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editorial

Interface – Comunicação, Saúde, Educação, nesta 37ª edição, publica mais uma série de artigos que são, em si, a expressão da rica paisagem temática do próprio campo da saúde coletiva. Uma característica importante desta e da revista no seu conjunto tem sido a diversidade, que se revela sobre vários aspectos, tanto em relação aos temas discutidos quanto na abordagem metodológica apresentada nos estudos publicados. Este cenário multifacetado de apresentação da publicação científica brasileira na área, que tem, na Interface, uma amostra, expressa, de alguma forma, o que é a saúde coletiva. Um campo que nasce interdisciplinar e que evolui com base em uma forte multiplicidade, onde o contraditório e o heterogêneo têm uma convivência saudável e produtiva. A diversidade traz riqueza ao campo e é o que possibilita a realização do seu imenso potencial criativo. Em muitos dos artigos publicados nesta edição, observa-se o crescente reconhecimento do protagonismo dos sujeitos na pesquisa, há uma evidente presença de fragmentos da realidade compondo os textos. O mundo entra na revista e dela se apossa, tomando a forma de novos conhecimentos. Referenciais de diversos campos compartilham uma significativa presença, sem fixação de territórios, porque abrem para novas entradas, com diferentes colorações textuais. A inovação tem sido a forte característica da Interface, fortalecida por decisão editorial. Avalia-se que, devido à riqueza inerente ao campo da saúde coletiva, o cenário de produção na área é muito amplo, e igualmente fértil, e será cada vez mais produtivo se for preservado espaço de liberdade suficiente para a criação. Interface 37 publica o ensaio de criação de Regina Favre, “Um corpo na multidão: do molecular ao vivido”. A foto “na muvuca da vida” traz a imagem estruturada e concretada da cidade. Mundo este que invade a sala de aula, que também é outro mundo, porém mais intimista. Compõe-se, assim, uma performática expressão, onde o que define a imagem é, sobretudo, o olhar sobre ela, pois, entre um e outro cenário possível, há um espaço entre eles, onde as imagens se superpõem formando outro núcleo semiótico. Assim, o que seria antes uma realidade fixa e rígida, ganha contornos diferentes e transita para outras formas, ou para forma nenhuma. As imagens trazem a ideia de superposição de diferentes superfícies, movimentos e fluidez, numa realidade movente. Tudo isto se conecta a uma certa identidade da revista, expressa no seu esforço de publicação, que absorve a diversidade presente no campo, e a permanente reinvenção da saúde coletiva, e de si mesma enquanto veículo de publicação da produção científica do campo. As imagens do ensaio vão se revelando, é como se elas se apresentassem como movimento, revelando o corpo nas suas muitas expressões e sua força autopoiética. E sempre em relação com o mundo, este, também, um corpo com intensa capacidade de afetar. O encontro produz novas formas, sendo que, a partir daí, corpo e mundo ganham novos sentidos. O corpo neural, o afetivo, o que se apavora, o que revela um espaço vazio em si, o corpo processo - e, assim, as muitas cartografias corporais vão ganhando sentido, expressões múltiplas, que levam à percepção de que o corpo é uma produção social e biossubjetiva, em permanente mutação. Portanto, há uma ética que produz as expressões do corpo e uma estética que lhe dá contorno, linhas, formas; mas, ao mesmo tempo, as imagens revelam campos que são captados apenas pelo que há de vibrátil nos corpos, como o são as sensações de pavor, o entorpecimento das imagens-mundo, campos não estruturados, e que são, ao mesmo tempo, parte do mundo da vida. Com esta edição, Interface oferece mais uma sequência de artigos contribuindo para a divulgação, produção e inovação no campo da saúde coletiva. Boa leitura! Túlio Batista Franco Editor Associado

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Interface – Comunicação, Saúde, Educação publishes, in this 37th volume, one more series of papers that are, in themselves, the expression of the rich thematic landscape of the field of public health. An important characteristic of this issue and of the journal as a whole has been diversity, which is revealed in many aspects, both in relation to the discussed themes and to the methodological approach presented in the published studies. This multifaceted scenario of presentation of the Brazilian scientific publication in the area, which has, in Interface, an example, expresses, in some way, what public health is. A field that is born interdisciplinary and that evolves based on a strong multiplicity, where contradiction and heterogeneity have a healthy and productive interaction. Diversity brings richness to the field and it is what enables the fulfillment of its huge creative potential. In many of the papers published in this volume, it is possible to observe the increasing recognition of the protagonism of the research subjects; there is an evident presence of fragments of reality composing the texts. The world enters into the journal and takes possession of it, assuming the form of new knowledge. References from many fields share a significant presence, without fixing territories, because they open to new entrances, with different textual colors. Innovation has been the strong characteristic of Interface, strengthened by an editorial decision. It is believed that, due to the richness inherent in the public health field, the production scenario in the area is extremely broad and fertile, and it will be more and more productive if a space of freedom that is sufficient for creation is preserved. In this volume, Interface publishes the creation essay written by Regina Favre, “Um corpo na multidão: do molecular ao vivido” (A body in the crowd: from molecular to experienced). The photo “Na muvuca da vida” (In the chaos of life) brings the structured and concreted image of the city. This world invades the classroom, which is another world too, but more intimate. Thus, a performatic expression is composed, where what defines the image is, above all, the look over it, because, between two possible scenarios, there is a space where images are superposed, forming another semiotic nucleus. Thus, what would have been a fixed and rigid reality before, receives different contours and transits to other forms, or to no form at all. The images bring the idea of superposition of different surfaces, movements and fluidity, in a moving reality. All this is connected with a certain identity of the journal, expressed in its publication effort, which absorbs the diversity present in the field, as well as the permanent reinvention of public health and of itself, as a vehicle for the publication of the scientific production of the field. The images of the essay gradually reveal themselves, as if they were presented as movement, revealing the body in its many expressions and its autopoietic force. And always in relation to the world, which is also a body with intense capacity to affect. The meeting produces new forms, and from this, body and world acquire new meanings. The neural body, the affective one, the one that gets scared, the body that discloses an empty space in itself, the body-process – and, thus, the many body cartographies gradually receive meaning, multiple expressions, which lead to the perception that the body is a social and biosubjective production, in permanent mutation. Therefore, there is an ethics that produces the body expressions and an esthetics that gives it contours, lines, forms; but, at the same time, the images reveal fields that are captured only by what is vibratile in the bodies, like the sensations of terror, the numbness of the images-world, unstructured fields that are, at the same time, part of the world of life. With this volume, Interface offers one more sequence of papers, contributing to dissemination, production and innovation in the field of public health. Have a good reading! Túlio Batista Franco Associate Editor

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artigos

A dialética humanização-alienação como recurso à compreensão crítica da desumanização das práticas de saúde: alguns elementos conceituais *

Rogério Miranda Gomes1 Lilia Blima Schraiber2

GOMES, R.M.; SCHRAIBER, L.B. Humanization-alienation dialectic as a tool for the critical comprehension of health practices dehumanization: some conceptual elements. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.339-50, abr./jun. 2011.

Considering the contemporary transformations that the health and medical work has been undergoing and their implications to the relationships established between their constitutive subjects, the present essay aims to demonstrate how the integration of these elements in a framework structured by the humanization-alienation dialectic relation may contribute to the comprehension of the causes of a large part of the conflicts and crises that are evidenced nowadays and analyzed in the perspective of health services and practices dehumanization. The application of this theoretical perspective proves to be very productive within the process of analysing the dynamics that contribute to or, oppositely, obstruct a future that would enable lives full of meaning to individuals and collectivities. This should be, in our opinion, the final goal of the movements that intend to humanize the health practices.

Tendo por ponto de partida as transformações contemporâneas pelas quais vem passando o trabalho médico e em saúde, e suas implicações sobre as relações estabelecidas entre seus sujeitos constituintes, buscamos demonstrar como a integração desses elementos em um quadro conceitual estruturado pela dialética humanização-alienação pode contribuir para a compreensão das raízes de grande parte das crises e conflitos evidenciados atualmente e analisados sob a perspectiva da desumanização dos serviços e das práticas de saúde. O recurso a essa perspectiva teórica demonstra ser bastante produtivo no processo de análise das dinâmicas que contribuem ou que, ao contrário, obstruem um devir propiciador de vidas mais plenas de sentido para os indivíduos e as coletividades, sendo que este deve ser, a nosso ver, o objetivo último dos movimentos que se proponham humanizadores das práticas de saúde.

Keywords: Health practices humanization. Health work. Medical work. Dehumanization. Alienation.

Palavras-chave: Humanização das práticas de saúde. Trabalho em saúde. Trabalho médico. Desumanização. Alienação.

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Elaborado com base em Gomes (2010). 1 Departamento de Saúde Comunitária, Universidade Federal do Paraná. Rua Padre Camargo 280, 7º andar, Alto da Glória. Curitiba, PR, Brasil. 80.060-240. rogeriomgomes@ uol.com.br 2 Departamento de Medicina Preventiva, Universidade de São Paulo. *

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A dialética humanização-alienação como recurso...

As raízes da temática da desumanização no trabalho em saúde O tema da desumanização-humanização dos serviços e práticas de saúde vem sendo objeto de vários trabalhos e pesquisas por autores do campo da saúde coletiva, sobretudo a partir da década de 1990 (Ayres, 2006; Deslandes, 2006, 2005; Minayo, 2006; Benevides, Passos, 2005; Pinheiro, Mattos, 2004; Puccini, Cecílio, 2004; Caprara, Franco, 1999). Dentre as características que podemos perceber em relação às obras e autores que tratam da desumanização no trabalho em saúde, uma que se destaca refere-se à variedade de compreensões acerca do tema, sendo que tal diversidade apresenta-se como consequência, em grande parte, das distintas abordagens teórico-metodológicas acerca desses processos. Deslandes (2006), ao realizar um rico inventário da discussão da humanização em saúde, demonstra como – embora as raízes dessa temática remetam à década de 1950 – o marco inicial mais significativo dos estudos críticos relacionados à desumanização da relação médico-paciente se dá com a sociologia médica americana na década de 1970. A partir da década de 1980, a crítica às transformações da relação médico-paciente, especialmente ao seu caráter progressivamente “impessoal”, já se encontra mais difundida; e assiste-se à ampliação da dimensão de tais elaborações com a incorporação de elementos advindos da área de gestão em saúde – como as pesquisas de satisfação dos usuários – e, até, do próprio corpo “mais interno” da prática médica, irradiando-se por áreas como a bioética e a educação médica. Some-se a essa tendência o movimento de constituição da crítica histórico-social à medicina, à organização social da prática e profissão médicas e à medicalização social, capitaneado por autores europeus e norte-americanos, e sua influência sobre a produção latino-americana e brasileira nesse período (Arouca, 2003; Mendes-Gonçalves, 1994; Rosen, 1979; Donnangelo, 1976; Freidson, 1970). Será a partir dessas últimas influências que movimentos, inicialmente mais restritos, de crítica à “impessoalização” e “desumanização” da relação médico-paciente, advindos das décadas de 1970 e 1980, paulatinamente superam a esfera estritamente interpessoal e irrompem em um movimento teórico mais amplo, internamente ao campo da saúde coletiva, no caso do Brasil, que passa a tematizar questões como a humanização/desumanização das práticas e serviços de saúde, tendo como referenciais, por exemplo, a integralidade da atenção e o cuidado em saúde. É sob essa ótica que, a partir de fins da década de 1990 e início dos anos 2000, tem se tornado tema, cada vez mais frequente nas elaborações acerca das práticas em saúde, a discussão da chamada humanização/desumanização nos serviços de saúde. Abordando esse processo de forma mais complexa e ampliada, essa tendência tem se caracterizado por analisar uma série de aspectos inter-relacionados que conformam os processos ou fenômenos “desumanizadores” no interior das práticas e serviços de saúde. As produções teóricas contemporâneas a respeito da humanização tenderão a ser marcadas, desse modo, por uma riqueza e complexidade de temas e áreas, entre as quais vale destacar dois grandes eixos: • A discussão das transformações dos processos de trabalho em saúde com a produção de práticas relacionais e intersubjetivas mais pautadas na solidariedade, na autonomia dos sujeitos e na cooperação; fazem parte dessa dimensão as discussões, por exemplo, a respeito: da integralidade, da centralidade do cuidado, do acolhimento na produção da assistência, do combate à medicalização social (Ayres, 2006; Pinheiro, Mattos, 2004; Nogueira, 2003; Merhy, 1997); • A discussão das políticas de gestão, dos arranjos organizacionais e dos modelos tecnoassistenciais, e suas implicações para a produção de serviços e práticas de saúde alicerçadas na garantia do exercício da cidadania e na corresponsabilização dos diferentes atores envolvidos; compõe essa temática a discussão da consolidação do SUS segundo seus princípios fundadores, além da democratização na gestão dos serviços e do fomento à autonomia dos sujeitos nos processos assistenciais (Paim, 2008; Deslandes, 2006; Puccini, Cecílio, 2004; Campos, 2003). Nosso trabalho constitui-se influenciado por essa diversidade de contribuições a fim de se compreenderem os processos denominados como desumanizadores na assistência à saúde, como multideterminados e interdependentes, o que exige, necessariamente, sua abordagem tendo por referência uma ampla e complexa ordem de determinações.

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Além do recurso a esse rico acúmulo teórico, nos valemos, neste estudo, do substrato filosófico da categoria alienação, dado que diversos autores da área da filosofia e sociologia de vertente crítica evidenciam uma forte relação entre processos geradores de alienação e suas expressões apreendidas na forma de desumanização das relações sociais (Mészáros, 2006; Heller, 2004; Sartre, 2002; Lukács, 1981a).

A relação entre humanização e alienação A partir da concepção do ser humano como ser objetivo e objetivante no mundo, a escola marxiana tem se detido ao estudo e reflexão acerca do desenvolvimento histórico desse movimento ontológico-constituidor do humano e suas contradições. Aqui emerge fortemente a temática da alienação. Essa categoria será compreendida como expressão teórica de um processo complexo, contraditório, permeado por aspectos, ora mais subjetivos, ora mais objetivos, sendo que o centro do conceito de alienação para essa escola se encontra em uma contradição: aquela existente entre o homem e suas objetivações. Desse modo: O fenômeno enquanto tal, como é delineado com clareza por Marx em trechos ora citados, pode-se formular assim: o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente também o desenvolvimento das capacidades humanas, mas – e aqui emerge plasticamente o problema da alienação – o desenvolvimento das capacidades humanas não produz obrigatoriamente aquele da personalidade humana. Ao contrário: justamente potencializando capacidades singulares, pode desfigurar, aviltar, etc. a personalidade do homem. (Lukács, 1981a, p.2)

A alienação, assim, constitui-se menos como estado em si do que como processo, como uma relação contraditória estabelecida entre capacidades humanas genéricas e suas repercussões sobre as personalidades dos diferentes indivíduos concretos. Isso somente é possível porque o agir humano através do objetivar-se, através do inscrever suas marcas humanas no mundo, do constituir objetividade às diferentes subjetividades – o processo de objetivação (Vergegenständlichung) – inclui, como um momento seu fundamental, a exteriorização (Entäusserung). De fato, esses dois movimentos se apresentam como um complexo, uma unidade dialética, dado seu caráter unitário, indissociável e em relação permanentemente tensa, sendo sua apreensão fundamental para a compreensão do contituir-se da alienação. Segundo Lukács (1981a), apoiando-se em Marx, o agir humano no mundo é, simultânea e interrelacionadamente, processo de objetivação, pois produz objetivações outrora não existentes, e processo de exteriorização, pois torna exterior algo que era interior ao ser humano na forma de posição teleológica. Destarte, diferentemente de outros seres vivos, para o homem, por meio da mediação do trabalho como atividade vital (Lebenstätigkeit), o devir torna-se produto da ação guiada pela consciência. É com essa via que se constitui a relação sujeito-objeto a partir da posição teleológica acima citada. A grande questão está no fato de que a imagem construída pelo sujeito, embora possua uma fidelidade desejada, não se apresenta jamais como “fotográfica”, adquirindo, assim, uma autonomia no processo vital constituidor do ser social. Desse modo, embora a imagem do objeto se fixe na consciência, também possuirá relativa autonomia; sendo que será o sucessivo reexame de cada nova situação concreta no interior dos atos operatórios humanos que colocará permanentemente em questão tal imagem, fazendo com que a posição teleológica anterior seja confirmada, readequada, transformada – movimento este conformador da práxis humana. O que esse processo expressa, em síntese, é o duplicar-se do mundo dos objetos, a sua divisão em objetos reais e objetos para a consciência, e as contradições daí advindas. Dentre as várias formas de objetivação-exteriorização do homem no mundo, uma se destaca pelo seu caráter ontológico-constituidor do ser social: o trabalho. O trabalho compreendido como o elemento fundador do gênero humano, o elemento por meio do qual os homens imprimem ao mundo as marcas de seu devir. A forma através da qual o homem natural dialeticamente se separa, sem separar-se da natureza e, ao se diferenciar no seio desta, estabelece com ela um intercâmbio que humaniza e torna social o mundo outrora natural. Ao mesmo tempo em que humaniza a natureza, o homem também humaniza a si, como

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parte da natureza; subordina a existência da espécie ao desenvolvimento do gênero humano não mais mudo; subordina o ser natural ao ser social, tornando possível a crescente socialização do mundo, ou seja, o recuo da barreira natural, o afastamento, em função da complexificação da socialidade, do nível primário de intercâmbio entre homem e natureza (Antunes, 2006; Mészáros, 2006). A esse movimento permanente, marcado por acúmulos, rupturas e saltos, constituidor da genericidade, incorre-se, no interior desse referencial teórico-epistemológico, o termo humanização. Fazemos questão, mais uma vez, de ressaltar que a unidade ontológica objetivação-exteriorização e sua distinção histórico-social não constituem mero produto do pensamento, pura abstração. Sua base material encontra-se na unidade ontológica sujeito-objeto, sendo que, enquanto a objetivação encontra-se expressa ao nível do mundo dos objetos, a exteriorização é expressão desse processo ao nível dos sujeitos. Como os processos de objetivação-exteriorização constituem dimensões do processo permanente de autoconstrução humana, cabe enfatizar o caráter “diversificador” do polo exteriorização em relação aos impactos sobre a personalidade dos diferentes indivíduos. Isso porque cada sujeito particular, como expressão do ser social, constitui-se a partir das relações que estabelece com a totalidade social ao seu redor e, a depender das relações sociais sob as quais se objetiva-exterioriza, suas capacidades se desenvolverão mais amplas ou mais restritas em relação ao grau de desenvolvimento do gênero humano. A exteriorização (Entäusserung) reage sobre os sujeitos exteriorizadores estabelecendo uma relação entre criador e criatura que pode apresentar-se com características diversas a depender das relações sociais em que tal processo ocorra. Sob certas relações, por exemplo, as objetivações podem apresentar-se, para o agente do trabalho, como reificadas, estranhas, contraditórias com a imagem de sua própria subjetividade exteriorizada. A alienação (Entfremdung) se faz, portanto, quando os homens, ao se objetivarem-exteriorizarem, estabelecem com seus produtos (sejam produtos do trabalho, sejam relações sociais) uma relação de reificação e estranhamento, ou seja, essas objetivações-exteriorizações ganham autonomia, apresentando-se como estranhas e, inclusive, saindo de seu controle e voltandose contra seus produtores, impondo-lhes conformações e, mesmo, restrições em seu viver, ao invés de representarem, para os sujeitos, suas inscrições humanas no mundo, produzindo aquilo que Luckács denominou de uma sociedade antagônica, ou seja, uma sociedade cujos elementos se voltam contra seus produtores. Diferentemente de outras correntes filosóficas anteriores e posteriores, para o materialismo dialético, esse processo não ocorre como fruto de uma condition humaine geral e tanto menos possui uma universalidade cósmica. Essa escola irá buscar suas determinações não em uma pretensa característica inerente ao homem e à sua atividade vital objetivadora-exteriorizadora, ou em um pretenso antagonismo entre indivíduo e sociedade, mas nas relações sócio-historicamente determinadas, sob as quais o gênero humano se desenvolve. Destarte, não se entenderá o desenvolvimento da alienação como ontológico, visto que o mesmo ocorre em decorrência da existência humana sob relações sociais específicas, geradoras de processos de estranhamento. Um esclarecimento importante a ser feito refere-se à frequente utilização do termo estranhamento como sinônimo de alienação no interior desse campo teórico-filosófico. No idioma alemão, Marx utiliza, originalmente, dois termos distintos: Entäusserung, significando a dimensão exteriorizadora componente do processo mais geral de objetivação próprio ao agir humano; e Entfremdung, referindo-se à dimensão alienadora do agir sob relações sociais determinadas. Enquanto o primeiro conceito está relacionado, na obra desse autor, a situações e processos valorados positivamente, dada sua dimensão ontológica enriquecedora (humanizadora) do mundo, dos homens e do gênero, o segundo conceito (Entfremdung) é relacionado, por sua vez, a dimensões valoradas negativamente em função das características que encerra sob relações sociais específicas produtoras de sofrimento.

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artigos

3 Alguns autores, como é o caso de Antunes (2006), por exemplo, entendem, como mais adequada, a tradução de Entäusserung como alienação (que, nesse caso, é entendida como dotada de estatuto ontológico e valorado positivamente), e de Entfremdung como estranhamento. Devese ressaltar, contudo, que essas diferentes opções semânticas não expressam compreensões diferentes em relação ao conteúdo e aos processos constituidores da problemática da alienação no interior do pensamento marxiano.

Em nosso trabalho, utilizamos a tradução de Entäusserung como exteriorização, e o termo Entfremdung é entendido como alienação, sinônimo, segundo essa opção, de estranhamento3. O elemento determinante em relação à conformação de contradições entre o desenvolvimento do gênero e seus reflexos ao nível particular refere-se às mediações sociais predominantes nos modos de produção da existência dos homens. As formas como os resultados das ações humanas reagem sobre a personalidade dos sujeitos estão diretamente relacionadas aos modos e contextos em que se constituem os complexos de objetivações-exteriorizações. Primariamente, só existe uma mediação entre homem e natureza: o processo produtivo, denominado como mediação de primeira ordem (Mészáros, 2006). A partir do momento histórico em que as sociedades humanas passam a se organizar com base em relações de produção baseadas na propriedade privada dos meios de produção (instrumentos e objetos de trabalho), na divisão do trabalho e na forma mercadoria, estabelecem-se outras mediações entre homem e natureza e entre o sujeito e sua práxis. Por estar alienado da propriedade dos meios de produção, não podendo assim operar de forma autodeterminada, o agente do trabalho é obrigado a alienar sua atividade para outro, configurando a heteronomia no plano da práxis. Consequentemente, os produtos do trabalho – as objetivações do agente do trabalho – também não estarão sob controle do trabalhador, mas alienados para o proprietário privado dos meios de produção. Destarte, essas mediações de segunda ordem, sintetizadas na propriedade privada e no trabalho alienado, fazem com que o homem torne-se alienado de sua atividade (o controle do processo de trabalho pertence a outro), das objetivações humanas (meios e produtos do trabalho), da natureza (objetos de trabalho) e dos outros homens. Com efeito, aquilo que é a expressão objetivada da subjetividade de cada sujeito, os produtos de seu trabalho, suas marcas humanas no mundo, assim como sua atividade, ou seja, sua subjetividade em ato, em exteriorização, não pertencem nem são controlados por ele, senão se apresentam como alheios, alienados. Sua atividade e suas objetivações aparecerão para o agente de trabalho, muitas vezes, como reificadas, dotadas de autonomia. Estarão dadas, desse modo, as condições materiais para que se estabeleçam relações de estranhamento/alienação entre sujeitos e objetivações-exteriorizações, entre o agente e sua práxis, e entre os indivíduos e aspectos da genericidade. Em síntese, desenvolvido a partir dessas relações sociais hegemônicas em nosso tempo histórico – as relações capitalistas –, esse processo de conformação da alienação tende a se expressar de modo mais subjetivo (no plano dos sujeitos) em três aspectos: a) O homem vê as objetivações-exteriorizações humanas como estranhas, alheias, autônomas, não se reconhecendo nelas; b) O homem vê sua atividade (o trabalho) como algo não somente externo, mas estranho a ele (estranhamento); sendo assim, não se sente afirmado, reconhecido em sua atividade que, ao contrário de proporcionar satisfação, lhe proporciona descontentamento, sofrimento; c) Assim, o trabalho – atividade responsável pela produção social da vida – que deveria tornar-se o elo do indivíduo com o gênero humano, torna-se meramente um meio individual de garantir a sobrevivência particular; ao invés de se reconhecer nos outros homens, o homem os estranha; Considerada desse ângulo subjetivo, a alienação refere-se à problemática do não-reconhecimento de si – de sua marca humana – nas objetivações humanas, em sua atividade e nos demais homens (Mészáros, 2006).

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Logo, as repercussões ao nível da consciência serão entendidas como expressões subjetivas de um fenômeno com bases objetivas. Evidentemente, essas duas esferas passam a se determinar de maneira recíproca, porém isso não extingue a importância da base material da alienação. As mesmas determinações que conformam os processos produtivos como alienantes para os produtores, também acabam por constituir a alienação como elemento socialmente mais ampliado, conformador de contradição dos sujeitos em geral em relação à genericidade, ou seja, constitui-se um processo que obstrui e limita a expressão da riqueza do gênero (gattung) ao nível dos sujeitos particulares e suas personalidades. Referimo-nos aqui ao papel da relação objetivação-apropriação na produção do ser social ao nível dos sujeitos particulares e às implicações de seu permear pelo desenvolvimento da dialética humanizaçãoalienação (Heller, 2004; Duarte, 1993). Ao mesmo tempo em que o gênero se constitui nas máximas capacidades alcançadas pelos homens coletivamente através do processo social de objetivação-exteriorização, os diferentes indivíduos particulares apresentam possibilidades diferentes de acesso a essas objetivações para satisfazerem seus carecimentos. É o que Heller (2004) caracteriza como os diferentes graus de abismos sociais entre gênero e indivíduos. Estes, a depender das relações sociais de produção e apropriação estabelecidas, podem estar, em maior ou menor grau, alienados do acesso às objetivações (genéricas) produzidas pelo conjunto da humanidade. Assim, sob relações de alienação, o enriquecimento do gênero humano pode se dar de forma simultânea e interdependente ao empobrecimento relativo dos diferentes sujeitos particulares. A forma como esse processo se impacta em cada indivíduo não é homogênea, pelo contrário, em meio ao movimento tendencialmente conformador de certa dinâmica alienadora, os diferentes sujeitos realizam sínteses particulares desses processos no plano da personalidade. Embora as respostas sejam particulares, porém, devese enfatizar que elas se desenvolvem dentro de uma dinâmica que coloca uma série de possibilidades finita para seu desenvolvimento. Afinal, o “peso” arrebatador da causalidade como manifestação dos movimentos objetivos da totalidade social sobre as distintas vivências particulares não se deixa apagar. Para evitar todo simplismo deformante, é necessário dizer que, obviamente também no plano da particularidade à medida que se difunde e aperfeiçoa a divisão social do trabalho acaba por formar-se um tipo de personalidade e isso acontece em termos sociais à própria medida do desenvolvimento das capacidades singulares (einzelnen). Existe uma certa espontaneidade induzida pela produção, pelo modo pelo qual as capacidades singulares (einzelnen) são colocadas de acordo entre si, no modo pelo qual o trabalho prestado na sociedade está de acordo com a vida privada, etc. De tais interações surgem sem dúvida diferenças individuais, com traços pessoais bem visíveis, com maneiras pessoais de reagir aos relacionamentos, com afetos acentuadamente subjetivos etc. Tudo isso, porém, se desenvolve em substância no plano da genericidade em-si, que já resulta do fato que algumas formas explícitas de alienação entre o indivíduo (Mensch) e os outros, freqüentemente são entendidas como características pessoais. (Lukács, 1981a, p.13)

Contribui, para a compreensão dessa forma histórica de individualidade, a análise que faz Sartre (2002) dos espaços sociais, coletivos, como cenários de multiplicidades de individualidades, nos quais cada sujeito, ao ocupar ocasionalmente um lugar, torna-se indeterminado; assim, todos se encontram reunidos, mas não integrados – processo que denominou como serialidade. Isso contribuirá para a conformação de formas de consciência que têm como características, entre outras, o individualismo e a naturalização, e que os indivíduos significarão como suas autênticas subjetividades, e não como consciência herdada de uma determinada socialidade objetiva imposta. Esse processo de internalização acrítica das relações sociais conforma-se, desse modo, também, como uma dimensão fundamental da alienação no plano particular. Heller (2004), ao se apoiar nos apontamentos lukacsianos, desenvolveu uma teoria do cotidiano na qual demonstra como as formas de consciência concernentes a esse espaço buscam responder à heterogeneidade e fragmentação exigidas pelas atividades vividas frequentemente pelos indivíduos. Assim, espontaneidade, pragmatismo e ultrageneralização, entre outras, são características predominantes do modo de vida dos indivíduos nesse espaço, o que, sob relações capitalistas, determina em grau importante as possibilidades de desenvolvimento de relações alienadas. 344

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artigos

Se, por um lado, entretanto, o cotidiano é conformador de automatismos, de reações espontâneas e alienadas aos processos sociais pelos sujeitos, por outro lado, é nesse espaço que surgem os conflitos individuais expressadores do antagonismo entre as restrições impostas pelas relações sociais ao nível individual e as capacidades do gênero, sendo esse o substrato a partir do qual pode se desenvolver o indivíduo não-mais-particular (Heller, 2004; Lukács, 1981a). É importante enfatizar ainda, tendo como pressuposto o conceito de humanização com o qual trabalhamos, que cada indivíduo é sempre unidade vital de particularidade e genericidade, ainda que unidade muda, no caso da imensa maioria da humanidade, sob as relações sociais atualmente predominantes (Heller, 2004). Cada ser particular é necessária e simultaneamente expressão e constituidor do ser genérico do homem. Há diferenças, todavia, nesse “localizar-se” das personalidades no plano da genericidade, sendo que se deve ressaltar a existência de dois grandes planos possíveis: a genericidade em-si e a genericidade para-si. A diferença é “apenas” que a personalidade no plano da genericidade em-si (gattungsmässigkeit na sich) não pode se apresentar senão nos moldes de uma realidade operante praticamente para cumprir as próprias funções no processo de reprodução social, enquanto a genericidade para-si (gattungsmässigkeit für sich) é produzida pelo mesmo processo global somente como possibilidade. Mesmo se, e o havíamos sublinhado em outro contexto, como possibilidade no sentido da dynamis aristotélica, como algo que é real de maneira latente, até quando, o modo no qual, o grau no qual etc. tornará realidade (inclusive as diferenças de conteúdo, de direção etc.) reentram em um amplo campo de variáveis. (Lukács, 1981a, p.11)

No plano da genericidade para-si os sujeitos individuais poderiam estabelecer uma posição não mais de espectadores em relação ao “fluir” da sociedade, poderiam entender a própria vida como parte desse desenvolvimento do gênero humano intervindo conscientemente nessa rica processualidade, o que os afastaria de uma relação muda com a genericidade. Isso somente torna-se realizável como consequência da colocação histórico-social, como possibilidade do estabelecimento de certo âmbito de movimento no qual os indivíduos poderiam escolher seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas. Embora a genericidade para-si apresente-se apenas como possibilidade, dada a predominância restritiva das relações sociais hegemônicas, não significa que ela não possa se apresentar em movimentos embrionários, latentes, por meio de tentativas dos sujeitos para superarem suas alienações. A dinâmica espontaneísta e acrítica presente no cotidiano, cuja forma de pensamento predominante é o senso comum, conforma também um espaço bastante fecundo para o enraizamento e reprodução das ideologias. A forma característica do senso comum, com seus automatismos e tendências à utilização acrítica dos diferentes elementos discursivos e operatórios, faz com que o caráter lacunar do discurso ideológico encontre um ambiente mais favorável para se desenvolver (Heller, 2004). Assim, a ideologia poderá exercer o papel de “cimento social” estabilizador dos processos alienantes ao ousar explicar os conflitos existentes na práxis social com base em um discurso universalizante, homogeneizante, ocultador, mesmo, das determinações mais profundas dessas contradições. Essa afirmação traz à tona a discussão acerca das possibilidades concretas de superação dos processos alienantes e seus limites. Primeiramente, é sempre importante ressaltar que o fenômeno geral da contradição entre as capacidades humanas genéricas e suas repercussões ao nível dos sujeitos particulares apresenta-se sempre sob formas várias, ou seja, não existe, no plano concreto, “a” alienação, mas alienações (Mészáros, 2006). Significa dizer, também, que a consciência e, mesmo, a superação de uma forma de alienação não implica necessariamente a reprodução do mesmo processo em relação a outras formas, cabendo compreender primeiro essa diversidade de manifestações concretas em que a alienação, como processo geral, se apresenta. Além disso, cabe apreender os processos de alienação sempre a partir da perspectiva do ser social, ou seja, da perspectiva da práxis humana, e suas contradições como permeadas pela dialética sujeito-sociedade. Embora as diferentes formas de alienação tenham determinações histórico-sociais profundas, em certa medida, independentes da atuação do indivíduo particular, ela somente pode apresentar-se como obstáculo concreto no plano individual. E será no plano individual que esses obstáculos à realização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de uma vida mais plena de sentido serão vividos e significados inicialmente pelos sujeitos. Destarte, a processualidade da alienação será, também, a processualidade da possibilidade da luta cotidiana pela sua superação. Fosse a sociedade uma “totalidade inerte de alienação”, nada então se poderia fazer sobre ela. Nem poderia haver qualquer problema de alienação, ou conhecimento dela, pois se a consciência fosse a consciência dessa “totalidade inerte” ela seria parte da alienação. Em outras palavras: seria simplesmente a “consciência da totalidade inerte” – se pudesse haver tal coisa (rigorosamente falando: “a consciência da totalidade inerte” é uma contradição em termos) – e não a “consciência da totalidade inerte enquanto alienação”, isto é, não uma consciência que revela e que opõe – ainda que da forma mais abstrata – à natureza alienada dessa totalidade inerte. A alienação é um conceito inerentemente dinâmico: um conceito que necessariamente implica mudança. A atividade alienada não produz só a “consciência alienada”, mas também a “consciência de ser alienado”. Essa consciência da alienação, qualquer que seja a forma alienada que possa assumir – por exemplo, vendo a autoconfirmação como um “[estar] junto de si na não-razão enquanto não-razão” – não somente contradiz a idéia de uma totalidade alienada inerte, como também indica o aparecimento de uma necessidade de superação da alienação. As necessidades produzem poderes, tanto quanto os poderes produzem necessidades. (Mészáros, 2006, p.166)

O conceito de desumanização a partir da dialética humanização-alienação Posto que o desenvolvimento da humanidade historicamente tem “caminhado sobre os trilhos” da dialética humanização-alienação, faz-se importante ressaltar o caráter ao mesmo tempo contraditório e unitário dessa bipolaridade, ou seja, a humanidade não tem se desenvolvido ora com caráter humanizador, ora com caráter alienador. Os dois aspectos opostos encontram-se tensamente unificados, e a complexidade gerada por essa tensão se expressa na concretude de diversos processos particulares da sociabilidade. Assim, cabe colocar sob suspeição as várias análises alicerçadas na perspectiva do humanismo ou da humanização como características idealizadas, naturalizadas, a-históricas, pertencentes a um período em que os sujeitos estabeleciam relações harmônicas entre si. Tomemos, por exemplo, a crueldade: esta é humano-social, não bestial. Os animais não conhecem a crueldade. Quando o tigre, por exemplo, rasga e destroça um antílope, faz isso com a mesma necessidade genérico-biológica com a qual o antílope, mesmo “pacificamente”, “inocentemente”, pasta e então tritura plantas vivas. A crueldade e cada gênero de inumanidade, que estão presentes de modo socialmente objetivo ou mesmo como sentimentos subjetivos, nascem exclusivamente da execução de atos teleológicos, de alternativas condicionadas da sociedade, isto é, de objetivações e exteriorizações do homem que age na sociedade (o fato de que os homens julgam em si mesmos e nos outros, como oriundos da natureza, alguns modos da objetivação e exteriorização, particularmente persistentes, não muda as coisas quanto à situação ontológica). Reconhecer que se trata de fenômenos sociais que pertencem ao desenvolvimento da humanidade, não quer dizer naturalmente que sejam menos criticáveis no plano sócio-econômico. De fato, esses complexos fenomênicos, que necessariamente estão na gênese do gênero humano em-si, ao mesmo tempo constituem obstáculos que devem ser superados no desenvolvimento do ser-para-si. Somente uma visão ontológica correta das verdadeiras conexões objetivas revela qual é o campo real de manobra para a superação social desses complexos fenomênicos: se a crueldade tivesse que ser atribuída a nossa origem do reino animal, precisaríamos aceitá-la como um dado biológico, do mesmo modo que aceitamos a necessidade do nascimento e da morte no organismo. Enquanto é, ao contrário, conseqüência de posições teleológicas, ela pertence à longa série daqueles fenômenos do desenvolvimento da humanidade, que o ser põe socialmente – mas somente sob a forma de possibilidade – as vias e os métodos para serem superados. (Lukács, 1981b, p.32) 346

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GOMES, R.M.; SCHRAIBER, L.B.

Exemplo dessa forma de análise, a nosso ver, pode ser visto em Martins (2003).

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Posto isso, a ideia do “desumanizar-se” deverá ser melhor analisada, problematizada, sob risco de reprodução de teses advogadoras de um “humanismo” abstrato e universal, inerente à condição humana, e que estaria sendo “aviltado” nos tempos atuais4. Compreendemos que o guia da maioria das elaborações contemporâneas acerca dos diferentes fenômenos de desumanização são concepções/projetos ético-políticos que buscam analisar e transformar realidades (re)produtoras de sofrimento para indivíduos e coletividades. Porém, questionamos se, ao utilizarmos o termo desumanização de forma acrítica, não poderemos deixar de identificar/abordar elementos conformadores do caráter complexo e contraditório desses diferentes aspectos da totalidade social. Destarte, abordar esses fenômenos a partir da dialética humanização-alienação nos parece mais propiciador de apreensão de sua complexidade e movimento. Nunca humanização ou alienação, mas sempre humanização-alienação. Somente assim, unidos, indissociáveis, polares e contraditórios, podem expressar a riqueza e contraditoriedade do real sob as relações sociais hegemônicas.

A dialética humanização-alienação e as transformações do trabalho em saúde

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, elaborada por Rogério Miranda Gomes, sob orientação de Lilia Blima Schraiber. 5

Pensamos que o recurso a esse referencial teórico-epistemológico ­– a dialética humanização-alienação – pode se apresentar como um “guia operatório” bastante produtivo para a apreensão e compreensão de grande parte dos “conflitos” evidenciados atualmente no interior do trabalho em saúde e analisados sob a perspectiva da desumanização dos serviços e ações de saúde. Tal produtividade pôde ser evidenciada pelos autores desse artigo em estudo realizado a respeito das transformações contemporâneas do trabalho médico e em saúde, e suas implicações sobre a produção de práticas de saúde compreendidas como desumanizantes ou desumanizadoras5 (Gomes, 2010). A compreensão da conformação das práticas de saúde de forma desumanizada/ desumanizadora a partir dessa abordagem crítica nos obriga à apreensão dos vários movimentos e planos inter-relacionados a essa temática na forma de uma totalidade complexa. Dentre os vários aspectos influenciadores do encontro entre os sujeitos constituintes das práticas de saúde, cabe analisar, por exemplo, fenômenos relativos à rica e contraditória relação entre os planos da ciência e do trabalho, manifestada concretamente na relação dos profissionais de saúde com seus instrumentos de trabalho e suas determinações, e buscar apreender as crises e conflitos daí advindos. Se, por um lado, o desenvolvimento científico-tecnológico, é constituinte fundamental do processo de complexificação e enriquecimento do gênero humano, expressando a ampliação das capacidades humanas de apreensão e intervenção sobre a natureza e o mundo, portanto, fator de humanização, por outro lado, visto que as ciências não se constituem neutras em relação às relações sociais hegemônicas, mas determinadas por elas, o papel das diversas formas de ciências/tecnologias em aplicações concretas, como na área de saúde, pode se apresentar como reprodutor importante de dinâmicas reificantes e alienantes. Vejase, por exemplo, o movimento de medicalização social e, consequentemente, de naturalização do processo saúde-doença reproduzido contemporaneamente pelas diversas disciplinas das ciências biomédicas, e suas implicações na ocultação da determinação social das diversas formas de sofrimento, não obstante suas preciosas contribuições para intervenção sobre a dimensão biológica do corpo e do fenômeno da vida. Veja-se, também, a predominância do complexo médico-industrial como COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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determinante fundamental da relação entre os agentes e as apresentações tecnológicas no interior do trabalho em saúde, e suas implicações para a perda da centralidade dos sujeitos e a progressiva reificação dos instrumentos. Cabe, também, analisar como as determinações das condições de saúde-doença dos diferentes indivíduos e coletividades, e suas formas de abordagem sócio-historicamente determinadas, contribuem para conformar contextos concretos mais ou menos humanizadores, mais ou menos “aproximadores” dos indivíduos em relação ao grau de desenvolvimento do gênero. Vejam-se, nesse caso, as diferenças de condições de vida das diferentes coletividades expressando-se em diferentes “perfis de sofrimento”, assim como em diferentes possibilidades de acesso a serviços de saúde, manifestações, no campo da saúde, dos diferentes graus de “abismos” entre indivíduos/coletividades e o gênero. Faz-se necessário, igualmente, buscar apreender as relações entre os processos de constituição e consolidação das instituições e organizações da assistência à saúde e suas implicações sobre o agir autodeterminado dos sujeitos constituintes das práticas de saúde. Embora o grau de autonomia técnica no trabalho em saúde seja bastante superior ao de outras formas de trabalho, faz-se necessário não perder de vista o caráter crescentemente constritor e instrumentalizante dos sujeitos expresso em arranjos organizacionais e tecnológicos contemporâneos. Desde a consolidação de formas várias de heterocontrole de caráter gerencial, até a instrumentalização progressiva do agir através da utilização acrítica cada vez mais comum de protocolos e rotinas, o trabalho em saúde tem se transformado em fonte de subordinação dos sujeitos a dinâmicas e estruturas sobre as quais tendem a exercer cada vez menos controle (Schraiber, 2008; Merhy, 1997). Entretanto, tendo por referência o caráter reflexivo intrínseco do trabalho em saúde, em razão da natureza de seu objeto e do consequente grau de incerteza que contém – aspectos constituidores de uma dinâmica criadora permanente que configura cenários para o desenvolvimento potencial de movimentos contra-alienadores –, deve-se sempre enfatizar o devir permanentemente tensionado da alienação no interior dessa forma particular de práxis, algo que caracterizaríamos como o permanente ser e não-ser da alienação no interior do trabalho em saúde. Com efeito, faz-se fundamental não perder de vista esse caráter contraditório apresentado pelos processos de trabalho e pelas práticas de saúde na contemporaneidade, nos quais se apresentam, contraditoriamente unidos, aspectos, simultaneamente, de humanização e de alienação na relação entre os sujeitos e destes com o mundo. Deve-se ressaltar que, embora o objetivo desse manuscrito se restrinja à descrição do arcabouço teórico-conceitual da dialética humanização-alienação e sua importância para análise dos processos de humanização/desumanização das práticas de saúde, as asserções acima listadas e vários de seus desdobramentos, aqui não explicitados, representam, de fato, sínteses dos resultados de investigações realizadas pelos autores tendo como objeto as transformações do trabalho médico e em saúde, utilizandose, para isso, da vertente da pesquisa qualitativa. É, sobretudo, por meio dessas investigações de processos concretos de trabalho que esse arcabouço teórico-epistemológico demonstra-se bastante rico e profícuo na apreensão dos movimentos e dinâmicas sociais que os sujeitos (re)produzem e às quais, contraditoriamente, encontram-se subordinados. Pensamos, assim, que o olhar sobre o encontro entre trabalhadores e usuários dos serviços de saúde que pretenda a apreensão das raízes mais profundas dos processos compreendidos contemporaneamente como desumanizantes deve, necessariamente, envolver a análise desses movimentos e seus desdobramentos. Procedendo-se à integração do conjunto de determinações que constituem as transformações do trabalho médico e em saúde, e suas implicações sobre as relações estabelecidas entre seus sujeitos integrantes, em um quadro conceitual estruturado pela dialética humanização-alienação, podem-se analisar as dinâmicas que contribuem e/ou que, ao contrário, obstruem um devir propiciador de vidas mais plenas de sentido para os indivíduos e coletividades, sendo que esse deve ser, a nosso ver, o objetivo último dos movimentos que se proponham humanizadores das práticas de saúde.

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GOMES, R.M.; SCHRAIBER, L.B.

artigos

Colaboradores Rogério Miranda Gomes trabalhou na concepção, pesquisa bibliográfica e redação final do texto. Lilia Blima Schraiber trabalhou na revisão crítica e redação final do texto.

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GOMES, R.M.; SCHRAIBER, L.B. La dialéctica humanización-enajenación como un recurso para la comprensión crítica de la deshumanización de las prácticas de salud: algunos elementos conceptuales. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.339-50, abr./ jun. 2011. Tomando como punto de partida las transformaciones contemporáneas que ha experimentado la medicina y en salud, y sus implicaciones en las relaciones entre sus sujetos constituyentes, hemos buscado demostrar que la integración de esos elementos en un marco conceptual estructurado por la dialéctica humanización-enajenación puede contribuir para comprender las raíces de la mayoría de los conflictos y de las crisis de la actualidad, analizadas corrientemente desde la perspectiva de la deshumanización de los servicios y prácticas de salud. El uso de esa perspectiva teórica resulta bastante productivo en el análisis de las dinámicas que contribuyen o, por el contrario, dificultan el devenir de una vida más llena de sentido para los individuos y colectivos, y esto debe ser, a nuestro juicio, el objetivo final de los movimientos que buscan humanizar las prácticas de salud.

Palabras clave: Humanización de las prácticas de salud. Trabajo de salud. Trabajo médico. Deshumanización. Enajenación. Recebido em 24/05/2010. Aprovado em 10/01/2011.

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A gestão do processo de trabalho da enfermagem em uma enfermaria pediátrica de média e alta complexidade: uma discussão sobre cogestão e humanização *

Camila Aloísio Alves1 Suely Ferreira Deslandes2 Rosa Maria de Araújo Mitre3

alves, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. The management of nursing work in a pediatric ward of medium and high complexity: a discussion about co-management and humanization. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.351-61, abr./jun. 2011.

The article analyzes the daily management of the nursing work at a pediatric ward of medium and high complexity in light of the principles and guidelines of the National Humanization Policy. It uses participant observation, based on the ethnographic perspective, focusing on the daily work and on the relations between teams, users and companions. The study was conducted at the pediatric ward of a reference institute for the care of Women’s, Children’s and Adolescent’s Health. The observation period was three months and the results point to a hierarchical and centralized management of work processes. This management model caused a breakdown of the teams, despondency to work, physical and mental exhaustion, which prevented the structuring of working partnerships. It follows that investment is needed in proposing a model of co-management so that new forms of management of work processes can be built, focusing on interdisciplinary exchanges and creativity.

Keywords: Pediatric nursing. Work Process. Co-management. Humanization.

O artigo analisa o cotidiano da gestão do trabalho de enfermagem numa enfermaria pediátrica de média e alta complexidade à luz dos princípios e diretrizes da Política Nacional de Humanização. Utiliza a observação participante, apoiada na perspectiva etnográfica, com foco no cotidiano de trabalho, as relações entre as equipes, usuários e acompanhantes. O local de estudo foi a enfermaria de Pediatria de um instituto de referência no cuidado da mulher, criança e adolescente. O período de observação foi de três meses e os resultados apontam para uma gestão dos processos de trabalho hierárquica e centralizadora. Esse modelo de gestão gerou desagregação das equipes, desmobilização para o trabalho, desgastes físicos e mentais, impossibilitando a estruturação de parcerias de trabalho. Conclui-se que é preciso investir na proposição de um modelo de cogestão para que novas formas de gestão dos processos de trabalho sejam construídas, privilegiando as trocas interdisciplinares e a criatividade.

Palavras-chave: Enfermagem pediátrica. Processo de trabalho. Cogestão. Humanização.

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Elaborado com base em Alves (2007); pesquisa submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira. 1 Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP/ FASE). Rua das Palmeiras, 93/603. Botafogo, RJ, Brasil. 22.270-070. camilaalves@iff.fiocruz.br 2,3 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. *

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A gestão do processo de trabalho da enfermagem...

Introdução O processo de trabalho em saúde refere-se a uma atividade de produção dinâmica, relacional e que incorpora diferentes tipos de tecnologias (condutas terapêuticas, instrumentos e ferramentas) e se realiza, essencialmente, pela intervenção criativa do trabalhador, sendo considerado um trabalho vivo em ato (Merhy, 2007). Entre os diversos agentes atuantes no processo de trabalho em saúde, a enfermagem destaca-se por ser uma categoria profissional que assume atividades como: o cuidado, monitoramento, práticas educativas e administração de serviços de saúde. A trajetória dessa categoria possui uma história marcada pela influência religiosa, distinção do gênero feminino e relação com a medicina enquanto estruturação de um campo de conhecimentos científicos (Lima, 2005; Moreira, 1999). A mudança do perfil da profissão foi influenciada pela Escola Nightingale de Treinamento para Enfermeiras, e baseou-se na perspectiva científica, que incorporou, ao seu processo de trabalho, a gestão das unidades assistenciais e passou a adotar um modelo verticalizado, formal e legitimado pela concepção taylorista-fordista (Lima, 2005; Moreira, 1999). A enfermagem é fortemente caracterizada pelo trabalho em equipe e assume, na modernidade, um papel voltado para o cuidado e centrado na racionalização das ações e pautado pela biomedicina (Moreira, 1999). Foi incorporada a tal processo de trabalho a gestão do cotidiano das unidades assistenciais, com ênfase na divisão do trabalho, com detalhamento das tarefas prescritas segundo: manuais de procedimentos, rotinas, normas, escalas diárias de distribuição de tarefas. Esses fatores implicam uma organização interna das equipes e estruturam tanto as relações entre os demais profissionais que convivem em uma enfermaria quanto a gestão do próprio serviço (Matos, Pires, 2006). No âmbito da enfermagem pediátrica, percebe-se que havia, na atribuição do exercício profissional, a incumbência de estabelecer o elo entre criança e familiares, e, na substituição destes, atuar de forma “maternal” (Ayres apud Oliveira, 1998). A incorporação da família e/ou o acompanhante no universo da internação trouxe uma ampliação do foco da atenção e convocou as equipes a estruturarem um novo arranjo teórico e prático (Collet, Rocha, 2004). Sendo assim, torna-se importante se debruçar sobre a gestão do processo de trabalho da enfermagem, pois, nesse cenário, estão inscritas as relações entre equipe de saúde, pacientes e familiares, cenários de possibilidades e obstáculos para um cuidado integral e acolhedor. Nesse sentido, o presente artigo busca analisar o cotidiano da gestão do trabalho de enfermagem numa enfermaria pediátrica de média e alta complexidade, à luz de princípios e diretrizes da Política Nacional de Humanização. Assim, as bases que sustentam este estudo centram-se na interface entre reflexões teóricas da humanização para a gestão participativa dos processos de trabalho e da cogestão (Campos, 2007; Brasil, 2003).

Metodologia Este artigo é parte de uma dissertação de mestrado acadêmico que teve como objeto de estudo as relações entre a equipe de enfermagem, os usuários e seus acompanhantes numa enfermaria de Pediatria de média e alta complexidade. Foi escolhida, como abordagem qualitativa, a perspectiva etnográfica, originária da antropologia, que leva em consideração as múltiplas dimensões simbólicas e materiais do ser humano em sociedade e procura definir, a partir da observação de campo, como os traços sociais e culturais característicos de um grupo manifestam-se no exercício do cotidiano (Laplantine, 2003; Creswell, 1997). A pesquisa de campo é o que dá corpo à etnografia, é a própria fonte de pesquisa, onde torna-se possível o encontro com o outro, lugar no qual o pesquisador aprende a compreender suas formas de sociabilidade e lógicas culturais (Laplantine, 2003). O campo escolhido foi a Unidade Pediátrica de Internação (UPI) de uma instituição de referência em saúde da mulher, criança e adolescente, localizada no Município do Rio de Janeiro. Esta unidade, 352

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alves, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A.

artigos

com 22 leitos, foi escolhida por atender pacientes entre zero a 18 anos de idade, com quadros de média e alta complexidade, em sua maioria doenças crônicas ou neurológicas, e que necessitam de cuidados especiais e contínuos. Os sujeitos da pesquisa foram os profissionais que compunham a equipe de enfermagem (enfermeiros e técnicos de enfermagem), num total de 34, sendo 11 enfermeiros e 23 técnicos de enfermagem. Como principal técnica, utilizou-se a observação participante (Peirano, 1995), durante os três meses de trabalho de campo (maio a agosto de 2008), privilegiando: os diversos plantões, ao longo da semana e nos finais de semana, encontros entre a equipe de enfermagem para se conhecerem as discussões coletivas dos profissionais. Foi elaborado um roteiro de observação que abarcou as rotinas desenvolvidas no serviço, e o diário de campo foi o instrumento para o registro das observações, informações, conversas e experiências vividas ao longo do trabalho. Como processo da análise da pesquisa, o diário de campo passou por uma primeira leitura flutuante, seguida do agrupamento e análise a partir da categoria teórica - gestão do processo de trabalho da equipe de enfermagem - e suas variáveis: tempo, pessoas, conhecimento/informação e materiais (Campos, 2007; Brasil, 2003). O processo interpretativo teve, como baliza, o confronto com o quadro teórico.

Resultados A equipe de enfermagem pode ser caracterizada como um grupo que procurava articular, na medida da disponibilidade do coletivo, as quatro atividades precípuas do processo de trabalho: assistência, gerência, educação e pesquisa (Spagnol, 2005). Entretanto, foi possível observar que as influências das tradições da administração clássica sobre a gestão do processo de trabalho - divisão do trabalho entre técnicos e enfermeiros por escalas, prescrição e distribuição de tarefas segundo rotinas e normas - deixaram marcas nas atividades e nas relações entre a equipe, demais profissionais, usuários e acompanhantes. Durante o período de observação, o ambiente da enfermaria esteve com a totalidade dos leitos ocupados e caracterizou-se como sendo dividido em boxes com dois ou três leitos em cada e as respectivas cadeiras para os acompanhantes. Em alguns boxes, foram encontrados aparelhos de televisão, DVD e sons, trazidos pelos responsáveis, o que implicava a produção de diferentes fontes de barulho e ruído, além do som emitido pelos equipamentos, que incomodavam a enfermagem. Como exemplos, seguem fragmentos do diário de campo. “Aqui é sempre muito confuso, são muitas demandas e não tem tranqüilidade... Já reparou que em muitos boxes têm DVDs diferentes tocando várias músicas, além dos aparelhos que apitam?!” (enfermeira A em 09/06/08)

O ambiente de trabalho hospitalar com atendimento a pacientes graves é um local de constante dinamismo das relações, onde estão em jogo disputas de poder e saber de conhecimentos sedimentados no domínio da técnica e na ocupação do espaço. “A organização desses espaços e a acumulação de suas contradições também podem significar sofrimento para o profissional, levando-o a sentir-se em guerra” (Deslandes, 2002, p. 60). No que diz respeito à gestão do tempo em relação às atividades a serem desempenhadas, o período da manhã iniciava com as rotinas da enfermagem e, logo, a enfermaria estava tomada por diversos profissionais com suas tarefas. O excesso de atividades concentradas pela manhã, somadas ao round dos médicos, deixava muitas crianças cansadas ao final do período, gerando, para a enfermagem, o trabalho de restabilizá-las. O diálogo abaixo, ocorrido no posto de enfermagem, não só aponta para as condições que tornavam o trabalho conturbado durante o turno da manhã, mas, além disso, expõe a nãocorrespondência entre a expectativa das condições ideais de trabalho e a realidade dos serviços. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“Isso aqui está parecendo o Vietnã! Que Vietnã!?! Isso aqui está pior, parece o Afeganistão, a faixa de Gaza... Já deixou de ser o Vietnã há muito tempo...” (enfermeira B e técnica de Enfermagem B em 18/07/08)

Em contraposição, o período da tarde, em geral, mostrava-se mais calmo. Permaneciam, na enfermaria, apenas a equipe de enfermagem, poucos médicos plantonistas e a equipe de um programa interdisciplinar, que utiliza o brincar como estratégia de intervenção na hospitalização infantil. A observação da rotina durante um sábado revelou que: o setor encontrava-se com poucos profissionais, a enfermaria passava por uma faxina no piso, alguns acompanhantes retornavam para suas casas, permanecendo poucos profissionais de enfermagem e os plantonistas médicos. A tranquilidade experimentada aos finais de semana, promovida pela redução do número de atores e fontes de problemas, permitia exercer uma gestão do processo de trabalho menos conflituoso, o que não se verificou ao longo da rotina semanal, quando o cenário se mostrava oposto. Com relação à gestão de pessoas da enfermagem, ressalta-se que, durante o estudo, a equipe encontrava-se reduzida em todos os plantões, pois contava com dois enfermeiros diaristas e cinco plantonistas (entre enfermeiros e técnicos). No final de semana, esse quantitativo diminuía, ficando apenas cinco plantonistas. A carga horária do plantão era de 12X60 horas. Segundo a Resolução 293/2004 do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN, 2004), a composição mínima de uma equipe voltada para cuidados intermediários é de 33 a 37% de enfermeiros (mínimo de seis), além dos demais profissionais, como Auxiliares e/ ou Técnicos de Enfermagem. Sendo assim, havia uma defasagem entre o cumprimento do parâmetro e a composição das equipes observadas no estudo, implicando a concentração das decisões sobre o cuidado nas mãos de poucos, acarretando automatismo, rotinas e padronizações diante do aumento e complexidade da demanda (Pitta, 2003). “Diante de casos muito graves internados na enfermaria, uma enfermeira relatou que precisa resolver muitas coisas importantes ao mesmo tempo, enquanto os técnicos executam outras atividades e nem sempre há uma continuidade nas atividades e nas discussões dos casos”. (diário de campo – 21/07/08)

Como resultado do acúmulo de atividades, da redução do quantitativo de trabalhadores e da falta de tempo, observou-se uma supremacia da rotina em detrimento da relação com os usuários, dificultando a construção de vínculos entre a enfermagem, pacientes e familiares (Beck et al., 2007). “Uma residente de enfermagem relatou que os outros setores alcançam um “grau maior de organização” por se caracterizarem como serviços fechados, como são as unidades intermediárias e de terapia intensiva”. (diário de campo – 02/07/08)

Para essa profissional, estes setores exigem da equipe outra conformação do trabalho multidisciplinar, mais integrado diante da gravidade dos casos, que se apresentam no limiar entre a vida e a morte. Como não foi incluída a observação de outros setores do hospital, não foi possível chegar a essa conclusão sobre o campo de estudo. Contudo, o relato da residente serviu como reflexão sobre a forma como os profissionais compreendem o seu processo de trabalho. Inclusive, uma informante relatou que alguns profissionais já haviam solicitado transferência para outro setor, alegando melhores condições de trabalho. Melhorias nas condições de trabalho implicam também fortalecer a gestão do conhecimento/ informação por meio da articulação, do diálogo e da integração entre as equipes. Entretanto, o caso abaixo aponta para a diminuta capacidade de se estabelecerem pontes de diálogo entre as equipes no coletivo observado: 354

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“A enfermeira, durante o procedimento, observou que a fisioterapeuta estava aguardando para iniciar suas atividades com a criança. Ao perceber a presença constante da fisioterapeuta, a enfermeira sentiu-se pressionada a realizar mais rapidamente seu serviço para ceder horário à fisioterapeuta. Como o paciente não havia ainda se alimentado, o que para sua condição implicava perda de nutrientes importantes, a enfermeira precisou solicitar à fisioterapeuta que atendesse outra criança para que pudesse continuar conduzindo os cuidados ao paciente e ministrar sua alimentação”. (diário de campo – 09/06/08)

Como recursos para o debate de casos, existiam reuniões interdisciplinares entre a chefia da enfermagem e a equipe médica. Contudo, a efetividade desse recurso, para a equipe de enfermagem, mostrou-se baixa, pois, na prática, a discussão sobre a mudança ou permanência de uma dada conduta era restrita aos pequenos grupos, divididos por categorias profissionais, que expressavam a clássica dicotomia medicina-enfermagem. Além disso, como descrito exaustivamente por Foucault (2007), a ordenação hierárquica entre profissionais é, historicamente, centrada na figura do médico, e a força desse código incorporado à organização do trabalho no hospital hierarquiza as relações e estrutura as vias possíveis de diálogo. Para a concepção nightingaleana, a delimitação entre a medicina e a enfermagem está marcada pelas diferentes funções, pois o médico dispara o processo do cuidado, diagnosticando e prescrevendo, e o enfermeiro passa a decidir sobre questões relacionadas à gestão do setor e do cuidado, delegando também, aos demais membros da sua equipe, a execução das outras tarefas do cuidado (Spagnol, 2006). Essa característica da organização do trabalho aponta para a manutenção das relações hierárquicas entre as categorias e no interior das mesmas. No caso da enfermagem, formada por profissionais de nível superior e técnico, esta hierarquia se apresenta de forma ambígua. Existem diferenças na valorização das tarefas de trabalho, onde o enfermeiro ocupa um lugar já autorizado para participar das discussões com os demais profissionais em detrimento dos técnicos, ou, por vezes, realiza tarefas consideradas “mais nobres”. Ou seja, a rigidez da gestão clássica e hierárquica demarca espaços e lugares que permitem ou não, aos sujeitos, exercerem e participarem de determinadas funções e que sejam valorizados pelas mesmas. Revisando a literatura, Spagnol (2002) encontrou resultados que apontam para uma comunicação organizacional no âmbito hospitalar ainda excessivamente formalizada e vertical, predominando a impessoalidade nas relações, o que evidencia o estilo clássico de gestão que segue sendo adotado na enfermagem. As influências do modelo de gestão exercido pela enfermagem representam a marca da lógica do controle, que racionaliza a organização do trabalho, determina aos trabalhadores a maneira de se executarem as tarefas, centralizando as ações no gerente (Ferraz apud Spagnol, 2005). Contudo, diante de casos graves com elevado grau de complexidade no cuidado, a rigidez imposta por um modelo hierárquico repercute em problemas na condução do trabalho, já que o mesmo demanda um atendimento transversal pautado pelo diálogo para tomada de decisões. Em uma situação observada no campo, a equipe médica alterou a conduta e a enfermeira chefe, que desempenhava um papel hierárquico entre a categoria e era interlocutora com a equipe médica, foi a porta-voz da decisão para a enfermagem. A enfermeira responsável pelo plantão colocou-se contra a conduta médica, pois o caso envolvia questões éticas importantes. “Havia uma criança que fazia um quadro de apnéia provocado pelo sistema nervoso central, no qual não poderia utilizar manobras respiratórias. A própria criança voltava a respirar espontaneamente. Contudo, a cada parada respiratória da criança a equipe de enfermagem se alarmava com medo da criança vir a falecer, precisando também acolher a mãe que ficava muito nervosa”. (diário de campo – 27/06/08)

Para uma parcela da equipe, não utilizar os equipamentos e recursos do serviço, apoiando apenas a mãe, representava ausência do agir técnico, gerando angústia e conflito. No entanto, não foi considerado que acolher a mãe poderia ter sido encarado como uma tarefa significativa que envolveria a utilização de técnicas específicas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Diante do impasse entre a conduta médica e a experiência da enfermagem na linha de frente do cuidado, um abismo foi estabelecido perante a ausência de construção compartilhada do conhecimento. Contudo, foi possível observar que a experiência adquirida ao longo dos anos de trabalho na enfermaria promoveu um movimento analítico para o coletivo estudado, de onde falas, ideias inovadoras e sugestões construtivas foram explicitadas. Contudo, as mesmas encontravam limitações em suas capacidades de expressão diante dos lugares institucionalmente construídos e engessados. “Para uma enfermeira, as equipes deveriam instituir um round interdisciplinar a ser realizado duas vezes na semana, passando caso a caso, melhorando a relação entre os profissionais e melhor atendendo os pacientes”. (diário de campo – 21/07/08)

Em um universo onde o conflito da decisão técnica é permeado pela ausência de espaços de diálogo, o cuidado passa a estar parcelado em pequenos núcleos de saber que não interagem. “Durante a passagem de um catéter intravenoso profundo, procedimento invasivo e feito na sala de procedimentos, a criança estava extremamente assustada e com muito medo. A enfermagem conduziu o processo, mas em nenhum momento foi explicado para a paciente, que já tinha 12 anos, o motivo do procedimento. Quando foi preciso fazer um ajuste do cateter, a paciente novamente ficou amedrontada”. (diário de campo – 27/06/08 e 02/07/08)

Diante dessa situação, foi perguntado se haviam conversado com a criança. Foi respondido afirmativamente, mas apenas no momento de ajuste do cateter, e não quando o colocaram. Relataram que é comum se prescreverem procedimentos sem uma conversa prévia com o paciente e com o acompanhante, gerando o distanciamento entre os diferentes sujeitos. Ao acompanhar a residente de enfermagem durante uma visita aos boxes, outra situação evidenciou a reduzida comunicação e troca de experiências entre os profissionais. “Uma das mães visitada estava muito aflita, pois sua filha não estava conseguindo se alimentar e estava muito congestionada. Indignada, ela dizia que já tinha feito o mesmo relato para a fisioterapeuta e que os médicos não foram comunicados. Queixou-se de ter que fazer também para a enfermagem e não encontrar resolutividade. Indagou se não era possível que houvesse uma integração entre os profissionais para que os problemas fossem prontamente resolvidos, diminuindo o desgaste de todos”. (diário de campo – 21/07/08)

Com relação aos acompanhantes, os problemas evidenciados incidiram sobre o cuidado dos pacientes. As mães mais antigas na instituição aprenderam a realizar certos procedimentos com seus filhos e fiscalizar o trabalho da enfermagem, julgando se estão “certos ou errados”. Ao mesmo tempo, foi destacado, por uma enfermeira, que, com a equipe reduzida, tornou-se comum a enfermagem preocupar-se menos com aqueles pacientes que têm suas mães treinadas. O banho de muitas crianças foi dado pelas mães sem a supervisão de técnicos, que se voltavam para os cuidados de crianças mais graves ou que estavam há pouco tempo no hospital. Ao exercer o papel de cuidado da criança, a mãe tem sua função permeada de sentidos do universo da enfermagem, ao passo que a enfermagem fica, nesses casos, em um lugar não demarcado por limites claros na prestação de cuidados aos pacientes. Essa situação confusa e ambígua gerava conflitos e desencontros de saberes e informação. Dever-se-ia considerar que nem todos os dias essas mães estão dispostas a realizarem atividades que não são necessariamente suas. Como exemplo da premente necessidade de se discutir o cuidado na relação entre enfermagem e acompanhante, segue abaixo um trecho do diário de campo, registrado logo no início da pesquisa: “Após a passagem de plantão, quando uma série de instruções e normas foram repassadas para a equipe, a enfermeira destacou que as maiores dificuldades vivenciadas pela equipe concentram-se nas relações e não no manejo técnico”. (diário de campo – 27/05/08) 356

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Finalizando, a gestão de materiais na enfermaria, tarefa dominada pela enfermagem, não mostrou problemas no abastecimento de insumos e na oferta dos mesmos aos acompanhantes e usuários. Contudo, para toda a equipe, a disposição física das caixas e dos materiais incomodava, pois estavam alocados de forma aparente e amontoada. Foi relatado que haveria uma obra que melhoraria as condições de armazenamento dos materiais.

Discussão: gestão do trabalho e a proposição de um novo modelo de gestão do cuidado Os resultados das análises frente ao empírico trouxeram reflexões importantes para a compreensão da gestão do processo de trabalho da enfermagem por meio dos seus desafios e pontos críticos. Diante de uma gestão hierarquizada, com equipes apresentando graus de desagregação e desmobilização para o trabalho, cabe refletir sobre outra perspectiva voltada para o modelo de gestão do cuidado para o coletivo analisado. Contudo, para que seja possível refletir sobre essa outra perspectiva de gestão do cuidado, primeiramente, faz-se necessário trazer, à discussão, a compreensão do trabalho em saúde para autores contemporâneos (Merhy et al., 2007). O trabalho é considerado vivo, pois seu objeto não é totalmente estruturado e suas ações se configuram em processos de intervenção em ato, operando através das relações. As tecnologias que são utilizadas podem ser consideradas “leve, leve-dura e dura”, compreendendo que a primeira relaciona-se às produções de vínculo, acolhimento, autonomia e gestão; a segunda refere-se aos saberes estruturados nas diversas especialidades, e a última, considera as tecnologias aplicadas ao campo (Merhy et al., 2007). Por conjugar diferentes perspectivas tecnológicas em contextos dinâmicos de relação entre sujeitos/atores e objetos de intervenção, o trabalho em saúde também pode ser compreendido como um conjunto de atividades que se desenvolvem simultaneamente, exercidas por trabalhadores de diferentes áreas, com formações saberes e experiências distintas. “A atividade do trabalho, portanto, é submetida a uma regulação que se efetiva na cooperação entre os trabalhadores e os usuários, numa dinâmica que atravessa diferentes pontos de vista” (Brasil, 2009, p.12). Assim, no contexto do trabalho em saúde, compreende-se que a enfermagem assume a função de um veículo para a materialização do cuidado, podendo tornar os encontros com o outro, momentos potenciais que contribuem para a melhoria do quadro de saúde dos indivíduos. A administração da assistência pela enfermagem implica desenvolver habilidades técnico-científicas e de liderança para gerir o trabalho, a equipe e assistir aos pacientes (Spagnol, 2002). Entretanto, a gestão do processo de trabalho da enfermagem na enfermaria mostrou-se permeada pelos distanciamentos entre as especialidades, pela falta de um modelo de gestão que organize esse coletivo, de forma que o mesmo alcance um processo de gestão compartilhada. A organização dos serviços não privilegia que sejam compartilhados objetivos de gestão em comum, o que também não garante que as práticas se complementem ou que haja solidariedade na assistência. Em última instância, isso tem acarretado falta de motivação dos profissionais e de incentivo ao envolvimento dos usuários (Brasil, 2007). O modelo clássico de gestão trouxe contribuições à organização do trabalho da enfermagem, porém, diante das transformações no âmbito hospitalar, tem produzido efeitos negativos que apontam para uma necessidade de superação, considerando o acolhimento. A tecnologia dura, presente nos processos de trabalho, ainda é o eixo central do modelo de gestão, assentado nas bases dos protocolos, normas e rotinas (Spagnol, 2006). As variabilidades, prescrições, normatizações e imprevistos presentes no processo de trabalho são elementos que desestabilizam as regras e normatizações, impelindo os trabalhadores à criação de estratégias para efetivarem e concretizarem os resultados a serem alcançados. Contudo, o potencial criativo nesses contextos pode estar interditado pelo controle e hierarquização dos trabalhadores, que também não permite que sejam compartilhadas as saídas que cada sujeito, que compõe uma equipe, encontra para gerir seu cotidiano de trabalho. Nesse sentido, a PNH aponta que é inerente, ao processo de trabalho, a gestão do cotidiano que, por sua vez, não pode ser exercida sem o potencial criativo inseparável da experimentação constante COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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de maneiras diferentes de trabalhar (Brasil, 2009). No exercício de uma nova gestão, propõe-se inverter a lógica da supervalorização do controle e da hierarquia, para instituir práticas como: a análise do processo de trabalho, diálogo e participação junto com usuários e demais profissionais (Spagnol, 2005). É preciso discutir a proposição de novas vias para a reconfiguração do trabalho da enfermagem e a articulação entre as equipes. Como contribuições, a PNH (Brasil, 2009, 2007) propõe a gestão participativa e a promoção de comunidades ampliadas de pesquisa como possibilidades instrumentais na construção de novas vias para o trabalho. Assim, o modelo de gestão proposto pelas bases da humanização pode ser compreendido como centrado no trabalho em equipe e na construção de colegiados voltados para a tomada de decisões pactuadas, o que pode auxiliar na construção de um fazer mais democrático. No processo de trabalho em saúde, as ações de fazer e aprender estão indissociadas, o que faz com os próprios trabalhadores possam ser reconhecidos como produtores de conhecimento. Assim, além do exercício de uma gestão colegiada e participativa, podem-se construir espaços ampliados de pesquisa, com a participação dos diferentes atores, que têm como propósito produzir um processo contínuo de construção e desconstrução de saberes, valores e de avaliação das formas de funcionamento coletivo que podem estar causando adoecimento ou promovendo a saúde (Brasil, 2009). Nos processos de gestão da enfermagem, não se pode negar a interface, quase que constante, entre os processos produtivos e a busca de condições que garantam a continuidade e a concretização do cuidado (Rossi, Lima, 2005). Nesse sentido, a utilização das tecnologias leves na gestão do trabalho pode privilegiar a reorientação do modelo, mediante a valorização do outro nas diferentes relações, procurando abertura ao diálogo com os diferentes pares e construindo vias que respondam de forma mais acolhedora às demandas de usuários e trabalhadores (Merhy et al., 2007). O desafio do coletivo analisado é recompor distintos desejos e interesses dos grupos, expressos por interméido de iniciativas isoladas, de forma que se construa outra sociabilidade, mais democrática e solidária, que dialogue por meio de um projeto de humanização do grupo. Diante dessa perspectiva, a função histórica da enfermagem, orientada pela centralidade médica, é convocada a se ressignificar na linha de cuidado, exigindo a produção de novas formas de fazer no cotidiano de trabalho. Da alienação à gestão democrática, o caminho é composto por informações acessíveis, abertura de espaços de diálogo e da estruturação de relações mais horizontais entre os sujeitos. É preciso trabalhar sobre o distanciamento entre os trabalhadores, que produz grupos apartados da possibilidade de produzir e alcançar resultados que tenham impacto sobre a gestão e a assistência. O rompimento incide sobre a prática da comunicação entre chefias que, em geral, produz decisões unilaterais, que não representam o coletivo (Campos, 2007). Como linhas de intervenção voltadas para a mudança do quadro, estão: o estímulo à edificação de um novo conceito de trabalho que abarque o significado do mesmo enquanto função social e inserção do indivíduo na sociedade; abertura aos diferentes instrumentais de trabalho; implementação de mecanismos de gestão participativa (colegiados); produção de valores de uso que serão compartilhados pelos sujeitos que compõem o coletivo; apoio à recomposição dos postos de trabalho; abertura de espaços de diálogo e aprendizado coletivo, e incentivo à multiplicação desse processo, repercutindo institucionalmente na inovação da gestão (Merhy, 2007; Campos, 2007). Dessa forma, o desenvolvimento de ações que ampliem os potenciais criativos dos trabalhadores mediante a compreensão, análise e avaliação coletiva do processo de trabalho, além de gerar inovações na gestão, pode ser o motor da promoção da saúde entre os profissionais (Brasil, 2009). Não existem receitas previamente elaboradas, as saídas se constroem e se planejam entre os atores, pois estão em jogo diferentes interesses, graus de investimento e de desejo (Merhy, 2007). Expostos nas linhas de intervenção pautadas na cogestão e na humanização estão os diferentes planos e regiões de expressão da subjetividade e do fazer humano, em que o trabalho tem papel integrante e fundamental.

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Conclusão A gestão do processo de trabalho da equipe de enfermagem na enfermaria pode ser caracterizada como hierarquizada, controlada pela cúpula da gestão e voltada exclusivamente para o paciente, enquanto objeto de intervenção, sobre o qual incidem todas as práticas existentes na instituição. O impacto desse modelo de gerir o processo de trabalho resultou, para as equipes, em: desagregação, desmobilização para o trabalho, desgastes físicos e mentais, dificultando a estruturação de parcerias de trabalho. Já na relação com os pacientes e acompanhantes, os resultados mostraram que a hegemonia da rotina, expressa pelos procedimentos e tarefas, implicou rigidez e automatismos nas relações, gerando dificuldades para se construirem vínculos. Contudo, existe potência para se alterarem as situações que geram desgastes, polarizações do cuidado e dicotomias do conhecimento, como observado por meio das sugestões e reflexões críticas a respeito do processo de trabalho. A capacidade de união desse coletivo em prol de um objetivo construído de forma compartilhada, o cuidado pediátrico de média e alta complexidade, esteve latente e pode encontrar vias de expressão não só em situações extraordinárias, como, também, no cotidiano ordinário, aproveitando as iniciativas individuais que podem tornar-se projetos apoiados pelo coletivo. Ainda que existam obstáculos a serem ultrapassados, os profissionais mostraram-se abertos à busca de saídas criativas para as dificuldades na gestão do trabalho, para a proposição de um projeto de cuidado integrado com os demais profissionais e para a manutenção de vínculo, acolhimento e diálogo com pacientes e acompanhantes. A gestão do processo de trabalho da enfermagem e a materialização dos princípios da humanização são temas de estudo que estão intimamente relacionados no coletivo analisado. Ou seja, como veículo pelo qual as pessoas se relacionam, o processo de trabalho mostrou-se um fio condutor para a proposição de um projeto de humanização, tanto por evidenciar os pontos de conflito quanto por se mostrar passível de transformação. A aposta na gestão corresponsável do processo de trabalho mostra-se como um caminho possível para demandas antigas, pois pode ampliar a participação dos trabalhadores nas decisões assistenciais, diminuir os distanciamentos entre as especialidades, estruturar linhas de cuidado que integrem e responsabilizem os profissionais, possibilitando, ao conjunto de atores, reconstruir o fazer na enfermaria.

Colaboradores Camila Aloísio Alves foi responsável pela pesquisa de campo, análise e redação do artigo. Suely Ferreira Deslandes e Rosa Maria de Araújo Mitre orientaram o projeto e a elaboração do artigo.

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alves, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A.

alves, C.A.; DESLANDES, S.F.; MITRE, R.M.A. Gestión del trabajo en una sala de enfermaría pediatría de alta y media complejidad: una discusión sobre co-gestión y humanización. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.351-61, abr./jun. 2011. El artículo analiza la gestión de la enfermería de pediatría de mediana y alta complejidad a la luz de los principios y directrices de la Política Nacional de Humanización. Utiliza la observación participante, apoyada en la perspectiva etnográfica, centrándose en el trabajo cotidiano, relaciones entre equipos, usuarios y acompañantes. El estudio se realizó en la enfermaría de pediatría de una institución de referencia en el cuidado de las mujeres, niños y adolescentes. El período de observación fue de tres meses y los resultados apuntan a la gestión de los procesos de trabajo jerárquico y centralizado. Este modelo de gestión ocasionó desglose de los equipos, desmovilización de trabajo, desgaste físico y mental, imposibilitando de la estructuración de asociaciones de trabajo. De ello se deduce que la inversión es necesaria para proponer un modelo de co-manejo de nuevas formas de gestión de los procesos de trabajo, centrándose en intercambios interdisciplinarios y la creatividad.

Palabras clave: Enfermería pediátrica. Proceso de trabajo. Cogestión. Humanización. Recebido em 05/04/2010. Aprovado em 14/10/2010.

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artigos

Conflitos morais e atenção à saúde em Aids: aportes conceituais para uma ética discursiva do cuidado

Luzia Aparecida Oliveira1 José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres2 Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli3

OLIVEIRA, L.A.; AYRES, J.R.C.M; ZOBOLI, E.L.C.P. Moral conflicts and AIDS healthcare: conceptual contributions to a discourse ethics of care. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.363-75, abr./jun. 2011.

This paper presents a theoretical underpinning of a discourse ethics of care, as used in a study that examined the moral conflicts in assisting people living with HIV/Aids. Based on deliberative Bioethics, it defines moral conflict as a conflict of duties. It used discourse ethics and the propositions of care assuming that health work is highly relational and communicational. It concludes that discourse ethics of care recognizes rationality in decisions that involve moral issues in everyday care. The search for conflict resolution, in this perspective, suggests a dialectical process in which the reasons for the arguments are considered. The action of evidencing different arguments, including those that are contradictory, but defensible, enables prudent decision making.

Keywords: Health work. Aids. Bioethics. Care. Discourse ethics.

Este artigo apresenta aspectos teóricos que sustentam uma ética do Cuidado de base discursiva, como utilizado em estudo que examinou os conflitos morais na assistência às pessoas vivendo com HIV/Aids. Com base na Bioética deliberativa, define conflito moral como um conflito de deveres. Foram utilizadas a ética do Discurso e as proposições do Cuidado, assumindo que o trabalho em saúde é eminentemente relacional e comunicacional. Conclui que a ética do Cuidado de base discursiva reconhece a racionalidade nas decisões que envolvem aspectos morais no cotidiano da assistência. A busca de solução dos conflitos, sob essa perspectiva, sugere um processo dialético em que as razões para os argumentos são consideradas. Evidenciar argumentos diversos, incluindo aqueles que são contraditórios, mas defensáveis, possibilita a tomada de decisões prudentes.

Palavras-chave: Trabalho em saúde. Aids. Bioética. Cuidado. Ética do discurso.

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Programa Municipal de DST/AIDS, Serviço Ambulatorial Especializado em DST/ Aids – Santana, Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Rua Dr. Luis Lustosa da Silva, 339, Mandaqui. São Paulo, SP, Brasil. 02.406-040. luzia.ao@usp.br 2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP). 3 Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo. 1

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A resposta brasileira à epidemia de Aids e a questão do conflito moral No início da década de 1990, o Banco Mundial previa que cerca de 1,2 milhão de brasileiros estariam infectados pelo HIV no ano 2000. Após pouco mais de duas décadas, as taxas de mortalidade por Aids caíram em média 50%, houve um aumento da sobrevida das pessoas vivendo com HIV em, pelo menos, cinco vezes, e a prevalência da infecção na população na faixa etária de 15 a 49 anos permanece estável (Grangeiro et al., 2009). Estimativas oficiais indicam a existência de seiscentas mil pessoas vivendo com HIV no País, o que significa uma prevalência de 0,6% na população adulta (Brasil, 2010). O sucesso do programa brasileiro de controle da Aids, dentre outros fatores, pode ser atribuído à reforma sanitária, culminando com a consolidação do SUS (Sistema Único de Saúde) e, sem dúvida, como resultado da grande mobilização de pessoas que, direta ou indiretamente, viviam o contexto da nova epidemia e seus desafios. Foi uma tendência marcante no Brasil, como em muitos outros países, a militância do movimento social no sentido de buscar respostas positivas à Aids nas políticas e ações de saúde. Esse movimento demandou não apenas o controle da epidemia, mas a atenção a uma diversidade de demandas de cuidado, o que contribuiu, de forma muito ativa, para a construção do êxito da atual política nacional. Se, por um lado, são grandes os avanços alcançados do ponto de vista do controle da epidemia em nosso meio, são ainda inúmeros os desafios no campo da assistência à saúde, desde a carência de recursos tecnológicos para o seguimento adequado dos casos nas diversas regiões do país, até questões que envolvem relações entre profissionais e pacientes. As características da transmissão da doença (transmissão sexual, uso de drogas injetáveis); a estigmatização e preconceitos de que se revestem socialmente os “julgamentos” sobre as pessoas afetadas; a incidência, cada vez maior, entre grupos que vivem em situações caracterizadas pelas diversas formas de violência estrutural – devido a pobreza, racismo, hierarquias de gênero, opressão sexual e exclusão social (Parker, 2002) –; tudo isso faz com que o agir técnico dos profissionais, no cotidiano da atenção à saúde das pessoas vivendo com HIV/Aids, esbarre em conflitos de diferentes ordens, dentre os quais os conflitos de ordem moral. As ações dos profissionais no manejo de caso necessitam incorporar, aos projetos terapêuticos, aspectos que podemos nomear como da “vida privada” dos pacientes, nos quais são identificadas relações e contextos de vida desses, que se relacionam a sistema de normas socialmente validadas, princípios e valores. Quando os profissionais se deparam com situações envolvendo valores e normas sociais conflitantes, são evidenciadas dificuldades de se produzirem respostas apoiadas exclusivamente em protocolos ou de se lançar mão de qualquer outro recurso apriorístico que oriente a ação. Isso porque, como nos alerta Freitag (1997), conflitos morais estão presentes nas situações em que, diante da necessidade de se realizar uma intervenção que implicará a negação de interesse reconhecido como legítimo, a “melhor” decisão não pode ser encontrada por nenhum procedimento a priori. Um exemplo emblemático, no caso da Aids, é o difícil tema da comunicação do diagnóstico para parcerias sexuais de pacientes infectados pelo HIV (Silva, Ayres, 2009), que envolve questões relativas ao respeito à autonomia e dignidade dos pacientes que integram o plano normativo no qual são apoiados os deveres dos trabalhadores e das ações em saúde. Partir das questões da moral e seus conflitos, no contexto de atenção às pessoas vivendo com HIV/Aids, tem como pretensão evidenciar a face valorativa e normativa que envolve o trabalho em saúde, assumindo que não se tratam de questões de ordem idiossincrática4, mas afetas a racionalidades práticas não presididas por uma lógica apodídica (Gracia, 2005). 364

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Estamos nos referindo ao sentido etiológico para o termo idiossincrasia: o conjunto de elementos cuja combinação constitui o temperamento e o caráter individuais; uma particularidade psicológica saliente num indivíduo (Lalande: A e B, 1999).

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Com efeito, o trabalho em saúde exige dos sujeitos mais do que competências técnicas. Frequentemente, é necessário lançar mão de uma sabedoria prática capaz de orientar as ações de modo prudente, combinando excelência técnica com correção ética. O presente artigo, de corte teórico-epistemológico, parte de um estudo qualitativo sobre conflitos morais vividos por profissionais de saúde na atenção às pessoas vivendo com HIV/Aids, realizado entre 2008 e 2009 em serviços de saúde da rede pública especializada na cidade de São Paulo (Oliveira, 2009). Partindo dos aportes da Bioética, como abordado por Gracia, da ética discursiva em Habermas e da teoria do Cuidado em saúde, como em Ayres, tem como objetivo discutir a compreensão e manejo dos conflitos de valores e deveres vividos por profissionais na atenção às pessoas que vivem com HIV/Aids.

Conflito moral e a bioética deliberativa: aportes para o manejo de conflitos na atenção à saúde Em estudo voltado à identificação dos fundamentos que nortearam a tomada de decisões dos profissionais de saúde, quando da emergência de problemas éticos, Zoboli (2003) destaca o potencial do registro de fatos ligados à conduta moral nas relações estabelecidas no exercício da assistência como estratégia que possibilita relacionar problemas éticos ao universo de significados, motivações, aspirações, crenças e valores dos profissionais. Esse tipo de abordagem, que denominou de uma “ética descritiva”, não se engaja diretamente em questões do tipo: “o que deve ser feito” ou “qual o uso apropriado dos termos éticos”, mas indaga “como as pessoas pensam que deveriam agir nessa situação particular, que é objeto de preocupação normativa?” ou “que fatos são relevantes para a ética normativa?”. Ou ainda: “como as pessoas realmente se comportam nessa circunstância particular que traz problemas éticos?”. Sob essa perspectiva, o desafio passa a ser compreender as origens dos diferentes valores que permeiam as situações de atenção à saúde e as suas implicações para as práticas. Nesses termos, e para fins deste ensaio, recorremos à bioética como uma disciplina que condensa a ideia de uma ética aplicada, na medida em que propõe reflexões acerca de valores humanos relacionados ao “fazer” em saúde. Essa disciplina inclui ponderações sobre os avanços tecnológicos, suas possibilidades de interferência na vida de pessoas e do planeta, oferecendo recursos metodológicos e procedimentais que possibilitam uma análise multifacetada para o manejo de conflitos, quando estes envolvem valores humanos, as ciências e técnicas aplicadas à vida. Para tal finalidade, e dentre outras correntes dessa disciplina, recorremos às proposições de Gracia (2009, 2005, 2001). A bioética, como tratada por esse autor, pode ser compreendida como uma bioética deliberativa, apoiando-se na deliberação, na hermenêutica, na responsabilidade e na prudência. Utiliza-se de três categorias analíticas inter-relacionadas: fatos, valores e deveres. Para Gracia, a experiência moral é ponto de partida da explicação e constitui-se como um fato nos termos fenomenológicos. A experiência moral é a experiência da obrigação que configura o fato, o fato moral de onde partem as explicações (as teorias éticas). A experiência moral se expressa no fato de que todo ser humano faz juízos dessa ordem, sente que há coisas que deve fazer e outras que não deve fazer, e pede contas a si próprio e aos demais do que vai fazer e do que fez. O agir moral, nesses termos, envolve três faculdades da inteligência humana: cognitiva (fatos); emocional (valores); volitiva (deveres). Diante dos fatos, o momento valorativo reclama o volitivo, isto é, o fato interpela o sujeito quanto ao reconhecimento de valores e demanda sua disposição para realizá-los em ações práticas (Zoboli, 2010). Por essa razão, pode o autor definir o conflito moral como um conflito de deveres. Devemos realizar valores, nosso único dever ético é realizar valores, afirma Gracia (2009); nesse sentido, o conflito se coloca quando há uma situação em que realizar um determinado valor pode implicar abrir mão de outro valor, o que não seria desejável. Para dar conta desse desafio, Gracia (2009) propõe um método a ser aplicado para a deliberação moral. O referido método tem como pretensão ser instrumento facilitador para encontrar, em suas palavras, termos médios, ou ótimos, para as decisões sobre os “que fazer?”, realizando o máximo possível dos valores envolvidos ou lesando-os o menos possível. Essas são, por definição, as decisões prudentes. Fazendo a transposição dessa reflexão filosófica para as deliberações no espaço da clínica, Gracia (2001) parte do pressuposto de que a clínica e a ética compartilham de um mesmo método de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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inspiração aristotélica. Assume, para as deliberações no campo da ética, assim como da clínica, a busca por decisões prudentes. Nesse sentido, são necessárias ponderações sobre consequências diante de determinadas decisões: […] El proceso de deliberación exige la escucha atenta (la angustia no deja por lo general escuchar al otro, precisamente porque se tiene miedo de lo que puede decir), el esfuerzo por comprender la situación objeto de estudio, el análisis de los valores implicados, la argumentación racional sobre os cursos de acción posibles y los cursos óptimos, la aclaración del marco legal, el consejo no directivo y la ayuda aun en el caso de que la opción elegida por quien tiene el derecho y el deber de tomarla no coincida con la que el profesional considera correcta, o la derivación a otro profesional en caso contrario. (Gracia, 2001, p.4)

Por ser um procedimento fundamental da ética, a deliberação tem de ocorrer sempre que os valores, individual ou coletivamente, estiverem em conflito ou sob ameaça. Delibera-se para se tomarem decisões. Estas são sempre concretas; não podem ser tomadas no abstrato, mas hão de levar em conta as circunstâncias do ato e suas consequências previsíveis. É impossível, para a mente humana, esgotar a realidade; assim, os juízos de uma deliberação serão razoáveis, e não completamente racionais. Eles nunca terão caráter apodítico, pois ocupam papel importante, não só a razão, mas sentimentos, valores, crenças e afetos. Por isso, as decisões da deliberação são prudentes. Prudência não é um ponto, mas um espaço dentro do qual podemos nos mover para realizarmos os valores, dando conta de nossos deveres éticos. As decisões éticas equivalem a decisões concretas tomadas depois de cuidadosa deliberação (Zoboli, 2010). A deliberação é uma forma de conhecimento, já que, durante seu transcurso, os envolvidos na situação de conflito põem-se em um contínuo processo, pacífico e não coercitivo, de avaliação e mudança, muitas vezes, dos próprios pontos de vista (Gracia, 2009). Para Gracia (2001), a deliberação é um método, um procedimento que permite deliberar sobre os fatos, os valores e os deveres, dimensões que compõem as situações de conflito moral. É possível estabelecer passos para esse processo, visando a uma análise crítica das situações: apresentação do caso; discussão dos aspectos médicos (fatos); identificação dos problemas morais, partindo do reconhecimento dos valores envolvidos; escolha do problema moral a discutir; identificação de cursos possíveis para a ação; deliberação do curso ótimo; decisão final; avaliação da decisão final, com argumentos a favor e contra; exame da decisão sob as possibilidades de sua defesa pública, considerando os argumentos favoráveis e contrários; avaliação de sua legalidade, ou, ainda, sua concordância ou coerência com planos normativos mais gerais. Além de método, o itinerário proposto por Gracia (2001) é uma pedagogia, pois, nas situações de conflito, o compromisso é alcançado quando cada parte modifica sua interpretação do marco comum. Assim, a deliberação apresenta-se como alternativa quanto ao doutrinamento intolerante e à neutralidade tolerante a tudo. Há uma pluralidade de valores, e a homogeneidade nesse âmbito da vida humana é impossível e indesejável, tanto quanto admitir tudo como moralmente válido ou justificável. O processo deliberativo pode se dar nos âmbitos: pessoal, institucional e global. É um caminho para definir os deveres pessoais e coletivos na condução de nossa vida prática e, mais precisamente, da moralidade privada e pública, incluindo-se o trabalho na saúde (Zoboli, 2010). Todos os humanos fazem juízos morais; sentem que há coisas que devem fazer e outras que não devem fazer, pedindo contas a si próprios e aos demais do que vão fazer ou do que fizeram. A experiência moral é universal, imperativa e justificatória, sendo sujeito moral quem experimenta essas três notas em si mesmo (Pose, Gracia, 2006). Na experiência moral, há um encadeamento de fatos, valores e deveres. A fundamentação chega ao nível dos fatos, mas a argumentação é feita no âmbito dos valores. São estes que obrigam moralmente, e não os fatos, embora esses sejam suporte dos primeiros. A decisão ética não vem dada, precisa ser construída nessas três dimensões, por meio da deliberação. A razão constrói os conteúdos concretos da vida moral, ou seja, define o que é “bom” ou “mal”, que valores realizar e como, na

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artigos

“realidade do mundo”. Os conteúdos da moral são uma construção constante sobre o “apreendido da realidade”, daí seu caráter dinâmico, de superação constante (Zoboli, 2010). Profissionais de saúde como sujeitos morais apoiam suas ações em códigos éticos válidos socialmente. Tecem opiniões, reproduzem avaliações acerca de “modos de vida”, construindo, na prática, ações que podem ser tomadas como técnica moral dependente, conforme nomeado por Schraiber (2008, 1997, 1995) ao investigar o trabalho do médico na contemporaneidade. Isto é, nas ações que articulam os processos de trabalho, em que pese operarem-se técnicas aparentemente bem definidas por meio de critérios clínicos protocolados, cada profissional procede a julgamentos que levam em conta a situação particular, o que denota uma dada autonomia a esse trabalho e sua articulação entre a produção de respostas às necessidades sociais. Se, por um lado, o julgamento dos profissionais, quando um ato é também inspirado pela moralidade naquele sentido que vínhamos discutindo, por outro, como trabalho social, deve responder a determinadas necessidades de interesse social ou coletivo, como, por exemplo, as que dizem respeito ao controle epidemiológico da Aids. Esse dever (como expressão, também, de valor), no cotidiano dos serviços, quando no manejo do caso particular, pode implicar romper com critérios, como, por exemplo, de confidencialidade, ou ainda, negação da autonomia de decisões do paciente acerca de como este pensa em conduzir seu tratamento e suas relações pessoais. A dupla missão do profissional, entre o controle clínico do caso e potenciais riscos de transmissão da doença, esbarra em questões que envolvem valores e interesses individuais dos pacientes e valores e interesses que podem, genericamente, ser tomados como da ordem do âmbito público. Como a deliberação se dá no nível pessoal, além do institucional, e ainda que a proposta metodológica de Gracia (2001) tenha sido inicialmente pensada como um método para comitês de ética e bioética em hospitais, ela possibilita orientar, em um âmbito mais privado, a análise e discussão de situações de conflito moral, ampliando sua compreensão para além das duas possibilidades extremas de cursos de ação a que remetem – por exemplo, no caso da Aids, antes citado, a alternativa entre respeitar os valores do indivíduo ou valores da ordem coletiva. O método, em sua forma de operacionalização, traz como exigência esforços de problematização de diferentes cursos para uma mesma situação. Evitando-se os cursos extremos implicados, buscam-se construções que ampliem essa perspectiva para cursos intermediários, espectro no qual pode estar a via ótima de ação. Desse modo, espera-se abrir o leque de possibilidades para a tomada de decisões que há entre as centradas nos polos extremos. A instrumentalidade do método está de fato pensada para subsidiar as decisões no espaço da clínica, o que pode parecer uma estratégia unilateral reforçando, sobretudo, o poder do médico para fazer valer sua conduta. Ora, os médicos, como outros profissionais de saúde, só conseguem colocar suas decisões em prática para o cuidado ou qualquer outra ação que envolve a vida de outrem se este estiver de acordo. Por isso que, na maior parte das vezes em que é necessário, por exemplo, discussão ou debate sobre casos por equipe de saúde, há um esforço de compreensão da discordância ou da impossibilidade do paciente em seguir uma determinada indicação ou prescrição. Nesse sentido, a presença do paciente é representada, por assim dizer, em sua “resistência” às considerações sobre seus interesses e objeções às indicações do serviço, ponto a partir do qual costuma ser considerado. Na perspectiva do método de deliberação, as assimetrias da relação “médico–paciente” precisam ser desconstruídas, partindo-se do pressuposto da interdependência desses dois sujeitos, para que, de fato, possa haver decisões com potenciais que resultem em ações concretas para o caso. Qualquer projeto assistencial, para ser bem-sucedido, dependerá da capacidade de se estabelecerem consensos entre equipes e entre essas e seus pacientes, apostando em relações que tendam à simetria. Falamos de “tendência à simetria”, pois essa é uma ideia reguladora; uma simetria perfeita não será jamais alcançada na clínica, a não ser à custa de transformações radicais, em como está estruturada como processo social e como trabalho (Mendes Gonçalves, 1994). É isso mesmo que nos leva a sustentar que algum tipo de deliberação no contexto da clínica é possível e necessário: a clínica, em suas características estruturantes como processo de trabalho, reclama idealmente essa simetria, ao passo que tende a negá-la na sua operação concreta como técnica, reclamando, portanto, constante vigilância e respostas na perspectiva moral (Gracia, 2009; Schraiber, 2008, 1997). 367


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A deliberação como proposta da bioética que toma como pressuposto do humano sua condição ética de “interlocutor válido” leva-nos, por seu lado, a outro campo teórico com que guarda uma rica interface, qual seja, a ética discursiva. Se, nos estudos de Gracia (2009, 2005, 2001) sobre a deliberação, encontramos uma via para a identificação de conflitos morais e subsídios para o processo de tomada de decisões éticas prudentes, é ainda necessário adensar a compreensão acerca de como é possível, pela via da argumentação racional e considerando todos os sujeitos envolvidos, chegar a consensos racionalmente justificados. Como compatibilizar finalidades do trabalho em saúde, com dadas racionalidades e responsabilidades sociais, a projetos de vida e de saúde das pessoas acompanhadas? Quais seriam as bases que possibilitariam acordos em situações de conflitos? Na busca de referenciais para essa discussão, encontramos, nas proposições da Teoria do Agir Comunicativo e da racionalidade baseada na pragmática linguística de Jürgen Habermas (2003), indicações que possibilitam a coordenação de planos de ação partilhados intersubjetivamente nas interações mediadas pela linguagem.

