análise do fazer, com isso dificultando também uma inovação no âmbito da atenção ao usuário. Assim, pautar uma comunicação lateralizada como um importante campo no debate sobre a humanização dos serviços de Saúde, como um componente indispensável para a afirmação da indissociabilidade atenção-gestão, parece-nos importante. Nesse sentido, a organização do processo de trabalho precisa ser pensada sempre como processo dialógico e polifônico, em que as múltiplas vozes e olhares estão em debate e negociação. Então, as propostas da PNH, ao serem tomadas aqui como desafios, são postas em análise. Em que medida se tem dado conta dessas intervenções? Quais pistas nos ajudam a avaliar as repercussões desse modo de trabalhar? Tem-se cuidado para dimensionar o alcance dessas intervenções? De que forma? Com que referencial e com que instrumental? (Santos Filho, 2007b). Tais questões, certamente, convocam a construir caminhos que nos ajudam a ampliar o debate sobre a indissociabilidade entre atenção e gestão, o modo de fazer apoio institucional proposto pela PNH e as estratégias avaliativas que podem nos ajudar a dimensionar o trabalho de apoio institucional ofertado. A indissociabilidade entre a produção de serviços e a produção de sujeitos leva a afirmar: a aposta na inclusão dos diferentes sujeitos e na análise e gestão coletiva dos processos de trabalho é uma estratégia importante para a produção de desestabilizações produtivas e práticas de humanização dos serviços de Saúde que tomam os processos de trabalho como foco. Entendemos que as práticas nomeadas humanizadas em saúde, perdem sua força disruptora, ou seja, perdem a força de produzir mudanças significativas nos serviços de Saúde na direção dos princípios do SUS, ao serem reduzidas a ações desarticuladas que não colocam em análise os processos de trabalho. A PNH, por meio dos seus dispositivos, parece-nos uma estratégia que se tem constituído como uma forte aliada, quando temos como princípio a ampliação e afirmação do SUS que dá certo.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARROS, M.E.B. et al. A experiência do programa de formação em saúde e trabalho em um hospital público com serviço de urgência. In: SANTOS FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo do trabalhador na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p.185-202. BARROS, M.E.B.; BENEVIDES DE BARROS, R. Da dor ao prazer no trabalho. In: SANTOS FILHO, S.B; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo do trabalhador na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p.61-71. BARROS, M.E.B.; MORI, M.E.; BASTOS, S.S. O desafio da política nacional de humanização nos processos de trabalho: o instrumento Programa de Formação em Saúde e Trabalho. Cad. Saude Colet., v.14, n.1, p.31-48, 2006. BARROS, M.E.B.; SANTOS FILHO, S. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005.

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SANTOS FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B.; GOMES, R.S. La Política Nacional de Humanización como política que se hace en el proceso de trabajo en salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.603-13, 2009. El presente artículo tiene como objetivo hacer un ejercicio analítico del modo de hacer de la Política Nacional de Humanización, sobre la función apoyo institucional, con base en diferentes dispositivos, directrices y principios. El texto está dividido en tres partes. En la primera, trae reflexiones acerca de la concepción de humano y del humanismo que fundamenta los análisis. La segunda busca ampliar el debate sobre la inseparabilidad entre atención y gestión y el modo de hacer apoyo institucional. La tercera plantea la noción de inseparabilidad entre la producción de servicios y la producción de sujetos y encamina la discusión de estas tres partes que se desdoblan en otros planos de análisis. Resalta en todo el texto la apuesta en la inclusión de los diferentes sujetos y en el análisis y gestión colectiva de los procesos de trabajo como estrategia para crear desestabilizaciones productivas y prácticas de humanización de los servicios de salud.

Palabras clave: Humanización de la atención. Apoyo institucional. Co-gestión. Análisis colectiva de los procesos de trabajo. Políticas públicas.

Recebido em 13/01/08. Aprovado em 06/07/09.

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artigos

Contratos internos de gestão no contexto da Política de Humanização: experimentando uma metodologia no referencial da cogestão Serafim Barbosa Santos Filho1 Vera de Oliveira Nunes Figueiredo2

SANTOS FILHO, S.B.; FIGUEIREDO, V.O.N. Internal management contracts within the context of the Humanization Policy: experimenting with methodology within the reference frame of co-management. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.615-26, 2009. This paper describes the experience of implementing internal management contracts in a public hospital. These contracts were understood as tools within the context of co-management and, within the perspective of humanization, as interventions in healthcare and management practices. With this focus, the methodological lines of the collective construction of such contracts and the indicators for the implementation process are presented. Through the process of agreed targets and participative evaluation, the following results were observed: in addition to increasing the institutional efficiency and effectiveness, the effects unleashed through these tools revealed their potential for transforming the work relationships, promoting coresponsibility between subjects and teams, adding value to workers and forming commitment networks for improved care.

Keywords: Management contract. Humanization of care. Planning. Health management.

Neste artigo descreve-se a experiência de implementação de contratos internos de gestão em um hospital público. Os contratos são compreendidos como dispositivos no contexto da cogestão e na perspectiva da humanização como intervenção nas práticas de atenção e gestão em saúde. Nesse enfoque, apresentam-se os eixos metodológicos de sua construção coletiva e os indicadores do processo de implementação. Com o processo de pactuação de metas e avaliação participativa, observam-se os seguintes resultados: além de aumentar a eficiência e eficácia institucional, os efeitos desencadeados com esses dispositivos revelam seu potencial de transformação das relações de trabalho, promoção de corresponsabilização entre os sujeitos/equipes, valorização dos trabalhadores e formação de redes de compromisso para melhoria da atenção.

Palavras-chave: Contrato de gestão. Humanização da assistência. Planejamento. Gestão em saúde.

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Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização (MS/PNH). Rua Gonçalves Dias, 60/901. Belo Horizonte, MG, Brasil 30.140-061. serafimsantos@ terra.com.br 2 MS/PNH. 1

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A Política Nacional de Humanização (PNH) articula um conjunto de referenciais e instrumentos para disparar processos. No marco teórico-político da PNH (Brasil, 2008; Benevides, Passos, 2005), entende-se por princípio o que sustenta e dispara um determinado movimento na perspectiva de política pública. São três os princípios fundantes: o de transversalidade, indicando novos padrões de relação e comunicação entre sujeitos e serviços, buscando a alteração das fronteiras dos saberes e dos territórios de poder; o de indissociabilidade entre atenção e gestão, afirmando que há uma relação inseparável entre modos de cuidar e modos de gerir e se apropriar do trabalho; e a afirmação do protagonismo e autonomia dos sujeitos e coletivos, implicando atitudes de corresponsabilidade nos processos de gerir e de cuidar. Diretrizes são compreendidas como orientações gerais da Política, capazes de direcionar mudanças nos âmbitos da atenção e gestão, nos sentidos da: cogestão, clínica ampliada e acolhimento, valorização do trabalho e trabalhador da saúde, defesa dos direitos do usuário e do fomento aos coletivos e redes. E por dispositivo entende-se a tradução das diretrizes em arranjos de processos de trabalho, postos em funcionamento para catalisar ou potencializar práticas de atenção e gestão. São vários os dispositivos incorporados pela PNH, aqui merecendo destaque os dispositivos de gestão colegiada (exemplo dos colegiados gestores) e de contratualização (contratos de gestão), pelas suas relações diretas com a diretriz de cogestão, objetos de abordagem deste artigo. Para essa discussão toma-se, como referência, o debate que Campos vem fazendo em torno da gestão no setor saúde (Campos, 2006, 2003, 2000). A concepção de cogestão pressupõe a ampliação dos espaços públicos e coletivos, viabilizando o exercício do diálogo e da pactuação de diferenças. Configura-se como um modelo que inclui os diferentes sujeitos no processo de análise e tomada de decisão. Uma das marcas da cogestão é a perspectiva de construção compartilhada de conhecimentos (e intervenções), considerando as subjetividades e singularidades dos sujeitos e coletivos (Brasil, 2008; Campos, 2006, 2003, 2000). Os colegiados gestores e espaços coletivos equivalentes são dispositivos que incorporam essa concepção como estratégia de ampliar e transversalizar um modo ‘participativo’ e ‘cogerido’ de funcionamento do serviço/equipes. Os colegiados são concebidos como espaços/ instâncias que reúnem representantes dos trabalhadores e gestores, onde se formulam e se apreciam propostas procedentes dos diversos atores (trabalhadores, gestores e usuários), deliberando-se sobre planos diretivos/operativos, garantindo: o compartilhamento do poder dos diferentes membros, a coanálise, a codecisão e a coavaliação de propostas, metas, indicadores e aspectos próprios da articulação do processo local de trabalho. Essas diretrizes e instâncias confluem para uma perspectiva que a PNH nomeia como caminho de ‘tríplice inclusão’, no processo de produção de saúde: inclusão dos diferentes sujeitos (gestores, trabalhadores, usuários), inclusão do coletivo (seja dos trabalhadores em sua organização grupal, seja do movimento social organizado) e inclusão dos analisadores sociais, entendidos como tudo que pode disparar análises do/no que está estabelecido, provocando outros modos de ser e fazer saúde (Barros, 2007). A proposta dos Contratos Internos de Gestão (CIG) está compreendida nesse contexto. Contratos como negociação e acordo entre partes; como dispositivos de diálogo e contratação de compromissos e responsabilidades (no viés da corresponsabilização), em torno de objetivos e metas afinadas com as necessidades das partes que negociam/pactuam. Considera-se especialmente o que se refere ao seu potencial de propiciar interações, de colocar sujeitos/equipes em interlocução para construir mudanças, gerando novos padrões de relação e comunicação no âmbito das organizações/serviços de saúde. Campos (2006, p.59) reafirma o conceito de contrato social no seu sentido sociológico, que indica “estabelecimento de novas relações que alteram regras, leis e comportamentos segundo um acordo bem explicitado”. Considera que, nessa perspectiva, o contrato significa ou aponta para uma formação de compromisso entre sujeitos, situação que se concretiza a partir de “deslocamentos” de posição e de novas composições na esfera das instituições e organizações. Essa concepção articula-se na teoria/ método que o autor propõe para a cogestão de coletivos e no que compreende como coprodução de situações, sujeitos e organizações (Campos, 2006, 2000). Neste artigo descreve-se a experiência de implementação de um contrato interno de gestão em um hospital público, buscando-se valorizar o seu potencial de mobilização dos sujeitos nos espaços de 616

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trabalho/relações, acarretando um exercício cotidiano de compartilhamento, nos moldes do que se propõe como cogestão. Ao se analisar essa experiência, buscase, sobretudo, valorizar o seu processo, ressaltando os eixos metodológicos (de condução) postos em exercício para assegurar coerência com a perspectiva pedagógico-participativa que se deseja com os contratos.

O serviço/hospital e o contexto de implementação do contrato de gestão

3 Equipe formada por: Susana M. Moreira Rates (superintendente do Hospital), Miriam M. Souza, Yara C. N. Barbosa, Andréia A. Torres e Maria Helena dos Santos (componentes da diretoria) – Grupo responsável por articular e fomentar todo o processo de renovação da gestão local, incorporando apoios e conduzindo e compartilhando a implementação de ações; coconstruindo no cotidiano as estratégias de enfrentamento dos diferentes problemas que iam emergindo no próprio processo.

4 Curso conduzido por Gastão Wagner de Sousa Campos.

O Hospital Odilon Behrens (HOB/BH) é um hospital integrado à rede SUSmunicipal de Belo Horizonte, funcionando como referência também para outras regiões do Estado de Minas Gerais. Tem 63 anos de existência e caracteriza-se como hospital geral e de pronto-socorro. Conta com cerca de quatrocentos leitos, oferece 35 especialidades médicas e atende em torno de quinhentos pacientes/ dia em urgências clínicas, traumatológicas e odontológicas. Em meio aos avanços na qualidade dos serviços prestados, o Hospital tem tomado importantes iniciativas no sentido de aprimorar seu modelo de atenção e de gestão. Nesse sentido, ações sistemáticas foram disparadas pelo grupo que assumiu a gestão em 20033, despontando com o desafio de reorganizar sua estrutura e dinâmica, criando uma disponibilidade coletiva (de gestão, interesse, vontade) para efetuar mudanças institucionais (disponibilidade que se considera essencial para o êxito das intervenções). Como desdobramentos de um Seminário ocorrido em 2003, várias oficinas e outros seminários foram organizados para ampliação das discussões e direcionamento de frentes de ação em diferentes âmbitos, todas no sentido de ‘experimentar a cogestão’, isto é, fazendo confluir vários movimentos institucionais num exercício valorizando a cogestão como processo e como produto esperado (instituindo um outro modelo de gestão). Assim, foram feitas: reformas administrativas, reestruturação de áreas físicas e outros investimentos para adequação de espaços/ambientes de trabalho, recomposição de equipes multiprofissionais, retomada de mesas de negociação permanente (mesas tripartites de negociação sobre questões trabalhistas), reorganização e ampliação das atividades de educação permanente e implementação de instâncias coletivas e colegiadas de gestão. Para ajudar no aprofundamento dessas reformas e formação das equipes de trabalho, em 2005, foi iniciado um curso de Desenvolvimento Gerencial4, com duração de um ano e meio, posteriormente contando com momentos pontuais de atualização. Toda essa agenda institucional foi permeada pela discussão de um modelo participativo de gestão. A partir desse período vem sendo consolidada a implementação de um conjunto de dispositivos diretamente relacionados à Política Nacional de Humanização/PNH, abrangendo as várias esferas de gestão/atenção. Dispositivos importantes para reorganizar o processo de trabalho, como o ‘Acolhimento com Classificação de Risco’ (organização do processo e equipes para protocolar o atendimento com base em prioridades clínicas dos usuários), foram se articulando a outras inovações, como a ‘visita aberta’ (reorganização do hospital para ampliar o horário de visitas aos pacientes internados) e vários projetos afinados com as diretrizes de cogestão, além de todo o investimento na perspectiva da ‘ambiência’ (novos desenhos arquitetônicos das áreas físicas, para maior conforto e interação de usuários e trabalhadores). Neste texto propõe-se um recorte ilustrando como os contratos internos de gestão constituíram-se como um dispositivo canalizador de todos esses COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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movimentos. Serão abordados em sua metodologia de implantação e no que se propõe como perspectiva de seu acompanhamento avaliativo, campo (da avaliação) que também tem sido um alvo de discussão/ajustes metodológicos no referencial da PNH (Santos-Filho, 2008, 2007a, 2007b; Brasil, 2006). Com esse recorte analítico, espera-se contribuir com o destaque de alguns ‘modos de fazer’ que possam funcionar como ‘indicadores-analisadores’ do processo de implantação/acompanhamento – assim ajudando a fortalecer esses instrumentos como ‘dispositivos catalisadores’ de vários outros e ajudando na sustentabilidade dessas iniciativas.

Diretriz de cogestão e o embrião do contrato de gestão no HOB É necessário enfatizar que o que se pode considerar como o embrião dos CIG foram os investimentos na organização de colegiados gestores, espalhados em todos os setores do Hospital, imprimindo assim a marca da cogestão como diretriz institucional. Esses colegiados, compostos pelos gerentes, coordenadores e trabalhadores de cada unidade, passaram a funcionar como momentos sistemáticos de discussão de assuntos de interesse coletivo, propostas, metas, estabelecimento de prioridades e desafios. As propostas construídas nesses espaços foram também apresentadas ao Conselho Local de Saúde, definindo-se prioridades para o Plano Diretor do Hospital (plano para os anos de 2005 a 2008). Demarca-se, assim, uma iniciativa que se tomará como cenário para a instauração dos contratos de gestão. E aqui demarca-se, também, que essa articulação que se propõe implica uma direção políticometodológica de análise, no sentido de chamar a atenção para o fato de que se compreende a implantação (e continuidade) dessa lógica de contratualização necessariamente por dentro da diretriz da cogestão.

As bases dos contratos internos de gestão na realidade local A proposta dos contratos de gestão foi operacionalizada no contexto dos espaços colegiados de trabalho. E o que se demarca como bases dos contratos seriam: (i) a concepção de gestão exercitada no cotidiano do Hospital e (ii) o que eles (os contratos) podem trazer de ‘componentes-desafios’, isto é, o potencial de serem ‘indicadores-analisadores’ de toda a gestão. Assim, o ato de avaliar os contratos (e seus ‘cumprimentos de metas’) não seria um ato (ação) anexo a eles, mas sim intrínseco à sua experimentação/implantação (Santos-Filho, 2008). E qual foi/é a concepção de gestão que se validou no HOB? A que é referida como uma gestão colegiada, num modelo político-institucional para aprimorar as relações entre trabalhadores, usuários e grupo diretivo, buscando: (i) democratização dos processos de trabalho, (ii) qualificação da atenção para os usuários e (iii) inclusão dos profissionais de saúde no âmbito da gestão.

A metodologia de implementação dos contratos internos de gestão: movimentos em espiral Entende-se que o contexto referido anteriormente abre todos os movimentos descritos em seguida, realizados de modo indissociado, mas que aqui se separam apenas para enfatizar certas ‘passagens’. Por dentro deles constroem-se eixos analíticos, gerando informações que podem servir para orientar novas experiências. A idéia de movimento que se quer enfatizar implica a perspectiva de espiral, indo e vindo na compreensão, planejamento-execução e acompanhamento da implementação dos contratos de gestão. Vale dizer que também se está exercitando uma metodologia de sistematização (por dentro do que se propõe como ‘acompanhamento avaliativo’), possibilitando a recuperação de um fazer cotidiano na forma de registro-reflexão desse/sobre esse fazer. Primeiros movimentos Os contratos de gestão foram propostos como uma proposta/meta dentro das discussões do “Curso de Desenvolvimento Gerencial”, ocorrido entre 2005 e 2006. A partir daí a implementação dos contratos 618

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foi trabalhada como prioridade no âmbito da direção do Hospital e amplamente discutida e validada pelo Colegiado Gestor Ampliado/CGA (constituído por um representante de cada Unidade de Produção, gerentes, coordenadores de ensino e diretoria). Esse processo desencadeou um crescente interesse dos gerentes, coordenadores e trabalhadores, vendo nele o potencial de mudanças dos processos de trabalho em suas unidades de produção e em todo o Hospital. Assim, a decisão de implementação do dispositivo foi um compromisso coletivo de fazer do HOB um hospital de referência no SUS no campo da humanização da atenção e gestão em saúde. O que se ajustou como objetivo e estratégia local foi o contrato como meio de pactuação de diretrizes materializadas em objetivos, metas e indicadores (vinculados ao modelo de atenção e gestão), e, para isso, seria operacionalizado de forma descentralizada e com participação de todos, aproveitando os colegiados existentes. Deveria explicitar a rede de compromissos entre a direção do hospital e as unidades/equipes, tendo como pressupostos o envolvimento-valorização-qualidade, alcançando gestores, trabalhadores e usuários. O aprofundamento da compreensão dos contratos foi-se dando com a retomada contínua de seus objetivos na realidade e conjuntura do HOB, e pensados como envolvimento dos coletivos ‘setoriais’ (unidades) na definição de: metas (quantitativas e qualitativas), indicadores de processos e resultados, e desenho de planos de ação baseados nas metas. O processo seria formalizado por meio de um termo de compromisso. Segundos movimentos Esses movimentos aprofundam as iniciativas disparadas e afunilam-se em uma perspectiva metodológica mais direcionada. Assim, vai se definindo uma agenda político-operacional de trabalho, envolvendo várias reuniões distribuídas em todo o Hospital, cuidando para envolver direta ou indiretamente todos os trabalhadores. Pode-se dizer que as reuniões se organizaram em uns dois ou três tipos, inicialmente como ‘preparatórias’, depois como de ‘sensibilização’, e seguindo-se com diagnósticos situacionais locais. A ‘etapa’ de diagnóstico foi um processo extenso, norteado por instrumentos específicos e acompanhamento intensivo por assessores da direção, incluindo o apoio de uma consultora vinculada à Política Nacional de Humanização. A feitura do diagnóstico, desde o momento de elaboração de instrumentos específicos para cada unidade de produção (elaboração que se deu no Curso de Desenvolvimento Gerencial), já se desejava como um processo de amplo e intenso envolvimento dos coletivos das unidades, o que resultou em uma oportunidade concreta para os trabalhadores compreenderem o sentido e o alcance daquelas iniciativas. Colado ao diagnóstico deveriam ser iniciadas as discussões de prioridades de investimentos, isto é, no que se deveria ‘investir para mudar naquela unidade’. A conclusão dos diagnósticos, discussões de problemas e recortes de prioridades de investimento encerram o que aqui se considera como segundos movimentos, em torno dos quais se iniciou um acompanhamento mais sistemático por um grupo que estava constituindo-se com esta função. Terceiros movimentos Os terceiros movimentos abrem-se em devoluções, aos coletivos, do que havia sido discutido até então (no contexto dos diagnósticos). E articulam-se com a definição das prioridades a serem traduzidas em ‘metas’, daí derivando planos de ação com indicadores de monitoramento. Nesse momento foi importante uma discussão mais direcionada, formativa, sobre a metodologia de composição dos planos de ação e de indicadores significativos para seu acompanhamento. Foi então realizada uma oficina com representantes de todo o Hospital, abordando categorias específicas de planejamento e avaliação, ajustando-as ao contexto dos contratos e da avaliação formativa, referencial com o qual se tem trabalhado na PNH. Configura-se, assim, a uma primeira ‘padronização’ de categorias para compor os instrumentos de contratos, esclarecendo o alcance e especificidades da tríade objetivosmetas-indicadores. Seguiram-se os movimentos de confecção propriamente dita dos instrumentos de contrato, agora trazendo as ‘definições de fundo’ (as necessidades, escolhas, prioridades), mas também exercitando a formatação objetiva das metas e planos (conforme as padronizações antes validadas). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Essa etapa de trabalho foi acompanhada intensivamente por uma equipe instituída para acompanhamento mais próximo dos trabalhos. E esse acompanhamento passa a assumir uma função estratégica de formação das equipes (sobretudo do grupo de apoio) na familiarização com as categorias do planejamento e avaliação. O momento torna-se interessante não pelos aspectos de formatação em si, mas pelo que se pode clarear coletivamente em termos de ‘mudanças efetivamente viáveis’, considerando as diversas variáveis contextuais. Isto é, ao se tentar fazer a tradução de ‘prioridades’ em ‘metas e indicadores concretos’, vai-se observando que várias ‘intenções’ carecem de mais ‘problematização’ e negociações, para que sejam postas em prática e, portanto, para que sejam previstas como ‘metas viáveis’ (nos prazos pensados). Por outro lado, também é uma oportunidade importante de ajuste (e compatibilização) do que foi pensado como ‘prioridades’ e em quais ‘âmbitos de metas e de indicadores’ elas ‘cabem’, para demonstrar com fidelidade o alcance da mudança. O processo culminou com a elaboração de 44 contratos internos de gestão, representando todas as unidades de produção do Hospital.

Um movimento especial Concluindo as fases de elaboração, ressalta-se o importante movimento de articulação com o Conselho Local de Saúde no processo de contratualização. Esse foi o movimento que culminou com a assinatura formal (em maio de 2007, cerca de seis meses após o início das rodas de conversa) dos 44 contratos expressos em termos de compromisso, com as presenças de todos os atores que compartilharam a sua elaboração. Esse movimento foi pleno de significados, do âmbito de ‘compromissos’, corresponsabilização, até o âmbito ‘festivo’, de satisfação compartilhada com o processo. Importante registrar esse ‘indicador de movimento’, de ‘inclusão’.

Movimentos de acompanhamento da implementação dos contratos Para o acompanhamento da implementação dos contratos (referentes ao ano de 2007) foi instituído, em fevereiro, o Grupo Estratégico de Apoio para Acompanhamento dos Contratos de Gestão/GEACG, composto por assessoras da diretoria, representante da Coordenação de Ensino e Pesquisa e da Coordenação do Serviço de Arquivo Médico e Estatística. A função do Grupo foi definida como a de elaborar metodologia e instrumentos para efetivação do trabalho. O Grupo começou a ter papel ativo já nas fases preparatórias dos contratos, desenhando estratégias para acompanhamento com gerentes e diretoria. Seu modo de funcionamento foi-se estabelecendo a partir das próprias exigências do processo, que demanda diferentes tipos de habilidades para sua condução. Os passos iniciais incluíram/incluem a formulação de instrumentos/matrizes, junto com a direção, a serem ofertados para ajustes e validação coletiva, na medida em que cada unidade vai trabalhando no contrato. Também foi necessária a definição dos parâmetros para distribuição do incentivo/premiação e uma agenda sistemática para o acompanhamento. Nessa agenda foram retomados os processos, atualizando-os e acordando estratégias de seu desdobramento/continuidade. Foi realizado um levantamento dos contratos já elaborados ou em processo, por unidade de produção/diretoria; feito um mapeamento da situação e início de discussão com gerentes, coordenadores e diretoras, com elaboração de instrumentos para facilitar a operacionalização/conclusão dos contratos. Entendendo que metas e indicadores do contrato global do Hospital (firmado com a Secretaria Municipal de Saúde e Ministério da Saúde) são desafios para todo o corpo do hospital, estes passaram a ser integrados em todos os contratos internos. Também se fazia necessária a complementação e refinamento de toda a ‘cadeia’ de planejamento embutida no instrumento de contrato, com discussão de fontes de verificação das metas/indicadores, prazos e responsáveis, além do detalhamento das ações para a viabilização das metas. Tudo isso foi feito em reuniões com os representantes dos coletivos/unidades. Vale ressaltar que esse movimento não era apenas o de uma instrumentalização, mas ia instituindo-se como validação coletiva de todo o processo, atitude cara na ótica da avaliação participativa e era fomentado pela direção do Hospital.

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Movimentos de acompanhamento avaliativo e aferição de metas Para subsidiar a aferição, acentuou-se uma agenda de apoio ao Grupo de Acompanhamento dos Contratos (GEAC), ajudando na definição de uma metodologia de aferição, que não se pautasse por uma simples ‘verificação de cumprimento’ das metas, mas que trouxesse uma perspectiva pedagógica em seu bojo. Propôs-se que a aferição se instituísse por dentro de uma lógica de acompanhamento avaliativo-formativo. Essa é uma metodologia que se tem experimentado na PNH, embasada na convergência dos referenciais da avaliação participativa-formativa com os princípios/diretrizes da PNH (Santos-Filho, 2008; Hartz, Silva, 2005; Silva, 2004; Hartz, 1997). Nessa metodologia, temos construído um modelo lógico-avaliativo, incorporando categorias avaliativas clássicas, como ‘metas’ e ‘indicadores’, mas buscando-se ampliar e ressignificar algumas de suas dimensões e atributos (dimensões de processos, resultados; atributos de precisão e validade etc). E, sobretudo, explorando e ampliando a sua perspectiva formativa no sentido de ser efetivada/exercitada como momentos de aprendizagem, de redirecionamentos, de correções de rumo no próprio processo. Uma lógica em que os coletivos, ao invés de se sentirem fiscalizados e punidos (como em uma auditoria externa), sintam-se incluídos para discutir os problemas no entorno das metas e de seus alcances, e, sobretudo, repactuar o que for considerado pertinente e acordado entre as partes – todo esse processo sendo, ele mesmo, um processo de aprender-fazendo, fazer-aprendendo. Aqui chama-se a atenção não somente para a ‘implementação dos contratos’, mas para a necessidade de simultaneamente ‘colocá-los em análise’, exercitando-se a avaliação do e no processo, dimensão que é muito cara no campo do acompanhamento avaliativo na PNH e que se teve a oportunidade de, também, experimentar no apoio a esse processo no HOB. A agenda do acompanhamento envolveu: (i) momentos avaliativos com cada coletivo (com um âmbito de aferição dialogada, identificando-se e explicando os problemas e suas causas imediatas; esclarecimentos de objetivos, metas e indicadores ainda confusos em suas ‘intenções’ e suas formulações; ajustes e redefinições de metas e indicadores); (ii) sínteses das avaliações e discussões com a diretoria do Hospital, ressaltando os pontos críticos; (iii) retorno sistematizado das avaliações aos coletivos, com ‘nova aferição’ com base no que havia sido ajustado e redefinido; (iv) elaboração de relatórios, com mapeamentos das situações, agrupando diferentes focos de sua compreensão (não somente como resultados brutos, mas agregados a análises em maior profundidade, justificativas etc). Em seguida, (v) todo o material sistematizado foi apresentado aos coletivos, já apontando metas pertinentes para os contratos do próximo ano. Ao final de dez meses de trabalho/movimentos, (vi) todo o processo de análise e avaliação dos contratos foi apresentado num momento de ‘celebração de resultados’, num encontro incluindo gerentes, coordenadores, trabalhadores, direção e convidados. Essa foi uma oficina, ela mesma num formato avaliativo, colocando em análise os contratos de gestão (sua potência e perspectivas de sustentabilidade). A atividade de acompanhamento direto/aferição de metas está proposta para ser realizada a cada bimestre.

Indicadores de processos e movimentos Todo o esforço de tratar as ações relacionadas às políticas de humanização, sempre numa ótica avaliativa, busca avaliar se elas têm sido capazes de ajudar a ‘alterar” o cotidiano dos serviços (processos e relações de trabalho). O que os contratos internos de gestão possibilitaram? Em seguida, sintetizam-se alguns eixos de ‘repercussões’ do processo de contratualização, entendendo-os como ‘indicadores’ dos movimentos e seus alcances/resultados. Esses eixos foram sinalizados a partir do acompanhamento direto a esse processo, em diferentes situações de ‘intervenção-observação participante-apoio’, ora com a equipe ampliada do Hospital, ora com o grupo menor de acompanhamento, e, outras vezes, em uma interlocução nos moldes de apoio para problematizações conceituais e metodológicas específicas. Essa informação é importante para demarcar que a avaliação formativa requer uma proximidade concreta entre os atores que vivenciam e os que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ajudam a explorar-analisar toda a situação, portanto não se dá de um modo externo, nem por um ator externo ao processo. Quanto ao alcance de resultados com base nas metas previstas O alcance propriamente dito das metas previstas encontra-se detalhado em outros documentos. Esses resultados demonstram o êxito do processo no alcance/execução do que se considerou prioritário e pertinente para o primeiro contrato. Neste texto mencionam-se alguns dados ilustrativos do ‘desempenho global’ dos contratos vinculados às diretorias (as 44 unidades de produção são vinculadas a cinco diretorias) e, em seguida, destacam-se os ‘indicativos’ dos processos deslanchados/ transformados. Do total de todas as metas contratualizadas entre unidades de produção e direção do Hospital, 84% foram alcançadas, demonstrando o esforço de cada Unidade de Produção (setor do hospital) e diretorias às quais estão vinculadas. A cada contrato cumprido (metas alcançadas) foi correspondido um incentivo (proporcional ao cumprimento) como premiação. Alguns exemplos de metas ilustram resultados importantes seja na organização de cada Unidade, seja em seu desempenho. Destacam-se, a seguir, alguns indicadores no âmbito das diretorias. Na Diretoria Técnica: elaboração de projetos terapêuticos (projetos assistenciais, considerando a singularidade e necessidades de cada caso) para 100% dos pacientes críticos da Clínica Médica; formação de equipes multiprofissionais estabelecendo-se como referência para os usuários e aumento da adesão da família ao projeto terapêutico do paciente, na Unidade Cirúrgica; redução da média de permanência (internação) em 5%, considerando o período anterior; redução em 50% do número de escaras adquiridas nas enfermarias; otimização da taxa de ocupação das unidades, a partir da atualização (rotineira e em tempo real) da movimentação de pacientes (óbitos, transferências, admissões e altas); redução do tempo de intervalo de substituição de leito para, no máximo, duas horas; melhoria da comunicação entre todas as unidades afins, aumento do diálogo entre as comissões (Controle de infecção hospitalar, Comissão de revisão de prontuários, Comissão de Óbitos), padronização e/ou atualização de protocolos em várias unidades e implantação do questionário de satisfação do trabalhador. Na Diretoria de Apoio Diagnóstico e Terapêutico: redução do tempo de entrega de resultados de exames laboratoriais; redução em mais de 95% no uso de glutaraldeído (na Central de Esterilização); desenvolvida a codificação dos medicamentos com códigos de barras para implantação do sistema informatizado no almoxarifado central das farmácias; redução no preparo de hemocomponentes não utilizados (agência transfusional); elaboração do manual de nutrição parenteral e enteral; implantação do plano de radioproteção; implantação de novas rotinas no Banco de Leite, Lavanderia e outros, além da padronização e/ou atualização de protocolos em várias unidades. Na Diretoria de Urgência e Emergência (e Ambulatorial), colocaram-se, como foco, mudanças na sala Vermelha/Sala de Politraumatizado, direcionando investimentos para monitorar a assistência aos diferentes tipos de casos/demandas. Merece destaque, também, a garantia de visita a pacientes da Sala Vermelha e na Sala Amarela da Unidade de Urgência e Emergência. Na Sala de Observação, destaca-se a corrida de leito de pacientes pela equipe multiprofissional e passagem sistematizada de plantões noturnos, já que a horizontalização é assegurada durante o período do dia. Quanto ao Ambulatório, a meta alcançada de grande expressão para o SUS-municipal (BH) foi a consolidação do Centro de Especialidades Médicas, com a regionalização da atenção secundária para 35 especialidades (instituindose como referência para importantes áreas da cidade). Outros resultados significativos incluem: implantação do programa de saúde bucal para pacientes da Unidade de AVC; expansão da busca ativa para inclusão de pacientes no programa de atenção domiciliar, contribuindo na redução de hospitalização desnecessária; reorganização de fluxos, processos de trabalho, implantação de novas rotinas, passagem sistematizada de plantões, melhoria de registros e realização de pesquisas de satisfação dos usuários. Na Diretoria Administrativa, o contrato de gestão propiciou maior agilidade na liberação de processos para compra e melhoria na interface com as unidades em geral. Isso atualmente representa mudança importante para garantia de material, sem desabastecimento, tendo em vista o grande consumo resultante da ampliação do grau de complexidade assistencial do Hospital. Acrescentam-se, ainda, melhorias significativas na efetivação das compras em relação às aquisições anteriores aos contratos. 622

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Na Diretoria de Gestão do Trabalho, Ensino e Pesquisa, merece destaque a aprovação e ações para implantação do Projeto de Residência Multiprofissional e a avaliação dos estágios com as instituições formadoras com atuação no Hospital. A Unidade responsável por essas ações teve 100% de suas metas alcançadas. Ressalta-se ainda, na Unidade de Gestão com Pessoas, o grande movimento de toda a equipe para o alcance de metas importantes como: a regularização de mais de 80% do quadro funcional, com efetivação dos candidatos aprovados no concurso público no período, e, ainda, a implantação do novo sistema de gestão de pessoas (folha de pagamento e frequência). Acrescente-se, também, a pesquisa de satisfação com usuários internos do SAME, meta importante na melhoria dos fluxos e relações de trabalho entre os setores. É necessário reafirmar a importância não somente do cumprimento dessas metas, senso estrito, mas também o que foi posto em movimento/mudança em todo o âmbito hospitalar, lembrando que tudo isso envolveu desde as áreas técnico-assistenciais até os setores comumente mais periféricos, como áreas administrativas e jurídicas. Nos próximos tópicos enfocam-se alguns dos indicadores dos processos que sustentaram e refletiram uma ampliação geral da interlocução intrainstitucional. Quanto à capacidade de mobilização, de aquecimento de rede e aprendizado da cogestão O processo de contratualização gerou movimento dentro do Hospital, provocando deslocamentos de diferentes ordens: de lugares físicos, de estabelecimentos de fluxos de trabalho e afetivos, refletindo uma postura de solidariedade construtiva (foi visível o movimento de setores se ajudando entre si para o enfrentamento de dificuldades e alcance de metas). Houve uma ampliação da inclusão das pessoas (maior número e diferentes atores) para participar de pactuações, buscando aumentar os aliados para levar adiante os planos de trabalho/metas. Um meio e uma consequência de tudo isso foram o estabelecimento ou aprimoramento da comunicação e a integração entre os sujeitos/unidades de produção, a partir das necessidades, inclusive de interfaces para o alcance/cumprimento de metas comuns. Consideramos que essas são situações indicativas do fortalecimento da cogestão, observando-se sua repercussão em diferentes âmbitos: em atitudes que expressam um modo diferente de gestão da clínica (compartilhamento de saberes e condutas entre profissionais, avançando na sua maior integração para direcionar as abordagens aos usuários) e em atitudes de reorganização dos processos de trabalho (rearticulação de ações, práticas e arranjos, com incorporação pactuada de protocolos orientadores da prática), permeadas pela experimentação de um modo diferente de fazer a gestão das unidades de produção/setores (modo diferente que ‘envolve’ os sujeitos, que busca provocar sua participação, que valoriza a escuta, que acolhe as sugestões, que se opera com compartilhamento e deliberações conjuntas). Há múltiplas situações que ilustram essa capacidade de constituição de um processo de cogestão e redes cogeridas ali no Hospital. Citam-se aqui uns exemplos inter-relacionados, por se ver neles a chance concreta de consolidação desse modo de trabalhar. A área da saúde da criança/pediatria enfatiza uma diferença marcante entre o seu primeiro contrato (2007) e o que se seguiu (2008) - este último já sendo elaborado de forma a incluir todas as áreas relacionadas à criança, ampliando todo o seu escopo de processo, de setores, de serviços, de sujeitos, de focos, de fluxos etc, efetivando-se todas as mudanças necessárias para a concretização de linha de cuidado de atenção à criança, fato que foi gerado pelo movimento do primeiro contrato. Outro exemplo: o contrato do Laboratório/apoio diagnóstico extrapolando metas internas e fazendo um movimento de buscar ‘satisfação em rede’, isto é, busca de satisfação dos trabalhadores/setores clientes entre si. Quanto à capacidade de fazer emergir situações-analisadoras O processo foi fazendo emergir problemas, assim ganhando visibilidade não somente as iniciativas de ‘inovação’ na gestão, mas também os ‘incômodos’, sentidos e expressos por meio de ‘dificuldades de compreensão’, de tensionamentos resultantes da necessidade de problematizações e da lida com opiniões e interesses diferentes, com projetos em disputa, situações que configuravam, em vários momentos, atitudes de ‘resistência’, de ‘recuo’, mas também de alerta com estratégias para evitar desmobilização. Destacamos que a ‘estratégia’ principal era a de fazer incluir os problemas, tomando-os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como ‘pontos de pauta’ coletivos. Assim, buscando compreender as situações-problema como analisadores (Barros, 2007), elas foram mostrando as lacunas e as potencialidades do processo; lacunas que ilustravam incômodos de diversas ordens e potencialidades no sentido de se valorizarem os sinais de disponibilidade dos sujeitos para enfrentamento coletivo das situações. Essas observações atestam os desafios que vêm no rastro das escolhas/decisões institucionais, desafios concretos para operar a democratização dos processos de trabalho, ‘escolhas’ que trazem várias consequências e exigem uma vigilância constante para ajuste de rumos. Quanto à satisfação dos sujeitos Percepção de aumento da satisfação de todos os envolvidos: gerentes, coordenadores, trabalhadores e direção do Hospital. Isso foi manifesto de forma mais coletiva em vários encontros, cuja satisfação foi expressa tanto com o que se alcançou quanto com a forma de trabalhar, de envolver, de gerir. No tópico seguinte associa-se um indicador ilustrativo dessa situação de satisfação. Quanto ao aprendizado na forma de avaliar/aferir e perceber o próprio trabalho Destaca-se esse âmbito de repercussão, considerando o aprendizado que se deu no aporte de um jeito de avaliar, possibilitando concretizar (numa prática instrumental) o discurso/diretriz da cogestão e da avaliação formativa. Isto é, foi no dia-a-dia do acompanhamento avaliativo que o ‘grupo aferidor’ foi aprendendo a escapar de uma postura prescritiva e fiscalizatória; que foi ganhando mais segurança/ autonomia para ‘olhar avaliativamente sem precisar excluir’; aprendendo a envolver o outro como parceiro, e não como ‘devedor de uma meta/dívida’; ganhando habilidade para colocar em análise a própria concepção de metas – sua compreensão e formulação dentro de um objetivo, sua capacidade de refletir intenções, seus condicionantes, parâmetros e fontes de sua verificação; sua previsão não numa dureza de buscar um resultado a ‘qualquer custo’ ou de guiar a medida/resultado por um valor absoluto. Também muito importa destacar que a postura do ‘avaliador’ passa a ser uma postura de ‘ajuda’, de apoio, tanto para ajudar a reformular o contrato, como para ajudar os coletivos a viabilizarem ações e metas, atribuição que antes era considerada ‘impensada’, ‘imprópria’, segundo a fala de algumas pessoas do grupo. Assim, os contratos foram experimentados operando com uma lógica (bem-sucedida) de ajustes sucessivos, que vem atrelada ao acompanhamento avaliativo (Santos-Filho, 2008). Lógica metodológica que, no referencial da avaliação formativa, possibilita a realização de ajustes a todo momento, para fazer corresponder (ou aproximar ao máximo) o planejamento das ações, metas, indicadores às necessidades reais dos processos e dos sujeitos em seu entorno. Nessa ótica do acompanhamento avaliativo, o contrato fica ressignificado como locus/espaço de pactuação em torno do que faz sentido, no contexto de cada coletivo. Em um momento avaliativo ampliado, mencionamos duas situações indicativas da riqueza do movimento. Uma delas, chamando a atenção para o fato de que boa parte das metas/resultados daqueles contratos poderia estar sendo trabalhada na ótica mais dura e linear da ‘certificação’ ou ‘controle de qualidade’ (numa perspectiva prescritiva e de controle externo); no entanto estavam sendo tratadas nos moldes de uma coconstrução, residindo aí o desafio e o caráter inovador dos contratos. Não se trata, portanto, somente da definição de ‘boas’ metas (metas pertinentes), mas sim do processo de sua definição, viabilização e aferição. O outro recorte que fizemos relacionava-se à percepção da satisfação das pessoas tanto com o que tinham disparado e alcançado, como também com a reflexão que estavam fazendo coletivamente sobre aquilo e com o ânimo na engrenagem do próximo contrato. Falamos em um ‘coeficiente de paixão’ que estava sendo expresso com aquele modo de trabalho, aquele tipo de inserção. E mediante essa ‘informação-indicador’ vivo, em ato, de satisfação, associamos ao que entendemos no campo da Saúde do Trabalhador como necessidade de se compreender que a motivação dos trabalhadores não se dá nem se pode ‘exigir’ de uma forma abstrata, mas sim que a motivação é algo que emerge com o trabalho, por dentro de um modo (especial, singular, coletivo) de realizar/existenciar o trabalho.

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Os contratos internos de gestão funcionam, portanto, como dispositivo que fortalece a gestão compartilhada, produzindo outros modos de avançar na efetivação de propostas para organização da atenção hospitalar e do processo de trabalho produtor de saúde e subjetividade. Eixos de desafios Propõe-se abordar os desafios também como eixos analisadores de todo o processo e que trazem ‘indicativos’ do que se pode/precisa mudar, inclusive para ajudar na sustentabilidade das frentes abertas. Sendo dispositivos essenciais para fortalecimento do modelo de cogestão, os contratos (i) devem ser melhor trabalhados como instrumentos-meios para aumentar a integração e inter-relação entre unidades de produção, para o alcance de metas afins; (ii) devem também ser meios para provocar o aumento da participação de trabalhadores (nos casos de algumas unidades de produção), e (iii) devem consolidar os colegiados das unidades como as instâncias legítimas para validar e operar coletivamente o processo. Do ponto de vista mais instrumental, nos novos contratos deve-se cuidar para o refinamento de sua linha diretivo-organizadora – o tripé objetivos-metas-indicadores: (i) rever a ‘qualidade dos objetivos’, de forma a dar mais precisão e direcionalidade, atrelando-os aos objetivos gerais de forma mais consistente e direcionada; (ii) aprimorar os critérios de avaliação e de lida com as categorizações, mesclando parâmetros para não se prender a ‘medidas/coeficientes absolutos’; (iii) por outro lado, aprimorando critérios de aferição específicos, sobretudo em relação aos indicadores que dependem de setores entre si. Permear todo o esquema avaliativo com técnicas simplificadas, mas significativas, de ponderações e de ‘fatores de correção’. É importante prever e pactuar uma ‘agenda de contratualização’, por dentro do acompanhamento avaliativo, que possa ser referencial quanto à definição de prazos e responsáveis por ‘puxar’ os diferentes movimentos, etapas, sistematizações etc. No contexto e no rastro de todo esse processo, o desafio que mais se apresenta como necessário para uma ‘agenda institucional’ parece ser o das estratégias de ampliação do grau de pactuação com a rede de trabalhadores para levarem adiante o princípio e os instrumentos concretos de cogestão.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/Ed. UFRGS, 2007. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.561-71, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. Humanizasus: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.

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BRASIL. Ministério da Saúde. Monitoramento e Avaliação na Política Nacional de Humanização na rede de Atenção e Gestão do SUS: manual com eixos avaliativos e indicadores de referência. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. CAMPOS, G.W.S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec/ Fiocruz, 2006. p.53-92. ______. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. ______. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000. HARTZ, Z.M.A. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação de programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. HARTZ, Z.M.A.; SILVA, L.M.V. Avaliação em saúde: dos modelos teóricos à prática na avaliação de programas e sistemas de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. SANTOS-FILHO, S.B. Avaliação como dispositivo de humanização da atenção e gestão em saúde. Relatório de consultoria. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. ______. Perspectivas da avaliação na Política Nacional de Humanização: aspectos conceituais e metodológicos. Cienc. Saude Colet., v.12, n.4, p.999-1010, 2007a. ______. Indicadores de valorização do trabalho e trabalhadores da saúde: construindo o conceito de valorização a partir de uma perspectiva analítica. In: SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007b. p.143-71. SILVA, J.F. Avaliação na perspectiva formativa-reguladora: pressupostos teóricos e práticos. Porto Alegre: Mediação, 2004.

SANTOS FILHO, S.B.; FIGUEIREDO, V.O.N. Contratos internos de gestión en el contexto de la Política de Humanización: experimentando una metodología en el referencial de la cogestión. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.615-26, 2009. En este artículo se describe la experiencia de implementación de contratos internos de gestión en un hospital público. Los contratos se entienden como dispositivos en el contexto de cogestión y en la perspectiva de Humanización como intervención en las prácticas de atención y gestión en salud. En este enfoque se presentan los ejes metodológicos de su construcción colectiva y los indicadores del proceso de implementación. Con el proceso de pactación de metas y evaluación participativa, se observan los siguientes resultados: además de aumentar eficiencia y eficacia institucional, los efectos desencadenados con tales dispositivos revelan su potencial de transformación de las relaciones de trabajo, promoción de co-responsabilización entre los sujetos/equipos, evaluación de los trabajadores y formación de redes de compromiso para mejoría de la atención.

Palabras clave: Contrato de gestión. Humanización de la asistencia. Planeamiento. Gestión en salud. Recebido em 21/01/09. Aprovado em 08/06/09.

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Os coletivos da Política Nacional de Humanização (PNH): a cogestão em ato

Maria Elizabeth Mori1 Olga Vânia Matoso de Oliveira2

MORI, M.E.; OLIVEIRA, O.V.M. Collectives for the National Humanization Policy (PNH): co-management in action. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.627-40, 2009.

This paper had the aims of describing the process of forming different arrangements for the internal functioning of the National Humanization Policy (PNH) since its creation in 2003, and characterizing the collectives as levels of co-management. Co-management is a structural guideline for the PNH, and experimentation has revealed disputes regarding knowledge and power, and interpersonal and intergroup tensions. Carrying out co-analysis, co-decisionmaking and co-responsibility is the basis of healthcare work, and is a process that seeks to reshape traditional management methods.

Keywords: Health policy. Humanization of assistance. Health management. Institutional support.

O texto propõe descrever o processo de constituição dos diferentes arranjos de funcionamento interno da Política Nacional de Humanização desde a sua criação, em 2003, e caracterizar os coletivos como instâncias de cogestão. A cogestão é uma diretriz estruturante da PNH e a experimentação revela disputas de saber, de poder e tensionamentos interpessoais e intergrupais. O exercício da coanálise, da codecisão e da corresponsabilização é base do trabalho em saúde, processo que busca reformular os modos de gestão tradicional.

Palavras-chave: Política de saúde. Humanização da assistência. Gestão em saúde. Apoio institucional. 1 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização (MS/ SAS/PNH). SHIN QL 01, conjunto 02, casa 15, Lago Norte. Brasília, DF, Brasil. 71.505-025 beth.mori@gmail.com 2 MS/SAS/PNH/ Núcleo Técnico.

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O Seminário A Humanização no SUS em debate3, os cinco anos de formulação e experimentação da Política Nacional de Humanização (PNH), do Ministério da Saúde (MS), e os vinte anos de Sistema Único de Saúde (SUS) ofereceram-nos oportunidade de discutir o processo da cogestão nos processos internos de trabalho dessa Política. Nosso olhar parte de um viés específico como trabalhadoras de dentro da PNH envolvidas diretamente na construção de outro modo de fazer política pública em saúde: uma consultora que realiza apoio institucional e outra que integra o Núcleo Técnico (NT) e realiza interfaces intra e intersetorial do MS. Este artigo discorrerá sobre diferentes fases de implantação e implementação da Política, concomitante aos diferentes arranjos de funcionamento interno, estes traduzidos como exercício de cogestão, uma das diretrizes da PNH. Ao optar pela cogestão, enquanto modo de gerir o trabalho, a PNH se coloca como outros grupos de trabalho que a experimentam: vivenciar disputas de saber, de poder e tensionamentos. O importante é experimentar o que propõe – a cogestão – com todos os riscos inerentes ao processo, por considerá-los fontes de criação para o fortalecimento de suas ofertas (princípios, método, diretrizes e dispositivos). Nesses cinco anos de existência, como política de saúde que objetiva o fortalecimento e a efetivação do SUS, a PNH se compromete com a qualificação desse sistema de saúde pública, por meio da capilarização de um novo jeito de produzir saúde, que implica produção dos sujeitos envolvidos (gestores, trabalhadores e usuários). Para tanto, oferta dispositivos (modos de fazer), forma apoiadores institucionais e, por meio do apoio institucional, constrói, junto com as equipes, outro formato do trabalho em saúde.

A humanização na saúde: indissociabilidade entre gestão e atenção, protagonismo dos sujeitos e transversalização dos saberes A PNH, formulada e lançada pelo MS em 2003, apresentada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 20044, protagonizou propostas de mudança dos modelos de gestão e de atenção no cotidiano dos serviços de saúde, propondo-os indissociáveis. Comprometida com o SUS,5 problematizou o conceito de humanização utilizado até então nos programas do MS, o que provocou um amplo debate, incluindo análise do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), elaborado por profissionais da área técnica de saúde mental e instituído em 2001 pelo MS, devido ao número significativo de queixas dos usuários relacionadas aos maus-tratos nos hospitais públicos. Segundo Benevides e Passos (2005), o conceito de humanização expressava, até então, as práticas de saúde fragmentadas ligadas ao voluntarismo, assistencialismo e paternalismo, com base na figura ideal do “bom humano”, metro-padrão, que não coincide com nenhuma existência concreta. Para os formuladores da PNH, humanização não se restringe a “ações humanitárias” e não é realizada por seres humanos imbuídos de uma “bondade supra-humana” na feitura de “serviços ideais”. Portanto, a Política assume o desafio de ressignificar o termo humanização e, ao considerar os usos anteriores, identifica o que recusar e o que conservar. Todo pensamento comprometido com algum tipo de prática (política, clínica, sanitária, profissional) está obrigado a reconstruir depois de desconstruir. Criticar, desconstruir, sim; mas, que sejam explicitadas as sínteses. Sempre há alguma síntese nova, senão seria a repetição do mesmo. (Campos, 2003, p.11)

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3 Seminário da Política Nacional de Humanização (PNH), realizado em Vila Velha, ES, nos dias 24 e 25 de junho de 2008.

4 Lançada durante o XX Seminário Nacional dos Secretários Municipais de Saúde e I Congresso Brasileiro de Saúde e Cultura de Paz e Não Violência – Natal/RN, 17 a 20 de março – 2003. Apresentada ao Conselho Nacional de Saúde, na 141ª reunião ordinária, nos dias 14 e 15 de abril de 2004.

5 Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990.


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Daí, a nova síntese sobre humanização - resultado de novas práticas no modo de se fazer o trabalho em saúde - levando-se em conta que: Sujeitos engajados em práticas locais, quando mobilizados, são capazes de, coletivamente, transformar realidades transformando-se a si próprios neste mesmo processo. Trata-se, então, de investir, a partir desta concepção de humano, na produção de outras formas de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde, deles usufruem e neles se transformam. (Benevides, Passos, 2005, p.390)

Eixos estruturantes da PNH Ao considerar que humanização implica produzir sujeitos no processo de trabalho, a PNH se conforma em quatro eixos estruturantes e intercessores: atenção, gestão, formação e comunicação (Documento Interno da PNH, 2004b). No eixo da gestão incluíam-se as ações que buscavam articular a PNH com áreas do MS e com demais esferas do SUS. Neste eixo destaca-se o apoio institucional, focado na gestão do processo de produção de saúde, base estruturante da PNH. Para Campos (2003), apoiar é: Articular os objetivos institucionais aos saberes e interesses dos trabalhadores e usuários. Indica uma pressão de fora, implica trazer algo externo ao grupo que opera os processos de trabalho ou que recebem bens ou serviços. Quem apóia sustenta e empurra o outro sendo, em decorrência, também sustentado e empurrado pela equipe “objeto” da intervenção. Tudo misturado e ao mesmo tempo. (Campos, 2003, p.87)

O apoio institucional é definido como acompanhamento qualificado do trabalho de equipes e tem, como característica principal, a oferta de estratégias metodológicas para implementação das diretrizes e dispositivos da Política. Ação de consultoria que coloca, em análise, os métodos de trabalho instituídos; incentiva trabalho cooperativo em equipe, de modo democrático, participativo e cogerido; estimula troca dos saberes, enfrentamento das disputas de poder, circulação de afetos, análise dos movimentos institucionais e criação de processos de trabalho que não distanciem as atividades da gestão e da atenção. “É um modo para radicalizar a construção de cidadania e de sociedades democráticas” (Campos, 2003, p.92). No eixo da atenção propõe uma Política de Atenção à Saúde “incentivadora de ações integrais, promocionais e intersetoriais, inovando nos processos de trabalho que buscam o compartilhamento dos cuidados, resultando em aumento de autonomia e protagonismo dos sujeitos envolvidos” (Brasil, 2006a, p.22). A PNH investe em alguns parâmetros para orientar a implantação de algumas ações de humanização; oferta dispositivos/modos de fazer um “SUS que dá certo”, com apoio às equipes que atuam na atenção básica, especializada, hospitalar, de urgência e emergência e alta complexidade. No eixo da formação, propõe que a PNH passe a compor o conteúdo profissionalizante na graduação, pós-graduação e extensão em saúde, vinculando-se aos processos de educação permanente e às instituições formadoras de trabalhadores de saúde. No eixo da informação/comunicação, prioriza incluir a PNH na agenda de debates da saúde, além da articulação de atividades de caráter educativo e formativo com as de caráter informativo, de divulgação e sensibilização para os conceitos e temas da humanização. O trabalho dos consultores contratados pelo MS/PNH - profissionais com experiência no campo da gestão, da atenção, acadêmicos e pesquisadores da saúde - nos vários estados da Federação, foi composto, em grande medida, de ações relacionadas aos dois últimos eixos, por meio de recursos metodológicos, como: rodas de conversas6, oficinas, encontros e seminários.

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Isto se deu concomitante à articulação com os Polos de Educação Permanente processo coordenado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES) - e com os Grupos de Apoio Integrado às regiões, coordenado pelo Departamento de Apoio à Descentralização (DAD) da Secretaria Executiva (SE). Investiu-se na produção de material de formação e de divulgação (cartilhas e material de apoio), e na construção de uma Agenda da PNH em Congressos, Seminários e Plenárias no campo da saúde no País. A primeira coordenação da PNH7 problematiza o modo de contratualização, organização e processos de trabalho do grupo que compõe a Política: coordenação nacional, consultores externos e trabalhadores do/no MS, estes constituindo o NT. Coordenação Nacional - Promover articulação técnico-política da Secretaria Executiva/MS, objetivando a transversalização da PNH nas demais políticas e programas do MS; representar o MS na difusão e sensibilização da PNH nas várias instâncias do SUS, Conselho Nacional de Secretarias Estaduais (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais (CONASEMS), CNS, Instituições Formadoras de Saúde e Congresso Nacional; coordenar a construção das ações e o processo de implementação nas diversas instâncias do SUS. Consultores - Realizar apoio institucional compreendido em: Divulgação e sensibilização para implantação da PNH no SUS, realizando reuniões com Gestores Estaduais, das macrorregiões e dos Municípios; Superintendentes/Diretores de Hospitais (Federais, Estaduais e Municipais), Conselhos de Saúde, Movimentos Sociais e Instituições Formadoras, abertas à participação dos trabalhadores e usuários do Sistema; Divulgação, sensibilização, formação e capacitação de trabalhadores, extensivas a gestores e usuários do SUS, para implementação das diretrizes e dos dispositivos da PNH, com base no Plano de Ação; Participação em Eventos do MS, da PNH ou outros públicos; Produção de Conhecimento: elaboração teórico-metodológica na/da PNH; Construir interfaces com outras áreas técnicas do MS; Participar de reuniões pautando a divulgação da Política. Núcleo Técnico - Apoiar a implementação da PNH desenvolvendo ações técnico-político-administrativas intraministerial e interministeriais; articular a sociedade civil e assessorar a coordenação nacional e consultores. Concomitante à reconstrução dos pilares teórico-políticos e abertura de várias frentes de trabalho, a PNH reconhece a necessidade de que todos incorporem “olhar avaliativo” nos processos de trabalho em desenvolvimento e, portanto, acorda-se o desafio de que a avaliação se constitua como um dispositivo da Política. Para elaboração dessa proposta, são promovidos encontros, rodas e oficinas, para identificar como os valores que norteavam a PNH, relativos aos processos de trabalho - a corresponsabilidade, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão com a constituição de grupo-sujeito –, eram implementados no fazer profissional de todo esse grupo. Repensar o processo de trabalho do grupo de trabalhadores objetivava, sobretudo, “propor maneiras de fazê-los acontecer mantendo o vigor, a criatividade e o empenho com que cada um tem feito, mas sem alguns atropelos e com o menor desgaste possível” (Documento Interno da PNH, 2004a), levandose em conta a forma do trabalho instituído, já que a PNH propõe um novo modo de realizar o trabalho, ou seja, de forma coletiva, respeitando os diversos saberes e locais de inserção. Coerente com seu princípio, autonomia e protagonismo de sujeitos, a PNH opta pela cogestão - diretriz ético-política - que também é uma forma de democratizar o poder. Trata-se de ver onde tem sido investido mais tempo, o que tem

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6 Espaço coletivo: um arranjo onde exista oportunidade de discussão e de tomada de decisão. Pode ser formal (uma comissão ou conselho oficial) ou informal (reunião para enfrentar temas eleitos). A Roda é um lugar onde circulam afetos e os vínculos são estabelecidos e rompidos durante todo o tempo. É um espaço para a elaboração de contratos e projetos de intervenção (Campos, 2003). 7 Professora-doutora Regina Benevides, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense/UFF-RJ


MORI, M.E.; OLIVEIRA, O.V.M.

8 Instituído por meio da Portaria nº 2046/ GM, de 19 de dezembro de 2003, publicada no Diário Oficial da União de 22 de dezembro de 2003, Seção 1, p. 55, mediante a contemplação de até 16 organizações integrantes da rede SUS. Foram 671 experiências inscritas, sendo 544 experiências validadas; 45 experiências foram classificadas, 16 premiadas e houve quatro menções especiais.

Contou com mais de mil participantes entre profissionais/ gestores de saúde e representantes do movimento social provenientes das várias regiões do país e técnicos do MS -, propiciou um processo de formação constituindo-se um marco da PNH. 15 oficinas temáticas foram realizadas, apresentados 350 pôsteres de experiências de todo o país, além da transmissão online pelo DATASUS, com cerca de seis mil acessos.

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Grupo composto originalmente por representantes de todas as secretarias do MS - criado com o objetivo de buscar alternativas, com base nos anseios dos trabalhadores (conforme documento sobre o evento “Barraca da Saúde”, 2003) 10

artigos

trazido melhores resultados, onde estão os impasses, com quem mais teremos que contar para compor a equipe, quais conflitos têm se dado... Enfim, onde podemos melhorar para continuarmos potentes e com alegria no que fazemos. (Documento Interno da PNH, 2004a)

Percebe-se um desafio significativo: a fragmentação do processo de trabalho, provocada pela diferença entre o fazer do consultor e o fazer do NT. O saber do consultor, necessário para a formulação e implementação da Política, fortalecia um grupo, que, pelo saber, teorizava e realizava o apoio institucional dentro e fora do MS; e, outro grupo, com pouco domínio do conteúdo teórico-metodológico da PNH, que executava as ações administrativas e de apoio necessárias à operacionalização do cotidiano. Ainda que a Política tivesse a concepção da inseparabilidade entre teoria e prática, planejar e executar, pensar e fazer, e trabalhasse com o objetivo de integrar e compartilhar os diversos saberes, esse grupo vivenciou relações de poder que se instalaram entre os conhecimentos técnico-especializado e administrativo. E, para enfrentar esta dificuldade, foram criadas estratégias, direcionadas aos trabalhadores do NT: capacitação na Política; incentivo à participação na construção de interfaces no MS, nas oficinas externas e na concepção dos eventos da PNH. Nesta fase 2003-2004, enfrentando o desafio de articular no MS com as demais políticas e programas, a PNH realiza vários movimentos, destacando-se: o Prêmio HumanizaSUS David Capistrano, o Seminário Nacional HumanizaSUS e o Coletivo HumanizaSUS-MS, considerados estratégicos para a divulgação da PNH, tanto no âmbito nacional quanto no MS, contando com a participação efetiva dos trabalhadores e gestores deste órgão. O Prêmio David Capistrano8 reconhecia e valorizava as instituições que se destacaram por ofertar práticas de atenção e gestão humanizadas, fomentando um “SUS que dá certo”. O Seminário9, com grande alcance na divulgação e sensibilização para a corresponsabilização da saúde entre gestores, trabalhadores e usuários, atores e autores do SUS, teve como destaques: as Rodas de conversas temáticas realizadas no Café HumanizaSUS, quando um grupo de secretários, diretores de departamentos e coordenadores do MS discutiram - com a participação da plenária constituída por trabalhadores, usuários e demais gestores -, temas relativos à efetivação do SUS. Esta metodologia fortaleceu o caráter transversal da PNH nas diversas políticas públicas de saúde; Oficinas temáticas, coordenadas pelos consultores da PNH, apresentaram resultados do método de trabalho cogerido, retrato do “SUS que dá certo”. Tanto as rodas quanto as oficinas constituíram momentos de expressão dos trabalhadores, gestores e usuários sobre o SUS: “O SUS que temos e o SUS que queremos”, por direito, conforme a Constituição Federal. Importante resgatar o êxito da concepção metodológica do Seminário, quando o Café HumanizaSUS possibilita conversas entre diferentes áreas do MS, aglutina gestores, trabalhadores e usuários por meio da lateralidade proporcionada pelo método da roda, e quando as oficinas divulgam e problematizam o SUS existente nos vários serviços de saúde. O Coletivo HumanizaSUS-MS10 foi criado com os objetivos de: colocar em análise a fragmentação dos processos de trabalho dentro do MS e deste com as demais instituições do SUS; garantir a sustentabilidade da PNH como política pública, a partir da apropriação, pelos trabalhadores e usuários, dos seus princípios, diretrizes e dispositivos, fortalecendo-a de tal forma que, independente do governo vigente, ela se mantenha, devido ao seu modo de pensar e fazer saúde. Pelo seu caráter transversal e sua proposta inovadora de fazer gestão e atenção no SUS de maneira indissociável, vinculava-se politicamente à SE, estrategicamente não-instituída e, portanto, não inserida na estrutura organizacional do Ministério.

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Pelo seu método de construção coletiva, estimula o protagonismo e a autonomia dos trabalhadores do MS; busca, de maneira transversal, o trabalho conjunto com as demais áreas, programas, setores e outras políticas. Isso, por entender que a “transversalidade no grupo é uma dimensão contrária e complementar às estruturas geradoras de hierarquização piramidal e modos de transmissão que esterilizam as mensagens” (Guattari, 2004, p.116). Entretanto, este coletivo teve seu papel – atuar de forma transversal e problematizar os processos de trabalho para dentro do MS – desviado para outras finalidades. A gestão no serviço público, em geral, condicionada pela articulação político-partidária, apoia o governo federal vigente, o que contribui para o trabalho centralizado na figura do gestor principal, muitas vezes quadro de recrutamento amplo e não capacitado para atuar em processos de gestão participativa e cogestão. E assim continuam as formas burocráticas e autoritárias, com baixa participação dos trabalhadores na gestão. A rotatividade político-administrativa exige, continuamente, que o trabalhador do MS assuma o protagonismo de seus processos de trabalho, para que não seja capturado a cada mudança de gestor. Entendemos que o Coletivo HumanizaSUS-MS, para desempenhar apoio institucional, necessita ser capacitado como apoiador da PNH e, a partir daí, retomar a análise do trabalho no MS, para desencadear processos de intervenção no seu cotidiano. Dependendo de sua constituição, há o risco de atuar de forma fragmentada, realizar ações/atividades que não retratam o modo de fazer da PNH, não ampliar e restringir sua atuação em comissões organizadoras de atividades culturais, festivas e comemorativas. No final de 2004, muda-se a gestão do MS, saem dirigentes de vários escalões, incluindo o secretário executivo, diretores e coordenadores deste órgão, impactando a PNH e gerando, como consequência, o pedido de demissão da coordenação, do grupo de assessores e de consultores externos da Política. Em janeiro de 2005, a gestão da PNH é transferida para a SAS. O Ministro da Saúde nomeia nova coordenação11 da PNH do quadro de assessoria da diretora do Departamento de Atenção Básica (DAB). Reconstitui-se o grupo e novos consultores são agregados aos trabalhadores que permaneceram no NT. A PNH atua para dentro do MS, articula-se com outros níveis de gestão do SUS e, consoante com o modo de operar da SAS, assume um caráter programático, contrapondo-se ao seu caráter de “obra aberta”, que pressupõe a construção coletiva, permanente e horizontal, na perspectiva de uma política pública. Investe-se em ações de divulgação e as pontuais para constituição e implementação de Grupos de Trabalho de Humanização (GTH) estaduais. Em 25 e 26 de agosto/2005, é realizada a 1ª Oficina Nacional dos GTH, com objetivo geral de pactuar a implementação da PNH no país, por meio da potencialização de Grupos de Trabalhos de Humanização Estaduais e Municipais, nas capitais. Ainda no primeiro semestre de 2005, novo fato conjuntural repercutiu no processo de construção e gestão da PNH. Devido à crise da saúde pública da cidade do Rio de Janeiro, o MS adota estratégias de apoio aos hospitais da rede própria, e, para tanto, determina o deslocamento de técnicos e consultores do MS para contribuir no enfrentamento do problema in loco. A PNH, também convocada, compôs essa força-tarefa. Esta experimentação vivida pelos seus técnicos e consultores no Rio de Janeiro contribuiu para o resgate da Política, estimulando a discussão sobre a produção de saúde e de sujeitos a partir da cogestão.

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Ângela Pistelli, Assistente social sanitarista.

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12 É nomeado o novo Secretário da SAS, Dr. José Gomes Temporão.

Dr. Adail de Almeida Rollo, médico com residência em Clínica Médica, concentração em Terapia Intensiva, Faculdade de Medicina Botucatu, Unesp, Especialização em Saúde Pública na Unicamp, concentração em Gestão e Planejamento em Saúde. 13

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Novo momento: pacto interno e cogestão Em setembro de 2005, novo momento político se instala no MS12. A nova gestão da SAS aposta no modo de fazer da PNH, pois como gestor de hospital público, na cidade do Rio de Janeiro, participou do processo de implantação de dispositivos da PNH, com avaliação positiva dos resultados. O grupo responsável pela formulação teórico-metodológica da PNH retorna ao MS, para reconduzi-la, e numa decisão colegiada, escolhe sua nova coordenação13, momento que traduz o processo da cogestão para dentro da política. A equipe é reestruturada e constrói interfaces intra e interinstitucionais e articulações com a sociedade civil. Inicia-se um “Novo Momento” na/da PNH, com pactuações firmadas na Oficina Nacional da PNH realizada no Rio de Janeiro, em 28 e 29 de setembro desse ano. Pactua-se um projeto de trabalho com três focos prioritários de ação: Foco 01 - Acesso com responsabilização, vínculo e eficácia clínica; Continuidade do cuidado em rede; Garantia dos direitos aos usuários; Foco 02 - Trabalho criativo e valorizado: Construção de redes de valorização do trabalho em saúde; Foco 03 - Produção e disseminação de Conhecimento: Aprimoramento de Dispositivos da PNH, Formação, Avaliação, Divulgação e Comunicação. Cada um dos focos possuía objetivos, diretrizes, dispositivos, ações e metas específicas (Documento Interno da PNH, 2005a). A Política retoma o modo de operar e, entre vários acordos internos, inicia-se o processo de gestão nos aspectos técnicos e pactuam-se “arranjos de co-gestão”, com base em Onocko (2003, p.125). Estes, “têm certa estruturação e permanência”, já que também podem ser institucionalizados, pois “não estão a salvo de serem capturados pela lógica dominante. A máquina de produzir controle não opera pulsando, opera como fluxo contínuo”, o que exige da PNH um exercício permanente, para garantir seu modo instituinte de funcionar em cogestão, tanto internamente quanto na qualificação do SUS, por meio de apoio institucional. Reafirmamos que estruturação em arranjo não garante cogestão, uma vez que o modo de funcionamento do coletivo pode deflagrar disputa de poder e, até mesmo, o coordenador exercer poder de autoridade, pelo lugar que ocupa. Este modo de organização do trabalho em focos de atuação e de equipes matriciais foi fundamental para a retomada do processo de cogestão. A revisão do arranjo organizativo de gestão da PNH mantém os princípios de democratização, descentralização, construção coletiva (coanálise, codecisão e coavaliação) e transversalização e capilarização de todo o processo. O Coletivo Nacional, composto por consultores e NT, torna-se espaço maior de formulação, definição de prioridades, diretrizes, decisões estratégicas e avaliação de resultados. A Área de Trabalho, criada em 2004 e localizada na intranet do MS, é retomada como ferramenta de integração desse grupo. Possibilita: democratização das informações e gestão dos trabalhos desenvolvidos, repasse frequente e sistemático de informações, agendas dos consultores e relatórios de atividades realizadas, e contribui para compartilhamento de experiências, atividades e uniformizar conceitos. A gestão colegiada avança - cria-se o Núcleo Gestor (coordenação técnicopolítica da PNH), composto pelo coordenador, uma consultora e dois trabalhadores do NT, com papel de articular, instituir e dar visibilidade à implementação da Política nos vários espaços do SUS.

