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editorial

Na verdade, nenhum pensador, como nenhum cientista, elaborou seu pensamento ou sistematizou seu saber científico sem ter sido problematizado, desafiado. Embora isto não signifique que todo homem desafiado se torne filósofo ou cientista, significa que o desafio é fundamental à construção do saber. (Paulo Freire, Extensão ou comunicação, 1992, p.54) Há exatamente 15 anos, em agosto de 1997, Interface – Comunicação, Saúde, Educação trazia as palavras de Paulo Freire, reproduzidas acima, para apresentar seu primeiro fascículo. Nessa citação, a marca da problematização e do desafio que nos acompanham desde a criação da revista. Revendo aquela primeira apresentação e, ao mesmo tempo, fazendo uma autocrítica do processo de evolução pelo qual o periódico passou desde a sua criação, é possível afirmar que Interface consolidou a ideia inicial de um projeto em movimento, inspirado em Pierre Levy e Italo Calvino, em uma concepção de conhecimento como uma enciclopédia aberta, hipertextual. Mantendo o foco temático na problemática da educação e da comunicação nas práticas de saúde e nas questões da formação e do ensino na universidade, a revista assumiu como permanente desafio a busca de novas interfaces, procurando implicações entre diferentes discursos, trazendo relações entre texto e texto, texto e imagem, imagem e imagem. Os trabalhos que integram a presente edição de Interface expressam essas articulações, incluindo temáticas diversas como pesquisa e arte em doação de órgãos, pesquisa cartográfica, questões do discurso e da prática em saúde, ciências humanas e saúde, entre outras. É importante destacar que, ao longo desses anos, o projeto editorial da revista tem sido continuamente aperfeiçoado e renovado com novos questionamentos e novas temáticas, ao mesmo tempo que a adoção de critérios de qualidade referenciados pela comunidade científica ampliou os indicadores de mérito científico e a visibilidade e credibilidade da revista. Ressalte-se que os esforços empreendidos para imprimir um caráter científico e de profissionalismo à Interface repercutiram em resultados positivos, em termos de indexações conseguidas, recursos obtidos de diferentes instituições – Fundação Kellogg’s, CNPq, CAPES, FAPESP, dentre outras -, de sua avaliação nas diferentes áreas de seu escopo junto à CAPES, no sistema Qualis, especialmente a Educação (Qualis A2), Saúde Coletiva (Qualis B1) e Ciências Sociais Aplicadas I (Qualis B1),da procura crescente pela revista como espaço de divulgação de trabalhos científicos por pesquisadores de diversas regiões e instituições, dentro e fora do país. Esse interesse se expressa na mudança da periodização para trimestral, em 2008, no volume crescente de submissões recebidas (686 em 2010) e na recente ampliação do número de artigos publicados por fascículo, reduzindo-se o intervalo entre submissão e publicação. Interface tem também empreendido uma série de mudanças em seu processo editorial, como a pré-avaliação dos manuscritos feita pelos editores e editores associados e a publicação imediata dos artigos aprovados na Biblioteca SciELO Brasil, já com número doi (ahead of print). Com este fim e também para melhor instruir o processo de pré-avaliação, desde o início de 2011 Interface requer dos autores que indiquem a originalidade do manuscrito relativamente ao que já foi produzido na literatura nacional e internacional, bem como relativamente a publicações anteriormente feitas da pesquisa da qual o artigo submetido foi gerado. Em caráter opcional, os autores também podem sugerir avaliadores para seu artigo e apontar eventuais conflitos de interesse com outros possíveis revisores. A preocupação com o rigor do processo de avaliação teve com uma das consequências o aumento significativo do número de artigos rejeitados que, nos últimos dois anos, chegou a mais de 80% dos processos submetidos. Contudo, a tendência de crescimento das submissões tem aumentando a preocupação dos editores com o processo de avaliação de mérito científico, dado o desafio de aprimorar sua qualidade e fazê-la com presteza, frente às dificuldades identificadas no modelo de avaliação por pares, por meio da solidária participação destes. Um problema enfrentado, comum a editores de diferentes periódicos nacionais, refere-se à dificuldade de receber as contribuições de pesquisadores que atuam como revisores ad hoc. Felizmente o esforço empreendido nestes 15 anos também tem assegurado resultados positivos em diferentes indicadores presentes nas bases em que Interface está indexada. Um olhar sobre a frequência de citações recebidas em relação ao total de artigos publicados nos últimos cinco anos (2006-2010) na Biblioteca SciELO Brasil revela que a revista apresenta um crescimento consistente, passando de 1,78 para 5,12 citações recebidas (em média) por artigo publicado, estando a autocitação dentro de limites considerados adequados. Destaque-se, ainda, um crescimento constante das autorias e coautorias de artigos publicados provenientes de outros países. Ao completar seus 15 anos Interface quer partilhar com seus leitores e colaboradores a satisfação ter chegado até aqui contribuindo com este esforço para ampliar o acesso a este bem imaterial que é o conhecimento e, ao mesmo tempo, queremos nos próximos editoriais estimular o debate e a reflexão sobre os problemas e desafios que os periódicos nacionais enfrentam atualmente para dar conta dessa tarefa. Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Celi Porto Foresti Editores

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In fact, no thinker, as well as no scientist, ever elaborated their thought or systematized their scientific knowledge without having been problematized, challenged. Although this does not mean that every challenged man will become a philosopher or scientist, it means that challenge is fundamental to knowledge construction.

(Paulo Freire, Extensão ou comunicação, 1992, p.54)

Exactly 15 years ago, in August 1997, Interface – Comunicação, Saúde, Educação presented Paulo Freire’s words, reproduced above, to introduce its first issue. That quotation contained the mark of the problematization and challenge that have been accompanying us since the journal’s creation. Reviewing that first presentation and, at the same time, making a self-criticism of the process of evolution the journal has undergone since its creation, it is possible to state that Interface has consolidated the initial idea of a moving project, inspired by Pierre Levy and Italo Calvino, in a conception of knowledge as an open, hypertextual, encyclopedia. Maintaining the thematic focus on the issues of education and communication in the health practices and in the questions of education and teaching at university, the journal has assumed as its permanent challenge the search for new interfaces, looking for implications among different discourses, bringing relations between text and text, text and image, image and image. The papers that compose the present issue of Interface express these articulations, including diverse themes like research and art in organs donation, cartographic research, questions of health discourse and practice, human sciences and health, among others. It is important to highlight that, throughout these years, the journal’s editorial project has been continually enhanced and renewed with new questionings and themes, at the same time that the adoption of quality criteria approved by the scientific community has amplified the scientific merit indicators and the journal’s visibility and credibility. It should be noted that the efforts undertaken to give a scientific and professional character to Interface have produced positive results, in terms of acquired indexations, resources obtained from different institutions - Kellogg Foundation, CNPq, CAPES, FAPESP, among others -, and also in terms of its evaluation in the different areas of its scope in CAPES, in the Qualis system, especially Education (Qualis A2), Public Health (Qualis B1) and Applied Social Sciences I (Qualis B1), and of the increasing demand for the journal as a space for the dissemination of scientific works by researchers from diverse regions and institutions, in Brazil and abroad. This interest is expressed by the fact that the journal started to be published on a quarterly basis in 2008, by the increasing volume of submitted papers (686 in 2010), and by the recent expansion in the number of papers published per issue, thus reducing the interval between submission and publication. Interface has also been performing a series of changes in its editorial process, like the preevaluation of the manuscripts, carried out by the editors and associate editors, and the immediate publication of papers approved in Biblioteca SciELo Brasil, already with doi number (ahead of print). With this purpose and also to better instruct the pre-evaluation process, since the beginning of 2011 Interface has been requiring that the authors indicate the originality of the manuscript in relation to what has already been produced in the national and international literature, as well as to previous publications of the research from which the submitted paper was generated. In an optional character, the authors can also suggest reviewers for their papers and point to possible conflicts of interest with other possible reviewers. The concern about the rigor of the evaluation process has produced, as one of its consequences, a significant increase in the number of rejected papers which, in the last two years, amounted to more than 80% of the submitted articles. However, the increasing trend of the submissions has raised the editors’ concern about the scientific merit evaluation process, given the challenge of enhancing its quality and performing it promptly, in view of the difficulties identified in the model of peer review, by means of their participation, which should be marked by solidarity. One problem that is commonly faced by editors of different national journals refers to the difficulty in receiving the contributions of researchers who work as ad hoc reviewers. Fortunately, the effort undertaken in these 15 years has also ensured positive results in different indicators present in the databases in which Interface is indexed. Looking at the frequency of received quotations in relation to the total of published papers in the last five years (2006-2010) in Biblioteca SciELO Brasil reveals that the journal presents a consistent growth, moving from 1.78 to 5.12 received quotations (on average) per published paper. Self-quotation is within adequate limits. The constant growth in authorships and coauthorships of published papers coming from other countries should also be highlighted. In its 15th anniversary, Interface wishes to share with its readers and collaborators the satisfaction of having arrived here contributing to this effort to amplify the access to this immaterial property that knowledge is. At the same time, we would like, in the next editorials, to stimulate debate and reflection on the problems and challenges that the national journals have been facing today to accomplish such a task. Antonio Pithon Cyrino Lilia Blima Schraiber Miriam Celi Porto Foresti Editors 634

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artigos

Doação de órgãos e tecidos: a centralidade do coração e a emergência do cérebro manifestadas em projeto artístico*

Zenilda Cardozo Sartori1 Luís Henrique Sacchi dos Santos2

SARTORI, Z.C.; SANTOS, L.H.S. Donation of organs and tissues: the centrality of the heart and the emergence of the brain expressed in an art project. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.635-48, jul./set. 2011. The centrality of the heart and emergence of the brain in texts by participants in the artistic action ‘Donations of the Body’, produced in order to become candidates to receive an organ, in the form of an artistic object, are analyzed based on contributions by authors who theorize about the body contemporarily. This action was developed with the aim of provoking tension at the intersection between the fields of arts and sciences. Participants were put in the place of recipients waiting for transplants and, simultaneously, artists seeking space to exhibit their works. One of the significant points shown during the research is also analyzed: a point that can be called symbological and phantasmatic, and is present in the discourse on transplants. Finally, the centrality attributed to the heart (the seat of emotions), in competition with the brain (the organ representing rationality and instances of ‘government of the self’), is discussed.

Keywords: Directed tissue donation. Heart. Cerebrum. Art.

A centralidade do coração e a emergência do cérebro nos textos dos participantes da ação artística ‘Doações do Corpo’, produzidos para se candidatarem à recepção de um órgão, sob a forma de objeto artístico, são analisadas com base nas contribuições de autores que teorizam sobre o corpo na contemporaneidade. Essa ação foi desenvolvida com o objetivo de provocar um tensionamento na intersecção entre os campos das artes e das ciências, colocando o participante no lugar de receptor, à espera por transplante e, ao mesmo tempo, no lugar de artista procurando por espaço para suas obras. Analisa-se, também, um dos pontos significativos evidenciados durante a pesquisa: aquilo que podemos chamar de simbologia e fantasmática, presentes nos discursos sobre transplantes. Por fim, discute-se a centralidade atribuída ao coração (como sede das emoções) em concorrência ao cérebro (órgão que representa a racionalidade, a instância do próprio ‘governo do eu’).

Palavras-chave: Doação dirigida de tecido. Coração. Cérebro. Arte.

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Elaborado com base em Sartori (2010), com financiamento Capes. 1,2 Programa de PósGraduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Avenida Osvaldo Aranha, 824/32. Bairro Bom Fim, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-191. z.cardozo@ibest.com.br *

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Introdução Neste período de transição em que vivemos, de conceitos líquidos e de culturas intermináveis (Canevacci, 2005), que questionam a linearidade de nossa visão do mundo, o sistema das artes - não imune a esta instabilidade - reflete a problematização dos próprios conceitos e as possíveis relações com outros campos do saber. Na produção artística contemporânea, isso se expressa, por exemplo, na coexistência de diferentes tendências ocupando os mesmos espaços, provocando importantes tensões tanto no campo da arte quanto em outros. Um deles – objeto de discussão deste texto – diz respeito à ciência, mais especificamente à medicalização crescente da sociedade, que se narra e se pensa, cada vez mais, a partir de conhecimentos tecnobiomédicos3. Diferentes autores brasileiros contemporâneos (Sibilia, 2009, 2002; Ortega, 2008a; Couto, Goellner, 2007; Sant’Anna, 2004) vêm analisando as formas pelas quais os indivíduos têm sido constantemente interpelados por discursos que privilegiam os cuidados e as intervenções sobre o corpo a partir de uma matriz tecnobiomédica. Esses discursos, que problematizam o corpo, também constituem uma das tendências de abordagem da arte contemporânea, caracterizada pela simultaneidade e pluralidade de propostas, temáticas, técnicas, estilos e reflexões. Percebemos o crescente número de tais abordagens através de vídeos, fotografias, instalações e apresentações com diferentes ênfases sobre o corpo vivo, orgânico, fragmentado, visceral e, ainda, o corpo descarnado e digitalizado das novas tecnologias; todas fazendo parte do mesmo sistema de relações responsável pela sua formação – um corpo construído culturalmente no âmbito da tecnobiociência. Diante do grande número de discursos sobre o corpo na atualidade, em diferentes áreas do conhecimento, poder-se-ia ter a impressão de que tal problemática estaria esgotada, que o corpo teria sido, por fim, banalizado. Pelo contrário, o que se tem observado é uma crescente centralidade do corpo nos dias atuais, o que produz ainda mais questionamentos e incertezas sobre ele (Ortega, 2008a; Sant’Anna, 2000) e, como resultado, a constituição de um campo fértil para a criação artística. A pluralidade e a diversidade de proposições sobre o corpo como objeto de arte, que vão além das relacionadas à performance e às interações digitais (amplamente difundidas atualmente quando se fala em intervenções corporais), podem produzir, ainda, importantes desdobramentos a serem explorados, não só pela arte, mas em todos os campos do saber. Inserindo-se na voga da arte atual, de tensionar o corpo como metáfora, este trabalho buscou instaurar-se na intersecção entre o campo das tecnobiociências e o das artes, explorando a potencialidade de um projeto artístico como forma de privilegiar o envolvimento do corpo numa ação, envolvendo não apenas o próprio corpo da artista (e principal autora deste texto), mas, também, o corpo do(a) próprio(a) espectador(a). Para tanto, foi desenvolvido um projeto de ação artística, fundamentalmente política (porque articulou, de modo tensionado, a circulação de dois sistemas instituídos e oficializados: o sistema de transplante de órgãos e o sistema de apresentação das obras de arte), que implicou a constituição de uma metáfora do corpo fragmentado, propondo uma reflexão sobre a problemática do corpo na atualidade no que diz respeito à saúde, bioética, transformação e otimização corporal, especialmente no que se refere ao sistema de doação de órgãos e tecidos. Tal proposição se constituiu numa forma de arte que, como aponta Bourriaud (2009), acontece na esfera das relações humanas e de seu contexto social. Pensamos, assim, que articular as questões relativas à problemática da doação de órgãos e tecidos ao circuito das artes permite-nos tensionar a dimensão política relativa a esta temática, considerando o registro biopolítico do 636

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3 Fazemos uso, aqui, da provocante compreensão de tecnociência por parte de Donna Haraway (1997). Pensamos que é possível inserir a palavra “bio” entre tecnologia e ciência para, junto com Haraway, entendermos as mutações que estão se realizando no modo como a biologia tem narrado nosso presente e nossos futuros com base numa “história de verdades”, muitas delas iniciadas no passado com continuidades no presente.


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4 Blog <http:// doacoesdocorpo.blogspot. com> com inscrições do público interessado durante o período de 27 de agosto até 15 de setembro de 2009.

5 Tal exposição foi realizada na sala Fahrion, da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com visitação durante o período de 24 de novembro a 18 de dezembro de 2009.

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artigos

imperativo da saúde, da necessidade de cuidar da vida e do corpo e, portanto, de se fazer viver mais (Foucault, 1999). A trajetória da artista aqui em questão tem sido marcada por diferentes abordagens sobre o corpo. Contudo, neste trabalho, a apresentação dos órgãos (como se fossem os seus próprios órgãos), sob a forma de objeto artístico, para doação, constituiu-se como o elemento central. Cada órgão foi construído por meio dos processos de criação artística (em desenho, pintura e objeto), sendo apresentado ao público por meio da ação intitulada Doações do Corpo e, posteriormente, doado aos participantes selecionados por meio da candidatura proposta em um edital semelhante àqueles em que os artistas concorrem a uma vaga em uma exposição. A ação política manifesta-se aqui na medida em que se buscou posicionar os espectadores no centro da questão sobre transplantes (como receptores) e, ao mesmo tempo, como artistas (através de um edital que mimetizava alguns dos processos seletivos adotados pelo sistema das artes). Tal ação foi realizada num primeiro momento via web4 e, posteriormente, apresentada em um espaço expositivo5. A página da web (blog) contava com: uma postagem explicativa sobre a proposta; o texto do edital com o regulamento; links para a ficha de inscrição on-line, para informações adicionais sobre a artista (currículo e vídeo feito no atelier), para o acesso às imagens dos órgãos/obras disponíveis para a doação, assim como links de páginas de instituições ligadas à saúde e ao sistema de transplantes. Durante o período de desenvolvimento da ação, pode-se dizer que o público foi convidado à reflexão, ao questionamento e a uma tomada de posição sobre a problemática apresentada. Aqueles que desejaram participar da ação (como receptores) preencheram uma ficha de inscrição, cujo último item solicitado era a produção de um texto justificando o desejo e/ou a necessidade de receber o órgão/obra escolhido – a partir de tal texto se esperava que as compreensões circulantes na cultura acerca dos transplantes de órgãos (sua importância, a dimensão solidária, os conhecimentos apreendidos nas mídias, entre outros) fossem manifestadas. Os textos produzidos pelos participantes constituíram o principal material de análise da pesquisa, que teve como intuito discutir a maneira como os discursos sobre o corpo, que circulam em nossa cultura, especialmente sobre a doação de órgãos e tecidos, produzem formas de pensar e agir sobre corpo e saúde. Além disso, também se buscou compreender de que forma tais discursos se apresentavam sob determinadas representações e como se articulavam nas produções dos participantes. O processo de escrita dessas justificativas envolveu, de certa forma, a ‘doação’ do candidato a receptor: uma doação de seu tempo, de seu conhecimento sobre o órgão em questão, da busca pela informação necessária e da própria criação. Os Estudos Culturais, de inspiração pós-estruturalista, especialmente aqueles que se pautam numa abordagem foucaultiana (Costa, 2005), constituíram tanto o corpo teórico, em que a pesquisa foi pensada, quanto o terreno a partir do qual as produções textuais dos participantes da ação artística foram analisadas. Nesta direção, foram considerados os discursos e as representações que se articularam na formulação das justificativas para a recepção do órgão/obra de arte, não como forma de revelar “verdades” ocultas no seu interior, mas com a intenção de abranger as relações que os próprios discursos põem em funcionamento: isto é, “de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ dentro dos discursos” (Fischer, 2001, p.199). Alguns dos textos encaminhados apresentaram justificativas com base na arte, no objeto artístico e no desejo de ter a obra. Outros textos relacionaram o próprio mote do projeto, fazendo referência à potencialidade da arte como provocadora e 637


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produtora de sentido e, também, aos critérios de seleção adotados pelos dois sistemas – o das artes e o dos transplantes. Em relação ao ato de doar e receber, alguns textos salientaram a necessidade de cuidado com o órgão e a sua preciosidade (daquilo que é precioso, de grande valor), considerando, ainda, que receber uma doação representaria uma “graça” (algo da ordem do divino), por ter mais uma chance para ser feliz, para repensar a forma como conduzia sua vida, não apenas em relação aos aspectos físicos, mas também no que dizia respeito às relações humanas. Em algumas das justificativas, foram utilizados termos como generosidade, solidariedade e positividade para referir a escolha dessa temática para a pesquisa. Além disso, alguns dos participantes pareciam ter recorrido a uma consulta aos compêndios de biologia e aos livros sobre saúde, pois destacavam as características/propriedades biológicas dos órgãos e reproduziam, assim, alguns dos discursos sobre o corpo na contemporaneidade. Exemplos disso apareceram na referência aos discursos acerca do risco e da responsabilidade para a manutenção de uma vida longa e saudável; da obsolescência do corpo e da necessidade de aperfeiçoamento corporal através da substituição dos órgãos que não funcionam “corretamente”; assim como, também, destacaram o aspecto simbólico dos órgãos. A partir de um primeiro olhar sobre um total de 42 textos recebidos, considerando o número de inscritos para cada órgão e os órgãos que não obtiveram inscrições (pâncreas, traqueia e vesícula biliar), percebemos um elemento significativo: a preferência dos participantes pelo órgão coração6, representando um total de oito inscrições, das quais sete evidenciaram aquilo que denominamos de aspectos simbólicos a ele relacionados. Observando a popularidade desse órgão, constatou-se, com surpresa, que isso que podemos chamar de “centralidade do coração” (quando comparado aos demais órgãos) se apresentou não apenas nas escolhas dos participantes, mas, também, no próprio processo criativo da artista (que se iniciou através da sua investigação anatômica e fisiológica). Isso se deu, de modo não intencional, desde a construção dos órgãos/obras, passou pela elaboração do layout da página da web (http://doacoesdocorpo.blogspot.com), bem como por todo o material utilizado na divulgação da pesquisa – convites (virtual e impresso), cartazes, folders – até a montagem da exposição Doações do Corpo (Figuras 1 e 2). Nesta, em particular, o órgão/obra ‘coração’ foi o elemento central (apresentado ‘em suspensão’ no interior de um cubo de acrílico) que determinou a disposição das outras obras no espaço expositivo.

Figura 1. Exposição Doações do Corpo (Zenilda Cardozo, 2009)

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6 Foram recebidas 42 inscrições, sendo que o coração foi o órgão/obra mais solicitado (oito inscrições), seguido do estômago (cinco); célula da glia (quatro); pulmão (quatro); olho (três); fígado (duas); hipófise (duas); rim (duas); útero (duas); osso (uma); pele (uma); ovário (uma); cóclea (uma). Os órgãos/ obras traqueia, pâncreas e vesícula biliar não receberam inscrições. Seis participantes se candidataram para órgãos não disponibilizados para doação, entre eles, o cérebro.


artigos

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7 A partir daqui apresentamos alguns excertos retirados dos textos dos participantes da ação (não apenas daqueles que foram contemplados com a doação das obras/ órgãos), usando-os como “texto mesmo”, isto é, como manifestações de um discurso que circula na cultura acerca da importância de determinados órgãos em detrimento de outros. Isso significa que não nos detivemos, no âmbito da análise aqui apresentada, em discutir as possíveis inter-relações entre gênero, idade, profissão, geração, entre outras. Apresentamos, contudo, a idade e a profissão dos/as participantes na direção de marcar aos/às leitores/as “os lugares” a partir dos quais os/as participantes falavam, mesmo quando posicionados num dado discurso sobre a doação de órgãos (que assumimos ser aquele da tecnobiociência e seus desdobramentos nos âmbito das diferentes mídias). 8 Neste caso, a percepção, através da dor, se dá na região em que o órgão se encontra, não significando, exatamente, a percepção do órgão.

Figura 2. Exposição Doações do Corpo (Zenilda Cardozo, 2009)

Coração-sentimento e coração-bomba Bastaria uma consulta ao dicionário (Ferreira, 2004), sobre o significado da palavra coração, para prevermos qual seria a relação da maioria dos participantes da ação artística com o órgão, pois, além dos significados sobre a anatomia e a fisiologia do coração, são encontradas definições relacionadas a sua simbologia, como, por exemplo, “o coração humano, considerado como a sede dos sentimentos, das emoções, da consciência; a natureza ou a parte emocional do indivíduo; amor, afeto”. O coração foi o órgão mais solicitado pelos participantes, sendo que a maioria das justificativas o referiu como o lugar da emoção, dos desejos, do amor e da amizade – relação que, além das definições encontradas no dicionário, foi amplamente explorada pelos poetas e por outros profissionais das artes ao longo da história da humanidade. A partir disso, poder-se-ia perguntar se tal preferência não evidenciaria a sua maior popularidade quando comparado a outros órgãos, como o pâncreas, por exemplo, que não teve qualquer inscrição, mesmo se tratando também de um órgão vital. Desta forma, poder-se-ia, igualmente, perguntar se existiria uma hierarquia dos órgãos, e como essa maior valorização de uns em relação aos outros teria influenciado a escolha dos participantes da ação artística. Ou, ainda, se isso teria acontecido em razão da maior facilidade de articulação proporcionada pelo que foi instituído através dos tempos. A participante L. B. (artista pesquisadora, quarenta anos)7 optou, por exemplo, por não escolher um dos órgãos: “qualquer órgão para mim, e com certeza vou cuidá-lo muito bem, porque todos são super importantes”. Este trecho chama a atenção para a existência de uma hierarquia entre os órgãos – frequentemente encontrada em diferentes manifestações –, destacando, assim, a relevância dada a determinados órgãos em detrimento de outros. Isso pode ser entendido a partir das colocações de Ortega (2008a), quando ele refere que “a presença corporal possui uma natureza paradoxal, aparecendo ao mesmo tempo como uma presença inescapável e uma ausência fundamental” (p.76). Em outras palavras, para esse autor, o corpo se constitui como um campo organizado, em que certos órgãos e atividades se destacam enquanto outros recuam. Ele refere diferenças de percepção em relação a alguns órgãos, especialmente daqueles ligados aos sentidos que se projetam para o exterior, em contraposição com o interior do corpo, com a visceralidade. Órgãos que são cruciais à manutenção da vida, mas que não podem ser percebidos, a não ser através da dor8, ou ‘vistos’ através das imagens médicas, necessitando, portanto, da COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mediação de profissionais especializados (Monteiro, 2008). Segundo Sant’Anna (2005), em nossa época, esses recursos tecnológicos têm possibilitado uma perturbação no “silêncio dos órgãos”, devassando toda a intimidade do que, dentro da pele, se mantém na obscuridade. Através da sua popularização (e banalização), tais imagens têm auxiliado na constituição de ‘verdades’ sobre o corpo, sobre saúde e doença em cada época. A maioria dos textos solicitando a doação dos órgãos/obras apresentava traços desses elementos, reconhecíveis pelo conhecimento cotidiano (de modo simbólico e fantasmático9), dos quais destacamos alguns excertos sobre coração e estômago. “Eu preciso deste órgão por que é ele que significa AMOR, para que, diante de um mundo com tanta guerra e fome, eu lembre que ele ainda existe ... o coração que lembra MOTOR para que eu tire dele energia e disposição para lutar pelas coisas certas...”. (R. V. S., dentista, 32 anos) “Preciso de um novo estômago, o meu está saturado de tanto engolir “sapos”. De ter de engolir injustiças, de engolir e não conseguir digerir tanta falsidade, tanta corrupção”. (T. M., gestora de qualidade, 37 anos)

Em seu artigo, Coração estrangeiro em corpo de acolhimento, Vaysse (2005) aponta para a força das ideias fantasmáticas em torno do coração (e dos demais órgãos transplantados), capazes de colocar em risco uma cirurgia de transplante tecnicamente bem-sucedida, pois o paciente traz consigo uma experiência afetiva em relação ao órgão. Segundo essa autora, o sujeito transplantado passa por uma reelaboração da imagem do corpo: sofrer o luto de seu próprio coração perdido, para admitir esse outro coração vivido como estrangeiro – e que o é, realmente, apesar da procura de uma compatibilidade máxima –, suscita reajustamentos em que se misturam as esferas psíquicas e somáticas. (Vaysse, 2005, p.41)

Vaysse refere que bom número de pacientes transplantados sente-se “penetrado” pela história do doador, mesmo que desconhecida (já que o seu anonimato é previsto por lei). O escritor Maurice Renard explora tais ideias fantasmáticas sobre os órgãos transplantados no romance Le mains d’Orlac (datado de 1920), em que um pianista (Orlac) tem as mãos substituídas pelas de um assassino condenado à morte. Em decorrência disso, sua personalidade fica transtornada e ele passa a ser o principal suspeito de uma série de assassinatos cometidos após o transplante. Para Le Breton (2005), o romancista consegue jogar habilmente com o fantasma do destino inerente a certos órgãos simbolicamente significativos (aqui as mãos, ali o coração, o cérebro, etc), e suspeitos de transmitir as virtudes ou os defeitos do homem a quem eles foram arrancados. (Le Breton, 2005, p.55)

Histórias como esta fazem parte da formação dos sujeitos e povoam as metáforas da cultura popular acerca do corpo fragmentado da doação de órgãos, como se esses tivessem uma memória e um poder sobre o corpo do receptor. Isso se torna especialmente relevante para o coração, tomado como o órgão que 640

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9 Termo comumente utilizado por artistas ao se referirem aos seus trabalhos. Definição do dicionário Aurélio: fantasmagórico. Relativo a fantasma.


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artigos

governa as relações humanas, tal como sugerem os excertos aqui analisados. Segundo Vaysse (2005), certo número de pacientes acredita na “organização hierarquizada do funcionamento corporal orquestrada pelo coração” (p.44). “Olhar-me no espelho e saber que dentro de mim há “uma outra pessoa”, materialmente falando, seria um desafio constante. Pensar em como ela era, quais eram seus desejos e expectativas perante à vida e saber que estaria vivo devido seu desapego ao corpo ou o desapego dos familiares, por si só, me tornaria, eu acho, uma pessoa menos impertinente, menos radical com alguns comportamentos. [...] Acho que este “renascer” modificaria não somente a mim, mas seria o desencadear de uma série de indagações nas pessoas que convivem comigo”. (M. I. M., enfermeiro, 40 anos)

Neste excerto o participante refere um “outro” que habitaria seu corpo através do transplante. Podese dizer a partir disso que “os transplantes de órgãos acentuam o contraste entre o discurso do corpo objetivado da biomedicina e a experiência subjetiva e fenomenológica dos pacientes que devem integrar à sua corporeidade partes do corpo estranhas, a alteridade no corpo vivido” (Ortega, 2008a, p.219). O participante destaca que teria um órgão estranho, “materialmente falando”, o que lembra a ideia de coração utilizada e difundida pela área médica, como sendo uma “bomba muscular” – apenas um fragmento do corpo de outra pessoa. O candidato expressa, ainda, que saber disso seria um desafio constante: a curiosidade em saber como era o sujeito doador, quais eram seus desejos e expectativas. Desafio ao qual o paciente transplantado se submete, sendo que, de acordo com Vaysse (2005), para se apropriar psicologicamente do órgão, é necessário “apagar a afetividade fantasmática em torno do sujeito doador” (p.45). Essa autora, referindo-se à existência deste “coração imaginário”, destaca a utilização, na contemporaneidade, das representações de “coração-sentimento” e “coração-bomba”, este último relacionado ao mecanismo funcional, mais racional, de “uma máquina idealizada que se quer reparável e intercambiável em todas as situações de falha, uma vez que ela não é imortal” (p.43). O participante aponta, ainda, para como a reflexão (provocada pela ação e) proporcionada pelo fato de estar na fila de espera para receber um órgão (obra), ou de apenas imaginar-se nessa situação, poderia suscitar uma reavaliação no seu próprio modo de vida e, também, no que diz respeito às pessoas com as quais convive. Em resumo, imagina como esse “renascer” poderia contribuir para torná-lo uma pessoa “melhor”. O excerto apresentado a seguir também segue nessa perspectiva de reavaliação das próprias ações, tal como a possibilidade de transformação em seres humanos “melhores”, em que o coração parece ser o órgão ligado ao “melhor” direcionamento das ações humanas. “[Ele] simboliza a emoção e os desejos do ser humano, que considero ser imprescindíveis para um caráter realmente humano. Mas estas características devem se compatibilizar com seu cérebro - órgão que não pode ser transplantado ainda - para regular estas emoções e desejos. Quando o homem, através de seus sentimentos, e de seus desejos pessoais, entender e dirigir suas ações para o bem de todos, banindo o egoísmo, haverá possibilidade de uma vida digna para toda a humanidade. Sem isto, não é possível a justiça social, e sempre teremos o ódio se sobrepondo ao amor. Devemos agir com coração e examinar as coisas com o cérebro”. (L. G. M., aposentado, 67 anos)

Com base nos aspectos simbólicos que compõem essas justificativas, o coração parece ocupar um lugar privilegiado, juntamente com o cérebro, em relação àquilo que nos caracteriza como “humanos”. A última frase da justificativa apresentada anteriormente faz uma separação entre as ‘coisas do coração’ e as ‘coisas do cérebro’, assim como no fragmento da justificativa a seguir, que sugere a crença em certa hierarquia em relação aos sentimentos. O coração é aqui, novamente, apresentado como o lugar da emoção.