A ética do discurso: indicações dos sentidos expressivos de conflitos morais Partindo da premissa de que somos sujeitos éticos, Habermas (1999) denomina de morais todas as intuições que nos informam acerca das melhores formas de nos comportarmos diante da consideração da “extrema vulnerabilidade dos indivíduos. [...] é possível entender a moral como um dispositivo de proteção que compensa essa vulnerabilidade estruturalmente instalada em formas de vida socioculturais” (Habermas, 1999, p.18). Nessa perspectiva, os códigos morais das sociedades estão moldados a essa suscetibilidade humana e se movimentam em torno de princípios relativos à igualdade de tratamento, à solidariedade e ao bem-estar geral. Nesse caso, os códigos morais têm de cumprir uma dupla missão. A primeira se refere à intangibilidade dos indivíduos, na medida em que reclamam igual respeito pela dignidade de cada um que protegem; a segunda se refere igualmente às relações intersubjetivas, através das quais se preservam os indivíduos como membros de uma comunidade. A essas duas missões, complementares, correspondem os princípios da justiça e da solidariedade, os quais reportam às condições de simetria, às expectativas de reciprocidade da ação comunicativa (Habermas, 1999). A ética discursiva em Habermas (1999, 1989), baseada na Teoria da Ação Comunicativa (Habermas, 2003), abre caminho para uma concepção de moral em que esse fenômeno é expresso no agir comunicativo que se move entre normas válidas intersubjetivamente, que são suporte para as ações dos sujeitos. Normas válidas pressupõem pretensões de validade acordadas e reconhecidas pelos atores a elas submetidas. Essas regras podem ser resgatadas discursivamente caso isso se faça necessário. O agir comunicativo é justamente a ideia reguladora que possibilita o acordo entre sujeitos comunicativamente competentes, expressando um reconhecimento intersubjetivo com base em pretensões de validez de regras ou normas para condutas. Para Habermas, a validade de um discurso, conforme suas pretensões, tem de responder a três critérios fundamentais de racionalidade: de verdade proposicional (pretensões relativas a juízos sobre o mundo objetivo), correção normativa (relativas a juízos sobre o mundo social) e autenticidade expressiva (relativas ao mundo subjetivo). Para que tradições culturais do mundo da vida possam ser interpretadas, resultando em orientações racionais para a ação, será necessário que essas possam colocar, à disposição dos agentes, ou dos sujeitos em diálogo, os conceitos formais de mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo, permitindo pretensões de validade nesses diferentes planos. Só, então, será possível gerar manifestações simbólicas a um nível formal argumentativo que permitam julgamentos objetivos das razões para as escolhas ou posicionamentos (Habermas, 2003). Quando proferimentos passam a ser problematizados ou questionados por integrantes de uma comunidade, seus participantes terão de abandonar as certezas preestabelecidas e ingressar em um processo de construção argumentativa da validade em questão.

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No escopo da discussão acerca da racionalidade da ação a partir de teorias sociológicas, Habermas nos apresenta quatro conceitos sociológicos de ação: teleológica (utilizado, primeiramente, na economia política e por Neumann e Morgenstern, com a teoria de jogos estratégicos); normativa (da sociologia de Durkheim e Parson); dramaturga (em Goffmann) e a ação comunicativa (em Mead e Garfinkel).

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artigos

O principio moral, nesses termos, reside em tomar a comunicação entre os sujeitos como uma práxis de reconhecimento mútuo, de descentração e partilhamento da compreensão acerca do bom e do justo. Desse modo, o jogo de linguagem moral interligaria proferimentos acerca de juízos sobre como devemos (ou podemos ou não podemos) nos comportar e reações de concordância ou rejeição acerca de determinadas normas ou regras. A linguagem moral também expressa razões pelas quais as partes conflitantes podem justificar posturas de aceitação ou rejeição (Habermas, 2004). Voltando ao “caso” da epidemia de Aids, pode-se assumir, segundo o quadro exposto, que o modo peculiar como foram construídos, nesse campo, os acordos sobre o que seria bom e justo produziu também sua forma de enfrentamento. Apoiado em princípios de igualdade no plano dos direitos, na intangibilidade dos indivíduos e no respeito à sua dignidade, o movimento organizado das pessoas direta e indiretamente atingidas pela epidemia lançou mão do discurso dos direitos humanos e do direito à saúde, para reclamar responsabilidades sociais diante de uma doença que afetava a todos como membros de uma mesma sociedade. As exigências colocadas na construção das respostas sociais à Aids para contextos assistenciais da saúde destacaram, então, o valor humano nas relações estabelecidas entre os sujeitos desses contextos (usuários e profissionais) e a necessária ênfase em ações comunicativas como capazes de propiciar o reconhecimento e consideração dos valores intrínsecos aos participantes, no processo de tomada de decisões acerca de questões que afetam a orientação das práticas de saúde. O principio moral, sob essa perspectiva, reside em tomar a comunicação entre os sujeitos como uma práxis de reconhecimento mútuo, de descentração e partilhamento da compreensão acerca do bom e do justo. As ações teleológicas5, ou estratégicas, conforme nos é apresentado na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas (2003), referem-se às ações em que os atores realizam fins ou produzem estados de coisas desejáveis, elegendo, em uma dada situação, os meios mais congruentes e aplicando-os de maneira adequada. Nesse caso, as decisões estão orientadas para a realização de um propósito, dirigido por máximas e apoiado em uma interpretação da situação. Podemos considerar as Diretrizes do Programa Nacional de DST e Aids como o “discurso interpretativo” que indica as máximas nas quais as ações dos profissionais são, do ponto de vista institucional, primeiramente apoiadas. A ação teleológica converte-se, por assim dizer, em ação estratégica quando, para o êxito dessa ação, o agente intervém na expectativa das decisões de, pelo menos, um outro agente que também atua com vistas à realização de seus propósitos. No âmbito das intervenções dos profissionais da saúde, essas estão apoiadas em saberes científicos e saberes operantes das técnicas baseadas nas ciências (Schraiber et al.,1996; Mendes-Gonçalves, 1994, 1992). Dessa forma, a ação terá determinadas finalidades bem definidas, impondo, aos agentes profissionais, responsabilidades no que tange a responder às demandas sociais de sua prática, em tese, que se organizam em torno da defesa da vida e restabelecimento da saúde - princípios esses inspirados em uma certa tradição (hipocrática), segundo a qual a ação médica sempre visa à beneficência, ou seja, está voltada ao bem do paciente. Contudo, se tomarmos o princípio habermasiano da necessidade de partilhar entendimentos sobre o que seja “o bom e o justo” entre todos os sujeitos envolvidos nas situações assistenciais (profissionais e usuários) e, especialmente, nas situações em que não haja consensos, estaremos obrigados a abrir mão de nossas certezas, colocando-as em regime de validação, a partir, agora, da consideração do ponto de vista dos usuários ou de suas possíveis argumentações. 369


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Será sobre as possibilidades desse reconhecimento mútuo nas práticas assistenciais, com vista à produção de projetos terapêuticos afinados aos projetos de vida e saúde das pessoas assistidas, que chegaremos às proposições do Cuidado, tal como tratado em Ayres (2009). Importa ressaltar que esse recorte, sem desconhecer outras possibilidades de abordagem do tema “cuidado” no campo da Bioética, da Filosofia, de modo geral, e, mesmo, na saúde, consiste em um construto específico da Saúde Coletiva, inscrevendo-se na perspectiva dos estudos do Processo de Trabalho em Saúde (Ayres, 2002; Peduzzi, 1998; Schraiber et al., 1996; Mendes Gonçalves, 1994, 1992; Schraiber, 1993) na saúde coletiva. Essa proposição toma o trabalho em saúde como trabalho social, expressando, em suas ações, duas dimensões: ação produtiva, dentro de dada racionalidade dirigida a fins determinados socialmente, isto é, como ação teleológica, e como ação comunicativa somente realizada da interação entre sujeitos em diante. Partir da dimensão eminentemente relacional das práticas em saúde tem significado pensando-a em uma perspectiva emancipatória, mas também em seu caráter pragmático, com potenciais tecnológicos para as práticas, o que, nas palavras de Ayres, implica: [...] um lado, um alargamento de sentido do que se entende por tecnologia, destacando não apenas seu caráter de produtor de bens, mas também a inseparável dimensão de produção de mundos, de construção de significados compartilháveis que se dá na e pela construção de objetos, produtos e instrumentos de trabalho. (Ayres, 2002, p.153)

Cuidado como práxis de reconhecimento mútuo Uma práxis de reconhecimento mútuo como estratégia privilegiada para o fazer em saúde está expressa nas proposições do conceito de Cuidado tal como proposto por Ayres (2009). Baseadas na perspectiva hermenêutico-fenomenológica, as análises dos conflitos morais nas práticas de saúde abrem-se a considerações sobre as estruturas ontológicas do ser, como ser-no-mundo, o ser que compreende todas as possibilidades da existência humana tanto quanto suas relações com outros. Vale registrar que, em uma perspectiva habermasiana, esse ser-no-mundo será tomado, sempre, a partir de como os sujeitos constroem mutuamente suas identidades e as de seu mundo por meio de ações comunicativas, isto é, no mundo da vida (Habermas, 2003), lugar privilegiado dos valores e normas e onde a linguagem é orientada, fundamentalmente, para o entendimento, para o compartilhamento cotidiano da vida (Oliveira, 1999). Nesses termos, e dirigindo nosso olhar para como são construídas as relações entre profissionais e usuários em serviços de saúde, encontramos uma possibilidade de reconhecimento mútuo e interação dos sujeitos presentes no espaço assistencial, para além de orientações apoiadas numa lógica de “queixa-conduta”. A dialógica do cuidado aponta para o reconhecimento de quem é assistido como um ser-no-mundo, e sua presença como tal deve ser reconhecida em como suas questões de saúde estão em relação com seus projetos de vida e de felicidade (Ayres, 2009). Desse modo, qualifica-se o lugar dos diferentes “deveres” e seus conflitos nas práticas de saúde. Ao se considerarem os projetos de vida e de felicidade das pessoas assistidas nos serviços de saúde, as percepções de necessidades e demandas tornam-se enriquecidas, situadas em sua significação mais singular. Vale lançar mão de mais um recurso analítico que nos é apresentado na reflexão sobre o cuidado nas práticas de saúde. Trata-se das noções do que o autor chamou de êxito técnico e de sucesso prático, como dimensões das práticas em saúde. A ideia de êxito técnico está ligada aos elementos que interferem na saúde e que podem ser conceituados e tomados como objetos passíveis de intervenções controladas, campo privilegiado das ciências nomológicas e da teleologia da técnica. Já a ideia de sucesso prático nos remete para o caráter ético e político das práticas de saúde, tomada como práxis, isto é, como exercício de escolhas, nesse caso, escolhas compartilhadas de modos de vida: é disso que tratam os sentidos que se quer atribuir ao sucesso prático para as práticas de saúde na dimensão do Cuidado. Não é nossa intenção, neste espaço, trazer resultados do estudo empírico relacionado à presente construção teórica, porém, apenas a título de exemplo, ousamos apresentar um excerto de relato de 370

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campo que exemplifica a ideia explanada. O exemplo destaca a insatisfação de uma usuária que, apesar de permanecer com boa saúde, dado o sucesso de seu tratamento (êxito técnico) que a mantinha com imunidade preservada, demonstrava insatisfação, devido às mudanças ocorridas em seu corpo, atribuídas ao uso contínuo das medicações: “[...] Lipodistrofia. A primeira vez que eu soube da lipodistrofia aqui, foi uma paciente minha que chorou muito, [...]. Ela dizia que estava feia, não sei o que; e eu falei: “Mas o importante é que o quê? Você está viva, aqui, criando seu filho; você tinha tanto medo de morrer, antes de criar seu filho... Você está com saúde agora, você está com o CD 4 alto, com carga viral indetectável, você está super bem, você vai viver muitos anos aí pela frente, vai ver seu filho criado. O que é mais importante: a sua aparência ou a sua saúde!? [...]”. (médica infectologista)

6 Esse neologismo, de caráter conceitual, deriva da filosofia de Habermas (1990), que lança mão da expressão sempre que busca referir-se a “valores quase transcendentais”, isto é, a ideias éticas e moralmente norteadoras, de aspirações universais, mas construídas a partir da percepção do valor para a vida humana de determinadas ideias ou práticas a partir do momento, e na exata medida, em que essas são obstaculizadas, negadas por alguma experiência concreta. Isto é, elas são percebidas justamente porque foram negadas e, ao serem, mostram-se fundamentais.

Quando, nesse exemplo, a usuária apresenta, como motivo para sua insatisfação, questões para além do controle da doença, está exigindo um reconhecimento de sua presença como sujeito, valorizando outros aspectos da vida a serem considerados. Recolocou, a seu modo, outros sentidos que considerava importante para o “bem-estar”. Retornemos, assim, à discussão acerca do Cuidado e acrescentemos a ela a importante noção de que é o projeto de felicidade que expressa o sentido existencial que deve orientar as ações de saúde, fazendo dialogar produtivamente seus polos técnico e prático, caracterizando-se como um valor contrafático6. Quando nos movemos em direção ao cuidar, estamos fazendo um movimento de valorização da experiência vivida, experiência esta não restrita a qualquer “estado de completo bem-estar ou de uma perfeita normalidade morfofuncional”. O valor que se quer aqui realizar não está predefinido, não pode estar. Como vimos, com Gracia e Habermas, guardadas as especificidades de seus quadros teóricos e objetos de origem, o valor assumido pelas ações/razões para um efetivo Cuidar só se define como tal a partir dos fatos – e dos deveres em que estes se transformam no encontro entre profissional e usuário. Uma “ética” para o fazer profissional com base no Cuidado, como aqui apresentado, quer salientar o sentido de responsabilidade para com a pessoa de quem se cuida. Nesse caso, embora o cumprimento do dever técnico represente um ponto de vista ético desejável, não é, certamente, suficiente. De fato, pretende-se que a presença do “quem”, alvo da intervenção, não se limite apenas a um “estar-ali-para-ser-tratado”. Para além dos critérios clínicos e epidemiológicos, o Cuidado reclama a presença autêntica de cada sujeito (o cuidador não apenas como um “aplicador de técnicas” e o cuidando não apenas como “objeto de intervenção técnica”), possibilitando o compartilhamento de escolhas sobre os “que fazer”, em um movimento de reconhecimento mútuo de modos de vida desejáveis. Enfatiza, dessa forma, o respeito pela liberdade, dignidade e diversidade. Assumir a perspectiva do Cuidado, partindo do reconhecimento de projetos de vida e de felicidade de quem é assistido, aponta como objetivos das ações de saúde a busca por sucessos práticos, alcançados sempre que compreendemos e manejamos os significados que têm os êxitos técnicos, possibilitados por nossas técnicas e ciências para os sujeitos a quem estão dirigidas as ações de saúde. Nas palavras de Ayres (2009, p.37):

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[...] Cuidar da saúde de alguém é mais que construir um objeto e intervir sobre ele. Para cuidar há que se considerar e construir projetos; há que se sustentar, ao longo do tempo, uma certa relação entre a matéria e o espírito, o corpo e a mente, moldados a partir de uma forma que o sujeito quer opor à dissolução, inerte e amorfa, de sua presença no mundo.

O horizonte do Cuidado nas práticas de saúde reclama, portanto, a deliberação, tendo em vista sua dependência de alguns pressupostos: o reconhecimento de que o outro pode ter razão, ao menos tanto quanto eu, de que seu ponto de vista pode me enriquecer, servindo-me para ser mais prudente; a capacidade de escuta e disposição para compreender os pontos de vista distintos ou discrepantes dos próprios; o esforço de dar razão às próprias opções de valor, por mais difícil que isso seja; a capacidade de aceitar que se é falível, que não se sabe, que se equivoca, que se necessita dos demais, que, em um debate, posso não ter razão e que meus argumentos nunca são apodícticos ou esgotam o problema (Zoboli, 2010).

Para uma ética discursiva do cuidado Em síntese, para a compreensão e enfrentamento dos conflitos encontrados no cotidiano da atenção às pessoas vivendo com HIV/Aids (Oliveira, 2009), como de outros temas complexos e delicados na prática de saúde, defende-se, como perspectiva teórica, a assunção do caráter eminentemente relacional e comunicacional do trabalho em saúde, interpretando-o como um diálogo em curso e aberto aos desencontros e embates aí experimentados. Quando esses desencontros localizam-se no âmbito moral, a deliberação, ou a bioética deliberativa, apresenta-se como uma sistemática para o confronto dialógico entre valores em conflito. A própria ideia de “valor” concebe-se na perspectiva de um horizonte ético, que somente faz sentido no convívio com o outro, no interesse em compatibilizar finalidades e meios de uma vida que só é possível de ser vivida em comum (Ayres, 2009). Se examinarmos os casos identificados como problemáticos no cotidiano da atenção às pessoas vivendo com HIV/Aids, será possível identificar posicionamentos, de profissionais e usuários, acerca de ideários e modos de vida que tomamos como adequados para nós e para o outro na relação assistencial, ou ainda mantendo uma centralidade na predominância da necessidade de controlar a doença (Oliveira, 2009; Oliveira et al., 2009). Para além dos discursos apoiados em lógicas técnicas ou de controle da doença, há aspectos presentes nas decisões que temos de tomar que são inerentes ao mundo da vida e que nos dão conta de como a normatividade social (nossos julgamentos sobre o que é correto fazer em nossas relações com o outro) penetra a aparentemente neutra esfera da técnica. Ao compreendermos o encontro profissional-usuário como um diálogo, em um mundo compartilhado no qual a situação existencial de cada uma das partes (seus projetos de felicidade) é a fonte primeira do sentido concreto da ação técnica, então, também poderemos compreender as diferentes situações problemáticas como o embate entre os diversos “dever ser” que orientam as expectativas e ações desses sujeitos. E talvez, se formos bem-sucedidos, poderemos reconhecer, também, as estratégias mais prudentes para sua resolução. As proposições da ética discursiva habermasiana possibilitam reconhecer as posições assumidas, pelos sujeitos, no plano da moral, como uma racionalidade que busca validar-se intersubjetivamente a cada situação concreta que coloca em cheque algum pressuposto do mundo vivido. Trouxemos, como exemplo analítico, partindo desse quadro, a mudança nos discursos políticos e sociais para Aids, que acabaram por configurar sua política de enfrentamento. Essa construção teórica nos apresenta uma ética da razão prática, que pode ser reconhecida nas proposições concretas em que aparecem, por exemplo, nas intervenções em saúde, os ideais do que é “bom e justo” fazer, tanto para o indivíduo como para todos os membros de uma comunidade ou sociedade. Essa ética implica não só o autoconhecimento e a autocompreensão, como também certos ideais, certos valores socialmente validados (Habermas, 1989). Muito mais preocupados com os aspectos de uma ética prática do que com uma busca de princípios gerais da Bioética, pudemos encontrar, na bioética deliberativa de Gracia (2009, 2005, 2001), nas suas

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tematizações acerca da questão dos conflitos de ordem moral, entendidos como conflitos de deveres, um fecundo acesso de uma ética discursiva do cuidado ao âmbito específico das decisões clínicas. Partindo dos deveres, como um fazer diretamente afeto à realização de valores humanos, esse autor nos apresenta uma proposição sistemática capaz de subsidiar os profissionais de saúde na explicitação de quais diálogos, sobre quais deveres estão efetivamente envolvidos quando da situação de conflitos morais. Essa ética prática, deliberativa, em sintonia com a ética discursiva e com o conceito de Cuidado, reconhece que há uma racionalidade nas decisões que envolvem aspectos morais na atenção à saúde, mas demarca que tal racionalidade não é capaz de instruir a prática a partir de uma lógica apodíctica, isto é, que faça derivar de princípios abstratos, como decorrência lógica e necessária, para orientações de um agir correto. Em uma tradição que remonta à razão prática aristotélica (Gadamer, 2003), assume-se que, nessas situações, os profissionais terão de submeter a busca de solução do conflito a um processo dialético, no qual as razões levantadas não esgotam, por meio de qualquer argumento final, a fundamentação de um juízo, permitindo, nessa abertura, que argumentos diversos, inclusive contraditórios, sejam defensáveis e capazes de instruir a sabedoria nas decisões. A deliberação, nesses termos, consiste na ponderação dos diversos fatores intervenientes percebidos como integrantes das situações concretas pelos diversos participantes da situação de cuidado. A decisão assim tomada, se não puder ser assegurada de antemão como a melhor, poderá, ao menos, ser aceita por todos os envolvidos como a mais prudentemente aceitável e promissora em seus meios e fins.

Colaboradores Luzia Aparecida Oliveira é responsável pela concepção e elaboração do texto. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres orientou a concepção do manuscrito, realizou a supervisão geral e redação final do texto; Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli orientou as questões relativas a Bioética, realizou a supervisão geral e redação final do texto.

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OLIVEIRA, L.A.; AYRES, J.R.C.M; ZOBOLI, E.L.C.P. Conflitos morales y atención a la salud en el sida: aportes conceptuales para una ética discursiva del cuidado. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.363-75, abr./jun. 2011. El artículo presenta aspectos conceptuales de una aproximación a los conflictos morales en el cuidado de las personas con sida basado en la ética discursiva. El planteamiento, desde de la Bioética deliberativa, definió conflicto moral como un conflicto de deberes. Utilizó la ética del Discurso y las proposiciones del Cuidado, asumiendo que el trabajo en salud es altamente relacional y comunicador. Las conclusiones indican que la ética del Cuidado reconoce la racionalidad de la toma de decisiones ante los conflictos morales en la asistencia. La búsqueda de soluciones para los conflictos morales, desde la perspectiva presentada, plantea un proceso dialéctico donde se ponderan las razones de todos los argumentos. La toma de decisiones prudentes es posible mediante la clarificación de la diversidad y contradicción de los argumentos.

Palabras clave: Trabajo en salud. SIDA. Bioética. Cuidado. Ética del discurso. Recebido em 09/06/2010. Aprovado em 10/01/2011.

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artigos

Vulnerabilidade e violência:

uma nova concepção de risco para o estudo dos homicídios de jovens

Caren Ruotti1 Viviane Coutinho Massa2 Maria Fernanda Tourinho Peres3

RUOTTI, C.; MASSA, V.C.; PERES, M.F.T. Vulnerability and violence: a new conception of risk for the study of youth homicides. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.377-89, abr./jun. 2011.

In Public Health, violence has been studied according to the classic risk approach. The analyses developed in such perspective are able to show population tendencies of morbidity and mortality, and also identify risk factors that are part of the causal chain of violence. Nevertheless, even though they are important as sources of information and hypotheses, when isolated such analyses are not capable of dealing with the complexity that is involved in violence. This paper aims at starting a reflection on the possibilities of the use of the vulnerability concept in the study of violence, specifically for understanding the situations that make youths be the main homicide victims. It is proposed a new approach to risk that considers the sociocultural processes that are present in the vulnerability of such group to lethal violence, through a perspective that presents the specificities of youth and the challenge imposed by the contemporary social life.

Keywords: Risk. Vulnerability. Homicides. Youth.

No campo da saúde pública, a violência tem sido estudada em consonância com a clássica abordagem de risco. Em geral, as análises desenvolvidas dentro desta perspectiva permitem evidenciar as tendências populacionais de morbimortalidade, além de identificarem fatores de risco relacionados na rede de causalidades. No entanto, embora importantes como fontes de informação e hipóteses, isoladas essas análises não são capazes de dar conta da complexidade envolvida no fenômeno. Este artigo tem como objetivo iniciar uma reflexão sobre as possibilidades de uso do conceito de vulnerabilidade no estudo da violência, especificamente no entendimento das situações que tornam os jovens as principais vítimas de homicídios. Propõe-se, assim, uma nova concepção de risco que leva em consideração os processos sociais e culturais presentes na vulnerabilidade desse grupo à violência letal, por meio de uma perspectiva que apresente as especificidades inerentes à condição juvenil e aos desafios representados pela conformação social contemporânea.

Palavras-chave: Risco. Vulnerabilidade. Homicídios. Jovens.

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1 Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo (USP). Av. Professor Lúcio Martins Rodrigues, Travessa 4, Bloco 2, Butantã. São Paulo, SP, Brasil. 05.508-900. cauruotti@usp.br 2 Núcleo de Estudos da Violência, USP. 3 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP.

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Introdução O impacto que a violência vem exercendo na morbimortalidade da população nas últimas décadas, alterando o perfil de problemas de saúde no Brasil e no mundo, transformou a violência em uma questão de saúde pública (Krug et al., 2002). Embora, em princípio, a violência, como fenômeno sócio-histórico, não seja objeto do campo da saúde pública e não constitua um problema médico típico (Minayo, Souza, 1997). Assim, as diversas consequências da violência para a integridade física, psicológica e emocional das pessoas, afetando sua qualidade de vida, somadas aos efeitos sobre a demanda nos serviços de saúde e aos altos custos sociais produzidos, acabam por legitimar a violência como uma preocupação no campo da saúde, não só no tratamento dos agravos, mas também na proposição e implantação de ações preventivas. Entre as diferentes manifestações de violência, esse impacto é sentido sobremaneira no que diz respeito ao crescimento dos homicídios no país, em especial na população de 15 a 24 anos (Souza, Lima, 2006; Mello-Jorge, 1998; Minayo, 1990). Conforme dados do Ministério da Saúde (SIM/DATASUS), os homicídios aparecem como a primeira causa de morte entre os jovens já na década de 1990, ou seja, não só ocupam a primeira posição dentre as causas externas, mas ultrapassam todos os outros grupos de causas. Souza e Lima (2006), tendo como base o ano de 2003, mostram que os coeficientes de mortalidade por homicídios (/100 mil hab) chegam a 42,5 entre os adolescentes de 15 a 19 anos e a 70,0 na faixa de vinte a 24 anos, bastante superior à média nacional para a população total no mesmo período, da ordem de 28,9/100 mil hab. Ademais, o grupo mais exposto a este tipo de violência vem sendo, amplamente, o do sexo masculino. No Brasil, entre o período de 1999 a 2000, o risco de homens nessa faixa etária serem vítimas de homicídios foi quase 12 vezes maior que o de mulheres (Souza, 2005), o que aponta para diferenciais de gênero atuando na conformação dessas mortes. Observa-se, dessa maneira, não só uma sobremortalidade masculina por homicídios, mas diferenças significativas no que diz respeito ao local de ocorrência e aos fatores envolvidos nesses eventos. Os homicídios masculinos, por exemplo, prevalecem no espaço público (como ruas e bares) e estão, hoje, fortemente relacionados à criminalidade; já os homicídios femininos ocorrem, preferencialmente, no espaço privado, e estão mais relacionados a conflitos de ordem familiar (Schraiber, Gomes, Couto, 2005; Souza, 2005), sendo que, em ambos os casos, os agressores são predominantemente homens. Os grandes centros urbanos foram os mais afetados por esta tendência, consolidando um caráter “endêmico” com um padrão desigual de distribuição das mortes por homicídios, como resultado de um conjunto de processos sociais que se tornam mais proeminentes nessas áreas, como as desigualdades nas condições de vida (Gawryszewski, Costa, 2005; Cardia, Adorno, Poleto, 2003; Barata, Ribeiro, 2000) e o estabelecimento de um mercado de atividades ilícitas e criminosas, sobretudo em torno do tráfico de armas e drogas (Zaluar, 2004, 1994). Um exemplo pode ser encontrado no município de São Paulo que, até início dos anos 2000, apresentou altas taxas de mortalidade por homicídio, em especial na população jovem, com grandes disparidades intraurbanas na distribuição do risco de morte (Gawryszewski, Costa, 2005)4. Verifica-se, desse modo, que, dentro dos próprios centros urbanos, as desigualdades perduram nas chances de um jovem ser vítima de homicídio, sendo maiores nas áreas que apresentam condições socioeconômicas desfavoráveis.

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O município de São Paulo apresenta, desde 2000, uma queda significativa na mortalidade por homicídios, tanto para a população geral quanto para os jovens de 15 a 24 anos. Especificamente em relação aos últimos, verifica-se, de acordo com dados do PRO-AIM, uma queda de 75,6% no período de 2000 a 2007. Entretanto, as disparidades na ocorrência destas mortes permanecem entre os distritos (Secretaria Municipal de Saúde, 2010).

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No campo da saúde pública, a violência tem sido estudada em consonância com a clássica abordagem de risco. De forma geral, as análises desenvolvidas dentro desta perspectiva permitem evidenciar as tendências populacionais de morbimortalidade por violência, como o peso da vitimização juvenil por homicídio, além de identificar fatores de risco relacionados na rede de causalidades. No entanto, embora importantes como fontes de informação e hipóteses (Ayres et al., 2003), isoladas essas análises não são capazes de dar conta da complexidade envolvida no fenômeno da violência. É diante dos limites apresentados pelas análises de risco que o conceito de vulnerabilidade vem se constituindo em um referencial importante, sobretudo a partir de estudos desenvolvidos no campo do HIV/AIDS. A adoção desse conceito assinala para alterações tanto no nível epistemológico como na esfera das práticas em saúde, nomeadamente no que diz respeito à prevenção de agravos (Sanchez, Bertolozzi, 2007; Ayres et al., 2003; Buchalla, Paiva, 2002; Delor, Hubert, 2000). A abordagem da vulnerabilidade tem como contribuição fundamental lançar luz sobre a dinâmica dos processos sociais, culturais e individuais que conformam a suscetibilidade dos indivíduos a um determinado evento, proporcionando uma reflexão mais abrangente sobre os processos saúde-doença. Permite considerar, assim, tanto as suscetibilidades orgânicas, como a “forma de estruturação de programas de saúde, passando por aspectos comportamentais, culturais, econômicos e políticos” (Ayres et al., 2003, p.20). Desta maneira, o seu potencial analítico e prático favorece o estabelecimento de um conhecimento interdisciplinar no campo da saúde pública e estimula sua aplicabilidade na análise de diferentes objetos de interesse (Ayres et al., 2003), como no caso particular da violência (Peres, 2007; Paulilo, Bello, 2002). Nesse contexto, este artigo tem como objetivo iniciar uma reflexão sobre o conceito de vulnerabilidade e as possibilidades de seu uso no estudo da violência, especificamente no entendimento das situações que tornam os jovens atualmente as principais vítimas de homicídios. Pretende-se, assim, levar em consideração os processos sociais e culturais presentes na vulnerabilidade desse grupo à violência letal, por meio de uma perspectiva que apresente as especificidades inerentes à condição juvenil e os desafios representados pela conformação social contemporânea. Trata-se de aproveitar a importância heurística da vulnerabilidade, que tem apresentado relevância no campo do HIV/AIDS, para entender a complexidade dos processos envolvidos na problemática da violência e auxiliar na definição de medidas de prevenção. Isso não significa uma transposição direta de questões colocadas pela epidemia de AIDS para o estudo da violência, já que esta não é um agravo com agente etiológico específico, e sim um fenômeno cujas causas são múltiplas e atuam em complexa e dinâmica relação (Peres, 2007; Minayo, 1990). Contudo, os avanços nos estudos sobre HIV/AIDS, que se refletem no conceito de vulnerabilidade, ao apontarem a necessidade de se considerarem as condições estruturais de vida e os valores e normas culturais que atuam na conformação da epidemia, permitem uma aproximação profícua com o estudo da violência.

O risco epidemiológico e a vulnerabilidade O conceito de risco, central nos estudos epidemiológicos, expressa a probabilidade de ocorrência de doenças e agravos à saúde de populações em determinadas situações ou contextos (Ayres et al., 2003; Almeida Filho, 1992). As análises epidemiológicas de risco permitem estabelecer associações probabilísticas de distribuição populacional de um determinado agravo entre diferentes condições objetivas, mensuráveis, como idade, sexo, renda, etc., apresentando caráter eminentemente quantitativo e populacional. Trata-se, neste sentido, de uma categoria abstrata e analítica que pressupõe certa relação de dependência entre um fator de exposição (fator de risco) e um efeito à saúde, segundo o modelo de raciocínio causal. A identificação de fatores de risco a um determinado agravo constitui, assim, um eixo fundamental das análises que sustentam as práticas preventivas em saúde. Como indica Czeresnia (2004), os modelos de análises de risco, ao terem como critério a experimentação, exigem o controle de todos os fatores que podem interferir na experiência, a fim de que sejam criadas as condições que permitam observar uma relação de causa e efeito. Entretanto, como indica a autora, a construção desses modelos estabelece um “processo de purificação” que cria uma abstração do fenômeno estudado e, por consequência, reduz a sua complexidade. Segundo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Castel (1986), esse processo promove a dissolução do sujeito ou do indivíduo concreto (alvo das medidas preventivas), o qual é substituído por um conjunto de fatores de risco. Os estudos voltados para o HIV/AIDS, em especial aqueles realizados no início da epidemia, são um exemplo da adoção do modelo de risco e de suas consequências para as práticas preventivas. Um dos grandes problemas ocasionados por esta abordagem, já no início dos anos 1980, foi a estigmatização de certos grupos identificados como grupos de risco. Cabe ressaltar que este processo de estigmatização, evidenciado nos clássicos quatro H´s (homossexuais, hemofílicos, heroinômanos e haitianos), estruturou-se, de acordo com Ayres et al. (2003), a partir da transformação sofrida pelo conceito de risco, que passou de uma categoria analítica de inferência causal (e, portanto, eminentemente abstrata e coletiva), para uma categoria operacional de caráter individualizante – que se fazia reconhecer pela presença de características que marcavam a pertinência de sujeitos a determinados “grupos de risco”, alvo privilegiado das ações preventivas. Desta forma, o conceito de risco passa a demarcar fronteiras identitárias e apoiar a proposição de medidas de isolamento e abstinência sexual (Ayres et al., 2003; Delor, Hubert, 2000). Neste sentido, o risco passa a operar como uma categoria ontológica, como uma marca identitária do sujeito que, em si, representa o risco que virtualmente porta (Ayres et al., 2003). Com a identificação do HIV como agente viral causal, inicia-se um segundo estágio, no qual o risco é associado não mais a grupos específicos, mas a práticas relacionadas à transmissão do vírus. Nesse estágio começam a surgir práticas centradas na categoria comportamento de risco e em estratégias de educação/informação em saúde (Ayres et al., 2003). Por conseguinte, os comportamentos individuais passam a ser o foco das campanhas preventivas e o indivíduo passa a ser responsabilizado pela sua eventual contaminação. Embora esse estágio represente um avanço em relação ao anterior, retirando o estigma de certos grupos e universalizando a preocupação com a doença, acaba por reforçar o modelo de indivíduo racional, cujos comportamentos poderiam ser modificados por meio de campanhas preventivas, além de reforçar a ideia de que cada indivíduo, uma vez dotado de informações necessárias, é responsável pela sua proteção. Um terceiro estágio surge diante dos limites das estratégias de prevenção baseadas nas categorias de grupo e comportamento de risco e da constatação de que a contaminação pelo vírus permanecia crescente e atingia, com maior intensidade, áreas com condições socioeconômicas precárias e setores mais enfraquecidos da sociedade (como jovens, mulheres, negros). Evidencia-se, desta maneira, tanto o caráter não homogêneo da exposição ao vírus na população em geral como o fato de que a mudança de práticas e comportamentos mantém relação com diferentes fatores situados além da vontade individual (Ayres et al., 2003). É nesse momento que começa a se delinear uma nova proposta preocupada em entender as condições do contexto que compõem as diferentes suscetibilidades à doença. Conforma-se, assim, uma passagem do risco individual para o entendimento da vulnerabilidade, que, segundo Ayres et al. (2003, p.123), refere-se ao: [...] movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos, contextuais, que acarretam maior suscetibilidade à infecção e ao adoecimento e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para se proteger de ambos.

As análises de vulnerabilidade, portanto, buscam resgatar a complexidade dos processos saúdedoença ao incorporarem os diferentes fatores envolvidos e as mútuas interferências (Ayres et al., 2003). Nesse sentido, ao contrário da categoria “grupo de risco”, o conceito de vulnerabilidade não fixa identidades grupais, já que procura apreender as diferenças na suscetibilidade ao vírus enquanto efeito de relações sociais específicas que dizem respeito ao corpo social como um todo (Ayres et al., 2003). A vulnerabilidade não é assim um estado, uma característica essencial dos indivíduos, mas uma situação. Apresenta uma natureza potencialmente instável, que pode se alterar em função do tempo, das relações ou de características do contexto social mais amplo (Delor, Hubert, 2000). A

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partir de análises de vulnerabilidade, ênfase é dada a programas de intervenção que objetivam o “empoderamento” em face da epidemia. A abordagem da vulnerabilidade é caracteristicamente interdisciplinar e fortemente ancorada nas Ciências Sociais e Humanas, buscando compreender, para além dos determinantes epidemiológicos, a dimensão dos sentidos e dos significados da exposição dos sujeitos a determinadas situações de risco, bem como as implicações e os efeitos diferenciados dessas exposições nas trajetórias individuais e interativas. Delor e Hubert (2000) destacam três níveis de inteligibilidade para o entendimento do conceito de vulnerabilidade: o nível da trajetória social, o nível em que duas trajetórias se cruzam, e o contexto social, sendo a construção da identidade o processo de síntese onde estas três dimensões devem ser situadas. O primeiro nível diz respeito à posição no curso da vida, que pode ser compartilhada por diferentes indivíduos, tornando-se essencial para se entender a adoção de certos comportamentos. O segundo enfatiza a dimensão da interação entre os indivíduos e os elementos aí implicados, como as diferenças de status e poder, que influenciam diretamente as possibilidades frente ao risco. Já o nível do contexto social envolve as configurações sociais e normas culturais que atuam diretamente nas formas e interesses que regem o encontro de duas trajetórias. Para os autores, a construção de identidade é entendida como um processo que se destina a manter, expandir ou proteger o espaço de vida em que o sujeito é socialmente reconhecido, sendo que a confrontação com diferentes riscos requer a constante construção e reelaboração desse processo, por meio da qual o sujeito empenha-se em produzir uma (sempre temporária) síntese desses três níveis. Ainda segundo os autores, para se entender as situações de vulnerabilidade, é necessário apreender as conexões existentes entre as noções de risco (enquanto evento adverso ou potencialmente hostil), identidade e vulnerabilidade. Assim, uma vez que o processo de identidade não é algo estático, e sim uma constante, ou seja, um trabalho de síntese por meio do qual o indivíduo lida com diferentes riscos da vida diária, as situações de vulnerabilidades seriam “as circunstâncias – em termos de momentos e lugares específicos – durante as quais este exercício vital é mais dolorido, difícil ou perigoso” (Delor, Hubert, 2000, p.1560, tradução nossa). A vulnerabilidade teria, assim, um lado “externo”, representado pelas tensões e hostilidades que atingem indivíduos ou grupos, e um lado “interno”, que se refere à fragilidade em lidar com essas dificuldades (Chambers apud Delor, Hubert, 2000). Disso decorre a distinção entre exposição, capacidade e potencialidade no espaço de vulnerabilidade, ou seja, as possibilidades de exposição do sujeito a situações de crise (exposição), os recursos que o sujeito tem para enfrentar estas situações (capacidade), e, por fim, as consequências desta exposição (potencialidade) (Watts, Bolhe apud Delor, Hubert, 2000). Ressaltase, assim, a forma diferencial com que as pessoas vivenciam a exposição a um determinado agravo, sendo que um mesmo indivíduo não tem a mesma vulnerabilidade em diferentes contextos, em diferentes relações e em diferentes pontos de sua trajetória. Dessa maneira, o quadro de vulnerabilidade permite compreender as formas pelas quais os indivíduos enfrentam os eventos adversos e adotam certos comportamentos, não de acordo com a visão de um sujeito racional que orienta sua ação apenas pela disponibilidade de informações, mas sob a perspectiva de um sujeito imbricado em um sistema dinâmico de relações e constrangimentos de diferentes ordens (sociais, políticos e econômicos), que influi nas suas escolhas e condições de existência.

Violência, risco e vulnerabilidade No campo da saúde pública, a centralidade do paradigma do risco no estudo da violência está consolidada no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (Krug et al., 2002). Desta maneira, procuram-se identificar os fatores de risco para as diferentes manifestações de violência, assim como conhecer os mecanismos causais e reconhecer os grupos particularmente expostos, a fim de se estabelecerem ações preventivas. Contudo, as análises epidemiológicas de risco neste campo, ao fragmentarem um fenômeno complexo como a violência, também apresentam suas limitações.

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Desse modo, conquanto as análises de risco mantenham-se importantes para identificar as diferenças nas distribuições populacionais dos agravos, elas não conseguem apreender os significados concretos das vivências dos indivíduos frente às distintas situações de exposição. Além disso, como exemplificado no caso da epidemia de HIV/AIDS, quando o risco de categoria abstrata é operacionalizado para as práticas preventivas, sem as mediações necessárias, acaba por estigmatizar grupos populacionais, o que não raro acontece quando se trata da violência. É visível, a partir da década de 1980, com o aumento das taxas de mortalidade por homicídio, uma vasta produção acadêmica sobre o tema, descrevendo as curvas de crescimento, a distribuição das mortes no território nacional, incluindo a identificação de grupos populacionais com maior risco de morte por homicídio (Mello-Jorge, 1998; Minayo, 1990). Estes estudos demonstram que as populações de regiões periféricas, especialmente os jovens, constituem o mais claro grupo de risco para vitimização fatal. No entanto, a identificação de certas populações e locais mais vitimizados acaba por produzir os efeitos negativos acima mencionados. Segundo Peres (2007), assim como na epidemia de HIV/AIDS, no caso dos homicídios, aqueles que compõem os “grupos de risco” para vitimização fatal – jovens, negros, moradores de áreas periféricas – acabam por representar, para determinados seguimentos da sociedade, uma ameaça potencial, enquanto membros das “classes perigosas”. É visível, aqui, a cisão da população entre dois grupos – os indivíduos perigosos e os indivíduos a serem protegidos – e a criação de barreiras urbanas para se evitar o contato e “garantir” a proteção. Tais barreiras são visualizadas nas fortificações urbanas – muros altos, grades nas janelas -, nos veículos blindados e nos vidros fechados dos carros nas ruas (Caldeira, 2000). A intensificação do sentimento de insegurança e forte tendência a segregação urbana, aliados à inoperância dos agentes de segurança pública, geram, ainda, demandas por serviços de segurança privados e por ações extralegais de “justiça”. Peralva (2000) aponta algumas situações onde é sensível a estigmatização de jovens provenientes de áreas periféricas, especialmente quando estes procuram acesso a empregos ou cursos em áreas mais centrais. Ademais, a violência e a corrupção policial são outros aspectos fortemente presentes no dia a dia das populações caracterizadas como “grupos de risco”, sendo mais uma forma de estigmatização destas populações por parte da ação policial. Em um estudo realizado em uma comunidade pobre do Rio de Janeiro, Zaluar (1994) também apresenta algumas reflexões sobre a criminalização dos pobres ao colocar que recai sobre estes os efeitos perversos da crise econômica e do desemprego, além do estigma de criminoso e as ações de repressão, exercidas, sobretudo, pela polícia, que utiliza indistintamente um tratamento violento. Com o objetivo de enfrentar o problema da violência e criminalidade urbanas, começam a surgir, mais recentemente, guias e manuais que incentivam o maior engajamento do indivíduo com a sua segurança, seguindo o modelo de ação centrado no comportamento de risco e nas estratégias de educação e informação. Estes materiais ensinam como evitar situações de violência, com a adoção de comportamentos seguros e defensivos no trânsito, nas ruas e nos bares. Essas informações são veiculadas, sobretudo, pelos meios de comunicação, para que possamos reconhecer possíveis suspeitos – com base no perfil de risco –, evitar situações de maior exposição, nos comportar corretamente em situações violentas, evitando, assim, um desfecho fatal (Peres, 2007). Com posse das informações, cabe, a cada um de nós, zelar pela nossa proteção, mudando o nosso comportamento. As questões acima levantadas e a experiência acumulada no campo do HIV/AIDS tornam evidente a necessidade de uma abordagem ao fenômeno da violência que supere os limites inerentes à abordagem centrada no risco, permitindo entender a própria estigmatização social que recai sobre determinados jovens e os diferentes efeitos que isso pode proporcionar, além de outras situações que podem aproximá-los de desfechos violentos. As análises de vulnerabilidade, ao considerarem tanto os perigos ou eventos hostis que podem afetar os indivíduos quanto a fragilidade destes em enfrentá-los (Chambers apud Delor, Hubert, 2000), podem auxiliar na compreensão desses processos culturais e sociais envolvidos nas situações de violência, bem como das diferentes formas de os jovens lidarem com estas situações, e o sentido por eles atribuídos. Assim, um dos desafios suscitados pelo estudo da vulnerabilidade dos jovens aos homicídios na atualidade é entender os significados da exposição (voluntária ou involuntária) às situações arriscadas 382

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ou de “risco” – como o engajamento em alguma atividade ilícita –, que os aproximam da possibilidade de morrerem de forma violenta. Esta indagação situa-se sobre o pano de fundo de processos sociais em curso que alteram os contornos da socialização das novas gerações, implicando diferentes consequências na construção de suas trajetórias de vida. Entre esses processos, tem-se a própria configuração do risco como categoria central na sociedade contemporânea, colocando em discussão as transformações que incidem sobre os elementos constitutivos da modernidade.

Contexto: risco e modernidade É preciso destacar, primeiramente, a pluralidade que a palavra risco adquire nos seus usos e sentidos nas diversas sociedades no decorrer da história (Ayres, 1995) e mesmo atualmente, dependendo da área de estudo na qual é empregada e de acordo com as diferentes correntes interpretativas (Lupton, 1999). Porém, na modernidade, como salienta Giddens (2002), o movimento de abandono das formas tradicionais de fazer as coisas produz uma nova forma de lidar com o futuro, instaurando o risco como conceito central, cujo sentido diz respeito à possibilidade de prever probabilisticamente os acontecimentos futuros (cálculo de riscos) e de agir de forma colonizadora em relação a este futuro, mesmo considerando a imprevisibilidade que lhe é intrínseca. De acordo com La Mendola (2005), a interpretação moderna do risco pretende afirmar que os princípios do racionalismo individualista e utilitarista devem guiar as condutas dos agentes, sustentando, desse modo, que os perigos devem ser enfrentados de forma individual e responsabilizando os agentes individualmente pelas consequências. O risco epidemiológico é um dos frutos dessa lógica, a qual é fortemente racionalizadora (com base no conhecimento científico) e estritamente relacionada ao processo de individualização na modernidade reflexiva (Beck, 1997). Por individualização compreende-se o processo que transfere, para o indivíduo, a responsabilidade pela construção de suas trajetórias e pelas consequências de seus possíveis fracassos, assim, as oportunidades, ameaças, ambivalências da biografia, que anteriormente era possível superar em um grupo familiar, na comunidade da aldeia ou se recorrendo a uma classe ou grupo social, devem ser cada vez mais percebidas, interpretadas e resolvidas pelos próprios indivíduos. (Beck, 1997, p.18)

Esse processo de individualização ocorre num contexto no qual as referências sociais dominantes instauradas pela sociedade industrial sofrem de exaustão, desintegração e desencantamento, o que impõe, aos indivíduos, todo esforço na definição de novas significações (Beck, 1997). Como indica Giddens (2002), a modernidade tem como principais dimensões: o estabelecimento de um “mundo industrializado”, o desenvolvimento do capitalismo, bem como a formação dos Estados-nação. Na contemporaneidade, estaríamos na presença de uma radicalização dessa modernidade, ou seja, num outro estágio dessa modernização definida por Beck (1997) como “modernidade reflexiva”, na qual o progresso pode se transformar em autodestruição. Isto porque os riscos produzidos pela própria modernidade parecem escapar do controle, inclusive quando se observa a produção dos riscos de alto alcance ou riscos globais (como os riscos ambientais), como consequência do próprio desenvolvimento tecnológico. Além disso, verificam-se mudanças estruturais, inclusive no que se refere à esfera do trabalho, sendo que algumas das fontes de significação cultural da modernidade apresentam-se em decomposição (como a própria fé no progresso). A incerteza torna-se, portanto, experiência fundamental da contemporaneidade. Assim sendo, como explicita Le Breton (2000), a modernidade provoca descontinuidades de sentido e confusão nas referências socialmente instituídas, conduzindo cada indivíduo à necessidade de se autorreferenciar, ou seja, ao imperativo de “buscar em si mesmo, dentro dos seus próprios recursos, aquilo que ele encontrava antes no interior da cultura e na companhia dos outros” (Le Breton, 2000, p.12, tradução nossa). Segundo o autor, é dentro desse processo que a significação antropológica e social sobre as tomadas ou práticas de risco pelas pessoas em geral, e especialmente pelos jovens, deve ser buscada. Destaca-se, por conseguinte, outra maneira de se conceber o risco, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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essencial na análise da vulnerabilidade à violência, que “considera o risco como sendo o fruto instável de um processo de construção pelos indivíduos e coletividades” (Delor, Hubert, 1997, p.21), indo além da abordagem técnica do risco da qual o risco epidemiológico é resultado.

Jovens e situações de vulnerabilidade É possível supor que a vulnerabilidade dos jovens à violência relaciona-se, atualmente, às conformações gerais da “modernidade reflexiva” (nos termos de Beck, 1997) e, portanto, às consequências que este processo traz para a trajetória individual dos sujeitos. De um lado, porque obriga o sujeito a tomar decisões de forma solitária e a responsabilizar-se pelos resultados de suas “escolhas” (as quais não estão livres de constrangimentos, uma vez que mediadas pelos processos sociais em curso), o que, embora proporcione certa margem de liberdade ao sujeito, ao abrir novas possibilidades, impõe o árduo peso de uma responsabilização individual. Nesse contexto, o controle dos riscos passa cada vez por estratégias individuais, já que, socialmente, há uma maior isenção em relação à responsabilidade coletiva de gestão dos riscos, jogando para os indivíduos o ônus pelos possíveis efeitos negativos (Mitjavila, Jesus, 2004; Peralva, 2000). De outro lado, porque desfaz os limites simbólicos capazes de dar suporte a um sentimento de identidade – e é na busca desses limites que muitos jovens acabam por lançar-se em situações de risco, onde a confrontação com a morte (de forma imaginária ou real) pode tornar-se elemento fundamental na afirmação do valor de sua existência (Le Breton, 2000). Assim, segundo Le Breton (2000), a transição para a vida adulta representa, na modernidade, um momento crítico onde essas condutas de risco tornam-se emblemáticas e fortemente adotadas. Diante da indeterminação social instaurada pela modernidade, não há mais ritos de passagem que possam simbolizar e legitimar a entrada na vida adulta e, sobretudo, referenciar o futuro e remover a incerteza sobre a condução da existência, a exemplo das sociedades tradicionais. Esta simbolização da passagem fica a encargo dos próprios jovens que precisam encontrar uma resposta a suas expectativas. E é nesse momento que as condutas de risco ganham um valor essencial, na forma de um rito, por meio do qual os jovens buscam achar um sentido que justifique suas vidas. Nesse sentido, esses comportamentos arriscados, muitas vezes auto ou heterodestrutivos, não devem ser interpretados como uma fuga, uma irresponsabilidade dos indivíduos. Pelo contrário, esses comportamentos, mesmo os mais aparentemente irresponsáveis, indicam uma demanda implícita por responsabilidade (La Mendola, 2005) e, portanto, demonstram a busca por um sentimento de identidade (Le Breton, 2000). Desse modo, diante da ausência de limites simbólicos que sirvam de orientação, é na experiência essencialmente corporal que esse sentimento é buscado, por isso, o risco - e, mesmo, o risco de morte - adquire importância nesse processo. Vencer a morte solicitada por meio de práticas de risco significa que a existência individual tem um valor (Le Breton, 2000). De acordo com La Mendola (2005), os significados dos comportamentos de risco, inclusive os mais destrutivos, relacionam-se também à desconfiança em relação aos mecanismos sociais de distribuição de sucesso. A modernidade, ao fazer do risco a forma exclusiva de persecução de fins na sociedade contemporânea, estabelece, como mensagem fundamental, que aqueles que se empenham necessariamente obterão sucesso. Contudo, essa fórmula acaba não se confirmando na realidade, uma vez que a obtenção de sucesso submete-se a regras sociais de reconhecimento que escapam constantemente aos critérios racionais de seleção dos melhores. Lança-se, assim, aos indivíduos, a necessidade de adotarem atitudes de risco, para aquisição de sucesso sem, contudo, enfatizar o elemento que lhe é complementar, ou seja, a segurança, abrindo margem para comportamentos destrutivos. Ressalta-se, portanto, a existência de um sistema social que legitima o risco, inclusive na esfera do trabalho (Sennet, 2005), ocultando a necessidade das redes de proteção para prevenir os efeitos negativos que podem conter a ação de arriscar-se, especialmente na fase da juventude, caracterizada como um momento de forte indeterminação social e identitária. Ademais, soma-se a esse processo geral, que atinge a juventude como um todo, a existência de diferenças profundas na vivência dessa fase de acordo com a posição social desses jovens, inclusive quando consideramos a exposição à violência. Assim, embora os desafios sejam semelhantes, os 384

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contextos e os recursos disponíveis no seu enfrentamento não são os mesmos, abrindo espaço para diferentes situações de vulnerabilidade. Como define Pais (2005), a situação social dos jovens na modernidade é caracterizada, cada vez mais, pela imprevisibilidade. As novas conformações sociais marcadas por tendências globalizantes, avanço tecnológico e mutações do trabalho (Telles, 2006; Sennet, 2005; Giddens, 2002) transformam o futuro em algo indefinido e arriscado, lançando desafios para a sociedade em geral e, especialmente, para as novas gerações. Nesse sentido, surge, como problema crucial, o processo de transição para a vida adulta e as possibilidades de os jovens conseguirem lograr sua inserção social. Embora esse problema atinja todos os jovens, as desigualdades econômicas e sociais, por certo, imprimem diferenciações importantes nos recursos existentes e nas formas possíveis de se alcançar essa inserção. Segundo Telles (2006), são as novas gerações que colocam em evidência os pontos nevrálgicos das novas configurações sociais. De um lado, os jovens já entram num mundo social marcado pelo trabalho precário e o desemprego, em tempos de dissolução do capitalismo fordista e surgimento do capitalismo flexível (Sennet, 2005). Por outro, vivenciam uma experiência, inimaginável para gerações anteriores, dos capitais globalizados que fazem expandir os circuitos do consumo de bens materiais e simbólicos para além das fronteiras das grandes nações, atingindo os mercados populares. E é no centro dessa nova realidade, a qual redefine novas dinâmicas locais, novas redes sociais, novas sociabilidades, que os mais jovens acabam traçando seus percursos, cada vez mais instáveis e precários (Telles, 2006). As trajetórias dos jovens tornam-se, nesse contexto, trajetórias não lineares, já que sujeitas a diferentes contingências, imprevistos, incertezas (Pais, 2005), cuja característica principal é a retomada de caminhos já percorridos. As incertezas que compõem essas trajetórias gravitam com intensidade na esfera do trabalho. A flexibilização que caracteriza o capitalismo na modernidade faz com que a experiência dos jovens, no mundo do trabalho, não se dê a partir de uma rotina estável ou de uma carreira previsível, e estes acabam por inventar diferentes formas de ganhar dinheiro ou de “ganhar a vida”. Ainda de acordo com Pais (2005), essa flexibilização do trabalho, que atinge a todos, acaba sendo vivida pelos jovens como aventura ou, mesmo, desventura. Isto porque, para alguns, essa flexibilidade acaba por representar viver na precariedade, com todos os aspectos negativos que advêm dessa situação; para outros, essa flexibilidade representa a abertura de novas oportunidades, a possibilidade de trajetórias sociais ascendentes. Entretanto, é a incerteza e a improvisação que pautam seus percursos. É nesse sentido que conseguir um emprego, muitas vezes, é tido como um lance de sorte e a própria vida passa a ser vivida nos moldes de um jogo, onde a necessidade de astúcia e os elementos de aleatoriedade e sorte tornam-se centrais. De acordo com Sennet (2005), o capitalismo flexível institui o risco como algo necessário. Esse é um tempo, portanto, que valoriza o desempenho, a performance e o sucesso. Correr riscos, tentar a sorte torna-se uma necessidade diária para todos, e essa atitude acaba por ser valorizada: “A moderna cultura do risco é peculiar naquilo que não se mexer é tomado como sinal de fracasso, parecendo a estabilidade quase uma morte em vida. O destino, portanto, conta menos que o ato de partir” (Sennet, 2005, p.102). O risco, nessa cultura, passa a ser um teste de caráter, é preciso correr risco mesmo que, racionalmente, se saiba que é possível fracassar. Especificamente para os jovens, sua situação limiar acaba por torná-los mais flexíveis, inclusive em termos de assumirem riscos. Contudo, como indica Pais (2005), a propensão a assumir riscos e jogar com a própria vida seria mais forte entre os sujeitos em que a própria vida apresenta-se mais cheia de indeterminações. Assim, no jogo da vida, muitos jovens seriam levados a desafiarem o próprio destino, como no caso de jovens inseridos em trajetórias de exclusão social. Desse modo, os recursos que os jovens possuem (títulos escolares, redes de conhecimento e, também, astúcia) variam como variam as formas inventadas pelos jovens, a partir desses recursos ou na sua ausência, no empenho de ganhar a vida. Telles (2006), que reconstruiu a trajetória de jovens moradores na periferia do município de São Paulo, também mostra as diferentes estratégias e recursos de que os jovens lançam mão na tentativa de participarem do mercado de trabalho. Os percursos traçados demonstram, da mesma forma, a precariedade e instabilidade que marcam suas experiências e evidenciam novos padrões 385


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de desigualdades que questionam as formas tradicionais de pensar o social. Segundo a autora, o cruzamento entre a precarização do emprego e os circuitos globalizados conforma um mundo social que não pode ser entendido nos termos de uma sociedade dualizada, que contraponha, de um lado, “exclusão social” e, de outro, a “cidade global”. Os jovens, inclusive das áreas periféricas, transitam por esses circuitos globalizados, que funcionam como polos de gravitação, onde a própria experiência do trabalho precário se realiza. Ainda de acordo com Telles, isso não significa que estamos diante de uma sociedade onde se estabelece uma democratização da sociedade do consumo. As desigualdades são inerentes ao capitalismo contemporâneo, perpassando todo o campo social. O que está suposto, entretanto, são novas configurações sociais onde as atuais formas excludentes de emprego se conjugam à expansão desses circuitos de consumo de bens materiais e simbólicos, conformando diferentes maneiras de “ganhar a vida” e diferentes estratégias de participação, inclusive entre os mais pobres. Destaca-se, nesse sentido, o endividamento na compra desses bens e a inserção em atividades que podem beirar a informalidade ou, mesmo, a ilegalidade. A própria expansão do mercado organizado do tráfico de drogas está diretamente conectada a essa economia globalizada, capturando, entre os mais os jovens, grande parcela dos seus membros, inclusive pela via de atração que constitui o uso de drogas (Zaluar, 1994). A criminalidade, fortemente atrelada a essa expansão do tráfico de drogas, tem se apresentado cada dia mais presente nas periferias e favelas, inclusive a partir da década de 1990, tornando-se parte das “opções” e “escolhas”5 apresentadas aos moradores desses locais. Configura-se, assim, como um aspecto de vulnerabilidade para muitos jovens, embora apenas uma minoria aceda às atividades criminais (Feltran, 2007; Peralva, 2000). Em presença das inúmeras dificuldades encontradas pelas pessoas, especialmente pelos jovens, ao tentarem uma inserção no mercado de trabalho, a “escolha” por esta “opção”, apesar de se colocar, por um lado, como uma forma de acesso – a bens de consumo, a renda, a ampliação do status individual no grupo – também se insere em um contexto de risco de morte onipresente, ou seja, num contexto marcado pela violência resultante tanto da instituição policial como da comercialização ilegal de drogas (Feltran, 2007; Peralva, 2000). As estratégias de resposta a este risco de morte podem ser variadas, desde a tentativa de contorná-lo até o engajamento no próprio narcotráfico. Isso revela uma dinâmica que vai além de aspirações a uma mobilidade social desviante, compreendendo diferentes sentidos de existência e alternativas de vida para melhor lidar com a experiência do risco, diante da falta de padrões estáveis de organização familiar, social e política, incluindo a ausência de ordem pública legítima (Feltran, 2007; Peralva, 2000). É nesse sentido que Peralva (2000) explicita que as condutas de risco dos jovens perante essas condições estão estritamente relacionadas à familiaridade com o risco de morte: [...] isso fez com que se desenvolvesse no seio da juventude, e mais particularmente da juventude pobre (posto que para ela a cota de riscos associados à violência é mais elevada), o sentimento de que as condutas de risco talvez constituíssem, elas próprias, uma modalidade eficaz de resposta ao risco. Tratar-se-ia de antecipar o risco, de se apropriar dele, para melhor subjugá-lo. (Peralva, 2000, p.127)

Assim, a perda de confiança em mecanismos sociais que negam promessas feitas por meio da ambivalência e ambiguidade das mensagens, a violência 386

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Estas “escolhas” assumem a existência de uma vulnerabilidade que ultrapassa a vontade individual e a noção de risco como comportamentos e desejos individuais.

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perpetrada por policiais e traficantes, bem como a falta de acesso a direitos são aspectos fortemente relacionados à entrada de muitos jovens no tráfico de drogas ou em outras práticas de risco (La Mendola, 2005; Peralva, 2000).

Considerações finais Embora para alguns jovens os riscos ofereçam oportunidades e sejam aceitos na expectativa de benefícios [...] para muitos outros jovens a vida é como uma loteria, onde os riscos estão fora do controle e a segurança é uma questão de sorte. (Pais, 2005, p.55)

Ser jovem, mais do que ter biologicamente uma determina idade, significa pertencer a um mesmo grupo etário ou a uma mesma geração que compartilha uma situação social comum no processo histórico e social (Mannheim, 1982). Esse pertencimento específico, pautado pela cronologização da vida, altera o tipo de herança cultural, bem como a forma de pensar e viver os diferentes desafios impostos pelas mudanças sociais. Assim, as novas gerações vivem, de uma forma específica, os processos engendrados pela modernidade atual. Os desafios impostos, como a precarização do emprego e a necessidade de arriscar-se, embora atinjam a todos, para os jovens adquirem uma dimensão mais acentuada. Isto porque ser jovem também significa um período no qual o processo de construção de identidade mostra-se nuclear, o qual se realiza, contudo, a partir de uma pluralidade de realidades e, muitas vezes, sem uma rede de apoio disponível que sirva de suporte (La Mendola, 2005). Nesse sentido, apenas nascer numa mesma época não compreende vivenciar as mesmas experiências. Os fatores sociais e culturais atuantes conformam-se de maneiras particulares de acordo com a posição social ocupada por esses jovens, o que influencia diretamente na formação de suas trajetórias e, consequentemente, nas situações de vulnerabilidade à violência. De tal modo, essas situações vêm-se agravadas em contextos específicos, nos quais as condições socioeconômicas são restritas, a falta de acesso a direitos persiste devido à inoperância do Estado e a violência, tanto policial quanto dos grupos ligados ao tráfico de drogas, está intensamente presente. Delineia-se uma conjuntura onde as condutas de risco adquirem um terreno propício e os desfechos fatais para as trajetórias de muitos jovens acabam por compor a triste história de muitas famílias. Torna-se, portanto, pertinente o uso do conceito de vulnerabilidade para a compreensão da violência envolvendo jovens, possibilitando, assim, considerar a multicausalidade que envolve este fenômeno e os diversos significados e sentidos que são atribuídos à exposição ao risco, os quais devem ser entendidos em conexão com as configurações sociais e culturais que permeiam o processo de individualização na modernidade reflexiva.

Agradecimentos Este projeto foi desenvolvido sob coordenação de Maria Fernanda Tourinho Peres, como parte do programa CEPID-FAPESP, do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Processo 98/14262).

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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RUOTTI, C.; MASSA, V.C.; PERES, M.F.T. De la vulnerabilidad y la violencia: una nueva concepción del riesgo para el estudio de homicidios de jóvenes. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.377-89, abr./jun. 2011. En el campo de la salud pública la violencia ha sido estudiada en consonancia con la clásica perspectiva de riesgo. Los análisis dentro de esa perspectiva permiten evidenciar las tendencias de morbidez y mortalidad en la población e identificar los factores del riesgo. Sin embargo, aunque importantes como fuentes de informaciones e hipótesis, estos análisis aislados no son capaces de explicar la complejidad del fenómeno. Este artículo tiene como objetivo iniciar una reflexión sobre el uso del concepto de vulnerabilidad en el estudio de la violencia, específicamente en el entendimiento de las situaciones que colocan a los jóvenes como principales víctimas de homicidios. Así, se propone una nueva concepción del riesgo teniendo en cuenta los procesos sociales y culturales presentes en la vulnerabilidad de ese grupo a la violencia letal, usando una perspectiva que presente las especificidades de la condición juvenil y los desafíos representados por la conformación social contemporánea.

Palabras clave: Riesgo. Vulnerabilidad. Homicidios. Jóvenes. Recebido em 09/04/2010. Aprovado em 28/09/2010.

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artigos

Serviços de saúde e a violência na gravidez: perspectivas e práticas de profissionais e equipes de saúde em um hospital público no Rio de Janeiro*

Sônia Maria Dantas Berger1 Karen Mary Giffin2

DANTAS-BERGER, S.M.; GIFFIN, K.M. Healthcare services and violence during pregnancy: perspectives and practices of healthcare professionals and teams in a public hospital in Rio de Janeiro. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.391-405, abr./jun. 2011.

This article presents preliminary results of semi-structured interviews with 23 healthcare professionals from a public maternity hospital, in the context of an action research project which aimed at promoting the identification of women who suffer violence during pregnancy, and at organizing a routine to support them. The perceptions of gender relations and violence in their personal and professional lives included possible signs of violence which emerge in the consultations and contacts with the patients, and the barriers, possibilities, and necessary conditions for including this question in the hospital routine. We observed that their views were broadened during the interviews and during the subsequent group discussions, in a process of ‘constructed visibility’ which indicated both the complex social sources of violence and the professional limits and responsibilities that are appropriate to the life situation of their patients and to the working conditions of these professionals.

Keywords: Healthcare professionals. Domestic violence during pregnancy. Gender. Action research.

Este artigo apresenta resultados parciais de entrevistas semiestruturadas realizadas com 23 profissionais de saúde de uma maternidade pública, no contexto de um projeto de pesquisa-ação implantado para promover a identificação e o acolhimento de mulheres que sofrem violência na gravidez. As percepções sobre as relações de gênero e sobre a violência, nas suas vidas particulares e profissionais, incluíram tanto os possíveis sinais de violência apontados no comportamento de pacientes e familiares nas consultas e contatos, quanto as barreiras, possibilidades e condições necessárias para abordarem o assunto na rotina hospitalar. Observamos que suas visões foram ampliadas na entrevista individual e nas discussões coletivas subsequentes, num processo de ‘visibilidade construída’ que apontou as raízes sociais complexas da violência, bem como os limites e as responsabilidades profissionais apropriadas à situação vivida pelas pacientes e às condições de trabalho desses profissionais.

Palavras-chave: Profissionais de saúde. Violência doméstica na gravidez. Gênero. Pesquisa-ação.

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* Elaborado com base no projeto de pesquisa-ação “Violência doméstica e gravidez de alto risco: qualificando o acolhimento no pré-natal”, financiado pelo CNPq e pela Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, mediante projeto de consultoria, treinamento e desenvolvimento do Programa de Assistência Hospitalar à Gestação de Alto Risco – IFF/ PAISMCA/SESDEC/RJ. Coordenação: Karen Giffin, 2004-2007 (encerrado). 1 Programa de PósGraduação, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Praça Jorge Machado Moreira, 100, Cidade Universitária, RJ, Brasil. 21.941-598. sdantasberger@gmail.com 2 Departamento de Ciências Sociais, Ensp/Fiocruz.

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Serviços de saúde e a violência na gravidez: ...

Apresentação A violência na gestação relaciona-se a um padrão muito grave de violência, possivelmente mais frequente do que agravos habitualmente rastreados durante o pré-natal, como o diabetes e a hipertensão arterial (Macfarlane et al., 2002). Isto ratifica a urgência de se incluir este tema, em especial, a violência entre parceiros íntimos (VPI), na atenção às gestantes (Reichenheim, Patrício, Moraes, 2008; Krug et al., 2002). Este artigo apresenta resultados parciais de um projeto de pesquisa-ação implantado em maternidade pública estadual de referência para gravidez de risco no Rio de Janeiro, entre os anos de 2005 e 20063. Nesta pesquisa-ação, foram desenvolvidas estratégias de investigação e intervenção participativas destinadas a sensibilizar e ‘formar’ profissionais de saúde para a abordagem da violência doméstica na gravidez - problema social complexo, que envolve questões de saúde pública, de direitos humanos e de justiça social. As atividades desenvolvidas - incluindo entrevistas em profundidade com profissionais de saúde e gestantes atendidas, observações sobre a rotina do serviço, e oficinas e encontros temáticos reflexivo-participativos com a equipe envolvida - colaboraram para uma ‘visibilidade coletiva construída’ sobre os sintomas e situações associados à VPI e as dificuldades e possibilidades de ação de equipes de saúde frente a tal problema. Analisamos, aqui, entrevistas semiestruturadas realizadas com 23 profissionais da equipe multidisciplinar atuante nesta unidade, que geraram insumos iniciais para encontros mensais e para o planejamento participativo de uma proposta de atuação.

Aspectos teórico-metodológicos Políticas neoliberais, ‘transição de gênero’ e VPI: seria a violência na gravidez um ‘sintoma’ da ‘sociedade de risco’? Para abordagem dos elementos construídos sócio-historicamente que contribuem para a ocorrência da VPI, forma mais prevalente de violência vivenciada pelas mulheres, é necessário um enfoque de gênero: [...] interativo com classe social, raça/etnia, diferenças de geração, capital cultural, etc. e não como uma condição que determina, por si só, diferenciais de vulnerabilidade [...] o gênero é um sistema entre outros que atuam de forma entrelaçada no plano social, com resultados às vezes contraditórios, diferentes para mulheres (e homens) em variadas situações. (Giffin, 2002, p.109)

Deste modo, além de se lançar mão da categoria ‘gênero’ para se entender como se articulam as diferenças nas relações sociais de sexo e a complexidade do fenômeno da VPI, importaria problematizar tais relações e conflitos na interface entre os aspectos relacionais e estruturais, situando-as em um mundo atravessado por processos de “precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional” (Castel, 1994, p.21). Tal posição analítica considera que as relações familiares e de gênero (e, também, o trabalho dos profissionais de saúde) estão, agora, situados em uma ‘sociedade de risco’ (Beck, 2005), consequência da adoção de políticas neoliberais 392

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O projeto ‘Violência doméstica e gravidez de alto risco: qualificando o acolhimento’ (Projeto VDG) foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Entre outros cuidados ético-metodológicos, foram utilizados Termos de Consentimento Livre e Esclarecido com profissionais e gestantes entrevistados, garantido o primeiro acolhimento dos casos de violência detectados e fornecidas informações sobre serviços de referência, complementadas com a distribuição de miniguias de serviços.

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artigos

que precarizam as relações de trabalho e diminuem tanto os rendimentos quanto a estabilidade no trabalho, aumentando a pobreza, ao mesmo tempo em que são restringidos os ‘bens de cidadania’ que ofereceriam alguma segurança social (Giffin, 2007). Neste contexto, Castel propõe o conceito de ‘desfiliação’ para analisar o atual processo de dissociação do vínculo social: [...] as populações suscetíveis de destacar intervenções sociais estão não somente ameaçadas pela insuficiência de seus recursos materiais como também fragilizadas pela labilidade de seu tecido relacional; não somente em vias de pauperização, mas também em processo de desfiliação, ou seja, em ruptura de vínculo com o social. (Castel, 1994, p.23)

Assim, o desemprego, a informalização e a precarização do trabalho, o empobrecimento e a degradação de serviços públicos se refletem no cotidiano das famílias, inclusive nas relações íntimas entre homens e mulheres. As condições sociais da vida familiar e da reprodução humana são dificultadas, as velhas representações não são sustentadas, as desigualdades de gênero são reformuladas, e homens e mulheres vivem novos conflitos. Desta ótica, a VPI abarca uma questão social complexa, apontando para relações recíprocas entre as condições de saúde e sociais existentes (Giffin, Dantas-Berger, 2007). Na medida em que estas novas configurações alterem substancialmente a divisão generificada de trabalho anterior, considera-se que estamos passando por uma ‘transição de gênero’ (Giffin, 2002). Neste processo, ocorre a celebração da ‘nova mulher’ – que trabalha fora, é independente e ‘dona’ de seu corpo– junto com o aprofundamento das desigualdades que ela pode viver pela dupla jornada, pelo trabalho precário ou pelos conflitos conjugais daí decorrentes. Uma ‘crise da masculinidade’, que vem se conformando nos últimos anos com a entrada maciça das mulheres na força de trabalho remunerada e as transformações nas práticas e valores sexuais, coloca em xeque algumas representações e práticas sociais hegemônicas associadas à maternidade, paternidade, sexualidade e divisão social do trabalho. Novos cenários se apresentam para uma análise das relações sociais de sexo, e existem situações nem sempre visibilizadas e consideradas, entre elas a VPI na gravidez. O lugar ocupado por uma gravidez na vida conjugal e familiar pode ganhar contornos diferenciados, conforme as funções femininas e masculinas sejam reconfiguradas, e as políticas de segurança social e redes de reciprocidade viabilizadas - ou não - dentro deste processo de transição. As dificuldades crescentes em garantir a sobrevivência familiar por meio de um ganho digno e estável, base da tradicional identidade masculina de provedor, por exemplo, tem estreita relação com a atitude de aceitação ou rejeição masculina perante uma gravidez (Chumpitaz, 2003), e pode estar relacionada com o início da violência doméstica justamente durante a gravidez (Oliveira, Vianna, 1993). Para estes parceiros autores de agressão, uma gravidez que aumente a família, ao invés de afirmar sua potência e virilidade, pode representar uma ameaça, ao ratificar seu fracasso ou ‘fragilidade’ frente ao que se espera de um pai-parceiro-provedor aos moldes ‘ideais’. A ausência de políticas públicas que garantam condições materiais concretas a todas as mulheres e todos os casais para o exercício da maternidade e paternidade segura e responsável, seria outro fator que colaboraria para o agravamento do problema. Além disto, associados a este quadro de precariedade material, existiriam limites vinculados à permanência de representações sociais de tradição patriarcal, associadas à objetificação da mulher e ao controle da sexualidade feminina, que sustentam a perpetuação da assimetria de poder entre homens e mulheres e a violência contra a mulher. O corpo gravídico pode significar, para alguns homens, o corpo feminino ocupado ou não disponível sexualmente; a suspeita de traição e a negação da paternidade (comuns na vida conjugal de gestantes em situação de violência) seriam outros modos de esta resistência masculina se manifestar (Oliveira, Vianna, 1993). Estas mudanças denotam o desmonte do tradicional papel masculino de provedor para o qual a maioria dos homens (e mulheres) foi preparada (Giffin, Cavalcanti, 1999). Na análise de Nolasco (1995), a falta de palavras para exprimir sua nova situação pode levar os homens a reagirem com violência, assim como o desemprego, subemprego e ganhos masculinos diminuídos também são COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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possíveis fontes de conflito conjugal. Estas dificuldades e insatisfações podem desgastar as relações conjugais e, junto com a recusa feminina ao sexo como ‘dever conjugal’, virar fontes de violência (Dantas-Berger, Giffin, 2005).

O trabalho e a cidadania ‘precarizados’: desafios dos profissionais nos processos de trabalho em saúde Conforme reforma do Aparelho do Estado de 1995, a Saúde passou a ser considerada como ‘serviço’, situada no setor terciário. A assimilação dos pressupostos neoliberais no campo da saúde se traduziu em: [...] mercantilização dos serviços de nível secundário e terciário (cerca de 70% da oferta estão na iniciativa privada); grande precarização dos vínculos de trabalho no setor público; terceirização de grande parte dos serviços assistenciais e terapêuticos [...]. (Rizzotto, 2006, p.177)

Os processos de privatização e precarização atingiram diretamente os serviços de saúde pública brasileiros e os profissionais de saúde em seu processo de trabalho. Um estudo que investigou a associação entre as condições de trabalho e distúrbios psíquicos menores (DPM) entre médicos da cidade de Salvador demonstrou que: [...] os médicos foram submetidos às mesmas regras impostas aos demais trabalhadores de qualquer empresa capitalista: instabilidade e precarização do contrato de trabalho, ritmo intenso e jornadas de trabalho prolongadas, redução da remuneração e perda do controle de sua atividade. (Nascimento Sobrinho et al., 2006, p.132)

Neste cenário, [...] o mercado funciona como princípio organizador do conjunto da vida coletiva, distanciase dos projetos do ser humano emancipado para o exercício de uma humanidade solidária e a construção de projetos sociais alternativos. (Frigotto, Ciavatta, 2003, p.58)

Onde o trabalho é submetido ao ‘mercado’, interroga-se como resgatar e potencializar valores do cuidado nos atendimentos em saúde, e implantar políticas de ‘humanização’ (Passos, Benevides, 2006) neste contexto de exigências ao ‘cidadão produtivo’. Este seria, ao que parece, o enorme desafio dos profissionais de saúde quando são convocados a incorporarem a atenção ao tema da violência, fenômeno social crescente e indicador da instalação de uma ‘sociedade de risco’. Observa-se que a degradação do trabalho e dos bens da cidadania atingiu tanto sua clientela como sua própria situação como profissionais, resultando: na precariedade dos vínculos empregatícios, na fragilização dos laços sociais e no aumento do enfrentamento pessoal e profissional de situações de conflito e violência. Portanto, embora se reconheça a dificuldade de se resolverem problemas ‘setoriais’ sem uma “transformação na esfera da política macroeconômica que condiciona as condições de vida e trabalho de todos” (Giffin, Dantas-Berger, 2007, p. 55), apostamos na necessidade de se enfocar e entender este ‘enredo maior’ que se impõe a todos, como um caminho possível na direção da construção de outras relações e entendimentos entre os profissionais em seu processo de trabalho, especialmente diante da incorporação da atenção à violência. Isto reforça a necessidade de se abrirem espaços de reflexão sobre estas vivências, tanto para os profissionais de saúde como para as usuárias, reconhecendo-se que ambos são sujeitos capazes de perceberem a natureza social do problema vivido e beneficiarem-se com o compartilhar solidário.

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As entrevistas semiestruturadas Nos primeiros três meses do projeto, após levantamento de serviços da rede de violência local, que resultou num miniguia para apoio nos processos de orientação e encaminhamentos subsequentes, 23 profissionais de atenção obstétrica hospitalar e ambulatorial foram entrevistados. As entrevistas foram realizadas em sala com condições de privacidade, no Centro de Estudos, agendadas conforme disponibilidade de cada profissional, durante seu horário de trabalho e conforme acordado com suas chefias. Duraram, em média, uma hora e dez minutos, foram gravadas, transcritas e codificadas. Apenas um profissional não autorizou sua gravação. O roteiro, com 34 questões, abordou percepções e significados dos profissionais associados à violência, incluindo temas como gênero, violência doméstica e sexual e gravidez de alto-risco, relacionados à suas experiências pessoais e profissionais, de modo a dar visibilidade a processos institucionais, subjetivos e intersubjetivos compreendidos em tais vivências.

O processo de pesquisa–ação e a ‘visibilidade coletiva construída’ Considerando-se a característica intersubjetiva do trabalho em saúde, lançamos mão da pesquisaação enquanto metodologia de pesquisa qualitativa ‘aplicada’ à produção do conhecimento e do cuidado em saúde, considerando a mesma: [...] um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. (Thiollent,1986, p.14)

Como nos apontam Silvério e Patrício (2007, p.242), a metodologia de pesquisa qualitativa já viabiliza um “encontro dialógico-reflexivo”. No nosso caso, as entrevistas individuais foram estratégias iniciais de aprofundamento na tomada de consciência da realidade em que os profissionais se encontravam, desnudando e sistematizando diferentes olhares “em busca da reconstrução de uma consciência coletiva” (p.245). O processo de conscientização individual sobre a gravidade do problema e a maior ‘visibilização’ dos sinais de violência nos comportamentos das mulheres e familiares, via entrevistas, não pareceu suficiente para que os profissionais se sentissem preparados para incorporar a abordagem do tema na rotina institucional. Questões sobre ‘como’ atuar em equipe interdisciplinar também surgiram, e orientaram o seguimento das ações do projeto. O momento inaugural da ‘coletivização’ do processo deu-se na devolução dos resultados preliminares das entrevistas, em um seminário de quatro horas de duração realizado no Centro de Estudos do próprio serviço. Cada profissional entrevistado recebeu um ‘carinhoso’ convite escrito individualizado, sendo os demais integrantes da equipe mobilizados em convite geral divulgado pela chefia e em mural de avisos do hospital. Neste evento, ao se virem representados nas falas e análises apresentadas, e reconhecidos nos seus saberes, puderam sentir-se, de fato, ouvidos e acolhidos, e uma positiva aliança foi estabelecida. Esta “escuta comprometida” (Dejours, 1999, p.10) foi primordial para viabilizar qualquer intervenção posterior. Ao mesmo tempo em que as diferenças foram discutidas, houve um “movimento dialético participativo que fez emergir também a unidade na Equipe de Saúde que até então não havia se expressado” (Silvério e Patrício, 2007, p.243). Novos estudos e ações surgiram destas discussões entre os ‘sujeitos-atores’ da pesquisa, que caminharam para um ‘agir coletivo’.

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Alguns resultados Breve perfil dos profissionais entrevistados Os 23 entrevistados incluíram 19 mulheres e quatro homens, sendo: oito obstetras, três pediatras, duas enfermeiras, quatro auxiliares de enfermagem, uma técnica de enfermagem, três assistentes sociais e duas psicólogas. A idade dos participantes variou entre 31 e sessenta anos. O grupo de profissionais da maternidade tinha tempo de serviço no hospital entre dois e 26 anos; os do ambulatório de pré-natal, entre dez e 28 anos. A maior parte estava casada ou em união consensual, e apenas seis não possuíam filhos.

Percepções sobre relações de gênero4 Perguntamos como viam as relações entre homens e mulheres atualmente, e sobre possíveis mudanças. Houve algum consenso sobre as mudanças positivas que percebiam para mulheres, no sentido de terem mais estudo e oportunidades de trabalho fora de casa, em especial nas classes mais favorecidas. Alguns ressaltaram e valorizaram mais estes ganhos associando-os à conquista da ‘independência feminina’: “Mudanças sempre ocorrem, não é? Hoje a mulher é mais participativa, às vezes é até o chefe da família, não é mais o homem. Ela tem profissão, conseguiu estudar, conseguiu se manter, não é? Então melhorou bastante [...]”. ( Ent 2, F)

Outros reconheceram que as mesmas, além dos tradicionais afazeres domésticos e cuidados afetivos com os filhos, passaram a ter, também, mais responsabilidades no orçamento doméstico e a ocuparem a função de provedora (econômica) do lar. Por vezes, tal situação resultaria em sobrecarga para a mulher, que passaria a chefiar sozinha sua casa e a viver processos de ‘desestruturação’ resultantes, por exemplo, do ‘individualismo’ pautado pela ‘igualdade’ entre homens e mulheres, mas que geraria mais desigualdades para a mulher: “Eu acho que sim, a relação homem-mulher ela modificou bastante de uns anos para cá. Eu acho que nós, mulheres, também pagamos muito caro pela nossa emancipação: porque nós temos que ser profissionais, nós temos que ser mães, dona de casa (risos), e mulher não é? Essa é a grande verdade!”. (Ent 9, F) “[...] as pessoas se igualaram e se individualizaram muito... [...] eu acho que acabou muito a estrutura familiar [...] a mulher assume muito mais papéis atualmente do que o homem [...] em geral na nossa estrutura social o homem se vê como mantenedor até o momento que deseja, ele fica com a mulher até o momento que ele quer, quando não quer ele larga a mulher e ela fica com todo o ônus da situação [...] a igualdade não está acontecendo, está existindo na verdade é um peso maior para a mulher [...]”. (Ent 13, M)

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Entrevistas codificadas (ENT 1, 2 etc.) e identificadas apenas por sexo: F (feminino) e M (masculino)

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Um dos participantes destaca as mudanças nas relações de gênero e seus efeitos nas relações entre os profissionais: “[...] Essa mudança não é só dentro de casa, não é só intrafamiliar não. É na relação na rua, é na relação com o colega, com o profissional, da médica com o médico... Antigamente era o seguinte: o colega plantonista [homem] dizia: Não, pode deixar que eu vou resolver - preservava a colega dele . Hoje em dia não!! Assim como ela tem os direitos ela tem as obrigações iguais! [...] A partir do momento que a gente vai competir de igual para igual no mercado, então eu acho que essa mudança houve, muito maior por esse lado...”. (Ent 7, M)

Observou-se, também, um maior abandono, pelos parceiros, das grávidas adolescentes e jovens. Por vezes, tal situação foi associada ao que consideraram uma sexualidade livre e barata e à informalidade dos laços: “A maioria, muitas não têm nem marido, foi um relacionamento assim, um relacionamento que começou a ter, começou a se envolver com o rapaz - que elas pensam que filho prende o homem, não é? Começou com um relacionamento, desse relacionamento vem o filho. E o rapaz ó, foi embora! E fica mais um para criar. Entendeu? Aí ela tem que trabalhar mesmo, porque o cara saiu fora [...]. ” (Ent 20, F)

Com relação aos homens, entenderam que alguns procuram dividir mais um pouco as funções de criação dos filhos. Porém, uma condição ressaltada como digna de reflexão foi que, com a maior ocupação e rendimento da mulher no trabalho, alguns homens teriam se ‘acomodado’, acabando por se responsabilizarem menos ou, mesmo, nem ocuparem suas funções paternas e de colaboração na provisão financeira do lar. Nestes casos, tais parceiros foram nomeados, por alguns participantes, como ‘encostados’: “O homem hoje, em relação a tudo isso, eu acho que ele até está deixando de ir muito mais a luta porque ele se encosta muito nesse tipo de mulher, que assume casa para sustentar”. (Ent 12, F) “[...] acho que a mulher tem ido muito à luta e o homem tem se encostado, acomodado”. (Ent 16, F)

Relataram, também, que existem determinados parceiros que resistem, não aceitam, ficam mais violentos a partir da ascensão feminina, inclusive quando passam a ganhar menos do que suas companheiras: “Às vezes, a mulher, quando ela começa a ganhar muito, ela começa até a ser mais vítima da violência do marido - até por insegurança do cara, para colocar ela no lugar dela! Não existe isso?!”. (Ent 7, M)

De modo geral, a submissão feminina por dependência financeira e/ou amorosa permaneceria a mesma naquelas uniões onde a mulher, por medo de perder o parceiro, continuaria a aceitar determinadas situações de opressão, submissão, objetificação e violência: “eu acho que por um lado a gente fala que os homens estão mudando, que as mulheres mudaram muito, mas por outro lado você ainda convive com um grande número de situações, que para mim, não mudaram absolutamente nada.[...] a maioria das mulheres com as quais a gente lida na maternidade, são mulheres que não tem um emprego formal[...], não tem o seu dinheiro. [... ] eu acho a submissão muito grande[...]. A mulher tem um medo absurdo de perder aquele companheiro.[...] Então faz tudo, se submete a qualquer tipo de coisa”. (Ent 1, F)

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Concepção da violência contra a mulher Questionados sobre o que entendiam por violência contra a mulher e se já atenderam a casos de VPI, a tendência inicial de alguns foi de enfocar a violência física e abuso emocional, naquelas agressões que se revelariam mais explicitamente no corpo ou nas queixas das mulheres, o que se traduzia em relatos de poucos casos de VPI atendidos. Progressivamente, conforme a entrevista se aprofundava e seus conhecimentos e percepções ganhavam expressão e visibilidade, observou-se que alguns elaboraram uma concepção mais ampliada da violência contra mulheres, ao afirmarem que tal violência não estaria circunscrita aos aspectos físicos e de âmbito conjugal, mas representaria uma soma de fatores estruturais, culturais, institucionais e interpessoais, entre outros. Deste modo, as modalidades de violência ‘psicológica’ e ‘moral’ contra a mulher passaram a ganhar expressão e foram consideradas tão ruins ou, até, mais comuns que a violência física: culpabilizações por coisas que não dão certo na rotina da casa; ameaças constantes de retirada da guarda dos filhos; falta de apoio e/ou abandono da mulher pelo parceiro e/ou familiares na gravidez; restrição da liberdade de ir e vir e cárcere privado, entre outras: “aqui no ambulatório o que eu percebo da violência, que às vezes acontece é uma gravidez não desejada, principalmente das mais jovens [...] ela acaba ficando sozinha, abandonada pelo parceiro[...]não é uma agressão física, mas é uma violência moral que depois que ela vai perceber”. (Ent 14, M)

Por outro lado, consideraram que tanto homens como mulheres são autores de violência psicológica e, portanto, as parceiras não seriam somente ‘vítimas’ nas situações de conflito conjugal. Ainda com relação aos tipos de violência vivenciados especialmente pelas mulheres, coube ainda menção ao sexo conjugal como ‘obrigação’, inclusive durante o período da gravidez. Ainda que destacado como uma violência por alguns profissionais, reconheceu-se que, muitas vezes, tal prática não é assim nomeada ou identificada pela própria mulher: “Mas, engraçado é que as coisas mudaram em alguns aspectos, mas ainda tem muitos resquícios – a vítima de violência sexual, principalmente se for do marido, parece que não chega a ter consciência de que aquilo é violência... Ela aprendeu que ela tinha obrigação de servilo. [...] Quando a mulher chega e diz para você que ela tem relação mas não tem prazer, ela cumpre obrigação, isso é violência não é? “. (Ent 7, M)

A discriminação e violência contra a mulher, resultante de fatores estruturais e institucionais, inclui a falta de apoio e proteção social que cercam sua vida sexual e reprodutiva, inclusive no ciclo gravídicopuerperal: mulheres que têm filhos e não têm onde deixar para trabalhar; estão grávidas e não têm serviços; não querem engravidar e não têm ou não conseguem negociar métodos; precisam comer melhor e estão sem licença-maternidade ou sem recursos; que passam dificuldades e são julgadas nos serviços ou são discriminadas pela baixa adesão nas consultas de pré-natal e/ou aos tratamentos e cuidados recomendados. “[...] Chegar aqui e subir 4 lances de escada, e todo mundo dizer que esta mulher tem que estar feliz e contente!”. (Ent 8, F) “[...] Para quem tem que pegar água para dar banho na criança, tem que passar roupa, fazer comida, e botar mais 3 na escola! É muito diferente da nossa visão de amamentação! [...] Porque amamentar dá uma fome desgraçada, você fica enlouquecida, faz hipoglicemia toda hora, você imagina ela, que não tem nada para comer, [...] eu acho que isso tudo é violência!”. (Ent 8, F)

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É importante ressaltar que nem todos os profissionais, no início, expressaram um entendimento amplo e crítico do que seria a violência contra a mulher. As discussões coletivas dos resultados da pesquisa e da prática profissional, no entanto, efetivaram, posteriormente, um processo de coletivização e potencialização desta visão.

Motivos associados aos casos de violência praticada pelo homem contra suas parceiras Muitos entrevistados citaram o uso de álcool e drogas como fator associado à ocorrência da violência, alguns justificando o comportamento masculino por isso, enquanto outros situaram tal consumo e/ou abuso apenas como fator desencadeante, destacando também os aspectos estruturais: “Sei lá, eu acho o seguinte, eu acho que tem muito a questão também da bebida. O homem que bebe, que acaba se excedendo e agredindo. Tem também essa questão dessa vida difícil, desse stress, esse desemprego, e, de repente, o homem está vendo que não está sendo suficiente para suprir aquela família. E, também fica nervoso, estressado, seria uma causa também de violência na mulher e até nos filhos também, não é? ”. (Ent 3, F)

Além da violência doméstica vivida na infância pelo parceiro, as questões culturais associadas ao machismo foram também mencionadas, identificadas nas situações onde a mulher seria vista como objeto pelo parceiro e no ‘desejo de dominação’ masculina, expresso no ciúme doentio que alguns homens manifestariam com relação à sua parceira. A associação entre fatores atribuídos às particularidades da relação social de sexo hegemônica e fatores econômicos como o desemprego masculino se refletiria, em alguns casos, na cobrança que certas mulheres fazem sobre o homem, no sentido de que o mesmo ocupe o tradicional lugar de ‘provedor’, sendo este outro motivo identificado, nas entrevistas, para desencadear brigas e agressões entre o casal: “Você vai para casa, às vezes você não trabalha, depende dele, então você fica naquela necessidade de estar cobrando as coisas do pai, ele fala que não tem. [...] Aí, quer dizer, eu acho que é mais complicado para mãe do que para o homem. O homem vai pra rua, ela fica, sabe? Também não vou dizer que ele não está nem aí. Até está, ele sente, porque ele tem que dar o leite para o filho”. (Ent 20, F)

A violência na vida dos entrevistados Preocupações relativas à violência urbana foram comuns, incluindo seus próprios medos com relação a assaltos, bala perdida, segurança dos filhos. Uma participante trouxe um retrato trágico: dos seus quatro filhos, dois eram falecidos - um por bala perdida e outro por acidente de trânsito, e outro estava desaparecido. Com relação à violência conjugal na vida de parentes próximos, foram citadas situações envolvendo pais, sogros, filhos e irmãos dos profissionais. Outra situação bastante mobilizadora e trágica foi relatada sob forte emoção: “Eu tive um exemplo muito grande na minha família... Minha irmã não estava grávida, mas o que o companheiro dela fez com ela, na frente de uma criança de 4 anos... [voz embargada] [...] Minha irmã se separou dele porque descobriu que estava envolvido com drogas, e ele fez de tudo para voltar... Ela saiu da casa que era dela. Um dia ele chegou lá no quartinho que ela tinha comprado - só tinha uma porta – de noite...[e, na manhã seguinte ] quando arrombaram a porta, minha irmã estava morta, ele deitado do lado dela!!! [...] usada [estuprada] [...] Ela não queria e ele forçou... Ela tinha as marcas aqui [mostra o pescoço]”. (Ent 4, F).

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Na vida conjugal com parceiros atuais e passados, houve relatos de atritos e agressões vividos tanto por profissionais do sexo feminino como do masculino. As situações de VPI na vida pessoal relacionavam-se à relação sexual forçada no casamento, ameaças e estresse psicológico nos momentos de separação de casal e definição de guarda de filhos.

Como a violência afetaria os serviços de saúde Foram identificadas formas como a violência urbana interferiria na rotina do serviço de saúde: no ambulatório, gestantes moradoras em áreas de risco para o tráfico de drogas faltariam às consultas agendadas por temerem complicações na sua saída ou retorno para casa; na internação, a mulher precipitaria sua saída (‘alta à revelia’); na emergência, casos de mulheres baleadas ou esfaqueadas, inclusive na barriga: “[...] tive só uma gestante que, na época, [...] ela não foi violentada assim, mas comentou [justificando sua falta à consulta] que morava num morro e [...] que familiares estariam sendo relacionados ao tráfico, então tinha que sair dali, que fugir para outro lugar, sendo ameaçada”. (Ent 2, F)

Na atenção que prestavam, alguns seriam mais cautelosos quando suspeitassem ou fossem informados de que a mulher tivesse ligação com traficantes. Por outro lado, os profissionais se mostraram preocupados com a possibilidade de eles mesmos saírem mais tarde do hospital, localizado em zona insegura, onde é comum serem ouvidos tiroteios noturnos.

Violência na gravidez: como as mulheres expressariam e os profissionais perceberiam seus sinais? Interrogados se as mulheres declaravam a violência nos atendimentos e se eles costumavam ‘suspeitar ‘ de casos de violência entre a população atendida, a maioria respondeu que a mulher não declara direta e espontaneamente tal violência, quer seja por vergonha, medo de represália dos parceiros ou de serem julgadas por terceiros; por banalizarem as agressões cotidianas vividas em suas relações conjugais ou familiares; por entenderem que suas consultas se restringiriam aos exames e sintomas clínicos; ou por não sentirem espaço ou confiança suficientes para falarem sobre tais problemas no atendimento em saúde, entre outros motivos. Muitos informaram que, somente ‘às vezes’, suspeitavam da violência doméstica nos atendimentos e, com maior frequência, dos casos de violência psicológica. Conforme a entrevista foi se desenrolando e as experiências dos profissionais foram revivificadas em suas reflexões e relatos da prática profissional, a possibilidade da violência na rotina dos atendimentos foi se tornando mais visível (ainda que não identificada como tal no início das entrevistas ou nos atendimentos que prestaram). Algumas condições diferenciadas na interação com a gestante, bem como relatos indiretos de agressões e conflitos não explicitados pelas gestantes, foram sendo demarcados como possíveis sinais de alerta. A ‘bolsa rota’ precocemente foi questionada: “por que tantos casos no serviço”? (Ent 6, F). A frequência irregular ao pré-natal ou, mesmo, o abandono e a ausência do mesmo, a instabilidade da pressão, as queixas difusas, as dores na barriga, seriam alguns outros sinais que poderiam apontar para dificuldades vividas pelas gestantes nas relações de intimidade. Também as perguntas ou preocupação excessiva sobre a frequência ou, mesmo, sobre a restrição ao sexo na gravidez - traduzidas, por vezes, na solicitação ao médico para dar por escrito tais recomendações - poderiam demonstrar a fragilidade da mulher na negociação do sexo quando não o deseja, indicador importante da qualidade da relação:

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“Às vezes uma que vem com o marido, quando está mais assim para o final [da gravidez], pergunta se pode estar tendo relação ainda. [...] Quando o marido está, você percebe que ela já falou com ele mas que ele não aceitou, então ela traz até para que eu confirme - que um determinado período ela pode se sentir desconfortável...”. (Ent 2, F)

Em outra indagação reflexiva, um participante pergunta – ‘E aquelas que estão sempre sós nos atendimentos?’ (Ent 5, F) – passando a refletir sobre a possibilidade da falta de apoio familiar e o abandono pelo parceiro serem fatores relacionados às situações de violência. Questionaram, ainda, o que de fato a gestante estaria apontando quando insiste na realização de ultrassonografia, mesmo sem haver qualquer indicação clínica “evidente” para tal? “O marido foi embora, deixou ela grávida... O marido era “ruinzinho” para ela - puxava cabelo, dava pontapé. Aí ela veio fazer tratamento, pré-natal, ficou com vergonha de conversar com a médica que atendeu. Aí a médica perguntou por que ela queria pedir uma ultrassom? Aí ela falava: - Não... eu só queria saber do neném, e tal, mudava de assunto e não dizia o que era...”. (Ent 21, F)

Com relação às puérperas, citaram alguns comportamentos na relação com o recém-nascido, como a pouca participação na rotina (banho dos bebês etc.), que poderiam estar associados a dificuldades na aceitação de uma gravidez não desejada. A ausência do pai do bebê nas visitas ou os conflitos familiares que resultariam no típico “stress pós-visita” poderiam sugerir dificuldades na convivência com os mesmos.