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Em dezembro de 2005, este Núcleo Gestor avalia o modo de funcionamento da PNH. O processo de trabalho é colocado em análise e detectam-se necessidades de: aumentar a grupalização da equipe; dinamizar a Área de Trabalho e definir melhor o papel e as atribuições de todos os profissionais do coletivo. Instala-se um colegiado mais amplo, o Colegiado Gestor Nacional, que incorpora: os integrantes do Núcleo Gestor, coordenadores regionais e um representante do NT. Reafirma-se a importância da criação de metodologias de condução e sistematização das reuniões e de fóruns - grupos-tarefas - para aprofundar alguns dispositivos/temas. A Área de Trabalho é fortalecida e são identificadas, no Coletivo, pessoas com perfil de catalisador e com domínio em tecnologia de informação para estimularem conversas e produções intergrupo: os moderadores. Como enfrentamento à terceira necessidade diagnosticada – papel e atribuições dos trabalhadores é acordado um “Pacto Interno”, que tem como objetivos específicos: integrar ações da consultoria e NT; articular ações de consultoria e NT com demais ações do MS; identificar necessidades prioritárias das ações da PNH em todas as instâncias de atuação; avaliar ações de consultoria e do NT; publicizar as ações desenvolvidas pelos profissionais da PNH. E como resultado: construção do Pacto Interno de cogestão da PNH, que traduz o desenho da equipe/arranjo para a cogestão da PNH (Documento Interno da PNH, 2005b). O plano de ação PNH - 2006, proposto na reunião do Colegiado Gestor Nacional em 21.12.2005, se efetivará “pelo desempenho de profissionais com responsabilidades e papéis diferenciados, algumas vezes agrupados em coletivos e, nos demais, sob responsabilidade dos integrantes da PNH” (Documento Interno da PNH, 2005c). Coletivo Nacional: composto por todos os integrantes da PNH, é o espaço maior de formulação, definição de prioridades, diretrizes, decisões estratégicas e avaliação de resultados; Coordenação Nacional: coordenar a política, articular/negociar, nos espaços intraministerial, interinstitucional e com a sociedade civil, a implementação da PNH; Colegiado Gestor Nacional: constituído pelo coordenador nacional, gerência financeira, coordenadores regionais e representante do NT; possui, como papel principal, o apoio institucional à Coordenação Nacional e representá-la em reuniões/eventos considerados estratégicos; Colegiado e Coordenação Regional/Estadual: fórum de elaboração e gestão dos projetos regionais, aprofundamento de discussão e troca de experiências. O coordenador, indicado por consenso entre coordenação nacional e consultores da região, tem o papel de articular/negociar a implantação/ implementação das ações da PNH nos espaços regional e/ou estadual, e estabelecer interlocução com a Coordenação Nacional. As regionais não seguirão a divisão geoadministrativa, mas a dimensão do trabalho. Nesse momento, os arranjos são: Região Sul; São Paulo; Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo; Nordeste (dividida em três subregiões); Centro-Oeste; Norte; Coordenação da força-tarefa da PNH na cidade do Rio de Janeiro e regiões Metropolitanas do estado do RJ: Decorrente da crise instalada na saúde, sete câmaras técnicas são criadas, entre elas, a Câmara Técnica de Humanização, com plano de trabalho específico; Núcleo Técnico: Constituído por técnicos, trabalhadores de apoio administrativo e o Coordenador Nacional. Tem o papel de desempenhar ações técnico-político-administrativas, intraministerial, interinstitucionais do SUS, articular com a sociedade civil, além de assessorar a coordenação nacional e consultores; Consultoria Matricial e Estadual/Regional: O trabalho do consultor, referência para determinado tema/dispositivo (apoio matricial), e do apoiador locorregional, exige um mix de conhecimentos/ habilidades. Portanto, ser “generalista” e “especialista” no SUS, em políticas públicas de saúde e métodos de intervenção em coletivos, consiste em apoiar ações regionais que exigem saberespecialidade em conteúdos e métodos específicos; atuar no âmbito nacional em ações consideradas tático-estratégicas e moderar oficinas regionais, quando solicitados pela consultoria regional. Cabendo à consultoria regional, ainda, garantir a capilarização, disseminação e implementação da PNH; escuta da diversidade e das especificidades estaduais/regionais, e elaborar propostas consoantes àquelas regiões. 634

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No exercício da corresponsabilidade é importante que o trabalho faça sentido para os integrantes da equipe. Quando uma situação de urgência se coloca, todos são convocados a dar suporte. Entretanto, para não confundir “estar com o outro” com “dissolver-se no outro”, é que se propõe que cada um seja responsável por certos processos e atividades. A PNH, ao experimentar a cogestão, enfrenta desafios, como as instituições que optam por este modo de fazer gestão. Segundo Campos (2003), espera-se que o trabalho em equipe não elimine o caráter de cada profissional ou de cada profissão, e, portanto, cabe à cogestão o papel de articulá-los em um campo que assegure saúde e realização pessoal dos trabalhadores. Ao se integrar a um grupo é fundamental a postura de abrir-se à influência dos outros sem renunciar ao próprio interesse e a própria experiência. Desenvolver capacidade para construir análises e soluções compartilhadas. Combinar firmeza com abertura à composição de interesses e de visão do mundo. Capacidade de reconhecer autoridade em outros sem se submeter a ela. Reconhecer o limite imposto pelo coletivo sem desistir de sua singularidade de desejo e de concepções. (Campos, 2003, p.95)

O Pacto Interno de cogestão da PNH por si só não garantiu a inexistência de conflitos, já que a PNH é também constituída por humanos, e não supra-humanos. Além da construção de contratos e compromissos entre os distintos atores, é sempre mais adequado buscar estratégias de movimentos em que se criem mecanismos para que os conflitos se expressem (Campos, 2003, p.89). Os arranjos desses coletivos retratam o exercício da cogestão na/da PNH, mas colocamos em análise o fato de o Coordenador Nacional compor o NT, pela relação de poder nesse grupo de trabalhadores, pois sua presença o impõe como “chefe”. Como um dos membros do Colegiado Gestor, o Coordenador Nacional exercita a cogestão, portanto entendemos que, como os demais coletivos, o NT deveria ter como coordenador um de seus membros e este compor o Colegiado Gestor da PNH.

Avança a cogestão na/da PNH: novas estratégias implementadas

Dr. Dário Frederico Pasche, professor adjunto da Universidade Regional do Noroeste do estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). 14

Em 2007, inicia-se o segundo mandato do governo Lula, cenário diferente de 2003, não podendo ser entendido como continuidade. O Secretário da SAS torna-se ministro e a PNH tem novo coordenador14. O momento requer da PNH uma aposta radical para lidar com este cenário complexo, além da organização geopolítica, uma organização axial, ou seja, duas formas indissociadas de expressão dos coletivos, que significa distribuir o Coletivo Nacional nestes arranjos. Os consultores, a partir dos princípios da PNH e de um plano regional de intervenção, ancorado no Plano Nacional PNH, com o desafio de transformar estes arranjos de cogestão no cotidiano do trabalho. O NT atuará em duas frentes, que se comunicam e se interferem mutuamente, de transversalização e interfaces da Política e suporte operacional. Entretanto, não é alterada sua composição: o Coordenador Nacional da Política é também o coordenador do NT em vez de este ser coordenado por um dos seus membros. Sem representante no Colegiado Gestor, o falso entendimento do papel do NT (secretariar consultores) pode ser mantido. O arranjo de gestão território-axial amplia a cogestão em relação ao período anterior. Avalia-se que consultores matriciais, ao atenderem demandas pontuais, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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promovem centralização e baixa pactuação coletiva, consequentemente produzindo um modo de fazer “individual”. A PNH exige outro modo de exercitar autonomia, ancorada num viés de coletivização: experimentação e, ao mesmo tempo, construção deste processo. No Encontro do Coletivo Nacional PNH, em fevereiro de 2008, foi realizada oficina com os consultores matriciais, objetivando analisar as ações desenvolvidas, algumas percebidas descoladas dos Planos de Trabalho Regionais. A dissolvência do papel de consultor matricial foi amplamente discutida e consensuada. Ao invés do lugar ocupado por um grupo de “especialistas”, a função matriciamento é que necessitava ser mantida, porém segundo as demandas de apoio institucional nos territórios regionais. Nesta contratualização ampla, o Colegiado Gestor ganha importância de catalisador, quando composto pelo coordenador nacional, um representante do NT, coordenadores regionais e cocoordenadores de eixos, com reuniões mensais subsidiadas pelos encontros prévios dos coletivos regionais e NT – constituído como fórum deliberativo. Em julho de 2008, o arranjo de cogestão, sob o aspecto geopolítico, estrutura-se em oito regiões, com um coordenador em cada coletivo regional: Centro-Oeste; Nordeste I (BA, AL, SE, PE); Nordeste II (CE, RN, PI, PB, MA), Norte; Sudeste I (SP); Sudeste II (RJ e ES); Sudeste III (MG), e Sul, além do Coletivo Núcleo Técnico (Documento Interno da PNH, 2008). Sob o aspecto axial, há três eixos, o que não significa pensar um eixo descolado dos outros. É a PNH operando seu modo de fazer. O consultor in-loco percebe a necessidade e articula uma rede para dentro da PNH, que facilita entender esta distribuição de tarefas no coletivo, um modo de experimentar nossa rede interna. Eixo I: Apoio institucional locorregional, principal intervenção, é priorizado nos temas da produção de saúde e produção de sujeitos e do fomento de redes, articulação com CONASEMS, CONASS, Diretoria de Articulação de Redes de Atenção em Saúde (DARA) e gestão da Política. Por envolver os dispositivos da PNH, este eixo é confundido com a Política e, portanto, gera dificuldades para ser pensado como eixo. A partir deste, grupos de trabalho específicos e transitórios serão formados para operacionalização de demandas circunstanciais. Necessário também avançar no planejamento, monitoramento e avaliação no âmbito da PNH e consolidar essa frente de trabalho. O Fórum deliberativo deste eixo é o próprio Colegiado Gestor Nacional, portanto, não a figura do Coordenador Nacional. Pela sua importância, há quatro frentes de ação: Fortalecimento do Apoio Institucional; Ampliação e Fomento das Redes de Saúde: coletivos e agenda do MS; Implementação dos dispositivos; Planejamento, Monitoramento e Avaliação/PM&A. Em relação à avaliação, a PNH avança para a construção de instrumentos e sistemática de avaliação do trabalho de todo Coletivo Nacional. O sistema recentemente elaborado indicará quem, o que e como fazer, com indicadores que permitirão avaliar o que foi feito. Avaliar o trabalho de cada trabalhador passa pelo aperfeiçoamento desse processo, em fase de implantação na PNH, ferramenta, portanto, valiosa para cogestão. Um aspecto relevante da cogestão na/da PNH é que tem fortalecido, também, o trabalho “para fora”, o apoio institucional: reconstruir o conceito e o método de humanização; intervir na indissociabilidade entre atenção e gestão; incluir toda a rede nas conversas (aumento da transversalidade), e ofertar dispositivos e, ao mesmo tempo, analisar coletivamente o que se dá no âmbito dos processos de trabalho. Eixo II: Co-coordenado por um consultor matricial do campo da Saúde do Trabalhador e um consultor integrante do NT, coloca em evidência a análise dos processos de trabalho e uma preocupação com o adoecimento crescente dos trabalhadores da saúde. A PNH tem acúmulos que devem ser amplamente divulgados no embate com outros modos de fazer saúde do trabalhador. Não há como cuidar da saúde sem considerar as formas de organização adotadas pelos trabalhadores, para lidar com demandas do cotidiano no trabalho e estratégias de enfrentamento às experiências de dor e sofrimento nos serviços de saúde. Busca-se problematizar inseparabilidade entre saúde, trabalho e gestão, instigando a intervenção nas condições de trabalho. Deseja-se que encontro e diálogo crítico, entre os diferentes saberes e práticas, subsidiem e orientem o trabalho em equipes multiprofissionais, atentas à análise da relação dinâmica entre o fazer e o pensar, sobre o cotidiano do trabalho e a 636

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16 PASSOS, E. Comunicação verbal. Documento reunião do Colegiado Gestor – PNH. Brasília, 26 jun. 2008.

artigos

15 PASSOS, E. et al. Comunicação verbal. Reunião do Colegiado Gestor – PNH. Brasília, 27 jun. 2008.

produção de saúde. A intervenção coletiva, ao tornar o trabalho mais criativo e menos repetitivo, promove a saúde do trabalhador e contribui para a transformação social (Passos et al., 2008)15. Eixo III: Co-coordenado por consultores matriciais do campo da formação, inicialmente compôs-se de quatro núcleos, co-coordenados por um consultor externo e um consultor integrante do NT. Após avaliação desse arranjo, o Colegiado Gestor deliberou sua composição em dois núcleos: Núcleo de Formação e Pesquisa/NUFOPE e o Núcleo de Difusão da Inteligência Coletiva/NDIC, este co-coordenado por consultor externo e dois do NT. Este eixo é resultado de processo iniciado em 2003, e expressa os princípios da PNH: Inclusão/ampliação dos atores e da rede PNH - ampliação do coletivo PNH incorporando aqueles que passaram por um processo de contágio da Política; Construção, consolidação, ampliação das tecnologias relacionais, que não podem estar apenas como idéias abstratas, mas se operacionalizarem em dispositivos concretos. A coordenação da PNH apostou, a partir de 2006, na capilarização da política via processos de formação. Esses processos fundamentam-se na inseparabilidade entre formação e intervenção, no re-encantamento do concreto e em novos modos de produzir saúde; a PNH não poder se fechar em seus marcos constituídos. Não podemos negar sua dimensão instituída, mas não podemos nos fechar aos processos instituintes. A PNH é um saber fazer que se transmuta em fazer saber (Passos, 2008)16. Por último, o eixo tem como compromisso dar continuidade à concepção da PNH como obra aberta, um conjunto de dispositivos que precisam ser mantidos vivos. A Política já se faz como um “corpus instituído” e aposta na inseparabilidade do instituído e nas forças instituintes. Em 2008, novo dispositivo da PNH é desenvolvido: a Rede HumanizaSUS. Uma rede colaborativa que tem por objetivos: divulgar a política, criar espaços para novos contatos e novos encontros do coletivo nacional ampliado, aumentar sua potência para enfrentar os desafios da humanização do SUS, e divulgar experiências bem-sucedidas no/do SUS. Seus conteúdos e ferramentas são resultado de um processo participativo, pois se quer uma Rede que se construa conforme as necessidades do coletivo. Além das ofertas que a rede proporciona, também contempla os desafios do exercício da cogestão da PNH para fora, uma vez que a ferramenta anterior, a Área de Trabalho, era de uso restrito do coletivo da Política (www.redehumanizasus.net/).

Cogestão: experimentação contínua na/da PNH A PNH, comprometida com a qualificação dos serviços públicos de saúde, coloca em análise as formas vigentes de gestão neste campo, e propõe outra forma: a cogestão que se faz no trabalho em equipe, construção coletiva traduzida em “também planeja quem executa” e em colegiados que garantem o poder compartilhado por meio de análises, decisões e avaliações coletivas (Brasil, 2006b, p.9). Oferta de dispositivos relativos à organização do espaço coletivo de gestão, permitindo acordos de diferentes interessados, como tem sido nossa prática de experimentação de colegiado gestor, coletivos regionais e contratos de gestão. Construir esses coletivos de cogestão para dentro da PNH tem sido um desafio constante, processo por vezes difícil e desencadeador de tensionamentos; mas, por outro lado, proporciona ao grupo um olhar crítico, formado a partir das questões e demandas apresentadas, mais que a soma dos olhares dos coordenadores, consultores e trabalhadores do NT, um coletivo formado por COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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profissionais de disciplinas diferenciadas, saberes multiprofissionais colocados em exercício para atuação transdisciplinar. A gestão compartilhada, ao buscar ultrapassar essa multiplicidade e alcançar a cogestão, permite que todos sejam corresponsáveis, o que exige maior comprometimento, gera solidariedade e fortalecimento mútuos. Os primeiros fóruns, coletivos de partilhamento e análise do trabalho, são os coletivos regionais, NT e coletivos axiais. No entanto, são autônomos, são soberanos, pois compõem uma política que tem um arranjo de gestão inovador. São espaços de discussão, análise, avaliação e definição dos seus planos de trabalho. Esses coletivos, quando necessário, devem recorrer a outras “instâncias”, o Colegiado Gestor e o Coletivo Nacional, esta, a instância deliberativa maior. Assim, não é “problema” encaminhar questões não resolvidas em qualquer um desses fóruns para estas instâncias, uma vez que tal autonomia está em consonância com a PNH. Colocados em análise17 os seus modos de fazer, constatou-se: heterogeneidade na composição e modos de funcionamento dos coletivos regionais; distância entre discussões e decisões do Colegiado Gestor e dos coletivos regionais; fragilidade dos processos comunicativos nas regionais, e dificuldade e complexidade em lidar com práticas de cogestão em um sistema de democracia representativa. E novo arranjo de gestão foi pactuado, com a extinção da organização axial dos coletivos, por se entender que o eixo II deverá ser reafirmado como diretriz estruturante da política, transversalizando as diferentes ações dos planos regionais. O eixo III se constituirá de frentes de trabalho, segundo necessidade de oferta da PNH; e ocorrerá extinção do “cargo” consultor matricial, e não da função matriciamento, já que todo consultor da PNH é potencialmente matricial para dentro e para fora desta, portanto, passa a ter uma base territorial, com pactuação de agenda de trabalho. Assim, os consultores do extinto eixo II, matriciais e apoiadores institucionais formados pelos processos de formação da PNH, são incluídos nos Coletivos Regionais. A fomentação de redes passa a ser estratégia privilegiada do apoio institucional da Política, a fim de garantir a extensividade das ações micropolíticas e, portanto, torna-se uma diretriz para a sustentabilidade da PNH. Reafirma-se o Colegiado Gestor Nacional como espaço de análise e avaliação dos trabalhos efetuados naqueles coletivos; o Coletivo Nacional como espaço maior de compartilhamento destas avaliações e análises das práticas da PNH, problematizando-as e estabelecendo pactuações.

Considerações finais Em relação ao momento atual da PNH no exercício da cogestão, apontamos algumas fragilidades no funcionamento dos coletivos: 1 Apesar da extinção dos consultores matriciais, que foram vinculados aos coletivos regionais, os demais consultores não capacitados em saberes específicos continuam demandando a presença dos ex-matriciais na efetivação dos planos regionais; 2 O NT, numa tentativa de problematizar sua identidade distinguindo-a de suporte administrativo, planeja suas ações técnico-político-administrativas e apresenta-se como “Coletivo MS”, na reunião do Coletivo Nacional realizada no fim de 2008. No decorrer desse encontro, percebeu-se que o problema dessa equipe não reside apenas no nome, mas associa-se a outros fatores que o reforçam: 2.1 composição mais direcionada para a função orçamentário-financeiro638

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Encontro do Coletivo Nacional realizado nos dias 28 e 29 de agosto de 2008, em Brasília.

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administrativa; 2.2 espaço de trabalho adaptado e restrito à estrutura física, não consoante com a diretriz da ambiência da PNH; 2.3 quadro técnico insuficiente para realizar interface e apoio institucional para dentro do Ministério, como também participar de trabalhos regionais realizados pelos consultores e dos espaços de formação em apoio institucional; 3 Dificuldade de os coletivos regionais analisarem o próprio processo de trabalho; 4 Os coletivos regionais ainda não se apropriaram do instrumento de “planejamento, monitoramento e avaliação dos planos de trabalho regionais”, excelente estratégia para a cogestão da Política. Pouco se exercita essa metodologia, o que indica a necessidade de revisão do processo de implantação; 5 A sustentabilidade da PNH no cotidiano dos serviços em saúde tem sido objeto de discussões em face do novo cenário político advindo da sucessão presidencial no próximo ano. As ações implantadas nos serviços públicos de saúde com apoio institucional da Política ainda não são de domínio público e necessitam ser disseminadas em todo o Sistema SUS. Com todos estes questionamentos, dificuldades de processo de trabalho e tensionamentos, ainda assim, a PNH tem avançado internamente na cogestão, mesmo porque seu objetivo maior é apoiar a disseminação e implantação de um novo modo de gerir a rede SUS.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Na primeira versão do documento, contaram com o apoio da jornalista da PNH Mariella Silva de Oliveira. Referências BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-406, 2005. BRASIL. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 1.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006a. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Cartilha HumanizaSUS: gestão participativa e co-gestão. 2.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006b. CAMPOS, G.W. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. DOCUMENTO INTERNO DA PNH. Encontro do Coletivo Nacional. Brasília 2008. ______. Novo momento da PNH. Brasília, 2005a. ______.Projeto de trabalho da PNH/2005-2006: novo momento da Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS - A Humanização como Política Transversal na Rede de Atenção e Gestão em Saúde. Brasília, 2005b. ______. Pacto interno: contribuições, responsabilidades e arranjo de gestão. Brasília, 2005c. ______. Proposta de atribuições dos consultores e NT da PNH. Brasília, 2004a. ______. Relatório de atividades da Política Nacional de Humanização/SE/MS. Primeira versão. Brasília, 2004b. ______. Barracas da saúde. Brasília, 2003.

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OS COLETIVOS DA POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO ...

GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional. Aparecida: Idéias e Letras, 2004. (Coleção Psicanálise Século I). ONOCKO, R.C. A gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas. In: CAMPOS, G.W.S. (Org.). Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. p.122-49. PHNAH: Disponível em: <http://www.portalhumaniza.org.br/ph/>. Acesso em: 22 jun. 2008. REDE Humanizasus. Disponível em: <http://redehumanizasus.net/>. Acesso em: 22 jun. 2008.

MORI, M.E.; OLIVEIRA, O.V.M. Los colectivos de la Política Nacional de Humanización (PNH): la co-gestión en acción. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.627-40, 2009. El presente artículo se propone describir el proceso de constitución de los diferentes arreglos de funcionamento interno de la Política Nácional de Humanización desde su creación en 2003 y caracterizar los colectivos como instancias de co-gestión. La cogestión es una directriz de estructuración de la PNH y la experimentación revela disputas de saber, de poder y efectos de tensión interpersonales e inter-grupales. El ejercicio del co-análisis, de la co-decisión y de la co-responsabilidad es la base del trabajo en salud, proceso que trata de re-formular los modos de gestión tradicional.

Palabras clave: Política de salud. Humanización de la atención. Gestión em salud. Apoyo institucional. Recebido em 14/01/09. Aprovado em 17/06/09.

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Processo comunicativo e humanização em saúde

Suely Ferreira Deslandes1 Rosa Maria de Araujo Mitre2

DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Communicative process and humanization in healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.641-9, 2009.

This paper deals with the communication process as one of the challenges to be faced in humanizing healthcare. The potential and requirements for the production of communicative action are discussed, and certain obstacles are indicated, based on anthropological studies on biomedical culture. Using the concept of understanding, the paper discusses healthcare encounters and the relevance of validation and recognition of different players’ discourse. It indicates the importance of taking a relative view of identity marks associated with biomedical culture, deconstructing certain concepts, criticizing their contexts of applicability and even proposing new marks through humanization. The relationship between biomedical technologies and the communication process is discussed. The challenge put forward is to learn, recognize and negotiate with others who have their own particular rights, autonomy and cultural baggage. Finally, the paper discusses the theoretical efforts towards making humanization of healthcare practices part of the ethos or worldview of healthcare professionals.

O artigo aborda o processo comunicacional como um dos desafios enfrentados na humanização em saúde. Reflete sobre potencialidades e requisitos para a produção do agir comunicativo e aponta alguns obstáculos, baseando-se em estudos antropológicos sobre a cultura biomédica. Com base no conceito de entendimento, discute sobre os encontros em saúde e a relevância da validação e do reconhecimento do discurso dos diferentes atores. Aponta para a importância de se relativizarem marcas identitárias associadas à cultura biomédica, desconstruírem-se alguns conceitos, criticarem seus contextos de aplicabilidade e até mesmo se propor novas marcas por meio da humanização. Discute-se a relação entre as tecnologias biomédicas e o processo comunicacional. O desafio colocado é o de aprender, reconhecer e negociar com o outro, que detém direitos, autonomia e estoque cultural peculiares. Finalmente, discute os esforços teóricos para que a humanização das práticas em saúde venha a fazer parte do ethos ou visão do mundo dos profissionais de saúde.

Keywords: Humanization of care. Communication. Comprehension. Healthcare.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Comunicação. Compreensão. Saúde.

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Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). Av. Rui Barbosa, 716, 2º andar. Flamengo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.250-020 desland@iff.fiocruz.br 2 Departamento de Pediatria, IFF/Fiocruz. 1

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Introdução Quando autores da área de Saúde Coletiva tratam da temática de humanização, reconhecem estar diante de um imperativo ético-institucional e um princípio instituinte do Sistema Único de Saúde (SUS). Ninguém duvida em adjetivar como cuidado de qualidade aquele que tem as premissas orientadoras de ser integral, universal, equitativo e humanizado. O conceito de humanização já conta com um acúmulo de representações no campo de saúde. Primeiramente, foi entendido, por muitos atores envolvidos no processo de saúde, como uma possível acusação unilateral e culpabilizante de maus-tratos ao usuário; a seguir, o conceito ultrapassou a noção de caritas e, hoje, ousamos dizer que já enfrenta certo processo de banalização dos desafios que ele anuncia (e, consequentemente, esvaziamento). A definição de humanização atualmente adotada no campo da saúde inclui os parâmetros definidos pela Política Nacional de Humanização - PNH (Brasil, 2004). Entende-se a proposta de humanização como um conjunto de princípios e diretrizes que afirma a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde (usuários, trabalhadores e gestores); o fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos; o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; o estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; a identificação das necessidades sociais de saúde, dos usuários e dos trabalhadores; e o compromisso com a ambiência, com a melhoria das condições de trabalho e de atendimento. O debate de humanização produzido pelos autores brasileiros vai enfocar, entre tantos aspectos e desafios, as dimensões éticas do cuidado, a importância da comunicação e do diálogo para projetos terapêuticos comprometidos com a vida e os direitos dos usuários (Ayres, 2004; Deslandes, 2004; Fortes, 2004). Destes consideráveis desafios, destacamos o de ordem comunicacional. Por processos comunicacionais não nos referimos ao sucesso de emissão e compreensão de um conteúdo informativo. Falamos de um processo muito mais amplo que nos constitui como seres humanos, porque seres sociais de linguagem, capazes então de denotar/conotar, explicar/confundir, autorizar/desautorizar, consentir/ proibir (Gadamer, 1997; Habermas, 1989, 1987). Um processo pelo qual podemos construir e atualizar novas versões do mundo, do sofrimento, do cuidado e de nós mesmos. Quando nos referimos a processo comunicacional, nos remetemos à possibilidade de produzir entendimento por meio do diálogo, dos atos de fala cotidianos que acontecem nas relações face a face. E esta competência é estratégica para a produção do cuidado em saúde e, também, para a gestão, comprometidos com a humanização. Ao falarmos do processo comunicacional no contexto da humanização, nos referimos à expansão de uma competência comunicativa que constitui a base de um cuidado e gestão emancipadores, onde os diferentes atores desse cenário possam se reconhecer e se implicar. O presente texto constitui um ensaio teórico que busca discorrer sobre as potencialidades e requisitos para a produção deste agir comunicativo. Para isso, recorreremos à leitura filosófica de Habermas e depois, com o apoio da leitura sociológica (a crítica de Pierre Bourdieu, 1996) e de alguns estudos socioantropológicos (Thompson, 2000; Hoas, 1999; Strauss et al., 1963), apontaremos obstáculos e possibilidades à produção comunicativa voltada ao entendimento no contexto do cuidado em saúde. Num segundo momento, discutiremos o que consideramos falácias a respeito do uso de tecnologia como elemento desfavorável ao processo comunicacional e debateremos outras tecnologias destinadas à produção de entendimento.

Entendimento e razão comunicativa Destacamos a proposta habermasiana do agir comunicativo, que, como se verá adiante, está estreitamente associada a diversos princípios da humanização, tais como: valorização da dimensão subjetiva e social nas práticas de atenção e gestão no SUS; construção de redes comprometidas com a produção de saúde e com a produção de sujeitos; construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos implicados na produção dos cuidados de saúde; e corresponsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e atenção (Brasil, 2004).

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Habermas irá criticar as bases da racionalidade moderna, uma racionalidade instrumental que historicamente identificou, como finalidade do conhecimento, a intervenção e normatização, numa síntese de conhecer para dominar. Uma racionalidade, portanto, voltada pragmaticamente para o domínio e incapaz de viabilizar a emancipação humana (Habermas, 1990a, 1990b). Este autor irá propor outra racionalidade, ancorada na comunicação e em processos amplos de argumentação de onde serão construídas as validades dos discursos e das ações. Assim, a razão comunicativa não se constrói apenas logicamente, mas, antes de tudo, na processualidade do debate. Envolve decisões existenciais, um agir no mundo e uma ética de solidariedade contra o sofrimento e a opressão. Situa-se como um modelo político em que a práxis e a palavra estão em profunda sinergia. Para iniciar nossa reflexão, nos remetemos ao conceito de entendimento visto como um processo comunicativo voltado para a produção de um consenso. O entendimento refere-se, portanto, não ao consenso em si ou aos seus conteúdos (que podem ser transitórios), mas à disposição e dispositivos empregados para sua produção. A comunicação que busca o consenso se baseia numa troca ativa e pacífica de informações entre participantes de uma certa prática social, ancorada em estruturas racionais. Esse entendimento seria produzido internamente, e não a partir de um a priori fixo, precisando ser aceito como válido pelos participantes da comunicação. Falamos de um consenso possível. Siebeneichler, estudioso de Habermas, vai definir entendimento como um processo que: [...] abrange uma série encadeada de atos de fala. Neste contexto o ato de fala de um participante somente tem sucesso se o outro participante aceitar a oferta contida neste ato, dizendo “sim” ou “não”. Isso significa que, tanto o primeiro falante, que levanta, através de seu proferimento, uma pretensão de validade, como o segundo falante, que reconhece ou rejeita esta pretensão, apóiam suas decisões em algum tipo de razão ou argumento. (Siebeneichler, 1994, p.95)

Esta definição retrata o encontro entre dois ou mais sujeitos, que, mesmo com capitais distintos, têm sua fala reconhecida como válida. Nota-se que não se busca uma ingênua e imediata concordância de opiniões, mas trata-se aí do reconhecimento de ambas as falas, da capacidade de aceitar ou discordar, visto que se apoiam em argumentos válidos. Adequado para se pensar o encontro entre terapeuta e pessoa doente, ou entre trabalhadores de uma equipe de saúde, ou, ainda, entre profissional e gestor. Capitais distintos de conhecimento (técnicos e vivenciais), mas que não levam ao emudecer de um diante do outro. Ao contrário, a diversidade de argumentos é exatamente fomentadora deste encontro, agregando mais legitimidade e riqueza ao entendimento. Trata-se de um consenso voltado à afirmação da vida. Entretanto, este é um notável desafio: reconhecer a fala do outro como válida. Posto em outros termos, se a fala do outro é desqualificada, não reconhecida, ou seus argumentos são sequer colocados, não há nenhuma hipótese de entendimento ou ação comunicativa emancipadora. A validade dos argumentos estaria baseada em algumas pretensões reconhecidas: de inteligibilidade da mensagem contida; de verdade do conteúdo proposicional; de correção, de justeza em face do mundo social; de sinceridade na ordem subjetiva. Todavia, para reconhecer o argumento do outro como válido, torna-se mister a adoção de uma postura interpretativa, uma busca de conhecimento-tradução dos referentes e contextos do mundo da vida deste outro autor, pressupondo aí o reconhecimento de sua racionalidade. Implica, enfim, buscar conhecer as situações que levaram o autor a enunciar aquele texto. Em outros termos, demanda um exercício hermenêutico. Exercício este que depende de uma compreensão “correta” do discurso do outro (Schleiermacher, 1999), o que envolve um processo ativo, de construção e busca de significados e interpretações (Caprara e Franco, 2006) e que, por conta desta característica processual contínua, terá sempre limitações (Ayres, 2005).

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Habermas (1989) vai postular que, numa situação de fala ideal, não existe a possibilidade de coação da fala do outro, mas o confronto de argumentos, ancorados em postulados que falam da igualdade dos participantes em argumentar, interpretar, recomendar, justificar, explicar, baseados na veracidade e sinceridade. Estas condições são reconhecidas pelo próprio autor como inexistentes, mas funcionariam como um horizonte, um telos, uma utopia norteadora.

Questionamentos sobre o agir comunicativo A proposta do agir comunicativo, entretanto, também tem sido historicamente alvo de questionamentos. O mais expressivo foi feito pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1996) que criticou o suposto poder das palavras, da força ilocucionária e propositiva das expressões para a construção ativa de novos significados e consensos. Para ele, os poderes da linguagem, da eficácia da palavra, da maneira ou do conteúdo do discurso dependem crucialmente da posição social dos interlocutores. Dependem do reconhecimento de uma autoridade, de um capital simbólico acumulado por certo grupo e enunciado por seus porta-vozes autorizados. Bourdieu (1996) retrata, assim, as desigualdades presentes nas trocas comunicativas, afirmando que sua eficácia simbólica não se constrói no encontro entre falantes, mas se situa num conjunto de fatores que o antecede (a relação entre as propriedades do discurso, as propriedades daquele que o pronuncia e as propriedades da instituição que o autoriza a pronunciá-lo). Tal debate nos ajuda a questionar as desigualdades presentes há séculos na cultura médica profissional entre seus agentes e seus pacientes. Mediando e mesmo dando as regras que estruturam o singular e criador encontro entre intersubjetividades, existe um grupo de posições, concepções, argumentos e falas considerados legítimos e autorizados, e outro grupo ainda relegado a um lugar de desqualificação. Da mesma forma que tais diferenças escalonam um patamar de hierarquias das falas de distintas classes profissionais. No cotidiano das ações em saúde, marcadas pelo encontro – ou, muitas vezes, desencontro – dos diferentes atores, sejam estes usuários, profissionais ou gestores e seus saberes, o processo comunicativo acontece no contexto das relações preestabelecidas por modelos de assistência cristalizados e acriticamente reproduzidos. Estas ações são diretamente influenciadas tanto pelo contexto onde ocorrem, quanto pelos valores dos grupos sociais aos quais cada membro está vinculado, o que pode gerar distorções como, por exemplo, a supressão da mutualidade, característica implícita em um processo relacional (Caprara, Franco, 2006). Ao levar em conta a crítica aos limites da proposta do agir comunicativo, cabe lembrar que não é possível pensar estaticamente no distinto capital já acumulado entre os agentes autorizados presentes no ato da produção do cuidado em saúde. Outrossim, hoje se verificam redes discursivas (sobre os direitos em saúde, de demandas de grupos de usuários que possuem uma identidade forjada por viver com certa patologia e, mesmo, sobre a humanização da atenção, entre outras) que ampliam paulatinamente os capitais dos usuários. É certo também que as relações sociais envolvem sempre a possibilidade de reorganização dos padrões vigentes, de um vir-a-ser distinto a partir de novas ações e problematizações dos sujeitos. Seguramente, ao lado deste modelo nucleador produtor de desigualdades, existem ‘fissuras’, certa flexibilidade mais ou menos elástica de negociação da ordem. Sem estas maleabilidades, a ordem hospitalar seria insuportável aos seus agentes e usuários. A teoria da ordem negociada nos aponta os muitos mecanismos de atualização, interpretação e uso peculiar das regras pelos diferentes agentes da ordem médica (Thompson, 2000; Hoas, 1999; Strauss et al., 1963). Na prática, podemos ver isto por meio de algumas estratégias e dispositivos, alguns da própria PNH (Brasil, 2004), utilizados para subverter esta ordem e o modelo de atenção que dela deriva. No entanto, tais exemplos não podem e não devem ser tomados como prescrições capazes de gerar mudanças efetivas apenas por sua implantação. Servem, outrossim, como inspirações, fonte de aprendizado para novas experiências genuínas.

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Inequívoco dizer que a proposta de entender a produção de cuidados assistenciais em saúde a partir de uma racionalidade comunicativa estabelece uma outra ordem de referências. Contudo, pressupõe concordando em boa parte com a crítica de Bourdieu - uma relação minimamente simétrica entre falantes que estão em condições de compartilhar a construção de significados/entendimento. Demandam, assim, intenso investimento numa outra ordem de gestão, tanto do processo organizacional, quanto da gestão dos encontros intersubjetivos que dizem respeito aos cuidados em saúde. Não se fala aqui de igualitarismos. Há que se reconhecer a diferença entre capital de conhecimentos científicos para decisões clínicas e outros capitais de conhecimentos e demais capitais simbólicos fundamentais para as decisões da vida, do cotidiano. A decisão por indicar esta ou aquela terapêutica diz respeito a um conjunto de conhecimentos acumulados e disponíveis aos agentes de um determinado campo científico. Por outro lado, a adesão ou não à referida terapêutica, por exemplo, constitui uma decisão única de um paciente conjugada às influências de sua rede familiar e social ampliada. Pode-se dizer que existem diferentes e antagônicos projetos terapêuticos em disputa e, também, a possibilidade em aberto da construção de um projeto terapêutico comum, que seja capaz de fazer sentido para os sujeitos nele envolvidos, ganhando o significado de compromisso com a vida. (Ayres, 2004). O compartilhamento, a construção intersubjetiva de entendimentos no/e pelo processo comunicativo podem (e devem) funcionar como horizontes da práxis em saúde, concretizáveis a partir de profundos e sistemáticos investimentos críticos na formação contínua do profissional de saúde, em modelos favoráveis de gestão, e na ampla politização do estatuto de sujeito do usuário e do profissional. Mas não está espontaneamente dado pela singularidade do encontro intersubjetivo per si. Embora seja nele que, efetivamente, se realize. Ousaríamos dizer que o encontro do cuidador com a pessoa que sofre certo agravo demanda um interesse ativo pelo outro. E esta atitude de verdadeiro interesse por sua história, por sua constelação de motivações, aspirações e expectativas pode favorecer um entendimento provisório e renovável. Assim, ao buscarmos produzir uma leitura aberta e inclusiva, propositora e mediadora de mudanças, também somos desafiados a rever o que em nossas identidades se define pela extrema violência simbólica de tornar o Outro invisível ou ilegítimo em suas necessidades e expressões (Deslandes, 2004). É falar das dificuldades das trocas intersubjetivas nos serviços de saúde e de problematizar as relações de poder que envolvem a legitimidade ou ilegitimidade atribuída a esta ou aquela narrativa/versão de como são as coisas, o trabalho, o cuidado e mesmo o sofrimento.

Humanização como elemento de ethos e de visão de mundo Uma outra ordem de questionamentos sobre a ação comunicativa advém dos estudos antropológicos que se debruçam sobre a cultura biomédica e suas marcas de identidade. Numa perspectiva antropológica contemporânea, o termo ethos tem sido amplamente utilizado para designar acervo de valores caros a um grupo e que lhe define uma certa identidade. Assim, por exemplo, seus usos podem variar desde estudos sobre ethos religiosos, profissionais, étnicos etc (Ferreira, 2007; Graeff, 2006). Geertz (1989) designa que o ethos de um grupo ou sociedade assinala um valor moral e estético, envolve o que está implícito nas atitudes em relação a ele mesmo e ao seu mundo. Já a visão de mundo (eidos) reflete a ordenação dos conceitos que vão subsidiar a elaboração conceitual das coisas, da natureza, de si mesmo e da sociedade. Assim, ethos reúne as características morais e estéticas de uma dada cultura, seus valores identitários, já o termo “visão de mundo” refere-se aos aspectos cognitivos e existenciais. Dentre as principais marcas identitárias da cultura biomédica, podemos destacar duas que, apesar de já terem sido bastante discutidas e abordadas, ainda não se esgotaram. A primeira delas seria a hipervalorização da abordagem da doença no processo de cuidado, em contraponto à valoração dada ao sujeito que sofre. A outra seria o desequilíbrio entre o que se identifica como tecnicismo em detrimento da importância dos critérios intersubjetivos, interpretativos, intuitivos construídos a partir da experiência dos sujeitos e das trocas narrativas no encontro clínico (Ferreira, 2005). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A discussão sobre humanização traz a possibilidade de relativização destas pretensas marcas identitárias, identificadas como ethos da assistência biomédica. Por meio da compilação e revisão de leituras e conceitos à luz desta discussão, tem-se a possibilidade de revisar alguns destes parâmetros, criticar seus contextos de aplicabilidade e, até mesmo, propor novas marcas. Para ilustrar, podemos nos remeter à ingênua questão de que a prática clínica estaria sendo substituída pelo uso extensivo de tecnologias, em detrimento do encontro entre os sujeitos. Ou seja, as tecnologias, aqui representadas pelos exames de apoio diagnóstico, procedimentos e intervenções, estariam “tomando o lugar” da interação entre os diferentes atores mediada pelas trocas verbais, suas histórias e narrativas. Entretanto, esta linha de raciocínio é rapidamente relativizada quando reconhecemos que todos nós vivemos num mundo inexoravelmente mediado por técnicas e tecnologias. As intervenções técnicas e tecnológicas, que atravessam nosso cotidiano, não são exclusivas do universo biomédico ou prerrogativa apenas presente nas ações de saúde. Utilizamos dispositivos técnicos de forma quase ilimitada e automática, sem problematizarmos quanto delegamos a estes dispositivos, como nos avisar de excessos (cinto de segurança) ou de lapsos possíveis e futuros (como o faz um despertador). Como situa Latour (1996), convivemos com técnicas de repressão/contenção, mas também com as de permissão/suporte (como o exemplo de um simples corrimão). É importante pensar que tais utilizações não podem ser consideradas como boas ou más por si sós, ou ainda práticas sociais neutras, que não envolvem qualquer tipo de escolha. Elas se constituem, antes de tudo, como mediadoras de relações. Portanto, é importante destacar que o ponto principal não é o uso preponderante da tecnologia médica, mas qual o papel que esta tecnologia representa na ordem do cuidado construído e nas relações entre os sujeitos. Desta forma, importa considerar, também, como tecnologias envolvidas na produção do cuidado e da gestão: o acolhimento, a escuta, a negociação, a interpretação de histórias e a aprendizagem com a experiência do outro. Tais tecnologias dizem respeito tanto à instituição quanto à equipe que aprende a aprender (Gomes et al., 2008; Caprara e Franco, 2006; Ayres, 2005). Não estamos, portanto, diante de pares binários de oposição, ainda que culturalmente tal idéia seja constantemente reforçada. Quase somos condicionados a pensar de forma dicotômica ou excludente. Como se o domínio de técnicas e/ou tecnologias impedisse uma reflexão crítica ou se apenas sua aplicação garantisse o sucesso de um procedimento ou tratamento. Neil Postman (1993), em seu livro Technopoly, ao refletir sobre a ideologia das máquinas e tecnologias médicas, destaca que, na experiência norte-americana, o que pode ser cobrado em termos monetários no sentido de ser reembolsado aos serviços de saúde são justamente os procedimentos técnicos, e não o tempo que os profissionais dispensam à pessoa doente. Em termos de Brasil, não temos uma realidade tão diferente, tanto no SUS quanto na rede de saúde suplementar, o pagamento é calculado de maneira semelhante, isto é, por intervenção realizada. Nesta lógica, o que efetivamente interessa é a execução dos procedimentos, e não o modo como o atendimento é feito. Desta forma, seria interessante pensar o que ocorreria se, num prontuário, tivesse um registro do tipo: acolhimento, mobilização de narrativas, produção de entendimento a partir de argumentos de prevenção e posturas de autocuidado, negociação quanto ao uso de medicação e de dieta. Como expressar um valor para este grupo de procedimentos? Certamente não se trata de traduzi-los em valores monetários, apenas uma provocação a se refletir sobre como valorizar, na cultura biomédica (ultrapassando a noção de valorar), estas boas práticas que são também expressão de competência do profissional. Vale ainda pontuar que estas práticas correspondem a investimento profissional, pois demandam capacitações, aprimoramento e supervisão técnica. Ao insistir nesta provocação, vale perguntar que prioridade é dada a este tipo de atendimento ao se montar, por exemplo, o quadro de profissionais para determinado serviço de saúde? A lógica vigente, tanto em serviços públicos, quanto privados para diferentes categorias profissionais é de quantificar o número de trabalhadores em relação ao número de pessoas atendidas. Tal cálculo baseia-se no máximo de atendimentos dentro de um tempo predeterminado a partir de uma rotina de tarefas estandardizadas. Este modelo de organização moderna do trabalho hospitalar foi historicamente 646

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construído e reproduzido observando padrões tayloristas de otimização de produtividade (Campos, 2001). Discutir isso significa não perder de vista que há um caráter macroestrutural que orienta e delimita um campo de práticas individuais.

Considerações finais Consideramos que o emprego destas tecnologias comunicacionais não constitui apenas meios para se chegar a um fim determinado (seja ao diagnóstico, seja à adesão a certo tratamento/prescrição). Antes de tudo, são capazes de fortalecer e ajudar a instituir novos parâmetros para a produção de cuidados. Falamos de uma racionalidade comunicativa, e não instrumental, a ser posta em ação, seja do planejamento à realização do cuidado. O desafio colocado é o de reconhecimento, aprendizagem e negociação com um outro que não é nosso espelho, mas um outro imbuído do tríplice estatuto de: indivíduo - detentor de direitos; sujeito detentor de capacidade de autonomia para fazer escolhas; pessoa - detentor de estoque cultural que lhe confere uma identidade de referência no seu grupo social de pertencimento. A humanização do cuidado passa por uma (re) definição da atitude subjacente do profissional em relação a ele mesmo e ao seu mundo, trata-se, portanto, de um ethos. O debate da humanização abre, também, uma arena de discursos sobre o cuidado, dessa forma, constitui um quadro de elaboração conceitual e valorativo, participa, assim, de uma visão de mundo sobre a saúde. Contudo, a humanização das práticas de saúde só se consolidará como ethos ou como visão de mundo se for tomada como instituinte de práticas cotidianas e por elas sustentada; se alimentada por mecanismo de reprodução dentre os praticantes do cuidado (via formação acadêmica e pela força poderosa dos exemplos); se reconhecida como exercício que envolve uma expertise coletiva e individual, mas de modo algum inata. Finalmente, ponderamos sobre os muitos limites deste artigo. A leitura habermasiana é densa e aqui foi simplificada para os moldes do espaço de debate proposto. Certamente, o texto teria se beneficiado se incluísse as proposições de Habermas sobre a ética do discurso. Por outro lado, o contraponto com Bourdieu poderia ser mais intensificado caso situássemos seu debate potente sobre a constituição de campos e a conformação estruturante dos habitus dos respectivos agentes. A discussão sobre a produção de identidades e ethos e sua expressão nas culturas institucionais dos serviços de saúde por si só demandaria um artigo inteiro, dada a profundidade que estes temas agregam nas ciências sociais. Outro aspecto que mereceria maior reflexão é situar este debate diante das características que têm demarcado a paulatina implantação da PNH. A humanização, constituída como política pública de abrangência nacional, demarca singular diferença em face de muitas outras políticas de saúde. Não raro, políticas são construídas por indução do Estado e com incipiente entendimento junto aos atores sociais sobre suas diretrizes e estratégias. Geralmente, espera-se que seus quadros normativos sejam adequadamente e fielmente realizados. A PNH, ao contrário, aposta na construção cotidiana e criativa de interpretações e adaptações. Debater sobre os entendimentos construídos entre formuladores e agentes de implantação da política seria caminho rico, porém constituiria outro artigo. Assim, terminamos este texto abrindo novas pautas de estudo e diálogo, porque inconcluso e aberto à produção de outros devires reflexivos e vivenciais.

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PROCESSO COMUNICATIVO E HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE

Colaboradores Suely Ferreira Deslandes responsabilizou-se pela idéia original do artigo, estruturação da discussão e reflexão inicial; Rosa Maria de Araújo Mitre responsabilizou-se pela formatação, análise e leitura crítica, com complementação da discussão. Referências AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.549-60, 2005. ______. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc., v.13, n.3, p.16-29, 2004. BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996. BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CAMPOS, G.W.S. Gestión en salud: en defensa de la vida. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2001. CAPRARA, A.; FRANCO, A. Relação médico-paciente e humanização dos cuidados em saúde: limites, possibilidades, falácias. In: DESLANDES, S. (Org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.85-108. DESLANDES, S.F. Análise do discurso oficial sobre humanização da assistência hospitalar. Cienc. Saude Colet., v.9, n.1, p.7-14, 2004. FERREIRA, F.C.B. Entre arabescos, luas e tâmaras: performances islâmicas em São Paulo. 2007. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007. FERREIRA, J. O programa de humanização da saúde: dilemas entre o relacional e o técnico. Saude Soc., v.14, n.3, p.111-8, 2005. FORTES, P.A.C. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde. Saude Soc., v.13, n.3, p.30-5, 2004. GADAMER, H. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989. GOMES, A.M.A. et al. Fenomenologia, humanização e promoção da saúde: uma proposta de articulação. Saude Soc., v.17, n.1, p.143-52, 2008. GRAEFF, B.P. O policial militar em tempos de mudança: ethos, conflitos e solidariedade na polícia militar do estado de São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação de Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília. 2006. HABERMAS, J. Theodor W. Adorno: pré-história da subjetividade e auto-afirmação selvagem. In: FREITAG, B.; ROUANET, S. (Orgs.). Habermas. São Paulo: Atica, 1990a. p.139-50. ______. Crítica conscientizante ou salvadora: a atualidade de Walter Benjamin. In: FREITAG, B.; ROUANET, S. (Orgs.). Habermas. São Paulo: Atica, 1990b. p.169-206. ______. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. ______. Dialética e hermenêutica. São Paulo: L&PM, 1987.

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DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A.M.

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DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Proceso comunicativo y humanización en salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.641-9, 2009. El articulo abarca el proceso de comunicación comomuno de los desafíos afrontados en la humanización en salud. Reflexiona sobre potencialidades y requisitos para la producción de la acción comunicativa y apunta algunos obstáculos basándose en estudios antropológicos sobre la cultura biomédica. A partir del concepto de entendimiento, discute sobre los encuentros en salud y la relevancia de la validez y del reconocimiento del discurso de los diferentes actores. Indica la importancia de relativizar marcas de identidad asociadas a la cultura biomédica, desconstruir algunos conceptos, criticar sus contextos de aplicación e incluso proponer nuevas marcas por medio de la humanización. Se discute la relación entre las tecnologías biomédicas y el proceso de comunicación. El desafío que se plantea es el de aprender, reconocer y negociar con el otro que posee derechos, autonomía y bagaje cultural peculiares. Finalmente discute los esfuerzos teóricos para que la humanización de las prácticas en salud llegue a formar parte del ethos o visión del mundo de los profesionales de salud.

Palabras clave: Humanización de la asistencia. Comunicación. Comprehensión. Salud. Recebido em 27/03/09. Aprovado em 20/06/09.

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artigos

A fraternidade em questão: um olhar psicossociológico sobre o cuidado e a “humanização” das práticas de saúde

Marilene de Castilho Sá1

SÁ, M.C. On fraternity: a psychosociological view of healthcare and the humanization of healthcare practices. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.651-64, 2009. This paper aims to discuss some challenges for healthcare production, considering the intersubjective and unconscious processes that condition it. The methodological approach for the analysis is based on theoretical categories from the French school of Psychosociology, from psychoanalytical theory on intersubjective/ group processes and from Work Psychodynamics. The sociability patterns and the dominant means of subjectivation within society impose serious limits on healthcare work. These are additional to the limits of a material, technological or organization nature that are more easily recognized. The intersubjective and unconscious dimension of healthcare work produces effects on the quality of care. The specificity of healthcare work and its demands for psychological work are discussed, examining its consequences for the quality of care. Some possibilities for analyzing and dealing with the intersubjective and unconscious dimension of healthcare work are presented, and these may contribute towards a new way of producing healthcare management.

Keywords: Delivery of healthcare. Subjectivity and management. Humanization of assistance.

O presente artigo se propõe a discutir alguns desafios para a produção do cuidado em saúde, considerando os processos intersubjetivos e inconscientes que o condicionam. A abordagem metodológica de análise se apóia em categorias teóricas da Psicossociologia francesa, da teoria psicanalítica sobre os processos intersubjetivos/grupais e da Psicodinâmica do Trabalho. Os padrões de sociabilidade e os modos de subjetivação dominantes na sociedade impõem sérias limitações ao trabalho em saúde, que se somam às de ordem material, tecnológica ou organizacional, mais facilmente reconhecidas. A dimensão intersubjetiva/inconsciente do trabalho em saúde produz efeitos sobre a qualidade da assistência. A especificidade do trabalho em saúde e suas exigências de trabalho psíquico são discutidas, examinando-se suas consequências para a qualidade do cuidado. Algumas possibilidades de análise e abordagem da dimensão intersubjetiva/inconsciente do trabalho em saúde são apresentadas e podem contribuir para um novo modo de produzir a gestão do cuidado em saúde.

Palavras-chave: Assistência à saúde. Subjetividade e gestão. Humanização da assistência.

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Departamento de Planejamento e Administração em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Leopoldo Bulhões, 1480, sala 716. Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-210 marilene@ensp.fiocruz.br 1

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A FRATERNIDADE EM QUESTÃO: UM OLHAR ...

Introdução O presente artigo, fruto de uma pesquisa teórica, se propõe a discutir alguns desafios para a produção do cuidado nos serviços de saúde, considerando a característica intersubjetiva do trabalho em saúde e os processos inconscientes que o condicionam. Nos últimos anos, temas como a qualidade e a integralidade da assistência, o trabalho em equipe, o acolhimento e a “humanização” das práticas de saúde vêm ocupando uma posição cada vez mais central na agenda de discussões e na formulação de políticas setoriais, gradativamente chamando a atenção para a importância da dimensão intersubjetiva dos serviços de saúde e de seus processos de trabalho. Essa temática ganha expressão num contexto em que, a despeito da significativa ampliação de cobertura conseguida pelo SUS, se mantêm iniquidades históricas no acesso ao sistema e se intensificam, nos serviços de saúde, os processos de desvalorização da vida e de banalização do sofrimento alheio presentes na sociedade. Este quadro põe em questão a efetividade de propostas prescritivo-normativas, que não problematizam o contexto social e político-institucional em que se inserem, e compreendem a “humanização” ou a mudança das práticas de saúde como resultados de um movimento exclusivamente consciente e voluntário dos sujeitos. Cristophe Dejours observou, certa vez, que é impossível prescrever a cooperação. “Ordenar a cooperação (e, poderíamos dizer, a “humanização”) é como ordenar o amor, numa ordem do tipo: ‘amai-vos uns aos outros’, ‘cooperai uns com os outros’.” (Dejours,1999, p.29). Os obstáculos à solidariedade e à produção do cuidado em saúde não residem apenas na precariedade das condições materiais, tecnológicas e na insuficiência de pessoal da grande maioria dos serviços, nem somente nas características dos modelos assistencial biomédico e gerencial funcionalista dominantes. Somando-se a esses fatores, os padrões de sociabilidade e os modos de subjetivação na sociedade contemporânea também impõem sérias limitações ao trabalho em saúde e a sua qualidade. De outro lado, o reconhecimento da dimensão intersubjetiva das organizações e do trabalho em saúde, implica, considerando a perspectiva teórica aqui adotada2, o reconhecimento de sua dimensão inconsciente e, sobretudo, de que esta produz efeitos (para o bem ou para o mal) sobre a qualidade do cuidado (Sá, 2005).

Problematizando a perspectiva de “humanização” das práticas de saúde3 Em algumas áreas da assistência, o “discurso” da humanização encontra-se mais elaborado e algumas práticas já instituídas, como a assistência ao parto e neonatal de risco, assim como a assistência a pacientes com câncer e a pacientes terminais. Outras áreas, no entanto, como a assistência na rede básica de serviços de saúde, só mais recentemente vêm sendo alvo de intervenções com este tipo de preocupação, destacando-se as iniciativas bem-sucedidas de adoção do acolhimento como um dispositivo favorecedor da reestruturação das práticas de saúde (Franco et al., 2004; Sergipe, 2004; Franco et al., 2003). As propostas voltadas para os hospitais gerais e, especialmente, para o atendimento de urgência e emergência, salvo experiências isoladas, ainda são mais recentes. Nesses hospitais se concentram desafios importantes para a humanização da assistência, tanto pela natureza dos problemas que ali chegam, como pelas condições adversas de trabalho e pela sobrecarga da demanda (Sá et al., 2008; Sá, 652

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2 Orientada fundamentalmente pela Psicossociologia francesa (Enriquez, 1997, 1994a, 1994b), pela teoria psicanalítica sobre os processos intersubjetivos e grupais (Kaës, 1989) e pela Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004, 1999).

3 Parte das avaliações aqui desenvolvidas baseia-se no material a que tive acesso enquanto membro da Comissão Nacional de Avaliação do Prêmio David Capistrano da Política Nacional de Humanização – HumanizaSUS – instituído, em 2004, pelo Ministério da Saúde. Tratava-se de um conjunto de 671 projetos candidatos ao prêmio. É importante ressaltar que o julgamento que aqui faço expressa apenas minha posição pessoal sobre os projetos, dos quais pude examinar diretamente cerca de 20%, obtendo informações do conjunto nas reuniões da Comissão.


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artigos

2005). Nesses serviços, a ética da “comunicação” e do “reconhecimento do outro”, já naturalmente frágil, tem muito mais chances de fracassar. Além das diferenças quanto ao grau de institucionalização das práticas, algumas experiências consideradas de “humanização” da assistência ainda parecem apresentar um caráter muito pontual e periférico em relação aos serviços de saúde onde se desenvolvem e às lógicas de organização de seus processos de trabalho, não conseguindo impactá-los. Observam-se “comitês de humanização” ou núcleos de Recursos Humanos, cujas principais atividades ainda se concentram na criação de espaços periféricos de entretenimento e confraternização. Algumas experiências guardam um caráter centralmente filantrópico, operando apenas com doações e/ou dependentes exclusivamente de trabalho voluntário, o que ainda está muito distante dos ideais de direitos de cidadania e da ética da “alteridade” presentes no discurso da “humanização”. Grande parte das propostas de intervenção voltadas para as interações entre profissionais e usuários geralmente não vai além de recomendações sobre a necessidade do desenvolvimento de uma ética pautada: no reconhecimento do outro, no acolhimento, na responsabilização e no estabelecimento de vínculos, na cooperação e na valorização da comunicação; sem problematizar, no entanto, quais seriam os possíveis condicionantes da produção ou ausência desta ética, limitando-se, consequentemente, em sua capacidade de proposição de ações ou mecanismos que a favoreçam. Mesmo estratégias mais específicas, como a capacitação dos profissionais e a criação ou ampliação de mecanismos de comunicação, embora condições imprescindíveis, não são suficientes. A disposição para o acolhimento, para a escuta e para o estabelecimento de vínculos não se constitui em uma capacidade absoluta e apriorística do ser humano ou em algo que possa ser controlado exclusivamente por um trabalho consciente e voluntário e/ou por mecanismos gerenciais. Por parte do Ministério da Saúde, a questão da humanização da assistência vem recebendo, sem dúvida, atenção crescente, destacando-se a iniciativa, em 2001, do Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar – PNHAH (Brasil, 2001) e, sobretudo, a atual Política Nacional de Humanização (PNH) (Brasil, 2004). É inegável o avanço conceitual e prático que a atual Política de Humanização do Ministério da Saúde representa comparativamente a iniciativas anteriores, buscando romper com a concepção de programa isolado, propondo-se como política transversal, construindo capilaridade para seus princípios nas diversas ações do SUS e em suas instâncias de gestão. O eixo norteador das ações de humanização também parece ter sofrido um deslocamento – vantajoso, acredito – da humanização vista como “ampliação do processo comunicacional” – de base hermenêutica gadameriana, diretriz central da proposta de humanização contida no Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar do MS de 2000 (Deslandes, 2004) – para a humanização como “produção de sujeitos autônomos”, capazes de estabelecer vínculos solidários e corresponsabilidade na produção de ações de saúde e em sua gestão – proposta fortemente inspirada na perspectiva da Análise Institucional e da Socioanálise de René Lourau (1995) e Georges Lapassade (1977), bem como na “filosofia da diferença”, vinculada a Félix Guattari (1985) e Gilles Deleuze (Deleuze, Guattari, 1992), o que traz para a cena a importância da intervenção na micropolítica, na transformação das práticas e o peso dos poderes cotidianos e do “instituído” como limites ao exercício de uma comunicação idealizada como transparente e simétrica entre os sujeitos na produção de ações de saúde. No entanto, a complexidade das questões relacionadas à “humanização” das práticas de saúde ainda impõe muitos desafios. A contraposição da idéia de “humanização” aos processos de discriminação, indiferença e desprezo pelo outro, apatia diante de seu sofrimento e todas as demais formas de violência que se verificam na sociedade - e, particularmente, nos serviços de saúde -, produz opacidade sobre o que talvez seja um dos principais nós críticos do problema, pois subtrai do que é humano o mal que também lhe é inerente (Sá, 2005). Tal perspectiva se aproxima de uma das principais crenças veiculadas pela doutrina do Humanismo Cristão ou Personalismo Cristão: a de que o ser humano é bom (Minayo, 2004). Assim, o problema principal com a utilização do termo “humanização” reside, acredito, na sua inadequação para designar o que pretende. Em consequência, correm o risco de equívoco algumas estratégias de intervenção baseadas nessas concepções. Se o ser humano é essencialmente bom, basta orientá-lo, educá-lo, “sensibilizá-lo” para o exercício desta “bondade” para com o próximo. 653


A FRATERNIDADE EM QUESTÃO: UM OLHAR ...

Hoje, a despeito dos avanços de concepções e de práticas possibilitados pela PNH, é preciso considerar que a metáfora da sociedade harmonizada, conciliada e transparente é muito insidiosa e sedutora e ainda parece informar algumas propostas “humanizantes”. Assim, não só é preciso continuar a problematizar a natureza sociológica da impossibilidade de uma comunicação totalmente transparente e baseada numa simetria entre os sujeitos, conforme propôs Deslandes (2004), como é preciso problematizar a “natureza psicanalítica” (ou, aglutinando as duas perspectivas, a natureza “psicossociológica”) desta impossibilidade. Destaca-se aqui a ambivalência que o sujeito apresenta em sua relação com o outro (Freud, 1976), visto simultaneamente como portador do bem e do mal, e a oscilação permanente do sujeito entre os polos narcísico e alteritário (Birman, 2000). Onocko Campos (2004) desenvolve uma argumentação análoga, chamando a atenção para o fato de que a violência, a raiva, a inveja, as agressões são absolutamente humanas, e observa que, para lidarmos com estas questões, não nos basta o cogito cartesiano, posto que não somos apenas seres racionais. Finalmente, não é possível deixar de problematizar os enormes desafios que os padrões de sociabilidade e subjetivação dominantes em nossa sociedade impõem às iniciativas de humanização, conformando um quadro extremamente adverso a práticas solidárias e de cuidado com o outro.

A fraternidade: um projeto ainda possível na sociedade contemporânea? Temas como a cooperação, a humanização e o cuidado em saúde remetem à problemática da fraternidade. Segundo Birman (2000, p.184), a ética da fraternidade pressupõe, acima de tudo, a existência de um sujeito “incompleto e precário”, que possa reconhecer que não é autossuficiente. No entanto, é justamente a autossuficiência do sujeito que caracteriza, como lembra o autor, o modelo de subjetivação contemporânea, promovido pela “cultura do narcisismo” e pela “sociedade do espetáculo”. No que concerne às práticas de saúde, penso que não seja possível, por exemplo, esperar que haja cooperação entre profissionais que se julgam autossuficientes com seus saberes e técnicas. A cooperação, a solidariedade e o cuidado dependem da disposição do sujeito para se “abrir” ao outro, para buscar no outro o que ele não sabe ou o que lhe falta. Do mesmo modo, não podemos esperar comportamentos solidários de sujeitos que não conseguem enxergar, no sofrimento e fragilidade do outro, a sua própria precariedade e insuficiência. Como modalidade específica de produção e manifestação do laço social, a fraternidade só se torna possível com a emergência da sociedade moderna (Birman, 2000). Esta implicaria a instalação do igualitarismo dos agentes sociais, concebido a partir da figura do irmão, de forma que a ordem social moderna seria necessariamente uma ordem fraternal, diferenciando-se das sociedades pré-modernas, nas quais a fraternidade não se identificaria com o laço social, existindo hierarquias de diversas ordens. No entanto, paradoxalmente, a mesma modernidade engendra, na transição do século XVI para o século XVII, a formação ilusória da autossuficiência, contrapartida imaginária do humanismo, quando o homem foi alçado à condição de centro do mundo e medida de todas as coisas, desafiando e desalojando o poder divino, pela mediação da razão e da ciência (Birman, 2000). Tal processo [...] conduziu o sujeito a um impasse marcado pela tragicidade: precisar do outro como um igual e um irmão para realizar a gestão do mal-estar produzido [...] pelo desamparo, contrapartida da Morte de Deus no nível antropológico; ou então acreditar na sua divinização narcísica centrada no eu, se agarrando ilusoriamente na sua auto-suficiência. (Birman, 2000, p.194)

Nesta perspectiva, o sujeito oscilaria, permanentemente, entre os polos narcísico e alteritário. No mundo pós-moderno, a economia do desamparo em muito se incrementou, devido à perda de algumas utopias que fundavam o projeto modernista. Com isso, o ideário da fraternidade foi balançado em suas proposições e “[...] aparece hoje como uma espécie de sonho do passado sem mais qualquer lugar na atualidade” (Birman, 2000, p.204). Diversos autores, do campo da Sociologia, da Filosofia ou da Psicanálise, vêm procurando 654

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Grifo do autor.

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artigos

compreender e buscar saídas para um conjunto de “sintomas” que põem em cheque, de modo aparentemente irreversível, o ideário da fraternidade. Bauman (1998) destaca a total desregulamentação, a insegurança e o despedaçamento das antigas redes de solidariedade, caracterizando a situação de “incerteza radical” da vida pós-moderna. Enriquez (1994 a) aponta a intensificação do individualismo, em detrimento da efetiva valorização do sujeito, e a impossibilidade de ligação com os outros. Santos (1999) nos mostra como o individualismo possessivo e a cultura consumista produzem um desvio das energias sociais da interação com pessoas para a interação com objetos. Há uma supervalorização da dimensão econômica e uma obsessão pela modernização, junto com uma idealização da técnica e da tecnologia (Enriquez, 1994b). O incremento da violência e a intensificação dos comportamentos perversos também compõem a dinâmica social contemporânea (Enriquez, 1994b). Dejours (1999) denuncia uma tolerância social cada vez maior para com as injustiças sociais e para com os sofrimentos infligidos a outrem em nossas sociedades, o que funcionaria como uma defesa contra a consciência dolorosa da própria cumplicidade e responsabilidade dos indivíduos no agravamento da adversidade social. Costa (1989) chama a atenção para uma passagem gradual, na sociedade brasileira, de um ethos predominantemente centrado no público para um outro dirigido ao culto do privado e do indivíduo, cuja característica principal foi a desqualificação sistemática da política como meio de participação dos indivíduos na gestão do bem comum, por meio de uma “reviravolta imaginária” que fez da política e do Estado instituições acessórias, quando não parasitárias. Segundo o autor, vivemos numa cultura cínico-narcísica, que não se restringe às elites brasileiras, mas “abocanha” outras áreas da vida social com especial intensidade. Um indicativo importante dessa cultura “cínico-narcísica” seria o refrão do “não tem jeito”, “nada mais se deve esperar”. A partir daí, não há qualquer possibilidade de se pensar em médio ou longo prazos (pré-condições, entendo, do planejamento e da gestão) ou qualquer possibilidade de preocupação (e cuidado, poderíamos dizer) com o outro. “Pouco importa o outro ou o amanhã: importa sobreviver hoje” (Costa, 1989, p.37). O autor destaca, entre os processos que vêm progressivamente conformando o modelo de subjetivação das elites brasileiras, o alheamento em relação ao outro. (Costa, 2000). Ao contrário do ódio, da rivalidade ou do temor diante de um adversário que representa alguma ameaça, “[...] o alheamento consiste numa atitude de distanciamento, em que a hostilidade ou o vivido persecutório são substituídos pela desqualificação do sujeito como ser moral4” (Costa, 2000, p.79). Nesta perspectiva, os pobres e miseráveis são cada vez menos percebidos como pessoas morais. Os desprezados não são vistos como adversários de classe ou de interesse, mas como uma espécie de “[...] resíduo social inabsorvível, com o qual se deve aprender a conviver [...]” (Costa, 2000, p.80). Neste contexto, é preciso coragem e sabedoria para propor uma “humanização” dos serviços/das práticas de saúde. Coragem, em primeiro lugar, para assumir, em sua radicalidade, o que, acredito, a idéia de “humanização” em saúde sugere: trazer, para o centro das questões a serem enfrentadas pela gestão dos serviços de saúde, tudo o que do humano é manifestação ou produto, para o bem ou para o mal. Coragem, em segundo lugar, para sustentar a importância das utopias como uma das saídas fundamentais para os problemas da sociedade contemporânea. Sabedoria para não se deixar aprisionar pelas armadilhas da cegueira voluntarista/onipotente e ser capaz de construir e reconstruir, cotidianamente, com o conhecimento e a experiência da realidade, aproximações possíveis (e sempre provisórias) aos projetos utópicos.

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O trabalho em saúde e suas exigências de trabalho psíquico: desafios para a produção do cuidado Embora reconhecendo que a organização da estrutura assistencial em saúde e das práticas em saúde seja um processo histórico-social com múltiplas determinações (Pires, 1998), acredito que podemos falar de uma “essência” ou de uma especificidade do trabalho em saúde, que o diferencia dos demais trabalhos humanos e que se “preserva”, ao longo das diversas transformações a que historicamente vem sendo submetido. Tal especificidade, de um lado, lhe é dada por seu próprio objeto que, entendo, não são as doenças, de um modo geral - objeto das ciências e saberes que apoiam a Medicina - mas a vida, o prazer, a dor, o sofrimento, a morte em suas manifestações singulares no corpo e na alma (no psiquismo) de cada sujeito. De outro lado, a especificidade do trabalho em saúde advém de seu “que fazer”. Trata-se, como observa Schraiber (1993) a respeito do trabalho do médico, de um trabalho de intervenção de um homem sobre outro, destacando, portanto, o seu aspecto relacional, intersubjetivo, e lembrando também que “[...] se está diante de uma ‘invasão’, ainda que permitida, do outro: interferência sobre as vidas, as privacidades e as paixões das pessoas” (Schraiber, 1993, p.150). Estou adotando aqui uma visão do trabalho em saúde mais próxima à sua dimensão assistencial ou clínica, não contemplando adequadamente objetos e afazeres de outras práticas também reconhecidas socialmente como trabalho em saúde, mas que não pressupõem uma relação direta com (e uma intervenção ou manipulação direta sobre) indivíduos singulares. Retenho, como essência do trabalho em saúde, a sua característica relacional/intersubjetiva e de intervenção de um sujeito sobre outro porque acredito que seja esse o espaço (da ordem do singular), por excelência, da possibilidade de exercício da solidariedade, da cooperação e do cuidado com a vida, mas também, paradoxalmente, o espaço privilegiado para o exercício de comportamentos perversos, para o descuido, enfim, para a produção do mal nos serviços de saúde. Todos os fenômenos que constituem o objeto do trabalho em saúde, além de sua base biológica, conformam uma experiência, uma vivência, algo, portanto, da ordem do singular, dos processos subjetivos. Apoio-me aqui na discussão realizada por Dejours (1999) a respeito do conceito de sofrimento. Com base na fenomenologia alemã, Dejours conceitua o sofrimento como uma “experiência vivenciada”, um estado mental que implica um movimento reflexivo da pessoa sobre seu “estar no mundo”. Tal vivência, todavia – considerada também numa perspectiva psicanalítica - não é totalmente consciente. Tem sempre uma parte inapreensível, desconhecida e, até mesmo, não representável. Referindo-se ao modo peculiar como o caráter científico se inscreve na prática médica, onde se trata de “conectar” a doença (o conhecimento científico advindo da patologia) ao doente, à sua singularidade, Schraiber observa que “o médico se dá conta de, e sabe que deve levar em conta, a totalidade singular do doente” (Schraiber, 1993, p.165). Portanto, podemos entender que o trabalho em saúde se realiza sobre uma “totalidade singular” e, por sua vez, enquanto intervenção, constitui-se como um ato sempre “único”, dependente do encontro de duas subjetividades, a do paciente e a do profissional, esta última manifesta na sua capacidade de julgamento – para aplicar o saber, a técnica, operar intervenções, como observa Schraiber (1993) - na sua experiência, na sua criatividade e valores morais. Do exposto até aqui, é possível concluir que a especificidade do trabalho em saúde, ou o que constitui sua essência, é sua característica intersubjetiva e de intervenção única de um sujeito sobre outro, em suas experiências singulares de vida, prazer, dor, sofrimento e morte. O caráter mais ou menos técnico-científico deste trabalho, seu grau de especialização, sua forma/lógica de organização e de divisão técnica e social, suas finalidades, bem como as representações e valores a ele associados é que irão, obviamente, variar nos diferentes contextos histórico-sociais, alargando ou estreitando as margens da solidariedade e do cuidado com a vida. Esta compreensão apresenta, pelo menos, três consequências ou implicações importantes: 1) A dimensão intersubjetiva do trabalho em saúde não pode ser dissociada dos demais componentes deste trabalho (tecnologias, saberes etc). Schraiber (1993) e Merhy (2002) já o demonstraram: ela não só é condição de eficácia do trabalho em saúde como lhe é central, essencial. 656

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Conforme observa Teixeira (2003), apesar “[...] das entusiásticas promessas da biomedicina triunfalista [...] parece que a coisa não funciona mesmo muito bem sem este outro, chamado paciente, entre aspas [...]” (Teixeira, 2003, p.92). 2) Por se tratar de “trabalho vivo em ato” (Merhy, 2002, p.45), penso que esta dimensão intersubjetiva do trabalho em saúde seja aquilo que, deste trabalho, mais escapa às estratégias de controle gerencial, o que nos impõe imensos desafios, do ponto de vista da gestão, para a garantia de qualidade das ações produzidas. 3) Considerando que os homens não veem seus semelhantes apenas como um apoio, fonte de conforto ou modelo sobre o qual constroem suas identidades, mas também como fonte de perigos, ameaça ou possibilidade de morte (Freud,1976), entendo que o trabalho em saúde, pela centralidade de sua dimensão intersubjetiva, é altamente exigente de trabalho psíquico, compreendido como a produção de processos e formações inconscientes (Kaës, 1989), como as estratégias defensivas, as fantasias, as ilusões, as alianças inconscientes, as identificações e idealizações. Estas podem ser positivas, com relação ao outro e ao trabalho, por exemplo, mas também podem expressar o desejo de domínio, a inveja, os ataques ao vínculo, a negação do outro, ou sua representação como mero objeto de gozo, destituído de subjetividade. Isto significa dizer que o trabalho psíquico empreendido pelos profissionais de saúde (individual ou coletivamente) na realização de seu trabalho produz efeitos sobre a qualidade do cuidado em saúde. Acredito que o modo como os sujeitos responderão às exigências de trabalho psíquico impostas pelo trabalho em saúde depende da articulação de suas histórias individuais com as do conjunto intersubjetivo - do coletivo de trabalho ou das organizações - onde se inserem, condicionando favorável ou desfavoravelmente a produção do cuidado. Do mesmo modo, essas exigências podem ser intensificadas pelas condições materiais e pelo contexto organizacional e social em que o trabalho em saúde se realiza, com impactos na dinâmica “prazer-sofrimento” no trabalho (Dejours, 2004) e, igualmente, nas formas de organização e realização do trabalho.