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“As ações que podemos sentir não estão na mente, mas no coração”. (S. C. S., auxiliar de laboratório, 39 anos)

A ideia de “coração-bomba” aparece nas justificativas a seguir no que concerne ao ritmo e à aceleração imposta pelo mundo contemporâneo, onde a velocidade e simultaneidade dos acontecimentos exigiriam um esforço cada vez maior do corpo. O coração aparece, assim, como uma bomba que determina e governa o ritmo de nossa vida, mesmo num contexto em que o cérebro – como a grande máquina que a tudo conduz e organiza – vem ganhando cada vez maior centralidade (Ehrenberg, 2009; Ortega, Vidal, 2007). “Daqui observo este mundo de pessoas que devoram uma xícara de café e aceleram a vida como se tudo acontecesse num só dia. Sempre que me vejo ali, no intervalo de cada minuto apressado, perante a imensidão do todo, acabo me questionando: que ritmo é esse que me conduz a essa velocidade imposta? Respiro fundo 3 vezes. A primeira coisa que sinto é meu coração batendo mais calmo... batida após batida, injetando a esperança de que tudo vai ser mais tranquilo daqui pra frente. O coração é o marcador do ritmo do sentimento. É a bomba injetora da máquina da vida... é a metáfora de nós mesmos. Por isso, quero mais um...”. (J. L., artista visual, ilustrador e designer gráfico, 32 anos) “Não é [o] coração que movimenta o pulsar ritmado de nossas aldeias? Seria ele um alvo perfeito que, por vezes, falta-lhe um peito para acomodar?”. (M. Z. C. A., cientista social, 36 anos)

Coração x cérebro? Num dos excertos apresentados anteriormente, o participante refere que “devemos agir com coração e examinar as coisas com o cérebro”. Tal colocação serve de mote para retomarmos a discussão acerca da suposta existência de uma hierarquia entre os órgãos, com consequente divisão de competências entre eles. A separação (oposição) entre tais competências é tão conhecida no âmbito cotidiano que já aparece, inclusive, dicionarizada numa das acepções para coração: “a parte emocional do indivíduo (por oposição à natureza, ou à parte intelectual, à cabeça)” (Ferreira, 2004). O coração, cujos batimentos podem ser sentidos e, ainda, influenciados pela emoção, é, assim, frequentemente posto em contraposição ao cérebro – órgão que não se vê e não se sente –, relacionado à razão. O coração assumiu centralidade não apenas nos materiais de divulgação e no próprio centro físico da exposição Doações do Corpo, como já se referiu, mas também no processo criativo da autora/artista, posto que foi um dos primeiros a ser elaborado como órgão/obra. O cérebro, ou mais exatamente a célula da glia, por outro lado, foi uma das últimas a serem produzidas, uma vez que parecia que, devido a sua complexidade, demandaria mais tempo e dedicação em termos de pesquisa. Além disso, havia uma questão de fundo teórico-conceitual: a doação do cérebro estaria envolta em questionamentos sobre a identidade do sujeito estar, ou não, ligada ao órgão. Não se tratava, portanto, de uma questão trivial, uma vez que tal problemática permeia precisamente as discussões sobre a possibilidade de se realizarem transplantes de cérebro. O fato é que, no âmbito da ação Doações do Corpo, mesmo ele não tendo sido apresentado para doação como órgão/obra, alguns participantes da ação (n=2) desconsideraram tal ausência e acabaram, em certa medida por oposição ao coração, solicitando a doação de um cérebro. Antes dos avanços do neuroimageamento, o cérebro poderia ser considerado o mais silencioso, protegido e misterioso dos órgãos, pois pouco sabíamos sobre ele. O silêncio do órgão, de que fala Sant’Anna (2005), começou a ser quebrado pelas imagens produzidas por PET–scanners e aparelhos de ressonância magnética funcional (fMRI), possibilitando visualizar diferentes regiões do cérebro no exato momento em que ele desempenha suas funções. O uso de tais imagens tem ampliado não apenas o conhecimento científico (no que tange às relações entre cérebro e mente, por exemplo) como também 642

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tem produzido um conjunto de informações de diferentes ordens no âmbito dos meios de comunicação de massa e, em decorrência disso, um lugar privilegiado no conhecimento cotidiano (Ehrenberg, 2009). O excerto que se segue apresenta algumas dessas características. “Adoro meu próprio cérebro, mas com dois cérebros eu poderia pensar mais ainda e chegar ao ponto de ter uma ideia que pudesse melhorar todos os outros órgãos de meu corpo, eliminando rugas naturalmente, tirando toda a fumaça do pulmão e a rinite do nariz, fazendo com que meu coração recuperasse a capacidade de namorar. Com dois cérebros, poderia deixar um se divertindo e o outro trabalhando e usufruir das delícias de ser workaholic sem deixar de viver. Com dois cérebros, um faria análise para o outro e conseguiríamos eliminar as culpas existenciais e os traumas de infância. Com dois cérebros, o sono seria mais profundo e os sonhos mais reais. Eu poderia ser mais tolerante, pensar melhor antes de falar ou agir e ser mais espiritualizada, pois imagine o quão zen eu ficaria duplicando minha capacidade de meditação. Com dois cérebros, minha capacidade de concentração seria duplicada se refletindo nos resultados de qualquer coisa a qual me dedicasse, podendo até ser artista plástica e produtora cultural com igual qualidade e não tendo de estar sempre escolhendo entre investir nesta ou naquela personalidade profissional. Assim, pelo bem da humanidade, peço que me seja concedido mais um cérebro, além do meu, e prometo retribuir com muitos projetos que tragam benefícios à sociedade harmonizados com o desenvolvimento sustentável do circuito das artes”. (G. B., produtora cultural, 40 anos)

A participante refere a necessidade de ter mais um cérebro, o que nos remete aos discursos sobre a possibilidade de obsolescência do corpo (e da mente) e à consequente necessidade de seu aprimoramento constante - discursos que povoam os estudos sobre a problemática do corpo na atualidade (Sibilia, 2009). Ela solicita “mais um cérebro” não para substituir o seu próprio, mas para que seja possível “dar conta de todas as tarefas” relacionadas a sua profissão e, ainda, de outras coisas que gostaria de fazer (por prazer) e que lhe são impossíveis em razão do trabalho – um cérebro para trabalhar e outro para se divertir. Para a participante, o melhoramento neurológico proporcionado pelos dois cérebros auxiliaria no desenvolvimento de projetos em diferentes instâncias, atendendo às demandas cada vez mais exigentes, velozes e complexas da contemporaneidade. Destacamos, igualmente, o trecho da justificativa que refere a possibilidade de melhoramento corporal orquestrada pelo cérebro: “[...] ter uma ideia que pudesse melhorar todos os outros órgãos de meu corpo, eliminando rugas naturalmente, tirando toda a fumaça do pulmão e a rinite do nariz, fazendo com que meu coração recuperasse a capacidade de namorar [...]”. (G. B., produtora cultural)

Esse fragmento evidencia a crença na superioridade do cérebro em relação aos outros órgãos – pois a participante refere que um cérebro a mais poderia representar “melhor performance corporal e maior controle sobre os demais órgãos”, inclusive do coração, que aparece, novamente, como o “lugar” onde estão as capacidades emocionais e sentimentais. A participante fala de um coração que teria perdido a capacidade de namorar (quem sabe a figura simbólica de um coração partido), mas que, com a ajuda de mais um cérebro, poderia ser recuperada. Em outras palavras, numa das interpretações possíveis, poderse-ia dizer que a maior capacidade de racionalização permitiria resolver os problemas ligados ao “coração-sentimento”, à emoção, de que fala Vaysse (2005). Ao ter multiplicada sua capacidade de meditação, a participante refere que poderia ser mais tolerante, mais zen e espiritualizada. Isso nos remete à outra compreensão do cérebro, qual seja, aquela que o refere como órgão ligado à espiritualidade e às diferentes capacidades mentais (o cérebro como o “lugar” da mente), comumente encontrada em diversos contextos culturais e atualmente objeto de intensas investigações científicas (Ehrenberg, 2009; Caponi, 2007; Ortega, Vidal, 2007, entre outros). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O excerto, e todo o texto da justificativa da participante G. B., reproduz algumas crenças em torno do cérebro e da mente, atribuídas, por Ortega (2008a), como resultado da associação mente-cérebro realizada pela divulgação científica nas diferentes mídias (jornal, revista, televisão, cinema, entre outras) e que produz um efeito significativo na cultura popular. Esse mesmo autor destaca que quando uma cultura como a nossa equaliza o estatuto cerebral com o estatuto mental e com a própria personalidade, então as imagens tornam-se prejudiciais, ao difundir visões reducionistas e objetivadas da mente e do corpo humano, com consequências severas em diversas esferas socioculturais e clínicas. (Ortega, 2008a, p.143)

Ortega refere, sobretudo, o modo como alguns segmentos da mídia divulgam tais avanços tecnológicos, cujas promessas infinitas poderiam mapear até mesmo as emoções, a cognição, o pensamento e o raciocínio: “as neuroimagens funcionais parecem fornecer diagnósticos visuais e nos dizer por que somos como somos” (Ortega, Vidal, 2007, p.258). Ortega (2008a) ainda analisa como o cinema americano tem produzido identificações da mente com o cérebro, se apropriando dos conhecimentos da neurociência e, assim, convertendo-os em lugar-comum, sem qualquer tipo de questionamento. Entre as premissas não explicitadas nessas utilizações dos conhecimentos em neurociência, a que o autor faz referência, estão: a de que poderíamos saber exatamente a localização da memória no cérebro (e apagá-las, arbitrariamente, como ocorre nos filmes), “que a mente é, no fundo, o cérebro; e que o ser humano seria constituído essencialmente pelo cérebro, isto é, uma nova figura antropológica chamada de ‘sujeito cerebral’” (p.146). Segundo Ortega e Vidal (2007) e Ehrenberg (2009), o termo ‘sujeito cerebral’ resume a redução do ser humano ao cérebro, que seria o único órgão necessário para a formação da identidade pessoal. Desta forma, o órgão responderia a tudo aquilo que outrora fora atribuído à pessoa, ao indivíduo. É nesta direção que o cérebro, como o órgão responsável pelo self, pode ser problematizado a partir da justificativa apresentada a seguir, na qual o participante solicita o órgão/obra célula da glia. “Qual é o lugar do ‘eu’? Se em uma época o fígado era o lugar da verdade dos corpos, e em outra o coração foi o ponto de onde emanava o que de mais essencial poderia haver nas pessoas, vivemos um momento em que o cérebro tornou-se o lugar da consciência. E eu quero a minha consciência – retomá-la, recriá-la, adonar-se dela mais uma vez, hoje e sempre. Quero, por isso, nova(s) célula(s) glia(s), para que nutram meus neurônios, para que deem suporte às suas atividades, para que mantenham cada um em seu devido lugar e para separá-los comedidamente quando brigam. Ser pensante, preciso de mais - e de outras mais - glias para meu ‘eu’ funcionar da melhor maneira possível: para refletir sobre meus problemas e achar claras maneiras de solucioná-los, para racionalizar minhas dores de amor e finalmente acreditar que ele nunca mereceu alguém tão maravilhoso quanto ‘eu’, para ver e crer no óbvio. Nova(s) célula(s) glia(s) para um novo ‘eu’. Melhor(es) célula(s) glia(s) resulta(m) num melhor ‘eu’”. (T. H., jornalista, 26 anos)

O participante ressalta que, no mundo contemporâneo, o cérebro passou a ser considerado o lugar da consciência. Na concepção do sujeito cerebral, em que o indivíduo é reduzido ao seu cérebro, Ortega (2008b, p.490) aponta para a existência de uma crença de que esse órgão “é a parte do corpo necessária para sermos nós mesmos, no qual se encontra a essência do ser humano, ou seja, a identidade pessoal entendida como identidade cerebral”. Essa figura antropológica “sujeito cerebral” (eu sou um cérebro que me habita) favorece a aparição daquilo que esse mesmo autor tem chamado de “neuroasceses” – em oposição/suplementação às asceses tradicionais (centradas no corpo apenas como meio para a elevação espiritual). Elas seriam, assim, práticas de si cerebrais que visam ao melhoramento, à optimização do corpo, à maximização de suas capacidades (Ortega, 2008b). A voga da “cerebralidade” é definida por Ortega e Vidal (2007) como “a propriedade ou qualidade de ‘ser’, ao invés de apenas ‘ter’, um cérebro” (p.257). Segundo Ortega (2008b), essa voga permite que aquilo que era entendido como patologia passe a ser visto como uma 644

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10 Aquilo que Nikolas Rose (2007) refere ser uma forma de optimização e Renato Janine Ribeiro (2003) considera uma forma de ampliar as capacidades humanas (especialmente em relação à saúde) sempre na direção de um “mais”.

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nova identidade (“neuroidentidade”). Neste contexto, o sujeito cerebral “implica formas de subjetivação, isto é, relações consigo mesmo e com os outros enquanto sujeitos cerebrais” (Ortega, 2008b, p.498). Essas diferentes formas de subjetivação incluem: a literatura de autoajuda cerebral, jogos, softwares, vitaminas e suplementos, entre outros produtos para o treinamento e aprimoramento do cérebro – a “neuróbica”, como uma espécie de academia para o cérebro, propiciando a formação de um novo mercado a ser explorado. “O sujeito cerebral transpôs o vocabulário do fitness corporal para o cérebro” (Ortega, 2009). A fala do participante T. H. também denota o discurso sobre aprimoramento cognitivo10, como uma forma de optimização corporal, em voga na contemporaneidade: “Nova(s) célula(s) glia(s) para um novo ‘eu’. Melhor(es) célula(s) glia(s) resulta(m) num melhor ‘eu’”. Mas o que significaria um melhor ‘eu’? Um ‘eu’ que consiga ‘racionalizar’ - para solucionar problemas ou as dores de amor, como o participante deseja? Isso também está presente na justificativa apresentada a seguir, na qual a participante refere a necessidade de mais células da glia. “Preciso com urgência de um transplante de células da Glia. Faz algum tempo que imensos pensamentos vêm tomando conta de mim e as células da Glia que tenho em meu corpo já não dão conta de manter as condições adequadas para meus neurônios sobreviverem e também para possibilitar a neuroplasticidade. Sem eles (os neurônios) e elas (células da Glia) como farei novas conexões para alavancar o meu pensar? Se não houver condições para a neuroplasticidade como poderei arriscar novos gestos, ensaiar outros movimentos, produzir novas ideias? [...] Como se pode ver, esse transplante é vital para mim”. (M. F., fisioterapeuta, 34 anos)

É nesta direção que Ortega (2009, p.14) ressalta que “as medidas neuroeducativas, aprimoramento cognitivo e outros tipos de práticas neuroascéticas se tornam moeda corrente, atingindo um caráter de quase obrigatoriedade numa sociedade que favorece selves ativos e empreendedores”.

Articulações finais Durante o desenvolvimento da ação artística que deu origem a este trabalho, procuramos fazer aproximações entre o campo das ciências, sobretudo no âmbito de uma crescente medicalização do corpo, e o das artes, no que se refere à problemática da doação de órgãos e tecidos e à inserção de uma proposta artística no circuito das artes. Isso envolveu questões relativas ao corpo na contemporaneidade como forma de provocar um tensionamento na política dos dois sistemas. Nesta direção, a ação Doações do Corpo foi constituída como uma forma de arte política, que buscou mobilizar o corpo numa ação, problematizando o sistema dos transplantes de órgãos e tecidos desde a perspectiva do receptor (uma posição vivenciada pelos participantes da ação, na medida em que precisavam se inscrever e passar por um processo de seleção para receber uma obra/órgão), na intersecção entre as ciências e as artes. A proposta incluiu a participação efetiva do público (do espectador), convidando-o a pensar sobre a temática e a se manifestar através da elaboração de uma produção escrita, justificando o desejo e/ou a necessidade de estar na fila de espera por um órgão que foi disponibilizado para doação, sob a forma de objeto artístico. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Um ponto importante encontrado nos textos dos participantes, que determinou o andamento da análise das justificativas que eles construíram para o recebimento dos ógãos/obras, foi a simbologia e a fantasmática envolvidas com a temática dos transplantes e a centralidade dos discursos sobre o coração como sendo a sede das emoções - em contraposição com o cérebro - que representaria o órgão da racionalidade, do ‘governo do eu’. Assim, embora o cérebro venha emergindo e concorrendo nos últimos anos como “o novo” definidor do que vem a ser o sujeito, nos parece que o coração – e suas “manifestações” interpretadas como emoções evidentes: “coração na boca”; “coração acelerado”, entre outras – vem mantendo a sua centralidade.

Colaboradores A concepção geral do artigo foi discutida pelos dois autores; Zenilda Cardozo Sartori redigiu o corpo principal do texto e Luís Henrique Sacchi dos Santos fez a sua revisão, apresentando sugestões e incorporando trechos à versão final. Referências BOURRIAUD, N. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CANEVACCI, M. Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. CAPONI, S. Da herança à localização cerebral: sobre o determinismo biológico de condutas indesejadas. Physis, v.17, n.2, p.343-52, 2007. COSTA, M.V. Estudos culturais e educação - um panorama. In: SILVEIRA, R.M.H. (Org.). Cultura, poder e educação: um debate sobre estudos culturais em educação. Canoas: Ed. da ULBRA, 2005. p.107-20. COUTO, E.; GOELLNER, S.V. (Orgs.). Corpos mutantes: ensaios sobre novas (d)eficiências corporais. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007. EHRENBERG. A. O sujeito cerebral. Psicol. Clin., v.21, n.1, p.187-213, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010356652009000100013>. Acesso em: 14 jan. 2010. FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0. Curitiba: Positivo, 2004. FISCHER, R.M.B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cad. Pesqui. CEDES, v.114, p.197-223, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/ a09n114.pdf> . Acesso em: 15 set. 2009. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. HARAWAY, D. Modest_Witness@Second_Millennium.Female Man©Meets_OncoMouse™: feminism and technoscience. New York: Routledge, 1997. LE BRETON, D. A síndrome de Frankenstein. In: SANT’ANNA, D. (Org.). Políticas do corpo. 2.ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. MONTEIRO, R.H. Imagens médicas entre a arte e a ciência: relações e trocas. Rev. Cinética, v.1, p.1-16, 2008. Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br/cep/ rosana_monteiro.htm>. Acesso em: 5 out. 2009. ORTEGA, F. Neurociências, neurocultura e auto-ajuda cerebral. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.13, n.31, p.247-60, 2009. Disponível em: <http:// www.interface.org.br/arquivos/aprovados/artigo144.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2010.

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SARTORI, Z.C.; SANTOS, L.H.S. Donación de órganos y tejidos: la centralidad del corazón y la emergencia del cerebro expresadas en proyecto de arte. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.635-48, jul./set. 2011. La centralidad del corazón y la emergencia del cerebro en textos de participantes de la acción artística ‘Donaciones del Cuerpo’, producidos con el intuito de postularse a la recepción de un órgano, bajo la forma de objeto artístico, se analizan a partir de autores que teorizan sobre el cuerpo en la contemporaneidad. Esta acción tuvo el objetivo de provocar la intersección entre artes y ciencias, situando el participante como receptor, a la espera por un trasplante y, al mismo tiempo, como el artista, buscando espacio para exponer sus trabajos. También se analiza un punto significativo evidenciado durante la investigación: que podemos llamar de simbología y fantasmática, presente en los discursos sobre trasplantes. Por fin, se discute la centralidad del corazón - como sede de las emociones - en competencia con el cerebro - órgano de la racionalidad, la instancia del propio ‘gobierno del yo’.

Palabras clave: Donación directa de tejido. Corazón. Cerebro. Arte. Recebido em 12/08/10. Aprovado em 11/01/11.

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artigos

Significados e sentidos das práticas de saúde: a ontologia fundamental e a reconstrução do cuidado em saúde*

Tatiana de Vasconcellos Anéas1 José Ricardo Carvalho de Mesquita Ayres2

ANÉAS, T.V.; AYRES, J.R.C.M. Meanings and senses of healthcare practices: fundamental ontology and the reconstruction of healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.651-62, jul./set. 2011. Healthcare is a topic currently being dealt with by authors within the field of public health. These practices and studies reflect two ways of conceiving of care that are apparently antagonistic. They are sometimes based on instrumentality, with emphasis on procedures and technical interventions, and sometimes with a focusing on the relationship between healthcare professionals and healthcare service users. Based on critical reading of this collection of studies, the aim of the present study was, rather than contrasting the two groups identified, to link them in their complementarity through using Martin Heidegger’s fundamental ontology. In Being and Time, Heidegger deconstructs the traditional ontology, to reconstruct a new ontology that seeks the fundamentals of human existence. Returning to these fundamentals can be seen to be essential for reconstructing healthcare and its practices.

Keywords: Healthcare. Existential phenomenology. Public healthcare practices.

O cuidado em saúde tem sido um tema abordado atualmente por autores da Saúde Coletiva. Essas práticas e estudos refletem dois modos aparentemente antagônicos de se conceber o cuidado, ora baseado na instrumentalidade, com ênfase nos procedimentos e nas intervenções técnicas, ora com foco na relação de encontro entre profissionais e usuários dos serviços de saúde. A partir de uma leitura crítica desse conjunto de estudos, procura-se não opor os dois grupos identificados, mas articulá-los em sua complementaridade por meio da ontologia fundamental de Martin Heidegger. Em Ser e Tempo, Heidegger desconstrói a ontologia tradicional para reconstruir uma nova ontologia que busque os fundamentos da existência humana. Um retorno aos fundamentos mostra-se essencial para uma reconstrução das práticas de saúde e do cuidado.

Palavras-chave: Cuidado em saúde. Fenomenologia-existencial. Práticas de saúde pública.

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Elaborado com base em Anéas (2010); pesquisa desenvolvida com bolsa CNPq. 1, 2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar. Clínicas, São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. tatianaaneas@usp.br

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SIGNIFICADOS E SENTIDOS DAS PRÁTICAS DE SAÚDE: ...

Introdução Um dos temas de que os estudiosos da Saúde Coletiva têm se aproximado é o do cuidado em saúde. O senso comum considera o cuidado em saúde como “[...] um conjunto de procedimentos tecnicamente orientados para o bom êxito de um certo tratamento” (Ayres, 2004a, p.74). Tal entendimento mantém a noção de cuidado em saúde em torno dos recursos e medidas terapêuticas e, também, nos procedimentos aplicados. Merhy (2000) discorre sobre tal concepção do cuidado em saúde a partir do discurso da chamada medicina tecnológica. Aponta nesta um empobrecimento do aspecto relacional, chamado pelo autor de tecnologias leves. Para o autor, a ênfase das práticas de saúde, predominantes em nossos dias, tende a recair exclusivamente sobre a articulação das chamadas tecnologias duras, ferramentas materiais utilizadas no cotidiano do cuidado, e nas tecnologias leves-duras, que são os saberes estruturados da clínica e da epidemiologia. Considera, porém, que, se por um lado, o aspecto relacional do cuidado aparece empobrecido nestas práticas, por outro, ele se mostra sempre relevante, não podendo ser simplesmente suprimido. O aspecto relacional, que se mantém à sombra, acaba por se reduzir a uma relação objetal, em que o outro (destinatário do cuidado) se apaga para se tornar apenas lugar de aplicação de procedimentos (Merhy, 2000). O ato médico fundado no cuidado é sempre uma interação entre duas pessoas. Porém, a operação técnica aparece, muitas vezes, separada da relação interpessoal. Mesmo a interação é dividida na relação com o outro, que se consolida apenas com a finalidade da obtenção de informações objetivas, em que se busca o que é relevante para o raciocínio clínico para assim estabelecer uma boa decisão assistencial. A interação se resume a uma conversa que é útil (Ayres, 2007). A pretensa cisão é percebida no cotidiano como uma desumanização das práticas de saúde. Tal forma não reconhece que o conhecimento científico e tecnológico estão, ambos, a serviço das necessidades humanas. Fica evidente, em tal cisão, a separação entre o que é considerado objetivo e o que é considerado subjetivo. A dimensão objetiva do cuidado em saúde traria a questão do controle da intervenção técnico-instrumental, enquanto a subjetiva traria a dimensão aberta e imponderável das inúmeras possibilidades humanas. Ocorre que, ainda que se observe na prática esta tendência de cisão, parece claro, também, que a dimensão técnica, em seus fundamentos científicos e operacionais, não se separa da dimensão ética implicada, necessariamente, nos aspectos relacionais pelos quais se realiza a atenção à saúde (Schraiber, 1997). Acreditamos que, para uma superação de tais modos cindidos e separados de se considerar o cuidado em saúde, conforme colocado por Merhy (2000), Ayres (2007) e Schraiber (1997), entre outros, deve-se retornar aos próprios fundamentos de tais concepções. Encontramos, na atualidade, diversos discursos inovadores na Saúde Coletiva que visam novas práticas, que buscam superar as cisões discutidas acima. Porém, para a efetivação destes discursos é necessário repensar de forma radical os pressupostos filosóficos e fundamentos em que as práticas se sustentam (Ayres, 2004a). Talvez por isso perceba-se uma crescente presença da filosofia na produção acadêmica da saúde. O conhecimento filosófico configura-se, com efeito, como um potente elemento crítico, enriquecendo as reflexões em torno da saúde, devido ao seu caráter questionador, seu convite a pensar conceitos, modelos e questões já dadas como fechadas e absolutas, possibilitando o repensar das práticas (Martins, 2004). A obra de Martin Heidegger emerge como um desses importantes contributos filosóficos progressivamente incorporados ao campo da saúde. Este filósofo traz em seu pensamento uma proposta radical de reconstrução das tradicionais concepções de homem, mundo e verdade, dando um fértil suporte para se revisitarem os fundamentos e acessarem os sentidos das práticas em saúde. Em Ser e Tempo, sua principal obra, Heidegger desconstrói o saber metafísico tradicional e a ontologia em que este está fundamentado, construindo sua ontologia fundamental, que tem, como base, o questionamento sobre a questão do ser a partir da crítica ao modo como a filosofia tem desenvolvido a reflexão sobre esta questão. Heidegger, com sua nova filosofia e superação da tradição, traz uma possibilidade de, por meio da compreensão da existência e do mundo, re-pensarmos, em seu desdobramento, as práticas em saúde e a questão do cuidado em saúde em seu sentido fundamental. 652

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Resgatar o sentido do cuidado em saúde possibilita revisitar a direção que tal questão tem tomado no cotidiano das práticas. Heidegger constrói, em sua obra, uma ontologia, e toda a ontologia visa voltar-se aos fundamentos. Em uma ontologia, não se tem como objetivo permanecer nas possibilidades singulares de se viver a vida, que escapam a este plano de abstração. O ontológico é a condição de possibilidade para a própria particularidade das ações e da existência, sendo seu plano originário. A aproximação à questão do cuidado em saúde do presente trabalho, por meio da filosofia de Heidegger, não será investigada nas particularidades das diversas possibilidades do cuidado em saúde no cotidiano. O objetivo é permanecer nos fundamentos e sentidos desta questão, entendendo que voltar-se ao sentido ontológico do cuidado é criar possibilidades de uma reconstrução prática que escapa, não obstante, aos seus alcances teóricos.

O uso da ontologia de Heidegger nas reflexões sobre as práticas de cuidado em saúde Há uma tentativa, de autores (Carvalho, Merighi, 2005; Sales, 1998; Simões, 1998) que utilizam a filosofia de Heidegger, especialmente de Ser e Tempo, de superarem e romperem com a tradição tecnocientífica. Enquanto esta última se volta para a tecnologia e seus recursos como forma de definir o cuidado em saúde, estes autores voltam-se ao polo oposto e buscam entender o sentido do cuidado apenas pela relação existente entre os Daseins envolvidos, entre aquele que cuida e aquele que é cuidado, a partir do encontro. É importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que não se deve considerar a tecnologia como única possibilidade em relação ao cuidado em saúde, há, também, a necessidade de não se cair na mesma armadilha em sentido oposto. Trata-se, portanto, não apenas de aproximar a questão do cuidado em saúde somente sob a ótica da relação entre os sujeitos envolvidos neste contexto. Considerar apenas o polo oposto é desconsiderar toda a complexa ontologia construída pelo filósofo, que busca, justamente através da questão do ser, entender a existência. Estes trabalhos, além de focarem na relação de encontro como fundamento do cuidado em saúde, também se baseiam na experiência singular dos envolvidos nesta relação de encontro. Paley (1998) também faz críticas, como as acima mencionadas, em relação a algumas reflexões na área da saúde que buscam utilizar a ontologia de Heidegger. Segundo o autor, muitas das produções são focadas na experiência vivida de forma descritiva, seja do cuidado, da doença etc. A questão da experiência vivida nos trabalhos que buscam uma interpretação a partir da ontologia de Heidegger, de acordo com o autor, é uma “traição” ao seu pensamento, e são incompatíveis com Heidegger. O autor concorda que os estudos que buscam uma interpretação das experiências vividas não trazem a totalidade do entendimento de Heidegger sobre o Dasein. Sob esta forma de interpretar, acabam deixando de lado partes essenciais do projeto heideggeriano, como o próprio estudo das relações em âmbito coletivo e a relação prática e ativa do Dasein no mundo. Estes pesquisadores estão sendo inconsistentes com a filosofia heideggeriana em três pontos: adotam o princípio da incorrigibilidade, que significa partir da impossibilidade de se questionar a experiência relatada pelo outro, sendo que tal princípio foi renegado por Heidegger; baseiam-se no modelo da ciência natural, o positivismo; separam o homem do mundo e mantêm a dicotomia sujeito-objeto cartesiana. Estes estudos estão baseados em uma concepção de subjetividade, pois desconsideram o próprio ser-no-mundo e estão imunes a qualquer correção externa, já que, sobre a experiência dos outros, não há como dizer que não exista e que seja falsa. Isto é uma traição ao pensamento de Heidegger, pois desconsidera a ontologia e está fixado na explicação cartesiana do homem, em que o indivíduo representa a sua realidade separada do mundo, separando a experiência e a realidade. De acordo com Mackey (2005), muitas pesquisas têm utilizado a fenomenologia como instrumento, fazendo uso do método fenomenológico sem, muitas vezes, fundamentarem as bases em que o método é construído, adaptando-o para as questões que lhes estão sendo colocadas. Em muitos trabalhos, há uma confusão em relação à distinção entre a filosofia fenomenológica e a metodologia. Muitos autores se referem à fenomenologia e à sua descrição apenas no método. A fenomenologia é utilizada como um método de pesquisa qualitativa, para coletar discursos dos sujeitos participantes. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Utilizar o pensamento de Heidegger para um estudo implica – ou deveria implicar – um compromisso com a sua ontologia e com a questão do ser. Para isso, é essencial considerar alguns conceitos da ontologia fundamental: o ser-no-mundo, os existenciais, o tempo, o espaço.

Do cuidado ontológico ao cuidado em saúde: o mundo e a instrumentalidade Primeiramente, é preciso deixar claro que a compreensão do que é o cuidado em saúde, tal como o compreendemos aqui, desdobra-se de uma compreensão ontológica do Cuidado3, já como efeito da própria ontologia fundamental que faz dele o elemento central para a compreensão da existência humana. Dito de outra forma, a concepção de cuidado em saúde que se vê como possibilidade para as práticas de saúde só é possível porque, antes de tudo, se assume o Cuidado em seu sentido ontológico (Ayres, 2004b). O Cuidado em sentido ontológico quer dizer: o homem sempre cuida. Mesmo nas relações de desprezo e de descuido, o homem cuida. O Cuidado, ontologicamente, segundo Heidegger (1986a), tem um lugar fundamental na existência humana. O Cuidado articula a totalidade da existência e a sustenta. Não se pode fazer referência a qualquer ação humana no mundo sem considerar o Cuidado em seu sentido ontológico. A própria temporalidade é o sentido do cuidado e revela a totalidade do Dasein (Figal, 2005; Nunes, 1992; Stein, 1988; Heidegger, 1986b). De acordo com Heidegger (1986a), o termo Dasein (também traduzido por seraí ou pre-sença, de da=aí e sein=ser) quer se referir ao fundamento da existência, mas ao contrário da tradição metafísica ocidental, quer apreendê-la já na indissociabilidade existente entre o humano, origem e destino de toda a ontologia, e o seu mundo. O humano, como Dasein, é, ao mesmo tempo, um ente entre todos os outros, mas todos os entes só são como tal para ele. Assim, a constituição fundamental do Dasein é ser-no-mundo. Este não tem a conotação de um dentro, como usualmente se refere aos objetos localizados em um espaço geográfico. Este não se refere a um junto a um mundo, no sentido de habitá-lo, na familiaridade. Considerando-se o Cuidado em sentido ontológico, conforme explicitado acima, o cuidado em saúde, como uma ação do Dasein, é um desdobramento. Antes do próprio cuidado em saúde como ação, o Dasein cuida no mundo. As ações de cuidado em saúde se dão no mundo. A qual mundo aqui se refere? Considerando o Dasein como aquele que é Cuidado, este sempre é Cuidado como ser-no-mundo. Deve-se resgatar, em relação ao sentido do cuidado em saúde, o mundo como um existencial. O mundo, aqui entendido, não é um espaço geométrico, determinado pela somatória dos entes que estão contidos neste espaço. Nesta concepção, ignora-se a concepção de mundo como espaço de abertura e desvelamento, passando a ser considerado como um conjunto de entes sem relação entre si e sem significado. O mundo é um existencial e, como tal, ele se abre e é desvelado pelo Dasein. O mundo não existe sem o Dasein (Heidegger, 1986a). O Dasein como ser-no-mundo se relaciona tanto com os entes dotados de eksistência, os outros homens, quanto com as coisas que não são dotadas de eksistência, os entes intramundanos. Dentre os entes intramundanos, nos interessam os entes instrumentais para o cuidado. Aqui resgatamos ontologicamente estes dois modos distintos de relação que permeiam as práticas de saúde e, especialmente, o cuidado em saúde. Iremos, primeiramente, nos voltar aos instrumentos de cuidado em saúde. 654

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3 Como forma de diferenciar as duas dimensões do cuidado, o Cuidado em sentido ontológico será representado pela letra maiúscula, e o cuidado em saúde, pela letra minúscula.


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O homem (Dasein), na cotidianidade do mundo, lida com os instrumentos no mundo que o circunda, sendo esta lida chamada ocupação. Com os instrumentos, nos ocupamos. O que interessa na questão do cuidado em saúde em relação aos instrumentos, como forma de resgatar o seu sentido, é que estes não são considerados como coisa em si, mas justamente a partir do seu uso, da sua instrumentalidade, da sua finalidade (Figal, 2005; Crossetti, 1997; Heidegger, 1986a). No cuidado em saúde deve-se considerar o modo de ser da instrumentalidade, como: manejo das medicações, procedimentos, materiais, protocolos etc. Ao se considerar estes entes como instrumentos, muda o modo de se estabelecer relação com estes na prática cotidiana, rompendo com a lógica que é baseada na perspectiva científica e que, atualmente, sustenta as práticas de cuidado que tanto consideramos como “desumanizadoras”. A ciência se volta para os objetos, visando apreendê-los em sua substancialidade e em sua objetivação coisificadora, sendo que os homens são colocados sobre este mesmo status. Os entes do mundo são coisas simplesmente dadas para a ciência a partir da manipulabilidade técnica do mundo, na mera aplicação de tecnologias (Duarte, 2004). A grande questão, colocada nesta assistência tecnológica à saúde, é que não se parte da instrumentalidade dos recursos e da abertura que estes promovem, mas fecha-se nas medidas e recursos em si. Há um certo apaixonamento da técnica consigo mesma, desconsiderando-se que as tecnologias como instrumentos para a serventia revelam em si a sua obra e não podem ser desconectadas desta. Há uma conexão incessante entre instrumentos de cuidado e as obras a que eles se prestam. O instrumento nunca é solto no mundo em si mesmo, mas é articulado em uma teia de conexões incessantes, que o faz parte de uma totalidade conjuntural (Figal, 2005; Heidegger, 1986a). Ao se desconsiderar esta teia conjuntural que conecta instrumentos e obras, sendo que sempre há um Dasein envolvido nesta rede, as intervenções regulam, disciplinam e controlam os corpos. O cuidado em saúde, em direção ao intervencionismo em si, de forma autoritária e fragmentada, não considera a totalidade da rede conjuntural que o circunda, e pode ser percebido: no modo como se organizam as ações e os serviços de saúde; na formulação das políticas de saúde; na relação médicopaciente; na relação dos serviços com a população, e na relação entre os diversos profissionais nas equipes de saúde (Ayres, 2004a). Isto significa que o Dasein não se relaciona solitariamente com o instrumento. Na ocupação com os instrumentos e suas obras, estes sempre se referem e estão articulados a outro Dasein, sejam portadores ou usuários do instrumento. Isto nos coloca e reafirma que o mundo é sempre compartilhado com outros Daseins. Esta é uma condição ontológica (Figal, 2005; Heidegger, 1986a). Esta condição ontológica colocada por Heidegger (1986a, b) nos impõe que as práticas em saúde sempre pressupõem um outro, por mais que os esforços das práticas sejam o de se fixarem nos recursos tecnológicos. Assim, a tentativa de apaixonamento pela tecnologia na tentativa de desconsiderar o outro Dasein é uma mera ilusão humana. Na conjuntura do mundo, em que se fundamentam as articulações entre os instrumentos e os Daseins, as relações que se estabelecem entre Dasein e instrumento, e entre Dasein e outro Dasein, são originalmente diferentes. O Dasein se ocupa dos instrumentos e se preocupa com outros Daseins. Este é um ponto extremamente importante para o cuidado em saúde, porém, diverge do cotidiano das práticas, que tende a considerar como sinônimo o ocupar-se dos instrumentos e o preocupar-se com os outros Daseins, resumindo os dois modos a um mesmo status existencial. A filosofia de Heidegger ajuda a realizar um resgate do fundamento da instrumentalidade, como forma de devolver as diferenças existenciais das coisas e dos Daseins, sem separá-los do mundo. Podemos utilizar o exemplo de Rivera e Herrera (2006) para ilustrar a assistência em saúde baseada na lógica dos entes simplesmente dados, e não dos instrumentos. De acordo com os autores, em um projeto de cuidado voltado às comunidades, o que se observa é o controle dos fatores de risco para a saúde; a assistência se dirige a intervir e controlar os riscos por meio de ações majoritariamente educativas, cujo educar é considerado, em seu fim, como uma necessidade de mudar os estilos de vida de uma população de uma forma predeterminada, sem considerar os sujeitos envolvidos no projeto. A rede que tece a teia do mundo entre instrumentos, obras e Daseins está rompida. Desconsideram-se as obras e os Daseins envolvidos. 655


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Outra imagem que confirma o exemplo acima é a grande imagem da assistência hospitalar, com as suas inovações tecnológicas: produtividade e atendimento para um grande número de pessoas em pouco tempo; a assistência voltada para a queixa principal do homem doente de forma restrita e voltada apenas à doença, sem considerar a totalidade da existência humana. Os entes, simplesmente dados tecnológicos a favor da assistência em saúde, permanecem em um lugar prioritário, colocando-se no meio da relação homem-homem (Crossetti, 1997). O resgate do instrumento em sua instrumentalidade, como primordial no cuidado em saúde, tem como proposta resgatar a totalidade do mundo e da existência humana, conectando entes e homens novamente, sem as fragmentações usualmente presentes pelo discurso científico. Vamos nos deter mais sobre como a filosofia de Ser e Tempo de Heidegger (1986a, 1996b) oferece suporte para o resgate desta teia de relações significativas. A própria instrumentalidade do cuidado em saúde é possível pois está fundada na compreensão, significância e discursividade, que são chamados, por Heidegger, de existenciais. Em torno destes existenciais que abrem o mundo, já compartilhamos os significados dos instrumentos de cuidado, já sabemos previamente o que significa uma medicação e um exame. Eles não trazem para o Dasein qualquer estranhamento. Os instrumentos já estão no cuidado, fazendo parte de uma totalidade significativa que é própria do ser-no-mundo. O Dasein, no seu mundo, possibilita ontologicamente a liberdade de dar sentido para os instrumentos, ou seja, de que estes possam se revelar dentro das possibilidades que constituem o serno-mundo. Lançado no mundo, o Dasein é poder-ser. O poder-ser são possibilidades abertas pelo Dasein, a partir de onde ele se situa, e não são possibilidades soltas e descontextualizadas (Figal, 2005; Heidegger, 1986b). Assim, onticamente, no cuidado em saúde, a compreensão conecta a instrumentalidade como sendo algo do mundo e que é significativo, porém, ao mesmo tempo, os instrumentos de cuidado também são revelados em suas possibilidades de serventia. A serventia, o para quê de uma medicação, ou procedimento, dizem respeito ao modo de ser-no-mundo do Dasein. Por exemplo, para um Dasein, uma medicação pode ser aquilo que traz a possibilidade, enquanto, para outro Dasein, pode ser justamente o contrário, aquilo que traz a impossibilidade.