Barreiras e sugestões para se conversar com a gestante sobre a relação com o parceiro e situações de violência Indagou-se se achavam que poderiam perguntar sobre a relação com o parceiro e situações de agressão e violência. A maioria disse que sim, mas com algumas condições: desde que tivesse condições de privacidade porque é uma pergunta delicada; se tomasse cuidado para não chocar a paciente (saber fazer a abordagem); se não fosse só pelo interesse estatístico, só para notificação; se estivesse claro, para os profissionais, ‘por que e para que’ perguntar; se soubesse o que fazer nos casos positivos, ou como dar os devidos encaminhamentos, sendo garantido algum retorno ou seguimento para a mulher. Entre profissionais que afirmaram ser positivo incluir a abordagem da relação com o parceiro e a história pregressa de violência no atendimento, tanto a qualidade da relação profissional de saúdeusuária como a qualificação da equipe foram apontadas como condições para o êxito, havendo ainda preocupação de alguns quanto ao registro de tal situação em prontuário e, também, quanto ao estabelecimento de rotinas rígidas: “Acho que depende do vínculo que você tem com o paciente, depende do momento, depende de onde você está atendendo essa paciente, eu não sou a favor de rotinas, daquele protocolo que você tem lá aquela lista de perguntas que tem que ser feitas, isso eu acho complicado [...] acho que a gente tem que ter muito cuidado com a intimidade do paciente, [...] com o que você coloca no prontuário[...] é uma coisa complexa, não é só se deve perguntar ou não deve perguntar, depende; depende de quem vai perguntar, com que objetivo, fazendo parte do quê que vai ter essa pergunta”. (Ent 19, F)

Entre as barreiras citadas para se atuar nos casos de violência, três grupos de respostas dominaram. Em primeiro lugar, os limites da formação profissional baseada em modelo biomédico, que privilegia a prática clínica com rotinas mecanizadas, com pouca interação médico-paciente:

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“[...]. É uma coisa que até a gente pode começar a pensar mais... Porque a gente sempre acha que pode ser uma coisa infecciosa - a gente pede urina, a gente examina, a gente vê se tem corrimento ou não [...] e acaba que esquece de perguntar essas coisas importantes”. (Ent 9, F)

O segundo grupo de respostas demonstrou ser a violência um tema ‘sensível e sensibilizador’ (Schraiber, D’Oliveira, Couto, 2009) que mobiliza vivências pessoais dos profissionais, bem como mitos e preconceitos relacionados ao gênero: “[...] quando vim para cá eu não tinha preparo para isso [...] a vontade que eu tinha era de partir, dar porrada também no agressor. Eu não conseguia ver aquele agressor como alguém que também precisava de atendimento...”. (Ent 23, F)

Um último grupo de respostas sinalizou a necessidade de retaguarda institucional: recursos materiais, técnicos e humanos; espaço físico com privacidade para aconselhamentos; uma rotina interdisciplinar para seguimento dos casos; e mais tempo de consulta para incluir a abordagem da violência. Sugestões sobre ‘como fazer’ se dividiram: uns demandariam um protocolo ou rotina institucional; alguns viam que tal procedimento deveria fazer parte de qualquer atendimento; outras só quando se suspeitasse da violência. Alguns apontavam momentos, espaços de atendimento mais propícios e profissionais mais qualificados (na anamnese obstétrica, na rotina de pré-natal, pelo obstetra na 1ª consulta ou depois que ganhasse a confiança da paciente, ou pela equipe multiprofissional, desde que se definisse o papel de cada um entre detectar, acolher e encaminhar), sendo ainda mencionada a importância do esclarecimento informado das mulheres sobre tal procedimento. Um dos participantes do ambulatório não concordou com a possibilidade de incluir o tema da violência nos atendimentos, e outros dois, da maternidade, fizeram restrições: que tal procedimento nunca ocorresse no momento de internação para o parto; e que nunca se deveria perguntar diretamente sobre o evento: “[...] Até perguntar como é sua vida em casa, isso é cabível, Mas, [...] você perguntar: ‘seu marido te agride?’ Acho que é a melhor maneira para cortar toda e qualquer coisa... Você não pode ser direto a esse ponto. [...] ela vai se retrair, aí que ela não vai contar mesmo”. (Ent 7, M)

Discussão e conclusões É, portanto, através da ótica qualitativa que podemos efetivamente captar, compreender e construir estratégias que possam transformar os complexos, sutis e nem sempre explícitos conflitos, dilemas, impasses e contradições que perpassam a assistência à saúde, particularmente no campo reprodutivo. Esta abordagem nos capacita a propor mudanças que efetivamente considerem e incorporem as necessidades e expectativas dos/as pacientes e dos/ as profissionais de saúde [...]. (Simões-Barbosa, 2006, p.20)

O objetivo desta pesquisa-ação foi o de encontrar caminhos para o acolhimento das mulheres/ gestantes em situação de violência, considerando a realidade apontada pelos profissionais. Concluise que não há como se alcançar tal tarefa sem que se promovam reflexões coletivas, no dia a dia dos serviços, sobre o processo de transição de gênero na sociedade de risco. Constata-se que tal proposta tem potencialmente a força de dar mais ‘visibilidade’ a fenômenos e processos sociais complexos, fortalecendo os sujeitos do serviço de saúde tanto para o reconhecimento das condições sociais, de direitos humanos e de justiça social envolvidos, como para avançarem na identificação e tratamento dos agravos físicos, psíquicos e sexuais decorrentes da violência entre parceiros íntimos.

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As situações associadas à precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional na vida das gestantes e puérperas atendidas na unidade materno-infantil pesquisada foram determinantes no processo de trabalho cotidiano dos profissionais de saúde entrevistados e na percepção do problema da violência na vida das mulheres, assim como na definição dos atendimentos considerados mais complexos. Embora citassem os riscos materno e fetal apresentados pela maior parte da clientela, não foram os problemas ‘clínicos’ que mais inquietavam, mas sim as dificuldades relacionadas ao sucateamento do serviço público e seus efeitos na oferta de vagas, insumos e recursos humanos, na gestão da rede e apoio externo ao serviço. Porém, conforme os profissionais apresentavam suas percepções das dificuldades presentes nas relações íntimas e na vida comunitária das mulheres atendidas, surgiu a questão da formação em saúde baseada no modelo biomédico, que reproduz uma profissionalização mecanicista, focada na doença, e não no ‘sujeito’. Como disse um dos entrevistados, limitar sua consulta ao ‘examinar’ e ‘tratar’ de doenças detectadas seria insuficiente, frente ao reconhecimento de que ‘conversar’ sobre ‘coisas’, como a relação com o parceiro, é fundamental no rastreamento da violência - e fundamental, apontamos, para que o princípio da integralidade seja praticado no SUS. Resgatar e aprofundar a visão e a experiência dos profissionais de saúde via as entrevistas individuais iniciou um processo de formação diferenciado, que partiu dos conhecimentos apresentados pelos mesmos para iluminar um quadro epidemiológico e de sintomatologia associada, aplicado àquela população e serviço. Reconhecidos e fortalecidos em seus saberes práticos, os profissionais avançaram em novos questionamentos que os ajudaram: a identificar situações associadas à violência, a desconfiar da frequência com que lidavam com as mesmas e a assumir tanto limites pessoais (medos, preconceitos, conhecimentos) como responsabilidades profissionais (para além de notificar o ‘agravo’, saber como e quando perguntar sobre a violência). No processo de devolução dos resultados da pesquisa, sistematizados pelas pesquisadoras e discutidos em processo grupal, tais saberes e práticas foram coletivizados, possibilitando a troca de experiências entre os mais antigos e os mais novos, entre serviço e academia, a partir de uma realidade comum partilhada que abriu um caminho para a construção de um processo participativo de reflexão e educação no cotidiano do serviço de saúde. Além de tais reflexões promoverem um acolhimento mais justo à população, também poderiam colaborar na construção ou resgate de uma ‘sociabilidade solidária’ (Luz, 2008) entre os próprios profissionais, e de uma resistência à cultura capitalista e seus valores neoliberais, inclusive no trabalho em saúde. Colaboradores Sônia Dantas Berger participou da elaboração, coordenação e implementação de todas as etapas do Projeto VDG, elaborou a primeira versão do texto e participou de todas as etapas posteriores. Karen Giffin coordenou o projeto VDG e participou da revisão e da elaboração da versão final do manuscrito.

Agradecimentos As autoras agradecem, especialmente, aos profissionais da unidade de saúde, pela participação na pesquisa-ação; à Janaína Marques de Aguiar, pelo apoio na coleta de dados e implementação do projeto, e à Drª Tizuko Shiraiwa, pela assessoria técnica na seleção da unidade de saúde e no acompanhamento global do projeto.

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Serviços de saúde e a violência na gravidez: ...

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artigos

DANTAS-BERGER, S.M.; GIFFIN, K.M.

BERGER, S.M.D; GIFFIN, K.M. Servicios de salud y violencia durante el embarazo: perspectivas y prácticas de profesionales y equipos de salud en un hospital público en Rio de Janeiro. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.391-405, abr./jun. 2011. Este artículo presenta los resultados parciales de entrevistas semi-estructuradas realizadas con 23 profesionales de salud de una maternidad pública en el contexto de un proyecto de investigación-acción implantado para promover la identificación y el cuidado de la salud de mujeres que sufren de violencia durante el embarazo. Las percepciones sobre las relaciones de género y la violencia, en sus vidas particulares y profesionales, incluyeron las posibles marcas de violencia señalados en el comportamiento de pacientes y de sus familiares durante las consultas, así como las barreras, posibilidades y condiciones necesarias para afrontar el asunto en la rutina del hospital. Observamos que sus visiones fueron ampliadas a través de la entrevista individual y en las discusiones colectivas subsecuentes en un proceso de “visibilidad construida” que a señala las raíces sociales de la violencia y responsabilidades profesionales apropiadas a la situación de las pacientes y las condiciones de trabajo de estos profesionales.

Palabras clave: Profesionales de salud. Violencia doméstica en el embarazo. Género. Investigación-acción. Recebido em 16/04/2010. Aprovado em 07/09/2010.

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Representações sociais da violência contra a mulher na perspectiva da enfermagem Sandra Maria Cezar Leal1 Marta Julia Marques Lopes2 Maria Filomena Mendes Gaspar3

LEAL, S.M.C.; LOPES, M.J.M.; GASPAR, M.F.M. Social representations of violence against women in the nursing perspective. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.409-24, abr./jun. 2011.

Violence against women is a severe Public Health problem that occurs worldwide within all social classes. This study aimed at learning the social representations of violence against women in the perspective of nurses studying at a Nursing School in Lisbon, Portugal. Supported by the social representations, an exploratory research was carried out with the participation of 150 nurses. The data were collected through a questionnaire with five stimulating questions. For the analysis, the software DataVic 4.3 was utilized. Results evidence that the social representations of violence against women are restricted to the consensus universe which produces them and which is constituted, above all, by informal conversation and daily life. They also indicate that violence is not understood as a health problem. We consider that the theoretical foundation about the theme and the institutional involvement of the Health Services will contribute to the inclusion of violence against women in the Public Health agenda.

A violência contra a mulher constitui grave problema de Saúde Pública; ocorre no mundo inteiro em todas as classes sociais. O objetivo do estudo foi conhecer as representações sociais da violência contra a mulher na perspectiva de enfermeiras alunas de uma Escola Superior de Enfermagem de Lisboa/Portugal. Realizouse pesquisa exploratória com respaldo das representações sociais, da qual participaram cento e cinquenta enfermeiras, sendo os dados coletados por meio de questionário. Para análise, utilizou-se o software DataVic 4.3. Resultados apontam que as representações sociais da violência contra a mulher estão restritas ao universo consensual pelo qual são produzidas, constituído, sobretudo, pela conversação informal e pela vida cotidiana. Apontam, também, que a violência não é entendida como um problema de saúde. Considera-se que o embasamento teórico sobre o tema e o envolvimento institucional dos Serviços de Saúde contribuirão para a inserção da violência contra a mulher na agenda da Saúde Pública.

Keywords: Nursing. Gender and health. Violence. Violence against women.

Palavras-chave: Enfermagem. Gênero e saúde. Violência. Violência contra a mulher.

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Curso de Enfermagem, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Avenida Unisinos, 950. Bairro Cristo Rei, São Leopoldo, RS, Brasil. 93.022-000. sandral@unisinos.br 2 Programas de Pósgraduação, Mestrado e Doutorado, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 3 Conselho directivo, Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. 1

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Representações sociais da violência contra a mulher...

Introdução Nesta pesquisa são abordadas as Representações Sociais da violência contra a mulher perpetrada por (ex-)parceiro íntimo, temática que faz parte de um grupo de estudos4 e constitui grave problema de Saúde Pública, que atinge mulheres de todas as classes sociais em todo o mundo. A violência contra a mulher é conceituada como “sofrimento e agressões dirigidos especificamente às mulheres, pelo fato de serem mulheres. [...] especialmente a violência que se dá por agressores conhecidos, próximos e de relacionamento íntimo, com experiências de vida usuais” (Schraiber, D’Oliveira, 1999, p.12). Portanto, além da dor física, a mulher também sente a dor de ser agredida por alguém que ama ou que amou, e o domicílio, que deveria ser o local de proteção, é transformado em espaço de vulnerabilidade a esses eventos. Muitas das mulheres em situação de violência, que chegam às emergências de saúde, não são identificadas como tal, e o tratamento se restringe ao ferimento ou à lesão física. Sendo assim, se diante do trauma físico, a violência é invisibilizada, questiona-se: de que modo a violência contra mulheres é identificada nos atendimentos de Saúde, quando as queixas não estão diretamente relacionadas à agressão? Resultados de estudos apontam que, entre as usuárias dos serviços de saúde, é alta a prevalência de mulheres que convivem ou já conviveram com a violência (Marinheiro, Vieira, Souza, 2006; Schraiber et al., 2002). Entretanto, o registro dos casos de violência contra a mulher, na maioria das vezes, não é realizado nem identificado, pois o atendimento está direcionado aos sintomas, às queixas clínicas, e à parte do corpo supostamente comprometida (Leal, 2003). Considera-se importante ressaltar o fato de as mulheres se calarem diante da violência sofrida, seja por vergonha, por culpa ou por se sentirem responsáveis pela agressão. Mulheres em situação de violência tendem a utilizar, com maior frequência, os serviços de saúde, e a assistência tem baixo poder resolutivo, acarretando maior custo ao Sistema de Saúde, em consequência do seu uso repetitivo e ineficaz. Além disso, as mulheres, devido ao sofrimento provocado pela violência, tendem a negligenciar o cuidado consigo mesmas e com os outros. Essas são mais propensas: à entrada tardia no pré-natal, à baixa adesão ao exame de prevenção do câncer cérvico-uterino, à realização de sexo inseguro, ao abuso de álcool e tabaco, e ao uso de outras drogas (Schraiber et al., 2002). Esses aspectos demonstram que as equipes da Saúde não estão preparadas para identificar as mulheres em situação de violência, o que se agrava quando elas não expressam verbalmente a agressão. Resultados de pesquisa realizada com profissionais de Saúde de um serviço público de emergência (Leal, Lopes, 2005) evidenciaram reações de defesa acionadas pelas trabalhadoras de enfermagem no enfrentamento ao cuidado do paciente hospitalizado por agressão: a fragmentação da relação técnico-paciente; a despersonalização e negação da importância do indivíduo; o distanciamento e negação de sentimentos. As estratégias para suportar o “sofrimento” são criadas entre o grupo, por acordos, como o auxílio mútuo no cuidado aos pacientes. Considera-se que são muitos os sistemas de defesa utilizados pelos profissionais para darem conta do dia a dia de trabalho em um serviço de emergência; entretanto, nos serviços básicos de saúde, as estratégias também estão presentes e manifestadas de várias formas, dentre as quais: pela naturalização e invisibilização de usuárias e usuários em situação de violência, pela “rotulação” de algumas mulheres de poliqueixosas, entre outras.

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Grupo de Estudos em Saúde Coletiva (GESC), vinculado ao programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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artigos

A violência de gênero naturalizada pelo senso comum também faz parte do cotidiano dos profissionais de saúde, o que pode interferir nas condutas dos atendimentos às mulheres em situação de violência. Resultados de estudo que estimou a violência de gênero vivida por trabalhadoras de enfermagem de um hospital geral de São Paulo apontaram que a violência por parceiro íntimo foi a mais frequente, poucas profissionais buscaram ajuda e 31,9% das entrevistadas não perceberam o vivido como violento (Oliveira, D’Oliveira, 2008). Em pesquisa realizada em Portugal, sobre a representação dos profissionais da saúde em face da questão, identifica-se que esses, com frequência, espelham-se na prática clínica de tratar quase exclusivamente as manifestações orgânicas de uma patologia (Gonçalves, 2004). Portanto, identificar e referenciar mulheres vítimas de violência é ir além do que prestar os cuidados clínicos necessários, é tratar e resolver a causa do adoecimento (Gonçalves, 2004). Pelo inquérito nacional sobre violência de gênero, realizado em Portugal, em todos os distritos do continente, no ano de 2007, cujos participantes foram mil mulheres e mil homens com 18 anos ou mais de idade, identificou-se que cerca de uma em cada três portuguesas é vítima de violência, que ocorre na esfera da vida privada, e os agressores são, sobretudo, (ex-)companheiros íntimos (Lisboa, 2008). Em 2008, o mesmo inquérito foi realizado na Região Autônoma dos Açores, com 358 homens e 351 mulheres; nessa região do país, a prevalência da violência contra as mulheres foi de 53,3%, valor mais elevado do que a identificada no continente (38%), em 2007 (Lisboa, 2009). Resultados de outro estudo realizado em Portugal, sobre violência contra a mulher e os custos da saúde, apontam que 21% das mulheres inquiridas, com 18 anos ou mais, que foram vítimas de violência, procuraram atendimento hospitalar em decorrência da agressão (Carmo, 2006). Entretanto, somente 9% das mulheres que sofreram violência buscaram os Centros de Saúde (CSs). A autora destaca que esses, pelas características de proximidade, poderiam mais facilmente identificar o ato e o agressor; porém, isso ocorre com pouca frequência. Destaca, ainda, que os profissionais dos CSs deveriam ser mais sensibilizados para visibilizarem as mulheres nessas situações, sobretudo, porque a violencia doméstica é considerada crime no país e a denúncia pode ocorrer a partir daí. Outra questão apontada é a importância de haver ligação dos CSs com as casas-abrigo, para onde podem ser encaminhadas as mulheres em situação de violência (Carmo, 2006). As representações sociais, como formas interpretativas da realidade social, apontam para as bases nas quais estão assentadas as condutas profissionais e, nesse caso, desempenham papel nos processsos de atenção à saúde desencadeados nos atendimentos. Neste contexto, considera-se que identificar as Representações Sociais da violência, na compreensão das enfermeiras, contribui com elementos teóricos para análise, que poderão subsidiar e instrumentalizar a construção de um processo amplo de atenção, comprometido com a integralidade do atendimento à saúde, evitando, assim, a reprodução de certas formas de atendimento, marcadas pelas desigualdades sociais e de gênero ao se “olhar” a violência. Opta-se por se adotarem bases conceituais das Representações Sociais, definidas, por Moscovici, como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos” (Moscovici, 1978, p.26). Nas sociedades contemporâneas, existem duas classes distintas de universos de pensamento: os consensuais e os reificados (Moscovici, 2003). Nos reificados é que “se produzem e circulam as ciências e o pensamento erudito em geral, com sua objetividade, seu rigor lógico e metodológico, sua teorização abstrata, sua compartimentalização em especialidades e sua estratificação hierárquica” (Sá, 2004, p.28). Os consensuais se constituem, especialmente, na conversação informal na vida cotidiana, pela qual são produzidas as Representações Sociais (Sá, 2004; Arruda, 2002). A diferença entre um universo e outro não indica isolamento, nem hierarquia entre eles, apenas propósitos diversos. Analisar as implicações das Representações Sociais das(os) enfermeiras(os) sobre a violência contra as mulheres requer que a violência seja compreendida a partir desses universos construídos nas mentalidades e nos serviços, nos quais estão inseridas as práticas terapêuticas. Acredita-se que é na interação desses dois universos que se constroem as possibilidades concretas de enfrentamento ao adoecimento advindo de atos violentos. O objetivo deste estudo é apreender as dimensões significantes das Representações Sociais da violência contra a mulher em um grupo de enfermeiras(os) de uma Escola pública de Enfermagem de Lisboa. 411


Representações sociais da violência contra a mulher...

Nessa perspectiva, a questão norteadora pode ser assim sintetizada: Quais as Representações Sociais da violência contra a mulher por parte de enfermeiras(os) estudantes do Curso de Complemento de Formação em Enfermagem e da Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia, de uma escola pública de Enfermagem de Lisboa?

Metodologia Trata-se de um estudo exploratório qualitativo, com respaldo teórico das Representações Sociais (Moscovici, 1978), que se alimentam “não só das teorias científicas, mas também dos grandes eixos culturais, das ideologias formalizadas, das experiências e das comunicações quotidianas” (Vala, 2006, p.458). Portanto, considera-se que esses elementos poderão auxiliar a compreender as representações da violência contra a mulher, na perspectiva de enfermeiras(os) e, assim, poder contribuir para pensar o enfrentamento do problema na Área da Saúde. O estudo foi realizado em uma Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, Portugal. Participaram da pesquisa cento e cinquenta enfermeiras (os) (cento e trinta mulheres e vinte homens), estudantes do Curso de Complemento de Formação em Enfermagem e da Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia, de uma Escola pública de Enfermagem, de Lisboa. A amostra foi constituída por seleção aleatória, seguindo o critério de incluir todos os sujeitos com interesse em participar do estudo e que estavam presentes na sala aula, nos dias marcados para a coleta dos dados, que foi ali realizada, no período de novembro a dezembro de 2008, por meio de um instrumento individual, com cinco questões-estímulo: “Quando penso em violência, lembro-me de... ”; “Quando penso em violência contra a mulher, lembro-me de...”; “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-)companheiro, (ex-)namorado, lembro-me de...”; “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”; “Quando penso se a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública ou um caso de polícia, lembro-me de...”. Foi solicitado que o participante respondesse a cada estímulo com, no máximo, cinco palavras ou frases curtas. Seguiramse os critérios éticos para pesquisa, vigentes em Portugal, e solicitou-se que cada participante lesse e assinasse um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, seguindo-se as orientações preconizadas pela Resolução 196/96 (Brasil, 1996): consentimento informado em duas vias, ficando uma com o participante, constando os telefones e endereços eletrônicos dos pesquisadores, disponibilizando o contato; explicitação, aos entrevistados, sobre seu direito de interromper, a qualquer momento, o preenchimento das questões de pesquisa; a garantia do anonimato; garantia de retorno dos resultados, após a conclusão da pesquisa. Para a análise, reduziram-se todas as palavras associadas a cada um dos estímulos, sem categorizá-las; deixaram-se os adjetivos e substantivos no masculino e singular e os verbos no infinito, baseando-se exclusivamente no critério de raiz etimológica da palavra, pois, para qualquer redução em termos de significados, é necessário buscar o recurso de juízes (Oliveira, Araújo, 1999; Amâncio, Carapinheiro, 1993). Utilizou-se o software DtmVic 4.0 (Lebart, 2008). Os universos semânticos associados à violência contra a mulher foram identificados para cada um dos estímulos, com as palavras ou produções em texto livre (as variáveis qualitativas), pela Análise Fatorial de Correspondências (AFC) Simples. A AFC Simples é a extração dos fatores ou universos semânticos das palavras, que são as variáveis qualitativas. Elas surgem em polos positivos e negativos, que correspondem a sua projeção nos eixos fatoriais; sem conotação valorativa, é possível fazer atribuições de significados a conjunto de palavras agrupadas em fatores. A contribuição absoluta é o nível de participação de cada palavra (variável) na construção ou definição de um eixo ou fator, que é explicado pelas variáveis que têm valores mais elevados de contribuição absoluta (Oliveira, Amaral, 2007). Portanto, o peso que a palavra tem na explicação do fator é identificado pelo valor numérico das contribuições absolutas (Gaspar et al., 2000).

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LEAL, S.M.C.; LOPES, M.J.M.; GASPAR, M.F.M.

artigos

Resultados e discussão Conforme já citado anteriormente, a pesquisa foi constituída por cento e cinquenta enfermeiras(os), alunas(os) do Curso de Complemento de Formação em Enfermagem (99) e da Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia (51), de uma Escola pública de Enfermagem, de Lisboa. O Curso de Complemento de Formação em Enfermagem, criado pela Portaria 799-E/99, destinase à atribuição do grau de licenciado em Enfermagem aos enfermeiros titulares do grau de bacharel ou equivalente legal (Ordem dos Enfermeiros, 2008). A seguir, apresenta-se a caracterização dos sujeitos quanto ao sexo, faixa etária, curso e tempo de experiência na enfermagem. O sexo feminino representou o percentual de 87% dos participantes, 56% para o grupo do Complemento e 31% para o da Especialização. Para homens e mulheres (n= 150), a faixa etária de 31 a quarenta anos foi a mais frequente, totalizando, respectivamente, 68 e vinte enfermeiras(os). Entretanto, especificamente para os participantes do Curso de Especialização (n= 51), a faixa etária de vinte a trinta anos foi a mais frequente para a maioria (54,9%). Quanto ao tempo de trabalho na Área da Enfermagem, o período entre 11 e vinte anos foi mais frequente para os que cursaram o Complemento. A maioria dos integrantes do grupo da Especialização em Materno tinha, no máximo, dez anos de experiência na área. A caracterização dos participantes da pesquisa teve como objetivo fazer breve contextualização, sem o intuito de visualizar o conjunto de conhecimentos do grupo, mas com interesse de destacar as diferenciações, como, por exemplo, a pouca idade e tempo de experiência profissional. Entretanto, entende-se que a representação da violência contra a mulher independe dos referidos fatores, mas do solo cultural onde os sujeitos de pesquisa estão inseridos. Portanto, neste estudo, não foram feitas comparações entre as variáveis. A seguir, apresentam-se os resultados relacionados às Representações Sociais da violência contra a mulher sob a ótica das enfermeiras em estudo. Salienta-se que, para referir-se aos participantes da pesquisa, optou-se por usar o termo enfermeira, no feminino, por ser um contingente majoritário. As respostas dos cento e cinquenta participantes, referentes aos cinco estímulos, totalizaram 4.058 palavras, com 967 (28,3%) palavras distintas. Para a análise de cada um dos estímulos, consideraramse as palavras retidas com frequência superior a nove. Das respostas ao 1º estímulo, “Quando penso em violência, lembro-me de...”, resultaram 852 palavras, com 236 (27,7%) palavras distintas. Com a frequência superior a nove, resultaram 425 palavras, das quais 17 distintas, que são apresentadas no Quadro 1. Quadro 1. Palavras retidas por ordem de frequência superior a nove, relacionadas ao estímulo “Quando penso em violência, lembro-me de...”. n = 150 Palavras retidas

Frequência

Palavras retidas

Frequência

agressão

58

choro

20

dor

57

angústia

13

agressão física

42

mulheres

13

agressão psicológica

35

violação

13

maus-tratos

35

tristeza

12

lesões

24

gritos

12

sofrimento

23

crianças

11

medo

23

sangue

11

guerra

22

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

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Representações sociais da violência contra a mulher...

As seis palavras mencionadas com maior frequência foram: agressão, dor, agressão física, agressão psicológica, maus-tratos e lesões, que indicam agressão física e psicológica, associada com lesões físicas. A palavra agressão apareceu 58 vezes e a palavra sangue, 11 vezes, frequências máxima e mínima estabelecidas, o que representa que, nesse primeiro momento, a agressão física foi mais evidente. No Quadro 2, apresenta-se a Análise Fatorial de Correspondência Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em violência, lembro-me de...”.

Quadro 2. AFC Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em violência, lembro-me de...”. n = 150 Fatores

Coordenadas (+) Contribuições absolutas

F1 agressão física

agressão física (27.3) agressão psicológica (23.8)

tristeza (14.2) dor (9.9)

maus-tratos (11.3) violação (6.3)

mulheres ( 27.1) guerra (12.6) crianças (10.8) sangue (9.8)

agressão física (9.2) tristeza (20.5) dor (8.8)

agressão (21.0) maus-tratos (20.7) violação (7.7)

F2 mulheres F3 agressão

Coordenadas (-) Contribuições absolutas

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

No Quadro 2, para o 1º estímulo, “Quando penso em violência, lembro-me de...”, os fatores isolados foram: agressão física (F1), mulheres (F2) e maus-tratos (F3). Em relação a F1, pode-se considerar que a violência é representada pela agressão física (27.3) e outros tipos de agressão, causando tristeza e dor às pessoas, em geral, uma vez que a violência contra a mulher não é citada. Entretanto, F2 é explicado pela palavra mulheres (27.1), à qual se associa guerra, maus-tratos e criança. Guerra é o espaço onde ocorrem as maiores atrocidades, violência, maus-tratos, e as principais vítimas são as mulheres e as crianças. No terceiro fator, a palavra agressão (21.0) seguida de maus-tratos e tristeza, pode significar que, além das lesões físicas, as marcas da violência podem ser expressas por sinais de maus-tratos, tristeza, dor e violação. A palavra Agressão psicológica (28,3) domina o polo positivo e Mulheres (27.1) o polo negativo; portanto, a agressão psicológica contra a mulher pode ser, aqui, entendida como referência nos casos de mulheres em situação de violência. No 2º estímulo, “Quando penso em violência contra a mulher, lembro-me de...”, identificaram-se 858 palavras, das quais, 274 distintas (31,9%). Ao considerar a frequência de palavras superior a 9, resultaram 414 palavras, com 25 distintas, apresentadas no Quadro 3.

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Palavras retidas

Frequência

Palavras retidas

Frequência

dor

32

homem

15

agressão física

30

silêncio

13

agressão psicológica

24

humilhação

13

violação

24

crime

13

sofrimento

24

injustiça

12

agressão

21

tristeza

12

medo

20

solidão

12

maus-tratos

17

vergonha

12

mulheres

17

fragilidade

12

discriminação

16

choro

11

revolta

15

angústia

10

covardia

15

abuso

10

lesões

15

artigos

Quadro 3. Palavras retidas por ordem de frequência superior a nove, relacionadas ao estímulo “Quando penso em violência contra a mulher, lembro-me de...”. n = 150

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

As palavras mais frequentes são: dor, agressão física, agressão psicológica, violação, sofrimento e agressão. Dor é citada 32 vezes, e as palavras angústia e abuso dez vezes, frequências máxima (32) e mínima (dez) estabelecidas, o que aponta para a representação da violência contra a mulher relacionada à dor (física e/ou psíquica) e ao abuso. O sentimento de angústia pode estar relacionado à situação da mulher, mas, também, às dificuldades das enfermeiras para lidarem com a questão. No Quadro 4, apresenta-se a Análise Fatorial de Correspondência Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em violência contra a mulher, lembro-me de...”.

Quadro 4. AFC Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em violência contra a mulher lembro-me de...” n = 150 Fatores

Coordenadas (+) Contribuições absolutas

Coordenadas (-) Contribuições absolutas

F1 covardia

agressão psicológica (12.0) agressão física (11.0) agressão (6.7) violação (5.6)

covardia (34.8) humilhação (7.3)

F2 covardia

covardia (33.7) lesões (6.3) agressão psicológica (6.7)

tristeza (21.9) abuso (6.4)

lesões (19.3) fragilidade (8.9)

covardia (15.4) agressão (14.0) maus-tratos (10.2) abuso (9.2)

F3 lesões

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

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Representações sociais da violência contra a mulher...

Na extração dos universos semânticos das palavras relacionadas ao estímulo “Quando penso em violência contra a mulher, lembro-me de...”, covardia representou majoritariamente os dois primeiros fatores: F1 (34.8), F2 (33.7). Também dominou os polos positivos e negativos, o que reforça o significado da palavra no contexto da violência contra a mulher. O F3 foi representado pelas lesões decorrentes da violência, associadas a covardia, agressão e maus-tratos. No F1, covardia está associada, sobretudo, às palavras agressão psicológica e agressão física, o que vai ao encontro de resultados de pesquisas que indicam que as mulheres em situação de violência estão expostas à agressão psicológica e a ameaças do agressor (ex-marido, ex-companheiro), o que, na maioria das vezes, as impede de denunciarem as agressões sofridas (Soares, 2005). Em F2, a palavra covardia está associada, sobretudo, à tristeza. No F3, a palavra lesões associa-se a covardia, agressão e maus-tratos, o que ressalta o comprometimento psicológico e as lesões físicas resultantes da agressão. A tristeza pode ser representada tanto pelo sentimento da mulher, quanto por tudo que a envolve e sua família. Também pode-se considerar que a covardia e o sentimento de posse são as principais características do agressor, e que, na maioria das vezes, o motivo da agressão é o ciúme (Deeke et al., 2009; Barroso, 2007). Destaca-se que o ciúme e o sentimento de posse foram os principais motivos apontados por mulheres portuguesas agredidas por (ex-)companheiro íntimo (Lisboa, 2009, 2008). Em relação à agressão psicológica, Paim (2006, p.10) ressalta que “antes do agressor poder ferir fisicamente sua companheira, precisa baixar sua auto-estima de tal forma que ela tolere as agressões”; explica que, frequentemente, ele começa buscando diminuir a mulher, mediante pequenas coisas que ela diz ou faz, até sentir-se tão insignificante e considerar necessitar da ajuda dele até para decidir pequenas situações do dia a dia. Este movimento da violência é sutil, muitas vezes, imperceptível para ambos; com muita frequência, a mulher tende a justificar e entender o padrão de comportamento do agressor (Silva, Coelho, Caponi, 2007). Para o 3º estímulo, “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-)companheiro, (ex-)namorado, lembro-me de...”, foram citadas 923 palavras, das quais 311 (33,7%) são diferentes. Considerando-se a frequência maior que nove, apareceram 379, com 17 palavras distintas, descritas no Quadro 5.

Quadro 5. Palavras retidas por ordem de frequência superior a nove, relacionadas ao estímulo “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-)companheiro, (ex-)namorado, lembro-me de...”. n = 150 Palavras retidas

Frequência

apoio

69

proteção

17

ajuda

51

empatia

16

encaminhar

33

escutar

15

cuidar

23

carinho

14

compreensão

21

confortar

12

denúncia

20

compaixão

11

mulheres

19

polícia

10

ouvir

19

medo

10

revolta

416

Palavras retidas

Frequência

18

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

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artigos

As palavras mais frequentes foram: apoio, ajuda, encaminhar, cuidar, compreensão e denúncia, que demonstram o sentimento relacionado ao apoio e cuidado às mulheres em situação de violência, associados à indicação de denúncia. A palavra apoio aparece 69 vezes, e as palavras polícia e medo, dez vezes cada uma, com frequência máxima e mínima estabelecida, o que reforça a representação de apoio às mulheres; entretanto as palavras medo e polícia também podem indicar as dificuldades enfrentadas quando a mulher é encaminhada para a denúncia. Além da sua exposição aos policiais, o medo também representa as ameaças do agressor e o risco de ser agredida mais severamente por ter feito a queixa policial. A seguir, no Quadro 6, apresenta-se a Análise Fatorial de Correspondência Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-) companheiro, (ex-)namorado, lembro-me de...”.

Quadro 6. AFC Simples relacionada ao estímulo “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido/ (ex-)companheiro/ (ex-)namorado, lembro-me de...”. n = 150 Fatores

Coordenadas (+) Contribuições absolutas

Coordenadas (-) Contribuições absolutas

F1 revolta

revolta (54.4) compaixão (29.9)

apoio (3.7)

F2 confortar

confortar (74.5)

carinho (5.5) polícia (3.6)

carinho (33.3) compreensão (4.1)

polícia (24.8) medo (12.1) revolta (9.7) denúncia (6.7)

F3 carinho

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

No Quadro 6, para o estímulo “Quando penso em cuidar de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-) companheiro, (ex-)namorado, lembro-me de...”, os fatores isolados foram: revolta (F1), confortar (F2) e carinho (F3). O primeiro fator (F1) pode ser denominado fator de revolta (54.4), palavra que praticamente explica este polo e está associada ao sentimento de compaixão. O segundo fator (F2) é explicado pela palavra confortar (74.5), e o terceiro (F3), pela palavra carinho (33.3) acompanhada de polícia, o que representa que a enfermeira, primeiro, procura confortar a mulher em situação de violência, para, depois, encaminhá-la à polícia, ou seja, instrumentalizar a mulher para fazer a denúncia da agressão. A palavra confortar (74.5) domina o polo positivo e pode ser considerada como referência para a ação das enfermeiras frente à mulher em situação de violência, sendo que a palavra polícia (24.8) domina o polo negativo e está relacionada, sobretudo, ao medo, reforçando, mais uma vez, a exposição da mulher aos policiais e às dificuldades enfrentadas no encaminhamento da denúncia da violência contra a mulher. Considera-se importante confortar a mulher em situação de violência e agir com ações de carinho; essas, entretanto, são atitudes restritas à esfera de cunho pessoal. Para o enfrentamento do problema, utilizam-se ações técnicas, como o esclarecimento sobre seus direitos de mulher, sendo que a articulação dos serviços com centros de referência no atendimento e com ONGs de apoio auxiliam a mulher no enfrentamento do problema. Resultados da pesquisa realizada em Portugal, sobre a representação social de profissionais de saúde acerca da violência contra a mulher, identificaram que 60% das enfermeiras entrevistadas consideravam que as mulheres ficavam perturbadas se fossem questionadas sobre a violência doméstica, e 28% tinham COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Representações sociais da violência contra a mulher...

receio de ofender a paciente se questionassem sobre o assunto (Gonçalves, 2004), o que pode justificar o atendimento restrito ao conforto e carinho. Nessa perspectiva, entende-se que ainda não está estabelecida, entre os profissionais de saúde, a inclusão da violência como causa na demanda dos serviços. As representações culturais são decisivas para o desenvolvimento das identidades da sociedade contemporânea e possuem um papel determinante na construção das identidades de gênero, como um poderoso instrumento para a “manutenção da discriminação e subalternidade das mulheres” (Aguado 2005, p.23). Nessa perspectiva, a violência contra a mulher é considerada uma questão privada, e não um problema de Saúde Pública. O 4º estímulo, “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”, desencadeou a citação de 716 palavras, das quais 305 (42,6%) são distintas. As palavras retidas, com frequência superior a nove, totalizaram 217, com 14 distintas, que estão listadas no Quadro 7.

Quadro 7. Palavras retidas por ordem de frequência superior a nove, relacionadas ao estímulo “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”. n = 150 Palavras retidas

Frequência

Palavras retidas

Frequência

apoio

29

mulheres

15

sinais

25

escutar

11

observar

18

vítima

11

cuidar

17

ouvir

11

empatia

17

violência

10

ajuda

17

relação de ajuda

10

encaminhar

16

saber

10

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

As palavras mais frequentes foram: apoio, sinais, observar, cuidar, empatia e ajuda, todas relacionadas ao apoio e ao cuidado. A palavra apoio foi citada 29 vezes e as palavras violência, relação de ajuda e saber, dez vezes cada uma, com frequência máxima e mínima estabelecida. Podese considerar que o apoio e a relação de ajuda às mulheres em situação de violência exigem que a enfermeira tenha respaldo teórico sobre o tema para saber agir e identificar os casos. No Quadro 8, apresenta-se a Análise Fatorial de Correspondência Simples relacionada ao estímulo “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”, n = 150. Na extração dos universos semânticos das palavras relacionadas ao estímulo “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”, os fatores isolados foram: sinais (F1), vítima (F2) e apoio (F3).

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Fatores

Coordenadas (+) Contribuições absolutas

artigos

Quadro 8. AFC Simples relacionada ao estímulo “Quando penso na contribuição da minha formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher vítima de violência, lembro-me de...”. n = 150 Coordenadas (-) Contribuições absolutas

F1 sinais

apoio (7.9) cuidar (3.6)

sinais (38.9) violência (20.5) mulheres (15.9)

F2 vítima

mulheres (6.6) relação de ajuda (6.3)

vítima (65.0)

F3 apoio

apoio (22.1) violência (13.0) ajuda (8.1)

saber (12.5) mulheres (10.9) observar (11.5)

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

No primeiro fator (F1), a palavra sinais (38.9), associada a violência e mulheres, pode indicar que, na sua formação profissional, as enfermeiras foram informadas sobre a identificação dos casos, ou, ainda, que não tiveram acesso ao conhecimento dos sinais da violência contra a mulher e estão buscando as informações. O F2 é representado pela palavra vítima (65.0) relacionada à palavra mulher, o que ajuda a identificá-la como vítima; entretanto, este entendimento dificulta as ações voltadas ao seu empoderamento, uma vez que, ao ser considerada “vítima”, é excluída sua participação na relação, a possibilidade de ser sujeito da ação e de romper o ciclo da violência. Considera-se que o fato de a palavra vítima estar inserida na questão estímulo pode ter influenciado na representação, porém, ressalta-se que, em nenhum momento, houve o questionamento do termo, indicando a naturalização da mulher como vítima. Nessa perspectiva, na Área da Saúde, considerar a pessoa como vitima é “significá-la como detentora de menor potencialidade diante das suas possibilidades de vir a ser sujeito plenamente potente, de deter auto-domínio e soberania de decisões” (Schraiber, D’Oliveira, 1999, p.15). Portanto, ao considerar a mulher vítima, se “perpetua a noção da mulher como um sujeito incapaz, à semelhança das crianças, dos doentes ou dos loucos, em maior grau! Incapaz de decisões, incapaz de pleno domínio de si... então necessitaria de eternos tutores” (Schraiber, D’Oliveira, 1999, p.5). No terceiro fator (F3), a palavra apoio, associada às palavras violência, saber e mulheres, reforça a ideia de que é necessário respaldo teórico para identificar as mulheres em situação de violência, para saber quais as ações de enfermagem e “o que fazer” frente à violência como demanda, nos atendimentos de saúde. Entretanto, a representação das enfermeiras fica restrita à esfera “do apoio” e não se vincula ao comprometimento institucional de identificar os sintomas, reconhecer a mulher em situação de violência e incluir os demais encaminhamentos que envolvem o atendimento de saúde às mulheres em situação de violência. Resultado de pesquisa realizada em um hospital de trauma, no Brasil, identificou que os profissionais da enfermagem lidam com seus conflitos individual e coletivamente, e que não há uma preocupação do hospital em dar um suporte psicológico para que eles possam enfrentar as dificuldades do dia a dia (Leal, 2003). Borsoi, Brandão, Cavalcanti (2009, p.167) ressaltam “que os serviços de saúde têm o dever de se constituir como um local de acolhimento e elaboração de projetos de apoio” às mulheres em situação de violência. Concorda-se com as autoras citadas e considera-se que, além da formação acadêmica, voltada ao reconhecimento e identificação dos atendimentos das mulheres em situação de violência, o envolvimento e o respaldo institucional possibilitam a construção de ações voltadas ao atendimento integral.

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Representações sociais da violência contra a mulher...

O 5º e último estímulo, “Quando penso se a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública ou um caso de polícia, lembro-me de...”, totalizou 709 palavras, com 327 (46,1%) distintas, sendo que aquelas com frequência superior a nove constituíram 213, das quais as 13 diferentes são citadas no Quadro 9.

Quadro 9. Palavras retidas por ordem de frequência superior a nove, relacionadas ao estímulo “Quando penso se a violência contra a mulher é um problema de saúde pública ou um caso de polícia, lembro-me de...”. n = 150 Palavras retidas

Frequência

Palavras retidas

Frequência

apoio

41

comunidade

13

leis

22

sociedade

12

vítima

19

proteção

11

mulheres

17

educação

11

família

16

social

10

polícia

16

ajuda

10

denúncia

15

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

As palavras retidas com maior frequência foram: apoio, leis, vítima, mulheres, família, polícia explicitando que a representação da violência contra a mulher ainda está mais inserida no campo policial do que na Área da Saúde, portanto não é considerada um “problema de Saúde Pública”. A palavra apoio foi citada 41 vezes e as palavras social e ajuda, dez vezes cada uma, com frequência máxima e mínima estabelecida, o que pode indicar que o apoio à mulher em situação de violência está ancorado à ajuda social na figura da assistente social e de organizações não governamentais, reforçando mais a exclusão do tema na Área da Saúde. No Quadro 10, apresenta-se a Análise Fatorial de Correspondência Simples relacionada ao estímulo “Quando penso se a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública ou um caso de polícia, lembro-me de...”.

Quadro 10. AFC Simples relacionada ao estímulo “Quando penso se a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública ou um caso de polícia, lembro-me de...”. n = 150 Fatores F1 social F2 educação F3 ajuda

Coordenadas (+) Contribuições absolutas família (18.9) social (40.0)

educação (25.4)

educação (27.5) sociedade (12.5)

ajuda (18.1) vítima (6.1)

leis (16.4) polícia (7.4)

ajuda (47.6) social (8.0) educação (7.1)

Fonte: SMCL, Lisboa, 2008.

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Coordenadas (-) Contribuições absolutas

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artigos

Os fatores isolados relacionados a esse 5º estímulo foram: social (F1), educação (F2) e ajuda (F3). O primeiro fator (F1), denominado social (40.0), está associado às palavras educação e família. Nessa perspectiva, pode-se considerar que a representação da violência contra a mulher está voltada ao papel da educação e da família. No segundo fator (F2), a educação (27.5) aparece novamente em destaque, relacionada às palavras ajuda e sociedade. No terceiro fator (F3), a palavra ajuda (47.6) está associada à palavra leis. Portanto, para as enfermeiras que participaram desta pesquisa, a violência contra a mulher não é considerada um caso de polícia; pode ser um problema público (social), mas ainda não é entendida como um problema de Saúde Pública. Os resultados deste estudo vão ao encontro do que Borsoi, Brandão e Cavalcanti (2009, p.170) identificaram ao entrevistarem profissionais de saúde de serviços de atenção básica, no Rio de Janeiro, sobre questões que envolvem a violência contra a mulher. As autoras afirmam que “apesar de conseguirem identificá-la, alguns profissionais ainda encontram dificuldade em perceber a violência como demanda de ação específica para o setor saúde”. Resultados de estudo português, realizado com mulheres atendidas em Centros de Saúde do país, revelaram que cerca da metade das vítimas estabelece relação de causalidade entre a violência e os efeitos negativos relacionados à família e aos amigos, na qual os membros da família se destacam (40,2 %), sendo, na sua maioria, filhos (58,8%). Assim, concorda-se com os autores citados que, depois das próprias mulheres, os filhos, em especial as crianças, são as maiores vítimas dos atos de violência (Lisboa, Barros, Cerejo, 2008). Ainda referindo-se ao mesmo estudo, cerca de um quinto das mulheres inquiridas tiveram filhos doentes, nos 12 meses anteriores à realização da pesquisa (21,2%); os autores ressaltam que a probabilidade de isso acontecer com as que estão em situação de violência é 50% maior do que com as não-vítimas (Lisboa, Barros, Cerejo, 2008). Portanto, considera-se que a identificação e o acolhimento das mulheres em situação de violência nos atendimentos dos serviços de saúde é o início da sensibilização para a visibilização da questão como um problema de Saúde Pública que abrange tanto a saúde da mulher, quanto a da sua família, em especial a dos seus filhos (Lisboa, 2006, 2009). O Relatório Mundial de Saúde destaca que são inúmeras as consequências da violência perpetrada por (ex-)parceiro íntimo, na saúde das mulheres e dos seus filhos, e, ainda, que elas buscam, com muita frequencia, os serviços de saúde; a maioria espera que os profissionais de saúde inquiram sobre a violência, não com a expectativa de que resolvam o seu problema, mas de serem escutadas, tratadas e ajudadas a assumirem o controle das suas decisões. Porém, na maioria das vezes, esses profissionais têm dificuldade em interrogá-las sobre a violência, sobretudo, por falta de formação e competência. Entretanto, estão em posição privilegiada para identificar essas usuárias, incluindo a sua referenciação para apoios psicossociais, legais, entre outros. A “intervenção permite reduzir o impacto da violência na saúde e no bem-estar da mulher, bem como das suas crianças, e pode igualmente ajudar a impedir futuros episódios de violência” (OMS, 2008, p.49).

Considerações finais A violência foi representada pelas enfermeiras como agressão física associada à tristeza e à dor, que podem ser decorrentes dos ferimentos e do sofrimento da mulher por ser agredida por alguém que é ou foi tão próximo/intimo, com quem tem ou teve laços afetivos recentes. A associação com guerra, maus-tratos e crianças pode estar relacionada à guerra em si, mas, também, à situação “guerra” vivida por uma família, na qual a mulher é agredida pelo marido/companheiro, o que, na maioria dos casos, resulta em maus-tratos às crianças. Por último, a agressão associada a maus-tratos e tristeza pode representar as marcas da violência expressas por tristeza, dor e violação. Na perspectiva das enfermeiras, a violência contra a mulher foi representada, majoritariamente, como uma ação de covardia associada à agressão psicológica, agressão física, tristeza e maus-tratos.

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Representações sociais da violência contra a mulher...

Entretanto, a representação da violência contra a mulher, no âmbito da ação das enfermeiras frente a essa situação, ficou restrita ao universo consensual (senso cumum), no qual a revolta, o conforto e o carinho representaram o que pesam quando cuidam de uma mulher que procurou o serviço de saúde por ter sido agredida pelo (ex-)marido, (ex-)companheiro, (ex-)namorado. Considera-se que a construção do universo reificado é resultante tanto do embasamento teórico sobre o tema, como do envolvimento institucional e inserção da violência contra a mulher na agenda dos serviços de saúde. Nessa perspectiva, a contribuição da formação acadêmica e profissional, para identificar uma mulher em situação de violência, foi expressa pela extração dos universos semânticos, cujos fatores isolados foram as palavras: sinais, vítima e apoio. Ressalta-se que o apoio pode auxiliar a mulher a enfrentar a situação. Porém a ajuda, em muitos casos, só é possível quando ela já está em condições de ser ajudada, ou seja, conseguiu identificar que está em situação de violência e decidiu romper com esse ciclo. Ressalta-se que, para chegarem a este estágio, na maioria dos casos, as mulheres ficam submetidas ao domínio do agressor por mais de uma década. Quanto à questão se violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública ou um caso de polícia, a representação da violência contra a mulher está voltada ao papel da educação, da família e da sociedade, no âmbito da ajuda e das leis. As enfermeiras que participaram da pesquisa não consideraram a violência contra a mulher um caso de polícia, nem um problema de Saúde Pública; para elas, é um problema social, que envolve educação, família, leis e ajuda social. Entende-se que a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública, entretanto, na maioria dos países, assim como no Brasil e em Portugal, nas Instituições de saúde, ainda estão sendo necessários investimentos referentes à criação de uma cultura institucional voltada à identificação das mulheres em situação de violência, bem como ações nas quais os profissionais de saúde estejam instrumentalizados e respaldados para enfrentar as situações. Dessa forma, a violência contra a mulher pode ser incluída em uma agenda de “atenção” para além dos atendimentos, considerada um problema de saúde, com responsabilização e comprometimento institucional dos serviços no campo intersetorial, com a implementação efetiva da referência e contrarreferência, além de constante suporte, teórico e psicológico, aos profissionais de saúde envolvidos nesses atendimentos.

Colaboradores As autoras Sandra Maria Cezar Leal, Marta Julia Marques Lopes e Maria Filomena Mendes Gaspar participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do manuscrito.

Referências AGUADO, A. Violencia de género sujeto femenino y ciudadanía en la sociedad contemporánea. In: CASTILLO-MARTÍN, M.; OLIVEIRA, S. (Orgs.). Marcadas a ferro. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. p.23-34. AMÂNCIO, L.; CARAPINHEIRO, G. Dimensões do poder e do saber: uma abordagem exploratória. In: GONÇALVES, M.E. (Org.). Comunidade científica e poder. Lisboa: Edições 70, FPASC, 1993. p.55-71. ARRUDA, A. Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cad. Pesqui., n.117, p.127-47, 2002. BARROSO, Z. Violência nas relações amorosas: uma análise sociológica dos casos detectados nos Institutos de Medina Legal de Coimbra e do Porto. Lisboa: Edições Colibri/ SociNova, 2007.

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LEAL, S.M.C.; LOPES, M.J.M.; GASPAR, M.F.M.

artigos

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LEAL, S.M.C.; LOPES, M.J.M.; GASPAR, M.F.M. Representaciones sociales de la violencia contra la mujer bajo la perspectiva de la enfermería. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.409-24, abr./jun. 2011. La violencia contra la mujer es un grave problema de Salud Pública que ocurre mundialmente en todas las clases sociales. El estudio ha investigado las representaciones sociales de la violencia contra la mujer bajo la perspectiva de alumnas de una Escuela Superior de Enfermería de Lisboa, Portugal. De la pesquisa exploratoria participaron 150 enfermeras siendo los datos recolectados por medio de cuestionario. Para analizarlos se utilizó el programa DataVic 4.3. Resultados apuntan que las representaciones sociales de la violencia contra la mujer están restrictas al universo consensual donde se las producen y que se constituyen sobretodo de la conversación informal y de la vida cotidiana. Apuntan, también, que la violencia no se entiende como un problema de salud. Se considera que el basamento teórico acerca del tema y el envolvimiento institucional de los Servicios de Salud contribuirán para la inserción de la violencia contra la mujer en la agenda de Salud Pública.

Palabras clave: Enfermería. Género y Salud. Violencia. Violencia contra la mujer. Recebido em 28/01/2010. Aprovado em 15/12/2010.

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artigos

Índices sociais de valor:

mass media, linguagem e envelhecimento*

Denise Regina Stacheski1 Gisele Aparecida Athayde Massi2

Stacheski, D.R.; MASSI, G.A.A. Social value indices: mass media, language and aging. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.425-36, abr./jun. 2011.

This paper aimed to analyze the media discourse in relation to the process of human aging, through news reports published in the newspaper Gazeta do Povo (city of Curitiba, state of Paraná – southern Brazil) and collected in 2008. The reports were organized and analyzed from the following aging stereotypes found in social practice: aging and degeneration of biological functions, aging and the absence of a social role for the elderly, and aging and the active elderly, responsible for their old age. The study is of interest both to health professionals – such as speech therapists and psychologists, who work with a conception that considers language as constitutive of subjects -, and to social communication professionals, who work with the media and interfere in social representations, in the social mental imagery.

Keywords: Aging. Mass Media. Language.

O objetivo deste trabalho foi analisar os discursos midiáticos frente ao processo do envelhecimento humano, por meio de notícias publicadas no jornal Gazeta do Povo (Curitiba, Paraná) coletadas no ano de 2008. As notícias foram organizadas e analisadas com base nos seguintes estereótipos da velhice encontrados na prática social: o envelhecimento e a degeneração das funções biológicas; o envelhecimento e a ausência do papel social do idoso, e o envelhecimento e o idoso ativo, responsável frente à velhice. O estudo é de interesse tanto dos profissionais da saúde – como fonoaudiólogos e psicólogos, que trabalham em torno de uma concepção que toma a linguagem como trabalho constitutivo dos sujeitos –, quanto dos profissionais de comunicação social que trabalham com a mídia e que realizam grande interferência nas representações sociais, no imaginário social.

Palavras-chave: Envelhecimento. Mass media. Linguagem.

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Este artigo é fruto de uma compilação de estudos e discussões desenvolvidas no Programa de Mestrado e Doutorado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti do Paraná. 1 Universidade Tuiuti do Paraná, campus Prof. Sydnei Lima Santos. Rua Sydnei A. Rangel Santos, 238, Bairro Santo Inácio. Curitiba, PR, Brasil. 82.010-330. denise.stacheski@utp.br 2 Universidade Tuiuti do Paraná. *

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Índices sociais de valor:...

Índices sociais de valor: mass media, linguagem e envelhecimento Este artigo tem como objetivo analisar os discursos midiáticos frente o processo do envelhecimento humano, com base em valores constituídos socialmente a respeito do envelhecer e da população idosa. O tema é de interesse interdisciplinar aos profissionais da saúde, da comunicação social, da linguagem, entre outros. Os discursos midiáticos e a perspectiva da constituição dos sujeitos pela linguagem anunciam a necessidade de um trabalho complexo, e em conjunto, para que novas significações sobre o envelhecimento sejam construídas na sociedade em que vivemos. O texto pautou-se nos estudos de autores das seguintes áreas: da linguagem (Faraco, 2003; Mussalim, 2001; Bakhtin, 1997), da antropologia (Debert, 1999), da saúde (Papaléo Neto, 2007) e da comunicação (Stam, 2010; Wolf, 1987) – que, de maneira interdisciplinar, se entrelaçam, quando o tema é envelhecimento social.

Perspectiva sócio-histórica da linguagem e os índices sociais de valor do envelhecimento Na perspectiva sócio-histórica da linguagem, toda ação humana precede uma interação social. Parte do pressuposto de que a linguagem tem papel constitutivo do sujeito por meio das relações dialógicas estabelecidas com o outro. Desde pequena, a criança insere-se no mundo da linguagem, percebendo e interagindo com o outro, construindo significados e valores sobre o mundo que a cerca. Diferentemente das teorias behavioristas ou inatistas, a perspectiva sócio-histórica argumenta que as concepções de mundo partem da prática discursiva entre as ideologias sociais existentes. Bakhtin (1997, p.35) afirma que “a consciência individual é um fato sócio-ideológico” e que “todo signo é ideológico por natureza”. Assim, a consciência dos indivíduos adquire forma e existência a partir de signos e significações criados por um grupo organizado em função da história de suas práticas sociais. Essa interação de significados é, justamente, o que constitui a verdadeira linguagem para Bakhtin (1997). O ato da fala e os discursos produzidos socialmente estão carregados de conteúdos ou de sentidos ideológicos e vivenciais. Uma linguagem viva, um processo incessante que é construído no cotidiano da vida social. Segundo Bakhtin (1997, p.42), “cada época e cada grupo social têm seus repertórios de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica”. Por meio desses repertórios e de suas significações, os sujeitos se constituem. A criação ideológica, para a perspectiva sócio-histórica da linguagem, não pode ser reduzida em sua superfície empírica, nem limitada a uma consciência individual e, sim, pelo viés social e histórico. Segundo Faraco (2003, p.64), “para haver relações dialógicas, é preciso que qualquer material lingüístico tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social [...]”. Os índices sociais de valor, conforme Faraco (2003), condizem aos valores axiológicos/culturais de cada grupo social. Uma configuração hierarquizada de valores humanos, a valoração dos fatos e das coisas do mundo a partir dos contextos individuais e sociais. Segundo Bakhtin (1997), assim como as interações sociais, o interindividualismo também está presente na construção axiológica dos sujeitos. Por este motivo, existem múltiplas e heterogêneas formas de compreensão das enunciações realizadas. Essas diferenças nos permitem entender que o sujeito é responsivo, que ele participa ativamente do processo de interação social, na medida em que atribui sentido aos enunciados produzidos nas diferentes situações discursivas. Diferentes visões acerca do idoso são encontradas na coletividade, que, de maneira dialógica, acabam se misturando no cotidiano e formando estereótipos da velhice na prática social. Dentre as vozes sociais sobre o envelhecimento, levantadas por meio das notícias publicadas no Jornal Gazeta do Povo (vide metodologia), estão: o envelhecimento e a degeneração das funções biológicas, o envelhecimento e a ausência do papel social do idoso, e o envelhecimento e a responsabilidade do idoso frente à velhice. A seguir, está apresentada a fundamentação sobre cada vertente. 426

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O envelhecimento e a degeneração das funções biológicas Papaleo Netto (2007) toma a definição biológica do envelhecimento como um processo, e a velhice como uma fase da vida. As manifestações somáticas da velhice, conforme o autor, caracterizadas por redução da capacidade funcional, calvície e redução da capacidade de trabalho e da resistência, entre outras, associam-se a: perda dos papéis sociais, solidão e perdas psicológicas, motoras e afetivas. O conceito biológico do envelhecimento, acima citado, pode ser traduzido como o fim do caminho biológico. A velhice, nesta visão, se constitui de tristezas, de fraquezas e de debilitações físicas, emocionais e psicológicas. Segundo Meassi (2008), a velhice ainda é comumente associada a um completo declínio, tanto das capacidades físicas, como da intelectual e da saúde (física e mental). Como os idosos necessitam de cuidados médicos especiais, conforme essa visão, áreas voltadas às prevenções de doenças são assuntos predominantes nos meios de comunicação, nas notícias levantadas, quando se fala em velhice.

O envelhecimento e a ausência do papel social do idoso Outra visão de envelhecimento percebida é aquela que propõe uma falta de papel social do idoso. O fato de ações e projetos brasileiros para a população idosa visarem, muitas vezes, apenas, o entretenimento, mostra, segundo Goldfarb (1998), que a sociedade mascara a visão que aponta para a inutilidade dos velhos com atividades exclusivamente lúdicas, desprezando a sua experiência e seus conhecimentos acumulados – fortalecendo uma noção de que o velho não pode contribuir para a vida social. Cabe salientar que as atividades de entretenimento são relevantes, mas os programas destinados aos idosos não devem se limitar a essa vertente exclusiva. Com o advento da industrialização e da urbanização, que privilegia a força produtiva, os velhos foram isolados da engrenagem social, caracterizando-se pela ausência de papel social (Debert, 1999). Idosos não ativos socialmente, em uma sociedade capitalista, na qual os modos econômicos de produção exigem força física para a produção industrial em massa, formatando novo estereótipo a respeito da velhice, o idoso passivo, excluído socialmente. Nessa visão, problemas econômicos, culturais e psicológicos são vivenciados por essa parcela da população que não encontra “voz” em uma coletividade despreparada para lidar e conceber a velhice. Papaléo Netto (2007, p.11) afirma que o resultado dessa situação “é a marginalização do velho e a perda de sua condição social, às quais se associam aos poucos rendimentos recebidos, frutos de aposentadorias irrisórias”. Quando o sujeito começa a vivenciar a velhice, às vezes, alguns referenciais podem se perder, algumas referências que tiveram presentes em toda a sua vida e que demonstravam quem ele era e seu posicionamento social. Por exemplo: se esse sujeito tinha voz ativa nas decisões de sua família, hoje, velho, ele não é mais consultado, ele não faz mais parte fundamental do diálogo familiar. Esse momento pode ser bastante conturbado, pois o idoso se concebe como um desconhecido para si mesmo, já não localiza seu papel dentro dos ambientes sociais. Essa perda de referência, de autonomia, de posição ativa, se agrava quando a família e a sociedade não atribuem um papel social ativo ao idoso, considerando-o inútil, um peso social.

O envelhecimento e a responsabilidade do idoso frente à velhice A terceira visão do envelhecimento, trabalhada neste artigo, surge a partir da década de 1990, com o discurso em relação aos idosos que vêm se modificando na sociedade. Com o aumento mundial da população idosa, novos discursos sociais estão em construção. Nessa perspectiva, o idoso não é mais visto como um excluído, inclusive, em discursos políticos. Debert (1999) questiona as razões para essas mudanças discursivas e, até mesmo, questiona sobre a responsabilidade individual que a sociedade está impondo a cada sujeito frente a sua possibilidade de envelhecer de forma saudável. Segundo a autora:

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A publicidade, os manuais de auto-ajuda e as receitas de especialistas estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais, nem imutáveis e que, com esforço e com trabalho corporal disciplinado, pode-se conquistar a aparência desejada; as rugas e a flacidez se transformam em indícios de lassitude moral e devem ser tratadas com a ajuda dos cosméticos, das ginásticas, das vitaminas, da indústria do lazer. (Debert, 1999, p. 20)

Assim, os sujeitos devem controlar seu corpo e se responsabilizar por suas decadências físicas, retirando dos âmbitos sociais o dever de lidar com a população idosa. Debert (1999) afirma que os sujeitos, a partir dessa visão, não são apenas monitorados para exercerem uma vigilância constante do corpo, mas são responsabilizados pela sua própria saúde, por meio das concepções de doenças autoinfligidas, resultado de abusos corporais, como a bebida, o fumo, a falta de exercícios físicos. A autora também argumenta que, nesta vertente, a boa aparência é igual ao bem-estar. Os sujeitos que conservam seus corpos por meio de dietas, exercícios e outros cuidados viverão mais. Essa visão exige dos sujeitos uma autovigilância da saúde corporal e da boa aparência. Rodrigo e Soares (2006) afirmam que a sociedade brasileira privilegia os sujeitos mais jovens em detrimento dos mais velhos, refletindo o sistema de produção vigente. Essa classificação cronológica pela idade dos sujeitos gera uma série de problemas em torno do idoso, pois limita o pleno exercício da cidadania das pessoas acima de sessenta anos de idade. As três visões a respeito do envelhecimento discutidas acima estão separadas metodologicamente neste artigo, porém vale ressaltar que, na prática social, elas se entrelaçam. As vertentes interagem e se sobressaem de acordo com cada sujeito social.

Os mass media e o envelhecimento As palavras são as matérias-primas de trabalho dos profissionais dos meios de comunicação. E os discursos midiáticos são uma via de interação social, promovendo, também, significações que constituem as diversas visões de mundo. Assim, por meio de interações verbais e não verbais, a construção discursiva dos produtos midiáticos interfere na sociedade e nos sujeitos que a compõem. Machado (2005) afirma que os usos da linguagem e todas as suas esferas ocorrem de forma dependente. Isto é, os discursos dos meios de comunicação de massa se tornam uma referência direta aos enunciados concretos que se manifestam nos discursos sociais. Uma existência cultural, que, segundo a autora, “reverbera em tudo, uma vez que nela, as formas culturais vivem sob as fronteiras”, uma cadeia complexamente organizada. “A linguagem como manifestação viva das relações culturais” (Machado, 2005, p.163). As palavras e os discursos dos mass media penetram em todas as relações sociais, “nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (Bakhtin, 1997, p.4). Para Wolf (1987), os meios de comunicação desempenham uma função importante na sociedade, na medida em que agem como elementos ativos da mesma estrutura coletiva/social, das definições e modos de vida de um grupo determinado. Os mass media são responsáveis por produzirem e divulgarem os fatos cotidianos de uma sociedade. Quando descrevem e organizam os fatos da realidade exterior, os meios de comunicação de massa apresentam ao público uma lista sobre o que consideram ser necessário ter uma opinião e discutir, silenciando demais aspectos da sociedade. Por meio da agenda (conteúdos abordados) realizada pelos meios de comunicação de massa, os sujeitos sociais constroem, em grande parte, seus índices valorativos sobre os assuntos presentes na mídia. Não só percebem o outro, o externo, como, também, percebem as suas próprias características subjetivas e se estereotipam frente às diversas visões presentes na coletividade.

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É importante salientar que o sujeito não é passivo nesse jogo das palavras ideológicas. A internalização da cultura não é simplesmente imitativa do entorno, existe todo um ativo e sistemático (contínuo) processo de re-significação. É possível que novos significados sejam construídos por meio da linguagem e dos contextos sociais. Os significados se constituem de experiências anteriores já fortalecidas, discursos que ecoam para a significação momentânea. Isto é, os meios de comunicação de massa formam um sistema de cultura, constituindo-se como um conjunto de símbolos, valores, mitos e imagens que interagem na vida prática e no imaginário coletivo (Wolf, 1987). No entanto, a mídia não é o único sistema cultural das sociedades contemporâneas, pois elas são realizações policulturais. Stam (2010, p.333) argumenta que existem, sim, padrões de supremacia, e tendências ideológicas, “mas a dominação nunca é completa”, porque, para o autor, os meios de comunicação de massa não se constituem apenas dos seus próprios donos e gestores, mas, também, são constituídos pelos seus participantes ativos e criativos, como os funcionários e a audiência – que podem “resistir, pressionar e decodificar”. Os sujeitos refletem os fatos exteriores produzidos e divulgados pela mídia e refratam na medida das significações de outros campos sociais, como uma cadeia de enunciações, uma cadeia constitutiva de valores. Na interação entre o sujeito e a informação midiática, acontece, também, a constituição de significados a partir de uma eterna negociação de valores, de significados, de manifestações simbólicas que formam a cultura de uma sociedade. Os mass media, na maioria de seus enunciados, apresentam os idosos e o processo de envelhecimento com base em fatores negativos à sociedade, como o fim biológico e a ausência de papel social dos velhos. Apesar de apresentarem alguns discursos sobre a “pró-atividade” dos idosos, sobressai o índice de valor social voltado para a dependência econômica e a percepção do envelhecimento como problema familiar e social – a partir de seu papel não produtivo na sociedade. A partir do ano de 2006, a questão do envelhecimento e de temas relacionados com os idosos se fortaleceu na agenda dos mass media brasileiros. Basta verificar o aumento de produção jornalística a respeito do tema, em todo o país: editorias específicas, cadernos jornalísticos exclusivos, programas de televisão dirigidos. Porém, para Debert (1999), a imagem da terceira idade produzida pela mídia não tem viabilizado possibilidades para a sociedade lidar com problemas físicos e emocionais dos mais velhos. São mensagens que afloram e abordam mercadologicamente um público-alvo consumidor. Debert (1999) alerta, portanto, para o fato de que o sucesso do empreendimento de novas iniciativas voltadas para a terceira idade é proporcional à precariedade dos mecanismos de que dispomos para lidarmos com os problemas da velhice avançada. Por isso, a necessidade de crescente reflexão social sobre esse segmento populacional.

Procedimentos metodológicos O objetivo desse trabalho é discorrer sobre os valores sociais construídos a respeito do envelhecimento nos mass media, conforme discussão teórica anteriormente apresentada. Para isso, foi realizada uma análise discursiva e dialógica, pautada segundo a perspectiva de Bakhtin, de notícias publicadas no jornal Gazeta do Povo (Curitiba/ Paraná), no ano de 2008. A escolha do meio de comunicação se justifica por ser o maior jornal impresso do Paraná, em relação à sua tiragem e à sua distribuição. O jornal foi fundado em 2 de fevereiro de 1919. Com circulação estadual diária, o jornal pertence ao grupo RPC – Rede Paranaense de Comunicação, formada, ainda, por oito emissoras de TV filiadas à Rede Globo, pelas emissoras de rádio 98 FM e Mundo Livre FM, de Curitiba, pelo JL – Jornal de Londrina e pelo portal RPC.com.br. Uma empresa de comunicação com significativa expressão social no estado do Paraná e no Brasil. Importante ressaltar que, como corpus de investigação acadêmica, as notícias de um jornal impresso são consideradas fontes públicas, de livre acesso para serem discutidas e analisadas, não necessitando de autorizações prévias das empresas jornalísticas. Em todas as notícias, são citados os jornalistas autores, a data de sua publicação, bem como a editoria onde foi publicada.

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A seguir, o detalhamento das etapas realizadas: a) 1ª etapa: captação das notícias O corpus foi retirado da versão digitalizada da Gazeta do Povo, disponibilizada no endereço eletrônico – www.gazetadopovo.com.br, contemplando matérias jornalísticas publicadas no ano de 2008. Para se obterem as notícias relacionadas à temática, foi utilizado o sistema de busca disponível no sítio do jornal, com as seguintes palavras: envelhecimento, idosos e terceira idade. Dessa busca, mais de 900 resultados gerais foram encontrados. b) 2ª etapa: seleção da editoria vida e cidadania: saúde, educação e terceira idade. A segunda etapa metodológica voltou-se a selecionar a editoria vida e cidadania como foco para a análise das notícias. Essa editoria foi escolhida por trabalhar com temas direcionados ao cotidiano do cidadão, abordando assuntos como: saúde, trabalho, educação, terceira idade, campanhas, entre outros. Para especificar o tema analisado, selecionamos as subeditorias de saúde, de educação e da terceira idade, por entender que o processo dialógico social entre essas áreas corresponde à construção dos índices sociais de valor, apresentados anteriormente. Segundo Queiroz e Netto (2007, p.815), “pode-se afirmar que sociabilidade e educação são dois dos maiores responsáveis pela promoção do envelhecimento saudável e, como conseqüência, para melhorar a qualidade de vida”. A seleção das reportagens da editoria vida e cidadania contabilizou um número de sessenta notícias vinculadas às visões do envelhecimento anteriormente discutidas. As sessenta notícias foram analisadas discursivamente sobre seu conteúdo, com base em uma perspectiva dialógica, que possibilita o estabelecimento de relações entre a linguagem e a sociedade que se constitui historicamente (Bakhtin, 1997). Para este artigo, foram sorteadas, aleatoriamente, dez notícias para a amostra de conteúdo e análise dialógica, fundamentada em Bakhtin. c) 3ª etapa: representações sociais da velhice A terceira etapa se caracterizou por organizar e analisar as dez notícias selecionadas a partir de três estereótipos da velhice encontrados na prática social: o envelhecimento e a degeneração das funções biológicas; o envelhecimento e a ausência do papel social do idoso, e o envelhecimento e o idoso ativo, responsável frente à velhice.

Análise do corpus A seguir, estão apresentados, de forma sucinta, os conteúdos das dez notícias selecionadas aleatoriamente, bem como a análise realizada para este artigo. 1 - “Para manter a memória em dia” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: saúde; publicada em: 14/07/2008; jornalista: Cecília Valenza). Dado analisado: esta notícia traz o seguinte texto: “embora a perda da capacidade de memorização seja algo natural da idade, é preciso saber identificar o que está por trás dos esquecimentos e lembrar que a mente segue a lei do uso e desuso; ou seja, quanto mais estimulada, melhor será seu funcionamento”. Análise: encontramos neste dado, especialmente, a visão do envelhecimento e a degeneração das suas funções biológicas. As informações dessa notícia destacam a perda da memória em decorrência do envelhecimento, expõem o processo como algo natural, mas, que, se estimulada por meio de técnicas específicas, a capacidade de memorização pode melhorar. Percebe-se que a relação entre o envelhecimento e a perda das funções de memória é apresentada como inerente ao processo de envelhecimento, o fim do caminho biológico e de suas funções regulares. A notícia apresenta e se entrelaça, também, em outra visão destacada neste artigo, que trata o envelhecimento e a responsabilidade do idoso frente à velhice. Expõe uma fórmula pronta para que os idosos se responsabilizem por manterem sua memória em dia. Como abordado anteriormente, os sujeitos, a partir dessa visão, devem controlar seu corpo e se responsabilizarem por suas alterações físicas. A notícia desvincula qualquer diagnóstico a partir da construção social e histórica do sujeito. 430

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Isto é, aborda as funções da memória como uma função estritamente física/cerebral, sem alavancar demais possibilidades sócio-históricas do sujeito idoso, suas experiências emocionais e as próprias concepções do idoso frente à velhice. 2 - “Idosos também sofrem de anorexia” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: saúde; publicada em: 15/05/2008; jornalista: Aline Peres). Dado analisado: a notícia alerta para o fato de que a anorexia, embora em número reduzido de casos, também afeta a terceira idade. Segundo o texto da notícia: “a doença fica ainda mais agressiva e de difícil tratamento por causa da fragilidade imposta pela idade”. Depois, o texto enumera alguns sinais de alerta e de comportamentos para a identificação da doença. Análise: o conteúdo da notícia anuncia a fragilidade dos velhos diante de doenças tão “jovens”, como a anorexia. O texto expõe um idoso frágil e que apresenta processos mais lentos de cura. Demonstra, também, uma visão das perdas fisiológicas da velhice e percebe o idoso como um ser inativo frente às suas dificuldades emocionais e físicas. A velhice se constitui, para essa visão, de tristezas, de fraquezas e de debilitações físicas, emocionais e psicológicas. Engloba, dessa maneira, a visão do envelhecimento e a ausência do papel social do idoso. Em nenhum momento, a reportagem aborda questões sobre o ambiente social, cultural e histórico do sujeito. 3 - “Câncer deve atingir 234 mil mulheres em 2008” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: saúde; publicada em: 08/03/2008; jornalista: Kamila Mendes Martins). Dado analisado: a notícia retrata o aumento da expectativa de vida da população e, com ela, o aumento de casos de câncer no país. Salienta a importância da prevenção, e afirma: “se, por um lado, a longevidade é uma das principais razões para o aumento da doença, o diagnóstico tardio é o maior motivo para as mortes”. O conteúdo faz uma relação entre o aumento de idosos e o aumento de câncer no Brasil, demonstra a fragilidade no envelhecimento e as debilidades fisiológicas advindas dele. Análise: as visões de debilidade física e responsabilidade da prevenção pelo idoso são encontradas nesse dado. Meassi (2008) também acorda que a velhice ainda é comumente associada a um completo declínio, tanto das capacidades físicas, como da intelectual e da saúde (física e mental). Como os idosos necessitam de cuidados médicos especiais, dentro dessa visão, áreas voltadas para as prevenções de doenças são assuntos predominantes nos meios de comunicação, quando se fala em velhice. Ponte trabalha, igualmente, com a ideia de que os meios de comunicação realizam enormes apelos em relação à imagem do próprio corpo dentro das variadas redes de comunicação existentes em nossa sociedade. Segundo o autor, “por toda parte vemos e ouvimos sugestões para que façamos constantes esforços no sentido da manutenção de um corpo belo e jovem. Dietas para emagrecer; ginásticas ativas e passivas; para manter o corpo em forma; pílulas para combater o envelhecimento” (Ponte, 2007, p.275). Se tivermos que combater o envelhecimento é porque o mesmo, nesta concepção, está atrelado a uma situação negativa, algo semelhante a uma doença a ser curada. 4 - “Amigos a postos contra a solidão” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em: 10/07/2008; jornalista: Anna Paula Franco). Dado analisado: na notícia é destacada a convivência de idosos com animais de maneira positiva, servindo, até mesmo, de recomendação terapêutica, pelas vantagens como companheirismo, carinho e alegria. Segundo a jornalista, em seu texto: “e para os idosos, que passam mais tempo em casa e muitas vezes ficam sozinhos, essa relação assume uma importância ainda maior”. O texto explora, também, a Atividade Assistida por Animais (AAA) como ajuda para o resgate da autoestima dos idosos. Análise: o velho, na notícia, é apresentado como isolado socialmente, dotado de uma baixa autoestima, e que a alternativa, buscada por esses idosos, é a companhia de animais. Essa reportagem traz a visão do envelhecimento e a ausência do papel social do idoso, bem como, de forma entrelaçada, fortalece a ideia de fim do caminho biológico. Coloca o idoso como inativo social e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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passivo frente às dificuldades encontradas. Nessa visão, a sociedade não prevê um papel específico ou uma atividade para os velhos, abandonando-os a uma existência sem significado, caracterizandoos como uma minoria desprivilegiada, com baixa renda e baixo status. O idoso, neste julgamento de valor, constitui um problema social e aceita sua posição de excluído. Ressalta-se, assim, como descrito anteriormente, que o sujeito é responsivo frente a suas significações. Como afirma Goldfarb (1998, p.7), em seu trabalho sobre o Corpo, tempo e envelhecimento: nosso ponto de partida será uma idéia predominantemente presente na nossa sociedade segundo a qual se atribui a sujeitos de diferentes idades cronológicas um estado de decrepitude e inutilidade, sem esquecer que as próprias vítimas, frequentemente, assumem este lugar e incentivam estas atitudes.

5 - “Fim da linha ou recomeço?” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em: 03/07/2008; redação). Dado analisado: a notícia traz a informação de que o Hospital San Julian, especializado em dependentes químicos, localizado em Piraquara, região metropolitana de Curitiba/PR, tem trezentos e cinquenta pacientes internados. Desses, 22 são idosos, segundo a enfermeira, Viviane Teixeira, citada na matéria, que afirma: “quadros depressivos também são comuns em pacientes idosos que apelam para a bebida”. O texto expõe que há casos clássicos que evidenciam as dependências químicas nos idosos, como o abandono familiar, a exclusão social. Como o de um paciente, ex-garçom, que foi abandonado pela família. O conteúdo aborda estatisticamente idosos internados com problemas de álcool ou droga vinculados a uma posição social de abandono e de isolamento. Análise: a notícia também se enquadra na visão do envelhecimento pautada na ausência do papel social, quando, ao trabalhar com a ideia do fim do caminho social, o conteúdo também se vincula à ideia do fim do caminho biológico. Quando o sujeito começa a vivenciar a velhice, às vezes, alguns referenciais podem se perder. Algumas referências que tiveram presentes em toda a sua vida, e que demonstravam quem ele era e seu posicionamento social, podem parecer sem sentido. Esse momento pode ser bastante conturbado, pois o idoso se concebe como um desconhecido para si mesmo, e já não localiza seu papel dentro dos ambientes sociais. Essa perda de referência, de autonomia, de posição ativa, se agrava quando a família e a sociedade não atribuem um papel social ativo ao idoso, considerando-o inútil, um peso social. 6 - “Atendimento a idosos começa em casa” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em 14/08/2008; jornalista: Anna Paula Franco). Dado analisado: a notícia destaca “o programa de atendimento de saúde básico, criado há 15 anos pelo governo federal, para pulverizar os serviços médicos primários a população”. O programa tem o objetivo de mapear a situação de moradores de cada casa visitada pela equipe dos profissionais de saúde. O conteúdo salienta, também, “que a rotina de visitas e o monitoramento também ajudam na prevenção de agravamentos de doenças e a redução de complexidade dos males que atingem o idoso...”. A notícia aborda novas estratégias de atuação de profissionais de saúde para conseguir atender as doenças e as necessidades dos idosos. Análise: o texto aborda o idoso de forma fragilizada, demonstrando os esforços estruturais para atendê-lo. Tratar da velhice nas sociedades industrializadas é traçar um quadro dramático da perda do status social dos indivíduos, segundo Debert (1999). A industrialização destruiu a segurança econômica e as relações estreitas que vigoravam nas sociedades tradicionais entre as gerações de família. Assim, os idosos se transformam em um peso para a família e para o Estado. Nas sociedades modernas, o empobrecimento e os preconceitos são características marcantes, que levam ao abandono social e uma existência sem significado (Debert, 1999). Ser velho em uma sociedade liberal-capitalista é ser um velho dependente, um peso – ele está excluído da construção da história e da formação das próximas gerações, suas experiências de vida nada valem, pois o que oferta valor na sociedade atual é a sua posição dentro do mercado de trabalho. 432

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7 - “Semana de osteoporose tem exames gratuitos” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: saúde; publicada em: 07/08/2008; redação). Dado analisado: a notícia explica que a perda da massa óssea é provocada pela queda da taxa hormonal, sobretudo em mulheres acima de cinquenta anos, e informa sobre a Semana de Osteoporose e dados sobre a prevenção da doença. Segundo o texto: “Alimentação saudável e equilibrada, atividade física regular e exames preventivos de investigação de densidade óssea ajudam a controlar o problema”. O conteúdo apresenta uma campanha de prevenção da doença destinada à terceira idade. Análise: novamente, o discurso da fragilidade está presente. A notícia apresenta, também, fórmulas preestabelecidas que – se seguidas – poderão amenizar o processo da doença, responsabilizando os sujeitos pelo próprio envelhecimento saudável. Trabalha com a visão biológica, bem como com a visão do envelhecimento e a responsabilidade do idoso frente à velhice. Segundo Jardim (2007), os discursos presentes na nossa coletividade pautam-se nas perdas físicas, psíquicas e sociais dos idosos. As perdas físicas são representadas pela fraqueza, diminuição de força e da vitalidade orgânica. As perdas psíquicas representadas pelo declínio da memória, pela anulação da vida afetiva e pelo desinteresse em construir novas relações e adquirir novos conhecimentos. As perdas sociais estão vinculadas como um ser não produtivo, um ser dependente, à margem da construção da história em curso (Jardim, 2007). Uma visão do idoso que o toma como um peso social, reduzindo a velhice a uma situação desagradável. 8 - “Vovô foi ao baile... e se casou” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em: 12/06/2008; jornalista: Anna Paula Franco). Dado analisado: a notícia inicia com a estatística do IBGE afirmando que a taxa de casamento cresce mais entre a população idosa. E afirma: “longevidade, tempo de sobra e atividades sociais contribuem para essa tendência”. Segundo a notícia, a longevidade e a mudança nos hábitos de vida dos mais velhos contribuem para a socialização dos idosos. Amplia a rede de relacionamentos, forma novos casais e coloca, como positiva, a existência de grupos de convivência e atividades sociais dirigidas ao público idoso e a responsabilidade do idoso para que participe desses grupos. Anuncia um idoso ativo, responsivo pelos seus atos. E fortalece a questão da interação social na velhice, a troca de experiências. Análise: a notícia aborda as questões da responsabilidade do idoso frente às suas condições de velhice, bem como trabalha com a questão do tempo livre e da ausência do papel social do idoso. Com o desenvolvimento da ciência do envelhecimento, comprovou-se que não há necessidade de ligar o fato de envelhecer bem ou mal às superstições sobrenaturais, pois, mesmo não tendo uma única teoria a respeito do envelhecer, a ciência moderna trouxe muitos argumentos que fundamentam o processo da velhice. 9 - “Experiência de vida ajuda na hora de aceitar a morte” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em: 29/05/2008; jornalista: Anna Paula Franco). Dado analisado: a notícia retrata idosos que frequentam os Amigos Solitários no Luto, grupo de apoio em que eles: “compartilham histórias de vida, de saudade, de sentimentos que não foram expressos”. O texto aborda, também, a questão de como os mais velhos, de forma homogênea, aceitam a morte mais tranquilamente que os mais jovens. O conteúdo traz a importância da interação verbal/social na velhice, fortalece a importância de suas experiências de vida aos participantes de um grupo de apoio, e demonstra uma maturidade em relação a assuntos delicados aos mais jovens. Análise: a notícia traz a imagem de um idoso experiente, como se todos os idosos tivessem, de forma homogênea, tranquilidade frente à morte – com um papel ativo e responsivo para ajudar outros sujeitos na compreensão dos acontecimentos da vida.

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10 - “O prazer de cultivar amigos de longa data” (editoria: vida e cidadania; subeditoria: terceira idade; publicada em: 04/12/2008; jornalistas: Anna Paula Franco e Adriana Czelusniak). Dado analisado: a notícia aborda reuniões periódicas de senhores e senhoras que apostam na importância da amizade, em todas as fases da vida. A notícia coloca: “os meninos da Caixa Econômica Federal jogam bola juntos há trinta anos”. Enfatiza um ambiente descontraído para jogar conversa fora. Laços que unem os sujeitos, espaço para trocar experiências, dividir alegrias e frustrações. Análise: o conteúdo demonstra aspectos positivos do envelhecimento por meio das reuniões de amigos antigos, fortalecendo a importância da interação verbal/social e a troca de experiências de vida. Traz uma ideia de descontração, de amizade, de companheirismo. O sentimento dos idosos frente à velhice é um reflexo subjetivo, uma consequência de significações das coisas do mundo, das ações e das atitudes firmadas e possibilitadas pelo sujeito, dentro de sua coletividade, desde o seu nascimento. As doenças crônicas podem aparecer no idoso, comprovando, sim, a baixa de suas funções fisiológicas – no entanto, se controladas, as doenças podem não causar nenhuma consequência negativa na vida dos idosos. Não enfatizar exclusivamente a saúde ou a beleza física também facilita o envelhecimento bem-sucedido, apostando em obter bons resultados dentro das capacidades do momento. Isto é, viver bem a velhice, encarar a velhice e vivê-la plenamente com seus aspectos positivos e negativos, ter a possibilidade de aceitá-la como um processo natural e adaptar as ações cotidianas. Tendo em vista a análise das dez reportagens apresentadas, convém ressaltar a necessidade de o processo de envelhecimento não ser generalizado e homogeneizado. Para cada sujeito, dependendo de seus contextos socioculturais, a velhice pode corresponder a valores positivos e satisfatórios ou negativos e desconfortáveis.

Considerações finais As visões discorridas e as análises realizadas das notícias publicadas pelo Jornal Gazeta do Povo refletem e refratam as visões sociais dos idosos. De maneira entrelaçada, as visões estão e se apresentam no discurso social. Se, de um lado, os próprios idosos se constituem a partir de uma concepção que os toma como problemas sociais e fomentam as enunciações de abandono, de fragilidade – de outro lado, os próprios idosos podem refratar essa visão exposta, se responsabilizando, de forma ativa, pela vivência de um envelhecimento saudável. Um sujeito social de ponta a ponta, mas individual de ponta a ponta (Bakhtin, 1997). Um idoso que se constitui pelas vozes sociais encontradas na coletividade e que pode refratá-las para a formação de novos significados. Várias vozes sociais, como já observamos, concebem o envelhecimento como um fato negativo. O idoso, por sua vez, pode ou não internalizar esses preconceitos. Se internalizarem essas concepções, segundo Grossi e Santos (2003), provavelmente se comportarão de acordo com o julgamento de valor exposto, mas se não as internalizarem – e desafiarem essas visões –, preservando sua identidade – podem refratar os preconceitos construídos. Grossi e Santos (2003, p.31) afirmam que o envelhecimento não se traduz apenas em perdas biológicas, mas em ganhos que advêm da “experiência acumulada, da capacidade de enxergar além, de escutar mais do que falar, de poder comunicar-se com sabedoria os ensinamentos às gerações futuras“; valorizar a velhice é valorizar a própria vida humana em sua plenitude. Nesta visão, o velho é concebido como um ser experiente e que pode se adaptar frente aos obstáculos. A qualidade de vida na velhice é um fenômeno complexo e com múltiplas interfaces, tendo, como referências, critérios biológicos, sociais e psicológicos que, de forma conjunta com os relacionamentos atuais, passados e as prospecções futuras, constituem os sujeitos. Além desses aspectos existem os valores individuais e sociais dos idosos, que, subjetivamente, constroem as expectativas de como se deve viver a velhice, comparando as alterações no decorrer do tempo (Simson, Giglio, 2001). A concepção do que é ter qualidade de vida, nos idosos, por si só, já é uma questão subjetiva, que se insere dentro da construção cultural e social dos sujeitos. 434

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Bakhtin, nas notas de caderno de 1943, citado por Faraco (2005, p.43), reflete essa angústia: “o que ocorre, de fato, é que quando me olho no espelho, em meus olhos no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu interior; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo – estou possuído pelo outro”. O idoso pode perceber a si mesmo pelos olhos sociais que encontra, refletindo, somente, a visão das debilidades das funções físicas, ou pode superar a questão do declínio físico por meio de sua experiência de vida. São várias as vozes sociais e contraditórias que permeiam o envelhecimento; o idoso pode aceitá-las de forma passiva, se constituindo como um problema social, ou a partir de qualquer outro estereótipo formado, ou pode recusar essa posição posta socialmente e se constituir por outras visões adquiridas pela vida. É necessário, sim, elevar hierarquicamente a valorização do idoso, pois, na autocontemplação, representamos um reflexo de nosso exterior, e não a nós mesmos. Segundo Bakhtin, nunca estamos sozinhos diante de um espelho. Um segundo elemento, o outro, o social, sempre participa no processo da autocontemplação, são os índices sociais de valor historicamente constituídos em sociedades, pela interação social, pela perspectiva da linguagem histórica que se encontra no dia a dia.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas da elaboração do manuscrito.

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Stacheski, D.R.; MASSI, G.A.A. Los índices de valor social: medios de comunicación, el lenguaje y el envejecimiento. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.425-36, abr./jun. 2011. Esse trabajo tuvo como objetivo analizar el discurso de los medios hacia frente al proceso de envejecimiento humano, a través de los informes publicados en el periódico Gazeta do Povo (Curitiba, Paraná, Brasil) recogidos en 2008. Las noticias fueron organizadas y analizadas a partir de los siguientes estereotipos del envejecimiento en la práctica social: el envejecimiento y la degeneración de las funciones biológicas, de la ausencia el envejecimiento y la función social de las personas mayores y el envejecimiento y los ancianos activos y responsables frente a la vejez. El estudio es de interés tanto para profesionales de la salud – tales como logopedas y psicólogos que trabajan en torno a un diseño que toma el lenguaje como constitutivo de los sujetos, como los profesionales de comunicación que trabajan con los medios de comunicación y la realización de la interferencia importante en las representaciones sociales, en el imaginario social.

Palabras clave: Envejecimiento. Medios de comunicación. Lenguaje. Recebido em 19/05/2010. Aprovado em 10/01/2011.

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artigos

Depressão em pauta:

um estudo sobre o discurso da mídia no processo de medicalização da vida*

Giovana Bacilieri Soares1 Sandra Caponi2

SOARES, G.B.; CAPONI, S. Depression in focus: a study of the media discourse in the process of medicalization of life. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.437-46, abr./jun. 2011.

Depression has been a frequent theme in the area of health over recent decades. With the objective of analyzing what has been discussed about it in the communication media (CM), we have conducted a descriptive research analyzing journalistic material published in the electronic versions of the newspaper A Folha de S. Paulo and of the magazine Veja from 1999 to 2008. We have observed an expansion in risk situations, with the dissemination of statistical associations and the increasing identification of diseases as causes of depression. The exhibition in the CM of cases of depressed people intermediates a process of identification and acceptance of the diagnosis through the looping effect, as suggested by Hacking. The most frequent treatment prioritizes the biological model, focusing on the use of medication. Intermediate conditions could increase the risk of depression, as suggested by the journalistic material, increasing the medicalization of life.

Keywords: Depression. Media. Risk. Medicalization.

A depressão tem sido tema frequente na área da saúde nas últimas décadas. Objetivando analisar o que se tem discutido sobre o assunto na mídia, realizamos uma pesquisa descritiva, analisando matérias jornalísticas divulgadas no jornal A Folha de São Paulo e na revista Veja, em suas publicações on line de 1999 a 2008. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo. Observamos uma expansão de situações de risco, com divulgação de associações estatísticas e crescente identificação de doenças como causas de depressão. A exposição na mídia dos casos de pessoas deprimidas intermedeia um processo de identificação e aceitação do diagnóstico por meio do que Hacking denominou efeito de arco. O tratamento apresentado com maior frequência prioriza o modelo biológico, privilegiando o uso de medicamentos. Condições ou transtornos intermediários que poderiam elevar o risco de depressão de acordo com as matérias jornalísticas, acabam contribuindo para o movimento de medicalização da vida.

Palavras-chave: Depressão. Mídia. Risco. Medicalização.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Elaborado com base em Soares (2009). 1 Programa de PósGraduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Rua Cecília Jacinta de Jesus, 611A, Rio Tavares. Florianópolis, SC, Brasil. 88.048-422. gibacilieri@yahoo.com.br 2 Departamento de Saúde Pública, UFSC. *

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Depressão em pauta:...

Introdução e objetivo A depressão tem sido tema frequente na área da saúde nas últimas décadas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 9,5% das mulheres e 5,8% dos homens passarão por um episódio depressivo num período de 12 meses, mostrando uma tendência ascendente nos próximos vinte anos (World Health Organization - WHO, 2001). Autores como Conrad (2007) e Horwitz e Wakefield (2007) alertam para uma reflexão acerca dos números crescentes da depressão em análises estatísticas atuais, com base em critérios diagnósticos definidos pela quarta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, conhecido como DSM IV, de 1994, texto amplamente utilizado na área médica. Esses autores colocam em dúvida se há realmente um aumento do transtorno depressivo ou se o que está ocorrendo é um processo de medicalização de condições humanas antes tidas como normais. Um indício do processo de medicalização - aqui entendido como o conjunto de mecanismos que levam a tornar médicos certos eventos ou problemas da vida cotidiana (Conrad, 2007) - é o aumento de cerca de 300% do número de casos diagnosticados de depressão entre os anos de 1987 e 1997. Houve um incremento na prescrição de medicamentos antidepressivos, com crescimento nos gastos com estes em 600% na década de 1990 nos Estados Unidos (Horwitz, Wakefield, 2007); já, no Brasil, o aumento no orçamento público, na mesma década, para a medicação psicotrópica foi de 0,1% para 15,5% (WHO, 2007). Para Horwitz e Wakefield (2007), uma das formas de se visualizar a ascensão da depressão é a atenção dada pelos meios de comunicação para o tema. Consideramos que a produção e a circulação de formas simbólicas pela mídia têm um papel decisivo na vida social e no cotidiano das pessoas (Moreira, 2003). Assim, este artigo tem como objetivo analisar o conteúdo a respeito de depressão veiculado pela mídia na revista Veja online e no jornal Folha online.

Percurso metodológico Para analisarmos o que tem sido divulgado na mídia sobre o assunto em questão, optamos por uma pesquisa qualitativa, descritiva, tendo como fonte matérias publicadas de forma escrita. As fontes selecionadas foram o jornal Folha de São Paulo e a revista Veja, ambos veículos de comunicação de grande circulação nacional. Analisamos as versões eletrônicas das referidas publicações devido à gratuidade e à facilidade de acesso, sendo elas, respectivamente: http://www.folha.uol.com.br e http://veja.abril.com.br. Com uma ferramenta de busca de matérias de interesse por palavras-chave, disponibilizada pelos sites, foram selecionados 191 textos na Folha online, do setor ciência, e 768 na Veja online. As palavras-chave utilizadas na busca foram: depressão, transtorno depressivo, episódio depressivo e transtorno de adaptação, em um período de dez anos, correspondente a 1° de janeiro de 1999 a 31 de dezembro de 2008. Num primeiro momento, realizamos a leitura do trecho do texto que continha a palavra-chave. Assim, foi possível excluir as matérias que não tratavam de depressão no sentido de interesse da pesquisa, como artigos que se referiam à depressão do solo, por exemplo. Nesse primeiro contato, foram excluídas 331 matérias, restando 128 e 500 da Folha online e Veja online, respectivamente. Dessa forma, 628 matérias foram incluídas na análise, cujo autor de referência foi Bardin (1977). A partir da pré-análise e da exploração do material, visualizamos os temas recorrentes, que foram separados em cinco grupos, sendo eles: causas, consequências e fatores de risco (297 matérias); descrição de depressão em pessoas, geralmente celebridades (162 matérias); tratamento, efeitos colaterais, prevenção (106 matérias); estatísticas, questionários, diagnóstico (45 matérias); outros (18 matérias).

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artigos

Para a análise, utilizamos categorias, observando as que reúnem e organizam as informações com base no fracionamento e na classificação de temas autônomos inter-relacionados e frequentes (Duarte, 2006). Assim, quatro categorias foram levantadas, sobre as quais discutiremos tomando por base o marco teórico: A depressão e o risco; A busca de um modelo causal; A valorização dada pelos indivíduos ao contexto de vida na gênese da depressão; O tratamento para o modelo biológico. Essas quatro categorias foram agrupadas em dois subcapítulos: o primeiro deles abordando o risco e a busca de um modelo causal; o segundo, a medicalização da vida, tratando as questões do contexto de vida e o tratamento voltado ao modelo biológico.