Algumas possibilidades de análise e de abordagem da dimensão intersubjetiva e inconsciente do trabalho em saúde e suas implicações sobre a qualidade do cuidado Se o reconhecimento da centralidade da dimensão intersubjetiva do trabalho em saúde obriga a gestão a reconhecer seus limites de intervenção e de controle diretos sobre aquilo que se passa no trabalho “vivo em ato” (Merhy, 2002, p.45) - no momento “entre-dois” em que o trabalho em saúde se produz e se consome - o reconhecimento de que parte dos processos intersubjetivos que ali se dão são da ordem do inconsciente, isto é, daquilo a que os sujeitos não só não controlam como não têm acesso diretamente pela via da razão, obriga-nos a uma postura muito mais humilde com relação às possibilidades de mudança das práticas de saúde. No entanto, o fato de não controlarmos uma boa parte desses processos não nos isenta de responsabilidade pelas consequências negativas que os mesmos eventualmente possam apresentar sobre a qualidade do cuidado, nem nos exime da responsabilidade de propor e tentar mudanças. Kehl (2002), ao discutir a questão da ética, a partir da Psicanálise, recupera a discussão realizada por Freud em “A responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos”, em que o autor observa que, embora não o controle, não pode deixar de reconhecer como parte de si mesmo e de se responsabilizar, em consequência, por seu inconsciente. Responsabilidade difícil de assumir esta - pelo estranho que existe em nós, age em nós e com o qual não queremos nos identificar. No entanto, eticamente, é preferível que o sujeito arque com as conseqüências dos efeitos do seu inconsciente, fazendo deles o início de uma investigação sobre o seu desejo, a que ele permita que tais efeitos se manifestem apenas na forma do sintoma. Ou, o que é ainda mais grave, que o sujeito tente se desembaraçar do inconsciente, por meio dos atos de intolerância que projetam no outro o que o eu não quer admitir em si mesmo. (Kehl, 2002, p.32)

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Coloca-se, então, uma dupla tarefa para que possamos avançar na proposição e nas tentativas de implementação de mudanças nas práticas de saúde (para além dos necessários esforços de reorganização e melhoria das condições e dos processos de trabalho). De um lado, explorar, buscar (re)conhecer, os processos intersubjetivos/inconscientes presentes no modo como se realiza o trabalho em saúde e suas consequências sobre a qualidade do cuidado. De outro lado, buscar, propor e/ou fortalecer dispositivos e processos de gestão e organização do trabalho que favoreçam a gestores e trabalhadores de saúde o acesso a sua própria subjetividade - ao (re)conhecimento das fontes de seu sofrimento e prazer no trabalho, dos vínculos imaginários/afetivos que os ligam ao trabalho, às organizações, ao outro (profissional, usuário) e do sentido do trabalho em suas vidas. Nesta perspectiva, alguns processos e produções abaixo indicados podem ser tomados como possíveis elementos de análise e, também, de abordagem/intervenção por meio da gestão em saúde. 1 A dinâmica prazer-sofrimento no trabalho: a análise da relação entre prazer e sofrimento no trabalho e das estratégias de defesa dos trabalhadores contra o sofrimento no trabalho (Dejours, 2004, 1999) revela importantes condicionantes das possibilidades e, também, dos limites do cuidado. O trabalho em saúde apresenta muitas fontes de sofrimento (Pitta, 1999; Silva, 1994). A especificidade de alguns desses processos e suas consequências sobre a qualidade do cuidado foram estudadas em um hospital de emergência no Rio de Janeiro (Sá, 2005). Ali se destacam, entre outras fontes de sofrimento, a pressão da demanda e a pressão para trabalhar mal; as angústias ante a possibilidade de não identificar e intervir a tempo nos casos graves e de risco de morte; a violência, sob a forma de mortes e corpos mutilados pela “guerra” urbana e, também, por meio do ataque da população. Este sofrimento é vivenciado e se manifesta de diferentes modos, no conjunto de trabalhadores, incluindo tanto quadros já conformados como de “doenças profissionais”, como formas difusas de malestar e de expressão de uma demanda significativa por reconhecimento, escuta e cuidado. Do mesmo modo, são várias as defesas individuais e coletivas buscadas pelos trabalhadores para o sofrimento (Sá, 2005), a exemplo das brincadeiras, da negação da situação adversa, da apatia ou indiferença, de certos modos ou rotinas de organização do trabalho, geralmente sob a forma dos jeitinhos/”transgressões” ou quebra-galhos”, do zelo (Dejours, 1999) ou, mesmo, a idealização do trabalho. As estratégias coletivas de defesa contra o sofrimento no trabalho têm um papel paradoxal (Dejours, 1999). Estas não têm apenas um impacto no funcionamento psíquico singular, evitando que os trabalhadores enlouqueçam a despeito das pressões que enfrentam, mas têm um papel essencial na própria estruturação dos coletivos de trabalho, na sua coesão. Por outro lado, essas defesas também “[...] podem funcionar como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer. Além disso, permitem às vezes tornar tolerável o sofrimento ético [experimentado pelo sujeito por infligir a outrem um sofrimento por causa de seu trabalho] e não mais apenas psíquico” (Dejours, 1999, p.36). Um outro elemento de análise e intervenção fundamental na relação prazer-sofrimento no trabalho diz respeito à dinâmica do reconhecimento. A possibilidade de transformação do sofrimento em prazer no trabalho passa pelo reconhecimento. Aqui, a gestão, o modo de se fazer a gestão, tem muitas possibilidades de intervenção. Segundo Dejours (2004), o reconhecimento no campo do trabalho exige uma formação da ordem do coletivo – coletivo, equipe ou comunidade de filiação, e é compreendido em dois sentidos: reconhecimento como gratidão pelas contribuições proporcionadas pelos trabalhadores no ajustamento da organização do trabalho; reconhecimento como conhecimento, constatação, revelação das contribuições dos trabalhadores à organização, sem as quais a organização do trabalho prescrito não chegaria a bom termo. 2 O imaginário (Giust-Desprairies,2002; Enriquez,1997), que aqui defino como imagens, metáforas, fantasias, modos de representação psíquica compartilhados pelos profissionais sobre o serviço de saúde, sobre o trabalho e sobre o outro (paciente/população atendida). Examinar, explorar, poder discutir as imagens/representações e metáforas que circulam nos serviços de saúde sobre o serviço, o trabalho, ou a população atendida pode ajudar a identificar e compreender os tipos de vínculo existentes entre os trabalhadores, entre estes e os serviços, e entre trabalhadores de 658

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5 Considerando a opção de tradução na Standard Edition de trieb por instinct , mantida na edição brasileira (GarciaRoza, 1983), cabe aqui entender pulsão sexual ou “investimento sexual”, este último presente em Laplanche e Pontalis (1986) e em Roudisnesco e Plon (1998) no verbete “identificação”.

artigos

saúde e a população. Tais produções imaginárias cumprem funções específicas no psiquismo dos trabalhadores e produzem, igualmente, efeitos (positivos ou negativos) sobre a qualidade do cuidado. Assim, por exemplo, imagens que associam a organização à “casa”, à “família”, a uma “escola” (Sá, 2005) podem estar atendendo a demandas (psíquicas) dos trabalhadores de proteção, de amparo, de potência, diante de uma realidade tão adversa em termos de condições materiais e tecnológicas, ou ainda, num contexto de baixa cooperação e responsabilização e de precariedade das relações de trabalho, podem estar alimentando a ilusão da “doçura comunitária”, da cooperação idealizada (Sá, 2005). Um outro trabalho (Sá et al., 2008) demonstra que a utilização generalizada, pelos trabalhadores de um hospital, da categoria “carência” para representar a população parece exercer uma função psíquica de encobrimento da violência simbólica à qual a população é cotidianamente submetida naquele serviço de saúde. Tal encobrimento, produto de uma aliança inconsciente (Kaës, 1997) entre os trabalhadores, teria a função de poupá-los do reconhecimento dessa violência. Em outro exemplo, Azevedo et al. (2007) destacam, em estudo com diretores de hospitais públicos, algumas funções cumpridas pelo imaginário na conformação de determinadas modalidades de prática gerencial. 3 Os processos de identificação Cuidar pressupõe olhar o outro, um olhar sobre o outro. A disposição para olhar o outro (e a possibilidade de reconhecer, no outro e em seu sofrimento, algo de si mesmo) não se distribui uniformemente entre os diversos trabalhadores de saúde de um mesmo serviço e tampouco se manifesta de um mesmo modo para um mesmo sujeito, a cada dia e diante de cada caso. Tal disposição depende, em grande medida, do processo de identificação que se estabelece entre o trabalhador e o sujeito de quem deve cuidar, a quem deve assistir. Trata-se de um processo de “mão dupla”, isto é, que se dá na/e pela intersubjetividade. A formulação freudiana do conceito de identificação, o define como “[...] a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1976, p.133), processo central por meio do qual o sujeito - produto de múltiplas identificações - se constitui e se transforma (Roudinesco, Plon, 1998; Laplanche, Pontalis, 1986). No que se refere ao cuidado em saúde, julgo importante investigar a identificação como um processo que “[...] pode surgir com a percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto sexual5” (Freud, 1976, p.136), ou como “[...] produto da ‘capacidade ou [da] vontade de colocar-se numa situação idêntica’ à do outro ou dos outros” (Roudisnesco, Plon, 1998, p.364). Em grande parte dos serviços públicos de saúde no Brasil, onde a precariedade das vidas e o desamparo da população toma, frequentemente, a forma de sujeira, dos maus-tratos, da fome, da feiura e, às vezes, da agressividade (Sá et al., 2008; Sá, 2005), encontram-se extremamente reduzidas as margens para o desenvolvimento de processos de identificação positivos, por parte dos trabalhadores para com os pacientes. O que predomina é a apatia e a indiferença (por vezes, uma estranheza radical) em relação ao outro (Sá et al., 2008; Sá, 2005). No entanto, a despeito do peso desses processos, alguns olhares e cuidados ainda são possíveis. E aqui a identificação se coloca como processo central tanto para a possibilidade de percepção do sofrimento alheio, como para a mobilização contra o mesmo. Segundo Dejours (1999a), a percepção do sofrimento alheio não diz respeito apenas a um processo cognitivo. Implica, também, uma participação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“pática” do sujeito que percebe, para dar origem a uma reação contra o mesmo. A mobilização contra o sofrimento depende, portanto, não apenas da inteligibilidade do drama vivido pela vítima, mas também da comoção das testemunhas, isto é, dos meios empregados para a produção do sofrimento nas testemunhas, lhes despertando compaixão (Dejours, 1999a). Esta compreensão abre algumas perspectivas interessantes para refletirmos sobre as estratégias pedagógicas de formação e educação continuada, assim como de supervisão e gestão das equipes de saúde. 4 Os processos grupais Por fim, embora os limites do presente artigo não permitam um maior desenvolvimento deste ponto, cabe ressaltar que todos os processos acima destacados são produzidos nos - e podem ser apreendidos e abordados por meio dos - processos grupais. Os grupos são uma importante instância de análise e intervenção das organizações (Enriquez, 1997) e devem ser considerados para além de suas fronteiras formais ou dos processos racionais e dos objetivos que justificam sua criação. As equipes, os grupos de trabalho, os coletivos ou instâncias colegiadas são também dispositivos de expressão (e podem ser, também, dispositivos de encaminhamento, por intermédio da gestão) dos processos intersubjetivos inconscientes (Kaës, 1989), das dimensões imaginária e simbólica que atravessam as organizações e produzem importantes efeitos na qualidade do trabalho ali produzido.

Considerações finais ou Quíron e a busca de outros modos de produzir a gestão (do cuidado) em saúde Conta a lenda que a arte de curar foi ensinada por Apolo ao centauro Quíron. Este, por sua vez, a transmitiu a Esculápio, o deus da medicina. Com Quíron, Esculápio aprendeu a praticar a cura pelas ervas. Entretanto, Quíron tinha uma ferida que jamais cicatrizava: ele vivia curando os outros mas estava sempre doente, sempre sofrendo, e por isso era capaz de compreender os sofrimentos daqueles a quem tratava. (São Paulo, 2002, p.20)

O mito grego do “curador ferido” é uma interessante e sábia alegoria do cuidado e dos processos nele envolvidos. Com ela, podemos vislumbrar a indicação de alguns possíveis caminhos para o enfretamento, no âmbito da gestão, do imenso desafio que é a mudança das práticas de saúde orientada pelos valores de fraternidade, solidariedade e cuidado com o outro. Um desses caminhos se faz justamente trazendo o cuidado para o centro da gestão em saúde, o que compreende duas perspectivas. Uma delas diz respeito à garantia do cuidado com a vida no modo de produzir o cuidado em saúde. Tal perspectiva significa, sobretudo, ter, como preocupação central, a garantia das condições materiais, tecnológicas, humanas e organizacionais necessárias à escuta e ao acolhimento das demandas por cuidado que os sujeitos trazem aos serviços de saúde, bem como à eliminação ou (quando isto não for tecnicamente possível) à redução ao mínimo de seus sofrimentos. A outra perspectiva diz respeito à garantia de cuidado com o outro no modo de produzir a gestão em saúde. Tal perspectiva significa trazer para o centro das preocupações da gestão em saúde os processos intersubjetivos presentes nas organizações de saúde. Não se trata de desviar o olhar dos temas e problemas tradicionalmente tratados pela gestão, mas iluminá-los a partir de lentes capazes de focalizar os efeitos desses processos sobre a organização e, particularmente, sobre o trabalho em saúde, sobre a capacidade de autonomia e de responsabilidade dos trabalhadores, e, consequentemente, de cooperação e construção coletiva. Mudanças nos processos organizacionais envolvem a conjunção entre a história dos grupos/ coletividades e a dos indivíduos que os integram. O espaço dos serviços de saúde não é só um espaço material, normativo e político, mas um espaço interpsíquico: o modo como está organizado este universo simbólico e imaginário compartilhado pelos sujeitos nos serviços condiciona sua capacidade de escuta e resposta às demandas da população, bem como as possibilidades de mudança das práticas de saúde.

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Azevedo et al. (2007), em analogia à leitura de Merhy (2002) sobre a natureza do trabalho em saúde, tratam a gestão e o trabalho gerencial como “trabalho vivo em ato”, que se realiza entre sujeitos. Para as autoras, o desencadeamento de processos de mudança pressupõe o favorecimento da maior circulação da palavra e autonomia dos sujeitos, e a busca de novos sentidos para o trabalho que possibilitem abrir brechas no imaginário organizacional dominante. Trata-se, portanto, de buscar outros modos de se fazer gestão em saúde. Na perspectiva clínica psicossociológica (Giust-Desprairies, 2001), trata-se de desenvolver capacidade de escuta (e de resposta ou encaminhamento) do sofrimento (não só dos pacientes, mas igualmente dos trabalhadores/gestores) e das demandas por sentido que atravessam a vida organizacional. Trabalhar na compreensão das lógicas internas das pessoas e dos grupos, em suas ligações com as lógicas internas das organizações, implica necessariamente levar em conta os componentes subjetivos. Portanto, a questão do sentido não diz respeito somente ao privado ou individual, ela também se refere ao social. (Giust-Desprairies, 2001, p.231)

A responsabilidade dos gestores, para ser responsabilidade pelos gastos públicos, tem de ser, antes, responsabilidade para com o outro. A responsabilidade para com o outro é a essência do cuidado e, igualmente, a base para a solidariedade e para a cooperação. Para que possamos, no entanto, ser responsáveis para com o outro, precisamos ser responsáveis, como vimos (Kehl, 2002), pelos nossos próprios desejos e pelo nosso conflito psíquico. Precisamos ter acesso ao nosso próprio sofrimento, e aqui o Mito de Quíron pode ser uma referência tanto para os profissionais da assistência como para os gestores. Analogamente ao papel do pesquisador destacado por Lèvy (2001), penso que a gestão deva se constituir num trabalho de provocação, por intermédio do qual o gestor provoca, por sua presença e por suas palavras, os trabalhadores a falarem e a discutirem a respeito de suas experiências ou daquilo que elas possam evocar ou significar para eles. Um trabalho contra o empobrecimento, denunciado por Birman (2003), do espaço social pela redução do discurso à sua dimensão informacional/instrumental, em detrimento da metáfora, da capacidade de simbolização. Ou ainda, acredito, um trabalho, sempre provisório, de mediação. Mediação entre as lógicas subjetivas, grupais, organizacionais. Mediação entre dor e sofrimento - entendida, com Birman (2003), a primeira como uma experiência solipsista, onde o sujeito dobra-se sobre si mesmo, encerrado nos murmúrios do negacionismo impotente, e a segunda como uma experiência alteritária, que possibilita a busca do outro, dirigindo-lhe um apelo, uma demanda, ou lançando o sujeito no mundo intersubjetivo do trabalho (Dejours, 1999) e da fraternidade e, consequentemente, na possibilidade de construção de projetos coletivos.

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SÁ, M.C. La fraternidad en cuestión: una mirada psico-sociológica al cuidado y la “humanización” de las prácticas de salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.13, supl.1, p.651-64, 2009. El presente artículo se propone discutir algunos desafíos a la producción del cuidado en salud considerando los procesos inter-subjetivos e inconscientes que lo condicionan. El planteamiento metodológico del análisis se apoya en categorías teóricas de la Psicosociología francesa, de la teoría psicoanalítica sobre los procesos inter-sujetivos/ grupales y de la Psico-dinámica del Trabajo. Los padrones de sociabilidad y los modos de subjetividad dominantes en la sociedad imponen serias limitaciones al trabajo en salud que se suman a las de orden material, tecnológica u organizativa más facilmente reconocidas. La dimensión inter-sujetiva/inconsciente del trabajo en salud produce efectos sobre la calidad de la asistencia. La especificidad del trabajo en salud y suas exigencias de trabajo psíquico se discuten examinando sus consecuencias para la calidad del cuidado. Algunas posibilidades de análisis y planteamiento de la dimensión inter-subjetiva/inconsciente del trabajo en salud se presentan y pueden contribuir para un nuevo modo de producir la gestión del cuidado en salud.

Palabras clave: Prestación de atención de salud. Subjetividad y gestión. Humanización de la atención. Recebido em 17/11/08. Aprovado em 19/06/09.

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espaço aberto

Biopolítica e produção de saúde: um outro humanismo?*

Luiz Fuganti1

O tema a ser examinado aqui é biopolítica, produção de saúde e um outro humanismo. Quando procuramos inovar nas ações, muitas vezes não nos damos conta de que elas podem permanecer reféns de velhos preconceitos, ou pior, de prejulgamentos subterrâneos, como nossos próprios modos de vida o são. Ao se naturalizarem pelo senso comum, mudanças nas práticas, e particularmente nas práticas de saúde, revelam-se finalmente apenas como mudanças de fachada. Assim, podem continuar ainda a transmitir comandos implícitos velados, que se exprimem e se traem nas capturas que colocam a vida a serviço de poderes tristes. - haveria poderes alegres? - Tudo o que é decisivo jamais se passa no campo das intenções, tampouco das boas intenções. A intencionalidade é uma mistificação de consciência que é preciso combater, sobretudo quando se fala em nome dos poderes e saberes do bem, mesmo os que se dizem porta-vozes do bem da vida! Talvez não se digam aqui coisas tão agradáveis, mas não nos preocuparemos com o provável desconforto, sob pena de descuidarmos do essencial. Tentaremos, brevemente, extrair dos modos de desejar e valorar das práticas que elegemos como urgentes e necessárias à transformação do trato com a vida humana que padece de cuidados, algumas das principais tendências que possam ajudar a esboçar o quadro em que se compõe o problema da implementação das políticas públicas de saúde do ponto de vista da humanização. Um outro humanismo. O apelo para o humanismo talvez seja um convite arriscado. Esse tom nos impõe uma questão e uma atenção ainda mais urgentes: até que ponto o cuidado mais humanizado pode, inversamente, mascarar o destrato com relação às forças mais nobres da vida? Dá-se o mesmo na oposição dos valores ”humano versus desumano” e na relação “civilização versus barbárie”, que opõe, de um lado, a civilização cultivada na lei e na linguagem como condição de paz, de liberdade e de progresso da humanidade, e, de outro, a barbárie mergulhada na tirania, com seus correlatos de violência e de escravidão envolvidos nos caprichos imprevisíveis de um déspota que governa pelo terror e pela brutalidade. Ora, o que nunca é dito é que foi o próprio poder violento das formações sociais bárbaras que inventou e modelou, ao mesmo tempo que o poder de Estado, como paradigma de organização humana, a forma da Lei que supostamente pretenderia destituir aquele poder – a lei democrática ou positiva, tendo, na verdade, apenas uma diferença de grau, e não de natureza, em relação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Conferência realizada no seminário “A Humanização do SUS em Debate”, Vitória, ES, 25 e 26 de junho de 2008. 1 Escola Nômade de Filosofia. Rua Arruda Alvim, 112, Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil. 05.410-020 fuganti@escolanomade.org

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à lei despótica. Também não se ousa dizer que o processo civilizatório (com seus Estados democráticos) é sim um modo regulador das relações de sociabilidade, mas não por isso exconjurou as relações de violência e de barbárie. Ao contrário, é sob a chancela de um modo violento de determinado homem estabelecer seu poder – o modo de ser de um homem previamente tiranizado por certo impulso e banhado em relações de poder – que empunhamos a bandeira dos direitos universais do Homem. Movido por um interesse de conservação, este homem precisa negar e/ou limitar toda a ação intensiva de outro tipo diferencial de vida. Desqualificando, em nome do ideal da lei ou da norma, toda ação (ou ideia) interessada e destituída de finalidade, em proveito da ação desinteressada – leia-se bemintencionada, isto é, conscientemente guiada pela utilidade passiva, pela justiça, pela verdade e pela bondade –, ele investe, na realidade, valores diretamente relacionados a seu próprio interesse de poder e ao interesse de conservação de uma comunidade que o sustenta, cujo impulso dominante (feito de vingança e de ódio contra tudo que é potencialmente autônomo e livremente ativo) promove certo humanismo, em nome do qual, na prática, acaba por esmagar e violar as intensidades vitais e suas multiplicidades qualitativas, forças mais sutis e mais nobres da vida. O próprio conceito de homem – se considerarmos a qualidade intrínseca aos modos de pensar, sentir e agir dominantes, implicada nos valores universais cultivados por nossos contemporâneos –, numa palavra, seu modo de desejar ou existir, é concebido por Nietzsche como um modo essencialmente reativo. Atribuir uma essência reativa ao homem não significa confundi-lo com uma forma natural invariante ou com uma substância humana genérica, mas situá-lo num processo histórico que fez emergir um modo dominante de usar as forças que o constituem, cuja qualidade de relação consigo e com o mundo (que põe sob suspeita tudo o que singulariza e afirma a diferenciação vital) compõe um tipo, uma forma de existir que se chama Homem. Essa “qualidade” investe a conservação c o m o primeiro valor, a qual se exprime nos modos de cultivar os limites do vivo. As extrações de limite determinam os usos que fazemos da identidade, da semelhança, do ideal de verdade, da objetividade universal, da subjetividade competente, do corpo eficiente, da norma constitutiva da responsabilidade moral etc. Contraímos o hábito de interpretar a diferença constitutiva de todo ser desejante como oposição, sujeita à conciliação ou à contradição, e então submetê-mo-la à mediação do julgamento que compara e que a coloca como carecedora da ordem de um modelo finalista que a integraria a um todo, legitimador e controlador do vivo. Poderia, ainda, esse cultivado sentido reativo da vida, dominante na atual forma-homem de ser, esconder-se no novo apelo humanista e continuar, portanto, mediante esse apelo, a carregar consigo todas as concessões envolvidas e mascaradas nas relações de força, de poder e de enfraquecimento da vida, que continuam compondo o homem de hoje? Nietzsche dirá que o homem torna-se efetivamente reativo quando, sob o golpe de um violento mau encontro que faz emergir o Estado bárbaro, acaba por encerrar-se na camisa de força de formações sociais derivadas, que secretam um credor como ideal superior (instauração de uma referência exterior e superior à vida) e princípio organizador de sociedades dessa espécie, segundo uma dívida de existência imputada a toda vida carente de ordem que a realize. Ideal credor e creditador em torno do qual se legitima toda ordem que salva. Seja a referência a um Deus, a um Estado, a uma lei, seja a referência a algo eminente ou a qualquer instância estabelecida como transcendente à natureza, o que importa é o efeito de desqualificação, de falta, de dependência, de regulação e de obediência imposto à vida, condenada a tornar-se função de outro ideal, e a sustentar e desenvolver saberes e poderes nele implícitos, pois que assim se pode conservar e partilhar das benesses do credor, mesmo que custe a essa vida seu rebaixamento aos mais banais e ordinários estados de existência. Numa palavra, o princípio de decadência ou de produção de doença emerge com a inversão do valor das qualidades de forças que dominam os devires constitutivos do homem, isto é, quando acontece um rebaixamento dos modos de vida no homem. As forças de conservação tornam-se dominantes em relação às forças de criação ao mesmo tempo que a vida não só é conduzida a estados vizinhos de zero, de intensidade zero, como também é coagida a investi-los. É assim que o homem passa a valorizar mais as forças de conservação do que as forças de criação. Torna-se então reativo, desorientado, doente! Evidentemente, por ser a visão de um plano existencial, essa perspectiva exprime a dimensão essencial das modalidades de existência. Vamos problematizar esse horizonte nessa medida e examinar o que se entende por humanismo. 668

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Sabemos muito bem que a desumanidade, o destrato com a vida do homem é algo abominável. Ninguém diria que ser desumano é uma prática a ser cultivada. Ora, uma coisa é a desumanidade, o destrato, o descuido, e outra, é o inumano, que é uma dimensão necessariamente constitutiva do homem, extremamente rica e, no entanto, tão pouco explorada! Se ele é constituído delas, então é necessário que o homem também as cultive, sob pena de fraudar e mutilar a si mesmo. Não somos feitos apenas de uma forma humana, nem sequer somos feitos de forma. Em nós, como em tudo, a forma é efeito do encontro de forças. Essencialmente, somos compostos de forças. Há forças que singularmente criam o modo humano de ser. Se mudássemos o modo de relacionar as forças do homem, forças de imaginar, de lembrar, de perceber, de agir, de pensar, de acreditar, enfim, de desejar, poderia aparecer um novo humanismo? Se as forças que inventam singularmente o modo humano de ser se banhassem na afirmação imediata dos processos diferenciais que criam e sustentam a vida, um modo afirmativo no modo humano de ser poderia emergir? E se se colocasse em marcha um modo ativo e criativo, onde não haveria lugar para a falta do ponto de vista do desejo no homem? Não sabemos até que ponto o homem conhece esse desejo sem falta e sem dependência. Se não conhece, deveria inventá-lo! Enquanto esse acontecimento não se produz nele, permanece refém de práticas piedosas. Penso e sinto que a piedade é o veneno maior. Ah, a piedade, a compaixão! Nossas velhas conhecidas fórmulas de travestir o ódio sob uma fórmula de amor, para melhor disfarçar nossa vontade de poder. Piedade e compaixão, constitutivas de nossa humanidade, tão pouco conhecidas como verdadeiros venenos! Por que não ousamos, não temos a coragem de encará-las realmente como venenos? O que a vida ganha efetivamente com isso? Não seria esse modo de sentir uma desistência? Não seria a compaixão a pior forma de crueldade? Não seria, então, cada vez mais urgente desconstruir os modos compassivos de ser em nós? Não seria esse o cuidado maior para com as forças constituintes de uma outra humanidade em nós? As forças que singularizam o homem compõem uma maneira humana de ser, mas ele também é atravessado por forças animais, vegetais, minerais, por forças moleculares que fazem a riqueza, a abertura da vida. Se não as cultivarmos, já que são tanto mais desinvestidas quanto mais enfraquecida a sociedade se torna, o estrago irremediável em nossos porões inconscientes será inevitável. No entanto, é curioso constatar que, do ponto de vista das relações de sociabilidade que tais forças colocam em variação, simplesmente os homens não as suportam. Muitas vezes se diagnosticam como doença zonas de experiência povoadas de elementos inauditos, desqualificando-as. Se causam estranhamento ao homem normal, é porque põem sua atual forma em variações, cujos efeitos imprevisíveis não se deixam catalogar nem monitorar, pondo em xeque a norma do humano. Frequentemente padecemos dessas forças. Pois as tememos! Desse modo, não aprendemos a lidar com elas, tampouco inventamos jeitos novos de nos apropriarmos de sua fonte para fazermos delas realidades aliadas que preencheriam nossa capacidade de existir. Só assim poderiam fazer sentido como potencializadoras de nossa diferença intensiva no processo de singularização que se instala em nós a partir dos encontros que fazemos com tais forças. Só assim poderiam tornar-se matéria de criação para novas maneiras de sentir, de agir e de pensar. Na medida mesma da limitação de nossa capacidade de existir, nos apressamos em exercer piedosamente uma espécie de redução de danos em relação às “perturbações” que atravessam as zonas desconhecidas do humano e em promover um cuidado excessivamente apressado, isto é, destratá-las! Pois aqui haveria um destratamento, um desumanismo em relação às forças não humanas do homem. Outra coisa, complementar e paralela a essa maneira depreciativa de se relacionar com o estranho, seria servirmo-nos de uma visão e de um gosto humanistas para dizer: toda vida merece cuidado, toda vida merece bom trato. Novamente caímos numa arapuca: a arapuca da universalidade dos valores. É como se cuidar fosse um verbo que participasse incondicionalmente do bem universal, que gozasse da universalidade dos valores mais caros ao homem. Temos ainda outros valores que nos são especialmente caros expressos em verbos como: integralizar, atender, acessar, humanizar. Um verbo exprime uma ação e a ação tem não só um sentido, ela tem um motor ! Esse motor qualifica o valor desse sentido. O que nos move quando queremos cuidar? Dar saúde a todos, dar acesso a todos? Democratizar o acesso à saúde? Valores universais, todos têm direito a isso e a aquilo. Habituamo-nos a achar que os valores universais do homem são 669


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inquestionáveis, portanto, a vê-los como solução. Mas investir em valores universais é sintomático. O valor universal é uma maneira de falsificar a realidade. Em nome dos valores universais cometeram-se as piores atrocidades. Nunca Bush diria que agiu em nome de parcialidades malignas, nem mesmo Hitler o disse. Sabemos que há um apelo universalizante – justificador das práticas e pensamentos mais torpes – a nomes como os de Deus, do bem, da lei, e como os da vida, da diferença, da multiplicidade, da democracia, do humanismo, ou mais cinicamente, apelo a ideais como os de Nietzsche, Espinosa, Deleuze, Guattari, Foucault... Portanto, não fazemos nada de bom, nobre, afirmativo, real e necessário enquanto fazemos ou pensamos algo em nome de. A linguagem não é neutra e, muito menos, o pensamento é feito de valores universais. O que nos move na vontade de produzir cuidado? Nenhum poder – raros membros da esquerda atentam para isso – deseja excluir absolutamente. Só exclui quando não tem opção. O poder opera incluindo. Só o poder mais tosco, caricato, deseja excluir. Todo poder oscila, alguns se travestem mais, se tornam mais refinados, e inteligentemente criam políticas de inclusão; esta prática é certamente algo extremamente interessante para um poder que quer crescer. E algum poder não quer crescer? E nós, queremos também incluir? Mas incluir o que, em que e para quê? Quem em nós quer ser incluído e incluído em quê? O que acontece com a perspectiva de autonomia dessa vida ao ser incluída? Toda política que se destina à saúde, a dar saúde, a atender a um modo de vida de um paciente - e, no entanto, não investe em condições que tornam tal paciente médico de si mesmo, nem investe e sustenta em seu horizonte futuro uma vontade de, no limite, desaparecer, se tornar desnecessária jamais rompe com a piedade, com as velhas formas de poder. Segundo Foucault, o poder pastoral busca sempre cuidar de cada ovelhinha do rebanho para que ela permaneça em estado de demanda de uma instância que não lhe pertence. A ovelha precisa do pastor, precisa da referência. Existiria um rebanho humano? Seria o que chamamos de povo? Seria um tal povo que precisaria do SUS, da saúde, do ministério, do governo? Sim, é muito interessante, é muito necessário. A vida anda numa condição muito complicada. Evidentemente, sempre que se tem a ocasião, a oportunidade, o desejo de investir numa qualificação da vida, isso pode fazer bem para a vida em geral, para a sociedade... Ora, justamente o que questionamos é a existência de uma vida em geral. Então a questão torna-se mais sutil: que vida cultivamos ao investir numa tal qualificação? A vida qualificada ativamente já em nós? Se não, se não fazemos a lição de casa, como levar saúde para outro? O que é saúde? Não há saúde numa vida dependente! Toda vida dependente é essencialmente doente. Não há essência do mal, nem essência da doença, mas um modo enfraquecedor que pode ser cultivado, que se compadece na impotência fazendo o poder crescer, inclusive o poder dos humanistas e seus direitos, dos moralistas e sua lei, dos racionalistas e sua verdade, dos idealistas e seu bem, dos juízes e sua justiça compensatória. Há várias formas de poder. Há o poder bom? Não precisaríamos distinguir antes entre poder e potência? Todo poder não pressupõe a impotência? A biopolítica, uma espécie de comando da vida, não implicaria uma diferença necessária àqueles que realmente se preocupam com a dimensão ética? Uma ética além do código, como potência de existir? Não haveria um biopoder radicalmente diferente de uma biopotência? Não deveríamos apreender o que comanda na vida? Em qual vida? Cultivamos a vida reativa em nós? Queremos dar saúde à vida reativa? Queremos dar saúde e vida longa à vontade que se nega ao negar, que se arrasta e prolifera modos tristes de existir? Queremos que esse homem produzido essencialmente em sua forma reativa se conserve? Não é em nome disso que se fala em investir nos valores universais do homem? O homem tem direito, mas quem no homem tem direito? Quem em nós tem direito? É a nossa vida covarde, fraca, doente que tem direito ao cuidado? O cuidado não seria prioritariamente fazer com que a vida se torne potente, forte, criativa, inventiva, ativa, que goze realmente, produza o gozo alegre como consumo de intensidades livres sem as quais não haveria transmutação do desejo nem saúde em ato? O homem chegou a uma condição tal que não acredita mais nisso? Acredita que a existência é essencialmente faltosa, sinônimo de imperfeição ou que a dor e o sofrimento não têm nenhum sentido alegre de ser? Desistiu de si mesmo? Fomos piedosamente modernos com nosso modo moderno de ser, no século XX? Continuaremos piedosos pós-modernos neste século XXI, que se desenha como século da inclusão, do pertencimento, do empoderamento, da pró-atividade? Ou já sentimos a urgência 670

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necessária de ultrapassarmos de fato a piedade que se traveste em mil cores? Atrás de toda piedade não se esconde o amor pela fraqueza? E no amor pela fraqueza não se esconde um ódio e uma secreta inveja à vida realmente potente e autônoma? Atrás do amor pela fraqueza não se esconde uma vontade de poder? Quem em nós ama o que o u quem no outro? Quem em nós é solidário com o que o u quem no outro? Essas questões são essenciais, pois os valores universais e as palavras genéricas são maneiras de falsificar a realidade. Não se trata de dizer viva a diferença! Isso não bastaria. Tampouco contentar-se com um tolerar a diferença. Mas para que isso serviria? No filme Dog Ville, um filósofo utilitarista ensina sua comunidade tacanha a tolerar a mulher estrangeira, por trazer uma diferença que, em vez de arruiná-los, poderia lhes servir. A diferença assim tolerada é tornada útil, meio de poder. Mas a estrangeira era mesmo diferente? Diferente, em sua piedade pelos desvalidos, da arrogância tirânica de seu pai ou dos modos mais explícitos de poder? Quando falamos da diferença, compreendemos realmente qual é a natureza da própria diferença? Como gostamos de confundi-la com a identidade de um indivíduo, de um grupo, de um movimento, de uma minoria, até de um povo! Mas diferença e identidade jamais coincidem! Toleramos a diferença ou realmente gostamos da diferença? Algo em nós goza com a diferença, investe ativamente, se alegra ao diferenciar na vida? Fazemos disso um modo de vida? Não basta dizer viva a diferença, viva a multiplicidade. É preciso vivê-las, criar esse modo de viver por intermédio até das coisas mais simples, mais banalizadas. Se não temos o horizonte da autonomia, não moral, mas ética, uma autonomia real, potente, em que a vida se torne novamente capaz de criar as próprias condições de existência, se não cuidamos assim da vida, nos tornamos instrumento de expansão de um novo tipo de biopoder, talvez mais sórdido, hipócrita e inconfessável em suas razões do que aquele que combatemos. Um poder normatizador cuja justiça enquadra a diferença real entre a falta e o excesso, entre a violência e a deficiência, para submetê-la ao padrão da média. Mas como o domínio de um metro padrão não seria o domínio daquilo que há de mais medíocre na vida humana? Eis a aliança desastrosa para o futuro da humanidade: a de um poder cuja justiça se alimenta da vida tornada fraca com a vida tornada fraca que, sem esse poder, sucumbiria. Poder e vidas fracas unidos numa santa aliança, num só poder de contágio das paixões tristes e de continuidade da morte em vida ou dos modos microfascistas de ser. A esse pacto para combater os supostos excessos da diferença chamam justiça! A primeira instituição da violência é a própria justiça. A justiça atual, fundada justamente no humanismo, nos valores universais do homem, como se subtrairia a sua própria mentira constitutiva, ao seu alimento mais venenoso, a vingança? Não seria a justiça uma máquina de garantia dos modos mais reativos de viver? Não estaria ela então a serviço do mais baixo grau passional, promovendo modos de vida os mais servis até hoje atingidos pelo homem? É o que assistimos quando ela sistematicamente projeta limites e introjeta normas. Contraídos na demanda contínua de sobrevivencia dos níveis mais humildes do humano, temperados na impotência da vida fraca, ela arremessa-os arrogantemente contra os modos ativos e intensivos de viver. Jogar a vida contra a vida, eis o seu jogo. Inocular a discórdia, a desconfiança! Injetar a contradição no coração do desejo! Sempre cuidamos melhor quando tratamos as forças reais de frente, sem mediação, quando não buscamos subterfúgios ou intermediários. A presença de mediação autorizada testemunha a desqualificação de nossa capacidade de produzir escolha e afirmar diferenças. O apelo a juízes que tomam para si a função de atribuir ou destituir valor a algo ou a alguém, entrega o incomparável da vida à comparação pela média - mediocridade estatística -, mutila, desqualifica e rotula o que é singular por essência sob a tutela de um modelo artificial, universalizante só por contingência. Modelo secretado por um motor, motivo vil tornado significante por um modo de desejar dominante de uma época, que se exprime nesse horizonte significante, supostamente neutro como valor porque separado e equidistante daquilo que põe em jogo. Para recobrar uma postura ativa que nos torne dignos do que nos acontece e ainda mais livres e fortes por aquilo que nos acontece, sem precisar julgar o acontecimento pelo que lhe falta, é fundamental espreitar nas fronteiras das relações aquilo que se abre e acolhe forças ainda inauditas. Forças insuspeitadas e disponíveis, que temos e que sempre estiveram aí a nossa espera com seus perigosos sins, nos fazendo sinais e convites, mas que também sempre acabavam silenciadas pelos nossos tão badalados princípios de identidade e de realidade, que temerosamente delas nos protegiam. 671


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Forças desconhecidas das consciências de senso comum. E temos muitas. Não precisamos agir piedosamente contemplando a fraqueza nem demandar cuidados diante do que não se pode conservar sem rebaixar a vida. Para que tamanho sacrifício, na empresa da conservação, de tudo o que precisa da tristeza para viver? Nietzsche, na mais nobre interpretação frente à decadência da existência, nos provoca dizendo que aquilo que pode ser destruído, merece sê-lo. Podemos nos relacionar com aquilo que não pode ser destruído? Podemos conquistar essa capacidade, essa grande saúde? Isso é um cuidado com a produção de eternidade na existência! Somos capazes disso? Talvez. E, no entanto, torna-se cada vez mais necessário e urgente que sejamos! Na medida em que deixamos que as forças de conservação nos dominem, é inevitável que nosso modo de pensar se torne dialético e piedoso. Nietzsche diagnostica, no coração da dialética moderna, o falseamento de todo pensamento afirmativo, do movimento diferencial do corpo, da atividade criadora do desejo, da matéria intensiva das forças e o consequente esmagamento das diferenças. Vê na dialética a ideologia própria do ressentimento. A dialética valoriza, igualmente, a afirmação e a negação, o que já é um grande erro, mas não sem covardemente tornar a negação dominante para opô-la ao acontecimento imediato da diferenciação criativa da vida. Ela transforma toda diferença em oposição. Sem essa distorção desqualificadora nenhum sistema de mediação do julgamento resistiria. Não há oposição entre forças ativas e forças reativas, entre as forças de criação e as forças de conservação, exceto sob o domínio do modo reativo de viver. Há uma dominância! O que deve ser dominante em nós? É uma questão de primeira ordem, condição da nobreza e da saúde dos modos de existir. Deixamos que as forças de conservação sejam dominantes. E é então que investimos a dialética como um grande pathos que faz naufragar o pensamento no mar da contradição e da conciliação. Torna-o refém de uma moral legitimadora e reparadora. É quando o limite - mera função reativa - é tornado princípio de desejo, isto é, quando o desejo se reduz a um esforço de conservação, que o pensamento acaba projetando o limite daquela sobre a força de criação, fazendo desta uma oposição virtual, instaurando a condição de dicotomização da vida. Então, o pensamento elege a exclusão como operador privilegiado de seleção prática. Mas na realidade o que há são sempre coexistências, coordenações, nunca oposições. Há, no limite, sempre uma valoração, aquela de um ponto de vista do que a vida pode suportar ou se tornar, pelas condições que ela cria ou que lhe são impostas, mas que sempre necessariamente a preenchem. A ideia de que a existência necessariamente é carente oculta-se onde as forças de conservação são dominantes. Não há vida separada daquilo que pode na existência, que seja capaz, enquanto tal, de apreender a perfeição da própria existência. Mesmo e sobretudo quando reduzida a um preenchimento com afetos reativos ou passionais, sejam paixões tristes e seus sofrimento que adoecem, dor por falta, sejam paixões alegres, pelo prazer que engrandece, prazer por enchimento. São estes afetos que simultaneamente preenchem e separam o desejo ou a potência da capacidade ativa de existir. Tornar-se capaz de extrair, do imediato de cada acontecimento da existência, uma razão necessária, um ato cuja perspectiva potencializa essencialmente a vida aprendiz em variação continua, é conquistar a ótica sob a qual, como já ensinava Spinoza, a realidade da existência é idêntica à perfeição. Não somente nas melhores, mas também nas piores relações há um ponto de vista sob o qual a realidade é necessariamente perfeita. Esse ponto de vista é aquele gerado no seio de um ser comum. Um plano comum de imanência - causa de si e razão de todo encontro, causa imanente e condição necessária de tudo o que podemos chamar de real. Para Spinoza, o ser comum é necessário em qualquer relação, inclusive naquelas que trazem o mal, a doença, a tirania, o colonialismo, a morte. Mesmo em uma relação em que me torno pior, até aí há algo de necessariamente comum. Um meio comum extremo, acontecimento de todo acontecimento, sem o qual não haveria nem relação nem encontro. Não comum naquilo que pode me fazer mal ou me fazer adoecer, mas é por meio de um ser comum que toco e sou tocado, que afeto e sou afetado, de bom ou de mau jeito, enfim, que posso me tornar cúmplice. O verdadeiro problema do homem está em um modo de viver que o torna cúmplice daquilo que supostamente ele combate ou quer se libertar, cúmplice do poder que o captura. Desconstruir a cumplicidade em nós é essencial. A psicanálise, por muito tempo, confundiu culpa de existência com cumplicidade nos modos de existência. Chegará o dia em que a triste ladainha psicanalítica soará como comédia. E em vez de morrermos de culpa ou de depressão, morreremos de tanto rir! Quão importante 672

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eram todos os egos sequiosos de prazer e liberdade e suas frustrações cotidianas quando desmascarouse a cumplicidade que os transbordava! Talvez só então entenda-se definitivamente o fator culpa e o fator falta como fatores constitutivos do humano, mas de um humano e de um humanismo essencialmente reativos. Nenhum desejo real ou que se tome pelo que pode realmente, sem muletas ou tutelas, se constitui pela falta ou pela culpa. As psicanálises, e outros psys que não ultrapassam a dicotomia “cultura versus natureza”; as metafísicas da estrutura que não ultrapassam a velha dicotomia “inteligência versus instinto”, disfarçando seu mal-entendido sobre a natureza da memória e da diferença em trocas simbólicas que operam no seio de outra querida mania de dicotomia, ainda mais humana e moderna: “pulsões versus lei”; as filosofias que confundem memória com origem ou identidade, ligando os processos de diferenciação com o esquecimento da origem e tomando o devir como a saída, queda ou corrupção do Ser pelo tempo e pelo movimento, e muitas outras práticas e saberes humanos acabam por inflacionar a crença no postulado comum de que o desejo só é o que é porque intrinsecamente carece de objeto cuja regra extrínseca de preenchimento ou prazer está fadada ao fracasso, à frustração, tornando o gozo impossível. E, assim, se chafurdam num obsceno e pornográfico puritanismo que reza: viva a castração que simultaneamente condena e santifica! E quando consciente e voluntariamente se quer combater modos de dependência, frequentemente manifesta-se uma sutil arrogância sob a máscara da piedade. Pratica-se, sem nenhum pudor, o seguinte contrassenso: é preciso dar autonomia a esse e a aquele, a cicrano e a beltrano, a tal ou qual setor de uma comunidade. É preciso dar autonomia ao povo! Mas autonomia não se dá, nem se tutela, se conquista! Quem em nós quer dar autonomia a um outro, e o que realmente esse que assim quer em nós? O problema da autonomia é antes, pelo contrário, o de criar atmosferas de afirmação e, com elas, modos ativos de relação que acabem por exconjurar e tornar supérflua qualquer instância garantidora de direitos ou provedora de compensações ou reparos justiceiros. Tornar autônomo é investir em modos de se distanciar não só do Estado, seja como tirano ou como pai, mas de si mesmo, de seu espelho, das demandas de pertencimento e “autoestima” promovidas por um outro em nós. Conquistar autonomia é encontrar a fonte direta, e não o patrocínio, servindo-se daquilo que nos acontece como matéria e combustível de criação e ultrapassamento - nunca de julgamento - operando uma catálise de devires compositores de encontros cujas condições confundam-se com as da afirmação das diferenças, dos acontecimentos plurifocais, dos movimentos pluridimensionais. A afirmação é o único comum que não se confunde nem com o público nem com o universal, muito menos com um pai universal, um ser genérico ou um Bem final, e mais com uma espécie de placenta cósmica sem útero, com um pedaço da qual cada um de nós constrói sua linha de devir ou de singularização, como complemento contrapontual, e não como oposição ao ser comum, como ocorre ordinariamente com nossas vidas contradizendo-se em sociedade. Ela é, antes, o meio extremo de encontro de cada singularidade impessoal, de cada força diferencial, de cada diferença de potencial, de cada devir intenso que traz sempre do seio do comum um ato necessariamente singularizante, o qual constitui a essência como potência de variar, simultaneamente como horizonte absoluto e combustível de toda modalidade vivente. O sim afirmativo é uma conquista da diferença - não uma falsa dádiva solidária do sim perene de um modelo superior de tutela que implica um não aos modos ativos imanentes de viver e que, piedosamente, resgataria e salvaria da desordem e da doença pessoas, grupos ou sociedades, na proporção de sua elevação ao puro elemento da ordem de um Ideal sem mácula, livre de interesses e de paixões. Este ponto nos remete diretamente ao problema do cuidado e suas modalidades. Há alguma virtude em dizer que o cuidado é um valor a ser cultivado e envolve um saber e uma prática essenciais do ponto de vista da qualidade das relações em sociedade. É certo, ao menos, que não caímos na banalização das políticas neoliberais com seu cântico enfadonho acerca da desnecessidade onerosa e supérflua de muitas instituições dedicadas ao cuidado ou trato com a vida de algum modo tornada dependente. O verdadeiro problema não está no dilema de cuidar ou não cuidar, cuidado mínimo ou cuidado máximo, máximo de tutela estatal para um cuidado público e geral, mínimo de estado para um cuidado privado e particular. O verdadeiro problema diz respeito à natureza ou qualidade do cuidado. Sob seu aspecto crítico, essa questão não remete a uma forma universal do cuidado, a ser entregue a forças públicas do estado ou privadas do mercado, mas a qualidade das forças que constituem essa forma que se repete e, por efeito de repetição da qualidade da relação das forças, torna-se um 673


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simulacro de forma universal. Forma universal, portanto, apenas na medida que é efeito, resultado de uma composição de elementos desejantes, constitutivos de uma realidade múltipla e heterogênea. A universalidade que se dá pela repetição é um efeito que nos induz ou engana ou que a gente investe por algum outro tipo de interesse. Por fim, não acredito em defesa de valores; todo valor é criado. Defender valor é investir numa referência inventada como boa, justa ou verdadeira, e opô-la ao mau, ao injusto e ao enganador. Mas por que acreditamos em oposição de valores? Não estaria aí uma forma essencialmente falsa, enganadora, injusta, malévola? Sempre que declaramos nossas sublimes e boas intenções, podemos melhor mascarar nossos desejos inconfessáveis de baixezas e malquerenças necessárias na impotência e na dependência. Como diz Nietzsche, não há vida mais injusta, mentirosa e má do que aquela dos homens justos (leia-se vingativos), verídicos (leia-se detratores das vidas livres e diferentes) e bons (leiase, daqueles que tornaram-se impotentes e fracos). Jamais dizer viva tal ou tal valor, tal ou tal bandeira, tal ou tal ideologia, bastaria para pôr a vida em devir ativo, autônomo, em perfeito movimento de liberação. Jamais a vida, por uma carta ou declaração de intenções, ultrapassaria seu oposto, aquele da crença em valores que só geram depreciação do desejo, por mais supostamente nobres e libertários que fossem. Sempre mais baixeza e servidão, numa palavra, mais dependência, acompanham os empunhadores de bandeiras. Podemos conquistar a capacidade de produzir valor e nos libertar das referências universais e das práticas políticas colonizadoras, cultivadoras de dependência às quais essas referências servem. Caso contrário, teríamos de investir na crença em instâncias que nos defenderiam de toda opressão. Alguém já disse: “não fico sossegado quando qualquer sacanagem parece ser coisa normal”. Mas só precisamos das instâncias justiceiras e reparadoras ou de certos tipos de cuidados, quando não sabemos extrair dos maus encontros, maus jeitos, acontecimentos malogrados, fazer deles presentes do destino, tesouros para guerreiros ou combatentes, a ponto de extrair matéria de criação até das piores sacanagens. Não uma nova declaração de intenções deve nos conduzir a cada mudança, mas novas maneiras de relacionar-se com o acaso, inclusive os piores e as piores sacanagens advindas da baixeza e da impotência de vidas medíocres! Vidas que só escolhem pela impotência do que não suportam no que há de ativo no vivo! Não precisamos combater o poder quando conquistamos a potência. É ele quem foge sempre impotente diante da vida vigorosamente criativa! Ele se dissipa quando fazemos a lição de casa, a lição que transmuta o corpo, o desejo e o pensamento; quando somos capazes de nos produzirmos como obra, obra como natureza, natureza como potência de acontecer e criar. O cuidado essencial, antes de tudo, é o cuidado de si, das práticas de si. Não se pode cuidar do outro sem cuidar de si. Nietzsche dirá que o amor ao próximo é um mau amor por si mesmo. Só se pode amar ao próximo de modo honesto, autêntico, generoso, fortalecedor, dadivoso à medida que nos tornamos potentes e criativos. Senão, o que temos a oferecer ao próximo? A própria miséria? Mas aqui até o que é próximo muda de natureza, pois o próximo interessante é justamente aquele que afirma a distância, distância imanente e necessária à afirmação dos tempos e movimentos próprios da diferença que nos sustenta e atravessa nossos devires. O amor ao próximo é também um desvio de si mesmo, um desespero das forças desconhecidas, temidas e malqueridas que acabam por produzir dor e dilaceramento, numa fraqueza insuportável. Na compaixão ver-se-ia, então, um amor pela fraqueza do outro, uma vontade de fugir de si refugiando-se num poder de cuidar, conquistando um poder de cuidar do outro. Talvez então o outro, no reconhecimento de seu salvador, se tornasse vítima do ser cuidado? Sufocado de tanto amor de um outro tão misericordioso, sensível às suas fraquezas. Impotência pressuposto de toda vontade de poder. Por isso mesmo não podemos confundir poder e potência: são coisas radicalmente diferentes. Não temos que dividir o poder, não. O poder deve e pode ser destruído! Ouve-se frequentemente os movimentos excluídos que querem ser incluídos, as minorias que querem ser maioria gritarem: é preciso democratizar o poder! Vamos revezar o poder! Alterná-lo! Distribuí-lo, dá-lo às mulheres, aos gays, aos negros, índios, jovens, enfim, dá-los aos sem poder para poder fazer justiça! Mas todo poder é necessariamente nocivo - seguindo um conceito rigoroso. Poder é tudo aquilo que captura e determina a vida de fora, precisando rebaixá-la para ele próprio, como vida diminuída crescer. A potência em ato, cuja atualização é imanente ao meio comum e extremo de acontecimento no qual se efetua necessariamente, cria as condições da própria existência e da

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realização das diferenças que atravessam seus devires constitutivos. Se podemos distinguir poder e potência do ponto de vista do conceito, nós que partilhamos a língua portuguesa ainda gozamos a vantagem de dispor de duas palavras distintas, derivadas do latim, para nomeá-los: os termos poder e potência. O latim distingue potestas e potentia. O francês segue o mesmo caminho...pouvoir e pouissance; já o alemão não distingue, serve-se apenas de macht, e o inglês também não, algumas línguas não distinguem... Mas sempre que uma natureza se exerce ou se efetua, algo nela necessariamente comanda. Há comando o tempo inteiro; não precisamos confundir o comando reduzindo-o ao poder. Uma coisa é um comando de potência, outra um comando de poder. Do ponto de vista da própria Natureza, o comando como potência absoluta de acontecer ou de variar é sempre diferencial e imanente à própria natureza naturante. Esse conceito de comando destitui um valor universal, caro à democracia moderna desde a Revolução Francesa: o de que todos somos iguais perante uma lei também universal, um dever ser universal nivelador das diferenças. O comando, nas democracias modernas, está sobretudo fundado na lei, lei validada igualmente para todos. Há confusão entre exercer a potência e exercer o poder. Pelo velho modo aristotélico, confundimos a potência com possibilidade. A potência não é uma possibilidade para receber forma. Não há potência que não seja em ato, sempre há um mínimo de ato que pode ser um máximo de potência, que nos abre para um movimento intrínseco de diferenciação, um processo imanente de singularização do desejo, que não tem a ver com forma, tem a ver com linha. É necessário reencontrar o plano que necessariamente comanda na natureza ou em qualquer relação. Ter a coragem de assumir um gosto nobre pelo comando - é preciso desconstruir, desmascarar o ressentimento contra qualquer tipo de comando, quando então é ao pior deles que se submete a vida! O comando que reza: tudo é igual. Uma coisa é não se querer atribuir ou destituir lugar ao comando, senão aquele da autoridade generalizada de um dever ser universal. Outra é compreender que o comando é sempre excêntrico, como motor de composição intrínseco ao próprio acontecimento. Quem comanda, em última instância, é sempre um acontecimento que faz crescer. Foucault desmistificou, em seu Vigiar e Punir, muitos mal-entendidos em relação à ideia que fazemos de poder. O comando de qualquer natureza não tem lugar central para seu exercício, senão como lugar de passagem sempre precário. Também o poder se exerce entre e sobre, e também por aqueles que o sofrem. Sobre e por meio dos corpos, do tempo, do movimento. Sobre o movimento que atravessa os corpos, sobre o tempo que atravessa o pensamento, sobre os afetos que fazem variar o desejo. Aí se exerce o poder, aí também se exerce a potência. Mas o uso que fazemos dos movimentos corpóreos, dos tempos semióticos e dos afetos que selecionam são radicalmente distintos e, num caso, exprimem modos de poder, noutro, modos de potência. Há sempre, mesmo no anarquismo mais ressentido, um comando necessário. Há sempre, mesmo que muitas vezes inacessível, algo em todo o acontecimento de existência que faz crescer a potência e afirmar a vida, do ponto de vista da própria natureza. Isso é o que é dominante, mesmo quando nem nós nem ninguém colhemos os frutos ou sentimo-nos pobres vítimas. Algo que quando o conquistamos - faz com que não peçamos licença nem demandemos autoridade. A autoridade se baseia numa violência primeira. A primeira instituição de violência é a da própria justiça, mora no coração da instituição jurídica moderna cuja forma trai sua própria cegueira. A forma, a lei e a justiça são essencialmente violentas e ignoram as singularidades, são necessariamente microfascistas apesar de dizerem-se seus antídotos, uma vez que se tomam por universais e primeiras. Mas o que essa hierarquia invertida, com seus defensores autorizados e também seus inimigos reformistas - isto é, aqueles que só querem no fundo a verdadeira justiça - não apreendem, é que o comando real não está no eu nem no tu, nem no grupo, nem no coletivo, tampouco no Estado, em nenhum lugar. O comando é sempre o da passagem entre meios, habita-a ou com ela se confunde, confunde-se com a fronteira ou com aquilo que pelas bordas da fronteira faz crescer e diferenciar potências. Um motor do acontecimento, algo inesgotável naquilo que acontece e que necessariamente diferencia as potências do corpo, do pensamento, do desejo. O comando é sempre o de uma unidade de composição entre relações singulares, que relaciona e faz transbordar uma diferença de potencial, que faz devir o próprio comando das forças que povoam todo o encontro; acontecimento sempre deslocado. O comando afirmativo das diferenças é sempre excêntrico. Do contrário, ele se torna coação de poder e determina

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a vida de fora. Necessariamente há um comando, que faz afirmar e crescer a vida, aquilo que faz a diferença diferenciar. Não há nenhuma frouxidão aqui, e sim o contrário, a única firmeza real; há necessariamente uma afirmação sem pedido de licença, uma afirmação imanente. O que faz Estamira (protagonista do documentário de título homônimo), negra, pobre, habitando o lixão, dizer o que diz sem pedir licença? Há um comando. A natureza que ela habita, que a constitui e a atravessa é esse comando. Como em Spinoza, o da natureza naturante comandando uma natureza naturada. É esse comando que deve ser cultivado, jamais o poder! Esta diferença é fundamental: a ideia de comando, e não a ideia de poder. O poder não deve ser dividido, deve ser destruído. Temos a necessidade de exercer a potência e aí, sim, há uma diferença. Não tem nada a ver com lei, que é sempre gregária ou de rebanho. São processos de singularização nômade. Spinoza, no livro II da Ética, diz que nós, homens reduzidos ao modo de conhecer pela imaginação, generalizamos, construímos ficções ou abstrações, confundimos signo, pensamento e imagem. Ora, uma coisa é a imagem, outra é o signo, e outra coisa, ainda, é o pensamento. Se as palavras são signos, não podem, sem mutilá-lo, substituir o pensamento. Isso é de primeira ordem. Pensar não é dizer ou falar. Um psicanalista lacaniano afirmou que Estamira não existiria sem Marcos Prado (diretor do documentário)... Isso é algo abismal, mas felizmente também serve para nos fazer rir!...pretensão de um discurso, de uma linguagem... um destrato em relação à potência; a petulância da lei, da estrutura se pondo no lugar da diferença. O pensamento é antes de tudo silencioso; a linguagem pode ser sua matéria de expressão, mas a expressão jamais se confunde com o expresso que nela se exprime. Uma árvore pensa, a minhoca pensa, o sol pensa... é uma ilusão que cultivamos, uma mistificação considerar que só se acessa o pensamento pela linguagem. Nosso pensamento é, antes de tudo, acontecimento, é tempo em estado puro, que, ao se diferenciar de si mesmo, registra-se, se acumula e muda de direção à medida que se diferencia e se acumula. Quando realmente pensamos, não brigamos com palavras, nem disputamos sentidos verdadeiros. Não haveria nenhum problema ou discórdia entre os homens, nenhuma disputa se, em vez de debaterem palavras, eles apreendessem o sentido como vetor do desejo que necessariamente se exprime naquilo que está sendo dito, que não é nem bom nem mau, nem verdadeiro nem falso, é sim uma direção da força que vale por aquilo que faz da vida. O sentido é uma direção da força, mas da força como afeto que faz variar a capacidade de existir do desejo ou da potência, nunca o resultado de uma relação separada, estrutural ou significante de signos. É algo que vem da força e, ao mesmo tempo, é o que pode acontecer com a força. Qual é o valor do sentido que criei? Ele leva a vida a uma afirmação, a um buraco, a uma ascendência ou a uma decadência? O valor do sentido é problemático. Ele pode ser criativo e de composição ou reativo e de conservação. Há também um sentido nobre na conservação, e a questão essencial é se se apreende o sentido, ou se se disputam palavras; não há o que disputar. Por exemplo, é nobre conservar e investir nas condições de criação e variação contínua da vida. Mas é baixo querer conservar os produtos da criação, se apegando aos valores criados. Cada coisa é uma singularidade; se nos esforçássemos e fôssemos menos flácidos de espírito e mais potentes e desejosos de apreender o pensamento e criar pensamentos, não disputaríamos. No entanto, a escolha da palavra tem a sua importância. Já se ressaltou a diferença entre poder e potência na língua portuguesa. A palavra é expressão e exprime um expresso. Se não usamos a expressão certa, o expresso não se manifesta. Há algo na linguagem que condiciona ou pode condicionar o pensamento. Isso é essencial. O cuidado com a palavra é importante, mas ela não se reduz a uma forma, nem a uma substância, é veículo de sentido. Ela é uma matéria esculpida pelo pensamento, pela potência de pensar que não é de um eu, de uma consciência, de um sujeito, nem de um coletivo. Há um mito nas esquerdas de que o coletivo é feito de uma multiplicidade de indivíduos, o que é uma tolice, gera preconceitos, faz com que a vida... perca a potência. O coletivo é sempre um coletivo de singularidades, um composto de forças, de potências, mas também multiplicidades de multiplicidades, multiplicidades de indivíduos intrinsecamente múltiplos e de seus processos individuantes. O indivíduo já é um coletivo. Não há indivíduo que não o seja. Na visão individualista pequeno-burguesa, ao contrário, o indivíduo não é essencialmente relacional...não é? Mas um indivíduo que não se relaciona não existe, é uma ficção, uma quimera. Ele se relaciona de uma maneira ou de outra, quer queira quer não. Imaginamos que somos livres porque ignoramos aquilo que nos determina 676

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ou o meio no qual estamos necessariamente acoplados, agenciados. Temos consciência do que desejamos, cremos e pensamos, mas ignoramos aquilo que nos determina a assim desejar, acreditar e pensar. Estamos necessariamente em relação. Mas o homem que põe a imaginação no lugar do pensamento traduz a relação necessária como relação de dependência. No entanto o que se passa é exatamente o contrário. À medida que você apreende o relacional na relação, encontra também a condição para conquistar a autonomia e abrir-se ao máximo para essa combinação que faz da vida potência de composição e de estilização da própria existência. Eis o essencial. O nome é matéria de expressão, veículo do pensamento, mas a linguagem é também transmissora, conforme o uso que fazemos dela, de sentenças de morte ou comandos de vida, atos implicitos não discursivos que só se realizam no discurso, que só se fazem nela. O desejo inventa nomes a todo momento. A linguagem não é algo engessado, encerrado em constantes estruturais, elementares ou relacionais; é esculpida por burburinhos, urros, gemidos, múltiplas vozes. O mais direto e imediato comandante na linguagem é o discurso indireto livre. Há muitas falas em uma fala, muitas paixões em uma paixão, muitas vozes em uma voz, como diz Deleuze. Não devemos estar sujeitos à gramática, à sintaxe, à fonologia, não há nunca linguagem fora de um uso ou de uma pragmática imanente, constitutiva de nossas territorialidades semióticas, canalizadora de fluxos. Por exemplo, a gramática diz que o singular e o plural se opõem. No entanto, o plural é necessariamente singular e o singular necessariamente plural, há uma coexistência dos dois. Mas se nos reduzimos à linguagem, caímos nesses universais e acreditamos em invariantes estruturantes, normatizadoras do humano, do humanismo linguistico. Quando investimos em constantes, queremos centralizar, criar caixas de ressonância e continuidade como parte de uma corrente transmissora e de comandos. O universal não é necessário, é sempre efeito; se desejamos uma continuidade desse efeito ou daquele - como conservar tal caminho, conservar políticas públicas que fazem a vida crescer, que afirmam a vida -, aí o problema é de produção de memória, e não de memória que representa o passado, mas de memória de futuro, memória que torna o futuro, assim como o passado, contemporâneo do presente. É fundamental saber criar memória como condição de produção de continuidades intensivas, memória como memória de futuro. É ela a condição de continuidade dos movimentos ou dos devires ativos autossustentáveis. Não há autossustentabilidade sem criação dessas linhas, essa continuidade se dá por qualidades expressivas, e não por formas representativas. As qualidades expressivas são mais linhas do que formas fechadas. O que é a forma? É sempre efeito de uma linha de variação, e a ilusão de que a forma não é linha advém da perda do elemento gerador dessa forma, que é também aquilo que a mantém e a sustenta. Uma vez que a forma envolve um efeito de semelhança e um simulacro de identidade no processo de repetição dos modos de efetuação das forças, acreditamos que ela tem uma existência em si, mas na verdade ela é sustentada por um campo de forças, por um diagrama de forças. Isso é essencial. É necessário singularizar, mas não subjetivar. Foucault emprega subjetivar, Negri emprega biopoder; prefiro empregar biopotência, fazer o contraste com biopoder, usar processo de singularização, e não produção de subjetividade, pois a produção de subjetividade geralmente coincide com a produção de assujeitamento do desejo. A produção de singularidade é importante, é uma nuance essencial porque o ato que atualiza sua potência não é uma forma, uma referência, uma finalidade a que se vai chegar. O ato que atualiza sua potência é uma condição de acontecimento, de criação das próprias condições da experiência real que atravessa necessariamente o corpo e o pensamento. Uma produção das condições que se mantêm ligadas ao movimento imediato que sustenta a vida, o corpo, ao ritmo e ao tempo imediatos que sustentam o desejo e o pensamento. Nessas condições nos mantemos sempre ligados. Investir essa manutenção, eis aí o sentido interessante que podem produzir-se por meio das forças de conservação. Conservar o quê? As condições da capacidade criativa. Isso é interessante e essencial. Se o SUS tem esse horizonte, viva o SUS. Mesmo com o objetivo de se autodestruir no tempo mais breve. De novo Nietzsche, todas as coisas boas ... acabam por se autodestruir. O que se autodestrói? Aquilo que é apenas passagem, que serve para passar. O universal também pode se autodestruir ... é apenas um modo de passar... A lei não é uma natureza em si, a lei é uma regra de passagem. Se a lei for interessante, que seja função da vida. Mas Nietzsche pergunta: de que vida? É da vida ativa? É da vida criativa? Ou é de uma vida que necessita de uma demanda exterior e faz crescer um poder sem o qual ela não sobrevive? 677


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Para finalizar, passemos à questão da rede e da produção de saúde. Escuto, em aulas que ministro, e em outras exposições etc., críticas à ideia de rede, relação do PSF, Caps, centro de saúde, centros de convivência. As reuniões sobre o assunto são as mais esvaziadas. A ideia de rede está totalmente capturada numa espécie de neoliberalismo. Ela opera uma alternância entre aparelhos ou microaparelhos de poder quando, do ponto de vista rizomático ou afetivo, deveria ser zona de passagem e de continuidades intensivas em que se operariam revezamentos, mas revezamentos de diferenciação e de aumento de potência em vez de simplesmente dizer: “olha, pega o abacaxi agora pra você porque eu vou pra praia”. Haveria que se sentir de fato o gosto pelo revezamento, pela diferenciação na alternância dos cuidados. A ideia de rede é essencial, o que se questiona é ela estar estabelecida, segmentada, uma rede de segmentarização; precisamos criar um plano de continuidade, de singularidades, não de segmentação. Não dou aula para ter alunos ou discípulos, e sim para produzir aliados, já que sou absolutamente interesseiro. Não dou aula de memória, mas criando junto, fazendo-me junto, e me faço junto atravessando o outro; não espero nada do outro, mas sinto que há uma produção de aliança e, à medida que o outro se fortalece, também me torno mais forte, por isso sou interesseiro. Na prática da saúde, se eu fosse um clínico ou algo nesse sentido, operaria da mesma maneira. Investiria numa prática clínica para que o paciente se tornasse meu aliado ou aliado da vida, de uma vida intensa. A produção de aliados é o que interessa. Há um meio, um veículo de expressão, de potencialização e de expansão de um movimento, é um meio produzido, criado no sentido de um ser comum, como zona, não do público como mediação do meio, mas do comum como o imediato do meio, não do universal se opondo ao particular, mas do comum afirmando o singular. Singularizar tanto mais quanto mais se encontra e se cria comum. As palavras são importantes, se você investe na produção de aliança ou de fortalecimento da vida, a vida responde com criação de mais realidade. Investir na vida é investir em maneiras ativas de existir. Simplesmente em modos, maneiras que dinamizam, liberam, ganham velocidade. A liberdade e a saúde são questões de velocidade. A vida flui no mais breve, no mais urgente, ela faz fugir as mediações, vai se liberando das vantagens acolhedoras. Ela vai se liberar, inclusive, da necessidade do SUS, de uma instituição cuidadora, de uma dimensão da vida que salva e liga e agrega a vida a outra dimensão onde estaria desprovida de si. A vida ligada ao que pode, pode enfim se liberar do que submete a vida a um poder das forças do fora. Essencialmente, a ideia de produção de saúde, desvinculada de uma integração do ponto de vista do poder, deve atuar diretamente nos modos de vida. Portanto, seria necessário também que as práticas de saúde abandonassem o atendimento amplo, que acolhe tudo, amplo acesso com efeito de ópio do povo, uma espécie de amortecimento, de descaso social. Deleuze fala, em relação ao desejo, de um uso dos prazeres: usa-se o prazer para descarregar o desejo. Será que não se usa a saúde para despressurizar a panela de pressão social e abafar os movimentos políticos? A saúde pode ser uma prática de amortecimento político, assim como a escola e outras mais. A medicalização da vida, a judicialização do cotidiano batem à nossa porta como potências aterradoras! Será que, ao produzirmos saúde, não estamos anestesiando, produzindo amortecimento? “Olha como o Estado te ama, olha como o SUS te ama, olha como nós cuidamos de você! Sinta-se incluído!”. Ou será que somos capazes de produzir o horizonte em que a vida se libere, cada vez brilhe mais, se afirme melhor, possa mais, em que já não disputemos potências, mas nos alegremos com o fortalecimento do outro? O homem ainda está aprendendo a se alegrar com o fortalecimento do outro, mas o fortalecimento real experimenta-o nele. Nas palavras de Nietzsche, estamos investindo numa grande saúde.

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O artigo busca problematizar em torno de iniciativas de construção de novas práticas em saúde que se querem avançadas. Inovar nas ações pode, muitas vezes, fazer com que estas mesmas ações, que se pretendem inovadoras, permaneçam reféns de préjulgamentos. As mudanças nas práticas, e particularmente nas práticas de saúde, ao se naturalizarem no senso comum, podem alterar apenas a aparência e manter a transmissão de comandos implícitos, os quais se exprimem nas capturas que colocam a vida a serviço de tristes poderes. Indica algumas tendências que podem ajudar a esboçar um quadro no qual se componha o problema em que orbita a implementação das políticas públicas de saúde do ponto de vista da humanização. Partindo da temática da biopolítica, produção de saúde e outro humanismo, coloca a questão: até que ponto o cuidado mais humanizado pode, inversamente, mascarar um destrato com relação às forças mais nobres da vida?

Palavras-chave: Biopoder. Produção de saúde. Humanismo. Biopolitics and healthcare production: another humanism? This paper seeks to pose questions regarding initiatives for constructing the desired advances towards new healthcare practices. Innovations in actions often have the effect that such actions, which are intended to be innovative, remain hostage to prejudgement. When changes in practices, and particularly in healthcare practices, are brought into ordinary use, they may only change appearances while maintaining the transmission of implicit commands that are expressed in uptake that places life at the service of the healthcare authorities. This paper indicates some trends that may help to outline a frame within which the problem of implementation of public healthcare policies from the point of view of humanization can be reconciled. Starting from the topics of biopolitics, healthcare production and other types of humanism, the question posed concerns the extent to which healthcare that is more humanized might inversely mask an affront regarding the more noble forces of life.

Keywords: Biopower. Healthcare production. Humanism. Bio-política y producción de salud: ¿otro humanismo? El artículo trata del conjunto de problemas en torno a iniciativas de construcción de nuevas prácticas en salud que se quieren avanzadas. Innovar en las acciones puede, muchas veces, hacer con que estas mismas acciones, que se pretenden innovadoras, permanezcan rehenes de prejuicios. Los cambios en las prácticas, y particularmente en las prácticas de salud, al naturalizarse en el sentido común, pueden alterar sólo la apariencia y mantener la transmisión de comandos implícitos, los cuales se expresan en las capturas que colocan la vida al servicio de tristes poderes. Indica algunas tendencias que pueden ayudar a esbozar un cuadro en el cual se componga el problema en que orbita el implemento de las políticas públicas de salud del punto de vista de la humanización. Partiendo de la temática de la bio-política, producción de salud y otro humanismo, plantea la cuestión: ¿hasta qué punto el cuidado más humanizado puede inversamente enmascarar un desprecio en relación a las fuerzas más nobles de la vida?

Palabras clave: Bio-poder. Producción de salud. Humanismo. Recebido em 22/04/09. Aprovado em 02/06/09.