Da instrumentalidade e do ser-com no cuidado em saúde O cuidado em saúde não é possível sem a presença de outro Dasein. A instrumentalidade, em seu para quê, sempre traz um para quem e um de quem conjuntamente. No uso de um instrumento, afirma, revela-se a presença de outro Dasein como ser-com. A questão do ser-com está implicada na relação que o Dasein estabelece com os outros Daseins. Quando na instrumentalidade há uma referência de um quem para outro quem, o que está em jogo é o ser-com. Portanto, a relação com o instrumento e com outro Dasein sempre se dá no mundo de modo compartilhado. O Dasein sempre é ser-com-os-outros. Como o instrumento deve ser considerado em relação ao mundo, o ser-com deve ser considerado em relação à mesma referência. O ser-com é ontológico e existencial. Como ser-com, o outro está sempre presente, mesmo que não esteja em relação direta. Mesmo sozinho, o outro está sempre referido. Diferentemente da relação instrumental através da ocupação, o ser-com se dá na preocupação, na solicitude. Esta forma diferenciada revela que o outro Dasein sempre solicita, e que é fundamentalmente impossível se relacionar com um Dasein como um ente intramundano, ou como objeto e coisa. Mesmo na tentativa – tão comum na perspectiva da ontologia tradicional – de buscar a dicotomia sujeito-objeto, o outro sempre solicita diferentemente de um ente intramundano (Figal, 2005; Heidegger, 1986a). Mesmo na referência apresentada de que o Dasein sempre é ser-com e que é impossível se desvincular de outro Dasein ontologicamente. Os limites com o outro não são o de separação e distinção entre eu e o outro, pois, ao mesmo tempo em que o Dasein é lançado no mundo e se reconhece como si-mesmo, ele também é misturado nos outros Daseins. Por isso, é errôneo nos referirmos ao ser-com como uma relação co-pessoal, pois, neste modo, se tem uma imagem eu-outro polarizada, em que a ligação entre os indivíduos se torna possível por meio da representação a partir da 656

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consciência individual de cada um. Esta concepção impede o envolver-se que funda verdadeiramente a relação entre os Daseins. Claro que não se pode negar que há algo que faz com que o Dasein se reconheça como si-mesmo e se identifique como tal, apesar de ser fundamentalmente misturado. O que possibilita tal fenômeno é a facticidade de estar lançado no mundo em uma contingência particular em que se abrem possibilidades e se fecham outras. O que traz a singularidade não é a consciência e as suas representações, mas sim o lugar em que o Dasein é lançado (em uma dada família, em uma dada casa etc.), sendo que esta condição não traz um determinismo em relação à existência, mas, sim, possibilidades de desdobramento e escolhas de projetos. Aqui está a pessoalidade. Este si-mesmo, porém, também é misturado com os outros Daseins. Este modo misturado de ser-com no mundo é possível por estar o Dasein em queda no mundo. Na queda, como ser-com, o Dasein está sob a forma do a gente. Sob a forma do a gente, que é próprio da cotidianidade do Dasein, há uma espécie de submissão em relação aos outros, sob a forma de uma impessoalidade. Na queda, o Dasein, na relação com os outros Daseins, está sob a forma da impessoalidade e da familiaridade (Figal, 2005; Vattimo, 1996; Heidegger, 1986a). Na impessoalidade, o Dasein se mistura com os outros Daseins no mundo, sendo assim absorvido por estes. Os discursos sob este modo de ser podem ser percebidos através do falatório, da curiosidade e da ambiguidade. A relação com os outros no mundo cotidiano é balizada pelas interpretações coletivas e, assim, vai se fazendo e falando o que outros falam. Este falatório é uma espécie de submissão a um modo comum de agir. A queda como um constante cair de si-mesmo também é um perder-se do Dasein. Este perder-se de si-mesmo é a chamada impropriedade. A impropriedade é este modo em que o Dasein se afasta de si-mesmo em direção a um modo comum de agir, de utilizar instrumentos e de se relacionar com os outros através do falatório. Porém, como já afirmado, não se deve entender a impropriedade como algo valorativo e de menos valia em relação aos comportamentos do Dasein, mas como um modo que não podemos excluir da existência humana, e também como possibilitador de fusões de horizontes nas interpretações e entendimentos de uma vida comum (Figal, 2005; Vattimo, 1996; Heidegger, 1986a). Se, na medianidade do cotidiano, as ações e os comportamentos transcorrem através da impropriedade, nas práticas de saúde estes também podem ser observados. Existe forte tendência a se assumir que, do mesmo modo como se cuida de um, deve-se cuidar de todos. Isto revela a necessidade de nivelar as práticas. Assim, a impropriedade nas práticas de saúde não é determinada pelo que se faz, mas como vão se desenvolvendo as ações de nivelamento. Uma ação que pode revelar estas necessidades são as chamadas rotinas da assistência. Aqui a rotina é considerada sob a forma de um fazer quase automatizado que não é questionado em si. As rotinas, mesmo sob a forma da nãoapropriação, constituem um importante lugar para a organização do espaço da assistência. A rotina vai desde a questão dos horários de atendimento, fluxograma e outras questões organizativas da atenção à saúde, até os procedimentos, protocolos que orientam as condutas etc. As rotinas, ao mesmo tempo em que ajudam a organização do cotidiano de trabalho, também trazem outro aspecto importante na reflexão das práticas de saúde. A rotina também pode possibilitar a desresponsabilização, pois sobre as rotinas normatizadas, quando não refletidas e apropriadas, não há o que se possa fazer, e a rotina acaba por justificar a si mesma (Crosseti, 1997). Porém, problemática não é a rotina em si, mas o modo como ela vai se realizando sob a forma de fechamento, em que não há espaço para questionamento e desnaturalização. Ela é assim porque simplesmente é. O que traz o fechamento para o Dasein na impropriedade, que pode ser reconhecido no cuidado em saúde, não é o fato em si, no fazer ou não fazer, mas é o não-reconhecimento de que mesmo a própria desresponsabilização é uma escolha e que há outras possibilidades de se estar nas práticas. E de onde vem o impulso que, nas práticas de saúde, como em outras práticas, pode permitir a ruptura com a impropriedade? O que fundamenta, nas práticas, a potencialidade de uma apropriação de outras possibilidades do Dasein é, segundo Heidegger, a angústia. A angústia abre o ser humano para o seu poder-ser-próprio como escolhedor dos caminhos de sua existência. Este poder-ser-si-mesmo acomete o Dasein através de um clamor, uma convocação da voz 657


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da consciência. O clamor da consciência rompe com o falatório, com a ambiguidade e com a curiosidade, que são discursividades do modo de ser da impropriedade. O que abre para a tonalidade afetiva da angústia e para o clamor da consciência é a temporalidade do Dasein marcada pelo ser-paraa-morte. A antecipação da morte e abertura à finitude do Dasein coloca que há o tempo na existência e que esta não é infinita. Ao Dasein é destinado ser escolhedor. O clamor da consciência o convoca a esta destinação essencial, e este pode escolher, na decisão, tomar para si esta escolha de poder-serpróprio, ou não (Figal, 2005; Vattimo, 1996; Heidegger, 1986b). O clamor da consciência sob a tonalidade afetiva da angústia acomete o Dasein sem motivo e é uma experiência radical. Porém, também há modalizações deste modo de ser que podem ser exercitadas nas práticas da saúde como forma de uma apropriação refletida sobre o cotidiano, em que é possível que o Dasein se perceba como um protagonista naquilo em que está envolvido. Sob esta modalização, encontra-se a perspectiva do cuidado em saúde, conforme será explicitado adiante. Portanto, vai se tornando clara a interferência da impropriedade nas práticas de saúde, ao envolver a relação com outros Daseins através do falatório e das normatizações niveladoras que envolvem articuladamente o uso dos instrumentos próprios para as ações de assistência em saúde. O Dasein, ontologicamente como ser-com, pode estar com outro Dasein das mais variadas formas ônticas possíveis. Polarizando-se radicalmente, podem-se apontar duas formas de preocupação. Os polos opostos mostram as formas radicais de se estabelecer relação com outro Dasein, porém, as relações não se resumem a estes dois modos. Existem infinitas multiplicidades de variações possíveis. Estes modos podem nos auxiliar no entendimento do sentido do cuidado. Em um polo, tem-se a preocupação dominadora, em que o Dasein salta por cima de outro Dasein através do poder e do controle. No outro polo, a preocupação libertadora leva o Dasein a aparecer diante do outro e a buscar libertá-lo em seu próprio modo de ser-no-mundo (Figal, 2005; Heidegger, 1986a). Estes dois modos são importantes, na questão das práticas de saúde, em relação à reflexão da própria modulação de um encontro que tem como objetivo o cuidado. Se relacionar com o outro sob a forma de uma preocupação dominadora não significa transformá-lo em ente intramundano, em coisa. Tal modo é uma possibilidade do Dasein, como ser-com, e também ocorre por conta da solicitação que outro Dasein provoca. Estas afirmações visam trazer uma melhor compreensão das relações entre Daseins ontologicamente e, por isso, não implicam qualquer juízo de valor, embora não se neguem seus sentidos valorativos. Quando se trata de uma ontologia, não se está buscando um movimento prescritivo, mas a compreensão dos valores inscritos como possibilidade na existência. Na compreensão do cuidado em saúde, em sua dimensão ôntica, como parte das ações cotidianas, é preciso considerar as escolhas valorativas implicadas, a ética e a moral nestas relações. Considerando-se todo o valor moral das práticas de saúde, resgata-se o que, ontologicamente, se relacionou acima como uma atitude de solicitude libertadora. Portanto, diferentemente de uma prática de assistência mergulhada na impropriedade, o cuidado propriamente dito tem em si um valor moral e ético, direcionando as escolhas nas práticas de saúde. É importante deixar claro esse modo particular de ser do cuidado, diferenciando-o no fazer cotidiano das ações de saúde. De acordo com Crosetti (1995), a solicitude libertadora é um estar aberto ao outro, um se deixar tocar pelo outro, deixando emergir a sua necessidade através da formação de um vínculo disposto à escuta. Cabe ressaltar que a autora mencionada acima desenvolveu o seu trabalho na enfermagem, mas que o presente trabalho, ao buscar uma aproximação do sentido do cuidado em saúde, não foca em disciplinas específicas. No cuidado em saúde, neste sentido forte de solicitude libertadora, a presença do cuidador frente ao outro nunca poderá ser a de um estrito aplicador de conhecimentos, pois um saber instrumental absolutizado substituiria a responsabilidade e as potencialidades de cuidador(es) e cuidando(s) apropriarem-se criativamente da instrumentalidade disponível nas práticas de saúde para a construção de suas possibilidades existenciais mais autênticas, para o advir de seus projetos de felicidade (Ayres, 2004a). Os protagonistas do cuidado ocupam lugares distintos, mas tais diferenças não verticalizam a relação. Um dos protagonistas, o cuidador, detém um saber instrumental específico, mas o outro, o destinatário 658

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das ações de cuidado, mesmo fragilizado pelo seu padecimento, e por isso mesmo, detém um saber prático indispensável para as escolhas relevantes ao seu cuidado. No voltar-se à presença do outro no cuidado em saúde, deve-se ter claramente quem é este outro. Deve-se compreender e ter uma escuta deste outro como aquele que construiu e constrói uma história particular de existência, mas que não é separado do mundo que o rodeia em seus significados compartilhados. Tal modo de ser no cuidado em saúde possibilita acolhimento, vínculo e responsabilização de quem cuida e daquele que é cuidado como poder-ser escolhedor. Sob o modo de ser do cuidado, o espaço do encontro se torna um espaço comunicacional. Este modo de deixar aparecer o outro na responsabilização faz com que os protagonistas possam estar livres e reconhecer limites e possibilidades de cada um dos envolvidos (Ayres, 2004a). Assim como Ayres (2004a) e Crosetti (1995), Pessanha (2000) também se refere ao cuidado como este deixar aparecer o outro Dasein, com a sua facticidade e suas possibilidades, sempre considerando pertencente ao mundo. Para Pessanha (2000, p.115), “[...] haverá cuidado humano lá onde favoreça a conversão ontológica do homem conjugado na voz impessoal para o homem da primeira pessoa”. A questão da abertura ao outro em sua pessoalidade de forma libertadora, através da escuta e da comunicação, nos faz retomar Heidegger em Ser e Tempo. O filósofo nos traz que a escuta ontologicamente revela o ser-com, pois sempre escutamos o mundo e o outro em uma reciprocidade. O Dasein se comunica, pois escuta. Sendo que ele escuta, pois compreende e está junto ao mundo. A escuta é em si significativa, pois o Dasein nunca ouve meros barulhos. Estes sempre estarão imersos em possibilidades significativas e já são interpretados. A escuta, aqui, é considerada como aquilo que, vinculado à compreensão, traz a significação, através da linguagem (Heidegger, 1986a). Mas o escutar o outro em sua reciprocidade pode ser interpretado de diversas maneiras. Por isso, é importante trazer as modalizações na escuta. Quando o horizonte das práticas é a morfofuncionalidade e seus riscos, em uma racionalidade biomédica estrita, a escuta caminhará por esta direção, em torno dos dados objetivos capazes de levar a diagnósticos e proposições desta natureza, e então os demais aspectos da existência se reduzem a ruídos. Ao voltar-se para escutar o Dasein em suas formas e necessidades mais próprias de ocupar-se e preocupar-se, então o que é colocado em evidência é a identidade eu-outro e suas mútuas responsabilidades frente ao projeto de felicidade que nos interpela (Ayres, 2004a). Assim, o genuíno encontro no cuidado é possível a partir da disponibilidade de uma escuta que traz a pessoalidade do Dasein. O profissional se abre a esta escuta, não como porta-voz do discurso instrumental, mas como aquele que acolhe o outro e torna as suas demandas válidas para o direcionamento de suas intervenções. O cuidado se dá em um contínuo das relações entre usuários e serviços de saúde, em todas as oportunidades que se faça possível entender aquilo que o outro traz em relação à sua existência (Ayres, 2004b). A questão da identidade é vinculada à responsabilidade, pois quando, no cuidado, os envolvidos se apropriam da questão da responsabilidade de cada um, definem-se os lugares de cada partícipe. Esta delimitação dos lugares possibilita a consolidação das identidades. Ao nos referirmos às identidades, não se deve considerar o termo como algo estanque, uma essência, mas como um ver-se em relação que se reconstrói constantemente, tanto em relação ao si-mesmo como ao outro (Ayres, 2004b). Scudder (1990) sustenta que o cuidado em saúde tem como objetivo a liberdade de outro Dasein, através das habilidades e recursos, através da formulação e execução de um plano de ação que fomenta o bem-estar de um paciente de acordo com o modo como ele significa o que é bem-estar. Quando o Dasein está padecido, há uma restrição e um fechamento. Considerando-se a facticidade do Dasein e o modo como este se projeta em possibilidades, considerando-se a restrição do padecimento, a questão do prognóstico deve ser revista. O prognóstico deve ser considerado não a partir da objetividade categorizada da doença, mas a questão do prognóstico deve ser considerada em relação à abertura de possibilidades. Tendo-se como horizonte as possibilidades, muda-se a perspectiva em torno do prognóstico no cuidado em saúde. Esse autor constrói uma interessante discussão sobre o cuidado, tendo como base a questão da autenticidade e inautenticidade. O próprio autor reconhece que, em sua conceituação, há uma dimensão de moralidade implicada na relação com o outro, pretensão alheia a Ser e Tempo. Porém, em 659


SIGNIFICADOS E SENTIDOS DAS PRÁTICAS DE SAÚDE: ...

relação ao cuidado autêntico e inautêntico relatado pelo autor, estamos falando já de práticas em saúde, e não dos fundamentos da existência humana. O autor utiliza a terminologia autenticidade como forma de se referir ao que, no presente trabalho, chamamos apenas de cuidado em saúde. O próprio cuidado aqui concebido já é este modo ético e valorativo. Existe uma concepção bastante disseminada de que o cuidado tem relação direta com a dependência. Nesta concepção, aquele que necessita de cuidado é considerado sem direitos e sem poder questionar criticamente sobre o modo como está sendo cuidado. Nesta concepção, aquele que está sofrendo um padecimento, muitas vezes, não consegue questionar o modo como tem sido assistido. Na dependência, não se é capaz de escolha. Mas recorrendo ao acima discutido, podemos apontar que, nesse caso, estamos frente à atenção à saúde, ao modo de uma solicitude que salta sobre o outro e o domina, não caracterizando um autêntico cuidado. Sob esta forma de atenção à saúde, nega-se a possibilidade de que o outro possa ser escolhedor do próprio cuidado. O cuidado como busca da liberdade implica rever a concepção de cuidado como dependência, conforme afirmado acima. O cuidado em saúde implica ajudar, na relação com o outro, a se reconhecerem as possibilidades a partir da facticidade de uma atualidade que pode trazer restrição por conta de um padecimento. O cuidado é um deixar que o outro possa, mesmo em suas restrições fácticas, escolher dentre as suas possibilidades. Possibilidades que, muitas vezes, ainda estão muito encobertas, e é tarefa do cuidado poder abrir espaços para que estas possam vir à luz e trazer uma maior liberdade. Sintetizando a reflexão do autor, o modo em que aqui é considerado o cuidado em saúde é esta forma de estar com o outro propiciando que este possa ser escolhedor e possa exercer a sua liberdade. Concomitantemente, possibilita-se acolhimento, vínculo e responsabilização.

Considerações finais Existe uma visível tendência recente, embora ainda muito discreta, de uma reflexão na Saúde Coletiva apoiada na filosofia de Martin Heidegger. Esta empreitada exige cautela, pois a radical ruptura deste pensamento com a ontologia tradicional, base hegemônica de nossas concepções e práticas em saúde, pode nos induzir facilmente a equívocos e mal-entendidos. Ao nos aventurarmos nesta tarefa, corremos o risco de trair a totalidade da ontologia e utilizar os conceitos de ser e tempo de forma isolada, não alcançando seu sentido mais próprio. Além disso, a transposição de conceitos da ontologia fundamental para as práticas de saúde pode se mostrar estéril, se desconsiderarmos as necessárias mediações para conduzir a reflexão de um ao outro plano. A ontologia se refere aos fundamentos, àquilo que possibilita a própria prática, não ao seu operar concreto. Muitos de nossos trabalhos que tentam romper com a ontologia tradicional, através da ontologia fundamental, acabam não conseguindo fazê-lo, deixando-nos presos ao modelo cartesiano de homem e mundo. Tal permanência, conforme este trabalho quis evidenciar, não tem consequências apenas teóricas, mas interfere nas práticas em saúde e no próprio entendimento sobre o cuidado em saúde. Outro aspecto a que se deve estar atento é que o fato de aceitarmos alguns convites postos por Ser e Tempo à reconstrução de nossas concepções, não significa que concordemos e acompanhemos seu pensamento em sua totalidade e às suas últimas consequências. Aliás, seu próprio autor, ao longo de seu caminho filosófico, extrai diferentes desdobramentos dessa sua obra magna, alguns até conflitantes entre si (Habermas, 2000). Há, por outro lado, uma série de outras contribuições filosóficas, algumas até fortemente influenciadas pela obra de Heidegger, como a Hermenêutica Filosófica, de Gadamer (2004), que complementam ou releem as perspectivas abertas por Ser e Tempo em direções que também se mostram muito fecundas para sustentar esforços reconstrutivos no campo das práticas de saúde. Mas estas dificuldades e complexidade não nos devem desestimular. Ao contrário, pois, apesar de arriscada, esta empresa tem demonstrado ser extremamente fecunda. A ontologia fundamental abre efetivamente novas possibilidades de se entenderem os sentidos e significados do cuidado em saúde, aportando, como vimos, ricas contribuições aos repertórios conceituais da saúde. É no sentido de responder a esse desafio que empreendemos essa revisita à arquitetura geral da ontologia fundamental, 660

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de Ser e Tempo, cotejada com algumas de suas implicações sobre questões filosóficas relacionadas ao cuidado em saúde, esperando colaborar para diminuir os riscos e explorar as potencialidades da importante entrada do complexo pensamento heideggeriano no universo teórico-filosófico da saúde.

Colaboradores Tatiana Anéas realizou o trabalho de revisão crítica e redação do artigo. José Ricardo Carvalho de Mesquita Ayres orientou o trabalho e participou da redação do manuscrito. Referências ANÉAS, T.V.A. Significados e sentidos das práticas de saúde: a ontologia fundamental e a reconstrução do cuidado em saúde. 2010. Dissertação (Mestrado) - Medicina Preventiva, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010. AYRES, J.R.C.M. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis, v.17, n.1, p.43-62, 2007. ______. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.8, n.14, p.73-92, 2004a. ______. O Cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc., v.13, n.3. p.16-29, 2004b. CARVALHO, M.V.B.; MERIGHI, M.A.B. O cuidar no processo de morrer na percepção de mulheres com câncer: uma atitude fenomenológica. Rev. Latino-Am. Enferm., v.13, n.6, p.951-9, 2005. CROSSETTI, M.G.O. Processo de cuidar: uma aproximação à questão existencial da enfermagem. 1997. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 1997. DUARTE, A. Heidegger e a possibilidade de uma antropologia existencial. Nat. Hum., v.6, n.1, p.29-51, 2004. FIGAL, G. Martin Heidegger: fenomenologia da liberdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. GADAMER, H.G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2004. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 2001. ______. Ser e tempo: parte I. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1986a. ______. Ser e tempo: parte II. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1986b. MACKEY, S. Phenomenological nursing research: methodological insights derived from Heidegger’s interpretive phenomenology. Int. J. Nurs. Stud., v.42, n.2, p.179-86, 2005. MARTINS, A. Filosofia e saúde: métodos genealógico e filosófico-conceitual. Cad. Saude Publica, v.20, n.4, p.950-8, 2004.

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ANÉAS, T.V.; AYRES, J.R.C.M. Significados y sentidos de las prácticas de salud: la ontología fundamental y la reconstrucción del cuidado en salud. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.651-62, jul./set. 2011. El cuidado em salud ha sido una cuestión tratada actualmente por los autores de La Salud Colectiva. Estas prácticas y estúdios reflejan dos maneras aparentemente antagónicas de concebir la atención, a veces basadas en la instrumentación, com énfasis en los procedimientos y técnicas de intervención, a veces com un enfoque en la relación entre profesionales y usuarios de los servicios de salud. De una lectura crítica de esta serie de estudios, buscase non oponerse a los dos grupos identificados, sino combinarlos em su complementariedad a través de la ontología fundamental de Martin Heidegger. Un retorno a esos fundamentos se revela esencial para la reconstrucción de las prácticas de salud y atención.

Palabras clave: Cuidado salud. Fenomenología existencial. Prácticas de salud publica. Recebido em 01/03/10. Aprovado em 04/04/11.

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Pesquisa qualitativa, cartografia e saúde: conexões

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Sabrina Helena Ferigato1 Sérgio Resende Carvalho2

FERIGATO, S.H.; CARVALHO, S.R. Qualitative research, cartography and healthcare: connections. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.663-75, jul./set. 2011.

In this literature review study, we sought to explore the frontiers between the production of healthcare knowledge, qualitative research and cartography. We started with a brief retrospective look at the historical construction of qualitative research in general, followed by presentation of cartographic investigation as a possible method for qualitative healthcare research. After presenting the conceptual basis of this method for knowledge production, we identified its potential and challenges with regard to developing research within the field of public health.

Keywords: Cartography. Qualitative research. Healthcare.

Trata-se de uma revisão bibliográfica para explorar as fronteiras entre a produção de conhecimento em saúde, as pesquisas qualitativas e a cartografia. Iniciamos com uma breve retrospectiva sobre a construção histórica das pesquisas qualitativas em geral, para, posteriormente, apresentarmos a investigação cartográfica como método possível para as pesquisas qualitativas em saúde. Uma vez apresentados os aspectos conceituais desse modo de produção de conhecimento, identificamos suas potencialidades e desafios para o desenvolvimento das pesquisas no campo da Saúde Coletiva.

Palavras-chave: Cartografia. Pesquisa qualitativa. Saúde.

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* Texto inédito, produzido a partir de temas que são objeto de estudo do grupo de pesquisa “Conexões: Políticas da Subjetividade e Saúde Coletiva” (PósGraduação em Saúde Coletiva/ Departamento de Medicina Preventiva e Social – FCM/UNICAMP). A primeira autora é bolsista Capes, e, durante a fase de elaboração do artigo, o segundo autor contava com apoio da Fapesp. 1,2 Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Caixa Postal 6111. Barão Geraldo. Campinas,SP, Brasil. 13.083-970. sabrinaferigato@gmail.com

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Introdução Este trabalho se destina ao estudo da cartografia como método de pesquisa, em sua interface com as pesquisas qualitativas no campo da saúde – o que consiste em um importante exercício teórico para a atualidade mediante a constatação de que uma quantidade significativa da produção de conhecimento no campo da saúde pública resulta de pesquisas que adotam metodologias denominadas como qualitativas, sem que haja necessariamente uma reflexão sobre as possibilidades e limites de tais metodologias, bem como sobre as aproximações e distinções entre estas e outras propostas metodológicas. Adotaremos, para este trabalho, o método de revisão bibliográfica. Essa revisão, dita de outra maneira, refere-se à leitura como gesto, como obra (Orlandi, 1996). Defrontamo-nos com um exercício de aproximações e confrontos com os textos, nos aprofundando e mergulhando nas linhas do nosso interesse – produção-criação-re-criação no ato de ler e escrever. Como diriam Deleuze e Guattari (1995), trata-se de uma abordagem rizomática dos textos, que os coloca em diálogo, em acoplamento, para a criação de novas leituras. Com essa abordagem, buscaremos, primeiramente, refletir sobre as metodologias de caráter qualitativo e, na sequência, explorar as possibilidades abertas pela cartografia para esse campo, com especial interesse para a produção de conhecimento em saúde.

A pesquisa qualitativa Até o início do século XX, as metodologias de pesquisas qualitativas emergem num contexto científico marcado pela proximidade com os interesses das políticas hegemônicas e pela abordagem positivista, que condicionava seus conceitos, métodos e técnicas. Neste contexto, é dada ênfase a essa nova metodologia, com o intuito de responder às questões que emergiam do processo de pesquisar, para as quais os métodos quantitativos tradicionais mostravam-se insuficientes. De acordo com Denzin e Lincoln (2005), a palavra qualitativa implica uma ênfase sobre as qualidades das entidades, sobre os processos e os significados que não são examinados ou medidos experimentalmente em termos de quantidade, quantia, intensidade ou frequência. Ele ressalta que a competência da pesquisa qualitativa é o mundo da experiência vivida. A etnografia proposta pela Antropologia Social, a partir da vivência direta do pesquisador na realidade onde o objeto está inserido, marca o pioneirismo das metodologias qualitativas de pesquisa, em especial a partir dos estudos de Malinowski desenvolvidos na década de 1920. Formas de abordagem como essa vêm apresentando significativo avanço nos últimos anos. Esse avanço não se situa apenas na produção de metodologias alternativas aos tradicionais métodos quantitativos, mas carrega a marca de um redimensionamento do encontro que se dá no ato de pesquisar, entre pesquisador e objeto de pesquisa. Radcliffe-Brown, Margaret Mead, Gregory Bateson e Malinowski são alguns dos “etnógrafos solitários” que estão na origem da etnografia clássica, que vai de 1900 a 1945 (Denzin, Lincoln, 2005). Nesse período, os pesquisadores qualitativos escreveram trabalhos retratando com ‘objetividade’ a sua experiência de campo. No centro de suas preocupações, identificamos a tentativa de oferecer uma interpretação válida, confiável e objetiva dos fatos observados. Após a década de 1950, o conjunto de trabalhos que caracterizam a fase moderna da investigação qualitativa é marcado pela tentativa de construção de estudos qualitativos de processos sociais, entre os quais, aqueles que faziam referência a condutas desviantes e ao controle social nas escolas e na sociedade em geral. Denzin e Lincoln (2005) consideram o trabalho de Becker et al. (1961) – Boys in White - como um marco desse período. Caracteriza essa investigação, a construção de uma metodologia qualitativa que buscava ser “tão rigorosa” quanto a pesquisa quantitativa, por meio da combinação de observação participante, entrevistas abertas e uma análise cuidadosa dos materiais por intermédio da ampla utilização de critérios estatísticos. Muitas destas características e posicionamentos seguem presentes, constituindo uma porta de entrada para o campo para muitos iniciantes da pesquisa qualitativa. 664

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Constatações como esta sustentam, em parte, a afirmação de que infelizmente, pesquisa qualitativa, em muitos formatos (observação, participação, entrevista, etnografia), serve como uma metáfora para o conhecimento, o poder e a verdade colonial. A metáfora funciona desta maneira. Pesquisa - quantitativa e qualitativa - é ciência. A pesquisa nos dá o fundamental para o informe e a representação do “outro”. No contexto colonial, a pesquisa se torna um caminho objetivo de representar o outro de pele escura para o mundo branco. (Denzin, Lincoln 2005, p.1)

Essa citação nos alerta para o fato de que a simples afirmação do adjetivo “qualitativo” não nos garante o compromisso com valores como justiça e a equidade uma vez que muitas formulações desta modalidade de investigação podem seguir comprometidas com uma maneira de conhecer, entender e controlar o “outro”, considerado como exótico, estrangeiro, desviante ou problemático (Vidich, Liman apud Denzin, Lincoln, 2005). Nas décadas que se seguiram até os dias de hoje, vem ocorrendo uma complexificação crescente do campo das metodologias qualitativas, que passam a ser empregadas em outras disciplinas científicas sociais e comportamentais, incluindo: a Educação (especialmente o trabalho de Dewey), a História, as Ciências Políticas, a Medicina, a Enfermagem, o Trabalho Social, e a Comunicação (Denzin, Lincoln, 2005). Além da ampliação da variedade das disciplinas que vieram a incorporar as investigações qualitativas, amplia-se também a diversidade de metodologias e correntes teóricas alternativas ao positivismo, que passam a ser utilizadas como referência para os pesquisadores qualitativistas. Entre essas correntes, podemos citar: a tradição britânica, as tradições pragmáticas, naturalistas e interpretativas americanas, as perspectivas estruturais e pós-estruturais (marxistas semióticas, hermenêuticas, fenomenológicas), além dos estudos feministas, os estudos latinos e afro-americanos, entre outros (Denzin, Lincoln 2005). Essas linhas tradicionais mostram, por si só, que é um erro pensar que todos os pesquisadores qualitativistas têm as mesmas visões em relação ao modo de pesquisar ou ao ethos do pesquisador. Para Denzin e Lincoln (2005), as diferenças positivistas, pós-positivistas e pósestruturais definem os diferentes discursos construídos no universo das pesquisas qualitativas. Para esses autores, os positivistas defendem a ideia de que a realidade a ser estudada é passível de ser apreendida em relatos objetivos, num sistema de representações de verdade. Já para os pós-positivistas, é possível produzir relatos apenas parcialmente objetivos do objeto em questão, pois o mesmo pode ser abordado por uma variedade grande de métodos, sempre imperfeitos. Neste trabalho, daremos maior enfoque à perspectiva pós-estruturalista, que referencia o método de pesquisa no qual iremos nos aprofundar posteriormente – a cartografia. Para os pós-estruturalistas, é impossível captar totalmente o significado de uma ação, de um texto ou de um objeto, pois a linguagem é entendida como um sistema instável de referentes (Denzin, Lincoln, 2005). Com base nessa pequena retrospectiva, entendemos que a pesquisa qualitativa significa diferentes coisas em distintos momentos. Mas, embora traçando diferentes abordagens teóricas, todo trabalho de pesquisa que se define como qualitativo deve levar em conta a complexidade histórica do campo, o contexto do objeto pesquisado e a experiência vivida. Investigadores qualitativos tencionam a natureza socialmente construída da realidade, a relação íntima entre o pesquisador e o que é estudado, e os constrangimentos situacionais que formatam a pesquisa. Tais pesquisadores enfatizam a natureza intrinsecamente valorativa da pesquisa. (Denzin, Lincoln, 2005, p.10)

Investigação qualitativa é, portanto, uma atividade que se afirma a partir do contexto situacional, da localização e implicação do observador em relação ao objeto e seu entorno. Esta mudança paradigmática marca uma tendência dessa forma de abordagem rumo a um compromisso com a mudança. Para Denzin e Lincoln (2005), isso se refere a um conjunto de práticas materiais (como notas de campo, entrevistas, conversações, fotografias, narrativas e memórias de si) que possibilitam tornar o mundo visível e transformá-lo a partir do ato de pesquisar. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Desta forma, o pesquisador procura utilizar um amplo arcabouço de métodos de pesquisa buscando melhor entender o foco de atenção de seu estudo. É sempre bom lembrar que, neste contexto, cada prática torna o mundo visível de diferentes maneiras. Dentro das múltiplas possibilidades que se abrem com as metodologias qualitativas, buscaremos discutir certo modo de trazer o mundo ao campo das visibilidades e dos enunciados – a investigação cartográfica. Para isso, é importante esclarecer, mais uma vez, que este trabalho constitui um exercício de traçar aproximações possíveis entre a pesquisa qualitativa e a cartografia, e não de “enquadrar” as práticas cartográficas no campo exclusivamente qualitativo da produção de conhecimento. Embora não seja objeto deste estudo realizar análises comparativas entre pesquisas quantitativas e qualitativas, cabe ressaltar que a cartografia também pode fazer uso de uma multiplicidade de abordagens não apenas qualitativas. Ou seja, pesquisas quantitativas e qualitativas podem constituir práticas cartográficas. Nosso esforço será o de identificar zonas de comunidade e de distinguibilidade entre a cartografia e as pesquisas qualitativas em geral que merecem ser destacadas. Por exemplo, as práticas interpretativas da realidade que são centrais no universo de muitas metodologias qualitativas – como a hermenêutica, por exemplo – não têm centralidade na cartografia. Para os cartógrafos, pesquisar não é necessariamente interpretar o mundo, nem compreender a realidade, trata-se de produzir o mundo, construir realidades. Além disso, alguns formatos de pesquisas qualitativas também podem dar destaque à linha representacional, da qual os cartógrafos buscam enfaticamente escapar (Passos, Kastrup, Escóssia, 2009). No entanto existem importantes zonas de comunidade entre as pesquisas qualitativas e a cartografia, especialmente no que se refere a pesquisar e acompanhar processos, a experiência de produzir conhecimento no mundo da experiência vivida. Pesquisar, intervir, transformar – vamos mergulhar nos desafios do cartógrafo.