O risco e a busca de um modelo causal Dentro do escopo de matérias analisadas, temos aquelas que referenciam artigos científicos. Aqui trazemos, no aspecto relacionado à questão do risco, alguns exemplos de diferenças entre o artigo científico e a matéria jornalística, não com o intuito de confrontar o estudo científico com a matéria da mídia, mas para exemplificar como, de maneira geral, é apresentada a informação científica para o público leigo. Na matéria jornalística intitulada “Depressão duplica risco de mortalidade por câncer, diz estudo”, divulgada na Folha online, de 19 de setembro de 2005, afirma-se que “a depressão severa aumenta em 2,6 vezes o risco de morte nos pacientes com câncer, segundo um estudo realizado por pesquisadores do Hospital Clínico de Barcelona”. Em seguida, o texto mostra a importância da detecção precoce dos transtornos psicopatológicos nas pessoas afetadas pela doença e traz informações acerca do estudo que teria acompanhado 199 doentes de leucemia que receberam transplante de medula óssea e sobreviveram mais de noventa dias pós-cirurgia. A referência para a matéria jornalística citada foi o estudo científico intitulado “Role of depression as a predictor of mortality among cancer patients after stem-cell transplantation” (Prieto et al., 2005), publicado no Journal of Clinical Oncology. O artigo científico traz a seguinte conclusão do estudo: a depressão maior pode aumentar a mortalidade nos grupos de pacientes acompanhados após um e três anos do transplante, mas após cinco anos não se observa aumento. Como possibilidade de interpretação desse dado, a pesquisa aponta o pequeno número de pacientes com depressão após cinco anos de transplante. Assim, as formas de expressar os resultados são distintas: o jornalista apresenta um grau de certeza maior que o autor do texto científico. Aquele afirma que depressão duplica risco de mortalidade, enquanto este diz que a depressão é um preditor de mortalidade em um grupo muito restrito de pacientes. Na matéria jornalística, o resultado da pesquisa é apresentado em primeiro lugar buscando se identificar com um maior número de pessoas. Assim, a associação de depressão com mortalidade em pacientes com leucemia, que sobreviveram a um transplante, é divulgada como associação entre depressão e câncer, sendo que o câncer é muito mais prevalente em suas diferentes apresentações, que apenas leucemia. Outra matéria jornalística: “O risco de depressão é maior aos 44 anos”, publicada na Veja online, em 29 de janeiro de 2008, afirma que, “se é verdade que a vida começa aos 40, ela pode atravessar a sua pior fase apenas quatro anos mais tarde, a julgar pelas conclusões de um estudo global conduzido por pesquisadores britânicos e americanos”. O artigo científico referenciado nesta matéria, “Is Wellbeing U-Shaped over the Life Cycle?” (Blanchflower, Oswald, 2008) ressalta, como conclusão principal do estudo, uma caracterização mais ampla dos dados, que devem ser mantidos em perspectiva. Limita-se a assinalar como dado importante a semelhança dos resultados nas diversas partes do mundo pesquisadas, sendo uma limitação do estudo o fato de não entrevistarem a mesma pessoa ao longo de sua vida. Ambas as apresentações, científicas e jornalísticas, têm em comum o fato de serem preditoras de risco. Sem as ressalvas necessárias, trazidas apenas nos artigos científicos, as matérias jornalísticas estão

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divulgando associações estatísticas como certezas, além de ampliarem significativamente a abrangência do risco, conforme ressalta o primeiro exemplo, para portadores de qualquer tipo de câncer. As finalizações das matérias jornalísticas geralmente se dão com uma recomendação ou uma predição do futuro. Os textos jornalísticos citados indicam uma detecção precoce da depressão, uma para diminuir mortalidade, outra para se chegar bem aos setenta anos. Embora as diferenças entre o texto científico e o jornalístico tenham, em parte, sido colocadas com o intuito de facilitar o acesso do público leigo aos resultados de uma pesquisa científica, apontar os resultados de associações estatísticas como verdade inquestionável e recomendar a detecção precoce podem contribuir para o que Castiel (2007), dentre outros autores, chamam de cultura do risco. De acordo com Castiel (2007), a fuga dos riscos negativos se tornou sinônimo de vida sadia, evitando-se comportamentos considerados arriscados. Ainda que se acredite que, adotando-se determinadas posturas e práticas de forma racional, visando ao controle de diversas situações de vida a partir de custos e benefícios, há grandes dificuldades na cultura dos riscos. Interessante observar que certos riscos identificados não são evitáveis, como, por exemplo: ser mulher, ter 44 anos, ser adolescente ou idoso. Torna-se, assim, impossível escapar do ‘grupo de risco’. Caponi (2007) questiona se é possível estabelecer diferenças entre os riscos que podem e devem ser socialmente evitados e a explosão de novos riscos que patologizam situações que fazem parte da condição humana. Contrariando as teses clássicas de Canguilhem (2006) e Lecourt (2006), segundo as quais seria o indivíduo quem traçaria sua norma ao se definir como saudável ou doente, somos envoltos diariamente em uma série de critérios, com base nos quais somos externamente definidos como normais ou patológicos. A transformação do sofrimento em patologia, ou situação de risco em uma doença futura, com sua consequente medicalização, são marcantes na demanda atual de bem-estar e intolerância ao sofrimento alheio (Caponi, 2007). Tabela 1. Listagem de causas e consequências de depressão apresentadas pelas revistas Veja online e Folha online, 1999-2008. Causas

Consequências

Patologias e condições físicas

Câncer, tensão pré-menstrual, doenças pulmonares, menopausa, apneia do sono, aborto espontâneo, obesidade, falha em regulagem hormonal, derrame

Dor de garganta, disfunção erétil, tensão pré-menstrual, diminuição de imunidade em idosos, hipertensão, problemas de percepção em idosos, infarto, derrame, maior mortalidade, mortalidade

Comportamentos

Impaciência, insegurança, introversão, baixa autoestima, timidez excessiva

Mulheres demoram mais a largar o cigarro, ganho de peso

Substâncias químicas

Pílula antibarriga, remédio antifumo, calmante, óxido nitroso, maconha, cocaína, substância cerebral, antraz

Questões sociais/perdas

Crise financeira dos EUA, primeiro ano de viuvez, pais que perdem os filhos, guerra do golfo

Genética

Genes

Hereditariedade

O risco apontado por Carvalho (2004, p.673), na perspectiva de “uma categoria socialmente construída cujo significado responde à ação de sujeitos que disputam seus interesses”, abre-nos a possibilidade de ver que a definição e a priorização de riscos não são neutras e objetivas, pois são construídas mediante processos culturais e sociais implícitos. 440

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O discurso sobre o risco supõe que é sempre possível conhecer, identificar e antecipar as causas das patologias e sofrimentos, ampliando as explicações etiológicas a todos os aspectos da condição humana. A construção de um modelo causal é algo que vem sedimentar a depressão em um modelo biológico. Causas e consequências de depressão são temas recorrentes nas matérias jornalísticas estudadas, fatores internos e externos ao indivíduo são apresentados. Alguns itens listados como causas e consequências são apresentados na Tabela 1. A seguir, alguns exemplos de como as causas e consequências são apresentadas. Em uma das matérias jornalísticas, publicada na Folha online em 2002, o título afirma o seguinte: “Depressão diminui a imunidade em idosos, diz pesquisa”. Tal asserção inicial do título da matéria traz a certeza de que a depressão diminui a imunidade nos idosos. Menos determinantes, outras matérias usam termos que fazem menção a associações entre dois eventos: “Estudo liga depressão a doença cardíaca em mulheres” e “Irritação e depressão contribuem para infarto e derrame, diz estudo”, ambas publicadas pela Folha online, em 2004. Outra maneira de apresentar uma explicação causal está na associação entre a melhora de depressão e o tratamento de outra enfermidade. Assim, da afirmação a seguir, podemos concluir que a causa da depressão seriam os níveis baixos de testosterona. De fato, uma quantidade crescente de evidências apóia a idéia de que suplementos de testosterona para homens com baixos níveis do hormônio poderiam fortalecer ossos, aumentar a massa muscular, melhorar as funções cognitivas e a libido e combater a depressão, segundo Natan Bar-Chama. (Folha online, 2000)

Podemos comparar tais explicações ao modelo epidemiológico de doenças infectocontagiosas. No caso da AIDS, o processo investigativo passou por detalhamento de dados comuns, com o delineamento dos traços da doença e a caracterização do quadro de epidemia, com seus modos de transmissão e fatores agravantes. Uma investigação causal foi realizada (Fagot-Largeault, 2006). No caso da depressão, vemos que algo parecido acontece, ainda que não consiga responder a um pressuposto da causalidade: o efeito nunca precede a causa (Fagot-Largeualt, 2006). Nas matérias jornalísticas, baseadas em estudos científicos ou não, percebemos claramente associações; a temporalidade, entretanto, nem sempre é algo óbvio. No caso da tensão pré-menstrual (TPM), temos, uma hora como causa, em outra como consequência. Para Caponi (2009), a lógica buscada no modelo explicativo causal da depressão pretende assemelhar-se à explicação etiológica construída para uma doença infecciosa. No caso de uma sintomatologia indicativa de uma infecção, tenta-se detectar a existência de um marcador biológico, um microorganismo patogênico, por exemplo. Procede-se, então, com estudos microbiológicos e anatomopatológicos, isolamento e cultivo do microorganismo, e estudos se seguem até determinarem uma terapia eficaz. A busca permanece no caso da depressão, não obstante esta não possua tal marcador biológico. Assim, utiliza-se da terapêutica para definir o seu modelo causal: se o antidepressivo age sobre o sistema serotoninérgico, a causa deve ser a falta de serotonina cerebral. O que observamos é que não aparece como causa apenas a falta de serotonina, outras também são apresentadas, conforme vimos na Tabela 1. A particularidade está no fato de remeter, fundamentalmente, a elementos biológicos e, menos, a questões relativas aos modos de viver produzidos no mundo contemporâneo. Podemos estar diante de um novo exemplo de expansão que permitiria a ampliação do diagnóstico, pois a medicalização do sofrimento agora está presente intermediada e associada a outras patologias - como menopausa, TPM, andropausa, obesidade -, além de a outros transtornos considerados de risco. Pode surgir, então, um grande número de medicações que cumprem a função, ou substituem o uso dado aos antidepressivos. Essas medicações aparecem como “novos antidepressivos”, que apresentam um duplo papel: o tratamento da doença intermediária e a prevenção de uma possível futura depressão, considerando os riscos dessa doença intermediária. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Medicalização da vida Fora do corpo das matérias cuja fonte é um estudo científico, encontramos várias citações de celebridades e pessoas comuns que descrevem suas experiências como depressivas. Depois da exposição de vários episódios de insatisfação, perdas ou limitações, o título de depressão está presente, assim como relatos de como as pessoas a superaram ou não. O espaço dado na mídia aos relatos de depressão vem ao encontro do que Horwitz (2007) descreve como a onipresença da depressão. O segredo, a doença velada, como eram consideradas a tuberculose e a sífilis, não se aplicam ao estado depressivo, embora a aceitação do indivíduo com sintomas de depressão não seja tão fácil, como se poderia imaginar. Falar sobre o tema é cada vez mais frequente, mas a forma como as falas individuais acontecem são diferentes dos relatos médicos. O autodiagnóstico é muitas vezes realizado, embora a explicação geralmente não seja baseada em sintomas ou distúrbios neuroquímicos, mas em fatos dolorosos, mais ou menos trágicos, ocorridos em suas vidas. Nessas matérias, as pessoas se definem como deprimidas, partindo de suas histórias de vida. Geralmente, são narrados fatos importantes que desencadearam o fenômeno depressivo. O relato de uma personagem pública, Valéria Valenssa, é um exemplo: “Caí em profunda depressão. Eu tinha o mundo a meus pés e, no dia seguinte, não tinha mais nada”, diz, referindo-se ao fato de ter sido demitida de seu emprego. Assim se seguem vários relatos, de pessoas famosas ou anônimas. O empresário Renato Kherlakian, de 58 anos, dono da empresa Zoomp, declara ter entrado em depressão após um negócio ruim com sua empresa. O ator Carlos Vereza assevera que um acidente trouxe consequências ruins, pois “o barulho de um disparo me fez perder parte da audição. Como não conseguia trabalhar, caí em depressão”. Alguns relatos também trazem a angústia de estar deprimido e a dificuldade de aceitação do fato por pessoas próximas. Demonstra-se, aqui, o que Caponi (2009) nos traz como a ideologia da felicidade e do bem-estar, na qual se estabelece um modo medicado de administrar fracassos e angústias. É sempre mais fácil dizer “eu tive depressão” do que “estou deprimido”. Ao falar do problema no passado, o sentimento é o de que se venceu uma batalha – o que não ocorre, evidentemente, quando se está em meio a uma crise [...] Em nossa sociedade, ser feliz tornouse uma obrigação. Quem não consegue é visto como um fracassado. (Veja online, 2002)

Com o relato de situações de vida publicado, há um processo de identificação, assim como através do quadro trazido pela Veja online em 1999, com personalidades públicas que possivelmente apresentavam um quadro depressivo. Tal identificação é possível tanto por histórias de vida semelhantes quanto por histórias de vida desejáveis. O processo de identificação pode contribuir para a ampliação de diagnósticos; o leitor se identifica com os sintomas e histórias de vida e se autodiagnostica como portador do mesmo transtorno (Horwitz, Wakefield, 2007). Trazemos aqui a exposição, na mídia, de pessoas que se declaram depressivas como parte do que pode ser considerado um processo classificatório. O processo de classificação de pessoas é descrito por Hacking (2006) como algo complexo, intermediado pelo que o autor denomina “efeito de arco”. Dar nome às pessoas, no caso de pessoas deprimidas, é diferente de dar nome a coisas, pois as pessoas acabam por interagir com o nome que recebem. As pessoas podem aceitar ou rejeitar o rótulo, e novas opções de existência se apresentam vinculadas a esse termo de classificação. Por meio da identificação com as histórias de vida apresentadas, com a maior divulgação de pessoas, anônimas ou famosas, com estado depressivo, trazida pela mídia, existe a possibilidade de se ampliar o número de sujeitos que, por identificação, aceitam o rótulo ou o diagnóstico de serem portadores de um transtorno mental. Porém, ainda que se parta da identificação de uma história de vida complexa, com várias possibilidades de fatores desencadeantes, ao se rotular o indivíduo com o diagnóstico de depressão pelo processo classificatório, o passo seguinte será um reforço desse diagnóstico pelos profissionais de saúde. 442

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Apesar do contexto de vida estar presente nos relatos de vida de cada uma das pessoas que aparecem na mídia como depressivas, esses fatos foram excluídos dos manuais de diagnóstico a partir da terceira versão do manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM III), em 1980. Há um rompimento com a classificação anterior ao se colocar como ateórico e objetivo, contribuindo para a psiquiatria biológica ao defender que cada transtorno tem o diagnóstico baseado em critérios passíveis de mensuração e observação empíricos (Conrad, 2007; Horwitz, Wakefield, 2007; Russo, Venâncio, 2006). Assim sendo, um médico descreveria a doença em seu paciente da seguinte forma: ele tem um certo número de sinais e sintomas; logo, está com depressão. Opondo-se, desse modo, às matérias que contêm narrativas de indivíduos com depressão a partir dos quais o indivíduo se reconhece como deprimido. Uma vez enunciado o diagnóstico médico, verifica-se uma ampla diversidade de tratamentos apresentados na mídia. Alguns propõem terapias comportamentais (perdoar as pessoas), outros incluem estimulação cerebral com eletrodos, impulsos magnéticos e acupuntura. Diversas terapêuticas são levantadas, como: exercícios físicos, placebo, até terapias com animais (ou robôs em formas de animais), além da psicoterapia. Contudo, a maioria dos tratamentos propostos inclui substâncias químicas, desde antidepressivos, como inibidores da recaptação de serotonina, até medicamentos para tratamento de patologias intermediárias que causariam a depressão, consideradas transtornos ou situações de risco. O que nos é apresentado nas matérias jornalísticas não é uma negação de outras terapias, mas o reforço à terapia medicamentosa. Mesmo em terapias sem o uso de medicamentos, o modelo explicativo e alvo de terapêutica mais frequente é o modelo biológico. Assim, a matéria publicada pela Veja online, em 1999, intitulada “A doença da alma”, traz como subtítulo “depressão é o mal que mais ataca as mulheres e cresce entre os homens, mas já pode ser tratada com sucesso pela medicina”. Ao longo do texto, temos que “depressão severa é uma doença, um desarranjo na química cerebral que precisa e – felizmente – pode ser tratado com remédio e psicoterapia”. No caso das matérias que relacionam depressão às mulheres, vale destacar que a questão se restringe, geralmente, ao sexo e às suas características hormonais, não fazendo menção à questão de gênero. A genética como causa é levantada, e a hereditariedade é vista como um fator de risco decisivo: “A hereditariedade é, de longe, o fator mais determinante. Filhos de pai e mãe depressivos têm cinco vezes mais chances de ter a doença do que os filhos de pais não depressivos” (Veja online, 1999). Como já destacamos, a problemática do risco aparece de maneira clara e com uma abrangência quase absoluta: além da genética, a faixa etária e sexo são marcantes. Ter entre 25 e quarenta anos de idade, ser adolescente, idoso ou, simplesmente, ser mulher sentenciam o indivíduo a um risco de depressão: “A doença ataca em todas as idades, mas a maior incidência ocorre entre os 25 e os 40 anos. Dois outros grupos de especial risco são os adolescentes e os idosos” (Veja online, 1999). O estímulo ao diagnóstico precoce e ao autodiagnóstico foi visualizado como recorrente nas matérias analisadas. Uma das matérias recomenda que o indivíduo que responder positivamente a, pelo menos, quatro das seguintes situações procure ajuda de um especialista: dificuldade para se concentrar; autoestima reduzida; sentimento de culpa; falta de perspectiva de futuro; ideia recorrente de suicídio e morte; perturbação do sono; alteração de apetite, perda de interesse ou prazer. Hernáez (2006) mostra que essa forma de descrição de critérios para autodiagnóstico, também realizada por propagandas de laboratório, é capaz de incorporar à definição de patologia situações do cotidiano humano. Apesar da falta de provas diagnósticas ao sistema biomédico para a maioria dos transtornos mentais, há uma negação das relações sociais e a construção da depressão como um fenômeno natural que pode ser analisado e tratado sem interferência (Hernáez, 2006). Esta afirmação é válida para as matérias analisadas, em que, nas propostas de intervenção, as relações sociais não são o foco priorizado. Matéria trazida pela Veja online, em 1999, mostra um quadro com os tratamentos disponíveis na época, no qual se visualiza uma grande certeza da objetividade e eficácia dos tratamentos. Já em matéria divulgada em 2004, temos um exemplo de um novo discurso, menos otimista quanto aos medicamentos e incluindo efeitos colaterais das medicações antidepressivas, embora o princípio de tratamento para o modelo biológico se mantenha. O tratamento com antidepressivos 443


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ou medicamentos que tratam transtornos com potencial risco para depressão é ainda mantido nas matérias como uma solução, estando ou não associados a outras formas de tratamento. No mesmo texto de 2004, a tolerância da psicologia atual ao uso de antidepressivos pode ser visualizada: “Psiquiatras e psicólogos, que nutriram uma encarniçada rivalidade ao longo do século XX, hoje acham que as melhores terapêuticas são aquelas que combinam remédios e psicoterapias. O predomínio de um ou de outro recurso varia de caso para caso” (Veja online, 2004). Podemos perceber, no conjunto de matérias, um fortalecimento da indústria farmacêutica. Conforme Conrad (2007), a indústria farmacêutica há muito tem estado envolvida na promoção de seus produtos para diversos males. Com os antidepressivos chamados de inibidores de recaptação seletiva de serotonina, por exemplo, houve um grande aumento de mercado, com 10,9 bilhões de dólares em vendas nos Estados Unidos. As estratégias da indústria farmacêutica, para Hernáez (2006), à luz da teoria de Gramsci, servem para tornar hegemônicos seus valores, representações e tendências, uma vez que as estratégias de promoção de antidepressivos e a conversão de problemas humanos em enfermidades a serem tratadas com psicofármacos podem ser entendidas como processos de uma hegemonia que atua tanto nos sistemas especialistas como nas concepções leigas ou profanas. (Hernáez, 2006, p.54) (tradução livre do autor)

Considerações finais A expansão do processo da medicalização da vida, trazida por Conrad (2007) e Horwitz (2007), pode ser visualizada na mídia mediante alguns aspectos: um processo de consolidação dos critérios diagnósticos baseados no DSM; reducionismo de causas complexas de vida a fatos biológicos ou características da personalidade; identificação da patologia como um conjunto de sinais e sintomas; prescrição de medicamentos como tratamento primordial; medicalização por intermédio do controle e da prevenção de riscos e de doenças intermediárias; tradução dos discursos sobre riscos, construídos como probabilidades, como fatos iniludíveis que devem ser antecipados. Aspectos de vida antes considerados normais são patologizados, tanto os de caráter reativo a condições e adversidades de vida, como a transformação em risco de situações inevitáveis. Ser mulher, estar na menopausa, ter TPM ou estar na andropausa, além de estar em uma faixa etária ambígua, que é considerada como fator de risco e que inclui a infância, a idade adulta e a velhice – isto é, qualquer momento da vida, de todo ser vivo – torna o indivíduo portador de risco de ter depressão. Apesar de não se conseguir distinguir um marcador biológico ou atender ao preceito básico de identificação das causas que deveriam preceder a patologia, há uma busca de um modelo causal baseado em um modelo explicativo voltado a doenças infecciosas. As causas são identificadas tomando-se por base o mecanismo de ação do antidepressivo, como no modelo serotoninérgico, ou por associações estatísticas entre eventos e a depressão, que são expostos na mídia como certezas. Além de incluir um grande número de pessoas com possibilidade de ter ou desenvolver depressão, existe um processo de construção e de aceitação do rótulo de deprimidas e, até mesmo, do autodiagnóstico. A identificação com pessoas famosas tidas como deprimidas, possível a partir de histórias de vida semelhantes ou desejáveis, contribui, através do efeito de arco - descrito por Hacking (2006) - para a aceitação do rótulo de doente mental. Além disso, a forma como se divulga o risco como uma ameaça permanente, remete-nos ao questionamento do que deve ser feito para não ser diagnosticado como deprimido. A resposta trazida reflete a hegemonia de pensamento da indústria farmacêutica e de mercado descrita por Hernáez (2006). Baseada em um reducionismo a causas biológicas, prega, na maioria dos casos, o tratamento medicamentoso, associado ou não a outras terapias, com a agregação dos tratamentos de doenças ou condições de saúde intermediárias que teriam o potencial de aumentar as chances de desenvolvimento de depressão.

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O aumento das vendas de antidepressivos pela indústria farmacêutica é, paradoxalmente, proporcional ao aumento da depressão e ao aumento da prescrição de medicamentos voltados para doenças intermediárias. O gerenciamento da vida e o reconhecimento de fatos desencadeantes de sofrimento saem de cena. O tratamento direciona-se exclusivamente à sintomatologia ou ao controle dos fatores de risco. Identificamos, assim, a transformação de várias formas de sofrimento, dos mais diferentes contextos, em patologias individuais, mensuráveis e homogeneizadas por meio de critérios diagnósticos, com consequente aplicação de recursos terapêuticos universalizáveis aplicados ao indivíduo, a exemplo dos antidepressivos apresentados como opção terapêutica privilegiada.

Colaboradores As autoras trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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SOARES, G.B.; CAPONI, S. La depresion en foco: un estudio sobre el discurso de los medios en el proceso de medicación de la vida. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.437-46, abr./jun. 2011. La depresión ha sido tema frecuente en el área de la salud en las últimas décadas. Con el objetivo de analizar las discusiones sobre depresión en los medios gráficos, realizamos una investigación descriptiva, los textos publicados en el periódico “Folha de São Paulo” y en la revista “Veja”, en sus versiones on line. Fue analizado el período de 1999-2000. Lo que se observa es una expansión de situaciones de riesgo, a través de asociaciones estadísticas y creciente identificación de enfermedades como causas de la depresión. La exposición en los medios de casos de personas deprimidas crea un proceso de identificación y de aceptación de diagnóstico a través de lo que Hacking denominó efecto de arco. El tratamiento prioriza frecuentemente un modelo biológico, privilegiando el uso de medicamentos. Condiciones o trastornos intermediarios que, según consideran los artículos, podrían elevar el riesgo de depresión, acaban contribuyendo para el movimiento del medicación de la vida.

Palavras clave: Depresión. Medios de comunicación. Riesgo. Medicación. Recebido em 16/04/2010. Aprovado em 21/10/2010.

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artigos

Cultura Identitária pró-anorexia:

características de um estilo de vida em uma comunidade virtual *

Juliana de Souza Ramos1 André de Faria Pereira Neto2 Marcos Bagrichevsky3

RAMOS, J.S.; NETO, A.F.P.; BAGRICHEVSKY, M. Pro-anorexia cultural Identity: characteristics of a lifestyle in a virtual community. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.447-60, abr./jun. 2011.

Anorexia nervosa is a disease listed in the International Classification of Diseases. However, young pro-anorexics believe they are adopting a “lifestyle”. The aim of this paper is to analyze the “cultural identity” of these youths, investigating a Brazilian virtual community. Virtual Ethnography was used methodologically in three “units of meaning” found in this community: the tension between anorexia as a disease versus anorexia as a lifestyle; the ideal of perfection; and the meaning of belonging to the group. The results suggest that pro-anorexia identity differs from the biomedical model. It admits that the thin body serves as reference for social recognition and economic success. In this sense, the online forums allow for identity construction based on anonymity. Studies of anorexic practices in virtual communities should be encouraged because they contribute to the understanding of the adolescents’ universe and collaborate with the promotion of policies and actions targeted at their health.

Keywords: Anorexia. Adolescent behavior. Webcasts. Internet.

Anorexia nervosa é uma doença inscrita na “Classificação Internacional de Doenças”. Entretanto, jovens pró-anoréxicas acreditam que estejam adotando um “estilo de vida”. O objetivo deste artigo é analisar a “cultura identitária” dessas jovens, investigando uma comunidade virtual brasileira. Metodologicamente, foi utilizada a Etnografia Virtual em três “núcleos de sentido” identificados na comunidade: a tensão entre anorexia como doença versus estilo de vida; as versões sobre ideal de perfeição e o significado do pertencimento ao grupo. Os resultados encontrados sugerem que a identidade pró-anorexia diverge do modelo biomédico. Ela admite que o corpo magro serve como referência de reconhecimento social e sucesso econômico. Neste sentido, os fóruns online permitem uma construção da identidade pautada no anonimato. Conclui-se que estudos sobre práticas anoréxicas em comunidades virtuais devem ser estimulados, pois contribuem para a compreensão do universo juvenil e colaboram com a promoção de políticas e ações voltadas para a saúde do adolescente.

Palavras-chave: Anorexia. Comportamento do adolescente. Webcasts. Internet.

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Elaborado com base em David (2009). 1 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Rua Leopoldo Bulhões, 1480, térreo. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.041-210. jusora@ensp.fiocruz.br 2 Ensp/Fiocruz. 3 Programa de PósGraduação em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo. *

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Introdução A anorexia nervosa é uma doença descrita na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) como um “transtorno da alimentação, caracterizado pela perda de peso intencional, induzida e mantida pelo paciente” (OMS, 2008, p.50). A incidência desse transtorno praticamente dobrou nestes últimos vinte anos, atingindo, sobretudo, adolescentes e jovens na faixa etária de dez a 19 anos, do gênero feminino (Dunker, Philippi, 2003). Tal cenário aponta para a importância da temática para o campo da saúde pública e para as ações na área de saúde do adolescente (Brasil, 2005). Segundo Lira (2006), o aumento da prática anoréxica entre jovens do sexo feminino faz parte de um movimento mundial, facilitado, sobretudo, na década de 1990, pelo uso da Internet. Para Brotsky e Giles (2007), até então, os indivíduos anoréxicos dificilmente discutiam seus transtornos alimentares fora dos consultórios psiquiátricos ou psicanalíticos. Atualmente, existem milhares de comunidades virtuais onde as pessoas interessadas na diminuição ou perda de apetite acompanhada por uma aversão à comida conversam sobre o tema publicamente. Elas são frequentadas por adolescentes e jovens, que consideram a anorexia um estilo de vida4 e não compartilham a ideia de que ela seja um transtorno da alimentação ou uma doença (Possas, 1989). Entre as práticas que realizam constam: os jejuns prolongados, os vômitos autoinduzidos e uso de medicamentos para emagrecer. As anoréxicas encontraram, nestes ambientes virtuais, um espaço inédito para se relacionarem e compartilharem experiências de forma segura, garantida pela ausência da identidade da participante (Gavin, Rodham, Poyer, 2008; Brotsky, Giles, 2007; Pereira, 2007; Fox et al.,2005). Mas o que faz de uma pessoa uma anoréxica? Como sua identidade pode ser caracterizada? Dubar (1997) define a identidade como uma construção social, dinâmica e processual, que se relaciona com a história de vida de uma pessoa e que remete à dimensão do reconhecimento, do pertencimento e da identificação do indivíduo a partir de traços comuns. Essa definição é útil na análise das interações sociais mediadas pela internet, onde se encontram comunidades virtuais, de acesso público, voltadas para pessoas que têm medo excessivo de adquirir sobrepeso. Neste caso, a construção social da identidade se desenvolve por meio de negociações, que estão permeadas por sentimentos e expectativas. O significado cultural do corpo e de sua imagem social desempenha um papel determinante na construção da identidade das pessoas anoréxicas. O ponto de vista apresentado neste artigo admite que o corpo não seja visto apenas em termos biológicos. Ele é percebido como uma construção cultural, passível de interpretação e significação por diferentes sociedades, em contextos históricos distintos, como analisou Mauss (2003). Mauss (2003) oferece uma reflexão interessante para esta questão quando analisa o significado que a pessoa atribui a seu corpo, a partir das negociações com a ordem social, os modelos vigentes e o uso que ela faz do mesmo. No caso das pró-ana, a tensão está situada entre considerar a anorexia uma doença ou um estilo de vida. Neste caso, podem ser observadas representações sobre o que é cultuado ou desejado e o que deve ser evitado ou eliminado, pois prejudica a saúde. O objetivo deste estudo é observar as relações, processos e fenômenos expressos nas palavras das jovens que participam de uma comunidade virtual, buscando identificar o universo de significados, motivos, crenças e atitudes que as levam a crer que tenham um estilo de vida diferente, mas que não estejam doentes.

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Este estudo utiliza o conceito de ‘estilo de vida’ cunhado por Possas (1989). Segundo esta autora, o ‘estilo de vida’ se traduz através de uma determinada forma social e cultural de viver, que se expressa em condutas e comportamentos como: a prática (ou não) de esportes, da dieta e dos hábitos de consumo (ou não) de tabaco e álcool, entre outros.

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Metodologia Existem diversos métodos de natureza qualitativa capazes de auxiliar o entendimento e a obtenção de informações relevantes nas comunidades virtuais. Dentre eles, chama a atenção o surgimento de uma metodologia de pesquisa no ciberespaço denominada etnografia on-line, etnografia virtual ou netnografia. Esta metodologia foi concebida para a análise de comunidades que passaram a ter como rotina o relacionamento em ambientes de comunicação eletrônica mediados por computador, no ciberespaço. A etnografia virtual guarda algumas semelhanças com a etnografia presencial. Em primeiro lugar, cabe enfatizar que ambas desenvolvem estudos de grupos sociais procurando identificar sua natureza e singularidade. A observação participante e a análise de discurso são alguns dos procedimentos adotados por ambas. Nos dois casos, a ênfase está situada no ponto de vista da comunidade que está sendo investigada. O objetivo da etnografia virtual é compreender o significado dos comportamentos e valores praticados virtualmente por uma dada comunidade. A etnografia virtual se apropria, portanto, de determinados conceitos que foram cunhados para o estudo das culturas no território real ou concreto. Entretanto, os conceitos da etnografia tradicional não podem ser absorvidos de forma automática. É necessário que sejam realizadas adaptações e análises das possibilidades e dos limites de tal adaptação para a pesquisa efetuada na web. A etnografia virtual visa decodificar a experiência humana presente nas comunidades virtuais com o intuito de conhecer os sentidos, significados e lógicas subjacentes aos comportamentos e valores expostos. Dois autores parecem despontar neste campo: Christine Hine (2005) e Robert Kozinets (2010). Este último enfatiza em sua análise que a netnografia: [...] tem sido desenvolvida na área do marketing e na pesquisa sobre perfil do consumidor - um campo interdisciplinar aplicado que está aberto com o desenvolvimento e a adoção de novas técnicas. (Kozinets, 2010, p.2)

Sua ênfase está situada na análise do comportamento e desejos dos consumidores em relação a produtos e marcas em um ambiente mediado pela tecnologia. Hine (2004, p.13), por outro lado, afirma que: [...] Em sua forma básica, a etnografia consiste na inserção de um investigador no mundo que estuda por um tempo determinado visando observar as relações, atividades e significados que se forjam entre aqueles que participam dos processos sociais deste mundo. [...] O etnógrafo se estabelece em um mundo intermediário, sendo simultaneamente um estranho e um nativo. Ele deve conhecer a cultura que estuda para compreender seu funcionamento, sem deixar de manter a distância necessária para poder dar conta dela.

O ofício do etnógrafo virtual consiste na observação, descrição e participação do/no ambiente pesquisado (Braga, 2006). Esta observação pode ser escondida. É essa participação (mesmo que invisível) no grupo que irá viabilizar a apreensão de aspectos daquela cultura possibilitando a elaboração posterior de uma descrição densa, que demanda uma compreensão detalhada dos significados compartilhados por seus membros e da rede de significação em questão. (Braga, 2006, p.5)

O procedimento etnográfico virtual adotado neste trabalho foi a “observação passiva”. Este artigo segue o método etnográfico adotado por Gavin, Rodham e Poyer (2008), que permite ao pesquisador observar a Comunidade Virtual sem se identificar ou interagir com seus membros. Foi realizada,

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portanto, uma observação denominada lurking5, um tipo de participação especial, onde a observação é a fonte de análise dos comportamentos e valores (Braga, 2006). Seguindo esta modalidade de observação, o etnógrafo não interfere no processo, preservando a troca de mensagens entre os integrantes das comunidades virtuais. Durante a realização da pesquisa que se transformou neste artigo, foi selecionada uma comunidade virtual pró-anorexia da plataforma orkut do Brasil. Esta comunidade foi escolhida, dentre outras existentes, pelo fato de ser aquela que tinha o maior número de pessoas inscritas no momento da observação (1.616 participantes). As observações foram realizadas de janeiro a março de 2009. Não foi necessário obter o consentimento informado dos usuários desta comunidade virtual, tendo em vista que ela é de domínio público, e que será preservado o anonimato das participantes. A comunidade virtual observada denomina-se “A perfeição é 1 esforço de 24 h”. Ela foi acessada através das palavras-chaves “perfeição/esforço” e “anorexic”. Estes são alguns sinais que sugerem que suas frequentadoras busquem práticas visando à diminuição ou perda de apetite. Quando foi observada, esta comunidade estava subdividida em três segmentos: Os fóruns onde os membros debatem questões relacionadas com o corpo, dietas e práticas alimentares; as enquetes - onde qualquer participante pode fazer uma pergunta sobre qualquer assunto, que é respondida pelos participantes e apresentada de forma estatística, e os perfis - onde os participantes se apresentam e colocam suas fotos. Quando a observação foi realizada, esta comunidade possuía um total de 34 fóruns. Para o presente estudo foram escolhidos apenas seis fóruns, totalizando 76 participantes, sendo 99% do sexo feminino. O critério utilizado para selecionar esses fóruns foi o mesmo utilizado por Gavin, Rodham e Poyer (2008): o maior número de acessos no período pesquisado. Os títulos dos fóruns selecionados englobaram temas relacionados ao tema deste artigo, a saber: “Como faço para perder coxa?”; “O que é ser perfeita para vocês?”; “O que acham?”; “Não sei mais como responder”; “Meninas, qual a altura, o peso e a idade de vocês?” e “Vinagre e limão emagrecem ou é lenda?”. Apesar de não se autodenominarem anoréxicas, os títulos dos fóruns sugerem que as participantes têm certa obsessão por perderem peso e adquirirem um corpo perfeito – características consideradas próprias das anoréxicas. Na verdade, não se trata de uma comunidade virtual que reúne jovens que procuram a magreza. Como será analisado a seguir, elas se autoajudam e desenvolvem uma série de comportamentos que se destinam a atingir o corpo considerado ideal. A unidade de análise apresentada neste artigo foram os fóruns onde são travados os diálogos entre suas integrantes neste ambiente virtual. Para tanto, foi realizada uma leitura e seleção dos trechos que melhor representam a visão das participantes em relação às praticas anoréxicas associadas ao estilo de vida, e não a uma prática nociva à saúde. Um dos grandes desafios intelectuais contemporâneos está associado à discussão da identidade cultural em tempos de globalização. Neste sentido, a obra de Hall (1999) tem se transformado em obra de referência. A questão parece residir na dificuldade de se pensar a construção da identidade cultural em relação à produção de uma alteridade em um mundo globalizado. Abandonando a concepção identitária essencialista, Hall (1999) admite que o sujeito na pósmodenidade (re)produz, representa e (re)significa sua identidade cultural. Agier

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Esta expressão significa, em português, “ficar à espreita”.

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(2001) complementa esta visão afirmando que o etnógrafo pós-moderno encontra-se diante de “culturas identitárias” em fabricação, e não perante identidades culturais totalmente prontas, as quais ele teria apenas de descrever e inventariar. No seu entender: a emergência das “culturas identitárias” em um contexto de globalização é acelerada pelas situações locais (Agier, 2001, p.7). Estes parecem ser alguns marcos conceituais úteis para o desenvolvimento deste trabalho. Os trechos selecionados na análise que se segue revelam a tensão existente entre anorexia como doença versus anorexia como estilo de vida. Este artigo apresenta a “cultura identitária” (Agier, 2001) pró-ana como algo que se constrói em torno desta estrutura dual. A partir desta oposição, elabora-se um conjunto de expectativas e procedimentos sobre o corpo perfeito e o sentimento de pertencimento ao grupo. Os trechos selecionados foram submetidos a uma análise temática, buscando-se encontrar os principais núcleos de sentido (Minayo, 2008). Eles reúnem algumas ideias centrais dos atores sociais e revelam momentos-chave de sua existência. Trata-se, portanto, de uma metodologia de caráter qualitativo. Esta investigação não operacionalizou variáveis quantitativas. Ela não se preocupou em mensurar a frequência de certas palavras ou expressões. Sua atenção não esteve voltada para a identificação da presença ou ausência de uma determinada característica ou mensagem. Ela procurou ultrapassar o alcance meramente descritivo das técnicas quantitativas para buscar atingir interpretações mais profundas, com base na inferência. A identificação e análise dos “núcleos de sentido” foram úteis para este estudo, pois contribuíram para a compreensão do que está por trás dos conteúdos explicitados, permitindo ir além das aparências. As etapas deste trabalho foram as seguintes: identificação das ideias centrais (núcleos de sentido) das intervenções dos usuários; análise destas ideias com base na produção bibliográfica identificada sobre o tema, e determinação de eixos temáticos e discussão das categorias encontradas.

Discussão e resultados Foram identificados três núcleos de sentido (Minayo, 2008). Um refere-se à tensão existente entre o entendimento da anorexia como doença em oposição à ideia da anorexia como estilo de vida, que implica dedicação e sacrifício. Outro relaciona-se com os objetivos que elas esperam alcançar com este estilo de vida: felicidade e realização profissional. O terceiro núcleo reporta-se aos sentidos atribuídos ao pertencimento a este grupo virtual pró-anorexia, relacionado com a segurança e liberdade que o anonimato oferece. Combinados, estes três “núcleos de sentido” participam do processo de construção da “cultura identitária” (Agier, 2001) pró-ana presente nesta comunidade virtual.

Estilo de vida O primeiro núcleo de sentido (Minayo, 2008), a reflexão sobre estilo de vida, parece ocupar um lugar central. Aqui a ideia de emagrecer associada à doença é condenada, enquanto a visão do emagrecimento como uma necessidade estética aparece como uma prática saudável e desejada. Uma participante afirmou: “sou contra emagrecer até ficar com cara e corpo de doente, mas pra ficar na medida certa eu sou a favor!!”. (K.)

“Medida certa”? O que esta participante pretende dizer com a expressão? Para melhor analisar o perfil das participantes dessas comunidades virtuais, foi feito um levantamento contendo a altura e o peso para se obter o índice de massa corporal (IMC) e a classificação do estado nutricional das participantes. Por meio do cálculo do IMC, foi constatado que cerca de 60% encontravam-se com o peso normal, 20% com sobrepeso e 20% com baixo peso. A participante K, mencionada acima, estava com peso normal, segundo o IMC.

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Seguindo a mesma linha de argumentação, Pereira (2007), também, calculou o IMC das participantes de vinte blogs brasileiros e verificou que 60% delas tinham IMC na faixa de normalidade e que apenas 15% estavam na faixa de baixo peso e 20% na faixa de sobrepeso. “Medida certa” significa, então, atingir um peso inferior ao considerado normal pelo IMC. Para as participantes, atingir esta meta não é suficiente. É necessário ainda ter um “corpo perfeito”. E o que significaria isso? Dois depoimentos podem servir de exemplo: “Ser perfeita é ter quadril, coxas e braços finos, barriga chapada e ter os ossos do quadril aparecendo”. (Ju *no name*) “Ser perfeita é apertar-se com uma pinça e não com um alicate pra conseguir achar uma gordurinha”. (Luana blogs)

Este estudo verificou que muitas participantes relataram que “ser perfeita” é ter um corpo magro, com pernas, cintura e braços finos. Para elas, não basta “ficar na medida”. É necessário, também, ter determinadas partes do corpo magras. A situação oposta é considerada abominável. Em um dos fóruns, foi identificado o seguinte depoimento: “Ridiculooo...ser gordaa eh ridiculooo!!!!!! Vestir uma calça jeans e as banhas pularem para fora da roupa....Isso eh ridiculooo!”. (K.)

Lira (2006) chegou a conclusões semelhantes ao estudar os diários virtuais de pró-anoréxicas. A autora verificou que os ossos no corpo de uma anoréxica simbolizam aquela parte do corpo que não está sujeita aos estereótipos de beleza ou feiúra. Para Lira (2006), o ideal de perfeição é atingido pelas ‘pró-anas’ quando é possível emagrecer a ponto de ter a visibilidade dos ossos. Damico (2004) analisou os discursos de jovens escolares sobre as estratégias utilizadas nos dias de hoje para cuidar do corpo. O autor constatou que elas possuem uma imagem corporal ideal semelhante àquela das frequentadoras da comunidade virtual analisada neste trabalho. Ambas se preocupam mais com as partes mais “macias ou protuberantes do corpo”, especialmente o excesso de gordura na barriga, nas nádegas e nos quadris (Damico, 2004, p.74). Elas desejam ter um corpo magro e livre de gordura. Elas querem que os ossos, em algumas partes do corpo, apareçam e sejam vistos. O autor observou, ainda, que as jovens “são educadas para exibir seu corpo de acordo com a moda, usando mini-blusas, calças e mini-saias de cintura baixa, biquínis fio dental e blusas de alcinhas” (Damico, 2004, p.12). Para o autor, essas vestimentas podem se tornar constrangedoras quando o corpo não está adequadamente preparado para exibi-las. Isso pode ocorrer quando barriga é perceptível ou perna está mal definida, ou, como disse a participante acima, as “banhas pularem para fora da roupa”. Os resultados obtidos pelos autores supracitados coincidem com os depoimentos observados neste estudo. Por esta razão, admite-se que estas participantes estejam adotando práticas que possam ser denominadas anoréxicas, apesar de as participantes não considerarem o mesmo. Ao se analisarem as explicações sobre o corpo, verificou-se que elas desejam ter um corpo magro, sem gordura, especialmente, nas partes consideradas mais volumosas, como quadril, coxas, braços e barriga. Elas desejam ter os ossos expostos e se sentem frustradas quando o corpo está fora dos padrões idealizados. As participantes desses fóruns vivem em constante busca pela magreza e rejeitam qualquer sinal de gordura em seus corpos. Emagrecer e atingir a “medida certa” e o “corpo perfeito” é uma prática que impõe sacrifícios. O depoimento de Fanna Voltando parece exemplificar este traço distintivo desta cultura identitária (Agier, 2001) anoréxica.

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“de tempos, em tempos, sempre surge aqueles momentos em que ficamos determinadas a conseguir, sempre pensamos, não agora vai, vou emagrecer, tudo bem, compramos laxantes, vemos milhões de fotos de thinspos, e insistimos em vomitar, mas aí vem a fraqueza, e do nada começamos a comer tudo de novo, ou quando pior mais ainda [...] se vc quer emagrecer, feche a boca, e se concentre, você pode conseguir, é um esforço diário, que no fim vale a pena, vc só tem ganhar, seja onde for, na auto-estima, nas amigas e muito mais com os gatos, se você parar para pensar na recompensa, vê que td sacrifício vale a pena! e ninguém vira anna do dia para noite, ou da noite para o dia, isso são longos e longos meses, ou pq não anos de vida”. (Fanna Voltando)

Práticas tipicamente anoréxicas, como comprar laxantes, insistir em vomitar, são propostas neste depoimento. A dor, fruto do esforço físico, tem uma conotação especial neste contexto. Torri et al. (2007) realizaram um estudo cujo objetivo foi estudar “as práticas de modelação corporal entendidas como intervenções tecnológicas sobre o corpo, políticas de consumo e juventude” (Torri et al., 2007, p.261). Nesse estudo, os autores também observaram que os indivíduos frequentadores de academias “naturalizam” a dor e o sofrimento corporal. A dor para esses indivíduos possui, também, um “caráter legitimador”, ou seja, o indivíduo deve pagar o preço para obter o corpo perfeito, independente de sentir dor ou não (Torri et al., 2007, p.266, 227). Os autores demonstraram, ainda, que os professores utilizavam estratégias para seus alunos suportarem a dor, como frases de incentivo, “vamos lá, vocês conseguem!”, e até ameaças, como “quem não for até o final vai se encher de celulite” (Torri et al., 2007, p.268). Na comunidade virtual investigada, as estratégias para suportar a dor partem das próprias participantes. “Coma muito pouco! pouco mesmo, mais continue nessa luta que vc consegue viu? beijos!”. (Karol)

O trecho acima demonstra que, para participar desta cultura identitária (Agier, 2001), é necessário muito esforço e sacrifício, pois só assim as metas podem ser alcançadas. A participante declarou que todas as pessoas que desejam ter corpos magros necessitam de esforço, sacrifício, autocontrole e disciplina. O estilo de vida de uma anoréxica segue, portanto, um modelo de beleza vigente e obedece a um rígido sacrifício. Este primeiro núcleo de sentido participa do processo de construção da cultura identitária (Agier, 2001) que transforma uma prática considerada doentia em algo saudável, apesar de exigir sacrifícios.

Magro, rico e feliz O segundo núcleo de sentidos (Minayo, 2008) reúne as expressões e trechos selecionados nos fóruns que dizem respeito às expectativas das participantes para alcançarem o padrão de um corpo magro. Neste caso, o sacrifício não é pensado apenas para atender a um padrão estético. O ideal de perfeição física nesta cultura identitária (Agier, 2001) também está associado a um futuro feliz e financeiramente próspero: “perfeição pra mim é ser magérrima, usar a roupa q eu quiser e ser paquerada pelos garotos... ser invejada pelas meninas, e ser linda como as modelos!”. (C.) “Ser magérrima e poder vestir o q quiser..... ou não vestir nada rsss causar inveja e admiração ter um empregão. e ser bem-sucedida ter uma ótima formação: facul, pós e etc ter um gato bem lindo q me ama”. (P.)

As explicações sobre ser perfeita passam a estar relacionadas, também, com a expectativa de ser desejada e admirada. Além disso, participantes desses fóruns relacionam o padrão magro de beleza com um cidadão bem-sucedido social e economicamente.

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Esses trechos revelam, ainda, que a busca pelo corpo magro sofre forte influência do que é divulgado na mídia (Añaña et al., 2008). As modelos se transformam no parâmetro do que se deseja ser e ter em matéria de corpo magro e de processo de reconhecimento e integração social. Brandini (2007) demonstrou que a atual cultura do corpo é retroalimentada pelo universo da moda, que promove práticas, atitudes, técnicas, tecnologias e mercados que podem ser vistos como ideais. Para tanto, são difundidos modelos consensualmente aceitos que devem ser seguidos. Na década de 1950/60, por exemplo, Marilyn Monroe era considerada a mulher mais sexy. Ela usava manequim 42, com cintura de 72/74 centímetros e quadril 98. Hoje, no início do século XXI, o tipo de corpo feminino ideal possui manequim 36, cintura de 50/60 centímetros e quadril 80. Para Alvarenga (2004), o conceito atual de beleza feminina não é o mesmo da década de 1950. No seu entender, a valorização do corpo magro suplantou o modelo do corpo cheio de curvas. Para Goldenberg (2005), o culto ao corpo magro tornou-se uma verdadeira obsessão no Brasil, sobretudo, a partir do final do século XX e início do século XXI. Para ela, existe, atualmente, uma geração que cresceu tentando imitar o corpo de modelos e cantoras famosas, como Kate Moss ou a Beyoncé. Para Reis e Silveira Júnior (2008), a inspiração por celebridades é um traço marcante de fóruns virtuais pró-anorexia. Para as autoras, as participantes desses fóruns recebem influência das atrizes e modelos famosas, que expõem, através da mídia, seus corpos considerados perfeitos pela sociedade ocidental. Além disso, elas servem de estímulo para as ‘pró-anas’, pois têm corpos bem torneados e magros e são bem-sucedidas financeira e socialmente. Elas servem como thinspiration. Uma participante declarou: “Ser perfeita é ter o corpo de Kate Moss” (Satella) . Niemeyer e Kruse (2008) estudaram a influência da mídia na construção do corpo magro ao analisarem os discursos da revista Capricho. Eles constataram que esta revista divulga mensagens contraditórias, pois condena a anorexia como doença e, ao mesmo tempo, incentiva as adolescentes a terem atitudes anoréxicas. Além disso, a revista valoriza o corpo magro como sendo o corpo perfeito e prescreve medidas para corrigir aqueles que estão imperfeitos. Medina (2007), em seu estudo sobre blogs pró-ana, constatou, também, que as participantes desses espaços virtuais não expõem suas fotos em suas páginas, pois demonstram uma “fascinação pela imagem do outro” (Medina, 2007, p.48). Consequentemente, negam sua própria imagem, considerando-a imperfeita e fora do padrão magro de beleza. Para Goldenberg (2005), o culto obsessivo ao corpo, na sociedade contemporânea, aprisiona as mulheres, levando-as a viverem em busca do padrão magro de beleza. A autora demonstrou que as mulheres dos anos oitenta promoveram uma libertação de seus corpos com relação à sexualidade e as roupas que deveriam utilizar. Atualmente, ocorre o contrário. A autora verifica que está ocorrendo uma padronização dos corpos e um processo em que as mulheres estão preocupadas em se manterem jovens e magras. Para atingirem esta finalidade, utilizam vários recursos, como dietas, ginástica e cirurgias plásticas. Desse modo, corroborando com as autoras acima, este estudo admite que o ideal de perfeição para essas participantes de fóruns analisados vai muito além de ter apenas um corpo magro. Elas desejam também, mesmo que subjetivamente, possuir um status perante a sociedade, uma vez que ter o corpo magro, no entender dessas participantes, está relacionado com: ser bem-sucedida, desejada, invejada, ter dinheiro, fama, bom emprego e ser amada. Assim, todo aquele esforço e sacrifício seriam, de alguma forma, recompensados. Damico e Meyer (2007) entendem que a gordura e a flacidez são avaliadas, pelos indivíduos que cultuam o corpo magro, como sinais de “indisciplina e desleixo” (Damico, Meyer, 2007, p.87). Para Sibilia (2004), os indivíduos com sobrepeso e obesos são considerados, pela sociedade contemporânea, maus gestores de si. Por esta razão, são considerados sujeitos sem autocontrole e moralmente fracos. Santos (2008), seguindo a mesma linha de argumentação, demonstrou que a imagem de um corpo magro está relacionada com indivíduos de sucesso, que conseguem ter um maior controle sobre seu comportamento alimentar. Por outro lado, o indivíduo gordo significa um fracassado, preguiçoso e desleixado, pois demonstra ser incapaz de se autocontrolar. Miskolci (2006) concorda com este ponto de vista. Para este autor, um corpo gordo não caracteriza apenas um sujeito “feio ou disforme”, mas, também, gera um pensamento “autodestrutivo” que busca, muitas vezes, uma adequação a qualquer custo ao padrão magro (Miskolci, 2006, p.685).

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O segundo núcleo de sentido participa do processo de construção da cultura identitária (Agier, 2001), pois associa esta prática ao sucesso pessoal e profissional, excluindo os gordos, que seriam, por esta condição, fadados ao fracasso.

Estar em comunidade O terceiro núcleo de sentido (Minayo, 2008) enfatiza a importância da existência das comunidades virtuais. Lá a identidade condenável pela medicina e pela sociedade se mantém imune e as praticantes conseguem apoiar-se reciprocamente. Por esta razão, todas as praticantes são honestas acerca de seus comportamentos alimentares. Esta honestidade, entretanto, não pode ser transmitida para o mundo real, devido às possíveis retaliações que receberiam da família e dos colegas. No mundo virtual, elas procuram encontrar a melhor maneira de reagir ao mundo real, quando este as indaga. Este foi o caso de uma participante que declarou ao namorado que desejava fazer uma lipoaspiração para retirar “as gorduras nojentas de seu corpo”. Ela não obteve apoio dele. Quando ela contou a reação do namorado, na comunidade virtual, às demais participantes, disseram que ela não deveria ter falado para seu namorado sobre a lipoaspiração. Elas ainda deram sugestões sobre como esconder de namorado sua identidade. Brida declarou a seguinte frase: “Mostra pelo menos na frente dele q vc tah comendo... tipo deixa pra comer com ele, quando vc tiver sozinha não come... se cuida.” (Brida)

Kally seguiu a mesma linha de argumentação dizendo: “Evite ficar conversando sobre planos de comida, lipo perto dele, aí que ele vai ficar bravo! Força aí que vc consegue linda.” (Kally)

Estes dois relatos revelam as dificuldades encontradas, pelas participantes desta comunidade virtual, para esconder da família e amigos mais próximos os comportamentos considerados doentios pela sociedade e pela medicina. Como o estilo de vida transcende o mundo virtual, as atitudes e os comportamentos no mundo real fazem com que as pessoas que estão mais próximas comecem a desconfiar do emagrecimento de tais participantes. Os comportamentos pró-anoréxicos e o emagrecimento de uma filha podem ser percebidos por seus pais na convivência diária no lar. Desse modo, mesmo não conhecendo a identidade virtual de seus filhos, os pais, amigos e parentes podem desconfiar e até descobrir o estilo de vida pró-anoréxico de seus filhos, ao encontrarem purgantes nas gavetas, vestígios de vômito no banheiro ou, até mesmo, constatarem uma perda súbita de peso. Além disso, as participantes apoiam umas às outras e divulgam as práticas anoréxicas bemsucedidas. Elas também podem apresentar dúvidas que são, muitas vezes, sanadas por outra participante. Um exemplo pode ser oferecido neste sentido: “Vinagre e limão emagrece ou é lenda? Minha vó me falou que quando era jovem ela chupava 1 limão por dia e começou a perder peso, será que é verdade?” (V.) “[...] na verdade, é verdade, mas só sobre o limão. Ele é um agente purificador no corpo e quebra as células de gordura, tanto que existe um dieta do limão, pode pesquisar. ahhh, até a Beyoncé fez uma dieta com bastante limão, o nome da dieta é master cleanse.” (B.)

Na verdade, muitas jovens que procuram ser magras são parecidas com as que se reúnem nesta comunidade. A diferença é que as jovens que frequentam a comunidade analisada neste trabalho se expõem, compartilham dúvidas e participam do processo de construção da cultura identitária (Agier, 2001) anoréxica. Não se trata, portanto de uma comunidade que se limita a cultuar os padrões de beleza contemporâneos. Nos diálogos travados entre elas na comunidade virtual investigada, são

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utilizadas expressões que denotam, também, práticas da mesma ordem, como miar (vomitar), Ana (anorexia), LF (light food) e NF (no food). As comunidades virtuais adquirem, portanto, um significado singular. As praticantes se refugiam nestes ambientes porque fora deles suas ideias e práticas são criticadas e até condenadas. As comunidades virtuais representam, neste caso, um refúgio. Para Damico e Meyer (2005), elas são um ambiente onde se podem dividir as práticas e os sentimentos na busca pela magreza. Fox et al. (2008) demonstraram que os sites pró-anorexia têm o objetivo de gerenciar as práticas anoréxicas, e, por isso, proporcionam um “espaço livre de julgamento”. Neles esses indivíduos podem se sentir seguros, obter apoio e compartilhar experiências. O ponto de vista de Recuero (2005) se assemelha ao de Fox et al. (2008). Ele demonstrou que a interação entre os participantes destas comunidades é “mútua e cooperativa” e visa fortalecer os laços de solidariedade e oferecer suporte ao grupo. Para esta autora, os laços sociais podem ser “fortes ou fracos”. Os laços fortes são aqueles que se caracterizam pela intimidade, pela proximidade e pela intencionalidade em criar e manter uma conexão entre duas pessoas. Os laços fracos, por outro lado, caracterizam-se por relações esparsas, que não traduzem proximidade e intimidade. Os fóruns on line são, portanto, espaços de sociabilidade, que servem para manter o segredo e, também, para apoiar e compreender uns aos outros, preservando a cultura identitária (Agier, 2001) construída através da interação das partes. As usuárias aceitam os pensamentos e comportamentos anoréxicos umas das outras, permitindo que todas sejam sinceras acerca de suas práticas, valores e comportamentos. Nos fóruns virtuais, elas podem trocar experiências entre si. Essa troca fortalece o sentindo de pertencimento ao grupo e integra sua cultura identitária (Agier, 2001). A sinceridade, entretanto, não pode ser compartilhada e nem revelada para o mundo real, devido às possíveis consequências. A sinceridade entre as integrantes e a segurança na preservação desta prática está presente nos significados compartilhados no material analisado. Esta questão está intimamente associada com o debate sobre a construção da cultura identitária (Agier, 2001) anoréxica. Nesse processo de construção, é essencial que haja uma identificação entre os pares por meio de sinais de distinção e semelhança que vão demarcar os traços identitários de determinados grupos em relação a outros. As participantes desses fóruns constroem uma cultura identitária valorizando o corpo magro, sem vestígio de gordura, a prática de dietas restritivas e as thinspirations. Dias (2003) ressaltou que muitas pró-anoréxicas, contrariando o modelo biomédico, consideram que anorexia seja um estilo de vida. As comunidades virtuais, neste sentido, são ambientes onde elas podem se refugiar. Além disso, essas jovens procuram uma maneira criativa de compartilharem seus pensamentos, práticas e comportamentos e fugirem do julgamento recebido no mundo real. O anonimato da internet é, também, uma questão que contribui para a construção e cultura identitária pró-ana. Para Baldanza (2006), o anonimato introduz alguns aspectos positivos no processo de interação e sociabilidade na internet. Ele facilita, por exemplo, a comunicação virtual, pois não impõe os “bloqueios sociais ou preconceitos” inerentes, muitas vezes, à identidade real (Baldanza, 2006, p.6). A possibilidade de serem criadas identidades virtuais permite que o relacionamento seja feito “sem censura, sem compromisso e sem mobilidade territorial” (Baldanza, 2006, p.6). Verifica-se, ainda, que as participantes destes fóruns podem interagir e se relacionar livremente, independente da posição social, econômica, cor e bairro em que moram. Seguindo a mesma linha de argumentação, Tierney (2006) demonstrou, em seu estudo, que os sites pró-anorexia geram um ambiente de segurança e confiança, onde os indivíduos que compartilham das mesmas crenças podem se relacionar livremente e não ficam mais isolados dentro de suas casas. Gavin, Rodham e Poyer (2008) corroboraram com os autores acima, pois observaram que, com o desenvolvimento dos fóruns de discussão online, os indivíduos com anorexia sofrem menos de isolamento e solidão, pois podem compartilhar seus sentimentos com outros indivíduos que possuem o mesmo estilo de vida. Os autores constataram, ainda, que:

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muitos usuários ainda se sentem incapazes de compartilhar a identidade pró-ana com aqueles que mais importam para eles. Isso indica que eles estão plenamente conscientes da controvérsia que rodeia a escolha de seus comportamentos e que eles acreditam que não serão aceitos por seus entes queridos no mundo real. (Gavin, Rodham, Poyer, 2008, p.330)

Recuero (2005) analisou a construção de identidades nas comunidades virtuais pró-anorexia. A autora verificou que os indivíduos nas comunidades visam, antes de tudo, se identificarem integrantes do grupo pró-anorexia. Isto ocorre porque, no momento que são reconhecidos como indivíduos pertencentes ao mesmo grupo social, estes indivíduos têm acesso a todo conteúdo disponibilizado pelas comunidades com as quais se identificam e são identificados. Para a autora, os anoréxicos buscam uma construção identitária nas comunidades virtuais para obterem aceitação social. Este autor verificou, ainda, que esses indivíduos estabelecem laços de amizades virtuais fortes. Os amigos virtuais são aquelas pessoas que compartilham o mesmo problema e dividem as mesmas angústias, apesar de não se conhecerem pessoalmente. Seguindo a mesma linha de argumentação, Medina (2007) estudou os blogs e comunidades próana e pró-mia, que defendem a prática da anorexia e bulimia como estilo de vida. Para esta autora, os blogs e as comunidades são espaços onde os indivíduos confessam seus segredos e expõem sua identidade pró-ana. Além disso, esses blogs e comunidades permitem que elas se sintam pertencentes a um grupo social, pois nesses ambientes não existe julgamento e nem preconceito com relação às práticas e os comportamentos anoréxicos.

Conclusão Ao se estudar a construção da cultura identitária (Agier, 2001) de jovens participantes de fóruns públicos pró-anorexia, pode ser constatado que, em suas falas, existe uma tensão de significados e sentidos. Elas buscam justificar o estilo de vida pró-anoréxico tentando afirmar seu lado saudável, e não doentio. As pró-anoréxicas buscam gerenciar seus próprios corpos visando atingir o ideal de magreza preestabelecido por elas mesmas e, muitas vezes, imposto pela sociedade. Essas metas têm como objetivo deixar a estrutura óssea em evidência sem resquícios de gordura. Outra questão observada foi que o padrão de beleza magro remete a um sujeito bem-sucedido. As participantes idealizam e buscam o corpo magro que está associado com as projeções para uma vida bem-sucedida no futuro. No entanto, não pode ser esquecido que essas adolescentes estão numa fase de construção de sua própria identidade e existência pública, ou seja, ainda não atingiram a vida adulta. Por isso, há a necessidade de maiores estudos nesse campo, uma vez que a saúde dessas adolescentes e jovens é uma questão de saúde pública. A última questão observada neste artigo foi o pertencimento ao grupo pró-anorexia, que permite a construção de uma cultura identitária (Agier, 2001), por meio do anonimato possibilitado pela internet. As participantes desses fóruns se identificam com o grupo, e, consequentemente, revelam e vivem sua identidade pró-ana com mais liberdade e de forma plena, realizando e compartilhando todos os valores e crenças de uma pró-anoréxica. No entanto, foi possível constatar que os comportamentos e as atitudes pró-anoréxicas podem ser percebidos pelos indivíduos que convivem diariamente com as integrantes desses fóruns. Elas não conseguem esconder totalmente suas atitudes e comportamentos, que podem ser notados quando rejeitam a alimentação constantemente, realizam exercício físico excessivamente, provocam vômitos ou utilizam remédios para emagrecer. Os fóruns virtuais são ambientes onde suas participantes podem expor o estilo de vida próanoréxico sem julgamentos e preconceitos. Além disso, elas podem trocar experiências entre si e fortalecer os laços de amizade entre elas, pois dentro desse espaço virtual elas possuem proteção, reconhecimento e reciprocidade. Desse modo, a internet se tornou um importante veículo de expressão para aqueles que vivenciam a pró-anorexia em suas vidas. Ela possibilitou o encontro de pessoas que não seria possível no mundo real. Este trabalho permitiu analisar as práticas anoréxicas fora dos parâmetros médicos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Este artigo utilizou o procedimento metodológico da “observação passiva”, desenvolvido por Gavin, Rodham e Poyer (2008). Neste sentido, ele se inscreve no debate travado pela literatura internacional a respeito do tema, trazendo como contribuição a perspectiva de um caso brasileiro. A produção nacional sobre o tema ainda é bastante incipiente. Para se ter uma ideia do quadro atual, basta mencionar que, entre os 56 títulos sobre anorexia presentes na base bibliográfica do scielo, nenhum avaliava o papel das comunidades virtuais. Da mesma forma, dos cento e noventa títulos encontrados com o indexador internet, nenhum aborda as comunidades virtuais anoréxicas. Assim, este artigo apresenta uma contribuição em relação à literatura internacional e nacional a respeito do tema. Este artigo pretende encorajar outros pesquisadores a desenvolverem estudos sobre práticas anoréxicas em comunidades virtuais. Eles contribuem para a melhor compreensão do universo juvenil e podem colaborar com a promoção de políticas e ações voltadas para a saúde do adolescente e do jovem.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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Palabras clave: Anorexia. Comportamiento de los adolescentes. Webcast. Internet. Recebido em 19/05/2010. Aprovado em 10/01/2011.

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artigos

A visita médica domiciliar como espaço para interação e comunicação em Florianópolis, SC* Renata Borges1 Ana Flávia Pires Lucas D`Oliveira2

BORGES, R.; D’OLIVEIRA, A.F.P.L. The medical home visit as a space for interaction and communication in Florianópolis - Santa Catarina. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.461-72, abr./jun. 2011.

This paper discusses the medical home visit based on research carried out in the municipality of Florianópolis, state of Santa Catarina (Southern Brazil), in the context of the Family Health Strategy. The main objective was to understand how the home visit impacts on medical practice, regarding changes in the quality of the interaction between the professional, the patient and his family. Qualitative methodology was adopted along with triangulation techniques, which combined interviews, participant observation and the reading of documents. It was noticed that the home visit encourages interaction by promoting communication oriented towards mutual understanding. Thus, the professional can strive to have technical efficiency (technical success) combined with the understanding and focus on projects of happiness of patients and family members (practical success).

Keywords: Medical home visit. Communication. Interaction. Family Health Strategy.

Este artigo discute a visita médica domiciliar, com base em pesquisa realizada no município de Florianópolis, Santa Catarina, tendo como cenário a Estratégia Saúde da Família. O objetivo principal foi compreender como a visita domiciliar impacta a prática médica, com relação a mudanças na qualidade da interação entre o profissional, o paciente e sua família. Adotou-se metodologia qualitativa, com triangulação de técnicas, combinando entrevistas, observação participante e leitura de documentos. Percebeu-se que a visita domiciliar estimula a interação, por favorecer uma comunicação voltada ao entendimento mútuo, facilitando ao profissional compor a busca da eficácia técnica (êxito técnico) com a compreensão e foco nos projetos de felicidade dos pacientes e familiares (sucesso prático).

Palavras-chave: Visita médica domiciliar. Comunicação. Interação. Estratégia saúde da família.

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Elaborado com base em Borges (2010); pesquisa aprovada pela Comissão de Ética da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis e pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa – CAPPesq da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). 1 Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura de Florianópolis. Rua Angico, n.79, Campeche. Florianópolis, SC, Brasil. 88.066-126. renata1960@gmail.com 2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, USP. *

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A visita médica domiciliar como espaço para interação...

Introdução A Estratégia Saúde da Família propiciou o espaço e incentivo para que as visitas médicas pudessem realizar-se com maior frequência no Brasil. O Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, implantado em 1991 (denominado PACS, em 1992), evidenciou o trabalho do agente comunitário de saúde, realizando visitas domiciliares, incorporando o enfermeiro e, posteriormente, com o Programa Saúde da Família (1994), também o profissional médico (Viana, Dal Poz, 1998). A visita domiciliar traz consigo um significado simbólico muito forte: ela é um espaço concedido pelo usuário em seu domicílio, diversamente do serviço de saúde, que é um espaço bem mais protegido para o profissional. Para o paciente e seus familiares em geral, a visita representa um cuidado especial, simbolizando um compromisso da equipe. Ela fortalece o vínculo entre o profissional, equipe e o usuário (Joyce, Pitman, 2008; Berg, 2006; Cunha, 2005; Bergeron et al., 1999; McWhinney, 1997). Ainda que, muitas vezes, realizada de forma burocrática, e criticada em razão disso por alguns autores (Franco, Merhy, 2003), a visita domiciliar tem adquirido um papel de natureza estruturante no contexto da ESF (Peres, Dal Poz, Grande, 2006). Segundo estudo de Peres, Dal Poz e Grande (2006, p.212), isso ocorreria diante do caráter relacional e intimista que a visita domiciliar proporciona aos profissionais e usuários, do expressivo número de dias atribuídos a visitas domiciliares realizadas pelos médicos e enfermeiros, bem como a centralidade que a visita ocupa no PSF.

Assim, na medida em que o profissional médico tem a oportunidade de acompanhar este usuário e sua família, a visita domiciliar (VD) pode tornar-se um espaço que propicia a interação e o diálogo, ultrapassando a questão técnica, exclusivamente (Albuquerque, Bosi, 2009; Peres, Dal Poz, Grande, 2006; McWhinney, 1997). Para que esse processo ocorra, é preciso que o médico esteja presente e atuante na comunidade, sendo sua formação de tal modo que dê conta de contemplar os problemas de saúde mais prevalentes, relacionando-se com o paciente e sua família e tendo a abertura para aceitar opiniões e condutas, algumas vezes, diversas das que são prescritas pelos protocolos. Na ESF, a longitudinalidade está integrada à ideia de responsabilidade e vínculo, responsabilidade esta que é compartilhada entre profissionais e usuários, à medida que se (re)conhecem e podem estabelecer vínculos de confiança entre si (Takeda, 2006; McWhinney, 1997; Starfield, 1994). É necessário, ainda, que definamos os conceitos de comunicação e interação, inseridos no contexto atual de uma medicina cada vez mais especializada e tecnológica (Schraiber, 2008, 1997, 1993; Dalmaso, 2000). Adotamos a abordagem habermasiana, na qual a comunicação não se refere à relação do sujeito isolado a algo no mundo, que pode ser representado e manipulado, mas à relação intersubjetiva que assumem sujeitos capazes de linguagem e de ação quando eles se entendem entre si sobre algo (no mundo). À medida que os participantes da comunicação buscam um acordo intersubjetivo, todos os envolvidos encontram-se em igualdade de chances para decidirem as orientações da ação que vão determinar a vida social (Aragão, 1992). A comunicação pressupõe, aqui, o entendimento mútuo, em que não há possibilidade de coerção, buscando a compreensão. Na interação, o jogo comunicativo acontece, mas não necessariamente no sentido da compreensão – a dominação ou instrumentalização do outro para o sucesso individual também pode acontecer. Peduzzi (1998) coloca que a mediação (interação) tanto pode expressar o agir (ação) comunicativo, quando se busca o entendimento, quanto o agir instrumental, quando se busca atingir um determinado fim ou objetivo. No domicílio e na comunidade, o médico de família entra em contato com um mundo diverso daquele do consultório e pode ter a oportunidade de ampliar seu entendimento da vida cotidiana das pessoas que atende, ao mesmo tempo em que precisa intervir sobre estas pessoas e seus problemas de saúde.

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A comunicação como forma de interação: uma necessidade e possibilidade para a prática médica no contexto da visita domiciliar A questão da comunicação é crucial, a nosso ver, para que o encontro entre o médico e o paciente possa realmente acontecer de forma efetiva. Como Scambler e Britten (2001) mencionam, citando Habermas, as “patologias” da comunicação são o resultado da confusão entre as ações orientadas para o entendimento e aquelas orientadas para o sucesso individual. Os médicos tendem a adotar ações estratégicas, com o objetivo de atingirem um determinado objetivo terapêutico, não levando em consideração a opinião do paciente e família, agindo de forma paternalista, com o argumento de que é para o “bem” do outro, trazendo, como consequência, dificuldades em relação ao acompanhamento clínico (Scambler; Britten, 2001). Segundo Scambler e Britten (2001), os médicos tendem a agir de forma estratégica aberta, procurando atingir as metas propostas no plano terapêutico, podemos assim dizer. O conhecimento leigo, nessa perspectiva, é pouco valorizado. No entanto, os encontros entre o médico e o paciente, muitas vezes, abrangem ações estratégicas veladas que envolvem a manipulação, por um lado, quando o médico utiliza seu conhecimento, ou o jargão médico, para vencer a resistência do paciente, provocando, por assim dizer, um “engano consciente” (conscious deception); mas, por outro lado, envolvendo um “engano inconsciente” (unconscious deception), quando nem o médico e nem o paciente dão-se conta de que agem de forma estratégica, em vez de atuarem de forma comunicativa. Esta é a perspectiva que Scambler e Britten (2001) conceituam de situações onde “a comunicação é sistematicamente distorcida”, embora em muitas circunstâncias acreditem agir de forma sincera e por “boa-fé”. Habermas propõe a racionalidade comunicativa da ação. Na ação comunicativa os participantes não se orientam primariamente ao próprio êxito; antes perseguem seus fins individuais sob a condição de que seus respectivos planos de ação possam harmonizar-se entre si sobre a base de uma definição compartilhada da situação. Daí que a negociação de definições da situação seja um componente essencial da tarefa interpretativa que a ação comunicativa requer. (Habermas, 1987, p.367, grifo nosso).

A comunicação percebida como entendimento mútuo traz, para a prática clínica desenvolvida na Atenção Primária, novas possibilidades de compreensão do caso e de propostas de solução dos problemas percebidos, uma clínica que possa incluir “possibilidades de prevenção e assistência, incluindo soluções heterodoxas para o manejo de situações já conhecidas” (Ayres, 2008, p.76). O “caso” significa mais do que a condição clínica de um paciente. Ele (o paciente) torna-se “caso” em outro sentido, a partir da compreensão de que o adoecimento tem características singulares em uma biografia e história conhecidas. Pensamos a clínica, como definido por Schraiber (2008), como uma prática entendida como ato, no sentido de ação que realiza o saber médico, e como ele é operado na relação com o paciente e sua família, no contexto da visita domiciliar. Essa clínica tem, no cuidado, a forma característica e processual de operar, inserida na conformação atual da Estratégia Saúde da Família. Todas as oportunidades de encontro entre o médico e o paciente podem ensejar uma abertura para o diálogo, “um autêntico interesse em ouvir o outro”, quando a escuta tem, como horizonte normativo, uma dimensão existencial (Ayres, 2008, p.70-1). As referências passam a ser outras, isto é, aquelas colocadas pelo paciente, e não as restritas aos critérios estabelecidos pelos técnicos. Nesse caso, no encontro, busca-se uma abordagem que alie o êxito técnico com o sucesso prático num horizonte normativo diverso da morfofuncionalidade, é então que pode ocorrer o processo comunicativo (Ayres, 2008). Por êxito técnico, entendemos o “sentido instrumental da ação, por exemplo, a relação entre o uso de um vasodilatador e a redução do risco de danos cardiovasculares num paciente”; por sucesso prático, referimo-nos “ao valor que essa ação assume em relação aos indivíduos e populações, envolvendo as implicações simbólicas, relacionais e materiais dessas ações na vida cotidiana” (Ayres, 2008, p.164).

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Ayres (2008, p.74-5) declara que “não é possível encararmos qualquer relação terapêutica como algo que está começando exatamente ali no momento do primeiro encontro” (entre profissional e usuário). O profissional que surge nesse encontro e, poderíamos dizer também, o usuário, já carregam consigo o modo próprio de como veem o mundo e uma determinada alteridade. Dessa forma, “quando se estabelece uma interação na atenção à saúde não se a inicia; rigorosamente, se a ´retoma`.” O autor frisa que, ao se buscar fazer dessa interação um diálogo, abre-se espaço para uma discursividade mais livre, quando a fala dos pacientes não se configura apenas como complementação do discurso do profissional, permitindo “novas possibilidades técnicas e novos sucessos práticos”. Quando ocorre o vínculo entre o médico, o usuário e sua família, pode estabelecer-se o cuidado como uma relação, compartilhando responsabilidades, percebendo qual “projeto de felicidade” interessa àquela pessoa. Ayres (2008) coloca a felicidade não como uma condição material ou espiritual definida a priori, mas como uma ideia reguladora, de natureza contrafática. Isto é, a experiência da felicidade é uma ideia concreta e que “convive todo o tempo com infelicidades: interesses negados, frustrações, obstáculos, limites, dores, angústias. É na negação desses obstáculos que a felicidade vai marcando caminhos para a ação” (p.165). O aporte habermasiano e as contribuições de Ayres ajudam-nos a perceber quanto a ética comunicativa tem relevância para se refletir sobre o cuidado em saúde, mesmo levando em consideração as dificuldades dessa ética quando confrontada com a assimetria de poder no cuidado em saúde, particularmente do poder médico (Jones, 2001). No contexto do domicílio, quando o médico visita o paciente e sua família, emergem questões relativas ao cuidado em si, incluindo: os problemas da vida cotidiana, o conhecimento do paciente, da família e do profissional, a experiência adquirida e compartilhada no espaço da visita, entre outras. Isso permite, a nosso ver, um campo fértil para se refletir e investigar a interação médico-paciente e as perspectivas e desdobramentos que levem à construção “de outras formas interativas” (Schraiber, 2008, p.230) mais comunicacionais. Segundo Schraiber (2008), com a perda histórica da confiança conquistada pela medicina liberal, os dilemas colocados para os médicos surgiram não só no plano da técnica, mas também, e fundamentalmente, no plano da ética. No entanto, se não é mais possível reconquistar a “antiga” confiança perdida no saber, na experiência e na pessoa do médico, o espaço da comunicação e a habilidade em comunicar são imprescindíveis para a construção de uma relação em que a negociação esteja presente. No entanto, se antigamente os conselhos médicos eram muito valorizados, a tecnologia atual permite, ao paciente, maior acesso à formulação da conduta médica e enseja participação pela disseminação da informação, mas, ao mesmo tempo, restringe o tempo da comunicação. O trabalho de Schraiber (1997, 1993) salienta que é esse tempo dedicado à conversa que os médicos buscam preservar, pois representaria a “essência” do caráter liberal de suas práticas. A conversa, necessária, a nosso ver, para que se estabeleça a comunicação é que pode dar sentido diverso à medicina tecnológica. Essa possibilidade está presente na visita domiciliar, no contexto da Estratégia de Saúde da Família. O objetivo da nossa pesquisa é conhecer como a visita domiciliar pode promover outras formas interativas, favorecendo uma maior comunicação entre o médico, paciente e família, e reorientando a clínica na direção do sucesso prático. Este artigo aborda, particularmente, a percepção dos profissionais e pacientes acerca das potencialidades da visita médica domiciliar.

Metodologia Tendo como objeto de pesquisa a visita médica domiciliar, o cenário que vislumbramos é o da Atenção Primária à Saúde (APS), integrada aos princípios e diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), que inclui a universalidade, equidade e integralidade, seus pilares fundamentais, sendo a ESF, o modelo de organização dos serviços de APS, peculiar do SUS (Andrade et al., 2006; Pustai, 2006). Como o próprio modelo propõe, não é possível uma atuação abrangente que englobe, além 464

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da assistência curativa, a prevenção e promoção de saúde sem o trabalho de equipe, vínculo e acolhimento, e, neste caso, a presença atuante do agente comunitário de saúde é fundamental. Nossa pesquisa aconteceu em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, onde, diferentemente de outras localidades do País, houve a fixação dos médicos na mesma área de abrangência, sendo grande parte com residência ou especialização em Medicina de Família e Comunidade, tendo sido a primeira capital do país a ter cobertura total dos agentes comunitários de saúde, no ano 2000 (Conill, 2002). Além disso, Florianópolis possui uma Rede Docente Assistencial que inclui a maioria dos centros de saúde, onde muitos médicos atuam, também, como supervisores dos graduandos da área da saúde, especialmente do curso de Medicina. Optamos pela metodologia qualitativa, utilizando as técnicas de observação participante, entrevistas semiestruturadas e leitura de documentos. Essas técnicas dão acesso a uma ampla gama de dados, inclusive àqueles cuja existência o investigador pode não ter previsto no momento em que começou a estudar (Denzin, Lincoln, 2007; Becker, 1993). A pesquisa qualitativa envolve uma abordagem naturalista, interpretativa, e seus pesquisadores procuram entender, ou interpretar, os fenômenos quanto aos significados que as pessoas a eles conferem (Denzin, Lincoln, 2007). Adotamos os seguintes critérios para escolha dos profissionais que seriam entrevistados, a partir de adaptação baseada em Minayo, Assis e Souza (2005), Minayo (1994), Triviños (1994) e Becker (1993): • título de especialidade em Medicina de Família e Comunidade ou residência na área; • antiguidade na comunidade, sendo três anos de atuação no mesmo bairro, e envolvimento com o fenômeno que se quer estudar, associado ao conhecimento amplo e detalhado das circunstâncias que envolvem o foco em análise; • disponibilidade adequada de tempo para participar no desenrolar das entrevistas e encontros; • capacidade para expressar, especialmente, o essencial do fenômeno, numa perspectiva de se constituírem em informantes bons e reflexivos. Com base nesses critérios, a escolha de quais profissionais seriam entrevistados partiu de conversas e informações junto aos coordenadores dos distritos sanitários. Quanto aos usuários e famílias que seriam entrevistados, a escolha coube ao médico(a) e agentes comunitárias, com a indicação daqueles pacientes que já estavam recebendo acompanhamento da equipe nesse período de três anos, com visitas regulares. Outro critério estabelecido foi o de que o usuário pudesse realizar a entrevista, tendo autonomia para expressão, visto que alguns pacientes visitados pelos profissionais médicos e equipe eram idosos, acamados, com sequelas de doença cerebrovascular, e alguns apresentando dificuldades para falar. Foram realizadas oito entrevistas com profissionais médicos, dez entrevistas com usuários e familiares, em domicílio, e observadas dez visitas domiciliares realizadas pelos médicos que participaram da pesquisa. Das entrevistas com os profissionais, uma entrevista foi com um médico e seis com médicas de família, contemplando um bairro em cada distrito sanitário. Realizamos, também, uma entrevista com um pediatra, que apoia uma equipe, mas não realiza visita domiciliar. Além disto, observamos o trabalho de supervisão de graduandos de medicina realizado por uma médica de família que também atua na Rede Docente Assistencial, cujos alunos realizam visitas domiciliares. Os usuários e familiares entrevistados por nós não foram os mesmos visitados pelos profissionais médicos, no período de observação de campo realizado. Todas as visitas e entrevistas que realizamos foram intermediadas pelas agentes comunitárias, que nos acompanharam até as casas dos pacientes, sendo que, em algumas situações, presenciaram as entrevistas. Renomeamos os bairros, os nomes dos profissionais e usuários para garantia do sigilo. Consideramos esse número suficiente e capaz de contemplar as questões colocadas pela pesquisa, pois novas informações substanciais já não eram acrescidas ao material que havíamos coletado (critério de saturação) (Nogueira Martins, Bógus, 2004). Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas com o acordo de pacientes e profissionais, e o termo de consentimento livre e informado foi assinado pelos participantes. Adotamos roteiros de entrevistas semiestruturadas com finalidade norteadora, mas dando liberdade para expressão dos entrevistados. Iniciamos o campo em novembro de 2007, com o pré-teste dos roteiros, prosseguimos nos meses de abril, maio, setembro e outubro de 2008, e complementamos em novembro de 2009, de 465


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acordo com a disponibilidade dos profissionais e famílias que participaram da pesquisa. A análise e a discussão estiveram presentes nos vários estágios da investigação, sendo o material reavaliado durante todo o processo, na busca de relações e inferências com o quadro conceitual (Nogueira Martins, Bógus, 2004; Triviños, 1994). Exploramos o material coletado visando alcançar os vários núcleos de compreensão, agregando estes dados em categorias teóricas que comandaram a especificação dos temas relacionados à visita médica domiciliar e o encontro do profissional médico com seu paciente neste contexto, objeto do nosso estudo, tendo os aspectos políticos, organizacionais e operacionais como o cenário da prática médica. Essas categorias foram: negociação na visita médica, contribuições da visita médica domiciliar para a prática no consultório; o contexto domiciliar como espaço para interação: a relação com o paciente/família, com a equipe e com os cuidadores; o médico de família e a coordenação do cuidado em saúde. As entrevistas foram transcritas e lidas diversas vezes, até a impregnação, assim como o caderno de campo. Inicialmente, foram buscadas as categorias utilizadas em cada entrevista, depois, a análise foi realizada por bloco - profissionais, usuários e campo - e, por fim, a triangulação, relacionando o material levantado nas entrevistas, na observação e nas fontes documentais.

Resultados: a visita domiciliar como instrumento potencializador da interação e comunicação

Os profissionais médicos afirmam que, na VD, têm a oportunidade de estabelecerem “outro tipo” de atenção e cuidado com o paciente e família. Por estarem no âmbito da Atenção Primária, eles podem e devem ampliar a perspectiva curativa ao implementarem medidas de cunho preventivo, refletindo e incorporando os conhecimentos adquiridos no contato, em domicílio, com os pacientes e famílias que acompanham. Percebemos isso na fala da Dr.ª Ester (bairro Beija-Flor): “A visita é importante porque você sai daquele papel do centro de saúde que é artificial e está indo ali prá ver aquele paciente na sua casa, com a sua cultura, hábitos, que pode ser bom em relação àquela doença ou não. É outra qualidade de atendimento. Como é que está o ambiente? Se há uma ventilação adequada, se há fungos... O idoso prá ver se tem riscos, se tem degrau. Completamente diferente estar na casa do que no consultório”.

Conhecer a família e cuidar dela, de forma integral, atendendo as crianças, os adultos, os idosos, as gestantes, e tendo a oportunidade de interagir com as pessoas no seu domicílio fortalece o vínculo e pode favorecer a comunicação, o que foi referido tanto pelos pacientes e familiares entrevistados, quanto pelos profissionais. Entretanto, mesmo incorporando uma prática “mais humanizada” e responsável, em geral, o profissional permanece centrado no âmbito de uma prática normativa. Essa conversa não significa, necessariamente, comunicação, pois pode-se cair na armadilha de reduzir essa forma de relação entre o trabalho e interação ao caráter pessoal, exclusivamente, não trazendo reflexos para uma maior autonomia do paciente e família em relação ao cuidado de saúde (Peduzzi, 1998). Essa abordagem familiar que extrapola o âmbito do diagnóstico e terapêutica de patologias é expressa nesta fala da Dr.ª Clara como favorecendo o conhecimento da comunidade e ampliando a satisfação no trabalho: “Aqui é uma comunidade que eu já estou há mais de sete anos trabalhando, conheço todas as pessoas, então, é muito mais prazeroso agora, porque eu conheço bem aquela família que eu estou indo visitar. Conheço bem até por ir visitar, vejo mãe, filho, todo mundo”.

Na Atenção Primária, com a ESF, a comunicação com os profissionais da equipe torna-se uma necessidade para o desenvolvimento do trabalho em saúde, porque os problemas “de saúde” são abrangentes, envolvem, em geral, questões psicológicas e sociais, exigindo um esforço e a mobilização de saberes e técnicas de várias categorias profissionais. Embora o trabalho em saúde continue

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centralizando-se na figura do médico, fica evidente, a partir da necessidade da prática diária, o questionamento desse modelo (Franco, 2003; Peduzzi, 1998). “Ela [a visita domiciliar] favorece o trabalho em equipe com a enfermagem. Pode-se discutir sobre aquela família, planejar coisas. Eu faço visita com a enfermeira da minha área. Quando têm muitas visitas, eu faço algumas e ela faz outras. Ela [a visita] abre toda essa visão mais global da saúde. Não envolve só a ausência de doença. Envolve a questão social, a gente acaba se envolvendo em outros aspectos para o tratamento do paciente. Muitas vezes no consultório a gente acha que não deve agir neste aspecto, mas vendo onde a pessoa mora e como funciona toda a dinâmica...”. (Dr.ª Antônia/bairro Sabiá)

A fala da Dr.ª Antônia é significativa ao abordar os problemas de saúde enfrentados pelos pacientes que são percebidos no contexto da Atenção Primária. São problemas que envolvem não apenas o enfrentamento da doença em si, mas também as situações relacionadas que envolvem o contexto social e cultural em que vive a família. Essas questões representam um desafio para toda a equipe de saúde e para o profissional médico, em particular, porque ele se vê imerso num contexto em que a medicina tecnológica, em geral, tem pouco para ofertar-lhe. Ele necessita do aporte de novos conhecimentos e do auxílio de outros profissionais. E, além disso, o profissional médico precisa lidar com os seus próprios limites, admitindo que as alternativas e encaminhamentos para os problemas passam, necessariamente, pela participação do usuário e sua família. Algumas vezes, como observamos e nos foi relatado, problemas sociais relacionados com a pobreza e a violência, como o tráfico de drogas, eram vistos como motivo do problema de saúde do paciente, como a hipertensão arterial e a depressão, e mobilizavam a equipe de saúde. No entanto, os encaminhamentos realizados restringiam-se ao escopo das ações voltadas às patologias do paciente, não conseguindo, a equipe, elaborar planos de enfrentamento mais abrangentes e intersetoriais, de forma conjunta com o paciente e família. Exemplo disso foi a situação de uma senhora cujos filhos se envolveram com o tráfico de drogas, no bairro Sabiá. A equipe procurou apoiar e estimular a paciente para o enfrentamento dos problemas, visitando-a, levando-a também à psicóloga, agendando horário de consulta, no centro de saúde, compatível com a folga de uma das filhas, para que ela pudesse acompanhar a mãe. No entanto, o apoio ao filho acabou sendo oferecido pela igreja evangélica, que a família passou a frequentar. Ao deslocar o médico do consultório, no centro de saúde, e integrá-lo à equipe, tendo como ponto de partida os problemas das pessoas atendidas na sua área de abrangência, a interação propicia que a comunicação aconteça na prática diária. Dr. Cláudio (bairro Bem-Te-Vi) narra sua percepção de como “a conversa” muda quando visita a casa do paciente. “Identificar que o paciente não é só aquela pessoa que está no consultório, mas dentro do trabalho, dentro da casa, influencia mais do que uma conversa de poucos minutos dentro daquela sala que é o consultório. Muitas vezes, no consultório, por falta de tempo ou por excesso de demanda, o foco da conversa é em cima da patologia, em cima do exame, em cima da prescrição. [...] Eu fico mais à vontade com as famílias que eu faço VD. Cria mais amizade e essa amizade facilita a terapêutica. A credibilidade até mesmo pra abrir as nossas fraquezas, as nossas carências, falar assim: Olha, eu não vou conseguir ajudar o senhor, prá esse problema. Essa abertura fica muito mais sincera com o paciente que tu tens esse contato pela VD. Algumas vezes acontece no consultório, mas a VD favorece muito mais que aconteça isso”. (Grifo nosso).

A interação é percebida, pelo Dr. Cláudio, como amizade. Essa interação, gerando a possibilidade de autenticidade – pressuposto para a comunicação – fica mais evidente no domicílio. Isso porque, por um lado, pela relação mais intimista que a VD favorece, e, por outro lado, pelo contraste com o “clima” mais técnico presente no consultório, onde o profissional médico representa a autoridade e

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onde a impessoalidade, atributo de uma medicina tecnológica, é dominante. Este é o sentido do que menciona a Dr.ª Lígia, quando os pacientes a tratam “como se fosse da família”. Os médicos falam da interação e da afetividade que existe na relação com os pacientes e familiares que acompanham como algo inusitado e surpreendente, o que chama a atenção, já que deveria fazer parte da prática diária do médico, considerando especialmente o contexto da Atenção Primária. Ao refletirmos sobre o contexto de despersonalização presente na medicina tecnológica, a fala dos profissionais expressa uma justificação para esse tipo de relação-médico paciente que se torna “mais pessoal” e pode, inclusive, ser percebida como “menos profissional”. Esse fato é revelador na fala do Dr. Cláudio, quando associa a sinceridade necessária na relação com o paciente – sendo claro quanto aos próprios limites – a um sinal de fraqueza. O contexto do domicílio pressupõe condições e situações que expõem o médico, que perde um pouco da “majestade” que tem no consultório, ficando, poderíamos assim dizer, mais humano, porque menos onipotente. Da perspectiva dos pacientes, há uma “humanização” do profissional, que passa a ser visto também como “pessoa”, além de médico. “Eu me sinto muito bem, eu fico feliz quando ela [Dr.ª Lígia] vem. Ela é uma pessoa muito especial. Eu gosto muito da visita dela e da visita de vocês [olha para mim e para as agentes]. Eu gosto da visita dela não é porque ela é médica, mas porque é uma pessoa muito dedicada. Ela cuida bem da gente, ela é uma pessoa legal, é médica e é uma pessoa muito legal”. (Terezinha/bairro Canário, grifo nosso)

Na observação de campo, percebemos que Dr.ª Lígia, ao reforçar a importância dos protocolos frente às condutas terapêuticas instituídas, procurava justificar sua forma de atuar, como se pudesse estar incorrendo em erro ao compartilhar de percepções e opiniões dos pacientes e familiares e relativizar as normas estabelecidas pela técnica no sentido de melhor cuidar de seus pacientes. No entanto, por estar na casa do usuário, o profissional médico tem maior possibilidade de compreender os problemas e “negociar” determinada conduta. Ao conhecer a realidade de vida daquele usuário e família, suas dificuldades e conhecimentos, é possível compartilhar com ele e com a família o cuidado a ser realizado. “Lembro de algumas visitas que eles reclamavam porque eu não levava receituário. Muitas vezes eu sabia que tinha familiares e cuidadores que podiam pegar a receita aqui na unidade de saúde. Então eu fazia a VD sem receituário, justamente pra sentar, conversar e fazer essa discussão. Essa discussão sobre a conduta, da medicação ou sobre o estilo de vida, o que seja, foi uma coisa que eu trouxe pro consultório em função da VD. Na faculdade a gente aprendia tanta coisa pra orientar e o paciente não fazia. Ou porque não tinha possibilidade, ou porque era impossibilitado por alguma coisa dentro de casa. Ao fazer a VD, acho que talvez tenha trazido mais essa discussão. Se o paciente pode ou não pode fazer algumas coisas”. (Dr. Cláudio/Bem-Te-Vi)

Aqui a VD, ao “aproximar” o médico do contexto de vida do paciente e da família, possibilita uma articulação entre as ações que são estratégicas e que buscam o êxito técnico, com negociações advindas de uma interação mais voltada à comunicação e que se relacionariam ao sucesso prático. “Lembro de um caso de um senhor que me agradeceu o máximo, no dia em que eu falei pra ele que podia comer uma picanha uma vez por mês. Fazia três anos que ele não comia carne com gordura nenhuma. O sonho dele era voltar a comer picanha. Ele tinha 89 anos, gaúcho... Chorou e me abraçou quando eu disse que podia comer picanha. Essa combinação eu fiz numa VD”. (Dr. Cláudio/Bem-Te-Vi)

Para o Dr. Cláudio, ele conseguiu “negociar” com o paciente uma maneira menos penosa de lidar com a dieta (e, de fato, pode ter conseguido). No entanto, esta é uma atitude de “engano inconsciente”, pois a opção de comer ou não picanha, ou quantas vezes, poderia ter sido decidida pelo paciente, 468

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considerando, este, os problemas relacionados e as consequências de uma dieta plena de gordura saturada, o que não foi devidamente esclarecido pelo médico, mesmo que tivesse “boa intenção”. Outras situações observadas sugerem que os médicos, embora mencionem que procuram seguir os critérios e protocolos técnicos de tratamento, contemporizam as condutas quando no domicílio, confrontados com as opiniões dos pacientes. Um exemplo disso foi observado quando da visita de Dr.ª Clara a uma paciente hipertensa, que relutava em tomar a medicação “por não sentir nada”. A paciente relatou seu desejo de retornar para o seu estado de origem, mas estaria impedida no momento em função dos cuidados de saúde, precisando morar com a filha em Florianópolis. Dr.ª Clara, no entanto, não abordou o assunto, focalizou o problema da pressão arterial. Ao perceber a resistência da paciente em usar medicação, orientou sobre caminhadas até o centro de saúde, situado nas proximidades da residência da família, quando a paciente poderia tomar sol, verificando sua pressão. Reforçou orientações sobre a dieta, conversando também com a filha da paciente que estava presente na visita. A prescrição da medicação não foi feita. A médica declarou, posteriormente, acreditar que a paciente possa ser “convencida” a iniciar a medicação e preferiu, naquele momento, enfatizar as medidas viáveis para a paciente realizar. Podemos perceber aqui o dilema da profissional. Embora “percebendo” que o problema mais importante para a paciente estava relacionado com sua permanência na cidade e seu desejo em regressar para sua cidade de origem, a médica agiu com “engano consciente”. Procurou centralizar sua ação no diagnóstico da hipertensão arterial e no melhor “convencimento” da paciente, o que não significa que não fosse tecnicamente necessário, mas que ficava aquém do desejo da usuária. Dr.ª Lígia, por sua vez, tem acompanhado uma senhora hipertensa que faz uso de medicação e que vem apresentando um aumento da glicemia. Ela e a filha relataram que a médica solicitou que procurasse se cuidar, fazendo dieta e exercícios para evitar tomar outra medicação. A paciente relatou, ainda, que sua pressão sobe, sobretudo, quando fica nervosa, inclusive quando vai ao centro de saúde. No domicílio, sua pressão arterial se normaliza com a medicação. Por isso, a médica mantém o mesmo esquema terapêutico. Neste caso, não nos pareceu que a paciente e sua filha estivessem a par do que acontecia. Pelo que foi descrito pela paciente, a mesma apresentava a típica “síndrome do jaleco branco”, quando o paciente tem sua pressão arterial elevada ao se deparar com um profissional de saúde, em função da ansiedade. Embora a médica tenha percebido a situação, ela não esclareceu o fato para a paciente e sua filha, segundo nossa observação. A interação entre o profissional médico e o paciente e sua família, na VD, propicia que um maior entendimento mútuo leve a ações de saúde que busquem aliar êxito técnico e sucesso prático. No entanto, esta interação varia, pois os profissionais médicos têm posicionamentos diversificados entre si. As reflexões aqui expostas indicam que a VD realizada pelo médico pode representar um dispositivo que inicia um questionamento dos pressupostos da medicina tecnológica. Isto pode acontecer quando a finalidade última das ações de saúde não fique restrita ao êxito técnico, mas que articule a elas, mediante possibilidades abertas pela comunicação, os projetos dos usuários e pacientes, as ações de promoção e prevenção e os problemas da comunidade. (Ayres, 2008). A VD possibilita este espaço interativo em que a comunicação e a negociação em relação ao diagnóstico e o cuidado realizado podem ocorrer.

Considerações finais Esses encontros entre o profissional médico e o paciente permitem que retomemos algumas considerações já realizadas, seguindo as formulações de Schraiber (2008). Na Atenção Primária, a ESF possibilitou que o médico de família, ao encontrar o paciente no contexto da comunidade onde vive, e também local de trabalho da equipe de saúde, fortalecesse o vínculo, gerando uma relação de maior confiança. Esse fato propicia o desenvolvimento de uma relação não apenas baseada no caráter técnico da prática, mas também inclui relações mais comunicativas. A proximidade, a possibilidade de conversar sem ter pressa de atender outro paciente que aguarda a consulta, de encontrar familiares, observar, sentir e presenciar um pouco da vida daquela família COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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faz diferença para o médico e para o paciente. Essa proximidade, o reconhecimento das dificuldades pelas quais passam os pacientes e familiares permitiriam, ao profissional, buscar alternativas para o acompanhamento clínico que leve em consideração os desejos dos usuários, concorrendo, assim, para o sucesso prático. A visita médica é uma atividade em que o profissional médico tem a oportunidade de sair do seu casulo, o consultório. De posse dos protocolos e diretrizes clínicas, que são genéricos e estabelecidos para coletivos, o profissional vai deparar-se com o conhecimento, a cultura e os meios disponíveis por paciente e sua família, na sua casa. Essa situação, como vimos, tem um “potencial de realidade” que suscita que o profissional procure desenvolver o trabalho em equipe, articulado às outras especialidades, e intersetorial, uma vez que, para lidar com os problemas de saúde de forma abrangente, é necessário o aporte de conhecimentos e cuidados dos outros profissionais. Assim, embora tenha objetivos práticos com metas terapêuticas que “deve” perseguir para que os pacientes apresentem melhora clínica, o plano terapêutico desenvolvido “com os pacientes” no domicílio, especificamente falando, vai modificando-se conforme o tempo e é diferente do plano “para os pacientes”. O diagnóstico, a adesão e o tipo de tratamento levam em conta aquilo que o paciente e a família necessitam e podem fazer, levando em consideração as dificuldades que encontram no dia a dia, no lidar com o problema de saúde. Como mencionou um dos profissionais entrevistados, a VD permite que o médico possa também expressar os seus limites, admitindo que não tem todas as respostas, e, por vezes, precisa estudar mais, discutir com a equipe ou encaminhar para um especialista.. Entretanto, precisamos deixar claro as limitações decorrentes da metodologia utilizada, já que estudou-se a ESF em uma localidade bastante particular, com alto grau de fixação e formação dos profissionais na especialidade, e uma condição social bem melhor que o conjunto do país. De toda a forma, pelo desenho do estudo, estes dados não são, de forma alguma, generalizáveis para outras localidades, e servem como instigador da discussão das potencialidades e limites da estratégia. A Atenção Primária e os profissionais nela inseridos precisam buscar, além da eficácia técnica, a compreensão das necessidades surgidas na dinâmica da vida das pessoas e famílias que atendem. Essas necessidades vão além do estabelecido pela biomedicina, fazem parte da vida e, sobretudo, do adoecimento das pessoas. Assim, ao fazer a VD, o profissional médico tem a oportunidade de percebê-las de forma diferenciada. Elas trazem questões éticas que desafiam às equipes de saúde, ensejando respostas a serem buscadas de forma compartilhada e com caráter intersetorial. Ao buscar a comunicação num processo interativo que se baseie no entendimento mútuo, o profissional médico tem, diante de si, o desafio de deixar de aplicar o rigor dos manuais técnicos para compartilhar um cuidado no qual o paciente e a família colocam os seus limites e os seus projetos.