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O conceito de humanização na Política Nacional de Humanização (PNH) Luiz Augusto de Paula Souza1 Vera Lúcia Ferreira Mendes2

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (Calvino, 2003, p.158)

Junho, 2008, Vitória, Seminário “A Humanização do SUS em Debate”. O chamado Coletivo PNH e pesquisadores da área da saúde, de várias partes do Brasil, reúnem-se para colocar em análise os cinco primeiros anos da Política Nacional de Humanização (PNH). Dois dias inteiros de diálogos acalorados em rodas de conversa, nas quais circularam muitas idéias e afetos: convergentes, divergentes... heterogêneos, heterogenéticos - capazes de fazer diferença em corações e mentes. Funcionamento absolutamente compatível com algo que a PNH também deseja favorecer em sua efetuação pelo país: escuta e conversa de verdade, como dispositivos que auxiliem na enunciação, no equacionamento e na solução de problemas concretos das ações em saúde, tentando interferir de maneira produtiva e democrática em serviços, em procedimentos, em rotinas, em especialidades, em sentidos e modos de relação entre usuários, profissionais e gestores. Saímos de Vitória com esta percepção e com várias questões, que as conversas deram a pensar ou fomentaram. Não seria possível tratá-las todas, por isso, recortamos um campo de continuidade, de desdobramento do diálogo em torno de uma questão em particular, cuja recorrência nos últimos anos3, bem como durante o Seminário, parece tornar razoável seu acolhimento ainda uma vez. Trata-se de questão derivada do caráter polissêmico do termo humanização, cujas acepções são variadas e, por vezes, divergentes. Este fato, desde o nascedouro da PNH, gerou e ainda gera polêmicas, em relação à pertinência do uso do termo para nomear uma política pública; e, sobretudo, em relação aos sentidos que o conceito de humanização deve assumir no escopo da política, em termos de favorecer, de potencializar a operacionalização de ações, digamos assim, humanizadoras. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Avenida Arruda Botelho, 414, apto. 92, Alto de Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil. 05.466-000 luizad@uol.com.br 2 Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, PUC-SP. 1

3 Conforme, por exemplo, Campos (2005), Benevides e Passos (2005) e Deslandes (2005).

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Antes, porém, de iniciar tal discussão, pensando alguns de seus desdobramentos na implementação da PNH, vale situar, ainda que de maneira breve, o contexto de engendramento da PNH, bem como seus marcos e definições mais gerais. No processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), e mesmo antes da constituição da PNH, em 2003, o tema da humanização, às vezes sob outras designações, aparece em vários contextos, geralmente ligado à busca de melhoria na qualidade da atenção ao usuário, e também – mais recentemente – aos trabalhadores da saúde. Pelo lado dos usuários, a reivindicação pode ser sintetizada pelo clamor de qualificação e de ampliação do acolhimento, da resolutividade e da disponibilidade dos serviços. Os trabalhadores ou parte deles, por sua vez, querem melhores condições de trabalho e de formação, para lidar satisfatoriamente com a intensidade do impacto que o enfrentamento cotidiano da doença e do sofrimento impõem, bem como para dar conta dos desafios da assistência nas perspectivas da universalidade, da integralidade e da equidade da atenção à saúde, consignadas pelo SUS. Apenas a título de exemplo, é possível lembrar que a XI Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2000, tinha como temática: “Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social”. Além disso, iniciativas como o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar, de 2000; o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento, de 2000; o Método Canguru, também de 2000; o Programa de Acreditação Hospitalar, de 2001; entre várias outras, também confirmam a presença, há algum tempo, de projetos e ações relacionados, ainda que parcialmente, à humanização da atenção à saúde na construção do SUS. No entanto, em sua maioria, essas iniciativas eram localizadas ou pontuais, e se estruturavam a partir de concepções variadas e de intenções e enfoques específicos. Mais que isso, embora certas iniciativas fossem relevantes, a fragmentação, a disparidade de perspectivas e, às vezes, a fragilidade conceitual e metodológica de determinadas ações reclamavam outras saídas para os problemas da qualidade da atenção à saúde de usuários e trabalhadores. “Os críticos às propostas humanizantes no campo da saúde denunciavam que as iniciativas em curso se reduziam, grande parte das vezes, a alterações que não chegavam efetivamente a colocar em questão os modelos de atenção e de gestão instituídos” (Benevides, Passos, 2005, p.389). Diante desse tipo de problemática, a PNH nasce como radicalização da aposta na humanização. O documento base do Ministério da Saúde sobre a Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2008) assume, entre outras diretrizes, que a Humanização deve ser vista como política que transversaliza todo sistema: das rotinas nos serviços às instâncias e estratégias de gestão, criando operações capazes de fomentar trocas solidárias, em redes multiprofissionais e interdisciplinares; implicando gestores, profissionais e usuários em processos humanizados de produção dos serviços, a partir de novas formas de pensar e cuidar da saúde, e de enfrentar seus agravos. Significa dizer que o estabelecimento da PNH pelo Ministério da Saúde procura confrontar tendências tecnocráticas e iatrogênicas arraigadas em políticas e serviços de saúde. Esses objetivos não são de fácil assimilação e operacionalização, pois requerem mais do que mudanças e/ou aprimoramentos técnicos e procedimentais; mais do que refinamento e racionalização administrativa e gerencial; eles requerem apropriação dos processos de trabalho, por gestores, profissionais e usuários, com base em uma ética de coimplicação na produção dos saberes, das práticas e das relações no campo da saúde, por meio do aumento do grau de comunicação, de colaboração e de compartilhamento entre esses atores, nas diferentes ações e instâncias gestoras do SUS. Nesse sentido, a PNH, logo de saída e ao longo do tempo, buscará contribuir no equacionamento e no enfrentamento de problemas como: “a desvalorização dos trabalhadores da saúde, a precarização das relações de trabalho, o baixo investimento em processos de educação permanente em saúde [...], a pouca participação na gestão dos serviços e o frágil vínculo com os usuários” (Brasil, 2008, p.8), o que também supõe colaboração na construção de alternativas a modos de gestão centralizados e verticais, bem como disponibilidade e preparo para lidar com a dimensão da subjetividade nas dinâmicas relacionais, envolvidas em todos os processos de cuidado à saúde. Construir uma política pública a partir de desafios de tal envergadura supõe um sem-número de questões, entre as quais destacamos uma - como referido de início -, que se pode chamar de preliminar à consolidação da PNH, e que o processo de implementação da política reatualiza, pedindo 682

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desdobramentos em sua formulação e em sua compreensão. Sintetizamos nossa questão na seguinte indagação: em que sentido(s) o conceito de humanização interessa aos objetivos da PNH? Já fizemos alusão ao fato de que o uso do termo humanização, para nomear uma política nacional de saúde, em função de seu caráter polissêmico, franqueia sua remissão a noções polêmicas, as quais, ao menos em tese, poderiam dificultar o entendimento dos objetivos e dos métodos efetivamente definidos pela PNH: concepções e acepções de acento assistencialista ou formalista, bem como concepções que atualizam vetores das chamadas práticas modernas de purificação, isto é, daquelas práticas que estabelecem, de modo artificial, uma “partição entre um mundo natural que sempre esteve aqui, uma sociedade com interesses e questões [supostamente] previsíveis e estáveis, e um discurso independente tanto da referência [conhecimentos, saberes e práticas interdependentes] quanto da sociedade” (Latour, 1994, p.16 - colchetes nossos). Vejamos cada uma dessas possibilidades e as razões pelas quais possuem alguma força para jogar contra aspirações da PNH. É relativamente tranquilo reconhecer que certas noções do humanismo cristão foram apropriadas e se disseminaram - por vezes se vulgarizaram - no senso comum, fazendo com que ações, comportamentos e, mesmo, características ou traços de caráter ganhassem o status de “humanos” ou “humanizados” quando dotados de piedade e de espírito caritativo. Esse tipo de leitura torna-se ainda mais problemática porque, com frequência, vem acompanhada de sentidos que, inadequadamente, aí se fundem: a piedade e a caridade entendidas como “fazer pelo outro” e “fazer para o outro”. Em certa medida, o assistencialismo se apoia nessa perspectiva, por meio da qual ações e políticas, ditas humanistas ou humanas, do estado, de governos e de outras instituições, são tidas como dádivas ou concessões, o que reitera estruturas sociais conservadoras e alienantes. Naturalmente, esse modo de pensar práticas de humanização não interessa à PNH, ao contrário, se antagoniza à conquista e ao exercício de direitos na área da saúde, solapando possibilidades de promover protagonismo e apropriação dos processos de trabalho pelos usuários, trabalhadores da saúde e gestores. Contraria também o marco legal e a concepção do SUS. Todavia, o assistencialismo está presente em governos e, também, na gestão e na mentalidade de usuários e profissionais da saúde, exigindo tratos por parte dos operadores da PNH, no sentido de se distinguir dessas práticas e de buscar transformá-las. O segundo possível entrave ou problema de compreensão da PNH, que quisemos destacar, tem a ver com a tendência de uma parcela de gestores, profissionais de saúde e usuários em encarar a apropriação dos processos de trabalho em saúde apenas ou, sobretudo, em função: da garantia administrativa/burocrática do direito de acesso aos serviços de saúde (número de vagas e de leitos, quantidade de profissionais, disponibilidade de tecnologias, de procedimentos etc.); da melhoria do acolhimento formal ao usuário (polidez, informações mais claramente transmitidas, ambiente físico mais bem higienizado, mobiliado e arrumado etc.); melhor capacitação técnica dos profissionais; rapidez no atendimento etc. Não que esses aspectos sejam negligenciáveis, pelo contrário, num contexto em que estas condições nem sempre estão dadas, conquistá-las é muito necessário, embora não seja suficiente. Para além das necessárias questões formais, é preciso pensar, no âmbito da PNH, o humano em sua condição, simultaneamente, complexa, exuberante e problemática, sobretudo em relação aos processos de saúde/doença. A partir daí, abrem-se possibilidades efetivas para uma humanização que não fique restrita à polidez “politicamente correta” e à suposta completude que, às vezes, é atribuída ao conjunto: competência técnica e suficiência de recursos humanos, materiais e tecnológicos. Tratar-se-ia, então, de refletir e de agir sobre modos de pertencer e de circular no plano institucional, nas relações interprofissionais e com os usuários, examinando a pertinência e a atualidade de nossos saberes, de nossas atitudes, de nossas formas de “ser-em-grupo”, e de “fazer com o outro” (não pelo outro), produzindo alternativas (individuais e coletivas) para posições e ações. Em outras palavras, seria imprescindível compreender o trabalho em saúde como, fundamentalmente, trabalho afetivo, de produção de afetos e de modos de afetar e ser afetado pelo outro na criação de redes sociais, de formas de vida (biopoder), de novas subjetividades e sociabilidades. Aqui o acolhimento corresponderia, sobretudo, à disposição ético-política ao outro, fazendo da clínica, enquanto plano cuja potência permite escutar, cartografar e construir formas de intervenção (Mendes, 2007), um operador privilegiado no processo diagnóstico e de resolução de 683


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problemas de saúde, pois é no âmbito da clínica - se entendida de maneira ampliada - que são trabalhados o vínculo terapêutico e a escuta aos sujeitos, a partir dos quais se potencializam condições de compreensão e de interpretação das demandas pessoais, comunitárias e sociais no campo da saúde. A outra dimensão, que mencionamos como problema à assimilação e à implementação da PNH, tem caráter mais sutil e subliminar e, provavelmente por isso, talvez corresponda a uma ameaça mais insidiosa às aspirações da política de humanização. Como mencionado, ela se refere à atualização de práticas modernas de purificação na formulação e na consecução das ações técnico-científicas e de gestão no campo da saúde. Em linhas bastante gerais, é possível dizer que o humanismo moderno advém de um determinado projeto de modernidade que, segundo Kastrup (1999) - referindo posições de Latour (1994) - se funda numa dupla separação: entre formas puras, criadas por dicotomias entre dimensões complementares (sujeito cognoscente e o objeto que se dá a conhecer; os homens e as coisas; o mundo natural e o social); e entre essas supostas formas puras (reunidas e unificadas sob o signo da representação, que as purificaria em identidades relativamente estáveis) e os seres/produções que não se encaixam em representações apriorísticas, por serem mistos, isto é, por misturarem natureza e sociedade, ciência e política, sujeito e objeto (embriões fecundados in vitro, aquecimento global, inteligência artificial, são exemplos recentes). Estes mistos são chamados de híbridos por Latour. Para Latour (1994), aquele projeto de modernidade não se confunde com a própria modernidade, que foi complexa, com variados regimes de funcionamento; ele apenas indica uma de suas versões, a versão oficial. No entanto, a eficácia de suas operações fez com que, até os dias de hoje, as categorias epistemológicas ali construídas (sujeito, objeto, natureza e sociedade) fossem tomadas como pertencentes, de fato, a planos ontológicos distintos, cujo contato se daria por fatores e operações intermediárias, que eventualmente reduziriam a distância e fariam ligações entre regiões ontológicas separadas. Além disso, fez com que os híbridos fossem pensados como contingentes, subprodutos ou exceções que confirmariam padrões de funcionamento dos fenômenos, expressos por leis invariantes e totalizantes. Mas como reatualizações desse projeto de modernidade, e do tipo de humanismo que dele resultou, interferem em práticas de saúde atuais e em propósitos da PNH? Ainda é frequente conceber o homem em si mesmo, como entidade apartada do meio (natural e social) e das condições que ele cria e/ou transforma. Ainda separamos o doente da doença, muitas vezes tratando a última como objeto que se dá a conhecer independentemente dos modos pelos quais o doente a singulariza no corpo e nas formas de significá-la. Ainda separamos as técnicas e as tecnologias, empregadas na assistência à saúde, das razões e dos valores a partir dos quais são produzidas, e das maneiras, às vezes, atomizadas pelas quais são utilizadas no diagnóstico e no tratamento de agravos à saúde. Ainda separamos ciência, política e sociedade, afastando formuladores das políticas de gestores e de profissionais, e estes dos usuários da saúde, como se não houvesse relação e interdependência entre suas posições, conhecimentos, competências e responsabilidades. Entre outras dicotomias, as práticas de purificação ou de isolamento de categorias de coisas e de ações, que - por essa via - só se relacionam entre si de maneira contingente ou parcial, ainda participam na conformação de nossa subjetividade e contornam a organização e a lógica do sistema e dos serviços de saúde. Como vimos, a PNH aposta numa ruptura com aquilo que estamos chamando de práticas de purificação, o que lhe impõe desafios de várias ordens, entre eles, desafios conceituais relevantes: suas formulações não podem se confundir com discursos científicos ou políticos estritos, ao contrário, precisam ser híbridas, capazes de tranversalizar os vários planos conceituais implicados com os processos de trabalho em saúde. Mais do que isso, precisam ser construídas a partir e em função das condições concretas dos serviços de saúde, sob o risco da abstração e da transcendência, ou seja, de se pensar o SUS por meio do “como”, supostamente, deveria ser, e não do “como” efetivamente é, para então se operarem as mudanças que se fizerem necessárias. Voltemos às proposições de Latour, uma vez que, a nosso ver e guardadas as devidas proporções e especificidades, elas têm proximidade com as perspectivas pretendidas pela PNH. Latour (1994) percebe um outro sentido na modernidade, que se antagoniza com o da versão oficial: a modernidade 684

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como paradoxo. “Como paradoxo, a modernidade produz, simultaneamente, os híbridos e os saberes que os recusam. [...] Sendo ela própria produtora de paradoxo, deve ser vista como algo que contém em si uma diferença interna, ou seja, o germe de problematização de seu projeto oficial” (Kastrup, 1999, p.41). Para apreender essa diferença, Latour propõe uma mudança no modo de pensar. Em vez de começar pelas extremidades - pelas formas -, propõe que comecemos pelo meio. O meio não é entendido como espaço intermediário entre dois polos separados, mas como região ontológica que é, ao mesmo tempo, primordial e inventiva. Inversão da lógica de demarcação: “é o meio que constitui o suporte explicativo das extremidades. As regiões extremas aparecem como resultantes da estabilização de processos de mediação. Ele ressalta que os pólos sujeito e objeto não são mais o ponto de apoio da realidade, mas, sim, resultados provisórios e parciais” (Kastrup, 1999, p.43). Se for assim, tanto o sujeito quanto o objeto serão (re)criados pelas relações que estabelecerem. Do mesmo modo, natureza e sociedade são processos que se afetam, se engendram e se transformam reciprocamente. Muito diferente da reificação que lhes atribui o projeto moderno de purificação, por meio da qual é fixada uma essência invariante ao humano, bem como à racionalidade técnico-científica e política. As noções de humanismo na área da saúde, que marcaram movimentos da área no Brasil a partir dos anos 1960, pautados pela luta legítima em defesa da igualdade de direitos (para grupos discriminados, por exemplo) e pelo acesso a serviços de saúde mais dignos, em alguma medida eram tributárias de características relacionadas ao mencionado humanismo moderno, o que provavelmente facilitou sua sobrecodificação e naturalização pelo discurso tecnoburocrático, também herdeiro do projeto moderno de purificação. Imaginando acepções potencialmente problemáticas, como as que foram expostas acima, não surpreende, ao contrário, é compreensível que alguns (profissionais, usuários, gestores e pesquisadores), numa primeira aproximação e por motivos diversos, olhem com reserva para a PNH, ao menos para os sentidos que o termo humanização pode evocar. No entanto, interessa tematizar a inflexão singular proposta pela PNH para a humanização - que, em certa medida, se aproxima das proposições de Latour, uma vez que problematiza práticas de purificação na área da saúde, bem como procura pensar a partir das relações, isto é, assume os processos de relacionamento e de mediação entre os atores envolvidos na construção do SUS como campo de operações da PNH, tanto na assunção e na requalificação do conceito, quanto e, talvez sobretudo, em suas implicações nos campos estratégico e metodológico de implementação da política. Parece possível dizer que, no plano conceitual, a formulação da PNH parte da humanização como conceito-sintoma para transformá-lo em conceito-experiência. Estas duas expressões foram cunhadas por Benevides e Passos (2005) para designar, respectivamente: - a paralisia e a reprodução de sentidos já instituídos; - e as dimensões implicadas nas experiências reais ou, em outros termos, dimensões capazes de produzir diferenças irreversíveis em sujeitos e/ou segmentos e práticas sociais. Entrar em contato com essas dimensões permite que nos coloquemos em posição de escutar e de indiciar campos problemáticos, para criar condições de elaboração e de invenção de alternativas às suas obstruções, por meio da cartografia de movimentos-índices de vitalidade e de diferenciação, que insistem pelo meio de idéias e práticas calcificadas na área da saúde. Também permite forçar e requalificar os conceitos para que, simultaneamente, ajudem a responder a desafios concretos e resistam à fixação em sentidos alienantes. Benevides e Passos (2005), que também são atores da formulação e implantação da PNH, ao requalificarem os sentidos implicados com a noção de humanização, também recusam a idealização do humano, presente em sua condição de conceito-sintoma, evocando Canguilhem (1982), para o qual a normatividade do vivo concerne menos a seguir do que a criar normas variáveis de vida. Por essa via, arrematam: É neste sentido que a humanização não pode ser pensada a partir de uma concepção estatística ou de distribuição da população em torno de um ponto de concentração normal

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(moda). O que queremos defender é que o humano não pode ser buscado ali onde se define a maior incidência dos casos ou onde a curva normal atinge sua cúspide: o homem normal ou o homemfigura-ideal, metro-padrão que não coincide com nenhuma existência concreta. (Benevides, Passos, 2005, p.391)

A esta posição acrescentam a de que, na condição de política pública, a humanização precisa ser efetiva em face daquilo que pretende engendrar: aberturas e transformações prospectivas nas práticas de saúde, nas concepções e formas de gestão, nos modos e nas tecnologias de relação. Para ser efetiva, a humanização precisa, como condição de possibilidade, ser (re)inventada a cada intervenção no SUS, de modo transversal, como operação dos coletivos. Se por transversalidade entendermos a travessia dos estratos4 por diferentes fluxos, no pensamento e nas práticas; ela será, por excelência, a operação dos coletivos, concebidos não na condição de conjuntos de coisas ou pessoas, mas enquanto efeito da intersecção de elementos e fluxos heterogêneos, materiais e imateriais, nos processos. Assumir o coletivo como plano de produção e de intervenção da PNH exigirá, então e necessariamente, a criação reiterada de entranhada disposição ao “inantecipável das construções pessoais e sociais, no que elas tiverem de produtivo ou vitalizante, mas também no que emergir como entrave aos seus processos” (Mendes, 2007, p.124). As estratégias metodológicas, no campo de jogo delineado pelos princípios e parâmetros da PNH, precisam permanecer abertas às variações das práticas e dos discursos. Métodos plásticos e reorientáveis em função das composições e das questões produzidas em cada uma das experiências concretas que a política ensejar. Experiências mantidas sempre e de novo em análise, para acalentar a produção instituinte e, ao mesmo tempo, tentar se evadir das recaídas totalizantes que, de resto, são um perigo sempre presente, por esgotamento em face da quantidade de trabalho exigido para se sustentar tal multiplicidade ou pela conversão da abertura em doutrina, em formas puras ou verdades supostamente estáveis. Se for assim, o início e os cinco primeiros anos da PNH são emblemáticos: ao contrário de um tipo frequente de iniciativa - a de definir as políticas com base em modelos apriorísticos e abstratos, que rivalizem com determinado estado de coisas, numa espécie de “combate contra” - formulam a PNH como “combate entre”5: assunção das práticas e das relações tal como se efetuam, buscando extrair a vitalidade e a positividade que portam e, simultaneamente, problematizar gargalos e mazelas para, a partir dessas dobras, produzir ou requalificar conhecimentos e práticas em saúde. As ambições da PNH, como sugerimos, não são pequenas. De um lado, fomentar a criação de redes de produção de saúde e, por outro, ativar processos de subjetivação menos centrados em representações e modos de existências totalizantes ou excessivamente tecnocráticos e burocráticos. Isto impõe “que o SUS seja tomado em sua perspectiva de rede, criando e/ou fortalecendo mecanismos de coletivização e pactuação sempre orientados pelo direito à saúde que o SUS na constituição brasileira consolidou como conquista” (Benevides, Passos, 2005, p.393). Por outro lado e complementarmente, impõe que a humanização se afirme como conceito-experiência, na medida em que “descreve, intervém e produz a realidade nos convocando para manter vivo o movimento a partir do qual o SUS se consolida como política pública, política de todos, política para qualquer um, política comum” (Benevides, Passos, 2005, p.393). 686

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4 Em linhas bastante gerais, os estratos concernem a conjuntos instituídos, formalizados por fatores diversos: perfis subjetivos, objetos, práticas, estruturas (econômicas, políticas, culturais...), códigos de comunicação, representações etc.

5 As noções de “combate contra” e de “combate entre” foram retiradas de Deleuze (1992).


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Tamanha pretensão parece pedir, como contraface que não se deve recusar, doses de prudência e de simplicidade (o simples, não o simplório), para se estar em condição de responder pelos efeitos concretos dos mundos que ajudamos a engendrar, bem como para permanecer fazendo política na alteridade, isto é, na relação com o outro (usuário, trabalhador e gestor), que perfaz o plano de autoprodução dos coletivos. Quando é assim, talvez também seja possível lembrar que somos, simultânea e inexoravelmente, o outro do outro e aquilo que fazemos estando juntos.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

Referências BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza/SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. CALVINO, Í. As cidades invisíveis. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 out. 2003. CAMPOS, G.W.S. Humanização na saúde: um projeto em defesa da vida? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.398-400, 2005. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. DELEUZE, G. Conversações 1972 – 1990. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1992. DESLANDES, S.F. O projeto ético-político da humanização: conceitos, métodos e identidade. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.401-3, 2005. KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas: Papirus, 1999. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1994. MENDES, V.L.F.M. Uma clínica no coletivo: experimentações no programa de saúde da família. São Paulo: Hucitec, 2007.

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Este texto analisa um dos aspectos discutidos no Seminário “A Humanização do SUS em debate”, realizado em junho de 2008, em Vitória/Vila Velha, ES. Nesse seminário, o chamado Coletivo PNH e pesquisadores da área da saúde, de várias partes do Brasil, reuniram-se para colocar em análise os cinco primeiros anos da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde. O aspecto aqui abordado diz respeito ao conceito de humanização em duas direções, especialmente: - a possibilidade de usar o conceito em vários sentidos ou acepções o torna polêmico, sobretudo quando utilizado para nomear uma política pública de saúde; - o sentido em que é empregado pela PNH o requalifica e faz com que o conceito seja pensado em processo e na dinâmica das práticas em saúde, perspectivas que precisam ser trabalhadas na consolidação e na difusão da PNH.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Política pública de saúde. Práticas de saúde. The concept of humanization within the National Humanization Policy (PNH) This paper analyzes one of the issues discussed in the seminar “Discussing the Humanization of SUS (Brazilian Unified Health System)”, held in Vitória/Vila Velha, Espírito Santo, in June 2008. In that seminar, the so-called National Humanization Policy (PNH) Group and healthcare researchers from several parts of Brazil met to analyze the first five years of the Ministry of Health’s PNH. The issue covered here relates to the concept of humanization, in two particular directions. The possibility of using the concept with several meanings or senses makes it polemical, especially when it is used to name a public healthcare policy. The meaning with which it is used by the PNH requalifies it and makes it thought of within the process and dynamics of healthcare practices. These perspectives need to be worked up, in order to consolidate and disseminate the PNH.

Keywords: Humanization of assistance. Public healthcare policy. Healthcare practices. El concepto de humanización en la Politica Nacional de Humanización (PNH) Este artículo analiza uno de los aspectos discutidos en el Seminario “La Humanización del Sistema Único de Salud brasileño en debate” realizado en junio de 2008 en Vitória/ Vila Velha en el estado de Espírito Santo, Brasil. En este seminario, el llamado Colectivo PNH e investigadores del área de salud de varias partes de Brasil se reunieron para plantear el análisis de los cinco primeros años de la Politica Nacional de Humanización del Ministerio de la Salud. El aspecto enfocado se refiere al concepto de humanización especialmente en dos direcciones: - la posibilidad de usar el concepto en varios sentidos o acepciones lo hace polémico, sobre todo cuando utilizado para nombrar una política pública de salud; - el sentido en que lo toma la PNH lo re-califica y hace que el concepto sea pensado en proceso y en la dinámica de las prácticas en salud, perspectivas que tienen que trabajarse en la consolidación y en la difusión de la PNH.

Palabras clave: Humanización de la atención. Política pública de salud. Prácticas de salud. Recebido em 02/11/08. Aprovado em 11/05/09.

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O coletivo como plano de criação na Saúde Pública

Liliana da Escóssia1

O coletivo é isso que em uma ação individual tem um sentido para os outros... (Simondon, 1989, p.187)

Diversas políticas e programas de Saúde Pública no Brasil têm estimulado, por meio de princípios e diretrizes, a troca de saberes entre profissionais, o trabalho em equipe e o diálogo entre gestores, trabalhadores, usuários e familiares que constituem os sistemas de saúde, por considerarem que estes são aspectos indispensáveis ao processo de consolidação do SUS. Como consequência, valorizase a criação de espaços coletivos nas práticas cotidianas de atenção e gestão, tais como: reuniões de equipe, de setor, colegiados gestores, assembleias - de trabalhadores e usuários -, grupos terapêuticos, oficinas, entre outros. Podemos dizer que existe, no campo da Saúde Coletiva, um certo consenso quanto à necessidade de instituição e garantia destes espaços. A questão que colocamos em debate é a seguinte: como podemos conceber e experimentar estes espaços coletivos? Mais ainda: é sempre da mesma coisa que estamos falando quando nos referimos ao coletivo? Ao analisar a constituição histórica do termo “Saúde Coletiva”, L’Abbate (2003, p.270) afirma que “as relações entre o coletivo e o individual constituem-se em analisadores históricos da maior importância para toda a constituição da saúde coletiva e a compreensão de seu campo de saberes e práticas”. A autora afirma ainda que a variação de sentidos atribuídos ao coletivo nas ciências sociais, bem como sua imprecisão, fez dele um conceito adequado para ser usado no campo da saúde, tendo em vista a sua diversidade. Em seguida, ela destaca algumas conotações do coletivo no âmbito das ciências sociais, tais como: “coletivo/ conjunto de indivíduos; coletivo/interação entre elementos; coletivo como conjunto de efeitos ou consequências da vida social; coletivo transformado em social como campo específico e estruturado de práticas” (L’Abbate, 2003, p.268). Embora reconheçamos a variedade de sentidos que emergem nas definições acima, identificamos, em todas, uma oposição entre a dimensão coletiva e a individual. Este modo de apreensão do coletivo deriva de uma abordagem dicotômica da realidade, ou seja, um modo de pensar a realidade de forma fragmentada, hierárquica e baseada em relações de oposição, abordagem que identificamos como característica da modernidade. Tal lógica de pensamento e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Sergipe. Rua Manoel Andrade, 2156, Coroa do Meio, Aracaju, SE, Brasil. 49.035-530 liliana.em@infonet.com.br

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análise do mundo se tornou hegemônica a partir do século XVII e foi gerando, ao longo dos séculos, pares de opostos como: individual-coletivo, ciência-arte, tecnologia-cultura, sujeito-objeto, naturezacultura, mente-corpo, trabalho manual-trabalho intelectual, psíquico-social, saúde-doença e normalpatológico. Estas polarizações operadas entre as dimensões do real são, segundo Veyne (1982), falsos problemas decorrentes de uma visão naturalizante e substancialista, cujo efeito mais perverso é a restrição do pensamento moderno ocidental e o reducionismo e empobrecimento das práticas decorrentes. Sendo assim, não se trata, no presente trabalho, de recusar uma visão individualista e nos colocar em seu extremo oposto, adotando um ponto de vista coletivista. Seria permanecer preso àquilo que estamos problematizando, a uma concepção de mundo que toma os seres, sejam físicos, biológicos, psíquicos ou sociais, como dados a priori, sem levar em conta os processos que os engendram. O nosso objetivo é, por um lado, apresentar algumas vias de acesso a outro modo de apreensão do coletivo, um coletivo que se coloque como alternativa às dicotomias estabelecidas entre indivíduo e sociedade, ou entre a interioridade das estruturas psicológicas e a exterioridade de um mundo social: e, por outro, mostrar como esse conceito pode ser experimentado (ou não) nas práticas coletivas de Saúde Pública, tomando por base nossa experiência de participação na construção da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (HumanizaSUS). Em trabalhos anteriores (Escóssia, Mangueira, 2006; Escóssia, Kastrup, 2005; Escóssia, 2004) e com base em pensadores como Deleuze, Guattari, Foucault, Canguilhem, Lourau, Tarde e Simondon, afirmamos ser possível apreender o coletivo para além de uma visão excludente e dicotômica, historicamente constituída. Mostramos que, para tal, torna-se necessário “dar visibilidade a uma outra lógica - uma lógica atenta ao engendramento, ao processo que antecede, integra e constitui os seres. Lógica das relações ou filosofia da relação, como denomina Veyne (1882), para diferenciar de uma filosofia dos objetos” (Escóssia, Kastrup, 2005, p.297). Estamos nos referindo a um certo modo de conceber a relação, na qual esta comparece como agenciamento, espaço-tempo entre, plano relacional produtor dos termos, e não como uma relação entre termos já constituídos. As relações mudam em função de circunstâncias, ações e paixões, produzindo sempre novos termos ou novos sentidos aos termos. O que significa dizer que o sentido é dado não por uma natureza imutável dos termos, mas pelos agenciamentos/relações que, em cada lugar e a cada momento histórico, acontecem entre os termos. “Lugar-meio” de sentido, como afirma Michel Serres em Filosofia Mestiça (1993). Decorre, desta filosofia da relação, um conceito de coletivo cuja definição não se dá por oposição ao indivíduo, pois não se confunde nem com um social totalizado nem com a interação entre seres já individuados. Trata-se de um coletivo a ser apreendido a partir de dois planos distintos, porém, inseparáveis. Planos que se cruzam desfazendo as binarieades: o plano das formas e o plano das forças. O plano das formas é o plano de organização e desenvolvimento das formas (Deleuze, Parnet, 1998), plano do instituído (Lourau, 1995) e da Lei, e concerne às formas já constituídas - individuais ou coletivas. Como formas coletivas, podemos citar os grupos sociais, as coletividades, a sociedade. O plano das forças é o plano de constituição/criação das formas - individuais e sociais. Também definido como plano de imanência (Deleuze, Parnet, 1998), plano do instituinte (Lourau, 1995) ou plano de relações (Veyne, 1982). Simondon (1989, 1964) denomina este plano, instituinte das forças, de transindividual e afirma que ele é da ordem do coletivo, entendido como espaço-tempo entre o individual e o social, espaço dos interstícios. Plano de criação ou de coengendramento das formas individuais e sociais, origem de toda mudança, plano do movimento. O autor enfatiza a inevitável relação entre os dois planos, quando se refere ao conceito-chave do seu pensamento - a individuação, definida como processo de tomada de forma. Para ele todo ser individuado - um indivíduo, um grupo social, uma instituição - permanece, após a individuação, com uma carga pré-individual, possível de ser ativada a qualquer momento, sendo justamente isso que faz dos seres vivos, psíquicos e sociais, seres sempre inacabados e em permanente processo de individuação. Esse processo de individuação dá-se, então, a partir do cruzamento dos dois planos - das formas e das forças - constituindo o que Simondon denomina como coletivo transindividual. Coletivo 690

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transindividual é, portanto, o plano instituinte e molecular do coletivo. No entanto, ele é ativado no/e pelo campo das formas, o que reafirma a ideia de que estes se distinguem, mas não se separam. Fica claro que o coletivo transindividual não é um plano transcendente - não está em outro mundo -, e sim um plano concreto de práticas e de relações ético-políticas: um plano imanente. Sendo assim, algumas questões se colocam: toda e qualquer prática dita coletiva, no âmbito da Saúde Pública, tem tido a potência de ativar esse plano pré-individual e molecular do coletivo, permitindo o movimento de criação e transformação das formas? Ou será que determinadas práticas têm obstruído o acesso a esse plano de criação, trabalhando a favor da permanência e cristalização de determinadas formas instituídas? Tomemos, como exemplo, um dispositivo institucional bastante experimentado na Saúde Pública: o colegiado de gestão. Como o próprio nome indica, o objetivo é instituir processos de compartilhamento de gestão por meio da participação de sujeitos e grupos nos processos institucionais de formulação, decisão, planejamento, execução e avaliação. Ocorre que, na prática, é frequente vermos tais espaços serem burocratizados e reduzidos a espaços de representação formalmente instituídos. Na condição de representantes ou porta-vozes, seus membros operam um estranho protagonismo, no qual não se deixam afetar pelo outro, pelo que surge como diferente, tornando-se refratários às mudanças. Não acessam o plano relacional, uma vez que não entram em ressonância com o outro, na sua diferença, nem se conectam com o que acontece como movimento, nesses espaços. Resulta, desse modo de funcionamento, um espaço que, embora seja denominado como espaço coletivo, mostra-se insuficiente para garantir o acesso ao plano de construção de sujeitos e grupos. Embora não seja nosso objetivo, no presente texto, entrar no debate sobre democracia representativa e democracia participativa, gostaríamos de pontuar que esse nos parece mais um dos efeitos da falta de articulação, apontada por Santos (1997), entre essas duas importantes dimensões das práticas democráticas, a saber: a representação e a participação. Poderíamos dizer que um certo modo de operar a representatividade exclui a dimensão da participação, já que essa se efetiva no plano relacional. Dentre as estratégias de exercício do conceito de coletivo transindividual - como plano de forças e de criação -, destacamos um método de trabalho com coletivos que foi formulado e tem sido experimentado no âmbito da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (PNH), da qual participamos como consultores. A PNH foi criada em 2003 e, tal como explicitado por Benevides e Passos (2005), enfrentou, desde o início, dois desafios: o conceitual e o metodológico. Do ponto de vista conceitual, impôs-se a necessidade de recolocação do problema da humanização forçando os limites do conceito para além do seu sentido instituído. Como afirmam os autores, “contra uma idealização do humano, o desafio posto é o de redefinir o conceito de humanização a partir de um ‘re-encantamento do concreto’ ou do “SUS que dá certo” (Benevides, Passos, 2005, p.390-1). Pensar o humano não como figura-ideal, mas a partir das existências concretas, considerando-o em sua diversidade normativa e nas mudanças que experimenta nos movimentos coletivos. Do ponto de vista metodológico, o desafio foi propor alteração dos modos de fazer, de trabalhar, de produzir no campo da saúde, entendendo ser esta uma tarefa para todos os que estão implicados na construção de políticas públicas de saúde. A partir daí, a PNH tem definido princípios, diretrizes, dispositivos e um método de trabalho para atenção e gestão do SUS: o método da tríplice inclusão, que destaca a importância dos espaços coletivos para o não aprisionamento de forças em um modelo instituído de saúde. Por método, entende-se a condução de um processo ou o seu modo de caminhar e, no caso da tríplice inclusão, há um desdobramento em três planos, que se atravessam: plano de inclusão dos diferentes sujeitos (gestores, trabalhadores e usuários) no sentido da produção de autonomia, protagonismo e corresponsabilidade; plano de inclusão dos analisadores institucionais e sociais ou dos fenômenos que desestabilizam os modelos tradicionais de atenção e de gestão, acolhendo e potencializando os processos de mudança; plano de inclusão dos coletivos - movimentos sociais, redes e grupos. Esse método tem sido experimentado frequentemente, sob a forma de apoio institucional, uma atividade realizada por consultores e apoiadores da PNH junto às redes e serviços de saúde municipais, estaduais e federais, cujo objetivo é disparar, de forma indissociável, processos de produção de saúde e 691


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de subjetividade. Entendendo dispositivo como aquilo que faz funcionar um método, podemos dizer que o apoio institucional é um dispositivo que encarna procedimentos ou tecnologias de fazer ver e falar (Foucault, 1979). Destacaremos, a seguir, três funções atualizadas nas práticas efetivas do apoio institucional e que o constituem como dispositivo capaz de acessar o plano instituinte das forças, ou o plano do coletivo transindividual: a função interseção, a função transversalização e a função transdução. A função interseção aparece sempre que princípios, diretrizes, dispositivos e sujeitos operam como referências ou vetores disparadores da ação coletiva, ao mesmo tempo em que outras referências, saberes e práticas vão sendo construídas no próprio movimento de intervenção. Mais que ponto de partida, o apoio opera como ponto de cruzamento de ideias, experiências, expectativas e afetos, criando condições e possibilidades de produção de um comum, de um plano relacional, plano de afetabilidade coletiva. A função transversalização diz respeito à ampliação da capacidade de comunicação entre sujeitos e grupos (Guattari, 1981) e de interseção entre elementos e fluxos heterogêneos, materiais e imateriais. Remete a uma ética da conectividade (Simondon, 1989) nos processos, em uma busca de superação das lógicas comunicacionais verticalizadas ou horizontalizadas, elas próprias individualizantes. Deleuze ressalta essa potência das conexões quando afirma: “O problema coletivo, então, consiste em instaurar, encontrar ou reencontrar um máximo de conexões. Pois as conexões (e as disjunções) são precisamente a física das relações, o cosmos” (Deleuze, 1997, p.62). Nesse sentido, ampliar comunicação é uma experiência que se inscreve no plano de produção de coletivos, ou, dito de outra forma, a transversalidade é um conceito do campo da experiência coletiva e relacional - experiência que atravessa e constitui tanto indivíduos como grupos. No que se refere à função transdução, consideramos que o modo de inclusão de sujeitos, analisadores e coletivos é transdutivo quando efetiva-se por meio de ações e movimentos que se propagam, gradativamente, de um domínio para outro e em várias direções, produzindo atrações, contágios, encontros e transformações. A ênfase de uma ação transdutiva recai em uma zona limite ou na interface entre sujeitos, entre redes, entre redes e sujeitos, entre sujeitos e tecnologias de cuidado ou de gestão. Trata-se, nesses casos, de entre-lugares e temporalidades instituídas ou em vias de instituição. Essa quase-localização e a múltipla temporalidade é o que confere às rodas - esses espaços coletivos em que se realiza a ação de apoio - o estatuto de espaços relacionais, nos quais importa apoiar ou colocar em análise não os sujeitos individualmente, mas os coletivos e os processos de trabalho, os jogos afetivos, as relações de poder e saber que transversalizam as corporações profissionais, os usuários e seus territórios. Afirmar, então, que o coletivo transindividual é um plano relacional não significa reduzi-lo aos espaços formais de reuniões, de oficinas, de dinâmicas grupais ou interindividuais. Analisando os espaços dos colegiados gestores, vimos que, a depender do modo como são conduzidos e ocupados, esses espaços de representação democrática podem operar como obstáculos à experiência coletiva transindividual. Mas é também em espaços como esses que o cruzamento do plano de formas com o plano de forças pode ocorrer, produzindo tal experiência. O que faz a diferença é o modo de operar, o modo de fazer, que se efetiva por meio de dispositivos. Nesse sentido, os espaços dos colegiados operam como dispositivos coletivos quando põem em funcionamento o método da tríplice inclusão - de sujeitos, analisadores e coletivos. O desafio, portanto, é fomentar o movimento permanente de criação de espaços coletivos, mas, ao mesmo tempo, transformá-los em espaços de cruzamento e agenciamentos. Agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de dois mundos. Agenciar-se com alguém não é substituí-lo, imitá-lo ou identificar-se com ele: é criar algo que não está nem em você nem no outro, mas entre os dois, neste espaço-tempo comum, impessoal e partilhável que todo agenciamento coletivo revela. É preciso lembrar, contudo, que as virtualidades de um coletivo transindividual trazem possibilidades, e não garantias, de sua realização. Sabemos que o capitalismo conexionista e as dinâmicas institucionais decorrentes, podem reabsorver a potência política do coletivo e do comum, dissolvendo-a e fazendo-a trabalhar a seu favor. Esse é o risco sempre iminente. Por isso, trata-se, numa política de Saúde Pública, não de reificar, naturalizar esses conceitos, mas de tomá-los como conceitos-dispositivos contingentes, 692

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que respondem de maneira sempre parcial e provisória aos problemas que cada época e circunstância política apresenta. Nunca é demais lembrar com Foucault, que “não se pode encontrar a solução de um problema na solução de um outro problema levantado num outro momento por outras pessoas” (Dreyfus, Rabinow, 1995, p.256). Com Foucault, acreditamos que uma política do coletivo não é uma política de soluções duradouras dos problemas, mas uma experiência coletiva permanente de problematizações, identificações de perigos e escolhas ético-políticas.

Referências BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização: um novo modismo? Interface – Comunic, Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DREYFUS, H; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ESCÓSSIA, L. O coletivo como plano de coengendramento do indivíduo e da sociedade. 2004. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2004. ESCÓSSIA, L.; KASTRUP, V. O coletivo como superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Psicol. Estud., v.10, n.2, p.295-304, 2005. ESCÓSSIA, L.; MANGUEIRA, M. Produção de subjetividade, saúde e autonomia individual e coletiva. Cad. UFS - Psicologia, n.8, p.9-16, 2006. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GUATTARI, F. Transversalidade. In: ______. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.88-105. L’ABBATE, S. A análise institucional e a saúde coletiva. Cienc. Saude Coletiva, v.8, n.1, p.265-74, 2003. LOURAU, R. Análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1995. SANTOS, B.S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 3.ed. São Paulo: Cortez, 1997. SERRES, M. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. SIMONDON, G. L’individuation psychique et colletive. Paris: Aubier, 1989. ______. L’individu et sa genèse physico-biologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1964. TARDE, G. Les lois de l’imitation. Paris: Les empêcheurs de penser en rond/Seuil, 2001. VEYNE, P. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora da UNB, 1982.

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Apresenta-se uma discussão sobre as práticas coletivas no campo da saúde pública, a partir de uma dupla articulação: de um lado, propõe-se uma ampliação do conceito de coletivo, problematizando, inicialmente, o modo como ele tem sido utilizado nas ciências humanas e sociais, desde o projeto da modernidade, ao mesmo tempo em que apresenta algumas via de acesso a um outro modo de apreensão do coletivo, denominado como transindividual; de outro, analisa-se a possibilidade de experimentação do conceito nas práticas coletivas de saúde pública, a partir da experiência na construção e implementação da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde (Humaniza-SUS).

Palavras-chave: Coletivo. Saúde pública. Humanização. Transindividual. Simondon. Prática de saúde pública. The collective level as a dimension for creation within the field of Public Health A discussion about collective practices within the field of public health is presented, elaborated in two ways. On the one hand, an expansion of the concept of collective practices is proposed through initial questioning of the way in which these have been used in human and social sciences, since the time of the modernity project, while some means of accessing other ways to understand collective practices, defined as transindividual means, are presented. On the other hand, the possibilities of experiencing this concept within collective public health practices are analyzed, starting from the experience of constructing and implementing the Ministry of Health’s National Humanization Policy (Humaniza-SUS).

Keywords: Collective. Public Health. Humanization. Transindividual. Simondon. Public health practice. El colectivo como plan de creación en la Salud Pública Se presenta una discusión sobre las prácticas colectivas en el campo de la salud pública a partir de una doble articulación: por un lado se propone una ampliación del concepto de colectivo cuestionando inicialmente el modo como se ha utilizado en las ciencias humanas y sociales desde el proyecto de la modernidad, al mismo tiempo en que se presentan algunas vías de acceso a otro modo de aprehensión del colectivo denominado trans-individual; por otro lado se analiza la posibilidad de experimentación del concepto en las prácticas colectivas de salud pública a partir de la experiencia en la construcción e implementación de la Política Nacional de Humanización del Ministerio de la Salud (Humaniza-SUS).

Palabras clave: Colectivo. Salud pública. Humanización. Trans-individual. Simondon. Practica de salud publica. Recebido em 12/01/09. Aprovado em 28/05/09.

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Humanização das práticas de saúde: transversalizar em defesa da vida

Raquel Turci Pedroso1 Maria Edna Moura Vieira2

Universalidade, equidade e integralidade são princípios do Sistema Único de Saúde - SUS que apontam para mudanças nas práticas de Saúde Pública no Brasil. Nesse aspecto, a saúde, como um direito de todo cidadão, deverá implementar ações e serviços não fragmentados, mas conectados pelos nós da rede de cooperação, conscientização e responsabilidades sanitárias. A saúde é resultado de um processo de produção em que se oferece algum valor de uso, entendido como a utilidade que bens e serviços têm para pessoas concretas vivendo em situações específicas. Mesmo no caso da Saúde Pública, em que o fim é o bem comum, e não o lucro, ela conserva o caráter de valor de uso e, nessa compreensão, os trabalhadores e usuários objetivariam traduzir a concretização de determinados valores de uso (Campos, 2000). A Política Nacional de Humanização, como política pública, nasce da necessidade do “reencantamento do concreto”. Benevides e Passos (2005) indicam que o conceito de humanização ganhou destaque crescente a partir do ano 2000, em programas no campo da saúde, porém distanciado dos movimentos de mudanças nas práticas de saúde. Nesse contexto, a humanização estava vinculada a áreas da atenção, como a saúde da mulher e da criança, à assistência hospitalar, identificada a certas profissões, como a do psicólogo, exercida por mulheres, bem como focada na perspectiva da “qualidade total nos serviços”. A necessidade de recolocação do problema da humanização, distanciado do humano idealizado e aproximado do humano protagonista e autônomo, coincide com a problematização da relação entre o conhecimento e a transformação da realidade, e gerou o movimento da humanização da saúde em direção da construção de uma política pública – de todos e para qualquer um. A humanização do SUS indica mudanças nas práticas de atenção e gestão, em que a aposta é nos sujeitos concretos. “É a partir da transformação dos modos de os sujeitos entrarem em relação, formando coletivos, que as práticas de saúde podem efetivamente ser alteradas” (Benevides, Passos, 2005, p.392). A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (PNH), instituída em 2003 pelo Ministério da Saúde, foi formulada a partir do reconhecimento e sistematização de experiências concretas de estados e municípios que apontam para um “SUS que dá certo”, tais como: rede de atenção pública de saúde presente nos territórios; inovações na organização e oferta das COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Esplanada dos Ministérios, Bloco G, sala 954. Brasília, DF, Brasil. 70.058-900 raquel_pedroso@uol.com.br 2 Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. 1

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práticas de saúde, com a articulação entre ações de promoção e de prevenção com ações de cura e reabilitação; instâncias de gestão participativa e cogestão com a participação de trabalhadores, gestores e usuários; fortalecimento do processo de descentralização; entre outros (Brasil, 2008). Para fortalecer esse “SUS que dá certo” é necessário enfrentar os modos de produção de saúde que são afeitos à defesa da vida: a normalização rígida dos processos de organização de serviços e de definição do acesso; os modos de cuidar centrados na doença, na queixa, os modos de trabalhar que destituem a capacidade de decidir e possibilidades de participar, demarcando sua especificidade de se voltar para os processos e para os sujeitos que produzem saúde. Campos (2005) indica que o debate sobre a Humanização deve contemplar a capacidade de produzir novas utopias com a de interferir na prática realmente existente nos sistemas de saúde. A PNH afirma-se como política pública porque, transversal às demais ações e programas de saúde, é atenta ao que, como movimento social, dialoga e tenciona para traduzir os princípios do SUS em “como fazer”, o conceito com as práticas de atenção e de gestão (que são indissociáveis), assim como estimular as trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários na produção de saúde. As perguntas que mobilizaram, há cinco anos, a síntese da Política Nacional de Humanização da atenção e da gestão do SUS – PNH fazem-se atualizadas diante do isolamento de programas e setores da saúde? Como se dão as práticas coletivas? Como se dá a transversalização da comunicação dos atores do SUS? Transversalizar, princípio da PNH, é colocar os saberes e práticas de saúde no mesmo plano comunicacional, provocando a desestabilização das fronteiras dos saberes, territórios de poder e modos instituídos nas relações de trabalho, para produção de um plano comum. Não é, portanto, uma comunicação vertical que mantém e sustenta a separação de quem elabora daquele que executa, nem é tão-somente uma prática horizontal que se dá entre iguais. Esta última pode ser expressa, por exemplo, no distanciamento entre as categorias profissionais a ser enfrentado nas diferentes instâncias do SUS, desde a formação do profissional de saúde, a sua atuação na gestão e na atenção, até os sentidos populares atribuídos a esses profissionais. Há interesses corporativistas que enfraquecem os espaços coletivos da construção do sistema, pois não se direcionam para a saúde que dá certo, que é a saúde do bem comum. Corporativismo que se manifesta, por exemplo, no tema da relação do profissional médico com os outros profissionais de saúde e na relação dos enfermeiros com os técnicos e auxiliares de enfermagem. Não cabe aqui, porém, o simplismo de reduzirmos os não avanços do SUS às práticas de determinados profissionais de saúde, pois atitudes como essa se aproximam mais de uma “caça às bruxas”, aos culpados, do que um posicionamento analítico do contexto de desafios. Não cabe também a ingenuidade de uma idealização do SUS, pois a produção de saúde é entendida aqui como um processo em constante construção. Culpabilizar pode gerar um desresponsabilizar. Quando não há um sentido coletivo do fazer em saúde, há espaços para atribuirmos ao outro a responsabilidade pelas falhas e, nesse momento, há o risco de nos isentarmos da transformação e nos colocarmos como repetindo modos que criticamos, gerando falas como: “É assim, sempre foi assim...”, “Se os gestores não fazem a parte deles, não há o que fazer”, “Eu não tenho nada a ver com isso, é um problema dos governantes”. Nessa trama de culpabilização e simplificação dos desafios da saúde, há ainda o risco da tendência de apostar na privatização da saúde como um caminho para a superação dos problemas, o que se traduz em uma força contra o SUS, e sua história de constituição de um modelo não privatista dentro de uma sociedade hegemonicamente capitalista. Campos (2007) questiona se há um confronto entre as racionalidades conceitual e operativa da tradição dos sistemas públicos versus a da atenção com base em mercado, e sinaliza que o SUS tem de enfrentar não somente o ideário neocapitalista, como também uma tradição degradada dominante na gestão pública brasileira. Para uma mudança de concepção de modelo de gestão com lógica, há muito sedimentada, é necessário compromisso institucional, individual e coletivo - um desfazer; um desacomodar; um enfrentar desafios; um misturar de saberes para produção de novas tecnologias; um transversalizar de ações - no sentido de criar alternativas, num esforço permanente de cogestão e corresponsabilidade para alcançar resultados cada vez melhores para o Sistema de Saúde como um todo. 696

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PEDROSO, R.T.; VIEIRA, M.E.M.

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Assim, se por um lado, os gestores perdem sua função de autoridade única, por outro, os trabalhadores perdem sua condição de submissos e de omissos, ou seja, sua função de apenas executar ordens, sem precisar responder pelas falhas e deficiências que o serviço apresente. Ressalta-se, porém, que os processos de cogestão para o planejamento, execução, monitoramento e avaliação, não implicam a ausência de tarefas específicas e nem uma amenização dos enfrentamentos que decorrem das disputas de poder. Há também, nesse contexto, um SUS que dá certo e que não é divulgado e, por isso, não é muitas vezes reconhecido. Os meios de comunicação polarizam na divulgação dos aspectos negativos: filas, hospitais em péssimas condições etc. Afinal, a quem interessa o SUS? O SUS não é partidário, tem caráter público e não é de um governo especifico. Para tanto, a humanização como política sempre em construção se concretiza por meio das práticas que apontam um SUS que dá certo, e do tensionamento e problematização - um SUS que ao mesmo tempo em que avança também se recolhe. Por isso ela está localizada nos limites da máquina do Estado, onde se encontra com os coletivos e as redes sociais, e no limite dos programas e áreas do Ministério da Saúde e outros, onde ela se encontra com as práticas de cogestão. Não nos afastemos, porém, da responsabilidade que tem a humanização de se debruçar para o modo como ela tem sido compreendida e exercida no cotidiano do SUS – para que a mesma se atualize enquanto um modo de contribuir para o resgate dos sujeitos como inventivos e, não somente, executores de padrões e normas previamente definidas. [...] os processos de trabalho são campos de produção de saber em que não se aprende por si mesmo, mas onde estão em cena redes de saberes formulados coletivamente. Se reduzimos o trabalho ao emprego, ao desempenho de uma tarefa formulada por outrem (cisão entre planejar e fazer, cuidar e gerir), focalizamos somente uma das formas que o trabalho assumiu em nossa sociedade. Neste caso, gerir seria sinônimo de administrar, e trabalhar seria o correlato de executar meramente prescrições já formuladas. Porém, o trabalho é exercício da potência de criação do humano, é inventar a si e o mundo. Trabalhar é gerir e colocar à prova experiências, saberes, prescrições; é lidar com a variabilidade e imprevisibilidade que permeia a vida, criando novas estratégias, novas normas. Ao gerir o trabalho, os sujeitos criam e recriam saberes sofisticados e necessários ao seu fazer. (Heckert, Neves, 2007, p.151)

A humanização ainda é compreendida como uma ação de resgate do homem bom e, em consequência disto, o SUS que dá certo é aquele que faz o bem. Os desdobramentos desse equívoco são, em última instância, contrários aos princípios da PNH, que se referem à produção de sujeitos protagonistas e autônomos. A compreensão de saúde como fazer o bem está vinculada a um modo assistencialista, paternalista, de se concretizarem as práticas de cuidado, e, por trás desse modo de agir, há um entendimento de que o SUS é um favor, e não um direito de todos. Com isso a sociedade fica nas mãos dos interesses individualizados. Esse campo de sentidos leva a uma manutenção de práticas autoritárias de gestão e de atenção, em que os atores implicados com o cuidado (gestores, trabalhadores, usuários e redes sociais) não criam espaços de articulação para a superação dos entraves do sistema, mais sim de isolamento. Barros (2007) aponta que o alerta é para o risco de um maniqueísmo globalizante que coloca o bem (sociedade inventiva) versus o mal (sociedade herdada), encobrindo a diversidade e multiplicidade dos exercícios de poder. Não há, portanto, uma direção da política de humanização de resgatar o homem bom: médicos não são maus e os enfermeiros, bons. Os saberes técnico-científicos não são maus e os saberes populares, bons. Os especialismos não são maus e os generalismos, bons. O diferente não é mau e o igual, bom. O princípio da transversalidade vem justamente propor o desafio do diálogo entre as fronteiras do saber e poder, de uma permanente e cooperativa reinvenção das linhas dessas fronteiras, em que se criem novos modos de se produzir saúde e, portanto, da produção de novos sujeitos. É o enfermeiro, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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junto com o médico, problematizando os saberes técnico-científicos e os saberes populares, negociando práticas de cuidado considerando as diferenças entre os sujeitos, tensionando, na gestão, os saberes especialistas e ampliando a produção de conhecimento. Ayres (2005, p.552) aponta: [...] (1) ao buscar recolocar ativamente sob regime de validação as dimensões normativas da saúde, buscando ver, através e para além dos seus conteúdos tecnocientíficos os seus significados relacional-formativos, as propostas de humanização das práticas de saúde reclamam critérios para a construção de consensos diversos daqueles existentes para a validação dos saberes e ações mais restritos à instrumentalização tecnocientífica; (2) os processos de construção dessa outra natureza de consenso exigem um esforço de renovação que se expande desde a esfera normativa, para outras, nas quais ela está também apoiada, reclamando novos conhecimentos objetivos e perspectivas subjetivas capazes de sustentar as novas interações desejadas.

Transversalizar não pode ser entendido aqui como informar e transmitir dispositivos, modos de fazer, para diferentes grupos. Não se reduz também a análises de coletivos sobre os problemas de ajustamento de papéis; implica, isso sim, a busca de novos sentidos de abertura e invenção de modos singulares de existência: Transversalidade em oposição a: - uma verticalidade que encontramos, por exemplo, nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes, etc) - uma horizontalidade como a que pode se realizar no pátio do hospital, no pavilhão dos agitados, ou, melhor ainda no dos caducos, isto é, uma certa situação de fato em que as coisas e as pessoas ajeitem -se como podem na situação que se encontrem. (Guattari, 1985, p.93-4)

A noção de transversalidade é aplicada ao paradigma rizomático do saber, pois é a matriz das múltiplas possibilidades de conexão, aproximações, abandonando verticalismos e horizontalismos e construindo possíveis trânsitos pelas multiplicidades sem integrá-las artificialmente (Deleuze, Guattari, 1992). Na área da saúde, segundo Teixeira (2005), a transversalidade aponta para práticas de vinculação, de criação do comum e de tecnologias relacionais intra e intergrupos. É aquela que inclui a incidência eminentemente afetiva do trabalho em saúde, proporcionando redes de conversação que podem ser pensadas também como redes de trabalho afetivo, indicando a dimensão essencial da criação e manipulação dos afetos (Teixeira, 2005). Os serviços de saúde recebem a doença da realidade social: seja ela em forma de violência, na de ausência de saneamento básico, ou em desnutrição. Transversalizar é incluir os diferentes atores, contextos e coletivos, e considerar suas conexões possíveis que indicam caminhos para uma saúde que defenda o valor da vida. A pergunta que se faz para o SUS que queremos é: o que, nos nossos modos de produção de saúde, impede a capacidade dos sujeitos de se colocarem em relação? O que impede sua capacidade de interação, de formação de comunidade e de singularização existencial? O SUS que dá certo emerge, assim, de práticas transversalizadas de produção de saúde, que criam condições para o aparecimento de novas práticas subjetivas: corresponsáveis, protagonistas e autônomas. A humanização da saúde se localiza, portanto, como um movimento que coloca uma pergunta nas afirmações aqui questionadas, e que não indicam o fortalecimento dos princípios do SUS. A humanização diz respeito a novos homens em interação e coconstrutores para novas práticas de saúde, em defesa da vida.

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PEDROSO, R.T.; VIEIRA, M.E.M.

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Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AYRES, J.R.C.M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.549-60, 2005. BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFGRS, 2007. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v. 9, n.17, p.389-94, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. CAMPOS, G.W.S. O SUS entre a tradição dos sistemas nacionais e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde. Cienc. Saude Colet., n.12, sup., p.1865-74, 2007. ______. Humanização na saúde: um projeto em defesa da vida? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-406, 2005. ______. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc. Saude Colet., v.5, n.2, p.219-30, 2000. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. GUATTARI, F. Revoluções moleculares: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1985. HECKERT, A.L.C.; NEVES, C.A.B. Modos de formar e modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: PINHEIRO, R.; BARROS, M.E.B.; MOTTA, R. (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: Cepesc/Abrasco, 2007. p.145-60. TEIXEIRA, R. Humanização e atenção primária à saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.585-97, 2005.

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HUMANIZAÇÃO DAS PRÁTICAS DE SAÚDE: ...

A Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) tem como princípio a transversalidade dos saberes e práticas de saúde. Esse princípio coloca-se como um desafio e pressupõe o diálogo entre as fronteiras do saber e poder, bem como a permanente e cooperativa reinvenção das linhas dessas fronteiras. É preciso caminhar na problematização dos saberes técnico-científicos e na negociação de práticas de cuidado que incluam as diferenças entre os sujeitos e que trabalhe as tensões entre a gestão e atenção. O SUS que queremos aponta para a ampliação de novas práticas de produção de saúde para a afirmação em “defesa da vida”.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Humanização. Transversalidade. Inclusão. Diálogo. Defesa da vida. Prática de saúde pública. Humanization of healthcare practices: cutting across, in defense of life The principle behind the National Humanization Policy for Care and Management in the Brazilian Unified Health System (SUS) is for it to cut across healthcare knowledge and practices. This principle poses a challenge because it requires dialogue between the frontiers of knowledge and power, and continual and cooperative reinvention of the lines of these frontiers. Scientific and technical knowledge needs to be questioned and healthcare practices that include the differences between subjects and the tensions between management and care need to be negotiated. For the SUS that is desired, expansion of new healthcare production practices is required, in order to achieve “defense of life”.

Keywords: Health System. Humanization. Cutting across. Inclusion. Dialogue. Defense of life. Public health practice. Humanización de las prácticas de salud: transversalizar en defensa de la vida La Politica Nacional de Humanización de la Atención y Gestión del sistema Úhico de Salud brasileño (SUS) tiene como principio la transversalidad de los saberes y prácticas de salud. Este principio se coloca como un desafío y presupone el diálogo entre las fronteras del saber y del poder así como la permanente y cooperativa re-invención de las lineas de tales fronteras. Es preciso caminar por el problematismo de los saberes técnico-científicos y por la negociación de prácticas de cuidado que incluyan las diferencias entre los sujetos y que trabaje las tensiones entre gestión y atención. El SUS que queremos se dirige hacia la ampliación de nuevas prácticas de producción de salud para la afirmación en “defensa de la vida”.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Humanización. Transversalidad. Inclusión. Diálogo. Defensa de la vida. Práctica de salud pública.

Recebido em 11/11/08. Aprovado em 13/05/09.

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Política Nacional de Humanização como aposta na produção coletiva de mudanças nos modos de gerir e cuidar Dário Frederico Pasche1

Introdução Colocar a humanização da saúde em debate é uma atitude que nos convoca à reflexão, à crítica generosa em direção da construção de um SUS que seja cada vez mais potente para expressar o interesse público e o bem comum. Colocar a Política de Humanização do SUS em questão é movimento de abertura. Abrir-se para alteridades, mas também incidir sobre quem força a passagem; dar passagem e abrir passagem; influenciar e deixar-se influenciar. Propor-se a sínteses, a deslocamentos, à construção de percepções comuns, permitidos pelo encontro com a diferença. Mas também de ratificação de diferenças, de discordâncias e de não acordos. Coragem, generosidade, dar passagem, permitir-se tocar pela diferença para diferir, tudo isto com o propósito de aprimorar o SUS. Esta é uma aposta éticopolítica que une muitos sujeitos que têm por intento, com suas reflexões e ações práticas, qualificar serviços e práticas de saúde em defesa da vida, melhorando nossa experiência de viver em sociedade. Falar sobre a humanização das práticas de saúde coloca, antes de tudo, a necessidade de se fazerem algumas marcações sobre a própria constituição da política pública de saúde, buscando compreender o sentido de suas apostas. A partir desta compreensão é possível, então, localizar o papel e ação da Política de Humanização do SUS (PNH), verificando as razões estratégicas de sua formulação e sua importância na construção do SUS como política inclusiva e resolutiva. Estes são os propósitos deste texto.

SUS: reforma ética, social e cultural no sistema, serviços e práticas de saúde A Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma nova base jurídico-legal para a política de saúde, definindo a saúde como um direito de qualquer cidadão, logo, um dever do Estado. Além disto, no Brasil, passou-se a compreender que saúde corresponde a um enunciado mais amplo que a ausência de doenças e mais concreto que a idéia de bem-estar. Saúde passou a ser compreendida como produção social, resultando, então, de complexas redes causais que envolvem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização. SQN, 402, bloco S, apto. 206. Lago Norte, Brasília, DF, Brasil. 70.834-190 dario.pasche@saude.gov.br 1

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elementos sociais, econômicos e culturais que se processam e se sintetizam na experiência concreta de cada sujeito singular, de cada grupo em particular e da sociedade em geral. Para que o Estado cumpra seu dever constitucional na saúde se estabeleceu, então, que é necessária a implementação de políticas sociais e econômicas justas, que distribuam renda e dignifiquem a vida, pois a saúde resulta dos modos de vida, que definem a qualidade de vida, que é tanto melhor quanto maior for a capacidade da sociedade de produzir regras em que prevaleçam o interesse e o bem comum. Saúde como produção social significa reconhecer que quanto mais desigual for a distribuição das riquezas, quanto mais precário for o acesso dos grupos sociais aos bens de consumo e a políticas públicas redistributivas, mais serão heterogêneos e injustos os padrões de adoecimento e mortalidade. Mas a produção de “vida boa” por regras sociais mais justas não anula a presença de agravos, doenças e riscos para a saúde, senão altera sua natureza. Assim, a organização de sistemas de saúde é imprescindível para que as sociedades produzam saúde, que devem, então, estruturar e organizar o setor, que tem papel importante na qualificação da vida da população. Dessa forma, produção de saúde decorre de dois macrocomponentes que se influenciam mutuamente: (1) a organização de políticas públicas que distribuem renda e (2) a garantia de acesso a serviços e ações integrais de saúde. Ações integrais correspondem, entre outros, à combinação e articulação entre medidas de promoção e prevenção com as de cura-reabilitação, cuja sinergia deve resultar na oferta, aos cidadãos e à sociedade, de práticas de saúde resolutivas e de qualidade. A garantia de acesso aos serviços de saúde no Brasil é assegurada pela organização de um sistema descentralizado de saúde. Descentralização corresponde à criação de estratégias para a responsabilização sanitária compartilhada entre as três esferas de governo para que, preferencialmente, os municípios organizem, de forma sustentável e em cooperação com demais gestores, redes de atenção integral à saúde. A base desta rede, segundo o princípio da integralidade, é a atenção primária, que organizada em todo território nacional, tem, por tarefa, a viabilização de uma orientação simples, mas muito significativa para a construção da efetividade das práticas: todo cidadão tem o direito a uma equipe que cuide dele, com a qual ele estabelece fortes vínculos terapêuticos, sustentáculo de processos de corresponsabilização no cuidado em rede. Outra diretriz da política de saúde no Brasil é a participação cidadã. Ou seja, o sistema e os serviços de saúde devem ser cogeridos, o que requer, entre outros aspectos, a inclusão de novos sujeitos nos processos de decisão na saúde, sobretudo segmentos de usuários, que por meio de conselhos e conferências – arranjos de cogestão do Estado – encontram espaços de vocalização de interesses e necessidades, os quais passam a compor - superados os processos de negociação -, organicamente as políticas de saúde. A participação cidadã em saúde é espaço de abertura para a construção, com o conjunto da sociedade, de processos de corresponsabilização na gestão da política de saúde, sem com isto desresponsabilizar o Estado de suas funções essenciais. A construção de espaços coletivos e arenas decisórias para o processamento de interesses na formulação e gestão de políticas públicas é uma estratégia importante de democratização do Estado e do acesso aos serviços de saúde. A inscrição da nova base legal do SUS resultou de acúmulo de forças no interior da sociedade brasileira em um determinado tempo histórico, impulsionadas pelo desejo de democratização das relações sociais e econômicas, de enfrentamento de iniquidades no acesso aos serviços de saúde e de combate à privatização das políticas de saúde. A criação do SUS só foi possível pela construção de um movimento pela reforma sanitária, suprapartidário e plural, que reuniu segmentos sociais muito amplos em defesa de profundas mudanças no sistema e serviços de saúde, reafirmando o direito do povo a uma saúde universal e de qualidade. O marco jurídico-legal da política de saúde brasileira, substanciado da definição ético-política de que saúde é direito de qualquer um, tem se apresentado como uma importante abertura e possibilidade de se reformar o sistema de saúde do país. Contudo, a inscrição legislativa não é uma garantia per si para a transmutação de valores e de práticas no sistema de saúde, e a base jurídico-legal do SUS se apresenta, sobretudo, como orientação ética, política e organizacional para se construir um novo sistema de saúde, pautado na justiça social, na equidade e na solidariedade. Uma aposta e um horizonte ético e utópico. A construção de uma nova realidade jurídica não garante a produção de mudanças na velocidade 702

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desejada, pois a organização dos serviços de saúde é permanentemente atravessada por interesses múltiplos de grupos sociais, forças instituintes que tensionam e provocam mudanças nas regras e nas práticas de saúde. Nem mesmo a direção das mudanças está assegurada, e a disputa entre interesses antagônicos - como privatização e o bem comum, teses universalistas ou restritivas de acesso, a oferta de práticas integrais ou cardápios básicos, entre outros -, se depura e se define no jogo da política. Nestes vinte anos de SUS, nestes vinte anos de luta, muitos avanços têm sido registrados e, certamente, o Brasil está incluído entre as nações que consideram a saúde como um valor social substantivo; e este entendimento tem tomado forma na construção de um robusto sistema público de saúde, a maior organização sanitária da América Latina. Nestes vinte anos de SUS, reorganizou-se a rede de atenção, solidificando-a a partir do fortalecimento de estratégias de atenção básica; ampliou-se o acesso das pessoas aos serviços; o território nacional foi integrado por meio de redes de atenção municipalizadas e regionalizadas; ampliou-se a quantidade, a diversidade e a qualidade dos trabalhadores da saúde, avançando-se na organização do trabalho em equipe; investiu-se em pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico tanto de equipamentos quanto de insumos estratégicos, entre os quais vacinas e medicamentos; foram desenvolvidos sistemas de informação e de gestão, que permitiram monitorar resultados e melhorar o processo de tomada de decisão. Além disto, o SUS passou a contar com vários programas e políticas reconhecidos como de excelência, a exemplo dos programas de imunização e de prevenção de DST/Aids, entre outros. Mas estes avanços são do tamanho dos desafios que o SUS ainda tem pela frente: superação da cultura sanitária biomédica, que associa saúde a ação médica e acesso a remédios e hospital, concepção que permite a medicalização da vida; aporte insuficiente de recursos para financiar as ações de saúde (subfinanciamento do SUS); iniquidades no acesso; vazios assistenciais em muitos territórios; inexistência operacional de rede de atenção, o que dificulta a continuidade dos tratamentos; ineficiência da atenção básica, ainda entendida como ação direcionada para população pobre; forte presença da cultura hospitalocêntrica e de interesses privados, corporativos e político-partidários na definição de políticas de saúde e na organização de serviços de saúde (privatização); cultura federativa subdesenvolvida que leva à competição por recursos e à baixa responsabilização sanitária entre municípios e destes com os estados; baixa capacidade de ordenamento dos processos de formação de trabalhadores às necessidades do sistema de saúde, sobretudo nos programas de graduação e residência das carreiras da saúde; ausência de uma “carreira SUS” para trabalhadores da saúde, entre outros. Ou seja, o sistema de saúde brasileiro, percorridos vinte anos, traz ainda fortes marcas, em sua estrutura e organização, de concepções que se hegemonizaram, sobretudo, a partir de meados da década de 1960 (Oliveira, Teixeira, 1986), que instituíram um sistema privado, assistencialista e essencialmente focado para a intervenção sobre doenças, portanto desprovido de capacidade de colocar a vida, a produção de saúde em primeiro lugar, de pôr o humano como centro da ação da política de saúde.