A cartografia como método de pesquisa-intervenção A formulação que discutiremos coloca em questão a cumplicidade com as formas instituídas de verdade, bem como as estruturas e rituais que sustentam parte da vida em sociedade. Repensa a tradição de pesquisa e seus de conceitos, como validade, confiabilidade e objetividade. Coloca em questão também a diferença entre o escrever e o trabalho de campo, afirmando o papel de validação da escrita na investigação (Richardson, Pierre, 2005; Richardson, 2000). A escrita, assim como na etnografia, é aqui assumida como um método da investigação que se produz a partir de sucessivos movimentos de autorreflexão. Assume-se, aqui, a existência de uma crise de representação da pesquisa qualitativa, na qual se afirma que a experiência social é criada no texto escrito pelo pesquisador na tentativa de capturar a experiência. Para Passos, Kastrup e Escóssia (2009), a pesquisa qualitativa enfrenta alguns impasses metodológicos atribuídos à natureza subjetiva de grande parte de suas investigações, especialmente quando essa prática se faz a partir do encontro de sujeitos e pelo que se expressa neste encontro, como são as práticas em saúde. Por isso, investigações dessa natureza pedem estratégias metodológicas e procedimentos investigativos mais abertos e inventivos. Ao darmos ênfase aos processos de produção de subjetividade como eixo de destaque nas ações em saúde e, também, na produção de saber, nos aproximamos da cartografia. Embora saibamos que não são apenas as práticas cartográficas que se propõem a valorizar a subjetividade no campo da pesquisa, escolhemos essa abordagem pela afinidade que temos em relação ao entendimento que seus teóricos apresentam sobre o sujeito e sobre a produção de subjetividade, pautados na Filosofia da Diferença. Com o conceito de produção, entende-se que é a partir de uma história tecnológica dos modos de compreensão e de experiência contínua do eu que autores como Foucault nos informam sobre o sujeito. Deste modo, a subjetividade deixa de estar ligada apenas aos domínios da representação, da interioridade e passa a ligar-se visceralmente aos conjuntos sociais (Paiva, 2000). Por sua vez, o sujeito não constitui um universal, mas o produto contingente de diagramas de força e de produção de subjetividades que o atravessam. 666

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Os Filósofos da Diferença – representados por autores como Espinosa, Niestzche, Deleuze, Guattari, Foucault, Bergson, entre outros – ofereceram um novo conjunto de conceitos para se pensarem as mudanças nas formas de ser e conhecer na atualidade. Com essa inspiração, investigadores como Maturana e Varela (1995), entre outros, têm estimulado a continuidade dessas produções na atualidade, incluindo a aproximação desse pensamento com teorias como a análise institucional e a teoria crítico-social. Estas vertentes têm sustentado uma proposição que no Brasil vem sendo denominada “investigação cartográfica”. Entre destacados estudiosos brasileiros desta vertente, citamos, no campo da psicologia, autores como: Rolnik (2007); Do Eirado (2005), Fonseca (2007), Passos, Kastrup e Escóssia (2009), Benevides de Barros (2007), entre outros. Na Saúde Coletiva, esta vertente se faz presente na produção de: Merhy (2002), Teixeira (2003), Franco et al. (2009), Ceccim e Feuerwerker (2004), Carvalho, Ferigato e Barros (2009) etc. A ideia da cartografia como uma prática do conhecer foi expressivamente trabalhada pelo filósofo francês Gilles Deleuze que se apropria de uma palavra do campo da Geografia – Cartografia - para referir-se ao traçado de mapas processuais de um território existencial. Um território desse tipo é coletivo, porque é relacional; é político, porque envolve interações entre forças; tem a ver com uma ética, porque parte de um conjunto de critérios e referências para existir; e tem a ver com uma estética, porque é através dela que se dá forma a esse conjunto, constituindo um modo de expressão para as relações, uma maneira de dar forma ao próprio território existencial. Por isso, pode-se dizer que a cartografia é um estudo das relações de forças que compõem um campo específico de experiências. (Farina, 2008, p.9)

De acordo com Deleuze e Guattari (1995), a cartografia é útil para descrever processos mais do que estados de coisa. Saliente-se o termo processo e a possibilidade de a cartografia contribuir para as pesquisas qualitativas que se propõem ao acompanhamento de processualidades, visto que o método qualitativo pode ser caracterizado como “aquele que quer entender como o objeto de estudo acontece ou se manifesta; e não aquele que almeja o produto, isto é, os resultados finais matematicamente trabalhados” (Turato, 2005, p.509). Isso nos indica um procedimento de análise a partir do qual a realidade a ser estudada está em constante transformação e movimento, uma realidade composta por diferentes narrativas, contextos e linhas de força a serem consideradas em sua complexidade e singularidade. A transformação da realidade, aqui referida, também ocorre a partir do próprio observador e das interferências da pesquisa no universo real, o que implica o pesquisador com o campo problemático na transformação de si, do objeto e de seu contexto, conferindo ao trabalho da pesquisa seu caráter intrínseco de intervenção, como já nos indicava Lourau (2004). Segundo Kastrup (2008), a noção de pesquisa-intervenção oriunda do movimento da Análise Institucional afirma o ato político de toda investigação e se embasa em uma crítica direta à política de pesquisa ortodoxa, que defende a eliminação da participação do pesquisador na produção de conhecimento objetivo e a suposta neutralidade da pesquisa. Essa nova reconfiguração do modo de se produzir conhecimento alia-se ao conceito de cognição como criação, como autopoiese, conforme proposto por Maturana e Varela (1995). Subjetividade e Objetividade não são tomadas como fundamentos da cognição, mas como efeitos desse processo. Tal concepção encontra suas raízes no construtivismo de Piaget (1978). Por este caminho, a noção de coengendramento do sujeito e do objeto indica a crítica do modelo da representação. Sujeito e objeto são coemergentes do processo de pesquisar, são efeitos, e não condição da atividade cognitiva. Neste sentido, Passos, Kastrup e Escóssia (2009) identificam, no mínimo, três inversões do modo de condução da pesquisa. Primeiro, o pesquisador deixa de se orientar pelo que se sabe de antemão sobre determinada realidade (know what), e passa a orientar-se pelo modo de se fazer pesquisa (know how); em segundo lugar, direciona-se o trabalho da pesquisa do saber-fazer para o fazer-saber. A terceira reversão se contrapõe a uma tradição que define o método a partir das metas, propondo, em seu lugar, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a centralidade do caminho (hódos) em relação a metas (metá). O que se propõe é a efetivação de um Hódos-metá no lugar de um método. Fazer a afirmação do primado do caminho, e não da meta, faz com que a pesquisa seja, antes de tudo, uma experimentação, um processo em aberto em que operam séries de dobras e desdobras, de inesgotáveis problemas e descobertas. Referimo-nos a uma aposta na experimentação do pensamento e no imprevisível próprio dos processos de produção de subjetividade. Esse movimento torna o método de pesquisa mais próximo do objeto e mais congruente com os movimentos da vida e com as ações em saúde. Tomando em conta o caráter de processualidade relevante a esse método e sua dimensão interventiva, para Kastrup e Barros (2009), a cartografia produz efeitos de transformação da realidade, que também devem ser analisados, como já mencionado anteriormente. Deste modo, estamos nos referindo a um modo de pesquisar que se propõe a pesquisar processos, que serão produzidos e, ao mesmo tempo, transformados pelo próprio ato de pesquisar em agenciamento com as linhas de força e de subjetivação do campo problemático. Como estudar esse movimento processual de produção de subjetividade? Instigados a mergulhar nesse desafio, Passos, Kastrup e Escócia (2009) organizaram um livro intitulado “Pistas do método da cartografia: Pesquisa intervenção e produção de subjetividade”, que exprime um importante avanço para as pesquisas cartográficas brasileiras. Nessa obra, são apontadas “pistas” para a construção desse modo de pesquisar. Para eles, a cartografia como direção metodológica deve ser articulada com oito ideias que compõem um plano de ação ou de pesquisa: A pista (1) elaborada por Passos e Barros (2009a) indica que toda pesquisa é intervenção e que toda intervenção em saúde é sempre uma atitude clínico-política. Apoiados nos referenciais da Análise Institucional e na contribuição metodológica de Félix Guattari, defendem a ideia de que o campo de análise não se separa do campo de intervenção. Segundo tal abordagem, conhecer não é representar uma realidade preexistente, mas é um processo de invenção de si e do mundo (Kastrup, 1999; Maturana, Varela, 1995). Sujeito e objeto não são polos prévios ao processo de conhecer, mas são engendrados pelas próprias ações cognitivas de modo recíproco e indissociável. Ocorre, aqui, uma indissociabilidade entre a produção de conhecimento e a transformação da realidade. Na pista (2), adotando uma política construtivista, Kastrup (2009) define os quatro gestos da atenção cartográfica durante o trabalho de campo: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento – gestos propícios para acessar elementos processuais provenientes do território, de interesse do cartógrafo. Para inibir a atenção seletiva que habitualmente domina nosso funcionamento cognitivo, esse funcionamento atencional requer uma concentração sem focalização, por meio da ideia de uma atenção à espreita, ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta, conforme Deleuze indica em seu Abécédaire. A terceira pista discute a ideia, já apontada neste texto, de que “cartografar é acompanhar processos”; processos em seu caráter de processualidade, que também estão presentes em cada momento da pesquisa. Pozzana e Kastrup (2009) afirmam que a cartografia não se destina a isolar o objeto de suas articulações históricas e de suas conexões com o mundo. Para isso, é preciso dar conta de suas modulações e de seus movimentos permanentes, “dar língua para afetos que pedem passagem” (Rolnik, 2007, p.23). Esse acompanhamento exige a produção coletiva do conhecimento (há um coletivo se fazendo com a pesquisa) e depende de uma atitude, de um ethos do pesquisador imerso no plano das intensidades de um território. A pista (4), proposta por Kastrup e Barros (2009), apresenta os movimentos-funções do dispositivo no método da cartografia. As autoras defendem que a cartografia enquanto método de pesquisa requer procedimentos concretos encarnados em dispositivos. Na concepção de Deleuze (1990), os dispositivos são máquinas que fazem ver e falar, compostas por linhas de força, de visibilidade, de enunciação e de subjetivação. O que caracteriza um dispositivo na pesquisa cartográfica é sua irrupção naquilo que se encontra bloqueado para a criação. A quinta pista, formulada por Escóssia e Tedesco (2009), aponta que, ao lado das formas e dos objetos com seus contornos estáveis, existe um plano coletivo de forças que os produz, um plano movente da realidade das coisas que não pode ser abandonado quando se pretende compreender um objeto. A cartografia aqui é apontada como estratégia de acesso, de análise e de construção desse plano. 668

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A sexta pista, desenvolvida neste livro por Passos e Do Eirado (2009), aponta para a ideia de dissolução do ponto de vista do observador. A cartografia requer a suspensão da posição pessoal do pesquisador, marcada por interesses, expectativas e saberes anteriores, de modo que, no encontro entre pesquisador e o objeto da pesquisa, o primeiro possa colocar-se de forma efetivamente presente, ou seja, não perceber através do crivo de juízos prévios ou pré-conceitos (Kastrup, 2008). O texto revela uma recusa do objetivismo científico e, ao mesmo tempo, do subjetivismo, que apresentados a partir de posicionamentos diferentes são duas faces da mesma moeda. A pista (7) discursa sobre a importância da imersão do cartógrafo no território pesquisado. Partindo do conceito de território existencial proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs – em que é a expressividade, e não a funcionalidade, que explica a formação territorial –, Alvarez e Passos (2009) defendem que a pesquisa cartográfica sempre pressupõe a habitação de um território, numa postura de receptividade afetiva, encarnada nas situações reais, o que permite ao observador falar “com”, e não apenas falar “sobre” um objeto. A oitava pista nos oferece indicações sobre a escrita dos textos cartográficos. Passos e Barros (2009b) apresentam a ideia de que esse método exige uma mudança nas práticas habituais de narrar uma pesquisa, num esforço para uma análise expressiva do discurso, em busca de uma “política da narratividade” – um modo de dizer que expresse processos de mudança de si e do mundo. Entendemos, de acordo com os autores, que as práticas clínicas e de pesquisa qualitativas sempre dizem respeito a narrativas. As diferentes formas de terapêutica e de produção de dados (entrevistas, grupos focais, observação participante, pesquisa bibliográfica...) indicam diferentes maneiras de narrar, associadas a um direcionamento político que escolhemos. Se falamos de uma escrita que valoriza a narrativa dos sujeitos de pesquisa, falamos, ao mesmo tempo, de uma forma de pesquisar que valoriza o sujeito. Tomar os sujeitos e o encontro entre eles como objeto de investigação-intervenção é o que fazemos nas pesquisas qualitativas em Saúde.

As pesquisas qualitativas em Saúde no Brasil: potencialidades e desafios do método cartográfico Durante a maior parte da história das pesquisas em saúde, os modelos biomédicos e quantitativistas eram tidos como referenciais hegemônicos de investigação. No entanto, nas últimas décadas, mediante a incorporação de determinantes culturais, econômicos, históricos e psicossociais no entendimento do processo saúde-doença-intervenção, fez-se necessária a incorporação de procedimentos mais abertos, de metodologias qualitativas ou quantiqualitativas no universo da produção de conhecimento. Essa incorporação reconhece as múltiplas maneiras de expressão da realidade, o que exige uma multiplicidade não excludente de formas de abordagem do objeto ou de metodologias de pesquisa. Gil et al. (2006) apresentam algumas situações de investigação em saúde, nas quais são potentes os usos de pesquisas qualitativas, entre elas, podemos citar: a) situações em que se pretendem explicar fenômenos que ocorrem em situações muito complexas ou singulares (como os estudos de caso, por exemplo); b) situações em que o pesquisador tem uma percepção acerca do papel da Ciência e da produção do conhecimento voltadas para a compreensão do cotidiano e para as transformações sociais das práticas do cuidado (como, por exemplo, as pesquisas formalmente interventivas); c) situações de pesquisas exploratórias, nas quais não se imagina chegar a uma resposta definitiva para o problema (levando em consideração a flexibilidade e particularidade da metodologia). O desafio de acompanhar, pesquisar e avaliar os encontros e desencontros entre sujeitos produzidos pelos cuidados em saúde parece ser o elemento que aproxima e, por que não dizer, apaixona boa parte dos estudiosos em pesquisa qualitativa no Brasil, onde se dá especial destaque à participação dos distintos sujeitos que estão envolvidos nas ações em saúde, no processo de avaliação e pesquisa, sendo incorporadas suas demandas, valores, sentidos, desejos e conflitos que se fazem presentes no ato de pesquisar. Esta forma de desenvolvimento de pesquisa pode ser verificada, também, nos estudos denominados como pesquisa-ação e pesquisa intervenção. No que tange à produção do conhecimento interventivo em saúde, gostaríamos de explorar, dentro do amplo escopo das pesquisas qualitativas, um conjunto de trabalhos cartográficos que vêm se COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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dedicando a pesquisar e avaliar experiências de mudanças na atenção e gestão do Sistema Único de Saúde a partir de uma leitura crítica dos filósofos da diferença e da articulação entre as metodologias qualitativas e a cartografia. No Brasil, mais do que uma escolha intelectual, esta vertente vem se impondo como uma possibilidade de criação de estratégias, arranjos e dispositivos junto aos serviços e práticas de atenção no SUS e para o desenvolvimento de pesquisas em saúde. Na centralidade destas formulações, encontra-se uma leitura singular sobre estratégias de produção do conhecimento, na qual o processo de saúde-doença-intervenção se refere à complexa configuração das formas de funcionamento do subjetivo, que se constitui no agenciamento entre: usuários e profissionais de saúde, instituições, procedimentos clínicos, diagnósticos, territórios etc. Para uma pesquisa cartográfica, o que interessa no estudo desses agenciamentos são: as relações de força e as forças liberadas nessas relações (política), os enunciados que regem essas forças e as colocam em funcionamento, os valores produzidos a partir delas, que permitem ao sujeito relacionar-se consigo mesmo e com os outros (ética) (Farina, 2008). Além disso, é importante ressaltar que as instituições de saúde, atravessadas por todas essas questões e enunciados, se movimentam para sustentar ou resistir a seus determinantes externos e internos, vivem numa processualidade de reinvenção e repetição constante na qual a cartografia busca intervir. Os encontros de diferentes linhas de força e de criação (as práticas clínicas, os núcleos profissionais, as tecnologias, a ciência, a política, o saber e a formação em saúde) têm gerado múltiplos desdobramentos: novos arranjos institucionais para novos campos de ação, novas doenças, novos dispositivos de intervenção, novos discursos. Conceitos como o de acolhimento (Teixeira, 2003), linhas de cuidado (Franco, Magalhães Jr., 2003), e arranjos como o apoio matricial e a equipe de referência (Campos, 2005) são exemplos desses desdobramentos na Saúde Coletiva. Ao mesmo tempo em que percebemos inovações como estas, verificamos repetições e variações das antigas formas profissionais e seus campos. Cartografar esses processos na Saúde Coletiva é investigar o que dá expressão e o que transforma os modos de produção de cuidado; escutar os seus “ruídos”, seus incômodos; fazer aparecer as coisas que estão ali, mas não têm visibilidade (Franco, Merhy, 2009). Saúde, doença e intervenção, praticadas pela economia do contemporâneo, produzem prescrições, sintomas, mortes, tratamentos e curas, mas também uma sensibilidade específica aos modos de produção de vida ou de adoecimento, aos modos de produção coletiva de novas subjetividades. Subjetividade que se dá no contato, na comunicação, no encontro, onde se lançam dispositivos que operam como redes de interfaces (Teixeira 2001). Atendimentos individuais, processos grupais, visitas domiciliares, acolhimento, quando olhados sob essa perspectiva, funcionam como dispositivos que interconectam diferentes encontros, diferentes espaços coletivos de conversa (Teixeira, 2003), o que remete aos diferentes territórios investigados na produção de cuidado (Eichelberger, 2009). Guattari (1985) diferencia espaço de território. Espaço de funções planejadas, projetadas, programadas, e território enquanto espacialidade materializada, definida a partir de relações subjetivas os denominados “territórios de subjetivação ou territórios existenciais” (Guattari, 1985, p.114). Assim, na perspectiva cartográfica, investigar um território de produção de saúde é buscar captar suas dinâmicas, seus movimentos, seus acontecimentos, o que se passa no entre instituição-território, instituído-instituinte. Um lugar que se propõe a ser um Espaço do Acontecer (Santos, 2005), um território compartilhado que se oferece a um papel analítico. Para elucidar essa teorização, citaremos um exemplo prático, proposto por Franco e Merhy (2009): Numa pesquisa qualitativa tradicional sobre um estabelecimento de saúde específico, busca-se conhecê-lo a partir da sua estrutura organizacional (organograma, fluxos estruturados, Recursos humanos...), ou seja, pela ótica do mundo racionalmente concebido. Pela perspectiva cartográfica, se propõe uma análise a partir de outros campos de visibilidade, abrindo a percepção desse estabelecimento de saúde sob outro ângulo: analisar seus funcionamentos e o que eles produzem. Nesta linha, pode-se perceber a existência de várias unidades de saúde em uma mesma. 670

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Essa forma de se colocar como pesquisador, parte da concepção de que toda prática de saúde opera no campo dos processos de subjetivação, que a produção de cuidados opera por fluxos de intensidade e afetos que circulam entre usuários, trabalhadores e gestores envolvidos no processo saúde-doençaintervenção. Também podemos citar, como exemplo ilustrativo dessa forma de abordagem, o estudo de Pacheco e Carvalho (2009) que, ao pesquisarem a relação entre a Clínica e a Prevenção, buscaram revelar o que há entre, o que há na borda destas duas esferas de cuidado, ou seja, pensar a relação entre a dimensão clínica e a dimensão preventiva, bem como suas transformações a partir de sua fronteira e do que esse espaço fronteiriço expressa acerca do campo da saúde, seus movimentos de captura e de singularização. Na mesma proporção em que estamos apontando exemplos e potencialidades desse modo de produzir conhecimento, podemos apontar alguns de seus desafios. O primeiro deles está dado a partir da própria conjuntura atual das universidades e das agências de fomento à pesquisa. As linhas de força e de saber-poder presentes nessas instâncias são regidas ainda fortemente pelos ideais positivistas de produção de conhecimento, o que se constitui como um entrave para o desenvolvimento de parte das pesquisas qualitativas, entre elas as pesquisas cartográficas. Com isso, não queremos opor as diferentes formas de produção de saber, valorizando um modo de pesquisa em detrimento de outro, ao contrário, entendemos que as pesquisas de cunho positivistas tiveram e têm, até hoje, grandes contribuições para as ciências modernas e para a produção da realidade; no entanto, uma vez enunciados seus limites é necessário que haja maior flexibilidade e abertura para a criação e desenvolvimento de novas formas de pesquisar, novas formas de ampliar a relação pesquisador-objeto de pesquisa. Outro desafio do cartógrafo relaciona-se à construção da escrita cartográfica. Há que se configurar uma maneira de dizer, capaz de expressar a força da experiência. Um dos caminhos já apontados neste texto para a superação desse desafio é apostar nas “políticas da narratividade”. Mas entendemos que ainda se faz necessária uma maior exploração sobre essa estratégia e maior desenvolvimento em relação às possibilidades da escrita e da apresentação das pesquisas que se pretendem cartográficas. Muitas vezes, a escrita formal e a linguagem discursiva mostram-se insuficientes, sendo necessária abertura para performances, vídeos, fotografias e outras formas de linguagem. Outro desafio do cartógrafo é marcado pelo tempo. Ou seja, uma vez que visamos descrever processos, e não estados de coisa, o pesquisador se propõe a investigar elementos em relação e movimento. Ou seja, é necessário que se situe a pesquisa num espaço de tempo, numa espécie de recorte de um processo. Neste caso, o objeto pesquisado, quando apresentado, nos fornecerá uma teia de enunciados que já não diz mais do que é, mas do que foi no ato da pesquisa. Ao mesmo tempo em que entendemos isso como um desafio, nos perguntamos se em qualquer outra forma de pesquisa qualitativa é possível escapar disso. Talvez, aceitar isso de antemão, aceitar o desafio de pensar a transformação do saber e dos modos de vida possa ser uma diferença no modo de produção da pesquisa cartográfica. Neste sentido, as pesquisas qualitativas em saúde podem contar com as contribuições da cartografia como método, o que, em última instância, faz da experiência de pesquisar uma experiência de transversalidade na produção de conhecimento. Para Guattari (2004), sinteticamente, a transversalidade é o que promove uma abertura do coeficiente comunicacional dos sujeitos e dos grupos, dissolvendo as hierarquias e, portanto, oferecendo espaço para a emergência da diferença. Com esse conceito, Guattari prepara a definição do método cartográfico, na qual analisar é, ao mesmo tempo, descrever, intervir; é, também, criar efeitossubjetividade e acompanhar as linhas que compõem um determinado plano a ser pesquisado. Benevides e Passos (2005) apostam na transversalidade como o que causa a efetiva transformação das ações clínico-políticas no plano das políticas públicas e, por isso, acreditamos que as pesquisas nesse campo também podem fazer essa aposta.

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Considerações finais A partir deste trabalho, buscamos explorar as fronteiras entre pesquisa qualitativa, a produção de conhecimento em saúde e a cartografia. Para isso, apresentamos um breve histórico da pesquisa qualitativa no sentido de demonstrar que a metodologia científica não se restringe apenas ao planejamento e execução de um trabalho científico, mas pode se constituir como um poderoso instrumento de análise crítica da produção de conhecimento. Destacamos, mais uma vez, que a exploração da fronteira entre essas formas de abordagem para a produção de conhecimento não busca afirmar uma sobreposição entre métodos qualitativos e cartografia, visto que uma pesquisa qualitativa não é sempre cartográfica, nem uma pesquisa cartográfica é apenas qualitativa. Buscamos analisar quando e de que forma a pesquisa qualitativa pode ser dita também cartográfica. Sinteticamente, entendemos que isso acontece quando uma pesquisa qualitativa se propõe a acompanhar processos de forma interventiva, quando essa intervenção produz um mundo de enunciados e visibilidades até então não exploradas. Uma pesquisa que faz ver e falar linhas de força e de subjetivação que acompanham o território existencial pesquisado. Questões como essa podem não ser exclusivas da cartografia, mas estão na centralidade de sua abordagem. Depois da retomada desse contexto histórico das pesquisas, nos remetemos à produção de conhecimento no campo da saúde e procuramos estabelecer articulações entre as pesquisas qualitativas neste campo e a cartografia, defendendo que a preocupação do cartógrafo, no encontro com seu objeto de pesquisa, é a de acompanhar as linhas que se traçam, marcar os pontos de ruptura e de enrijecimento, analisar os cruzamentos dessas linhas diversas que funcionam ao mesmo tempo (Kastrup, Barros, 2009). Como falamos de uma proposta relativamente nova – a de fazer da cartografia um método de pesquisa –, consideramos que foi importante elucidar as origens filosóficas do termo e apresentar os conceitos contemporâneos que o constituem. Neste caminho, pretendemos analisar suas potências e seus desafios. Quando um investigador tem um ‘objeto’ processual e quer dar vazão à política de suas formas e funcionamentos, ele pode se valer de um método de trabalho como esse, afinado com a processualidade daquilo que investiga (Farina, 2008). As influências dessa corrente no campo das pesquisas na Saúde Coletiva brasileira têm mostrado importante crescimento, conforme apresentado ao longo do texto, e podem nos ajudar a intervir na complexidade do SUS e na ação dos sujeitos individuais e coletivos, em direção à afirmação de suas diferenças e construção de projetos comuns. Essa construção, para Deleuze e Guattari (1972), é conduzida pelo desejo, enquanto energia propulsora da ação cotidiana dos sujeitos nas suas dimensões coletivas e individuais. As pesquisas cartográficas em saúde buscam valorizar uma política pública com diversas subjetivações possíveis no encontro clínico, onde se afirme a significação múltipla da diferença e se privilegie o uso de tecnologias que ampliem a liberdade e, por assim dizer, as linhas de subjetivação livres na produção de conhecimento e na produção de saúde. Os processos de saúde-doença-intervenção, a subjetividade e a objetivação do cuidado estão em metamorfose. Metamorfoseiam-se os programas de saúde que os promovem, assim como os sujeitos que os operacionalizam. Neste sentido, concluímos que a maior função e, ao mesmo tempo, o maior desafio do cartógrafo nas pesquisas em saúde é dar condições de visibilidade e dizibilidade ao que se passa individual e coletivamente nos processos de produção de saúde, de cuidado e de vida. Para isso, o devirpesquisador deve estar aberto para atravessar e ser atravessado pelo processo de pesquisar e de cuidar.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.131-49. BARROS, R.B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina, 2007 BECKER, H.S. et al. Boys in white: student culture in medicine school. Chicago: University of Chicago Press, 1961. BENEVIDES, R.; PASSOS, E. A humanização como dimensão pública das políticas de saúde. Cad. Saude Coletiva, v.1, n.3, p.561-71, 2005. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2005. CARVALHO, S.R.; FERIGATO, S.H.; BARROS, M.E.B. Conexões: Saúde Coletiva e políticas de subjetividade. São Paulo: Hucitec, 2009. CECCIM, R.B.; FEUERWERKER, L.C.M. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad. Saude Publica, v.20, n.5, p.1400-10, 2004. DELEUZE, G. Que és un dispositivo? In: BALIBAR, E. et al. (Orgs.). Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p.155-63. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs 1. São Paulo: Ed. 34, 1995. ______. O anti-Édipo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1972. DENZIN, N.K.; LINCOLN, Y.S. Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 2005. DO EIRADO, A. Sentido e experiência no âmbito da atividade cognitiva. Rev. Psicol. (UFF), v.17, n.2, p.35-43, 2005. EICHELBERGER, M. Uma política de subjetivações possíveis no encontro clínico e sanitário: pesquisa cartográfica e territórios. Campinas, 2009. (mimeogr.). ESCÓSSIA, L.; TEDESCO, S. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.92-108. FARINA, C. Arte e formação: uma cartografia da experiência estética atual. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 31., 2008, Caxambu. Anais... Caxambu, 1998. p.1-16. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GE01-4014—Int.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2011. FONSECA, T.M.G. Cartografias da arteloucura: a insurgência de um outro espaço. In: FONSECA, T.M.G.; ENGELMAN, S.; PERRONE, C.M. (Orgs.). Rizomas da reforma psiquiátrica: a difícil reconciliação. Porto Alegre: Sulina, 2007. p.141-52. FRANCO, T.B.; MAGALHÃES JÚNIOR, H. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuidado. In: MERHY, E.E. et al. (Orgs.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2003. p.125-34. FRANCO, T.B.; MERHY, E.E. Mapas analíticos: una mirada sobre la organización y sus procesos de trabajo. Salud Colect., v.5, n.2, p.181-94, 2009. FRANCO, T.B. et al. (Orgs.). A produção subjetiva do cuidado: cartografias da Estratégia Saúde da Família. São Paulo: Hucitec, 2009.

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Palabras clave: Cartografía. Investigación cualitativa. Salud. Recebido em 29/04/10. Aprovado em 19/01/11.

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Produção do cuidado integral no pré-natal: itinerário de uma gestante em uma unidade básica de saúde da família *

Renata Alves Albuquerque1 Maria Salete Bessa Jorge2 Túlio Batista Franco3 Paulo Henrique Dias Quinderé4

ALBUQUERQUE, R.A. et al. Production of comprehensive prenatal care: a pregnant woman’s route at a primary family healthcare unit. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.677-86, jul./set. 2011. This study aimed to understand the production of comprehensive prenatal care in a primary family healthcare unit in Fortaleza. To this end, semi-structured interviews were conducted with a user whose prenatal care was provided at a primary family healthcare unit, with systematic observations on her prenatal consultations. The analysis of the material, which was done in accordance with Merhy’s analytical flowchart, revealed bureaucratization of the reception at the entrance, a sequence of violations of rights in the team-user relationship and little access by the user to information about childbirth and the puerperium. It was concluded that reception, bonding and taking responsibility are still not institutionalized devices within the family healthcare team. Healthcare is based on the individual values of each professional, which alone does not enable comprehensiveness of prenatal care.

Keywords: Prenatal care. Family health. Women’s health.

Este estudo teve como objetivo compreender a produção do cuidado integral na atenção ao pré-natal de uma Unidade Básica de Saúde de Fortaleza, Ceará, Brasil. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com uma usuária, cujo pré-natal foi acompanhado por uma Unidade Básica de Saúde da Família, e observações sistemáticas de suas consultas pré-natais. A análise do material, realizada conforme o fluxograma analisador de Merhy, revelou: a burocratização do acolhimento na porta de entrada, uma sequência de direitos violados na relação equipe-usuária, e o pouco acesso da usuária às informações sobre o parto e puerpério. Conclui-se que o acolhimento, o vínculo e a responsabilização ainda não são dispositivos institucionalizados na equipe de saúde da família. O cuidado pauta-se nos valores individuais de cada profissional, o que, por si só, não possibilita a integralidade da assistência no pré-natal.

Palavras-chave: Cuidado pré-natal. Saúde da família. Saúde da mulher.

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Elaborado com base em Albuquerque (2008), pesquisa com bolsa da Capes e auxílio do grupo de pesquisa Saúde Mental, Família e Práticas de Saúde e Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará. 1,4 Discentes, Doutorado em Saúde Coletiva, Universidade Estadual do Ceará/Universidade Federal do Ceará/ Universidade de Fortaleza (UECE/UFC/UNIFOR). 2 Doutorado em Saúde Coletiva e Mestrado em Saúde Pública, UECE. Av. Paranjana, 1700, Bairro Serrinha, Fortaleza, CE, Brasil. 60.740-000. masabejo@uece.br 3 Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade Federal Fluminense. *

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PRODUÇÃO DO CUIDADO INTEGRAL NO PRÉ-NATAL: ...

Introdução O cuidado em saúde abrange considerar a vivência do sujeito, a escuta do seu projeto de vida e uma abertura autêntica para estar com o outro. Na produção do cuidado, deve existir uma escuta atenta que faça surgir a compreensão da situação vivenciada pelo usuário, inclusive o entendimento da nãoadesão deste ao tratamento, do seu desinteresse pelas orientações preventivas, e até a descoberta do seu desprendimento com a própria saúde (Ayres, 2006). Segundo se compreende, a escuta implica um processo ativo de levar o sujeito a produzir suas próprias respostas ao seu sofrimento, ao reconhecer que, como ser humano, pode dispor da capacidade de autonomia. Desse modo, o profissional de saúde pode levar o sujeito a se questionar sobre suas ações e fantasias, sem dar respostas prontas às suas interrogações. Para haver essa escuta, é imprescindível compartilhar responsabilidades e perceber o outro com uma alteridade caracterizada pela autonomia de decidir o que é melhor para sua vida ou para seu projeto de felicidade (Ayres, 2006). Consoante se pode perceber, o cuidado ressaltado por este autor comunga com a concepção ora proposta, qual seja, buscar um cuidado corresponsável que viabilize a autonomia do usuário. Tem sintonia também com o conceito de tecnologia leve do cuidado em saúde proposto por Merhy (2002). Por tecnologia leve do cuidado em saúde, entende-se aquela que permite produzir relações, ocorridas no momento singular do encontro. Apesar de, no momento da utilização da tecnologia leve, estar presente a materialidade dura, não se torna dependente dela, pois prioriza o encontro, a conversa, o sujeito que procura o cuidado. Esse tipo de tecnologia vai surgir por meio do vínculo, do acolhimento e da responsabilização. Ao discutir o assunto, Merhy (1997) define acolhimento, vínculo e responsabilização. Como afirma, o acolhimento é uma relação humanizada que os trabalhadores, como um todo, têm de estabelecer com os usuários, alterando a impessoalidade dominante no trato cotidiano dos serviços de saúde.No tocante ao vínculo, segundo sugere o autor, o profissional de saúde deve ter relações claras e próximas com os usuários, integrando-se com a comunidade em seu território, tornando-se referência para suas ações. Sobre a responsabilização, o pesquisador assim se pronuncia: “O profissional assume a indicação e garantia dos caminhos a serem percorridos para resolução do problema, não cabendo a transferência burocrática para outra instância decisória ou nível de atenção” (Merhy, 1997, p.138). Portanto, na perspectiva de Merhy (2002), a produção do cuidado se concretiza ao promover o encontro entre o usuário e seu mundo de necessidades, a partir do seu “modo de andar na vida”. Isso só ocorre quando é possível o acolhimento, a criação de vínculos e a responsabilização pelo cuidado em saúde, pois, assim, as necessidades de cada usuário, presentes no seu projeto de felicidade, serão devidamente acolhidas e articuladas no seu projeto terapêutico (Ayres, 2006). Como observado, Merhy e Ayres convergem quando o assunto é a importância da singularidade como uma prioridade para o cuidado em saúde. Na ótica de ambos, deve haver uma busca com vistas a articular essa singularidade com o conhecimento científico dos profissionais. Com a implantação do Programa de Saúde da Família (PSF), vislumbra-se uma possibilidade para essa renovação no cuidado em saúde, em virtude de este programa requerer um novo modo de atender às necessidades de saúde do sujeito, no qual ele deve ser visto de forma integral. Para que isso aconteça, as equipes devem repensar o processo de trabalho em saúde, adotando novas metodologias ou tecnologias. De acordo com Vasconcelos (1998), as ações do PSF destinam-se a oferecer um serviço de qualidade às minorias que têm dificuldade de acesso à saúde e promover maior integralidade da assistência. Cabe instituir um paralelo com Ayres (2006), ao assinalar a necessidade de subverter a tecnificação ou a objetivação do trabalho humano em uma “intersubjetividade viva do momento assistencial”, no qual é importante extrapolar o tecnológico e estabelecer a troca. Nessa circunstância, de acordo com o referencial de Ayres (2006), pode-se pensar na proposta do PSF como uma relação entre sujeitos que percebem um ao outro como uma alteridade. De modo geral, o PSF contribui para a organização da atenção básica, como regulador da porta de entrada do sistema de saúde, bem como objetiva os cuidados básicos de saúde evitando a 678

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morbimortalidade materno-infantil, mediante assistência à gestante no pré-natal. A assistência pré-natal prestada no PSF, além de procedimentos de enfoque biológicos, deve se referir, também, a uma análise da subjetividade da gestante, incluindo os aspectos psíquicos e sociais. Determinadas iniciativas corroboram essa proposta, por exemplo: no ano de 2000, o Ministério da Saúde lança o Programa Humanização do Pré-Natal, enfatizando o reconhecimento de se trabalhar o estabelecimento de vínculos entre a equipe de saúde e a gestante e os aspectos subjetivos durante o pré-natal (Brasil, 2000). Para possibilitar a atenção a tais aspectos, exige-se um cuidado centrado no usuário, que se contrapõe ao centrado em procedimentos. O enfoque/ênfase no usuário deve ser sustentado em tecnologias leves, cuja atenção se volte para a saúde, a partir de uma inter-relação, envolvendo um vínculo, um acolhimento e uma responsabilização. Nessa perspectiva, este estudo tem como objetivo compreender a produção do cuidado na atenção pré-natal em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Fortaleza-CE, com base na análise do caso de uma usuária, no intuito de apreender como estão sendo produzidos o acolhimento, o vínculo e a responsabilização do cuidado.