Colaboradores Renata Borges elaborou o problema da pesquisa, realizou o trabalho de campo e redigiu o artigo. Ana Flávia Pires Lucas D`Oliveira foi responsável pela revisão da versão final do manuscrito. Referências ANDRADE, L.O.M. et al. Estratégia Saúde da Família. In: DUNCAN, B.B. et al. (Orgs.). Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. São Paulo: Artmed, 2006. p.88-100. ALBUQUERQUE, A.B.B.; BOSI, M.L.M. Visita domiciliar no âmbito da Estratégia Saúde da Família: percepções de usuários, município de Fortaleza, Ceará, Brasil. Cad. Saude Publica, v.25, n.5, p.1103-12, 2009. Disponível em: <http://www.scielosp.org/pdf/csp/ v25n5/17.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2010.

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BORGES, R.; D’OLIVEIRA, A.F.P.L. La visita médica domiciliaria como espacio para interacción y comunicación en Florianópolis, estado de Santa Catarina, Brasil. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.461-72, abr./jun. 2011. Este artículo discute la visita médica domiciliaria sobre la base de una investigación efectuada en la municipalidad de Florianópolis, teniendo como escenario a la Estrategia Salud de la Familia. El objetivo principal fue entender como la visita domiciliaria impacta la práctica médica, enfocando cambios en la calidad de la interacción entre el profesional, el paciente y su familia. Fue adoptada la metodología cualitativa, con triangulación de técnicas, combinando entrevistas, observación participante y lectura de documentos. Se observó que la visita domiciliaria fomenta la interacción por promover una comunicación dirigida al entendimiento mutuo, lo que facilita la composición profesional de conductas que buscan la eficacia técnica (éxito técnico) con el entendimiento y se centran en proyectos de felicidad de los pacientes y familiares (éxito en la práctica).

Palabras clave: Visita médica domiciliaria. Comunicación. Interacción. Estrategia Salud de la Familia. Recebido em 16/05/2010. Aprovado em 28/10/2010.

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artigos

A narrativa como ferramenta para o desenvolvimento da prática clínica* César Augusto Orazem Favoreto1 Kenneth Rochel de Camargo Jr2

FAVORETO, C.A.O.; JR, K.R.C. Narrative as a tool for the development of clinical practice. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.473-83, abr./jun. 2011.

This paper reflects on the possibilities that the conceptual and operational incorporation of narrative can bring to the improvement in knowledge and clinical practice in primary care settings. Its starting point is an analysis of the meaning of this concept, originated in the social sciences, to discuss its application to the sphere of medicine. In this sense, narrative is presented as a strategy for reflecting on and proposing paths towards the integration of the different dimensions, knowledge, contexts, desires, needs and demands that are present in the clinical act.

Este trabalho reflete sobre as possibilidades que a incorporação conceitual e operativa da narrativa pode trazer para a ampliação do saber e da prática clínica no âmbito da atenção primária à saúde. Parte de uma análise do significado deste conceito advindo das ciências sociais para discutir sua aplicação no âmbito da medicina. Neste sentido, a narrativa é apresentada como uma estratégia para se pensar e propor caminhos no sentido da integração das diferentes dimensões, conhecimentos, contextos, desejos, necessidades e demandas presentes no ato clínico.

Keywords: Narrative medicine. Clinical competence. Primary health care. Physician-patient relations.

Palavras-chave: Medicina narrativa. Competência clínica. Atenção primária à saúde. Relações médico-paciente.

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Este artigo tem por base a discussão teóricoconceitual desenvolvida em Favoreto (2007). 1 Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rua São Francisco Xavier, 649, casa 7, Maracanã. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.550-011. cesarfavoreto@globo.com 2 Departamento de Planejamento e Políticas de Saúde, Instituto de Medicina Social, UERJ. *

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A narrativa como ferramenta para o desenvolvimento...

Introdução Este trabalho explora a análise da apropriação da narrativa na medicina como um norte e um elemento capaz de despertar e facilitar a percepção e interpretação dos textos e contextos produzidos pelos sujeitos nos encontros clínicos, e, deste modo, ampliar a dimensão dialógica e hermenêutica da prática clínica. A justificativa desta escolha encontra-se no fato de que a narrativa se estrutura, justamente, a partir de uma perspectiva semântica e hermenêutica que integra, a partir de um processo e de uma perspectiva dialógica, os sujeitos com seus contextos e suas ideologias. Com este objetivo, foi realizada uma busca não sistemática na literatura médica e de ciências sociais em saúde, procurando identificar os aspectos conceituais, significados e perspectivas que podem substantivar a narrativa como um conceito/ideia para a clínica. A partir destas bases conceituais, discutem-se alguns elementos da abordagem da narrativa que estão implicados na escuta e interpretação do adoecimento, nas relações entre médicos e pacientes, e na terapêutica no contexto da atenção primária à saúde (APS). Parte-se do pressuposto de que as dimensões dialógicas e socioculturais se tornam questões centrais do saber e da prática da clínica exercida no contexto da APS. Por outro lado, o desenvolvimento destas dimensões na clínica pode vir a ser influenciado e a influenciar novos contextos e expectativas, resultantes das transformações dos modelos e modalidades assistenciais. Modalidades assistenciais no âmbito da atenção primária à saúde, como o Programa Saúde da Família (PSF) ou a Medicina de Família, possibilitam, em tese, tornar presentes os aspectos sociais, culturais e subjetivos constitutivos do processo saúde-doença (Favoreto, Camargo Jr., 2002), facilitando a construção de um maior diálogo e vínculo entre os médicos e pacientes, e, por conseguinte, ampliando a perspectiva da integralidade na clínica (Brasil, 2004; Campos, 2003). Dirigir a atenção à saúde no sentido da integralidade e do cuidado implica investimento em novas formas de pensar e agir na clínica, ou seja, ampliar seus saberes e práticas, em relação ao reducionismo biomédico (Camargo Jr., 2003b; Campos, 2003). Esta ampliação compreende transformar o sujeito e suas relações em elementos centrais de uma clínica que avance na perspectiva dialógica e cuidadora (Ayres, 2001). Com o objetivo de ampliar o escopo da clínica, este trabalho discute as potencialidades do uso da narrativa como um conceito e uma ferramenta para intensificar e qualificar a dimensão dialógica e hermenêutica deste tipo de prática (Favoreto, 2004; Camargo Jr., 2003a; Favoreto, 2002).

A narrativa como uma característica do ser humano Em um sentido mais corrente e geral, o conceito de narrativa pode ser definido como um conjunto de estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas cultural e historicamente, delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo e pela combinação de técnicas sociocomunicativas e habilidades linguísticas (Brockmeier, Harre, 2003). Em termos conceituais, a narrativa pode ser entendida em sua intrínseca ligação com a existência humana, pois a racionalidade humana, em sua essência, está envolvida em uma estrutura narrativa (Bury, 2001). Como um elemento da realidade humana, a narrativa tem, por característica essencial, ser um guia, destacadamente sensível, à fluida e variável condição humana (Brockmeier, Harre, 2003). Este enfoque apreende a narrativa como um elemento para a compreensão dos textos e dos contextos mais amplos, diferenciados e complexos das experiências das pessoas, e o modo específico como elas constroem e dão significado a essas vivências. Com este entendimento, a narrativa representaria, ao mesmo tempo, modelos do mundo e da identidade pelos quais construímos a nós mesmos como parte de nosso mundo (Brockmeier, Harre, 2003). As palavras e enunciações são consideradas por Mikhail Bakhtin (2004) como elementos centrais das narrativas e responsáveis pela produção de significados pelos sujeitos. O papel da palavra é compreendido como o de um fenômeno ideológico por excelência e capaz de representar a forma mais

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pura e sensível do estabelecimento da relação social. A palavra, assim, é fruto dos próprios meios do organismo individual e do consenso existente entre os indivíduos (Bakhtin, 2004). As palavras e as formas de comunicá-las permitiriam trazer à tona o mundo interior, isto é, expressar os significados produzidos pela consciência individual e construídos no contexto social em que o indivíduo se realiza como pessoa. Deste modo, a palavra e a enunciação por ela expressa têm o papel de materializar a vida semiótica interior (Bakhtin, 2004). Esta capacidade de materializar os signos interiores decorreria das propriedades das palavras, como: pureza ideológica, neutralidade ideológica, implicação na comunicação humana ordinária, possibilidade de interiorização e sua presença obrigatória como fenômeno acompanhante em todo ato consciente. Bakhtin (2004) compreende a consciência individual como um inquilino do edifício social dos signos ideológicos que segue a lógica da comunicação ideológica, isto é, da interação semiótica de um grupo social. Para esse filósofo da linguagem, as manifestações verbais estão ligadas aos demais tipos de manifestações e de interações de natureza semiótica, como: a mímica, a linguagem gestual, os gestos condicionados, entre outras formas – isto é, as outras formas de comunicação não verbal. O material semiótico do psiquismo (atividade mental) compreenderia todo gesto ou processo do organismo (a respiração, a circulação do sangue, os movimentos do corpo, a articulação, a mímica, a reação aos estímulos exteriores), pois tudo pode adquirir um valor semiótico; assim, tudo pode se tornar material para a expressão da atividade psíquica, tudo pode se tornar expressivo. Cada palavra se revela no momento de sua expressão como um produto da interação viva das forças sociais, e é assim que a enunciação, por mais insignificante que seja, constitui um produto que se renova sem cessar na síntese dialética viva entre o psiquismo e o ideológico, impregnando-se mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais (Bakhtin, 2004). Quando Mikhail Bakhtin (2004) afirma que todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior, ele pretende demonstrar como as interações socioculturais constroem as enunciações e por elas são construídas em um processo ininterrupto e dialético de interação verbal e social dos locutores. Ao se compreenderem as enunciações como uma forma de materialização da consciência, infere-se que a narrativa, vista como uma forma de organizar e expor estas enunciações, ao ser constituída, passa a ter materialidade para a pessoa que a produziu. Desta forma, a narrativa apresentaria uma forte capacidade de influenciar o próprio ser que a elaborou, ao interagir, dialeticamente, com sua atividade mental. Entende-se, neste caso, que a narrativa teria o papel de estruturar e reestruturar a consciência que a pessoa tomou em relação à situação de vida ou às questões nela envolvidas, como a experiência do adoecimento passado ou presente. Em decorrência deste papel estruturante das percepções dos narradores, a narrativa seria capaz de definir posturas e perspectivas para o que a pessoa viverá e, portanto, assume uma força social e subjetiva que dá à narrativa uma expressão ainda mais definida e mais estável. Este papel da narratividade — de integrar o contexto de vida das pessoas e a construção de suas realidades e identidades — é compreendido, por Hydén (1997), como fruto de uma síntese de discursos políticos e morais, criados pelas pessoas para entenderem e julgarem as circunstâncias e situações em que vivem. A importância da narrativa para o indivíduo estaria, assim, nas possibilidades que ela cria de percebermos, vivenciarmos e julgarmos nossas ações e o curso de nossas vidas. Nesta perspectiva, como aponta Geertz (1983), a narrativa não seria uma forma neutra, dissociada da estória ou da linguagem, e não se limita a ser apenas uma forma de representação secundária em relação ao fato ou situação que ela representa. Uma vez constituída, ela passa a ser parte da realidade e promotora de novos contextos individuais e sociais. Consequentemente, a importância da narrativa no mundo social advém não apenas do “que” as pessoas falam, mas também do “como” elas falam, na medida em que é por meio da narratividade que vamos conhecer, entender, mas, sobretudo, dar sentido ao próprio mundo social em que vivemos (Hydén, 1997). Ao analisar o papel da narrativa na sociedade ocidental, no contexto de uma cultura pós-moderna, Abma (2002) considera que não estaria ocorrendo uma perda de poder das grandes narrativas (como a da ciência ou a da medicina) nas respostas às experiências cotidianas e ao adoecimento das pessoas.

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A narrativa como ferramenta para o desenvolvimento...

Para esta autora, haveria, contudo, uma atenção maior para a perspectiva de que a realidade é produto de um processo ativo de construção de significados realizados por meio das interações sociais. Por conseguinte, o interesse na observação e análise da narrativa pessoal do adoecimento não recairia tanto sobre o produto (a ciência ou seus produtos, como a doença), mas, também, sobre o processo de sua construção. Esta atenção maior para com as narrativas pessoais não exclui a tensão entre as grandes narrativas e as narrativas particulares ou entre os atores sociais que as representam. O poder dessas grandes narrativas agiria sobre as estórias construídas pelas pessoas — não apenas pelo uso de uma linguagem apropriada, como também pela incorporação de narrativas preexistentes (como a narrativa da medicina) — para dar sentido às percepções e aos significados que se deseja expressar. Essas estórias pré-formadas são transmitidas culturalmente e incorporadas pelas pessoas, podendo ser usadas por elas para dar sentido e expressar suas identidades, suas vidas e as práticas que adotam. De outra forma, as narrativas pessoais, estruturadas por enunciados da ciência ou da medicina, podem correr o risco de estarem esvaziadas em sua composição das experiências individuais e das narrativas do cotidiano (Abma, 2002; Hodgkin, 1996). Apesar da forte influência de discursos estruturados e estruturantes (como o da medicina e da ciência) na formação das narrativas pessoais do adoecimento, elas, na perspectiva de quem adoece, podem representar uma forma poderosa de expressar o sofrimento e as experiências relacionadas a ele. Emerge, desta valorização das narrativas pessoais do adoecimento, o questionamento de como esta noção da narrativa surge e pode se desenvolver na clínica, ou como ela pode vir a ser aplicada como uma ferramenta para ampliar sua prática para além dos limites epistemológicos impostos pela racionalidade biomédica.

As estruturas constituintes da narrativa do adoecimento na clínica Ao se falar em narrativa na clínica, dirige-se o foco para o narrador e sua ação como sujeito na construção de suas estórias em relação ao processo de adoecimento, a suas demandas e às formas que busca para compreendê-las e respondê-las. Ele, o narrador, ao ordenar e organizar sua estória, faz escolhas sobre a forma de expô-la. Estas escolhas estão envoltas e orientadas pelo contexto de onde a pessoa fala e pelos objetivos que os indivíduos têm ao contarem suas estórias para um determinado auditório. A escuta, a análise e a compreensão das narrativas não estão presas apenas ao que é contado, mas, também, a como se sentiu quem narra e como os outros se sentiram em relação a ele (Greenhalgh, Hurwitz, 2002). Ganha relevância a forma da narrativa, pois sua apresentação e organização também compreendem aspectos da autoimagem que o narrador espera transmitir aos outros e convencê-los (Hydén, 1997). Para o ouvinte capturar e perceber os elementos surgidos a partir da vivência do adoecimento, é preciso considerar os aspectos da fala, os enredos e as atitudes das pessoas que podem melhor dizer sobre as experiências que elas estão vivenciando. Passam a ser valorizados e analisados elementos que compõem a forma e o sentido da narrativa e, consequentemente, a interpretação do significado do adoecer, como: a noção de tempo, a perspectiva intersubjetiva, a influência do contexto sociocultural e a relação entre gêneros narrativos e significados particulares nas falas dos pacientes.

O tempo na narrativa Referir-se à narrativa como uma construção e constituição da realidade a partir da experiência no mundo e aplicá-la ao campo das práticas e saberes da clínica implica observar e valorizar de modo diferente a dimensão temporal das estórias, ou seja, considerá-la como uma dimensão transcendente ao mero ordenamento ou sequenciamento cronológico de fatos como os sinais e sintomas. Nesta perspectiva, Hyden (1997) compreende que o tempo na narrativa tem um papel na articulação e transformação dos sintomas e das rupturas produzidas pelo adoecimento em uma totalidade temporal e espacial, isto é, em um todo compreensível, criando o mundo do adoecimento (Hurwitz, 2000).

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Para Hunter (1989), a narrativa traz a ousadia de incorporar a subjetividade e o envolvimento da noção temporal de um modo particular. Como ela ordena os eventos – subjetiva e cronologicamente –, a narrativa sustenta algumas relações causais entre os eventos, explora o caminho onde causa e efeito estão enredados e confusos com as variáveis do caráter humano e da motivação aos atores. Por ressaltar a temporalidade na narrativa, Castiel (1999) prefere a ideia de que as pessoas (e os pacientes em particular) narram uma “hestória”, e não uma história, pois esta última estaria limitada (sobretudo na clínica) a relatar uma cronologia objetivante dos fatos. A história clínica tradicional limita-se ao tempo presente, não explora as relações com o futuro ou com as interpretações do passado, procura restringir o foco da escuta aos aspectos factuais surgidos a partir da doença e seus sintomas presentes na história. Para Greenhalgh e Hurwitz (2002), a narrativa como uma unidade operativa na clínica pode ser mais profunda que a história, porque ela vai além da evidência objetiva da doença ao incorporar a experiência sobre os fatos (Verguese, 2001).

Intersubjetividade e narrativa Mais do que ver a narrativa como uma unidade de discurso ou como uma performance virtuosa de um orador, Loewe et al. (1998) compreendem que a narrativa é mutuamente construída pelos participantes do encontro de acordo com as regras estabelecidas entre eles. Esses autores se fixam em um conceito amplo de narrativa como uma conversa interativa ou uma interação pessoal. Este enfoque dialógico da narrativa ressalta seu caráter dinâmico e as interações que produz no narrador e no ouvinte. É através da construção do diálogo que a narrativa do paciente interage e cria novas formas e significados ao que é narrado e compreendido, gerando, a partir desta interação dos sujeitos no ato da clínica, novos fatos e novas formas de contá-los. Em relação à produção de significados e de criação de novas realidades discursivas a partir da interação de sujeitos, Foucault (1987) compreende a existência de uma interação de formas de subjetivação, e não, simplesmente, de sujeitos. O autor identifica que o encontro de diferentes formas de subjetivação seria responsável por produzir novos objetos e novos sujeitos através dos discursos e de suas práticas discursivas. No diálogo entre o paciente e o médico, está presente uma interação social entre estes sujeitos que estão buscando criar um enredo; sendo assim, as narrativas estão em constante mudança e sendo continuamente negociadas, dependendo das mudanças de perspectivas e de modificações que ocorrem no processo de adoecimento. Ambos (médicos e pacientes) precisam procurar um modo de entender, explicar e articular a doença a um sentido mais amplo. Nesse caso, a narrativa assume o caráter de uma contínua negociação visando à construção de um novo e diferente desfecho (Hyden, 1997). O resultado do encontro clínico seria, portanto, o produto da narrativa de médicos e de pacientes e da interação desses sujeitos. Esta influência mútua produz novas realidades por meio de uma construção compartilhada. Este enfoque dialógico do ato clínico se aproxima da intenção proposta por Ayres (2001), de elevar a condição do sujeito não a uma individualidade objetivada produtora de ações, mas considerá-lo como um ser em processo contínuo de construção de sua identidade a partir das relações que desenvolve com o outro. Mas este sujeito, seu processo de adoecimento e sua narrativa, assim como seus interlocutores, não estão nas nuvens, isolados do mundo em que vivem. A singularidade ou individualidade do significado da narrativa do adoecimento está inserida e é constituída em relação a um contexto social e cultural que ambos, pacientes e médicos (alternando papéis de narradores e ouvintes), compartilham com os objetivos que ambos trazem e os dirigem no encontro clínico.

Narrativa em seu meio sociocultural A pessoalidade da narrativa é mediada e está envolvida por um contexto, isto é, os símbolos que interagem a partir do meio sociocultural — e se exteriorizam na narrativa — não são apenas meras expressões, instrumentos ou coisas correlatas de uma existência biológica, psicológica e social; eles são os pré-requisitos da narrativa pessoal (Donald, 2002; Hunter, 1996a; Geertz, 1983). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Em outras palavras, não é apenas a narrativa que faz a mediação, expressa e define a cultura, mas também a cultura define a narrativa. Isso torna ainda mais difícil definir a narrativa como tal, isolada dos contextos de discurso nos quais ela é inserida por diversas convenções culturais (Brockmeier, Harré, 2003). Para Bakhtin (2004), cada estória e cada palavra são polifônicas, e seus significados são determinados por incontáveis contextos em que elas foram previamente utilizadas. O discurso está, portanto, envolto em uma dialogia onde cada palavra, enunciado ou narrativa carregariam consigo os traços de todos os sujeitos, possíveis e reais, que já empregaram tal palavra, enunciado ou narrativa. É pertinente considerar que é a partir dos contextos onde as pessoas estão inseridas que são constituídas suas representações sobre a saúde e a doença. Para Herzlich (2005), entretanto, a dinâmica entre as representações sociais e as condutas individuais não pode ser entendida como um processo de determinação ou causalidade entre essas dimensões. Ao negar esta percepção mecanicista, a autora propõe que a representação social não seja vista como um simples reflexo do real, mas como uma construção que ultrapassa cada um individualmente e chega ao indivíduo, em parte, de fora dele (Herzlich, 2005). Assim, o papel das representações sociais no processo de adoecer seria o de poder evidenciar os códigos a partir dos quais se elaboram significações ligadas às condutas individuais; as representações ajudariam a compreender como se formam e se constituem os focos das condutas múltiplas e complexas adotadas pelos indivíduos (Herzlich, 2005). Spink (1999) considera que, apesar de qualquer fenômeno social poder ser visto à luz de suas regularidades, se procurarmos entender os sentidos que algo (como uma doença) assume no cotidiano das pessoas, precisaremos focalizar para além da linguagem social, isto é, identificar a linguagem em uso, ou seja, observar a não-regularidade e a polissemia (diversidade de significados) das práticas discursivas. Na discussão sobre as representações de caráter coletivo e os significados assumidos pelos indivíduos, Brockmeier e Harré (2003) reconhecem, na narrativa, um repertório especial de instruções e normas sobre o que deve e o que não deve ser feito na vida e que, no plano individual, a narrativa deve ser integrada a um padrão generalizado e culturalmente estabelecido. O padrão cultural pode ser percebido, nos enunciados apresentados pelos falantes, por meio da linguagem por eles usada e na bagagem de enunciações construídas social e temporalmente, assim como por intermédio dos posicionamentos assumidos em relação ao próprio enunciado. Desenvolver a compreensão da narrativa pessoal no nível da produção de sentidos implicaria, além de contextualizála culturalmente, observar a linha da história que lhe dá significado (Spink, 1999). As narrativas, contudo, ao se formarem, não deixam claro o caminho percorrido; reconhecemse apenas as imagens que foram criadas e elas passam a ser consideradas como uma imagem real. Uma vez produzidas, as narrativas ganham materialidade, permitem a criação de novas realidades, novas estórias para viver e novas categorias normativas, mesmo quando não é perceptível o caminho percorrido na formulação destes atos criativos (Donald, 2002). Cabe a quem as escuta, analisa e com elas interage dialogicamente, articular narrativas gerais e particulares, a partir de sentidos localizados em vozes singulares (Brockmeier, Harré, 2003). O caminho e o contexto da criação das narrativas não podem, portanto, ser considerados unicamente como uma invenção pessoal ou individual, nem tampouco representam uma simples descrição objetiva das coisas tal como ocorreram ou refletem uma tradução literal dos aspectos sociais e culturais em que os sujeitos e suas narrativas estão envolvidos. Esta relação entre o contexto das narrativas e suas expressões (seus textos particulares) se torna relevante quando se pensa a escuta médica das narrativas individuais. Ao procurar compreender e interpretar as narrativas dos pacientes sobre o adoecimento, o médico se defronta com um caleidoscópio, em que várias imagens se formam e se desfazem a partir das relações estabelecidas entre elementos como: as representações sociais do adoecer, os cenários de atenção, as situações nas quais as pessoas buscam o cuidado, as relações estabelecidas entre discursos técnico-políticos organizados (como o da ciência, da medicina, da cultura de medicalização da vida social, das tecnologias médicas, das propagandas etc.) e as falas individuais expressas pelos pacientes nos encontros clínicos. 478

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FAVORETO, C.A.O.; JR, K.R.C.

artigos

Observar as imagens produzidas pelas narrativas pessoais e interpretá-las é, e continuará sendo, um desafio conceitual e prático para se exercer uma clínica que busca se aproximar, interpretar e intervir nas situações de sofrimento.

A narrativa rompendo as limitações da racionalidade biomédica na clínica Ao propor uma maior penetração das ciências sociais na prática clínica, Kleinman e Eisenberg (1980) justificam que as variáveis psicossociais influenciam não apenas o social e os significados pessoais do adoecimento, mas, também, o risco de adoecer, a natureza da resposta terapêutica e seu prognóstico. Para esses autores, a questão não seria a diminuição do papel das ciências biomédicas, mas a suplementação da medicina com a aplicação dos saberes das ciências sociais com o objetivo de permitir maior compreensão do adoecimento e maior capacidade de cuidar. A atenção exclusiva ao fisiológico no campo da clínica biomédica tradicional teria levado a um empobrecimento da função cuidadora da medicina (Camargo Jr., 2003b). Esta seria uma consequência que justificaria uma reconceitualização fundamental das relações entre o ordenamento das palavras das coisas médicas como base para a reformulação da teoria biomédica e da racionalidade clínica (Good, Good, 1980). Os impasses epistemológicos e práticos decorrentes de um emprego estreito do modelo biomédico na prática clínica justificariam a introdução de reflexões oriundas da antropologia e da sociologia na racionalidade clínica (Good, Good, 1980). A incorporação destes saberes não-biomédicos, como através da valorização da narrativa, abriria novas perspectivas para a clínica, na medida em que transcenderia os limites impostos pela racionalidade clínica biomédica que interpreta sintomas apenas como manifestações de uma realidade biológica (Camargo Jr., 2003a). Em relação ao desenvolvimento da narrativa como uma ferramenta conceitual para a medicina, Hunter (1996a, 1996b) ressalta sua importância em incorporar e ordenar os eventos, subjetiva e cronologicamente, na medida em que produz um enredo que integra a causa e o efeito do adoecimento com as variáveis do caráter humano e da motivação pessoal. Já Kleinman (1988) valoriza a narrativa como uma ferramenta de análise para a clínica, considerando sua capacidade de facilitar a identificação de como os pacientes dão forma e voz a seus sofrimentos de modo diferente de como a biomedicina os representa. A partir da metade da década de 1990, surgiram publicações que abordaram a narrativa na medicina tendo como objetivo fazer um contraponto em relação à avalanche provocada pela Medicina Baseada na Evidência (MBE) no direcionamento da prática clínica. Esses trabalhos se organizaram sob a sigla da Medicina Baseada na Narrativa (MBN) e tiveram, como fundamentação teórica e conceitual, os enfoques sobre a narrativa produzidos pela literatura de ciências sociais. A MBN surge, assim, no bojo da discussão sobre formas de melhorar o cuidado e ampliar as concepções ideológicas dos médicos generalistas, propondo o rompimento com a estreiteza conceitual e metodológica presente na prática da medicina científica, e em sua imagem mais contemporânea, a MBE (Bury, 2001). Greenhalgh (2002) justifica a MBN e o enfoque que ela traz, argumentando que a genuína prática clínica baseada na evidência pressupõe – e é precedida por – um paradigma interpretativo cujas bases são a experiência do paciente sobre o adoecimento e o encontro clínico. Essa pesquisadora enfatiza que não pretende negar a epidemiologia clínica, mas vislumbra a possibilidade de complementar o escopo da MBE com maior competência clínica, capaz de perceber a narrativa e as dimensões subjetivas e socioculturais do adoecimento. Apesar da percepção de que a narrativa possa contribuir para a prática clínica – ao criar condições que facilitariam ao médico compreender o significado e fazer um julgamento mais ampliado das circunstâncias e situações de adoecimento das pessoas (Hyden, 1997) – ainda não está claro, nas discussões sobre o tema, o modo como operar esta integração entre a narrativa do adoecimento, a clínica, a tecnociência e os contextos e modelos assistenciais.

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A narrativa como ferramenta para o desenvolvimento...

Alguns autores procuram demonstrar as possibilidades desta integração, construindo uma argumentação com base em casos e suas experiências clínicas, discutindo e demonstrando, por meio delas, a capacidade interpretativa e terapêutica do uso da narrativa como uma ferramenta na clínica (Donald, 2002; Charon, 2001; Greenhaulgh, Hurwitz, 2002; Hurwitz, 2000; Hunter, 1996a; 1996b). Esta abordagem, centrada na singularidade dos casos e em suas interpretações, encontra limites na organização de enredos e saberes mais generalizantes, capazes de promover maior reprodutibilidade na prática clínica (Favoreto, 2006).

Perspectivas da narrativa na valorização da dialogia e da hermenêutica na clínica Para Bury (2001), as narrativas pessoais podem ser capazes de expressar o diálogo, a integração entre dimensões discursivas diferentes, como a técnico-científica, e o senso prático, ou entre enredos gerais (como o da ciência e a medicina) e singulares. Em uma perspectiva construtivista do encontro clínico, é possível apontar na direção desta integração, de forma que transcenda a presença isolada dos elementos que constituem estas aparentes dualidades. Representaria, assim, o resultado da dimensão relacional das situações de adoecimento, isto é, de interação entre o adoecimento, a doença e as contingências do cotidiano. Este produto da interação das diversas dimensões e discursos envolvidos no contexto do encontro clínico é capaz de embaçar as fronteiras entre o modo de pensar leigo e profissional ou a percepção de onde cada um começa ou termina. Portanto, é possível pensar a possibilidade de integração entre estas diferentes dimensões e gêneros narrativos (o generalizante e o singular), a partir da exploração do próprio caráter relacional no qual a clínica se realiza como uma prática e um saber. O aprofundamento do caráter relacional do encontro clínico pode trazer uma perspectiva de complementaridade e integração entre o discurso técnico biomédico e a dimensão prática, advinda da sabedoria de pacientes e médicos e constituída a partir de suas experiências anteriores e dos sentidos assumidos em cada situação. A possibilidade de diálogo acima referida não implica preestabelecer uma simetria entre os sujeitos, suas narrativas e intenções na relação médico-paciente (Camargo Jr., 2004). Também não pressupõe uma determinação direta de causalidade entre as disposições prévias ao encontro e o estabelecimento do diálogo, da negociação, ou melhor, na possibilidade de compartilhamento dos significados dos fatos e sentimentos que compõem os enunciados nas narrativas desses sujeitos. Esta assimetria e o papel social e cultural ocupado pelo médico no processo terapêutico tornam-no responsável por facilitar a criação do diálogo e abrir canais de participação para que o paciente possa se expressar e refletir sobre suas narrativas pessoais relacionadas ao adoecer. Para o médico se tornar promotor e dinamizador desse diálogo, é preciso valorizar e instrumentalizar sua escuta, seus repertórios e sua capacidade interpretativa. Os elementos que constituem o universo interpretativo do clínico necessitam ser ampliados, de modo a capacitá-lo a reconhecer os contextos narrativos onde as falas, sentidos e as demandas dos pacientes se inserem, tornando possível uma percepção e uma interpretação dos casos que transcendam o repertório biomédico ou a pura e simples coleta de dados sobre a doença. Para realizar este movimento dialógico e semiótico, o profissional deve reconhecer e incorporar, ao seu universo interpretativo, questões como: as repercussões sociais e econômicas da doença sobre o indivíduo e sua coletividade; as expressões de culpa, o preconceito ou o risco existentes em algumas situações de adoecimento ou em algumas doenças; os sentimentos, construídos social e psicologicamente, como a perda de identidade ou de ruptura ocorrida no curso da vida por conta do adoecimento, entre outros aspectos que estão envolvidos na construção das demandas e nas expectativas de cuidado. A compreensão destes possíveis enredos formados pelo adoecimento e as interações subjetivas, sociais, econômicas e culturais do indivíduo adoecido pode constituir enunciados facilitadores da abordagem dos pacientes, do estabelecimento do diálogo e da compreensão do significado das demandas (Reinsfeld, Wilson, 2004; Mabec, Olsen, 1997). Esta trajetória semiótica pode contribuir, por sua vez, para a construção e negociação de estratégias terapêuticas dirigidas à recuperação e restauração da autonomia perdida com as rupturas provocadas pelo adoecimento no curso da vida. 480

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FAVORETO, C.A.O.; JR, K.R.C.

artigos

A ampliação do repertório interpretativo na clínica facilita a compreensão das narrativas pessoais, pois promove melhor percepção e entendimento sobre quais são o arranjo, a cronologia, a hierarquia e o sentido que o adoecer assume em cada caso (Charon, 2004; Poindexter, 2004). Por outro lado, esta competência dialógica e interpretativa precisa compreender um movimento de autoavaliação dos contextos e valores que influenciam e organizam a escuta e a narrativa do próprio médico (Favoreto, 2007). Na perspectiva apontada, a ampliação do escopo da clínica na APS compreende o desenvolvimento, pelos profissionais, de competências dialógicas e interpretativas que os tornem capazes de lidar, de modo integrador e dialético, com os vários enunciados presentes no encontro clínico (Favoreto, 2007).

Considerações finais Esta análise considerou que a estratégia de aumentar a qualidade e a resolutividade da clínica, em especial daquela desenvolvida na atenção primária à saúde, seria beneficiada por uma ampliação da dimensão dialógica e hermenêutica dos profissionais de saúde. Tendo em mente este ponto de partida, discutiu-se a potencialidade do uso da narrativa como uma ferramenta reflexiva e operativa no desenvolvimento de novos saberes e práticas ligadas ao cotidiano dos encontros clínicos. A valorização e o manejo da narrativa pessoal do adoecimento são apresentados como elementos centrais na ampliação e facilitação da semiótica e terapêutica de uma clínica voltada para a integralidade do cuidado em saúde. Identifica-se sua importância na abordagem das situações de adoecimento, como modo de integrar os contextos socioculturais com os significados singulares e com a maneira como as pessoas expressam seus sofrimentos e organizam suas demandas. Deste modo, os aspectos socioculturais e subjetivos que compõem o adoecer passam a compor a clínica e não persistem como elementos externos, como parentes distantes da necessidade de qualificar e tornar mais próxima e efetiva a relação de médicos e pacientes no encontro clínico. A abordagem da narrativa é trazida para a clínica como uma ferramenta que pode facilitar a percepção e a interpretação do significado do processo de adoecimento, como um modo de o profissional de saúde incorporar novos enunciados ao seu repertório interpretativo e, assim, ampliar a dimensão dialógica, hermenêutica e integral do saber e da prática clínica. Identifica-se que a abertura destas novas possibilidades dialógicas e hermenêuticas pode representar avanços para a clínica na APS, na realização de práticas mais integrais e cuidados mais efetivos. Mesmo em cenários de práticas ou modalidades assistenciais mais amigáveis à noção da integralidade, como no caso do Programa Saúde da Família ou da Medicina de Família, estes novos saberes e práticas se tornam relevantes para a superação dos impasses epistemológicos produzidos pela biomedicina ou por propostas de dimensão totalizante e holística, que se transformam em soluções intangíveis e pouco relacionadas com o cotidiano e a cultura dos sujeitos envolvidos na clínica da APS.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ABMA, T.A. Emerging narrative forms of knowledge representation in the health sciences: two texts in a postmodern context. Qual. Health Res., v.12, n.1, p.5-27, 2002. AYRES, J.R.M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cienc. Saude Colet., v.6, n.1, p.63-72, 2001. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 11.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

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A narrativa como ferramenta para o desenvolvimento...

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FAVORETO, C.A.O.; JR, K.R.C.

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FAVORETO, C.A.O.; JR, K.R.C. La narrativa como herramienta para el desarrollo de la práctica clínica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.473-83, abr./jun. 2011. El artículo reflexiona sobre la posibilidad de que la incorporación de la narrativa conceptual y operacional puede aportar a la expansión del conocimiento y la práctica clínica en atención primaria a la salud. Parte de un análisis del significado de este concepto se originó en las ciencias sociales para debatir su aplicación en la medicina. En este sentido, la narración se presenta como una estrategia para estudiar y proponer formas de integrar las diferentes dimensiones, los conocimientos, los contextos, los deseos, necesidades y demandas presentes en el acto clínico.

Palavras clave: Narrativa de medicina. Competencia clínica. Atención primaria de salud. Relación médico-paciente. Recebido em 14/04/2009. Aprovado em 14/10/2010.

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artigos

A comunicação da dor:

um estudo sobre as narrativas dos impactos da disfunção temporomandibular*

Luciana Studart1 Moab Duarte Acioli2

STUDART, L.; ACIOLI, M.D. Pain communication: a study of narratives about the impacts of the temporomandibular disorder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.487-503, abr./jun. 2011.

In the field of health there has been an increasing interest in carrying out research relating pain to quality of life. However, many studies of this nature are primarily quantitative analyses. Accordingly, there is a need to develop methods of study that focus on the perspective of the individual and promote a better understanding of the experience of suffering. This paper set out to study the narratives of individuals with Temporomandibular Disorder related to the impact of pain on social, leisure and family activities. It was a qualitative and exploratory study. Semi-structured interviews were conducted, recorded, and subsequently transcribed to constitute the corpus of this project. The discussion of the results was based on content analysis. The results showed that overall impacts of the pain caused by Temporomandibular Disorder on the individual’s life concern predominantly leisure and work. Specific impacts include chewing, yawning, practising oral hygiene, smiling and speaking.

O interesse em pesquisas que relacionam dor e qualidade de vida tem sido frequente no campo da saúde. No entanto, grande parte desses estudos destina-se a análises quantitativas. Nesse sentido, há uma demanda em se desenvolver métodos de estudos, por meio de instrumentos que considerem a perspectiva do sujeito e que permitam uma melhor compreensão da experiência de sofrimento. O presente artigo refere-se a um estudo exploratório, qualitativo, sobre as narrativas de sujeitos com Disfunção Temporomandibular relacionadas aos impactos da dor nas atividades sociais, de lazer e familiares. Para a constituição do corpus foram realizadas entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas. A discussão dos resultados baseou-se na Análise de Conteúdo. Os resultados indicaram que os impactos gerais da dor da Disfunção Temporomandibular na vida do sujeito são predominantemente no lazer e no trabalho. Entre os impactos específicos, mastigar, bocejar, fazer higiene oral, sorrir e falar.

Keywords: Communication. Orofacial pain. Narratives. Quality of life.

Palavras-chave: Comunicação. Dor orofacial. Narrativas. Qualidade de vida.

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* Elaborado com base em Studart (2008). 1 Departamento de Fonoaudiologia, Universidade Federal de Pernambuco. Rua Francisco da Cunha, nº 392, sala 202, Boa Viagem. Recife, PE, Brasil. 51.020-041. luciana.studart@uol.com.br 2 Mestrado em Ciências da Linguagem, Universidade Católica de Pernambuco.

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A comunicação da dor:...

Introdução A disfunção temporomandibular (DTM) caracteriza-se por uma heterogeneidade de sintomas clínicos envolvendo alterações relacionadas com a musculatura da mastigação, a articulação temporomandibular (ATM) ou ambas as estruturas (Kosminsky et al., 2004). Entre os sintomas, destacam-se: cefaleia, dor na região articular e na musculatura mastigatória e cervical. E, entre os sinais, observa-se limitação dos movimentos mandibulares (Siqueira, Teixeira, 2001). O estudo procura captar, por meio das narrativas, aspectos subjetivos relacionados à experiência de ser portador de DTM, aspectos esses que têm sido objeto de estudo das ciências sociais e humanas aplicadas à saúde. Nesse sentido, este trabalho implica uma tentativa de ampliação do conceito teórico da dor, articulando o saber científico-formal com aquele subjetivo-leigo. Num sentido de intervenção clínica, pode propiciar um novo modo de comunicação entre o profissional e o paciente3, destacando a importância desta, tanto quanto das ações instrumentais. A DTM pode promover um importante impacto para o sujeito, comprometendo a capacidade funcional das funções orais (Zarb et al., 2000). Mas, além do caráter orgânico, é também acompanhada de fatores psicossociais próprios dos distúrbios dolorosos. Nesse sentido, a relação profissional-paciente pode ser fundamental para o sucesso do tratamento (Garcia et al., 2000). O objetivo deste trabalho foi estudar os enunciados dos sujeitos portadores de DTM sobre a experiência dessa dor orofacial na suas vidas, e apreender o impacto da experiência de ser portador de DTM nas atividades sociais, de lazer e familiares.

Impactos da dor na qualidade de vida O impacto negativo da disfunção temporomandibular na vida dos seus portadores está associado ao grau de severidade de muitos fatores psicossociais e psicológicos (Lucena, 2004). Assim, devido à importância da cavidade bucal - em termos de ser básica para a alimentação, de expressar as emoções e de se comunicar -, as manifestações da DTM e outras condições de dor orofacial fundamentam a hipótese de que essa doença tem um impacto significativo na qualidade de vida (Murray et al., 1996). Trata-se de uma dor que impede os sujeitos de executarem muitas ações do dia a dia, e de participarem de algumas interações sociais, podendo resultar em afastamento integral de muitas atividades, comprometendo a autoestima e tornando a vida controlada por essa experiência (Grzesiak, 1991). Oliveira et al. (2003) também destacam que, além dos componentes físicos e químicos envolvidos no evento doloroso da DTM, devem ser considerados os aspectos subjetivos e psicológicos, pois são cruciais na compreensão da queixa dolorosa. Instrumentos como o Oral Impacts on Daily Performance (OIDP), também estudados por Lucena (2004), destacam o impacto da dor orofacial em nove atividades da vida diária, como: o desempenho ao comer, falar, limpar a boca ou a face; dormir; a aparência; o estado emocional; a realização de tarefas usuais, e a prática de atividades de lazer e de esporte. Essas atividades foram estudadas numa perspectiva clínico-quantitativa. Sendo a mesma fundamentada em instrumentos com categorias a priori, foi relevante desenvolver um estudo que possa registrar aspectos semânticos e lógicos a posteriori presentes na produção dos enunciados desses sujeitos. 488

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O termo “paciente” será utilizado neste trabalho quando se referir às relações clínicas com médicos ou outros profissionais de saúde, ou em respeito à terminologia utilizada pelos autores aqui citados.

3


STUDART, L.; ACIOLI, M.D.

artigos

Embora seja pequeno o número de estudos que documenta o impacto da DTM na qualidade de vida, utilizando questionários específicos ou ferramentas multidimensionais, outro trabalho que se destaca é o de Oliveira et al. (2003). Esse estudo teve o objetivo de descrever os relatos subjetivos de portadores de DTM sobre o impacto da dor em suas vidas. Tendo em vista a necessidade de se desenvolverem métodos de estudo e de avaliação, por meio de instrumentos que considerem a perspectiva leiga, e não apenas a dos cientistas e profissionais de saúde (Slevin et al., 1988), foi intenção deste estudo abordar a relação entre dor e qualidade de vida a partir da perspectiva do sujeito que vive a experiência.

Narrativas no campo da saúde Histórico que vai desde os sintomas iniciais até o momento da observação clínica, realizado com base nas lembranças do paciente (Dicionário, 2008). 4

5 Qualquer fragmento conexo de escrita ou fala (Trask, 2004).

O campo da saúde utiliza, como narrativa, o relato dos sujeitos sobre a história de suas doenças, em especial, no momento da anamnese4. Nesse sentido, as narrativas podem ser definidas como tipo de discurso5 onde são contados acontecimentos numa estrutura sequencial, cuja forma mais elementar apresenta uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Costuma-se caracterizá-la como a descrição de um passado recente ou remoto, seja ele mítico ou histórico, ficcional ou realista, pessoal ou coletivo, entre outros (Langdon,1994). Autores como Silva e Trentini (2002) discutem que, na análise das narrativas, são buscados os usos da linguagem, não visando apenas à informação, mas a realização de vários tipos de ação, entre eles: o diálogo e a argumentação. Os autores, com base nos levantamentos da literatura e da sua experiência com o uso desse recurso no campo da enfermagem, classificam as narrativas em três grupos: a) Narrativas breves: são narrativas sintéticas, contendo estrutura mínima de uma narrativa (começo, meio e fim), em que é facilmente identificada a sequência do enredo e onde é focalizado um determinado episódio, como a descoberta da doença, um súbito mal-estar; b) Narrativas de vivência: são mais amplas, incluindo a história da vivência de uma pessoa com a doença e vários episódios que, geralmente, são colocados numa sequência de acontecimentos, dos quais nem sempre há uma interpretação temporal, construindo-se a experiência como processo; c) Narrativas populares: são as histórias contadas e recontadas entre pessoas de uma comunidade, podendo tornar-se lendas. Vale ressaltar a importância dos relatos da descrição da dor e do impacto na qualidade de vida de seus portadores, pois se acredita que apenas por meio do entendimento da experiência é possível acessar o caráter singular do sofrimento e direcionar o diagnóstico e a terapêutica, levando em conta as peculiaridades de cada sujeito. Lima e Rivera (2009, p.335), em uma abordagem teórico-metodológica para estudos na área da integração de serviços de saúde, destacam que a ação comunicativa é essencial para os processos de interação e de compreensão da realidade do outro. Sobre isso é dito: Quando um sujeito fala, não apenas descreve a realidade pura e simplesmente; ele gera realidade. A concepção de linguagem como ação supera a visão de que ela seria algo passivo, descritivo, onde a realidade viria primeiro e a linguagem serviria para descrevê-la.

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A comunicação da dor:...

Tomar as entrevistas como técnicas de coleta de dados, objetivando o acesso à experiência da doença, não significa estabelecer uma equivalência ou uma redução da experiência ao discurso narrativo (Alves, Rabelo, 1999), mas constatar que existe uma vinculação estreita entre a experiência do sujeito e o que é dito por ele. Para Lira, Catrib e Nations (2003), a narrativa pode ser usada no âmbito de uma estratégia de métodos combinados, onde ela provê, a partir de uma abordagem a um pequeno grupo de sujeitos, um atendimento em maior profundidade da realidade estudada, permitindo uma avaliação abrangente dos mesmos, tais como vivenciados no contexto da vida real. Através da narrativa, destacam Jovchelovitch e Bauer (2002), as pessoas lembram o que aconteceu, colocam a experiência em uma sequência, encontram possíveis explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos que constroem a vida individual e social. Contar histórias implica estados intencionais que aliviam ou, ao menos, tornam familiares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida cotidiana normal. Sendo, pois, esse processo de falar sobre a experiência uma atividade reflexiva que nos ajuda a conhecer os significados de determinados eventos localizados no tempo pretérito, essa possibilidade evidentemente também nos ajuda a compreender as situações atuais (Turner, 1984). Nesse aspecto, junto a essa possibilidade de compreensão transtemporal, tanto no passado quanto no presente, destaca-se uma outra transcultural, pois elas são “metacódigos” que permitem uma tradução de outras realidades culturais e pessoais, facilitando um entendimento daquilo que se caracteriza como diferença (White, 1981). Silva e Trentini (2002, p.431) também escrevem que contar histórias sobre a doença, portanto, é uma forma de tornar a experiência passada disponível para outros, que as recontarão, criando, então, uma rede de informações que permitirá sempre um novo contar sobre sua própria experiência a partir de outras experiências. [...] Ao serem registradas, essas histórias tornam-se disponíveis a ‘leitores’ múltiplos, abrindo, portanto, novas possibilidades de interpretações.

Essa compreensão é subjetiva, e, por consequência de sua dor, requer uma abordagem mais ampla que aquela que só se preocupa com dados da patologia. Entretanto, e infelizmente, para o modelo biomédico predominante da sociedade moderna, saúde e doença constituem fenômenos de ordem biológica, que devem ser tratados por meio de uma ação de natureza prioritariamente técnica. As premissas básicas da perspectiva biomédica incluem: a racionalidade científica; a ênfase na mensuração objetiva e numérica de dados bioquímicos; o mecanicismo; o dualismo corpo-mente; a visão da enfermidade como entidade ontológica (atribuindo-lhe uma identidade mórbida que é independente do sujeito e do contexto sociocultural em que está inserido) e a ênfase do diagnóstico e tratamento sobre o indivíduo doente em detrimento da família ou da comunidade (Helman, 2003). Essas premissas, de acordo com Iriart (2003, p.5), refletem-se de várias formas na prática médica, por exemplo, no momento em que a desordem orgânica é percebida como verdadeiro objeto da medicina; quando a racionalidade científica despreza as dimensões emocionais e morais da aflição; quando o médico se coloca na posição de conhecedor ativo, deixando o paciente na condição de conhecedor passivo; e na despersonificação dos pacientes. Em especial a dificuldade dos médicos na escuta das queixas dos pacientes repercute de forma negativa na qualidade da relação terapêutica.

Na tentativa de compreender as dimensões objetivas e subjetivas da doença e valorizar a importância da experiência dos sujeitos, observam-se os conceitos da antropologia médica – disease e illness.

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Disease, que pode ser relacionado à patologia, refere-se à doença tal como concebida pela biomedicina6, designando anormalidades na estrutura ou função dos órgãos ou sistemas orgânicos, e a estados patológicos, independentemente de serem ou não culturalmente reconhecidos (Kleinman, 1980). O conceito illness está relacionado à percepção e à experiência do paciente da patologia, independentemente de serem reconhecidas, pela biomedicina, como doença. Esse conceito é especialmente importante para este estudo, pois remete aos significados que o sujeito atribui aos sinais e sintomas corporais, que podem ou não ser interpretados por ele e por seu meio cultural como doença. Segundo Good (1994), as narrativas illness são histórias sobre a vida dos pacientes e sobre o modo como essa doença é vivida, a forma de representação, de expressão e de construção dessa experiência, sendo isso pautado por meio das interações sociais, nas trocas de comunicação e de outras experiências intersubjetivas e nas reelaborações dos conceitos e das práticas. Trata-se, então, do modo como a doença é trazida à experiência individual e se torna significativa para o sujeito pois, para que a pessoa se reconheça como doente, é necessário que ela interprete os sintomas experienciados como sinais de uma doença. Essa maneira de interpretar, assim como a forma de expressar, é fortemente influenciada pelo contexto cultural em que o sujeito está inserido. Segundo Kleinman (1980, p.120),

artigos

Medicina clínica baseada nos princípios das ciências naturais (biologia, bioquímica, biofísica etc) (Dicionário, 2008). 6

Usos de modelos explicativos apontam para a base cognitiva das experiências de doença, revelando a respectiva análise das operações cognitivas no cerne da prática clínica. É esta estrutura cognitiva que demonstra mais claramente as relações entre pacientes e médicos, a doença e a cura, e o seu contexto cultural.

Grande parte da dificuldade encontrada nas relações terapêuticas deve-se ao fato de que o objeto terapêutico do modelo biomédico é a intervenção no processo da doença, visando a cura da patologia (disease), sem considerar a sua dimensão subjetiva (illness). Nesse sentido, acredita-se que a análise do conteúdo de entrevistas de sujeitos, ao descreverem sua dor, permite uma adequada integração e compreensão da experiência subjetiva do adoecer, expressa por intermédio do modelo illness com determinados contextos de vida, familiares, sociais, históricos, entre outros. E mais, esses relatos parecem que, além de possibilitarem um melhor entendimento do que acontece na vida dos sujeitos, como afirma Boehs (2000), também permitem uma reordenação dessa vida na realidade da doença.

Metodologia Este estudo foi de natureza qualitativa e exploratória (Minayo, 2006). Fundamentou-se no questionamento: Qual a contribuição do estudo das narrativas entre portadores de DTM para uma melhor compreensão da experiência de sofrimento? Tratou-se de um estudo que envolveu empiricamente a comunicação dos sujeitos com a pesquisadora, tendo como base as tarefas de descrição, análise e interpretação das mensagens/enunciados dos mesmos sobre a experiência da dor e do impacto nas suas condições de singularidade.

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A comunicação da dor:...

A pesquisa desenvolveu-se no Centro de Controle da Dor Orofacial (CCDO) da Faculdade de Odontologia de Pernambuco (FOP) – Universidade de Pernambuco (UPE), e correspondeu a uma das etapas de coleta de dados para uma dissertação de Mestrado, no período de junho a agosto de 2007. Participaram 18 sujeitos, que foram selecionados com base em critérios clínicos e socioculturais, ou seja, por possuírem sintomatologia semelhante de dor orofacial e usuários do setor público de saúde. Foram utilizados, como critérios de inclusão: possuir diagnóstico de portador de DTM, segundo índice anamnésico do Questionário Anamnésico Simplificado - DMF (Fonseca et al., 1994); apresentar respostas positivas referentes ao tempo de duração e frequência da dor; estar participando pela primeira vez de um estudo dessa natureza. Foram excluídos apenas os sujeitos que apresentassem discurso vago a ponto de comprometer a aplicação do roteiro da pesquisa. Após a triagem inicial, os participantes responderam a uma entrevista semiestruturada, que constava de perguntas norteadoras elaboradas a partir de algumas perguntas baseadas no questionário Research Diagnostic Criteria for Temporomandibular Disorders: Axis II (RDC), já validado através de adaptação cultural (Kosminsky et al., 2004). Do universo de enunciados coletados por meio de gravador digital Panasonic RR-US450 e transcritos pelo padrão de transcrição do projeto NURC - Norma Linguística Urbana Culta (Preti, 2000), foram selecionados os dados obtidos relacionados às questões referentes aos temas propostos. A análise dos resultados se fundamentou na análise de conteúdo, segundo Bardin (1995, p.31). Foram utilizadas unidades de análise, consideradas categorias teóricas e metodológicas, apontadas por Franco (2003) como estratégias na análise de conteúdo – a unidade de registro. Nessa pesquisa, como unidade de registro, foi escolhido o tema, que pode ser uma frase, uma palavra ou um parágrafo. Apesar de apresentar algumas limitações, como a exigência de muito tempo para a coleta dos dados e a dificuldade de sua identificação, ele é considerado a mais útil unidade de registro em análise de conteúdo. Ocorreram três níveis de construção da análise, conforme apresentado no Quadro 1. 1º Nível: Com base no roteiro de entrevista semiestruturada foram elaborados eixos temáticos fundamentados a priori pelo pesquisador; 2º Nível: Os temas que surgiram na produção empírica a posteriori foram definidos como unidades temáticas (UT), devidamente conceituadas e classificadas; 3º Nível: As unidades temáticas foram quantificadas de modo absoluto como frequência de ocorrência (FO). Com a necessidade da inclusão de alguns indicadores de frequência, que poderiam servir de referência para estudos posteriores, recorreu-se a uma análise quantitativa sistemática para que fosse possível identificar a frequência absoluta dos temas escolhidos e a proporcionalidade de sua menção em relação a outros temas igualmente presentes, como sugere Franco (2003). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco. Com o objetivo de garantir a privacidade dos participantes, seus nomes foram substituídos pela letra “E” (Entrevistado), seguidos de número de identificação.

Resultados e discussão É muito relevante o impacto que a dor crônica na face pode causar na vida dos sujeitos, pois, geralmente, limita as atividades e interfere no convívio social e afetivo. Varia de limitações específicas, como dificuldade para sorrir, falar ou mastigar, a alterações globais na qualidade de vida. Essa dor, geralmente, ocasiona sérios comprometimentos às atividades do cotidiano, ao trabalho e ao convívio social. São características e impactos de natureza subjetiva que variam de pessoa para pessoa e, somente, por meio da comunicação, podem ser transmitidas ao profissional de saúde. No estudo de Oliveira et al. (2003), sobre o impacto da dor na vida de portadores de DTM, observou-se que, nas perguntas específicas para avaliar o impacto da dor na vida dos portadores com quadro crônico, o trabalho, as atividades escolares, o sono e o apetite/alimentação foram as categorias mais influenciadas pelo quadro doloroso. 492

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artigos

Em se tratando dos impactos gerais, Siqueira (2004, p.42) destaca que: No modelo biopsicossocial da dor, não se pode isolar o paciente da sua família ou de seus ambientes sociais de trabalho. A complexidade dessas associações exige atenção por parte dos profissionais da área de saúde ao abordarem seus pacientes crônicos. A dor, incluindo a dor orofacial, pode ser incapacitante e afastar temporariamente o indivíduo de seu local de trabalho. Por outro lado, o próprio trabalho pode ser fator agravante da condição dolorosa.

Trata-se da importância de conhecer o paciente um pouco além dos sintomas. A dor como causadora de impactos importantes provoca a necessidade de se entender como esses impactos repercutem para cada sujeito de forma particular. O relato dos pacientes sobre suas doenças, os detalhes sobre os hábitos alimentares, atividades diárias, tipo de atividade profissional e demais informações, são fundamentais não só para o fechamento do diagnóstico, mas, especialmente, para a conduta terapêutica. Colaborando com essa ideia, Santos (1999, p.94), em seu trabalho “Ouvir o paciente: a anamnese no diagnóstico clínico”, destaca que a anamnese é o elemento mais importante da clínica para o estabelecimento da relação médico/paciente, do diagnóstico e das condutas terapêuticas que irão determinar a cura ou alívio do paciente. Trata-se de um ato de comunicação, que exige do profissional de saúde: qualidade primordial de um bom ouvinte, uma interação e identificação recíproca com o seu paciente.

Impactos gerais em ser portador de DTM O tópico “impactos gerais” foi subdividido nos seguintes eixos temáticos: “lazer”, “limitações para o trabalho/estudo”, e “realização das atividades domésticas”.

Quadro 1. Impactos gerais em ser portador de DTM. Recife, 2010 Eixos temáticos

a. Lazer

b. Trabalho/Estudo

c. Atividades domésticas

Número de Unidades Temáticas (UT) por eixo temático

Unidades temáticas

Frequência de ocorrência (FO) por unidade temática

02UT

Dificuldade em participar de festas familiares, eventos e passeios

09FO

Limitação em participar de atividades de canto

02FO

Falta de ânimo e paciência

04FO

Diminuição da capacidade

06FO

Incapacidade de realizar as atividades domésticas

02FO

02UT

01UT

Fonte: Dados da pesquisa de campo

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O impacto no “lazer” e “trabalho/estudo” apareceu como predominante, ocorrendo com 02UT cada um. Em seguida, apareceram “atividades domésticas”, com apenas 01UT. a. Lazer Nesse eixo destacaram-se duas unidades temáticas: “dificuldade em participar de festas, eventos e passeios” e “limitação em participar de atividades de canto”. O lazer destaca-se como atividade muito afetada pela DTM. Os sujeitos relatam a perda da vontade em participar das reuniões familiares e sociais (09FO) e a necessidade de ficarem quietos para não agravarem a dor na face. Di Fabio (1998 apud Lucena, 2004) comparou incapacidades e o estado de saúde associado com desordens temporomandibulares e outras desordens musculoesqueléticas, para avaliar qualidade de vida relacionada à saúde. O instrumento genérico de qualidade de vida relacionada à saúde - Estudo de Resultados Médicos (Medical Outcomes Study – MOS-17), foi usado para avaliar os aspectos físicos e mentais da incapacidade associada à DTM. Os resultados mostraram que os pacientes com DTM tiveram limitações na dimensão social e bem-estar emocional, semelhante aos com desordens cervicais. Essa comparação torna-se pertinente, uma vez que ambas as patologias apresentam características de cronicidade. “A gente não sente vontade de passear, de fazer lazer. Dá vontade só da pessoa ficar assim [...] num canto, parada, quietinha [...] Eu saía, passeava, mas agora que eu mudei”. (E6) “Eu cantava na igreja e não canto mais. [...] Preciso estender muito a voz e eu não posso porque senão ele (o maxilar) estrala (estala). Aí eu tenho medo quando ele estrala, porque já aconteceu isso [...] É tão ruim. Eu gosto tanto [...] É muito ruim, é horrível. Desde pequenininha eu cantava na igreja, aí no ano passado eu tava fazendo parte do coral da igreja. Eu tive que sair porque na hora do ensaio eu fui dar um agudo e não aguentei. Aí ele (o maxilar) desceu”. (E5)

b. Trabalho/Estudo Macfarlane et al. (2002 apud Oliveira, 2003), apesar de terem estudado pacientes com dores orofaciais de diferentes origens, demonstraram, em 2.504 pacientes, um importante impacto da dor orofacial no trabalho, com 17% de relatos de perda de dias de trabalho e incapacidade de desenvolverem suas atividades como antes da dor. Segundo dados da Sociedade Brasileira para Estudos da Dor (SBED, 2007) A dor afeta pelo menos 30% dos indivíduos durante algum momento da sua vida e, em 10 a 40% deles, tem duração superior a um dia. Constitui a causa principal de sofrimento, incapacitação para o trabalho e ocasiona graves consequências psicossociais e econômicas. Muitos dias de trabalho podem ser perdidos por aproximadamente 40% dos indivíduos. Não existem dados estatísticos oficiais sobre a dor no Brasil, mas a sua ocorrência tem aumentado substancialmente nos últimos anos.

Nesta investigação, no eixo temático “trabalho / estudo”, ocorreram duas unidades temáticas: a “falta de ânimo e paciência”, com 04FO, e “diminuição da capacidade”, com 06FO. “Tem dia que eu já passei sem ir (para o colégio) uma semana, quase. Porque a cabeça / dói a cabeça. Aí, dói o ouvido. Sai doendo é tudo. Se for doendo eu não estudo [...] Não dá vontade de assistir televisão, não dá vontade de fazer nada. [...] Ficar quieto”. (E9) “É, eu trabalho o dia todo falando, e eu tô sentindo dificuldade pra falar. É, tá atrapalhando”. (E18)

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c. Atividades domésticas No eixo temático referente ao impacto na realização das atividades domésticas, ocorreu apenas uma unidade temática: “incapacidade de realizar as atividades”, com 02FO. Formas mais sutis de alterações na disposição para atividades domésticas, relatadas por BiasottoGonzalez et al. (2009), ao estudarem a qualidade de vida em portadores de DTM, são demonstradas ao se comprovar a influência da dor no domínio da vitalidade. Oliveira et al. (2003) também apontam prejuízos nas atividades domiciliares de pacientes com DTM, na proporção de 54,55%. Pensando nessas atividades domésticas, são relatadas limitações totais ou parciais. “Impede. Que você querer fazer aquilo com dor / que pode tomar qualquer remédio pra ver se alivia aquela dor. Agora, se fosse direto eu acho que eu não agüentava não. Que tem gente aqui (pacientes na sala de espera), que diz que é direto. Eu não vou dizer que é direto, que não é. De repente ela chega assim [...] de repente”. (E3)

Impactos específicos em ser portador de DTM Consideraram-se dificuldades específicas aquelas que causam impactos diretamente às atividades relacionadas às funções orais e/ou da face. “[..]/ pra comer / eu não mastigo chiclete, não chupo pirulito, eu não rôo osso eu não gosto de nada duro. Incomoda bastante. Pra bocejar dói muito, uma dor fina. É horrível. É muito ruim mesmo [...] agora mesmo tá doendo. Quando eu acordo pra escovar os dentes, dói. Quando eu vou falar [...] quando eu falo ou fico bocejando. Às vezes quando eu tô normal assim / fica latejando aqui ((indicação))”. (E6) Quadro 2. Impactos específicos em ser portador de DTM. Recife, 2010 Eixos temáticos

a. Mastigar

b. Falar

Número de Unidades Temáticas (UT) por eixo temático

Unidades temáticas

Frequência de ocorrência (FO) por unidade temática

05UT

Movimentação da boca

08FO

Consistência dos alimentos

07FO

Modificação da dieta

06FO

Perda de apetite e peso

02FO

Transtorno no convívio familiar e/ou social

02FO

Dor

05FO

Evitação de falar

02FO

Prejuízos profissionais

02FO

Adaptação para falar

01FO

04UT

Continua

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Quadro 2. Continuação c. Fazer higiene oral ou da face

d. Bocejar

04UT

03UT

e. Ficar com o rosto normal sem aparência de dor ou triste

f. Sorrir e gargalhar

g. Atividades sexuais

h. Fazer exercícios

03UT

Sofrimento com a escovação

04FO

Problemas em abrir a boca

03FO

Prejudica porque incomoda

03FO

Incômodo com o fio dental

02FO

Sofrimento no bocejo

07FO

Evita bocejar

06FO

Não tem hábito de bocejar

01FO

Não consegue, fica triste, amuado ou sem prazer

06FO

Procura disfarçar a aparência ou não valorizar

02FO

Difícil não ficar com aparência de dor ou/ e triste

01FO

Medo ou incômodo

06FO

Impedimento

05FO

Dor e incômodo no beijo

03FO

Incômodo na atividade sexual

03FO

Mal-estar na realização de atividades físicas

03FO

Redução das atividades físicas

02FO

02UT

02UT

02UT

Fonte: Dados da pesquisa de campo

Nos enunciados dos entrevistados sobre os impactos específicos em ser portador de DTM foram encontrados, como eixos temáticos mais frequentes, os seguintes temas: Mastigar (05UT); Falar (04UT); Fazer higiene oral e da face (04UT); Bocejar (03UT); Ficar com o rosto normal sem aparência de dor ou triste (03UT); Sorrir e gargalhar (02UT); Atividade sexual (02UT) e Fazer exercícios físicos (02UT). a. Mastigação Mastigar é uma das funções orais que demanda grande atividade da articulação temporomandibular (ATM) e dos músculos relacionados, estruturas que, geralmente, estão comprometidas na DTM. Os achados de Murray et al. (2001 apud Oliveira, 2003) mostraram um significante impacto na qualidade de vida dos portadores de DTM quando comparados à população sem queixa de dor. Os

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relatos de problemas funcionais, como dificuldade para mastigar determinados alimentos, foram quatro vezes maiores para os pacientes estudados, e os relatos de depressão nove vezes maior. No eixo temático da “mastigação” apareceu, como mais frequente, limitação na “movimentação da boca”, com 08FO; seguido das queixas quanto à “consistência dos alimentos”, com 07FO; “modificação da dieta”, com 06FO; “perda de peso”, com 02FO, e “transtorno no convívio familiar e/ou social”, também com 02FO. “Às vezes é só no movimento que eu vou abrir a boca, aí já dói. Às vezes eu tenho que segurar aqui ((indicação)) um pouquinho, botar a mão, porque pra fazer os movimentos / porque ela dói. Agora mesmo tá doendo. Mas, é uma dorzinha que tá incomodando, uma dorzinha fina lá dentro. Mas se eu for fazer um movimento mais forte, aí ela dói mais”. (E4) “Dói quando mastiga. Ela dá uma dor fina e começa a estalar [...] O duro é mais dificultoso. [...] Aqueles coquinho de macaíba... Tinha tempo que eu comia aquilo demais. Agora eu não posso. (E2) “Assim [...] eu gosto muito de ossinho, não posso mais. Carne dura, eu não posso, assim, pegar e puxar. Dói. Tem que ser assim cortadinha (a carne). Tem que ser o mínimo de mastigado possível /.../ teve um tempo assim, que quando tava doendo muito, muito, muito, aí eu comecei evitar (de comer alimentos duros). Trocando o almoço por um copo de suco ou por uma vitamina. Aí foi quando eu perdi três ou quatro quilos por causa disso. Eu era bem cheinha”. (E5) “Fico que eu não posso nem mastigar nada e sem abrir a boca. /.../ Até 3Kg eu perdi porque não consigo comer de jeito nenhum. Porque quando eu tô com essa dor, eu não consigo comer nada”. (E3) “Assim [...] nos primeiros tempos quando eu almoçava, eu não almoçava na mesa porque estralava ((estalos/clics provenientes da ATM)). Toda vez que eu comia / muito alto. Incomodava quem tava na mesa, tá, tá, tá. Minha mãe botava o almoço, eu ia pro quarto”. (E5)

Embora Carrascosa, Campos e Faria (2008) ressaltem uma carência de estudos que demonstrem evidências que as DTM causem algum impacto relacionado à alimentação e este sobre a qualidade de vida, o presente estudo pôde constatar essa ocorrência. Nesse sentido, as narrativas apontam que a privação dos alimentos preferidos, a lentidão para alimentar-se, a inapetência, a perda de peso e a dor, são algumas das características do processo de alimentação dos sujeitos estudados, tendo em vista que a alimentação é uma função básica necessária à sobrevivência, que, além de fins nutricionais, possui um caráter social e de satisfação. b. Falar São muito controvertidos os estudos fonoaudiológicos que correlacionam a existência de queixas na fala e DTM. Isso se deve, provavelmente, à ausência dessas questões nos protocolos de anamnese de DTM, para que os sujeitos pudessem referi-las. Alguns dos estudos que relatam a presença dessa relação são os trabalhos de Felício (1994), Anelli (1997) e Bianchini (1998). Contudo, Taucci (2006), aprofundando o estudo nessa área, concluiu que as queixas de fala mais frequentes, referidas pelos indivíduos com DTM, são, em ordem decrescente: ruídos na articulação, cansaço após longos períodos de fala, limitações no movimento mandibular na presença de dor e desvios na mandíbula, deslocamentos, travamento e rouquidão. Neste estudo, ocorreu, com maior frequência, a dor ao falar, com 05FO; seguida de “evitação de falar” e “prejuízos profissionais”, ambas com 02FO; e, por fim, “adaptação para falar”, com 01FO.

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“Conversar também. Eu evito conversar. Porque se abrir a boca [...]. Qualquer movimento, dói [...] É uma tortura”. (E3) “Às vezes, quando converso. [...] Agora mesmo tá doendo. (E5) “Como eu lhe disse, é péssimo. Não é? Porque tem várias coisas que eu gostaria de fazer e não posso fazer por causa da dor de cabeça que dá. [...] Agora mesmo eu tava conversando com a menina ((na sala de espera)) e deu a dor fina no maxilar”. (E2) “Eu trabalho falando. Não posso ficar assim. Me incomoda muito. [..]/ Não posso abrir muito a boca. Agora, (falar) mais alto, (e) mais grosso, eu não posso. [...] Porque eu trabalho com telemarketing, e não pode ter dificuldade pra quem está ouvindo”. (E17) “Isso incomoda no dia-a-dia. Agora, assim [...] em trabalho /questão de trabalho. Porque eu já fiz seleções de empregos pra casos de tele-atendimento. He::: Call Center. E justamente quando eu passo pela tal da fonoaudióloga [...]. Aí ela mede, ela aperta, ela nota que tem dor, ela me reprova. [..]/ Aí quando chega à última fase, que é a fase da fonoaudióloga, aí estralou (estalou). Estralou três vezes. Eu não disse a ela que eu estava sentindo dor, mas ela notou. E::: viu pelo estralo. Pegou e me reprovou. Duas vezes. [...] Eu fiz três seleções diferentes e todas as três eu fui reprovada. Por esse motivo. Sempre, na parte da fonoaudióloga, ela me reprova”. (E11)

c. Fazer higiene oral e da face Em se tratando das limitações relacionadas com a higiene oral e da face, surgiram quatro unidades temáticas relevantes. A primeira, “sofrimento com a escovação” (04FO); em seguida, “problemas em abrir a boca” e “prejudica porque incomoda” (ambas com 03FO); e, por fim, “incômodo com o fio dental” (02FO). Inicialmente, é observado, nas unidades temáticas, que a escovação representa uma dificuldade importante. Esse sofrimento se caracteriza, sobretudo, pela dor na realização da higiene. Essas dores não caracterizam exatamente um quadro de DTM, ocorrendo, mais frequentemente, em decorrência de patologias do próprio dente. Esses dados, demonstrados nos enunciados a seguir, corroboram com os achados de Oliveira et al. (2003), que estudaram a influência da DTM no cotidiano. “Rapaz [...] (escovar) os dentes tem hora que incomoda. (lavar) A face não. Mas os dentes [...]”. (E18) “[...] eu sinto muita dificuldade, porque quando eu abro, ele desloca. Com a deslocação vêm os estralos (clics). O cansaço vem também”. (E17) “Às vezes incomoda um pouco, queima, mas tem que fazer também, né?’. (E15) “[...] com fio dental, machuca!”. (E5)

d. Bocejar Chaves, Oliveira e Grossi (2008), estudando os principais instrumentos para avaliação da DTM, destacam o ato de bocejar como um dos itens que merecem ser investigados, uma vez que está presente na maioria deles. Na presente pesquisa, bocejar aparece em quarto lugar na variação de temas (3UT) relacionados com os impactos específicos da DTM. Entre as unidades temáticas, surgem: “sofrimento no bocejo” (07FO); “evita bocejar” (06FO); e, por fim, “não tem hábito de bocejar” (01FO). 498

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“Oh:::, demais, demais [...] Pra bocejar dói muito. Uma dor fina. É horrível!”. (E5) “Sim, eu fiquei com trauma de abrir a boca. Tem que abrir só um pouquinho, porque parece que vai descolar”. (E15) “He::: Essa questão aí não impede porque não sei se é porque eu num tenho esse hábito não de [...] de bocejar. Eu não sei o porquê”. (E8)

e. Ficar com o rosto normal, sem aparência de dor ou de triste A face, além da voz, também é um importante instrumento de comunicação. As expressões faciais, por serem um relevante meio de expressão não verbal, não conseguem esconder a experiência de sofrimento físico e psíquico com a dor. Nos vários recortes, foram encontradas, como unidades temáticas mais prevalentes, as seguintes: não consegue, fica triste, amuado e sem prazer (06FO); procura disfarçar ou não valorizar (02FO), e difícil não ficar (01FO). O estudo das dores crônicas e suas formas de manifestação, como lembra Oliveira (2000), não pode ficar restrito aos aspectos puramente biológicos. Dessa forma, os enunciados que se seguem ressaltam que a dor, quando se caracteriza como um problema recorrente na vida do sujeito, é sempre “comunicada” em determinadas expressões faciais. “A cara de triste eu fico. Porque eu sinto um pouco. Porque quando a gente tá com problema e não resolve (a dor que não melhora)/.../ Mas aí me incomoda, aí eu fico triste”. (E14) “Impede sim. Porque quando você está com a dor, você não fica tão relaxado, você fica contraído. Você não se distrai com outra coisa, porque tem dor. E ela (a dor) acaba lhe tirando prazer de certas coisas”. (E17) “Ah::: meu Deus! A gente tenta disfarçar, né doutora? Mas dói. Só Deus é que sabe. E como diz o ditado: “que só quem tá calçando o sapato é que sabe onde tá apertado”, né? Imagine a gente que convive com essa dor. Às vezes a gente tenta disfarçar, mas não dá o que saber a todo mundo, o que a gente tá sentindo”. (E6) “Aí é difícil né?”. (E8)

f. Sorrir e gargalhar As atividades de sorrir e gargalhar necessitam da atividade da musculatura orofacial e são as mais simples expressões de felicidade e satisfação. Contudo, necessitam da ativação da mímica facial e, sobretudo, da abertura da cavidade oral (Douglas, 2002). Nesse sentido, os sujeitos portadores de DTM, embora não gozem de muita satisfação, pois sofrem de dor crônica, quando a possuem, não podem demonstrá-la, já que essa atividade lhes causa agravo do processo doloroso, como mostram as narrativas desta pesquisa. Entre as unidades temáticas presentes nos enunciados, surgem: o “incômodo e medo ao sorrir” (06FO) e “impedimento” (05FO). “[...] tinha época que até eu ria mais. Aí, agora eu fico até com medo [...]. Porque eu gosto muito de rir, aí, eu fico até com medo”. (E16) “Sorrir incomoda. E quando eu abro o sorriso no maxilar, a parte inferior, ele (o maxilar) muda (desvia). Desvia para o lado. [...] É, pro lado esquerdo. Então, eu tenho que controlar o sorriso”. (E17) “Quando tá atacada (na crise), eu não posso rir”. (E6)

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g. Atividade sexual A pergunta da entrevista que originou esse tema intencionava indagar sobre a atividade sexual. Entretanto, as respostas dos impedimentos envolveram unidades temáticas específicas, como “beijo” (03FO), e mais amplas, como “incômodo na atividade sexual” (03FO) Carvalho (1999), em seu estudo multidisciplinar sobre a dor crônica, afirma que este sofrimento provoca um grande impacto sobre o estilo de vida do indivíduo, produz alterações vegetativas, incluindo insônia, falta de apetite e desejo sexual. Sobre este item, os sujeitos entrevistados afirmam: “Atrapalhou no início. Quando meu esposo vinha me beijar. Às vezes ele vinha assim [...] de supetão. Aí doía”. (E6) “Quando eu tô com qualquer dor, você não consegue fazer [...]”. (E3)

h. Exercícios físicos Nos enunciados dos entrevistados, surgem duas unidades temáticas em relação a fazer exercícios físicos. Uma relacionada ao “mal-estar” (03FO) e outra com a necessidade de “redução” (02FO) total ou parcial. Os dados acima podem ser justificados a partir da constatação de que a DTM pode ocasionar sintomas físicos, como: dores de cabeça, problemas no aparelho locomotor, dores musculares, câimbras, limitações de algum movimento do corpo, dores ósseas, formigamentos e diminuição da sensibilidade, como demonstra o estudo de Bove, Guimarães e Smith (2005). “A cabeça de vez em quando dói, na educação física”. (E9) “Impede. Foi o que fez eu procurar o [...] o médico pra saber se eu tenho que diminuir porque eu fazendo exercício. Eu tava fazendo exercício com pena assim [...] com pena de tá sofrendo por causa disso, né?”. (E8)

Parece uma ironia sentir dor para falar da dor. Apesar de a DTM apresentar características semelhantes a todas as outras dores crônicas, como já foi comentado anteriormente, existe um caráter a ser considerado – a localização dessa dor. A face, região mais referida pelos sujeitos com DTM, e mais especificamente a boca, é também a região por onde se expressa a dor. Essa infeliz coincidência termina por provocar transtornos específicos acrescidos ao desprazer comum à dor. Outros impactos são igualmente relevantes e até aparecem com valores absolutos mais evidentes neste estudo. Contudo, é dado um destaque ao tema “impactos na fala”, pois se considera que eles causem um comprometimento mais relevante na comunicação de uma forma geral. O ato da fala e, por conseguinte, o relato sofre prejuízos pela limitação objetiva da articulação da fala. A diminuição dos enunciados e a redução das explicações por causa da presença da dor podem provocar comprometimento na transmissão da informação dessa experiência.

Considerações finais O presente estudo, que objetivou apreender o impacto da experiência de ser portador de DTM nas atividades sociais, de lazer e de familiares dos sujeitos, destacou, por meio da análise temática dos enunciados, que os impactos gerais da DTM na vida do sujeito são predominantemente no lazer e no trabalho. E, entre os impactos específicos, temos: mastigar, bocejar, fazer higiene oral, sorrir ou gargalhar e falar.

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STUDART, L.; ACIOLI, M.D.

artigos

A condição dolorosa, além das limitações orgânicas, provoca uma série de comprometimentos socioafetivos. Nesse sentido, a investigação desses impactos possibilita, ao profissional de saúde, assistir o sujeito de forma particular, compreendendo qual o impacto causado por aquela dor e por que isso é relevante para o sujeito, e, desse modo, obter um maior sucesso diagnóstico e tratamento. Trata-se de conhecer o paciente além de seus sintomas. Esse conhecimento, por sua vez, necessita, entre outros fatores, de um processo comunicativo eficiente. É necessário que o conteúdo dos discursos seja compartilhado e atinja seu objetivo de constituição do produto de interação entre interlocutores. Sendo assim, espera-se que estudos como estes, que se destinam a investigar os enunciados dos sujeitos com dor crônica, propiciem um melhor entendimento sobre a comunicação dos aspectos orgânicos e psicossociais da dor, mas, sobretudo, sirvam para implementação de programas de incentivo à interação profissional de saúde/paciente.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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STUDART, L.; ACIOLI, M.D. Comunicación de dolor: un estudio sobre las narraciones acerca de los impactos de los trastornos temporomandibulares. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.487-503, abr./jun. 2011. Interés por la realización de investigaciones sobre el dolor y la calidad de vida han sido frecuentes en la salud. La mayoría tiene por objeto el análisis cuantitativo. En consecuencia, existe una demanda para desarrollar métodos de investigación, utilizando instrumentos que focalicen la perspectiva del sujeto y que permitan una mejor comprensión de la experiencia del sufrimiento. Esa investigación tuvo como objetivo estudiar las narraciones de los sujetos con trastorno temporomandibular relacionadas con el impacto del dolor en las actividades sociales, de tiempo libre y en la familia. Para la constitución del corpus se utilizaron las entrevistas semi-estructuradas, grabadas y transcritas. La discusión de los resultados se basó en análisis de contenido. Los resultados indicaron que el impacto general de la pena de trastorno temporomandibular en la vida del sujeto está en su mayoría en el ocio y el trabajo. Impactos específicos incluyen masticar, bostezar, hacer la higiene oral, sonreír y hablar.

Palabras clave: Comunicación. Dolor orofacial. Narrativas. Calidad de vida. Recebido em 17/06/2010. Aprovado em 18/10/2010.

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Acupuntura en un servicio hospitalario en Argentina: experiencias y perspectivas de los usuarios*

Betina Freidin1 Rosana Abrutzky2

FREIDIN, B.; ABRUTZKY, R. Acupuncture in a hospital setting in Argentina: users’ experiences and perspectives. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.505-18, abr./jun. 2011.

We investigate the experiences and perspectives of users of a public hospitalbased service of acupuncture located in the Northwest region of Argentina. In 2005 we interviewed 18 patients. They use acupuncture for chronic conditions, mostly to alleviate pain-- although several extended its use over time to treat other health problems—because of the limited efficacy experienced with biomedicine and the adverse effects of medications, or to avoid surgical interventions. They incorporate acupuncture into pluralistic health care strategies, which in addition to biomedicine typically include other unconventional medicines. The hospital context facilitates the use of an alternative medicine, and some patients find in the service guidance to “negotiate” treatments with conventional physicians. The organizational efficiency and the doctors’ commitment to their work were highly valued. Due to the increasing demand for treatments in a context of scarce resources, patients worry that the availability of appointments and doctor-patient interactions may be affected.

Indagamos las experiencias y perspectivas de los usuarios de un servicio hospitalario público de acupuntura del noroeste argentino. Basamos el análisis en 18 entrevistas semi-estructuradas realizadas en el año 2005. Los entrevistados recurren a la acupuntura por dolencias crónicas, especialmente como paliativo del dolor, aunque varios extienden su uso para otros problemas de salud, frente a la ineficacia y/o efectos adversos de los tratamientos biomédicos, o para evitar cirugías menores. Incorporan la acupuntura a estrategias pluralistas de cuidado que junto con la biomedicina incluyen típicamente otras medicinas no convencionales. El contexto hospitalario facilita que prueben una medicina foránea. Varios usuarios encuentran el servicio de asesoramiento para “negociar” los tratamientos con sus médicos convencionales. Destacan la eficiencia organizativa del servicio y el compromiso de los médicos. Ante la demanda creciente de atención en un contexto de escasez de recursos advierten que ésta puede afectar la disponibilidad de turnos y la interacción médico-paciente.

Keywords: Complementary and alternative medicine. Integrative medicine. Acupuncture. Public health sector.

Palabras clave: Medicina alternativa y complementaria. Integración. Acupuntura. Servicios de salud públicos.

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* Este estudio fue financiado por la Universidad Brandeis (Janes´s Travel Grant, summer 2005) y los aspectos éticos del mismo revisados y aprobados por el Institutional Review Board de dicha universidad. Una versión anterior de este trabajo, “¿Medicina alternativa y complementaria para todos? La experiencia de los usuarios de un servicio hospitalario de acupuntura en Argentina”, fue presentada en el XXVII Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS), Buenos Aires del 31 de agosto al 4 de septiembre de 2009. 1 Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas, Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires (UBA). Uriburu 950, Piso 6, CABA, Argentina. freidinbetina@gmail.com 2 Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, UBA.

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Introducción La literatura documenta que las medicinas alternativas y complementarias (MACs) son ampliamente utilizadas en Argentina fuera del sistema de salud oficial; sin embargo, poco sabemos sobre las perspectivas y experiencias de los usuarios cuando éstas ingresan al sector público. Las investigaciones sobre el uso de medicinas no convencionales entre los sectores sociales más desfavorecidos se han centrado en el autocuidado, la medicina popular o tradicional y la religiosa (Idoyaga Molina, Luxardo, 2005; Idoyaga Molina, 2002; Viturro, 1998, entre otros). En este artículo indagamos la utilización de la acupuntura entre dichos sectores en un servicio hospitalario. Se trata de una MAC asociada al consumo terapéutico de la clase media y alta por factores culturales y económicos (Freidin, Abrutzky, 2010; Carozzi, 2000). Debido al ingreso, aunque muy lento, de la acupuntura en el sistema de salud oficial, especialmente en el ámbito público, el propósito de este artículo es dar visibilidad a la experiencia de la utilización de acupuntura entre usuarios “atípicos”.

Contexto institucional y legal de la acupuntura en Argentina La Organización Mundial de la Salud (OMS) ha documentado que la creciente difusión y utilización de MACs es un fenómeno global y ha ejercido un rol activo para incorporarlas en los sistemas de salud en los distintos contextos nacionales, atendiendo a sus realidades socio-culturales y siguiendo criterios de uso racional y seguro (Freidin, Abrutzky, 2010). En el ámbito regional, un Grupo de Trabajo de la OPS y la OMS en el año 1999 recomendó promover actividades que apoyen el mejor conocimiento de las MACs con el fin de identificar estrategias que contribuyan a la organización y prestación de sistemas de salud integrales y culturalmente apropiados en las Américas (OPS, 2002). Pese a estos esfuerzos, y a diferencia de lo que ocurre en varios países desarrollados, las iniciativas de los gobiernos para integrarlas en los sistemas de salud en los países de la región, en el nivel de la atención primaria, han sido escasas. Pocos han desarrollaron políticas nacionales en la materia, destacándose entre ellos Cuba, Perú, y Bolivia (OPS, 2002). En Argentina la integración de medicinas no convencionales en el sistema de salud oficial ha sido excepcional, siendo la acupuntura la que en los últimos años ha avanzado en esta dirección (World Health Organization - WHO, 2005; Organización Panamericana de la Salud, 2002). Introducida en círculos médicos durante los ´50, la acupuntura es una de las pocas MACs reguladas en la Argentina. Aunque no existe una ley nacional sobre el ejercicio de la acupuntura, en el año 2001 el Ministerio de Salud de la Nación estableció mediante la Resolución 997 que la acupuntura es un “acto médico” que sólo podía ser realizado por los profesionales de la salud regidos por la Ley 24.317. Las autoridades sanitarias y Colegios Médicos de la mayoría de las provincias convalidaron esta normativa (WHO, 2005). En el año 2008, la Resolución Ministerial 859 amplió la autorización a kinesiólogos y fisioterapeutas. Con estas medidas se favoreció la incorporación de la acupuntura en el sistema de salud tanto en establecimientos privados como públicos, aunque dicha integración ha sido muy lenta y presenta una gran disparidad provincial (Freidin, Abrutzky, 2010). El apoyo del Ministerio ha convergido con algunas pocas políticas de salud provinciales que han propiciado la incorporación de la acupuntura en su esquema asistencial público, tanto en hospitales como en centros de salud comunitarios. Este es el caso de la provincia en donde realizamos el estudio cuyos resultados aquí presentamos.

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FREIDIN, B.; ABRUTZKY, R.

3 Las entrevistas con los usuarios del servicio fueron parte de un estudio más amplio en el que la primera autora entrevistó al personal médico del mismo y a médicos acupuntores de otras localidades.

4 Al inicio de la entrevistas entregamos a cada entrevistado/a una nota de consentimiento informado que garantizaba el anonimato y la confidencialidad en el análisis de la información proporcionada. Para garantizar el anonimato del personal médico del servicio omitimos identificar la ciudad en el que se encuentra.

artigos

Objetivos y metodología El objetivo general del artículo es indagar las experiencias y perspectivas de los usuarios de un servicio hospitalario de acupuntura en una ciudad del noroeste del país3. Más específicamente indagamos: 1) Las razones por las que utilizan acupuntura, y las experiencias con los tratamientos y sus proveedores en un contexto hospitalario; 2) Cómo incorporan la acupuntura en sus estrategias de cuidado de la salud; 3) Cómo caracterizan al servicio de acupuntura y lo distinguen de otros efectores de salud, especialmente públicos; y 4) Cuáles son, desde la perspectiva de los usuarios, las dificultades que enfrenta el servicio ante la creciente demanda de tratamientos. En junio de 2005 concurrimos al servicio durante 10 días lo que nos permitió observar su funcionamiento, especialmente la interacción entre los pacientes, y entre ellos y el staff médico y no médico. Para entrevistar a los pacientes solicitamos a los médicos que los invitaran a participar del estudio, estando la investigadora a cargo del estudio presente durante dicha solicitud para explicar su propósito, que el mismo no había sido solicitado por el servicio ni por las autoridades del hospital, y para asegurar el carácter voluntario y anónimo de la participación4. Realizamos entrevistas cualitativas semi-estructuradas con 18 pacientes. Buscamos cierta variabilidad etárea y de género entre ellos, teniendo en cuenta que según las estadísticas del servicio el 76% de los usuarios son mujeres y el 75% de las consultas corresponde a personas de entre 40 y 79 años. Con el número de entrevistas realizadas logramos saturar las dimensiones de análisis desarrolladas en el presente artículo. Realizamos las entrevistas en un café adyacente al hospital y en un consultorio fuera del servicio que nos fue facilitado para tal fin. Fuera del horario de atención, entrevistamos a los médicos. Si bien en este artículo nos centramos en las perspectivas de los pacientes, dichas entrevistas al igual que las observaciones realizadas en el lugar nos permitieron contextualizar las visiones y experiencias de los usuarios, además de brindarnos información sobre el funcionamiento del servicio. Las entrevistas fueron grabadas digitalmente y desgrabadas verbatim. Las analizamos siguiendo la estrategia del análisis temático cualitativo asistido por el programa ATLAS.ti.

El servicio de acupuntura El servicio opera desde hace varios años en un hospital público en una ciudad del Noreste argentino, y está afiliado al departamento de Clínica Médica. La mayoría de los usuarios residen en la ciudad, aunque concurren personas de otras localidades y provincias limítrofes. El hospital atiende a una población de bajos recursos, en términos de ingresos y de educación formal. Sin embargo, el servicio de acupuntura debido a la creciente difusión de sus actividades a través de la prensa local y del boca en boca atrajo también a usuarios de sectores medios. Al igual que lo ocurrido en otras localidades, tras la severa crisis socioeconómica del 2001-2002 el servicio comenzó a recibir la demanda de atención de sectores medios empobrecidos que recurrieron al hospital público frente a situaciones de desempleo de largo plazo o de gran deterioro del poder adquisitivo de sus ingresos. Según información oficial de la provincia publicada en el año 2006, basada en datos del INDEC del 2001, el 48, 22% de la población no tenía cobertura médica de obra social o plan médico. Esta situación se ve reflejada en nuestras entrevistas del 2005: de los 18 entrevistados, 8 accedían a servicios de salud únicamente en el sector público (hospitales y centros de atención primaria), COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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7 tenían cobertura a través de obras sociales nacionales o de la provincia, y sólo tres contaban con cobertura de medicina prepaga. El servicio funciona de lunes a viernes por la mañana; cuando realizamos el trabajo de campo trabajaban en él cuatro médicos con dedicación parcial, y otros dos profesionales adscriptos concurrían una vez a la semana. Opera como consultorio externo, con un sistema de turnos que incorpora paulatinamente nuevos pacientes. Se otorgan aproximadamente 56 turnos por día, cada uno de 30 minutos. Las nuevas admisiones se realizan dos veces por mes. Tras la entrevista de admisión con el director del servicio, se estructura para cada paciente un cronograma de turnos según su dolencia y gravedad. Si bien una vez admitidos los pacientes ven asegurada la continuidad del tratamiento (que inclusive puede tener una frecuencia semanal de tres sesiones), en la práctica ellos se ven limitados para realizar consultas preventivas, ya que cuando la situación del paciente mejora, el staff va espaciando sus turnos de manera de poder dejar horarios libres para nuevos pacientes. El servicio atiende gratuitamente a los pacientes. Esto no fue siempre así ya que cuando los hospitales públicos fueron arancelados, se cobraba un bono de $ 3 por sesión, al igual que en los restantes servicios. Los entrevistados más antiguos no resaltaron este factor como un elemento decisivo en la continuidad del tratamiento, aunque veían como muy positivo que actualmente fuera gratuito, especialmente si tenían un costo considerable de traslado y concurrían al servicio varias veces por semana, y estaban desocupados o tenían ingresos muy bajos.

Características de los entrevistados Los pacientes que entrevistamos tienen entre 26 y 73 años (la edad promedio es de 50.8 años). 13 son mujeres y 5 son varones. Su nivel de educación formal es variado: 2 no completaron la escuela primaria, 6 completaron estudios primarios y/o iniciaron el secundario, 3 completaron dicho ciclo, 5 iniciaron estudios universitarios o terciarios que no completaron, y 2 completaron carreras universitarias. En cuanto al perfil laboral, 2 de los entrevistados son profesionales en actividad, 4 perciben jubilaciones o pensiones, 2 están desocupados, 3 mujeres se definen como amas de casa, y los restantes 7 desempeñan ocupaciones u oficios, en relación de dependencia o por cuenta propia, en tareas manuales de baja calificación (tejedora, modista, remisero, o venta de ropa). La antigüedad de los entrevistados como usuarios del servicio es muy dispar (entre 2 sesiones y 14 años). Seis entrevistados fueron derivados al tratamiento de acupuntura por otros médicos, entre ellos tres profesionales que conocían o practicaban acupuntura. Los médicos del servicio destacaron que pese a que el mismo había sido oficializado desde hacía varios años por las autoridades sanitarias de la provincia y del hospital, después de haber tenido un estatus inicial de práctica experimental, este hecho no resultó en un aumento de derivaciones formales por parte de colegas de otros servicios. De hecho, la mayoría de los pacientes llegó al servicio a través de sus redes personales, por recomendación de familiares, vecinos y conocidos que eran pacientes del mismo. Un entrevistado se enteró de su existencia por los medios de comunicación locales, mientras que otro recurrió al servicio aconsejado por una sanadora espiritual (ver más abajo, cuando describimos el uso de otras medicinas no convencionales por parte de los pacientes).

Los motivos de consulta y las razones para utilizar acupuntura Los motivos de salud por los cuales los pacientes realizaron la primera consulta son variados, aunque predominan los problemas crónicos. Más de la mitad de los entrevistados buscaban paliar dolores crónicos producidos por artrosis, artritis, y problemas de columna. Todos ellos habían utilizado tratamientos paliativos biomédicos, y en algunos casos otras MACs, con los que experimentaron limitada o nula eficacia. Los entrevistados mencionaron en varios casos además de las dolencias

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físicas las consecuencias anímicas que les producía el dolor cónico (falta de voluntad y desánimo, mal humor, y depresión). Asimismo, destacaron los efectos adversos de la medicación farmacológica que se prescribe para este tipo de dolencias (ej. desordenes digestivos). Evitar una intervención quirúrgica (por cálculos renales, varices, o túnel carpiano) también motivó la búsqueda de una alternativa terapéutica no convencional. Quienes recurrieron a la primera consulta para tratar problemas alérgicos o respiratorios (asma) mencionaron especialmente los efectos negativos del consumo de corticoides como un elemento determinante a la hora de tomar la decisión de probar una terapia no convencional. En general los efectos iatrogénicos de la medicación farmacológica fueron mencionados por los entrevistados como una de las razones que los llevaron a la acupuntura, y consecuentemente, como veremos, consideraron como un gran beneficio del tratamiento poder disminuir o abandonar la utilización de fármacos. En tres casos los padecimientos psíquicos (stress, depresión, insomnio) motivaron la primera consulta, combinados en un caso con neuralgias, en otro con problemas circulatorios, y en un tercero con dolores articulares crónicos.

La eficacia del tratamiento desde la experiencia de los pacientes Excepto en un caso, los entrevistados experimentaron una alta eficacia con el tratamiento de acupuntura. Algunos enfatizaron el hecho que para su dolencia crónica no existía cura pero que la acupuntura les proporcionó un gran alivio, disminución o desaparición de los síntomas y les permitió mejorar notoriamente su calidad de vida y funcionalidad en la vida diaria. Como explica una paciente de 26 años que padecía artrosis desde la adolescencia: “Me cansé de probar cosas que no funcionaron y al encontrar algo que funciona, uno eso lo resalta. […] y uno busca el alivio, el alivio del dolor porque eso es la enfermedad en sí, un alivio al dolor terrible en el hueso y uno busca alivio para ese dolor y con la acupuntura lo conseguí, no del todo, o sea, no me sacó todo, todo el dolor, pero me sacó, me alivió bastante, bastante. […] Esto funciona, por fin hay algo que funciona, encuentro algo que funciona, que me ayuda”. (E07)

El aumento en la movilidad y la disminución del dolor fueron motivos suficientes para continuar con el tratamiento, sobre todo cuando los tratamientos convencionales mostraron limitada o nula eficacia. Así lo destaca una paciente de 70 años que sufre de artrosis: “El doctor me dijo que como antes no voy a hacer las cosas, con este problema no, yo cocino algunas cositas, pero limpiar la casa, limpiar el piso, lavar ropa grande eso no puedo, no, ropa chica sí. […] yo, como le dije, no podía caminar, en cambio ahora tengo una mejoría de 100%”. (E17)

En todos los relatos, los pacientes resaltaron que la acupuntura no produzca los efectos secundarios de los tratamientos farmacológicos, enfatizando el carácter de “natural” e inocuo de este tipo de medicina. “Es lo único sano, es una cosa natural, digamos, ¿qué puede afectar?”, comenta una paciente de 63 años que padece de depresión y artrosis. Otra entrevistada de 46 años que padecía la misma enfermedad articular también se explaya sobre la ausencia de efectos adversos en el tratamiento, lo que le parece “milagroso” frente a los tratamientos convencionales: “La acupuntura me hizo pasar el dolor y dejar los medicamentos, que para mí eso fue milagroso, que dejés de tomar medicamentos es, si yo vivía enferma del estómago, de los nervios, todo, y era de la cantidad de remedios que tomaba”. (E11)

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Otros entrevistados destacaron que la acupuntura es una opción terapéutica no invasiva y optan por probarla frente a la prescripción de una intervención quirúrgica. En un caso, el propio médico de cabecera de una mujer de avanzada edad que sufría túnel carpiano le recomendó el tratamiento para evitar el riesgo de una cirugía. Pero, en general, son los mismos pacientes los que buscan segundas opiniones médicas y tratamientos menos agresivos, aconsejados por familiares y conocidos, y/o médicos allegados con conocimiento de acupuntura. Una paciente de 41 años que tenía cálculos renales y a la que el urólogo de otro hospital le había prescripto una operación convencional (por problemas económicos la paciente no podía solventar a una litotricia) buscó otras opiniones profesionales: “El urólogo vio los estudios y ahí nomás me quería operar, pero yo no me conformo con una primera opinión. Comencé a consultar con amigas que son estudiantes de medicina y he empezado a preguntar en los centros de salud”. (E08)

Su madre le recomendó el servicio de acupuntura. Después de dos años de tratamiento observó que no sólo tenía efecto analgésico, sino que los cálculos se habían reducido en tamaño y cantidad: “Yo pienso que la operación sería una última instancia, creo que un médico tiene que ver primero cualquiera otra posibilidad antes de operar. […] Porque no es fácil que te metan un cuchillo en tu cuerpo”. (E08)

Además de una mejoría para el problema específico por el que iniciaron el tratamiento, varios entrevistados resaltaron “beneficios adicionales”, tales como mejora del ánimo y disminución de la ansiedad, mejor humor, y una sensación general de bienestar. Los más entusiastas utilizaron expresiones tales como “es mi salvación”, “soy otra persona”, “es una bendición”, “me ayuda a llevar una vida digna” para describir la eficacia del tratamiento. Sólo un entrevistado no percibió mejora alguna atribuible a la acupuntura para su problema de salud, pero igualmente continuó el tratamiento ya que los médicos del servicio le habían anticipado que su caso no era fácil (rehabilitación por parálisis facial parcial). La mayoría de los entrevistados expandió el uso de la acupuntura a dolencias diferentes de aquella por la cual realizó la primera consulta. En algunos casos, durante la entrevista de admisión se manifiesta que tienen otras dolencias para las cuales la acupuntura podría proporcionar alivio o cura. En otros casos, los pacientes mismos al familiarizarse con el tratamiento y comprobar su eficacia les piden a los profesionales que los ayuden a solucionar otros problemas de salud. La mayoría de los entrevistados que expandieron el uso de la acupuntura lo hicieron para problemas psíquicos/anímicos y/o gastrointestinales. Dolores menstruales, incontinencia urinaria, disminución de peso, várices y sinusitis son otras condiciones para los cuales los pacientes ampliaron el uso de la acupuntura.