Política de Humanização: a experiência do SUS que dá certo como estratégia de enfrentamento de problemas e desafios que ainda marcam a política pública de saúde brasileira É necessário compreender que os avanços conseguidos e a presença ainda marcante de desafios no SUS se devem à própria dinâmica das políticas públicas, atravessadas que são por interesses políticos e econômicos que se (re)atualizam sistematicamente. As políticas públicas de saúde devem ser analisadas e avaliadas à luz de seus contextos históricos, políticos e institucionais, que permitem compreender os padrões de capilaridade e seletividade da máquina de Estado à ação de grupos de interesse. Além disso, a efetividade das políticas de saúde decorre da capacidade do próprio setor saúde de lidar com suas questões organizativas e de gestão, entre as quais a de acumular forças para alterar os modos de atenção, fazendo prevalecer interesses do bem comum, do coletivo. A análise da construção social, política e institucional do SUS faz com que ele seja compreendido como um movimento ambíguo, apresentando-se, ao mesmo tempo, como avanço na universalização e qualificação do acesso, e como conservação de contradições que marcaram o sistema de saúde COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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brasileiro como um dos mais injustos do planeta. O SUS, em um só tempo, é mudança e conservação (Pasche et al., 2006). A Política de Humanização (Brasil, 2007) se apresenta e se constrói exatamente nesta dobra, neste duplo reconhecimento: há um SUS que dá certo e há problemas e contradições que necessitam ser enfrentados. A PNH considera que existem construções e experimentações desenvolvidas na política pública de saúde em muitos planos, âmbitos e lugares que permitem afirmar que se avançou tanto na construção de novos modos de gerir, como na constituição de novos modos de cuidar, em conformidade com a base discursiva do SUS. Foi a partir da verificação, escuta, análise e síntese deste SUS que dá certo que se produziram tanto os princípios, método, diretrizes e os instrumentos de ação, os dispositivos da PNH (Brasil, 2007). Assim, a Política de Humanização não parte senão de próprios acúmulos de experiências de uma grande quantidade de sujeitos coletivos espalhados por muitos lugares deste país, que atuam e produzem inovações em uma vasta gama de serviços, em “espaços do cuidado” e nos “espaços de gestão”. Esta opção metodológica tem efeito de positivação sobre o SUS, pois embora considere os problemas e os desafios do SUS, não parte deles, e sim da localização de elementos substantivos das experiências que permitiram superar desafios, para propor modos de fazer e direção aos processos de mudança na saúde. Este movimento de positivação potencializa a ação de sujeitos e coletivos sociais, pois não partindo do negativo extrai efeitos de amplificação e de contágio para a mudança. Assim, não se tomam os problemas senão para enfrentá-los, cujas ferramentas discursivas e concretas de ação se constroem a partir da positividade das experiências. Esta é uma sensível e radical diferença, um importante deslocamento para o enfrentamento das contradições do SUS, pois ali onde se anunciava o problema (os modos de gerir e de cuidar), onde se localizavam as dificuldades mais radicais (ação autônoma dos sujeitos) e a impossibilidade da construção de planos de ação comum (relação entre sujeitos com interesses e necessidades não coincidentes) é que se vai buscar a força e a possibilidade da produção da mudança. Ação de contágio e afecção pelo SUS que dá certo, que “dá certo” como modo de fazer e como direção ético-política. Das experiências concretas nos serviços e práticas do SUS, da análise de sua construção, é que a PNH extrai, então, suas construções discursivas e práticas. Seu arcabouço organizativo articula, de forma orgânica, princípios, método, diretrizes e dispositivos. Das experiências do SUS que dá certo, a Política de Humanização tomou, então, uma trinca de princípios, articulados e indissociáveis: - a inseparabilidade entre modos de gestão e de atenção, compreendendo que são mutuamente influenciados e determinados; - transversalização de saberes, poderes e afetos na ação cotidiana dos serviços e das práticas de saúde, fomentando deslocamentos subjetivos e a produção de planos de ação comum sem, contudo, borrar a ponto de negar especificidades, senão colocando-as em relação, em rede, para diferir; - aposta na autonomia e protagonismo dos sujeitos, que em relação e guiados por orientações éticas - também construções históricas - são capazes de acionar vontade e desejo de mudança, construindo redes de corresponsabilização. Estes princípios – de onde se parte – convocam a reflexão de como fazer para que eles se inscrevam de forma efetiva nas práticas de saúde, ou seja, exigem que se definam modos de fazer. Assim, está colocada a questão sobre o método, caminho a ser percorrido para a construção de novas realidades. As experiências dos SUS que dá certo informam sobre a inclusão, ou seja, apontam para a criação de estratégias de inclusão de sujeitos nos processos de produção das próprias mudanças. A PNH toma este princípio, amplificando-o e qualificando-o como método da tríplice inclusão: - inclusão de todos os sujeitos nos arranjos, processos e dispositivos de gestão, na clínica e na saúde coletiva. Incluir implica a construção de espaços coletivos para pôr em contato, em relação, sujeitos para que, no encontro, produzam entendimentos e ações comuns. Em outras palavras: promover o cotejamento de diferenças entre sujeitos para a construção de processos de corresponsabilização na gestão e no cuidado e pelos encargos que daí derivam;

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- inclusão de coletivos, redes e movimentos sociais. O SUS, como aposta na mudança dos modos de gerir e de cuidar na saúde, se solidifica e tende a ser mais estável se encarnado como experiência coletiva, como síntese da pluralidade de interesses e necessidades heterogêneos. O fomento e a produção de redes sociais tanto na condução e gestão da coisa pública, como na efetivação do cuidado clínico e de saúde coletiva, ampliam a sustentação de mudanças na política pública (sempre síntese de interesses plurais e heterogêneos) e a construção de novos sujeitos nos processos de produção do cuidado (corresponsabilização) e da saúde coletiva (ação coletiva sobre territórios, na perspectiva da produção ampliada de saúde e da cidadania); - inclusão de analisadores sociais, da perturbação emergente da inclusão de sujeitos e coletivos sociais nos arranjos e dispositivos de gestão e do cuidado (individual e coletivo). Esta inclusão talvez seja a mais radical na PNH, pois o encontro de alteridades não pode ser compreendido apenas como abertura à participação em direção aos usuários e trabalhadores para uma maior aderência a prescrições heterônomas, ou para simples melhorias nos processos de gestão convencional das organizações. Incluir o outro implica atitude generosa que suscita alteração nas relações de poder entre os sujeitos. Alterar relações de poder requisita deslocamentos e ressignificação dos lugares e posições que se ocupam na relação com o outro na perspectiva da produção de corresponsabilização; o que exige, por sua vez, relativizar construções prévias ao encontro, para nele produzir ação comum. Isto não quer dizer abrir mão da tradição, da ciência, de mandatos sociais, mas utilizá-los como recursos para a coprodução de saúde. Incluir o outro e incluir a perturbação desta inclusão impõe a necessidade de lidar de forma menos paranóica com a diferença; e a lidar com/e gerir conflitos, entendidos como espaços de abertura, de passagem do outro, condição necessária para a produção de mudança. O método da tríplice inclusão se apresenta, então, como estratégia de construção de processos coletivos, uma vez que propicia o cotejamento, em espaços públicos, de posições não necessariamente coincidentes - portanto expressão do coletivo, sempre plural -, para a produção do comum na diferença. Os princípios da humanização e seu método da tríplice inclusão, todavia, não podem estar desprovidos de orientações éticas, clínicas e políticas, as quais marcam, de forma geral, a direção da ação, da coprodução de sujeitos e de saúde. A PNH aponta para um conjunto de diretrizes, as quais sinalizam direção para as construções coletivas. São elas: - acolhimento, compreendido como atitude de abertura à recepção de necessidades de saúde que se expressam na forma de demandas para os serviços e profissionais da saúde. Acolher requer a construção de respostas satisfatórias às necessidades, independentemente da lógica de organização dos serviços, que devem ter o acolhimento como diretriz norteadora de sua forma de funcionamento. O acolhimento é uma diretriz ética, portanto inegociável e, por isto, uma direção fundamental para a construção de redes de atenção, redes de cuidado; - gestão-participativa e cogestão, que são expressões da democratização das instituições de saúde e das relações entre os sujeitos. Democracia pressupõe abertura, criação de espaços coletivos e sua substantivação, permitindo o cotejamento de diferenças para a produção compartilhada de corresponsabilidade na gestão e no cuidado; - ampliação da clínica, cujos sentidos principais vão em direção à ampliação do diálogo e da interferência dos sujeitos em relação na definição de contratos (de gestão e clínicos); inclusão de alteridades implica acolher a diferença na contratualização de tarefas (ampliação das ofertas de gestão, de cuidado, de práticas etc); personalização do cuidado e dos modos de gestão, considerando que toda relação clínica e de gestão é sempre marcada por interesses, desejos e necessidades de sujeitos que se atualizam e se singularizam nesta relação; - fomento de redes de valorização do trabalho e do trabalhador. Valorizar o trabalhador (e seu fazer, suas construções) implica, pelo menos, três grandes movimentos: (1) inclusão do trabalhador nas definições sobre o funcionamento da organização de saúde, ou seja, descentralização do poder de decisão sobre o cotidiano das instituições; (2) construção e viabilização de melhorias nas condições concretas de trabalho, como remuneração, ambiência, acesso a insumos tecnológicos adequados para a

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produção de saúde etc; e (3) pautar e interferir sobre os elementos e fatores que interferem na produção da saúde do trabalhador, incluindo os trabalhadores no mapeamento e controle de riscos, por exemplo; - defesa dos direitos dos usuários: o SUS reconhece que os usuários são portadores de direitos na saúde, os quais perpassam tanto a gestão do sistema (sistema colegiado de gestão do SUS e de seus serviços), como a relação clínica e da saúde coletiva. Reconhecer direitos requer a percepção do estatuto de sujeitos das alteridades (individuais e coletivas), cujas referências e patamares foram consensuados e pactuados como relações sociais. Os direitos dos usuários – estatuto ético-político – devem (1) pautar e marcar a organização dos processos de trabalho e orientar as práticas clínicas e de saúde coletiva. Além disto, pressupõe a (2) construção de contratos de corresponsabilização, síntese entre “mandato social dos trabalhadores da saúde” e os “direitos dos usuários”, polos antinômicos. Dessa forma, a tensão entre direitos e deveres dos usuários toma o lugar da construção compartilhada do cuidado, que significa reconhecer direitos e mandatos sociais, os quais se atualizam na construção de cuidado singular. - ambiência: o trabalho e o cuidado em saúde acontecem, entre outros, em espaços das organizações da saúde. Estes espaços de trabalho nem sempre respondem aos interesses imediatos dos usuários e trabalhadores, obedecendo, também, a outros interesses e lógicas institucionais multiinteressadas. A produção de sujeitos e de saúde decorre, também, da organização dos espaços de trabalho, os quais devem refletir princípios e diretrizes do SUS, da humanização da saúde. Humanização significa pôr os sujeitos, as pessoas, em primeiro lugar na construção do cuidado e da gestão; e, nesta perspectiva, a reconstrução dos espaços de trabalho deve ser um exercício coletivo para (1) adequar o ambiente de trabalho às diretrizes de reorganização dos processos de trabalho (em equipe e cogeridos) e (2) responder aos interesses dos trabalhadores da saúde e dos usuários (ambiente acolhedor, agradável, como dispositivo de produção de bem-estar e de saúde); - construção de memória dos processos de mudança: política da narratividade – novos modos de fazer requisitam novos modos de narrar, eles mesmos produtores dos sentidos das mudanças. A construção de sentido nas mudanças na produção de saúde, tarefa de sujeitos e coletivos, é fundamental para a sustentação de princípios ético-políticos na reorganização dos serviços e práticas de saúde. Perceber-se construtor da história, construtor de obras (Campos, 1997) é apoderar-se da condição de sujeito que cria o mundo e nele se reinventa. Isto significa reconhecer, como disse Freire (1996, p.19), “que somos seres condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismos, que o futuro [...] é problemático e não inexorável”. Fazer os sujeitos se reconhecerem construtores da história pela narrativa de suas próprias trajetórias, é estratégia de desalienação, de produção de novos sujeitos e da construção de possibilidades de superação dos novos desafios que nascem da própria construção de políticas públicas. O exercício destas diretrizes, ressalta-se, deve sempre interrogar sobre modos de fazer, o que, na perspectiva da PNH, implica a inclusão dos sujeitos, de coletivos, de analisadores sociais e na produção multi-interessada de novas realidades. A PNH reúne um conjunto de princípios metodológicos que a afirma, então, como um modo de fazer, um modo para se enfrentar problemas dos serviços e práticas de saúde. Este modo de fazer considera princípios e diretrizes, orientações gerais para o processo de mudança, os quais são experimentados por meio de arranjos de trabalho (dispositivos). Por dispositivos entende-se não uma prescrição, senão também formas de organização dos processos de trabalho, que se atualizam e tomam sentido em cada uma das experiências singulares, ou seja, são moldáveis à experimentação dos sujeitos e seus contextos político-institucionais.

A Política de Humanização como oferta para se lidar com problemas e contradições que persistem no SUS Outro elemento do qual parte a PNH - além das produções positivas do SUS - é a existência, ainda como marca importante da política pública de saúde, de um conjunto de problemas e contradições, cuja presença indica que há sinais visíveis de crise na saúde brasileira (Campos, 2007). Esta crise é tanto 706

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apontada, de uma parte, pela sociedade como um todo e por usuários em particular, que denunciam: o descaso com o atendimento, a descontinuidade nos tratamentos, longas esperas em filas, pagamentos “por fora”, entre outros problemas, que, muitas vezes, ganham a adjetivação de desumanização do atendimento. De outra parte, os trabalhadores da saúde também têm apontado para uma série de limitações no SUS, quer seja em relação às condições concretas de trabalho - como a baixa remuneração, a inexistência de planos de carreiras e salários - que levam à precarização, à exploração e à desvalorização do trabalho, quer seja em relação aos modos de organização do processo de trabalho, em geral tendentes à expropriação dos trabalhadores dos processos decisórios. Estes problemas apontados por usuários e trabalhadores (no exercício de atividades fins e, também, os que ocupam lugares na gestão) são do estatuto da complexidade, pois incide sobre sua gênese um conjunto de elementos de vários planos, os quais se engendram mutuamente, construindo redes causais complexas. Para o enfrentamento destas realidades hipercomplexas, a PNH aponta para a necessidade do exercício de método, cuja experimentação coloca sujeitos em contato e em relação para que, de forma coletiva e tomando por referências princípios ético-políticos e acúmulos do SUS que dá certo, construam soluções singulares. Assim, a PNH se apresenta como a expressão de um SUS que dá certo, cuja síntese organiza um conjunto de conceitos e ferramentas para a superação de problemas e contradições que ainda permanecem como marcas dos serviços e práticas de saúde. A Política de Humanização não pode, desta forma, ser apenas um valor, algo sobre o qual se inspirariam e se sustentariam práticas, senão deve informar sobre a produção de mudanças concretas (Barros, Passos, 2005) que reafirmam a humanização como um valor. Ou seja, a humanização se assenta na dobra valor - prática social. A experimentação e consolidação de políticas públicas mais equitativas, inclusivas e solidárias é uma tarefa civilizatória porque aposta na capacidade de enfrentamento e contorno de contradições sociais, cuja superação faz emergir novas consciências, novos patamares éticos e políticos, sustentáculos para a qualificação da vida e da experiência em sociedade. É tarefa para os próximos vinte anos do SUS manter vivas e fortalecidas, manter pulsantes as forças sociais e políticas que criaram e sustentaram a reforma sanitária brasileira. Radicalizar o interesse coletivo na ação do Estado, afirmando a natureza pública das políticas sociais, convoca a sociedade civil a “jogar o jogo da política”, a disputar as orientações na condução da coisa pública, ação que se faz em todos os espaços singulares da micropolítica, mas também em outros planos, no interior e nos limites da máquina do Estado. Este é o papel e a função estratégica da Política de Humanização: manter pulsante, no SUS, em cada uma de suas políticas, o espírito e ação solidários, a construção do bem comum e a luta intransigente contra a cooptação deste sentido pela máquina do Estado em geral, por qualquer instituição em particular, ou qualquer grupo singular.

Referências BARROS, R.B.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2007. CAMPOS, G.W.S. Reforma política e sanitária: a sustentabilidade do SUS em questão? Cienc. Saude Colet., v.12, n.2, p.301-6, 2007. CAMPOS, G.W.S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: MERHY, E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.229-66.

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POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO COMO APOSTA...

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. OLIVEIRA, J.; TEIXEIRA, S.F. (Im)previdência social: 60 anos de história de Previdência no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986. PASCHE, D.F. et al. Paradoxos das políticas de descentralização de saúde no Brasil. Rev. Panam. Salud Publica, v.20, n.6, p. 416-22, 2006. A construção do Sistema Único de Saúde (SUS) se inscreve como processo de luta para a afirmação da saúde como um valor social substantivo da sociedade brasileira. O SUS tem produzido uma reforma na saúde ensejando, ao mesmo tempo, mudanças éticas, culturais e políticas. Em duas décadas de experimentação o SUS tem realizado mudanças e conservação de características que marcaram o Brasil como um dos países com maior iniquidade no acesso. A Política Nacional de Humanização (PNH) se constrói no duplo reconhecimento de que há um SUS que dá certo e que há problemas e contradições que necessitam ser enfrentados e, para tanto, organiza um conjunto de conceitos, métodos e dispositivos para o enfrentamento de problemas que ainda permanecem como marcas dos serviços e práticas de saúde.

Palavras-chave: Humanização. Políticas Públicas de Saúde. Sistema Único de Saúde. Cuidado em Saúde. Política Nacional de Humanização. National Humanization Policy as a bet for collective production of changes in management and care methods The construction of the Unified Health System (SUS) has been registered as a process of striving to affirm healthcare as a substantive social value for Brazilian society. SUS has produced reforms in the healthcare sector, while at the same time giving rise to ethical, cultural and political changes. Over two decades of experimentation, SUS has accomplished changes and conserved characteristics that have marked out Brazil as one of the countries with greatest inequality of access. The National Humanization Policy (PNH) has been constructed with the double recognition that SUS works well in some respects but that, in other respects, there are problems and contradictions that need to be addressed. For this, the PNH has organized a set of concepts, methods and devices to face up to the problems that still mark out the healthcare services and practices.

Keywords: Humanization. Public healthcare policies. Health System. Healthcare. National Humanization Policy. Política Nacional de Humanización como apuesta en la producción colectiva de cambios en los métodos de gestión y cuidado La construcción del Sistema Único de Salud (SUS) en Brasil se inscribe como proceso de lucha para la afirmación de la salud como un valor social substantivo de la sociedad brasileña. El SUS ha producido una reforma en salud dando oportunidad, al mismo tiempo, a cambios éticos, culturales y políticos. Eh dos décadas de experimentación, el SUS ha realizado cambios y oonservación de características que habían convertido Brasil en uno de los paises con menor equidad en el acceso. La Política Nacional de Humanización (PNH) se construye en el doble reconocimiento de que hay un SUS eficiente y de que hay problemas y contradicciones que es necesario afrontar y, para tanto, organiza un conjunto de conceptos, métodos y dispositivos para afrontar problemas que permanecen aún como marcas de los servicios y prácticas de salud.

Palabras clave: Humanización. Políticas Públicas de Salud. Sistema Único de Salud. Cuidado en Salud. Política Nacional de Humanización. Recebido em 11/12/08. Aprovado em 02/05/09.

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A rede como estratégia metodológica da Política Nacional de Humanização: a experiência de um hospital universitário Maria Lúcia Rodrigues Falk1 Márcia Ziebell Ramos2 Jennifer Braathen Salgueiro3

Introdução A humanização das relações de trabalho e da assistência em saúde tem ocupado, nos últimos anos, espaços significativos de formulação de políticas públicas em diversos fóruns ligados à saúde no âmbito hospitalar. Esse tema aponta para a importância da ação e contextualização das dimensões do cuidar e do viver humano. O governo tem se empenhado na elaboração de políticas públicas capazes de oferecer maior ressonância e viabilidade na busca da qualidade e humanização hospitalar (Salgueiro et al., 2007). Possui, como premissas básicas: a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, bem como o fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos; o aumento do grau de corresponsabilidade; o estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; a identificação das necessidades sociais de saúde; a mudança nos modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho, tendo como foco as necessidades dos cidadãos e a produção de saúde; o compromisso com a ambiência e a melhoria das condições de trabalho e do atendimento (Brasil, 2006). Neste sentido a compreensão da saúde se dá como processo de produção, que, para além do binômio queixa conduta, considera a complexidade das relações entre os diferentes envolvidos nos processos de produção de saúde (trabalhadores, gestores e usuários). A humanização é então considerada “como processo de subjetivação, que se efetiva com a mudança nos modelos de atenção e de gestão em saúde, isto é, novos sujeitos implicados em novas práticas de saúde. Assim, pensar a saúde como experiência de criação de si e de modos de viver é tomar a vida em seu movimento de produção de normas, e não de assujeitamento a elas” (Benevides, Passos, 2005a, p.570). O Ministério da Saúde propôs a criação da Política Nacional de Humanização (PNH), que traduz princípios e modos de operar no conjunto das relações entre todos que constituem o SUS. Sendo que, especialmente, o modo coletivo e cogestivo de produção de saúde e de sujeitos implicados nessa produção é que deve orientar a construção da PNH como política pública (Santos Filho, 2007). A proposta de humanizar deve estar fortemente vinculada com a reforma das modalidades clínicas, que se desenvolvem em hospitais, caso contrário corre o risco de ser banalizada e tratada com superficialidade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Grupo de Enfermagem, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Rua Ramiro Barcelos, 2350, Rio Branco, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-903 mfalk@hcpa.ufrgs.br 2 Serviço de Psicologia, HCPA. 3 Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação, HCPA.

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Esse pensamento aposta no protagonismo do sujeito e na potencialidade do coletivo. Compreende o sujeito “como produto resultante de um funcionamento que é de produção inconclusa, é heterogenético, nunca havendo esgotamento total da energia potencial de criação das formas. É por isso que dizemos que a subjetividade é plural, polifônica, sem nenhuma instância dominante de determinação” (Benevides, 2005, p.23). O profissional da saúde, ao refletir sobre as condições e relações de trabalho e o seu modo de agir, pode inserir-se na realidade de uma maneira mais crítica e consciente (Backes, Lunardi Filho, Lunardi, 2006). Assim, a política de humanização passa pela imbricação das linhas de ação da assistência, gestão e ensino, de modo a potencializar outros modos de fazer saúde em hospitais. O presente artigo é um relato de experiência instituída no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), uma instituição pública e universitária ligada ao Ministério da Educação e à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que há 34 anos vem oferecendo atendimento de qualidade aos pacientes – na grande maioria, por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS) – e desenvolvendo atividades de ensino e pesquisa em saúde. Possui, como visão, ser um referencial público de alta confiabilidade em saúde. A proposta deste relato foi a de descrever a formação da rede de contatos como uma das estratégias criada pelo Grupo de Trabalho de Humanização (GTH) para implantação dos demais dispositivos da PNH no HCPA.

Metodologia As redes representam um dispositivo preconizado pelo Ministério da Saúde para a implantação da Política Nacional de Humanização. Têm como objetivo a transversalização (Kamkhagi, 1986) nos processos de comunicação e modos menos “tradicionais” de se construírem as relações institucionais e de desdobramentos nos modos de fazer gestão. Nesse sentido ativa-se “a produção de redes quentes, orgânicas ou redes sociais, que valorizam os serviços mais descentralizados e alteram as relações entre equipes localizadas nos espaços mais periféricos e aquelas equipes, serviços ou profissionais localizados em espaços mais valorizados e centrais” (Righi, 2006, p.87). Tais redes, dessa forma, constituem dispositivo, no sentido da “sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra bloqueado de criar, de seu teor de liberdade em se desfazer dos códigos que procuram explicar dando a tudo o mesmo sentido. O dispositivo tensiona, movimenta, desloca para outro lugar, provoca outros agenciamentos” (Benevides de Barros, 1997, p.189). A rede de contatos, como dispositivo, se põe a funcionar nos encontros, nos momentos de escuta, de trocas de experiências, de debates e da problematização dos desafios lançados pela PNH aos grupos de trabalho. Possibilita o entrelaçamento nos modos de trabalhar e produzir saúde e o estímulo às iniciativas e ao protagonismo das equipes, seguindo o princípio da inseparabilidade entre atenção e gestão, incide no enfrentamento da “fragmentação usual dos processos de trabalho” (Santos-Filho, Barros, 2007, p.207), apostando na indissociabilidade entre o planejar, o decidir, o executar e o avaliar. Os processos de trabalho das equipes de saúde, tendo em vista os princípios da PNH, instigam os grupos à revisão dos seus modos de operar. Isso equivale a dizer que as pessoas são capazes de desenvolver mudanças em si, no grupo e no ambiente (Campos, Amaral, 2007). Entendemos a Rede enquanto um grupo, enquanto espaço de produção e criação (Barros, 2007). Podemos tomar esse campo grupal como um emaranhado de linhas e entrelaçamentos, que o compõem e formam redes, de identificações, de encontros e desencontros (Fernández, Del Cueto, 1985). Redes que produzem sentidos e sujeitos, construindo os caminhos e as histórias dos coletivos. Quando iniciamos com a implementação da PNH no HCPA, no início de 2005, nos deparamos com as idéias de humanização voltadas para o senso comum, ou seja, aquelas atribuídas à boa educação ou à caridade dos sujeitos implicados nos processos de trabalho, na época consonantes com os pressupostos do então Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), cujo objetivo era o de promover uma mudança de cultura no atendimento de saúde no Brasil, por meio da implementação de ações humanizadoras.

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O PNHAH propõe um conjunto de ações integradas que visam mudar substancialmente o padrão de assistência ao usuário nos hospitais públicos do Brasil, melhorando a qualidade e a eficácia dos serviços hoje prestados por estas instituições. É seu objetivo fundamental aprimorar as relações entre profissional de saúde e usuário, dos profissionais entre si, e do hospital com a comunidade. Ao valorizar a dimensão humana e subjetiva, presente em todo ato de assistência à saúde, o PNHAH aponta para uma requalificação dos hospitais públicos, que poderão tornar-se organizações mais modernas, dinâmicas e solidárias, em condições de atender às expectativas de seus gestores e da comunidade. (Brasil, 2001)

Nessa ocasião identificamos que, nas ações humanizadoras propostas por grupos e equipes, havia fragmentos possíveis de serem resgatados e ampliados à luz da PNH e seus dispositivos. Cabe retomar que, até 2004, o Hospital atrelava a humanização a um Programa de Humanização até então existente, com iniciativas independentes, unidirecional, na maioria das vezes indicadas pelas chefias e sem caráter de continuidade. A temática da humanização destacada pelo PNHAH e problematizada pela PNH, posteriormente, já era tangenciada em outros espaços públicos de discussões sobre a saúde. Neste sentido destacamos as discussões e avanços possibilitados pela 8ª Conferência Nacional de Saúde. O relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, serviu de base à conquista da sociedade brasileira, organizada no Movimento da Reforma Sanitária, para que, na Constituição Federal de 1988, fosse reconhecido o direito à saúde como direito de todos e dever do Estado, estabelecendo a universalidade, a integralidade, a equidade, a descentralização, a regionalização e a participação da população como os princípios e diretrizes legais do Sistema Único de Saúde (SUS). As Leis Orgânicas da Saúde (n.8.080/90 e n.8.142/90) regulamentam esses princípios, reafirmando a saúde como direito universal e fundamental do ser humano. O conceito ampliado de saúde, elaborado nessa Conferência, define que “saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. Essa definição envolve reconhecer o ser humano como ser integral e a saúde como qualidade de vida. Passados 13 anos da criação do SUS, em 2003, o Ministério da Saúde (MS) decide priorizar o tema da humanização como aspecto fundamental a ser contemplado nas políticas de saúde. A 11ª Conferência Nacional de Saúde inicia um processo mais amplo de reflexão, destacando a temática sobre a humanização, que posteriormente será priorizada em todo o conteúdo do Relatório Final da 12ª Conferência Nacional de Saúde, nos seus nove eixos temáticos, que dá ênfase à humanização dos serviços de saúde - sendo esta nas relações e nos atendimentos, na qualidade de vida no trabalho, no caráter multiprofissional do trabalho na saúde e na rejeição de qualquer tipo de preconceito. No eixo temático II, na diretriz 47 desse relatório, está prevista a implantação de uma política de humanização. Esta política vem substituir o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) de 2000, que buscou implementar, no SUS, o conceito de atendimento humanizado. No sentido desse resgate e ampliação foi que, alicerçado nos princípios da PNH, o GTH criou a Rede de Contatos. Esta Rede foi formada por um conjunto de setores ou locais de trabalho interessados na temática da humanização, os quais foram contatados pelos componentes do GTH com o objetivo de oportunizar a estas diferentes áreas o diagnóstico das fragilidades ou inconformidades nos processos de gestão e atenção, assim como identificar as necessidades em termos de humanização tanto do ambiente de trabalho para os profissionais quanto para os usuários. Com isso surgiram propostas e iniciativas voltadas à implementação de melhorias, favorecendo a construção de um ambiente, onde a política de humanização fosse a base das práticas e dos processos decisórios quanto à atenção em saúde. A experiência das redes no Hospital de Clínicas vem se estruturando, desde que surgiu a ideia de uma interseção interna entre as iniciativas humanizadoras, efetivada por meio do contato realizado pelo GTH com as diferentes áreas e serviços do hospital, no sentido de sensibilizá-las e dar visibilidade institucional às iniciativas já existentes. Após vários encontros envolvendo a ouvidoria institucional, o Grupo de Trabalho Gestão do Cliente – com a análise dos resultados das pesquisas de satisfação – e de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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reuniões realizadas com diferentes grupos e serviços, delimitaram-se as seis primeiras áreas convidadas a comporem a rede. As áreas são aqui definidas como espaços, unidades ou serviços - que, no caso deste hospital, pode ser a recepção de um ambulatório, ou uma área administrativa ou financeira, ou, ainda, um Centro Cirúrgico ou uma Unidade de Cuidados Intensivos. Tais áreas foram se dispondo de modo a, juntas, comporem uma Rede, que a cada ano vem se ampliando, com a adesão de novas áreas e implementação de outras iniciativas humanizadoras. Inicialmente, a Rede de Contatos foi constituída das seguintes áreas: Serviço de Processamento de Roupas, Serviço de Marcação e Coleta de Exames, Centro Obstétrico, Serviço de Emergência, o Morgue (local onde os familiares aguardam o preparo do corpo para efetuar o translado e funeral) e as Unidades de Internação de Pacientes, as quais foram identificadas pelas iniciativas de humanização já existentes, por serem apontadas tanto pela Ouvidoria como pela Pesquisa de satisfação do Cliente como espaços que necessitavam o trabalho do GTH ou por serem áreas de origem dos componentes do GTH. No sentido de consolidar a Rede, o GTH reunia-se com as áreas e/ou suas parcerias, coordenando as atividades de integração, troca de experiências e fomento a novas práticas e modos de gestão e trabalho. As reuniões eram realizadas com os contatos das áreas (trabalhadores identificados com a temática da humanização e que se encarregaram, nos seus locais de trabalho, de fazerem a interface entre o GTH e as ações de humanização ali desenvolvidas), mas, também, com a presença dos gestores dessas áreas e demais trabalhadores. Acompanhavam-se in loco os processos de implementação dos dispositivos, realizavam-se apresentações públicas e geravam-se avaliações. Esses espaços/ acontecimentos estimulavam ao grupo em questão e inspiravam aos demais em busca de melhorias nos processos de trabalho. Aqui compreendemos estes espaços enquanto acontecimento no sentido de sua potência disrruptiva, do impacto e do rompimento que possibilitam (Carreteiro, 2003 p.268). A apresentação das ações, por parte das áreas, propiciava, neste sentido, ambiente para a reflexão das práticas, provocando a revisão das relações de trabalho e oportunizando iniciativas para avanços nos processos de atenção e gestão.

Resultados e discussão O GTH lançou mão de diferentes estratégias e ações para a sensibilização quanto à temática da humanização e para a composição e ampliação da Rede de Contatos. Destacamos diferentes ações, tais como: revisão de processos de trabalho com impacto para os trabalhadores e usuários, salientando-se as melhorias no ambiente físico e psicológico; criação do Link - L-Humanização, que é uma forma de contato com o GTH por meio de acesso direto na página da intranet do HCPA, facilitando, agilizando e transversalizando a comunicação, realização de eventos com a temática da humanização, produções científicas e apresentação de pôsteres em encontros, jornadas e congressos. Outra ação a destacar, no sentido da propagação e contágio, é a publicação de textos no Jornal Espaço Aberto (jornal com circulação interna, produzido no HCPA), divulgando os dispositivos e as ações pró-humanização na instituição, bem como a produção da “carta de intenções” (iniciativa das diversas associações de profissionais, juntamente com a Administração Central do Hospital de Clínicas) para a otimização das relações interpessoais. Durante o primeiro ano (2005-2006), as seis áreas da rede interagiram por meio de reuniões, encontros e debates promovidos pelo GTH, propagando suas ações e iniciativas e contagiando outras áreas. Estas áreas, inicialmente, desenvolveram estratégias para melhorar seus processos de trabalho, de atenção e gestão. Três delas concentraram-se no dispositivo ambiência, uma das áreas no acolhimento e as duas restantes no dispositivo saúde do trabalhador. As Unidades de Internação Pediátrica desenvolveram melhorias após um diagnóstico realizado pelo projeto de pesquisa “Avaliação das ações humanizadoras desenvolvidas na Pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre” (Salgueiro et al., 2007), apresentando as melhorias produzidas por intermédio das intervenções com o grupo de pais. A área da lavanderia canalizou as suas iniciativas para a valorização e o reconhecimento do trabalho desses profissionais, culminando na criação do dia do “Processador de Roupas”. A terceira unidade foi 712

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o Centro Obstétrico, que iniciou seus processos com o “parto humanizado”, ampliando seus indicadores a quase 100% de acompanhamento no momento do parto, com a presença do pai ou outro familiar, além de instituir as medidas não farmacológicas no momento do parto. O Morgue foi um espaço que despertou interesse e discussão de várias áreas, a começar pelo Comitê de Ética. Reformas estruturais no ambiente, melhorias de processos (revisão da certidão de óbito), organização do ambiente – com o respeito às diferentes crenças e religiosidades – e melhor acolhimento aos familiares foram esforços conjuntos que transformaram o ambiente, suas salas, divisórias e seus corredores. Nesse período, também houve a criação de espaços de discussão permanente por meio de Rodadas de conversa - método adaptado do “Método da Roda” (Campos, 2000) -, realizadas em diferentes áreas da instituição, com a participação multiprofissional. O envolvimento das áreas com a implantação de dispositivos da PNH, encontros com demais apoiadores da PNH, associações interprofissionais, atividades de extensão pró-humanização, encontros macrorregionais pró-humanização, representaram iniciativas marcantes envolvendo profissionais, acadêmicos e professores da instituição. A partir de então, foram se ampliando os contatos, e, com o decorrer do tempo, novas áreas passaram a compor a rede, sendo que, no segundo ano, esta era constituída por 23, e, no terceiro ano, por quarenta áreas. As ações do GTH tiveram a função de ligar experiências e potencializar os grupos para o protagonismo, utilizando-se de um “modelo de rede que comporta assimetrias de saber e poder, e cuja transformação depende da construção de práticas de co-responsabilização na direção de um processo em prol da autonomia das pessoas” (Souza, Moreira, 2008, p.333). A experiência da humanização foi sendo propagada e vivenciada por diferentes atores e sujeitos, implicados no processo de produção da saúde, buscando-se, por meio dessas ações, transversalizar a rede, que foi se potencializando e multiplicando-se. Ampliando, assim, o “grau de abertura que garante às práticas de saúde a possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de decisão que faz dos vários atores sujeitos do processo de produção da realidade em que estão implicados” (Benevides, Passos, 2005b, p.393), dando forma a um cenário que abarque a pluralidade das modalidades de invenção por intermédio da experiência do trabalho. Apontamos, como facilitadores para a implantação da Rede de Contatos, o apoio institucional recebido por parte da Administração Central do HCPA com relação à constituição do GTH e a abertura para as propostas encaminhadas por este. O histórico de protagonismo percorrido pelo hospital, no que diz respeito a ações de inclusão e escuta a pacientes e familiares, como, por exemplo, a permanência conjunta de pais e filhos na unidade de internação pediátrica - que antecede ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o comitê de defesa dos direitos da criança hospitalizada, que há muito já foram implantados no cotidiano do hospital - foi um aspecto que contribuiu no sentido da aceitação das propostas da Política, bem como o incentivo e a concessão para que integrantes do GTH realizassem atualização quanto aos pressupostos teóricos da PNH, por intermédio da participação em cursos promovidos pelo Ministério da Saúde. Também ressaltamos aqui alguns aspectos que, em muitos momentos, se colocaram como obstáculos. Podemos destacar: o acúmulo e sobreposição de atividades tanto por parte dos integrantes do GTH como dos contatos da rede; a dificuldade em identificar as pessoas que fossem sensíveis e receptivas com a proposta da PNH e que, assim sendo, tivessem possibilidade de desenvolver ações no sentido da propagação dos seus pressupostos. E somado a isso, o desafio de implantar uma política que se diz transversal no núcleo de uma organização hierárquica. Fato que nos colocou, muitas vezes, na situação de buscar legitimação de ações e iniciativas desenvolvidas por protagonistas, muitas vezes com um lugar institucional de pouco reconhecimento e visibilidade. Dessa forma tornou-se fundamental a inclusão da escala hierárquica em toda e qualquer negociação, que envolvesse os processos de trabalho e as ações de saúde. Esse cenário configurou o contágio institucional em relação aos princípios da PNH e seus dispositivos, na medida em que, nos encontros da Rede de Contatos, ia se dando visibilidade às experiências e iniciativas pró-humanização e transversalizando de modo a serem replicadas e reinventadas nos/e pelos diferentes grupos de trabalho.

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Considerações finais O modelo de gestão, na grande maioria dos estabelecimentos de saúde, possui, como característica fundamental, a centralização de poder e pouco espaço para as ações democráticas. Em vários hospitais, os processos de gestão estruturam-se de forma quase inflexível, “fortalecendo os acordos internos entre grupos e promovendo uma política de favorecimentos e negociações veladas” (Abrahão, 2008. p.100). Um sistema de poder verticalizado, com muitos níveis hierárquicos, em que as tomadas de decisões são centralizadas, induz ao descompromisso e à alienação entre a maioria dos trabalhadores. Um processo de trabalho centrado em procedimentos pode levar ao descomprometimento das equipes de saúde, reduzindo, assim, a corresponsabilidade nas ações e nos resultados. Outra condição da qual não se pode alienar é que, na atualidade, o hospital ainda cultiva e mantém sua hegemonia sobre as ações de saúde, e assim reproduz um modelo de gestão pouco democrático, que reitera práticas de trabalho cristalizadas, que não favorecem a emergência de sujeitos transformadores dos modos de gerenciar e fazer saúde (Abrahão, 2008). Nesta perspectiva, reforça-se a noção de integralidade e relações múltiplas interativas, onde se faz imprescindível a indissociabilidade do cuidado e do gerenciamento. Essa indissociabilidade provoca alterações nos modos de atenção e de gestão, culminando num alto grau de autonomia com aumento da responsabilidade dos trabalhadores, usuários e gestores (Pasche, 2007). Nesse compasso, “as equipes se tornam mais potencializadas quando têm reconhecido seu espaço social de atuação, com mais autonomia, crescimento nos conhecimentos técnicos e diálogo mais autêntico entre disciplinas” (Erdmann et al., 2006, p.486). Embora o cotidiano do hospital submeta, constantemente, os profissionais a situações críticas e indesejáveis, como falta de leitos numa emergência super lotada e a escassez de recursos humanos provocadores de dilemas éticos, acreditamos que é possível a inter-relação entre todas as pessoas, sejam elas profissionais ou pacientes. Essa convivência propicia viver em harmonia, mesmo diante das tensões dos momentos mais difíceis, pois acreditamos que é possível trilharmos caminhos onde possamos demonstrar, com intensidade, a complexidade exigida pelo cuidado, bem como sua ambiguidade e implicações subjetivas enquanto ansiedade e preocupação, mas também atenção, desvelo e solicitude (Eizirik, 2002), e a consequente e preconizada humanização. É desta forma que o GTH vem estimulando a todos, por meio da construção da rede de contatos, a exercer essa prática aliada a constante reflexão e revisão dos modos de produzir saúde. A configuração desta rede possibilita que as ações de humanização, permeando diferentes espaços e atores da organização, possam dar um fluxo que seja transversal aos interstícios dos organogramas e hierarquias organizacionais e das relações. Tendo em vista a vivência das redes e o protagonismo dos sujeitos e atores em saúde, se faz necessário encontrar novas estratégias que propiciem soluções para a grave questão existente nas instituições de saúde, ou seja, para a massificação do atendimento ao ser humano. Mesmo todas as iniciativas postas em prática não têm sido suficientes. Enfim, a humanização no universo contextualizado anteriormente decorre do olhar de compreensão e do protagonismo e alteridade dos profissionais de saúde.

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FALK, M.L.R.; RAMOS, M.Z.; SALGUEIRO, J.B.

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Colaboradores As autoras contribuíram igualmente em todas as etapas do manuscrito. Referências ABRAHÃO, A.L. Colegiado gestor: uma análise das possibilidades de autogestão em um hospital público. Cienc. Saude Colet., v.13, n.1, p.95-102, 2008. BACKES, D.S.; LUNARDI FILHO, W.D.; LUNARDI, V.L. O processo de humanização do ambiente hospitalar centrado no trabalhador. Rev. Esc. Enferm. USP, v.40, n.2, p.221-7, 2006. BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2007. BENEVIDES DE BARROS, R. Dispositivos em ação: o grupo. In: LANCETTI, A. (Org.). Saúde e loucura, subjetividade: questões contemporâneas. v.6. São Paulo: Hucitec, 1997. p.183-91. BENEVIDES, R.B. A Psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais interfaces? Psicol. Soc., v.17, n.2, p.21-5, 2005. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.561-71, 2005a. ______. Humanização na saúde: um novo modismo. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.389-406, 2005b. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pnhah01.pdf >. Acesso em: 23 jun. 2009. CAMPOS, G.W.S. Um método para a análise e co-gestão de coletivos: a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000. CAMPOS, G.W.S.; AMARAL, M.A. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Cienc. Saude Colet., v.12, n.4, p.849-59, 2007. CARRETEIRO, T.C. Acontecimento: categoria biográfica individual, familiar, social e histórica. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/ Loyola, 2003. p.267-85. EIZIRIK, M.F. Michel Foucault: um pensador do presente. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. ERDMANN, A.L. et al. Gestão das práticas de saúde na perspectiva do cuidado complexo. Texto Contexto Enferm., v.15, n.3, p.483-91, 2006. FERNÁNDEZ, A.M.; DEL CUETO, A.M. El dispositivo grupal. In: PAVLOVSKY, E. (Org.). Lo grupal 2. Buenos Aires: Ediciones Busqueda, 1985. p.13-56. v.2. KAMKHAGI, V.R. Horizontalidade, verticalidade e transversalidade em grupos. In: BAREMBLITT, G. (Org.). Grupos: teoria e técnica. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.205-19. PASCHE, D.F. A reforma necessária do SUS: inovações para a sustentabilidade da política pública de saúde. Cienc. Saude Colet., v.12, n.2. p.312-4, 2007.

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A REDE COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA ...

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FALK, M.L.R.; RAMOS, M.Z.; SALGUEIRO, J.B.

Este estudo enfoca a rede de contatos como estratégia metodológica da Política Nacional de Humanização (PNH). Trata-se de um relato de experiência, instituído no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), que buscou identificar as ações de humanização suscitadas pela formação da Rede de Contatos no âmbito da instituição. O Grupo de Trabalho de Humanização do HCPA procurou estruturar uma Rede que abrangesse o maior número possível de áreas no hospital, iniciando um trabalho de sensibilização dentro dos setores e buscando promover ações convergentes com as propostas pela PNH. Observou-se que, desde 2005 até agora, várias ações humanizadoras aconteceram nas diversas áreas envolvidas, demonstrando que o dispositivo das redes é ferramental precioso para a instituição, pois oferece indicadores para a PNH e favorece a interrelação entre os diferentes atores que buscam, para além das dificuldades de um cotidiano hospitalar, a promoção de outros modos de fazer em saúde.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Política de saúde. Redes comunitárias. Assistência hospitalar. The network as a methodological strategy for the National Humanization Policy: the experience of a university hospital This study focuses on contact networks as methodological strategies for the National Humanization Policy (PNH). It reports on experience instituted at Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), in which it was sought to identify humanization actions that arose through the formation of contact networks within the scope of the institution. HCPA’s Humanization Work Group sought to structure a network that would encompass the largest possible number of sectors in the hospital, thus starting awareness-raising work within these sectors and seeking to promote actions convergent with the PNH proposals. It was observed that, from 2005 to today, several humanizing actions occurred in the various sectors involved, thereby demonstrating that the network device is a precious tool for the institution, since it provides indicators for PNH and favors interrelationships between the different players that seek to go beyond the difficulties of everyday hospital activity, to promote other means of healthcare practices.

Keywords: Humanization of care. Healthcare policy. Community networks. Hospital care. Da red como estrategia metodológica de la Política Nacional de Humanización: la experiencia en un hospital universitario Este estudio enfoca la red de contactos como estrategia metodológica de la Política Nacional de Humanización (PNH). Se trata de un relato de experiencia instituido en el Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCFA), estado de Rio Grande do Sul, Brasil, que trató de identificar las acciones de humanización suscitadas por la formación de la Red de Contactos en el ámbito de la institución. El Grupo de Trabajo de Humanización del HCPA procuró estructurar una Red que comprendiese el mayor número posible de áreas en el hospital, iniciando un trabajo de sensibilización dentro de los sectores y tratando de promover acciones convergentes con las propuestas por la PNH. Se ha observado que, desde 2005 hasta ahora, varias acciones humanizadoras se producen en las diferentes áreas, demostrando que el dispositivo de las redes es instrumento precioso para la institución pues ofrece indicadores para la PNH y favorece la inter-relación entre los diferentes actores que procuran, más allá de las dificultades de un cotidiano hospitalario, la promoción de otros modos de hacer en salud.

Palabras clave: Humanización de asistencia. Política de salud. Redes comunitarias. Asistencia hospitalaria. Recebido em 30/12/08. Aprovado em 17/06/09.

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Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP) como dispositivo de cogestão: uma aposta no plano coletivo Maria Elizabeth Mori1 Fábio Hebert da Silva2 Fernanda Luz Beck3

A Política Nacional de Humanização (PNH) foi criada em 2003, pelo Ministério da Saúde (MS), com o objetivo de encontrar “outras respostas à crise da saúde, identificada por muitos como falência do modelo SUS” (Benevides, Passos, 2005, p.389). Usuários e trabalhadores da Saúde reivindicavam o direito à saúde por meio do acolhimento resolutivo e melhores condições de trabalho, respectivamente. As propostas humanizadoras4 não questionavam os modelos de atenção e de gestão instituídos, mas expressavam-se em ações fragmentadas, numa imprecisão e fragilidade do conceito de humanização. O termo humanização ligava-se ao “voluntarismo, ao assistencialismo, ao paternalismo ou mesmo ao tecnicismo de um gerenciamento sustentado na racionalidade administrativa e na qualidade total” (Benevides, Passos, 2005, p.390). A PNH, portanto, vem para responder ao desafio da criação de uma política transversal - e não mais programas desarticulados - “com princípios, métodos e diretrizes como instrumentos de ação com um efeito de positivação do SUS” (Pasche, 2008)5, apostando nas experiências concretas do “SUS que dá certo”. Estes princípios tratam da indissociabilidade entre os modelos de gestão e da atenção; transversalidade como ampliação do grau de comunicação existente entre os diferentes programas e políticas, saberes profissionais e instâncias do SUS (Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais) e dos serviços da rede (Atenção Básica e Secundária e Terciária); autonomia e protagonismo dos sujeitos envolvidos na produção de saúde, a corresponsabilização, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão (Brasil, 2008a). A PNH, portanto, não pode ser confundida com uma ação pontual, mas uma política de governo que se pretende pública ao apostar na criação de condições para a efetivação de novos modos de organização da gestão e do cuidado nas unidades e serviços do SUS, produzindo mais saúde para as pessoas e com o envolvimento de mais pessoas. Neste sentido, passa a convocar gestores do nível central, trabalhadores e usuários para o desenvolvimento de uma produção de cuidado em saúde, cuja ênfase está na dinâmica das relações, no encontro e nas trocas entre diferentes sujeitos e coletivos. O respeito às singularidades e o reconhecimento da alteridade são pilares dessas relações. Para Sadala (1999), a alteridade deve ser entendida como um critério fundamental da ética aplicada às situações da saúde, uma vez que trabalhador e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização (MS/ SAS/PNH). SHIN QL 01, conjunto 02, casa 15, Lago Norte. Brasília, DF, Brasil. 71505-025. beth.mori@gmail.com 2,3 MS, SAS, PNH.

Na busca da qualidade na atenção ao usuário, a partir de 1999 o MS propôs algumas ações e programas, entre outros: Programa Nacional de Humanização e Atenção Hospitalar (PNHAH), Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH), Programa de Modernização Gerencial dos Grandes Estabelecimentos de Saúde.

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Dario Pasche, coordenador nacional da PNH, abordou este tema na roda de discussão do Eixo I: “Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde”, no Seminário “A humanização do SUS em debate”, proposto pela PNH e realizado em Vila Velha, ES, dias 24 e 25 de junho de 2008, com o objetivo de ampliar a interlocução dos formuladores da PNH com a comunidade acadêmica.

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usuário, cada qual numa posição e função, devem ser capazes de apreender o outro na plenitude de sua dignidade, de seus direitos e, sobretudo, da sua diferença. Deslandes (2008)6 aborda uma questão central relacionada com a criação de espaços de análise coletiva do trabalho (gestão e atenção): o cuidado, o zelo e a responsabilização. A ética como cuidado de si e do outro se revela como um ponto complexo dentro do tema das dinâmicas comunicacionais. “O manejo das narrativas, da escuta, a conversa e o diálogo são tecnologias das mais imprescindíveis para a produção do cuidado humanizado em saúde” (Deslandes, 2008, p.1). Por isso, a aposta na humanização como um paradigma “ético, estético e político” para transformar as relações de trabalho e de cuidado com o ‘outro legítimo’ para a real produção de saúde. Ética porque implica a atitude de usuários, gestores e trabalhadores de saúde comprometidos e co-responsáveis. Estética porque acarreta um processo criativo e sensível de produção de saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas. Política porque se refere à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS. (Brasil, 2008a, p.62)

Os meios pelos quais o modelo político da PNH tem se atualizado em agenciamentos coletivos concretos estão direcionados, em grande parte, para um pacto de cogestão e de “outra” valorização do trabalho. Para se efetivar esta proposta ética e política visando modelos de atenção e de gestão mais próximos da vida cotidiana daqueles que compõem o SUS, lança-se mão de dispositivos que ultrapassam simples normatizações (sem negar sua importância dentro dos processos de trabalho) e criam-se modos outros de organização do trabalho com base nas experiências singulares de cada lugar. Dentre estes dispositivos, encontrase a Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP), um método de análise dos processos de trabalho que passa por um exercício cotidiano de produção de conhecimento, contribuindo para a transformação da realidade instituída. O presente texto situa a CAP como aposta em uma metodologia de construção coletiva que tem, como perspectiva ética, a sustentação autônoma do conjunto de trabalhadores da Saúde. Objetiva-se refletir sobre a construção de espaços de diálogo onde os trabalhadores possam analisar os efeitos dos processos de trabalho em sua própria saúde.

A roda de conversa como possibilidade de encontro dialógico entre sujeitos no campo do trabalho contemporâneo Gastão Campos (1991) afirma que o conceito de humanização fala diretamente sobre os seres humanos, e que um dos grandes problemas da lógica de mercado contemporânea é o esquecimento das pessoas. Políticas econômicas têm sido avaliadas de acordo com sua capacidade de produzir crescimento ou estabilidade monetária, e não necessariamente de melhorar as condições de vida. A ordenação do espaço urbano há muito deixou de lado a preocupação com o bem-estar coletivo. Em saúde, é comum a redução de pessoas a objetos a serem manipulados pela clínica ou pela saúde pública. Pela perspectiva da PNH, o humano diz respeito ao protagonismo dos sujeitos e à centralidade da vida humana. Segundo o psicanalista Joel Birman (2006), a partir dos anos noventa, são cada vez mais frequentes, na clínica, usuários apáticos e desesperançados que reclamam da indolência e sofrem de mal-estares difusos. O vazio se manifesta em 720

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6 Roda de discussão do Eixo II: “Humanização e organização dos serviços e práticas de saúde”, no Seminário referido na nota anterior.


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reclamações vagas e aflitas nas quais o sujeito se sente engolfado e impotente, tais como as depressões, a chamada síndrome do pânico e as compulsões em geral. Na compulsão, denota-se um sujeito que, para livrar-se do mal-estar, utiliza-se de ilusões de breves e fortuitos momentos de prazer, estimulado pelo “mundo externo”, tenta preencher-se com drogas ilícitas e lícitas, alimentos, sexo, bens materiais etc. Dessa forma, surgem modos contemporâneos de sofrimento. A depressão, condição radical do desalento, surge quando o sujeito perdeu qualquer possibilidade de construir um projeto de vida. Algumas outras características desse sofrimento são: o gosto pelo efêmero; o presente como instante fugaz; a perda de referência temporal; a obsolescência das qualificações para o trabalho, dos valores e das normas de vida; o prestígio do paradigma da moda; a competição como forma de constituição da identidade pessoal; o medo gerado pela insegurança; a perda de autonomia sob o poderio do ‘discurso competente’; o consumo; a supervalorização midiática da juventude, da beleza, da saúde ideal, do sucesso, do poder etc. A busca pela “felicidade” própria, identificada pelo sucesso como atributo unicamente pessoal, é atualizada pela eliminação do outro, do diferente (eliminação não necessariamente física, mas moral, profissional etc.). As situações de trabalho em saúde se desenrolam em um cenário onde as condições dos processos de trabalho têm impactado negativamente a vida do trabalhador (Santos-Filho, 2007): precarização do trabalho e de suas condições (vínculos diversificados propiciam salários diferenciados e redução de direitos até para as mesmas categorias, infraestrutura deficiente); organização e relações de trabalho calcadas na lógica de mercado e em modelos de gestão tradicionais, que dificultam a compreensão e a implementação efetiva da gestão participativa e cogestão (burocracia excessiva, limitação da autonomia, da corresponsabilização e do protagonismo dos trabalhadores); subvalorização do servidor público pela população e governo, gerando privatizações, instabilidades e adversidades de diferentes ordens; situações de violência no âmbito do cotidiano dos serviços (entre trabalhadores e usuários e trabalhadores); concepção de “rede” que avança na perspectiva da “regulação” dos serviços, mas não apresenta proposta que propicie a participação ativa e criativa de todos os atores, saberes e instituições que compõem o sistema. Essas situações têm requerido habilidades e atitudes de improvisação por parte dos trabalhadores, “criação” e “invenção” nos modos de enfrentar o trabalho extenuante. Por isso temos afirmado que “nos processos de trabalho em saúde as instituições devem ser espaços de produção de bens e serviços para os usuários e, também, espaços de valorização do potencial inventivo dos sujeitos que nelas trabalham” (Brasil, 2008b, p.4). Não é possível propor/pensar a gestão em saúde, seja a gestão do Sistema, seja a dos serviços, seja a gestão da atividade, sem que se leve em conta o modo como estas políticas se constroem e o que nelas se reafirma como “público”. Entendemos que a construção de políticas públicas deve estar conectada e comprometida com a coletivização da gestão, com a publicização das relações entre trabalho (saberes), sujeitos (necessidades, desejos e interesses) e poderes (modos de por em relação saberes e sujeitos). (Barros, Barros, 2007, p.65)

Diante disso, uma política pública de saúde tem a função de engendrar relações mais amplas de trabalho, a fim de promover diálogos nos dissensos. Diálogos cada vez mais efetivos na construção coletiva de um SUS sustentado por sua dimensão pública, que servirão também de orientação para o trabalho em saúde, tanto na gestão quanto no cuidado, por princípio, indissociáveis. O diálogo produzido em rodas de conversas é a estratégia mais importante para a cogestão dos processos de trabalho no SUS. Segundo Campos (2003), o objetivo dessas rodas é a construção de projetos de intervenção para abrir possibilidades, superar os impasses institucionais e incluir as relações de poder, afeto e a circulação de conhecimentos em análise. Então, quando se trata da criação de espaços dialógicos, pretendemos pensar coletivamente modos de viver o que chamamos de indissociabilidade entre gestão/atenção e transversalidade na experiência concreta. E, para isso, é necessário considerar as “tecnologias de manejo de escuta e de negociação de regras”, e inventar “modos de lidar (relacionar-se) com a variabilidade das situações de trabalho” (Deslandes, 2008, p.1). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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CAP e cogestão Na história do mundo do trabalho, encontramos experiências de luta por ambientes laborais mais saudáveis. Na década de 1970, no bojo da efervescência dos movimentos pelos direitos humanos, surge o “Modelo Operário Italiano de Luta pela Saúde” (MOI). Paralelamente ao crescimento socioeconômico e aumento da produção nas indústrias, ocorria uma desqualificação e desgaste do trabalhador, com baixos salários e péssimas condições de trabalho. Para enfrentar esta situação, ocorreu uma mobilização coletiva formada por “técnicos” da área da saúde, operários e sindicalistas, que se debruçaram sobre a análise da organização e dos processos de trabalho (Brasil, 2009). Este novo modelo de produção de conhecimento - relação entre saberes “formais” dos pesquisadores (acadêmicos/científicos) e saberes “informais” dos trabalhadores - aparece como uma nova forma de fazer pesquisa no ambiente de trabalho e de interpretar o processo saúde e doença. Denominado de Comunidade Científica Ampliada (CCA), ao invés de ignorar ou desqualificar a experiência dos trabalhadores, o saber científico dialoga com o saber operário, tendo, como ponto de partida, a pesquisa sobre o local de trabalho. Buscava-se compreender as condições e as dinâmicas que podem gerar o sofrimento e conduzir ao adoecimento, bem como as estratégias que esses trabalhadores criam no seu dia-a-dia de afirmação de saúde e de vida. No Brasil, influenciados pela experiência italiana, um grupo de pesquisadores inicia um projeto de pesquisas sobre a problemática da saúde dos/as trabalhadores/as em uma área diferente da nossa, nas escolas públicas. Esse projeto tinha por objetivo compreender a relação entre o trabalho e os processos de saúde-doença, numa perspectiva de transformar as situações consideradas nocivas. Assumindo e afirmando que o trabalho é elemento central na produção do processo saúde-doença e, consequentemente, que a transformação do trabalho é fundamental para a conquista da saúde. (Brasil, 2009)

Inspirados na expressão Comunidade Científica Ampliada, estes pesquisadores preferiram denominar o espaço no qual poderia se constituir essa rede de informações, a troca de experiências e construção de outras estratégias coletivas, por outra expressão: Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP). Nos aspectos relativos à diretriz “Valorização do trabalho e do trabalhador de saúde” na PNH, a CAP tem sido um dispositivo de intervenção para uma compreensão ampliada das relações existentes entre saúde e trabalho, considerados indissociáveis. Entendemos que é impossível cuidar da saúde sem considerar as formas de organização adotadas pelos trabalhadores para lidar com as demandas do cotidiano de trabalho e as estratégias de enfrentamento das experiências de sofrimento em serviço. Promover saúde nos locais de trabalho é aprimorar a capacidade de compreender e analisar o trabalho de forma a fazer circular a palavra, criando espaços para debates coletivos. A gestão coletiva das situações de trabalho é critério fundamental para a promoção de saúde. Trata-se de compreender as situações nas quais os sujeitos trabalhadores afirmam sua capacidade de intervenção no processo de tomada de decisões no âmbito das organizações de saúde. (Brasil, 2008b, p.8)

Dentro dessa perspectiva de criar espaços dialógicos nos serviços, a CAP, inserida no Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST)7, composta por multiplicadores (consultores e apoiadores da PNH, pesquisadores e trabalhadores locais das unidades de saúde), implica a transformação das condições adversas de trabalho.

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Deseja-se que o encontro e o diálogo crítico entre os diferentes saberes e práticas subsidiem e orientem o trabalho em equipes multiprofissionais atentas à análise da relação dinâmica entre o fazer e o pensar sobre o cotidiano do trabalho e a produção de saúde. A intervenção coletiva, ao tornar o trabalho mais criativo e menos repetitivo, promove a saúde do trabalhador e contribui para a transformação social. A metodologia de implantação do PFST pode ser adaptada à realidade dos locais de trabalho. Inicialmente, os participantes/trabalhadores de saúde organizam módulos de leitura e discussão de textos sobre saúde, trabalho, gestão e grupalidade. As discussões destes textos remetem os trabalhadores ao próprio ambiente de trabalhos e às condições de saúde e de sofrimento, reafirmando a inseparabilidade entre saúde e trabalho.

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O PFST apresenta-se como um dispositivo da PNH que tem como objetivo promover um espaço de formação fundado no diálogo permanente - no diálogo entre os diferentes trabalhadores e no diálogo entre os distintos saberes.

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E nessa direção temos experimentado o PFST, cujo maior desafio tem sido o de conjugar diferentes pesquisas, por em diálogo crítico os conhecimentos e análises científicas com ações práticas concretas de mudanças, como se espera da área da saúde pública. (Santos-Filho, Barros, 2007, p.132-3)

Este processo dialógico crítico permanente propiciado pelo PFST/CAP não se limita a ser um momento de transmissão de informações, de conhecimentos, mas, antes, um momento de escuta e de abertura para o outro, no diálogo. Essa abordagem tenta enfatizar as diferentes vozes que compõem qualquer diálogo, fazendo um convite à aceitação do outro, legitimando e reconhecendo a validade do saber do outro, explicitando a riqueza das experiências de vida e estratégias inventadas. Esses espaços que permitem o diálogo das práticas no processo de trabalho são instrumentos essencialmente cogeridos, onde o trabalhador, estabelecendo parcerias, constitui-se como ator no processo de investigação sobre a questão da saúde e sua relação com os processos de trabalho. O objetivo é que cada trabalhador torne-se também um multiplicador desse conhecimento, aumentando a rede de cooperação de informações e experiências sobre o trabalho. A idéia neste processo de formação profissional em Saúde Pública é que cada um é sujeito ativo de um processo de investigação sobre os assuntos relacionados à saúde e ao trabalho. Cada trabalhador, ao participar desse processo, é convocado a: apropriar-se dos conceitos apresentados, realizar estudos sobre sua realidade, socializar suas produções e debatê-las nos encontros da CAP. No processo de trabalho, os trabalhadores “usam de si” por si. A cada situação que se coloca, o trabalhador elabora estratégias que revelam a inteligência que é própria de todo trabalho humano. Portanto, o trabalhador também é gestor e produtor de saberes e novidades. Trabalhar é gerir. Gerir junto com os outros. (Brasil, 2008b, p.7)

Nesse sentido, a CAP é muito mais uma “função” do que propriamente um “lugar”, pois se trata do uso que se faz dela. Então, é mais bem definida como uma “estratégia” para se disparar o exercício dos princípios da PNH. A simples implantação da CAP não garante que, nos processos de análise coletiva do trabalho disparados, haja transformação do modelo de gestão instituído. Temos nos deparado, por exemplo, com situações onde os trabalhadores utilizam o espaço para reproduzir uma forma de funcionamento paralisante, onde a reclamação e as queixas restringem qualquer possibilidade de mudança no sentido da cogestão: “Como vamos propor COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mudanças se o gestor não nos apoia? Eles nunca estão presentes”, “Os trabalhadores não sabem o que é o lugar da gerência! Reclamam que não participamos dos processos, mas quando estamos presentes todos se calam!”, “Nada vai dar certo se não começar a mudar de cima!”, “Os trabalhadores fazem é corpo mole!” Falas como estas permeiam intensamente os grupos de discussão. Nestes momentos de entropia é que a intervenção do apoio institucional se faz potente. Os consultores, apoiadores externos, podem provocar o deslocamento necessário para o exame desta situação. “Por estarem menos implicados do que os dirigentes e membros da equipe, com as disputas internas por poder e com a circulação viciada de afetos. Podem ajudar o grupo a enxergar e a trabalhar impasses fundados nesta dinâmica” (Campos, 2003, p.94). A CAP é uma estratégia de compartilhamento de experiências e troca de afetos na qual a própria humanização torna-se a atualização de ações éticas, e não afirmação de identidades fixas (a visão do “especialista”, do “usuário”, do “gestor”). Como podemos construir coletivamente modos de fazer isso nos serviços? Essa é a questão que direciona a CAP. Os dispositivos não são “coisas” prontas que se implantam em determinados serviços sem que se coloquem em análise as formas de organização que os processos de trabalho têm produzido. “A perspectiva de valorização é algo a ser compreendida e construída com o próprio trabalhador, a partir de suas realidades de trabalho e negociações que se deve disparar no próprio cotidiano dos serviços, das equipes, da rede. Não cabem, portanto, “prescrições”, nem “receitas” de valorização” (Santos-Filho, 2007, p.261). Pensar essa questão coletivamente é a direção que esta proposta de intervenção pretende seguir, de modo que possamos incorporar, ao nosso fazer cotidiano, isso que estamos chamando de análise coletiva do trabalho. A CAP aponta para um maior diálogo dos saberes (experiência e conceito) e para um trabalho mais saudável nos serviços do SUS, além da ampliação dos momentos de aprendizagem coletiva que permitem a construção de ferramentas de análise das condições geradoras de sofrimento e adoecimento. O trabalhador não é mera vítima que sucumbe às sistemáticas tentativas de desqualificação/ expropriação. O trabalho desempenha função importante na luta contra o adoecimento, na medida em que, sendo invenção, (re)existe, (re)criando o trabalhador e o próprio processo de trabalho. Invenção de si e de mundo, esta é a face do processo de trabalho que queremos na política de humanização afirmar, criando condições de emergência dos fazeres, dando visibilidade às práticas. Desfazer a relação dor-desprazer-trabalho passa a ser desafio a ser enfrentado com os trabalhadores. (Barros, Barros, 2007, p.67)

A potencialidade de transformação da realidade proporcionada pela CAP configura-se na ampliação da escuta e da visão do outro como alguém capaz de colaborar na compreensão da realidade. Um novo modo de perceber o cotidiano vivido, isto é, o que antes era considerado natural, simples, fácil, ganha novos sentidos. Multiplicando a experiência de investigação, de análise, de descoberta, de debate, poderá ser possível enriquecer a própria experiência. Espaços onde a cogestão ganha contornos claros, mas não endurecidos e, desta forma, temos outra valorização dos processos de trabalho. A cogestão qualifica a gestão participativa. Cogestão é um arranjo, um modo de atuação de uma gestão participativa. O “co” é a inclusão de outros sujeitos. Também indica uma abertura do conceito de gestão. Corresponsabilização de acordos, combinações e pactuações realizadas nos espaços de gestão. “Aqui está o cerne da democratização das instituições, já que isso somente ocorrerá quando houver possibilidade de que todos exerçam um pedaço da gestão” (Campos, 2003, p.94). Tratamos, portanto, de um imperativo ético: criação de métodos de acolhimento do outro. O método é incluir. A inclusão não é para fazer qualquer coisa. É abrir espaço para a conversa e para a democratização das instituições, democratizar a organização do trabalho e as organizações de saúde. O trabalhador ainda tem pouco (muitas vezes nenhum) espaço para discutir sobre seu trabalho. Cogestão significa colocar em discussão o tema da democracia e da ética. A corresponsabilização se efetiva com métodos de cogestão: colegiados gestor, oficinas, câmaras técnicas e rodas de conversa. Estes não são espaços de mera troca de informação entre emissor e receptor, mas, sim, de inclusão de sujeitos, saberes, experiências etc. A roda pode ser o espaço para se 724

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Segundo Lourau (1975, p.284), um analisador é aquilo que permite revelar a estrutura da organização, provocá-la, forçá-la a falar. É o acting-out institucional.

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discutir a dor, a alegria, o prazer e de ofertas de tecnologia (Campos, 2000). O PFST pode ser um lugar onde nascem rodas. A CAP é uma roda. A PNH, portanto, indica um modo de fazer cogerido para enfrentar os desafios do cotidiano na saúde, considerando os acúmulos já conquistados. Qualquer problema só pode ser resolvido de forma satisfatória se nos comprometermos em superá-lo. Reorganização dos processos de trabalho não trata do fim dos problemas, mas de outros modos de lidar com eles. Os dispositivos da PNH não são fórmulas para eliminar problemas, mas para transformá-los em desafios. Tudo pode voltar à estaca zero se não conseguimos incluir as pessoas para pensarem juntas na melhor estratégia. Cuidar da saúde é dever do estado e direito do cidadão. Para isso, é necessário construir contratos com a população e com os trabalhadores. Os princípios do SUS – universalidade, integralidade e equidade – convocam a cogestão pela inclusão da diferença: sujeitos, saberes, movimentos sociais e analisadores8. O conceito de humanização, redefinido segundo os princípios e as diretrizes da PNH, e a adoção do dispositivo PFST/CAP levam em conta que os trabalhadores são sujeitos sociais engajados em práticas locais e que, se mobilizados, são capazes de transformar o cotidiano do trabalho, transformando-se a si próprios neste mesmo processo. Trata-se, então, de investir, com base nesta concepção de humano, na produção de outras formas de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde, deles usufruem e neles se transformam, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo (Benevides, Passos, 2005). O SUS é um espaço de construção de compromissos, de corresponsabilidade com a constituição de uma política pública. Para isso, é necessária a superação da fragmentação dos serviços, e a solução está na capacidade de se compreender o problema e se construírem estratégias para enfrentá-lo. A CAP é uma dessas estratégias.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências BARROS, M.E.; BARROS, R.B. Da dor ao prazer no trabalho. In: SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p.61-72. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização: um novo modismo. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Caderno de Textos do Programa de Formação em Saúde e Trabalho/PFST. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

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COMUNIDADE AMPLIADA DE PESQUISA ...

BRASIL. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. rev. Brasília: Ministério da Saúde, 2008a. ______. Trabalho e redes de saúde: valorização dos trabalhadores da Saúde. 2.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2008b. CAMPOS, G.W. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2003. ______. Um método para análise e co-gestão de coletivos a construção do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o Método da Roda. São Paulo: Hucitec, 2000. ______. A saúde pública e a defesa da vida. São Paulo: Hucitec, 1991. DESLANDES, S. Humanização e processo comunicacional. In: SEMINÁRIO A HUMANIZAÇÃO DO SUS EM DEBATE, 2008, Vitória. Comunicação... Vitória, 2008. LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1975. PASCHE, D.F. Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde. In: SEMINÁRIO A HUMANIZAÇÃO DO SUS EM DEBATE, 2008, Vitória. Comunicação... Vitória, 2008. SADALA, M.L.A. A alteridade: o outro como critério. Rev. Esc. Enferm. USP, v.33, n.4, p.355-7, 1999. SANTOS-FILHO, S.B. Dando visibilidade à voz dos trabalhadores: possíveis pontos para uma pauta de valorização. In: SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p.261-6. SANTOS-FILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. A base político-metodológica em que se assenta um novo dispositivo de análise e intervenção no trabalho em saúde. In: SANTOSFILHO, S.B.; BARROS, M.E.B. (Orgs.). Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p.123-42.

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MORI, M.E.; SILVA, F.H.; BECK, F.L.

Objetiva-se problematizar o lugar ocupado pela Comunidade Ampliada de Pesquisa (CAP) no cotidiano da gestão do cuidado em saúde. A CAP é um momento do Programa de Formação em Saúde e Trabalho (PFST), dispositivo da diretriz “Valorização do Trabalho e do Trabalhador da Saúde” da Política Nacional de Humanização (PNH), e fundamenta-se no diálogo permanente entre os trabalhadores da Saúde e seus distintos saberes. Trata-se de uma construção coletiva sobre os modos de fazer saúde no cotidiano dos serviços. Modos que podem ampliar o diálogo que se desenrola nesse contexto, desequilibrando os arranjos instituídos e construindo condições para a democratização da organização do trabalho, efetivando-se, assim, o protagonismo dos trabalhadores da Saúde.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Comunidade ampliada de investigação. Saúde do trabalhador. Gestão em saúde. Educação profissional em saúde pública. Expanded Research Community (ECR) as a device for co-management: a bet at the collective level This paper had the aim of questioning the place occupied by the Expanded Research Community (ECR) in day-to-day healthcare management. The ECR is a point within the Work and Healthcare Training Program (LHTP), which is an instrument for the guideline “Valuing of Work and Healthcare Workers” of the National Humanization Policy (PNH). This is founded on continual dialogue between healthcare workers and their different types of knowledge. This is a collective construction regarding methods for providing healthcare within the day-to-day activities of services. Such methods may expand the dialogue that takes place within this context, to unbalance the established arrangements and build conditions for democratizing the organization of the work, thus making healthcare workers’ participation effective.

Keywords: Humanization of assistance. Expanded research community. Occupational health. Healthcare management. Education public health professional. Comunidad Ampliada de Investigación (CAP) como dispositivo de co-gestión: una apuesta en el plan colectivo El presente texto tiene como objeto cuestionar el lugar ocupado por la Comunidad Ampliada (CAP) de Investigación en la gestión cotidiana del cuidado en salud. La CAP es un momento del Programa de Formación en Salud y Trabajo (PFST), dispositivo de la directriz “Valoración del Trabajo y del Trabajador de la Salud” de la Política Nacional de Humanización (PNH) y se fundamenta en el diálogo permanente entre los trabajadores de la Salud y sus distintos saberes. Se trata de una construcción colectiva sobre los modos de hacer salud en el cotidiano de los servicios. Modos que pueden ampliar el diálogo que se desenvuelve en este contexto desequilibrando los arreglos instituidos y construyendo condiciones para la democratización de la organización del trabajo, efectivándose así el protagonismo de los trabajadores de la Salud.

Palabras clave: Humanización de la atención. Comunidad ampliada de investigación. Salud laboral. Gestión en salud. Educación en salud pública professional. Recebido em 14/01/09. Aprovado em 17/06/09.