Metodologia O estudo foi realizado em Fortaleza, CE, em uma Unidade Básica de Saúde da Secretaria Executiva Regional IV, considerada referência para uma população de 31.653 habitantes, embora cubra apenas uma população de 9.198 habitantes (Fortaleza, 2008). Na unidade atuava somente uma equipe de saúde da família composta por: médico, enfermeiro, odontólogo e agente comunitário de saúde; havia outros profissionais de saúde, mas não pertenciam à equipe de saúde da família. Para compreender uma realidade específica, utilizou-se a abordagem qualitativa. Quanto às técnicas de coleta de dados, trabalhou-se com a entrevista semiestruturada e a observação sistemática. No total, foram quatro entrevistas. Destas, três aconteceram mensalmente, sempre que a gestante comparecia às consultas pré-natais, e uma ocorreu no momento puerperal. Ao mesmo tempo, faziam-se observações das consultas. Como local para as entrevistas, optou-se por um espaço reservado da UBS, no qual estavam presentes apenas a pesquisadora e a usuária. O sujeito do estudo foi uma gestante, a qual se enquadrou nos critérios de inclusão: ser atendida por uma equipe de saúde da família e ter mais de 18 anos. A escolha pelo caso da usuária pesquisada adveio da peculiaridade de seu acompanhamento pré-natal ter percorrido dois modelos de atenção à saúde existentes na UBS. Adotou-se, aqui, o conceito de “analisador”, isto é, “aquilo que permite revelar a estrutura da organização, provocá-la, forçá-la a falar” (Lourau, 1996, p.284); e, neste sentido, o critério para a amostra seria de um caso detentor de um grau de complexidade tal que tensiona a rede de cuidados e, na tensão, revela seu real funcionamento. As técnicas de coleta foram orientadas por um roteiro, do qual constavam informações acerca do sujeito do estudo, em torno do cuidado integral no pré-natal, por meio dos seguintes pontos: (1) acolhimento (porta de entrada, tipo de demanda, sistema de atendimento); (2) relacionamento entre equipe e usuário (vínculo), e (3) encaminhamento para outros serviços (responsabilização). Para a análise dos dados, tomou-se, como base, o fluxograma analisador de Merhy (2002, 1997). Este autor propõe uma análise crítica do processo de trabalho a partir da utilização de um fluxograma que possibilita uma nova compreensão da interação produzida pelos sujeitos da prática em saúde, à medida que permite analisar o modelo assistencial fabricado pela equipe, além de facilitar a visualização das informações colhidas na pesquisa empírica. Em entendimento ao exigido, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, que o aprovou. Ainda como exigido, a gestante entrevistada assinou termo de consentimento livre e esclarecido e recebeu todas as informações necessárias para participação no estudo.

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Análise e discussão dos resultados Flora (nome fictício, sugerido pela usuária) é uma mulher de vinte anos, de baixa condição financeira, empregada doméstica, casada, residente na casa da sogra, no município de Fortaleza. Quando a primeira entrevista foi realizada, ela estava com seis meses de gestação do seu terceiro filho e é sobre o período em que essa criança foi gerada que se detém o estudo. Antes de ter conhecimento da gravidez, Flora sofria de tuberculose e já recebia atendimento pela equipe do PSF dessa unidade. Neste período, o medicamento que tomava para se tratar da tuberculose cortou o efeito do anticoncepcional, e este, conforme ela relatou, foi o motivo da sua gravidez. Como afirma Souza (2006), alguns fármacos utilizados no tratamento da tuberculose promovem a aceleração do metabolismo hepático, diminuindo os níveis de hormônios e tornando ineficaz o uso de anticoncepcionais orais. Nesse caso, recomendam-se outras formas de contracepção. Contudo, Flora não foi advertida pela equipe de saúde da família sobre os riscos de o tratamento minimizar os efeitos do contraceptivo hormonal oral. Houve, portanto, violação do direito à informação. Para Barata (1990), há uma postura tecnocrática por parte das autoridades médicas, na sociedade brasileira, segundo a qual as informações em saúde pertencem somente aos técnicos da área. Estas posturas autoritárias em saúde podem variar desde a simples decisão de não oferecer a informação até a tentativa de confundir a população com discussões técnicas, reduzindo a capacidade de entendimento do problema por parte do usuário. Como bem destacam Moura e Rodrigues (2003), dentro de uma nova perspectiva de atenção à saúde, especificamente no acompanhamento da gestante no pré-natal, devem ser priorizados, no percurso da assistência: o intercâmbio de informações e a troca de experiências, no intuito de se promover a compreensão do processo da gestação, por meio de atividades de comunicação e informação em saúde. Ao se descobrir grávida, Flora foi aconselhada, pelo marido e sogra, a abortar. Por três vezes tentou concretizar o ato com remédios, sem obter sucesso. Quando percebeu que não iria abortar, já com cinco meses de gestação, resolveu procurar a unidade básica para fazer o pré-natal, mesmo sem desejar aquela gravidez.

Momento inicial: acolhimento na recepção da unidade básica de saúde O fluxo de atendimento nesta unidade de saúde é intenso. Como mencionado, nela só existe uma equipe de PSF que cobre 29,05% do território do qual é referência (Fortaleza, 2008), pois, apesar de haver outros profissionais, estes não fazem parte desse modelo de cuidado em saúde. Neste momento inicial, evidencia-se o espaço da recepção, o qual deve funcionar como acolhedor para o sujeito que busca o cuidado em saúde. É um lugar de diálogo, escuta e envolvimento com a necessidade trazida pelo usuário. É nesse momento que o profissional de saúde percebe tal necessidade e se responsabiliza por ela. De acordo com o observado, nos depoimentos de Flora, estão presentes situações conflituosas em relação ao acolhimento inicial. Segundo relato da usuária, ao chegar à unidade ela estava muito abalada, e procurou a recepção. Esta apenas agendou seu atendimento para os dias de acompanhamento prénatal. Não houve nenhuma forma de conduzir aquela mulher a uma situação mais confortável, apesar das visíveis demonstrações de fragilidade. O tipo de atendimento prestado na recepção foi burocratizado, com ênfase exclusivamente nas marcações de consultas. Nesse caso, a consulta foi marcada para um médico da unidade não integrante da equipe de PSF. No entanto, o processo de acolhimento deveria ser realizado por uma equipe de variados profissionais, com vistas à escuta e adequados encaminhamentos para aquela demanda (Merhy, 1994). No dia da primeira consulta de Flora, uma auxiliar de enfermagem verificou os sinais vitais, e a deixou à espera de atendimento por aproximadamente uma hora e trinta minutos numa sala desconfortável, inadequada para os usuários e profissionais. Na referida unidade não havia espaço suficiente para acomodação dos usuários, nem na recepção nem na sala de espera. Esta, na verdade, 680

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era um corredor, localizado em frente às salas de atendimento, por onde passavam todas as pessoas que entravam na unidade. Portanto, era incômodo estar ali, pois era um lugar estreito e muito quente, sem nenhum sistema de ventilação. Como observado, o desconforto se prolongava nos bancos, constituídos somente de alvenaria e insuficientes para comportar todas as pessoas que aguardavam atendimento.

Momento da consulta pré-natal: a relação individual no consultório (estabelecimento do vínculo) Consoante ressaltado, o primeiro médico a atender Flora não fazia parte da equipe de saúde da família. Como a usuária relatou, esse atendimento foi feito por um médico que não lhe proporcionava a oportunidade de dizer o que estava acontecendo. Ele, simplesmente, prescrevia-lhe medicamentos e executava procedimentos, conforme pode ser conferido no discurso da entrevistada, a seguir: “Tem um médico aqui que é péssimo, me consultei com ele algumas vezes... nunca mais... ele nem olhava para mim... simplesmente passava remédios e eu não ficava boa... depois eu passei na cara dele... se ele tivesse feito meu pré-natal todinho eu tinha morrido”. (Flora)

Em contraposição à necessidade de um cuidado integral que respeitasse a singularidade do sujeito, Flora encontrou ali um atendimento mecanizado, que trabalhava apenas com a demanda explícita (prevenção pré-natal), através das tecnologias duras, e excluía as respostas possíveis às necessidades de saúde psicossociais totalmente presentes naquela situação. Insatisfeita, Flora procurou outro médico para fazer seu pré-natal, e resolveu buscar atendimento pela equipe de saúde da família, aquela mesma que a assistira quando estava acometida por tuberculose. Com esse comportamento, vê-se a iniciativa e o protagonismo da usuária, ao solicitar a troca de profissional, fazendo valer seu direito de escolher o profissional por quem deseja ser atendida. Ressaltase que o relacionamento da usuária com os profissionais da equipe de saúde da família viabilizou a busca por um atendimento diferenciado, ancorado na confiança e no vínculo estabelecido com a equipe que já a havia acolhido. A atitude de Flora corrobora os elementos essenciais da atenção básica apresentados por Trad (2006): confiança e longitudinalidade. Foi a partir desses elementos que Flora reconheceu, nos trabalhadores da equipe do PSF, a possibilidade de existir a disponibilidade e a permanência de uma fonte segura de atenção para seus sofrimentos. Com o acompanhamento pré-natal realizado pela equipe de saúde da família, percebe-se a abertura para uma rede de escuta entre os profissionais e a usuária. Logo no primeiro encontro, ela expôs as várias dificuldades presentes na sua vida, a evidenciar o acolhimento do cuidado em saúde. Este primeiro contato acolhedor, proporcionado pela equipe de saúde da família, propiciou a construção de um elo inicial de Flora com os profissionais. Nesse momento, eles articularam um trabalho em saúde que unia as intervenções técnicas com as subjetivas. Isso permitiu a abertura do diálogo e serviu como suporte para o sofrimento vivenciado pela gestante em sua casa. O achado converge para o que Franco e Merhy (2003) defendem sobre intervenção resolutiva, a qual, conforme os autores, ocorre em um processo de produção de saúde usuário-centrado, em que a importância de acolher e vincular seja reconhecida. No entanto, divergente disto, o processo de trabalho do primeiro médico a atender Flora explorava os sintomas da gravidez, sem uma escuta, sem reconhecer a angústia e a ansiedade da usuária, deixando de perceber e interpretar os fatores que, efetivamente, faziam Flora sofrer. Já a médica e a enfermeira da equipe de saúde da família procuraram, nas ferramentas disponíveis, contornar as dificuldades e desenvolver um cuidado centrado na usuária. Assim, mesmo diante das limitações estruturais existentes, tentaram minimizar a situação de Flora, a despeito da ambiência, pois o consultório era separado ao meio apenas por uma divisória que demarcava o espaço da médica e o da enfermeira, mas não garantia a privacidade da usuária. Embora persistissem a precariedade de equipamentos e a dificuldade para se conseguir exames, os quais eram realizados fora da unidade básica, com um retorno tardio dos resultados, a ênfase era o cuidado a Flora. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Em alguns momentos, percebe-se a iniciativa da equipe em suprir as carências institucionais a partir de uma escuta que possibilitasse à usuária expressar suas angústias, como ter provocado o aborto várias vezes e o temor do seu filho nascer com alguma deformação. No caso, se evidencia que a equipe de saúde da família estabelece uma relação entre trabalhador e usuária baseada em uma intersubjetividade que viabiliza intensos fluxos afetivos, facultando melhor cuidado. Nos exames realizados, a médica constatou a presença de toxoplasmose. Esta doença é causada pela ingestão de carnes mal cozidas que estão contaminadas pelo toxoplasma, ou, na maioria dos casos, ocorre com o contato com a urina e fezes de animais (Carellos, Andrade, Aguiar, 2008). Verificada a presença da infecção, Flora foi encaminhada para uma consulta com um infectologista. Para a enfermeira da equipe de PSF aqui estudada, a toxoplasmose é algo passível de trazer muitas complicações à gravidez, podendo até causar má-formação fetal, prematuridade e abortamento. Tal fato foi utilizado para justificar a restrição do acompanhamento pré-natal de Flora somente pela médica. Dessa forma, não aconteceu a alternância entre uma consulta médica e outra de enfermagem, e isso deixou Flora abalada emocionalmente, pois ela gostava de compartilhar suas vivências com a enfermeira da equipe. Como se pode constar, mais uma vez, embora a usuária tenha conseguido ser atendida pela equipe do PSF, os procedimentos continuaram burocratizados ao se priorizar a norma de conduta em detrimento do acesso da usuária às consultas de enfermagem, como desejava. Além da infecção, a usuária tinha hipertensão, ainda mais aumentada com o excesso de trabalho exigido de Flora. Ela trabalhou durante toda a gravidez como empregada doméstica, era responsável por cozinhar e limpar toda a residência onde trabalhava, dispondo apenas de um dia de folga por semana. Diante de tantos problemas, aumentava o inchaço nas pernas, afora outras complicações. Então, a equipe da unidade sugeriu a Flora parar de trabalhar ou tirar uma licença. Contudo, por não ter carteira assinada e precisar muito do salário, pois seu marido estava desempregado, a sugestão não foi aceita. Nesse momento, a equipe não mencionou qualquer informação sobre como ter seus direitos trabalhistas respeitados, apesar de tais informações serem indispensáveis em um modelo de cuidado em saúde que prime também pelo aspecto social. Aqui enfatiza-se a necessidade de conhecimento dos serviços pela equipe de saúde com vistas a propiciar orientações adequadas e implantar, de fato, uma rede de cuidados capaz de incentivar autonomia às usuárias gestantes. Ainda como observado, com o desenvolvimento do cuidado a esta usuária, a enfermeira da equipe presenteou o marido de Flora com uma bicicleta, possibilitando-lhe vender desinfetantes em domicílio para ajudar na renda familiar. Tal iniciativa não caracteriza vínculo, pois este pressupõe acompanhamento do projeto terapêutico, através de formas de cuidado que potencializem o usuário para o cuidado de si. Houve, evidentemente, uma atitude positiva da profissional, ao ajudar o outro na sua necessidade, mas isto não é demonstração de ser o vínculo uma diretriz de organização dos serviços. O fato mencionado aparece como algo isolado, embora se considere haver vínculo em outros momentos do cuidado, caracterizando uma busca por alternativas para auxiliar a usuária nesse processo de corresponsabilização do cuidado. Sobressai, portanto, a carência de ferramentas institucionais que deem conta das demandas da usuária. Diante desta carência, os profissionais recorrem aos próprios valores, juízos e recursos de trabalhos, personificando suas ações a partir de modelos assistencialistas. Apesar disso, Flora, em sua entrevista, ressaltou, repetidamente, a importância da sua relação com os profissionais da unidade. Ela disse estar muito grata por sua atenção, conselhos e escuta, como pode ser observado a seguir: “Se eu não tivesse possibilidade de falar tudo que eu estava passando eu ia morrer engasgada. Eu não podia falar nada em casa, não podia falar com os vizinhos... porque nenhum presta... são fofoqueiros. Prefiro conversar com o médico, enfermeiro... eles me dão conselhos certos”. (Flora) “O meu relacionamento com a médica e com a enfermeira foi ótimo, ela olhava como tava o bebê e conversava comigo...”. (Flora)

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Segundo Flora, o contato com os profissionais de saúde da unidade foi uma forma de compensar a rejeição do seu marido, que passou os sete meses da gravidez pressionando-a para fazer o aborto ou entregar a criança para outra pessoa criar ao nascer. Ainda como relatou a usuária, em outros aspectos, seu período de gestação foi tranquilo, não havendo muitas complicações fisiológicas. Entretanto, segundo ressaltou, a maior dificuldade sentida foi em sua “cabeça”, em virtude da rejeição do marido, conforme exposto a seguir: “... meu marido tinha entojo de mim, ele não queria nem olhar para minha cara, eu não tinha família, vim ter contato com minha mãe há pouco tempo... não fui criada por ela, então, tive que agüentar tudo... não tinha para onde ir...”. (Flora) “Tive tanta raiva, Deus foi muito bom por não ter tirado meu filho... passei todo o tempo da gravidez chorando... chorava direto por causa do meu marido... foram os piores meses de minha vida. A sorte foi ter o pessoal do posto... tive muita sorte”. (Flora) “Não tive nenhuma complicação... só quem teve enjôo de mim foi meu marido, não tive anemia, foi tudo normal... o problema foi em casa que afetou minha cabeça”. (Flora)

Embora se observe uma tentativa subjetiva da equipe de saúde da família de, em alguns momentos, redirecionar o processo terapêutico para um cuidado ampliado em saúde, a maior parte das vivências da usuária na UBS estão pautadas nas carências do sistema público de saúde quanto a dar condições mínimas para que o atendimento aconteça de forma integral. Consoante se observa, os dispositivos do cuidado integral não são instituídos no serviço de saúde, e, sim, em práticas assistencialistas, desenvolvidas com base em critérios subjetivos estabelecidos por cada profissional. Talvez a sequência de direitos violados, verificados no caso, ocorra por causa de uma cultura dos profissionais de saúde de aceitação conformada do desrespeito. Evidentemente, a usuária estava deprimida, e a equipe não conseguiu perceber isto, ou não atuou no intuito de amenizar seu estado depressivo, demonstrando quanto o cuidado em si ainda é precário na equipe de PSF, mesmo diante da dedicação de alguns profissionais.

Momento de conclusão do processo terapêutico: parto e puerpério A conclusão do processo terapêutico no pré-natal diz respeito: ao encaminhamento à maternidade, ao acompanhamento do profissional na hora do parto, às informações necessárias recebidas pela usuária para preparação para o parto, e à visita puerperal domiciliar. Nesse âmbito, os dados empíricos convergiram para um nó crítico na preparação de Flora para o parto pelos profissionais. Buscou-se saber se foi explicado o que iria acontecer. De acordo com ela, não lhe explicaram nada, e, talvez, por não ser sua primeira gravidez, pensaram que ela não teria dúvidas. No entanto, como consta, no seu relato, no pré-parto, ela sofreu bastante, pensando na dor que iria sentir, como também na fantasia de que o bebê nasceria deformado, em decorrência das suas tentativas de aborto. Desse modo, a falta de informações estimulou a elaboração de medos e fantasias em relação ao desconhecido, como pode ser conferido no discurso a seguir: “Antes do parto tinha medo de passar a dor de novo, mas assim que chegou lá tive logo. Já tive dois partos, mesmo assim, continuava com medo do que poderia acontecer, imaginei que ele nasceria com alguma deformação devido o remédio para abortar que tomei...”. (Flora)

Outro nó encontrado diz respeito à falta de acompanhamento dos profissionais da equipe pré-natal na ocasião do parto. No caso de Flora, não houve nem mesmo um encaminhamento para determinada maternidade. A própria usuária, que teve seu parto normal na 36º semana de gravidez, procurou uma maternidade. Como a usuária ressaltou, ela desconhecia o direito de ter um acompanhante durante o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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parto. Foi-lhe, então, perguntado quem ela teria convidado se soubesse desse direito. Flora prontamente citou o nome da médica da equipe de saúde da família, enfatizando que se sentiria muito segura se isso tivesse ocorrido. Tal fato mostra o elo estabelecido entre a médica e a usuária. Contudo, não se configura uma construção de vínculo, mas sim o suprimento das carências da usuária, pois, mesmo desassistida em vários aspectos, ainda tem o profissional de saúde como ponto de segurança. Porém, com esta ação, demonstra-se um momento de desrresponsabilização no processo de cuidado integral, porquanto a equipe não prestou as informações necessárias nem o devido acompanhamento no momento do parto. Ainda conforme Flora relatou, a equipe não pôde fazer visitas puerperais em sua residência. Como na época não estava havendo visitas, a usuária teve de se deslocar até a unidade para a consulta. Nesse momento, a médica informou que o recém-nascido não apresentava nenhuma má-formação ou patologia. De acordo com informação da coordenadoria da unidade, nesse período, a unidade estava sem transporte para o deslocamento da equipe até a casa das famílias. Segundo os profissionais, as visitas deveriam ocorrer até o sétimo dia após o parto, entretanto, muitas vezes, acontecem apenas 42 dias depois. Os profissionais justificam a demora alegando a indisponibilidade de transporte e a grande demanda de usuários para atendimento, as quais os impossibilitam sair da unidade para ir até a casa das puérperas. Ficou evidente que as demandas de serviços apresentadas pelas usuárias requerem modelos de atenção à saúde que, muitas vezes, não possuem similaridade com os modelos utilizados para o cuidado. Sobressai o insuficiente quadro de profissionais para cobrir toda a demanda, com consequente restrição de algumas atividades, como a visita puerperal. As observações revelaram diversos nós existentes que retratam um problema na microestrutura do processo de trabalho daquela unidade básica, como de planejamento com todos os trabalhadores do serviço, além de um problema macroestrutural da saúde coletiva. Ocorrem, então, ocasionando direcionamentos da coordenação para os profissionais, sem uma tentativa de cogestão, a evidenciar que ainda é premente, nos trabalhadores de saúde da unidade, a pouca disponibilidade para resolução de tal problema. Como se pode perceber, com base nas análises feitas nesse estudo, a equipe de saúde da família ainda não viabiliza um cuidado integral em saúde. Faltam, sobretudo, aspectos importantes para o estabelecimento desse cuidado. Conforme Campos (2007), para se atingir uma prática compartilhada do trabalho em saúde, é imprescindível a ampliação do poder do usuário no cotidiano dos serviços, como: valorizar e facultar a presença de um acompanhante sempre que possível, assegurar o acesso às informações, e considerar a capacidade de autocuidado como indicador de eficácia da atenção.

Considerações finais Diante da análise empreendida, percebe-se que a equipe de saúde da família em foco tem efetuado esforços para desenvolver ações no pré-natal destinadas a assistir o sujeito que delas necessita, mas tais ações não alcançam um verdadeiro cuidado integral. Como evidenciado, o acolhimento e o vínculo, que guardam estreita associação com esse tipo de cuidado em saúde, foram os dispositivos mais distanciados da relação dos profissionais da equipe de saúde da família com a usuária. Todavia, em momentos pontuais, determinadas ações favoreceram uma escuta, apontando para o início de um processo de acolhimento e vínculo, embora não fosse algo institucionalizado, e sim condutas adotadas conforme os valores pessoais de cada profissional de saúde. Ademais, nem o cuidado integral que favorece o compartilhar das experiências psicossociais nem a corresponsabilidade pelo processo terapêutico estiveram presentes nos membros da equipe da unidade básica; e, na análise do acolhimento da usuária pelos outros trabalhadores de saúde (primeiro médico a atendê-la e nos trabalhadores da recepção), revelaram-se as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na busca de garantir seu pré-natal. Observaram-se relações burocratizadas, tensas e com baixa responsabilização pela saúde do outro.

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O fato de haver um médico que faz o atendimento burocrático e não acolhedor e outros profissionais que produzem uma relação interpessoal mais aberta e mais receptiva demonstra não haver uniformidade no modo de produção do cuidado à gestante, ou seja, cada um conduz suas práticas de acordo com distintos modelos assistenciais. Mas a convivência entre diferentes modelos resulta em tensão e conflito com a proposta do cuidado integral aos usuários. Neste sentido, o caso descrito mostra vários conflitos, funcionando como analisador do modelo de produção do cuidado presente na unidade. Com esse estudo, coloca-se a possibilidade de se repensar o cuidado dispensado à mulher que procura o pré-natal, desde a porta de entrada da unidade básica até suas visitas domiciliares na fase puerperal, já que esse é um período peculiar, muito sensível e delicado na vida de cada uma delas.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ALBUQUERQUE, R.A. Produção do cuidado (des)integral na atenção ao pré-natal. 2008. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. 2008. AYRES, J.R.C.M. Cuidado e humanização das práticas de saúde. In: DESLANDES, S.F. (Org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p.49-83. BARATA, R.C.B. Saúde e direito à informação. Cad. Saude Publica, v.6, n.4, p.385-99, 1990. BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de humanização no pré-natal e nascimento. Brasília: Secretaria de Políticas de Saúde, 2000. CAMPOS, G.W.S. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2007. CARELLOS, E.V.M.; ANDRADE, G.M.Q.; AGUIAR, L.A.M.P. Avaliação da aplicação do protocolo de triagem pré-natal para toxoplasmose em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil: estudo transversal em puérperas de duas maternidades. Cad. Saude Publica, v.24, n.2, p.391-401, 2008. FORTALEZA, S.M.S. Plano municipal de saúde de Fortaleza: 2006-2009. Fortaleza: Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, 2008. FRANCO, T.B.; MERHY, E.E. Programa de Saúde da Família (PSF): contradições de um programa destinado à mudança do modelo tecnoassistencial. In: MERHY, E.E. et al. (Orgs.). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano: o debate no campo da saúde coletiva. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 2003. p.135-57. LOURAU, R. A análise institucional. Petrópolis: Vozes, 1996. MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec, 2002. ______. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: MERHY, E.E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em saúde, um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.71-112. ______. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de portas abertas para a saúde e o modelo tecno-assistencial em defesa da vida. In: CECILIO, L.C.O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec, 1994. p.235-333.

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ALBUQUERQUE, R.A. et al. Producción del cuidado integral durante el prenatal: itinerario de una mujer embarazada en una unidad básica de salud de la familia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.677-86, jul./set. 2011. Esta investigación ha tenido por objetivo comprender la producción del cuidado integral en la atención al prenatal de una Unidad Básica de Salud de Fortaleza, Brasil. Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con una usuaria, cuyo prenatal fue acompañado por una Unidad Básica de Salud de la Familia, y observaciones sistemáticas de sus consultas prenatales. Los análisis del material, realizados de acuerdo con el fluxograma analítico de Merhy, han revelado la burocratización del acogimiento en la puerta de entrada, una secuencia de derechos violados enlarelación equipo usuaria y el bajo acceso de la usuaria a informaciones sobre parto y puerperio. Se concluye que el acogimiento, el vínculo y la responsabilización no son todavía dispositivos institucionalizados em el equipo de salud de la familia. El cuidado se pauta en los valores individuales de cada profesional, lo que de por sí no posibilita la integralidad de la asistencia durante el prenatal.

Palabras clave: Cuidado prenatal. Salud de la familia. Salud de la mujer. Recebido em 18/10/10. Aprovado em 07/03/11.

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Autonomia e cuidado em terapia intensiva pediátrica: os paradoxos da prática*

Maria Cristina Senna Duarte1 Martha Cristina Nunes Moreira2

DUARTE, M.C.S.; MOREIRA, M.C.N. Autonomy and care in pediatric intensive care: the paradoxes of practice. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.687-99, jul./ set. 2011. We cover the meanings attributed by family members and healthcare professionals to events, relationships, practices and social phenomena relating to the field of care within the intensive care setting. The data analysis was based on phenomenological sociology, with priority for meanings relating to autonomy. Twenty-five interviews were conducted: six with members of families that had children hospitalized in this service; and 19 with healthcare professionals working in the unit. Observations on the participants were made inside the pediatric intensive care unit. We concluded that pediatric intensive care requires understanding of autonomy as recognition of the trio of self-realization, self-esteem and selfrespect. This trio is a constituent of the subject’s condition and should drive the relationships between professionals, children in critical states of health and adults responsible for these children. In intensive care environments, technology alone is incapable of responding to the multiple variables that arise from such situations.

Abordamos os significados atribuídos pelos familiares e profissionais de saúde sobre fatos, relações, práticas e fenômenos sociais, relacionados ao campo do Cuidado em ambiente de terapia intensiva. A análise dos dados teve por base a Sociologia Fenomenológica, priorizando os significados relacionados à autonomia. Foram realizadas 25 entrevistas, sendo seis com familiares que tinham crianças internadas no serviço, e 19 com profissionais de saúde que trabalhavam na unidade, e observações participantes no interior da unidade de terapia intensiva pediátrica. Concluímos que o cuidado intensivo em terapia intensiva pediátrica demanda o entendimento da autonomia como reconhecimento, baseado na tríade: autorrealização, autoestima e autorrespeito. Essa tríade é constituinte da condição de sujeito, que deveria mover as relações entre profissionais / responsáveis / crianças em estado crítico de saúde. Em ambiente intensivista, a tecnologia por si só não é capaz de responder às múltiplas variáveis que emergem das situações.

Keywords: Pediatric intensive care. Autonomy. Tertiary care.

Palavras-chave: Terapia intensiva pediátrica. Autonomia. Cuidado terciário.

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Elaborado com base em Duarte (2010), pesquisa aprovada pelo CEP do Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz). 1 Hospital Federal da Lagoa, Ministério da Saúde. Rua Jardim Botânico, 501, Jardim Botânico. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.470-050. mcsenna@globo.com 2 Programa Saúde & Brincar, Departamento de Pediatria, IFF/ Fiocruz. *

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Introdução O incremento da tecnologia na saúde propiciou o concomitante surgimento de serviços de atendimento terciário, altamente equipados. Nesse cenário, situam-se os CTIs ou UTIs: conjunto de Unidades de Terapia Intensiva agrupadas num mesmo local (Brasil, 1987). Estes concentram pacientes graves, equipamentos técnicos mais caros e sofisticados, e equipe com conhecimento e experiência para cuidar desses pacientes e lidar com essa aparelhagem própria. Os CTIs surgem nos Estados Unidos entre 1946 e 1948, e, no Brasil, surgem na década de 1960, só existem ou são construídos dentro de uma estrutura maior, que é o próprio hospital, dotado minimamente de condições tecnológicas para contê-lo (Menezes, 2006). Estudos apontam para a importância de se refletir sobre as consequências do cuidado em ambientes de maior complexidade (Lamego et al., 2005); e outros relacionam a temática da humanização como algo urgente de ser apropriado pela vertente da valorização de processos de trabalho e das tecnologias comunicacionais (Deslandes, Mitre, 2009; Souza, Moreira, 2008). Frente a esse quadro, a discussão sobre o resgate do humano e de suas dimensões afetivas ganha vigor, por apontar que esse grande avanço tecnológico segmenta o saber e pode levar à fragmentação e fragilização da perspectiva humana. Em função da instabilidade, gravidade e emergência das situações clínicas dos casos atendidos, os profissionais, muitas vezes, centram-se nos sinais e sintomas que põem em risco a vida, reduzindo, a saúde, ao estado crítico do risco de morte, perdendo a perspectiva integral e complexa do processo de cuidado. Nesse sentido torna-se um grande desafio, em unidades intensivistas, dialogar com as estratégias oficiais de resgate do valor complexo e integral do cuidado à saúde, que se deu na forma da instituição, em 2003, da Política Nacional de Humanização (PNH). A PNH (Brasil, 2004) se estrutura como um texto orientador, aberto às leituras e apropriações pelos diversos níveis de atenção à saúde. Considerando que este artigo é um recorte de uma pesquisa maior (Duarte, 2010), elegemos analisar os significados do cuidado relacionados à autonomia - uma das dimensões centrais da PNH (Brasil, 2004) - como contexto político, no ambiente de terapia intensiva pediátrica.

Material e métodos O campo da pesquisa foi a Unidade Pediátrica e Neonatal Cirúrgica de um hospital público situado no município do Rio de Janeiro. À época da pesquisa, possuía sete leitos, contando com 62 profissionais de nível superior e técnico, sendo: 24 servidores federais, 37 profissionais com contrato temporário, e um com vínculo municipal. A pesquisadora chefiava essa unidade há três anos e subchefiava há 16 anos, tendo sido supervisora da equipe praticamente desde sua inauguração. A posição familiar e próxima ao serviço foi manejada durante a pesquisa, por meio de supervisões de orientação da pesquisa, e da escrita de diários de campo. Concordamos com Gomes e Menezes (2008) e Velho (1999), e consideramos viável e instigante pesquisar o familiar gerando estranhamentos e aproximações, construindo conhecimento de caráter antropológico. Foram realizadas 25 entrevistas: seis com familiares com crianças internadas no serviço, e 19 com profissionais de saúde que trabalhavam na unidade, no período de maio a agosto de 2009. Dos familiares, cinco destes eram mães, e um tratava-se do pai da criança. Foram realizadas dezessete observações participantes em dias e horários diferentes, inclusive quatro finais de semana. As observações geraram 91 páginas de diário de campo. Cada observação variou de uma hora a três horas. A entrevista era aberta, com roteiro baseado nos eixos temáticos do cuidado, acolhimento e autonomia, centrais no contexto da política sanitária de humanização da atenção e gestão em saúde. A análise dos dados baseou-se na sociologia fenomenológica de Schutz (1979), gerando núcleos temáticos com os significados atribuídos pelos familiares e profissionais de saúde sobre fatos, relações, práticas e fenômenos sociais, relacionados ao campo do Cuidado em ambiente de terapia intensiva. A opção por essa grade analítica se deu pelo fato de que as definições sobre Cuidado e a busca de valorização das intenções, ações e interações face a face no ambiente de terapia intensiva se apoiam nas interações e na intersubjetividade. A perspectiva de Schutz mostrou-se útil na medida em que atribui valor às 688

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situações, e aos sujeitos em situação, de tal forma que, muito embora a pesquisadora tivesse uma história muito próxima ao ambiente que se propôs estudar, foi necessário colocar em suspensão perspectivas, valores e ideias anteriores para deixar emergir o sujeito e sua relação com os objetos como se mostravam nos momentos de observação participante e entrevistas.

Resultados e discussão Com base na leitura, organização e análise do material primário, emergiram, na pesquisa que dá origem ao presente artigo, três grandes núcleos de significados; para fins deste artigo, escolhemos o núcleo de significados que revela a temática da autonomia, assumindo-a como um princípio relativo e relacional, inseparável da abordagem da situação e das relações estabelecidas, e que deve ser valorizada mesmo nas situações de adoecimento crítico (Soares, Camargo, 2007). Para esses autores, a discussão sobre autonomia implica compreender – no resgate de autores clássicos como Canguilhem, Morin, e Illich – a saúde como: vida, como potência autorrecuperadora do organismo humano vivo, reconhecimento e valorização da diversidade, da multiplicidade, da capacidade criativa dos seres vivos, de sua necessidade de inter-relações de autonomia/dependência como condição mesma de vida. Valorizando essa posição teórica, avançamos na direção das análises de Honneth (2003), articulando a autonomia à categoria de reconhecimento, tal como proposta pelo autor. O autor valoriza o resgate de valores que se desenvolvem muito precocemente, em períodos que remontam à primeira infância, evocando a teoria winnicottiana. A geração de relações de autoconfiança, o amor e o autorrespeito são bases importantes para a construção do reconhecimento. Esta categoria liga-se ao desenvolvimento da consciência de ser um sujeito de direito; e, para o autor, os sujeitos de direito só podem ser assim considerados se encontrarem condições de desenvolverem sua autonomia, decidindo racionalmente sobre questões morais. Além disso, essa condição de sujeito de direito é fruto de uma relação e de uma condição: a preservação da liberdade e a participação na vida pública. Esta última permite a emergência da vontade e do acesso aos bens materiais para sobrevivência, e do sentimento coletivo de solidariedade. Esse reconhecimento jurídico permite o desenvolvimento do autorrespeito. Honneth (2003) não deixa, portanto, de associar a teoria crítica sobre a sociedade ao campo da intersubjetividade, e da avaliação quanto ao desenvolvimento da autoestima e da autorrealização. O reconhecimento é fruto de uma forma positiva de autorrelacionamento, e se encontra com a ideia de autonomia como possibilidade de dependência positiva. Segundo o autor, o indivíduo vincula-se a uma rede de relações intersubjetivas, e, portanto, é estruturalmente dependente dos outros indivíduos. Para a nossa análise sobre autonomia e cuidado em ambientes de terapia intensiva, é fundamental a consideração de Axel Honneth sobre situações-limite. Ele toma, como exemplo, situações de privação violenta de autonomia onde a resposta é o sentimento de injustiça. No curso do artigo, e das análises do material que emerge nas relações estabelecidas e significadas pelos adultos – sejam eles profissionais, ou pais e mães – com as crianças e adolescentes em situações críticas de adoecimento, a ligação da autonomia com o núcleo da informação/comunicação, processo de trabalho e tomada de decisão, e as rotinas e protocolos do intensivista justificam uma reflexão sobre ações que comprometem as dimensões do autorrespeito, da autoestima, da autorrealização constituintes da autonomia. E é possível afirmar que isso se dá sem a intenção de provocar tais iatrogenias, que comprometem a autonomia, mas em nome de práticas de cuidado preservadoras da vida, e que, de certa forma, servem à função de manter o profissional estável diante do sofrimento e da dor provocados pelo cuidado em terapia intensiva pediátrica.