Las prácticas de integración terapéutica de los pacientes y el rol facilitador del contexto médico-hospitalario La totalidad de los entrevistados utilizan la acupuntura de manera complementaria a la biomedicina. Esto es así porque combinan el tratamiento de acupuntura con los de la medicina convencional para tratar un mismo problema de salud, y/o porque continúan visitando a médicos especialistas o generalistas para tratar otras dolencias o por consultas preventivas (chequeos ginecológicos, de colesterol, etc.). Así como observamos el uso extendido a lo largo del tiempo de la acupuntura para tratar varios problemas de salud, algunos entrevistados, sin embargo, utilizan la acupuntura en forma limitada porque encuentran respuestas satisfactorias en la biomedicina para otras dolencias. Una paciente de 70 años que recurrió a la acupuntura para tratar un cuadro de estrés da cuenta del este uso restringido:

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“No la he usado para otros problemas de salud, sólo para la parte anímica. Y no, porque otros problemas, digamos, de gastroenterología que tengo, me atiende el gastroenterólogo y ando bien con la medicación”. (E10)

Una paciente de 49 años recurre a la acupuntura sólo para el alivio de dolor crónico de columna: “Yo tengo mi ginecóloga, tengo mi cardiólogo, [el hecho de estar haciendo acupuntura no implica] decir que no voy a ir más [a verlos]”. (E02)

El hecho de que los tratamientos de acupuntura sean brindados por profesionales médicos facilita las prácticas de complementación de recursos terapéuticos generalmente iniciada por los propios pacientes (como ya lo señalamos, muy pocos llegan al servicio por una derivación médica formal). Los entrevistados comentan que no encuentran dificultad en compartir con su médico especialista o generalista que están haciendo acupuntura, encontrando creciente aceptación de su parte tanto de la acupuntura como del servicio. El contexto institucional facilita las estrategias de integración terapéutica de los pacientes, ya que varios de ellos se tratan con otros profesionales del mismo hospital. Incluso si los médicos no pertenecen al establecimiento, existe la posibilidad de articular estrategias de tratamiento. Los entrevistados ven esta posibilidad de coordinación como una gran ventaja para el cuidado de su salud. Una entrevistada de 26 años nos relata su experiencia: “[La medicación para la artrosis] me trajo problemas al estómago […].Después empecé a ver al Dr. X, queríamos que trabajen en conjunto con mi reumatólogo, que se conocen entre ellos, y yo le comenté a mi reumatólogo que estaba yendo a acupuntura y me dijo “está bien, si a vos te hace bien seguí”, y bueno, y ahí empezamos a bajar las dosis de los medicamentos, algunos los sacamos”. (E07)

Los entrevistados consideran además que los médicos acupuntores pueden guiarlos en cuanto a la atención biomédica que reciben en otros servicios, lo que los ayuda a ser más demandantes cuando interactúan con sus médicos “ortodoxos”. Como lo relata una entrevistada, en el servicio los médicos contemplan el cuadro general del paciente, superando la visión reduccionista de los especialistas. Esta visión integradora se ve facilitada por la formación en clínica médica o en medicina familiar de los médicos, además de su especialización en acupuntura que es una medicina holística. Una entrevistada de 41 años que sufría de varios problemas de salud crónicos (anemia por mioma uterino, cálculos renales y trastornos anímicos) y por los cuales consultaba a diferentes especialistas ortodoxos, valoró especialmente el enfoque integrador y la orientación que encontró en el servicio: “No sé si será la provincia o qué, acá cada médico está en lo suyo nada más, no van un poquito más allá. [En cambio en el servicio] te preguntan y por ahí te orientan, “¿cómo no le han hecho este estudio?, ¿cómo no le han hecho este otro?”, entonces vos vas y le preguntás al médico de vuelta, “doctor, ¿por qué no me ha hecho tal cosa?”- “ah, no, ah, no me di cuenta, se me ha pasado, o no es necesario”- te dicen - . Pero uno ya va más o menos sabiendo, y siempre que me he hecho un estudio, por más que sea de sangre, yo siempre lo traigo y lo hago ver al doctor, acá en acupuntura, y él va anotando y registrando en la historia clínica”. (E08)

De este modo los entrevistados consideran que pueden ejercer más control sobre el cuidado de su salud. Cuando interactúan con los médicos convencionales, este margen de maniobra se traduce en la percepción de una mayor capacidad para demandar y negociar los tratamientos. Una entrevistada de 63 años que utilizaba acupuntura para sobrellevar el stress y la depresión, y que había experimentado importantes efectos adversos con la medicación psiquiátrica, comenta:

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“La medicación psiquiátrica me hace mal al estómago, no la tolero, entonces el psiquiatra ya no sabía que es lo que me iba a dar. Le digo, “no me dé la receta porque no lo voy a comprar”. […] Un día le digo, “doctor yo le voy a contar algo no sé si se va a reír o qué me va a decir […] yo me estoy haciendo acupuntura”, “no me digas” […] le digo - “no se gaste en conseguirme pastillas” […] “querés que te diga una cosa, seguí con la acupuntura -me dice-me parece muy bien””. (E10)

Además del uso complementario de la acupuntura y la biomedicina, la mayoría de los entrevistados (15) utilizaban, o habían utilizado anteriormente, otras medicinas no convencionales en sus estrategias de cuidado de la salud. Entre ellas, la homeopatía, la medicina tradicional local, prácticas de autocuidado, y la medicina religiosa. Utilizan múltiples modalidades terapéuticas, sucesiva o simultáneamente, según su disponibilidad y accesibilidad, familiaridad, y siguiendo su criterio - y la de su entorno social - sobre el uso seguro y apropiado de las mismas. Así nos lo explicó una paciente muy conocedora de la herboristería local, que concurría al servicio desde hacía varios años para el alivio del dolor de columna: “En vez de hacer bien los remedios de tanto tomar ya se intoxica el cuerpo […] yo no soy de esas de tomar mucho remedios. […] como yo me he criado en el campo […] [donde] sacan todo de la parte natural de las plantas […] uno a veces las conoce a las plantas y puede tomarse un té, por ejemplo [para] un dolor de estómago puede tomar un té de poleo [pero] no tomar de más […] hay que ser cauteloso en todas las cosas”. (E15)

Y también nos comentó una paciente de 26 años sobre sus plegarias para sobrellevar crisis asmáticas: “Cuando tengo estas crisis de asma [le pido] por favor San Expedito que pueda respirar, porque es como que realmente me ahogo. […] Me ayuda, sí […] me alivia”. (E05)

El uso complementario de medicinas no convencionales para el tratamiento de la misma o diversas dolencias está documentado en estudios extranjeros (Barnes, Bloom, Nahin, 2008; Astin, 1998; Sharma, 1996, entre otros) y nacionales (Freidin, Abrutzky, 2010; Idoyaga Molina, Luxardo, 2005; Idoyaga Molina, 2002). Nuestro trabajo corrobora el pluralismo terapéutico entre los usuarios del servicio en un área geográfica en la que estas medicinas coexisten con la medicina convencional en el sistema etnomédico local (Idoyaga Molina, 2002). Si bien la mayoría de los entrevistados incorporan la acupuntura a un patrón ya pluralista de cuidado de la salud, en general, se trata de una medicina foránea sobre la cual tenían poco conocimiento, les era culturalmente distante, y que les generaba ciertos temores (“miedo a los pinchazos”). Sin embargo, el contexto hospitalario en el que se brindan los tratamientos les inspiró confianza y aumentó la credibilidad en la acupuntura; y las experiencias positivas de personas conocidas, además del acceso gratuito, hicieron que se animaran a probarla y a testear su eficacia.

¿Cómo evalúan los entrevistados al servicio de acupuntura dentro del sistema de atención pública de la salud? Confort y eficiencia organizativa En comparación con otros servicios públicos de salud, o de la atención brindada por el PAMI, los entrevistados destacaron como aspectos positivos la organización del servicio y el hecho que los tratamientos se brinden en un sitio confortable. Así, al evaluar la calidad de la atención del servicio

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de acupuntura destacaron como factores positivos diferenciales el hecho que se cumplan los horarios programados de los turnos, la posibilidad de recibir los tratamientos en un lugar con calefacción, ventiladores, y con cortinas para mantener la privacidad de los pacientes mientras son atendidos en boxes individuales, así como la higiene del lugar: “Acá yo me siento bien porque es un servicio público y en la Argentina no tenemos grandes cosas públicas, estamos acostumbrados a que a veces nos atienden en el pasillo […]. Por ejemplo me toco ir a la guardia del [hospital X], que es un entidad publica de acá; fui a la mañana, me llevaron en una ambulancia porque estaba deshidratada y me tuvieron en una silla hasta las once de la noche, no me habían registrado en los libros […]. Entonces venir acá y tener la camilla para mí es maravilloso […].O por ejemplo, vamos a un sanatorio que nos corresponde por PAMI y nos atienden de favor. Entonces yo acá estoy muy cómoda, me siento muy cómoda”. (E10)

Aunque las cortinas de los boxes para los tratamientos garantizan la privacidad visual, desde cada box se escucha lo que se habla en los aledaños y en el pasillo dentro del servicio que sirve como sala de espera. Para nuestra sorpresa, el hecho que se escuchen las conversaciones no fue visto como un problema. Algunos pacientes dijeron que no les molestaba o que no les prestaban atención porque se relajaban durante la sesión de acupuntura; en otros casos, incluso, lo veían como un agregado aprovechable o divertido a la situación de tratamiento. La socialización de las conversaciones entre los médicos y los pacientes lleva además a que éstos puedan adquirir información adicional acerca de los beneficios terapéuticos de la acupuntura que no eran de su conocimiento. Los entrevistados destacaron esta situación como una importante fuente de información para sus estrategias de complementación terapéutica. Sin embargo, lo más valorado por los pacientes como característica extraordinaria del servicio fue la eficiente organización del sistema de turnos, y la puntualidad y compromiso por parte del personal médico para con los usuarios. Los turnos se respetan, el personal médico cumple su horario, y los boxes siempre están ocupados: “La gente que viene consigue turno, es bien atendida porque los médicos son fabulosos, se quedan después de hora, es la 1 de la tarde y si ellos tienen gente te atienden. Atienden a muchísima gente por día […] si te levantas de la camilla, ya esta otro paciente. O sea, ellos sí que trabajan”. (E11)

5 Numerosos estudios sobre satisfacción de los usuarios con los servicios de salud públicos documentan estas deficiencias (Cerrutti, Freidin, 2004; Bianconi et al., 2000; Ramos, Pantelides, 1990; Llovet, 1984, entre otros).

En contraste con estas condiciones, los entrevistados relataron experiencias frustrantes en otros servicios hospitalarios, o en la atención por obras sociales y el PAMI, en las cuales enfrentan esperas larguísimas para conseguir un turno, los horarios no se cumplen o los turnos se cancelan sin previo aviso5. El cumplimiento del horario de atención y de los turnos en el servicio fue visto como un gesto de respeto y cuidado del paciente. Los médicos son concientes de la importancia que los pacientes dan a este aspecto de la atención en un contexto hospitalario, y se esfuerzan por mantener esta característica distintiva del servicio. Al respecto nos comentó el director:

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“El paciente está acostumbrado a un trato despersonalizado, [y en el Servicio] se va con un papelito que dice lo esperamos el miércoles a la mañana o el jueves a tal hora, y no tiene que hacer cola, como si fuera una consulta privada con su turno esperándolo. Y comprueba que efectivamente lo estamos esperando a esa hora, y comprueba que a las 7:30 que empieza la atención estamos acá […]. Yo a veces los he escuchado [en la sala de espera] “¿Usted ha visto alguna vez alguien [el Director] que venga tempranito y sea el ultimo en irse?”. Ellos sienten que se los trata de otra manera […]. Creo que eso los contiene, los hace sentir bien. Y a eso súmale que es gratis y que encuentran una solución que no venían encontrando en la medicina convencional”.

La calidad de la atención médica: Competencia técnica e interaccional, y pasión por la tarea Además del hecho que se respeten los turnos, los entrevistados valoran muy especialmente el trato que reciben de los médicos en el servicio. Ponen de relieve la atención personalizada y centrada en el paciente. En este sentido, además de la competencia técnica de los profesionales, aluden a la competencia interaccional y a sus cualidades personales. Destacan que los médicos se interesan por los pacientes, hablan con ellos, son amables y están dispuestos para atenderlos, características que desde la perspectiva de los entrevistados también distingue al personal del servicio del de otros efectores públicos. Una entrevistada resaló que la dimensión afectiva de la relación médico-paciente tiene en sí misma efectos terapéuticos: “Cuando Ud. encuentra un médico amable que habla con Ud., que la trata como a Ud. le gusta, que está preguntándole todo, es algo que a todos nos gusta. Porque a veces a los pacientes no tanto les hace bien los medicamentos como la charla del médico”. (E03)

Una paciente que se había atendido en forma privada con uno de los doctores, incluso comentó que “es la misma atención que tiene en su consultorio” (E10), y otra nos contó que si durante el tratamiento siente alguna incomodidad con las agujas, “viene cualquiera, no es sólo el médico que te ha atendido, están todos ahí para atenderte” (E11). Cabe aclarar que como contactamos a los entrevistados a través del servicio este hecho puede introducir un sesgo positivo en sus opiniones sobre el mismo. Además de la competencia técnica y para relacionarse con los pacientes, los entrevistados destacaron la vocación, compromiso, y “pasión” por su trabajo. Así algunos se refirieron a ellos como profesionales “enamorados de su trabajo” o “locos por la acupuntura”. Un entrevistado se explayó al respecto: “Ese bohemio del profesional que quiere con el esfuerzo de su estudio sacar a alguien de un problema […] [el jefe del servicio] está rodeado de gente de su calaña, del palo de él, sí, sí, están todos locos, locos por la acupuntura, locos por imponer su verdad [E: sí, son muy comprometidos] - Sí, exactamente, esa es la palabra, y se nota, lo nota la gente, lo nota en la piel”. (E16)

Dificultades para atender a la creciente demanda y cómo afectan a los usuarios del servicio: la escasez de recursos y el ritmo hospitalario Ante la pregunta sobre qué cosas cambiarían o se podrían mejorar, los entrevistados hicieron referencia a varios aspectos estructurales del servicio: la necesidad de contar con mayor espacio físico, más boxes para los tratamientos, y más personal médico rentado. Estos cambios permitirían absorber la creciente demanda de tratamientos, estimulada tanto por la difusión en los medios de prensa locales de las actividades del servicio como por la gran publicidad “del boca en boca” que hacen propios usuarios. Si bien la difusión de información sobre la existencia del servicio es vista como algo muy positivo ya que brinda la posibilidad a mucha gente de acceder a una medicina que de otro modo no estaría a su 514

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alcance, por otro lado, los usuarios advierten que la demanda masiva presenta varias dificultades. La escasez de recursos materiales y humanos en un contexto de sobre-demanda de tratamientos incide en la cantidad de turnos disponibles y en su distribución entre nuevos ingresantes y los pacientes ya incorporados al servicio. En primer lugar, los entrevistados mencionan las crecientes dificultad de acceder a la primera entrevista de admisión, “[Conseguir turno] últimamente no es muy fácil porque está, está viniendo mucha gente, muchísima gente, gente que está esperando un mes” (E15). En segundo lugar, el ingreso de nuevos pacientes limita la cantidad de turnos disponibles para aquellos que ya son pacientes regulares del servicio y el tiempo que disponen los médicos para atender a cada paciente. En este contexto restrictivo, los entrevistados refirieron a la existencia de una regla implícita de solidaridad consistente en no “abusar” en la solicitud de turnos, de no faltar a las sesiones programadas, y de ser puntuales. Inclusive algunos comentaron que se contenían de solicitar turnos a menos que sus síntomas fuesen muy serios, o no pudieran soportar los dolores. Por ejemplo, una paciente con cálculos renales a veces tomaba tés medicinales como un sustituto para controlar el dolor, mientras esperaba el día del turno. Algunos usuarios evalúan que la incorporación de nuevos pacientes podría eventualmente redundar negativamente en la calidad de la atención. Así, un entrevistado planteó su duda acerca de que los médicos podrían verse obligados a acortar el tiempo de cada sesión con el objetivo de poder atender a una mayor cantidad de pacientes. Esta observación sobre el ritmo o el “apuro” de los médicos lleva a que en muchos casos los pacientes prefirieran no hacerles preguntas sobre cómo funciona la acupuntura o se inhiban de iniciar una conversación para no “sacarles” el escaso tiempo del que disponen: “No se puede [preguntar más] porque tienen tantos pacientes y tienen que ir rápido, no se pueden quedar a explicar al paciente […]. No me da para decirle “¿doctor me podría explicar esto?” Porque él tiene muchos pacientes y el tiempo es realmente importante aquí”. (E07)

La aceleración del ritmo de la atención va en detrimento del trato más personalizado que los pacientes esperan, y que los mismos médicos querrían brindar. En este sentido, uno de los médicos refirió a la necesidad de “ralentizarlo” para alcanzar dicha meta en la atención. La posibilidad de no poder elegir al médico que realizará el tratamiento también fue observado por una entrevistada, pero lo justifica por ser un ámbito público, “para elegir el profesional tenés que ir al consultorio y pagar la consulta” (E09). Para colaborar en la superación de las restricciones existentes en el servicio cuando realizamos el trabajo de campo varios pacientes estaban organizando una cooperadora para reunir fondos y movilizándose con el objetivo de solicitar a las autoridades del hospital la asignación de mayores recursos al servicio. Además de esta iniciativa, algunos entrevistados plantearon la necesidad de incorporar más servicios de acupuntura en otros hospitales y en los centros de salud comunitarios para descentralizar la oferta, favorecer la accesibilidad, y descomprimir de este modo la sobredemanda de tratamientos que observaban en el servicio: “Si pudiera cambiar, que haya en otro lugar, que pongan en otro lugar para que así no sea tan pesado para ellos [los médicos] que los horarios a veces no saben cómo van a acomodarlos con los turnos, que hubiese en otro lugar, en otro hospital”. (E15)

Discusión La oferta gratuita de acupuntura hace accesible a amplios sectores de la población una medicina no convencional de probada eficacia clínica para varias dolencias crónicas. En este sentido, los usuarios de un servicio hospitalario de acupuntura son “atípicos”, ya que utilizan una MAC a la que en el contexto argentino acceden mayoritariamente sectores medios y altos que pueden pagarla en el sector privado.

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Los pacientes que entrevistamos incorporan la acupuntura en sus prácticas de cuidado de la salud - que en muchos casos además de la biomedicina incluye otras MACs, medicinas tradicionales y religiosas, y prácticas de autocuidado - porque la encuentran eficaz y beneficiosa (en múltiples sentidos) y porque les permite eliminar y/o reducir la ingesta de fármacos. No sólo el costo económico del cuidado disminuye sino también los efectos adversos que pueden ocasionar algunos fármacos en el tratamiento de dolencias crónicas. La literatura internacional señala que el uso de MACs expresa una insatisfacción con distintos aspectos de la biomedicina, especialmente para el tratamiento de padecimientos crónicos (Pound et al., 2005; Barnes et al., 2004; Sharma, 1996). Nuestro trabajo indica que los usuarios de acupuntura se resisten a aceptar tratamientos convencionales de limitada eficacia y que les resultan perjudiciales por sus efectos iatrogénicos, o que buscan una solución menos agresiva frente a intervenciones quirúrgicas menores cuando otro camino terapéutico les es accesible. Esta búsqueda expresa el deseo de ejercer un mayor control sobre sus cuerpos y el cuidado de su salud. Un resultado particularmente interesante del estudio es que para los usuarios, el servicio de acupuntura no solamente funciona como un ámbito médico en donde se les brinda una solución para su problema de salud sino también como un espacio de aprendizaje y empoderamiento para ejercer un rol más activo cuando interactúan con los médicos convencionales. Varios usuarios encuentran en los profesionales del servicio la guía y el asesoramiento que les permite percibirse con un mayor margen de maniobra cuando recurren a la medicina convencional, sea para “negociar” tratamientos o para ser más demandantes en cuanto a la atención que se les brinda. En cuanto a las diferencias positivas respecto de la atención en otros servicios hospitalarios, y de obras sociales y del PAMI, los entrevistados señalan la organización eficiente, el respecto y cuidado con los que son atendidos, las características personales de los médicos - en especial el compromiso y la pasión por su trabajo - y la buena disposición del personal administrativo. Pese a las múltiples restricciones de personal y espacio con las que funciona el servicio, los usuarios observan que existe un esfuerzo coordinado para ofrecer una atención de calidad y humanizada. Este esfuerzo redunda positivamente en la continuidad de los tratamientos. Los entrevistados resaltan cómo ha crecido la demanda de tratamientos en el servicio en los últimos años y su impacto en un contexto institucional de escasez de recursos humanos y materiales. Señalan lo limitado de los horarios de atención, la necesidad de contar con más profesionales rentados, y el insuficiente espacio como condicionantes para satisfacer dicha demanda. Por un lado, justifican los problemas de su funcionamiento (demora en el acceso al primer turno, poco disponibilidad de tiempo para con cada paciente) por ser un ámbito público. Incluso se autoregulan para no “abusar” en la solicitud de turnos o en el “uso” del tiempo de los médicos durante las sesiones. Pero, por el otro, también advierten que estos factores afectan la calidad de la atención, especialmente la disponibilidad de turnos y la interacción médico-paciente, y esperan que la sobredemanda pueda descomprimirse asignando más recursos al servicio y mediante la provisión de tratamientos en otros hospitales y centros comunitarios. Esperamos que nuestro estudio contribuya a hacer visible una experiencia de medicina integrativa en el sector público que ha logrado sostenerse en el tiempo gracias al esfuerzo de los profesionales, la gran demanda de los usuarios que encuentran una solución satisfactoria y accesible materialmente para sus problemas de salud, y el apoyo de las autoridades sanitarias de la provincia. Que las MACS sean accesibles para los sectores menos privilegiados dependerá de políticas de salud que permitan y garanticen que estas experiencias de integración dejen de ser una excepción, cuenten con mayores recursos financieros y edilicios, y se difundan en todo el país en el ámbito público.

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Colaboradores Las autoras Betina Freidin y Rosana Abrutzky elaboraron el artículo de manera conjunta. Betina Freidin realizó las entrevistas en el Servicio Hospitalario en el que se llevó a cabo el estudio, y realizó las revisiones del texto.

Agradecimientos La primera autora agradece muy especialmente a los usuarios, al director, a los médicos, y al personal administrativo del servicio de acupuntura por su participación en el estudio, interés en el mismo, y generosa disposición para realizar las entrevistas y observaciones. Ambas autoras agradecen los comentarios y sugerencias de los evaluadores anónimos durante el proceso de referato del manuscrito.

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Acupuntura en un servicio hospitalario en Argentina:...

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FREIDIN, B.; ABRUTZKY, R. Acupuntura em um serviço hospitalar na Argentina: experiências e perspectivas dos usuários. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.505-18, abr./jun. 2011. Investigamos experiências e perspectivas dos usuários de um serviço hospitalar público de acupuntura do noroeste argentino. Baseamos a análise em 18 entrevistas semiestruturadas realizadas no ano 2005. Os entrevistados recorrem à acupuntura por doenças crônicas, especialmente como paliativo da dor, embora vários estendam seu uso para outros problemas de saúde, diante da ineficácia e/ou efeitos adversos dos tratamentos biomédicos, ou para evitar cirurgias menores. Incorporam a acupuntura a estratégias pluralistas de cuidado, que junto com a biomedicina incluem tipicamente outras medicinas não convencionais. O contexto hospitalar facilita o fato de experimentar uma medicina alternativa. Vários usuários buscam o serviço de apoio para “negociar” os tratamentos com seus médicos convencionais. Destacam a eficiência organizacional do serviço e o compromisso dos médicos. Diante da demanda crescente de atenção em um contexto de escassez de recursos os usuários advertem que ela pode afetar a disponibilidade para marcar consultas médicas e a interação médico-paciente.

Palavras-chave: Medicina alternativa e complementar. Integração. Acupuntura. Serviços de saúde públicos. Recebido em 20/04/2010. Aprovado em 28/10/2010.

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artigos

Análise contextual de reinternações frequentes de portador de transtorno mental* Déborah Karollyne Ribeiro Ramos1 Jacileide Guimarães2 Bertha Cruz Enders3

RAMOS, D.K.R.; GUIMARÃES, J.; ENDERS, B, C. Contextual analysis of frequent hospital readmissions of the individual with mental disorder. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.519-27, abr./jun. 2011.

This study analyzed the context of frequent hospital readmissions of individuals with psychic suffering in the following dimensions: immediate, specific, general and metacontextual. Following the contextual perspective proposed by the theoretical framework of Hinds, Chaves and Cypress (1992), the results of the narrative review of the scientific literature were categorized in four subthemes corresponding to the contextual dimensions: 1) the revolving door of psychiatry (immediate contextual level); 2) disarticulation of the mental health care network (specific contextual level); 3) the mad person and madness in the social mental imagery: the hospital as the “healing” place (general contextual level); 4) mental health paradigms: the epistemological dimension of psychiatric knowledge and action (metacontext). The analysis and comprehension of the contexts in which psychiatric hospital readmissions are included are significant so that the advances achieved by the Brazilian Psychiatric Reform and by the National Health System become effective.

Keywords: Mental disorder. Psychiatric hospital readmissions. Deinstitutionalization. Revolving door.

Este estudo analisou o contexto de reinternações frequentes de indivíduos com sofrimento psíquico em suas dimensões: imediata, específica, geral e metacontextual. Seguindo a perspectiva contextual proposta pelo referencial teórico de Hinds, Chaves e Cypress (1992), categorizaram-se os resultados encontrados na revisão narrativa da literatura científica em quatro subtemas referentes às dimensões contextuais: 1) a porta giratória da psiquiatria (nível contextual imediato); 2) desarticulação da rede de atenção em saúde mental (nível contextual específico); 3) o louco e a loucura no imaginário social: o hospital como o lugar da “cura” (nível contextual geral); 4) paradigmas da saúde mental: a dimensão epistemológica do saber/fazer psiquiátrico (metacontexto). Analisar e compreender os contextos nos quais estão inseridas as reinternações psiquiátricas torna-se, na atualidade, aspecto significativo para a efetivação dos avanços conquistados pela Reforma Psiquiátrica brasileira e pelo Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave: Transtorno mental. Reinternação psiquiátrica. Desinstitucionalização. Porta giratória.

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* Produção inédita resultante da disciplina “Análise crítica da prática de enfermagem” do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEnf-UFRN). 1 Mestranda, Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEnf-UFRN). Campus Universitário - Br 101. Lagoa Nova, Natal, RN, Brasil. 59.072-970. deborah_kr@hotmail.com 2,3 PPGEnf-UFRN.

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Introdução A Reforma Psiquiátrica brasileira pautada na desinstitucionalização do indivíduo com sofrimento psíquico, na redução progressiva de leitos psiquiátricos e na ênfase em tratamentos de base comunitária - compreendido como a garantia da livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, comunidade e cidade, além do oferecimento de cuidados com base nos recursos que a própria comunidade oferece -, trouxe novas concepções a respeito da “doença mental” e a desconstrução da ideia do hospital como o lugar da “cura” do louco e da loucura (Brasil, 2010). A desinstitucionalização propõe a redução das internações psiquiátricas que, a partir de então, passam a se configurar como um instrumento clínico terapêutico indicado apenas em casos que exijam proteção da própria vida ou a de terceiros, devendo ser utilizada quando há ruptura no acompanhamento de base comunitária. A decisão do internamento deve ser tomada de forma criteriosa, especificamente em casos necessários, na tentativa de evitar a cronificação do indivíduo e da doença (Castro, 2009). Para dar respaldo ao processo de redução de leitos hospitalares e do tempo de permanência nas instituições, faz-se necessária a construção de uma rede de alternativas à internação psiquiátrica, compatível com as necessidades dos pacientes que estão sendo devolvidos ao convívio familiar e social, para que tal retorno seja feito sem maiores traumas, tanto para o egresso quanto para o familiar cuidador (Parente et al., 2007). A despeito das conquistas e dos avanços advindos da Reforma Psiquiátrica, são evidenciados, por meio de alguns estudos (Castro, 2009; Consoli, Hirdes, Costa, 2009; Parente et al., 2007; Alverga, Dimenstein, 2006; Bandeira, Barroso, 2005), altos índices de reinternações psiquiátricas. A “porta giratória” da psiquiatria, consoante Bandeira e Barroso (2005), configura-se como sendo um fenômeno caracterizado pelas reospitalizações frequentes dos portadores de transtornos mentais, obedecendo a um ciclo recidivo de internação/alta/internação. A percepção de que a “porta giratória” é uma realidade presente nos serviços de saúde mental, tanto em nível local quanto em nível nacional, e que este fenômeno apresenta relevância e pertinência para os estudos acerca da rede de atenção em saúde/saúde mental, nos motivou a refletir acerca desse fenômeno, investigando sua dinâmica e inserção nos diversos níveis de contexto nos quais se desenvolve. Assim, o objetivo deste artigo é analisar o fenômeno das reinternações frequentes de indivíduos com sofrimento psíquico nos níveis contextuais imediato, específico, geral e metacontextual. Utilizamos o referencial teórico de Hinds, Chaves e Cypress (1992), que dividem os níveis contextuais em quatro camadas interativas distintas entre si: o contexto imediato, o contexto específico, o contexto geral e o metacontexto. Vale ressaltar que entendemos os contextos como interligáveis e inter-relacionáveis, no entanto, para melhor compreensão didática, optamos por apresentá-los, neste artigo, seguindo a divisão proposta pelo referencial teórico. O contexto imediato, como o próprio nome referenda, tem como característica principal a imediação, seu foco está no presente e é representado pelo fenômeno em si. O contexto específico é caracterizado pelo conhecimento individualizado e único que engloba o passado imediato e os aspectos relevantes da presente situação, em outras palavras, engloba os elementos que estão presentes no ambiente e influenciam o fenômeno. Os quadros de referência de vida do sujeito, desenvolvidos a partir de suas interpretações derivadas das interações passadas e atuais, constituem o contexto geral - nesta camada, crenças pessoais e valores culturais influenciam o fenômeno em questão. Finalmente, o metacontexto, reflete e incorpora o passado e o presente, além de destacar condições e aprendizados para o futuro (Hinds, Chaves, Cypress, 1992). Seguindo a perspectiva contextual proposta pelo referencial teórico adotado, categorizamos os resultados encontrados na revisão narrativa da literatura científica em quatro subtemas, a saber: 1) a porta giratória da psiquiatria como o nível contextual imediato; 2) a desarticulação da rede de atenção à saúde mental como nível contextual específico; 3) o louco e a loucura no imaginário social: o hospital como o lugar da “cura” como nível contextual geral; 4) paradigmas da saúde mental: a dimensão epistemológica do saber/fazer psiquiátrico como o metacontexto. 520

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artigos

A porta giratória da psiquiatria – contexto imediato do fenômeno das reinternações As novas concepções sobre saúde/doença mental transformaram os modelos de atenção destinados aos indivíduos com sofrimento psíquico. Nessa perspectiva, o modelo asilar/hospitalocêntrico vem sendo substituído por serviços e ações territoriais e comunitárias que potencializam o resgate da cidadania do paciente psiquiátrico egresso daqueles hospitais. Por outro lado, todas as metamorfoses decorrentes dos movimentos da Reforma Psiquiátrica suscitaram desafios para os cuidadores e trabalhadores da saúde mental. Para Gastal et al. (2000), uma das principais dificuldades resultantes dessa transição paradigmática é o paciente de revolving door, ou seja, os usuários das políticas de saúde mental da atualidade, sujeitos ao fenômeno da porta giratória. Revolving door é uma expressão inglesa utilizada para o termo porta giratória (Rotelli, Leonardis, Mauri, 2001). Esse fenômeno vem sendo estudado desde a década de 1960 e configura-se como importante aspecto do atendimento psiquiátrico não anteriormente planejado, mas que surgiu como consequência da mudança do modelo hospitalocêntrico (Gastal et al., 2000). Sabe-se que o paciente de revolving door é aquele admitido e liberado frequentemente no hospital psiquiátrico, porém ainda não existe um consenso entre os autores a respeito da periodicidade dessas readmissões constantes, havendo uma variação na literatura que refere os seguintes parâmetros: entre três ou mais admissões em um período de dois anos; quatro ou mais em um período de cinco anos; quatro internações ou mais sem intervalo superior a dois anos e meio, em um período de dez anos; ou, ainda, quatro ou mais em um período de cinco anos (Parente et al., 2007). Levando em consideração o número de internações e a quantidade de dias de reclusão, atentamos para a grande problemática que envolve as reinternações frequentes de pacientes psiquiátricos. Experiências repetitivas de reclusão podem desencadear rupturas nos laços familiares e na permanência desses indivíduos no seu entorno social; conforme Salles e Barros (2007, p.74), “durante a internação se desaprendem as regras básicas de convivência e ao sair, a pessoa fica marcada pelo estigma e preconceito”. Castro (2009) sugere que a porta giratória ocorre com mais frequência em pacientes crônicos, com maiores comprometimentos e maior tempo de permanência em instituições psiquiátricas hospitalares. Em contrapartida, o autor aponta para a mudança de perfil dos pacientes que estão sendo admitidos, sobretudo, devido: ao aumento da complexidade dos casos, à resistência aos diversos tipos de tratamento, ao aumento de internações por mandatos judiciais e ao aumento no número de primeiras internações. Essa primeira aproximação do nível contextual, referente à porta giratória no fenômeno das reinternações psiquiátricas, é particularmente relevante se considerarmos os demais níveis contextuais na busca do desafio da efetivação teórico-prática da assistência em saúde mental à luz da premissa da qualidade do acesso e do acompanhamento/tratamento no âmbito da atualidade das políticas públicas de saúde mental, notadamente, dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Desarticulação da rede de atenção à saúde mental – contexto específico das reinternações psiquiátricas A rede de atenção à saúde mental no Brasil preconiza uma série de serviços que devem funcionar de forma articulada para maximizar a autonomia e a cidadania da pessoa com sofrimento psíquico, especialmente, aquelas egressas de hospital psiquiátrico, assim como, reduzir o índice de primeiras internações e/ou reinternações psiquiátricas. Atualmente, a rede de serviços e equipamentos em saúde mental dispõe de: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS I e II, CAPS III, CAPSad, CAPSi); Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), subsidiados pelo Programa De volta para casa, que oferece auxílio financeiro para egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos; Centros de Convivência e Cultura; leitos de atenção integral em Hospitais Gerais e nos CAPS III; Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares e Psiquiatria; Programa Permanente para Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica; COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Supervisão Clínico-Institucional dos CAPS; Programa Nacional de Avaliação; a estratégia de Apoio Matricial em Saúde Mental, e os Núcleos de Apoio em Saúde da Família-NASF (Brasil, 2010). A rede, portanto, é constituída por serviços, políticas e estratégias, intenções e gestos fundamentais para a exequibilidade da Reforma Psiquiátrica brasileira, e, consequentemente, para a realização de um processo de desinstitucionalização efetivo do indivíduo egresso de instituição psiquiátrica hospitalar, assim como, para o fomento de ações de promoção da saúde, prevenção e intervenção precoce em saúde mental, buscando o cumprimento da meta de internação como último recurso terapêutico, quando nenhuma outra estratégia alcançou resolubilidade da situação vivenciada, evitando, portanto, o fenômeno da (re)internação psiquiátrica, historicamente associada à pouca resolubilidade e alta cronificação da condição da pessoa internada. A articulação entre os serviços da rede de atenção em saúde mental com os demais serviços e equipamentos de saúde e com os demais setores da sociedade compõe o requisito da intersetorialidade dentro e fora do setor saúde; isso contribui, significativamente, para a conquista mais ampla da atenção psicossocial e da inclusão do paciente psiquiátrico por meio da redução do dispositivo da reinternação psiquiátrica. O que se entende por articulação da rede de atenção à saúde mental? Consoli, Hirdes e Costa (2009) relacionam uma série de ações que, de forma contígua, favorece a articulação da rede de atenção, destacando-se: a gestão competente dos recursos destinados à saúde mental, a quantidade suficiente de serviços substitutivos, o número de leitos psiquiátricos condizentes com o preconizado pela Reforma Psiquiátrica brasileira, além do bom funcionamento do sistema de referência e contrarreferência. Outro fator intrínseco ao bom êxito do funcionamento da rede de atenção é a realização de ações territoriais expressivas e impactantes, desenvolvidas, especialmente, pelo apoio matricial e/ou pelo CAPS, uma vez que, conforme Quintas e Amarante (2008), a proximidade entre este serviço e a comunidade favorece o conhecimento das individualidades e das peculiaridades de cada usuário, o que, consequentemente, facilita a promoção da autonomia dos indivíduos com sofrimento psíquico e seu engajamento no contexto social do qual fazem parte. A acessibilidade, a diversificação das ações, a existência de profissionais qualificados para atender à demanda em saúde mental, e a responsabilidade com a desmistificação/desconstrução do imaginário social acerca do ser louco e da loucura, são outras características de uma rede de atenção articulada (Alverga, Dimenstein, 2006). A articulação desses serviços, equipamentos, saberes e práticas, cada um desempenhando adequadamente sua função dentro do contexto da Reforma Psiquiátrica, contribui para o resgate pessoal e social do usuário na rede de atenção, tanto em processo de desinstitucionalização quanto em fase aguda das psicopatologias, conjuntamente com os profissionais de saúde, a família e a sociedade em geral. Os princípios da desinstitucionalização dos cuidados em saúde mental - tais como a formação de uma equipe multiprofissional, a integralidade na assistência, a corresponsabilidade da equipe vinculada ao território, portanto, a base comunitária, a intersetorialidade e o enfoque interinstitucional respaldam e operacionalizam o apoio matricial que constrói a articulação da saúde mental com a saúde da família, prerrogativa almejada e necessária para se atender à demanda de suporte aos usuários dos serviços e seus familiares (Vecchia, Martins, 2009). Para Pitiá e Furegato (2009), quando as equipes de saúde da família se responsabilizam pelo acompanhamento adequado ao indivíduo com sofrimento psíquico severo, podem ser observados resultados positivos, como: a diminuição no número de reinternações psiquiátricas e a promoção da saúde mental e reintegração social para pacientes psicóticos. Cientes da interdependência entre a efetivação dos dispositivos da reforma psiquiátrica, o êxito da desinstitucionalização, a conquista da redução de internações psiquiátricas e a resolubilidade da articulação da rede de atenção à saúde mental, pressupomos que há relação direta entre o fenômeno de reinternações psiquiátricas (revolving door ou porta giratória) e a desarticulação ou pouca articulação da rede de atenção à saúde mental, apresentando-se, no nível contextual específico, como um indicativo da necessidade premente de organização através da intersetorialidade, dentro e fora do setor saúde, para a consolidação dos avanços e o enfrentamento dos novos desafios trazidos pelo processo de desinstitucionalização em saúde mental.

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O louco e a loucura no imaginário social: o hospital como o lugar da “cura” – contexto geral das reinternações psiquiátricas Desde os primórdios da civilização humana, têm-se relatos de indivíduos portando sintomas psicóticos. As formas de atenção e os níveis de aceitação social dos “loucos” foram se transformando ao longo do tempo, mediante o contexto histórico no qual estavam inseridos. Na Antiguidade, acreditava-se na interferência de entidades sobrenaturais sobre a razão humana, ou seja, os povos entendiam a diferença da razão predominante como um capricho ou um castigo dos Deuses. Já no período hipocrático, o fenômeno da loucura adquire um caráter organicista, no qual era concebida como um desarranjo na natureza orgânica do homem. Na Idade Média, surge o enfoque demonista, período em que a Igreja católica imperou no tratamento do “mal da loucura” através de exorcismos e orações. Por volta de 1800, Pinel destaca-se atribuindo um caráter moral à doença mental, instituindo, assim, o Tratamento Moral, em que a alienação predominante era fruto de causas orgânicas e morais. Assim, o indivíduo deveria receber um tratamento de cunho moral por meio de uma reeducação pedagógica afastada do convívio familiar e das influências sociais (Silva, Zanello, 2010). Neste cenário, o hospital passou a simbolizar o espaço de observação e de “cura” para o alienado. Este ideal de tratamento recluso e disciplinador perdurou no Brasil por cerca de duzentos anos, até a efervescência de movimentos que denunciavam a segregação e os maus-tratos sofridos por pessoas com transtornos mentais internadas em instituições psiquiátricas. No entanto, a despeito das mudanças desencadeadas pela Reforma Psiquiátrica brasileira, as prerrogativas herdadas por cerca de dois séculos de uma cultura hospitalocêntrica permanecem arraigadas no cotidiano de profissionais e serviços, dentro e fora do setor saúde, orientando ações, estigmatizando e rejeitando a diferença trazida pelo sofrimento psíquico como sinônimo exclusivo de incapacidade e periculosidade. Para Amarante (2009), as representações sociais agregam a diferença e a divergência dos indivíduos em sofrimento psíquico à incapacidade social e à impossibilidade de estabelecerem trocas sociais. Desse modo, as estratégias de intervenção, no campo cultural, devem objetivar transformar o lugar da loucura no imaginário social. Destacamos o agravante de que o campo cultural e sua herança hospitalocêntrica impactam o julgamento não só de leigos e da sociedade em geral, mas também do próprio setor saúde e, até, de segmentos dentro da própria área de assistência em saúde mental. Essa constatação histórica e institucional demarca uma maior dificuldade para a apreensão de novos saberes e práticas e, consequentemente, para a exequibilidade da rede de atenção e para o substrato, não de cura, herdado das ciências exatas, mas a noção de convivência propugnada pela Reforma Psiquiatria brasileira como fator desinstitucionalizante e propiciador da autonomia da pessoa com sofrimento psíquico. Diante do exposto, acreditamos que crenças acerca do saber/fazer psiquiátrico contribuem para as reinternações frequentes de indivíduos em sofrimento psíquico. Cardoso e Galera (2009) afirmam que o fenômeno das reinternações psiquiátricas está permeado por representações social, cultural e econômica, tanto dos profissionais que decidem por esse procedimento, quanto dos familiares e sociedade em geral. As sensações de tranquilidade e alívio, experimentadas pelo familiar devido à internação da pessoa com sintomatologia psiquiátrica presente é um fator impactante na preferência de familiares pela transferência total da responsabilidade do cuidado para o hospital, evidenciando a fragilidade do conceito de “cura” da doença mental, que atribui um caráter natural à ruptura dos laços familiares e do convívio social provocados pela internação (Cardoso, Galera, 2009). Isso porque, constata-se, na atualidade, que o isolamento familiar e social da pessoa com sofrimento psíquico, através de longas internações em hospitais psiquiátricos, exacerbou a condição do doente e da doença, contribuindo para o que ficou conhecido como a cronificação da pessoa e da doença - fato desabonador para a condição humana relegada ao esquecimento travestido em um diagnóstico-rótulo que, historicamente, contribuiu para a eleição do objeto patológico em detrimento do sujeito em experiência de sofrimento. Com isso, tem-se a consequência do desejo veemente da cura distante em detrimento da custosa convivência.

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Com a efetivação da rede de atenção, especialmente, por intermédio de ações territoriais no dia a dia de famílias com indivíduos em sofrimento psíquico, as relações seriam menos traumáticas, os cuidadores saberiam lidar melhor com o indivíduo com transtorno mental, evitando recorrer ao hospital, podendo a ideia do hospital como o lugar da “cura” do louco ser desmistificada à luz da compreensão histórica de abusos cometidos em nome de terapêuticas psiquiátricas. No entanto, de acordo com Pitiá e Fugerato (2009), este processo de articulação exige mais do que a criação de serviços substitutivos, a regulamentação das equipes de saúde mental ou a normatização das ações estratégicas. É imprescindível, portanto, a desconstrução de concepções manicomiais, arraigadas em mentalidades de profissionais e familiares, o que influencia, imensamente, a qualidade do atendimento aos indivíduos com sofrimento psíquico.

Paradigmas da saúde mental: a dimensão epistemológica do saber/fazer psiquiátrico – metacontexto das reinternações psiquiátricas Durante muito tempo, a psiquiatria foi norteada pelo positivismo e o cartesianismo. Sob tal orientação, foram priorizadas ações centradas na doença reduzida a uma alteração biológica; o hospital e o saber médico-psiquiátrico foram instituídos, respectivamente, como o lugar e o discurso competentes, fortalecidos pela adesão à terapêutica de reclusão. Essa forma de perceber e orientar as ações da comunidade científica da área tornou-se reconhecida como o paradigma hospitalocêntrico medicalizador (Amarante, 2009). Segundo Khun (1969), paradigma é o conjunto de elementos culturais, conhecimentos e códigos teóricos, técnicos ou metodológicos, compartilhados pelos membros de uma comunidade científica, assim, pretensamente, distinguindo-a da crença ou do senso comum. Desta forma, guiada por uma visão biologicista, a psiquiatria desenvolveu uma assistência voltada para o quadro sintomatológico, marcada pela alienação social do sujeito, segregação, medicalização, contenção física e química, com caráter custodial e disciplinante, em que o indivíduo é o objeto do tratamento (Pitiá, Furegato, 2009). A eclosão dos movimentos da Reforma Psiquiátrica brasileira suscitou novas discussões, especialmente no que se refere à dimensão epistemológica da psiquiatria, ou seja, no campo teóricoconceitual que fundamenta e autoriza o saber/fazer médico-psiquiátrico. Nesse cenário, os principais conceitos epistêmicos da psiquiatria - tais como alienação/doença mental, isolamento terapêutico, cura, internação - são contestados e, a partir da óptica do pensamento complexo, reavaliados e desconstruídos, isto é, refletidos, repensados à luz da própria história da área (Amarante, 2009). Toda esta transformação epistemológica precipitou uma crise no paradigma hospitalocêntrico, fazendo emergir novas buscas para o pensar e o agir em psiquiatria/saúde mental. Assim, surge o paradigma psicossocial caracterizado pelo envolvimento do sujeito no seu próprio tratamento e pela desconstrução do arcabouço teórico da psiquiatria clássica, objetivando transformar a lógica organizacional dos serviços de saúde mental e criar uma rede de atenção substitutiva ao hospital e pautada na atenção territorial e inclusiva da pessoa com sofrimento psíquico. Sob a égide desse novo paradigma, as ações desenvolvidas revestem-se de caráter social: ao sujeito estima-se o respeito à sua subjetividade, destaca-se a ênfase na multiprofissionalidade/ interdisciplinaridade e na importância do convívio familiar. O atendimento hospitalar passa a ter a função restrita de impacto em situações de crise, orientado pelo princípio do retorno rápido ao convívio em sociedade (Pitiá, Furegato, 2009). Em nível mais amplo, evidencia-se a criação de portarias ministeriais e políticas públicas voltadas para a defesa da saúde e da cidadania do indivíduo com sofrimento psíquico. A despeito das transformações advindas da Reforma Psiquiátrica brasileira, o metacontexto do fenômeno das reinternações psiquiátricas demonstra a coexistência dos paradigmas hospitalocêntrico e psicossocial no saber/fazer da saúde mental, onde predominam, em discursos e políticas oficiais, esforços para a efetivação da rede de atenção que reduziria a porta giratória de internação/alta/ reinternação; e, na resolubilidade atual da mesma rede, ainda prevalece o gesto contraditório de reinternações psiquiátricas, reiterado por insuficiência quantitativa de serviços e qualitativa da 524

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RAMOS, D.K.R.; GUIMARÃES, J.; ENDERS, B, C.

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formação dos profissionais, fato que, segundo Rinaldi e Bursztyn (2008), desafia a perspectiva de uma atenção psicossocial e uma prática clínica manejada por uma equipe multiprofissional. Profissionais e serviços buscam realizar as propostas ministeriais que regulamentam a inclusão social e o mínimo necessário de internação psiquiátrica, no entanto, muitos profissionais e serviços substitutivos também estão impregnados pela lógica manicomial, fato que alimenta, consideravelmente, os índices, ainda preocupantes, de reinternações psiquiátricas no âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira. O contraste da transição paradigmática, em que dimensões epistemológicas se confundem e coexistem, identifica o metacontexto do fenômeno das reinternações psiquiátricas como um campo onde há evidentes resquícios da prática hospitalocêntrica com forte ideologia segregadora e estigmatizante. Em contrapartida, têm-se as prerrogativas do Sistema Único de Saúde (SUS), mais especificamente, da Política Nacional de Atenção à Saúde Mental, através da rede de atenção preconizada pela Reforma Psiquiátrica brasileira. O discurso e os esforços por uma rede de atenção em saúde mental endossam avanços e conquistas por uma atenção psicossocial, cujo maior desafio revela-se na incidência e na prevalência do fenômeno da porta giratória ou reinternações psiquiátricas.

Considerações finais As reinternações psiquiátricas configuram-se como um dado significativo e preocupante no que se refere à demonstração da efetividade e resolubilidade da rede de atenção em saúde mental. Analisar os níveis contextuais da porta giratória em psiquiatria torna-se pertinente e relevante para a compreensão e intervenção junto à atualidade dos saberes e práticas da saúde mental no Brasil, uma vez que abordamos, gradativamente, aspectos imediatamente relacionados ao fenômeno em análise, bem como aspectos específicos e gerais, obtendo-se uma síntese simultaneamente circunstanciada e panorâmica da problemática em questão. Assim, esperamos contribuir para a compreensão e resolubilidade das transformações no âmbito dos saberes e práticas da saúde mental brasileira, especialmente, no tocante à desconstrução do aparato manicomial resistente à efetivação da rede de atenção em saúde mental intersetorial. A ênfase intersetorial justifica-se pela necessidade premente de engajamento e articulação dos saberes e práticas, tanto do próprio setor saúde, quanto das demais áreas da sociedade - a exemplo do debate e das intenções da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em junho de 2010, que envolveu temas relevantes para o campo da saúde mental, na perspectiva da intersetorialidade, e promoveu deliberações acerca dos desafios para a melhoria dos cuidados em saúde mental no território, além de contemplar o desenvolvimento de ações intersetoriais para o fortalecimento das ações em saúde mental nesse novo cenário de Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2010). Colaboradores Déborah Karollyne Ribeiro Ramos foi responsável pela idealização, busca bibliográfica e redação do manuscrito; Jacileide Guimarães, pela revisão final, realizando contribuições significativas acerca dos constructos teóricos; Bertha Cruz Enders colaborou, ao longo da disciplina “Análise crítica da prática de Enfermagem”, na idealização do contexto como foco de análise e na construção do conhecimento que possibilitou a elaboração do manuscrito.

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Análise contextual de reinternações frequentes...

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RAMOS, D.K.R.; GUIMARÃES, J.; ENDERS, B, C.

RAMOS, D.K.R.; GUIMARÃES, J.; ENDERS, B, C. Análisis contextual de reingresos frecuentes del portador de trastorno mental. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.519-27, abr./jun. 2011. Este estudio examina el contexto de los frecuentes reingresos de pacientes con trastornos psicológicos en las dimensiones: inmediatas, específicas, generales y meta-contextuales. Siguiendo la perspectiva contextual propuesta por el marco teórico de Hindes, Chaves y Cypress (1992), los resultados encontrados en la revisión narrativa de la literatura científica se clasifican en cuatro sub-temas relativos a las dimensiones contextuales: 1) la puerta giratoria de la psiquiatría (contexto inmediato); 2) desarticulación de la red de salud mental (contexto específico); 3) el loco y la locura en lo imaginario social; el hospital como un lugar de “curación” (contexto general); 4) paradigmas de salud mental: la dimensión epistemológica del saber/hacer psiquiátricos (metacontexto). Analizar y comprender los contextos donde se insertan los reingresos psiquiátricos se convierte, actualmente, en un aspecto significativo para confirmar los avances conquistados por la Reforma Psiquiátrica brasileña y el Sistema Único de Salud.

Palabras clave: Trastorno mental. Reingresos psiquiátricos. Desinstitucionalización. Puerta giratoria. Recebido em 06/09/2010. Aprovado em 18/11/2010.

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Uma análise discursiva sobre os sentidos da promoção da saúde incorporados à Estratégia Saúde da Família* Mônica Soares da Fonseca Beato1 Cornelis Johannes Van Stralen2 Izabel Christina Friche Passos3

BEATO, M.S.F.; STRALEN, C.J.; PASSOS, I.C.F. A discursive analysis of health promotion meanings incorporated into the Family Health Strategy. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.529-37, abr./jun. 2011.

The purpose of this study is to discuss meanings about the set of ideas concerning health promotion in the context of the Family Health Strategy. A case study was carried out in Belo Horizonte and the guidelines related to health promotion in the primary care services of this municipality are brought to discussion. Then the discursive practices and intervention strategies of a Family Health team are analyzed. We approach the frequent fragmentation and polarization between the clinic and the programmatic collective actions, both based on logics that are rarely in touch with each other, forming a single strategy by the force of institutional norms. However, the formulation of a mental health promotion project by the Family Health team expresses other meanings, much closer to a critical conception of the health promotion ideas.

Keywords: Health promotion. Empowerment. Family Health Strategy. Discursive practices.

O objetivo deste estudo de caso é analisar significações sobre o ideário da promoção da saúde presentes no contexto da Estratégia Saúde da Família. O estudo de caso foi realizado em Belo Horizonte e, por isso, inicialmente, são discutidas as diretrizes relacionadas à promoção da saúde na atenção básica deste município. Em seguida, são analisadas as práticas discursivas e as estratégias de intervenção de uma equipe de Saúde da Família. Evidenciamos a fragmentação e a polarização frequentes entre a clínica e as ações coletivas programáticas, ambas pautadas em lógicas que raramente dialogam entre si, sobrepondo-se em uma só estratégia por força de normas institucionais. Entretanto, a construção de um projeto de promoção da saúde mental pela equipe de Saúde da Família remete a sentidos sobre promoção da saúde que estão mais próximos de uma concepção crítica do ideário.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Empowerment. Estratégia Saúde da Família. Práticas discursivas.

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*Elaborado com base em Beato (2006), pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte e realizada conforme as diretrizes éticas recomendadas pela Resolução 196/96 e pela CONEP. 1 Laboratório de Grupos, Instituições e Redes Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH/UFMG). Avenida Antônio Carlos, 4000, FAFICH, sala 4040. Belo Horizonte, MG. 31.270-901. msoaresbeato@gmail.com 2,3 Programa de PósGraduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais.

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Introdução O ideário da saúde pública que é denominado promoção da saúde tem sido apontado, na literatura científica, como uma proposição inovadora, mas polissêmica, capaz de gerar deslizamentos semânticos em situações concretas de intervenção (Carvalho, Gastaldo, 2008; Traverso-Yépez, 2007; Carvalho, 2004; Castiel, 2004). Tomando esse enunciado como pressuposto, analisamos a promoção da saúde como um objeto social disputado (Foucault, 2004), que pode tomar diferentes contornos quando se transforma em estratégia nos dispositivos. O conceito de dispositivo também é referência em nossa análise, assim como Foucault (1993) o entende, isto é, como uma invenção social que instaura saberes, produz “verdades”, como uma rede que se pode estabelecer a partir de múltiplos discursos, produzindo subjetividades. Interessa-nos discutir os sentidos que a promoção da saúde incorpora no contexto específico da Estratégia Saúde da Família do Sistema Único de Saúde – SUS. Inicialmente, são analisados documentos internacionais e nacionais, bem como as diretrizes específicas em Belo Horizonte. Em um segundo momento, a análise aborda o plano das ações cotidianas da atenção básica, o que nos aproxima das práticas discursivas e das estratégias de uma equipe de Saúde da Família. É preciso esclarecer que a pesquisa não teve como finalidade avaliar serviços de saúde ou as bases estruturais da atenção básica de Belo Horizonte. Apresenta, sim, uma discussão sobre as formas de significação da política de saúde na relação cotidiana entre gestores, profissionais e usuários.

Os sentidos da promoção da saúde na atenção básica A base conceitual da promoção da saúde tem sido incorporada aos programas de Ministérios da Saúde de muitos países e aos projetos desenvolvidos pelo Terceiro Setor. Frequentemente, a expressão é encontrada em publicações científicas na área da saúde, inclusive em Psicologia. Em alguns casos, ela é empregada com a intenção de assegurar um discurso politicamente correto, enquanto em outros textos remete ao seu sentido estrito apregoado, atualmente, pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Esta concepção se vincula a princípios como: integralidade, intersetorialidade, equidade, sustentabilidade, formação de redes sociais, participação social e empowerment (OMS, 1998). Indistinções são comuns entre os termos educação em saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde. Para a OMS (1998), o último deles tem uma atuação mais abrangente e pode, inclusive, envolver ações preventivas e educativas. De fato, a OMS orienta que as ações de promoção da saúde sejam desenvolvidas em cinco áreas-chave: construir e implementar políticas públicas saudáveis; criar ambientes favoráveis à saúde; desenvolver habilidades pessoais; fortalecer a ação comunitária; e reorientar os serviços de saúde. O Programa Saúde Família (PSF), atualmente denominado Estratégia Saúde da Família, foi implantado a partir de 1994 para ser uma estratégia fortemente alicerçada na promoção da saúde, com sua lógica de territorialização e intersetorialidade, além do enfoque por problemas identificados em um dado coletivo (Mendes, 1996). Entre outras atribuições, cada equipe deve: conhecer a realidade do território, promover ações conjuntas com equipamentos governamentais e comunitários, discutir o conceito de cidadania enfatizando os direitos de saúde, e incentivar a participação da comunidade nas comissões locais e no conselho municipal. Dessa forma, espera-se que a equipe consiga trabalhar com a lógica da demanda, e não da simples oferta de um leque de ações programáticas, fazendo isso por meio do vínculo e da responsabilização pelos usuários (Brasil, 2006). Sabe-se que as bases da Seguridade Social inscritas na Constituição e decorrentes do Movimento da Reforma Sanitária convivem com um pensamento privatista que torna a área social um terreno conflituoso e exposto às restrições de ajuste financeiro impostas pela Reforma do Estado (Franco, Merhy, 2003; Noronha, Soares, 2001). Desse modo, são priorizados pacotes de saúde pública que contemplam minimamente a população considerada de maior risco. De forma entrelaçada ao campo discursivo normativo-institucional da política, a promoção da saúde é um paradigma polissêmico capaz de gerar deslizamentos semânticos e ideológicos nos

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microprocessos de produção de sentido cotidianos. Ao se materializar em projetos locais, tem sido constantemente atravessada por discursos variados – científicos, políticos, religiosos ou leigos –, os quais dão margem a diferentes e contraditórias possibilidades de ações. Cabe destacar que são, sobretudo, as polissemias em relação aos conceitos de risco, autonomia e comunidade que tornam esse paradigma amplo e útil para diferentes intencionalidades (Castiel, 2004). Os projetos podem se sustentar em uma forma sutil de vigilância e regulação do social por meio da biopolítica (Castel, 1987; Foucault, 1987, 1980), que acaba por operar através da liberdade de escolha. Ortega (2003) argumenta que o problema das práticas baseadas no cálculo do risco seria a possibilidade de serem apolíticas e individualistas, com procedimentos que constroem bioidentidades. Ao invés de representar práticas discursivas de grupos específicos contemporâneos, esse problema origina-se do fato de a modernidade decompor o espaço público e voltar-se para o privatismo e o intimismo. Se a saúde tornou-se um bem supremo nos dois últimos séculos, o que indica a politização da vida ou o biopoder (Foucault, 1987 citado por Ortega, 2003), pode haver, paradoxalmente, um movimento antipolítico baseado no indivíduo desequilibrado e no esvaziamento da vida pública. Assim, a ideologia da intimidade transforma categorias políticas em unicamente psicológicas. E, por meio de numerosas práticas bioascéticas, o indivíduo demonstra, ou não, sua competência para cuidar de si e construir sua identidade. Desse modo, o indivíduo se constitui como autônomo e responsável por seus males, podendo ainda ser auxiliado por agentes/experts nomeados para orientá-lo. Um conceito muito usado atualmente, não só na saúde pública, mas também nas políticas sociais como um todo e no Terceiro Setor, ratifica a polissemia de sentidos em questão. Empowerment referese ao agenciamento de indivíduos e de comunidades para assumirem maior autonomia e controle sobre os fatores que afetam a qualidade de vida. Carvalho (2004) sugere questionar qual é a teoria sobre o poder que sustenta esse conceito, bem como quais são as características das relações de poder concretas. As críticas a esse pressuposto têm ensejado elaborações no campo da saúde coletiva sobre um empowerment social/comunitário (Carvalho, Gastaldo, 2008), que é o eixo central da chamada ‘nova promoção da saúde’.

O referencial de análise Como já se pretendeu argumentar, promoção da saúde é um ideário assumido, no presente estudo, como um objeto social disputado que pode assumir diferentes formas quando se transforma em estratégia de ação, não se falando, por isso, em uma essência do objeto (Foucault, 2004). Seguindo a proposta desse autor, o trabalho em questão consiste em analisar as regras do discurso que tornam possível a ocorrência de certos enunciados, em determinado tempo e localização institucional. Essas regras configuram objetos e são referência para posições de sujeito em práticas discursivas. Por práticas discursivas podem-se nomear os recortes feitos pelos próprios pesquisadores, que veem alguma regularidade em um número de enunciados que estão submetidos às mesmas condições de existência. Todo enunciado possui regras históricas, legitimadas por condições institucionais e relações de poder. Utilizamos, na pesquisa, a Análise do Discurso francesa, não como uma técnica, mas como um instrumental teórico-metodológico que pode nos auxiliar na interpretação do corpus, devido à relação que é tecida entre linguagem e sociedade. Desse modo, não se adota uma concepção essencialista de sujeito, entendendo-se a subjetividade como uma produção influenciada por formações discursivas diversas, que rompem com toda invariante universal. Uma visão naturalizada e moralizante de sujeito – aliás, próxima à que a ciência psicológica tradicional propunha – diferencia-se da visão sobre sujeitos e famílias imersos em redes sociais e, portanto, não nucleares. Desse modo, nas análises, são evitadas as polarizações, privilegiando-se pensar, de forma complexa, o campo em questão.

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Construindo a pesquisa de campo Por se tratar de um estudo sobre significações em uma prática institucionalizada de cuidado, as diretrizes da instituição na qual os profissionais estão inseridos interferem muito no seu posicionamento. O cuidado em contextualizar as ações dos sujeitos de pesquisa nos levou a investigar, por meio de análise documental e entrevista semiestruturada com o gestor da atenção básica, a base conceitual e política que estruturava esse nível de atenção à saúde do SUS em Belo Horizonte, na época da pesquisa de campo. Posteriormente, entre as mais de quinhentas equipes da Estratégia Saúde da Família existentes na capital mineira, pedimos que algumas fossem indicadas pela coordenação da atenção básica. As equipes deveriam ter estratégias de promoção da saúde bem-sucedidas para os padrões da gestão. Dos quatro centros de saúde sugeridos, o primeiro contatado por nós prontamente concordou em participar do estudo. Uma das três equipes dessa Unidade, responsável por pouco mais de 4.000 pessoas em um bairro periférico de Belo Horizonte, foi focalizada por nós, por indicação da gerente. Após aproximação com o centro de saúde e consentimento dos trabalhadores da equipe, durante três meses, a primeira autora frequentou atividades e registrou, no diário de campo, observações sobre reuniões, intervenções com usuários (grupos, ações de educação em saúde, acolhimento) e reuniões da Comissão Local de Saúde. Além disso, as entrevistas semiestruturadas feitas com cada profissional da equipe e com a gerente da unidade foram gravadas e transcritas literalmente. A análise da implicação da pesquisadora no campo também foi útil. Triangulamos a análise documental, os dados observacionais registrados no diário de campo e as entrevistas transcritas. Como eixos de sistematização e tematização, evidenciaram-se: descrições sobre o contexto e sobre as atividades; interação da equipe com os usuários e com a pesquisadora; e significações sobre as atividades denominadas, pela equipe, como promoção da saúde. Na análise discursiva das entrevistas, a atenção foi direcionada para: interdiscursos, mudanças discursivas e reformulações, atos ilocucionários, destinatário(s), persuasão, captação e subversão da autoridade atribuída ao texto-fonte, polissemia, metáforas, vozes ativa e passiva, condições de produção daquele enunciado, esquecimento e jogos de verdade que dizem respeito a ganhos e interesses daqueles que estão na situação de entrevista (Charaudeau, Maingueneau, 2004).

A estratégia em Belo Horizonte A atenção básica de Belo Horizonte é reconhecida, nacionalmente, por ser um sistema de característica assistencial, isto é, bastante vinculado à clínica. Em 2006, quando a pesquisa de campo foi realizada, havia 508 equipes de PSF trabalhando em 137 centros de saúde, as quais atendiam a uma população cadastrada de, aproximadamente, 78% do volume populacional correspondente, na época, a 1,7 milhão de moradores, em 412 mil famílias. É relevante retomar alguns marcos históricos dessa estrutura. No início da década de 1990, a Secretaria Municipal de Saúde recebia grande influência da vertente teórica da saúde coletiva “vigilância da saúde” (Paim, 2003; Mendes, 1996), fortemente ancorada no ideário da promoção da saúde, no planejamento epidemiológico e nas ações coletivas programáticas. Pouco depois, pressupostos de sanitaristas identificados com o movimento “em defesa da vida”, como a clínica ampliada, o trabalho vivo em ato e o acolhimento (Campos, 2005; Merhy, 2002), tornaram-se norteadores da atenção básica. Com a implantação municipal do PSF em 2002 e as exigências do Ministério, a vigilância da saúde volta a ter destaque na distribuição das equipes e na definição de ações prioritárias. Atualmente, coordenadores, gerentes das unidades básicas e, ainda, cada equipe têm a tarefa de planejar essa articulação entre os dois modelos, pensando-os como complementares. O que a gente espera que a equipe faça é que ela dê conta da síntese dessas duas questões, até porque, se você trabalha só com a visão do planejamento e da epidemiologia, você não dá entrada para problemas muito importantes que não são captáveis ou são dificilmente captáveis pela via da epidemiologia. Nega uma parte grande do que faz as pessoas sofrerem. Então a gente avalia que é possível essa síntese. [gestor da atenção básica] 532

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Embora certa polarização entre as duas perspectivas se revele nas diretrizes (Belo Horizonte, 2003), um movimento de síntese é observado em documento posterior. No projeto “Promoção de modos de vida saudáveis” (Grupo de Promoção à Saúde..., 2006), a Secretaria Municipal propõe, aos serviços de atenção básica, a prática diária de abordagem individual dos casos de doenças crônicas e o fortalecimento da rede local para possível integração dessas pessoas em grupos de apoio, os quais não devem ser organizados de acordo com as doenças, mas com as questões psicossociais vivenciadas. Esse documento foi publicado após a realização do nosso estudo de caso com uma equipe da ESF e, por isso, não pudemos discuti-lo com a equipe. A coordenação nos informou, posteriormente, que o trabalho desse centro de saúde e de alguns outros subsidiou a construção do projeto. Longe de entendermos essas duas vertentes em saúde coletiva como discordantes, compreendemos que são estruturadas em diferentes bases epistemológicas. Nossa intenção, no presente estudo, é analisar como esses e outros referenciais discursivos são articulados pelos profissionais com o ideário da promoção da saúde. É importante lembrar que tais profissionais também incorporam ao trabalho construções simbólicas e experiências de vida variadas.

A equipe focalizada e sua rede de sentidos sobre promoção da saúde Uma característica da equipe investigada chamou nossa atenção desde o início. Era o processo de escuta e acolhimento que ocorria cotidianamente entre os próprios trabalhadores. Com exceção da mudança de três dos cinco Agentes Comunitários de Saúde, esse mesmo grupo de profissionais havia se constituído há dois anos e reunia-se regularmente, uma tarde por semana, para discutir o processo de trabalho. Em especial, eram colocados em questão os chamados grupos de promoção da saúde, cuja responsabilidade pela coordenação era dividida entre os integrantes da equipe. A satisfação do médico, da enfermeira e da auxiliar de enfermagem, por serem trabalhadores da atenção básica, somada à estabilidade temporal da composição da equipe, obviamente contribuiu para o aperfeiçoamento do processo de trabalho. Ao monitorar o fluxo do acolhimento, eles perceberam que muitos usuários retornavam, com frequência, à unidade, até quatro vezes ao mês. Mantinham queixas mesmo depois de se consultarem com o médico, fazerem exames e consultas especializadas, sendo que alguns não tinham nem recebido diagnóstico de fundo orgânico. Não se contentando com a aplicação do rótulo de “poliqueixosos”, tão comum entre conversas de profissionais da saúde, a equipe criou um projeto para qualificar essas demandas e intervir sobre elas. Entre as metas previstas no projeto elaborado pela própria equipe, denominado de projeto de saúde mental, estavam: criar grupos de suporte social e aumentar a satisfação, autonomia e humor social do usuário. Além dos grupos de artesanato, de obesidade, de coral e de convivência, o projeto envolvia sessões de terapia comunitária, abertas a interessados em geral e coordenadas pela equipe. Os trabalhos de Barreto (2004) e Boff (1999) eram os principais norteadores da equipe na coordenação das ações. Com base nesta estratégia, o usuário, inicialmente, passava por um processo chamado de escuta qualificada no consultório, com a enfermeira, podendo, então, ser convidado a participar de algum grupo. Em todos os grupos, o apoio mútuo entre os usuários era cuidadosamente estabelecido com a troca de contatos telefônicos e datas de aniversário, e com a realização frequente de confraternizações, bailes e passeios. A concepção de grupo parecia se traduzir não só no fortalecimento do vínculo, por meio da afetividade e da identidade daquele coletivo, mas, também, em um espaço de ampliação do respeito à diferença. A equipe esperava facilitar um processo em que o usuário passasse a se sentir bem consigo mesmo a partir da confiança e da pertença, algo que os próprios profissionais também exercitavam nas reuniões da equipe. Entretanto, ainda que esses grupos se distanciassem da prescrição de hábitos de vida saudáveis, seu movimento às vezes recaía em outra fragmentação, pelo viés da psicologização dos problemas. Isto é, uma noção essencialista de interioridade psíquica era supervalorizada nos discursos. Em alguns enunciados, evidenciou-se a significativa aposta no sujeito como sendo capaz de mudar os rumos da vida, desconsiderando toda a complexidade dos problemas psicossociais. De todo modo, a equipe estava satisfeita pelos interessantes efeitos que esse dispositivo causava a muitos usuários no momento em que redefiniam suas queixas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Uma análise discursiva sobre os sentidos da promoção da saúde...

É interessante mencionar algumas dificuldades comentadas por esses trabalhadores. Realizadas com procedimentos diferentes da estratégia anterior, as chamadas ações programáticas coletivas, com as mães de crianças desnutridas ou com asma, com os usuários hipertensos e os diabéticos, não tinham as mesmas repercussões positivas. A equipe acreditava que o problema, nestes casos, era a ausência de demanda por escuta e que a verticalidade das ações programáticas para as doenças prevalentes engessava a potencialidade criadora local. Em nossa análise, a própria condição da equipe como um grupo sujeito (Guattari, 1987) era descaracterizada nesses casos, problema que se reproduzia na relação com os usuários. O apelo ao sujeito que toma as rédeas do próprio destino, a partir do apoio de um grupo, mostrava-se um dispositivo insuficiente nesses casos. Foi curioso notar, nas entrevistas individuais, que, quando a pesquisadora perguntava sobre promoção da saúde, os profissionais remetiam ao projeto de saúde mental. Apenas quando se questionava diretamente se as ações programáticas também eram atividades de promoção da saúde, eles respondiam afirmativamente. Em todos os casos, é possível afirmar ainda que os sentidos sobre promoção da saúde se diferenciavam entre os processos de compreender e intervir. Explicitar que saúde se relaciona, também, com fatores socioculturais fazia parte do repertório discursivo dos profissionais na interação com a pesquisadora. Contudo, as intervenções não acompanhavam a mesma configuração. Concordamos com Camargo Jr. (2005) ao afirmar que a racionalidade que condiciona a leitura das demandas, definindo as respostas que a atenção básica à saúde deve dar, separa respostas sociais e respostas terapêuticas. Essa diferença, relacionada à setorialização das políticas sociais, fez-se tênue durante um levantamento sobre o território, desenvolvido pela equipe num curso de capacitação organizado pela Prefeitura de Belo Horizonte. A partir do conceito de representações sociais, da Psicologia Social, os profissionais se propuseram a investigar os modos de nascer, de viver e de morrer daquela comunidade. A área de abrangência dessa equipe é formada, de um lado, por ruas planas, calçadas e com saneamento básico – o risco médio –, e, de outro, por ruas curvas e estreitas, barracos sem reboco e com saneamento precário, aglomerados em pequenos espaços – o risco elevado. Desde a formulação do projeto, eles optaram por diferenciar a amostra em dois grupos: cinquenta entrevistados da área de risco elevado e o mesmo número da área de risco médio. Um ACS comentou os resultados da pesquisa, ao contrastar os dois grupos: Essa queda brusca no poder aquisitivo teve um retorno depressivo [nos entrevistados de risco médio]. O risco elevado, realmente, é o sofrimento do dia a dia, é uma população mais pobre, é uma população que vive com a criminalidade. A criminalidade é muito maior. Então tem a questão do tráfico. Tem o toque de recolher, então é um padrão de vida... não é um padrão de vida. A vida delas é um sofrimento. A depressão delas é porque elas sofrem. As pessoas [do risco elevado] convivem com a criminalidade e se sentem mais seguras do que as pessoas que moram aqui em cima [risco médio, onde o entrevistado mora]. Porque lá eles se sentem seguros, não pela polícia, mas justamente pela própria criminalidade que protege eles. Se você trata bem, não é acagüete nem nada, cê ta bem. Aqui não. Nós somos as vítimas. O risco médio é a vítima lá de baixo. [...] Juntando as pesquisas, você consegue realmente definir como é a cara da população. [ACS, em entrevista]

A afirmação do ACS é rica em muitos aspectos para uma análise aprofundada. Interessa-nos, neste artigo, apenas ponderar como o movimento da equipe tem potencialidade para ressignificar dispositivos que legitimam certas relações de poder, naturalizam ideologias e constroem identidades. Nada disso ocorre apenas em um nível que podemos chamar de intrapsíquico, estando na interlocução entre senso comum, ciência, imaginário social, regras instituídas e pertencimento a grupos específicos.

Considerações finais Como conclusão geral da pesquisa, consideramos que, no campo discursivo analisado – tanto no plano da gestão quanto no da equipe de saúde –, faziam-se presentes sentidos sobre promoção da saúde abertos à ressignificação, em permanente construção. 534

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BEATO, M.S.F.; STRALEN, C.J.; PASSOS, I.C.F.

artigos

Parece-nos contraditório apregoar, como princípio fundamental da promoção da saúde, a ampliação da autonomia dos usuários sobre os determinantes da saúde, como fazem as diretrizes nacionais, mantendo dispositivos fragmentados no território e verticalmente engessados. Desse modo, a potencialização dos efeitos de atividades isoladas das equipes de atenção básica é limitada, mesmo que elas adotem um processo de trabalho tão interessante quanto se mostrou o da equipe escolhida para este estudo. A respeito da forma como as diretrizes são absorvidas pela equipe da Estratégia Saúde da Família, suscita-nos ainda questionar se é possível, nesse contexto, escapar da produção de corpos e “mentes” que se autoprotejam de riscos. Tomando emprestadas duas expressões de Baptista (2001), acreditamos que o grande desafio da promoção da saúde na atenção básica é “descoisificar a diferença”, escapando da “fabricação de indivíduos”. A própria equipe pesquisada nos mostrou que estava abrindo caminhos possíveis, ao fortalecer redes sociais de apoio, ao abrir-se a uma escuta ampliada do sujeito para além da doença e ao tentar diluir o pensamento disciplinar e prescritivo.

Colaboradores Mônica Soares da Fonseca Beato elaborou todas as etapas do artigo. Cornelis Johannes van Stralen e Izabel Christina Friche Passos participaram, igualmente, da discussão e da revisão do texto.

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artigos

BEATO, M.S.F.; STRALEN, C.J.; PASSOS, I.C.F.

BEATO, M.S.F.; STRALEN, C.J.; PASSOS, I.C.F. Un análisis discursivo a respecto de los sentidos de la promoción de la salud integrados en la Estrategia Salud de la Familia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.529-37, abr./jun. 2011. El objetivo de este estudio es investigar las concepciones del ideario de promoción de la salud en el ámbito de la Estrategia Salud de la Familia. El estudio de caso se llevó a cabo en Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, Brasil, por lo que inicialmente se discuten algunas directrices de la atención primaria en este municipio. A continuación son analizadas las prácticas discursivas y las estrategias de intervención de un equipo de Salud de la Familia. Lo que más se evidencia es la fragmentación y la polarización frecuentes entre la clínica y las acciones colectivas proyectadas. Las dos son basadas en lógicas que raramente dialogan entre sí. Sin embargo, la construcción de un proyecto de promoción de la salud mental por parte del equipo revela otros sentidos a respecto de la promoción de la salud que se asemejan más a una concepción crítica del ideario.

Palabras clave: Promoción de la salud. Empowerment. Estrategia Salud de la Familia. Recebido em 29/03/2010. Aprovado em 12/11/2010.

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artigos

As relações de poder em equipe multiprofissional de Saúde da Família segundo um modelo teórico arendtiano Hadelândia Milon de Oliveira1 Rodrigo Otávio Moretti-Pires2 Rosana Cristina Pereira Parente3

OLIVEIRA, H.M.; MORETTI-PIRES, R.O.; PARENTE, R.C.P. Power relations in a Family Health multidisciplinary team according to an Arendtian theoretical model. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.539-50, abr./jun. 2011.

The Family Health Strategy (FHS) is based on teamwork and demands changes in the work process of the Health Care units, breaking the traditional model centralized on the physician’s role. The present study aims to propose a theoretical model to assess power relations within the multidisciplinary team, grounded on Hannah Arendt’s work. Based on an analysis of legal documents of the FHS and on Arendt’s assumptions, a theoretical model for FHS evaluation was set up using a qualitative and hermeneutic-dialectic approach. In order to test the model, focus groups with health care teams and individual interviews were conducted in the municipality of Manacapuru - State of Amazonas (Northern Brazil). The results show that each professional performs his/her role in isolation, without sharing with others. The local management policy limits the collective work and does not use leadership principles; it is characterized as tyranny in Arendt’s perspective, which brings discredit to the FHS.

Keywords: Power. Family health. Patient care team. Focus group.

A Estratégia Saúde da Família (ESF) está fundamentada no trabalho em equipe, exigindo mudanças no processo de trabalho das Unidades de Saúde, distanciando-se do modelo centralizado na figura do médico. Este trabalho objetiva propor um modelo teórico de avaliação da relação de poder na equipe multiprofissional, com base nos trabalhos de Hannah Arendt. Baseando-se em análise de documentos legais da ESF e dos pressupostos arenditianos, estabeleceuse um modelo teórico para avaliação da ESF, utilizando-se a abordagem qualitativa com enfoque hermenêutico-dialético. Para testar o modelo, aplicaram-se grupos focais com as equipes de saúde e entrevistas individuais no município de Manacapuru – interior do Estado do Amazonas. Os resultados mostram que cada profissional exerce sua função de forma isolada, não compartilhada; a política da gestão municipal é limitadora do trabalho coletivo, não governando com liderança, mas se configurando como tirania na perspectiva arendtiana, trazendo descrédito à ESF.

Palavras-chave: Poder. Saúde da família. Equipe de assistência ao paciente. Grupo focal.

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1 Escola de Enfermagem de Manaus, Universidade Federal do Amazonas. R. Terezina, 495, Adrianópolis. Manaus, AM, Brasil. 69.060-000. hmilon@ufam.edu.br 2 Universidade Federal de Santa Catarina. 3 Universidade Federal do Amazonas.

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As relações de poder em equipe multiprofissional...

Introdução A Estratégia de Saúde da Família (ESF) foi adotada como importante mecanismo para a transformação do modelo assistencial brasileiro. Pautada nas diretrizes de integralidade, equidade e universalidade, a ESF propõe nova dinâmica para a organização dos serviços de saúde (Trad, Bastos, 1998). Fundamenta-se na lógica de adscrição de clientela, no trabalho em equipe multiprofissional e na participação da população - em uma lógica que rompe com o modelo centrado no profissional e prima pela aproximação da vida da comunidade. Seu processo de trabalho possibilita o compromisso e a corresponsabilidade da equipe e usuário, tanto quanto a articulação entre os diversos saberes das corporações profissionais que compõem este modelo assistencial (Brasil, 2001). A adoção deste modelo assistencial no Brasil foi impelida com vistas à efetividade do Sistema Único de Saúde (SUS) de fato, muito mais do que uma questão de fundo ideológico, sendo necessária a mudança no processo de trabalho das Unidades Básicas de Saúde. A implantação da ESF vem contribuindo para a consolidação de uma gestão descentralizada e participativa no SUS, configurando-se como uma política de saúde para maior garantia dos direitos do usuário. A reorientação do Programa de Saúde da Família como estratégia de reorganização da Atenção Primária pode ser considerada como um dos mais importantes avanços ideológicos e práticos em termos de gestão do SUS, uma vez que não se trata apenas de ampliar o acesso e a abrangência geográfica dos serviços, mas, também, sua adoção de práticas da atenção sob novas bases epistemológicas do fazer/ cuidar em saúde, com substituição do modelo então vigente, levando a saúde para mais perto das famílias e melhorando-se a qualidade de vida dos cidadãos brasileiros (Brasil, 2001). O recurso humano que atua na ESF é organizado a partir do trabalho em equipe multiprofissional, composta, minimamente, por: um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar de Enfermagem, quatro a seis agentes comunitários de saúde, um odontólogo e um auxiliar em saúde bucal e/ou um técnico em saúde bucal. Os profissionais desta última área foram incluídos na ESF a partir do ano 2000. Além das atribuições específicas do saber corporativo, os profissionais da equipe têm diversas responsabilidades comuns, tais como: conhecer a realidade das famílias pelas quais são responsáveis; identificar seus problemas de saúde e situações de risco mais comuns; e construir, conjuntamente, um planejamento para enfrentamento dos mesmos, discutindo com a comunidade conceitos de cidadania, de direitos à saúde e suas bases legais (Brasil, 2006a). Nesta perspectiva, a ESF tenta superar o modelo hegemônico centrado na figura do médico e propõe uma nova forma de assistir à população, colocando como ponto-chave o trabalho multiprofissional. Esta abordagem representa um processo de relações a serem pensadas pelos próprios trabalhadores e que possui múltiplas possibilidades de significados ao articular os diversos saberes da equipe. A despeito das atribuições específicas de cada categoria profissional, a equipe deve desenvolver, de maneira conjunta e integrada, ações preventivas e de promoção da qualidade de vida na comunidade, além de intervenções para recuperação e reabilitação da saúde, tanto na unidade de saúde quanto nos demais espaços comunitários - externos a esta -, associando a atuação clínica e técnica às práticas de saúde na coletividade (Valentim, Kruel, 2007). As características do trabalho de Saúde em equipe fundamentam-se nas relações interpessoais e, como tal, geram relações de poder (Fortuna et al., 2005). Acrescida a estas características, a organização coletiva do trabalho institucionalizada promove relações de desejos, interesses e conflitos decorrentes. Em ambas as perspectivas, existem pessoas que “podem mais” e as que “podem menos” (Fortuna et al., 2005, p.265). Particularmente nas equipes de Saúde, há um terceiro elemento que trata das competências, poderes e status de cada corporação de trabalho. “Trabalhar em equipe requer rever poderes, desocultar os poderes, olhar se sua disputa não está incoerente com a direcionalidade do trabalho: no caso do PSF, a democratização e a construção de trabalhadores e usuários cidadãos” (Fortuna et al., 2005, p.265). A característica relacional do poder nos grupos é uma das importantes contribuições do pensamento de Hannah Arendt ao conhecimento do século XX. De reconhecimento internacional, esta teórica é conhecida como a pensadora da liberdade. Seus trabalhos teóricos fundamentaram-se nas grandes transformações do poder político durante sua existência. Por influência de sua condição 540

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OLIVEIRA, H.M.; MORETTI-PIRES, R.O.; PARENTE, R.C.P.

artigos

de judia alemã, estudou a formação dos regimes autoritários instalados nesse período - o nazismo e o comunismo - e defendeu os direitos individuais e a família, contra as “sociedades de massas” e os crimes contra a pessoa. Sua obra é fundamental para se entender e refletir sobre os tempos atuais e as relações de poder que estão estabelecidas e em constante transformação. Hanna Arendt (2008a) defendia que compreender significa enfrentar sem preconceitos a realidade e resistir a ela. Um importante conceito arendtiano refere-se ao “espaço de aparência”, categoria na interface entre o que se propõe e o agir em si. Independente das orientações formais que impelem os seres humanos a estarem uns com os outros, é um conceito que se refere à forma coletiva da interação humana. O espaço de aparência “[...] passa a existir sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação, e, portanto precede toda e qualquer constituição formal e as várias formas de governo, isto é, as várias formas possíveis de organização da esfera pública” (Arendt, 2008b, p.211). O “espaço de aparência” refere-se ao comportamento das pessoas em suas posições/ representações em um grupo social de convivência, podendo um indivíduo exercer o poder ou ser influenciado pelo poder de outro. E esse espaço é relacional e só existe quando os homens se reúnem, não sendo durável ou permanente. O espaço de aparência surge no convívio entre os homens. Hannah Arendt defende que o poder só se torna legítimo na utilidade coletiva efetiva, de forma que o poder genuíno se caracteriza pelas intenções explícitas coerentes com as práticas em si, de maneira indissociável. “O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para violar ou destruir, mas para criar relações e novas realidades” (Arendt, 2008b, p.212). Com base nos pressupostos arendtianos, o presente artigo tem o objetivo de avaliar as relações de poder, conflitos e barreiras na equipe multiprofissional da ESF de um município do interior do Estado do Amazonas.

Percurso metodológico e modelo teórico Trata-se de uma pesquisa avaliativa, fundamentada nos conceitos sobre relações de poder oriundos dos pressupostos de Hannah Arendt (2009, 2008a, 2008b), assim como nas bases documentais sobre ESF no Brasil (Brasil, 2006a, 2006b, 2001). Foram analisados os conceitos-chave sobre trabalho em equipe, conforme as normas estabelecidas para o funcionamento da ESF, à luz dos referidos pressupostos arendtianos, estabelecendo-se um Modelo Teórico e Matriz conceitual, seguindo as definições de Hartz (2002) para o tipo de pesquisa empreendida. A opção pela abordagem qualitativa mostrou-se mais adequada para o fenômeno investigado, tendo em vista a necessidade de se imergir nas singularidades e a natureza do objeto “relações de poder” na “equipe multiprofissional de Saúde da Família” (Minayo, 2006; Minayo, Assis, Souza, 2005). A coleta de dados empíricos foi empreendida em Manacapuru (AM), distante 70 km de Manaus. Este é um dos únicos municípios em que existe acesso geográfico terrestre à capital. O universo de investigação foram dez equipes da ESF que atuam na zona urbana. Existem mais doze equipes na rede pública de Saúde, mas que atuam na zona rural e que, por esta característica, têm características diferenciadas em relação às primeiras. Em termos instrumentais, as técnicas de entrevista individual (EI) e de grupo focal (GF) foram utilizadas na coleta de informações (Minayo, 2002; Morgan, 1997). Além do moderador, houve um segundo pesquisador no papel de observador. Ambos se reuniram para discutir as impressões ao término de cada grupo focal, que tiveram duração média de uma hora e meia. As questões norteadoras referiram-se: aos conceitos sobre o que é equipe, às relações interpessoais/intersubjetivas e problemas que surgem durante o processo de trabalho nesta forma de organização do serviço, à forma como é organizado o trabalho na ESF, à atuação do profissional nos diversos níveis de atenção à Saúde, e ao trabalho em equipe multiprofissional como construção coletiva. Para as EI, foram entrevistados todos os integrantes dos GF. O modelo foi aplicado ao material empírico de quatro GF, nos quais participaram todos os membros das equipes investigadas e das 52 EI. O indicador para a amostragem foi a saturação das informações, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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descrita como o aparecimento de reincidência de perspectivas sobre o fenômeno, indicando que o acréscimo de sujeitos não implicaria necessariamente novidades acerca do mesmo (Minayo, Assis, Souza, 2005). Esta forma de amostragem também é conceituada como amostra teórica (Minayo, Assis, Souza, 2005). O uso simultâneo de ambas as técnicas de coleta de informações permite que o pesquisador confirme ou não as impressões que emergem em cada uma, possibilitando maior confiança na interpretação dos dados (Minayo, 2006; Morgan, 1997). A análise das informações fundamentou-se em uma postura hermenêutica-dialética (Minayo, 2002), perspectiva adotada pela reflexão interpretativa que se funda na práxis e na busca pela compreensão atrelada à análise crítica da realidade, processualmente seguindo as etapas de confrontação, convergências e divergências das categorias (Campos, Rodrigues, Moretti-Pires, 2011; Minayo, Assis, Souza, 2005). Inicialmente, realizou-se a leitura exaustiva para apropriação de conteúdo, seguida de redução do material empírico e análise por confrontação com o modelo teórico/matriz estabelecido, conforme descrito anteriormente. Na aplicação do modelo de tratamento, foram observados os conteúdos coerentes, singulares ou contraditórios – o que caracterizou a postura hermenêutico-dialética em termos processuais (Campos, Rodrigues, Moretti-Pires, 2011; Minayo, Assis, Souza, 2005). O material utilizado resultou de gravações sonoras, transcritas na íntegra. Os entrevistados foram recrutados individualmente, por meio do contato de um dos pesquisadores com as unidades de Saúde. Todos os entrevistados participaram após registro formal no termo de consentimento livre e esclarecido, em duas vias. Ressalta-se que foram respeitadas as normas de pesquisa envolvendo seres humanos, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina - Projeto “Saúde da Família no interior do Estado do Amazonas e a operacionalização dos princípios do SUS”, fomentado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo CNPq 470165/2008-1).

Modelo teórico empregado Para Hannah Arendt, a vida coletiva pode ser observada sob duas perspectivas: o discurso e a ação. O primeiro refere-se às intenções, às ideologias, às leis e ao discurso que formalmente caracteriza determinado grupo, seus processos normativos e a justificativa oficial para existência social do mesmo. A segunda refere-se à vida vivida propriamente dita, que tem dinâmica própria e acontece independente do discurso e da ideologia oficial que sustenta o grupo. É na ação que os homens se veem e estabelecem as relações de poder, caracterizando o “espaço de aparência” como não permanente e dinâmico (Arendt, 2008b, p.211). Na perspectiva da articulação entre o discurso oficial sobre a ESF e as decorrências para a ação coerente com o mesmo, construiu-se o modelo teórico representado pelo diagrama abaixo (Figura 1). A figura diagramática apresentada agrega os conceitos que se seguem.

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Governo Federal

Mecanismo Político

Insumo

Ministério da Saúde

Portaria Nº 648 de 28 de março/2006 Política Nacional de Atenção Básica

Acordos tripartites e bipartites

Departamento de Atenção Básica

Repasse Fundo a fundo

Portaria nº 399 de 22 de Fevereiro/2006 Pacto pela Saúde

os Conselh s tivo Corpora

S PRÁTICA IS NA IO S IS F PRO

Governo Estadual

Acordos bipartites

Coordenar a execução das políticas de qualificação de recursos humanos em seu território;

Pacto pela Saúde

Dimensão organizacional da atenção (Práticas de gestão e prática de oferta

Governo Municipal

Política Municipal

SEMSA Dimensão políticoinstitucional

artigos

OLIVEIRA, H.M.; MORETTI-PIRES, R.O.; PARENTE, R.C.P.

Recursos Humanos Estrutura Física

Educação Permanente

Horizontalidade com a gestão

Controle Social

Suporte

Processo de Trabalho Relação equipe Multiprofissional

Poder e Espaço de Aparência

Liderança Política Relação interpessoal Acolhimento Trabalho cotidiano Interação profissional Articulação entre as ações Relação de poder entre os profissionais –profissionais e equipe-população

ESF Equipe interdisciplinar Perfil dos trabalhadores de Saúde

População adscrita e comunidade Resultados: Compartilhamento das responsabilidades; Trabalho em equipe na visão interdisciplinar; Redução dos conflitos entre os profissionais; Objeto de trabalho conjunto nas ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na manutenção da saúde da família e comunidade; Divisão de responsabilidades nos serviços de saúde e as práticas de atenção.

Figura 1. Modelo teórico-conceitual referente às relações de poder na equipe multiprofissional da ESF

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Do discurso - o conteúdo normativo O Ministério da Saúde divulgou, em 2006, o Pacto pela Saúde 2006 (Brasil, 2006b), como estratégia para fortalecimento da Atenção Primária e descentralização das responsabilidades nas três esferas. Há uma importante ênfase nas necessidades de saúde da população por meio da priorização de três perspectivas: o Pacto pela vida, o Pacto em Defesa do SUS e o Pacto de Gestão do SUS. Trata-se de uma importante iniciativa, promovendo inovações nos processos e instrumentos de gestão, objetivando alcançar maior efetividade, eficiência e qualidade das respostas aos usuários. Ao mesmo tempo, são redefinidas as responsabilidades coletivas de cada esfera de governo, tomando-se, como indicadores, os resultados sanitários em função das necessidades de saúde da população e equidade social. Outro discurso importante é o da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2006a), que define o funcionamento da ESF e a declara como prioridade para a organização do sistema público de acordo com os preceitos do SUS. Dentre os seus fundamentos, destacam o desenvolvimento de relações de vínculo e de responsabilização entre as equipes e população adscrita, preconizando a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado. Os Governos Municipais responsabilizam-se pela estrutura física adequada para a execução das ações de promoção de saúde, assim como pelo estabelecimento de política para a contratação de recursos humanos, bem como a qualificação e capacitação dos mesmos. O planejamento dessas ações e a execução de educação permanente também são responsabilidade da gestão municipal, que deve dar suporte e estabelecer horizontalidade junto aos profissionais. As diretrizes orientam que se estimule a participação popular e o controle social, tanto quanto a viabilização de parcerias com organizações governamentais, não governamentais e com o setor privado, para o fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do seu território.

Da ação - poder e espaço de aparência Dos princípios norteadores da ESF, destaca-se a potencialidade para que seja um espaço de construção de cidadania. O processo de prestação de serviços em saúde da família tem um conteúdo fundamentado na interdisciplinaridade e no trabalho em equipe, integrando diferentes formações/ áreas técnico-profissionais. Há valorização dos diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e resolutiva, possibilitando a criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito. Preconiza-se a promoção e o estímulo à participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das ações. Também há ênfase no acolhimento, na participação de todos os integrantes das equipes no planejamento e na avaliação das ações, tanto quanto no apoio a estratégias de fortalecimento da gestão local. Como resultado da implementação desses conceitos na prática, espera-se o compartilhamento das responsabilidades no trabalho em equipe, com abordagem interdisciplinar, ocasionando a redução dos conflitos entre os profissionais. A liderança emerge do encontro entre os diversos membros da equipe, cuja divisão de responsabilidades, nos serviços de saúde e nas práticas de atenção, manifestarse-á enquanto ação no trabalho conjunto para: a promoção da saúde da família e comunidade, a prevenção, a recuperação, a reabilitação de doenças e agravos mais frequentes.

Resultados e discussão A Política Nacional de Atenção Básica preconiza que o processo de trabalho em saúde crie relações de vínculo/responsabilização entre as equipes e população adscrita, garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado. Porém, percebeu-se certo distanciamento e falta de articulação entre as equipes de saúde investigadas e a população, no planejamento e construção de estratégias nas ações de saúde. O cuidado dos usuários é descontínuo entre as diversas profissões, emergindo problemas no trabalho integrado e em equipe.

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O controle social é pouco exercido, não havendo estímulo dos gestores para que a participação social da população ocorra de acordo com o preconizado (Crevelim, Peduzzi, 2005). Não há articulação destinada ao fortalecimento da Atenção Básica no âmbito do seu território, com a viabilização de parcerias com organizações governamentais, não governamentais e com o setor privado. Neste contexto é importante ressaltar que, para Hannah Arendt, poder “corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concreto. [...] nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo se conserva unido” (Arendt, 2009, p.36). Esta característica humana refere-se à relação de consentir e de ser consentido, já que “o consentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir sozinho [...]” (Arendt, 2008a, p.336). Estas concepções refletem diretamente o fundamento e a prática da liderança política, assim como das relações de poder entre os gestores, as equipes de ESF e a população. Com base no modelo teórico proposto, indica-se a existência de fragilidades na coerência entre o discurso e a ação. Foram encontrados problemas com as condições físicas das Unidades de Saúde, que não dispõem de estrutura física adequada para execução das ações de promoção de Saúde. Em alguns casos, até três equipes da ESF atuam na mesma Unidade, sem salas adequadas para recepção. Há inadequação dos consultórios médicos, de enfermagem e odontológicos. Os cuidados odontológicos estavam suspensos, por falta de equipamentos e insumos clínicos. As atividades de Saúde da Família são desenvolvidas em conjunto com o modelo de Unidade Básica de Saúde tradicional, sobrecarregando os profissionais de saúde. Esta sobrecarga refere-se ao desempenho das atividades previstas ao modelo do PSF – tais como as visitas domiciliares –, além daquelas características do modelo curativo-assistencial tradicional. São grandes as implicações desta realidade frente ao que é idealizado no âmbito do trabalho da ESF. O discurso e a ação são antagônicos, uma vez que há carência em termos de compartilhamento de responsabilidades, trabalho interdisciplinar efetivo e desenvolvimento de projetos terapêuticos conjuntos. Propiciam-se, então, problemas nos processos de trabalho e divisão de atribuições nos serviços, propiciando a existência de conflitos. Este panorama, distante do que é minimamente proposto no modelo da ESF, interferirá diretamente nas relações de poder e acirramento de disputas entre os profissionais e a comunidade. Não foi identificada qualquer política de recursos humanos, no sentido de contratação bem como de qualificação dos profissionais, tendo em vista o silêncio com relação a planejamento e execução de educação permanente, sobretudo na perspectiva dessas iniciativas construídas junto aos diversos profissionais e destes para com a gestão. Em relação à educação permanente, quando há, ocorre somente para os ACS. Nunca é realizada em equipe, havendo queixas sobre iniciativas advindas dos médicos e dos enfermeiros. Há silêncio sobre esta temática por parte dos odontólogos. Este se sente excluído e esquecido. Uma decorrência refere-se à falta de preparo dos profissionais para o trabalho na visão multiprofissional e na promoção de saúde através dos vários saberes. Este contexto refere-se a uma das fragilidades existentes entre o discurso que fundamenta a ESF e a ação que se dá na vida vivida, em termos arendtianos. Os profissionais são contratados através de indicação política, não havendo processos seletivos ou mesmo concursos públicos. Todos os contratos são temporários, gerando desconforto e constante insegurança para esses profissionais, já que existem pressões políticas que os fazem se submeterem a trabalhar em condições mínimas de trabalho. Este tipo de trabalho pode ser caracterizado como vínculo precário, sendo eminentes os problemas ocasionados em termos das relações humanas, conforme o modelo teórico apresentado. O poder é exercido verticalmente, dos gestores para os profissionais, gerando tensão nas relações interpessoais e contribuindo para a falta de confiança entre os gestores e os profissionais – quadro dicotômico ao considerado positivo nos pressupostos arendtianos, tal como apresentado no modelo teórico.