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O apoio institucional e a produção de redes: do desassossego dos mapas vigentes na Saúde Coletiva

Michele de Freitas Faria de Vasconcelos1 Aline Morschel2

Introdução

Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista Capes). Avenida Paulo Gama, s/n, prédio 12201, sala 511. Bairro Farroupilha, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.046-900 michelevasconcelos@ hotmail.com 2 Mestranda, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Capes. 1

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida nos quais a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. (Foucault, 2003a, p.13)

Este artigo foi pensado não como afirmação de uma idéia ou formulação de respostas a uma problemática, a um problema. Interessa-nos mais provocar deslocamentos. Pensamos, desde a nossa escrita e por meio dela, nos lançarmos na aventura de produzir formas compartilhadas de andares outros e de andar com outros. Nessas andanças, o objetivo é fazer novas conexões, compondo, como diria Cervantes (apud Vasconcelos, 2008), não uma paisagem de ilha, mas de encruzilhadas, ousando, inclusive, o descaminho. Escrevemos “para fortalecer linhas de fuga nesses tempos em que a perturbação, essa potência de afetação que toda alteridade traz em seu seio se abranda ao ser inadvertidamente incluída, identificada, apaziguada” (Vasconcelos, 2008, p.188). Neste artigo, escrevemos para que análises sejam feitas, para que analisadores aconteçam, ‘revelando’ modos de funcionamento instituídos no campo da saúde coletiva, provocando-os, desestabilizando-os. Inspirando-nos no movimento institucionalista (Lourau, 1995), entendemos o conceito-ferramenta “analisadores” como situações espontâneas3 ou produzidas que colocam algo (uma instituição, um dispositivo, uma encomenda) em análise. É o que, ao emergir em determinada situação - artificial ou espontânea -, possibilita uma quebra dos modos habituais, desestabilizando formas, muitas vezes, percebidas como naturais e até necessárias (Benevides, 2002; Coimbra, 2001). Apostamos, então, numa escrita que se faz para interferir, para perturbar o caráter de evidência dos saberes, fazeres, dos poderes e das sensibilidades que compõem esse cenário. Nele, por meio dele, atentas aos seus movimentos, vamos fiando um percurso, pensando a tessitura de redes de produção de saúde e na possibilidade de estas serem alinhavadas pelo apoio institucional. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

3 Alguns autores têm trabalhado com o conceito de ‘analisador histórico’ ao invés de ‘analisadores naturais’ para tratar destas situações em que o analisador surge sem que seja intencionalmente construído ou artificialmente instalado. Rodrigues (2004, p.146), no entanto, problematiza esta mudança indagandonos se ela resolve a falta de clareza conceitual: “não seriam igualmente históricos os analisadores construídos?”.

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O APOIO INSTITUCIONAL E A PRODUÇÃO DE REDES: ...

Na perspectiva aqui apontada, entendemos que o objetivo central do apoio articula-se ao do analista institucional, qual seja: fomentar análises sobre a dinâmica de relações, de poderes, de práticas, de significações, de afetos que permeiam o estabelecimento analisado, colocando-as a serviço de todas as pessoas aí situadas, conferindo-lhes, assim, meios para pensarem sobre sua função e funcionamento, aliando-se a eles na análise dos ranços institucionais e problemas organizacionais e na subsequente abertura de sentidos, construção de redes e de práticas inéditas, discursivas e não-discursivas. No sentido mesmo de subversão do instituído, mantendo-nos abertos ao irrepresentável e ao indizível, àquilo que está ainda por acontecer, o próprio nome “apoio institucional” deve ser posto em análise. Sua potência reside justamente no fato de ele localizar-se no “entre” das instituições, no “entre” dos estabelecimentos, no “entre” dos serviços, no “entre” atenção e gestão, no “entre” trabalhadores e usuários, no “entre” usuários inseridos nos serviços e usuários que encontramos fora dos espaços institucionais. Conforme indica Lourau (2004), entende-se por instituição tanto um conjunto de normas, bem como o modo como os indivíduos se colocam em relação a estas. Trata-se de uma dimensão que perpassa tanto indivíduos, grupos formais e informais quanto organizações, não podendo ser identificada como um nível ou uma instância específica. Coimbra (2001, p.21-2) ressalta ainda que não é o estabelecimento ou local geográfico que denominamos de instituição, “mas relações e campos de força instituídos e produzidos”, e que, justamente por este caráter de produção, pode ser analisada. Em outras palavras, estamos tratando de um modo de pensar-fazer que circule por entre, na fronteira, nas margens dos saberes e das práticas institucionais, na zona de indeterminação que se produz entre eles. Isso porque entendemos que, nesse lugar de porosidade, é possível tratar o tema da saúde; mais ainda, é possível tratar da vida em sua complexidade. Estamos falando, enfim, de saberes e práticas que aceitam arriscar suas vidas a fim de se imiscuir na vida, de produzir vida, de impregnar e interferir concretamente na vida cotidiana, de atualizá-la (Vasconcelos, 2008).

Saúde Coletiva: campo formado, em formação, formatado, conformado, desassossegado? Na contramão de perspectivas essencialistas e universalistas, que advogam a existência de uma origem, de uma essência, de uma identidade primeira para as coisas que compõem a ‘realidade’, Foucault (2003b, 2001) nos convida a pensar as gêneses como produções. Nesse mesmo sentido, afirma Coimbra (2001, p.38) que “a realidade - enquanto produção histórica [...] está sempre sendo construída por práticas sociais [...] as diferentes práticas vão engendrando no mundo objetos, sujeitos, saberes e verdades sempre diversos, sempre diferentes”. Colocar em análise o campo da saúde coletiva significa, então, desnaturalizá-lo. Significa entendê-lo como datado historicamente, forjando-se por meio de um agenciamento heterogêneo de intensidades (Deleuze, Guattari, 2000), as quais se localizam num espaço e num tempo específicos, e se dão perpassadas por relações de poder. O agenciamento funciona, assim, sempre a favor da produção, a qual se dá de modo simultâneo à sua própria formação. Segundo Kastrup (2000), o conceito de agenciamento nos ajuda justamente a questionar a naturalização de um modo de pensar pautado em categorias modernas que colocam, por exemplo, de um lado, o sujeito e, do outro, o objeto, contextualizando-o e abrindo espaço para sua superação. Ainda para esta autora, “o encontro de fluxos heterogêneos não resulta na representação, mas na invenção de si e do mundo, sempre em transformação” (Kastrup, 2000, p.186). Neste sentido, é preciso ter claro que não se trata da composição de paisagens estáveis, e sim de sequências cênicas instáveis, belicosas, atravessadas por lutas em torno da imposição de práticas, inclusive discursivas: “o discurso veicula e produz o poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo” (Foucault, 2000, p.96). Ou seja, enquanto acontecimento, o discurso possibilita a irrupção de novos sentidos, de novas traduções. Em decorrência do poder que, por meio do discurso se exerce, este último é objeto de disputa, que tendo, como nos indica Foucault (2000, p.139), “suas regras de aparecimento e de circulação”; se coloca, já pela sua existência e não meramente pela sua aplicabilidade prática, como “objeto de uma luta e de uma luta política”. Disso 730

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VASCONCELOS, M.F.F.; MORSCHEL, A.

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decorre a luta pelos sentidos que perpassam o campo da saúde coletiva, inclusive por sentidos atribuídos ao próprio nome ‘saúde coletiva’. Saúde coletiva, campo de conhecimento, campo teórico-metodológico, campo conceitual, campo de pesquisa, campo de práticas. Pesquisar e atuar neste campo, historicamente datado e marcado pela complexidade, exige o esforço de se evitarem simplificações reducionistas, cedendo lugar a formas de experimentação que indicam o desafio de se produzir conhecimento no encontro entre os saberes, no espaço de indeterminação entre as disciplinas, as metodologias e entre os objetos. Exige, sobretudo, um modo de operar que, ao invés de focalizar em objetos-alvo de certas teorias, disciplinas e metodologias, refira-se a práticas transversais e transdisciplinares (Vasconcelos, Barbosa, Morschel, 2007; Passos, Benevides, 2003; Almeida-Filho, 2000; Santos, 1995). Sob que perspectiva(s) tal campo se constitui? Seguindo os rastros de Rodrigues (2000), perspectiva, aqui, não implica a idéia de uma miríade de olhares sobre uma realidade idêntica a si própria. Ela implica, sim, a produção de realidades e, nesse sentido, a própria produção do campo da saúde coletiva. Ou seriam campos, ‘realidades’ saúde coletiva? Formas de entendimento e de atuação variadas condensadas num mesmo nome? Saúde coletiva, campo de dispersão. Campo de intensos confrontos que trazem consigo a possibilidade de abrir passagem para formas inusitadas de pensar e praticar saúde-doença-cuidado. Confrontos epistemológicos, metodológicos, entre disciplinas, entre saberes, políticos, sobretudo, micropolíticos. Despindo-nos de concepções naturalizadas ou fundamentalistas; não nos restringindo aos muros das especialidades e espacialidades, eis que se anuncia a nossa perspectiva: antinormalizadora, desfocada da idéia de produção de verdades universais; um “transitar menor, produtivo, marcado por singularidades, por inventividade” (Lancetti, 2006, p.25).

Habitando a babel Saúde Coletiva

4 Aqui tomamos, como referência, o conceito de ‘macro’ desenvolvido por Deleuze e Guattari (1996), que diz respeito não ao que é grande, mas sim, concebendo-o como um sistema de referência caracterizado por segmentos que tendem à totalização e centralização. Ou seja, trata-se de um sistema duro distinto - porém coexistente - ao ‘micro’ que trata dos fluxos e das intensidades.

O que estamos propondo aqui é um modo de habitar o campo da saúde coletiva, um modo de fazer que, concebendo toda análise como contingente, despoja-se do desejo de apreender a essência de um dito objeto de intervenção (‘a’ saúde, ‘o’ humano, ‘a’ humanidade, ‘o’ coletivo) desvendando sua suposta identidade. Do mesmo modo, nos distanciamos da obstinação de propor ‘o’ Caminho para melhor abordá-lo (‘a’ política, ‘o’ modelo, ‘o’ método). Cabe aqui o desafio de estranhar nossos próprios domínios de referências e, com eles, problematizar a tendência a banalizar e naturalizar os próprios conceitosferramenta Coletivo e Humanização, dos quais temos nos servido para tentar produzir mudança de práticas. Nesse sentido, a formulação de qualquer política, como, por exemplo, a Política Nacional de Humanização (PNH), não é boa ou ruim em si. Há que se analisar os modos como ela vem sendo entendida, apropriada e o que tem disparado. É preciso que nos perguntemos, a todo instante, se o que estamos afirmando, partindo das indicações da PNH, vem produzindo transformações nas posturas e práticas em saúde consoantes aos princípios colocados por esta, efetivando-se o compromisso ético-político de expansão da vida; ou se o uso que tem sido feito de tais indicações tem servido para maquiar, sob novos rótulos e dispositivos, lógicas de cuidado privatistas, especialistas e universalistas, justamente aquelas que pretendemos, com tal política, ultrapassar. Muito se tem falado em direitos humanos, mas sob traduções molares, ou seja, mediante um aspecto ‘macro’4, como expressão ou negação direta de um modelo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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unívoco de identidade, abarcando-se uma pluralidade de formas de viver e de conviver sob a categoria Humanidade. Sobre isso, Coimbra (2001) nos chama atenção para como a própria gênese dos direitos humanos, num entendimento capitalista hegemônico naturalizante e essencialista, determina de antemão quais os direitos a serem garantidos. Ainda segundo a autora supracitada, isto não apenas reforça um privilégio de uma determinada parcela da população, como a elite, bem como aponta uma compreensão em que não cabem as diferenciações, outros modos de sensibilidade e de existência, na medida em que a garantia dos direitos se dá condicionada ao que já se tem instituído como humano. Respaldando-nos na categoria ‘Humanidade’, as diferenças/desigualdades tendem a não ser levadas em consideração ou, pelo menos, não lhes dão a devida atenção: diferenças de classe, de raça/cor, sexuais, de gênero, de religião etc. Ou seja, aquelas pessoas que costumam ser ‘inseridas’ nas redes formais de saúde tendem, ainda, a aparecer, de modo “unilateral e simplista”, como “rostos” homogêneos, como “aqueles que têm um destino já conhecido e previsível” (Coimbra, 2001, p.250). O convite que fazemos é, então, o de gaguejar em nossa própria língua, intentando a desnaturalização da ‘realidade’, dos objetos que nela existem, do humano, do sujeito, bem como do campo da saúde coletiva e dos modos de pensar e praticar saúde-doença-cuidado por ela propostos. O convite também é o de colocar problemas, estranhar o que parece óbvio, encarnar novas práticas, inclusive discursivas, de modo que aquilo que delas se estranhe, possibilite-nos a invenção de outras formas de viver, conviver, trabalhar, produzir, compondo outros cenários, subjetividades e cuidados em saúde. Saliente-se, porém, que não estamos interessados na produção de diferenças ‘quaisquer’, que se dê em qualquer direção. Nosso trabalho tem um norte éticopolítico. Não nos esqueçamos de que o nascimento do que intitulamos de clínica dá-se, conforme salienta Lobosque (2003), justamente em instituições de disciplinamento, como os hospitais psiquiátricos, prisões, fábricas, objetivando a produtividade por meio de todo um “jogo econômico” que faz render a vida e a força dos corpos esquadrinhados. Assim, segundo a autora, há toda uma “vocação histórica” - inclusive da assistência em saúde -, em “fazer valer essas normas, disseminá-las socialmente ao torná-las aceitas incorporadas pelos indivíduos, culpabilizando e corrigindo aqueles que se desviam” (Lobosque, 2003, p.18). É neste sentido, quer o saibam ou não, que a maioria dos profissionais de saúde tem empregado a palavra ‘cuidado’: articulando e subsumindo o objetivo de promover saúde à promoção do ajustamento social; de incluir ao de adaptar, normalizar, tornar igual, abolir a diferença. Nessa direção é que o nosso compromisso ético-político incita o convite a gaguejar em nossa própria língua. Conforme aponta Goldman (2006, p.169): Essa experiência e essa aliança com as linguagens estranhas pode estar a serviço de algo muito diferente [do que a simples identificação e governo das diferenças]5, a saber, dessa contaminação positiva e criativa que toda linguagem sofre quando busca traduzir, ou se aliar, a outras linguagens - e é o que o autor brasileiro João Guimarães Rosa chama de ‘fecundante corrupção das nossas formas idiomáticas de escrever’. [...]. No melhor dos casos, [...] essa questão assume a forma de um desafio que tem um cunho epistemológico, mas também ético e político: como proceder de modo a não reproduzir as relações de dominação a que os grupos sociais que estudamos se acham submetidos?

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[...] Acréscimos nossos.


VASCONCELOS, M.F.F.; MORSCHEL, A.

espaço aberto

Aqui o objetivo do apoio institucional vai começando a se desenhar. Mantendo viva a pergunta supracitada, a função apoio deve ser encarada, sobretudo, como um modo de produzir ‘entre’ linguagens, colocando a assistência prestada pelos ‘peritos’ em saúde, seus saberes e práticas, sob a crítica das idéias e práticas dos grupos ‘assistidos’ e, assim, abrindo-a à invenção. E como se dá a invenção? Há como predizê-la, como antecipá-la? Ou será que, como não se podem produzir linhas de fuga porque elas estão aí, elas simplesmente acontecem, devemos espreitar o cotidiano dos espaços de produção de saúde e embarcar nessas linhas, fortificá-las? Nos espaços concretos, no vivido, no circunstancial, no local, logo ali onde a vida passa, onde a vida pulsa, à revelia de tentativas de aprisionamentos, homogeneizações, por entre engessamentos e burocratizações é que se dá a invenção, é que se dá a possibilidade dos deslocamentos. É justamente logo ali que se situa, à espreita, a potência do apoio institucional.

Borrando mapas: colocando em análise o apoio institucional Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? (Deleuze, 2006, p.18)

Retomando a nossa inquietação central, a saber, a idéia de movimento, ou melhor, o medo de que nossas práticas em saúde possam compor com o objetivo de burocratizar, constrangendo o movimento, o medo de assistir e de participar desse processo de institucionalização da saúde coletiva, da Política Nacional de Humanização, uma questão há que ser colocada: como interferir nesse processo a partir dos espaços que ocupamos, no cotidiano das redes de saúde, inseridas nela. Como resistir? E resistir implica necessariamente habitar esses espaços, movimentá-los, aquecê-los, produzir ‘pequenas revoltas diárias’ ao invés de sonhar com ‘a’ grande revolução (Veiga-Neto, 2001). Habitar os espaços, eis uma potência anunciada via apoio institucional. Segundo as diretrizes propostas pela Política Nacional de Humanização (PNH), apoio é uma função gerencial que reformula o modo tradicional de se fazer coordenação, planejamento, supervisão e avaliação em saúde. É uma lógica, uma metodologia, por meio da qual se pretende desconstruir a idéia de que uma supervisão, um ‘super-olhar’, uma ‘cabeça pensante’ iria, do ‘exterior’ sem envolvimento com o espaço-tempo institucional, com o cotidiano dos serviços, prover os corpos executantes de respostas apuradas. Ao contrário, o apoio institucional tem como objetivo-chave justamente o de construir espaços de análise e interferência no cotidiano, potencializando análises coletivas de valores, saberes e fazeres e, desse modo, implementar e mudar práticas. Optamos por falar e fazer interferência, em contraposição à noção de intervenção, isso porque esta última se articula a uma ação que se pretende completamente orientada por um objetivo preestabelecido. Interferir, antes, coloca-se como uma ação que não intenciona antecipar ‘o’ sentido que sua aproximação com o campo de relações construirá, abrindo espaço para deixar-se surpreender com tal campo e, nele, com os sentidos produzidos a partir de tal interferência (Altoé, 2004). Nesse sentido, anuncia-se a potencialidade da função apoio realizada a partir de uma implicação-inserção no cotidiano dos espaços de produção de saúde, de um olhar construído em conjunto com trabalhadores e usuários (Passos, 2006). A partir das discussões de Araújo (2006, p.61-2), propomos pensar a função apoio institucional como a de um estrangeiro, trazendo a possibilidade de “borrar os mapas vigentes, cronificados” bem como “conceitos e métodos habituais”. “O estrangeiro em si, estrangeiro no outro e o estrangeiro em nós (enquanto o ainda não-atualizado)” traz consigo a potência de perturbação ativada “através tanto daquilo que é quanto daquilo que pode fazer”, isto é, “tanto por sua presença singular, quanto pelos universos do porvir que pode inventar, pelas forças que pode acionar na configuração de novos territórios existenciais, na afirmação de novos mundos”. “Como que lidando com um quebra-cabeça cuja imagem não é estática, as peças não são simétricas nem seu encaixe definido aprioristicamente” (Vasconcelos, 2008, p.14), em campo, por meio do campo, a função apoio institucional pede fluidez. Ela deve ser composta a partir de análises conjunturais, das particularidades de cada cenário, tendo-se como norte o objetivo de produzir marcas e caminhos sutis e singulares de acontecimentos que se entrecruzam formando redes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Rede se define aqui como “uma organização que é complexa, aberta, dispersa, sem centro unificador”, e que tem como princípio a conectividade (Kastrup, 2000, p.17). Já os acontecimentos dos quais falamos se entrelaçam produzindo, como num rizoma, o campo de análise e interferência (Deleuze, Guattari, 2000). Vê-se, então, que o conceito de rede se aproxima do de rizoma, sendo este constituído por linhas, e não por pontos que o fazem crescer por meio de conexões múltiplas e que não obedecem uma organização hierárquica, não sendo ele mesmo uma estrutura, mas uma composição de fluxos variados, “um campo coletivo de forças dispersas, múltiplas e heterogêneas” (Kastrup, 2000, p.20). Nessa direção, o apoio institucional pode ser entendido como um dispositivo de funcionamento em rede. Desse modo, os interstícios, os bastidores não devem ser ignorados, “eles estão presentes, atravessando, influenciando, transversalizando, enfim, as análises realizadas”. O conceito “transversalização”, central na Análise Institucional, entra em cena: refere-se justamente aos interstícios, aos “entrecruzamentos, pertenças e referências de todos os tipos que atravessam os sujeitos, os grupos, instituições e estabelecimentos”, que nos atravessam, enfim (Coimbra, 2001, p.19). Compondo com o que propõe a PNH, entendemos que o apoio institucional abre a possibilidade de funcionar como articulador, como conector, produzindo novos territórios, borrando, embaralhando lugares previamente constituídos como aqueles convencionalmente denominados, identificados, dicotomizados como lugares de gestão e de atenção, de trabalhadores de saúde e de usuários. O apoio institucional se coloca aqui como um híbrido que, sem ponto de partida e de chegada, se faz em meio, no entre, nas margens, movimentando-se e pondo a movimentar os pontos conectados, potencializando a produção de redes quentes e não sectárias. Mas afinal, de que rede falamos? A rede está dada? Ou será que se trata de pensarmos: que redes estamos pondo em funcionamento? Que redes estamos produzindo? Da mesma maneira que assinalamos a necessidade de escapar da insistência na procura das origens, aqui também pontuamos a importância de não idealizar onde chegar. A aposta incide no fazer, no investimento em zonas problemáticas para as quais não encontramos respostas em nossos repertórios, nem mesmo em nossas cartilhas - ainda que estas nos forneçam pistas - arrancando-nos de nossas seguranças e nos impelindo a construir novos itinerários. Eis onde acreditamos se localizar a potência do apoio institucional: a possibilidade de atuar como intercessor, agenciar encontros e fomentar zonas de comunalidade. Conforme Kastrup (2000, p.19), “a grafia do conceito deleuziano de intercessor segue a do verbo interceder, que significa intervir”. Dessa forma, “produzir interferências não é o mesmo que fazer interseção, não significa meramente fazer um cruzamento entre dois conjuntos ou linhas - o importante aqui é que o cruzamento constitui uma zona de interferência”. Já Pelbart (2003), inspirado em Hardt e Negri (2006), nos fala da comunalidade como essa produção do comum, da multidão, mas não como homogeneidade ou “pureza unitária” e essência perdida. Ao contrário, para o autor, e aqui para o que nos interessa em nossa aposta ético-política, pensamos as singularidades e os encontros que se fazem, pensamos na produção de “um comum” que é um “estar com”, incidindo muito mais na potência do entre enquanto lugar virtual onde se “gestam novas modalidades de insubmissão, de rede, de contágio, de inteligência coletiva”, onde se inscrevem as afetações, a produção de laços e a inventividade (Pelbart, 2003, p.84). Partilhando, então, de uma perspectiva ético-político-afetiva e não tecnocrática, há que se registrar nossa implicação com a rede de saúde mental do município de Aracaju-Sergipe, desenhando algumas possibilidades e entraves que aí têm se colocado com relação à prática do apoio institucional. Estamos falando de uma política, de práticas assistenciais, de dispositivos clínico-institucionais em construção, constituindo-se como campo de tensão, inclusive conceitual. E o que isso nos indica? A relevância de se fazer essa construção com base em nossas experiências concretas. Nesse sentido, os próprios conceitos só fazem sentido como conceitos-ferramenta, como ferramentas de trabalho, que nos auxiliem a organizar e executar nossas ‘tarefas’ (Foucault, 2001). Nesse exato momento, estamos discutindo a função apoio institucional, uma função que, na rede de saúde mental aracajuana, compõe o coletivo gestor de saúde mental, de onde se desdobra o seguinte questionamento: como habitar o entre disciplinas, entre clínica e política, entre gestão e atenção, entre 734

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técnicos e usuários, entre saúde e outros setores sociais, entre Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e cidade? Como funcionar como intercessor/analista deste lugar de gestão? Como resistir à burocratização dessa função? Entre algumas saídas pensadas e experienciadas, destacamos justamente a produção e fortalecimento de espaços coletivos de gestão e de análise a respeito do cotidiano dos serviços de saúde mental e seus arredores. Com o objetivo de funcionar como vírus-vida (Pelbart, 2003), de produzir redes quentes de discussão, trazer calor para espaços institucionalizados, compõe a agenda de trabalho dos apoiadores: o habitar assembléias com usuários, reuniões técnicas, reuniões de equipe de referência; o participar das festas, de visitas domiciliares, das reuniões do coletivo gestor de saúde mental; o produzir e fortalecer articulações entre os CAPS, com outros setores da saúde (atenção básica, DTS-Aids, rede de urgência e emergência, atenção hospitalar etc.), bem como parcerias intersetoriais (justiça, educação, cultura, trabalho etc.); o construir com trabalhadores e outros gestores espaços de educação permanente intra, inter e extra-CAPS; o discutir e fortalecer iniciativas de inovação clínico-institucionais, a exemplo de ações comunitárias, abordagens clínicas de rua, o acompanhamento terapêutico, as estratégias de redução de danos; o debater sobre outras diferenças/desigualdades (raça-cor, gênero, sexualidade, religião, classe) etc. Em linhas gerais, a potência da função apoio institucional diz respeito à possibilidade de intercessão, articulação, interferência e produção de redes quentes de cuidado, discussão e análise do que tem sido produzido no cotidiano pelo coletivo de saúde mental (trabalhadores, usuários, comunidade, gestores). Tal interferência tem se desdobrado numa política de contágio e de articulação entre os CAPS, entre saúde mental e saúde, entre outros setores da sociedade e comunidades aracajuanas. Esta traz consigo a possibilidade de alargamento de respostas às demandas de saúde dos usuários e de trabalho dos trabalhadores/gestores, de fortalecimento da linha de cuidado e da (micro)política de saúde mental e de álcool e outras drogas. Acima de tudo, compõe a função apoio institucional problematizar a rede de saúde mental, o que contribui para torná-la quente, seguindo/produzindo movimentos, muitas vezes subterrâneos, comprometidos com a potência de vida, os quais acontecem no dia-a-dia de nossas práticas, solapando a burocratização e a mornidão, fazendo com que a discussão sobre saúde mental extravase dos muros dos CAPS e habite a cidade. Em suma, ao invés de seguirmos obstinados a demonstrar um mundo dado ou um dado mundo, uma rede dada ou uma dada rede, os esforços devem objetivar a produção de mundos, de redes, de sentidos que nunca são antevistos nem muito menos previstos. Construção a posteriori por meio da qual se produzem narrativas cotidianas sobre as práticas cotidianas pelas quais a própria rede de saúde se constitui.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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PELBART, P.P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. RODRIGUES, H.C. Análise institucional francesa e a transformação social: o tempo (e contratempo) das intervenções. In: RODRIGUES, H.C.; ALTOÉ, S. (Orgs.). Análise institucional: Saúdeloucura 8. São Paulo: Hucitec, 2004. p.115-64. ______. Construindo a história do institucionalismo no Brasil: linhas, modelos e ação. In: SEMINÁRIO DE HISTORIOGRAFIA DA PSICOLOGIA, 1., 2000, São Paulo. Anais... São Paulo: GEHPAI/FAPESP, 2000. p.49-80. SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. 7.ed. Coimbra: Edições Afrontamento, 1995. VASCONCELOS, M.F.F. Loucos e homossexuais: consumidores como outros quaisquer. Um estudo sobre modos de subjetivação de relações homoeróticas em um CAPS de Aracaju-SE. 2008. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2008. VASCONCELOS, M.F.F.; BARBOSA, S.; MORSCHEL, A. Problematizando a saúde coletiva: produção de subjetividade no campo da saúde mental. Rev. Vivência, n.32, p.61-70, 2007. VEIGA-NETO, A. Incluir para excluir. In: LARROSA, J.; SKLIAR, C. (Orgs.). Habitantes de babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.105-18.

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Ainda que perpassado por importantes consolidações teórico-práticas, o campo da saúde coletiva configura-se como campo em construção. Atentas a este campo e compondo com os movimentos que nele vão se fazendo, propomos neste artigo realizar um percurso discursivo, pensando a tessitura de redes de produção de saúde com base na função apoio institucional, mais especificamente, a partir de como tal função vem sendo experimentada na rede de Saúde Mental de Aracaju-Sergipe. De acordo com a Política Nacional de Humanização, o apoio institucional deve ser realizado a partir de uma implicação-inserção no cotidiano dos espaços de produção de saúde, de um olhar construído em conjunto com gestores, trabalhadores, usuários e comunidade. Alinhando-nos a tal perspectiva e aposta ético-política, pensamos a função apoio institucional como potente dispositivo de problematização de conceitos e métodos habituais, às vezes cronificados, da Saúde Coletiva, possibilitando novas articulações e produção de redes de saúde e cuidado.

Palavras-chave: Saúde Coletiva. Redes comunitárias. Apoio institucional.

Institutional support and network production: lack of tranquility in the current maps for public health Although the field of public health has achieved important theoretical and practical consolidations, it remains under construction. Therefore, along with movements that will go on forming in this field, we propose a discursive approach for this paper, in order to consider the texture of healthcare production networks, starting from the institutional support function and, more specifically, from how this function has been experienced in the mental health network in Aracaju, Sergipe. According to the National Humanization Policy, institutional support should be given through implication and introduction of space within daily healthcare production, through a viewpoint constructed in conjunction with managers, workers, users and the community. In line with this perspective and the ethical and political bet, we envisage that the institutional support function will be a powerful device for questioning habitual (and sometimes chronic) concepts and methods within public health, thereby enabling new links and the production of healthcare networks.

Keywords: Public Health. Community network. Institutional support. El apoyo institucional a la producción de redes: del desasosiego de los mapas vigentes en la Salud Colectiva Aunque cercano a importantes consolidaciones teórico-práctioas, el campo de la salud colectiva se configura como campo en construcción. En atención a este campo, y en conjunto con los movimientos que en él se van haciendo, proponemos en este artículo realizar un recorrido discursivo pensando la tesitura de redes de producción de salud a partir de la función del apoyo institucional; más especificamente, a partir del modo en que tal función se viene experimentando en la red de Salud Mental de Aracaju-Sergipe, Brasil. De acuedo con la Política Nacional de Humanización, el apoyo institucional ha de realizarse a partir de una implicación-inserción en el cotidiano de los espacios de producción de salud, de una mirada construida en conjunto con gestores, trabajadores, usuarios y comunidad. Aliándose a tal perspectiva y apuesta ético-política, pensamos la función apoyo instituoional como potente dispositivo de problematismo de conceptos y métodos habituales, de la Salud Colectiva hacendo posibles nuevas articulaciones y producción de redes de salud y cuidado. Palabras clave: Salud Colectiva. Redes comunitarias. Apoyo institucional. Recebido em 01/11/08. Aprovado em 11/05/09.

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A prática pedagógica no processo de formação da Política Nacional de Humanização (PNH) Vania Correa de Mello1 Carla Garcia Bottega2

Fazendo acontecer a Humanização no sul do país Pioneiro no país na modalidade Lato Sensu, o curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS foi promovido por meio de parceria3 de cooperação técnica entre diversas instituições. Em seus objetivos, destaca-se a formação de apoiadores institucionais - trabalhadores de saúde - capazes de compreender a dinâmica da produção do processo saúde-doença-atenção e intervir sobre problemas de gestão e processos de trabalho com soluções criativas, tomando, por referência, os aportes teórico-metodológicos da Política Nacional de Humanização (PNH). Considerando seu caratér de curso-intervenção, reuniu trabalhadores da rede de saúde de vários municípios e regiões do Estado, e esteve estruturado em encontros presenciais e atividades de Ensino a Distância (EaD). A estrutura organizativa do curso contou com o trabalho dos formadores e do apoio pedagógico desempenhado pelas alunas do mestrado, com a finalidade de dar suporte ao processo de ensino-aprendizagem durante o percurso de formaçãointervenção dos alunos/apoiadores. Na metodologia de formação da PNH, a denominação dos alunos é substituída pela de apoiadores institucionais, os quais são agrupados por Unidades de Produção (UP)4 que têm, segundo Campos (1998, p.156) “[...] composição multiprofissional e englobam todos os envolvidos com a produção de um certo resultado ou de um certo produto claramente identificável”. No curso em questão, as UPs foram constituídas por profissionais de diferentes formações que tinham em comum a realização de intervenções em seus respectivos locais de trabalho. Cada UP correspondeu a uma turma e congregou em torno de dez apoiadores institucionais de determinada região do estado. A partir da metade do curso, foi se constituindo uma nova configuração de agrupamento, para além do território geográfico restrito às UPs. Ao realizarem um primeiro esboço de seus planos de intervenção, os apoiadores deveriam eleger alguns dos dispositivos ofertados pela PNH, com base na análise dos cenários locais de saúde de suas regiões, solicitados no início do curso. Assim, cinco novos “grupos” passaram a compor o ambiente de aprendizagem virtual5 utilizado: acolhimento, clínica ampliada, cogestão, saúde do trabalhador e Grupo de Trabalho em Humanização. Estes foram os eixos/ COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSI/UFRGS). Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 212. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-003 vrcmello@ig.com.br 2 PPGPSI, UFRGS.

As parcerias ocorreram entre: Ministério da Saúde/SAS/PNH, UFRGS, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), com o apoio da Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul (ESP).

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Na primeira edição do curso, foram constituídas oito UPs, distribuídas conforme a divisão por macrorregiões de saúde do estado do RS: UP Miscelânea (Porto Alegre e Região Metropolitana), UP Hospitais (Hospitais Federais), UP Serra, UP Minuano (Macro Norte), UP Macro Sul, UP HumanizaPampa (Centro Oeste), UP Vales e UP Missioneira.

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Teleduc: ambiente virtual gratuito, criado pela equipe do Núcleo de Informática na Educação (NIED) da Unicamp.

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A PRÁTICA PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO ...

dispositivos escolhidos para disparar os processos de intervenção nos municípios. Os grupos se constituíram então pela afinidade entre os dispositivos utilizados pelos apoiadores em suas intervenções (Paulon, Carneiro, 2009).

Formação e intervenção A Política Nacional de Humanização (PNH) tem se apresentado como uma potente oferta para avançar nas mudanças e na reafirmação de um Sistema Único de Saúde (Brasil, 2007). Ao completar vinte anos de existência e apesar de ainda enfrentar inúmeras dificuldades, é sem dúvida a maior organização sanitária da América do Sul. Além de fazer pensar sobre o processo de implantação do sistema de saúde no país, a PNH vem desacomodar formas já instituídas de atenção e gestão, convocando, para isso, atores estratégicos neste processo - usuários, trabalhadores e gestores - a interferirem nas práticas de saúde a partir de um reencantamento do concreto (Varela, 2003) ou das experiências de um “SUS que dá certo”. Na lógica da desacomodação dos fazeres e saberes, a PNH articula suas ações com base em três eixos centrais (Brasil, 2005): 1 Direito à saúde: acesso com responsabilização e vínculo; continuidade do cuidado em rede; garantia dos direitos aos usuários; aumento de eficácia das intervenções e dispositivos; 2 Trabalho criativo e valorizado: construindo redes de valorização e cuidado aos trabalhadores da saúde; 3 Produção e disseminação do conhecimento: aprimoramento de dispositivos da PNH, formação, avaliação, divulgação e comunicação. A proposta do Curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do Sistema Único de Saúde se apresenta como uma estratégia de implementação do Eixo 3 da PNH: produção e disseminação do conhecimento. Este eixo tem, como um de seus objetivos, incrementar a oferta de processos de formação, educação e conhecimentos sobre a Política Nacional de Humanização, buscando assim formar multiplicadores em gestão compartilhada do cuidado e apoiadores institucionais para processos de mudanças. Uma das ações deste eixo é a criação de cursos e capacitações em Humanização, priorizando a gestão compartilhada da atenção clínica e a formação de apoiadores institucionais em processos de inovações, sejam eles presenciais ou a distância (Brasil, 2006). A política de formação da PNH, afinada com seus princípios, aposta na inseparabilidade entre os modos de formar, gerir e cuidar, ao mesmo tempo em que afirma a força das experiências concretas para a desestabilização de concepções consolidadas que separam as noções de sujeito e objeto, clínica e política, individual e coletivo. “Daí esta reversão paradoxal que, metodologicamente, faz o caminhar anteceder qualquer meta a ser alcançada. O apoiador é um guia para o caminho em um processo de mudança dos modelos de atenção e gestão na saúde6” (Passos, 2007). A qualificação dos trabalhadores inseridos nos diferentes equipamentos da rede de atenção em saúde precisa ser construída na perspectiva da superação das dicotomias acima referidas, ao mesmo tempo em que as principais inovações teórico-metodológicas, que sugerem mudanças nos serviços e nas práticas de saúde, têm origem na sua crescente interação com a academia. É nesta medida que a produção de conhecimento, tomando por referência os problemas derivados da práxis dos serviços de saúde, se apresenta como um requisito fundamental para o enfrentamento dos desafios que o SUS ainda experimenta. O processo de produção de conhecimento não deveria ser realizado 740

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6 Fala proferida por Eduardo Passos na aula presencial: “Apoio institucional, Curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS”. Porto Alegre, 10 ago. 2007.


MELLO, V.C.; BOTTEGA, C.G.

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na distância entre os serviços e a academia, ou mediados tão-somente no campo teórico. Sujeito e objeto de conhecimento, pesquisador e profissionais de saúde não podem ser tomados como polos separados. Ao contrário, o desafio é o da criação de protagonismo, fazendo com que o profissional de saúde possa participar do processo de produção de conhecimento acerca da sua prática. Para Heckert e Neves (2007, p.2) [...] a formação é uma instituição que produz verdades, objetos-saberes e modos de subjetivação. Operar com tal noção implica ocupar-se da formação e entendê-la como uma prática possível de provocar movimentos, estabilizações e desestabilizações, ela incita, por sua potência de provocar a produção de outros problemas, ou seja, pela sua condição problematizadora.

É neste sentido que a estratégia de formação desenvolvida na PNH compreende que o aprender e o ensinar se dão ao mesmo tempo e em um processo onde todos – usuários, gestores e trabalhadores – são convocados a problematizar, disputar e compartilhar projetos de saúde. Corazza (2008, p.23) afirma que “[...] desde a chegada do pensamento de Deleuze à Educação, já não é mais possível operar com qualquer tipo de currículo; a não ser com currículos plurais”. Tais currículos, entre outras coisas, preocupam-se menos em resolver problemas do que em formulá-los, uma vez que estamos considerando a Educação como um processo de formação onde, a priori, não há um currículo pronto ou um caminho construído, tampouco uma “receita de bolo” à espera de um aluno/apoiador para segui-la. O currrículo plural pode ser pensado [...] a partir de um desmoronamento da interioridade do pensamento curricular, é dotado da potência extrínseca de surgir em qualquer ponto e de traçar qualquer linha, irrompendo nas águas mansas da sabedoria adquirida, de modo involuntário, imprevisto, incompreensível, inassimilável. Vive às voltas com as forças do Fora, como uma violência que se abate destrutiva sobre os saberes consolidados, como um estranhamento recíproco entre o pensamento racional e a realidade de algum objeto. (Corazza, 2008, p.23)

Esta abertura para o outro e o contato com suas diferenças provoca, inevitavelmente, a necessidade de acordos e a negociação de interesses e desejos que emergem das perturbações resultantes da possibilidade de diferir. Para o pensamento da Diferença, idealizar o conhecimento como algo capaz de salvar a humanidade de seu destino trágico, não interessa. Saber quais linhas compõem os territórios, saber os modos que o povo inventa para fugir e suas estratégias de ataque, saber as possibilidades dos percursos: isso é o que interessa. (Zordan, 2008, p.38)

A perspectiva de um curso-intervenção previa que o aluno/apoiador, durante e a partir de seu percurso acadêmico, propusesse uma intervenção em seu local de trabalho. O processo avaliativo do curso consistiu em acompanhar a inserção dos alunos e seus respectivos planos de intervenção, participação nas atividades presenciais, EaD e sua interação na UP. Estas ações mobilizaram coletivamente uma variedade de experiências que, propagando as reflexões e discussões produzidas durante o curso, construíram um terreno possível para as aprendizagens que se viabilizaram. Desse modo, o conhecimento deixa de ser imagem ideal e passa a ser compreendido como levantamento e análise em função daquilo que se quer em ato. Ele sequer pode ser chamando de conhecimento, pois o que envolve ações num dado território implica forças completamene desconhecidas. O que caracteriza uma ação não é acúmulo de saber, mas aquilo que se aprende junto ao funcionamento de um território. O que vale nesse plano não é o que está formado, e sim as potências que ele traz para a criação. (Zordan, 2008, p.39-40)

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A PRÁTICA PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO ...

A experiência de uma prática pedagógica A oportunidade oferecida aos alunos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSI/UFRGS), no sentido de participarem, na condição de alunos, em disciplinas oferecidas no Curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS, viabilizou a oferta de dois contratos de assessoria por intermédio do Ministério da Saúde. Esse contrato propiciou aos alunos selecionados desenvolverem seus projetos de pesquisa em consonância com a PNH e atuarem como apoiadores pedagógicos junto ao curso (Mello, 2009). A função de apoiador pedagógico consistiu em realizar um trabalho contínuo e sistemático de suporte teórico e metodológico aos formadores e, indiretamente, aos apoiadores, no que se refere aos processos grupais e institucionais desencadeados pelo Plano de Intervenção, na construção e elaboração do Plano de Intervenção propriamente dito e nos demais trabalhos monográficos e acadêmicos. Entre as atribuições dos apoiadores pedagógicos, estavam: - mediar o processo ensino-aprendizagem entre formadores e alunos-apoiadores; - dar suporte regional à realização dos eventos descentralizados; - aprofundar a discussão teórica e proposição de bibliografia complementar; - representar a coordenação do curso; - estimular o uso da ferramenta virtual por meio dos fóruns, grupos, chats e outros; - dar suporte metodológico aos processos de monitoramento e avaliação; - realizar a leitura e o acompanhamento na elaboração e avaliação dos trabalhos monográficos; - contribuir e atuar nos processos de capacitação dos formadores/tutores nas atividades presenciais e EaD; - compor o colegiado coordenador nas definições das atividades e direcionamentos do curso; - monitorar os fóruns de discussão, no ambiente virtual e nos encontros presenciais, de acordo com os dispositivos escolhidos para a implemenção dos Planos de Intervenção; - avaliar os trabalhos, artigos e pôsteres; - elaborar relatórios e instrumentos de avaliação segundo os eixos da PNH. A incorporação da função apoio pedagógico se deu no decorrer do próprio curso, não permitindo dimensionar, naquele momento, quanto esta entrada viria a abalar o processo que se havia iniciado. Além disso, coincidiu com a primeira avaliação dos alunos/apoiadores, cujo critério prioritário havia sido o de valorização do processo desencadeado a partir da intervenção. A avaliação realizada pelas apoiadoras pedagógicas empreendeu um olhar voltado para a qualificação da socialização das experiências desenvolvidas nas intervenções, de modo a atender aos critérios mínimos exigidos em um curso de pós-graduação. Como integrar estes elementos e implementar um processo de formação, que incidisse sobre o protagonismo dos alunos/apoiadores, guardando coerência com os princípios da PNH e, ao mesmo tempo, com as exigências acadêmicas? Este era e ainda continua sendo o nosso desafio. A inserção do apoio pedagógico produziu uma crise no grupo (coordenação, apoio pedagógico, formadores e apoiadores institucionais) que ficou conhecida por todos como “o acontecimento” ou “o acontecido”. A instabilidade propiciada pelo “acontecimento” mobilizou uma parada avaliativa no processo do curso, provocando uma reflexão das relações e dos papéis até então estabelecidos. Nesse sentido, operou uma marca importante e funcionou como um potente analisador deste processo. Assim, o “acontecimento” proporcionou uma discussão sobre o processo de avaliação do curso, refletindo-se sobre os diferentes papéis e atribuições de seus integrantes. Na medida em que o lugar da avaliação foi colocado em análise para o coletivo do curso, diversos aspectos puderam ser evidenciados. Para um bom número de participantes, a idéia de um curso pago pelo Ministério da Saúde, na modalidade EaD, envolvendo alguns encontros presenciais com viagens a Porto Alegre e outros municípios, teria, por consequência, pouco envolvimento e facilidade de aprovação. A possibilidade de conhecer os cenários onde se desenvolviam as intervenções, de acompanhar de perto as realidades locorregionais e de avaliar o impacto das intervenções disparadas, afirmaram-se como atribuições privilegiadas do grupo de formadores.

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MELLO, V.C.; BOTTEGA, C.G.

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Dentre algumas das críticas que se fizeram presentes, destaca-se a idéia de uma dissociação entre, de um lado, a experiência de trabalho em saúde dos apoiadores, e, de outro, o mundo acadêmico, com suas exigências e descompassos em relação a todas estas experiências práticas, representadas, naquele momento, pelas bolsistas-mestrandas. O apoio pedagógico, no tensionamento da experiência vivida, contribuiu para a afirmação do papel da Universidade no aprofundamento das relações entre a academia e políticas públicas, por meio da produção de conhecimentos consonantes com as demandas da sociedade.

Acontecimento e dispositivo Os conceitos de dispositivo e acontecimento estão no centro do pensamento foucaultiano, e nos parecem importantes ferramentas conceituais para a compreensão da experiência do apoio pedagógico. Para Foucault, o dispositivo consiste em um conjunto de natureza heterogênea e “Trata-se tanto de discursos quanto de práticas, de instituições quanto de táticas moventes” (Revel, 2005, p.39). Portanto, faz sentido pensar o apoio pedagógico como dispositivo que, neste processo, afetou a estabilidade das forças presentes, nas formas instituídas e estáveis do curso, disparando outros sentidos aos até então existentes. Diferentemente da idéia que toma por fato aquilo que algumas análises históricas se contentam em fornecer como descrição, Foucault entende o Acontecimento como conceito que procura “[...] reconstruir atrás do fato toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas”, evidenciando “[...] não uma história acontecimental, mas a tomada de consciência das rupturas da evidência induzidas por certos fatos” (Revel, 2005, p.13-4). Acreditamos que o “acontecimento”, vivenciado pelo grupo, serviu tanto como dispositivo analisador do processo de formação da PNH, quanto no planejamento das edições posteriores do curso. Como afirma Corazza (2008, p.18), o “[...] acontecimento não se esgota, porque é imaterial, incorporal e virtual”. Assim, a invenção de uma função - apoio pedagógico - no contexto de formação da PNH, acionou a reinvenção do próprio lugar da academia e o seu compromisso social na produção de conhecimento. Saber alguma coisa só serve enquanto ferramenta para enfrentar aquilo que difere. Pensar, deparar-se com o caos e criar imagens para suportar atravessá-lo, é mais importante do que saber aquilo que no avançar da vida deixamos para trás. (Zordan, 2008, p.44)

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A PRÁTICA PEDAGÓGICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO ...

Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH): documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. ______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH). Universidade Federal Fluminense (UFF). Fiocruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP). Projeto de cooperação técnica: curso de formação de formadores e de apoiadores para a Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Saúde. A Humanização como política transversal na rede de atenção e gestão em saúde: novo momento da Política Nacional de Humanização. Projeto - PNH/2005- 2006. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. CAMPOS, G.W.S. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para co-governar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad. Saude Publica, v.14, n.4, p.863-70, 1998. CORAZZA, S. O que Deleuze quer da Educação? Rev. Educ., v.2, n.6, p.16-27, 2008. HECKERT, A.L.; NEVES, C.A.B. Modos de formar e modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: PINHEIRO, R.; BARROS, M.E.B.; MATTOS, R. (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/CEPESC/ABRASCO, 2007. p.145-60. MELLO, V. Estratégias de Humanização do cuidado em Saúde Mental: cartografando as intervenções de apoiadores institucionais. 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2009. PAULON, S.M.; CARNEIRO, M.L.F. A educação a distância como dispositivo de fomento às redes de cuidado em saúde. Interface – Comunic. Saude, Educ., v.13, supl.1, p.747-57, 2009. REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. VARELA, F. O reencantamento do concreto. In: PELBART, P.P.; COSTA, R. (Orgs.). Cadernos de subjetividade: o reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec, 2003. p.33-52. ZORDAN, P. Criação de planos. Rev. Educ., v.2, n.6, p.38-47, 2008.

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MELLO, V.C.; BOTTEGA, C.G.

Este relato apresenta a experiência de apoio pedagógico realizada por mestrandas do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSI/UFRGS), junto ao Curso de Especialização em Humanização da Atenção e Gestão do SUS entre junho de 2007 e abril de 2008. Entre os objetivos do curso destaca-se a formação de apoiadores institucionais capazes de compreender a dinâmica da produção do processo saúde-doença-atenção e de intervir em problemas de gestão e processos de trabalho em saúde. Essa intervenção tem como referência os aportes teóricos e metodológicos da Política Nacional de Humanização (PNH). A estrutura organizativa contou com a função dos formadores e do apoio pedagógico, com a finalidade de dar suporte ao processo de ensino-aprendizagem e à intervenção dos alunos/apoiadores, trabalhadores em serviços de saúde.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Saúde. Sistema Único de Saúde. Formação. Prática pedagógica. Pedagogical practice in the process of forming the National Humanization Policy (PNH) This report presents the experiences of pedagogical support accomplished by Master’s candidates within the Social and Institutional Psychology program at the Federal University of Rio Grande do Sul (PPGPSI/UFRGS), together with the Specialization Course on Humanization of Care and Administration of the Brazilian Unified Health System (SUS), between June 2007 and April 2008. Among the objectives of this course, training for institutional support professionals capable of understanding the dynamics of the production of the health-disease-care process and of intervening in administrative problems and healthcare work processes can be highlighted. The reference point for this intervention is the theoretical and methodological contributions of the National Humanization Policy (PNH). The organizational structure relied on the work of the educators and on pedagogical support, with the purpose of providing support for the teaching-learning process and for interventions by students/support professionals and workers in healthcare services.

Keywords: Humanization of assistance. Healthcare. Health System. Training. Pedagogical practice. La práctica pedagógica en el proceso de formación de la Política Nacional de Humanización (PNH) Este relato presenta la experiencia de apoyo pedagógico realizada por alumnas de maestría del Curso de Pos-graduación en Psicología Social e Institucional de la Universidad Federal de Rio Granne do Sul, Brasil, (PPGPSI/UFRGS) junto al Curso de Especialización en Humanización de la Atención y Gestión del Sistema Único de Salud entre junio de 2007 y abril de 2008. Entre los objetivos del curso se destaca la formación de apoyadores institucionales capaces de comprender la dinámica de la producción del proceso salud-enfermedad-atención y de intervenir en problemas de gestión y procesos de trabajo en salud. Esta intervención tiene como referencia las contribuciones teórioas y metodológicas de la Política Nacional de Humanización (PNH). La estructura organizativa contó con la función de los formadores y del apoyo pedagógico, con el fin de sustento al proceso de enseñanza-aprendizaje y a la intervención de los alumnos/apoyadores, trabajadores en servicio de salud.

Palabras clave: Humanización de la atención. Salud. Sistema Único de salud. Formación. Práctica pedagógica. Recebido em 28/01/09. Aprovado em 17/06/09.

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A educação a distância como dispositivo de fomento às redes de cuidado em saúde Simone Maineiri Paulon1 Mara Lúcia Fernandes Carneiro2

Navegar agora pra mim não é mais só preciso... é também bem divertido!

Esta foi uma dentre muitas das expressões lançadas para partilhar com outros navegantes virtuais as turbulências vividas por trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) que começavam a protagonizar um processo de formação. Ela é expressiva da experiência de educação em saúde que aqui queremos pôr em análise por vários motivos: primeiro, pela peculiaridade do objeto a que se destina um curso de pós-graduação para formar apoiadores institucionais da Humanização da Atenção e Gestão do SUS; segundo, pelo caráter de curso-intervenção que o estruturou e, ainda, por se tratar de um per-curso cuja intensidade, abrangência e potência transformadora só puderam ser atingidas com o suporte dado pelo ambiente virtual de aprendizagem que conectou trabalhadores das sete macrorregiões do estado do Rio Grande do Sul. O próprio tema da humanização da saúde já impõe desafios a serem trabalhados que, de alguma forma, se exacerbam na aproximação ao campo da educação. Se já soa paradoxal humanos propondo-se a humanizar outros, quando se fala em formar para esta tarefa, os ruídos podem ser ainda maiores. Tomandose, entretanto, o conceito de humanização não como um valor abstrato, mas como produção de mudanças concretas que reafirmem o valor da vida e promovam práticas sociais inclusivas e solidárias (Barros, Passos, 2005), uma nova perspectiva se abre para se pensar um processo de formação. Isto leva a crer que compartilhar uma experiência de formação na área da saúde, que tenha se utilizado do ensino a distância como ferramenta de potencialização dos princípios de humanização do SUS, possa trazer uma contribuição ao debate da educação em saúde coletiva no Brasil.

Protagonismo na educação e a formação de apoiadores da PNH ... experimentações navegantes Que bacana! Até aqui tudo bem, já não estou tão assustada. Sucesso a todos nós! Que tenhamos um aproveitamento maravilhoso para efetivarmos junto aos colegas e gestores as ações humanizadoras em

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1 Departamento de Psicologia Social, Instituto de Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Av. Ramiro Barcelos, 2600. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-000 simone.paulon@ufrgs.br 2 Departamento de Psicologia Social, Instituto de Psicologia Social, UFRGS.

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A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA COMO DISPOSITIVO ...

nosso município e arredores. Parece que vai rolar... Abraços calorosos a todos. (V.)

A publicação do edital nas 19 coordenadorias de saúde do Estado, que abriu as inscrições para seleção do primeiro curso de pós-graduação lato-sensu promovido pela Política Nacional de Humanização3 (PNH), era bem específica em relação a um requisito: todo candidato deveria ser trabalhador do SUS, atuante em alguma unidade de saúde que referendasse sua participação. Mais do que garantir a contrapartida dos municípios no financiamento dos oito encontros presenciais previstos para os dez meses de curso, o que justificava tal exigência era a necessidade de corresponsabilizar gestores locais, candidatos e equipes de trabalho com um processo de formação que implicaria a todos, por seu caráter de curso-intervenção. A experiência não era pioneira. Inspirou-se na perspectiva adotada pela PNH, a partir de 2006, quando promoveu o curso nacional de formação de apoiadores institucionais4. Baseava-se no entendimento dos processos de formaçãointervenção como possibilidade educativa mais afinada aos princípios do SUS, fundamentalmente em relação aos propósitos de fomentar o protagonismo dos atores do sistema e estimular a cogestão dos processos de trabalho em saúde (Heckert, Neves, 2007). Isto se aproxima da definição pedagógica de Educação Permanente em Saúde como processos que colocam o cotidiano do trabalho em análise, instigam os coletivos à reflexão e ação e, ainda, permeiam movimentos instituintes nos serviços. Mas ao elaborar um projeto de educação extensivo, para todas as regiões do país e norteado pelo princípio da formação-intervenção, a PNH, de alguma forma, radicalizou a concepção do permanente no campo da educação em saúde, não com uma conotação meramente cronológica, de estender-se no tempo, mas como um processo formativo focado no “aqui-e-agora, diante de problemas reais, pessoas reais e equipes reais” (Ceccim, 2004, p.167). Considerando-se, ainda, como afirma o mesmo autor, [...] que aquilo que deve ser realmente central à Educação Permanente em Saúde é sua porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação política com a formação de perfis profissionais e de serviços, a introdução de mecanismos, espaços e temas que geram auto-análise, autogestão, implicação, mudança institucional, enfim, pensamento (disruptura com instituídos, fórmulas ou modelos) e experimentação (em contexto, em afetividade – sendo afetado pela realidade/afecção). (Ceccim, 2004, p.162)

podemos situar o projeto de formação aqui relatado neste campo de trabalho e estudos. Para avançarmos na compreensão da radicalidade com que o caráter de experimentação/produção de subjetividades se apresenta na proposta em debate, vale lembrar que o convite feito em 2006 àqueles cento e quarenta trabalhadores do SUS, distribuídos pelo Brasil afora, não era para que se inscrevessem meramente em um curso de aperfeiçoamento profissional em humanização, mas para que, além disso, desejassem se tornar “apoiadores institucionais”. A função apoio, que tem norteado os processos de formação da PNH, foi proposta por Campos (2007) como resultante da ação de sujeitos que “atravessam” o processo de trabalho de coletivos com a finalidade de ampliar sua capacidade de acolher e resolver necessidades de saúde, bem como o grau de 748

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3 A 1ª edição do curso de pós-graduação latosensu em Humanização da Gestão e Atenção do SUS ocorreu entre os meses de junho de 2007 e abril de 2008, e foi viabilizada por contrato de cooperação técnicocientífica firmado entre o Ministério da Saúde, por meio da Política Nacional de Humanização (PNH); a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), por meio do Instituto de Psicologia; a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), por intermédio do Departamento de Ciências da Saúde; e a Universidade Federal Fluminense (UFF), por meio do Departamento de Psicologia. Esta 1ª edição formou 66 apoiadores e, em agosto de 2008, abriu-se a 2ª edição, com cem vagas, por meio de uma nova parceria estabelecida entre MS/PNH, Secretaria de Saúde do Estado do RS/Escola de Saúde Pública e Instituto de Psicologia da UFRGS. 4 Trata-se do curso de aperfeiçoamento para formação de Apoiadores da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS, promovido entre abril e dezembro de 2006, pela parceria de cooperação técnica entre Ministério da Saúde/SAS/PNH, UFF e FIOCRUZ/ENSP/EAD, que disponibilizou cento e quarenta vagas, distribuídas em todo território nacional. Os textos de Passos e Barros (2006) e de Heckert e Neves (2007), referidos adiante, debatem esta experiência específica de formação.


PAULON, S.M.; CARNEIRO, M.L.F.

A discussão mais aprofundada desses princípios, seus desdobramentos em eixos e dispositivos de ação, bem como sua contextualização no atual cenário do SUS encontrase no artigo de Pasche (2009) neste mesmo suplemento.

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As bases da Política de Formação e Pesquisa da PNH foram elaboradas e validadas pelo coletivo de consultores e por meio de diferentes processos de formação ocorridos ao longo dos anos de 20062008, sob coordenação dos professores Eduardo Passos e Ana Heckert, e resultaram em documento-fonte das informações acima citadas, em fase de publicação pelo Ministério da Saúde.

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Para detalhamentos da concepção de avaliação que orienta as ações da PNH, consultar Santos Filho (2007).

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realização dos trabalhadores com suas atividades, seus grupos e formas de organização dos serviços, tornando-os mais democráticos e criativos. Por isso, ao se sentirem convocados pelo objetivo de “compreenderem a complexa dinâmica da produção da tríade saúde-doença-atenção e intervir sobre problemas de gestão dos serviços e processos de trabalho em saúde com soluções criativas” (Passos, Barros, 2006), os candidatos às formações que a PNH tem ofertado já estão desafiados a se deslocarem da cômoda posição de alunos para assumirem um lugar de protagonismo na própria formação. Esta perspectiva permitiu à PNH apostar fortemente na possibilidade de um processo educativo potencializar os efeitos norteadores de uma política pública. Mas estes não seriam efeitos quaisquer, já que, nos princípios da própria Política promotora desta formação, estão: a inseparabilidade da atenção e gestão, a transversalidade dos processos comunicativos, e o protagonismo dos sujeitos5. Como formar protagonistas? Há uma pedagogia da solidariedade, que instigue à grupalidade? É possível (re)educar cidadãos para que se compreendam gestores dos próprios processos de trabalho de que se sentem, em geral, expropriados? Tendo questões de tamanha densidade em seu horizonte é que estas primeiras investidas extensivas da PNH em formação resultaram na elaboração de uma Política de Formação6 que, entre outros objetivos, se destina a amplificar a abrangência do “modo de fazer” humanizado em saúde, integrando novos atores aos processos de formação-intervenção. Ela é calcada nos seguintes princípios: 1 Inseparabilidade entre formar e intervir: as ações são dispositivos de problematização da experiência de trabalho em saúde; toda formação se delineia em torno de um plano de intervenção que se destina, sempre, à ampliação dos modos de comunicação dos coletivos e de compartilhamento de experiências concretamente vividas nos serviços; 2 Foco no “Aprender-fazendo”: Não importa tanto o “fazer conhecer” quanto o “fazer participar” da Política, estabelecendo-se aí uma outra relação com o aprender em termos de apropriação, mobilização e construção de conhecimentos. 3 Descentralização e corresponsabilização locais: A formação é alinhavada a partir de uma fina análise do cenário em que se inscreve, de forma a garantir que sejam projetos compartilhados e pactuados com o maior número possível de atores das regiões a que se destinam, incluindo sempre novos atores estratégicos; 4 Avaliação Formativa7: Incentivam-se os cursos a incluírem a identificação e incorporação dos “analisadores institucionais” que o processo for produzindo em suas metodologias a fim de enfatizar o caráter participativo e emancipatório que a avaliação pode assumir. A aposta, portanto, na potência de um processo de formação para produção de um novo cuidado em saúde sustenta-se em determinadas escolhas éticopolíticas que justificam escolhas metodológicas afinadas aos princípios do SUS. Transformar práticas profissionais fragmentárias em modos de cuidar pautados pela universalidade, participação e integralidade da saúde, hoje garantidos em lei a todo cidadão brasileiro, requer esforços instituintes não apenas no campo da saúde. Há que se transformar também, profundamente, as práticas educacionais dirigidas aos profissionais de saúde, estruturadas, geralmente, no sentido clássico da transmissão de conhecimentos técnico-científicos a serem aplicados em dada realidade. Formação no sentido aqui referido diz respeito à produção concomitante de conhecimentos, sujeitos e realidades. Diz respeito à transformação do mundo numa morada – ethos que acolha a diversidade da vida e referende as muitas saúdes possíveis. Estamos, pois, afirmando a proposta de formação-intervenção como uma prática ético-política, que extrapola a clássica oferta de conhecimentos de dada 749


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profissão e que aprofunda os propósitos da educação permanente, na medida em que, além de se inserir nos problemas reais dos serviços de saúde, propõe-se a interferir nos modos de subjetivação daqueles que os habitam, produzindo, com isso, novas formas de ação. Isto permite definir formação como constituição de modos de existência, como afirmam Heckert e Neves (2007, p.154): “É neste campo de imersão que a formação ganha consistência de intervenção, de intervir entre ações, experimentando os desafios cotidianos de materialização dos princípios do SUS e da invenção de novos territórios existenciais”. Veremos, agora, de que forma a educação a distância (EAD) pode contribuir com a realização destes princípios, detendo-nos na experiência específica de formação de apoiadores institucionais realizada no Rio Grande do Sul.

A educação a distância na formação-intervenção Este curso está sendo uma novidade para mim: ambiente virtual, cadastrar senhas, entrar em fóruns, enviar tarefas, agendar chats ... Ufa, chega a dar um cansaço! Mas aos poucos a gente se acostuma (espero) e tudo acaba dando certo. Tenho a sensação de que além de meu crescimento esta experiência vai ajudar meus colegas do hospital e até da região. (F.)

Este depoimento inaugural de um novato na EAD, compartilhando sua ambiguidade frente ao primeiro contato com o ambiente em que iria conviver por quase um ano, representa uma boa expressão do que desperta a experiência de aprendizagem a distância. Quando nos referimos, acima, à intensidade, abrangência e potência transformadora que o EAD permitiu à experiência daquele grupo de trabalhadores/apoiadores, não atribuímos, obviamente, a capacidade de produzir tais efeitos a um ambiente virtual de aprendizagem ou a um suporte tecnológico qualquer. Compartilhamos, com alguns dos pensadores da inteligência coletiva (Parente, 2004; Lèvy, 1996), a posição de que não são os instrumentos tecnológicos, mas os processos de subjetivação que eles põem em movimento que promovem novos encontros e imprimem uma nova relação homemmundo. Para Lèvy (1996, p.40), “o virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito”, o que deixa claro que “o computador é, antes de tudo, um operador de informação”. De fato, ao lançarmos mão do recurso de EAD na estruturação do curso de pós-graduação em Humanização da Atenção e Gestão do SUS no RS, não tínhamos uma visão muito diferente do que usualmente se tem definido como propósitos que justificam o uso desta modalidade de educação. A educação a distância foi, inicialmente, definida muito mais pelas diferenças em relação à educação presencial do que pelas características que a determinam ou pelos elementos que a constituem, o que limita a compreensão de suas potencialidades. Os benefícios e desafios que a ferramenta EAD oferece às novas formas de aprender parecem estar, ainda, muito restritos à idéia de prestação de serviços em educação para grandes contingentes de pessoas, buscando assegurar o acesso à educação por meio do uso de recursos tecnológicos, mas sem referenciar ou destacar alguma preocupação com o tipo de produção de conhecimento, a aproximação entre as pessoas ou a constituição de comunidades de aprendizagem. A abrangência cada vez maior, em termos geográficos e de camadas populacionais, que a utilização da rede de comunicação digital pode oferecer à formação justifica tanto a popularização da EAD, quanto boa parte das críticas que a ela têm sido dirigidas: de superficialidade e inconsistência - equivalentes aos preconceitos que as precursoras versões dos “cursos por correspondência” sofriam. Realmente, a possibilidade de manter em permanente contato os alunos/apoiadores de 49 municípios do RS, entre os encontros presenciais mensais que estruturavam o curso, por si só justificava a utilização do suporte proporcionado pelo ambiente virtual adotado. Mas os primeiros movimentos dos trabalhadores que voltavam a suas unidades de saúde, após dois dias de trocas intensivas nos encontros presenciais com outros trabalhadores e professores inseridos no SUS, logo indicaram que o ambiente virtual teria outra dimensão naquele percurso.

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Bueno colegas tô começando a me aventurar nesta nova (pra mim) maneira de estudar! Até q este Teleduc não é um bicho d sete cabeças, tô conseguindo navegar neste mar sem me afogar, acho q vai ser uma experiência e tanto... que bom saber que vou sentar aqui e poder compartilhar com tantos parceiros que devem estar vivendo e sentindo coisas parecidas com as minhas. Bah! Chega a dar um gaz. bjs. (E.)

EAD é um processo educativo sistemático e organizado que exige não somente múltiplas vias de comunicação entre os participantes do processo, como também a instauração de uma certa grupalidade. A escolha de determinado artefato tecnológico é, então, efeito, e não causa, como simplificadamente poderia se pensar, do projeto político-pedagógico que justifica a criação de um dado processo educativo. No caso de um curso-intervenção com objetivo de formar apoiadores institucionais de uma política pública, que tem como propósito reencantar os princípios do SUS, fica ainda mais evidente a relevância e delicadeza que esta escolha metodológica supõe. Como ressalta o coordenador da PNH, em recente entrevista:

Ambiente virtual gratuito, criado pela equipe do Núcleo de Informática na Educação da Unicamp. 8

O fantasma da substituição do professor pelas tecnologias de comunicação, com consequente objetificação dos alunos, ainda figura em meios educacionais e se assenta em definições do EAD como a que segue: “É uma forma de educação onde são utilizados recursos tecnológicos com a finalidade de divulgar o conhecimento para as pessoas que se encontram com barreiras intransponíveis na Educação Convencional, seja pela impossibilidade de deslocar, seja por um grande distância geográfica, também pela limitação de tempo ou mesmo pelos seus recursos financeiros resumidos. É a forma mais fácil de eliminar a presença física de professor e o aluno.” (Laranjeiras Filho, 2003) 9

A PNH aposta na democratização das relações, pois entende ser necessária a construção coletiva de novos modos de produção subjetiva, de novos sujeitos que sejam mais capazes de se corresponsabilizarem. Para isto a PNH não propõe receitas nem prescrições, mas um método: colocar as pessoas em roda, ao lado, para coconstruírem juntas. (Pasche, 2009)

Coconstruções, experimentações coletivas, cogestão do próprio processo de formação refletiam-se nas constantes trocas encontradas nos murais, fóruns e correio do Teleduc8. Compartilhemos uma delas: Meu Deus! Onde eu fui me meter! Que frio na barriga! Fui em uma reunião com colegas do hospital, e minha chefe colocou suas expectativas pro meu projeto de intervenção na humanização! E agora?! O que eu faço?! tutora, colegas, vcs vão ter que me ajudar muuuiito! Mas tô tri a fim de matar no peito e chutar em gol! (M.)

Pode-se perceber que, para além da eliminação das barreiras geográficas, as propostas pedagógicas com EAD não se restringem a transmitir conhecimentos, mas apoiar o estudante a aprender a aprender e aprender a fazer, de forma flexível, forjando sua autonomia em relação ao espaço, tempo, ritmo e método de aprendizagem. Esta experiência de aprendizagem-protagonista reflete-se, também, na cogestão de todo processo educativo, já que EAD exige sempre um maior grau de planejamento que o ensino presencial e amplia participação em diferentes coletivos: os participantes se apoiam uns nos outros, construindo verdadeiras comunidades de aprendizagem; intensifica-se o diálogo professor-tutor/alunosapoiadores, coordenação/professor-tutor, coordenação/alunos-apoiadores, enfim, democratização dos espaços de ensino e gestão. As clássicas definições de EAD reforçando a transposição de barreiras geográficas, otimização do tempo ou, mesmo, a prescindibilidade da relação professor-aluno9 tornam-se um tanto quanto reducionistas quando adentramos um processo de formação como o que aqui acompanhamos.

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Na mesma linha crítica, Nevado (2004) argumenta que, sem promover maiores reflexões acerca dos fundamentos da EAD, os recursos digitais de informação têm sido utilizados apenas para transposição de estruturas clássicas de ensino a novos suportes, o que tem “favorecido as pseudoinovações, reduzindo as novas possibilidades abertas pelo uso das tecnologias à simples otimização das práticas tradicionais” (p.76). Neste sentido, podemos afirmar que a concepção da EAD no curso (e em curso!) em debate situa-se dentro de uma tendência que vem se delineando neste campo educacional, caracterizando-se pela crítica à supremacia do tecnológico ao político-pedagógico e, a partir dela, pela disposição ao diálogo interdisciplinar, cada vez mais demandado pelas práticas educativas contemporâneas. Entendendo que o aumento do grau de transversalidade na ação cotidiana dos serviços e das práticas de saúde, tal como inscrito nos princípios da PNH, implica mais do que simplesmente pôr as pessoas em contato, a comunicação em rede aqui ressaltada destina-se a promover antes deslocamentos subjetivos do que suprimir meros deslocamentos geográficos. Queremos, com isto, destacar que os debates on line permitidos pelo uso da EAD, a agilização das diferentes formas de encontro, a ampliação dos recursos de estudo e construções coletivas, que não ocorreriam nos esparsos encontros presenciais, permitiram tal circulação de saberes, poderes e afetos que, longe de homogeneizar a experiência de formação discutida, outorgaram um novo sentido à função de partícipes de uma política pública que aqueles trabalhadores tinham até então. Dois aspectos movimentados pelo curso podem, ainda, ressaltar o suporte oferecido pela comunicação em rede para a intensificação do protagonismo dos sujeitos e exacerbação da dimensão do coletivo nos processos de produção de saúde: a promoção da grupalidade e o fomento às redes de cuidado.

Unidades de produção conectadas e promoção de grupalidade Um dos estranhamentos que a estrutura pedagógica do curso de especialização em Humanização da atenção e gestão do SUS causava às instâncias acadêmicas que o aprovaram, e mesmo aos alunos candidatos, dizia respeito à organização dos grupos nas regiões em que se distribuíram por Unidades de Produção. À primeira vista associada a uma lógica produtivista de bens e mercadoria, a unidade de produção soaria mesmo contraditória a um projeto político que não entende a gestão dos processos de trabalho em saúde como tarefa administrativa separada das práticas de cuidado. Vale, entretanto, lembrar que a formação para a função apoio tem, como tarefa primordial, fortalecer os coletivos no próprio exercício da produção de novos sujeitos em processos de mudança. Reforça-se, com isso, a tese defendida por Campos (1994), de que as possibilidades e limites da produção de mudança em saúde devem partir da “reforma dos sujeitos”, ou seja, de que não existe mudança na gestão e organização dos serviços e práticas de saúde que possa prescindir da própria mudança dos sujeitos nela engajados. Permanente engendramento de modos de subjetivação, práticas de cuidado, formas lateralizadas de gestão são o sentido que se quer destacar ao se referir aos grupos de apoiadores institucionais em formação, não por turmas de alunos, mas por Unidades de Produção. A forma como as tecnologias digitais disponibilizadas pelo ambiente virtual de aprendizagem em uso contribuíram para corresponsabilizar as unidades de produção regionalizadas com a tarefa de construção coletiva do próprio grupo, seus projetos de estudo e planos de intervenção para a região, frequentemente era indicativa do entusiasmo que crescia entre integrantes do mesmo espaço virtual. Geeeeentiii querida! PRECISO dizer prá toda minha UP que talvez o que tenhamos vivido nessas últimas semanas, entre os milhões de mensagens, textos, poesias (nossa, quanto poeta este Teleduc tem revelado !!!!) que trocamos tenha sido um momento definitivo nas nossas vivências humanizadoras. É difícil, às vezes, entrar lá na unidade [de saúde] e tentar expressar prá minha equipe tudo que ta rolando desde que entrei nesse curso. Fico louca por uma brechinha prá espiar nosso ambiente e ver quem está por aí na mesma batalha que eu e com a mesma gana prá trazer mais gente pro nosso barco. E vcs aí?!!?!?!?!?! (M.T.)