A) A autonomia na vertente da informação/comunicação Consideramos como sendo o primeiro paradoxo – no sentido de convivência entre contrários – a ideia de que pensamos que nos esforçamos para fazer os pais compreenderem, mas os afastamos todo momento numa atitude autoritária, muitas vezes latente na postura finalista da informação. Essa postura não contribui para um olhar sobre o processo, e reforça o utilitarismo das ações: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“muitas vezes você pode falar com o pai de uma forma que ele não entenda, por que é necessário ele entender [...] constantemente eles são colocados pra fora! Quando... tem procedimento... pra fora! Raio-X, pra fora! Banho, pra fora! [...] A gente coloca pra fora, e normalmente não são chamados para voltar!”. (Entrevista nº 17, Técnico de Enfermagem, 07/07/2009, p.117-8)

A informação funciona como um mediador entre profissionais de saúde e usuários, um campo complexo sujeito às interpretações e valores, por isso pode conduzir a paradoxos, como, por exemplo, convidar os pais a participarem do tratamento, via orientações, e, ao mesmo tempo, retirá-los da unidade em que se processam os cuidados, esquecendo de trazê-los de volta. Nesse processo informativo, podem surgir práticas ora mais dialógicas, ora mais restritivas. No caso de uma unidade de tratamento intensivo de crianças, os pais funcionam como mediadores na ligação entre o universo da vida afetiva familiar comum e a gravidade das situações de saúde das crianças, que limitam sua comunicação, que as restringem a um ambiente onde a gravidade se combina com práticas muito especializadas, envoltas em uma aura de segredo, mistério e gravidade. Deslandes (2004) aponta que a linguagem é um instrumento que reúne diversas dimensões: de gênero, poder, classe social. E essas dimensões refletem uma cultura e constroem as relações e interações no ambiente de saúde. Ao informarmos, entendemos que os familiares devem se apropriar da real situação, mas, dentro do sentido da autonomia, parece ser necessário mais do que falar uma linguagem que eles possam entender; como aborda o trecho acima, parece ser necessário compreender a complexidade daqueles sujeitos e nos fazermos compreendidos. E, na dimensão da análise da autonomia, segundo Honneth (2003), é preciso considerar a dimensão intersubjetiva, e a capacidade de serem geradas relações positivas de autorrespeito e autoconfiança. No caso, estando as crianças e adolescentes criticamente adoecidos, seus pais devem ser estimulados a serem mediadores de contato, a valorizarem sinais que indiquem a vida em seus filhos. Se, para Honneth (2003), a autonomia está vinculada ao reconhecimento e à criação de redes positivas em prol da capacidade de decidir moralmente, as ações de saúde precisam resgatar esse imperativo humano, a fim de propiciarem a emergência de sujeitos. Nesse jogo é relevante problematizar a construção compartilhada e responsável do cuidado, e não somente a orientação/ informação, refletindo sobre o lugar de cada um, profissional de saúde e usuários, no caso, familiares das crianças e adolescentes, para que, de fato, a situação possa ser apreendida de forma que todos possam se direcionar para o Cuidado. Na ação do profissional de saúde, convivem traços de autoritarismo e paternalismo, assim como de reflexão crítica sobre os limites que impomos aos pais nos cuidados aos filhos em um ambiente de terapia intensiva. Muitas vezes, informações fortemente baseadas na linguagem técnica reforçam o surgimento daquilo que podemos denominar “pacientes tecnicamente informados”. Esse tipo de paciente – muito comum no caso de crianças e adolescentes com doenças crônicas e/ou muito graves – costuma reproduzir o discurso técnico, dominando-o em detalhes e evitando o contato com o afeto que reside no legítimo processo dialógico. Ou seja, mimetiza com o saber técnico naquilo que mais prejudica a associação entre conhecimento e afeto: na reprodução de jargões destituídos de sentidos singulares, que podem gerar distanciamento no processo de contato e conforto à criança e/ou adolescentes adoecidos gravemente. Tal campo não deixa de se aproximar do debate sobre as relações de poder e hierarquia que se estabelecem no processo de atenção à saúde, no que se refere às relações no interior das categorias profissionais: “[...] é que a enfermagem não trabalha em conjunto com o médico! [...] vê uma coisa e esquece de falar, [...] a criança não fez xixi e não avisa . [...] depende do médico, tem uns que não perguntam. Eu acho que a enfermagem tem que trabalhar mais com o médico, com o fisioterapeuta, tinha que ser uma coisa interdisciplinar. [...] Eu boto a boca no trombone!”. (Entrevista nº 22, Técnico de Enfermagem, 16/07/2009, p.160-1)

Ou seja, há uma disputa entre categorias profissionais, mas também entre profissionais e familiares, e estes últimos, no cotidiano, aprendem que, em um lugar onde todos sabem muito, eles também 690

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precisam saber, procurando incorporar, no discurso, certos termos, explicações. Observa-se isso, sobretudo, quando a doença dos filhos evolui cronicamente. E à época da pesquisa, dois dos seis leitos da unidade de terapia intensiva estudada estavam ocupados com crianças com esse perfil. Ressaltamos, no entanto, que reproduzir os termos técnicos, nem sempre significa compreendê-los, e pode gerar uma dissociação entre saber e afeto. Ao destacar a importância da construção em conjunto da atenção, é denunciado o baixo índice de comunicação/ação interdisciplinar, e até o diálogo de tomar decisão a partir de determinadas evidências clínicas. Essas evidências estão relacionadas ao campo de práticas de cada um dos segmentos profissionais, e referidas ao estado de saúde de quem está criticamente hospitalizado. No caso, a enfermagem pode, pela característica de seu saber e processo de trabalho, estar atenta e próxima de determinados aspectos mais integradores do campo da atenção, e que tanto se referem às funções fisiológicas como à manipulação do corpo doente, identificando demandas de cuidado. No cotidiano, a enfermagem, mesmo sendo formada a partir desse olhar, não pode, solitariamente, estimular mudanças no cuidado se não enfrentar a fragmentação que as rotinas impõem às práticas. Ao fragmentarmos o atendimento do paciente, desviamos sua posição de sujeito do processo para objeto, e ainda ignoramos a ideia de que os sujeitos autônomos são dependentes e responsáveis uns pelos outros (Soares, Camargo, 2007). Ou ainda, na perspectiva da autonomia que assumimos como autorrealização e autorreconhecimento, postulamos um possível antídoto contra o risco de não serem estimuladas redes de relações positivas e articuladas, gerando uma fragmentação do cuidado. Os paradoxos reafirmam a complexidade do cotidiano, e a possibilidade da convivência entre opostos. Um segundo paradoxo diz respeito ao fato de que a forma como ocorre o processo de trabalho em saúde remete mais à segmentação das funções, hiperespecialização e baixa esfera de comunicação entre os atores do processo. Moreira (2009) reconhece que a autonomia não equivale à independência, mas à interação como elemento importante em saúde, uma interação baseada na ação em rede, construída pela interdependência das ações, diálogo e intersecções. A autora destaca ainda que a ideia do pertencimento a uma rede de relações, associado ao reconhecimento (Honneth, 2003), faz com que o trabalhador realize o caminho inverso de sua formação, que é o desafio de ampliar sua ação, buscar negociar, construir processos de entendimento mútuo. Esse processo coloca o trabalhador numa dinâmica que o faz reduzir o entendimento da humanização, na perspectiva da negociação, a um processo civilizatório, de estabelecimento de relações cordiais. A autora aponta que, mais do que cordialidade como tolerância, é necessário o entendimento de que o diálogo é uma ferramenta para negociações e enfrentamento dos conflitos, que constituem um motor positivo para a interação. Como exemplo, na entrevista acima, a necessidade de “colocar a boca no trombone”, parte da necessidade de ser ouvido e reivindicar sua posição de pertencimento a uma equipe, para melhor cuidar. Assumir o conflito é assumir a necessidade de negociação, e de criação de estratégias de encontro que promovam vínculos, e não esgarcem as relações. Ainda com Soares e Camargo (2007), a discussão sobre autonomia vai ao encontro do estímulo ao empoderamento e a responsabilidade dos doentes, em uma ética pautada na solidariedade e no respeito, relacionada a uma discussão sobre as relações entre os saberes e os poderes no campo da saúde, e a construção democrática. Nesse ponto preciso, a análise de Honneth (2003) é útil ao valorizar as ideias de justiça e liberdade, como apoios para o reconhecimento: “Não é que eu não fique no banho, às vezes eu entro, eu penso que ele já tomou banho, e ele não tomou, aí quando eu saio e volto, ele já tomou banho! Ele ainda não tinha tomado banho, eu também não pergunto pra menina [a técnica de enfermagem] se ele já tomou banho [...]. Até agora não me falaram exatamente o que ele tem, só falaram que estava com suspeita de meningite, mas estão pesquisando ainda se é meningite mesmo, se é infecção... Eu gostaria de saber aonde que é essa infecção, como ele pegou, até pra quando eu voltar pra casa eu já ter mais cuidado [...]”. (Entrevista nº 1, Familiar, 22/06/2009, p.2)

O trecho anterior merece destaque na função complementar ao paradoxo construção de comunicação/autonomia/redução da participação/restrição do reconhecimento, que vem sendo COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desenvolvido. Isso porque se destaca que: 1) a interação profissional/usuário, na situação de realizar o banho no leito, é quase nula, a não-referência à criança se estende à não-comunicação com a mãe quando esta se apresenta; 2) a interação profissional/profissional/equipe de saúde, no processo de socializar as informações e o conhecimento sobre os quadros de saúde das crianças e adolescentes internados na unidade, pode trazer dificuldades de acesso a essas informações e pode gerar interferências no processo de cuidar, e, portanto, no Cuidado construído, inclusive em ações preventivas. Se, para os profissionais, a construção da autonomia na vertente da democratização e acesso à informação é de fato um desafio no contexto do trabalho em equipe, cabe destacar que, muitas vezes, a participação dos familiares no cuidado não ocorre de forma compartilhada, mesmo nos cuidados comuns, como o banho. Muitas vezes, a mãe se mostra tímida para perguntar, e a ela não é dada a possibilidade do poder da participação, ou seja, ela é colocada na posição em que muitos profissionais se situam: excluídos, desconhecendo a importância de determinados processos, com pouco ou nenhum conhecimento sobre as situações. Nessa direção, destacamos o trecho abaixo: “A mãe está “olho a olho” com a filha, riem, conversam, as duas estão bem tranqüilas. A mãe arruma o travesseiro. Me lembro da conversa sobre as irmãs de 8 e 10 anos virem visitá-la no aniversário em julho, da minha resposta negativa, das lágrimas da mãe. Penso que posso dar um jeitinho, ainda não sei como”. (Diário de Campo, 01/06/2009, p.36)

Geralmente, por regra, em uma unidade intensiva, não é permitida a visita de irmãos. Com o prolongamento de algumas internações, cada vez mais comum nas transformações por que passam o sistema de atenção e a sobrevivência com suporte tecnológico, aumentam os desafios que dizem respeito à capacidade de negociação com as famílias, incluindo elementos que antes não faziam parte desse cenário. Nessa direção, a capacidade de conjugar informação e comunicação, dedicar um tempo a esse processo de construção de autonomia pode ser mais demorada do que o tempo de fornecer informação sem diálogo. Muitas vezes, reconhece-se a percepção que a mãe tem da importância de saber e de poder cuidar da filha, mas, ainda assim, desenvolvem-se poucos instrumentos para que as participações nos processos de tomada de decisão se deem. Esse movimento vai ao encontro da análise de Soares e Camargo (2007), ao afirmarem que a autonomia não está presente na forma como se constroem os processos e interações na relação desses sujeitos. As formas que predominam acabam pautadas no paternalismo e autoritarismo na mediação das decisões e relações. Nesse ambiente, tudo se encaminha para o isolamento, a restrição e a redução do sujeito à capacidade de sustentar e investir na vida, na superação de agravos, de limites físicos, na ânsia de vencer a morte. Ultrapassar os limites das normas e protocolos é passar do mundo objetivo para o mundo subjetivo dos sujeitos, valorizando seus desejos e possibilitando a ampliação do Cuidado na atenção à saúde. A construção de autonomia encontra-se assentada na promoção de ações que valorizem esse mundo subjetivo, e reinventem a assistência instituindo mecanismos de valorização desse mundo, que é o mundo das relações.

B) A autonomia na vertente do processo de trabalho e tomada de decisões O duplo movimento de cuidar do corpo físico, sem perder a capacidade de atentar para o mundo das relações, não redutíveis ao sofrimento individual, aponta para a necessidade de transformações profundas nos conceitos de saúde e doença. Destacamos o trecho a seguir: “A médica retornou a unidade e disse: ‘Toda semana queriam colocá-la aqui. A médica do CTI entubou na enfermaria, pois chegou lá estavam tentando sem conseguir, ela não teve opção’. ‘Entrou para o CTI, já era, por isso, optei por trocar o tubo orotraqueal’ (TOT), disse outra médica do CTI. ‘Já tinha sido combinado em não fazer nada, agora já era, vai ter que fazer traqueostomia’, disse outra pessoa. Estavam todos abalados com a entrada da criança, 692

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a sensação foi de imposição, tentaram entubar na frente da mãe, depois chamaram o CTI. Segundo a médica da enfermaria, a mãe não estava preparada. Em meu primeiro contato com a mãe, ela me disse: ‘Doutora, já tinha entregado minha filha à Deus’”. (Diário de Campo nº 7, 03/06/2009, p.45)

A desarticulação entre todos os sujeitos envolvidos no Cuidado, na situação acima, evidencia que a biomedicina como prática objetiva de resoluções imediatas introduz tensões e conflitos entre os sujeitos envolvidos. A criança passa a ser tratada como um objeto sobre o qual é preciso intervir acima de qualquer possibilidade de participação, negociação, inclusão da mãe no entendimento e consequências dos procedimentos. Em relação a essa discussão sobre o trabalho em saúde e os processos de tomada de decisão, destacamos um desdobramento analítico na discussão sobre autonomia. Evocamos, aqui, Honneth (2003) e a importância de estímulo à capacidade de realizar escolhas morais; e ainda que a criança esteja em situação crítica, seus familiares buscam participar, através de cuidados simples, gestos e olhares. E, para Schwartz (2007), o relativo domínio dos protocolos em uma situação de trabalho baseiase no conhecimento técnico, entendido como o primeiro ingrediente da competência. Esse ingrediente deve ser e estar processualmente articulado a outros, à custa de produzir-se uma descontextualização da pessoa em relação à sua situação, em relação à sua vida e seus desejos: “[...] por conta da exigência do trabalho, você ter que controlar o balanço [hídrico], a saturação, saber quando ele melhora mais ou não, se ele está com a pressão boa ou não. Então você acaba visando muito mais a fisiopatologia do que o cuidado humanizado, aí depois, você perde a noção de que aquilo ali é um ser humano, se você tiver que conseguir um acesso venoso, você vai furar vinte vezes e em nenhum momento você vai pensar ‘Pôxa, preciso dar um tempo pra essa criança descansar! Não vou furar mais, vou dar um tempo pra ela, está chorando muito, está estressada!’ [...]”. (Entrevista nº 17, Técnico de Enfermagem, 07/07/2009, p.106-7)

O entrevistado se sente pressionado no ambiente do cuidado intensivo, pela mobilização exclusiva da competência técnica. Na medida em que discorre sobre essa experiência, percebe-se que essa pressão pela técnica é questionada, por meio de um processo de dar-se conta de que a criança não se resume a um corpo-objeto, mas que merece descansar, respirar. Esse tempo não é só para a criança, mas para o próprio profissional, que se vê diante de um limite colocado pela técnica que não pode ser imediata. Em ambiente intensivista, onde o objetivo maior é a estabilidade hemodinâmica e fisiopatológica do paciente, parece que a competência tecnológica está sempre à frente e acima de qualquer necessidade. Essa necessidade de “dar um tempo” para a criança e também para si próprio evoca a discussão sobre o segundo nível da competência, que não se restringe à técnica e que, para Schwartz (2007), revela-se como o “encontro dos encontros”. Essa expressão significa o encontro de todas as interfaces, que são: os ambientes técnicos, humanos, os procedimentos, os hábitos. Supõe competências, que são diferentes do primeiro ingrediente. Aqui, há que se deixar apropriar pelo histórico e singular da situação: “Eu não suporto ver uma criança chorando, eu tenho que ir lá e cantar pra ela dormir, acalentar. Eu não suporto ver uma pressão arterial baixa, eu tenho que ir lá perturbar o médico: ‘Olha, a freqüência cardíaca está alta!”. (Entrevista nº 5, Enfermeira, 25/06/2009, p.31)

Na fala acima, o “não suportar ver” impulsiona a busca da articulação da face protocolar à face singular do trabalho, conforme conceitua Schwartz (2007). Os protocolos devem ser ajustados permanentemente ao que a situação tem de particular, em um encontro de encontros. Colocar em dialética os dois primeiros ingredientes é um trabalho importante: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“O monitor estava tudo normal, ela estava mantendo uma saturação que ela sempre mantém, a frequência cardíaca estava boa, mas a criança estava séptica. Quer dizer, às vezes, o que o monitor está mostrando não é o que está acontecendo com o paciente, e as pessoas só querem olhar para o aparelho, não param um minuto e olham pra criança pra ver: ‘Não, o aparelho está marcando uma coisa, mas ela não está me parecendo o que está marcando no aparelho!’, quanto mais tecnologia... menos você se preocupa com a pessoa!”. (Entrevista nº 23, Técnico de Enfermagem, 21/07/2009, p.167)

Em um ambiente intensivista, a tecnologia, por si só, não é capaz de responder as múltiplas variáveis que emergem das situações, assim, articular todos os ingredientes, conforme descrito por Schwartz, nos parece imprescindível. Para Schwartz (2007), cabe, ainda, considerar o campo dos valores ligados ao uso das normas, as impostas e as instituídas na atividade. O debate sobre as normas pode se traduzir no sentido que a pessoa atribui ao meio e o torna parte de sua identidade. Ou seja, em que medida ela pode fazer de forma que este meio de trabalho seja, em parte, o “seu”: “você pode pedir a uma pessoa para trocar uma fralda numa criança evacuada e ela pode se sentir humilhada [...] mas a mesma fralda pode ser trocada por uma pessoa que entenda que aquele cuidado é um cuidado científico [...] Então, o procedimento pode ser humilhante ou pode ser [...] científico, e a pessoa se sentir bem porque contribuiu para que a criança não venha a perder um membro por infecção ou não venha a morrer por infecção generalizada [...] Fazer a pessoa entender o porquê ela está cuidando é melhor do que obrigar a cuidar! [...]”. (Entrevista nº 17, Técnico de Enfermagem, 07/07/2009, p.107)

Uma análise possível, do trecho acima, diz respeito ao fato de que toda técnica se articula a um valor atribuído à mesma (é sujo, é feio, é bonito), que passa, muitas vezes, pela ação desenvolvida, por aquilo que faz parte do processo e do objeto do trabalho do profissional. Desenvolver uma técnica, que mobilize a interação com o corpo do paciente e com aquilo que é socialmente representado como sujo, pode fazer com que o trabalhador se identifique com um fazer sujo, ou hierarquicamente menos nobre. Esse tipo de valor descontextualiza a ação realizada de outro tipo de valor ligado ao Cuidado com o corpo, em uma situação de limite físico e incapacidade para o doente, de total dependência, que pressupõe que essa ação contribui para a vida, para o bem-estar, para a avaliação técnica do corpo e de suas respostas. O referido trecho traduz, ainda, a riqueza da dimensão relacional dos sujeitos com valores e representações que evocam um campo de sentidos compartilhados, e ao mesmo tempo posições diferentes. Para um doente em situação de cuidado intensivo, ter alguém que cuide de seu corpo de maneira confortável é oferecer-lhe um sentido humano. Nesse caso, ao se discutirem valores e normas, abre-se espaço para os sujeitos se aproximarem numa situação de trabalho, envolvendo-os em um mesmo universo, onde diversos significados convivem. E ainda, analisar o trecho dessa entrevista nos serviu como recurso para a exposição de Schwartz (2007) sobre o quarto ingrediente da competência, referido aos valores em diálogo com técnica. Para Schwartz (2007), a ativação ou a duplicação do potencial da pessoa, com suas incidências sobre cada ingrediente, se articula à capacidade de compreender que, quando o meio passa a ter valor para você, todas as outras competências são potencializadas. Essa identificação com trabalho e com o meio ambiente, onde o mesmo se dá, não deixa de vincular-se à motivação que precisa ser continuamente estimulada: “Algumas vezes ele muda o comportamento! Enquanto ele está motivado, ele vai trabalhando, agora, a partir do momento em que ele perde a motivação, aí o negócio desanda um pouco. Tem que motivar novamente esse profissional [...]”. (Entrevista nº 5, Enfermeira, 25/06/2009, p.30)

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Essa noção de que, esse processo de Cuidado, desenvolvido no trabalho em terapia intensiva, precisa ser alvo de atenção permanente, relaciona-se com aquilo que Schwartz (2007) denomina como tirar partido das sinergias de competências em situação de trabalho: identificar qual é o verdadeiro valor de cada um no trabalho em equipe. Esse último “ingrediente” fala sobre assumir responsabilidades, onde se deve assumir e ser modesto, onde convém ser: “Entende-se que médico é a pessoa mais habilitada da equipe, o enfermeiro logo depois, pela sua formação acadêmica, e o técnico faz um procedimento mais manual, ele acaba sendo considerado uma pessoa de pouca instrução, assim subentende-se..., mas muitas vezes a vivência do profissional alerta pra um outro cuidado, que esbarra nessa questão do conhecimento”. (Entrevista nº 17, Técnico de Enfermagem, 07/07/2009, p.109)

Analisando o trecho acima, destacamos como cada um dos segmentos da equipe se coloca diante do conhecimento, e diante da capacidade de esclarecer e tomar decisões. Para tanto, ele situa e analisa posições e avalia que conhecimento e ação necessitam não somente dos protocolos, mas das vivências, mas não exclui de sua reflexão a relação entre conhecimento/hierarquia.

C) A face protocolar do cuidado intensivista e a reivindicação da autonomia Em unidade intensiva, os protocolos de atendimento ao paciente são modelos generalizantes, fundamentados em dados científicos da “medicina baseada em evidência”. O caráter mecanicista e o analítico são tecnologias de suporte de vida nesse ambiente. Invariavelmente, o paciente está acoplado às máquinas e seu funcionamento é dividido em sistemas: cardiovascular, renal, nutricional, hematológico, hemodinâmico, respiratório, neurológico. Interessante notar que nas evoluções, apresentações de casos em round, ao se dar notícias aos familiares, seguimos essa sequência de isolar as partes de um todo, oferecendo uma lógica que reduz e, pretensamente, organiza, de maneira mais utilitária, a ação. Em terapia intensiva, a ação está primeira e imediatamente voltada para: manter a homeostasia do paciente, e, se possível, sua vida de relação - aqui também não considerando o sentido ontológico, mas o retorno do funcionamento mecânico. A nosso ver, a vida de relação engloba o sentido humano e afetivo dos relacionamentos, incluindo as emoções e demandas de apoio, e, também, aspectos materiais como: dinheiro para deslocar-se e visitar com frequência seus filhos; lugar para dormir e acompanhar o filho; banheiro para usar durante a visita; permissão para visitas ampliadas, dentre outros. Essa relação entre tratar pacientes e o efeito de mecanicidade emergiu ao se observar o campo de pesquisa em um dos dias previstos: “Estou com fome e com aquela sensação novamente de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”: Alarmes que tocam, TV ligada sem ninguém ver, técnicas e enfermeiras que entram e saem da unidade, passam álcool nas mãos, tiram ou colocam os capotes, a cada entrada nos leitos. Lustram as crianças nos banhos como objetos. Tudo irritavelmente mecânico e repetitivo”. (Diário de Campo, 25/05/2009, p.25)

Em ambiente intensivista, o modelo mecanicista, expresso pela relação dura com a tecnologia, reduz a interface entre o paciente e o mundo. Esta torna-se mais importante que o próprio sujeito, sintetizando o modelo de intervenção, na redução do sujeito doente a um objeto, e anulando as capacidades de construção da autonomia no processo de cuidado. A tecnologia dura – descrita por Merhy (1999) como referida aos equipamentos, insumos, protocolos – associada aos riscos de vida, pela instabilidade crítica da saúde das crianças e adolescentes, pode ser usada como justificativa para reduzir o processo de escuta do outro. Entretanto, a tecnologia leve – das relações entre os sujeitos, o diálogo ativo, a escuta atenta – não deveria ser desconsiderada, ao contrário, pode e deve existir permeabilidade entre elas, sabendo-se que é a tecnologia leve que move as relações, inclusive com equipamentos e suas leituras. Vejamos o trecho a seguir: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“Já o olhar da mãe é concentrado, olha a criança, os pés, as mãos, vê se responde a seu chamado, ao seu toque, depois olha em volta, tenta entender os monitores, o respirador, as linhas dos soros, e por fim, tenta encontrar o olhar de alguém da equipe, e se encontra, em geral, pergunta algo”. (Diário de Campo, 04/06/2009, p.47-8)

Ou seja, o olhar da mãe busca reconhecer, em seu filho, indicativos que resgatem sua autonomia, suas capacidades de existir como seu filho. No entanto, ela não desconsidera o ambiente, com seus monitores, números, barulhos, mas busca dar sentido a isso, em um diálogo silencioso, onde fica clara a intersubjetividade. É justamente o diálogo e a intersubjetividade que as aproximam, mãe e criança. E, para Honneth, (2003) a intersubjetividade é a base da geração de valores relacionados ao autorreconhecimento. Em muitos momentos, identificamos, nos universos da pesquisa, o sujeito puramente objeto: “As crianças todas estão quietas, ninguém fala, chora ou reclama”. (Diário de Campo, 28/05/2009, p.30)

Para Testa (1992), a transformação do paciente em objeto não é um fato isolado e circunstancial, mas, sim, constatação de que qualquer paciente é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito. A enfermidade de origem biológica, que afeta órgãos definidos, faz com que se destaque o caráter objetual do indivíduo que padece dessa enfermidade e, portanto, o tratamento desse particular objeto. A objetualização incontrolada, todavia, produz consequências negativas para o paciente e o profissional de saúde, sendo a subjetividade e a socialidade importantes para a eficácia do tratamento. Testa insiste que considerar o paciente em sua condição de objeto é uma necessidade parcial da atenção ao paciente, mas a objetualização absoluta leva a sofrimentos de pacientes e profissionais. O sujeito objeto não é inanimado, ele, de alguma forma, reage, interage, reclama, seja por ele próprio, seja através dos cuidadores familiares ou profissionais. Esse constante movimento fica expresso nas seguintes observações: “João começa a gemer, como sempre ninguém olha, escuta ou fala com ele”. (Diário de Campo, 14/05/2009, p.10) “Técnica de enfermagem, está no leito de Yuri, se dirige a mim e diz que Yuri está chupando o tubo orotraqueal (TOT) como se fosse chupeta, sorri e percebo que gosta do que viu”. (Diário de Campo, 18/05/2009, p.18)

Ainda segundo Testa (1992), o paciente assume inconscientemente sua característica de objeto, que é a única que pode garantir as necessidades do serviço, e assim resolver suas próprias necessidades. No ambiente intensivista pediátrico, o sujeito é uma criança ou adolescente com características especiais. Possivelmente, diferentemente do adulto, a movimentação de buscar seu lugar como sujeito se faça de forma mais poderosa através: 1) do choro; 2) do gemido; 3) do olhar dos cuidadores familiares; 4) do olhar dos cuidadores profissionais em momentos de aproximação.

Conclusões Pesquisar sobre o cuidado em terapia intensiva pediátrica significa situar os sujeitos, os lugares e as ações, perguntando sobre suas relações e a intersubjetividade construída, em prol da autonomia. Entendida como reconhecimento, a autonomia necessita resgatar a ação em rede em um ambiente onde, paradoxalmente, a rotina de cuidar do paciente crítico pode isolá-lo como objeto. Nessa rede, os familiares e os profissionais apresentam formas de olhar que valorizam pequenos sinais, mas com atribuições de valores diferentes: o familiar olha os detalhes em busca do resgate da vida de relação de seus filhos; já o profissional dirige seu olhar para os detalhes com vistas a associá-los ao saber técnico 696

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dos índices, monitores. Apontamos dois paradoxos no curso do artigo, que servem como pontos de apoio para se refletir sobre a possibilidade de construção de um Cuidado integral: 1) o compromisso em manter familiares informados sobre o estado de saúde de seus filhos baseia-se num discurso utilitário, informativo e tecnicamente fundamentado, que convive com as práticas que reduzem a participação do familiar no cotidiano desse cuidar. Esse tipo de ação contribui para o surgimento de “pacientes/ familiares tecnicamente informados”, com uma dissociação do afeto que permeia o cuidado em ambiente intensivista; 2) a ideia de saúde, associada a pleno funcionamento de um organismo, com autonomia de vida, contrasta com um processo de Cuidado onde é reduzida a comunicação e a participação do familiar. Por hipótese, a perspectiva de uma criança e de um adolescente dependentes criticamente de aparelhos, com uma autonomia monitorada, acaba por encobrir e silenciar um olhar sobre os familiares. A gravidade dos quadros de saúde e o processo de trabalho de uma unidade intensiva caracterizam um “fechamento” desse espaço, gerando uma aura de segredo e mistério sobre as ações em terapia intensiva. Esse campo reduz a valorização de outras formas de comunicação, interação, que, por vezes, emergem e que os familiares sabem resgatar, valorizando a autonomia como reconhecimento. Consideramos fundamental se discutirem estratégias de autonomia em um ambiente de terapia intensiva. Se os sujeitos-alvo dos cuidados à saúde estão limitados física e emocionalmente, muitas das vezes sem consciência, seus familiares não o estão, e buscam resgatar a autonomia como capacidade de decidir e participar. Esse resgate da intersubjetividade pode ser possível no lócus das visitas de familiares e em algumas ações dos profissionais, ao se valorizar o exercício de formas de comunicação que demonstrem interações. Um dificultador a ser enfrentado está no próprio ambiente, onde predomina a preocupação real com a gravidade, que gera círculos de segredo, por mais que os profissionais mantenham informados os pais. A informação sem mediações, e espaços coletivos de acolhimento e possibilidade de troca, acaba por gerar inquietações sobre o estado de saúde das crianças, sobre seus processos de dependência tecnológica e possível cura, sobre a possibilidade de contato físico. Os responsáveis, mães e pais, buscam: restabelecer contatos, sinais indicativos de normalidade em seus filhos. Isso se dá através de gestos, conversas, olhares, que introduzem, no interior do ambiente intensivista, outras maneiras de olhar e valorizar as crianças. Tais ações apontam para a tentativa de os pais restabelecerem seus filhos como sujeitos de fato e de direito, gerando esferas de reconhecimento que contribuam para a sua recuperação e autonomia. Para isso, eles inauguram novas relações a partir da situação de gravidade, redescobrindo seus filhos, e reivindicando outros patamares de autonomia. No ambiente fechado da terapia intensiva, a estabilização das funções vitais, na base biológica do corpo, é o princípio das ações. O que contrasta com a autonomia que crianças, adolescentes e seus pais demandam: que é a autonomia do sujeito humano, na sua integralidade, que inclui desde aspectos emocionais até aspectos materiais (dinheiro para deslocar-se e visitar com frequência, lugar para dormir e acompanhar o filho, banheiro para usar durante a visita, permissão para visitas ampliadas, dentre outros). A discussão sobre o Cuidado em um cenário de alta complexidade, no nível de atenção terciária, vai ao encontro da autonomia como reconhecimento, o que pode contribuir para a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: crianças em situação de adoecimento, familiares e profissionais. Em ambiente intensivista, a tecnologia por si só não é capaz de responder às múltiplas variáveis que emergem das situações. Se não houver articulação que favoreça o cruzamento da tecnologia dura ao projeto de Cuidado como reconhecimento da condição de sujeito, não construímos sujeitos, e não cuidamos de sujeitos, mas apenas mantemos “estabilizados” corpos acoplados e sustentados pela tecnologia dura.

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Colaboradores Maria Cristina Senna Duarte conduziu a pesquisa de campo e a construção e redação do artigo, a partir da dissertação de mestrado. Martha Cristina Nunes Moreira orientou a dissertação do mestrado e foi corresponsável pela redação, revisão e análise do artigo. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização HumanizaSus. Política Nacional de Humanização. A humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: MS, 2004. (Série B, Textos Básicos de Saúde). ______. Ministério da Saúde. Terminologia básica em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 1987. DESLANDES, S.F. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Cienc. Saude Colet., v.9, n.1, p.7-14, 2004. DESLANDES, S.F.; MITRE, R.A. Processo comunicativo e humanização em saúde. Interface – Comunic., Saude Educ., v.13, p.641-50, 2009. DUARTE, M.C.S. Os significados do cuidado em Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica. 2010. Dissertação (Mestrado) – Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2010. GOMES, E.C.; MENEZES, R.A. Etnografias possíveis: “estar” ou “ser” de dentro. Ponto Urbe (USP), v.1, p.1-13, 2008. Disponível em: <http://www.n-a-u.org/pontourbe03/ Gomes&Menezesa. html>. Acesso em: 12 abr. 2011. HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003. LAMEGO, D.T.C.; DESLANDES, S.F.; MOREIRA, M.E.L. Desafios para a humanização do cuidado em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal Cirúrgica. Cienc. Saude Colet., v.10, n.3, p.669-75, 2005. MENEZES, R.A. Difíceis decisões: etnografia de um centro de tratamento intensivo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. MERHY, E.E. O ato de governar as tensões constitutivas do agir em saúde como desafio permanente de algumas estratégias gerenciais. Cienc. Saude Colet., v.4, n.2, p.305-14, 1999. MOREIRA, M.C.N. Uma cartografia dos dispositivos institucionais de humanização da atenção à saúde em ambientes hospitalares: um enfoque a partir do processo de trabalho e do associativismo em saúde. Relatório Técnico de Pesquisa apresentado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Edital Universal MCT/CNPq 02/2006 Processo: 479487/2006-5). Rio de Janeiro, 2009. SCHUTZ, A. Textos escolhidos de Alfred Schutz: fenomenologia e relações sociais. Organização e Introdução de Helmut R. Wagner. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. SCHWARTZ, Y. Uso de si e competência exposição de Yves Schwartz. Trad. Paulo Cezar Zambroni de Souza e Maria Eliza Borges, 2007. Disponível em: <http:// www.esnips. com/doc/2f12dc79-358e-479d-a17a-476939056411/trabalho-euso_de_si>. Acesso em: 12 abr. 2011. SOARES, J.C.R.; CAMARGO JR., K.R. A autonomia do paciente no processo terapêutico como valor para a saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.11, n.21, p.65-78, 2007.

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DUARTE, M.C.S.; MOREIRA, M.C.N.

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SOUZA, W.S.; MOREIRA, M.C.N. A temática da humanização na saúde: alguns apontamentos para debate. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.12, n.25, p.327-38, 2008. TESTA, M. O hospital: visão desde o leito do paciente. Rev. Saude Mental Colet., v.1, n.1, p.47-54, 1992. VELHO, G. Observando o familiar. In: ______. (Org.). Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 6.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.122-32.

DUARTE, M.C.S.; MOREIRA, M.C.N. La autonomía y la atención en cuidados intensivos pediátricos: las paradojas de la práctica. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.687-99, jul./set. 2011. Hablamos de los significados atribuidos por los familiares y profesionales de la salud acerca de los hechos, las prácticas de relaciones y fenómenos sociales, relacionados con el ámbito de la atención en la unidad de cuidados intensivos, según la perspectiva de la sociología fenomenológica. Realizamos 25 entrevistas: seis con familiares que tenían niños ingresados em el servicio, y 19 entrevistas com profesionales de la salud que había trabajado em la unidad y con observación participante en el interior de la unidad de terapia intensiva pediátrica. Concluimos que el cuidado intensivo en terapia intensiva pediátrica demanda el entendimiento de la autonomia como reconocimiento basado en auto-realización, auto-estima y auto-respeto.

Palabras clave: Cuidados intensivos pediátricos. Autonomía. Atención terciaria. Recebido em 05/11/10. Aprovado em 04/04/11.

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artigos

Um relato de vida, um caminho institucional: juventude, medicalização e sofrimentos sociais *

Ana Paula Serrata Malfitano1 Rubens de Camargo Ferreira Adorno2 Roseli Esquerdo Lopes3

MALFITANO, A.P.S.; ADORNO, R.C.F.; LOPES, R.E. A life story and an institutional path: youth, medicalization and social distress. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.701-13, jul./set. 2011. A life story is presented with the aim of analyzing the particular manifestations of an individual path, in dialogue with the elements present in the lives of young people in popular groups. It focuses on discussion of social equipment for production of meanings, places and distress in some lives, which causes processes in which “diseases” and medicalization are generated from social problems. Based on the assumptions of ethnographic research, the path followed by a young woman through the social services for child and youth care and for mental health was tracked for four years. It is considered that social politics should intervene among youth people under a broad comprehension of social problems; and that the field of mental health care, in connection with the social sphere, should provide care in situations of distress without homogenization of needs, which would translate into iatrogeny and medicalization of the social context.

Keywords: Adolescent. Life story. Social work. Iatrogeny. Social medicalization.