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Esta forma de pressão política fragiliza a efetividade da ESF. Alguns profissionais expressaram que o seu contrato tem a duração de quatro anos – tempo de um mandato – sendo incerto se haverá renovação na próxima gestão. Estas questões concernentes à política de recursos humanos promovem a descontinuação das ações e garantem a conformidade das ações de acordo com os interesses políticos da gestão vigente. A tirania é descrita por Arendt como uma relação humana que se fundamenta “[...] no isolamento – o isolamento do tirano em relação aos súditos, e dos súditos entre si através do medo e da suspeita generalizada” (Arendt, 2008b, p.214). Sua violência se caracteriza por contradizer “a condição humana de pluralidade, o fato de que os homens agem e falam em conjunto, que é a condição de todas as formas de organização política” (Arendt, 2008b, p.215), e que “... embora a tirania se caracterize sempre pela impotência dos seus súditos, privados da capacidade humana de agir e falar em conjunto, não é necessariamente caracterizado pela fraqueza e esteridade” (Arendt, 2008b, p.214-5). De maneira contundente, Hannah Arendt afirma que “[...] a tirania é incapaz de engendrar suficiente poder para permanecer no espaço de aparência, que é a esfera pública; ao contrário tão logo passa a existir gera a semente de sua própria destruição” (Arendt, 2008b, p.215). Como reflexo do contexto apresentado, a ESF apresenta-se distante do trabalho integrado, horizontalizado e consonante aos seus preceitos fundamentais, uma vez que a relação humana e as relações de poder advindas desta são sustentáculos para o bom funcionamento, conforme o modelo teórico desenvolvido no presente trabalho. Com relação à ação da ESF em Manacapuru, pouco se percebe sobre sua legitimidade como um espaço para a construção da cidadania. Os profissionais não desenvolvem ações de trabalho em equipe, desempenhando apenas suas competências profissionais clássicas. Um emblema deste fenômeno é a quase inexistência de articulação dos demais profissionais com a Odontologia. Este panorama é distante da relação de poder genuína preconizada por Arendt, assim como para a proposta de trabalho na ESF. No município investigado, o enfermeiro exerce a função de gerente da unidade, sobreposta às ações de assistência, além das responsabilidades específicas junto a outros programas, exercendo três funções. Há, portanto, acúmulo de atividades administrativas, sendo uma imposição dos gestores locais, e não uma liderança genuína nos termos arendtianos. Em alguns casos, não são reconhecidos como líderes pelos demais profissionais, sobretudo do nível Superior, uma vez que não são escolhidos entre os membros da equipe, mas, sim, indicados, em um fluxo verticalizado e que gera inúmeros conflitos. Por estas características da gestão local, as decisões são tomadas unilateralmente, com pouco envolvimento dos demais integrantes da equipe no planejamento e tomadas de decisões. O poder não ocorre de forma compartilhada, com corresponsabilidade nas ações de promoção de saúde, interferindo negativamente na criação de vínculos de confiança com ética, compromisso e respeito, conforme o preconizado dentro do modelo teórico arendtiano proposto no presente trabalho. A relação de poder com a população também é verticalizada. Os profissionais não estimulam a participação da comunidade no controle social, no planejamento, na execução e na avaliação das ações. Percebem o usuário como alguém que precisa de conhecimento, transferindo a culpa de seus problemas de saúde aos mesmos. Por outro lado, os usuários, quando não desejam ser atendidos por determinado profissional - principalmente o ACS - e têm influência política no município, fazem denúncia, verdadeiras ou não, provocando a demissão desse profissional. O mesmo usuário acaba por indicar outro profissional para substituí-lo, nem sempre sendo o profissional ouvido antes da exoneração. Essa situação gera tensões nas relações profissional/usuário, agudizando o quadro de relações de poder prejudiciais e não construtivas. Para Arendt, a coerência entre a ideologia e a ação é fundamental. A desarmonia entre estas promove a violência. “O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades” (Arendt, 2008b, p.212). O modelo teórico empregado preconiza o exercício do acolhimento, por meio de estratégia de participação da equipe no planejamento e avaliação da ação, porém isso não foi percebido empiricamente. Contrariamente, há relações de verticalidade entre os atores implicados na ESF. 546

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O conceito de “espaço de aparência” mostrou-se pertinente ao processo de trabalho da equipe interdisciplinar, sofrendo influência: da liderança política, da relação interpessoal, do acolhimento, do trabalho cotidiano, da interação profissional, das articulações entre as ações e das relações de poder entre os profissionais/profissionais e equipe/população. Para Arendt, “[...] a esfera política resulta diretamente da ação em conjunto, da co-participação de palavras e atos. A ação, portanto, não apenas mantém a mais íntima relação com o lado público do mundo, comum a todos nós, mas é a única atividade que o constitui” (Arendt, 2008b, p.210). Machado (2005) aponta a existência de fragilidades no trabalho em equipe, que significa interação entre os diversos profissionais – um dos pilares deste modelo de atenção, orientado à integralidade nos cuidados de saúde pautada na relação entre a complementaridade de trabalhos e a interação dos profissionais (Araújo, Rocha, 2007; Chaves, 2003). Nesta perspectiva, ao adotar a ESF o enfoque no atendimento integral, humano, complexo e multidimensional, há necessidade de profissionais que articulem sua atuação profissional de maneira intersetorial com a realidade adscrita (Moretti-Pires, 2009). As relações de poder demonstradas na aplicação do Modelo Teórico arendtiano proposto apontam para a desconsideração de conhecimentos próprios dos usuários, discurso antagônico à relação horizontal na ESF. Uma explicação a esta manifestação pode ser a formação dos profissionais de saúde ainda se orientar por conceitos antropológicos hegemônicos na década de 1960, em que a cultura do outro – no caso, o usuário – é tomada como um saber ‘exótico’ ou primitivo, com supervalorização do conhecimento biomédico (Boehs et al., 2007). Existem dificuldades, por parte dos profissionais, de ouvirem demandas dos usuários e, por consequência, tratá-los como sujeitos, permanecendo o enfoque do cuidado centrado nos protocolos de saúde, e não no usuário (Silvia, Trad, 2005; Pires, 2005). Estes achados implicam a discussão da categoria ‘cuidado’, que tem sido re-significada na literatura atual em direção às dimensões sociais e políticas, mediação entre ajuda e poder de ajudar, implicando a questão de autonomia dos usuários. Na ESF, a produção de serviços de saúde não deveria se distanciar da noção de historicidade do usuário como sujeito, de conhecimentos próprios e tão importantes quanto os saberes dos profissionais de saúde. Esta abordagem está diretamente implicada nas relações de poder, estabelecidas tanto no interior da equipe como em sua relação com os usuários, conforme aplicação dos pressupostos arendtianos já expostos. Com relação ao trabalho em equipe, há cristalização de problemas corporativos clássicos em Saúde no contexto investigado. A Enfermagem aponta para constante luta por valorização e para se firmar perante as demais profissões; o médico se concebe como figura central do trabalho nos serviços; enquanto fica patente a pouca relação dos odontólogos com a equipe, a exemplo de sua conceituação de que equipe é o agregar dos diversos profissionais em um mesmo local. Estas perspectivas são contraditórias com os princípios do trabalho multiprofissional efetivo. São características imprescindíveis deste: a interdisciplinaridade e visão crítico-social, a expertise técnica confluente com relações intersubjetivas dialógicas e respeitosas para com o outro, em que um profissional de saúde deve tanto se articular com os demais como promover articulação intersetorial (Moretti-Pires, 2009; Figueiredo, 2006; Schraiber et al., 1999). Trata-se de um padrão arraigado no processo de trabalho nas equipes investigadas, podendo estar implicado no silêncio/resistência destes profissionais em discutir o trabalho pela lógica da ESF (Moretti-Pires, 2009). De maneira dicotômica com o modelo aredtiano proposto, a postura autoritária permeou os discursos, não apenas com relação ao usuário, mas também para com a equipe, na qual o enfermeiro percebe-se como líder da gestão, o médico percebe centralidade e status superior aos demais, por julgar possuir maiores conhecimentos técnicos em saúde. Houve certo silêncio nos discursos sobre a relação da Odontologia com as demais profissões do trabalho em equipe. Estas perspectivas implicam ausência na construção de um projeto coletivo na ESF, que depende não apenas das formas concretas de organização do trabalho, mas, também, da distribuição de poder na equipe, em conformidade com os pressupostos arendtianos e o preconizado para o trabalho na ESF, conforme modelo teórico do presente artigo.

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Considerações finais No que concerne à situação da ESF no município investigado, fundamentando a análise no modelo teórico proposto a partir dos trabalhos de Hannah Arendt, avalia-se que existe desacordo entre o discurso e a ação, apesar de mecanismos tais como a implementação do Pacto de Saúde. Percebeuse a ausência de estratégias de trabalho consolidadas, com ênfase nas necessidades de saúde da população, visando alcançar maior efetividade, eficiência e qualidade de suas respostas, visualizadas nos resultados sanitários em função das necessidades de saúde da população e na busca da equidade social, preconizados pelo pacto. Os resultados encontrados trazem a percepção de ausência de trabalho em equipe genuíno, reflexo de um contexto em que cada profissional exerce sua função de forma isolada, não compartilhada, o que contribui para o estabelecimento de conflitos de poder entre os diversos atores. O poder exercido pela gestão imobiliza as ações de trabalho coletivo, com fragmentação na organização do processo de trabalho, manutenção de antigas disputas corporativas refletidas nas relações de poder entre os profissionais, assim como entre a equipe e a população. Como consequência, há descrença na ESF como idealizada. Em termos arendtianos, há divergência entre o discurso idealizado para o SUS – operacionalizado no campo empírico investigado pela ESF – e a ação. Hannah Arendt conceitua a ação como os atos praticados de maneira indissociável das palavras ou discurso, pois quando ocorre dissociação há enfraquecimento. Este enfraquecimento é indesejável, uma vez que, como diz Arendt: “É o poder que mantém a existência da esfera pública, o espaço potencial da aparência entre homens que agem e falam” (Arendt, 2008b, p.212). Esta potencialidade pode ser efetivada, e não a materializada. O modelo teórico com base nos pressupostos arendtianos pode orientar a avaliação da relação de poder na equipe multiprofissional da ESF, contribuindo para a construção de estratégias que venham gerar subsídios para identificar aquilo que está sendo alcançado e o que interfere nas relações humanas que permeiam o trabalho em equipe neste modelo assistencial.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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OLIVEIRA, H.M.; MORETTI-PIRES, R.O.; PARENTE, R.C.P. Las relaciones de poder en equipo de profesionales de Salud de la Familia en un modelo teórico de Hannah Arendt. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.539-50, abr./jun. 2011. La Estrategia de Salud de la Familia (ESF) se basa en el trabajo en equipo distanciado del modelo centrado en el médico. Este trabajo propone un modelo teórico para evaluar la relación de poder en el equipo multi-profesional basado en los trabajos de Hannah Arendt. Con el análisis de documentos legales de la ESF y los presupuestos de tales trabajos se establece un modelo teórico para evaluar la ESF. Se aplicaron grupos focales con los equipos de salud y entrevistas individuales en el municipio de Manacaparu, estado de amazonas, Brasil. Los resultados muestran que cada profesional ejecuta su trabajo de forma aislada; la política municipal limita el trabajo colectivo como tiranía en la perspectiva de Arendt, desacreditando a la ESF.

Palabras clave: Poder. Salud de la familia. Equipo de atención al paciente. Grupo focal. Recebido em 22/01/2010. Aprovado em 23/11/2010.

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artigos

Desafios da integralidade:

revisitando as concepções sobre o papel do fisioterapeuta na equipe de Saúde da Família

Laura Maria Tomazi Neves1 Giovanni Gurgel Aciole2

NEVES, L.M.T.; ACIOLI, G.G. Challenges of integrality: revisiting concepts about the physical therapist’s role in the Family Health Team. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.551-64, abr./jun. 2011.

Brazil’s main strategy in public health is the Family Health Program; however, the participation of healthcare professionals other than physicians and nurses in primary care activities is incipient. The aim of this study was to perform a systematic review of the academic opinion regarding the physical therapist’s role in the family health team. We performed searches in the Health Virtual Library (BVS/Bireme/PAHO/ WHO) from January 1994 to July 2009. The adopted strategy was the intersection of the descriptors: Family Health Program, Family Health, Public Health, Physical therapy (specialties), Physical therapy (modalities). Of the 51 located studies, 14 were not available. The remaining studies were analyzed and seven were selected for respecting the inclusion criteria. It was concluded that, despite the efforts, the actions developed by the physical therapist in the Family Health Program are not clearly defined yet.

Keywords: Physical therapy. Physical therapy modalities. Family health. Public health.

A estratégia prioritária nacional na Saúde Coletiva é a Saúde da Família (PSF), no entanto, é incipiente a participação de outros profissionais de saúde na atenção primária, além da Medicina e Enfermagem. O objetivo deste estudo foi realizar uma revisão sistemática da visão acadêmica do papel do fisioterapeuta na equipe de saúde da família (ESF). Foi realizada pesquisa bibliográfica no portal da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS/Bireme/OPAS/OMS), de janeiro de 1994 a julho de 2009. A estratégia adotada foi o cruzamento dos seguintes descritores: Programa Saúde da Família, Saúde da Família, Saúde Coletiva, Saúde Pública, Fisioterapia (especialidades), Fisioterapia (técnicas), modalidades de fisioterapia. Dos 51 trabalhos localizados, 14 não estavam disponíveis. O restante foi analisado e sete foram selecionados por contemplarem os critérios de inclusão. Conclui-se que, apesar dos esforços, a fisioterapia ainda não possui uma definição clara em relação a sua atuação no PSF.

Palavras-chave: Fisioterapia. Modalidades de fisioterapia. Saúde da família. Saúde pública.

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1 Laboratório de Fisioterapia Cardiovascular, Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luís, km 235 - SP-310, São Carlos, SP, Brasil. 13565-905. lmtomazi@hotmail.com 2 Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos.

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Desafios da integralidade:...

Introdução No Brasil, a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem como um de seus focos prioritários a reorientação do modelo assistencial para a mudança do padrão de vida e saúde da população brasileira. Tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como base estruturante, e a Saúde da Família como estratégia prioritária (Brasil, 2007), no modelo em implantação, as práticas e ações dos profissionais de saúde precisam alcançar princípios fundamentais, dentre eles, a garantia da integralidade na produção do cuidado, vis-à-vis um trabalho multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial (Brasil, 2007; Escorel et al., 2007; Machado et al., 2006). A estratégia de saúde da família reúne, portanto, a perspectiva da APS e a dimensão integral, ou seja, reconhecendo e atuando sobre as condições de risco presentes na comunidade e buscando recursos coerentes com o contexto social, econômico e cultural em que esta comunidade se insere (Betini, Shuqair, 2009). Nesta estratégia, a equipe de saúde, multiprofissional e interdisciplinar, é considerada um importante dispositivo para a reorganização do processo de trabalho, visando um cuidado mais integral e resolutivo, resultante de práticas profissionais com diferentes recortes epistêmicos e efetuações clínicas, ante o desafio de responder às necessidades concretas de saúde dos usuários (Ceccim, 2004). A integralidade se configura, em cada caso, como um conjunto articulado de ações e serviços de saúde preventivos, curativos, individuais e coletivos, em todos os níveis de complexidade do sistema de saúde brasileiro (Pinheiro, Luz, 2003). O cuidado é caracterizado como uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido de uma ação integral, considerando e construindo projetos terapêuticos em que a relação profissional-paciente é dialógica, busca um tratamento que seja relevante e viável, e compreenda o indivíduo no contexto familiar e social no qual está inserido (Pinheiro, Guizardi, 2006; Alves, 2005; Ayres, 2004, 2001; Mattos, 2004, 2001). Como forma de ampliar as possibilidades de se realizar um cuidado integral e integração dialógica entre distintas especialidades e profissões, a Estratégia de Saúde da Família tem se valido da proposta de gestão do cuidado em equipes de referência e apoio matricial (Campos, Domitti, 2007). O apoio matricial em saúde busca assegurar retaguarda especializada e suporte técnico-pedagógico a equipes e profissionais encarregados da atenção a problemas de saúde - equipes de referência. Estas têm a responsabilidade pela condução de um caso individual, familiar ou comunitário. Essa forma de organizar o trabalho em saúde objetiva ampliar as possibilidades de construção de vínculo entre profissionais e usuários e depende da construção compartilhada de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma equipe de referência e os apoiadores matriciais, alocados nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Brasil, 2008). Essas diretrizes devem prever critérios para acionar o apoio e definir o espectro de responsabilidade dos diferentes integrantes de ambas as equipes de saúde (Campos, Domitti, 2007). No contexto da Equipe de Saúde da Família (ESF) e do SUS, vivenciamos, portanto, o desafio de promover a integralidade da atenção alicerçada em práticas interdisciplinares e multiprofissionais, que têm reclamado um esforço conjunto de setores articulados, no qual se destacam: as políticas setoriais propostas em conjunto pelo Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Saúde (MS), como sugeridas pela política de mudança na formação dos profissionais de saúde, e os projetos interinstitucionais, como, por exemplo, o Pró-Saúde. Por se tratar de um processo, a definição do objeto, habilidades, competências e instrumentos de trabalho individuais e coletivos dos membros da equipe de saúde passa por um processo de conformação contínua. O desenrolar da Estratégia de Saúde da Família tem-nos revelado, contudo, a incipiente incorporação de práticas de outros profissionais que não sejam oriundos da Medicina ou da Enfermagem. No momento em que emergem as ações interinstitucionais do MEC/MS, vemos aumentar a necessidade de uma reflexão sobre as concepções dos papéis das profissões de saúde nas ESF. Para esta situação, o exame da situação específica da formação em Fisioterapia constitui evidência a ser aprofundada. Até a década de 1980, a atuação do fisioterapeuta estava restrita à recuperação e à reabilitação, acompanhando as razões lógico-históricas que originaram a regulamentação dessa prática como 552

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profissão, logo depois do conflito mundial dos anos 1940. É a partir dos anos 1980 que a formação em Fisioterapia, por meio da redefinição de seu objeto de trabalho, passa a incorporar a promoção e a prevenção da saúde da população como área de atuação (Rebellato, Botomé, 2001). Desde então, os cursos de Fisioterapia têm incorporado, ora mais ora menos, a prevenção e a promoção nas suas estruturas curriculares. Em relação à atuação profissional, por exemplo, as diretrizes do Conselho Federal de Fisioterapia – COFFITO – (2009) que definem a atenção fisioterapêutica, abrangem o desenvolvimento de ações preventivas primárias (promoção de saúde e proteção específica), secundárias (diagnóstico precoce) e terciárias (reabilitação). Nesta mudança, acompanham um movimento mais amplo de transformação do ensino da graduação na área da saúde como um todo, de que são momentos norteadores: a década de 1990, com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB n° 9.394/96); e, mais recentemente, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), em que atuam conjuntamente MS e MEC (Andrade, Lemos, Dall’ago, 2006). As DCN direcionam o processo ensino-aprendizagem para o desenvolvimento de competências, habilidades e conteúdos com o intuito de capacitar os profissionais a atuarem segundo os princípios e diretrizes do SUS e da Reforma Sanitária Brasileira. Em boa medida, o fisioterapeuta ainda concentra suas ações na recuperação da saúde dos indivíduos, embora já se possa observar a participação desses profissionais em atividades de atenção primária, enfatizando a sua importância na atuação em Saúde Coletiva (Tesserolli, 2003). Nesse tipo de estratégia de cuidado em saúde, a atuação profissional deve ser separada da dicotomia saúdedoença, pelo fato de esse conceito não ser apropriado para entender o objetivo de trabalho no campo de Saúde Coletiva, que carrega consigo o paradigma da determinação social da saúde e da doença enquanto um processo relacional. Nesse redirecionamento está explicita uma concepção de trabalho em saúde baseada nos desafios ético-políticos da transdisciplinaridade, multiprofissionalidade e integralidade, que habitam o campo paradigmático da reorientação das práticas de atenção do SUS e de sua Estratégia de Saúde da Família. Sob os auspícios de uma concepção ampliada de saúde, busca-se: respeitar as diversidades e considerar o sujeito enquanto ator social responsável por seu processo de vida, inserido num ambiente social, político, cultural; ampliar a integração ensino-serviço, com a definição de corresponsabilidades entre os atores, transformando o antigo “campo de estágios” em cenários reais de ensinoaprendizagem, o que aponta, para o aluno, um papel proativo na sua formação; integrar os saberes dos diferentes profissionais, como base para a consolidação do processo de formação em equipe. A integração orgânica das Instituições de Ensino Superior (IES) com os serviços de saúde em todos os níveis de atenção é a base da proposta de Educação Permanente (Brasil, 2002). Na arena das políticas setoriais envolvendo a dupla saúde-educação, podemos verificar a presença de algumas forças tensionais: a definição, ainda em formação, do objeto de trabalho dos profissionais ao se incorporarem ao SUS; as reformas curriculares e institucionais na formação em saúde; e as propostas de atuação em saúde coletiva oferecidas pelos dirigentes do sistema por meio dos NASF e/ou dispositivos correlatos. É sob esse paradigma que o campo da saúde coletiva enfrenta as vicissitudes da questão da atenção à saúde perseguindo as dimensões de integralidade e de universalidade. Nele, a estratégia prioritária atual é a da Saúde da Família. Esta é, portanto, um dispositivo de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde (UBS) sob as diretrizes operacionais da territorialização e da adscrição de clientela. Isto significa dizer que as equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada (Brasil, 2009a). Como objetivo principal desta estratégia, podemos apontar o desenvolvimento de ações interdisciplinares de prevenção e promoção da saúde; muito embora as equipes de saúde também devam executar ações de recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, operando, desse modo, na manutenção da saúde desta comunidade (Marques et al., 2007). A Estratégia de Saúde da Família apresenta, atualmente, uma cobertura populacional nacional de 49%, com 29.057 equipes de saúde em 5.220 municípios (Brasil, 2009b). A implementação da portaria n° 1.065, de 4 de julho de 2005, do Ministério da Saúde, a qual cria os Núcleos de Atenção Integral na Saúde da Família, tem a finalidade de ampliar a integralidade e a resolubilidade da Atenção 553


Desafios da integralidade:...

à Saúde, tornando possível pensar a inclusão do fisioterapeuta e de outros profissionais de saúde na ESF dos municípios brasileiros (Brasil, 2009c; Castro, Cipriano Jr., Martinho, 2006). Contudo, podemos nos interrogar em que nível de discussão se encontram os profissionais e a comunidade acadêmica de fisioterapeutas tanto a respeito da definição clara e distinta do seu objeto de trabalho nesse campo quanto do consequente direcionamento da formação profissional em diálogo com esse objeto. A pauta dos debates ainda parece circular num polígono de discursos incongruentes no qual, de um lado, as demandas pela incorporação não são reconhecidas; de outro, a formação não é orientada; de um terceiro, ainda se tem uma identidade em construção; e, num quarto, não há nitidez da proposta de saúde coletiva para todos os envolvidos. De maneira geral, o fisioterapeuta atuaria de forma integrada com a ESF, realizando ações de promoção à saúde e prevenção de doenças, desenvolvidas de forma multiprofissional. O entendimento do conceito de interdisciplinaridade por parte dos profissionais que compõem a equipe, incluindo-se o fisioterapeuta, norteia as ações desenvolvidas na ESF. Esse é um dos conceitos que devem ser bem trabalhados no processo de formação, em virtude da necessidade de profissionais reflexivos a cerca do conceito abrangente de saúde e de sua posição como receptor e difusor desse conhecimento. Apesar dos esforços de diversas partes, a fisioterapia ainda não possui uma definição clara em relação a sua atuação na ESF, fato esse consequente de vários fatores, como: desarmonia entre a formação acadêmica e a prática profissional, e baixo nível de reflexão acerca dos conceitos básicos em Saúde Pública por parte dos fisioterapeutas. Inicialmente, para se entender como esse cenário foi construído, é necessário compreender que a ESF tem como objetivos centrais: a prestação de assistência integral, resolutiva e de qualidade às necessidades de saúde da população adscrita, destacando-se as demandas do núcleo familiar. No contexto multidisciplinar, a ESF apresenta atribuições básicas comuns a todos os seus membros, que, segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2000), são as seguintes: • Conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável, identificar os problemas de saúde mais comuns e as situações de risco às quais a população está exposta; • Executar, de acordo com a qualificação de cada profissional, os procedimentos de vigilância à saúde e de vigilância epidemiológica, nos diversos ciclos da vida; • Garantir a continuidade do tratamento, pela adequada referência do caso; • Prestar assistência integral, respondendo, de forma contínua e racionalizada, à demanda, buscando contatos com indivíduos sadios ou doentes, visando promover a saúde por meio da educação sanitária; • Promover ações intersetoriais e parcerias com organizações formais e informais existentes na comunidade, para o enfrentamento conjunto dos problemas; • Discutir, de forma permanente, junto à equipe e à comunidade, o conceito de cidadania, enfatizando os direitos de saúde e as bases legais que os legitimam; • Incentivar a formação e/ou participação ativa nos conselhos locais de saúde e no Conselho Municipal de Saúde. Consoante a crescente importância dos cuidados de fisioterapia nos serviços de atenção primária à saúde, a inserção deste profissional é um processo em construção. O projeto de lei que dispõe sobre a obrigatoriedade do atendimento fisioterápico pelas ESF ainda encontra-se em trâmite. A inclusão de fisioterapeutas nas equipes de saúde da família contribuiria para o alcance da integralidade no SUS: uma vez que a realidade demográfica e a epidemiológica demonstram que as doenças e agravos não transmissíveis representam a maior causa de morbimortalidade em nosso país, muitas dessas condições tornam necessário um maior acesso da população aos serviços prestados pelos demais profissionais de saúde, entre os quais, os fisioterapeutas (Silva, Da Ros, 2007). Apesar da indução governamental na inclusão do fisioterapeuta na ESF, os documentos oficiais em nada fazem alusão a qual seriam as atribuições específicas desse profissional na equipe de saúde da família (Silva, Da Ros, 2007). Baseado nessa indefinição, este estudo procurou trazer a visão acadêmica, as opiniões e as experiências de fisioterapeutas quanto a essas atribuições a partir da seleção de publicações disponíveis na literatura. Sendo assim, este trabalho tem como objetivo realizar 554

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uma revisão sistemática da visão da produção científica divulgada no país sobre como vem sendo abordado o papel do fisioterapeuta e sua relação com/ e na ESF.

Materiais e métodos Em virtude da necessidade de se entender a demanda de atuação do fisioterapeuta na saúde coletiva, focalizando-se na ESF, os autores levantaram alguns questionamentos. Primeiro, se já existiria uma definição do papel e do campo de trabalho do fisioterapeuta para esta inserção. E, segundo, como se encontra o estado da arte a respeito desse tema na visão dos periódicos científicos da área da saúde. A localização e seleção dos estudos foram realizadas por meio de pesquisa bibliográfica no portal da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS/Bireme/OPAS/OMS), além da procura manual nas referências dos artigos. A pesquisa compreendeu o período de janeiro de 1994 a julho de 2009. A estratégia adotada foi o cruzamento, para busca, dois a dois, de descritores, conforme relacionado no Quadro 1. Quadro 1. Metodologia de cruzamento dos descritores 1. programa saúde da família;

a. fisioterapia (especialidades);

2. saúde da família;

b. fisioterapia (técnicas);

3. saúde coletiva;

c. modalidades de fisioterapia.

4. saúde pública. Cruzamentos: 1+a; 1+b; 1+c; 2+a; 2+b; 2+c; 3+a; 3+b; 3+c; 4+a; 4+b; 4+c.

Em virtude da reduzida amostra de estudos, já evidenciada por outros autores (Frazão, Costa, 2006), foram aceitos todos os tipos de estudo que analisavam a participação do fisioterapeuta na ESF. A avaliação crítica dos estudos encontrados foi baseada nos critérios de inclusão e exclusão. Foram excluídos os estudos que não descreveram e/ou não analisaram a participação do fisioterapeuta na ESF. Além disso, foram excluídos, também, estudos localizados em fontes não disponíveis.

Resultados Dos 51 trabalhos localizados na literatura (Quadro 2), dois foram excluídos devido as suas referências apresentarem erros de confecção, impossibilitando a obtenção dos artigos na íntegra. Além disso, 12 trabalhos não estavam disponíveis em formato eletrônico. Os 37 restantes foram analisados, sendo selecionados seis, por respeitarem os critérios de inclusão do estudo. Um estudo foi incluído na consulta de uma coletânea de artigos de relatos de experiências de fisioterapeutas na saúde coletiva, publicado pela editora FisioBrasil. Esse estudo também respeitava os critérios de inclusão.

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Quadro 2. Características da busca e seleção dos estudos Cruzamento

Nº de estudos

Disponíveis

LCO*

Critérios de inclusão

1+a

06

05

0

05

1+b

01

01

01

01$

1+c

01

01

01

01$

2+a

03

03

02

02#

2+b

09

09

01

01$

2+c

09

09

01

01$

3+a

02

02

01

0

3+b

03

0

0

0

3+c

05

02

05

0

4+a

05

01

02

0

4+b

02

02

02

0

4+c

05

02

05

0

Total

51

37

21

07

LCO = estudos localizados em cruzamentos anteriores; Dois estudos no cruzamento x foram excluídos por apresentarem erros de confecção, não podendo, assim, ser localizados. $Estudo já contabilizado no primeiro cruzamento; #Um estudo já contabilizado no primeiro cruzamento.

Os cruzamentos acima geraram, como fruto, uma coletânea de sete artigos. Para análise desse material, foi realizada uma leitura instrumental dos mesmos para se extraírem os objetivos, se identificarem as metodologias e as conclusões. Esse processo teve como intuito a visualização mais clara do desenho dos estudos e das possíveis semelhanças e divergências entre esses. Posteriormente, foi feita a exploração do material pela leitura detalhada por dois indivíduos isoladamente. Em seguida, as impressões foram registradas e discutidas entre os autores. Nos quadros 3 e 4, foram apresentadas a catalogação e as características dos artigos incluídos nesta revisão. Quadro 3. Características dos estudos selecionados N°

Ano

Estudo

Objetivo

1

2005

Brasil, A. C. O. et al. O papel do fisioterapeuta do programa saúde da família do município de Sobral-CE.

Descrever a atuação do fisioterapeuta, no PSF do município de Sobral-CE, através do perfil socioeducacional dos fisioterapeutas.

2

2006

Castro, S. S. et al. Fisioterapia no programa de saúde da família: uma revisão e discussões sobre a inclusão.

Abordar a inclusão do profissional fisioterapeuta.

3

2007

Silva, D. J. et al. Inserção de profissionais de fisioterapia na equipe de saúde da família e Sistema Único de Saúde: desafios na formação.

Desvelar o papel do fisioterapeuta no Programa Saúde da Família, focalizando a integralidade e objetivando analisar a formação acadêmica.

4

2007

Trelha, C. S. et al. O fisioterapeuta no PSF em Londrina-PR.

Conhecer as principais características do atendimento fisioterápico no município de Londrina (PR) e as dificuldades com relação à atividade profissional. Continua

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5

2002

Véras, M. O fisioterapeuta no PSF.

Descrever a atuação do fisioterapeuta no PSF do município de Sobral-CE.

6

2005

Gallo, D. L. L. A fisioterapia no programa saúde da família: percepções em relação à atuação profissional e formação universitária.

Analisar a inserção e a prática do fisioterapeuta no PSF do município de Londrina e as adequações da formação universitária a essa atuação.

7

2005

Maciel, R. V. et al. Teoria e prática e realidade social: uma perspectiva integrada para o ensino da Fisioterapia.

Descrever a experiência no PSF e refletir como a mesma influenciou na formação dos acadêmicos do último período do Curso de Fisioterapia da UFMG.

artigos

Quadro 3. Continuação

Quadro 4. Construção metodológica e conclusões dos estudos selecionados N°

Metodologia

Conclusões

1

Método quantiqualitativo utilizando formulário.

- Atuação na saúde materno-infantil (06 ações), saúde escolar (02 ações), saúde do idoso (03 ações), saúde do adulto (02 ações), saúde da mulher (01 ação) e educação em saúde (03 ações).

2

Revisão bibliográfica

- Atuação no planejamento, implementação, controle e execução de programas e projetos de ações em atenção básica de saúde; - Promoção e participação em estudos e pesquisas voltados à inserção de protocolos da sua área de atuação nas ações básicas em saúde; - Planejamento e execução de treinamento e reciclagem de recursos humanos em saúde; - Participação em órgãos colegiados de controle em saúde.

3

Método qualitativo tipo estudo de caso, através de roteiro para entrevista focalizada e entrevista semiestruturada com três enfermeiras do Programa Saúde da Família, três professoras, duas estagiárias e um vice-coordenador do curso de graduação em Fisioterapia.

- Atuação do fisioterapeuta pautada nas doenças.

4

Método qualitativo utilizando entrevista com quatro fisioterapeutas do PSF.

- Atuação do fisioterapeuta na reabilitação de pacientes acamados e no trabalho preventivo e educativo junto à população; - Redução da demanda de atendimento em níveis de maior complexidade de atenção à saúde em virtude das ações preventivas e assistenciais.

5

Método quantiqualitativo de avaliação das necessidades em saúde da comunidade e atuação do fisioterapeuta.

- Atuação na saúde materno-infantil (01 ação), saúde escolar (01 ação), saúde do idoso (01 ação) e saúde do adulto (01 ação).

6

Método quantiqualitativo utilizando entrevista semiestruturada com oito fisioterapeutas do PSF e seis fisioterapeutas professores de instituições de Ensino Superior.

- O perfil profissional requerido para atuação no PSF incluiu: formação generalista, flexibilidade e criatividade, empatia, autonomia e iniciativa, capacidade de trabalho em equipe e conhecimento sobre o SUS.

7

Método quantiqualitativo utilizando pesquisa de campo para caracterização da população adscrita do PSF e posteriores reuniões com as equipes do PSF e alunos, para que refletissem sobre as possibilidades e desafios da intervenção da Fisioterapia na atenção primária à saúde.

- Essa estratégia é uma tentativa de trabalhar uma das principais dificuldades do PSF, que é a formação de recursos humanos capazes de perceber, refletir e propor ações modificadoras da realidade social e de saúde da população. Sendo assim, a Universidade caminha para cumprir o seu papel gerando conhecimento relevante e formando profissionais voltados às necessidades sociais.

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Discussão Os artigos selecionados apresentam os resultados de experiências nacionais isoladas da inserção do fisioterapeuta na ESF, seja sobre a ótica de docentes, de fisioterapeutas integrantes da equipe de saúde da família ou fisioterapeutas residentes em Saúde da Família. Esse fato confirma que os sete estudos selecionados são representativos da realidade de publicação em relação à inserção do fisioterapeuta na ESF (Castro, Cipriano Jr., Martinho, 2006). O estudo 01 relata a experiência desenvolvida no município de Sobral-CE, vista pelo perfil socioeducacional dos fisioterapeutas envolvidos no estudo e por meio das ações realizadas por aqueles profissionais nesse município. Foram analisadas as atividades profissionais desenvolvidas pelos fisioterapeutas frente à demanda existente. Além disso, foi feita uma análise, pelos profissionais, sobre: as dificuldades no desenvolvimento de suas atividades, os aspectos positivos da atividade profissional, o grau de conhecimento da comunidade sobre sua atividade profissional, e as perspectivas de novas realizações pelos profissionais (Brasil et al., 2005). As ações da fisioterapia devem considerar que uma equipe de saúde da família pode ser responsável por até 4.500 pessoas adscritas, e que essas ações (investigação, educação e assistência) devem ser direcionadas ao contexto social da região para garantir a resolutividade do atendimento. Das ações desenvolvidas pelos fisioterapeutas do Programa de Saúde da Família (PSF) do município de Sobral-CE, 67% dessas atividades estavam relacionadas à promoção da saúde, prevenção de doenças ou foram realizadas de maneiras integradas à ESF; enquanto 24% estavam relacionadas ao modelo individual e curativo. As dificuldades referidas por esses fisioterapeutas focaram-se: no número insuficiente de profissionais, dificuldades estruturais e materiais, e desconhecimento da população, de outros profissionais e dos gestores quanto às funções desenvolvidas pelo fisioterapeuta (Brasil et al., 2005). Esse cenário é característico quando se considera a mudança do paradigma reabilitador no qual o fisioterapeuta está inserido. Além disso, a ampliação do campo profissional que representa a ESF e a visão interdisciplinar da saúde a que esse se propõe ainda é um campo em construção na sociedade entre os profissionais. O estudo 02 fomenta, de maneira histórica e teórica, a discussão quanto à inclusão do fisioterapeuta na ESF. Os autores discutem os paradigmas norteadores de toda a estratégia de atenção à comunidade e interação da equipe de saúde: a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade. O conceito de ação multiprofissional trazido pelos autores considera o trabalho em equipe multiprofissional ou multidisciplinar uma modalidade de trabalho coletivo que se configura na relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais, sendo que a articulação das ações multiprofissionais e a cooperação entre os membros da equipe se desenvolveriam por meio da comunicação (Peduzzi, 2001). Além disso, complementam que a relação de trabalho se torna interdisciplinar quando há margem para maior diversidade de ações em saúde e busca permanente do consenso na equipe. Talvez seja a partir da abordagem dos conceitos de multidisciplinaridade e interdisciplinaridade que a indeterminação e as dúvidas sobre qual seria o papel do fisioterapeuta na ESF surjam de maneira mais clara. Primeiramente, a construção de uma equipe multidisciplinar deve ser focalizada em indivíduos dispostos a entenderem a saúde na sua dimensão coletiva e que sejam passíveis de adaptações no campo de trabalho. A partir desse ponto, as ações e saberes específicos de cada membro da equipe interagem no processo de promoção de saúde e prevenção de doenças. Sendo que a interdisciplinaridade norteia esse processo a partir do momento que os membros da equipe são capazes de articular, no exercício de seu trabalho, os conhecimentos específicos com os saberes coletivos, em busca de uma prática que transcenda o conhecimento fragmentado (Vilela, Mendes, 2003). A proposta de atuação deve ser baseada na avaliação das demandas, com ações prioritariamente preventivas e objetivando a independência em saúde da população, aumentando-se, assim, a resolutividade e a abrangência das ações propostas pela Fisioterapia. Contemplando os conceitos citados, Castro, Cipriano Jr. e Martinho (2006) trouxeram, como proposta de atuação do fisioterapeuta, no nível da atenção básica em saúde:

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artigos

• Participação das equipes multiprofissionais destinadas ao planejamento, implementação, controle e execução de programas e projetos de ações em atenção básica de saúde; • Promoção e participação de estudos e pesquisas voltados à inserção de protocolos da sua área de atuação nas ações básicas em saúde; • Participação do planejamento e execução de treinamento e reciclagem de recursos humanos em saúde; • Participação em órgãos colegiados de controle em saúde. O estudo 03 procurou desvelar o papel do fisioterapeuta na ESF, focalizando no conceito de integralidade e na formação acadêmica. Os autores pretenderam fornecer, com esse artigo, subsídio reflexivo aos que trabalham por mudanças na saúde. Novamente, é abordada a falta de clareza sobre o objeto de trabalho da fisioterapia. Fato este que induz às indefinições do campo de atuação do profissional e seus reflexos na formação acadêmica, e reitera o que já se apontava há mais de uma década (Cecatto et al., 1992). Em especial, é enfatizada a importância da educação em saúde e do treinamento participativo de toda a equipe para que possa haver integração das ações e troca de experiências. Contudo, a indefinição das necessidades do sistema promove um círculo vicioso no qual a saúde não sabe o que precisa e a educação não sabe para que forma. Nesse ponto, a Universidade deve estar sensível a esta mudança de cenário de atuação em saúde para contemplar uma de suas funções, que é a de fornecer novos profissionais preparados para ingressarem nessa realidade (Silva, Da Ros, 2007). O estudo 04 procurou conhecer as principais características do atendimento fisioterápico no município de Londrina-PR e as dificuldades com relação à atividade profissional. Inicialmente, é feita uma cronologia da construção da saúde coletiva até a vivência atual da ESF, sendo os profissionais convidados a pensarem sobre uma nova forma de trabalho em equipe com participação da comunidade e com inclusão do planejamento na prática individual. Além disso, aborda a formação da equipe mínima multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACS) e cirurgião dentista, e enfatiza que a inclusão de outros profissionais deve ser realizada de acordo com as necessidades locais (Schwingel, 2002). No estudo, surge uma proposta que contempla o conceito de promoção e educação em saúde, que é o de treinamento de cuidadores. Essa seria estruturada em um programa organizado, com reavaliações periódicas de indivíduos com dependência funcional total ou para os quais a família não possua estrutura para garantir o acompanhamento no Núcleo de Saúde Integral de Reabilitação (NSI-Reab). Dessa forma, o fisioterapeuta poderia destinar uma maior parte do tempo em ações preventivas, ao invés de ações assistenciais procedentes da demanda reprimida ou não absorvida pelos centros de reabilitação. Os autores abordam um tema que não seria discutido nessa revisão, no entanto, devido a sua recorrência nos estudos selecionados, este, inevitavelmente, será abordado. Em virtude da própria construção profissional, para muitos, o fisioterapeuta é reconhecido como profissional indispensável na área da saúde apenas em sua função reabilitadora. Com isso, sua atuação no campo preventivo e de promoção à saúde é pormenorizada (Rebellato, Botomé, 2001). Contudo, surge um questionamento: até que ponto a atuação do fisioterapeuta na ESF não está sendo realizada apenas de forma reabilitadora? Em todos os estudos selecionados, o fisioterapeuta realizava atendimentos voltados à reabilitação, sejam de forma individual ou em grupo e por meio de visitas domiciliares ou por consultas no posto de saúde. Sendo que, na maioria desses, essas atividades ocupavam quase que a totalidade da jornada de trabalho do fisioterapeuta. Além disso, em alguns municípios, as ações voltadas para a promoção da saúde e prevenção de doenças estão alocadas fora da jornada de trabalho. Segundo Trelha (2007), esse cenário ocorre em virtude da grande demanda reprimida por atendimento curativo/reabilitador e ao reduzido número de fisioterapeutas atuantes na ESF. Com isso, o papel do fisioterapeuta enquanto agente multiplicador de saúde, com atuação voltada para a promoção da saúde e prevenção de doenças, é colocado em segundo plano, sendo contrário ao princípio norteador do programa: a integralidade.

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O estudo 05 apresenta uma estratégia utilizada para tentar abranger a atuação da Fisioterapia em todas as suas facetas. O cenário era semelhante ao descrito anteriormente. Os profissionais, com base no diagnóstico da comunidade, elaboravam um plano de ação, priorizando algumas áreas, sendo realizados: atendimentos coletivos, visitas domiciliares a pacientes restritos ao leito, atividades educativas em geral e alguns atendimentos individuais. A estruturação da ação baseada em frentes de trabalho prioritárias é essencial para que se possa garantir a resolutividade do sistema para aquela realidade social. No entanto, ainda se observa a necessidade de intervenção assistencialista em virtude de uma demanda não absorvida pelo sistema de saúde. Após a inserção da fisioterapia na comunidade e na equipe, 50% dos demais profissionais afirmaram que passaram a ter uma visão mais completa do paciente; 25% revelaram uma melhoria no atendimento à comunidade; 15% afirmaram ter diminuído a dificuldade de transporte dos pacientes restritos ao leito, e 10% citaram que, após a inserção, foi possível conhecer melhor os campos de atuação da Fisioterapia (Véras, 2002). O estudo 06 procurou, de forma bem detalhada, analisar a inserção e a prática do fisioterapeuta na ESF do município de Londrina-PR e as adequações da formação universitária a essa atuação. Em um capítulo em especial, faz uma análise da Fisioterapia como profissão a partir de uma coletânea de experiências nacionais na estratégia de Saúde da Família e no desenvolvimento de recursos humanos em saúde (Gallo, 2005). Assim como nos demais estudos, foi apenas demonstrada a experiência isolada de um local, sem que tenha sido feita uma proposta de como deva ser orientada a atuação do fisioterapeuta. Esse fato está ligado à incipiente discussão nacional dos profissionais, dos órgãos de regulamentação, das entidades representantes de classe e do governo acerca deste tema. A Fisioterapia como profissão, ou área de conhecimento, é uma ciência recente, e seu objeto de trabalho está centrado no ser humano, independente de sua condição de saúde. Contudo, os instrumentos e condutas representativos de seu saber específico e sua atuação são antigos, e não foram desenvolvidos de maneira exclusiva por uma categoria profissional (Trelha, 2002). Os autores abordam, novamente, o estigma reabilitador, trazendo a reflexão proposta por Deliberato (2002). Segundo esse autor, o fisioterapeuta, além de estar inserido no mesmo contexto dos demais profissionais da saúde com formação direcionada à doença, padece deste infortúnio de forma mais acentuada, já que é visto como “o profissional da reabilitação”. Contudo, hoje, o fisioterapeuta é um membro da equipe de saúde com sólida formação científica e que deve atuar em ações de prevenção, avaliação, tratamento e reabilitação. O estudo 07 trouxe uma metodologia interessante, na qual graduandos do último ano de Fisioterapia foram inseridos na ESF com o objetivo de identificarem as necessidades sociais e de saúde da população e, posteriormente, refletirem, junto com as equipes de saúde, sobre o papel do fisioterapeuta como agente transformador da realidade. Essa estratégia é uma tentativa de se trabalhar uma das principais dificuldades da ESF, que é a formação de recursos humanos capazes de perceberem, refletirem e proporem ações modificadoras da realidade social e de saúde da população (Schwingel, 2002). Sendo assim, a Universidade caminha para cumprir o seu papel, gerando conhecimento relevante e formando profissionais voltados às necessidades sociais. Esta é uma atitude de garantia de sobrevivência, já que, se a Universidade não for capaz de dar as respostas e promover as discussões necessárias para acompanhar as transformações das práticas de saúde que estão ocorrendo, pouco provavelmente encontrará alicerces de continuidade. Esta estratégia deve estar alicerçada em uma formação do fisioterapeuta direcionada às diretrizes de saúde pública e baseada na cooperação entre sociedade e equipe de saúde no cuidado do indivíduo e de sua família, sendo uma proposta de mudança do comportamento em relação ao processo de ensino-aprendizagem e das vivências em saúde (Maciel, Sampaio, Drummond, 2005).

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Considerações finais Uma primeira constatação é a incipiente quantidade de publicações tratando do tema fisioterapia e saúde da família, uma vez que a varredura em bancos de dados consolidados na área permitiu apenas identificar cinquenta e um estudos ao longo de quinze anos. Esse número é ainda mais restrito se considerarmos o enxuto número de sete estudos abordados. De maneira geral, no campo de publicações disponível sobre o tema, a abordagem do papel do fisioterapeuta está direcionada de forma integrada com a ESF na forma de ações de promoção à saúde e prevenção de doenças baseadas nos conceitos de interdisciplinaridade e multiprofissionalismo. No entanto, poucas definições são possíveis quando abordado o objeto de trabalho específico desse profissional no programa. Fato este que fomenta as dificuldades encontradas com respeito à inserção do fisioterapeuta na ESF. Com base nas experiências relatadas nos estudos analisados, foi possível reconhecer as propostas globais de atuação da fisioterapia baseadas no contexto social do local, no entanto não foi possível identificar um senso comum entre essas ações nos diferentes locais. Além disso, a inserção do fisioterapeuta na ESF, evidentemente, aumenta a resolutividade no SUS por meio de uma equipe apta para promover saúde integralmente. Observa-se que a indefinição em relação a sua atuação na ESF é consequência de vários fatores, como: desarmonia entre a formação acadêmica e a prática profissional; baixo nível de reflexão acerca dos conceitos básicos em saúde pública, por parte dos fisioterapeutas, e a preservação do paradigma reabilitador do fisioterapeuta. O aumento da expectativa de vida da população e o estilo de vida urbano no país trouxeram uma mudança do perfil epidemiológico e do cenário de saúde no Brasil. Para atender a essa demanda, é necessário o engajamento de profissionais de saúde de modo a viabilizar o papel crucial da saúde na inclusão social e na promoção da autonomia do indivíduo. O fisioterapeuta pode ser ator nesse processo e contribuir substancialmente para a conquista e desenvolvimento de uma assistência à saúde da população baseada na integralidade. Um profissional capaz de estudar e investigar o movimento humano e as funções corporais facilita o desenvolvimento social da motricidade humana, com consequente melhoria da qualidade de vida, e garante resolutividade e efetividade ao SUS (Baraúna et al., 2008). Diante disso, o fisioterapeuta se configura como um profissional fundamental para a ESF e a produção do cuidado na atenção primária, de maneira individual e coletiva. Sendo assim, o intuito deste estudo é fomentar a discussão sobre a atuação do fisioterapeuta na ESF para que se possa iniciar a construção de uma proposta nacional das diretrizes de atuação profissional com o objetivo de uniformizar a atuação básica nacional do fisioterapeuta, respeitando-se as nuances de cada região. Para isto, fazem-se necessárias mudanças na formação desses recursos humanos, a partir de um processo de transformação complexo que se inicia desde a graduação e continua após a inserção desse profissional no campo de trabalho com a proposta de educação permanente. Acredita-se que essa seria uma forma mais efetiva para a reversão do quadro de baixa inserção e subutilização do fisioterapeuta, privilegiando a promoção e prevenção da saúde da população.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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TESSEROLLI, S.L. A inserção do fisioterapeuta no Programa Saúde da Família. 2003. Monografia (Especialização em Saúde Coletiva) - Setor de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2003. TRELHA, C.S. O fisioterapeuta no programa saúde da família em Londrina (PR). Espaç. Saude (Online), v.8, n.2, p.20-5, 2007. _____. LER/DORT em fisioterapeutas da cidade de Londrina. 2002. Dissertação (Mestrado) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2002. VÉRAS, M. O fisioterapeuta no PSF. In: BARROS, F.B.M. (Org.). O fisioterapeuta na saúde da população: atuação transformadora. Rio de Janeiro: Fisiobrasil, 2002. p.185-92. VILELA, E.M.; MENDES, I.J.M. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev. Latinoam. Enferm., v.11, n.4, p.525-31, 2003. doi: 10.1590/S010411692003000400016.

NEVES, L.M.T.; ACIOLI, G.G. Desafíos de la integridad: revisión de las concepciones sobre el papel del fisioterapeuta en el equipo de Salud de la Familia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.551-64, abr./jun. 2011. La estrategia prioritaria nacional en la salud colectiva es la Salud de la Familia (PSF); sin embargo es incipiente la participación de otros profesionales de salud en la atención primaria más allá de Medicina y Enfermería. Este estudio realiza una revisión sistemática de la visión académica del papel del fisioterapeuta en el equipo de la Salud de la Familia con una investigación bibliográfica en el portal de la Biblioteca Virtual en Salud (BVS/ Bireme/OPAS/OMS) de enero 1994 a julio 2009. La estrategia ha sido el cruce de los siguientes descriptores: Programa Salud de la Familia, Salud de la Familia, Salud Colectiva, Salud Pública, Fisioterapia (especialidades), Fisioterapia (técnicas), modalidades de fisioterapia. Los siete trabajos seleccionados muestran que, pese a los esfuerzos, la fisioterapia todavía no cuenta con una definición clara en relación a su actuación en PSF.

Palabras clave: Terapia física. Modalidades de terapia física. Salud de la familia. Salud pública. Recebido em 05/02/2010. Aprovado em 03/11/2010.

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artigos

Concepção de saúde segundo relato de idosos residentes em ambiente urbano* Fátima Ferretti1 Rosane Paula Nierotka2 Márcia Regina da Silva3

Ferretti, F.; Nierotka, R.P.; Silva, M.R. Health conception according to reports of elderly people living in an urban environment. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.565-72, abr./jun. 2011.

Health is a phenomenon that becomes different according to biological, cultural, environmental, social and historical aspects, and to the way that each human being spends their life. This study aimed to investigate the health conception of elderly people living in an urban environment. It is a descriptive research with a sample of 17 elderly people. Data were collected by means of a semi-structured interview. The data analysis showed that the health conception was centered on the maintenance of independence, on the family’s support and on feeling responsible for the way they live their life. Seeing him/ herself as an actor of the process of living and ageing shows that elderly people assume their co-responsibility for their current health condition; this is evidence of change in social and political behavior, from a reactive to a pro-active condition in the process of life.

Keywords: Health. Elderly. Urban environment.

A saúde é um fenômeno que difere de acordo com os aspectos biológicos, culturais, ambientais, sociais e históricos e o modo como cada ser humano viveu sua vida. Este estudo teve como objetivo conhecer a concepção de saúde de idosos residentes em ambiente urbano. Trata-se de pesquisa descritiva com uma amostra de 17 idosos. Na coleta optou-se por uma entrevista semiestruturada. A análise dos dados mostrou que a concepção de saúde está centrada na manutenção da independência, no apoio da família e no sentir-se responsável pelo modo de viver a vida. Perceber-se como ator do processo de viver e envelhecer demonstra que o idoso assume sua corresponsabilização pela saúde vivida hoje, evidenciando uma mudança de comportamento social e político, da passividade para a participação ativa no processo de vida.

Palavras-chave: Saúde. Idoso. Ambiente urbano.

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Artigo elaborado com base em pesquisa de longa duração (Ferretti, Silva, Nierotka, 2009). 1 Curso de Graduação em Fisioterapia e Medicina, Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Rua Almirante Barroso, 96. Palmitos, SC, Brasil. 89.887-000. ferrettifisio@yahoo.com.br 2 Acadêmica, curso de Graduação em Fisioterapia, UNOCHAPECÓ. 3 Curso de Graduação em Fisioterapia e Medicina, UNOCHAPECÓ. *

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Introdução Atualmente, “o Brasil é um país que envelhece a passos largos”. As mudanças no perfil demográfico populacional são visíveis e irreversíveis. No ano 2000, a população brasileira de idosos cresceu oito vezes mais que a jovem, estando previsto que, em 2025, o Brasil será o sexto país em número de idosos no mundo (Inouye, Pedrazzani, Pavarini, 2008). A velhice, para alguns, é uma época em que as tarefas básicas em relação ao desempenho profissional e à família, de certo modo, foram cumpridas e o indivíduo pode se sentir livre para realizar seus desejos e sonhos (Ferreira et al., 2009). Os conceitos saúde e satisfação na velhice têm sido associados a questões de dependência-autonomia, mas deve-se destacar que cada idoso sofre os “efeitos da idade” de diferentes maneiras, pois algumas pessoas apresentam declínio no estado de saúde e nas competências cognitivas precocemente, enquanto outras vivem sem apresentar estas alterações (Joia, Ruiz, Donalisio, 2007). Lima-Costa et al. (2007) destacam que saúde para idosos é um conceito multidimensional, pois depende da situação socioeconômica, da rede social de apoio, da condição de saúde (destacando-se a saúde mental) e do acesso e uso de serviços de saúde. O conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como “bem estar físico, mental e social do indivíduo”, mostra-se inadequado para descrever o universo de saúde dos idosos, já que a ausência de doenças é privilégio de poucos, e o completo bem-estar pode ser atingido por muitos, independentemente da presença ou não de doenças (Ramos, 2003). Atualmente, no Brasil, o Ministério da Saúde criou a política nacional de saúde da pessoa idosa, que tem por objetivo, no âmbito do SUS, garantir atenção integral à saúde da população idosa, enfatizando o envelhecimento saudável e ativo, tendo em vista o paradigma da capacidade funcional (Veras, 2009). A saúde para os idosos é um fenômeno que varia para cada pessoa, de acordo com as experiências e condições de vida que cada uma teve ao longo da vida. Segundo Joia, Ruiz e Donalisio (2007), a satisfação com a vida é um julgamento cognitivo de alguns domínios específicos na vida, como: saúde, trabalho, condições de moradia, relações sociais, autonomia, entre outros, ou seja, reflete o bem-estar individual. Segundo Ramos (2003, p.794): Na verdade, o que está em jogo na velhice é a autonomia, ou seja, a capacidade de determinar e executar seus próprios desígnios. Qualquer pessoa que chegue aos oitenta anos capaz de gerir sua própria vida e determinar quando, onde e como se darão suas as atividades de lazer, convívio social e trabalho (produção em algum nível) certamente será considerada uma pessoa saudável. Pouco importa saber que essa mesma pessoa é hipertensa, diabética, cardíaca e que toma remédio para depressão – infelizmente uma combinação bastante freqüente nessa idade. O importante é que, como resultante de um tratamento bem-sucedido, ela mantém sua autonomia, é feliz, integrada socialmente e, para todos os efeitos, uma pessoa idosa saudável.

Se o conceito de saúde para o idoso é uma associação de múltiplos fatores, desta forma, determinar se um indivíduo está ou não saudável, é uma tarefa complexa, para tanto, algumas questões podem nortear a reflexão em torno do tema: Como tratar a velhice enquanto um processo de vida? Como a gestão pública deve garantir políticas e organizar os programas para garantir uma velhice feliz? Quais as necessidades desta população? Talvez um caminho inicial para fazer apontamentos e reflexões sobre esta questão seja garantir voz aos sujeitos idosos, ouvir deles como entendem a saúde, que fatores são essenciais para que se sintam saudáveis, e quais interferem negativamente neste processo, pois, sua percepção pode nos brindar com fatores diversos daqueles que já conhecemos, dando-nos novos parâmetros para planejar ações e políticas para este segmento. Assim sendo, o objetivo deste estudo foi conhecer a concepção de saúde segundo relato de idosos residentes em ambiente urbano.

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Ferretti, F.; Nierotka, R.P.; Silva, M.R.

artigos

Metodologia Tipo de pesquisa O desenho metodológico seguiu a descrição de uma pesquisa qualitativa e descritiva. A pesquisa qualitativa em saúde segundo Minayo (2004, p.22): Trabalha com o universo de significados, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes do ser humano, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de uma variável.

Já o foco essencial dos estudos de natureza descritiva é o desejo de conhecer a comunidade, seus traços característicos e seus problemas (Trivinos, 1995).

População do estudo A população do estudo foi composta por idosos com mais de sessenta anos, residentes no ambiente urbano do município de Chapecó em Santa Catarina. A amostra foi delimitada intencionalmente por 17 idosos residentes no ambiente urbano, entre homens e mulheres, para dar conta das questões que surgiram no decorrer da pesquisa.

Instrumentos de coleta Para que os objetivos desta pesquisa fossem alcançados e considerando a natureza do estudo, optouse por uma entrevista semiestruturada. A obtenção das informações ocorreu com base em um roteiro previamente elaborado, com questões norteadoras sobre o entendimento do que é saúde para o idoso e os fatores que interferem neste processo. Este roteiro assumiu um caráter de linha norteadora para a condução da entrevista, ao mesmo tempo, desencadeou a liberdade de expressão dos entrevistados, estimulando e incentivando a espontaneidade das opiniões. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas sem alterações.

Procedimentos de coleta dos dados Primeiramente, a partir do mapa do município de Chapecó, foi realizado o sorteio dos bairros Santo Antônio, Bela Vista, Alvorada, Efapi, Líder, Pinheirinho e Seminário; após, foi entregue, aos pesquisadores, um mapa, com todas as ruas dos bairros. O ponto inicial para coleta era um cruzamento de duas ruas, demarcado pelo pesquisador; este seguia pelo lado direito da rua, e, a cada duas casas, a primeira era selecionada e o pesquisador realizava a visita; se havia idoso, convidava para participar da pesquisa e, depois de informado sobre as finalidades da pesquisa, sua relevância, objetivos, métodos, benefícios previstos, bem como a forma como seriam coletados os dados, se o idoso concordasse em participar da pesquisa, assinava o termo de consentimento livre e esclarecido, e a entrevista era realizada. A pesquisa em questão foi aprovada pelo comitê de ética da instituição.

Análise dos dados Os dados foram analisados de acordo com a proposição de Minayo (2004) que preconiza os seguintes passos: 1 Ordenação dos dados: etapa de transcrição das observações, releitura do material e organização dos relatos, compondo um corpo teórico. 2 Classificação dos dados: processo de leitura exaustiva e repetida dos textos, constituição de um “corpus” de comunicação, leitura transversal de cada corpo como recorte de “unidade de registro”, enxugamento dos dados mais relevantes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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3 Análise final e elaboração das categorias analíticas: fase onde se levam em conta os objetivos da pesquisa e os temas que emergem das observações e se faz articulação dos dados com o referencial teórico definindo-se as categorias analíticas. Após análise dos resultados, segue a discussão a respeito de cada item pesquisado.

Resultados e discussão A pesquisa realizada teve a participação de 17 idosos, residentes no ambiente urbano, em diferentes bairros do município de Chapecó, SC. A média de idade foi de setenta anos, com faixa etária de 69 anos. Destes, 13 eram mulheres e quatro homens. Quanto ao estado civil, dez eram viúvos(as), seis casados(as) e um solteiro. Quando realizada a entrevista, o idoso(a) era questionado sobre o que era saúde para ele. Após ordenação e classificação dos dados foi realizada análise de conteúdo e as seguintes categorias analíticas emergiram do texto:

1ª categoria: autonomia, funcionalidade e liberdade No que tange às várias alterações fisiológicas provocadas pelo processo de envelhecimento, entre elas estão o enfraquecimento do tônus muscular e da constituição óssea, o que pode levar à mudança na postura do tronco e membros inferiores, exacerbando, ainda mais, as curvaturas da coluna torácica e lombar. Além disso, as articulações ficam mais enrijecidas, reduzindo os movimentos e produzindo alterações no equilíbrio e na marcha. Ocorrem, também, alterações nos reflexos de proteção e no controle do equilíbrio, prejudicando, assim, a mobilidade corporal, colocando o indivíduo em situação de risco para ocorrência de quedas e fraturas. Este quadro provoca declínio no desempenho funcional, e esse fato altera, completamente, a qualidade da saúde dos idosos (Pelegrin et al., 2008). Entre os idosos, as condições crônicas tendem a se manifestar de forma mais frequente e, embora não sejam fatais, comprometem, de forma significativa, a funcionalidade do idoso, tornando-o dependente para realizar as atividades do cotidiano, o que gera frustração. Situação que se pode observar no relato de O.B., setenta anos: “A gente tem que ter saúde pra ter algum ânimo de fazer alguma coisa, porque senão, não é nada”.

O envelhecimento é uma aspiração natural de qualquer sociedade, mas, para que seja plena, é necessário manter a capacidade funcional, a autonomia e independência, só assim o idoso sentir-se-á feliz. O conceito de capacidade funcional está focado na habilidade que a pessoa tem de desempenhar as atividades do cotidiano, como: alimentar-se, vestir-se e cuidar da higiene (Pelegrin et al., 2008). Quando a capacidade funcional e autonomia estão preservadas, pode-se afirmar que o idoso é livre. O conceito de capacidade funcional é extremamente relevante para os idosos, já que, na velhice, a saúde é resultante da interação entre: as dimensões física e mental, independência na execução de atividades básicas e instrumentais da vida diária, integração social, suporte familiar e independência econômica, sendo este um novo paradigma de saúde, de aspecto multidimensional (Ramos, 2003). Do ponto de vista da saúde pública, a capacidade funcional surge como um conceito mais adequado para instrumentalizar e operacionalizar a atenção à saúde do idoso. Nesse sentido, ações preventivas, assistenciais e de reabilitação, para melhoria e/ou conservação da capacidade funcional, são essenciais para que se promova o bem viver da população idosa. Nesta narrativa observa-se quanto é importante, para o idoso, manter uma boa capacidade funcional e independência: “Sim tenho saúde, porque aqui dentro da minha casa, faço tudo, a comida, limpeza de panela, só não lavo roupa e não limpo o chão, mas no mais eu faço tudo. Eu vou capinar na horta, eu planto minhas plantinhas tudo ali, minha horta é grande”. (C.O., 64 anos) 568

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Maciel e Guerra (2008), afirmam que a manutenção de uma vida livre de restrições quanto à funcionalidade pode colaborar para a redução do risco de óbito em idosos, pois a dependência temse apresentado como um agente de morbimortalidade, tanto isoladamente, como associada ao estilo de vida, doenças crônico-degenerativas, disfunções neuropsíquicas e fatores sociodemográficos ou socioeconômicos. Manter-se independente, autônomo e livre para ir e vir é fundamental para que o ser humano viva em plenitude. Autonomia, autorresponsabilização, exercícios físicos, flexibilidade, disponibilidade para aprendizagem, ausência de identificação etária, independência, e liberdade são características que vêm se tornando indicativas de um envelhecimento feliz, e vêm se constituindo como fatores determinantes para a saúde do idoso.

2ª categoria: saúde é a globalidade da vida No Brasil, desde a década de 1960, a população com mais idade vem crescendo aceleradamente, devido à diminuição das taxas de fecundidade e de mortalidade nas faixas etárias mais elevadas. Acredita-se, também, que outro fator que contribuiu foi a melhoria das condições de saneamento básico e os avanços tecnológico-científicos na área da saúde (Souza, Lopes, 2007). Segundo Scherer et al. (2007), para alcançarmos a almejada vida com saúde, precisamos: dormir bem, nos alimentar de forma balanceada, praticar atividades físicas, ter paz de espírito, estar de bem com a vida, ter a consciência tranquila, ter uma família e nos relacionar bem com ela, nos divertir e ter amigos. Este conceito de saúde apresentado pelo autor pode ser percebido no relato da idosa: “Saúde é tudo, o bem estar do corpo, dos sentimentos, dos convívios e relações, no mundo no qual estamos inseridos..., eu tenho muita saúde”. (E.B.T., 65 anos)

Outro fator importante, quando pensamos a saúde de uma maneira global, são os fatores culturais, pois a cultura de um indivíduo pode ser um fator protetor da saúde, ou de risco, e predispor ao adoecimento, dependendo do contexto. É preciso considerar que os aspectos culturais envolvidos na questão da saúde e da doença só podem ser compreendidos em contextos específicos (Scherer et al., 2007). O termo saúde global é compreendido como uma junção biopsicossocial de fatores que definem quanto o ser humano sente-se saudável, e como cada determinante - sejam os biológicos, psicológicos e/ ou sociais - interfere na condição de saúde de uma população. A seguir, um relato que reforça a concepção de que saúde é multifatorial e global: “Saúde que eu entendo em primeiro lugar é estar de bem com a vida, isso já é o primeiro, outra coisa se alimentar bem e corpo bom, estar de bem com os vizinhos, amigos, filhos. Estou com muita saúde graças a Deus, não tomo nenhum medicamento com a idade que eu tenho”. (C.E., 70 anos)

Saúde, no processo de envelhecer, passa a ser uma percepção que cada um constrói sobre si mesmo, baseado em sua história e expectativas individuais, constituindo-se, portanto, numa jornada, e não num fim. De maneira geral, o que se pôde observar nas narrativas de alguns idosos entrevistados é que a saúde é um fato construído ao longo da vida, num constante processo de cuidar de si: “Saúde é tudo, cuidar do dinheiro, das amizades, da família, do que se usa no alimento é tudo, hoje eu tenho saúde, mas sofri de garoto e, tenho exemplo de sofrimento em casa com a esposa. A melhor felicidade que uma pessoa pode ter é com saúde, poder andar, ir e vir, se fosse para viver, eu peço a Deus que me dê à vontade de andar e ter saúde”. (A.M., 76 anos)

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Ao destacar a saúde como um processo vivenciado ao longo da história de cada um, percebe-se a importância do cuidado com a saúde em seu aspecto integral, para assim chegar a uma idade mais avançada e poder afirmar que é saudável. Nesse sentido, observa-se a relevância do estudo, pois nada mais fidedigno para se compreender o conceito de saúde para o idoso, que avaliar a concepção de uma pessoa que tem mais anos de vida.

3ª categoria analítica: família e rede de apoio Atualmente, uma questão que tem grande relevância em relação à velhice está, portanto, relacionada ao equilíbrio entre as necessidades e as exigências mínimas dos idosos e a capacidade assistencial disponível para atendê-las, em nível familiar ou coletivo, pois, nessa fase da vida, tais aspectos adquirem características especiais (Lebrão, Laurenti, 2005). Fazendo uma análise de estudos já realizados sobre a relação familiar e o idoso, estes demonstram que a família, por meio do seu apoio, tem tido um papel muito importante para o bem-estar dos idosos. No entanto, as interações entre os familiares podem variar entre homens e mulheres, regiões mais ou menos urbanizadas, os mais ricos em comparação com os mais pobres, tradições familiares, intervenção de apoios institucionais e características socioeconômicas do país (Camargos, Machado, Rodrigues, 2007). As famílias, hoje, continuam sendo a principal fonte de sustento e cuidado dos idosos. Elas oferecem apoio social, funcional, econômico ou material e afetivo. Dentre as várias assistências que a família presta aos idosos, podem-se destacar: o apoio às tarefas domésticas, passeios e outras atividades da vida diária, companhia, apoio afetivo em tempos normais e de crise, transporte e acompanhamento a diversos lugares, cuidados com a medicação e auxílio no caso de doença - enfim, é ela que apoia o idoso na maior parte do tempo (Rodrigues, Watanabe, Derntl, 2006). A família aparece, em nosso estudo, como um fator essencial para que o idoso se perceba saudável; realmente, é um fator de proteção, quando presta o cuidado, proporciona atenção, carinho e companhia. A seguir, o relato de uma idosa, que mostra quanto a família é valorizada para quem envelhece: “A melhor coisa, em primeiro lugar, é a família da gente, a gente vive bem, com a família, com os netos, e assim, em primeiro lugar, é a família”. (A.S.A., 71 anos)

O idoso tem receio do abandono e da incompreensão. Essas questões aparecem na narrativa do idoso: “Eu acho que é boa minha vida. Eu me sinto muito feliz. Moro com a minha filha aqui, convivemos muito bem... meu Deus... é o que a gente quer, quando ficamos velhos, que tenham paciência com a gente, que nos cuidem...”. (E.T., 63 anos)

A pessoa idosa, geralmente, é mais fragilizada emocionalmente, quando comparada com uma pessoa mais nova. Por isso, precisa, sempre, de uma grande rede de apoio para ter uma vida tranquila, saudável e satisfatória; mas a família, hoje, ainda assume um papel central na rede de apoio. A presença da família e o cuidado que ela presta dão significado à vida do idoso e lhe garantem um papel social no pequeno grupo, fator essencial para viver feliz.

Considerações finais O estudo conclui que a percepção de saúde relatada pelo idoso está centrada em multifatores, mas, prioritariamente, para se sentirem saudáveis, precisam garantir um bom nível de independência e autonomia, pois a presença ou não de doenças crônicas e o uso de medicação não foram relatados como fatores importantes para o conceito de saúde; isto quer dizer que, mesmo o idoso estando em tratamento para alterações próprias do contexto do envelhecimento, se realiza as atividades do seu cotidiano, sente-se com saúde. Outro fator importante observado no estudo foi o entendimento 570

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do idoso de que a saúde é construída historicamente, pela forma com que cada um cuida de si ao longo da vida, bem como de que forma constrói sua rede de apoio, convívio e família. A saúde, nesta perspectiva, portanto, é compreendida pelo idoso como uma categoria de aspectos biopsicossociais, e não como algo no singular. A corresponsabilização do idoso com sua saúde é um fator a se destacar no estudo, pois, em seus relatos, estão se colocando como atores do processo de viver e envelhecer, onde a família, a rede de apoio, os recursos financeiros e o nível de independência são elementos importantes; porém, a forma como cada sujeito viveu sua vida, os acessos que teve, ou não, quanto à educação, estilo de vida, saúde e trabalho, são determinantes no processo, e, portanto, os idosos se percebem como sujeitos que participaram da construção da saúde vivida no hoje, sobretudo, quando consideram as opções realizadas ao longo do processo de viver. Sugere-se que sejam realizadas mais pesquisas sobre a concepção dos idosos em torno dos vários temas que emergiram nesta pesquisa, constituindo novas categorias para se discutir o envelhecimento, pois, não há colaborador mais importante para falar da velhice do que aquele que viveu e vive a experiência de envelhecer. Ouvir os idosos é essencial para entendermos seu cotidiano e conhecermos as particularidades que os números não apresentam, e, a partir destes novos elementos, podem-se planejar serviços, ações, diretrizes e políticas destinados ao bem viver dos idosos.

Colaboradores Fátima Ferretti e Rosane Paula Nierotka trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito; Márcia Regina da Silva trabalhou na revisão e produção final do artigo.

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Ferretti, F.; Nierotka, R.P.; Silva, M.R. Concepción de salud según relato de ancianos que residen en el ambiente urbano Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.565-72, abr./jun. 2011. La salud es un fenómeno que difiere de acuerdo con los aspectos biológicos, culturales, ambientales, sociales e históricos y el modo como cada ser humano vivió su vida. Esta investigación descriptiva con una muestra de 17 ancianos ha tratado de conocer la concepción de salud de ancianos que residen en ambiente urbano. En la recolección de los datos se optó por una entrevista semi-estructurada. El análisis de los datos a demuestra que la concepción de salud estuvo centrada en la manutención de la independencia, en el apoyo de la familia y en el sentirse responsable por el modo de vivir la vida. Al percibirse como actor del proceso de vivir y envejecer demuestra que el anciano asume su responsabilidad por la salud vivida hoy, evidenciando un cambio de comportamiento social y político, de la pasividad hacia la participación activa en el proceso de la vida.

Palabras clave: Salud. Anciano. Ambiente urbano. Recebido em 24/05/2010. Aprovado em 28/10/2010.

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artigos

Os usuários de álcool, Atenção Primária à Saúde e o que é “perdido na tradução”* Bruno José Barcellos Fontanella1 Marcelo Marcos Piva Demarzo2 Guilherme Arantes Mello3 Sandra Lúcia Correia Lima Fortes4

FONTANELLA, B.J.B. et al. Alcohol drinkers, Primary Health Care and what is “lost in translation”. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.37, p.573-85, abr./jun. 2011.

The paper discusses the paradox that is present in Primary Health Care (PHC): on the one hand, there are clinical technologies and opportunities to address patients who are problem drinkers and, on the other hand, it is verified that this kind of care is not effective for a considerable portion of those users. This paper is a critical and narrative bibliographic review whose results approach: the delimitation of this paradox; the health professionals’ and their patients’ difficulties to, respectively, provide and request interventions on patterns of problematic alcohol consumption; the applications and limitations of the motivational techniques, like the brief interventions in PHC; finally, some issues concerning professional training in health are discussed. It is concluded that it is necessary to promote a research agenda that deepens the understanding of the complex psychocultural meanings that this issue involves, particularly in Brazil.

Keywords: Primary health care. Alcoholrelated disorders. Clinical competence. Communication barriers.

Discute-se o paradoxo presente na Atenção Primária à Saúde (APS) de, por um lado, haver tecnologias clínicas e oportunidades para se abordarem pacientes que fazem uso problemático do álcool e, por outro, verificar-se que este tipo de atenção não se efetiva para parcela considerável desses usuários. Fez-se uma revisão bibliográfica crítica de cunho narrativo, cujos resultados abordam: a delimitação do paradoxo; as dificuldades pelas quais passariam os profissionais de saúde e seus pacientes para, respectivamente, disponibilizarem e solicitarem intervenções sobre padrões considerados problemáticos de consumo de álcool; as aplicações e limitações das técnicas motivacionais, como as intervenções breves, na APS, e, por fim, discutem-se algumas questões relativas à formação profissional em saúde. Conclui-se que esta problemática envolve a necessidade de se promover uma agenda de investigações que aprofunde a compreensão sobre seus complexos significados psicoculturais, particularmente no Brasil.

Palavras-chave: Atenção primária à saúde. Transtornos relacionados ao uso de álcool. Competência clínica. Barreiras de comunicação.

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* Texto elaborado com base em apresentação oral no II Congresso Paulista de Medicina de Família e Comunidade (Fontanella, 2007). 1 Departamento de Medicina, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washington Luís, km 235. SP-310. São Carlos, SP, Brasil. 13.565-905. bruno.fontanella@ gmail.com 2 Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo. 3 Departamento de Medicina, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, UFSCar. 4 Departamento de Especialidades Médicas, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Introdução Este texto procura refletir sobre um paradoxo presente na Atenção Primária à Saúde (APS) e que envolve os profissionais clínicos e seus pacientes que fazem uso de bebidas alcoólicas. Trata-se da contradição de que uma atenção específica não se efetiva para uma parcela considerável desses usuários, a despeito das tecnologias clínicas e das oportunidades existentes para abordá-los. Este paradoxo suscitou a metáfora, presente no título, sobre o que seria perdido na tradução nesta relação entre os clínicos e esses pacientes. Por que alguns saberes e práticas relativamente simples não são disponibilizados aos pacientes e, simetricamente, por que, muitas vezes, os desejos de mudança desses pacientes, em relação aos seus padrões de consumo de álcool, não se transformam em demandas? Pressupõe-se haver obstáculos e ruídos tanto nos itinerários profissionais dos clínicos quanto nas trajetórias que levam pessoas a se tornarem pacientes (Zola, 1973). Este artigo discute este paradoxo, considerando, sobretudo, as supostas variáveis socioculturais envolvidas, que foram elencadas a partir do exame da literatura referente à APS.

Método Trata-se de uma revisão crítica e narrativa, suscitada por inquietações advindas da experiência pedagógica e clínica dos autores, tanto em instituições de ensino médico quanto em instituições de saúde na APS. Foi feito um levantamento bibliográfico junto ao Pubmed/Medline, Lilacs e Scielo, com a utilização de sintaxes que combinaram os seguintes termos: “álcool”, “uso de risco”, “abuso”, “uso nocivo”, “atenção primária à saúde”, “atenção básica” e “intervenção breve”, e seus equivalentes em inglês (para “atenção básica”, somente em português). Dos 261 artigos resultantes, sobre variados aspectos da problemática, cerca de 20% foram julgados – a partir dos resumos – mais importantes para serem lidos e utilizados na discussão pretendida. Também foram consultados documentos oficiais de órgãos governamentais brasileiros e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os pontos levantados para discussão foram agrupados em cinco sessões.

Resultados e discussão Delimitação do paradoxo Já em 1980, a OMS recomendava o desenvolvimento para a APS de estratégias de detecção precoce de usuários de álcool em risco de desenvolverem problemas (WHO, 1980). Seguiramse investigações que resultaram no AUDIT (Alcohol Use Disorder Identification Test), instrumento considerado, atualmente, eficaz e efetivo para suspeição diagnóstica dos diferentes padrões de consumo de álcool (Babor et al., 2001). Há hoje, também, a convicção de que a forma de abordagem dos profissionais da APS pode influenciar positivamente o padrão de ingestão de álcool de seus pacientes (Kaner et al., 2007; Conigliaro, Lofgren, Hanusa, 1998; Fleming et al., 1997) por meio das chamadas intervenções breves (IB) (Babor, Higgins-Biddle, 2001). O recentemente publicado Regulamento do Sistema Único de Saúde (SUS) dedica 22 de seus setecentos e noventa artigos ao “Programa de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas” (Brasil, 2009), prevendo que a APS seja um dos principais componentes da atenção integral aos usuários de substâncias psicoativas. Trata-se, portanto, de uma reafirmação da agenda internacional de compromissos colocada, três décadas antes, aos pesquisadores, gestores e clínicos da Atenção Primária à Saúde. O “Programa” preconiza que a APS se volte para a detecção precoce de casos de uso nocivo e de dependência de substâncias e para outras práticas preventivas, educativas e terapêuticas. A lógica da redução de danos e as técnicas de IB são mencionadas como forma de se alcançar o objetivo terapêutico 574

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de redução ou cessação do consumo, recomendando-se, também, o encaminhamento precoce de pacientes para intervenções mais específicas, incluindo a abordagem das complicações clínicas e/ou psiquiátricas. Como contraponto à relevância e à disponibilidade desses recursos de abordagem, são conhecidas as dificuldades dos serviços e dos profissionais de saúde para diagnosticar, motivar, tratar ou encaminhar para tratamento os pacientes que fazem o chamado uso problemático de substâncias psicoativas. A despeito dessas políticas indutoras e do desenvolvimento do AUDIT e das IB, muitos usuários de álcool adscritos aos serviços de APS continuam sem a oportunidade de ter seus comportamentos devidamente abordados (ressaltando-se que esta ênfase na APS não significa que dificuldades semelhantes não ocorram em outros cenários). Quando se efetivam as atenções dos clínicos para o consumo de álcool de seus pacientes, dirigem-se, preferencialmente, para o uso nocivo ou para a síndrome de dependência, apesar de parte substancial dos problemas clínicos e de saúde pública ocorrer nos chamados bebedores de risco (hazardous drinkers) (McQuade et al., 2000). As características de acesso irrestrito e preferencial da APS fazem com que as estimativas de prevalência, na população geral, de transtornos relacionados ao álcool devam ser cuidadosamente consideradas neste contexto. Enquanto a universalização dos atendimentos em APS não se efetivar, haverá uma discrepância entre os dados epidemiológicos da população geral e os dados da subpopulação efetivamente seguida. A priori, esperar-se-ia uma taxa maior de prevalência desta condição entre os frequentadores dos serviços, em razão da frequente co-ocorrência de agravos à saúde, lógica válida para qualquer condição clínica. No entanto, as taxas de prevalência de dependência de álcool na APS parecem tender a ser menores, conforme será detalhado adiante, assim como parece ser também pequena a efetividade de ações voltadas para a suspeição diagnóstica. A título de exemplo, o SUS havia notificado, em 2004, no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), menos de 1% deste tipo de condição em sua população cadastrada (Souza, 2005) – número pouco expressivo, mesmo considerando-se os vieses a que os dados dos sistemas de informação estão sujeitos (Silva, Laprega, 2005). Parece provável que a vigilância aos problemas relacionados ao uso de álcool esteja, de fato, substancialmente abaixo do adequado neste cenário de atenção. Sendo assim em relação a um transtorno psiquiátrico clinicamente mais grave e chamativo (dependência), depreende-se que o reconhecimento dos demais padrões de uso de álcool (uso de risco e uso nocivo/abuso) seja ainda menos comum. Embora possa ter contornos mais graves no Brasil, que há apenas duas décadas tem a APS como cenário estratégico e estruturante de um sistema sanitário universal e integral, o não-reconhecimento e a não-abordagem desses pacientes na APS são internacionalmente reconhecidos (Aalto et al., 2003; Aira et al., 2003; Kaner et al., 2001b; Arborelius, Damström Thakker, 1995; Rush et al., 1995). Nos serviços em que uma demanda maior de pacientes é atendida e o tempo destinado a cada um é relativamente escasso, seria também útil conhecer e saber aplicar instrumentos de rastreamento (screening) para padrões problemáticos de uso de álcool, como o CAGE (Masur, Monteiro, 1983) e o AUDIT (Figlie et al., 2000), aumentando a eficiência da seleção de pacientes para intervenções motivacionais específicas. O rastreamento por meio desses instrumentos e o aconselhamento breve para uso problemático de álcool estão entre as intervenções mais custo-efetivas na APS, devendo, então, ser priorizadas (Solberg, Maciosek, Edwards, 2008).

Os profissionais de saúde diante dos usuários de álcool A alta prevalência de transtornos mentais, de um modo geral, na população atendida na APS (Maragno et al., 2006), representaria, por si, um desafio para a atenção aos pacientes neste cenário (Tanaka, Lauridsen-Ribeiro, 2006). Os transtornos mentais promovem maiores dificuldades interpessoais entre pacientes e profissionais (Ballester et al., 2005), fenômeno comum e perceptível pelos próprios pacientes (Brêda, Augusto, 2001).

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No entanto, uma pesquisa brasileira com médicos trabalhando na função de generalistas na APS (com formações diversas) mostrou que eles tinham uma disposição apriorística para cuidar de pacientes com diagnósticos psiquiátricos, contanto que fossem capacitados para isso. Os participantes consideraram que seus pacientes teriam dificuldades para receber diagnósticos deste tipo e apontaram para a falta de recursos para encaminhá-los para uma atenção especializada na área (Ballester et al., 2005). Dentre os transtornos mentais, as dificuldades com o manejo de usuários de álcool e outras substâncias se sobressaem, podendo haver a percepção de inexistência de estratégias sistemáticas de manejo e de protocolos clínicos, consideradas inexistentes por profissionais pesquisados na década de 1990, quando ainda não eram tão difundidos os estudos com as intervenções breves (Rush et al., 1995). Mais relevantemente, porém, do que essas dificuldades objetivas, os profissionais podem enfrentar barreiras subjetivas para abordar este tema durante uma consulta (Aira et al., 2003). Pode haver medo de prejudicar a relação médico-paciente caso o tema álcool seja levantado (Arborelius, Damström, Thakker, 1995), e alguns profissionais chegam a considerar essas questões como fora do âmbito da saúde (Roche, Guray, Saunders, 1991). O assunto pode ser considerado “sensível” e gerador de estigmas ao paciente, optando, alguns médicos, por não abordá-lo e por não registrar o diagnóstico nos prontuários (Aira et al., 2003). Haveria maior facilidade de se investigar o consumo quando se suspeita de problemas fisiopatológicos relacionados, o que representaria uma tendência a não abordar pessoas que fazem uso nocivo e de risco, mas sim, sobretudo, os dependentes. Alguns médicos também podem se ressentir da falta de ferramentas clínicas, como medicamentos para lidar com os estágios iniciais de problemas com o álcool. A decisão final de investigar ou não o consumo pode depender de variáveis como idade, sexo e profissão do paciente, como, também, de sua aparência física (Aira et al., 2003). Algumas características dos usuários de álcool atendidos na APS de fato conferem-lhes maiores chances de serem alvos de IB: ser homem, estar desempregado e não ter educação universitária; mas, também, algumas características dos médicos se associam positivamente ao emprego desta técnica, como o tempo de treinamento e o tempo de duração de suas consultas (Kaner et al., 2001a). Parte das dificuldades até aqui mencionadas parecem se relacionar, portanto, a uma postura de avaliação moral dos bebedores de risco; de outra forma, não seria compreensível considerar prejudicial a um paciente a abordagem de questões relacionadas a um problema de saúde ou a um comportamento de risco. Outra questão de ordem cultural relaciona-se à categoria gênero, havendo a hipótese de que os comportamentos dos médicos e das médicas diferem quando estão lidando com usuários de álcool, sendo menor a probabilidade de as médicas realizarem IB (Aalto, Pekuri, Seppä, 2003). Há também hipóteses consistentes sobre barreiras relacionadas às habilidades clínicas dos médicos. Se as IB são empregadas, as intervenções consideradas mais clínicas (escuta atenta e aconselhamento) seriam menos feitas do que as intervenções menos específicas (como a avaliação do consumo e a abordagem educativa) (Bradley et al., 2002). A chance de o tema ser abordado aumentaria quando o profissional é colocado em prontidão para agir, quando, por exemplo, seus pacientes foram previamente triados quanto ao padrão de consumo (Bradley et al., 2002). A ocorrência de comorbidades psiquiátricas entre os usuários de álcool pode se relacionar a maiores dificuldades clínicas, podendo supor-se que cause ruídos adicionais durante os atendimentos.

As dificuldades de os usuários de álcool chegarem aos serviços e demandarem ajuda Sinergicamente às dificuldades dos profissionais, muitas pessoas com problemas com uso de álcool não procuram ajuda formal (Kohn et al., 2005), embora possam fazê-lo por sintomas e condições relacionados (Fortes, Villano, Lopes, 2008). Em determinados sistemas ou subsistemas de saúde, o consumo de álcool pode, inclusive, se relacionar negativamente com a utilização dos serviços de APS (Zarkin et al., 2004). Não procurando ou não conseguindo apoio no sistema formal de saúde, os pacientes talvez o busquem no sistema informal ou popular, ou promovam tentativas de autotratamento ou, mesmo, tenham seus quadros

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clínicos espontaneamente remitidos. Para esse subgrupo, o sistema formal não foi uma alternativa útil, pelo menos momentaneamente. Várias barreiras impedem ou dificultam que uma pessoa que já reconheça intimamente ter uma relação problemática com alguma substância psicoativa recorra a serviços formais, não traduzindo seus desejos de diminuir, parar ou usar com menos riscos, na forma de demandas aos profissionais de saúde. Sabe-se que quanto mais problemático é o padrão de consumo, maior tende a ser a chance de um paciente querer discutir o assunto (Bradley et al., 2002). Embora os homens tenham, em média, maiores chances de usar, de usar em maior quantidade e frequência e de serem dependentes de álcool, são eles, justamente, os que menos utilizam os serviços de saúde, inclusive da APS (Pinheiro et al., 2002). Estudos epidemiológicos de 2001 e 2005 estimaram, respectivamente, em 11,2% e 12,3% a taxa de prevalência de dependência de álcool na população acima de 12 anos das cidades brasileiras com mais de duzentos mil habitantes (Carlini et al., 2006; Carlini et al., 2002). Nos dois levantamentos, os homens apresentaram taxas cerca de três vezes maiores que as mulheres, algo já ressaltado em estudos anteriores (Moreira et al., 1996; Almeida Filho et al., 1992; Rego et al., 1991). A expectativa apriorística de que a taxa de prevalência fosse maior entre os frequentadores da APS não se confirma, ratificando a ideia de se tratar de um caminho para procura de tratamento caracteristicamente tortuoso e cheio de idas e vindas e desistências precoces (Thom, 1986), menos direto do que para problemas agudos e menos conflituosos. Disto parece resultar uma população flutuante nos serviços, que se refletiria em coeficientes de prevalência altamente variáveis. O estudo de Villano (1998) detectou, entre homens atendidos em um ambulatório de medicina geral, 5,1% de uso nocivo e 12,4% de dependência (N=91). Entre as mulheres, detectou-se 0,6 e 0,8%, respectivamente (N=393). Estudos mais recentes, em unidades do Programa de Saúde da Família, ratificam a ideia de que os problemas comunitários relacionados ao uso nocivo de álcool frequentemente não são cuidados nestas unidades, podendo chegar-se a taxas tão baixas quanto 1% dentre os pacientes portadores de transtornos mentais comuns, segundo avaliação do estado mental atual feita com o CIDI (Composite International Diagnostic Interview, para rastreamento de transtornos mentais) (Fortes, Villano, Lopes, 2008). Em estudo com o AUDIT, realizado em unidades de APS (Magnabosco, Formigoni, Ronzani, 2007), detectou-se que 3,3% dos pacientes em atendimento (5,6% em homens e 0,7% em mulheres) situavam-se na faixa de uso nocivo, justificando uma abordagem pelas equipes. Na faixa sugestiva de dependência e indicando um atendimento especializado, estavam 3,8% (6,1% em homens e 1,4% em mulheres). Estudo feito em unidades de atenção básica, também utilizando o AUDIT (Cordeiro et al., 2006), constatou que 34,37% dos homens e 2,29% das mulheres pesquisados foram considerados como fazendo uso nocivo de álcool. Noutro estudo (Vargas, Oliveira, Araújo, 2009), o mesmo instrumento revelou que 9,8% dos pacientes de APS avaliados situavam-se na faixa IV (destes, 71,6% eram homens e 22,4% mulheres).

Aplicações e limitações das intervenções breves na Atenção Primária à Saúde Diante desses variados entraves envolvendo tanto os profissionais de saúde quanto seus potenciais pacientes, algumas iniciativas de divulgação e de pesquisa sobre as IB no Brasil já são registradas (Brasil, 2010; Corradi-Webster et al., 2005; Ronzani et al., 2005; Marques, Furtado, 2004). Elas se configuram como um conjunto sistematizado de intervenções que levam em consideração o padrão de uso e o momento vivido pelo paciente quanto à motivação para mudanças (Babor, HigginsBiddle, 2001); e, caracteristicamente, são voltadas para pacientes com envolvimentos com o álcool considerados menos graves. São relativamente simples e eficazes na redução da frequência do beber compulsivo, do beber excessivo, do consumo médio e do tempo de eventuais hospitalizações, sobretudo de homens (Kaner et al., 2007; Fleming et al., 1997), além de serem financeiramente eficientes para usuários e para os sistemas (Fleming et al., 2000).

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Instituindo as IB, os serviços deixam de se preocupar exclusivamente com os quadros mais extremos de dependência e do uso nocivo e, embora sem negar a gravidade psico e fisiopatológica desses quadros, deixam de enfatizar a prevenção secundária e terciária e passam a visar a prevenção primária e a promoção à saúde. Entretanto, para que sejam efetivas, os clínicos precisam estar aptos a realizá-las ao suspeitarem de uma situação de risco, o que também pode ser feito sistematicamente, e em larga escala, com o auxílio de instrumentos como o AUDIT. Sabe-se que intervenções ou programas de educação continuada alteraram positivamente as habilidades dos profissionais de saúde em lidar com questões relativas ao álcool (Handmaker, Hester, Delaney, 1999), com boa relação custo-efetividade e interferindo positivamente na rotina assistencial e no prognóstico dos pacientes (Kaner et al., 2007; Conigliaro, Lofgren, Hanusa, 1998). A continuidade do tratamento e acompanhamento associa-se a melhores respostas e duração dos resultados (Minto et al., 2007) e, assim, a longitudinalidade, característica especifica da APS, aparece novamente como favorecedora do sucesso das IB. Entretanto, determinados contextos locorregionais certamente demorarão a dispor de serviços de atenção secundária em saúde mental. Nesses casos, cabe à APS tratar, também, dos quadros de dependência e síndrome de abstinência alcoólica, seja ambulatorialmente, seja em internação domiciliar, e, inclusive, com a prescrição de psicofármacos específicos (O’Connor et al., 1997). Mas, mesmo nesses contextos, a prevenção primária e secundária por meio de técnicas como as IB são prioritárias, dada a frequência com que estariam indicadas. Com relação à já referida eficácia das IB em reduzir o consumo de álcool, recente metanálise avaliou-a especificamente em contextos de clínica geral ou de APS (Kaner et al., 2007), confirmando a redução significativa do consumo de álcool entre os homens (hipótese já defendida antes, por exemplo, por Fleming et al., 1997), mas sem poder estatístico para concluir o mesmo entre as mulheres – o que sugere possíveis limitações da IB ou, pelo menos, a necessidade de mais estudos na subpopulação feminina, também conforme já hipotetizado antes (Anderson, 1993). Uma limitação já claramente apontada das IB se refere ao modelo de aplicação, que deve ocorrer durante um atendimento realizado por profissional que mantenha com o paciente uma relação estável de confiança. Por isso, este modelo pode não se adequar a parcelas importantes da população que fazem uso de risco, mas que raramente mantêm um acompanhamento longitudinal de saúde, como é o caso dos adolescentes – para quem os formatos de rastreamento e IB precisariam ser adaptados (Yoast, Fleming, Balch, 2007), por exemplo, para a internet (Kypri, Saunders, Gallagher, 2003). Para o outro extremo etário, não foram localizados estudos de IB, a despeito de os problemas relacionados ao álcool serem frequentes na população idosa da APS (Lyness et al., 1999). Um estudo em situações reais usando, em larga escala, o AUDIT, seguido de IB para quem obtivesse um escore positivo, mostrou uma efetividade abaixo da esperada e, para mulheres, resultados negativos. A hipótese levantada foi a de que uma abordagem feita de maneira indistinta, automática e independentemente do motivo de procura de assistência, pode exacerbar resistências psicológicas (Beich et al., 2007), o que vai, portanto, ao encontro da ideia de que as IB fazem mais sentido se aplicadas contextualmente em acompanhamentos longitudinais.

Formação médica e de outras profissões da área da saúde Embora não se tenham detalhes sobre a formação dos profissionais participantes dos estudos até aqui mencionados (em particular, quanto se especializaram nas especificidades da APS), seus resultados têm implicações para todas as etapas da educação para profissionais de saúde. Tradicionalmente, a abordagem de pacientes que fazem uso problemático de álcool tem sido feita fora da APS, por psiquiatras que, por este motivo, também não abordariam os quadros não patológicos (uso de risco). A psiquiatria, certamente, conta com recursos semiológicos de avaliação psicopatológica pouco aprendidos nos cursos de graduação e nas etapas educacionais posteriores, que são necessários para avaliar com destreza os sinais e sintomas que distinguem os diversos padrões de uso de álcool, porém exigem uma capacitação ainda não contemplada pelos conteúdos e métodos de aprendizagem dirigidos aos que não trabalharão na área da saúde mental (Hodges, Inch, Silver, 2001). 578

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Instrumentos padronizados podem diminuir este gap; sabe-se, porém, que a validade de aplicação de instrumentos padronizados fica limitada para algumas categorias de problemas mentais em razão de dificuldades semiológicas básicas dos aplicadores (Quintana et al., 2007). Em tese, o mesmo pode ocorrer com instrumentos como o CAGE e o AUDIT, próprios para o screening de problemas clínicos relacionados ao álcool. São certamente necessárias habilidades cognitivas relacionadas às teorias que sustentam o modelo biopsicossocial, incluindo conhecimentos básicos de fisio e psicopatologia. À medida que as informações para os possíveis tipos de diagnósticos relacionados ao uso de álcool são colhidas exclusivamente durante a anamnese, junto ao paciente e seus familiares, prescindindo de exames laboratoriais, são requeridas, também, habilidades psicomotoras para uma adequada realização da entrevista e do exame psíquico. Essas habilidades devem ser permeadas por outras da dimensão afetiva e ética, como: a primazia do juízo de conhecimento sobre o juízo de valor, o reconhecimento de preconceitos sociais e culturais, a compreensão das diferenças de poder na relação entre o médico e a pessoa em cuidado (e do potencial de abuso deste poder), o reconhecimento do medo de abordar o que é diferente ou o que pode comprometer os valores do próprio profissional (por exemplo, no caso, ser, ele próprio, um usuário de álcool, problemático ou não). Tais habilidades estão imbricadas na capacidade de se abordarem questões relacionadas à saúde de modo geral, sobretudo no contexto das grandes diferenças socioculturais entre profissionais e pacientes, como costuma ocorrer no SUS. Refletindo sobre a formação em APS na realidade brasileira, a qualidade média dos serviços ainda é questionada, e um dos motivos disso é a incipiente capacitação profissional específica, a despeito da progressiva priorização da APS dentre as estratégias de reorganização do SUS, evidenciada pelo atual número de equipes de saúde da família, em torno de vinte e nove mil. Esforços dos Ministérios da Saúde e da Educação (Brasil, 2005b) procuram valorizar os programas de residência em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e criar programas de residência multiprofissional em Saúde da Família, ambos com foco em APS. No mesmo sentido, ações visando a especialização e a capacitação permanente dos profissionais em serviço culminaram recentemente com a integração de ações na forma de uma Universidade Aberta do SUS (UnA-SUS). Ademais, há, também, a valorização da APS na graduação em medicina e demais cursos da saúde via Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e programas de indução, tais como o Pró-Saúde e Pet-Saúde (Brasil, 2007). Frente a esse positivo cenário institucional, pergunta-se: a formação específica em saúde mental é incentivada nessas iniciativas? Na ausência de dados específicos que alicercem uma resposta, algumas inferências podem ser feitas a partir da análise dos editais e programas das ações mencionadas acima. Uma proposta que tende a valorizar a formação em saúde mental em APS é a propagação dos programas de residência multiprofissional em Saúde da Família. Esses programas incluem a psicologia como uma das profissões estratégicas (Brasil, 2005a), tendo, também, como perspectiva, a capacitação dessa categoria profissional para atuação junto aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Brasil, 2008), que têm a saúde mental como um eixo prioritário. Em relação aos programas de residência em MFC, a valorização também é explícita nas portarias ministeriais e nos documentos da sociedade que agrega esses médicos especialistas, que abordam o conteúdo programático e de competência mínimo esperado, prevendo capacitação em saúde mental (Anderson et al., 2007; Brasil, 2006; Del Ciampo, Ricco, Daneluzzi, 2003). Quanto às iniciativas de especialização em serviço, sua diversidade dificulta inferências, mesmo que superficiais. A UnA-SUS ainda não tem diretrizes de conteúdo definidas. Por sua vez, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) promove, há alguns anos, apoiada pela Divisão de Atenção Básica do Ministério da Saúde, um curso cuja meta é atingir milhares de profissionais de saúde e capacitá-los à distância para detecção e manejo de uso abusivo e dependência de substâncias psicoativas (Brasil, 2010). Em documento da Sociedade Brasileira de MFC sobre a especialização, a formação em saúde mental é explicitamente anunciada como prioritária (Castro Filho et al., 2007), devendo necessariamente fazer parte do currículo mínimo, com possível efeito indutor sobre os programas de especialização em APS. 579


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Já em relação aos cursos de graduação e às DCN, faz-se aqui um recorte específico quanto aos cursos de medicina (Brasil, 2001). Apesar do destaque para a promoção da saúde integral em todos os níveis do sistema, em nenhum momento há ênfase específica na formação para as ações de saúde mental, inclusive na configuração proposta para o internato médico. Mesmo estando a formação geral em saúde mental implícita em todo o documento, talvez fosse interessante explicitá-la, como se fez com outras grandes áreas do conhecimento médico. Restaria, além disso, outra pergunta, também ainda sem resposta em território brasileiro: qual o impacto real dessas iniciativas de formação? Seriam custo-efetivas e suficientes para melhorar a qualidade da formação no que se refere à saúde mental?