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Assim como ressaltado anteriormente - que nenhum suporte tecnológico garante por si caráter inovador ou capacidade transformadora de um projeto pedagógico - a proposição, ao grupo, de que se utilizassem das ferramentas virtuais para darem seguimento às produções teóricas e afetivas alavancadas nos encontros não estava garantida pela estrutura do curso. O que nos permite entender - reforçando as ideias de Lèvy (1996) no que tange à inteligência coletiva, ou de Campos (2007) no campo da Saúde Coletiva - que é no encontro de um projeto ético-político com um suporte tecnológico correspondente que uma nova possibilidade comunicativa pode evocar novas produções subjetivas. Nesse sentido, vale a lembrança de Parente (2004, p.93): “Uma máquina que não fosse investida de desejo e alimentada de subjetividade seria como um corpo sem vida”. Entendendo que a formação de um grupo é algo que vai muito além do encontro de pessoas com objetivos e tarefas comuns, tomamos a indissociável relação existente entre modos de formar/ aprender/intervir/subjetivar-se como fundamento constitutivo de uma certa grupalidade que as UPs iam construindo. Com Barros, aprendemos que O grupo tomado como dispositivo, como aquilo que põe a funcionar modos de expressão de subjetividade, opera processos de desindividualização. Eis nossa via política. [...] Ao tomar os enunciados como remetendo não a sujeitos individuais, mas a coletivos, ao percorrer os caminhos maquínicos do desejo que não se esgotam nas vivências individualizadas, o grupo dispara desconstruções dos territórios enclausurantes da subjetividade. (Barros, 2007, p. 325)

O conceito de grupo-dispositivo, forjado pela autora para referir uma vivência coletiva que se apresenta como linha de fuga às marcas tão profundas deste modo de subjetivação do indivíduo que a todos nós constitui, parecia se corporificar em muitas das mensagens que os apoiadores da PNH insistiam em compartilhar. [...] Quero dizer a todas vocês que nunca me senti tão bem acompanhada e feliz por estar tendo a oportunidade de viver tudo isto quando muito dos colegas não conseguem mais ter tesão de encarar novas aventuras. É bom D+ poder dividir com vcs estes intensos momentos de aprendizado e de construção e saber que sempre teremos umas as outras. (A.C.)

EAD como dispositivo de fomento às redes regionais de saúde Se cada veículo produz uma nova relação com o espaço - o espaço que se estende diante de nós não é o mesmo se dispomos de um cavalo, um carro ou um avião -, por que não aceitar as diferenças produzidas pelo novo veículo do ciberespaço? Longe de anular o espaço, as tecnologias produzem outra forma de espacialidade ou heterotopias. (Parente, 2004, p.108)

Para além, ainda, do incremento aos encontros nas Unidades de Produção que reuniam em torno de dez apoiadores por cada macrorregião do Estado, as ferramentas virtuais ofertadas no EAD funcionaram, em muitos aspectos, também como dispositivos de potencialização das intervenções disparadas pelo curso. Nesse momento do curso, os apoiadores reuniam-se em um espaço do ambiente virtual restrito ao grupo regional e tutor. Isto facilitou, basicamente a partir da segunda metade do processo de formação, um outro tipo de grupalização que não se inscrevia nos limites geográficos delimitados pelas UPs, mas nas afinidades criadas entre apoiadores de diferentes regiões em função das aproximações de seus tipos de intervenção. Aos apresentarem um primeiro esboço dos planos de intervenção que pretendiam desenvolver em cada uma das unidades de saúde em que atuavam, os apoiadores elegiam alguns dos dispositivos de humanização ofertados pela PNH, com base nas análises de cenários locais da saúde em suas regiões, elaborados no primeiro momento do curso. A partir de então, outra rede de conversações começou a se COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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constituir e se movimentar por dentro do ambiente virtual: redes de trabalhadores do SUS de serviços de saúde assemelhados que compartilhavam as mesmas análises dos impasses que se colocam em seus processos de trabalho e tinham, com base nessa leitura, projetos afins de humanização para suas unidades de saúde. Por solicitação dos próprios alunos, no encontro presencial em que se reuniram nesta nova configuração do grupo maior, foram constituídos novos espaços específicos no Teleduc, não mais restritos aos apoiadores de uma determinada UP com seu tutor, mas de apoiadores desenvolvendo intervenções equivalentes. Assim, a partir da metade do per-curso de estudos e experimentações provocados pela proposta da formação-intervenção em humanização do SUS, novos encontros virtuais passaram a compor o ambiente de aprendizagem. Cinco novos grupos foram constituídos pelos eixos/dispositivos de intervenção escolhidos para disparar os processos de implementação da PNH nos municípios: Acolhimento, Clínica Ampliada, Saúde do Trabalhador, Grupo de Trabalho de Humanização e Cogestão, dentro do espaço comum a todos os participantes. Cada grupo podia, assim, propor discussões “animadas” pelos desafios e alternativas que os trabalhadores iam encontrando em seus processos de implementação das mudanças requeridas para proposição dos dispositivos de humanização, ao mesmo tempo em que podiam “espiar” a discussão desenvolvida pelos demais grupos. Pessoal, quem está negociando a classificação de risco nas portas de emergência como eu? (R.R.) Vocês conseguem trazer os médicos da unidade pras reuniões de GTH? (S.G.) Olhem que tri: fui à reunião do conselho municipal de saúde apresentar minha proposta de intervenção e querem que eu apresente na próxima reunião da macro-regional! (L.K.)

Essas eram algumas das trocas que permeavam os debates nos novos espaços, entre envio de textos, debates conceituais, questões pontuais que se faziam acerca de tecnologias de intervenção, e dúvidas que se esclareciam no calor do debate de um grupo que se via cada vez mais responsabilizado pelo seu fazer. A dimensão rizomática das redes, segundo a qual “cada ponto se conecta a outro por contágio, sem hierarquia ou filiação” (Parente, 2004, p.106), parecia exacerbar-se nesses novos espaços de encontro criados pelo movimento crescente de apropriação do processo de formação por aqueles que o vivenciavam. Ao “modo de fazer” saúde instigando os coletivos a se corresponsabilizarem pelos contextos em que se inserem, acoplava-se um modo de formar que evoca, igualmente, a dimensão inventiva do trabalho e convoca à solidariedade para solução de problemas comuns. Em artigo no qual analisa a “microfísica do vínculo” com base na observação das formas de encontro que os serviços de saúde viabilizam, Teixeira concebe as redes de trabalho em saúde como grandes redes de conversações. E avança nesta compreensão afirmando: “As redes de trabalho em saúde – essas extensíssimas redes de conversações – passam, assim, a ser pensadas como redes de trabalho afetivo, no sentido de que o essencial nelas é, de fato, a criação e a manipulação dos afetos” (Teixeira, 2004). Se a capacidade de afetação – deixar-se tocar e querer acessar a diferença do outro – pode ser entendida como competência necessária aos processos de humanização da saúde, a composição de uma rede que faça circular afetos, saberes e poderes, como a que este curso-intervenção parece ter possibilitado, pode ser pensada como dispositivo potencializador dos princípios que sustentam e justificam a criação de uma Política Nacional de Humanização. E, neste sentido, o suporte oferecido pelo ambiente virtual teve sua contribuição. ai, medinho! Pensar que daqui a uns dias não teremos mais estes encontros prá continuar no Teleduc?! Nem me imagino sem esta possibilidade de sair da reunião de equipe e contar prá vcs como está andando minha intervenção. Falei com a L [tutora] esta semana prá gente deixar marcado os mesmos horários de chats e seguir se falando. Mas já me aliviei de saber que vou encontrar uns quantos de vcs e até uns apoiadores das outras macro lá no MentalTchê

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[encontro estadual da luta anti-manicomial]. Eu e o pessoal do CAPS vamos lá contar como está meu plano de intervenção na rede municipal de saúde mental. Vamos lá? [...] (E.G.)

O luto pela finalização do curso se projetava em necessidade de inventar novas conexões. Ao mesmo tempo em que solicitavam a permanência do ambiente virtual como garantia de possibilidade de seguirem se encontrando enquanto unidade de produção, começavam a se perceber mais como apoiadores de uma política pública e menos como alunos de um circunstancial processo de formação. Isto se refletiu vivamente no efeito “invasão da rede” que ocorreu nos primeiros dias sucessivos ao evento de encerramento do curso. Convidados a se cadastrarem na recém-inaugurada Rede HumanizaSUS (http://redehumanizasus.net/), inúmeros posts apresentando diversas intervenções em andamento a partir do curso tomaram conta da Rede que, em poucos dias, foi apresentada não só para recantos inusitados do sul do país como, também, para as possibilidades que um processo de formação oferece quando estruturado com/por/em função de um projeto coletivo. “Coronel Bicaco tem PNH!” “HumanizaSUS desfila saúde no 7 de setembro em Pejuçara- RS!”... são algumas das manchetes encontradas no blog da PNH após encerramento do curso, que dão uma pequena dimensão da perspectiva de protagonismo e continuidade de uma Política que, para fazer jus a sua definição de Pública, não poderia mesmo visar outra coisa que não se reiniciar a cada fim. Como expresso no poema labirinto de Jorge Luis Borges (2001): Não haverá nunca porta. Estás dentro e o alcácer abarca o universo e não tem nem anverso nem reverso nem externo nem muro nem secreto centro. não esperes que o rigor de teu caminho que teimosamente se bifurca em outro, que obstinadamente se bifurca em outro, tenha fim. [...]

Colaboradores As autoras trabalharam conjuntamente em todas as etapas da elaboração do manuscrito. Referências BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2007. BARROS, R.B.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-94, 2005. BORGES, J.L. Elogio da sombra. Porto Alegre: Editora Globo, 2001. CECCIM, R. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.161-8, 2005. CAMPOS, G.W.S. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec, 2007. ______. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e reforma das pessoas - o caso da saúde. In: CECÍLIO, L.C.O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p.29-87.

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HECKERT, A.L.; NEVES, C. Modos de formar e modos de intervir: quando a formação se faz potência de produção de coletivo. In: BARROS, M.E.B.; PINHEIRO, R.; MATTOS, R.(Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: Cepesc/Abrasco, 2007. p.145-60. LARANJEIRAS FILHO, E. Educação a distância: alternativa acessível para profissionais manterem-se atualizados. 2003. Disponível em: <http://www.aleitamento.com/ a_artigos>. Acesso em: 10 jan. 2009. LÈVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. NEVADO, R. Novos possíveis na formação de professores. In: FRANCO, S.K. (Org.). Informática na educação: estudos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p.75-95. PARENTE, A. (Org.). Tramas na rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2004. PASCHE, D. Humanização do SUS cresce e atinge todo o país. Entrevista. MS Informa (publicação mensal do Ministério da Saúde, ano II, edição 1, janeiro de 2009). Disponível em: <http://www.humanizasus.net>. Acesso em: 29 jan. 2009. PASSOS, E.; BARROS, R.B. (Orgs.). Textos/Cartilhas: formação de apoiadores para a PNH da gestão e atenção à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. SANTOS FILHO, S.B. Perspectivas da avaliação na Política Nacional de Humanização em Saúde: aspectos conceituais e metodológicos. Cienc. Saude Coletiva, v.12, n.4, p.999-1010, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n4/18.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2009. TEIXEIRA, R. As redes de trabalho afetivo e a contribuição da saúde para a emergência de uma outra concepção de público. In: RESEARCH CONFERENCE: RETHINKING “THE PUBLIC” IN PUBLIC HEALTH: NEOLIBERALISM, STRUCTURAL VIOLENCE, AND EPIDEMICS OF INEQUALITY IN LATIN AMERICA CENTER FOR IBERIAN AND LATIN AMERICAN STUDIES UNIVERSITY OF CALIFORNIA, 2004, San Diego. Workingpaper… San Diego, 2004. Disponível em: <http://www.corposem.org/rizoma/ redeafetiva.htm>. Acesso em: 15 fev. 2009.

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O artigo descreve uma experiência de formação em saúde que utiliza como suporte um ambiente virtual de aprendizagem e propõe uma análise acerca das possibilidades oferecidas pela modalidade educação a distância à formação de redes e incremento do processo de aprendizagem-protagonista. Sustentado no conceito de educação permanente em saúde, na análise institucional e nos estudos de rede, a experiência de um curso-intervenção que operou como disparador de redes de conversação permite considerar a comunicação em rede como dispositivo potencializador dos princípios balizadores da Política Nacional de Humanização (PNH).

Palavras-chave: Política Nacional de Humanização. Educação em saúde. Educação a distância. Grupos. Redes. Distance learning as a tool for encouraging healthcare networks This paper describes an experience of health education that used a virtual learning environment as its support. It puts forward an analysis on the possibilities offered by the distance learning method for forming networks and increasing the protagonistlearning process. Based on the concept of continuing healthcare education and on institutional analysis and network studies, this experience of an intervention course that operated as a trigger for conversation networks has made it possible to consider network communication as a tool for bringing out the potential of the guiding principals of the National Humanization Policy (PNH).

Keywords: National Humanization Policy. Healthcare education. Distance learning. Groups. Networks. La educación a distancia como dispositivo de fomento a las redes de cuidado en salud El artículo describe una experiencia de formación en salud que utiliza como soporte un ambiente virtual de aprendizaje y propone un análisis de las posibilidades ofrecidas por la modalidad educación a distancia a la formación de redes de incremento del proceso de aprendizaje-protagonista. Sustentado en el concepto de educación permanente en salud, en el análisis institucional y en los estudios de red, la experiencia de un cursointervención que operó como disparador de redes de conversación permite considerar la comunicación en red como dispositivo de potenciación de los principios abalizadores de la Política Nacional de Humanización (PNH).

Palabras clave: Política Nacional de Humanización. Educación en Salud. Educación a distancia. Grupos. Redes. Recebido em 18/02/09. Aprovado em 27/05/09.

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Humanização na atenção a nascimentos e partos: ponderações sobre políticas públicas

Daphne Rattner1

Dedico este trabalho aos ativistas dos movimentos de mulheres e pela humanização do parto e nascimento, que tanto contribuem para configurar a política pública, e espero lhes ter feito justiça.

Introdução A partir de 2000, é introduzida na política pública federal a proposta de humanização da assistência. Este relato se propõe documentar a trajetória institucional da humanização na atenção a nascimentos e partos (NeP), do ponto de vista de profissional que a acompanhou de perto, ponderando-a com fatos, reflexões sobre alguns paradoxos e antevendo desafios para sua ampliação.

Humanização na atenção a nascimentos e partos como política pública no Brasil No início da década de 1990, a informação circulante na sociedade decorrente da atuação de ativistas pela humanização deixava claro que o modelo de atenção a NeP era inadequado, com excesso de intervenções e desrespeitando os direitos da mulher. Além de experiências pioneiras herdadas da década anterior – de Galba de Araújo (Ceará), Moisés e Cláudio Paciornik (Paraná), Hugo Sabatino, do Grupo de Parto Alternativo na Universidade Estadual de Campinas (São Paulo), e Caldeyro-Barcia no Centro Latino-Americano de Perinatologia – CLAP/OPAS/ OMS, Uruguai –, já havia iniciativas isoladas de humanização na atenção a NeP se institucionalizando no Hospital Sofia Feldman (Belo Horizonte), no Hospital São Pio X (Ceres, Goiás), e outras. Assumidamente como política pública, pioneira foi a Secretaria Municipal do Rio de Janeiro que, como alegoria de sua política prómulheres ousada, em 1994, denominou Maternidade Leila Diniz o hospitallaboratório de novas práticas de atenção, experiência relatada por Ratto (2001) e Boaretto (2003). O Rio de Janeiro também foi pioneiro ao publicar resolução determinando a obrigatoriedade de acompanhante de escolha da mulher durante o trabalho de parto e no parto nos hospitais municipais (Rio de Janeiro, 1998). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Área Técnica de Saúde da Mulher, Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Esplanada dos Ministérios, bloco G, sala 629. Brasília, DF, Brasil. 70.058-900 daphne.rattner@gmail.com

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Já havia críticas ao excesso de intervenções e, em 1996, são publicadas, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), recomendações sobre tecnologias para atenção a NeP, classificando as práticas com base em evidências científicas em: Grupo A, práticas benéficas a serem incentivadas; Grupo B, práticas danosas ou inefetivas a serem abandonadas; Grupo C, práticas com evidências insuficientes, que demandam mais pesquisas; e Grupo D, práticas que têm sido utilizadas de maneira inadequada. Ao final de 1997, ampla parceria é costurada entre governo e sociedade civil, tendo como sede o Conselho Federal de Medicina e, como mote, “Natural é parto normal”. Foi elaborado um planejamento estratégico, com propostas de intervenções amplas. Alguns Conselhos Regionais, como o de São Paulo, assumiram essa campanha, que teve como “madrinha” Malu Mader, atriz global com dois filhos nascidos de parto normal. Em maio de 1998, o Ministério da Saúde adota medidas objetivando mudanças: aumenta em 160% o valor da remuneração do parto vaginal; institui pagamento de analgesia de parto; para coibir o abuso das cesarianas no SUS, a portaria 2816/1998 estipula crítica para pagamento de cesarianas aos hospitais: 40% para o segundo semestre de 1998, prevendo redução semestral gradativa, para alcançar 30% em 2000 (Brasil, 1998a). Essa portaria foi modificada pela Portaria 466/2000, que instituiu o Pacto Nacional pela Redução das Taxas de Cesárea, compartilhando, com as gestões estaduais, a responsabilidade pelo monitoramento dos hospitais (Brasil, 2000a). Essas medidas corajosas interferem com interesses corporativos instituídos, atendendo parcialmente aos reclamos da sociedade civil. Todavia, a denominação Humanização somente será adotada oficialmente a partir de 2000, quando será lançado o Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento – PHPN (Portaria 569/2000 e outras) (Brasil, 2000b). O sentido do termo humanização adotado será o de equidade/cidadania: toda gestante terá direito ao atendimento pré-natal integral e completo - mínimo de seis consultas e a de puerpério, todos os exames preconizados, vacina antitetânica e garantia de vaga para o parto. Haverá estímulos financeiros para que municípios qualifiquem seu pré-natal e hospitais garantam vaga para gestantes inscritas no PHPN. Paralelamente, serão criados os Centros de Parto Normal (CPN) no SUS, com a Portaria 985/1999 e a linha de financiamento para construção e/ou equipamento de CPNs (Brasil, 1999); possibilitar-se-á a remuneração de enfermeira no atendimento ao parto eutócico (Portaria 2815/1998) (Brasil, 1998b); serão financiados cursos de especialização em enfermagem obstétrica; a partir de 2002, em parceria com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), iniciar-se-á convênio de cinco anos que, anualmente, permitirá estágio de três meses em casas de parto no Japão para dez profissionais de saúde (oito enfermeiras obstetras e dois funcionários administrativos); a partir de 2003, convênio com o Hospital Sofia Feldman instituirá o Programa de Doulas Voluntárias Comunitárias; e desde 2000 adotarse-á método inovador e fortalecedor de capacitação de parteiras tradicionais, em parceria com a ONG Grupo Curumim Gestação e Parto, projeto merecedor do prêmio Hélio Beltrão de inovação na administração federal em 2002. À época, também foram publicadas normas técnicas sobre: pré-natal normal, de alto risco, parto normal, urgências e emergências obstétricas (parceria com a Federação das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia - Febrasgo e Associação de Obstetrizes e Enfermeiras Obstétricas - Abenfo), tradução das recomendações da Organização Mundial de Saúde (parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde), a Cartilha dos Direitos da Gestante (parceria com o movimento de mulheres) e o Livro da Parteira (parceria com a ONG Grupo Curumim), além da Agenda da Gestante, com orientações sobre gestação e atendimento. Foram produzidos e distribuídos: material instrucional ‘Parto e Nascimento’; os vídeos ‘Um dia de vida’ (2004), ‘Proximidade e Cuidado’ (2007), parceria com a equipe do Hospital São Pio X de Ceres; e um vídeo sobre a II Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, realizada em dezembro de 2005. O termo humanização constou apenas do manual ‘Parto, Aborto, Puerpério – Atenção Humanizada à Mulher’ (Brasil, 2001). Saliente-se que o termo “humanização” é polissêmico, admitindo diferentes significações (Rattner, 2009). Nessa publicação, o sentido adotado foi o de práticas legitimadas pelas evidências científicas, além de incluir competente discussão sobre gênero e direitos das mulheres. A partir de 2004, para sensibilizar e capacitar profissionais de saúde nesse novo modelo, o MS promoveu trinta Seminários de Atenção Obstétrica e Neonatal Humanizada e Baseada em Evidências 760

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Científicas em todos os estados, com participação de 1857 profissionais de 457 instituições de saúde importantes para o SUS, resultado de ampla parceria com o CLAP, Departamento para o Desenvolvimento do Reino Unido (DFID) e com Febrasgo, Abenfo e Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), além das instituições: Hospital Sofia Feldman, Hospital São Pio X, Hospital Santa Marcelina (SP) e Maternidade Escola Vila Nova Cachoeirinha (SP). O programa incluiu apresentações e debates sobre: políticas do MS; fundamentos éticos e filosóficos da assistência; práticas obstétricas e neonatais baseadas em evidências científicas; avaliação crítica do tipo de parto (vaginal e cesáreo); atenção ao parto nos diferentes estágios; atenção puerperal; assistência às principais causas de óbito materno: eclâmpsia, hemorragia e infecção; prevenção da transmissão vertical do HIV, hepatite e sífilis; assistência ao recémnascido normal e de risco; atenção humanizada à mulher em situação de abortamento e pós-aborto; aloimunização materno-fetal; assistência à gestação em adolescentes; e depressão puerperal, além de visita a serviço modelo. Ademais, o MS apoiou financeiramente: a II Conferência Internacional de Humanização do Parto e Nascimento de 2005, quando foram realizados Fóruns sobre cesáreas com escolas médicas; atualizações para profissionais sobre humanização no Hospital São Pio X; cursos de especialização em enfermagem obstétrica; e cursos de capacitação de doulas. Em 8 de março de 2004 foi lançado o Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, uma parceria entre os diferentes níveis de governo – federal, estaduais e municipais, por meio de suas representações (CONASS e CONASEMS) e representações da sociedade civil, que tem disseminado a consciência da gravidade desses problemas e da necessidade de esforço coletivo para redução dessa mortalidade evitável. A OMS considera o Pacto um modelo de mobilização social e articulação entre governo e sociedade civil para a promoção dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e, em 2006, lhe outorgou o prêmio de reconhecimento International Highlight in Social Mobilization and Dialogue to Promote the Millennium Development Goals. O Prêmio Galba de Araújo, criado em 1998, destina-se a reconhecer serviços que atendam ao SUS com práticas adequadas e humanizadas. Objetiva estimular serviços a modificarem suas práticas em produtiva emulação, uma vez que esse reconhecimento se traduz em placa a ser exposta no hospital, estatueta e recurso financeiro a ser investido na instituição para humanização. Já houve cinco edições, que premiaram cerca de vinte maternidades do país. Outras iniciativas do MS incluem: campanhas pelo Parto Normal, humanizado, com presença de acompanhante, e pela redução das cesáreas desnecessárias, em 2006 e 2008; e a distribuição da tradução do livro sobre evidências científicas de Enkin et al. (2005), ‘Guia para atenção efetiva à gravidez e ao parto’, a todos os hospitais participantes nos Seminários e Secretarias Estaduais de Saúde. As iniciativas relatadas integram duas linhas de atuação estratégica: (1) estímulo ao parto normal e humanizado, e (2) desincentivo à realização de cesáreas desnecessárias. São complementares, embora adotem medidas em direções diversas.

Papel do movimento social Nesse processo de humanização da atenção a NeP, as ONGs têm sido fundamentais, salientando, entre elas, a ReHuNa. Inspirada nas idéias e publicações de Frédérik Leboyer e Michel Odent, foi criada, em 1993, por pessoas que se tornariam importantes ativistas e que comungavam preocupações e indignações, durante encontro organizado pelo Grupo de Parto Alternativo da Universidade Estadual de Campinas, liderado por Hugo Sabatino. Compareceram representantes do Cais do Parto (PE), Casa de Partos “Nove Luas, Lua Nova” (RJ), Centro Integrado de Estudos e Pesquisa do Homem – CIEPH (SC), Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde (SP), Grupo Curumim (PE), Hospital São Pio X (GO), Instituto Aurora de Yoga e Terapias (RJ), Instituto de Saúde (SP), Maternidade Escola Assis Chateaubriand (CE), Maternidade Odete Valadares (MG), Prefeitura Municipal de Campinas (SP), Puccamp (SP), Rede de Defesa da Espécie Humana – REDEH (RJ), SOS Ação-Mulher Família (SP) e da Universidade Federal de Santa Catarina (SC). Na ‘Carta de Campinas’ de sua fundação, a ReHuNa denuncia as “circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a assistência à saúde reprodutiva e especificamente as condições pouco COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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humanas a que são submetidas mulheres e crianças no momento do nascimento” (ReHuNa, 1993, p.1). Esses pioneiros conseguiram mostrar, na prática, que era possível outra forma de atenção, e atualmente, por seu acúmulo, vários são consultores do MS e referência para estados e municípios. A ReHuNa assumiu a difusão das recomendações da OMS sobre tecnologias apropriadas para NeP e organizou publicações, eventos e debates para polemizar sobre as práticas de assistência; ademais, teve importante papel na publicação brasileira do livro da Colaboração Cochrane, Guia para Atenção Efetiva na Gravidez e no Parto (Enkin et al., 2005). Organizou a I Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, realizada em Fortaleza em novembro de 2000, em parceria com a JICA, com cerca de 2000 participantes de 26 países, a que compareceram os principais ativistas do movimento internacional, proporcionando a abertura do movimento nacional para o âmbito internacional, assim como ativistas estrangeiros tomaram conhecimento da efervescência do processo brasileiro. Nessa Conferência foi criada a Rede Latino-Americana e do Caribe pela Humanização do Parto e Nascimento (Relacahupan), inspirada na ReHuNa - e, atualmente, há redes em vários países da América Latina. A ‘Amigas do Parto’, uma ONG de usuárias ou clientes de serviços, tem importante papel na difusão de informações e formação de opinião, objetivando o empoderamento das mulheres. Surgiu em 2001, como repercussão dessa Conferência, e oferece cursos para profissionais, disponibiliza banco de teses e artigos, e tem papel de mobilização das mulheres em defesa de sua integridade corporal e psicológica. A rede ‘Parto do Princípio’ congrega mais de duzentas usuárias de planos de saúde de vários estados e se conecta virtualmente. Em 2006, entrou com ação no Ministério Público (MP) de São Paulo contra o excesso de cesarianas na Saúde Suplementar, defendendo o direito ao parto normal e humanizado. Como consequência, houve audiência pública no MP e medidas vêm sendo adotadas no âmbito da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Outras organizações com atuação no sentido de mudança do paradigma são: a Abenfo, mobilizando enfermeiros obstetras; a Associação Nacional de Doulas (ANDO), e, atualmente, há ONGs com atuação local, a exemplo da ‘Bem Nascer’, de Belo Horizonte. Também houve bem-sucedidas articulações com o legislativo. A Lei 11.108, ‘Lei do Acompanhante’, projeto da Senadora Ideli Salvatti baseado em proposição da ReHuNa – núcleo de Santa Catarina, garante às mulheres acompanhante durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato (Brasil, 2005). E a Rede Nacional de Parteiras Tradicionais aglutina parteiras em torno de reivindicações pelo reconhecimento de seu trabalho, apoiada pela Deputada Janete Capiberibe. Praticamente inexistente há dez anos, atualmente é rica a difusão de informação, por parte de ativistas, em livros, trabalhos científicos ou vídeos, e proliferam sites, blogs e espaços virtuais. A lista de discussão <www.partonatural@yahoogrupos.com.br>, moderada por Fadynha - doula, educadora perinatal e articuladora dos anuais Encontros de Gestação e Parto Natural Conscientes - foi pioneira, conta com mais de oitocentos assinantes, mas há outras: partonosso, materna, partohumanizado-rs, gestarbeminterior-sp.

Contexto atual das políticas Alguns avanços podem ser contabilizados no período desta gestão: 1) Até 2000, o MS definia políticas e diretrizes apenas para o setor público. Com a constituição da ANS, estruturou-se a regulação da Saúde Suplementar e, atualmente, há convergência das atuações. Exemplo flagrante dessa disparidade: taxas de cesárea no setor público variavam entre 25 e 30% e, desde 1998, havia diretrizes para sua redução, ao passo que, só em 2004, evidenciou-se que a taxa média no setor suplementar era de 80%, e foram delineadas medidas para esse setor. A saúde suplementar não se baseia em territorialidade: a ANS regula operadoras (medicinas de grupo, filantrópicas, seguros saúde e outros) que, por sua vez, relacionam-se com prestadores (profissionais, hospitais, laboratórios e outros). Há planos de saúde com abrangência nacional (Amil, Unimed, Seguro Bradesco), assim como instituições privadas que atendem sob qualquer dessas bandeiras. Isso demonstra a complexidade da regulação desse setor. 762

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A ANS adapta as políticas instituídas para o setor público e propôs organizar redes com base em linhas de cuidado, priorizando quatro: saúde da mulher e da criança, doenças crônicas (sobretudo hipertensão arterial e diabetes), ortopedia/ traumatologia e saúde bucal. Avalia as operadoras nessas áreas por meio de indicadores e, para a Saúde da Mulher e da Criança, a atualização do rol de procedimentos cobertos pelos planos de saúde está sintonizada no projeto de mudança de paradigma para atendimento humanizado, multiprofissional, com possibilidade de participação de doulas. Ademais, estabeleceu parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública para realizar pesquisas objetivando dimensionar o problema no setor, disponíveis na publicação “O modelo de atenção obstétrica no setor de Saúde suplementar no Brasil: cenários e perspectivas” (ANS, 2008), e empenhou-se intensamente no lançamento da Campanha pelo Parto Normal de 2008. 2) Em 2008, a Área Técnica de Saúde da Mulher organizou o I Encontro Nacional de Centros de Parto Normal para atualizar a Portaria 985, reconhecendo-os como experiência bem-sucedida de organização de ambiência para atenção humanizada a NeP. Contribuíram para a proposta preliminar de portaria, a ser encaminhada à tripartite: profissionais de CPNs intra, peri- ou extra-hospitalares, urbanos e rurais, representantes da academia, Febrasgo, Abenfo, ReHuNa, Rede Feminista e outros. 3) A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) organizou, em 2006, grupo de trabalho com participação do Conselho Federal de Medicina, Febrasgo, Abenfo, ReHuNa, ANS, Sociedade Brasileira de Pediatria, além dos setores do MS afeitos ao tema. Esse GT atualizou as orientações para construção e organização de ambientes para atenção obstétrica e neonatal com base no que é preconizado pela OMS e evidências científicas, promovendo uma ambiência favorecedora do parto normal e humanizado. A Resolução da Diretoria Colegiada RDC 36 foi publicada em meados de 2008, estipulando prazo de seis meses para a adequação dos processos de atenção, e deixando flexível a adaptação da estrutura, para a oportunidade de reformas ou ampliações dos estabelecimentos. 4) Uma conquista foi a inserção do indicador “Taxa de Cesáreas” no Pacto pela Saúde/ Pacto de Gestão, ainda que como indicador complementar e com meta constando genericamente como redução. A proposta encontrou resistência na discussão da Câmara Técnica, mas prevaleceu o consenso de que é indicador importante e necessário para monitorar a qualidade da atenção perinatal. 5) A Comissão Perinatal da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, em parceria com várias organizações da cidade - públicas, privadas, associações profissionais, ONGs -, coordena um movimento denominado “BH pelo parto normal”. Periodicamente, há eventos, discussões com profissionais, mobilizações sociais, exposições de fotografias, e isso tem mantido o debate sobre o tema na mídia local. Tanto o MS como a ANS são parceiros desse laboratório de regulação conjunta dos setores público e suplementar. A gestão municipal assumiu que munícipes beneficiários de planos de saúde são cidadãos, estando a proteção de sua saúde sob sua responsabilidade. Portanto, há que evitar procedimentos cirúrgicos desnecessários e potencialmente danosos também para esse grupo populacional. 6) Em novembro de 2008, ocorreu a I Conferência Nacional e I Conferência Internacional sobre os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio no âmbito da Saúde (objetivos 4, 5 e 6), com importante participação de organismos internacionais, países do continente americano e de língua portuguesa, além de representantes de setores do governo e sociedade civil envolvidos no Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal.

Alguns paradoxos Nesse processo histórico de mudanças, emergem paradoxos curiosos. Como exemplo, Diniz comenta que “Para além da pobreza das relações humanas nessa forma de assistência e do sofrimento físico e emocional desnecessário que causa, o uso irracional da tecnologia no parto levou ao seu atual paradoxo: é justamente o que impede muitos países de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal” (Diniz, 2005, p.629). Ela atribui o surgimento do movimento pela humanização do parto e nascimento, há 25 anos, à busca de utilização de tecnologia apropriada a NeP, de qualidade da interação entre parturientes e prestadores de cuidado, e à des-incorporação de tecnologia e procedimentos danosos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Outro paradoxo refere-se a municípios que não conseguem fixar profissionais de nível universitário, sobretudo das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e norte de Minas Gerais, onde a principal e, muitas vezes, única provedora de cuidados a NeP é a parteira tradicional, que trabalha sem vínculo com o sistema formal de saúde, isolada, em condições precárias e nada recebe por seu trabalho. Seus recursos terapêuticos incluem rezas, massagens e ervas medicinais. Essas parteiras envolvem as mulheres num círculo de apoio e lhes transmitem força e segurança. Embora sejam desvalorizadas por muitos profissionais de saúde como pessoas atrasadas, sem higiene e ignorantes, é irônica a constatação de que muitas de suas práticas estão sendo ratificadas, pelas evidências científicas, como aspectos essenciais do cuidado, como: o suporte emocional, o respeito pela mulher, a facilitação do processo fisiológico por meio de posições variadas para o parto, e o estímulo ao vínculo e ao aleitamento materno (Rattner et al., 2009). Esperar-se-ia que a universidade fosse o locus da busca do saber e do conhecimento, e que estas instituições incorporassem rapidamente as práticas baseadas em evidências científicas ao ensino, assistência e pesquisa. Ocorre que essas práticas foram inicialmente adotadas e disseminadas em serviços públicos do SUS e, paradoxalmente, um dos grandes focos de resistência para sua efetiva adoção é a academia: catedráticos de medicina de importantes universidades têm publicado, na mídia, editoriais desqualificando as propostas de humanização do MS. Pesquisa etnográfica em duas conceituadas escolas de medicina de São Paulo buscou verificar como se articulam a competência técnica/científica e o cuidado/relação com a parturiente no ensino teórico e prático (Hotimsky, 2007). Identificou que: preponderam a transmissão oral do conhecimento e a memória sobre o registro escrito e consulta ao prontuário; as condutas rotineiras seriam questionáveis, com base nas evidências científicas; as decisões acerca das condutas/tratamentos não são compartilhadas com as mulheres, que geralmente nem sequer são informadas a respeito; e não há parâmetros para avaliar as atitudes de alunos em suas interações com as mulheres. Ela comenta os acordos informais entre assistentes de ensino na divisão de plantões, que se contrapõem aos organogramas formais e subordinam os objetivos da boa formação e assistência aos interesses dos obstetras responsáveis, como um componente oculto do currículo que serve de modelo para acordos envolvendo residentes e alunos. Esse paradoxo refere-se à transmissão de conteúdos não cientificamente embasados, mas, sobretudo, ao modelo de formação profissional carente em transmissão de valores humanistas. [Outro foco de resistência, esperado, procede de associações médicas, como o conselho de medicina do Rio de Janeiro: o Cremerj não apenas buscou impedir a implantação do CPN de Realengo (iniciativa da SMS-RJ) em 2004, como publicou, em 2008, parecer em que considera ética, em certas circunstâncias, a cesárea a pedido (Cremerj, 2008), o que conflita frontalmente com o Código de Ética Médica (Cremesp, 1988). E, em 2008, o novo presidente da Federação Nacional dos Médicos – FENAM, ao assumir, faz defesa da cesariana e ataque à política ministerial que, em nada, enaltecem a categoria.] Paradoxo interessante é que a atenção humanizada e com melhor qualidade é encontrada com maior frequência no SUS. Mulheres beneficiárias da saúde suplementar buscam o SUS para oferecer a seus filhos um nascimento pela via baixa e humanizado. Aquelas sem condições de remunerar um profissional acabam demandando os poucos CPNs existentes, ou mesmo instituições públicas reconhecidamente qualificadas.

Desafios futuros Pode-se traçar um paralelo: a migração na atenção básica do SUS, do modelo tradicional para a Estratégia Saúde da Família, constitui-se em alteração radical do paradigma vigente, com: adscrição de clientela ao serviço de saúde e sua responsabilização pelo bem-estar da família; equipes multidisciplinares (médico, enfermeiro, dentista, auxiliares, agentes comunitários e referências) oferecendo maior gama de ações e atuando sobre prioridades epidemiológicas; e incorporação de atividades de promoção de saúde. A proposta do MS de reorganização da atenção em direção à humanização, baseada em evidências científicas, possibilitando atendimento em CPNs por equipes 764

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multiprofissionais e valorizando a atuação da enfermagem obstétrica, também representa uma mudança radical de modelo de atenção, transferindo o foco usual de organização dos serviços, centrado na conveniência de profissionais e da instituição, para o bem-estar de quem é atendido, e privilegiando a humanização do atendimento e o fortalecimento da mulher. Para que o projeto de atenção humanizada a NeP se torne realidade cotidiana dos serviços, há importantes desafios para a gestão do sistema. O primeiro é institucionalizar a atenção humanizada com base em evidências científicas no setor público e no suplementar. Para tal, é fundamental que gestores estaduais e municipais adotem essa política pública, a exemplo do Rio de Janeiro na década de 1990, e Belo Horizonte na atualidade. CONASS e CONASEMS têm papel fundamental na indução dessa adesão, além do MS e Agências (ANS e ANVISA). Para vencer resistências, também é fundamental a participação da sociedade civil, ou seja, profissionais, mulheres e suas organizações reivindicando direitos e propondo avanços, já que o acesso a atendimento humanizado e de qualidade é direito garantido na Constituição de 1988 e previsto nos princípios de universalidade e integralidade do SUS. Mudanças de paradigma exigem firmeza e constância do gestor, pois sempre haverá oposição dos setores interessados pela manutenção do modelo hegemônico e, até o presente, a política oficial tem sido coerente. Há que se dar continuidade à formação de enfermeiras obstetras voltada para a mudança de paradigma e apoiar iniciativas de capacitação de doulas comunitárias voluntárias, assim como a implantação de centros de parto normal, com supervisão da atuação. Imprescindível é reconhecer o trabalho da parteira tradicional, integrando-a no sistema de saúde e estabelecendo referências para encaminhamento de complicações. Também é importante incentivar o trabalho conjunto da equipe, estabelecendo protocolos assistenciais locais que contemplem peculiaridades e diversidades regionais e a complementariedade das atuações (médicos, enfermeiros, doulas, parteiras tradicionais). Outro desafio é estruturar a rede perinatal com garantia de assistência, exames, atendimento para os casos de risco e garantia de vaga para o parto, assim como o acompanhamento mais constante em casos de vulnerabilidade (como bebês prematuros). São inspiradores o Programa Mãe Curitibana e a organização da rede assistencial em Belo Horizonte pela Comissão Perinatal. A Lei 11.634/2007, proposição da Deputada Luiza Erundina, dispõe sobre o direito de a gestante conhecer e ficar vinculada à maternidade onde receberá assistência (Brasil, 2007). Caberá ao MS sua regulamentação, alinhada à proposta da organização da rede para a linha de cuidado perinatal. A rede internacional Coalition for the Improvement of Maternity Services (CIMS) desenvolveu, em parceria com a OMS, proposta semelhante aos Dez Passos da Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC), denominada The Mother Baby Friendly Childbirth Initiative, sendo um dos passos a própria IHAC. A proposta está em teste em hospitais dos cinco continentes que se voluntarizaram. Sugere-se sua adaptação para o contexto brasileiro, e desafio adicional é sua adoção como política pública. A competência e a autonomia da enfermeira para prestar assistência ao parto normal sem distocia foram conferidas pela Lei 7.498 de 25 de junho de 1986 do exercício da enfermagem, que, no Art. 9°, incumbe profissionais titulares de diploma ou certificado de Obstetriz ou Enfermeira Obstétrica de: 1) prestação de assistência à parturiente e ao parto normal; 2) identificação das distocias obstétricas e tomada de providências, até a chegada do médico; 3) realização de episiotomia e episiorrafia, com aplicação de anestésico local, quando necessário (Brasil, 1986). Atualmente, cresce a demanda pelo parto domiciliar e há enfermeiras e médicos obstetras enfrentando o desafio de reconstituir a possibilidade de parto domiciliar atendido por profissional qualificado, a exemplo do que ocorre na Holanda, Inglaterra, Alemanha e outros países que mantiveram essa assistência como prerrogativa do sistema de saúde. Grande desafio é a institucionalização dessa possibilidade de atendimento, integrando-a na atenção básica, por um lado, seja por parteira ou enfermeira, e na Saúde Suplementar, para a clientela desta. Pesquisadoras da OMS (Gruskin et al., 2008) afirmam que intervenções supostamente efetivas, como a triagem de risco no pré-natal, pouco impactaram nos resultados da atenção, e reiteram que a persistência da mortalidade materna e infantil, evitáveis, é um atentado aos direitos humanos. Grande desafio é organizar a atenção, num país de dimensões continentais, de forma a obter impacto sensível nos indicadores de resultado. Um problema sério é que as mudanças preconizadas pela política estão ocorrendo sobretudo no sistema de saúde, enquanto o aparelho formador continua preparando profissionais dentro do modelo 765


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intervencionista considerado inadequado. Portanto, outro desafio é a articulação com o Ministério da Educação para que a grade curricular dos cursos de saúde incorpore os fundamentos da Medicina Baseada em Evidências Científicas, além da visão de humanidades imprescindível ao bom exercício profissional. No âmbito da gestão clínica, também há desafios. É antológica a cena de Chaplin em Tempos Modernos, em que a mecanização o transforma em peça da máquina, objetificando-o. Para escapar dessa ‘coisificação’ e como contraposição à linha de produção de partos, faz-se necessária a ‘singularização’ da atenção, a exemplo do plano de parto, identificando como proporcionar a cada parturiente (e seu filho) uma vivência legitimamente única. Mais do que trabalhar presos a rotinas e protocolos, profissionais poderão exercer sua expertise e criatividade, adaptando o cuidado a cada nova situação e demanda, num trabalho de equipe. Outro desafio é inserir, nas atualizações profissionais, conteúdos relacionais, de forma a modificar a relação cuidador – pessoa cuidada. Há métodos que propiciam uma relação noutro patamar de qualidade, com escuta qualificada e sintonia fina, a exemplo do desenvolvido por Jean Paul Résséguier na França; ou a haptonomia, também na França; ou, ainda, o Tac-Tic para bebês prematuros, desenvolvido pela brasileira Elvidina Adamson-Macedo, especialista em psicologia sensorial da Universidade de Wolverhampton, Inglaterra, pioneira a combater a idéia de que prematuros deveriam permanecer sem contato; a hidroterapia, também para bebês prematuros; e outros. Essas técnicas representam desenvolvimento do cuidado e são fundamentais para a obtenção de melhores resultados, devendo ser integradas na rotina dos serviços, pois há evidências de seu impacto nos processos e nos resultados. Outro aspecto essencial é trabalhar, com os profissionais, o “como fazer” para propiciar que as mulheres assumam o protagonismo do nascimento de seus filhos. Em serviços de saúde com cultura institucional de instituições totais, será mais difícil que nos que já adotam algum conteúdo de humanização. Dias e Domingues (2005, p.702) afirmam: “O grande desafio que se coloca, para todos os profissionais que prestam esta assistência, é o de minimizar o sofrimento das parturientes, tornando a vivência do trabalho de parto e parto em experiências de crescimento e realização para a mulher e sua família”; e seguem na proposta de fortalecer o modelo de atenção multiprofissional, integrando cada vez mais enfermeiras obstetras no atendimento ao parto eutócico, a exemplo da experiência desenvolvida na Maternidade Leila Diniz. Finalmente, para que mudanças efetivamente aconteçam, são necessárias parcerias intra e extrainstitucionais em todos os níveis do sistema, entre serviços e sociedade civil, com organização efetiva do controle social. O atendimento humanizado nos serviços de saúde é projeto para a sociedade como um todo, um grande avanço no sentido da equidade como direito de cidadania.

Agradecimentos Agradeço as contribuições, para aprimoramento do texto, de Ricardo Jones, Herdy Alves, Heloísa Lessa, Maria Auxiliadora (Dôra) Benevides, Adriana Tanese Nogueira, Henrique Rattner, Simone Diniz, e a grande ajuda de Sonia Nussenzweig Hotimsky na complementação de reflexões e identificação de referências relevantes. Referências ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. O modelo de atenção obstétrica no setor de Saúde Suplementar no Brasil: cenários e perspectivas. Rio de Janeiro: ANS, 2008. ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada RDC n. 36/2008. Dispõe sobre Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de Atenção Obstétrica e Neonatal. Republicada em 11/07/2008. Brasília, 2008.

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BOARETTO, M.C. Avaliação da política de humanização ao parto e nascimento no município do Rio de Janeiro. 2003. Dissertação (Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2003. BRASIL. Lei n.11.634, de 27 de dezembro de 2007. Dispõe sobre o direito da gestante ao conhecimento e a vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 2007. Seção I, p.2. ______. Lei n.11.108, de 07 de abril de 2005. Altera a Lei 8.080, introduzindo o direito ao acompanhante de escolha durante o trabalho de parto, no parto e no pós-parto imediato. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n.67, 8 abr. 2005. Seção 1, p.1. ______. Parto, aborto, puerpério: assistência humanizada à mulher. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. ______. Portaria GM/MS n.466, de 14 de junho de 2000. Estabelece como competência dos Estados e do Distrito Federal a definição do limite, por hospital, do percentual máximo de cesarianas em relação ao número total de partos e ainda a definição de outras estratégias para a obtenção de redução deste procedimetnos no âmbito do Estado. Institui o Pacto pela Redução das Taxas de Cesárea. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jun. 2000a. p.43. ______. Portaria GM/MS n.569, de 01 de junho de 2000. Institui o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 ago. 2000b. p.112. ______. Portaria GM/MS n. 985, de 05 de agosto de 1999. Cria o Centro de Parto Normal – CPN no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 ago. 1999. p.69. ______. Portaria GM/MS n.2816, de 29 de maio de 1998. Determina que, no programa de digitação de autorizações de internação hospitalar SISAIH01, seja implantada crítica visando o pagamento de percentual máximo de cesarianas, em relação ao total de partos por hospital. Institui medidas para redução de cesáreas. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 2 jun. 1998a. Seção I, p. 48. ______. Portaria GM/MS n.2815, de 29 de maio 1998. Inclui, na Tabela de Informações Hospitalares do SUS, procedimentos de atenção ao parto normal sem distócia realizado por enfermeiro obstetra. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 jun. 1998b. Seção I, p.47. ______. Lei n.7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n.9273, 26 jun. 1986. p.1. CREMERJ - Conselho Regional de Medicina do Estado Rio De Janeiro. Parecer 190/ 2008. Direito de a gestante escolher o tipo de parto. Disponível em: <http://www. cremerj.org.br/skel.php?page=legislacao/resultados.php>. Acesso em: 12 jul. 2009. CREMESP - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Código de Ética Médica. São Paulo: Cremesp, 1988. DIAS, M.A.B.; DOMINGUES, R.M. Desafios na implantação de uma política de humanização da assistência hospitalar ao parto. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.699705, 2005. DINIZ, C.S.G. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.627-37, 2005. ENKIN, M. et al. Guia para atenção efetiva na gravidez e no parto. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. GRUSKIN, S. et al. Using human rights to improve maternal and neonatal health: history, connections and a proposed practical approach. Bull. World Health Organ., v.86, p.589-93, 2008.

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Este trabalho aborda como vem sendo desenvolvida no Brasil a política pública no que tange à humanização na atenção a nascimentos e partos, descrevendo a atuação governamental e o papel dos movimentos sociais. Discute, ainda, o contexto atual da política federal, identificando interessantes paradoxos na prática corrente e apontando importantes desafios para a concretização do projeto em âmbito nacional.

Palavras-chave: Parto humanizado. Políticas públicas de saúde. Saúde da mulher. Humanizing childbirth care: pondering on public policies This paper looks into how Brazilian public policies are being developed with regard to humanization of childbirth care, describing governmental activities and the role of social movements. It also discusses the current context of the federal policies, identifying interesting paradoxes within current practices, as well as important challenges for the effective extension of this project throughout the country.

Keywords: Humanizing childbirth. Health public policy. Women’s health. Humanización en la atención a nacimientos y partos: pontieraciones sobre políticas públicas Este trabajo plantea el modo en que viene siendo desarrollada en Brasil la politica pública en cuanto a la humanización en la atención a nacimientos y partos, describiendo la actuación gubernamental y el papel de los movimientos sociales. Discute e también el contexto actual de la politica federal, identificando incesantes paradojas en la práctica corriente y señalando importantes desafíos para la concretización del proyecto en el ámbito nacional.

Palabras clave: Parto humanizado. Políticas públicas de salud. Salud de la mujer.

Recebido em 11/01/09. Aprovado em 01/07/09.

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Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a humanização das práticas de saúde Ruben Araujo de Mattos1

Tornou-se comum entre nós designar, por princípios e diretrizes do SUS, as linhas mestras delineadas no texto da constituição federal: a universalidade, a equidade, a integralidade, a descentralização, a participação da população e a organização da rede de serviços de modo regionalizado e hierarquizado. Tais princípios e diretrizes foram forjados no interior de um processo de luta travada pelo movimento da Reforma Sanitária desde o final dos anos setenta. Este movimento (por vezes chamado simplesmente de movimento sanitário), embora não homogêneo, produziu um amplo consenso em torno de princípios básicos que deveriam nortear a atuação do Estado na saúde, a começar pela inequívoca afirmação de que a saúde deveria ser considerada como um direito de todos e um dever do Estado, seguindo por uma compreensão bastante ampliada da saúde e de seus determinantes sociais, bem como por uma visão bastante ampliada das responsabilidades do Estado para com a saúde. Tal movimento também formulou os princípios que deveriam nortear a construção de um sistema de saúde, sendo estes os elementos centrais que comumente chamamos de princípios e diretrizes do SUS. Mas, se o texto constitucional efetivamente incorporou algumas das aspirações do movimento da Reforma Sanitária, certamente não reconheceu todas elas. Como produto de um processo de negociação travado na arena da Assembléia Constituinte, a constituição promulgada em 1988 delineou um contexto para o SUS que, não necessariamente, era o imaginado pelo movimento sanitário, ou pelo menos não consensual em seu bojo (como na ampla liberdade para a iniciativa privada na saúde, e o caráter fortemente municipalista do pacto federativo). Por sua vez, no processo de negociação, algumas questões polêmicas foram deixadas para ser detalhadas posteriormente, como foi o caso da questão sobre o financiamento do SUS, tratada no texto original de modo excessivamente genérico. A Constituição criou o SUS. Mas sua implementação se fez em um contexto político também bem distinto do imaginado pelo movimento sanitário: no cenário internacional, crescia a difusão do ideário neoliberal, com as propostas de redução da atuação do Estado em vários setores, inclusive na saúde; no cenário nacional, o restabelecimento das eleições diretas levou à presidência governos que efetivamente incorporavam, de modo significativo, aquele ideário de redução da atuação do Estado. A luta em defesa do SUS (para usar uma expressão difundida pelo recente Pacto de Gestão) e de seus princípios e diretrizes tomou novos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra filho, 7º andar, Bloco E, sala 7014, Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-900 ruben@ims.uerj.br 1

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PRINCÍPIOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE ...

rumos, incluindo novos atores (como o CONASS e o CONASEMS, assim como os atores participantes de Conselhos e Conferências de Saúde). O SUS que foi se desenhando no concreto da vida dos brasileiros nem sempre correspondia (e corresponde) ao ideário do movimento sanitário, embora sejam inequívocos os avanços produzidos nesses vinte anos. Ao longo desse processo de luta, nem sempre os diversos princípios e diretrizes do SUS foram tratados com igual importância. Ao contrário, em cada conjuntura, certa hierarquia de importância se constituía entre eles, quer como reflexo da heterogeneidade dentro do movimento sanitário no que diz respeito à importância dada a este ou aquele princípio, quer em decorrência das opções estratégicas diante de determinados obstáculos políticos. Este pequeno texto procura examinar, ainda que de modo exploratório, as relações entre esses chamados princípios do SUS e as questões de transformação das práticas de saúde. Procura apreender, por um lado, as oscilações da centralidade destas últimas questões ao longo do tempo, bem como as dificuldades que ainda hoje se colocam para sua concretização. Tomo aqui os princípios e diretrizes do SUS, portanto, não como definições estáticas, mas como signos dos valores pelos quais temos lutado e, creio eu, pelos quais vale a pena lutar.

Da questão democrática ao imperativo da mudança das práticas de saúde no SUS Tomo, como primeira aproximação das diferentes perspectivas como a transformação das práticas de saúde foi sendo tratada no bojo do movimento sanitário, um contraste entre dois documentos: um datado de 1979, intitulado A Questão Democrática na Área de Saúde (CEBES, 1980), e outro intitulado O SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade (Fórum da Reforma Sanitária, 2006), escrito em julho de 2006, ambos voltados a alimentar um debate junto ao Legislativo2. O primeiro documento pode ser considerado uma das primeiras apresentações sistemáticas do que, posteriormente, veio a se constituir como os princípios do SUS. Contudo, nele a questão da transformação das práticas de saúde não aparece como questão central das políticas de saúde. A idéia de integralidade, por exemplo, não é explicitamente mencionada no documento (apesar de haver rápida menção sobre a articulação entre assistência e prevenção na atenção primária). É claro que se reconheciam, naquele texto, os signos de uma profunda crise na medicina de então e na organização das práticas: denunciavam-se a má qualidade da assistência, as filas, o seu alto custo. Contudo, essas mazelas eram atribuídas a características das políticas de saúde da época, consideradas privatizantes e favorecedoras da mercantilização da saúde: Entretanto, o que só recentemente está vindo à luz, em forma ainda tanto encoberta, são as reais causas das distorções detectadas. As raízes últimas da anarquia instaurada na assistência médica e da insolvência sanitária da população: a mercantilização da medicina promovida em forma consciente e acelerada por uma política governamental privatizante, concentradora e anti-popular. (CEBES, 1980, p.11)

Ao subordinar a má qualidade da atenção médica às características das políticas governamentais de cunho tecnocrático, autoritário, centralizador e privatizante, o 772

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2 O primeiro texto foi apresentado pelo CEBES no 1º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde na Câmara Federal em outubro de 1979; o segundo foi elaborado pelo Fórum da Reforma Sanitária, que congrega, além do CEBES, a ABRASCO, a AMPASA, a AMBRES e a Rede Unida, e foi apresentado para discussão com a Frente Parlamentar da Saúde e com outras entidades do setor de saúde e de educação, assim como com a sociedade em geral.


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documento manifesta, tacitamente, a expectativa de que a qualidade se estabeleceria: com a mudança radical nesta política, com um processo de democratização possibilitado pela articulação entre a descentralização e a participação popular, e com o fortalecimento dos serviços públicos e a valorização dos profissionais de saúde que neles atuam. Pouca ou nenhuma atenção é dada a outras mediações na produção da má qualidade da assistência como, por exemplo, dadas pelas características da formação dos profissionais de saúde ou pela própria racionalidade médica que, de algum modo, orientava as práticas dos profissionais de saúde. Em consequência, a transformação dessas práticas assistenciais não era vista como objeto de políticas de saúde, ou melhor, o tema da transformação das práticas de saúde não era central para as políticas de saúde que se desenhavam. Esta interpretação dos determinantes da má qualidade das práticas assistenciais guarda profunda relação com as estratégias políticas assumidas na época, voltadas para a construção da base de consensos interna ao movimento sanitário (talvez suprimindo algumas questões que, embora postas na base acadêmica daquele movimento nascente, não eram tão consensuais) e externa ao movimento. Este último aspecto se expressa tanto no título, que põe em destaque a questão democrática, tão cara ao movimento de oposição ao governo militar, como no fato de o documento apoiar explicitamente algumas das reivindicações dos movimentos sociais para além da área da saúde. Façamos um contraponto com o segundo documento, de 2006. Seu título já indica uma grande inflexão: o SUS pra valer parece ser caracterizado pelo seu caráter universal, e pelas características de suas práticas, humanizadas e de qualidade. Mais do que isso, reconhecem-se as contradições e os limites concretos do SUS que temos, diante dos imperativos ético-políticos da universalidade, da humanização e da qualidade. Em um trecho, afirma-se: “O SUS universal, cujo melhor exemplo é o programa de AIDS – cartão de visitas de diversos governos –, convive com avaliações negativas sobre o acesso e as condições indignas do atendimento efetuado pela rede de serviços de saúde” (Fórum da Reforma Sanitária, 2006, p.387). Aqui, reconhece-se a má qualidade de práticas de saúde no âmbito do SUS real: Os brasileiros em busca de assistência e cuidados à saúde na rede do SUS são submetidos a filas que se formam desde a madrugada para pegar senhas, passam por triagens, aguardam horas em locais de espera, freqüentemente desconfortáveis, e necessitam, quase sempre, percorrer mais de um estabelecimento nos casos exigentes de realização de exames e obtenção de medicamentos. A lógica que deve orientar a organização dos serviços de atenção e atuação dos profissionais da saúde é a de tornar mais fácil a vida do cidadãousuário, no usufruto de seus direitos. Trata-se de organizar o SUS em torno dos preceitos da promoção da saúde, do acolhimento, dos direitos à decisão sobre alternativas terapêuticas, dos compromissos de amenizar o desconforto e o sofrimento dos que necessitam assistência e cuidados. (Fórum da Reforma Sanitária, 2006, p.387)

Nesse sentido, defende-se uma mudança radical das práticas e dos modos de organização dos serviços de saúde: A sustentabilidade político-econômica do SUS e sua legitimidade dependem da promoção de mudança radical do modelo de atenção, pois a qualidade e a resolutividade das ações e serviços de saúde possibilitarão ao SUS tornar-se patrimônio nacional e ser o local preferencial de atendimento para todos os segmentos sociais. (Fórum da Reforma Sanitária, 2006, p.389)

O entendimento aqui desloca-se da análise dos determinantes das práticas para afirmar o próprio imperativo ético-político, advertindo sobre as possíveis consequências de sua não-realização: a própria sustentabilidade e a própria legitimidade do SUS é que estão em questão. Portanto, impõe-se uma mudança radical: Uma mudança radical do modelo de atenção à saúde envolve não apenas priorizar a atenção primária e retirar do centro do modelo o papel do hospital e das especialidades, mas,

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principalmente, concentrar-se no usuário-cidadão como um ser humano integral, abandonando a fragmentação do cuidado que transforma as pessoas em órgãos, sistemas ou pedaços de gente doentes. As práticas interativas, mais holísticas, devem estar disponíveis como alternativas de cuidado à saúde. A humanização do cuidado, que envolve desde o respeito na recepção e no atendimento até a limpeza e conforto dos ambientes dos serviços de saúde, deve orientar todas as intervenções. (Fórum da Reforma Sanitária, 2006, p.389)

Note-se que humanização e qualidade, evocadas como centrais para a sustentabilidade e legitimidade do SUS, não são princípios do SUS naquele sentido que indicamos anteriormente aos princípios reconhecidos no texto constitucional, mas tornam-se centrais para as políticas de saúde. É claro que as aspirações de mudanças radicais no modelo assistencial anunciadas nesse documento guardam relações com a aspiração de integralidade, pelo menos em alguns de seus sentidos. Em outro trabalho (Mattos, 2001), analisei os sentidos do termo integralidade presentes no debate sobre a saúde antes da promulgação do texto constitucional. Mostrei a existência de, pelo menos, três grandes grupos de sentidos: um como atributo das práticas dos profissionais de saúde, outro como atributo dos modos de organizar os serviços de saúde, e o terceiro como atributo das políticas de saúde. Sentidos que têm em comum uma recusa ao reducionismo, mas que nem sempre tiveram, ao longo do tempo, a mesma centralidade no movimento sanitário. De especial importância para a presente discussão são as oscilações na centralidade nas noções de integralidade voltadas para as práticas e para a organização dos serviços. É nesse sentido que podemos compreender que, na conjuntura em que a questão da transformação das práticas no SUS parece se tornar mais central no debate das políticas de saúde, a evocação de alguns dos valores expressos outrora na perspectiva da integralidade se expressem utilizando outros vocabulários. Mais importante do que examinar essas escolhas de vocábulos, é compreender as oscilações da centralidade da temática da transformação das práticas, quer sejam elas decorrentes das tensões e eventuais contradições internas ao movimento sanitário, quer sejam elas decorrentes das estratégias adotadas em resposta a conjunturas particularmente adversas. O contraponto dos dois documentos indica uma inflexão na reflexão do chamado movimento sanitário. Para melhor compreendê-la, talvez seja oportuno reexaminar, na própria trajetória do movimento sanitário antes da Constituição de 1988, os elementos contraditórios que nos permitam apreciar as diferentes centralidades das perspectivas de mudança das práticas ao longo de algumas conjunturas. Tomo aqui um recorte de privilegiar a vertente acadêmica do movimento sanitário.

O tema da transformação das práticas na trajetória do movimento sanitário O chamado movimento de Reforma Sanitária no Brasil organizou-se como uma ampla frente em torno de um conjunto de objetivos (poderíamos, sem grandes riscos, dizer imagens-objetivo). Contudo, esta frente nunca foi plenamente homogênea. Podemos identificar, em sua origem, pelo menos três vertentes distintas. De um lado, uma vertente originária da Saúde Pública, mas não da velha Saúde Pública moderna, que era centrada na doença, tendo a administração científica como fundamento da sua ação, e muito próxima da medicina das doenças infecto-parasitárias e dos modelos de intervenção norte-americanos. A Saúde Pública que concorreu para o movimento sanitário trazia consigo os ventos do desenvolvimentismo. Esta vertente enfatizava a necessidade de se compreenderem as relações entre a saúde e o desenvolvimento econômico e social; defendia o planejamento como central na atuação do Estado na saúde, e abria-se para as teses que buscavam a articulação entre a Saúde Pública e a assistência médica. A segunda vertente, a Medicina Preventiva, instalada nos departamentos de mesmo nome, tampouco derivava linearmente das bases postas por Level e Clark nos Estados Unidos. De fato, aqui no Brasil, nos anos 70, desenvolveu-se densa crítica àquela Medicina Preventiva, exemplificada pelo trabalho de Arouca, O dilema preventivista. A terceira vertente buscava retomar o ideário da Medicina Social, que, enquanto disciplina, havia perdido o prestígio que teve nos 1800, logo após o advento da microbiologia (e, em seguida, da moderna Saúde Pública). No início dos anos 1970, reliam os princípios da Medicina Social para afirmar: 1) que a saúde deveria ser vista como uma responsabilidade do Estado; 2) que as condições de saúde e da doença tinham profundas relações com 774

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as condições econômico-sociais, relações essas que deveriam ser objeto de estudo; e 3) que as ações e intervenções médicas deveriam ser tanto propriamente médicas como sociais. As intensas trocas entre estas vertentes no momento da constituição do movimento sanitário permitiram um grande hibridismo entre elas, criando as condições para a elaboração de um projeto amplamente consensual. Contudo, algumas diferenças significativas persistiram, embora assumindo algumas configurações distintas ao longo dos anos 1980 e 1990. Um dos temas mais tensos foi o relativo às práticas e as instituições médicas. Evoco - sem a pretensão de analisá-los em detalhe - alguns signos dessa tensão contínua. O primeiro, produzido originalmente no seio da vertente da Medicina Social, resultou do profundo impacto das conferências de Michel Foucault feitas ainda em 1974 no Brasil. Derivou-se dela uma dialética entre duas posições distintas: de um lado, uma densa análise crítica das instituições médicas, e das suas práticas, que, aliás, foi intensamente apropriada e utilizada no movimento da reforma psiquiátrica. Nessa mesma vertente, aprofundaram-se as críticas à racionalidade médica, em um processo que, pelo menos em alguns lugares, aproximou-se bastante da chamada medicina integral. Devemos destacar, nessa perspectiva, as críticas às formas como profissionais de saúde exercem seu poder sobre os outros, em estratégias de subordinação do outro a uma ordem médica. De outro lado, os que enfatizavam a gravidade da não-garantia pelo Estado do acesso universal à assistência médica quando ela se fizesse necessária. Nessa perspectiva, defendia-se a expansão da assistência médica garantida pelo Estado, ainda que esta fosse marcada pelas instituições e práticas densamente criticadas pela primeira vertente. A dinâmica dessa dialética indicava um caminho teoricamente consensual: ampliar o acesso à assistência médica e, ao mesmo tempo, transformar suas práticas. Tese de difícil operacionalização. Voltaremos a ela mais adiante. Um segundo signo foi dado pela tese operacional, fortemente influenciada pela estratégia de ocupação dos espaços institucionais, bastante em voga à época, de que significativos avanços poderiam ser feitos a partir da atuação técnico-política nos níveis da gestão, tanto nas instituições da Saúde Pública, como nas instituições da assistência médica. Esta tese, entretanto, assumiu diferenças sutis conforme o lócus institucional dessa ocupação. Desde a Saúde Pública, a estratégia voltava-se para que sanitaristas assumissem a gestão das unidades de saúde, passando a controlar o trabalho médico e dos demais profissionais de saúde que atuavam nas tradicionais unidades de Saúde Pública. Isto ao mesmo tempo em que transformavam estas unidades em serviços mais aptos a responderem ao que pareciam ser as reais necessidades de saúde da população. A epidemiologia (mas também um pouco o planejamento) surgiu ofertando os fundamentos da ação controladora dos sanitaristas sobre as práticas nos níveis de unidades mais básicas. Desde a assistência médica da previdência social, tratava-se de aproveitar médicos e enfermeiros que tinham tido alguma formação em Saúde Coletiva, deslocando-os da ponta da assistência para as práticas de gestão sistema, buscando ordená-lo para que o mesmo se voltasse para ampliar o acesso e, assim, responder às necessidades da população. O planejamento (mas também um pouco da epidemiologia) serviu de base para a condução técnico-política das transformações em hospitais e ambulatórios especializados no âmbito do Inamps. Particularmente importante para os propósitos deste trabalho é destacar as diferenças, sutis mas significativas, entre estas duas vertentes: por um lado, uma maior ênfase nas ações de prevenção (ou melhor, nas ações programadas pelos serviços de saúde) e na atenção básica; por outro, uma maior ênfase na necessidade de dar resposta ao sofrimento manifesto, e na necessidade de ampliar o acesso aos procedimentos considerados então de maior complexidade. Um terceiro signo foi a divisão nas táticas (e depois nas estratégias de atuação) surgidas após o fracasso retumbante do Prev-saúde, e a abertura de possibilidades de desencadear uma estratégia de mudança do sistema de saúde sob a batuta da Previdência, que controlava grande parte da assistência médica no país. Espaços que permitiram, um pouco mais adiante, já na abertura política (embora ainda sem as eleições diretas), uma atuação do movimento em duas frentes: a da condução da reforma desde o Ministério da Saúde, e a da condução da reforma desde a assistência médica previdenciária. Frentes que se afastaram, até a grande polaridade gerada sob a divergência quanto ao processo de unificação, que já foi descrita como uma disputa entre os reformistas da saúde e os reformistas da Previdência (Baptista, 2007). O quarto signo, um pouco em função daquelas estratégias políticas de ocupação de espaços, foi o gradual afastamento da formação na área de Saúde Coletiva da formação médica. A decisão de retirar, 775


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da formação dos residentes de medicina preventiva e social, as atividades de atendimento médico, com honrosas resistências pontuais, contribuíram para formar quadros de sanitaristas que definitivamente não compreendiam a assistência médica, não refletiam sobre ela ou sobre sua transformação. Um último signo, ligado ao anterior, foi o gradual afastamento do tema das transformações no ensino da medicina (e das demais profissões de saúde) da centralidade da agenda do movimento sanitário, mais ocupado progressivamente com a gestão do sistema. Devemos notar que, em parte em decorrência do movimento da medicina integral, foram-se desenhando em várias universidades propostas de mudanças no ensino, numa tentativa de modificar as posturas dos profissionais de saúde em suas práticas, afastando-os da excessiva especialização e da redução do sujeito à lesão. Tais iniciativas estiveram, de certo modo, próximas ao movimento sanitário, na medida em que instituições de Saúde Coletiva organizavam, nos anos oitenta, sob a égide da chamada medicina comunitária, experiências alternativas em unidades de saúde próximas a comunidades marginalizadas. Em muitas delas, a assistência prestada era realizada por residentes de medicina preventiva, ou por internos, sendo espaços da tentativa de desenvolver uma medicina mais integral. Contudo, na medida em que as arenas de luta do movimento sanitário se deslocaram das experiências alternativas para os espaços institucionais na saúde pública ou na previdência, e o perfil dessa militância sanitária assumiu a perspectiva de uma atuação mais profissional (do sanitarista nos espaços da saúde pública, ou do gestor nos espaços da previdência), o tema da transformação da formação perdeu espaço na agenda. Em conjunto, estes signos nos permitem sugerir que o tema da transformação das práticas de saúde, embora presente no debate, não alcançou uma centralidade muito grande na agenda nem foi crucial no amplo consenso do movimento sanitário antes da constituição. Compreende-se, assim, que, mesmo reconhecendo um imperativo ético-político da transformação das práticas de saúde no SUS, persistiam diferentes entendimentos dentro de segmentos tradicionalmente ligados ao movimento sanitário acerca da importância de tais transformações para o SUS.

Para além da universalização e da igualdade: por um SUS humanizado, de qualidade e com integralidade Além de uma certa heterogeneidade no âmbito do próprio movimento sanitário, devemos reconhecer que as aspirações desse movimento não foram integralmente atendidas. Tampouco o contexto de implantação do SUS nos anos noventa foi tão favorável àquele ideário. Destacamos aqui alguns aspectos relevantes para a melhor compreensão dos desafios postos à transformação das práticas de saúde. Cabe recordar que, em um contexto de tensões internas crescentes entre reformistas da Saúde e da Previdência, a VIII Conferência Nacional de Saúde se constituiu em uma arena de ampliação do debate e de retomada de uma organicidade maior da luta do movimento sanitário. Por esta razão, podemos tomar seu relatório final como a expressão do pensamento predominante no movimento sanitário na época. Ou melhor, como um reflexo das aspirações desse movimento. Entretanto, quando contrastamos este relatório com o texto que foi aprovado, após intensas negociações com o Centrão (autodesignação do grupo conservador que se constituiu como grupo majoritário em plena Assembléia Nacional Constituinte), verificamos que a vitória do movimento sanitário, embora muito significativa, foi muito aquém das aspirações. Com efeito, na VIII Conferência, a garantia pelo Estado do direito à saúde contemplava um grande conjunto de tópicos. De fato, apenas um deles foi plenamente acolhido na constituição, mantendo exatamente a mesma redação do relatório da VIII: a garantia do direito do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Por outro lado, o texto constitucional assegura que a saúde é livre à iniciativa privada. Ademais, no texto da Carta Magna, o SUS é definido como o conjunto de ações e serviços públicos de saúde, mas também abre o espaço para que alguns serviços privados possam dele participar em caráter complementar, a saber, aqueles (e apenas aqueles) que estabelecerem com o SUS contratos de direitos públicos. Longe das aspirações do movimento sanitário, constitui-se um arranjo no qual o SUS não é o único sistema de saúde, e sim um dos sistemas de saúde, financiado publicamente, e que convive com outros sistemas, hoje reunidos sob a rubrica da saúde suplementar.

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Essa característica tem enormes consequências. Em primeiro lugar, ela expressa, no plano normativolegal, um processo que já foi descrito como a universalização excludente: é que, à medida que o acesso à assistência médica previdenciária foi sendo ampliado, desde os anos 80, crescentes segmentos das camadas médias da população buscaram o que hoje chamamos de saúde suplementar. Esse processo por si reduz o apoio político ao SUS. Em segundo lugar, a coexistência da saúde suplementar, com financiamento predominantemente privado, com o SUS, faz com que este tenha de competir com o setor privado em bases de mercado pelos profissionais de saúde. Por sua vez, estes profissionais podem (e vêm fazendo) constituir estratégias de atuar concomitantemente no SUS e no setor privado. E alguns deles (sobretudo médicos altamente especializados) obtêm, em sua atuação privada, rendimentos maiores do que na sua atuação junto ao SUS. Esta dupla atuação opera no sentido de favorecer, em situações limites, a criação de uma duplicidade nas práticas: um mesmo profissional exerce práticas de distintas qualidades no SUS e no setor privado. Por fim, há que se registrar que a existência de um setor de saúde suplementar sustentase na premissa de que a qualidade das práticas no seu interior é bem superior à do SUS. A eficácia simbólica dessa premissa, mesmo que não corresponda à verdade, parece fundamental para a dinâmica da saúde suplementar. O reconhecimento desse convívio entre o SUS e a saúde suplementar coloca questões importantes sobre os princípios da universalidade e, sobretudo, sobre o princípio da igualdade. Podemos notar, no texto constitucional, dois sentidos da universalidade: um geral, expresso na própria idéia de que todos têm o direito à saúde (note-se que, nesse enunciado, não há, no texto constitucional, qualquer menção à equidade); o segundo, restrito ao acesso às ações e serviços de saúde. A diferença desses dois sentidos remonta exatamente à diferença entre o ideário do movimento sanitário e o acordo possível na constituinte. A questão pode ser posta da seguinte forma: reconhece-se a universalidade do direito à saúde, mas, no que diz respeito às especificações dos deveres do Estado para a garantia desses direitos, reconhece-se com absoluta clareza a obrigação do Estado em promover políticas econômicas e sociais para garantir o acesso universal às ações e serviços de saúde. Este princípio da universalidade do acesso aos serviços de saúde (permitam-me designá-lo assim para evitar confusão com a idéia mais ampla de universalidade) tem, por trás dele, uma tese ético-política: não é justo que alguém seja privado do acesso às ações e serviços de saúde dos quais necessite pelo simples fato de não ter renda. Cabe ao Estado garantir essa tese. Penso que essa tese deve ser radicalmente defendida por nós, embora ela se refira a apenas um dos componentes das necessidades de saúde das pessoas e dos grupos populacionais. A igualdade aparece no texto constitucional ao lado da universalidade do acesso às ações e serviços de saúde. Sobre a igualdade (e aqui prefiro o termo à equidade por simples fidelidade ao texto constitucional), cabe dizer que, no texto constitucional, ela aparece no capítulo da saúde exclusivamente referindo-se ao acesso. Talvez fosse melhor denominá-la princípio do acesso igual às ações e serviços de saúde. Aqui, novamente, há um déficit entre o ideal do movimento sanitário e o texto constitucional. Vivemos numa sociedade profundamente desigual, e sonhamos com as reduções da desigualdade. O texto da Constituição reconhece que o Estado deve garantir, aos brasileiros, a igualdade do acesso aos serviços de saúde. Penso que devemos defender radicalmente esta tese ética e política, embora ela seja uma pequena parte da luta por uma sociedade mais igual. Mas cabe aqui um comentário adicional, ainda centrado no texto constitucional: o que o Estado deve assegurar é que todos os brasileiros tenham, igualmente, acesso às ações e serviços de saúde de que necessitam, e não às ações e serviços públicos de saúde que constituem o SUS. Nesse sentido, a igualdade e a universalidade do acesso não são apenas princípios do SUS, mas princípios mais gerais para a ação do Estado. Assim, a desigualdade no acesso entre brasileiros diante de uma equivalente necessidade agride o princípio constitucional. Portanto, nesse sentido, não seria aceitável a diferenciação do acesso no âmbito do SUS e na chamada saúde suplementar3.