Apresenta-se uma história de vida com o intuito de traçar uma análise das manifestações particulares de uma trajetória individual em diálogo com os elementos presentes na vida de jovens de grupos populares. Foca-se na discussão dos equipamentos sociais na produção de sentidos, lugares e sofrimentos em algumas vidas, ocasionando processos em que “doenças” e medicalização são geradas a partir de problemas sociais. Com base nos pressupostos da pesquisa etnográfica, acompanhou-se a trajetória de uma jovem, por quatro anos, em sua passagem por serviços sociais de atenção à infância e à juventude, assim como de saúde mental. Considera-se que as políticas sociais devem intervir com jovens sob uma compreensão ampliada dos problemas sociais, sendo que o campo da atenção em saúde mental, em conexão com a esfera social, deve cuidar das situações de sofrimento sem que haja a homogeneização das necessidades, traduzindo-se numa iatrogenia e na medicalização do social.

Palavras-chave: Adolescente. História de vida. Serviço social. Iatrogenia. Medicalização social.

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Artigo referenciado em parte dos dados de Malfitano (2008), pesquisa com apoio da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para doutorado no país e estágio doutoral no exterior (Centre de Recherche Médecine, Science, Santé et Société da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, França). 1,3 Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal de São Carlos, Laboratório METUIA. Rodovia Washington Luís, km 235. São Carlos, SP, Brasil. 13.565-905. anamalfitano@ufscar.br 2 Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. *

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UM RELATO DE VIDA, UM CAMINHO INSTITUCIONAL: ...

Apresentação As trajetórias de vida tecem-se na composição de elementos individuais, de seu microcosmo, com o macrossistema definido pelo contexto em que se inserem (Meihy, 1998), sendo indissociáveis da relação entre cultura, situação socioeconômica e universo privado da vida. Partindo dos pressupostos da pesquisa etnográfica, trazendo a temática estudada à cotidianidade, conforme Goldman (2006), buscamos analisar as particularidades de uma trajetória individual de uma jovem pertencente a grupos populares urbanos. Circunscrevemos os grupos populares urbanos na estrutura da divisão social do trabalho, entendendo como “populares” aqueles advindos dos grupos de “trabalhadores”, ou seja, agentes que, nas práticas sociais de trabalho, ocupam um lugar determinado na esfera econômica, pois dependem da venda de sua força de trabalho, compreendendo desde os trabalhadores assalariados com um emprego “estável” até o conjunto daqueles que realizam atividades precárias e, mesmo, os que vivenciam o desemprego estrutural, uma vez que configuram a “totalidade do trabalho social, a classe trabalhadora e o mundo do trabalho” (Antunes, 2003, p.98, grifo original). Na construção de uma perspectiva de análise da questão popular, trata-se, entretanto, de não circunscrevê-la apenas à categoria econômica, aglutinando-se a dimensão sociocultural, apreendida como mecanismos organizativos de cotidiano, submissão e resistência, observados pelos comportamentos, modos de vida, linguagem, entre outros elementos (Bourdieu, 1983). Assim, a história de vida apresentada relata sobre uma jovem de camada popular, filha de trabalhadores ou pessoas excluídas do universo do trabalho, que têm uma sociabilidade e um cotidiano marcados pela vinculação à sua posição social. São apresentados alguns elementos, destacando-se o papel dos serviços e das políticas sociais no direcionamento de determinados caminhos na vida daquela garota. Nosso enfoque recai sobre a discussão acerca do objetivo, da responsabilidade e da influência dos equipamentos sociais na produção de sentidos, de lugares e de sofrimentos em algumas vidas. Cíntia : sofrimento social e caminhos institucionais 4

Cíntia morava na cidade de São Paulo, com sua família; seu pai era estrangeiro, de nacionalidade paraguaia. Ela era a caçula da casa, com mais duas irmãs. Quando criança, por volta dos oito anos, foi morar com a avó paterna e o pai no Paraguai. Retornou ao Brasil, com 12 anos, por meio de um encaminhamento da justiça paraguaia, indo morar com sua mãe na cidade de Campinas, SP. As razões alegadas foram que ela havia sofrido abuso sexual por parte do pai, e sua avó não tinha condições de criá-la. Tais fatos foram relatados por Cíntia, por sua mãe e pela documentação enviada pela justiça local. Cíntia afirmava, ainda, que seu pai havia sido preso porque ela “contou o que ele fazia”, demonstrando preocupação com esse acontecimento. Quando retornou ao Brasil, sua mãe havia se casado novamente e tido um filho. Logo após a chegada de Cíntia, sua mãe teve outra filha, em relação à qual Cíntia expressava intenso afeto. Em Campinas, Cíntia tinha o hábito de sair de casa e ficar caminhando pela vizinhança. Era bastante conhecida nos serviços sociais do bairro, como no centro de saúde. Tinha um sotaque estrangeiro - misturando palavras em português e castelhano -, uma fragilidade aparente e uma necessidade de contato com as pessoas, expressa por sua busca constante de contatos e convivência nos serviços pelos quais circulava. 702

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4 O nome, apenas, é fictício e foi escolhido pela jovem em sua colaboração neste trabalho. Este relato compõe dados de uma pesquisa realizada com o acompanhamento, durante quatro anos, de serviços sociais direcionados a adolescentes em situação de rua, em Campinas, SP. Esses dados são fruto de nossa convivência com a adolescente e de registros de diferentes profissionais e serviços que, também, a acompanharam. Partimos da ótica dos serviços sociais, buscando dar luz às contradições criadas no processo e na dinâmica vivenciadas e ao sofrimento social produzido a partir delas.


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artigos

Apresentava alguns episódios de “agressividade”, momentos de rebeldia, quando não obedecia aos adultos, ameaçava quebrar objetos e, sobretudo, dirigia-se para a rua, para suas caminhadas, mesmo quando fisicamente impedida, segundo sua mãe. Em uma dessas situações, com 14 anos, sua mãe chamou o serviço de urgência médica, e Cíntia foi levada para o setor psiquiátrico de um hospital da cidade, onde ficou internada. Podemos interpretar esse momento como um evento crítico vivenciado por Cíntia, conforme conceito de Kleinman, Dass e Lock (1997), na medida em que a jovem adquiriu, como veremos, um conhecimento que a acompanhou por toda sua história, marcado por aquele evento de sofrimento. Iniciou, com ele, sua passagem pelos serviços de saúde mental e psiquiatria, bem como o uso de medicamentos psicotrópicos, o que acarretaria características fundamentais à sua trajetória. Desde então, foi marcada por esses equipamentos de saúde e não mais conseguiu interromper essa vinculação em seu caminho. Após sua alta, manteve acompanhamento ambulatorial no mesmo local. O setor psiquiátrico não havia fechado um diagnóstico, pois argumentava que, primeiramente, ela era adolescente, em formação, podendo modificar suas características e evoluir, ou não, para um quadro psiquiátrico; posteriormente, avaliava que as grandes carências afetivas, sociais e culturais, observadas na história de vida da menina, poderiam dar margem à confusão com algum quadro sintomatológico, que, na verdade, representaria uma outra natureza de problema, e não uma doença mental. Assim, a medicação administrada destinava-se aos sintomas de agressividade e ao controle de ansiedade. Um dia, após esse evento, saiu de casa acompanhada da irmã de dois anos, sem avisar a mãe. Passou a noite perambulando com a menina, de quem tanto gostava, pela cidade. No dia seguinte, ao voltar para casa, sofreu ameaças de morte por parte do padrasto, pai da sua irmã, preocupado com a criança pequena. Motivada por esse episódio, Cíntia retornou sozinha para a rua, dirigindo-se espontaneamente ao serviço ambulatorial da rede de atenção em saúde mental, vinculado a uma Universidade local, onde recentemente havia iniciado um acompanhamento, relatando o ocorrido. Foi acolhida pela equipe de referência, que, assustada com o episódio, optou por encaminhá-la a um abrigo, com a função de ser uma casa provisória para aqueles que não podem estar sob a guarda de seus responsáveis, avaliando que seria “perigoso” se ficasse em convivência com a sua família. Nessa situação subsequente à internação psiquiátrica, Cíntia viveu outro episódio marcante de sua trajetória: a entrada em serviços sociais, os quais a acompanharam, a partir dali, por todo seu percurso, e delinearam importantes traços em sua vida. Sob o signo da tutela, em virtude da ameaça de morte sofrida, técnicos optaram pelo acolhimento da menina em um local para abrigamento protegido, em contraposição à mediação familiar. É evidentemente compreensível a postura adotada em função de um risco concreto, sendo a decisão amparada na lei, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). Entretanto, conforme aponta Fonseca (2005), observa-se uma tendência de tecnificação das relações familiares populares em detrimento de uma capacidade de análise sobre os “modos de vida” enraizados naquela classe social, expressos em seus costumes, linguagens e valores. Não houve uma análise aprofundada da representação social daquela situação no contexto familiar, na medida em que não se conhecia a dinâmica ali estabelecida, nem se buscaram elementos acerca da ameaça concreta por parte do padrasto e do lugar ocupado por Cíntia naquela família. Assim, podemos apontar uma precipitação no encaminhamento realizado, que se desdobrou em fatos concretos na vida daquela menina. Tal opção compôs, juntamente com a internação, um roteiro de institucionalização e psiquiatrização da jovem, com um histórico familiar que demandava atenção e cuidado, inserida num contexto periférico de pouco acesso a serviços e bens sociais. Ficava explicitada a demanda por ações que se dedicassem à compreensão da situação de Cíntia, sem a necessidade de levá-la, como primeiro passo, para o abrigamento. Em vez de o trabalho técnico direcionar-se para o fortalecimento e para a ampliação dos suportes pessoais e sociais referidos à Cíntia, a proposição de tutela, juntamente com “punição” à família, pela situação desencadeada, enfraqueceu seus laços familiares. Cíntia foi encaminhada para um abrigo que atendia, prioritariamente, adolescentes em situação de rua. Em sua chegada à instituição, demonstrava uma diferenciação em relação ao perfil dos demais adolescentes que lá estavam, uma vez que não tinha a experiência de viver nas ruas. Pelos seus aspectos pessoais e pelas suas diferenças com aquele contexto, envolvia-se em brigas constantes e 703


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requeria uma contínua intervenção individualizada dos profissionais da casa. Não conseguia realizar as tarefas propostas para todos no cotidiano (como arrumar seu quarto, cuidar de suas roupas, entre outras), exceto quando algum profissional a acompanhava e ajudava. Acumulava, ainda, uma especificidade marcante: o uso de medicação psiquiátrica, administrada pelos profissionais locais. Tais particularidades geravam desconforto na dinâmica institucional com os demais adolescentes, que questionavam os motivos do seu tratamento especial, dizendo que ela era “louca”, motivados pela observação de sua indisposição à realização das tarefas da casa e, notadamente, pelo uso contínuo de medicação. Tinha também dificuldade para realizar as práticas de higiene pessoal e eram frequentes episódios de mau cheiro, resistência ao banho, contaminação por piolho e outros. Assim, Cíntia não fazia amigos na instituição, pouco se relacionava com seus pares e mantinha vínculos “apenas” com os técnicos. Fato recorrente em sua vida, já que tais dados estavam presentes desde sua chegada a Campinas, na circulação pelos equipamentos sociais daquele território. A partir desses episódios, Cíntia iniciou um trânsito entre a estigmatização e o real sofrimento psíquico, ocupando um lugar de diferença, preconceito e sofrimento social, explicitado na convivência com meninos e meninas em situação de rua, seu grupo de pares naquele momento, e, também, com alguns profissionais e serviços por onde passou. Em paralelo à entrada no abrigo, iniciou, também, o acompanhamento em um serviço de saúde destinado a adolescentes. Concebido como um Centro de Referência de Atenção Integral à Saúde do Adolescente, passou, posteriormente, a ser um Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas5, voltado para a população infantojuvenil (CAPSad-i). Seu objetivo era o cuidado de adolescentes em situação de vulnerabilidade social, notadamente aqueles em situação de rua. Primava por um trabalho individualizado e personalizado, factível pelo número de profissionais que compunha sua equipe. Cíntia foi acompanhada individualmente nesse serviço por quatro anos, tendo desenvolvido referências com toda a equipe. O processo de institucionalização, privação de liberdade e estigmatização de um grupo, em função da sua doença, do local em que se encontra para tratamento, ou de outras circunstâncias que a levaram até o asilamento, é descrito em profundidade por Goffman (1974), que enfatiza o efeito perverso e a dinâmica de construção de identidades nesse papel. Deve-se, portanto, lançar um olhar crítico sobre as proposições de articulação entre as políticas sociais e de saúde, sem menosprezar o sofrimento possível, mas com o cuidado de não “criar” predisposições, pré-requisitos e predeterminações para o rótulo de “doente”, “louco” ou outro estigma. Quando se trata da aproximação da temática da infância e juventude com a saúde mental, é mister todo o cuidado para não se produzirem marcas e olhares sociais estereotipados que desvalorizem essa população, sobretudo com aqueles já imersos em contextos de desrespeito e preconceitos. É necessário que se clarifique a real demanda dos indivíduos para atenção e acolhimento do sofrimento psíquico. Cíntia demonstrava, nitidamente, sofrimento e dificuldades que precisavam de cuidados, fortemente entrelaçados com sua condição social e histórico de vida que, contudo, pareciam não determinar um quadro psiquiátrico. Fassin (1998) aborda o encontro entre a saúde pública e o espaço social por meio das intervenções realizadas com as “figuras urbanas da saúde pública”, ou seja, situações sociais que ganham lugar de intervenção na saúde. Exemplifica com os moradores de rua (sem domicílio fixo, no termo francês), usuários de drogas (abordados pelos programas de redução de danos), jovens de periferia, entre outros, os quais são tratados como “figuras”, e não como sujeitos. 704

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5 Equipamento da Saúde Mental que deve “oferecer atendimento diário a pacientes que fazem um uso prejudicial de álcool e outras drogas, permitindo o planejamento terapêutico dentro de uma perspectiva individualizada de evolução contínua” (Brasil, 2004, p.24). Integra a Política Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde.


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6 La figure, c’est en effet, d’une part, la forme extérieure d’un corps, ce qui en fait l’apparence, voire dans une acceptation plus précise, le visage de la personne, ce qui en exprime les traits et, d’autre part, la répresentation visuelle de la chose, que l’on se situe dans le mond de l’art ou dans le domaine de la rhétorique.

artigos

A figura é, de fato, de um lado, a forma exterior de um corpo, feito uma aparência, visto como uma resignação mais precisa, o aspecto da pessoa, que é expresso nas suas características; de outro lado, é a representação visual da coisa que se situa no mundo da arte ou no domínio da retórica. (Fassin, 1998, p.10)6

Com suas características e particularidades, Cíntia apresentava uma adesão instável às instituições que frequentava, com movimentos de idas e vindas, sem um enraizamento. Tal fato pode ser atribuído às precárias respostas que as instituições lhe ofereciam, pois suas demandas submergiam na dinâmica dos serviços, que tinham como foco a população de adolescentes em situação de rua. Com isso, ela passou a estabelecer um fluxo de movimento similar ao seu comportamento quando estava morando em sua casa. Não encontrando um lugar social para ocupar, buscava circular em outros espaços. A partir da entrada no abrigo, em contato com aqueles com vivências nas ruas, começou a fazer um circuito que passou a incluir o centro da cidade. Com saídas não autorizadas do abrigo, ela dirigia-se às ruas, com o propósito de visitar sua família, profissionais de instituições por onde tinha passado e ficar, em alguns momentos, com outros grupos, com mais frequência os adultos em situação de rua; poucas vezes estava entre os adolescentes, demonstrando sua frágil inserção entre eles. Nesses momentos em que circulava pelas ruas, eram comuns os episódios de brigas, seguidas de lesões físicas leves, quando se envolvia com outros jovens, com adultos em situação de rua, ou com agentes de intervenção, como a polícia. Uma das vulnerabilidades que vivenciava nessas ocasiões era em relação a práticas sexuais, elemento constante em episódios de sua trajetória. Havia boatos de que tinha sofrido agressão sexual, por parte de adolescentes no abrigo, tido relações sexuais concedidas na casa; sabia-se que utilizava o sexo nas ruas como elemento de troca, na busca de comida, local para dormir e afeto. Cíntia não falava diretamente sobre esse tema, fazia apenas referências vagas em seu discurso sobre “um homem” que lhe concedia um local para dormir; “um homem” que lhe dava, regularmente, comida quando nas ruas; “um homem” que tinha um cachorro e deixava que ela brincasse com o animal; “um homem que era bom”. Vinculado à temática, Cíntia apresentou um quadro de sífilis, de origem desconhecida, passando a necessitar de cuidados intensos, para os quais foi acompanhada pelas instituições que frequentava, por meio dos profissionais do abrigo e do serviço de saúde (CAPSad-i). Seu percurso, em tangência com as relações sexuais, exemplificava a complexidade do fenômeno denominado exploração sexual e combatido pelas diretrizes do governo brasileiro (Brasil, 2006). A exploração sexual, na modalidade prostituição, aborda situações de uso da criança ou do adolescente para propósitos sexuais, em troca de algo (favores, dinheiro, afeto), praticado por um adulto que se beneficie dessa prática por meio de uma relação de poder (Leal, 2003). Definição que se enquadra nas situações vivenciadas por Cíntia, que não envolviam trocas financeiras e relacionavam-se a algum tipo de consentimento, por parte da menina, em sua busca por afetos e trocas sociais. Apoiado nesses fatos, o serviço de saúde que fazia seu acompanhamento administrava-lhe medicação anticoncepcional mensalmente. Cíntia era sempre informada sobre o procedimento e, por vezes, impunha resistência. A partir de um processo de convencimento feito pelos profissionais, terminava aceitando a anticoncepção, com raras exceções, tendo sido realizada, regularmente, até que completasse dezoito anos. Preocupados com o movimento instável de permanência de Cíntia no abrigo e os riscos a que estava submetida quando permanecia na rua, representantes dos órgãos de defesa de direitos da criança e do adolescente decidiram pela sua transferência COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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para uma instituição considerada mais adequada ao seu perfil. Ela permaneceu naquele abrigo durante quase cinco meses, com eventos de entradas, saídas e retornos constantes. Cíntia foi transferida para uma casa provisória7, a fim de aguardar um encaminhamento para outro local. Havia um mês que Cíntia estava nessa casa provisória, quando teve uma crise, um “surto”, segundo os técnicos locais, e foi encaminhada para o serviço de internação psiquiátrica de um hospital geral, ligado a uma Universidade da cidade. Foi submetida, por mais de uma vez, a procedimentos de contenção física e medicamentosa, ficando internada por uma semana. Em função do ocorrido, os técnicos que a acompanhavam ventilaram a possibilidade de pleitearem uma vaga para a adolescente em outro município, que dispunha de uma instituição especializada para adolescentes com demanda psiquiátrica, buscando um maior “cuidado”. Tratava-se de instituição psiquiátrica tradicional, caracterizada como manicômio, que dispunha de uma ala infantojuvenil que abrigava crianças com transtorno psíquico grave. A solução encontrada justificava-se pelo aumento da tutela e de cuidados para Cíntia, na tentativa de retirá-la do trânsito pelas ruas e dos riscos que avaliavam estar submetida em tais situações; justificava-se também pela proteção, prevista pela lei (ECA), amparada por um desconhecimento da realidade e do universo das instituições totais, no modelo asilar manicomial. Alguns profissionais, porém, por conhecerem a realidade da atenção em saúde mental e dos estatutos desse campo, foram radicalmente contra a proposição, fazendo resistência à proposta, problematizando a “carreira de doente mental” que se estava estabelecendo para Cíntia, e sua institucionalização, talvez irreversível, que poderia ocorrer com essa internação. Ela permanecia sem um diagnóstico efetivo e com a opinião de técnicos, segundo os quais não apresentava nenhuma doença mental, nenhum transtorno psíquico, “apenas” comportamentos e sofrimentos decorrentes de sua história de vida. No Brasil, a atenção em saúde mental é acompanhada da discussão da Reforma Psiquiátrica, tendo como referência o modelo da desinstitucionalização e do atendimento comunitário. Fundamenta-se na experiência italiana de abertura das instituições (a partir do fechamento do Manicômio de San Giovanni, em Trieste, na década de 1970), impulsionada por Basaglia (1985), e pela proposição da Psiquiatria Democrática (Rotelli, 1994). Porém, quando se trata das práticas para além do campo da saúde, como aquela junto aos serviços sociais de atendimento à infância e à adolescência, as experiências nessa área, e mesmo o conhecimento e a apropriação sobre as discussões e propostas da saúde mental, são absolutamente incipientes, mostrando fragilidades importantes nas ações executadas, assim como a reprodução do paradigma de isolamento da população, elemento presente no modelo asilar manicomial (Goffman, 1974). O desconhecimento sobre o campo da saúde mental, seus modelos de tratamento e dificuldades para sua transformação podem ter levado os profissionais dos serviços sociais à proposição da transferência de Cíntia. Na inviabilização da passagem do caso para outro município, retornou-se à indicação de seu regresso para sua casa. Por três anos, profissionais de diferentes serviços intervieram junto à família de Cíntia, buscando sua volta para casa. Segundo os registros dos serviços, a ameaça feita, inicialmente, pelo padrasto parecia não proceder, em função de suas características e relações com a família. Foi realizada a inserção da mãe em um programa social para complementação de renda que, efetivamente, era um problema concreto para a manutenção de todos. Em paralelo às medidas executadas, técnicos de diferentes serviços assinalavam a fragilidade de vínculos entre mãe e filha, e a culpabilização a que a mãe submetia Cíntia em virtude do que a trouxera de volta ao Brasil: o abuso 706

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Abrigo para crianças e adolescentes, com um período de permanência previsto para, no máximo, cinco dias. Tinha como foco a atenção às situações especiais de emergência e sua resolução por meio de um pronto encaminhamento. No caso em tela, realizava, com frequência, recâmbio de crianças para suas cidades de origem, quando estavam nas ruas.

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sexual praticado pelo pai. Com essa dinâmica, avaliavam-se, como precárias, as condições para seu retorno à família. Todavia, em função do impasse instalado entre os profissionais da rede de atendimento - sendo que parte defendia o encaminhamento de Cíntia para uma instituição psiquiátrica, e outra parte, notadamente profissionais vinculados à reforma psiquiátrica, rejeitava tal opção - tentou-se uma articulação com sua mãe, para que a menina pudesse receber alta do hospital e sair da enfermaria psiquiátrica. Acordou-se, por fim, o seu retorno para casa, com acompanhamento domiciliar intensivo pelos profissionais de saúde. Como fruto do acordo, ela permaneceu algumas semanas em casa e, quando se recuperou fisicamente, retomou sua circulação entre a rua e sua casa. O debate em torno dos procedimentos a serem aplicados e da “proteção” desempenhada pelos serviços sociais à população para os quais se voltam faz-se necessário, notadamente nesse encontro entre as demandas sociais e de saúde. Um sofrimento social vivenciado pode, como na trajetória de Cíntia, ser classificado como um sofrimento psíquico e desdobrar-se numa produção social da loucura, na medida em que as respostas sociais públicas para o sofrimento são insuficientes e ineficazes para seu acolhimento. Sob o discurso da proteção e da tutela, a jovem foi retirada dos cuidados de sua família e encaminhada para acompanhamento psiquiátrico, para o qual não se tinha certeza da real necessidade clínica. Outro ponto presente era a administração contínua de medicamentos para Cíntia. Percebeu-se que, durante um ano, quando permaneceu quase todo o período sem medicação administrada regularmente, em comparação com outros momentos em que fez uso de medicação intensiva, as características de seus sintomas não cessaram, mantendo exatamente o mesmo comportamento, com algumas crises de “agressividade”, que a acompanhavam havia anos, abrindo-se o questionamento, entre técnicos e serviços, sobre a pertinência e a eficiência dos medicamentos aos quais era submetida. Observamos que Cíntia vivenciava intensamente, a partir das ações técnicas de profissionais e serviços diversos, um processo de medicalização social, identificado em sua inserção na atenção psiquiátrica e na administração de medicamentos, que “pode ser visto como a expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos” (Tesser, 2006, p.62). Por meio da colocação de seu sofrimento como doença, era possível camuflar a pergunta sobre a causa daquela manifestação sintomatológica, tratando-a como exceção, como “caso” de psiquiatria entre aqueles que vivem nas ruas, sem relembrar os motivos que a levaram às ruas: intervenções técnicas, e ainda sem explicitar que o sofrimento social vivenciado demonstrava a falta de perspectivas e respostas. Ensinados a esquecer, menosprezar e desqualificar todos os cabedais de saberes autóctones para interpretação e manuseio dos adoecimentos e sofrimentos vividos; ensinados a buscar na causa biológica e no tratamento quimioterápico/cirúrgico a solução de todos os males; ensinados a esperar do especialista e dos exames complementares a elucidação e a cura de tudo. (Tesser, 2006, p.70)

Com 17 anos, portanto, há três anos em atendimento nos serviços sociais, Cíntia retornou ao abrigo por decisão judicial, pois perdeu definitivamente o contato com sua família e estava instalada nas ruas. Sua mãe mudou-se novamente para São Paulo, sem avisar Cíntia nem tampouco deixar indicações sobre para aonde iria. As iniciativas com relação à sua reaproximação com a família não trouxeram resultados positivos, tendo como desdobramento a perda completa das referências familiares para as quais havia retornado em sua chegada do Paraguai. Nesse encaminhamento, o juiz registrou formalmente que, se a adolescente não aderisse ao abrigo e ao tratamento no serviço de saúde, o CAPSad-i, que já frequentava, determinaria sua internação em uma unidade psiquiátrica. Com a proximidade dos 18 anos, instalou-se, entre os técnicos dos serviços, a preocupação com relação à situação de sua maioridade. O que fazer quando ela fosse “adulta”? Quais serviços poderiam continuar a atendê-la? Os serviços pelos quais circulava eram restritos a adolescentes, ou seja, não podiam prestar atendimento após os 18 anos. De qual autonomia Cíntia poderia lançar mão para administrar sua vida? COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Diante da ausência de serviços sociais que acolham jovens, sobretudo aqueles com algum grau de sofrimento social e com demandas de acompanhamento individualizado, os técnicos decidiram por encaminhá-la a um Centro de Atenção Psicossocial – CAPS8. Havia um consenso sobre o fato de Cíntia não apresentar um quadro de psicose, perfil majoritário do CAPS, no entanto, era clara a necessidade de cuidados constantes e intensivos, e não havia opções de locais que pudessem realizar essa atenção para a população adulta. Tratava-se de um CAPS integrado à política local, em um município pioneiro no processo de reforma psiquiátrica no país, como visto pelo histórico de Campinas (SP), que ofertava tecnologias de cuidado concernentes aos princípios e às diretrizes das regulamentações do campo da saúde mental. Realizaram-se reuniões prévias ao início do atendimento de Cíntia, com o intuito de que os profissionais se apropriassem das especificidades do caso e pudessem prestar uma atenção diferenciada com relação ao perfil predominante naquele local. Ainda que tais cuidados tenham sido tomados e as instituições em tela estivessem ligadas aos princípios de humanização do atendimento e de realização de projetos singulares, foi necessário “enquadrar” a jovem numa perspectiva sintomatológica da clínica em saúde mental para que pudesse acessar algum nível de cuidado para seu sofrimento social. Somente a partir do lugar da doença, mesmo que jamais diagnosticada por um perito, é que seu sofrimento alcançou algum nível de acolhimento, com fortes implicações para sua trajetória. A dor e a doença, que têm um reconhecimento social na esfera cultural, possibilitavam um lugar de existência social, na “arte de sofrer” (Tesser, 2006, p.64), em detrimento de um não-lugar ocupado por jovens pobres, radicalizado naqueles que vivem nas ruas, numa posição de “sobrantes” sociais (Castel, 1998). Cíntia precisou ascender à loucura para ter direito à continuidade de acompanhamento e de atenção individualizados. Os caminhos percorridos nos serviços sociais direcionaram a vida de Cíntia e a caracterizaram fortemente em toda sua história. Esse percurso exemplifica a ausência da universalização dos direitos sociais e a vivência de uma “cidadania invertida” (Fleury, 1994), na medida em que somente pela condição culturalmente reconhecida da doença é que pôde acessar o direito ao cuidado. Contudo, a situação promoveu um enquadramento da jovem no universo da loucura. Após alguns meses no CAPS, segundo a equipe local, ela entrou em uma crise aguda, tendo de ser submetida, para contenção, a uma alta dosagem de medicação psiquiátrica. Suspeitou-se que a convivência com pacientes graves, juntamente com seu sofrimento interno de abandono pela família e ausência de perspectivas para o futuro geraram a referida crise. Como efeitos colaterais, ela teve um ganho substancial de peso, ficou com lentidão para a realização de alguns movimentos e teve períodos de salivação intensa. Nessa mesma fase, seus cabelos foram cortados, num corte bem curto, tão característico nessas populações. Com base nas análises de Goffman (1974), podemos dizer que Cíntia sofreu um processo de institucionalização, que veio se desenrolando durante sua adolescência e nas passagens pelos serviços da justiça, sociais e de saúde, incluindo os psiquiátricos, que culminou na aquisição de características corporais e de atitude do grupo no qual foi inserida e ao qual passou a pertencer. Na sequência, Cíntia teve uma nova crise no CAPS, agrediu usuários e profissionais, causando danos materiais. O serviço a enviou para um local de internação psiquiátrica, um hospital da rede de saúde municipal, onde permaneceu por cerca de quatro meses. A internação representou sua volta ao contexto hospitalar e à convivência intensificada com pessoas em crise psicótica. Em decorrência desse fato, segundo os técnicos locais, aprendeu 708

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8 Os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial, compondo a Política Nacional de Saúde Mental, são “um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida” (Brasil, 2004, p.13).


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comportamentos estereotipados e, em determinada ocasião, tentou suicídio, por enforcamento, sem perigo real de efetivação. Os profissionais do hospital, na tentativa de viabilizar a alta de Cíntia, buscaram alternativas para sua inserção e manutenção financeira. Pleitearam um benefício do governo federal direcionado às pessoas com deficiência incapacitante para a vida independente e para o trabalho; resultando na sua contemplação, a partir de uma perícia, que concluiu sua inabilidade para gestão autônoma de si. Com a possibilidade de um recurso financeiro em mãos, a equipe procurou um espaço onde Cíntia pudesse viver. Alugaram um quarto em uma pensão, no centro da cidade, primeira experiência autônoma de moradia vivenciada pela jovem. Assinala-se o comprometimento da equipe com a alta de sua paciente, explicitado por ações para que Cíntia pudesse viabilizar sua vida cotidiana e permanecer sob cuidados. A inserção em um programa de renda, possibilitada pela articulação junto a profissionais de um serviço de internação psiquiátrica, configurou uma situação que pôde abrir perspectivas para o percurso daquela garota. Em paralelo, além de sua colocação em uma moradia e da aquisição de recursos financeiros, ela passou a ser acompanhada pelo serviço psiquiátrico do Centro de Saúde da região de sua nova moradia. Para organização de seu cotidiano, foi levada de volta à escola, na modalidade supletiva, e iniciou também um trabalho em oficinas de produção e venda de artesanato, realizado exclusivamente por pessoas com transtorno psíquico. Cíntia permaneceu cerca de três meses nesse projeto (de moradia, acompanhamento em saúde, educação e trabalho). Abandonou, posteriormente, as oficinas de artesanato e dirigiu-se ao abrigo no qual havia ficado por mais tempo, para solicitar morar ali novamente. Foi acolhida, provisoriamente, pela diretoria local, que juridicamente não dispunha de autorização para receber a jovem, uma vez que ela havia completado 18 anos. No abrigo, ela disse que havia sofrido abuso sexual do proprietário da pensão onde morava e, por isso, precisou sair de lá com urgência. Para nós, ela disse que o proprietário “controlava” sua vida e ela não queria permanecer no local. Dessa maneira, refez as proposições para ela apresentadas, segundo seus interesses. Como destaca Fonseca (2005), é importante assinalar a positividade das sociabilidades desenvolvidas em grupos populares, não destacando apenas a falta e a carência sofridas. Nesse sentido, Cíntia, em diversos momentos, atuou para tecer seus caminhos, como na situação acima descrita, lançando mão de um fato que sabia ser comovente para tentar ficar no lugar que escolhera, conjugando possibilidades reais e opções pessoais. Trata-se de “pensar o modo de vida como fenômeno histórico, fruto de determinadas circunstâncias econômicas e políticas, e que dê prova da criatividade de indivíduos agindo em sociedade” (Fonseca, 2005, p.58). Ainda naquele ano, concluiu o Ensino Fundamental e participou da festa para os formandos do período. Estava muito orgulhosa pela sua conquista e convidou vários técnicos que conhecia, de diferentes equipamentos sociais, deixando convites nominais em cada serviço e solicitando o repasse de recados para aqueles que não trabalhavam mais em determinados equipamentos. Articulava sua rede pessoal, formada pelos técnicos dos serviços de atendimento à infância e à juventude, colocando-os como seus convidados na sua festa. Posteriormente, deu continuidade aos seus estudos. Meses depois, mudou-se para uma outra pensão, onde permaneceu mais um tempo, demonstrando sempre a necessidade de acompanhamento intensivo para administrar a vida cotidiana, organizar seu espaço, para os cuidados pessoais e outras atividades dessa natureza. Algum tempo mais tarde, fruto de uma nova crise e de mais uma internação psiquiátrica, foi encaminhada para uma residência terapêutica para pacientes com transtorno psíquico grave, tutelada por profissionais de saúde. Passados quatro anos, com 22 anos de idade, último momento em que estivemos com Cíntia, ela trazia a bagagem de suas vivências, de sua inserção formal como paciente no universo da loucura, com episódios de crises e sofrimentos psíquicos, e, como consequência, desenvolveu a personificação do padrão comumente encontrado entre os usuários dessa rede de serviços. Obesa, com cabelos curtos, residente de uma moradia assistida, acumulou internações no atendimento a crises e passou por diferentes projetos psicossociais, desde tentativas de sua inserção em espaços fora da rede de saúde mental até a intensificação de sua atenção nela. Entre os profissionais, não se findou o debate acerca da dificuldade de manejo de seu caso e a dúvida sobre o atendimento na área da saúde mental. De sua 709


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parte, permanecia negociando possibilidades, escolhendo onde estar, resgatando e tentando tecer redes de afeto e de pertencimento, sempre ligadas a serviços e a profissionais, recursos que aprendeu a acessar desde seu retorno ao Brasil, com 12 anos. Nessa trajetória, permanecia na luta pela vida.

Considerações finais A história de vida de Cíntia demonstra a fragilidade no acolhimento do sofrimento social, mesmo num contexto jurídico de valorização da infância e da juventude, como no Brasil, por meio do referencial do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As contradições sociais, extremadas pela desigualdade socioeconômica, acompanhadas de valorações imaginárias e culturais em paradigmas constituídos, como o da doença, produzem efeitos como aqueles vivenciados por Cíntia, nos quais a tutela conduz a um caminho de sofrimento e impede a constituição da autonomia, esperada para a vivência da fase adulta. Sua história explicita a contradição entre a necessidade de atenção, a presença de um sofrimento, um abandono familiar, e a resposta institucional pela via da valorização de um suposto distúrbio e de sua inscrição nele para que pudesse permanecer sob cuidados. Em meio às contradições dos atendimentos recebidos nos serviços pelos quais passou, Cíntia vivenciou, possivelmente, a criação de uma doença mental a qual, talvez, não integrasse seus caminhos, se não fosse pela prerrogativa da tutela jurídica, que, em tese, preconiza o direito e possibilita seu acesso a alguns bens e serviços. Certamente, trata-se de um princípio de extrema relevância que precisa ter aprofundada a discussão sobre as formas de viabilizá-lo, que considerem as dinâmicas dos serviços e dos profissionais envolvidos, com o intuito de desvelar as práticas não planejadas, mas também é resultado advindo de ações sociais em curso. Entre a tutela e a autonomia, a vivência da fase liminar da juventude articula-se entre diferentes atores e possibilidades de vivências, muitas vezes inesperadas, como aquelas ocorridas com Cíntia. É importante assinalar que a discussão apresentada, por meio dos caminhos de vida de Cíntia, não tem como foco uma contraposição aos serviços sociais e de saúde mental. Faz-se necessário apontar que há casos com complexas questões, também nas ruas, que interpelam os serviços por respostas na área de saúde mental. O caso de Cíntia, por exemplo, demonstrava a necessidade de ações intersetoriais, com interfaces no campo da atenção em saúde mental, pois, embora houvesse o constante questionamento acerca da existência de um quadro psicótico, tangenciava, claramente, demandas por apoio e fortalecimento psíquico. Além dela, outros casos poderiam ser arrolados como exemplo, evidenciando a necessidade de se pensarem alternativas em saúde mental que acolham situações de sofrimento, mas não se traduzam na homogeneização de um determinado grupo populacional, bem como não se fixem na produção de uma “doença mental” própria a alguns jovens pobres. Existe, portanto, o desafio de que as intervenções da saúde mental na esfera social não se traduzam numa iatrogenia e na medicalização do social, mas, sim, no cuidado efetivo daqueles que dessa atenção precisem, assim como no desenvolvimento de outras formas de acolhimento ao sofrimento, que não se revertam em explicações e culpabilidades individualizantes. Tampouco podem ser reduzidas a uma explicação acerca da “inadequação” dos encaminhamentos dos profissionais dos serviços sociais, na medida em que eles também são produtos da mesma ordem, tendo resultados não imaginados advindos de suas ações, como nos desdobramentos vivenciados por Cíntia. Eu preocupo-me com a tendência em se psicologizar ou se patologizar os problemas. Entretanto, é legítimo pensar e ter práticas que tentem corresponder aos efeitos dos processos objetivos de precariedade sobre a condição geral psíquica dos sujeitos. E percebese que pode haver uma certa racionalidade em pensar que alguém que não tenha as condições objetivas de sua independência social tenha problemas de sofrimento e, no limite, sem dúvida, de patologia pura e simples. Ir nessa direção me parece, então, constituir uma necessária ampliação da problemática, o risco está em reduzir à psicologização e procurar as 710

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9 Mais je me méfie de la tendance à psychologiser ou à pathologiser les problèmes. Cependant il est légitime de penser et d’avoir des pratiques qui essaient de correspondre aux effets de ces processus objectifs de précarisation sur l’economie psychique des sujets. Et on perçoit qu’il peut y avoir une certaine rationalité à penser que quelqu’un qui n’a pas les conditions objectives de son indépendance sociale tombe dans des problèmes de souffrance et à la limite sans doute de pathologie pure et simple. Aller dans cette direction me semble donc constituer un nécessaire élargissement de la problématique, le risque étant de réduire cela à la psychologisation et de chercher dans la faiblesse de l’individu la cause ou la source principale de la situation catastrophique dans laquelle il se trouve. Mais que des conditions de non-indépendance sociale aient des répercussions psychiques en termes de souffrance ou de pathologie me semble évident. Si l’individu ne dispose pas des conditions de son indépendance sociale, il peut basculer dans des états-limite.