Comentários finais A presente revisão tem como limitação o desconhecimento das exatas formações dos profissionais que participaram dos estudos comentados. Certamente, nem todos foram capacitados nas especificidades clínicas encontradas neste cenário, o que é particularmente relevante de ser considerado no atual momento do processo de estruturação da APS brasileira. No Brasil, há ainda dificuldades adicionais a serem enfrentadas em relação às encontradas em países europeus ou norte-americanos, que produziram parte dos estudos aqui comentados. São escassos os estudos sobre as decorrências da diversidade brasileira de hábitos, costumes, valores e tradições no dia a dia dos serviços. O País conta, por exemplo, com heterogêneas subpopulações rurais que representam cerca de um quinto da população. No meio urbano, encontramse, também, diferentes subgrupos culturais, correspondendo a diferentes hábitos em relação ao álcool. Adicionalmente, a estratificação social brasileira sui generis acrescenta mais fatores de complexidade social, dificilmente captáveis em estudos epidemiológicos. Considere-se, também, que as comentadas diferenças entre os gêneros requerem adaptações para tornar a APS mais atraente para a população feminina usuária de álcool (assim como para a população masculina geral), raciocínio extensível a outras configurações de gênero ainda menos estudadas, como os homossexuais e transexuais. Especificidades locais tornam improvável que algumas ferramentas clínicas, como as IB, possam ser aplicadas em todos os territórios das unidades de saúde da APS, o que foi ilustrado na fala de um médico presente ao II Congresso Paulista de Medicina de Família e Comunidade (2007). Trabalhando numa Unidade de Saúde da Família cujo território compreende uma favela paulistana, avaliou ser impossível a aplicação das IB visando o consumo de álcool em seus pacientes, por considerar que os traficantes do local veriam isso como uma ameaça ao seu mercado. Considere-se, ainda, que as ferramentas clínicas representadas pelos instrumentos de rastreamento, embora estudadas também “em nosso meio”, foram validadas considerando, sobretudo, se não exclusivamente, a variável idioma. Ademais, atente-se para que os instrumentos padronizados de diagnóstico e abordagem de pacientes são acessórios da atividade clínica, sendo particularmente úteis quando se visa aumentar a eficiência de um serviço. A tradição clínica sugere, entretanto, que os profissionais de saúde procurem se adaptar aos seus pacientes, e não o contrário. Os diagnósticos de transtornos relacionados ao álcool são clínicos, e o principal instrumento de que a medicina dispõe neste caso é a história e o exame psíquico, prescindindo a priori da aplicação de questionários, testes, escalas e exames subsidiários. Assim, a necessidade de eficiência e efetividade requer que o repertório profissional compreenda ambas as possibilidades de atuação (a protocolar e a clínica tradicional). Certamente, é importante saber aplicar um instrumento de screening, mas, para interpretar os resultados, é necessário compreender plenamente a problemática conceitual envolvida no espectro de fenômenos biológicos e socioculturais presentes no uso de álcool e nos diagnósticos relacionados. Neste mesmo sentido, para aproximar o clínico de seus pacientes, seja na entrevista clínica “livre”, seja durante a aplicação de instrumentos de rastreamento e intervenção, é desejável que o profissional de saúde, o médico em particular (enquanto formulador de diagnósticos nosológicos), se assegure de 580

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que entende o que seus pacientes dizem e, igualmente, de que seus pacientes entendem o que ele, o profissional, diz. A etnografia chama este atributo de competência cultural (Bernard, 1988), ou seja, uma real competência quanto à compreensão do universo semântico, de valores, de tradições e apreensões dos pacientes. Na tradição da antropologia cultural, o pioneiro Malinowski já havia se referido à importância de “efetivamente” e “realmente” estar em contato com aquele que se quer conhecer (Malinowski, 1984, p.21-2). Transposto para a área da saúde, acreditamos que este tipo de competência tenderia a diminuir o que é “perdido na tradução”, estando a serviço da competência clínica. Contanto que se efetivem, as atuais diretrizes das políticas públicas brasileiras para educação profissional e para a atenção à saúde (integralidade do cuidado, acompanhamento longitudinal das pessoas e famílias, acesso universal, coordenação, advocacia pelo paciente), caso aplicadas às questões de saúde mental, em específico aos transtornos relacionados ao uso de álcool, suscitam uma perspectiva otimista. Visando contribuir para esta efetivação, parecem imprescindíveis esforços investigativos que, progressivamente, detectem e permitam uma compreensão minuciosa do espectro de características e de dificuldades dos profissionais e de seus pacientes usuários de álcool. Advoga-se aqui, particularmente, em favor de uma agenda de investigações sobre os complexos significados psicoculturais que esta problemática envolve, como se pôde depreender da presente revisão.

Colaboradores Bruno José Barcellos Fontanella responsabilizou-se pela concepção e redação do manuscrito original e pela organização das várias versões subsequentes, que resultaram na presente versão final. Marcelo Marcos Piva Demarzo, Guilherme Arantes Mello e Sandra Lúcia Correia Lima Fortes responsabilizaram-se por acréscimos críticos, conceituais e de redação durante a elaboração do manuscrito. Agradecimento Agradecemos à Profa. Dra. Ana Maria Galdini Raimundo Oda, pela leitura e comentários sobre o texto.

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Palabras clave: Atención primaria de salud. Transtornos relacionados al uso del alcohol. Competencia clínica. Barreras de comunicación. Recebido em 18/06/2010. Aprovado em 24/11/2010.

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Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde Luiz Carlos Oliveira Cecilio1

Por que não podemos conseguir com o homem aquilo que os chineses sabem fazer com uma árvore – enquanto de um lado carrega rosas, do outro, peras? (Nietzsche, citado por Van Balen, 1999, p.65)

Sobre as dimensões da gestão do cuidado em saúde Podemos definir a gestão do cuidado em saúde como o provimento ou a disponibilização das tecnologias de saúde, de acordo com as necessidades singulares de cada pessoa, em diferentes momentos de sua vida, visando seu bemestar, segurança e autonomia para seguir com uma vida produtiva e feliz. A gestão do cuidado em saúde se realiza em múltiplas dimensões que, imanentes entre si, apresentam, todas e cada uma delas, uma especificidade que pode ser conhecida para fins de reflexão, pesquisa e intervenção. Podemos pensar a gestão do cuidado em saúde sendo realizada em cinco dimensões: individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária, como representado na Figura 1. Na dimensão mais nuclear da figura, está a dimensão individual da gestão do cuidado em saúde. O “cuidar de si”, no sentido de que cada um de nós pode ou tem a potência de produzir um modo singular de “andar a vida”, fazendo escolhas, “fazendo da vida uma obra de arte”. Estudos produzidos no campo da Saúde Coletiva, em particular no debate e formulação de modelos tecnoassistenciais (Silva Jr., 1998), adotaram o conceito de “estar sadio” como sinônimo de autonomia, no sentido apontado originalmente por Canguilhem (1982): estar sadio é a capacidade de, diante das adversidades da vida, produzir novas normatividades, novos modos de viver, utilizando-se da ideia de que a Vida é permanentemente (re)instauradora de normas. Enquanto estivermos vivos, estaremos em produção, fazendo escolhas, produzindo nosso modo de viver. Por outro lado, ao se falar da dimensão individual do cuidado não se poderia ignorar o debate contemporâneo a respeito dos conceitos de “indivíduo” e de “autonomia”, de modo a contemplar pelo menos três pontos: • A negação da subjetividade como algo coerente, durável e individualizado, ou seja, somos mais plurais do que pensamos (Rose, 2001).

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• A compreensão da autonomia não como algo que o “indivíduo” elabore no seu interior mas, ao contrário, sua abertura, sempre, ao que é outro, e não ele mesmo. Assim, a autonomia resulta de uma longa história segundo a qual o organismo humano se distancia do que o rodeia; ela não é nada menos do que a ligação cada vez mais aberta, cada vez menos determinada, entre o organismo e seu meio (Beardsworth, 2003). • Os modos de subjetivação contemporâneos não podem ser desvinculados de um biopoder produtor de regras regulatórias que, afinal, definem nossos “eus” (Rabinow, Rose, 2006).

Figura 1. As múltiplas dimensões do cuidado em saúde

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Cecilio, L.C.O.

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Mesmo reconhecendo que o “individual” é agenciado por um conjunto de forças, vetores e condições concretas de vida a depender da inserção de cada pessoa nos circuitos de produção e de consumo de determinada sociedade e em determinado momento histórico, é possível, sempre, reconhecer uma esfera “individual” na qual seria possível escapar da mão pesada das determinações sociais mais amplas, e que se traduziria na conquista, em maior ou menor medida, de graus ampliados de autonomia, de processos de cuidar de si, de viver a vida de forma mais plena. A dimensão familiar da gestão do cuidado é aquela que assume importâncias diferentes em momentos diferentes da vida das pessoas. Trata-se de uma dimensão da gestão do cuidado localizada no mundo da vida, isto é, tem, como seus atores privilegiados: pessoas da família, os amigos e os vizinhos. Dizer isso não é imaginar um mundo sem dificuldades e contradições. Basta lembrar as relações conflituosas que se apresentam nesse campo, em particular aquelas entre cuidadores e cuidados, como consequência da complexidade dos laços familiares, da sobrecarga de trabalho para os cuidadores, das exigências permanentes para a realização do cuidado etc. Além disso, essa dimensão tem sido, crescentemente, colonizada por certas lógicas institucionais, em particular na operacionalização de programas de desospitalização e de atendimento domiciliar (Carvalho et al., 2007). Como consequência do envelhecimento acelerado da população brasileira, essa dimensão assumirá crescente importância para os serviços e pesquisas em saúde. A dimensão profissional do cuidado é aquela que se dá no encontro entre profissionais e os usuários e nucleia o território da micropolítica em saúde. É um encontro “privado”, que, na sua forma mais típica, ocorre em espaços protegidos, de modo geral, fora de qualquer olhar externo de controle. Essa dimensão é regida por três elementos principais, que lhe conferem sua maior ou menor capacidade de produzir o bom cuidado: a) a competência técnica do profissional no seu núcleo profissional específico, ou seja, a capacidade que tem, por sua experiência e formação, de dar respostas para o(s) problema(s) vivido(s) pelo usuário; b) a postura ética do profissional, em particular, o modo com que se dispõe a mobilizar tudo o que sabe e tudo o que pode fazer, em suas condições reais de trabalho, para atender, da melhor forma possível, tais necessidades; c) não menos importante, a sua capacidade de construir vínculo com quem precisa de seus cuidados. A dimensão organizacional do cuidado é aquela que se realiza nos serviços de saúde, marcada pela divisão técnica e social do trabalho, e evidencia novos elementos, como: o trabalho em equipe, as atividades de coordenação e comunicação, além da função gerencial propriamente dita. Nela, assume centralidade a organização do processo de trabalho, em particular, a definição de fluxos e regras de atendimento e a adoção de dispositivos compartilhados por todos os profissionais, tais como: as agendas, protocolos únicos, reuniões de equipe, planejamento, avaliação etc. Aqui, a gestão do cuidado depende da ação cooperativa de vários atores, a ser alcançada em territórios marcados, frequentemente, pelo dissenso, pela diferença, pelas disputas e pelas assimetrias de poder. A dimensão sistêmica da gestão do cuidado é aquela que trata de construir conexões formais, regulares e regulamentadas entre os serviços de saúde, compondo “redes” ou “linhas” de cuidado, na perspectiva da construção da integralidade do cuidado. Historicamente, foi trabalhada como a imagem de uma “pirâmide” constituída por serviços de complexidade crescente, interligados entre si através de processos formais de referência/contrarreferência, que deveriam resultar em fluxos ascendentes/ descendentes ordenados e racionalizados de usuários. O movimento real dos usuários no “sistema de saúde”, em particular, o modo como constroem itinerários terapêuticos que escapam à racionalidade pretendida pelos gestores; a transversalidade que o trabalho médico produz ainda hoje no “sistema” de saúde, a despeito das estratégias crescentemente disciplinadoras a que vem sendo submetido; a multiplicidade de “portas de entrada” para o “sistema”, em particular, nos serviços do tipo prontoatendimento, que desafiam o ideal da rede básica como “porta de entrada” da pirâmide de serviços, tudo isso tem obrigado gestores e pesquisadores da área a trabalharem com conceitos mais flexíveis de redes de cuidado construídas a partir da ação de usuários, trabalhadores e gestores. A despeito de tal complexidade e multiplicidade de atores e movimentos, os gestores, ou seja, aqueles que ocupam cargos de direção nos sistemas locais de saúde, têm uma responsabilidade intransferível na gestão sistêmica do cuidado em saúde, sendo essa, normalmente, sua atividade mais visível e trabalhosa. Estamos em pleno domínio: da construção da relação público-privado, em particular, a compra de 591


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serviços; da programação orçamentário-financeira; de regulação da relação Estado/prestadores privados; da formulação de políticas de prioridades; da política de investimentos etc. As equipes gestoras ocupam parte importante de suas agendas fazendo a gestão do cuidado nessa dimensão. Por fim, a dimensão societária da gestão do cuidado em saúde. Aqui estamos tratando de como, em cada sociedade, se produzem as políticas públicas em geral, e a de saúde em particular, e como é pensado o papel do Estado, especialmente como formula e implementa suas estratégias para a garantia dos trabalhadores que implementarão as políticas sociais. É a dimensão mais ampla da gestão do cuidado, ou seja, é nela que se aprecia como cada sociedade produz cidadania, direito à vida e acesso a toda forma de consumo que contribua para uma vida melhor. É a dimensão do encontro da sociedade civil, em sua heterogeneidade, com o Estado, e a disputa de diferentes projetos societários que resultarão em melhores ou piores condições de vida para amplos extratos da população. Para finalizar, é bom lembrar, portanto, que há múltiplas conexões entre as várias dimensões, produzindo uma complexa rede de pontos de contato, atalhos, caminhos colaterais e possibilidades, mais ou menos visíveis e/ou controladas pelos trabalhadores e gestores. Nesse sentido é que vale enfatizar que a representação em círculos concêntricos, que está sendo utilizada no artigo, seria devedora da representação atômica clássica; a dinâmica real de interpenetração das várias dimensões seria melhor pensada a partir dos conceitos da física quântica ou, mesmo, de um “rizoma” (Figura 2).

Figura 2. Elementos presentes nas várias dimensões da gestão do cuidado em saúde

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Cecilio, L.C.O.

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Sobre a avaliação da gestão do cuidado em saúde Por tudo o que foi dito no ponto anterior, a avaliação da gestão do cuidado em saúde deverá dar conta da complexidade e heterogeneidade do seu “objeto”. De fato, o mais correto seria dizer as várias dimensões da avaliação da gestão do cuidado, deixando claro, de saída, que não haveria um único instrumento, ou um conjunto de instrumentos avaliativos que dessem conta da multiplicidade das dimensões como foram apresentadas. Como avaliar campos tão distintos que, sendo imanentes e interpenetrados, apresentam-se, ao mesmo tempo, irredutivelmente singulares? Ao pretendermos construir instrumentos de avaliação poderosos e “objetivos”, o suficiente para dar conta de tudo, não poderíamos ter o risco da simplificação grosseira, talvez a utilização de uma rede de malhas muito grossas que não conseguisse pescar os peixes menores? E se a rede não fosse o melhor modo de se pegarem os peixes pequenos, mesmo que fosse trançada com malhas bem finas? E se fosse necessário pensar em outra coisa para além da rede para se alcançar aquilo que fervilha na água, mas que nos escapa aos olhos? Imaginemos, então, um modo de avaliação que fosse construído como uma gradação atravessando as várias dimensões. Não seria incorreto afirmar que o Movimento Sanitário, mesmo em sua produção mais crítica, de algum modo cultivou uma postura de externalidade em relação ao campo micropolítico da produção do cuidado em saúde, se ele for definido como o território onde se realiza o ato último de cuidar, ali na intimidade dos serviços de saúde e no labor das equipes junto aos usuários. Na discussão que se segue, ele será tomado como o “interno” por referência a um “externo”, uma espécie de convenção que necessita de alguma problematização. O Movimento Sanitário sempre apresentou certa “externalidade” em relação a esse campo micropolítico por conta de uma dupla herança. Em primeiro lugar, a herança da Saúde Pública, que sempre lidou mal com tal espaço, pelo modo como construiu seu objeto e seus instrumentos operatórios, em particular, a epidemiologia e seu olhar sobre os grandes números, sobre o que é extensivo, sobre os coletivos. O campo micropolítico ficava ausente de tal construção. Por outro lado, o pensamento mais crítico presente na fundação da Saúde Coletiva, ou voltou sua atenção para a “determinação social” do processo saúde-doença, em particular, seus componentes macroestruturais – econômicos, políticos e sociais –, ou, quando se ocupou do espaço micropolítico, foi para apontar sua articulação com as determinações mais amplas, como se ele fosse a simples caixa de ressonância de um jogo pesado que se dava fora dele, ou “externo” a ele. Basta lembrar como a Medicina e a prática médica sempre foram estudadas muito mais na perspectiva de sua cumplicidade com a biopolítica do Estado capitalista e sua articulação crescente com o complexo médico-industrial, contribuindo para um modo cada vez mais poderoso de realização do capital, de controle da força de trabalho ou de sua produção e reprodução para os interesses dos capitalistas. Essa seria a nossa segunda herança, aquela produzida pelo pensamento crítico. O Movimento Sanitário, com sua dupla herança de externalidade, exerceu grande influência, nos últimos anos, sobre o modo de se pensar, fazer e estudar a gestão em saúde no nosso país, seja pela ocupação direta de cargos de governo ou gerência, seja por sua produção teórico-científica, com forte influência na produção das políticas de saúde, inclusive das políticas de avaliação. Por outro lado, quem faz gestão em saúde, pela natureza da sua função ou pelo lugar institucional que ocupa, tende a se colocar de modo “externo” a esse campo micropolítico, enxergando-o como território a ser normalizado e controlado. Interessa-nos, portanto, nessas reflexões, destacar a externalidade dos gestores e, muitas vezes, dos próprios gerentes de serviços, em relação a tal campo, e as implicações disso para a discussão sobre avaliação. No presente texto, será adotada a definição de micropolítica como o conjunto de relações que estabelecem, entre si, os vários atores organizacionais, formando uma rede complexa, móvel, mutante, mas com estabilidade suficiente para constituir uma determinada “realidade organizacional” – dessa forma, relativamente estável no tempo, podendo, assim, ser objeto de estudo e intervenção. Os atores são portadores de valores, de projetos, de interesses, e disputam sentidos para o trabalho em saúde. É um campo, portanto, desde sempre, marcado por disputas, acordos e composições, coalizões, afetos. Um campo atravessado e constituído por relações de poder. Na micropolítica, se produz o cuidado, portanto, os usuários são parte central da micropolítica das organizações de saúde (Cecilio, 2007). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No texto, será considerado “externo” aquilo que opera mais distante do território do cuidado direto e que possui, portanto, uma qualidade de “externalidade”, em contraposição ao “interno”, em particular, as dimensões organizacional e profissional do cuidado, portadoras da qualidade de “internalidade”, no sentido que está sendo usado no artigo. Tomados os devidos cuidados para explicitar o que está sendo chamado de externo/interno, e mesmo relativizando qualquer entendimento de uma oposição absoluta entre os termos, retomemos a ideia de se pensar a avaliação das múltiplas dimensões da gestão do cuidado como uma gradação móvel e variável que, partindo das esferas mais “externas” da gestão do cuidado em saúde – ou seja, as dimensões societárias e sistêmicas, como estamos adotando –, vá se aproximando do campo interno da micropolítica, respeitadas suas especificidades. Para caracterizar tal gradação de avaliação, será utilizada a equação externalidade/internalidade, de modo tal que ela vá se modificando à medida que se translada da periferia para o centro, do mais “externo” para o mais “interno”, como pode ser visto na Figura 3. Nela, o vetor AB, partindo da dimensão mais externa da gestão do cuidado, a societária, vai transversalizando todas as demais até alcançar o núcleo mais micropolítico, no sentido que está sendo adotado no texto. A partir de A, predominam os indicadores “duros”, ou seja, aqueles com pretensão de objetividade, de quantificação, de produzir certa visibilidade, “abrindo” todas as demais dimensões até atingirem os espaços mais “micro”. Traduzem a intencionalidade de se produzir um conhecimento objetivo e inquestionável da realidade organizacional. São chamados de “duros” porque são do campo das ciências duras, matemáticas. Sua marca é a externalidade em relação ao campo micropolítico e são operados tanto por atores que ocupam lugares de gestão, como por pesquisadores que se filiam às metodologias de caráter mais positivista. Compõem o polo A os indicadores epidemiológicos, físicofinanceiros e de produção. Nesse polo, a avaliação da qualidade da gestão do cuidado pode mirar: a) indicadores de resultado, como os de morbimortalidade; b) indicadores de processos, referentes ao cumprimento de metas físicas, cumprimento de protocolos, normas e, mesmo, a qualificação e produtividade dos trabalhadores; c) de estrutura, como avaliações das condições físicas de trabalho, equipamentos, manutenção etc, se utilizarmos a tipologia de Donabedian (1980, 1990). Olham o espaço micropolítico como uma “caixa-preta”, com seus processamentos próprios, mas se valorizam mais seus outputs. A pretensão máxima, quando se usam os indicadores “duros”, é que eles tenham potência não só para revelar, mas também para formatar o território da micropolítica. O polo A do vetor de gradação é claramente funcionalista-sistêmico. Todo o processo de contratualização entre Estado e os novos regimes de gestão (Organizações sociais, fundações estatais de direito privado, OSCIPS etc.) está fortemente ancorado no conceito de “contratos de gestão” que, por sua vez, apoiam-se em indicadores de resultados, os quais, em princípio, seriam a garantia da “objetividade” no acompanhamento dos contratos e, por conseguinte, de controle do Estado. Dizer que o que importa é acompanhar resultados, não processos, marca esse campo. O polo A poderia ser representado pela seguinte equação: Externalidade/internalidade. Por outro lado, à medida que o vetor de gradação AB se aproxima do território mais micropolítico, a “internalidade” passa a ser cada vez mais importante ao se almejar fazer uma avaliação efetiva da qualidade da gestão do cuidado. A internalidade é entendida, conforme visto antes, como o complexo campo de saberes, de relações de poder e de disputas de sentidos, e, marcadamente, dos autogovernos dos trabalhadores no interior dos serviços de saúde, produzindo o cuidado em ato: o encontro dos trabalhadores com os usuários (Merhy, 2002, 1997). Embora esse campo micropolítico apresente elementos estruturados, dotados de certa regularidade e previsibilidade, como não poderia deixar de ser em função da institucionalização das práticas de saúde – a cotidianeidade dos serviços –, ele é, sobretudo, território de fluxos, de arranjos contingentes e negociados, de produção de novidades e novos conhecimentos, do inusitado e do que escapa à pretensão de normalização, visibilidade e controle. Olhados desse território micropolítico, os dirigentes, os gestores e, muitas vezes, os próprios gerentes são percebidos como o que é “de fora” (ou “de cima”), o intangível, distante, a externalidade enfim. Para não complicar a reflexão, vamos ignorar, propositalmente, a ideia de que o “micro” é, ele próprio, composto por vários territórios profissionais-existenciais que se tangenciam, se dobram uns sobre os outros, de modo que, também, nele haveria “internos” e “externos”... 594

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Figura 3. A gradação na avaliação das várias dimensões da gestão do cuidado em saúde

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O que interessa, no momento, é deixar bem estabelecido que “aquilo que fervilha na água”, como foi dito antes ao se usar a imagem da pesca, ou seja, a complexidade desse território micropolítico, escapa, o tempo todo, por entre as malhas da rede. O polo B do vetor de gradação, por isso mesmo, terá de dar conta de outros modos de se fazer avaliação que não se resumam aos indicadores e metas que normalmente temos utilizado para fazer a avaliação em saúde, a partir de A. Isso não significa desconsiderar a importância dos indicadores “duros”, até porque eles têm sido historicamente utilizados, no caso do campo governamental, como instrumentos de aprimoramento das políticas de saúde, em particular, ao alimentarem processos de alocação de recursos que permitam a garantia dos princípios basilares do SUS, como a integralidade, a universalidade do acesso e a equidade. Trata-se, portanto, no caso do polo B, de refletir sobre sua especificidade e suas exigências práticas, vinculadas quase que imediatamente ao próprio processo de gestão e organização do cuidado. Nesse polo, a gradação do processo avaliativo que estamos utilizando alcança a mais alta expressão da relação na forma externalidade/Internalidade. E isso nos coloca novos desafios. Por tudo o que vimos até agora, é possível dizer que a equação externalidade/internalidade vai sofrendo uma gradação ao se deslocar do mais “externo”, ou mais “macro” (dimensões societária e sistêmica, principalmente), em direção aos processos mais “micro” ou “moleculares” (dimensões organizacionais, profissionais), mas sempre mantendo a presença, com pesos diferentes, dos dois polos (A e B). O delírio funcionalista e controlador máximo é supor ser possível anular o componente da internalidade da equação. Se triunfasse tal visão, a dinâmica do “interno” à micropolítica poderia ser totalmente capturada, esquadrinhada e controlada por um olhar externo objetivo, “científico”, distanciado: a externalidade absoluta. Por outro lado, mesmo criticando tal posição funcionalista e destacando o peso da internalidade, bem sabemos que algum componente de externalidade sempre há de estar presente no processo avaliativo.

Trabalhadores e usuários dos serviços de saúde: outros olhares, outros sentidos Assumida a tradição de externalidade nos processos avaliativos no SUS, pela dupla herança apontada antes e por ser, tradicionalmente, uma atividade dos gestores, temos de enfrentar o desafio de inventar novos modos de avaliação que assumam, para valer, o protagonismo dos trabalhadores e usuários, no território nuclear da micropolítica. Caminhar por aí significa assumir alguns pressupostos: a) suportar um descentramento radical dos processos avaliativos, isto é, adotar a ideia de que não há mais um “centro” ou um ponto ou uma instância de onde partam diretrizes, técnicas, métodos ou modos de se fazer avaliação do cuidado. Adotar a ideia de que a avaliação deve se realizar em uma rede móvel, flexível, contingente imanente aos processos de trabalho em saúde. Dar o devido peso, e limites, aos “avaliadores” ou às instâncias de avaliação tradicionais, lugar da produção e utilização dos indicadores “duros”, utilizados nos processos de gestão; b) romper com a concepção de que a avaliação da micropolítica se faz, portanto, a partir de indicadores vindos de fora ou de cima, seguindo o “princípio” clássico da Saúde Pública (“centralização na formulação, descentralização na execução”). O Pacto da Saúde (Brasil, 2006) ainda é devedor dessa concepção: os indicadores são pensados em Brasília, “assumidos” em um contrato de gestão pelos gestores locais e “destrinchados” pelas equipes locais. Se bem pensado, todo o oneroso (para os trabalhadores) processo de “produção de informação” – na verdade, a coleta burocrática e penosa de dados – responde a essa lógica. Depois, nos espantamos por “não conseguirmos trabalhar com avaliação”; c) considerar que já há processos mais descentrados de avaliação do cuidado que passam desapercebidos pelos gestores e, mesmo, pelos gerentes, pois eles não são captados pelos instrumentos formais de avaliação. Um desafio é dar visibilidade e valorização a esses processos; d) assumir que a avaliação é uma atividade que deve fazer sentido, antes de mais nada, para quem cuida e para quem é cuidado. O uso pelos gestores deve ser um desdobramento disso; e) contribuir para que os espaços formais de controle social, em particular os conselhos de saúde, possam politizar os indicadores “duros”, tomando-os para si, problematizandoos, mas considerar que o controle social radical sobre os serviços só se dará com a inclusão efetiva dos usuários nos processos avaliativos micropolíticos. Assim, uma responsabilidade ético-política essencial 596

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dos trabalhadores e gestores é contribuir para a formação de conselheiros, no sentido de ajudá-los a aprenderem interrogar os indicadores “duros”. Produzir ação política a partir dos indicadores “duros”. Mas é preciso irmos mais adiante com nossa reflexão se quisermos caracterizar a complexidade que está implícita nas considerações anteriores. Para tanto, façamos uso da epígrafe do presente texto, um pensamento do filósofo Friedrich Nietzsche, que nos incita a pensarmos sobre a possibilidade de se produzir um homem como os chineses produzem árvores, que dão peras em uma metade e rosas na outra. Numa leitura livre de tal pensamento, poderíamos pensar que os trabalhadores (já) produzem peras de um lado e rosas do outro. Ou, talvez, rosas, maçãs e outras frutas mais, incluindo pepinos e jilós, que também são frutos! Quem faz gestão, deseja, quase sempre, que os trabalhadores produzam o que está planejado para ser produzido. Os instrumentos de avaliação são montados para medir a produção e a qualidade das peras, por exemplo. Haverá, no entanto, sempre um lado produtivo não visível da micropolítica, um lado que fica fora das “grades avaliativas” formais. Há um lado não facilmente acessável da “árvore-trabalhador”, que produz maçãs ou rosas ou peras e que, para o usuário real, pode ser exatamente o que ele precisa naquele momento. E mais, a qualidade dessas outras “frutas” também nos escapa, e não será a gerência, ou indicadores “duros”, que conseguirão captar os sentidos que lhes darão os usuários. Às vezes, o pepino pode ser o que mais se deseja para fazer uma salada. Tudo isso reforça a importância de assumirmos o pressuposto do inevitável descentramento que deverá estar presente nos processos de avaliação. Como pôr em prática tais indicações? Seria possível romper décadas de tradição (de intenção nunca concretizada plenamente...) de avaliações do tipo topo-base, sempre vistas como incomodamente externas (e controlistas) pelos trabalhadores? Como superar a desconfiança atávica que nos faz pensar, sempre, que os autogovernos dos trabalhadores poderão resultar numa árvore que não produza os frutos que achamos que ela deva produzir, ou que possa produzir frutos que não são tão bons assim? Como romper com um modo de pensar que supõe que a existência de indicadores “duros” bem formulados – “tradução” perfeita, porque “objetiva”, de uma política – é suficiente para induzir o bom cuidado, o “cuidado que deve ser feito e que os trabalhadores não sabem fazer e que alguém precisa dizer como se faz e avaliar se está sendo feito como se espera que faça?”. Talvez pudéssemos acrescentar uma interrogação mais às anteriores, que serviria como uma espécie de contraponto ao convite ao descentramento: e se a “árvore-trabalhador” não produzir os frutos que os usuários necessitam para matar sua fome? E se as frutas produzidas não contiverem todo o sumo para matar a sede de quem tem sede? Chegamos aqui ao ponto central da reflexão proposta neste texto. E, aqui, seria importante retomar o conceito de externalidade/internalidade que vem sendo desenvolvido. O desafio seria a construção de processos avaliativos que combinando, em diferentes graus, os gradientes de externalidade/ internalidade – que existirão sempre pela própria institucionalização das práticas de saúde – com seus inevitáveis elementos de heteronomia e controle, conseguisse trabalhar a riqueza da micropolítica em si e, a partir dela, e cultivando a perspectiva de sua máxima autonomia e produção, apontasse para um horizonte ético de defesa intransigente da vida. Nesse território micropolítico, a avaliação torna-se imanente à gestão e à produção do cuidado, mais precisamente, à gestão do cuidado em saúde, como a imagem mítica da cobra que se engole pela cauda. Uma avaliação que se realiza no processo mesmo de cuidar, arrebatada pelos cuidadores e pelos que são cuidados, politizada a ponto de ser capaz de ter uma atitude antropofágica com os próprios indicadores “duros”: conhecê-los, digeri-los, recriá-los, mas nunca se saciar apenas com eles. Uma avaliação que produzisse imediatamente o cuidado; uma avaliação que produzisse os cuidadores; uma avaliação que fosse produção permanente. Nesse ponto, seria necessário fazer dois contrapontos para que se fique claro o que está sendo dito aqui. O primeiro é que tal postura está no polo oposto a todo o movimento racionalizador, de cunho funcionalista, que foi se convertendo no eixo hegemônico da “gestão em saúde” e tem dado a tônica “modernizadora” que se impõe como aparentemente incontornável para os gestores privados e, cada vez mais, para os públicos também, nos dias que correm. Sua tradução é a busca incansável pela eficiência, por resultados, por previsibilidade, controle e visibilidade, centralmente às custas da funcionalização crescente e obsessiva do trabalho em saúde, em todas as suas dimensões, 597


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e atingindo todas as categorias profissionais (Cecilio, 2007). O segundo contraponto, este menos evidente, é em relação à ideia mesma da cogestão em saúde, como temos trabalhado esses anos todos (Campos, 1998), e, sem negá-la, propor que se vá além dela. Ir além dela é tomar o espaço da micropolítica como território que não se pretende “conquistar” e submeter a um olhar racionalizador e normalizador, a partir de uma externalidade, mas um território que deverá nos conquistar, a nós pesquisadores e gestores, por ser lugar de produção de possibilidades, das singularidades, do inusitado, do que recusa a normalização. Conhecer o jardim das árvores de frutas imprevisíveis...

Referências BEARDSWORTH, R. Nietzsche. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria/GM 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto da Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. CAMPOS, G.W.S. O anti-Taylor: sobre a invenção de um método para cogovernar instituições de saúde produzindo liberdade e compromisso. Cad. Saude Publica, v.14, n.4, p.863-70, 1998. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. CARVALHO, L.C.; FEUERWERKER, L.C.M.; MERHY, E.E. Disputas em torno a los planes de cuidados en la internación domiciliaria: una reflexión necesaria. Salud Colectiva, v.3, n.3, p.489-506, 2007. CECILIO, L.C.O. A micropolítica do hospital: um itinerário ético-político de intervenções e estudo. 2007. Tese (Livre-Docência) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2007. DONABEDIAN, A. The seven pillars of quality. Arch. Pathol. Lab. Med., v.114, n.11, p.1115-8, 1990. ______. The definition of quality and approaches to its assessment. Michigan: Health Administration Press, 1980. (Explorations in Quality Assessment and Monitoring, 1). MERHY, E.E. Saúde, a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. ______. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato. In: MERHY, E.E.; ONOCKO, R.T. (Orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.71-112. RABINOW, P.; ROSE, N. O conceito de biopoder hoje. Rev. Cienc. Soc., v.1, n.2, p.27-57, 2006. ROSE, N. Inventando nossos eus. In: SILVA, T.T. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.139-204. SILVA JR., A.G. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate da Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, 1998. (Saúde e Debate, s/n). VAN BALEN, R.M.L. Sujeito e identidade em Nietzsche. Rio de Janeiro: UAPÊ Espaço Cultural Barra, SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, 1999.

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O artigo apresenta uma reflexão sobre avaliação em saúde que considere as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde (individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária), mediante uma gradação de instrumentos e objetivos dos processos avaliativos que, partindo das dimensões societária e sistêmica, com sua demanda por indicadores mais “duros” e estruturados, caminhem na direção dos processos mais micropolíticos do cuidado. Para tanto, propõe-se uma equação móvel, que traduza a relação “externalidade” (gestores, pesquisadores, gerentes) e “internalidade” (as equipes que fazem o cuidado), de modo que o nível micropolítico seja contemplado em toda sua riqueza e especificidade. Uma lógica avaliativa que não seja apenas a decodificação e operacionalização dos indicadores “duros” definidos pelos gestores (do “exterior”), mas que seja produzida na própria micropolítica (no “interior” do cuidado).

Palavras-chave: Avaliação em saúde. Micropolítica. Gestão do cuidado em saúde. Theoretical and conceptual notes on evaluative processes taking the multiple dimensions of healthcare management into account This paper presents a discussion on health evaluation that considers the multiple dimensions of healthcare management (individual, family, professional, organizational, systemic, and societal) through a gradation of tools and objectives related to the evaluative processes, which, by taking the societal and systemic dimensions as a starting point, with their demand for “harder” and well-shaped indices, are carried out towards healthcare processes that present more micropolitical aspects. Therefore, it proposes a mobile equation that translates the “outer” relation (administrators, researchers, managers) and the “inner” relation (teams acting as healthcare providers) so that the micropolitical level is envisaged in all its wealth and specificity. An evaluative logic that not only stands for the mere decoding and operationalization of the “hard” indices as defined by the administrators (from “outside”), but is produced within itself (“inside” the health care).

Keywords: Health evaluation. Micropolitics. Healthcare management. Apuntes teórico-conceptuales sobre los procesos evaluativos considerando las múltiples dimensiones de la gestión del cuidado en salud El artículo presenta una reflexión sobre la evaluación en salud que considera las múltiples dimensiones de la gestión del cuidado en salud (individual, familiar, profesional, organizadora, sistémica y societaria) por medio de una sucesión de instrumentos y objetivos de los procesos evaluativos que, partiendo de las dimensiones societaria y sistémica, con su demanda de indicadores más “duros” y estructurados, se dirija hacia los procesos más micropolíticos del cuidado. Para ello se postula una ecuación móvil, que traduzca la relación “exterioridad” (los gestores, los investigadores y los gerentes) e “interioridad” (los equipos a cargo del cuidado), de modo tal que el nivel micropolítico se considere en toda su riqueza y especificidad. Una lógica evaluativa que no se limite a la decodificación y a la condición operacional de los indicadores “duros” definidos por los gestores (del “exterior”), sino que se genere en la propia micropolítica (en el “interior” del cuidado).

Palabras clave: Evaluación en salud. Micropolítica. Gestión del cuidado en salud.

Recebido em 03/06/2009. Aprovado em 19/05/2010.

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Análise foucaultiana de vídeos educativos para as Ciências da Saúde: ensaiando uma metodologia

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Marcia Bastos de Sá1 Vera Helena Ferraz de Siqueira2

Introdução A incorporação da imagem em movimento a situações de ensino e aprendizagem teve início nas primeiras décadas do século XX, e hoje, no Brasil, inúmeros são os espaços – escolas, postos de saúde, hospitais, dentre outros – que contam com, pelo menos, uma televisão e equipamento para reprodução de audiovisuais. A presença desses suportes nesses ambientes pode ser entendida como o reconhecimento do valor da imagem em movimento em/ou para ações pedagógicas, o que justifica a crescente importância dos estudos que se voltam à compreensão de aspectos relacionados a essa temática. Nesse sentido, nota-se recentemente, por exemplo, o aumento considerável de artigos e publicações dedicados às relações entre educação e cinema ou educação e televisão. Também vem despertando o interesse de pesquisadores o vídeo educativo, entendido por Xavier (2008, p.15) como uma produção que, estruturada como um ato comunicativo, tende a apresentar, “de um modo ou de outro, uma demarcação, uma metodologia de ensino, um princípio pedagógico, voltados para um domínio específico de conhecimento ou para o adestramento de uma prática”. Contudo, é digno de atenção o fato de que o estudo do vídeo educativo em si mesmo, como a modalidade de produção audiovisual mais explicitamente vinculada às intenções pedagógicas, não seja o foco preferencial das investigações. Em levantamento da produção intelectual no Portal CAPES, utilizando os termos “vídeo” e “educação”, observamos que a maioria das 20 teses de doutorado defendidas sobre a temática entre 1999 e 2007 se refere ao uso do vídeo como ferramenta em pesquisas ou a estudos de recepção. A pesquisa que fornece subsídios para o presente artigo investiga o acervo de vídeos educativos do Laboratório de Vídeo Educativo do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde,3 buscando analisar deslocamentos nas práticas discursivas e não discursivas sobre educação e saúde nas três últimas décadas. Os centros de produção de vídeos nas universidades brasileiras surgiram a partir da década de 1970, tendo sido o LVE/NUTES o mais antigo entre eles, e o único com concentração preferencial sobre a área das Ciências da Saúde até o final dos anos 1980 (Bortoliero, 2002). Dos 219 títulos produzidos entre 1975 e 2008, a maior parte é dedicada à circulação de conhecimentos, práticas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Elaborado com base em recorte de pesquisa de doutorado em andamento (Sá, No prelo), financiada pela Capes. 1 Fisioterapeuta e Psicóloga. Rua Comandante Vergueiro da Cruz, 187, casa 12. Olaria, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.021-020. marciabsa@hotmail.com 2 Docente, Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Nutes, UFRJ.

3 O Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde – NUTES foi criado em 1972, como um órgão de caráter suplementar do Centro de Ciências da Saúde – CCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

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e propostas de reflexão referidos ao ensino biomédico e ao campo da saúde, e, paralelamente a estes, realizam-se avaliações e reflexões críticas de pesquisadores sobre o material produzido e sobre os processos de produção desenvolvidos (Rezende, Struchiner, 2009; Siqueira, 2006, 1998). Qualquer filme e, portanto, também os vídeos educativos elaboram e fazem circular discursos, produzindo sistemas de significação. Segundo Aumont e Marie (2003, p.82), por exemplo, o estudo desses sistemas de significação desenvolvem-se em quatro grandes vertentes: pela semiologia do filme, tomando o “discurso fílmico” como objeto de estudo; pela pragmática, analisando “os diversos atos que um discurso realiza, as relações entre o locutor e o receptor”; pela teoria psicanalítica e pela sociologia, analisando “toda produção discursiva pelo inconsciente e pela ideologia”; pela “linguística do filme, de inspiração generativa, que entende a teoria do discurso como teoria da determinação histórica dos processos semânticos”. Contudo, pensar em discurso e, muito especialmente, na análise de discursos, nos remete também a Michel Foucault. Suas formulações sobre esse tema foram elaboradas numa rede de tensões que incluía debates com a gramática, a linguística e a semiologia, pois a intenção era não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos e representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (Foucault, 2005b, p.55)

Esse “mais” de que fala Foucault é definido como enunciado – “uma função que cruza um domínio de estruturas e unidades possíveis e que faz com que [estas] apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (Foucault, 2005a, p.98) – e é sobre ele que se edifica sua teoria do discurso. Resumidamente, pode-se dizer que, para o autor, o discurso é “um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos de conhecimento diferentes” (o jurídico, a economia, a política etc), “mas que obedecem a regras de funcionamento comuns” que, por sua vez, “reproduzem um certo número de rupturas historicamente determinadas” (Revel, 2005, p.37). Ao assistirmos os vídeos educativos que compõem o acervo sobre o qual nos debruçamos, inquietou-nos a impressão de que aqueles materiais diziam e mostravam mais do que aquilo que intencionalmente eles pretendiam dizer e mostrar. Junto com os conteúdos, as formas, as representações, os contextos, algo “ao mesmo tempo não visível e não oculto” parecia anunciar sua presença, deixar um vestígio. Como ter acesso a isso? Como entender, como analisar isso que parece querer escapar dentro da cadeia de elementos que formam uma produção audiovisual? Essas questões acabaram por nos levar à pesquisa de doutorado em andamento4, da qual este trabalho é um recorte. No presente texto, delineamos breve exercício de caráter exploratório que, partindo das noções de acontecimento e arquivo como âncoras teóricas, seleciona e analisa dois vídeos – “Coração: relações e morfologia externa” (1977) e “Hipotireoidismo na infância” (1976) – visando indicar possíveis contribuições do referencial foucaultiano para a análise de materiais audiovisuais.

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Pesquisa de doutorado intitulada “Entre o governo de si e o governo dos outros: uma análise foucaultiana da liberdade e suas práticas em vídeos educativos do Nutes/UFRJ” (bolsa Capes).

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SÁ, M.B.; SIQUEIRA, V.H.F.

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Acontecimento e arquivo De acordo com Revel (2005, p.13), Foucault propõe duas compreensões distintas para a noção de acontecimento: a primeira toma o acontecimento como um fato que trabalhado pelo método arqueológico possibilitará a reconstrução de “toda uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas”; a segunda, alinhada à compreensão “do discurso como uma série de acontecimentos,” concebe acontecimento como “uma cristalização de determinações históricas,” implicando a “análise de diferentes redes e níveis aos quais os acontecimentos pertencem” com vistas a uma investigação “da relação entre os ‘acontecimentos discursivos’ e os acontecimentos de outra natureza (econômicos, sociais, políticos, institucionais)”. Foucault explica que a inserção do acontecimento no centro das suas análises e, mais especificamente, a concepção do “discurso como uma série de acontecimentos”, o situa “automaticamente na dimensão da história” (Foucault, 2006a, p.256). Visando distinguir sua noção da ideia de “história acontecimental”, própria do campo da História tradicional, o autor cunha o termo ‘acontecimentalização’ como “a tomada de consciência das rupturas da evidência induzidas por certos fatos” ou “a irrupção de uma singularidade histórica” (Revel, 2005, p.14). A partir desta especificação, dois discursos foram desenvolvidos: um primeiro, consistindo em dizer que repetimos alguns acontecimentos sem perceber, dirige o foco de atenção para as permanências, ou seja, para os discursos, práticas, comportamentos e instituições que inelutavelmente nos atravessam na história do presente; o segundo, visando buscar na atualidade “os traços de uma ruptura acontecimental”, privilegia uma identificação das possibilidades de mudança que emergem “da contingência histórica, que nos faz ser o que somos” (Revel, 2005, p.14-21). Existem, portanto, acontecimentos de diferentes níveis – fatos ordinários, que se repetem e parecem comuns, ou eventos extraordinários, inesperados, que promovem rupturas. Seja pela repetição ou pela excentricidade, os acontecimentos discursivos e não discursivos (as práticas) estão sempre carregados de marcas, de registros, que apontam para uma historicidade onde eventos de várias naturezas (político, econômico etc.) e temporalidades (presente e passado) mantêm relações – se justapõem, sobrepõem, interpelam, atualizam e coexistem. Para Foucault (2008, p.5), é importante considerar “que existe um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não têm o mesmo alcance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos” e que, exatamente por isso, “o problema é ao mesmo tempo distinguir acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros”. Para dar conta do estudo do acontecimento, Foucault desenvolve a arqueologia, um “[...] tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo”, procurando “reconstituir um campo histórico em sua totalidade, em todas as suas dimensões políticas, econômicas”, pois o problema do autor era “encontrar a matéria que convém analisar, o que constituiu o próprio fato do discurso. [...] descobrir por que e como se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos” (Foucault, 2006a, p.257-258). O arquivo foucaultiano, contudo, não corresponde à soma de todos os textos conservados por uma civilização, nem às instituições que protegem seu armazenamento e acesso. Em “A arqueologia do saber” todo um capítulo é dedicado à descrição e ao estudo das relações entre o enunciado e o arquivo, e nele o arquivo é explicitado como [...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. [...]. O arquivo [...] é o que, na própria raiz do enunciadoacontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. (Foucault, 2005a, p.147)

A noção de arquivo, em suma, se refere ao sistema geral de formação e transformação dos enunciados, ou seja, ao sistema das condições históricas de possibilidade dos enunciados, ou, ainda, ao “conjunto dos discursos efetivamente pronunciados”, considerando-se esse conjunto COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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não somente como um conjunto de acontecimentos que teria, ocorrido uma vez por todas e que permaneceriam em suspenso, nos limbos ou no purgatório da história, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a se transformar através da história, possibilitando o surgimento de outros discursos. (Foucault, 2005b, p.145)

Pode-se perceber que as expressões arquivo, acontecimento e enunciado encontram-se irremediavelmente ligadas, ocupando a primeira delas o lugar de conceito-mestre na arqueologia. A seguir, são analisados os vídeos citados anteriormente. No primeiro, trabalhamos sobre uma cena entendendo-a como um acontecimento ordinário, familiar, que evidencia uma permanência que será apreciada em nossa análise. No outro, evento imprevisto ocorrido durante o processo de produção do vídeo possibilitou análise sobre a noção de acontecimento como possibilidade de mudança e um aprofundamento a respeito do significado do arquivo como “a lei do que pode ser dito” (Foucault, 2005b, p.147).

“Coração: relações e morfologia externa” (1977) Este vídeo é dedicado ao estudo morfológico do coração e de suas relações com outros órgãos do tórax. Sua duração é de quarenta minutos e o apresentador aparece em cena por apenas seis minutos ao longo de todo o filme. Sempre presentes, contudo, são sua voz e a imagem dos recursos utilizados para ilustrar as descrições, denominados no vídeo como “modelos” – vivo, plástico, cadáver de criança, RX, peça anatômica. A escolha por cada um desses “modelos” parece estar apenas relacionada à sua adequação para ilustrar o conteúdo descrito. Selecionamos, deste vídeo, um recorte de 1 minuto e 6 segundos para análise. A cena é composta por um take5, com um único plano estático, com enquadramento6 frontal, dirigido dos pés para a cabeça, ligeiramente em plongée,7 mostrando o terço superior (tórax, ombros e cabeça) do cadáver de uma criança. Um pequeno bastão interfere intermitentemente no quadro em consonância com texto proferido por uma voz off8, ora localizando ou deslocando, no cadáver, os elementos sobre os quais fala o narrador, ora apenas acompanhando seus movimentos expressivos. Pode-se observar o deslocamento de sua sombra sobre o quadro, sendo o texto proferido composto por sete frases curtas que explicam ou justificam o que foi feito, localizando os elementos no tórax.

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Tomada: começa no momento em que se liga a câmera até quando é desligada. 6 São os limites laterais, superior e inferior da cena filmada. É a imagem que aparece no visor da câmera. 7 Câmera focalizando a pessoa ou o objeto de cima para baixo; também chamado ângulo alto. 8 Uma voz de alguém que está presente, mas não aparece na cena. 5


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Fotograma ou quadro.

Figura 1. Frame9 analisado do vídeo “Coração: relações e morfologia externa” (1977)

A imagem do cadáver da criança nos remeteu, imediatamente, a um detalhe da pintura “Aula de anatomia do Dr. Joan Deyman”, de Rembrandt, de 1656.

Figura 2. Detalhe da pintura de Rembrandt

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Figura 3. “Aula de anatomia do Dr. Joan Deyman”

O que faz com que uma pintura de 1656 seja evocada e, de certo modo, repetida numa imagem de 1977? O que permite que uma certa prática – a prática do ensino de anatomia – seja representada de modo tão semelhante (embora em materialidades diferentes) apesar dos mais de 300 anos que separam a produção do quadro da produção do vídeo? A análise do recorte selecionado, entendido como evidência de um acontecimento no sentido ordinário, ou seja, como algo que, pela repetição, permanece distinguindo o discurso médico até os dias de hoje, poderá ser útil para entendermos algo sobre as “relações complexas e embaralhadas” que existem entre imagens e palavras (Foucault, 2005c, p.79-80), e, muito especialmente, como enunciados e visibilidades as habitam. Seguindo a sugestão deleuziana, “rachamos”10 (Deleuze, 2006, p.6062) a única imagem deste frame para buscar o que mais poderia estar sendo mostrado – as visibilidades – e dito – os enunciados – e que não nos é dado a “ver” e “ouvir” diretamente. A mão segurando a varinha, a sombra ocasional e a voz daquele que, no recorte, conduz uma prática de ensino não apontam para um sujeito específico, mas para uma vacância – a um só tempo oferta (convite), promessa e condição – de uma posição de sujeito dentro da ordem de um discurso, neste caso, o discurso médico. A oferta para que um indivíduo ocupe a função de representante do saber médico inclui uma promessa de poder que, no entanto, para ser alcançada, impõe a aceitação e submissão às regras e procedimentos que produzem e regulam tanto o discurso médico e seu saberpoder quanto seus representantes. A este respeito, Foucault escreve: “Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso [...] não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar” (1999, p.10). Ao refletir sobre os procedimentos de controle e delimitação do discurso, Foucault (1999, p.19) chama nossa atenção para a “vontade de verdade”, segundo ele, a menos falada e a mais “prodigiosa maquinaria” dos “sistemas de exclusão que atingem o discurso”. Entendida de modo simples como o conjunto de operações destinadas à separação do verdadeiro e do falso, essa “vontade de verdade” pressiona nossos modos de conhecer, saber e ser. Assim, o uso do 606

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Gilles Deleuze (2006) afirma que a arqueologia concebida por Foucault “é um arquivo audiovisual”, constituído de enunciados e visibilidades que, no entanto, precisam ser extraídos das “unidades linguísticas” e dos “elementos visuais”, devendo-se, para tanto, “rachar, abrir as palavras” e “rachar as coisas, quebrá-las”.

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11 Para o aprofundamento desse tema, sugerimos consulta ao livro “O nascimento da clínica”, escrito por Foucault em 1963.

cadáver como recurso ilustrativo, a evocação da pintura de Rembrandt, o uso do bastão para assinalar elementos no cadáver, o anonimato do sujeito no quadro, a voz off que enuncia os ensinamentos, as frases curtas, a íntima relação entre o que se fala e o que se mostra11, destinam-se à delimitação e controle do saber e dos sujeitos que produzem e são produzidos pelo discurso médico. Procuramos evidenciar que, no recorte analisado, se desenrolaram dois níveis de texto: um primeiro, imediatamente apreensível, ensina a localização do coração e suas relações morfológicas com outros elementos do tórax utilizando um cadáver como modelo ilustrativo; um segundo texto, da ordem dos enunciados e das visibilidades, se desenvolve “mascarado”, destinado a produzir algo mais complexo, a saber, a permanente produção do discurso médico como um “discurso de verdade”. E, mais uma vez, nos remetendo a Foucault: [...] na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder? [...] a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. (Foucault, 1999, p.20)

“Hipotireoidismo na infância” (1976)

Informação fornecida pela equipe técnica do Laboratório de Vídeo Educativo do NUTES/ UFRJ, responsável pelas produções. 12

Esse vídeo, elaborado para abordar “o hipotireoidismo congênito, incluindo desde os sinais clínicos decorrentes da insuficiência tireoidiana, o diagnóstico diferencial através dos exames complementares, até a terapêutica apropriada” (UFRJ/NUTES, 1997, p.69), possui duas edições. A primeira, com 22 minutos de duração, corresponde ao previsto no roteiro original12: exposição didática sobre o tema, utilizando, como recursos de apoio, textos escritos e gráficos (imagem 4); exame físico de paciente portador de hipotireoidismo congênito e exposição comparativa das características deste em relação às de uma menina da mesma idade sem hipotireoidismo (imagem 5); consulta subsequente à alta hospitalar, visando ilustrar os efeitos da terapêutica.

Figura 4. Gráfico apresentado no vídeo “Hipotireoidismo na infância”. Texto em off que acompanha a imagem: “Esta é a curva de crescimento dos meninos normais. Ela mostra não só a estatura média para cada idade como também as variações normais de estatura para uma determinada idade”

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Figura 5. Frame do mesmo vídeo, mostrando diferenças entre crianças com e sem Hipotireoidismo congênito. Texto que acompanha a imagem: “A diferença estatural demonstra a importância dos hormônios tireoidianos para o crescimento adequado”

Essa primeira edição utiliza o mesmo padrão observado no vídeo “Coração: morfologia e relações externas”: o texto do filme também é composto por frases curtas e objetivas, utilizando-se recursos visuais – imagens de gráficos e tabelas, “modelos” vivos, imagens radiológicas – e demonstrações de exame, como suporte ou ilustração para o que é dito. A segunda edição do vídeo “Hipotireoidismo na infância”, no entanto, acrescenta, ao roteiro original, sequências filmadas em decorrência de evento inesperado ocorrido durante o tratamento – o não-comparecimento do paciente Carlos Alberto13 à primeira consulta ambulatorial, trinta dias após a alta hospitalar. Essas sequências apresentam: entrevista concedida pela médica assistente, Dra. Maria Helena, ao médico responsável, Dr. Solberg14, sobre visita realizada à família do menino; depoimento do Dr. Solberg sobre os fatores que determinaram a ausência da criança; conversa em off entre a Dra. Maria Helena e a mãe de Carlos Alberto, “coberta” por imagens filmadas do local de sua residência. A falta do paciente à consulta interrompeu abruptamente não apenas o processo terapêutico, mas também o de produção do vídeo. O imperativo da retomada de ambos mobilizou a confluência dos diferentes olhares e saberes dos profissionais envolvidos na situação – médicos, assistente social e equipe responsável pela produção do vídeo – resultando na busca da criança em sua residência. Essa decisão provocou tanto uma reflexão do médico-professor em relação ao conhecimento e às práticas médicas vigentes sobre o hipotireoidismo congênito, explicitada mais adiante, como uma re-invenção do vídeo original, agregando uma dimensão documentária ao formato tradicional característico do vídeo educativo praticado pelo Nutes, nesse período15. A consulta de follow-up e a conclusão da filmagem do vídeo ocorreram com um atraso de dois meses e meio em relação ao previsto. A visita domiciliar ao paciente e a consequente inclusão de informações sobre as condições socioeconômicas da família, na cena clínica, possibilitaram: o retorno de Carlos 608

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Utilizamos os mesmos nomes referidos no vídeo. Os requisitos relativos à obtenção de autorização para uso de imagem, som e identificação foram atendidos na fase de produção do mesmo.

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14 A autoria desse vídeo é creditada a Pedro Ribeiro Collet-Solberg – Solberg, P. no Catálogo de Vídeos Educativos do LVE – pediatra, professor na Faculdade de Medicina da UFRJ à época da produção do vídeo, considerado, hoje, um dos pioneiros da Endocrinologia Pediátrica no Brasil. A este respeito, ver “Jornal da Assex”, dez. 2006, ano 13, p.06. Disponível em: <http:// www.assex.org.br/jornal/ arquivo/jassex52.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2011.

Sobre o assunto, ver referências: Rezende e Struchiner, 2009; Siqueira, 1998 e 2006.

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Alberto à instituição e ao tratamento, uma ressignificação, pela equipe, sobre o seu não-comparecimento à consulta agendada, e uma reconsideração a respeito do que também deveria ser levado em conta no diagnóstico e tratamento do hipotireoidismo congênito. Tomando por base as sequências gravadas no local de residência do paciente e as informações relatadas pela médica que realizou a visita, o médico – e professor – tece, em depoimento incluído no terço final do vídeo, considerações a respeito de aspectos que não devem ser negligenciados no entendimento e no tratamento do hipotireoidismo congênito: No primeiro exame físico feito em Carlos Alberto eu declarei que todos os fatores fundamentais para o crescimento e o desenvolvimento normal tinham estado presentes com exceção de um, a função tireoidiana. Quando Carlos Alberto faltou à primeira visita marcada no ambulatório, nós fomos obrigados a ir procurá-lo no ambiente em que vivia e tomamos consciência de que Carlos Alberto não é simplesmente um caso de hipotireoidismo congênito, mas uma criança que, como nós veremos, vive num ambiente de extrema miséria, e esta miséria e a desnutrição daí resultantes podem afetar o crescimento e o desenvolvimento de uma criança quase tanto quanto uma deficiência hormonal. Além disso, a dificuldade na aquisição de remédios pode alterar inteiramente o plano terapêutico previsto. No tratamento de Carlos Alberto nós teremos que levar em consideração toda a condição sócio-econômica da família, e tratar não um caso isolado de uma doença, como a gente tende a simplificar, mas um ser humano, uma criança, vivendo em condições extremamente difíceis; vivendo e indo voltar para esse ambiente, uma vez saída do hospital. O verdadeiro sucesso terapêutico só será obtido se todos esses dados forem levados em consideração.

15 As informações sobre a triagem de erros inatos do metabolismo estão disponíveis em: <http:// www.sbtn.org.br/ pg_soc_historico.htm> e <http://www.unisert.org. br/historia.htm>. Acessos em: 14 jan. 2011.

O que o médico pôde refletir a partir da busca da criança, e que, como professor, procura ensinar com seu depoimento, aponta para o tema da triagem neonatal de erros inatos do metabolismo, dentre os quais se inclui o hipotireoidismo congênito, que passou a ocupar o cenário médico mundial em 1961, quando, nos Estados Unidos, foi iniciada a triagem para a fenilcetonúria. Em 1976 – ano de produção do vídeo – foi implantado, também nos Estados Unidos, o primeiro Programa Piloto de Triagem Neonatal para hipotireoidismo congênito, enquanto, no Brasil, pioneiramente, ainda se estabelecia o primeiro projeto de triagem neonatal para fenilcetonúria. A testagem para hipotireoidismo congênito no Brasil foi iniciada em 1986 – dez anos após a produção do vídeo, portanto – e, somente em junho de 2001, o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM/MS nº 822, criando o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), com a participação de todos os Estados brasileiros que, representados pelos Serviços de Referência em Triagem Neonatal (SRTN) credenciados, se organizariam sob os mesmos princípios e procedimentos: uma estrutura de diagnóstico, busca ativa, tratamento e acompanhamento das doenças triadas, pagas com recursos do SUS destinados para este fim15. A análise desse vídeo favorece a compreensão do significado do arquivo como “a lei do que pode ser dito” por possibilitar uma apreciação a respeito das tensões entre os vários níveis de relações de saber-poder, e destas sobre escolhas, decisões e práticas, aparentemente individuais. Para Foucault, toda e qualquer relação social ou institucional e, portanto, todos os discursos e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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práticas são produzidos dentro de relações de saber-poder que, por sua vez, “são relações móveis, isto é, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas”. Isto, por sua vez, implica admitir - excetuando-se as relações em que um dos polos pode “exercer uma violência infinita e ilimitada” sobre o outro - que, “para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade” e, com ela, sempre a possibilidade de resistência e de produção de singularidades (Foucault, 2006b, p.276-277). A decisão do médico em compartilhar suas ponderações sobre a prática clínica vigente, e sobre a sua própria prática, é importante por abrir um campo de reflexão a respeito de práticas individuais e coletivas marcadas pelo exercício da liberdade, isto é, de práticas claramente definidas a partir da escolha de uma determinada conduta dentre várias outras possíveis. Contudo, a liberdade, para Foucault, não corresponde à mera escolha entre alternativas distintas, mas ao desenvolvimento de práticas criativas, não usuais, que levem os sujeitos a um permanente processo reflexivo sobre si mesmos – prática ética – e sobre o mundo – prática política –, culminando na possibilidade de produção de novas formas de subjetividade capazes de resistir às práticas político-discursivas vigentes, e quiçá, transformá-las. Assim, embora a prática da busca ativa faça parte da coleção de estratégias biopolíticas destinadas à gestão da vida humana, não consideramos a situação de busca do menino Carlos Alberto como uma mera reprodução destas: foi a busca daquela criança, naquela situação, que possibilitou um exercício crítico-reflexivo de todos os envolvidos na produção do vídeo, em face da diferença introduzida nas práticas que caracterizavam a clínica relativa ao tratamento do hipotireoidismo congênito e ao vídeo educativo, naquele momento. Tomamos, como evidência do caráter coletivo dessa produção audiovisual, e de todas as decisões que permearam o processo, a passagem do uso da primeira pessoa do singular (eu) para a primeira pessoa do plural (nós) no depoimento do médico, sinalizando a autoria compartilhada das práticas que consideramos inovadoras, diante do desafio colocado por uma situação não prevista. De acordo com o exposto, nos parece que o arquivo, longe de ser uma armadura que constrange a análise de mudanças das relações de força nas “malhas do poder”, pode ser entendido como o ponto privilegiado de passagem da análise do saber à do poder, e desta à do sujeito; ou, dito de outro modo, do acesso da arqueologia à genealogia e, desta, à ética, pois, de fato, essas dimensões de análise se encontram imbricadas no projeto foucaultiano. Se no arquivo podemos encontrar evidências das mais arraigadas forças de permanência – como as técnicas disciplinares, as práticas de normalização e a “vontade de verdade” –, podemos, também, encontrar os vestígios de mudanças experimentadas por sujeitos ou grupos de sujeitos, mesmo que, a princípio, não pareçam valiosos por emergirem de contingências circunscritas a uma situação específica e pontual, e não tenham sido capazes de instituir, de uma vez por todas, uma ruptura vultosa.

Conclusão Partindo das noções de acontecimento e arquivo, selecionamos e analisamos dois vídeos educativos do acervo do NUTES/UFRJ. No primeiro, “Coração: morfologia e relações externas” (1977), partindo de um pequeno extrato do vídeo, composto por uma única imagem e por sete frases curtas e objetivas ditas em off, dirigimos nossa atenção para alguns aspectos concernentes à íntima relação, que ainda permanece, entre uma determinada forma de mostrar (ver) e de dizer (ouvir) na ordem do discurso médico. No segundo vídeo, “Hipotireoidismo na infância” (1976), embora a permanência destacada no vídeo anterior – a relação entre mostrar/ver-dizer/ouvir – esteja presente, interessou-nos analisar os efeitos decorrentes de evento inesperado que interferiu no processo de produção do vídeo, efeitos esses entendidos como acontecimentos de ruptura porque concretizaram práticas alternativas, até então não habituais, tanto em relação ao tratamento de uma criança – daquela criança – com hipotireoidismo congênito, como em relação às práticas que estabeleciam o formato do vídeo educativo. Cabe ressaltar que as análises não foram desenvolvidas da mesma maneira, porque os vídeos foram selecionados de modo a propiciarem – tal como sinalizado acima – discussões a respeito de acontecimentos de diferentes níveis, exigindo, portanto, diferentes formas de abordagem. 610

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A análise desses materiais nos levou a um deslocamento ao longo do projeto foucaultiano, de onde pudemos revê-los, especialmente o “Hipotireoidismo na infância”, tendo em mãos elementos que trouxeram pistas para a investigação de como os indivíduos, exercitando sua liberdade, podem se constituir como sujeitos políticos e éticos, na fronteira dos campos altamente disciplinares e normalizadores da educação e da saúde. Com as análises, a impressão de que os vídeos diziam e mostravam mais do que aquilo que intencionalmente eles pretendiam dizer e mostrar corresponde, agora, à compreensão de que esse tipo de material veicula um amálgama de performances discursivas e não discursivas – grosso modo, práticas sociais – que pode, e deve, ser investigado e analisado em três perspectivas complementares: a análise dos saberes, das relações de poder entre indivíduos e instituições, e das relações do indivíduo consigo mesmo. Colaboradores Marcia Bastos de Sá responsabilizou-se pela produção do manuscrito; Vera Helena Ferraz de Siqueira responsabilizou-se pela orientação e revisão do mesmo. Referências AUMONT, J.; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003. BORTOLIERO, S. A produção de vídeos educacionais e científicos nas universidades brasileiras: a experiência do Centro de Comunicação da Universidade Estadual de Campinas (1974-1989). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25., 2002, Salvador. Anais... Salvador, 2002. Disponível em : <http://galaxy. intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/18871/1/2002_NP9bortoliero.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2011. DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2006. FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008. p.1-14. ______. Diálogo sobre o poder. In: MOTTA, M.B. (Org.). Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p.253-66. (Ditos e escritos, 4). ______. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: MOTTA, M.B. (Org.). Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p.264-87. (Ditos e escritos, 5). ______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a. ______. Michel Foucault explica seu último livro. In: MOTTA, M.B. (Org.). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. p.145-52. (Ditos e escritos, 2). ______. As palavras e as imagens. In: MOTTA, M.B. (Org.). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005c. p.78-81. (Ditos e escritos, 2). ______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. REZENDE, L.; STRUCHINER, M. Uma proposta pedagógica para produção e utilização de materiais audiovisuais no Ensino de Ciências: análise de um vídeo sobre entomologia. Alexandria, v.2, n.1, p.45-66, 2009. SÁ, M.B. Entre o governo dos outros e o governo de si: uma análise foucaultiana da liberdade e suas práticas em vídeos educativos do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde. No prelo. Tese (Doutorado) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. SIQUEIRA, V.H.F. Tecnologia Educacional na Área da Saúde: a produção de vídeos educativos no Nutes/UFRJ. In: ASSIS, S.; VARGAS, E. P. (Orgs.). Educação, Comunicação e Tecnologia Educacional: interfaces com o campo da Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.71-86. ______. O vídeo educativo produzido pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde-NUTES: uma visão crítica. Rev. Bras. Educ. Med., v.22, n.2-3, p.77-82, 1998. UFRJ/ NUTES. Catálogo de materiais instrucionais. Rio de Janeiro: NUTES/UFRJ, 1997. XAVIER, I. Um cinema que “educa” é um cinema que nos faz pensar. Educ. Realid., v.33, n.1, p.13-20, 2008. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Neste texto, delineamos exercício de caráter exploratório que, tomando as noções foucaultianas de acontecimento e arquivo, seleciona e analisa dois vídeos educativos produzidos pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, NUTES/UFRJ – “Coração: relações e morfologia externa” (1977) e “Hipotireoidismo na infância” (1976) – visando indicar possíveis contribuições do referencial foucaultiano para análise desse tipo de material. No decorrer do processo analítico, acabamos nos deslocando, junto com Foucault, até seus últimos trabalhos, onde encontramos elementos que possibilitaram uma abertura para a análise de como os indivíduos, exercitando sua liberdade, podem se constituir como sujeitos políticos e éticos, na fronteira dos campos altamente disciplinares e normalizadores da educação e da saúde.

Palavras-chave: Vídeo Educativo. Análise do Discurso. Michel Foucault. Ciências da Saúde. Metodologia. Foucaultian analysis of educational videos for the Health Sciences: testing a methodology This paper takes the Foucauldian concepts of event (événement) and archive to make an exploratory exercise on the development of procedures to select and analyze two educational videos - “Heart: relationships and external morphology” (1977) and “Hypothyroidism in childhood” (1976) - produced at the Center of Educational Technology for Health, NUTES/UFRJ. We aimed to indicate the contribution of Foucauldian notions for the analysis of such material. In the analytical process, we have moved together with Foucault towards his late works, where we found elements that enabled an analysis of how individuals, exercising their freedom, may constitute themselves as political and ethical subjects, in the intersection of Education and Health, two highly disciplinary and normalizing fields.

Keywords: Instructional Films and Videos. Discourse Analysis. Michel Foucault. Health Sciences. Methodology. Análisis foucaultiano de vídeos educativos de Ciencias de la Salud: ensayo de una metodología En este texto delineamos un ejercicio de carácter exploratorio que, teniendo las nociones foucaultianas de acontecimiento y archivo, selecciona y analiza dos vídeos educativos producidos por el Centro de Tecnología Educativa en Salud, NUTES / UFRJ – “Corazón: relaciones y morfología externa” (1977) “Hipotiroidismo en la infancia “(1976) - a fin de indicar posibles contribuciones de este referente teórico para el análisis de dicho material. A lo largo del proceso analítico, terminamos en movimiento junto con Foucault hasta sus últimos trabajos, donde encontramos elementos que han permitido una apertura para el análisis de cómo los individuos, en ejercicio de su libertad, pueden constituirse en sujetos éticos y políticos en la frontera de los campos altamente disciplinarios y normalizadores de la educación y la salud.

Palabras clave: Vídeo educativo. Análisis del Discurso. Michel Foucault. Ciencias de la Salud. Metodología.

Recebido em 02/08/2010. Aprovado em 11/01/2011.

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livros

LE BRETON, D. Compreender a dor. Portugal: Estrelapolar, 2007.

Ana Maria Canesqui1

Este é mais um livro de uma série sobre o corpo, escrito por Le Breton, sociólogo, antropólogo e psicólogo, professor da Universidade de Marc Bloc, Estrasburgo, França. Ele foi, primeiramente, editado na França em 1995, sob o título Anthropologie de la douleur. Logo a seguir, em 1999, foi publicado em espanhol pela editora Seix Barral de Barcelona e, em 2007, foi traduzido para o português de Portugal, sob o título Compreender a Dor. Apenas dois livros de Le Breton foram traduzidos e publicados no Brasil: Adeus ao Corpo e Sociologia do Corpo. O próprio autor, em entrevista a Claúdia Machado de Souza, professora da Universidade Federal Fluminense, refere-se aos seus leitores com estas palavras: estou acostumado com a interferência na realidade porque escrevi no campo da medicina, do tratamento do doente e eu sei que se encontra nos meus livros uma maneira de melhor entender e posicionarse à frente da doença e às técnicas médicas. Eu escrevi um livro sobre a

dor e muitas pessoas que sofrem a dor às vezes encontram respostas em meus trabalhos. (Le Breton, 2009, p.2)

Além deste público, o livro interessa aos cientistas sociais e aos diferentes profissionais de saúde. Le Breton adverte o leitor(a), nas primeiras páginas da Introdução, sobre o fato de a dor não ser meramente sensorial, inscrita na fisiologia e isenta da dimensão afetiva. Não há dor sem sofrimento, sendo ela sentida e percebida por aquele que a sofre. A dor está no cerne da relação do indivíduo com o mundo e de sua experiência acumulada com ele, ultrapassando, portanto, as configurações do signo clínico, postas pela medicina. Penetra as experiências pessoais prenhes de significação, interpretação e explicação, sempre mediadas pela cultura, pelas relações sociais e subjetividade. A abordagem antropológica da experiência da dor e da enfermidade, como sofrimentos experimentados pelos enfermos, é uma forma de aproximar-se dos adoecidos, não ouvidos pela medicina. O livro compõe-se de seis capítulos redigidos em linguagem COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13.083-887. anacanesqui@uol.com.br

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estimulante, capaz de proporcionar prazer estético e, simultaneamente, é rigorosa e densa, do ponto de vista acadêmico. O autor afirma que as palavras do sofredor são limitadas para expressar a sua dor, feita pelos gritos, gemidos e palavrões, rompendo as convenções sociais, ou pelas metáforas, tão presentes nas descrições dos pacientes aos médicos. No primeiro parágrafo do capítulo 1, Le Breton impacta o leitor(a) afirmando ser: “a dor, sem dúvida, a experiência mais partilhada para além da morte: nenhum privilegiado reivindica ignorância em relação a ela ou se gaba de conhecê-la melhor do que ninguém” (Le Breton, 2007:23). Este capítulo percorre a experiência da dor, sob vários ângulos: como ameaça ao sentimento de identidade; como possessão corrosiva do indivíduo; como alteração da relação do homem com a totalidade do mundo e com o seu corpo; como interferência no jogo do desejo e no laço social, criando o sentimento de infortúnio para quem a sofre e um estado de graça para quem se livra dela. A dor pode ser transitória e aguda; crônica, recorrente e total, sem trégua, acompanhando, geralmente, o fim da vida dos acometidos pela Aids. A medicina procura amenizá-la ou suprimila, seja tornando inconsciente o paciente ou, alternativamente, preservando sua lucidez e dignidade perante a morte. Substituindo a linguagem do paciente, a medicina criou escalas para medir a dor, porém ela é menos dita e muito mais sentida, diz o autor. O segundo capítulo penetra nos aspectos antropológicos da dor, explorando seu simbolismo e inconsciente nas situações de hipocondria, na expressão das múltiplas queixas de dor sem causas aparentes, por pacientes classificados como poliqueixosos, não legitimados pela medicina. O autor sugere aos médicos, nestas situações, substituírem a busca orgânica pela dos sentidos, para chegarem à raiz do sofrimento e do dilema da identidade do sofredor. Muitos exemplos, extraídos da relação dos pacientes com os médicos, mostram a dor emaranhada nas histórias pessoais, nas relações do homem com seu corpo e sua fisiologia, nos que foram privados de afeto, nos psicóticos, nos indiferentes à dor; nos que a sofrem fisicamente sem causa aparente. As diferentes racionalidades médicas e práticas de cura possuem distintas interpretações do corpo, sendo o saber médico apenas uma delas. O clássico exemplo do xamã, 614

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de Lévi-Strauss, sobre a eficácia simbólica de suas curas, funda-se nas crenças coletivas e na posição do curador legitimada pelo grupo social. A eficácia simbólica permeia a medicina e as demais práticas de cura. Os efeitos dos placebos, usados no alívio da dor, pela medicina, exemplificam sua percepção não restrita ao físico do homem, uma vez impregnada pelo social, situacional, relacional e individual. O terceiro capítulo reconstitui os sentidos do sofrimento humano nas diferentes religiões, integrados às suas explicações sobre o universo. Nas várias narrativas bíblicas, selecionadas pelo autor, a dor passa pela infração às leis divinas. No judaísmo, o sofrimento é um mal incompreensível ao homem. Na tradição cristã, a dor advém do pecado original como condição humana fatal. A dor deve ser aceita pelo cristão ou ser usada como mortificação para alcançar a graça divina. A Reforma Protestante recusou a dor como força redentora ou como punição do homem, devendo ser combatida. Para o mulçumano, dor e sofrimento são provações de Deus, às quais o homem não pode fugir. O capítulo se encerra com a dor merecida, tão presente nas espiritualidades orientais (budismo, hinduísmo e jainismo), da qual o homem pode se livrar cultivando a disciplina, a espiritualidade, o conhecimento e a sabedoria. O merecimento da dor é desconhecido do indivíduo, associando-se ao carma, no hinduísmo. As diferentes religiões fornecem um sistema de valores morais, repercutido nas maneiras como os indivíduos religiosos pensam e lidam com a dor. A dor penetra a moral encarnando a figura do mal, tal como a doença, sendo assim percebida pelos não religiosos. A doença merecida ainda povoa o imaginário social contemporâneo, sendo a AIDS exemplar, como castigo decorrente dos modos de vida e da sexualidade não convencional. O quarto capítulo é o mais extenso, repleto de informações empíricas sobre o corpo, saúde e doença, extraídas de pesquisas norte-americanas e francesas, abarcando a construção social da dor e sua integração à cultura. Afirma o autor: ”todas as sociedades humanas integram a dor na sua visão de mundo, conferindo sentido, até um valor, que lhe desarma a nudez e freqüentemente, a acuidade“ (Le Breton, 2007, p.112). A cultura oferece, a cada sociedade e aos grupos sociais, as explicações sobre a causalidade da dor, assim como os meios simbólicos e práticos


feito na década de 1970. Estudos como esse mostram as diferentes visões de mundo dos médicos e pacientes, cuja compatibilidade requer a construção de negociações, e não a desqualificação e desprezo pela visão de mundo e herança cultural das classes populares. A perspectiva antropológica impõe o respeito à alteridade e à diferença. O capítulo ainda explora: os estudos experimentais sobre o limiar da dor; a interposição dos dados pessoais e do meio ambiente na sua modelagem; a gestão da dor pela medicina, seu estatuto social, comentando, especialmente, a dor crônica e seus impactos sobre a integração social dos acometidos por ela, o uso de mecanismos de gratificação pela dor; as difíceis relações entre os adoecidos, por dor crônica, e seus familiares. O capítulo encerra com severas críticas aos estudos norte-americanos sobre a dor experimental, calcados no estímulo biológico, desprezando o sentir do homem envolto na experiência pessoal, na subjetividade e nos valores culturais de seu grupo social e sociedade. As transformações das ideias sobre a resistência à dor, postas pelas culturas tradicionais, estão no capítulo quinto, que analisa a importância das técnicas médicas no controle e erradicação da dor pelos medicamentos. Entretanto, diz o autor, “sonhar em eliminá-la é abolir a faculdade humana de sofrer, é abolir a condição humana” (Le Breton, 2007, p.176). Para a cultura médica contemporânea, a dor equivale à tortura, quando não combatida pelos meios científicos. O último capítulo aborda os usos sociais da dor. Retoma a análise dos valores religiosos cristãos em relação ao sofrimento, referindo-se a várias passagens do Novo Testamento onde está a fé desarmando o sofrimento; o uso da dor para aproximar-se de Deus; a escolha da dor como fonte de alegria ou de devoção. Outras experiências com a dor remeteram ao êxtase e ao sinal da manifestação divina em Tereza D´Ávila; aos exercícios da penitência em Santo Inácio de Loyola, buscando identificar-se com Cristo, e a própria aceitação das dores, por Cristo, no calvário, como meio de salvação da humanidade. No pensamento ocidental, o gosto pela dor foi abolido pela medicina. Le Breton volta seu olhar para aqueles que se beneficiam da dor, buscando serem cuidados e obterem a atenção dos outros. Enfoca os COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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livros

de combatê-la. Fornece, ainda, as experiências acumuladas e as expectativas sobre o sofrimento habitual a cada tipo de situação. A expressão da dor é aprendida, primeiramente, no seio da família e, depois, no meio social e em outras instâncias socializadoras secundárias; transmite-se de geração em geração, cerca-se das tradições, das convenções e da história, assim como sofre influência do meio social e cultural. A percepção da sensação da dor varia no tempo e no espaço, moldando-se pelas experiências singulares e pelos modelos culturais. Os estudos sobre a comunicação do paciente ao médico, de suas sensações corporais de dor, dos indivíduos procedentes das classes populares, mostram como elas se integram às referências culturais; às imagens da vida cotidiana, às relações com os outros e com o trabalho. Confrontam-se os discursos médicos e populares, ignorando, os primeiros, o conhecimento do senso comum sobre o corpo e a cultura do cotidiano. O autor recorre aos clássicos trabalhos de autores norte-americanos, como Koos, 1954, e Zborowski, 1952, explorando as variações da expressão da dor segundo os grupos étnicos, de idade, gênero e geração. Se, de um lado, estas pesquisas comprovaram as variações da dor, de outro, estão circunscritas ao seu tempo - a década de 1950 - à medida que diferem as respostas à dor nas sociedades contemporâneas, expostas às múltiplas influências e maior liberdade dos modelos tradicionais, onde prevalece a ideologia individualista. Há limitações nestes estudos por desprezarem a relação da dor com as condições de existência e o modo de vida, imprimindo às classes populares maiores resistências à dor e menor atenção ao corpo, postergando-se a ida ao médico. Após 30 anos, operários franceses da década de 1960 passaram pelo enfraquecimento dos antigos valores em relação à dor e ao uso do médico. Acrescenta o autor que os grupos errantes e rurais ainda atribuem pouca atenção ao corpo, às doenças e ao cuidado com a saúde, ao contrário das camadas médias, que prestam atenção ao corpo, buscam os conselhos divulgados pela medicina, penetrando a dor e a doença em sua consciência, intensificando a busca do médico e de outras práticas de cura. É lembrado, por Le Breton, o clássico estudo de Boltanski (1975) sobre os usos sociais do corpo nas diferentes classes sociais francesas,

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portadores de dor crônica incurável, cujo sofrimento e redenção tiram-lhes o gosto de viver; o uso da dor como meio de chantagem, de controle do outro e como arma política, exemplificada pelas greves de fome. Recorre à história para mostrar a dor infligida como meio de punição, entre os romanos, e a dor educativa entre os gregos helênicos, assim como à Bíblia, exemplificando os usos da dor. Sobre a educação das crianças, mostra como a dor, na Idade Média do século XVI, associou-se à punição, como consequência do mal cometido. Alterou-se a relação com a infância no século XVIII, quando devia ser instruída, e não punida, militarizando-se sua disciplina no século XIX, quando foi suprimida como meio de retificar condutas. No século XX, a dor deixa de ser instrumento de submissão, suprimindo-se das escolas as punições e os castigos corporais como meios educativos, embora continuem praticados. O autor aborda outros usos da dor, como a infligida como meio de correção das condutas desviantes; a dor consentida dos atletas, a dor dos rituais de iniciação, bastante presente na literatura etnológica, e a dor como abertura do mundo, onde se apresenta como princípio radical da metamorfose. O autor fecha o capítulo e o livro com a frase “mas a dor não é um continente onde é lícito instalar-se, a metamorfose exige o alívio” (Le Breton, 2007, p.227). Este belo e denso livro de Le Breton merece leitura cuidadosa e reflexiva. Ele não deixa brechas sobre a complexidade e as múltiplas dimensões da dor, recusando circunscrevê-la à fisiologia. A dor tornou-se objeto extremamente fecundo da condição humana e dos sentimentos de quem a sofre. Passa pela cultura, como simbolismo, sistema de crenças e valores modeladores do seu significado e expressão; passa pela experiência dos que sofrem, na sua relação com a medicina. Penetra o mundo das ideias transformadas na história, tanto dos saberes médicos eruditos,

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religiosos, quanto das tradições dos grupos rurais e operários do passado e da contemporaneidade, em relação às suas posturas de resistência à dor. O autor mostra como a dor perpassa as relações sociais, os rituais, os sistemas punitivos educativos e a medicina, suas técnicas e a cultura médica. Este estudo é exemplar da interdisciplinaridade fecunda entre as várias ciências sociais e humanas, cujo domínio pelo autor é bastante evidente, permitindo-lhe tecer e percorrer as múltiplas facetas da relação dos homens com a dor. A fantasia da supressão da dor, pelas tecnologias médicas, deságua na indiferença à vida. Perder a dor é também perder o gosto e o prazer de viver. Esta é a mensagem transmitida pelo autor aos leitores deste livro.

Referências BOLTANSKI, L. Los usos sociales del cuerpo. Argentina: Ediciones Periferia, SRL, 1975. KOOS, E.L. The health of Regionville. New York: Columbia University Press, 1954. LE BRETON, D. Entrevista. Iara Rev. Moda Cult. Arte, v.2, n.2, p.1-2, 2009. Disponível em: <http:// www. iararevista.sp.senac.br>. Acesso em: 15 nov. 2010. ______. Compreender a dor. Portugal: Editora Estrelapolar, 2007. ZOBOROWSK, M. Cultural components in response to pain. J. Soc. Issues, n.8, p.16-30, 1952.


teses

A vivência dos coordenadores de curso de Enfermagem em relação ao Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES) The experience of Nursing courses coordinators in regard to the national Evaluation System of Higher Education (SINAES) O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) tem a função de avaliar as instituições de Ensino Superior e os cursos por elas oferecidos, como os cursos de enfermagem. O SINAES está presente nas atividades gerenciais dos coordenadores de curso. Este estudo teve como objetivos: conhecer a vivência dos coordenadores de curso de graduação em enfermagem em relação ao Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES); identificar as influências dessa vivência na prática, enquanto coordenadores de curso, e descrever como são utilizadas as informações geradas por esse sistema no gerenciamento de curso. Tratouse de um estudo exploratório, descritivo, com abordagem qualitativa. Os sujeitos envolvidos foram 6 coordenadores que vivenciaram o SINAES. Os discursos foram obtidos por meio de 3 questões norteadoras: “Como você descreve a sua vivência no SINAES? O que esta vivência influenciou na sua prática enquanto coordenador(a) de curso? Como você utiliza as informações do seu curso geradas pelo SINAES?”. Os resultados revelaram que as vivências foram relatadas por meio das ações e percepções que se relacionavam à operacionalização, organização e preparação dos processos gerenciais requeridos pelo SINAES, no âmbito do curso; as influências dessa vivência foram identificadas tanto no gerenciamento acadêmico, nas questões voltadas para a articulação de avaliação e implementação do projeto pedagógico do curso (PPC), quanto nas questões administrativas requeridas pela universidade; os coordenadores utilizavam as informações geradas pelo SINAES na organização didático-pedagógica, nas ações que envolviam o corpo docente, corpo discente e corpo técnicoadministrativo, e na organização e provisão da estrutura física. Pode-se constar que as vivências dos coordenadores, em relação ao SINAES, demonstraram a participação direta dos entrevistados nos processos avaliativos, o que

lhes permitiu analisar e identificar, juntamente com os atores envolvidos, os problemas acadêmicos e administrativos do curso e, posteriormente, planejar e realizar mudanças. Assim, acreditamos que o conhecimento das vivências dos coordenadores, a identificação das influências e a descrição das utilidades do SINAES possam colaborar com os processos gerenciais do curso de enfermagem; e que, a partir destes resultados, abram-se caminhos para a construção de indicadores de qualidade que possibilitem mensurar a efetividade das ações realizadas. Alessandra Santos de Paula Dissertação (Mestrado), 2009 Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo alessandrass_paula@yahoo.com.br

Palavras-chave: Educação em Enfermagem. Avaliação do Ensino Superior. Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES). Keywords: Nursing (Education). Higher Education (Evaluation). National Evaluation System of Higher Education (SINAES). Palabras clave: Enfermería (Educación). Educación Superior (Evaluación). Sistema Nacional de Evaluación de la Educación Superior (SINAES).

Texto completo disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7131/tde07072009-095515/pt-br.php>

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criação

Um corpo na multidão: do molecular ao vivido notas para uma conversa

Regina Favre1

Simultaneidade no acontecimento: interior da sala de aula e mundo refletidos no vidro da janela. Imagem realizada no Laboratório do Processo Formativo por um participante do grupo AE10, em 2010.

na muvuca da vida* Condições formativas dos corpos HOJE: uma cartografia Indivíduos-corpos: relativos, interdependentes e interconectados, formando camadas de tecido social instáveis, onde a capacidade de manter agregação de si e conexão com as redes funcionais, em cada corpo, desempenha o papel principal. Forma do lucro: está mais no uso que na produção; os bens estão mais ligados à circulação do que à acumulação. Ambiente-mercado: produz, sobretudo, serviços, estilos de vida e modos de inserção. Capitalismo atual: com seu funcionamento em rede nos ameaça com a exclusão e não mais, diretamente, com a captura dos corpos pelo trabalho a serviço das classes dominantes, característica do capitalismo industrial. Poder mundial: aristocracia financista e multinacional, por um lado, e redes de colaboração e produção livre, sobretudo, a multidão, por outro. Perigos: perda das conexões e falsa agregação de si. HOJE em qualquer ponto do planeta o problema está no horror à exclusão. Exclusão das redes físicas é a morte. Exclusão das redes sociais é a miséria. Exclusão das redes de sentido é a loucura.

Este trabalho foi preparado para a realização de uma palestra apresentada na XXIII Jornada Reich do Instituto Sedes Sapientae, em setembro de 2010. As imagens foram produzidas pela autora e por colaboradores dos Seminários da Biodiversidade Subjetiva e nos grupos de estudos no Laboratório do Processo Formativo. *

Laboratório do Processo Formativo. Rua Apinagés, 1100, cj 507. Perdizes, SP, Brasil. 05.017-000. reginafavre@yahoo.com.br 1

www.laboratoriodoprocessoformativo.com

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Nesse ambiente-mercado totalmente midiatizado, onde vivemos hoje, o tempo todo estamos expostos à informação que nos manipula e horroriza com as situações de exclusão: doença, envelhecimento, isolamento, violência, miséria, desemprego, desamparo, favela, fila de hospital etc etc etc etc etc.

Imagem de imagem: Regina Favre olhando para imagem no telão. Imagem realizada no ambiente de imagens do Laboratório do Processo Formativo, por Beto Teixeira, assistente do grupo AE9, em 2009.

Nesse estado de apavoramento que atinge a todos, somos tomados pela vivência da desagregação somática desencadeada pela resposta reflexa do tronco cerebral. Com o reflexo do susto, o processo somático imobiliza e suspende sua continuidade como um modo de barrar a excitação excessiva, fatal para o córtex cerebral.

Imagem realizada no Laboratório do Processo Formativo, captando o reflexo do susto biodramatizado por alunos, por Zoca Freire, assistente do grupo AE10, em 2010.

Mas, ao mesmo tempo, essa mesma mídia que nos apavora vem, aparentemente, nos socorrer... oferecendo contornos existenciais vendáveis que prometem forma, contenção da excitação e inclusão. São imagens de fácil assimilação que suscitam o reflexo da imitação. Evidentemente, uma gambiarra formativa que dura um piscar de olhos... Um conceito de corpo tendo em vista os problemas formativos HOJE.

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criação O corpo é um processador ambiental em contínua produção de si e de mundo pela interação de suas camadas embriogênicas O corpo é um processo morfogênico autopoiético contínuo. do micro ao macro do nascimento à morte Tarefas urgentes de cada corpo HOJE: Situar-se na velocidade e na violência dos processos coletivos e cultivar uma potência que lhe permita manter: 1 agregação de si em continua mutação, 2 ligações de cooperação com os diferentes ambientes, 3 capacidade de assimilar o acontecimento, transformando afetações em tecido, neural e muscularmente estruturado, como experiência e comportamento. Lembrando que: 1 forma, funcionamento e comportamento são a mesma coisa, do micro ao macro. 2 o trabalho sobre os processos formativos e maturacionais de corpos e seus modos-forma de agregação e conexão requer cartografias e práticas precisas, sempre observando o modelo do vivo: excitação, membrana e pulso continuidade da embriogênese da concepção à morte bomba pulsátil corpo canal peristalse propulsão no espaço expressão conectiva

Membrana, pulso, expansão e contração: desenho produzido por colaborador do Laboratório do Processo Formativo a partir de ilustração do livro Corporificando a experiência, de Stanley Keleman (1995, p.20), em 20/03/2011.

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Corpo canal em camadas - desenho sobre fotografia de participante do grupo produzido por colaborador do Laboratório do Processo Formativo, a partir de ilustração do livro de Anatomia emocional, de Stanley Keleman (1992, p.43), em 28/03/2011.

Excitação, bomba pulsátil e conexão ambiental desenho sobre fotografia de participante do grupo AE10, produzido por colaborador do Laboratório do Processo Formativo, a partir de ilustração do livro Anatomia emocional, de Stanley Keleman (1992, p.48), em 22/03/2011.

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Cada corpo é um lugar na biosfera um AQUI um lugar self atravessado por ocos geneticamente imantado Myself Ovo: imagem parcial de cartografia realizada a partir de conversa-experimentação no Laboratório do Processo Formativos no grupo AE10, em agosto de 2009.

Como se faz (my)self em torno de um oco? O que considerar? Agregação de partes Qualidade de membrana Permeabilidade entre as camadas Expansão-contração Autorreconhecimento Autoagência de si Modos de conexão Modos de subjetivação... conduzindo substâncias e informação de todo tipo, bombeando, processando e gerando ambientes, internos e externos, sempre em conexão... Crescimento e maturação do soma:

Crescimento e longbody: imagem de transparência produzida no Laboratório do Processo Formativo para a transmissão de conceitos formativos no grupo AE9, em 2008. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Um continuum formativo de modos de conexão aos ambientes fusão dependência busca de reconhecimento controle cooperação São necessários ambientes confiáveis e tempos formativos para o amadurecimento dos pulsos e superfícies de conexão. A conexão, em sua condição adulta, se dá pela cooperação dos corpos. Cooperar significa: reconhecer-se apenas parte de processos maiores agir como parte formas imaturas se conectam aos campos corpantes fundindo, dependendo, buscando reconhecimento, dominando... hoje, em nossa vida visivelmente em rede, mais do que nunca, urge a cooperação.

Um modo de estar no campo corpante: a clínica realinha o processo formativo

Buscando a voz: abrindo a garganta sufocada pelas forças da normopatia que ainda a captura; imagem de Beto Teixeira, AE9, 2008.

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criação

Normopatia é o nome das forças do mainstream. Todos, de um modo ou de outro, nos afetamos pela sedução desse mundo aparentemente estável. Todos os corpos e formas, ao se desencadearem, já emergem do oceano formativo diretamente num mundo capitalista regido por poderes e valores que os capturam para dentro de redes de sentido, moldando-os e modelando-os. Isso é a homogênese. Portanto é vital acessarmos: o reflexo do susto as formas-socorro do mercado que envelopam nossa angústia a paralisação do processo maturacional das formas de conexão

Aluna desenhando somagrama: imagem de participante realizada no Laboratório do Processo Formativo no grupo AE10, em 2009.

como você funciona? um AQUI biológico percorrido por ocos autorreferente autoagente autorregulado que vai se constituindo SUJEITO co-corpando em campos corpantes através de modos de subjetivação que são os modos sociais de se constituir SUJEITO com o poder de interferir em suas próprias formas e manejá-las, dentro do presente coletivo. A maturação conectiva e a diferença só podem ser produzidas, sobre cada corpo, cada processo, cada conexão, de modo paciente e artesanal, observando as regras da formação biológica onde o corpo e seu cérebro, problematizando cada funcionamento, agem juntos sobre “o que é” e “como é”, e operam experimentações sobre as intensidades e amplitudes de cada forma, liberando, assim, forças autopoéticas que vão se condensando em novas formas a serem captadas, definidas em suas bordas, muscularizadas, praticadas, cuidadas e articuladas aos ambientes, internos e externos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Uma política do vivo A biologia tal como é compreendida hoje nos ajuda a contemplar que a organização morfogênica do vivo é molecular e em contínua autoprodução; que a multidão e o vivo operam da mesma maneira, isto é, formativamente, autopoieticamente. Esta é uma visão extremamente otimista O processo de produção de corpos pode ser enxergado através de um continuum de máquinas de produção de pulsos: pulso cósmico, pulso vivo, pulso genético, pulso embriológico membrana e pulso, intensidades e vínculos, desencadeamento de fases formativas, ambientes assimiláveis ou excessivos, a produção de si, a produção da diferença, as ondas formativas, os afetos e o neuromotor... A seleção natural opera, sempre, do molecular ao comportamento macro, em possibilidades combinatórias quase infinitas, o que desabsolutiza funcionamentos e relativiza a fitness, isto é, a encaixabilidade de um fluxo com outro. Uma gramática formativa necessita estar profundamente ancorada na biologia molecular, nas regras biológicas da produção dos tecidos e das formas, da maturação dos corpos e suas ligações, gerando práticas cooperativas do co-corpar e de produção-sustentação de campos corpantes.

Referências consultadas KELEMAN, S. Anatomia emocional. São Paulo: Summus, 2002. ______. Corporificando a experiência: construindo uma vida pessoal. São Paulo: Summus, 1995. FAVRE, R. Viver, pensar e trabalhar o corpo num processo de existencialização contínua. Revista Reichiana, n.13, p.78-84, 2004. ______. Trabalhando pela biodiversidade subjetiva. Cadernos de Subjetividade, p.108-23, 2010. 628

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