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Nessa perspectiva, caberia refletir sobre as noções de qualidade que se colocam em jogo no debate simbólico entre o SUS e a saúde suplementar. De modo particular, cabe rejeitar a ideia de que a qualidade se expresse na simples possibilidade de consumo de bens e serviços de saúde4. A qualidade almejada deve ter, como eixo, a garantia do acesso adequado e oportuno às ações e serviços de saúde que tenham potência de responder às necessidades das pessoas, e na medida dessas necessidades. É aqui que o princípio da integralidade pode nos oferecer uma chave para reconceitualizar a qualidade que aspiramos. Independentemente de seus múltiplos sentidos, integralidade tem a ver com a recusa às formas de reducionismo, a começar pelo reducionismo de sujeitos a objetos. Nesse sentido, reconhecer que as práticas de cuidado são necessariamente intersubjetivas, e que devem se pautar por uma perspectiva dialógica para a determinação das necessidades de ações e serviços de saúde em cada situação, tanto de grupos como de pessoas (Mattos, 2001). Diálogo que necessariamente se faz no contexto concreto dos modos de andar a vida desses grupos sociais e dessas pessoas (Mattos, 2004a, 2004b). Nesse sentido, o termo integralidade expressa um conjunto de valores que devem pautar todas as práticas de saúde, conferindo-lhes qualidades. A transformação das práticas do SUS pautadas pela integralidade, assim compreendida, abre uma perspectiva de reversão radical da imagem simbólica de qualidade superior da saúde suplementar. Mas tomemos de modo mais restrito o sentido de integralidade que é expresso no texto da constituição: ela estabelece que o SUS deve se pautar pelo atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo das atividades assistenciais. Há uma diferença fundamental entre as atividades preventivas e as atividades assistenciais, que devem ser articuladas: é que estas se fazem diante de um sofrimento manifesto, enquanto aquelas se fazem antecipando-se ao sofrimento. Integralidade, no sentido evocado no texto constitucional, sugere que as ações e serviços devem se esforçar ao máximo para evitar o sofrimento, mas que não podem permitir que esse esforço se dê às custas da incapacidade de dar resposta ao sofrimento manifesto. Penso que é em torno do sofrimento que podemos e devemos fazer o exame crítico das práticas e das instituições de saúde. O sofrimento (manifesto ou antecipado pelo conhecimento) se impõe aos serviços e aos profissionais de saúde. É ele que dá sentido às práticas do cuidado em saúde. O sofrimento é algo inerente à vida humana, como o são o cuidado e os esforços para reduzir e evitar. O sofrimento tem várias origens. Uma das características do conhecimento médico que, de certo modo, organiza atualmente as práticas de cuidado é a capacidade de conhecer os sofrimentos atribuíveis a doenças. Conhecimento esse que permite, em alguns casos, intervenções que se antecipam à vivência concreta do sofrimento atribuível à doença. O conhecimento sobre as doenças faz sentido na medida em que ele abre a possibilidade de sucessos práticos na sua superação. Contudo, o sofrimento atribuível a uma doença, tal como vivido pelas pessoas, não se dissocia dos estreitamentos no modo concreto de andar da vida. Portanto, para produzir sucessos práticos, não basta identificar a doença e mobilizar os dispositivos técnicos que permitem seu controle. Há que se contextualizar esse sofrimento e as consequências da aplicação dos dispositivos técnicos no modo de andar a vida concreto do sujeito que sofre, ou que pode vir a sofrer em consequência da doença. Por sua vez, o contexto concreto de cada encontro entre uma pessoa e um profissional de saúde também é fundamental para que se produza um cuidado integral, pois, conforme as características específicas do contexto desse encontro, 778

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3 É claro que, sendo um princípio mais geral, também se aplica ao SUS (aliás, aplicação que fica claramente definida na Lei nº 8.080), adquirindo aqui um significado mais restrito, embora também importante: o SUS não pode tratar diferentemente as pessoas. 4 Para uma discussão mais detalhada sobre as relações das práticas de cuidado com o capital, ver Mattos (2008).


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a articulação entre propostas voltadas a responder ao sofrimento manifesto e ao sofrimento antecipado pelo conhecimento precisará ser distribuída no tempo, distinguindo-se as ofertas imediatas de dispositivos de intervenção e a oferta a ser feita no futuro. Pelo que foi exposto, é claro que não é aceitável que, por exemplo, o modo de organização dos serviços gere ou agrave por ele mesmo o sofrimento. Caberia buscar estratégias que, por levarem em conta as razões das pessoas e suas estratégias de busca dos serviços de saúde, não produzam barreiras e nem deixem sem alguma forma de resposta o sofrimento das pessoas. Sobre isso, cabe registrar que conhecemos ainda muito pouco sobre o sofrimento provocado por nossas práticas de cuidado e pelos nossos arranjos dessas práticas. Um esforço de analisar as trajetórias das pessoas e seus dramas nas relações com os serviços e profissionais de saúde pode alimentar nossos esforços de instituir novos arranjos e novas práticas. A velha tensão entre ampliar o acesso e transformar as práticas e as instituições de saúde segue atual. Não basta garantir o acesso universal e igualitário aos brasileiros. As práticas de cuidado devem estar fortemente voltadas para dar a resposta ao sofrimento das pessoas ou para evitar esse sofrimento. É esse o desafio de um SUS mais humano. É esse o desafio de todas as políticas que se voltem especificamente para as transformações das práticas. É esse o desafio, também, da política de humanização. Por fim, cabe lembrar que a construção desse processo de transformação tem, contudo, um significado político para a própria sustentabilidade do SUS. É que, no contexto da coexistência do SUS com a saúde suplementar, o tratamento digno das pessoas no SUS é produtor de apoio político para o SUS, da mesma forma que, cada vez que tal atendimento não ocorre, contribui-se para o sonho de alguns de virem a ter um plano de saúde. Por sua vez, a melhoria da qualidade - nesse sentido de dar respostas abrangentes e produtoras de sucessos práticos sobre o sofrimento - tensiona fortemente a coexistência do setor de saúde suplementar e, portanto, deve suscitar reações contrárias. Esta talvez seja uma luta que vale a pena travar.

Referências BAPTISTA, T.W.F. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória do direito à saúde. In: MATTA, G.C.; PONTES, A.L.M. (Orgs.). Políticas de saúde: organização e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. p.29-60. CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE - CEBES. A questão democrática na área de saúde. Saude em Debate, v.9, p.11-3, 1980. FÓRUM DA REFORMA SANITÁRIA. SUS pra valer: universal, humanizado e de qualidade. Saude em Debate, v.29, n.31, p.385-96, 2006. MATTOS, R.A. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: MATTA, G.C.; LIMA, J.C.F. (Orgs.). Estado, sociedade e formação profissional: contribuições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. p.313-52. ______. Cuidado prudente para uma vida decente. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. São Paulo: Hucitec, 2004a. p.119-32.

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MATTOS, R.A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cad. Saude Publica, v.20, n.5, p.1411-6, 2004b. ______. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS, 2001. p.39-64.

Este texto examina as relações entre os princípios do SUS e a perspectiva de transformações das práticas em saúde. O texto reconhece que, apesar da heterogeneidade do movimento sanitário, a questão da transformação das práticas de saúde tem se tornado mais importante para a sustentabilidade e legitimidade do SUS. Partindo do exame dos princípios da universalidade e equidade, examinados ao lado do princípio da integralidade, o autor defende que a categoria do sofrimento, manifesto ou não, deve ser incluída nas políticas que se voltem para a construção de práticas mais humanizadas no SUS.

Palavras-chave: Humanização da assistência. Integralidade. Práticas de saúde. Principles of the Brazilian Unified Health System (SUS) and the humanization of healthcare practices This paper examines the relationship between the principles of the Brazilian Unified Health System (SUS) and the perspective of transformations in healthcare practices. The text recognizes that, despite the heterogeneity of the public health movement in Brazil, the issue of transformation of healthcare practices has become more important with regard to the sustainability and legitimacy of SUS. Starting from an examination of the principles of universality and equity, alongside the principle of comprehensiveness, the author argues that the category of suffering, whether manifest or not, should be included in policies aimed at constructing practices within SUS that are more humanized.

Keywords: Humanization of assistance. Comprehensiveness. Healthcare practices. Principios del Sistema Unico de Salud (SUS) y la humanización de las prácticas de salud Este texto examina las relaciones entre los principios del SUS y la perspectiva de transformaciones de las prácticas en salud. Reconoce que, a pesar de la heterogeneidad del movimiento sanitario, la cuestión de la transformación de las prácticas de salud se ha vuelto más importante para el sustentamiento y la legitimidad del SUS. Partiendo del examen de los principios de universalidad y equidad, examinados al lado del principio de la integridad, el autor defiende que la categoría del sufrimiento, manifiesto o no, debe incluirse en las políticas que se dediquen a la construcción de prácticas más humanizadas en el SUS.

Palabras clave: Humanización de la atención. Integridad. Prácticas de salud. Recebido em 04/11/08. Aprovado em 06/04/09.

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Que vida queremos afirmar na construção de uma política de humanização nas práticas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS)? What kind of life do we want to affirm in constructing a humanization policy for the healthcare practices of SUS? ¿Qué vida queremos afirmar en la construcción de una política de humanización en las prácticas de salud del SUS? Claudia Abbês Baêta Neves1

Há um liame profundo entre os signos, o acontecimento, a vida, o vitalismo. É a potência de uma vida não-orgânica, a que pode existir numa linha de desenho, de escrita ou de música. São os organismos que morrem, não a vida. Não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras. (Deleuze,1992, p.179)

É com muito prazer que aceito o desafio de tecer alguns comentários, suscitados pelo instigante texto do Ruben Mattos, “Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde”, para a seção Debates da revista Interface. Nosso intuito é ampliar e potencializar redes de conversações sobre os processos de constituição do SUS reativando sua força constituinte e afirmando sua potência de obra-aberta no enfrentamento dos desafios na atualidade. Para tanto, parto das análises do autor com a compreensão de que estas se tecem “com” e “a partir de” um conjunto de autores do campo da Saúde Coletiva2, e áreas afins, que ainda que não referidos no texto, comparecem e possibilitam nossas movimentações no campo temático proposto. Ruben Mattos faz, em seu texto, uma análise histórico-contextual do processo de constituição do SUS e seus embates nas décadas de 1970, 1980 e 1990, e, mais especificamente, do que veio a se configurar como seus princípios e diretrizes na Constituição de 1988. As transformações das práticas em saúde são pensadas como o desafio central no debate das políticas de saúde e a base primordial para a sustentabilidade e legitimidade do SUS na atualidade. A integralidade - tema ao qual tem se dedicado há vários anos, junto com outros pesquisadores - é (re) afirmada como conjunto de valores/signos que pautam e dão a direção necessária a estas transformações e rearranjos, qualificando e humanizando as práticas do SUS. Nesta direção, propõe a categoria do sofrimento como indicador privilegiado para análise dos efeitos/produções das práticas em saúde, naquilo que possibilitam de reversão e/ou de antecipação para evitar o sofrimento. Para o autor, uma política de humanização do SUS se inscreve, primordialmente, neste front de luta. Construo nossa conversa movida por três questões-problema que, a meu ver, tecem o campo problemático no qual se inscreve o debate proposto pelo autor. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Psicologia e Programa de Pós-Graduação, Estudos da Subjetividade, Universidade Federal Fluminense. Campus do Gragoatá, bloco O, 2º andar. Gragoatá, Niterói, RJ, Brasil. 24.210-350 abbes@luma.ind.br

Madel Luz (2001), Gastão Campos (2007, 2000), Emerson Merhy (2002, 1997), Roseni Pinheiro (2001), Túlio Franco (2004), Luis Cecílio (1997), Sueli Deslandes (2004), Victor Valla (1999), Regina Barros e Eduardo Passos (2005a, 2005b), entre outros.

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São elas: . que vida afirmamos quando apostamos “na categoria sofrimento como indicador privilegiado para análise dos efeitos/produções das práticas em saúde, naquilo que possibilitam de reversão e/ou de antecipação para sua evitação” (Mattos, 2009)? . uma política de humanização seria um novo nome e/ou uma nova roupagem para a integralidade e qualidade na saúde? . como preconizar um cuidado integral em tempos de mercantilização e regulação da vida, desde seus aspectos biológicos, genéticos e afetivos, pelo biopoder? Estas questões se atravessam, se cortam, afirmam regimes de expressão diferenciados e, ao mesmo tempo, constituem um plano comum, qual seja: o plano da vida como poiesis, criação e experiência radical que excede e escapa dos processos constituídos, mas deles não se abstrai. Trata-se aqui de chamar atenção para um conceito de vida como uma multiplicidade de planos heterogêneos de existência que ganham valor segundo o tipo de avaliação que os anima (Deleuze, 1976). Vida não orgânica, impessoal, como potência vital que atravessa os indivíduos e, mais do que distingui-los entre si, possibilita, na imprevisibilidade dos encontros, desvios, rupturas e invenções nos tipos de vida dominantes em cada um. É com este conceito de vida que, em nossa compreensão, se afirma a produção de uma política de humanização do SUS e o campo problemático no qual, e em meio ao qual, se produzem seus princípios, diretrizes e dispositivos de intervenção. Portanto, temos aqui um entendimento que nos convoca a tecer alianças com os movimentos e práticas que potencializem a vida como inflexão e/ou ruptura naquilo que a quer integralizar no estado de coisas, no corpo orgânico e seus sofrimentos. É preciso também afirmar que há vida no sofrimento, e que não há ruptura com um tipo de vida dominante em nós sem sofrimento. Contudo, é preciso, desde já, sinalizar que este entendimento não ignora, ou mesmo secundariza, os maus-tratos com o corpo orgânico produzidos por práticas de cuidado e gestão que, em seus arranjos, ainda hoje vigentes no SUS, são indutores de maus-tratos com a vida em todas as suas expressões. Outrossim, os entendemos como nossa matéria de intervenção. Entretanto, é preciso marcar uma diferença entre sofrimento como um processo constitutivo da vida em seus embates de reinvenção, e os processos de maus-tratos com a vida. Os processos de maus-tratos se dão quando tornamos a vida uma funcionária-submissa e refém de prescrições, programas de saúde, médias e padrões instituídos. Estes processos ganham expressão em sintomas e seus efeitos sobre o organismo; na produção de filas madrugantes para busca de senhas para consultas; na desassistência; no re-trabalho a cada novo plantão, programa governamental ou rotina imposta; na produção de escuta e vínculos restritos ao sofrimento orgânico etc. Diferente disto, afirmamos uma política de humanização da saúde como ação transversal por entre as diferentes políticas de gestão e produção do cuidado; como práticas de problematização ativadoras de produção de coletivos, de ampliação de sensibilidades e percepção aos regimes de visibilidades e expressão instituídos em modos de ser trabalhador-usuário-gestor, de fazer o cuidado e de produzir e se conectar à realidade (Barros, Passos, 2005a). Realidade dinâmica, complexa, efeito de uma dispersão de movimentos-acontecimentos (Foucault, 1979) que, em seus efeitos e conexões, expressam o campo problemático e os desafios no qual se inscreve uma política de humanização do SUS. Nesta compreensão, entendemos que os indicadores da ação de uma política de humanização se constroem na análise do que se produziu como aliança com movimentos de expansão da vida e seus efeitos nos processos de cuidado e gestão. Movimentos, estes, que emergem na experimentação de conexões que rearranjam, desorganizam e ativam redes de conversações em sua força de criação de modos mais coletivos de trabalhar, fazer e lidar com o cotidiano. Estas ativações agem sobre os corpos possibilitando a expressão de movimentos de (re)invenção de estilos de vida mais potentes, autônomos e protagonistas na lida com as dores e desafios cotidianos. Em seus arranjos relacionais, estilos de vida podem se atualizar em modos de “cuidar de si” (Foucault, 1985) em ressonância mútua com o cuidado do outro em nós - quanto mais forte e potente ‘faz andar a vida do outro’ mais potente faz andar a vida em ‘nós’! Do mesmo modo, podemos avaliar os efeitos das ações de humanização na visibilização de táticas cotidianas e saberes instituintes que são construídos por trabalhadores, dirigentes e usuários/rede 782

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NEVES, C.A.B.

3 Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (também conhecida como Classificação Internacional de Doenças) – CID. Esta classificação, instituída pela Organização Mundial de Saúde, padroniza a codificação de doenças e outros problemas de saúde, tais como acidentes e violências, motivos de contato com serviços, sintomas e sinais etc., sendo adotada em diversos sistemas da área de saúde (Ministério da Saúde/Datasus). Disponível em: <http:// www.datasus.com.br>. Acesso em: 8 maio 2009.

debate

social na lida com os desafios de efetivação dos princípios do SUS nas relações e processos de trabalho no/ e com o território. É neste movimento de abertura dos limites e possibilidades do estado de coisas, e do que nele produz sintomas e maus-tratos no corpo orgânico, sem deles nos abstrairmos, que entendemos que o sofrimento, tal como referido pelo autor, não seria o indicador privilegiado de nossas ações. Pois, elegê-lo nos ‘colaria’ nas ações extensivas no estado de coisas e afirmaria nossas ações em saúde a partir do que é expressão de um tipo de vida constrangida, e não do que a produz. A análise e construção avaliativa destes indicadores em nossas ações nos convocam a construir um certo modo de ‘fazer com’, incluindo os movimentos e acontecimentos como analisadores que problematizam o que se efetiva no SUS e em nossos modos de fazê-lo acontecer (Barros, Passos, 2005a). O que se afirma, neste modo de fazer, é a indissociabilidade entre os modos de expressão da vida ‘encarnada’ em estratégias/leis/dispositivos/sofrimentos e os índices de estranhamentos e vibração intensiva que enunciam, nestas encarnações, a vida em sua potência radical de perturbar o instituído e de seguir persistindo no desafio de reinvenção das políticas do presente. Entre os muitos desafios, destaco os processos de gestão do cuidado num contexto contemporâneo que se caracteriza por uma nova relação de (des)regulamentação entre o poder e a vida (Foucault, 1999). O biopoder, em suas estratégias de expansão e acumulação do capital, otimiza estados de vida que ele submete, se pluga nos processos de cuidado e gestão incitando, conjugando, modulando equilíbrios e médias que se destinam a abstrair a vida, extraindo dela sua heterogeneidade e singularização, para torná-la matéria integral de regulamentação. A biopolítica quer “cuidar” da vida em sua integralidade, para fazer dela uma abstração, para tanto cria ‘signos’ e se expande na microfísica das práticas de cuidado e gestão. Estas se atualizam na crescente produção de sintomas classificados como novas doenças pela mídia e seus laboratórios financiadores, nas novas Classificações Internacionais de Doenças (CIDs)3; nas recorrentes “queixas” de profissionais e gestores sobre os “poliqueixosos que atrapalham os serviços”; na crítica superficial à “não adesão” dos usuários aos tratamentos e prescrições, assim como na lógica de controle higienista que tem se insinuado em alguns programas e estratégias de saúde nos territórios. Nesta direção, pensamos que se trata menos de preconizar uma centralidade e integralidade destes processos nas políticas do SUS, e mais indagar destas, e nestas, políticas sobre: como cuidamos? O que se quer cuidar? Que tipo de vida potencializamos em nossos modos de cuidar? Que alianças ético-políticas fazemos em nossas produções de cuidados e de políticas de saúde? Conforme nos sinaliza Valla (1999, p.3), é fundamental superar a mera defesa do papel do Estado em prover diretamente ou em regular a oferta privada (contratada ou autônoma) de serviços. Para que tais serviços contemplem de fato as necessidades sociais das populações, precisam levar em conta, obrigatoriamente, o que as pessoas pensam sobre seus próprios problemas e que soluções espontaneamente buscam. A história nunca começa com o contato dos profissionais dos serviços com as suas clientelas. A história é anterior: há um passado que ainda vive, em sua virtualidade, no presente e está referido às experiências acumuladas em uma gama amplamente diversificada de alternativas, bem como às lutas moleculares ou coletivas que enraízam formas de pensar e agir. É esta experiência que precisa ser resgatada pelos serviços, pelos profissionais, técnicos e planejadores.

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Recebido em 01/06/09. Aprovado em 16/06/09.

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Humanização: transformar as práticas de saúde, radicalizando os princípios do SUS Humanization: transforming healthcare practices and radicalizing the principles of SUS Humanización: transformar las prácticas de salud radicalizando los principios del SUS

Ricardo Rodrigues Teixeira1

O imperativo da transformação das práticas É motivo de grande prazer intelectual ser convidado a tecer considerações a partir de um texto produzido por Ruben Mattos (2009). Como de costume, o autor nos oferece um texto claro e pleno de proposições penetrantes, o que faz, do convite ao debate, um convite para copensar, para a produção de novas singularidades de pensamento a partir do plano de pensamento que nos apresenta. E este plano é traçado no exame das relações entre os “princípios do SUS e as questões de transformação das práticas de saúde”. Contrasta dois documentos basilares produzidos pelo movimento da Reforma Sanitária, evidenciando um deslocamento do foco de lutas desse movimento, que vai “da questão democrática ao imperativo da mudança nas práticas de saúde no SUS”.

Transformação das práticas/transformação dos problemas Quaisquer que sejam as transformações que se façam necessárias em determinadas “práticas”, elas sempre implicam, necessariamente, transformações correlatas nos modos como os “problemas” são reconhecidos e configurados por esse “campo de práticas”. Meu postulado de base, aliás, é esse: não há transformação no “campo das práticas” que não seja, indissociavelmente, transformação no “campo problemático”. Tomemos a questão, tão bem apontada no texto, da “eficácia simbólica” da premissa de que a qualidade das práticas no setor privado é superior à do SUS. Não creio que haja muitas chances de se esvaziar a “eficácia simbólica” dessa premissa, perseverando na ideia comum de que os setores público e privado oferecem respostas aos mesmos “problemas de saúde”. Ora, sabemos como essa perspectiva tem reservado uma posição sistematicamente desvantajosa para o SUS e suas práticas. Mas o fato é que, talvez, as práticas do SUS só possam mesmo vir a ser as melhores respostas para outros “problemas de saúde”! O que significa que, para o SUS, a imagem de uma “qualidade superior” passaria sempre, em grande medida, pela demonstração de que estes outros “problemas” são os melhores “problemas”, isto é, pela demonstração de que o SUS oferece não apenas a melhor resposta, mas a resposta aos “problemas” mais interessantes, mais potentes, mais virtuosos... COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Vital Brasil, 1490. Butantã, São Paulo, SP, Brasil. 05.503-000 ricarte@usp.br

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Universalização excludente e outras ambivalências nas práticas Em suas análises, o autor nos mostra como a convivência do SUS com a chamada “saúde suplementar” (o fato do Sistema Único de Saúde não ser “o único sistema de saúde”) “coloca questões importantes sobre os princípios da universalidade e, sobretudo, sobre o princípio da igualdade”. Acompanho de perto estas análises, em especial quando descrevem as consequências dessa convivência como um processo de “universalização excludente”. Considero a compreensão desse processo de suma importância para que possamos bem discernir as transformações das práticas que se fazem necessárias. Há, inclusive, várias outras expressões dessa “universalização excludente” que precisam ser reconhecidas e examinadas. Nestes diferentes “casos”, um traço comum – que é sempre o elemento que ameaça a sustentabilidade dos princípios do SUS: o atravessamento por concepções “privatistas” da saúde. Por isso, cabe se perguntar: qual a sustentabilidade dos “valores pelos quais temos lutado”, quando se garante (às vezes, judicialmente) “a universalidade e a igualdade de acesso” (através do “sistema público”) a práticas que são intrinsecamente excludentes? Haveria limite (e como seria definido) para o investimento “público” nesse tipo de práticas? E se essas perguntas cabem, é porque há, de fato, uma concepção de saúde como “bem privado” que, no limite, corrói toda possibilidade de se fazer da saúde um “bem comum”! É preciso sublinhar, antes de se passar adiante, que as diferenças entre essas duas concepções não se referem apenas a qualidades extrínsecas (como, por exemplo, ser “plano de saúde privado” ou SUS, ser “mercadoria” ou “dever do Estado”), mas se inscrevem e se expressam no coração das práticas! Precisaremos, cada vez mais, compreender o funcionamento das práticas, desenvolver nossa capacidade de lê-las e, num esforço analítico, atingir seu vórtice produtivo, seu núcleo de produção de valores, de socialidade, de subjetividade, de governamentalidade... Quando um “mandato judicial” obriga um gestor municipal a empenhar metade do orçamento para custear o direito de acesso a um raro e caro tratamento de um único “cidadão-usuário”, temos uma interpretação (um uso) do princípio da “universalidade do direito à saúde” que, sem dúvida, traz ameaças à ideia de saúde como um “bem comum”, pela forte tensão que estabelece com o princípio da igualdade. Ora, mas não é essa mesma tensão “excludente” que se faz presente, quando se dá, por exemplo, uma “universalização” pra valer do acesso a programas de prevenção? E mesmo que seja apenas àqueles “baseados em evidências”! De qualquer modo, como se sabe, quase todos baseados no controle de fatores de risco; quase todos, portanto, fundados numa lógica de proteção e de consumo individuais. Ou seja, quase todos facilmente capturáveis pelas dinâmicas imaginárias destas duas lógicas fortemente individualistas: a securitária e a consumista... O que constitui, afinal, um breve resumo das características intrinsecamente “privatistas” destas práticas de prevenção. Com certeza, também fazem parte (como efeitos ou sintomas) desse “caso” de “universalização excludente”, os graves problemas de sobrecarga de trabalho (e, assim mesmo, de constante déficit de oferta de serviços em relação à demanda) que vêm sendo enfrentados pelas equipes de atenção primária, em várias partes do mundo, mas, de modo mais intenso, justamente onde estes serviços estariam mais bem estruturados, procurando dar mais ênfase às ações de prevenção (Ostbye et al., 2005; Yarnall et al., 2003). Em outras palavras, suas equipes não têm conseguido dar conta da tarefa que vem sendo proposta e, nesse contexto, a escolha entre “atender os doentes” e “investir na prevenção” tem sido, efetivamente, vivida como um dilema. Para alguns autores (Gérvas et al., 2008; Heath, 2007), a excessiva “ênfase na prevenção” seria mesmo uma ameaça ao princípio da “equidade”: “desvia recursos dos pobres e doentes para os ricos e sadios, e dos velhos com enfermidades várias aos jovens cheios de saúde, o que resulta muito pouco equitativo” (Gérvas, Pérez Fernández, 2007). Em todos esses “casos”, o que se sobressai é que, sempre que os princípios da universalidade e da integralidade acabam por ferir o da igualdade, isso se deve a algum tipo de funcionamento “excludente” que é intrínseco à prática de saúde em questão.

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TEIXEIRA, R.R.

debate

Integralidade: sofrimento e felicidade na transformação das práticas Ruben Mattos postula que o princípio da integralidade teria o potencial de pautar a transformação das práticas do SUS e, assim, abrir a “perspectiva de reversão radical da imagem simbólica de qualidade superior da saúde suplementar”. Retoma o sentido de integralidade que está expresso no texto constitucional (“o SUS deve se pautar pelo atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas sem prejuízo das atividades assistenciais”), mas, sobretudo, para ressaltar que o esforço para evitar o sofrimento não pode se dar em prejuízo da capacidade de resposta ao sofrimento manifesto – risco que, como vimos acima, está colocado de um modo bastante concreto na prática atual. De fato, o autor propõe mesmo que o sofrimento seja a categoria-chave para se pensar a transformação das práticas, numa linha de argumentação que não está muito distante da dos autores acima citados (especialmente Iona Heath, 2007). Sou sensível ao seu argumento de que “há uma diferença fundamental entre as atividades preventivas e as atividades assistenciais: (estas, que) se fazem diante de um sofrimento manifesto, (e aquelas, que) se fazem antecipando-se ao sofrimento”. Compreendo a transcendência de se propor que as transformações das práticas se orientem pela ampliação de sua capacidade de responder, antes de tudo, ao sofrimento manifesto. Ainda mais, quando não é infrequente que as próprias práticas sejam a causa do sofrimento. Entendo bem o seu sentido e concordo que essa referência ao sofrimento mereça obviamente destaque no horizonte problemático das práticas de saúde. Contudo, não estou seguro de que a referência ao sofrimento, por si só, seja capaz de pautar a transformação das práticas que se faz necessária, aquela em que os “valores pelos quais temos lutado” sejam sustentáveis, porque não creio que esse foco no sofrimento represente uma mudança substancial no modo como os “problemas de saúde” já têm, afinal, se configurado nas práticas. Acho que as práticas que se fazem necessárias (que não contradigam, mas afirmem os princípios do SUS) precisam, efetivamente, se orientar por outros “problemas”, melhores, mais interessantes... Assim, eu poderia dizer que, entre as atividades preventivas e assistenciais, há uma diferença fundamental, mas há também uma continuidade fundamental: seja antecipando-se, seja fazendo frente a sua forma manifesta, o horizonte de ambas as práticas parece ser um só: uma sociedade sem sofrimento, da “saúde perfeita” e do “risco zero” (Fugelli, 2006; Sfez, 1996). Pouco importa se esse horizonte é imaginário, pois tanto mais ele se faz o pivô da eficácia simbólica de um certo ideal das práticas – preenchido pela “saúde suplementar”! Indiscutivelmente, “o sofrimento é algo inerente à vida humana, como o é o cuidado e os esforços para reduzir e evitar”. Não creio, entretanto, que “o conhecimento médico que [...] organiza atualmente as práticas de cuidado” se caracterize primordialmente por “conhecer os sofrimentos atribuíveis às doenças”. Exagerando um pouco, quase acharia mais preciso afirmar o inverso: conhece muito mais as doenças do que os sofrimentos que poderiam ser a ela atribuídos, a ponto de esta prática ter dificuldades em reconhecer e lidar com sofrimentos aos quais não corresponda uma patologia médica. É claro que se há um conhecimento da patologia é porque, antes, houve um reconhecimento, na clínica, de um “estreitamento no modo concreto de andar a vida”, como nos ensinou Canguilhem (1984). No entanto, é exatamente porque o conhecimento da patologia, no limite, se dissociou do sofrimento manifesto, que se pode, inclusive, evitá-lo pelas práticas de prevenção. Argumento que estamos diante de práticas que se destacam por um profundo conhecimento da “história natural das doenças” e um conhecimento cada vez mais raso das bases afetivas do sofrimento. Concordo com Ruben quando afirma que os “sucessos práticos” só podem ser medidos pelas “consequências da aplicação dos dispositivos técnicos no modo de andar a vida concreta do sujeito que sofre, ou que pode vir a sofrer em conseqüência da doença”. Mas não estou seguro de que uma noção de “sucesso prático” que se oriente fundamentalmente pela resposta dada ao sofrimento seja aquela que se oriente pelo melhor “problema”, do ponto de vista de sua potência, de sua propensão a produzir as respostas mais virtuosas. Nesse sentido, ainda me aparece amplamente mais potente uma

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idéia de “sucesso prático” que se oriente pelos “projetos de felicidade”, como nos propõe José Ricardo Ayres (2001). Mais ainda, num contexto em que há um verdadeiro “imperativo de construção de um ‘projeto de doença’ como estratégia engendrada pela população para inclusão na lógica do serviço e para que o sofrimento possa ser acolhido [...]” (Dalbello-Araújo, 2005, p.175). Insistindo na tese de que a transformação das práticas que teria as melhores chances de promover a reversão radical da imagem simbólica da qualidade do SUS, seria aquela que se orientasse por “problemas” inteiramente outros (sempre melhores!), proponho que a “qualidade superior” do SUS se afirme pela maior capacidade, de suas práticas e instituições, de se orientarem pelos “projetos de felicidade” dos indivíduos e dos grupos; de apoiarem diferentes “modos de andar a vida” (“normais” ou “patológicos”); de contribuírem, sempre, para o aumento do nosso poder de afetarmos e sermos afetados, em suma, de contribuírem para o aumento da potência da vida2. Estou convencido de que esse modo de configurar o “campo problemático” é aquele mais propenso a produzir práticas capazes de sustentar “os valores pelos quais temos lutado”... Pelo menos, daqueles valores pelos quais realmente valha a pena lutar! Assim, para aceitar a proposição do autor de que o princípio da integralidade possa “nos oferecer uma chave para reconceitualizar a qualidade que aspiramos”, precisaria reivindicar um novo sentido para a noção de cuidado integral, definido não tanto pela “articulação entre propostas voltadas a responder ao sofrimento manifesto e ao sofrimento antecipado”, e muito mais por integrar as preocupações com a saúde (enquanto conceito referido à vida orgânica, ao corpo orgânico) com as preocupações com a Grande Saúde (enquanto conceito referido à vida não-orgânica, ao Corpo sem Órgãos), indissociavelmente. Porque estou convencido de que apenas uma reconfiguração do “campo problemático” que integrasse, de maneira indissociável, a atenção ao corpo orgânico (homeostático) com a atenção ao corpo intensivo (fora do equilíbrio), corpo produtor de valores intensivos (baseados em conhecimentos e afetos), seria capaz de engendrar uma reinvenção das nossas práticas que realmente pudesse valer a pena! Uma política de humanização que, obviamente, mais nada guardasse da eiva “filantropista” ou de “correção moral” dos agentes que se desviaram da “boa prática”, só poderia ter esse sentido: o de reinventar as práticas (os núcleos de produção de valores) para que uma radicalização dos princípios do SUS seja possível e sustentável, para que se possa efetivamente afirmar o SUS como uma política pública e a saúde como um “bem comum”.

Entendendo vida tanto em sua acepção biológica, a vida do ser vivo (vida orgânica), quanto em seu sentido afetivo, a vida como experiência da intensidade da vida (vida não orgânica). 2

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SUS e as Teias de Diálogos (im)pertinentes para transformar a formação dos trabalhadores de saúde com vistas à humanização das práticas SUS and the webs of pertinent and irrelevant dialogue for transforming the training of healthcare workers with a view to humanization of practices SUS y las tramas de diálogos (im)pertinentes para transformar la formación de los trabajadores de salud con miras en la humanización de las prácticas

Rita de Cássia Duarte Lima1

É um prazer e privilégio o convite dos editores da revista Interface para debater o texto provocativo de Mattos (2009), implicando-nos na sua posição ético/política de que vale a pena continuar lutando pela agenda da Reforma Sanitária Brasileira. Ruben aponta diferentes vertentes produtoras dos processos históricos que forjaram a época, os ideais do Sistema Único de Saúde (SUS), aglutinando forças em defesa de uma sociedade democrática e igualitária. Ele desmistifica linearidades que levam, muitas vezes, à falsa impressão de homogeneidade e consensos do movimento. Ao contrário, chama atenção para a heterogeneidade e tensões no seu interior, permitindo que muitas das aspirações não fossem incorporadas e reconhecidas na institucionalidade do SUS. Ao propor discutir os princípios do SUS e as tramas da humanização, revela avanços, mas também tece redes que se entrelaçam nas práticas, ao desconsiderar muitas das dimensões de sofrimento, autonomia e emancipação do usuário. Isso contribui para que ocorram redes de maus encontros, decorrentes dos vários COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Curso de Graduação em Enfermagem e Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo. Rua Artur Czartorysk, 315/202, Ed. Meraux. Jardim da Penha, Vitória, ES, Brasil. 29.060-370 ritacdl@uol.com.br 1

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olhares produzidos pelas formas de organizar os serviços: sem escuta qualificada, acolhimento, vínculos de várias ordens e sem atentar-se para causas e consequências das humilhantes filas para acessar serviços de saúde, independente do nível de complexidade demandado (Schwartz, Lima, 2008). O seu alerta à transformação e consequente humanização das práticas de saúde nos remete a momentos anteriores que antecedem os atos profissionais, como o esvaziamento do tema da formação no SUS, uma vez que impacta os demais processos. Desafia-nos a refletir sobre até que ponto o distanciamento e resistências dos trabalhadores não são gestados e reproduzidos de início nos diversos e complexos cenários da formação - tema que desenvolverei a seguir. O próprio Mattos (2008) aponta os limites da formação para dar conta das diversidades que compõem o SUS, pela pouca potência para transformar os modelos hegemônicos, muito mais vinculados a interesses outros - como os das corporações profissionais, da indústria de equipamentos médicos e farmacêuticos - do que às necessidades dos usuários. Nossa experiência com alunos ingressantes na Graduação em Enfermagem na UFES nos permite apreender a dimensão dos desafios que ainda temos de enfrentar. Identificamos que os principais motivos que levam alunos a buscarem cursos na área de saúde são “cuidar das doenças dos órgãos e de pessoas fragilizadas sofrendo com alguma doença”. Manifestam desejo de não serem usuários desses serviços e consideram que o SUS é para quem precisa, é pobre e excluído de várias políticas públicas e privadas. O que mais os estimulam é fazer a “disciplina anatomia”, pela possibilidade de conhecerem as peças, os órgãos que compuseram um dia um corpo, um ser humano. Nesse momento, estão interessados nas partes, a referência é a doença e o olhar é ainda distante do doente (sujeito), recorte que poderá ou não ser resgatado ao longo de suas trajetórias, seja como estudantes seja como trabalhadores de saúde (Lima et al., 2009). Essas motivações-, partindo da permissão e da legitimidade para tocar, curar e cuidar do corpo, foram e têm sido os principais motivos a guiar as práticas de formação e, posteriormente, a profissional, com implicações futuras na organização do processo de trabalho, podendo, conforme as escolhas, produzir potência ou banalização da vida, do cuidado e da morte. Tais constatações nos obrigam a olhar como vem se institucionalizando esse processo, uma vez que a experiência primeira desses alunos se dá, majoritariamente, na ausência do cuidado. Invariavelmente, estabelecem-se a partir do silêncio da morte, num corpo fragmentado em peças, pedaços amorfos e anônimos. A formação tem se produzido com baixa capacidade crítica e associação com os fatores que determinam os lugares sociais, num mundo de tantas desigualdades e iniquidades no acesso e na utilização dos equipamentos públicos. Passados vinte anos da institucionalização do SUS, estamos diante dos muitos desafios para ressignificar os processos de formação e de trabalho, articulando sua relação não só com a ciência, a técnica, a doença, o sofrimento e a morte, mas também com: a saúde, a vida, a alegria, a felicidade e o prazer, o conhecimento, o afeto e a produção do cuidado fomentador de cidadania, a solidariedade e a inclusão dos atores envolvidos. A exemplo de outras experiências de formação e da gestão do trabalho em saúde, o cuidado ao doente e ao sofrimento causado pela doença se revelou como o grande mobilizador nas escolhas desses alunos, ratificando a imagem social e cultural de que ser profissional de saúde é, antes de tudo, ser um cuidador de doenças, e não da promoção da saúde de pessoas com necessidades distintas, que nem sempre estão relacionadas à doença e ao sofrimento dela decorrente. Para Merhy et al. (2003), o cenário dos serviços de saúde é espaço de produção, tanto das relações quanto dos bens e produtos. Eles nos interrogam sobre sentidos e significados do trabalho em saúde, pois qualquer que seja nossa abordagem junto ao usuário, a relação que se estabelecerá será sempre a de uma pessoa atuando sobre a outra, havendo, nesse processo, trocas, jogos de expectativas, momentos de fala, escutas e interpretações. Há ou não a produção de uma acolhida das intenções que as pessoas depositam neste encontro. Posto isso, se somos moldados por processos de formação centrados em órgãos, como nos advertem Lima (2009) e Mattos (2008), reproduzimos esses fragmentos, contribuindo para o assujeitamento das pessoas, fragilizando-se suas necessidades, e produzimos como modelo o descuidado. Ao segmentar o 790

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LIMA, R.C.D.

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ato de cuidar em órgãos doentes, perde-se o sentido da integralidade e fortalece-se a desintegração do homem, conforme é visto no processo de formação em várias “disciplinas dos currículos”. Perdem-se muitas das dimensões cuidadoras na perspectiva dada por Santos-Filho e Barros (2007). Cuidar do outro ganha sentido quando a existência do outro torna-se significativa, independente do papel social e da pessoa a ser cuidada. É o sentimento de importância, a solidariedade com o sofrimento que nos levam a nos dedicarmos ao outro e a nós mesmos, permitindo participarmos de suas buscas, seus sofrimentos, fracassos, limitações e, também, dos seus afetos, sucessos e avanços, e reconhecermos nossos limites e possibilidades nos encontros que produzem vida/cuidado/sofrimento/ morte. O texto do Ruben nos convoca a compromissos éticos/políticos que incorporam estratégias de transformação, com vistas a qualificar e humanizar as práticas de saúde, nelas inclusas a formação, tornando provocador, inadiável e essencial o debate sobre o sofrimento no cuidado para a promoção e a qualidade da vida. Assim, toma, como pressuposto inegociável, a construção de um SUS humanizado que seja objeto de desejo, responsabilidade, compromisso e uso consciente da sociedade, inclusive dos estudantes, docentes e demais trabalhadores de saúde, entrando numa luta, como afirma o autor, que vale a pena travar em direção à defesa da vida e da cidadania da/e na sociedade brasileira.

Referências LIMA, R.C.D. et al. Significando os sentidos da vida na formação dos profissionais de saúde: com a palavra os estudantes de enfermagem da Universidade Federal do Espírito Santo. Cogitare Enferm., 2009. No prelo. MATTOS, R.A. Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e a humanização das práticas de saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., p.771-80, 2009. ______. Integralidade, trabalho, saúde e formação profissional: algumas reflexões críticas feitas com base na defesa de alguns valores. In: COSTA, L.A. (Org.). Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. p.313-52. MERHY, E.E. et al. O trabalho em saúde: olhando e experenciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2003. SANTOS-FILHO, S.; BARROS, M.E.B. Trabalhador da saúde: muito prazer! Protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijui: Editora Ijui, 2007. SCHWARTZ, T.D.; LIMA, R.C.D. Estratégia Saúde da Família: avaliando o acesso ao SUS a partir da percepção dos usuários da unidade de saúde de resistência, na Região de São Pedro, no Município de Vitória/ES. Cienc. Saude Colet., 2008. Disponível em: <http://www. cienciaesaudecoletiva.com.br>. Acesso em: 12 fev. 2009. Recebido em 27/02/09. Aprovado em 07/04/09.

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Réplica Reply Respuesta É um enorme prazer dar continuidade à conversa com Rita Lima, Claudia Neves e Ricardo Teixeira. A riqueza dos comentários de meus interlocutores sobre meu texto “Princípios do SUS e a humanização das práticas de saúde” se expressa tanto na capacidade que tiveram de suscitar um amplo conjunto de questões e contrapontos, como também na diversidade dos referenciais teóricos com os quais se aproximam do debate sobre as transformações das práticas. Não tenho aqui nem a capacidade de examinar com maior cuidado as semelhanças e diferenças entre nossas preferências teórico-conceituais, que de algum modo subjazem aos argumentos nessa nossa conversa, nem a pretensão de dar resposta a cada uma das questões ou contrapontos. Longe de pretender encerrar ou esgotar o debate, vejo esta réplica muito mais como um convite a dar seguimento à conversa, estendendo simultaneamente o convite a todos os que vierem a ler este debate. Por isso, apresento, nesta réplica, argumentos evocados pelo conjunto dos três comentários. No texto que abre este debate procurei pôr em evidência algumas das heterogeneidades no interior do chamado movimento sanitário em torno da importância dos desafios de transformar as práticas e instituições de saúde. Começo meus comentários explorando o que talvez sejam diferentes modos de entender o princípio constitucional que garante a todos os brasileiros o direito de um acesso igual às ações e serviços de saúde. Assumindo a perspectiva de que tal garantia se refere às ações e serviços de saúde que sejam necessários à promoção ou a recuperação da saúde, creio que essa conquista, embora plenamente insuficiente para a concretização da tese de que saúde é direito de todos, consiste em um importante ponto de partida na nossa luta. Reitero o entendimento de que se um brasileiro fica privado do acesso às ações e serviços de saúde dos quais necessite, a universalidade e a igualdade estão sendo violados. Contudo, esta posição não é consensual. Em 1987, pouco antes da promulgação de nossa Constituição, o Banco Mundial lançava um documento que procurava oferecer ao mundo uma agenda para as reformas do setor saúde (World Bank, 1987). Nele se criticava abertamente a tese de que a saúde devesse ser considerada como direito de todos. Logo no início do documento, um box procurava explicar de modo simples a distinção, no que se refere à saúde, dos bens privados e dos bens públicos. O argumento contrastava uma apropriação privada dos benefícios de algumas ações de saúde (o exemplo era o uso de um analgésico para interromper a dor de um certo indivíduo), com aquelas outras cujos benefícios não poderiam ser apropriados por indivíduos, e que constituiriam os bens públicos. Essa distinção servia de base para a tese de que o Estado não deveria assumir a provisão ou o financiamento das ações de saúde, que seriam bens privados. Ou seja, ao Estado caberia tão-somente as ações e serviços de saúde pública; e de uma saúde pública entendida em um sentido estrito (eu acrescentaria, estreito) de lidar com as ações e serviços ligados a um interesse público, para além do interesse individual. Destaco que, originalmente, a dissociação entre bens privados e bens públicos serviu de base para propostas de redução da ação do Estado1. 792

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1 O próprio Banco Mundial posteriormente, por ocasião do lançamento de seu famoso relatório Investindo em saúde, abandonará a sua pretensão original de delimitar a atuação do Estado a partir da dicotomia bens públicos/bens privados. Ele adotará uma delimitação bem mais ampla, centrada no critério de eficácia (medida pelo impacto sobre a carga da doença) em termos de custo, que deu origem à famosa proposta de um pacote mínimo de intervenções. Esta posição, contudo, continua bem longe das teses de que a saúde deve ser vista como direito de todos.


NEVES, C.A.B.

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debate

Por estas razões, tenho sérias dúvidas sobre a virtuosidade dessas dicotomias que buscam diferenciar as apropriações públicas das apropriações privadas dos benefícios das ações de saúde. Alternativamente a esta concepção, podemos fazer uma leitura do direito de todos ao acesso das ações e serviços de saúde de que necessitem com base em um posicionamento ético-político: não podemos aceitar a privação de alguém do acesso a certas tecnologias que são potencialmente capazes de promover ou recuperar a saúde pelo simples fato de não dispor dos recursos monetários para custeálas. Para os que, como eu, assim se posicionam, o reconhecimento de que cabe ao Estado assegurar a todos e a cada um dos brasileiros o acesso às ações e serviços de saúde de que necessitem deve ser radicalmente defendido. Entretanto, aquela diferenciação entre bens públicos e privados tem reaparecido no interior do movimento sanitário, sobretudo no contexto do debate em torno da judicialização. Tipicamente, o argumento evoca um tipo de decisão judicial que obriga ao atendimento das necessidades de um indivíduo portador de uma doença rara e de tratamento custoso, em detrimento do atendimento a tantos outros que são acometidos de doenças mais comuns. O argumento insinua, a meu ver de modo radicalmente equivocado, que a primeira situação expressa uma apropriação individual, e a segunda uma apropriação mais coletiva. Insisto que não julgo virtuoso o esforço de distinguir as apropriações dos benefícios da saúde em termos privados ou públicos. Mas, para além desta minha posição, não consigo estabelecer qualquer forma de hierarquia entre as aspirações de indivíduos de ter acesso aos recursos tecnológicos dos quais necessitam em função da maior ou menor frequência da doença ou condição que estreita concretamente seu modo de andar a vida. Não consigo entender por que razão deveríamos tratar desigualmente quem é acometido por uma doença frequente e quem é acometido por uma doença rara. Nesse sentido, considero profundamente inadequada a decisão que privilegia o portador de uma doença rara em detrimento dos acometidos por doenças mais frequentes. Exatamente da mesma forma como abomino as decisões que privilegiam muitos indivíduos acometidos por doenças comuns em detrimento daqueles com doenças mais raras. Ambas as posições, a meu ver, violam o princípio da igualdade no acesso aos serviços de saúde. De fato, devemos reconhecer um fenômeno que vem ganhando expressão no mundo todo e entre nós: o reconhecimento que certas condições ou certos atributos identitários específicos de grupos sociais exigem formas diferenciadas de resposta do Estado e dos arranjos da sociedade. É nesse patamar que situamos a luta contra um conjunto de preconceitos e discriminações, e a favor de mudanças nas diversas práticas sociais que, nas formas concretas de produção social da vida, produzem a desigualdade para estes grupos específicos. No interior desse cenário, creio ser importante destacar que alguns desses grupos sociais, grosso modo caracterizados como minoritários, se constituem em torno de características biológicas comuns, como, por exemplo, a de viver com uma certa doença mais rara. Estes grupos se engajam no processo de luta política no sentido de defender o direito ao acesso às tecnologias de que precisam. Considero, em princípio, absolutamente legítimas estas formas de luta, embora creia que devamos distinguir, ao examinar as estratégias nesta disputa política, aquelas que lutam por um direito específico em detrimento dos direitos igualmente mais ou menos específicos dos outros, daquelas outras estratégias que lutam por um direito específico em uma rede de aliança e de solidariedade com as demais lutas pelo direito dos outros. É exatamente por considerar esta última forma de luta mais virtuosa do que a primeira que considero inadequado defender o acesso da maioria da população em detrimento de poucos portadores de uma doença rara. Em outros termos, não creio que dilemas que concretamente estamos a viver nos processos da chamada judicialização reflitam contradições entre os princípios da universalidade e equidade e o da integralidade; vejo-os como derivados da simples incapacidade que temos tido de assegurar o direito universal e igualitário ao acesso às ações e serviços de saúde que cada brasileiro necessita para a promoção ou para a recuperação da sua saúde. Defender essa perspectiva de igualdade envolve, obviamente, colocar em exame crítico e buscar transformar, além das práticas sociais do cuidado, todos os processos que, de alguma forma, nos levam a experimentar, em situações concretas, os dilemas de precisarmos optar por garantir direitos a uns em detrimento do direito a outros. A construção da resposta brasileira à Aids serve de exemplo. Reconhecendo que medicamentos podem modificar, de modo bastante significativo, a vida dos que 793


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vivem com HIV/Aids, e contra todas as recomendações daquela forma de pensamento segundo a qual o Estado não seria capaz e não deveria garantir o direito universal ao acesso a tais medicamentos, a resposta brasileira ousou buscar alternativas, inclusive inventando formas de intervenção e de negociação do Estado com as indústrias de medicamentos que produzem aqueles insumos fundamentais para a produção do cuidado nestes casos. No meu entendimento, portanto, os impasses e dilemas que atravessamos não derivam de uma certa contradição entre os princípios da universalização e de igualdade com o da integralidade, e sim das dificuldades de se concretizar o próprio direito ao acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Pelo que sou capaz de reconhecer nos múltiplos sentidos da integralidade, sobretudo naqueles sentidos que mais diretamente se relacionam às práticas e aos modos de organizarmos os serviços, reconheço uma aspiração por uma forma de cuidar que não reduz os sujeitos a objetos, não reduz a doença a lesão, que leve em conta, no momento de ofertar certas intervenções (sejam elas em resposta a um sofrimento manifesto ou sejam elas feitas com o intuito de evitar um sofrimento futuro), o significado que essas nossas ofertas terão no modo de andar a vida do outro. Portanto, reconheço, no uso do termo integralidade, um potencial de distinguir diferentes formas de se exercerem as práticas de cuidado - potencial particularmente útil para os que aspiram transformar as práticas vigentes. Partilho com Ricardo Teixeira a tese de que a transformação das práticas envolve novos vocabulários, novos modos de caracterizar a realidade e de caracterizar os problemas. Mas ressalto (e penso que isso não me afasta de nenhum de meus interlocutores) que tais vocabulários só serão úteis quando utilizados pelos que se engajam na produção do cuidado (quer como profissionais quer como usuários). Nesse sentido, concordo plenamente que precisamos disparar processos que desencadeiem a reflexão e a análise das práticas de saúde pelos que nela estão engajados. Contudo, creio que não dispomos de um único método, ou de uma única forma de enfrentar esse desafio. Reconheço que hoje, no cenário brasileiro, encontramos disponíveis vários referenciais teóricos distintos que nos oferecem vocabulários alternativos para um mesmo desafio (embora alguns deles de tal modo exotéricos que muitos aliados no sonho de transformar práticas não conseguem entender esses referenciais). Penso que o desafio diante de nós envolve um esforço grande de tradução de nossas propostas de vocabulário e uma certa dose de mestiçagem de referenciais teóricos, de modo que possamos juntos (acadêmicos, profissionais dos serviços, usuários gestores) inventar novas formas de problematizar, ampliar nossas sensibilidades e nossas visões. Uma questão central nessa perspectiva diz respeito às formas como disparamos processos de reflexão e análise das práticas de saúde. Bastaria a constituição de coletivos reflexivos de trabalhadores, ou de trabalhadores com usuários? Será que desses coletivos emerge espontaneamente, ou por obra de alguma mão invisível, um caminho mais virtuoso? Penso que não. Penso que não podemos controlar ou conhecer a priori os desfechos ou consequências da reflexão coletiva. O que podemos fazer é lutar para que ela caminhe no sentido que nos parece mais virtuoso. Ou seja, creio que devemos pensar e examinar as diversas formas como podemos convidar outros a pensarem em certos problemas, e refletirem sobre algumas questões; a analisarem alguns desdobramentos desse ou daquele arranjo do trabalho, e a inventarem novas formas de cuidar. Portanto, somos nós que convidamos de alguma forma; nós, que partilhamos e que estamos dispostos a lutar por um conjunto de valores. Em outros termos, penso ser fundamental ampliar nosso elenco de ferramentas, que nós (ativadores de mudança, consultores da política de humanização, professores e pesquisadores, trabalhadores de saúde, gestores, usuários etc.) temos para convidar outros à análise de novos problemas, que nos parecem mais virtuosos. É nesse sentido que sustento que a categoria sofrimento seja relevante. Uma forma de explorar novos problemas seria convidar a nós mesmos e os outros a examinarmos em que medida nossos arranjos de práticas são capazes de oferecerem uma resposta ao sofrimento produzido por uma doença, e a examinarmos em que medida nossos arranjos de prática não suscitam um sofrimento ainda mais grave. Concordo com a correção que me foi feita por Ricardo Teixeira: a medicina não construiu um conhecimento sobre a experiência do sofrimento, o que não quer dizer que ela não lide cotidianamente com ele. Mas ela construiu um modo de oferecer respostas ao sofrimento por meio da resposta que pode oferecer à doença que supostamente o causa. É nesse sentido que afirmo que a medicina lida 794

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mesmo que os médicos não se deem conta disso - com os sofrimentos atribuíveis da doença; ainda que isso se dê por intermédio de um processo de objetivação que torna invisível o drama da vida do outro. Um processo que tende a fazer com que a relação com o outro se dê apenas por meio da sua redução a um objeto. Mas é exatamente por ser o sofrimento bem próximo ao cotidiano das práticas, e por ser invisível pelo olhar técnico tradicional, é que penso ser absolutamente fundamental trazê-lo para o centro das reflexões sobre as práticas de saúde. Sofrimento da vida, sem dúvida, mas sofrimento que, em parte, pode ser evitado ou superado por meio de algumas intervenções nossas. A sugestão é bem pragmática: convidar coletivos de engajados nas práticas de saúde a examinarem os dramas da vida trazidos por doenças em situações concretas, ao lado dos dramas da vida trazidos por nossas intervenções supostamente feitas em defesa da vida, também em situações concretas, tem a potência de ampliar sensibilidades e de tornar visíveis novos problemas. Mas como fazê-lo? Não há uma forma única: discutindo casos com o olhar que busca apreender o sofrimento ligado à doença ou às intervenções a ela dirigidas; refletindo sobre o itinerário terapêutico de alguns usuários; trazendo à tona consequências impremeditadas das ações que empreendemos em situações concretas, ou simplesmente ouvindo o usuário etc. Em síntese, trazer o outro e seu sofrimento para o campo de nossa reflexão sobre nossas práticas concretas. E trazer cotidianamente. Penso que esta é uma trajetória possível de suscitar outros modos de práticas de saúde, mais abertos ao diálogo e à negociação, mais abertos ao outro de quem se cuida. Mas abertos a reconhecer, nesse processo dialógico, as necessidades de saúde de todos e de cada um.

Referência WORLD BANK. Financing health services in developing countries: an agenda for reform. Washington: World Bank, 1987.

Recebido em 12/07/09. Aprovado em 16/07/09.

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informes

Notas sobre humanização e biopoder*

Antonio Lancetti1

A encomenda de escrever um texto para o encontro nacional de pesquisadores, que se destina a discutir a política de Humanização no Sistema Único de Saúde (SUS), soa-me bastante perturbadora. Em primeiro lugar, porque não sou pesquisador, nem sequer possuo diploma de mestre. Em segundo, não conheço absolutamente nada a respeito do Programa de Humanização do SUS, nunca participei dele. Tenho conhecimento de sua existência na gestão de José Serra, mas nunca soube como funcionava, tampouco como funciona atualmente. Em terceiro, devo confessar que, apesar de ter tido formação cristã, ou talvez por ter tido – estudei em colégio religioso dos seis aos nove anos de idade –, sempre desconfiei da palavra humanização. Na formação marxista, aprendemos a ter uma atitude crítica a respeito de todas as formas de cuidado, assim como dos diversos tipos de Estado. Em outras palavras, nós, que éramos contra a propriedade privada, a família, o Estado e seus aparelhos ideológicos, estaremos reunidos nas terras onde o padre José de Anchieta criou sua Escola, para discutirmos a política de humanização exercida pela maior organização sanitária da América Latina, o SUS. Talvez o padre José de Anchieta, além de inaugurar a literatura brasileira, tenha sido também um dos precursores do que hoje chamamos biopolítica no Brasil; sua obra teatral era direcionada para catequizar índios. Um dos sentidos que Antonio Houaiss dá à palavra humanizar é amansar, amansar animais. José de Anchieta também escreveu uma obra poética nos momentos em que se encontrava cativo dos índios tamoios, sem bíblia, sem terço, tentado pela beleza do corpo das mulheres que o rodeavam. Os poemas à virgem, escritos na areia, envoltos em erotismo, ajudaram nosso mentor a elaborar uma política de domínio de si, de seu corpo, que, segundo a tradição, morreu casto e criou corpos de paranoicos doces que marcaram fortemente a civilização brasileira. A ação da organização militar constituída pelos jesuítas deixou marcas pelo Brasil, e foi precisamente em um local que levava seu nome e em um momento épico da história da saúde mental brasileira que nos confrontamos com o paradoxo do conceito de humanização. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Apresentado durante o Seminário “Humanização do SUS em Debate”, dias 25 e 26 de junho de 2008, em Vila Velha, ES. 1 Escola Nômade de Filosofia. Rua Arruda Alvim, 112. Pinheiros, São Paulo, SP, Brasil. 05.410-020 lancetti@uol.com.br

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NOTAS SOBRE HUMANIZAÇÃO E BIOPODER

Em maio de 1989, intervínhamos na Casa de Saúde Anchieta e, metidos na batalha de opinião pública, anunciávamos a humanização do atendimento prestado aos internos do hospício. Pessoalmente, cheguei a declarar, em um programa de televisão, que estávamos praticando cuidados maternos primários, o que foi, como se pode imaginar, motivo de chacota dos companheiros. Nosso líder David Capistrano, no mesmo programa de TV, afirmou que esses cuidados não se destinavam a manter ou a aperfeiçoar o hospital, mas a destruí-lo e a substituí-lo: “Não queremos fazer um manicômio bonzinho”. Se houve uma revolução psiquiátrica em Santos, como afirmou Guattari ao nos visitar, ela se deveu a um plano de ação que tinha como objetivo e alcançou uma ruptura com a psiquiatria e com a burocracia, e ainda ativou os aspectos não humanos da produção de subjetividade e efetuou forças não humanitárias da política e da saúde pública. Talvez uma das frases que melhor sintetizem o paradoxo da humanização seja de Marx: A religião é o espírito de uma época sem espírito e o coração de um mundo sem coração, ela é o ópio dos povos. De uma parte, humanizar é cuidar de outros, assistir; etimologicamente é estar do lado do outro, aliviar o sofrimento do povo, socializar, incluir. Porém o cuidado, a geração de práticas e enunciações coletivas fundamentadas em relações de afeto, aquilo que, segundo Toni Negri e Michael Hardt, gera formas de comunismo espontâneo, escapa à prática técnica do cuidado, e os devires do comum estão ora em confronto, ora em conformidade com as formas de recuperação capitalistas e de reprodução da ordem social. Negri e Hardt destacam três tipos de trabalho imaterial. Os dois primeiros referem-se à comunicação, à informática, à telemática, e o terceiro grupo de novos proletários é o dos trabalhadores afetivos. No terceiro grupo é preciso distinguir a manipulação de afetos, no caso da indústria do entretenimento, e o trabalho de saúde fundamentado na produção de afetos. Creio que é nesse contexto que poderíamos situar o debate da biopolítica e da humanização. Voltando ao paradoxo do caritas como ópio dos povos e, ao mesmo tempo, como matéria de composição do tecido conjuntivo da sociedade, quero contar que, em nossas experiências santistas, achávamos que deveríamos levar a humanização, no sentido da solidariedade e da tolerância, até a máxima potência. Elevar a solidariedade, a tolerância e o caritas a sua máxima potência de maneira que explodissem as formas humanas e piedosas de cuidar de outros. Na época, fundamos o primeiro comitê de Combate à Fome e pela Vida, liderado por Betinho. Destaco que foi o primeiro porque, na ocasião, os dirigentes do PT desconfiavam da campanha. A ideia era que, intensificando modos de coletivização, inclusive arcaicos, é possível estourar formas humanizadas ou demasiado humanas de cuidar de outros, como, por exemplo, o hospital psiquiátrico ou a retirada das equipes de saúde das escolas - que agora estão sendo reinstaladas, pela administração Kassab-Serra, em São Paulo, com base em um programa de rádio por demais antipático e humanístico, do jornalista Gilberto Dimenstein, que pretensiosamente se intitula Potencial Humano e que pressupõe que se deve educar para o mercado, e não investir para educar. Acredito que, nas práticas de saúde, especialmente na saúde pública, somos obrigados, constantemente, a passar pelo meio, ou seja, pelo paradoxo da humanização como domesticação das pessoas e afirmação da vida com sua força de agregação e sua potência advinda de forças vitais prépessoais. Todas essas questões são de alguma maneira prévias, embora inseridas na práxis e na poiesis sanitária ao lembrar que este encontro se destina a debater práticas de governo, práticas de Estado. Félix Guattari, no maravilhoso livro Caosmose, afirma que os dois grandes riscos da vida no planeta são a degradação ambiental e a degenerescência das solidariedades sociais. Suponho que o Programa Nacional de Humanização deve abranger toda a gama de serviços de Saúde, que vai dos hospitais às Unidades Básicas de Saúde, porém acredito que as ações desenvolvidas pelos serviços encravados no território e no espaço geográfico, onde as pessoas moram, requerem uma ação urgente.

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LANCETTI, A.

informes

O capitalismo mundial integrado funciona produzindo subjetividades infantilizadas, produzidas por componentes humanos e não humanos; além da família, da frágil ação da escola e da incidência das políticas públicas na subjetividade, as religiões, cada vez mais embrutecedoras e menos espiritualizadas, deixam nossas populações urbanas entregues à manipulação de afetos da televisão, padecendo da escassez e regidas pela falta. Sem dúvida, hoje, os fenômenos de violência adquiriram uma importância extrema, e nosso grande lumpesinato vive exposto aos maiores processos de embrutecimento psicológico - com a instituição família e as relações primárias devastadas e seu psiquismo e seus corpos regidos pela sociedade de controle. A inserção dos profissionais de saúde nos domicílios, nos territórios geográficos e nos territórios existenciais mostra as mais variadas maneiras de violência. O documentário de Luciana Burlemaqui, Entre a luz e a sombra, exibido no festival de documentários “Tudo é Verdade”, mostra como o sonho do Audi está no imaginário de cada ladrão, e como os ladrões de bancos ou os traficantes e sequestradores são figuras identificatórias de milhares de jovens brasileiros. Eles ocupam, de alguma maneira, o lugar do revolucionário dos anos sessenta e setenta no imaginário de muitos meninos, meninas e jovens brasileiros. Cabe aos gestores da saúde pública e aos dirigentes sanitários reinventarem a polícia médica. Aquilo que denominamos reinvenção da polícia médica é a intervenção do Estado no cuidado dos corpos, na intervenção nos territórios existenciais, produtores de subjetividade, ativando coletivos operantes, geradores de comunismo espontâneo e de invenção de vidas solidárias e criativas. O maior feito do SUS nesse sentido é o Programa Saúde da Família (PSF). Com sua metodologia de equipes compostas por médicos generalistas, enfermeiros e agentes de saúde que moram no espaço geográfico, é a melhor estratégia para disputar a batalha da cidadania no território onde somente a Globo chega, isto é, o domicílio e os territórios existenciais. Quando integralizada, a estratégia da família consegue tratar de pessoas drogadas, violentas, que partiram em linhas delirantes, alucinatórias, ou sobrecodificadas pela repetição mortífera do conjunto droga. Biopolítica é uma forma de poder que regula a vida social desde seu interior no território; não é somente o cenário principal em que se desenvolvem a reforma e a revolução psiquiátrica, mas o campo de batalha da denominada reforma sanitária. Assistir, aliviar o sofrimento, ativando o comum, é somente possível mediante uma ação civilizatória que opere na capilaridade onde o poder se incita, se suscita e se produz. Evidentemente, não estamos propondo uma medicalização da violência. A outra questão para a qual devemos alertar diz respeito à referência de pensadores da imanência, como Deleuze e Guattari, fazendo de seu pensamento uma representação. Imagino que, em consequência das experiências de humanização, deve haver melhorado muito a relação dos profissionais de saúde com os usuários ou pacientes, porém, neste encontro, seria interessante observar indicadores de resultado. Com estas notas pretendemos situar alguns dos paradoxos de uma prática sanitária fundamentada na defesa e na afirmação da vida. A produção de saúde está imbricada com diversos modos de poder. A sua potência biopolítica é maior que o que supõem muitos gestores.

Recebido em 11/05/09. Aprovado em 01/07/09.

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Antropologia da Face Gloriosa Arthur Omar Arthur Omar é um artista brasileiro múltiplo, com presença de ponta em várias áreas da produção artística contemporânea. Formado em antropologia e etnografia, Arthur Omar desenvolveu novos métodos de antropologia visual, tanto em seus filmes documentários epistemológicos dos anos setenta como em seus livros recentes sobre Carnaval e Amazônia, onde a busca científica se realiza por meio de uma intensificação estética do material. Trabalha com cinema, vídeo, fotografia instalações, música, poesia, desenho, além de ensaios e reflexões teóricas sobre o processo de criação e a natureza da imagem. Em todos os campos, Arthur Omar introduziu novas maneiras de pensar, e contribuições radicais a uma renovação das linguagens e das técnicas. Temas como o êxtase estético, a violência sensorial e social e a construção de metáforas visuais marcam toda sua obra, voltada para a busca de uma nova iconografia da realidade brasileira. Documentário experimental, fotografia, videoarte, moda, filme de ficção, e videoinstalações, suas imagens migram e se transformam por intermédio dos meios, suportes, linguagens. Em 2005, ano do Brasil na França, apresentou, no Grand Palais, a sala de abertura da exposição Brésil Indien, com fotografias de paisagens amazônicas. A revista semanal do Le Monde de julho dedicou dez páginas ao seu trabalho Antropologia da Face Gloriosa, grande sucesso nos Rencontres de la Photographie em Arles, no mesmo ano, e que ilustra esta edição da Interface. Em 1999, teve retrospectiva completa de sua obra em filme e vídeo no MOMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, e em 2001 no CCBB do Rio e de São Paulo. Na Bienal de São Paulo de 1997, apresentou a instalação fotográfica Antropologia da Face Gloriosa, painel com 99 fotografias em preto e branco em grande formato, que parte de um estudo do rosto e do êxtase fotográfico como dimensão transcendental, série hoje reconhecida como um clássico da fotografia brasileira. Algumas dessas imagens vão dar origem à série colorida A Pele Mecânica. Foi destaque na Bienal de São Paulo de 2002 com Viagem ao Afeganistão, conjunto de trinta fotografias em grandes dimensões compondo paisagens paradoxais e perspectivas impossíveis, onde as imagens realizadas na zona de catástrofe, entre Cabul e Bamyan, desconstroem o olhar jornalístico, apontando para um realismo pós-contemporâneo. Em 2001 foi premiado por duas exposições individuais pela Associação Paulista de Críticos de Arte: O Esplendor dos Contrários (Centro Cultural Banco do BrasilSP), série de fotografias de paisagens amazônicas, em que reinventa o espaço e a luz e trabalha com efeitos em 3D; e a exposição Frações da Luz (Galeria Nara Roesler), série de caixas de luz em que explora a serialidade e a luminosidade “interna” de imagens vindas de diferentes suportes. Sua produção contemporânea em vídeo traz uma linguagem extremamente sofisticada, com a criação de metáforas visuais e relações inusitadas entre imagens e sons (Atos do Diamante, Pânico Sutil, A Lógica do Êxtase e o longa-metragem, em vídeo, Sonhos e Histórias de Fantasmas), com desdobramentos no campo das videoinstalações, suporte para o qual desenvolveu uma linguagem própria de forte impacto sensorial e marcada pela imersão do espectador (Inferno, Fluxos). Publicou os livros de fotografias Antropologia da Face Gloriosa, O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia, e O Esplendor dos Contrários. A Lógica do Êxtase é o livro de referência sobre sua obra em filme e vídeo. Participou de mostras de Arte COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dentro e fora do Brasil: Bienal de Valência 2000, Bienal do Mercosul 1999, Bienal de Havana em 2000, Babel-Museu de Arte Contemporânea da Coréia 2002, ARCO 2000 e 2003, Foto Arte Brasília 2003, e LisboaPhoto 2003, onde ocupou a totalidade do Pavilhão de Portugal da Expo com uma grande retrospectiva de suas fotografias em preto e branco. Em setembro de 2003 mostrou, na Galeria Nara Roesler em São Paulo, sua série explosivamente colorida de faces intitulada A Pele Mecânica, introduzindo novas técnicas de processamento digital. Apresentou, na exposição de inauguração do Centro Cultural Telemar (hoje Oi Futuro), a instalação Dervixxx, com imagens dos dervishes de uma favela em Kabul, de grande impacto de público, e profunda imersão. Uma nova versão desse trabalho foi apresentada no VideoBrasil de 2007, com projeções circulares, e saudada pelo crítico francês Jean-Paul Fargier como obra maior do vídeo contemporâneo. Dervixxx fazia parte de uma Trilogia Cognitiva, juntamente com duas outras instalações: Infinito Maleável nº 1 e A Ciência Cognitiva dos Corpos Gloriosos. Em 2006 ocupou a totalidade do espaço do Oi Futuro, os três andares e os vidros externos do prédio, com um conjunto de 12 instalações interligadas sob o título de Zooprismas. Esta exposição foi eleita pelo jornal O Globo como a melhor exposição do ano em artes plásticas do Rio de Janeiro. Participou com salas especiais da ARCO 2007 Madrid (com a obra Madonas, fotografias do Afeganisitão) e da Feira de Arte de Basel, igualmente num projeto especial, onde estabeleceu um diálogo com a obra seminal de Abraham Palatinik por meio de sua série de caixas de luz, ainda inédita, intitulada Série Suprema (homenagem a Malevitch). Texto adaptado de: <http://www.arthuromar.com.br:80/bio.html>

Não te Vejo com a Pupila, Mas com o Branco dos Olhos

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Charles Le Brun, grade fisionômica do medo

A nudez do rosto é maior que a do corpo, sua inumanidade maior que a dos bichos. Gilles Deleuze (Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984) COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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OMAR, A. Antropologia da Face Gloriosa. São Paulo: Cosac Naify, 1997. Fotos nesta edição da Interface: Mandarim da Ambigüidade entre o Ouro e a Carne Carrascos e Estetas Uniram-se Santa Porque Avalanche O Dragão Desligando a Própria Sombra A Decapitação da Noite é um Ato Parcial A Especialista se Lembra de Tudo e Vice-Versa Boxeador Mimado Navegando em Nuvens de Éter Para Onde Vai a Forma, Quando a Matéria Cede Passagem 804

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