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fraquezas do indivíduo que causem ou que sejam os princípios da situação catastrófica na qual ele se encontra. Mas, que as condições de não independência social tenham repercussões psíquicas em termos de sofrimento ou patologia, parece-me evidente. Se o indivíduo não dispõe de condições para sua independência social, ele pode cair em um estado-limite. (Castel, 2005, p.157)9

A dissociação entre contextos, causas e implicações de questões complexas que se apresentam à saúde pública na contemporaneidade pode resultar em encaminhamentos pouco ou nada efetivos e em problemáticas não atendidas no âmbito das políticas e programas implantados. As “novas” demandas que vêm ganhando a arena da saúde pública, como a dos jovens, embutem o desafio para que o campo das políticas sociais, com suas diferentes interfaces e intersetorialidades inerentes (Lopes, Malfitano, 2006), inicie modificações de paradigmas, modelos e métodos de intervenção, não se restringindo à contenção de riscos às doenças, mas sim firmando-se como um campo que, efetivamente, possa contribuir para a promoção de condições e de expressão de cursos múltiplos de vida. Todavia, é ainda por meio das ações sociais que se garante algum nível de proteção e cuidado para muitas crianças, muitos adolescentes e jovens brasileiros. Colocar o foco em elementos como aqueles trazidos pela história de Cíntia objetiva um conhecimento aprofundado das dinâmicas existentes, visando enfatizar as contradições inerentes às práticas sociais, sem, com isso, negar sua necessidade; ressaltando, ainda, a importância de se buscarem respostas condizentes, quer dizer, efetivamente, de proteção e cuidado. Os episódios, trajetórias, traços e momentos de muitas vidas que atravessam a dinâmica dos serviços, entre eles os da área de saúde, caracterizam-se de maneira pulsante, dinâmica e viva, alterando-se com rapidez e tecendo uma configuração tensa, que demonstra, acima de tudo, a persistência na roda-viva da vida, na busca de novos trajetos, outros traçados, e a criação de momentos e vivências que coloquem jovens como Cíntia, de alguma maneira, em um lugar social e autônomo merecido. É nesse palco de contradições e sobre esse fio chamado ‘vida’ que os nossos personagens-tipo vão equilibrando, passo a passo, suas trajetórias, fonte de alimentação para fazer frente aos inúmeros desafios de um mundo ainda pouco protagonizado por eles. É nessa ‘corda-bamba’, nesse desassossego, por vezes tão doloroso, que eles mostram o encanto pela vida e pela liberdade, e também nos fazem vislumbrar a ‘esperança equilibrista’ de encontrarmos outros lugares cada vez mais dignos e condizentes com a complexa trama da vida. (Dalmolin, 2006, p.203)

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Colaboradores Ana Paula Serrata Malfitano responsabilizou-se pela redação do texto. Rubens de Camargo Ferreira Adorno contribuiu com a elaboração e revisão do texto. Roseli Esquerdo Lopes colaborou nas discussões e análises realizadas, na redação e revisão finais do manuscrito. Referências ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 9.ed. São Paulo: Cortez, 2003. BASAGLIA, F. (Org.). A instituição negada. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BOURDIEU, P. Vous avez dit «populaire» ? Act. Rech. Sci. Soc., v.46, n.1, p.98-105, 1983. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual Infantojuvenil. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil: uma política em movimento. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2006. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Cortez, 1990. CASTEL, R. Risques, insécurité sociale et psychiatrie: entretien. In: JOUBERT, M.; LOUZOUN, C. (Orgs.). Répondre à la souffrance sociale: la psychiatrie et l’action sociale en cause. Paris: Edition Erès, 2005. p.147-62. ______. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998. DALMOLIN, B.M. Esperança equilibrista: cartografias de sujeitos em sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. FASSIN, D. Politique des corps et gouvernement des villes: la production locale de la santé publique. In : ______. (Org.). Les figures urbaines de la santé publique. Paris: La Découverte, 1998. p.7-46. FLEURY, S. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. FONSECA, C. Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica. Saude Soc., v.14, n.2, p.50-9, 2005. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. GOLDMAN, M. Alteridade e experiência: antropologia e experiência etnográfica. Etnográfica, v.10, n.1, p.161-73, 2006. KLEINMAN, A.; DASS, V.; LOCK, M. (Orgs.). Social suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. LEAL, M.L.P. Globalização e exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Save the Children, 2003. LOPES, R.E.; MALFITANO, A.P.S. Ação social e intersetorialidade: relato de uma experiência na interface entre saúde, educação e cultura. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.10, n.20, p.505-15, 2006.

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artigos

MALFITANO, A. P. S. A tessitura da rede: entre pontos e espaços. Políticas e programas sociais de atenção à juventude - a situação de rua em Campinas. 2008. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008. MEIHY, J.C.S.B. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1998. ROTELLI, F. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, M.F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1994. p.17-60. TESSER, C.D. Medicalização social (I): o excessivo sucesso do epistemicídio moderno na saúde. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.10, n.19, p.61-76, 2006.

MALFITANO, A.P.S.; ADORNO, R.C.F.; LOPES, R.E. Un relato de vida, un camino institucional: juventud, medicalización y sufrimientos sociales. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.701-13, jul./set. 2011. Se presenta una historia de vida a analizar las manifestaciones de una trayectoria individual y su diálogo con elementos presentes en la vida de jóvenes de grupos populares. Se discuten los equipos sociales en la produción de sentidos, lugares y sufrimientos, causando procesos en los que “enfermedades” y medicalización nacen de problemas sociales. Teniéndose por base los presupuestos de la búsqueda etnográfica, se acompaña la trayectoria de una joven por cuatro años mientras pasaba por servicios sociales de atención a la niñez y juventud y salud mental. Se considera que las políticas sociales deben intervenir junto a jóvenes bajo una comprensión más amplia de los problemas sociales, siendo que el campo de la atención en salud mental, conectado con la esfera social, debe cuidarles a las situaciones de sufrimiento sin que se homogenizen las necesidades, lo que se traduciría en iatrogénico y en la medicalización de lo social.

Palabras clave: Adolescente. Historia de vida. Servicio social. Iatrogénico. Medicalización social. Recebido em 01/10/10. Aprovado em 10/02/11.

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Território e saúde mental: um estudo sobre a experiência de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial, Salvador, Bahia, Brasil*

Marcos Roberto Paixão Santos1 Mônica de Oliveira Nunes2

SANTOS, M.R.P.; NUNES, M.O. Territory and mental health: a study on the experience of users of a psychosocial care center, Salvador, Bahia. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.715-26, jul./set. 2011. This paper results from research developed among users of a psychosocial care center, in Salvador, Brazil. It aimed to understand how experience of territory use among these users could contribute towards broadening the centers’ possibilities for action. With this objective, we conducted three case studies, using techniques of systematic observation of users’ day-to-day routines, record-keeping in fieldwork diaries and auto-biographical interviews, involving analytical categories such as: the relationship between users and territory; economic and work spaces; and cultural, symbolic and aesthetic spaces. The users’ territory was presented as a problematic territory, in the sense that it imposed non-passivity in relation to the object systems, thereby challenging them to formulate alternatives for the problems experienced in daily life. Thus, the challenge for psychosocial care centers that has emerged is for them to “finetune” their clinical practices to the specificities of the contexts and practices experienced by users.

Trata-se de pesquisa realizada com usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em Salvador, Bahia, Brasil, visando compreender como a experiência de uso do território por esses usuários pode contribuir para ampliar as possibilidades de atuação do CAPS. Foram estudados três casos, utilizando-se técnicas de observação sistemática do cotidiano dos usuários, registro em caderno de campo e entrevistas autobiográficas, contemplando categorias analíticas como: relação dos usuários com o território; espaço econômico e de trabalho; espaço cultural, simbólico e estético. O território dos usuários se apresentou como problemático no sentido de impor a não-passividade diante dos sistemas de objetos, desafiando-os a formularem alternativas aos problemas vivenciados no cotidiano. Nesse sentido, surge como desafio ao CAPS “afinar” sua prática clínica às especificidades dos contextos e das práticas vivenciadas pelos usuários.

Palavras-chave: Território. Saúde mental. Desinstitucionalização. Inclusão social.

Keywords: Territory. Mental health. Deinstitutionalization. Social inclusion.

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1

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista Capes. Estrada de São Lázaro, 197, Federação. Salvador, BA, Brasil. 40.120-730. xmarcos1@gmail.com 2 Instituto de Saúde Coletiva, UFBA.

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Introdução Presentes na história recente do Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) podem ser compreendidos como espaços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico, que possuem um tipo de clínica centrada na família, comunidade e usuários. Compostos por equipes multidisciplinares, esses serviços direcionam o cuidado para pessoas com transtornos mentais graves em uma área territorial adstrita à sua localização. A criação dos CAPS representa parte das conquistas ainda em curso do Movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. Fortemente inspirado nas ideias e reformas efetuadas na Itália por Franco Basaglia, o Movimento pela Reforma Psiquiátrica germina, no Brasil, com a formação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), na década de setenta do século passado. Com o objetivo inicial de promover a crítica ao modelo oficial e hospitalocêntrico, esse Movimento ganha, no período de redemocratização, um novo fôlego, passando a se tornar “um movimento ‘social’ pela reforma psiquiátrica” (Amarante, 1996, p.21), inserindo a discussão sobre desinstitucionalização no quadro da democracia em formação. Apesar da anterioridade da luta (em 1989, o deputado Paulo Delgado já propunha o projeto de lei nº 3.657/89, que prevê a gradual substituição dos hospitais psiquiátricos por serviços substitutivos), foi em 2001 que o movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira encontrou, na Lei federal nº 10.216, um importante marco legal que consolidaria a esfera do Estado como campo de pleito dos movimentos sociais envolvidos na luta pela Reforma. A partir de então estaria regulamentada a implantação de serviços substitutivos de assistência a portadores de transtornos mentais. Em 2002, a Portaria n. 336/02 eleva os Centros de Atenção Psicossocial nas modalidades I, II e III, como os responsáveis pela prestação desse atendimento. Como uma das marcas distintivas do modelo de serviço substitutivo, está a necessidade de trabalho no território (Onocko-Campos, Furtado, 2006). Afirmarmos que a maneira como o conceito de território é adotada no âmbito dos CAPS possui implicações práticas na forma como estes podem se articular (ou não) em termos de promover a desinstitucionalização (como desconstrução epistêmica dos saberes sobre a loucura) dos usuários e a sua concomitante inclusão em espaços diversificados da vida social, ambos pressupostos contidos na Reforma Psiquiátrica. A esse respeito, chamamos a atenção para o fato de a literatura sobre serviços substitutivos ainda privilegiar, como escopo para análise, aspectos sobre a organização desses serviços, denotando que há um amplo campo a ser discutido e analisado quando o foco volta-se para os aspectos sociológicos da experiência dos usuários. Esse viés da literatura acadêmica foi verificado alhures (Passos, 2003) e pelos próprios autores, em levantamento bibliográfico no banco de dados da Capes e nas principais bases de dados dos periódicos científicos brasileiros que interseccionam o tema das ciências sociais e saúde. Isso ganha maior relevo com os poucos estudos sobre desinstitucionalização e inclusão social do sujeito portador de transtorno mental, a partir de certa lógica dedutiva, em detrimento de uma perspectiva mais compreensiva e estruturada pelas relações e vivências que os sujeitos estabelecem com o seu território (Otsuka, 2009; Tavares, Sousa, 2009). Nosso objetivo com este trabalho é compreender como a experiência de uso do território por usuários de um CAPS pode contribuir para ampliar as possibilidades de atuação desses serviços.

Metodologia Este artigo compõe um dos desdobramentos de uma pesquisa maior, aprovada em novembro de 2005, pelo edital do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sendo por este financiada. Essa pesquisa tinha como principais objetivos: avaliar o sistema de atenção à saúde mental nos estados da Bahia e Sergipe, tomando como referência os CAPS, além de compreender quais são e como funcionam os recursos produzidos nos CAPS para articular experiências, produzir subjetividades e incluir os sujeitos em sua rede social. Com este intuito, tal pesquisa combinou uma perspectiva quantitativa (epidemiológica) e qualitativa 716

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(antropológica extensiva e intensiva), e envolveu entrevistas e grupos focais realizados com usuários, familiares, gestores e profissionais dos CAPS, além da observação sistemática de atividades desenvolvidas nesses serviços. Os dados aqui apresentados resultam da fase qualitativa (antropológica intensiva). Trata-se de um estudo de caso realizado com usuários de um CAPS, da cidade de Salvador, Bahia, durante o período de sete meses entre os anos de 2007 e 2008. A maior parte do material analisado corresponde a dados coletados com uso da observação sistemática e da técnica de registro em caderno de campo. Em todo o processo de elaboração desses registros, tentamos, ao máximo, sintetizar os dados tendo em vista as diferentes perspectivas dos sujeitos envolvidos na pesquisa, quais sejam, profissionais, familiares, usuários e vizinhança (entendida não apenas como pessoas próximas à residência do usuário, mas sim como pessoas e instituições próximas aos lugares de trânsito dos usuários). Também utilizamos dados coletados com a técnica de entrevistas autobiográficas (com usuários) apoiadas em roteiro semiestruturado. Tanto a observação sistemática, quanto as entrevistas autobiográficas foram realizadas em consonância com as categorias elaboradas dedutiva e indutivamente, a partir de revisão de literatura sobre saúde mental e da própria observação sistemática. Para efeito deste trabalho, fazemos o uso das seguintes categorias analíticas: relação dos usuários com o território; espaço econômico e de trabalho dos usuários; espaço cultural, simbólico e estético. Essa escolha se justifica por considerarmos que tais categorias são as que, no âmbito da pesquisa, mais suscitaram a possibilidade de atenção à experiência dos usuários. Todas as entrevistas foram realizadas nas residências dos informantes. Sobre o critério de escolha dos informantes, da população de usuários do CAPS, fizemos o acompanhamento mais sistemático de três usuários. A seleção desses informantes levou em consideração o interesse em participar da pesquisa, a relação construída entre pesquisador / pesquisado e um relativo grau de autonomia motora e de disponibilidade psíquica (que pudesse conferir, aos mesmos, a possibilidade de circulação no território e articulação da fala). O tipo de clínica não foi utilizado como critério na escolha dos informantes. Esse critério (de exclusão) merece um maior detalhamento, na medida em que trará importantes implicações teórico-metodológicas. De um lado, tal escolha reduz aspectos da compreensão do problema em estudo – sabemos que a experiência dos usuários com depressão ou ansiedade, por exemplo, pode ser diferente daquela dos com esquizofrenia. Contudo, ao deixar de lado os aspectos do discurso biomédico, nossa opção metodológica abre outro campo de possibilidades para o estudo do problema, já que a experiência do sujeito com sofrimento mental está inserida em um contexto social mais amplo (Alves, 1999), onde o discurso biomédico representa um entre vários discursos, como o da autoridade religiosa, por exemplo (Kleinman, Kleinman, 1991). A análise dos dados deste artigo contou com o apoio de revisão bibliográfica sobre saúde mental, geografia cultural e sociologia compreensiva. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Conselho de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, e os usuários consentiram voluntariamente em dar os seus depoimentos, mediante a garantia do sigilo de suas identidades. Todos os participantes da pesquisa assinaram termo de consentimento de acordo com os princípios éticos da pesquisa com seres humanos previstos na Resolução nº. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

De que território estamos falando? A Península de Itapagipe compõe parte da Baía de Todos os Santos. É o lugar do CAPS. Com suas terras à beira-mar, também foi local de morada para populações indígenas antes da colonização, das invasões holandesas (séc. XVII) e do primeiro impulso industrial da capital baiana (início do séc. XX), que encontraria, no declínio da economia açucareira, um dos seus motes. A Península de Itapagipe também é o lugar onde mora boa parte dos sujeitos dessa pesquisa. Território marcado pela disputa. Datam da década de 1940 as primeiras palafitas (construções utilizadas sobre áreas alagadiças) da região, localizadas em áreas pertencentes à Marinha do Brasil e à União. As primeiras intervenções mais sistemáticas do Estado na Península também datam dessa época, dando início a uma história marcada por ameaças, demolições e reconstruções de novas palafitas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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No final da década de 1970, em um processo de confronto e correlação de forças entre a prefeitura e a população local, as palafitas foram paulatinamente substituídas por aterros, casas e conjuntos habitacionais, dando origem a bairros como a Vila Rui Barbosa e Massaranduba. Esses “novos bairros” não representaram, entretanto, o final da dura relação poder público / população local; ainda hoje toda a região das antigas palafitas sofre com um processo de urbanização precária e com surgimento de novas palafitas. Como parte do território biomédico, além do CAPS referenciado nesse estudo, o Distrito Sanitário de Itapagipe, composto por 28 localidades, possui como equipamentos públicos: um Centro de Orientação e Apoio Sorológico – COAS, um ambulatório, dois centros de saúde, duas unidades de Saúde da Família; duas Residências Terapêuticas; o Hospital Santo Antônio; um abrigo para idosos. O CAPS surge em 2 de fevereiro de 2004, dentro de um ambulatório, unidade especializada na clínica em saúde mental, responsável, naquela ocasião, pelo atendimento de usuários da Península de Itapagipe e do Subúrbio Ferroviário de Salvador. A partir de demandas dos usuários e da própria equipe, o CAPS é então desmembrado do ambulatório em 12 de dezembro de 2005, ficando responsável por atender a clientela da península e alguns usuários do Subúrbio Ferroviário. Além dos profissionais, vários usuários acompanharam todo o processo de transição para a nova casa. Atualmente, o CAPS está localizado em uma rua residencial, perpendicular a uma das principais avenidas da península, o que dá a este dispositivo uma posição privilegiada tanto em relação à disponibilidade de transporte coletivo, como para o acesso a pé, mais utilizado pelos usuários que moram nos bairros dos arredores. Todo o processo histórico de urbanização da península legou a esta uma geografia excludente. Os nossos informantes possuem lembranças e participaram de algum momento desse processo de formação social. Processo que se inscreve não apenas na memória, mas também no corpo. No momento da pesquisa, a região era composta por 14 bairros e cerca de 142.291 habitantes; notadamente diferenciada entre um miolo (mais urbanizado, onde se concentram os principais serviços públicos) circundado por localidades mais carentes, como os chamados “estaleiros” (nome que remete ao fato de esses lugares próximos à praia terem servido – e residualmente ainda servirem – como ponto para reparos de pequenas embarcações), e os bairros do Uruguai e da Massaranduba. São nestes últimos que residem a maior parte dos usuários atendidos pelo CAPS. Também são da península experiências de movimentos sociais – com alguns dos quais o CAPS mantém contato – e organizações do terceiro setor, como: o grupo cultural Bagunçaço, o Centro de Arte e Meio Ambiente – CAMA e a Comissão de Articulação e Mobilização das Moradoras da Península de Itapagipe (Rede CAMMPI), que contribuem, à sua forma, para a inclusão dos moradores da região e o combate ao preconceito.

Território e experiência: algumas considerações teóricas Tributário de uma visão notadamente naturalista, que encontraria no século XIX grande força e aplicabilidade (Haesbaert, 2002), o conceito de território passou por importantes mudanças até assumir, na contemporaneidade, uma posição de conceito fundamental à compreensão da realidade social. No campo da saúde coletiva, o conceito de território permanece imbricado com suas dimensões jurídico-políticas. Nesse campo, o território seria uma unidade geográfica sob a égide do planejamento e ação de agentes públicos, como os serviços de saúde (Monken, Barcellos, 2005). Mesmo considerando que o território se constitui em diferentes níveis de agência, essa visão carrega a limitação de compreender o território fundamentalmente do ponto de vista da gestão, secundarizando, assim, a contribuição desses outros agentes, como os usuários. No campo da saúde mental, tal compreensão pode acarretar no desenvolvimento de metodologias que desembocam numa relação unilateral com a loucura, revertendo o que seria “inclusão na comunidade” para “inclusão no serviço” (Pinho, Hernández, Kantorski, 2010). Assim, para fins de nosso trabalho, adotaremos a perspectiva epistemológica proposta por Milton Santos (1994), para quem é “o uso do território e não o território, em si mesmo, que faz dele objeto de análise social, o território em questão é o território usado” – grifo nosso. No que tange ao caso em 718

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estudo, esta perspectiva justifica-se pelo fato de consideramos que ela traz, para a cena, a discussão sobre a experiência dos atores sociais, sem perder de vista sua historicidade, processos e relações de poder. Experienciar é arriscar-se. Implica liberdade, espaciosidade. Voltar-se para o mundo numa relação sinestésica, aprendendo, atuando sobre o dado e criando a partir dele (Tuan, 1983). A experiência no território, porém, se dá num mundo cuja práxis condensa relações que podem reproduzir posições sociais – inclusive de estigma. Nesse sentido, a análise da experiência no território deve considerar que este se configura como espaço social onde os atores ocupam posições sociais e capital relativo a essas posições (Bourdieu, 2007). O território é “base do trabalho, de residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi” (Santos, 2001, p.96), e meio de inclusão/exclusão, de inscrição de uma identidade social (Claval, 1999). Dito de outro modo, é “[...], uma prática social historicizada que se constitui em simultaneidade com a identidade coletiva dos sujeitos sociais” (Soares, 2006, p.22). Nesse sentido, a definição da identidade social desses atores está fortemente relacionada com a forma como esses acessam, ou não, dimensões do território, e isso ficará mais visível a partir da análise dos dados coletados. É no cotidiano (territorializado) que encontramos a excepcionalidade, o inesperado, a imbricação de relações. Por isso, optamos metodologicamente por não analisar as categorias que balizaram o trabalho de campo (relação dos usuários com o território; espaço econômico e de trabalho dos usuários; espaço cultural, simbólico e estético) de forma tópica, mas, sim, analisá-las de maneira dinâmica, indicando as imbricações com as quais os usuários se deparam, no território. De posse dessas considerações, voltaremos a atenção para o território vivido pelos usuários do CAPS.

Território vivenciado Os informantes que acompanhamos residem em Itapagipe. Lá constroem suas narrativas. Nestas, contudo, o sofrimento mental não é marca perene. Surge, pois, em determinado momento e está articulado, não raras vezes, com outras tramas. Tentaremos buscar, em parte da trama vivida por Ana, Sérgio e Anderson, esses elementos. Estes informantes – cujos nomes são fictícios – serão apresentados no curso do desenvolvimento das questões. Ana, negra de pele clara, com aproximadamente setenta anos, vive no andar térreo da casa de uma irmã. Não fala muito do seu passado. Sobre isso, tudo que temos são fragmentos de conversas que remontam um universo bucólico referenciado na cidade de Maragogipe, região do Recôncavo, Bahia, de onde a informante diz ser natural. Veio para Salvador ainda jovem, para trabalhar “em casa de família” – lembrança que lhe causa irritação e a faz xingar a “mulher” para quem trabalhara. Sobre sua juventude, é difícil precisar. Tudo que temos são inferências – partilhadas com os profissionais do serviço – de que Ana pode ter, em algum momento de sua juventude, se prostituído, dada a riqueza de detalhes, a insistência com que a informante descreve esse universo (como sendo dos outros) e, sobretudo, o interdito, ao ser perguntada. De humor oscilante, Ana passa boa parte do tempo no CAPS discutindo e xingando aqueles que a perturbam, ou que ela diz perturbar. Apesar disso, sua idade parece lhe conferir certo status, de maneira que seu mau humor quase nunca se transforma em conflito com os outros. Mesmo vivendo próximo a sua irmã, não possui boa relação com esta, dado este que é verificado tanto pela vizinhança como pela equipe do CAPS. Ana possui filhos que não a visitam e dos quais ela evita falar. É aposentada e passa todos os dias úteis da semana no CAPS, mesmo quando não está executando alguma atividade específica do seu plano terapêutico. O fato de necessitar se deslocar para o serviço todos os dias, aliado a esse estado de relativo abandono familiar, nos induz a pensar que Ana precise articular outras redes sociais, fato que ela, a seu modo, tem conseguido. Abaixo, um trecho do diário de campo onde registramos essa passagem. “[...], aproveitei para acompanhar dona Ana (usuária do CAPS) até a padaria onde ela costumava tomar café, ofertado por iniciativa do comerciante local que buscava ajudar, desta

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forma, a usuária. No caminho entre o CAPS e a padaria, dona Ana resolveu me apresentar uma parte da vizinhança. Foi assim que conheci, rapidamente, duas famílias, moradores dos arredores do CAPS. Na varanda de uma dessas casas, havia uma senhora bastante idosa, com a mão paralisada, aparentando seqüelas de algum derrame. Dona Ana me apresentou como seu amigo no que fui cumprimentado pela senhora, que disse costumar ir, com o filho, à padaria onde Ana passa parte do tempo e faz algumas refeições. Em outra casa na mesma rua, fui apresentado a uma segunda família (uma senhora e seu filho) que também estava na varanda. A senhora, cordialmente, brincou, aludindo o fato de eu ser namorado de Ana. Para Ana, essas famílias ‘são todas gente boa”. (Diário de campo; usuária: Ana – DC-USA: Ana)

Chama a atenção o dado de que, apesar de conhecerem Ana, esses vizinhos – e o próprio dono da padaria – não a identificam como usuária de um serviço de atenção psicossocial, pelo contrário, nem sequer têm conhecimento do serviço, localizado a poucos metros dali, como pude constatar depois em conversas com estes. Quando não está no CAPS, Ana usa os recursos do território que lhe é acessível: vizinhança e estabelecimentos comerciais. Barganha com a simpatia. Quem no CAPS quase sempre se irrita, na rua quase sempre sorri. Não que o CAPS seja um lugar irritante para Ana – aliás, ela mesma afirma gostar do serviço. É que, no CAPS, todos sentem que devem ser complacentes com ela. Diante de sua comunidade de iguais – usuários do CAPS – a complacência é calcada no elemento diferenciador da sua idade. Diante dos profissionais, calcada na sua situação de vulnerabilidade psicossocial. A rua, pelo contrário, amplia o espaço de negociação. As nuances variam. Ana parece possuir certo senso prático de que, na rua, as relações sociais exigem outros tipos de trocas, como o sorriso, ao invés do xingamento. Não à toa Ana reforça a ideia de que “essas famílias são ‘todas gente boa’”. Dono de uma fala pausada, existe uma lacuna no que tange à infância de Sérgio, com cinquenta e quatro anos de idade – nosso segundo informante. Hoje, um senhor negro de pele escura, cujas memórias remetem a uma infância difícil: onze irmãos, casa pequena, constantes brigas entre os pais. Natural de Salvador, veio para a Península de Itapagipe com vinte anos. Sua juventude remonta o cenário de festas populares e de trabalho nas indústrias que existiram na cidade baixa e no Complexo Industrial de Aratu. Acredita que parte do seu sofrimento mental são consequências espirituais dos “excessos” que fizera no passado. No CAPS, chama a atenção pelo perfil participativo. Esse perfil articula, ao seu redor, um grupo de amigos que sempre estão juntos na capoeira, no dominó, promovendo mutirões nas casas de outros usuários – como limpar a residência de Ana – ou, simplesmente, para sair juntos do serviço. Sérgio vive com uma companheira (enfermeira que conheceu em um centro espírita), próximo à mãe e sobrinhos – embora dificilmente frequente suas casas e vice-versa. Possui um filho do seu antigo casamento, cuja separação Sérgio indica ser a principal causa de sua doença. Está aposentado e divide as despesas da casa com a companheira. Religiosidade é, com efeito, o tema que mais o mobiliza. Com um percurso religioso fortemente marcado pela matriz afrobrasileira, Sérgio frequenta um centro espírita. Em sua casa, os remédios ocupam a mesma mesa reservada aos santos, caboclos e velas. Esse itinerário religioso se inicia quando o primeiro sintoma de transtorno havia sido diagnosticado e quando já fazia tratamento em um CAPS. É na praia que Sérgio vai experienciar o que hoje afirma ter sido uma passagem fundamental para sua vida: “Ela tava numa tarde assistindo o pôr do sol, ali atrás do Forte, encostada num coqueiro. Eu fui ver o pôr do sol também, me sentei ali; ela tava assim a três metros, ela olhou para mim e eu olhando o sol bater, agradecendo a Deus, pedindo a Deus que ele me dê forças... e meus pensamentos, meus pensamentos... só pensamentos ruins de fazer justiça com a pessoa [referência à ex-mulher que o teria traído]... Aí, daqui a pouco, eu me levantei e me aproximei assim um pouco desse coqueiro. Aí essa criatura veio: boa tarde, moço, como vai o senhor? Uma senhora, eu calado, eu digo: tô aqui – não sabia nem o que falar – assim pedindo ao pai maior ... solucionar os meus problemas... Ela fez: é você tá certo, você tá precisando de ajuda, peça mesmo a ele. Se eu lhe disser uma coisa, se eu mandar você fazer 720

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uma coisa, você faz? Aí eu disse: sim, minha senhora. Você não quer aparecer lá nesse endereço, lá onde eu moro pra ver se eu consigo resolver um pouco do seu problema, eu tô vendo que você tá um pouco doente, você tá precisando de ajuda. Ela não disse doente não, ela disse você tá precisando de ajuda. Inicialmente eu tava, a mulher foi em cima da coisa. Procurei, ela se dedicou em fazer os trabalhos, eu fui para beira do mar, marquei tudo direitinho, fiz tudo direitinho. Passou! fez uma limpeza de corpo em mim, fiquei bem. Depois comecei a freqüentar as sessões, entendeu, as sessões lá [pausa] aí parei firmei determinadas coisas lá, aí fui lá para a cidade”. (Entrevista narrativa; usuário: Sérgio – ENUSA:Sérgio)

Mas do que apoio ou tratamento, o que a senhora da praia tem a oferecer para Sérgio naquele momento é ajuda, palavra que concentra o núcleo do seu relato. Esse momento será uma reviravolta em sua vida. Representa uma outra perspectiva na forma como ele pode organizar e interpretar sua experiência; inseri-lo em outras redes de relações sociais (Rabelo, 1999), onde passa a explorar novos territórios. Anderson, negro de pele clara, é bastante extrovertido. Tem 32 anos, e mora desde sempre na região. Possui uma memória notável, contudo, mesmo gostando de contar estórias, é resguardado em relação a sua história de vida. Dos usuários, é o que reside mais próximo ao CAPS, numa pequena casa feita com pedaços de tábuas, antes ocupada por toda a família. Após a construção da casa de sua mãe e de sua irmã (as duas casas de alvenaria), Anderson ficou morando sozinho na casa de tábuas. Apesar disso, é na casa de sua mãe onde ele, seus irmãos e sobrinhos fazem suas refeições e assistem tv. Diz-se doente “desde nascença” e, segundo a mãe, desde criança toma medicamento controlado. Em casa, Anderson tem o conteúdo de sua fala posto entre parênteses – na sutil censura do riso de irmãos, sobrinhos e mãe. Tendo deixado a escola aos dezessete anos de idade devido às fortes crises, mesmo assim, possui um bom nível de leitura e interpretação. Jovem e desempregado, a busca pela aposentadoria, o trabalho e a vontade de consumo são temas que, com efeito, mobilizam Anderson. Passa a maior parte do tempo nas ruas da região fazendo algum trabalho informal. Embora deseje trabalhar – afinal “[...], é melhor trabalhar do que ganhar esse salário sem fazer nada” – ele tem se esforçado na busca pela aposentadoria, lidando com o caminho tortuoso, marcado pelo processo burocrático, cuja linguagem técnica – e alienante – tornam longas as idas e vindas dele e de sua mãe à Previdência Social. “[...], minha mãe quer andar aí prá me aposentar, já quer ir agora em dezembro. Eu tô quase desistindo dessa aposentadoria; tem gente aí que nunca tomou um comprimido e se aposenta com um dia, e eu dei entrada no dia 29 do 12 de 2003, dia 29 do 12 de 2007 agora faz quatro anos, eu ainda não consegui [...]”. (EN-USA: Anderson)

Se a aposentadoria é buscada por grande parte dos usuários com quem tivemos contato, quando conseguida, ela nem sempre representa um passo para autonomia e melhoria de vida daqueles, que a partir daí se veem compelidos a delegar para outrem – geralmente um familiar – a gestão do dinheiro, restando, ao usuário, um mínimo possível – como acontecia com Ana. Além disso, a aposentadoria envolve a inimputabilidade, apanágio legal do sujeito com transtorno mental, cujo significado do ponto de vista penal e trabalhista representa a delimitação do status de cidadão (Birman, 1992), configurando um paradoxo, na medida em que tira o usuário do circuito produtivo (Barreto, 2009). Nesse território jurídico-político, a busca pela aposentadoria transita entre a ambiguidade de ser direito adquirido e, ao mesmo tempo, fator de reprodução de uma posição social (Bourdieu, 2009) firmada no estigma da identidade social do louco. Anderson demonstra ter ideia, ainda que vaga, sobre quais reflexos essas “condições para aposentadoria” teriam em sua vida, daí manifestar a preferência pelo trabalho. “[...], eu prefiro ganhar um salário trabalhando do que ganhar um salário parado, eu prefiro ganhar um salário trabalhando do que ganhar um salário parado. Aí oh, eu tô juntando

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dinheiro prá comprar uma bermuda baratinha prá ano novo; já comprei o tênis, eu vou comprar uma bermuda baratinha, uma bermuda baratinha e uma camisa da boa pra ano novo [...]”. (EN-USA: Anderson)

O trabalho contribui para incluir o usuário não apenas no âmbito da casa – pois, na medida em que não se tem aposentadoria, é preciso garantir outras formas de participação na divisão das despesas – como também enfatiza a dimensão que ganha a relação entre cidadania e consumo, talvez, um possível rebatimento na produção da subjetividade em sociedades onde consumir é a ordem (Scarcelli, 2006).

Imbricando relações Retomaremos as categorias de análise para situar o que há de comum na experiência desses informantes, quando pensadas sob o prisma do uso do território. A experiência dos usuários mostrou que a relação com o território e com o espaço econômico e de trabalho reflete fortemente a forma como esses são inseridos (ou não) na família. Os usuários que acompanhamos não contam com o apoio nem com assistência mais sistemática de familiares, mesmo quando estes moram com, ou próximos àqueles (um aspecto curioso dessa relação é que, apesar disso, todos os usuários parecem nutrir apreço à ideia de família). Evidente que nem sempre, como pudemos observar, o não-cuidado - ou cuidado precário - era motivado pelo arbítrio, já que o familiar / cuidador possuía a maior parte do seu tempo onerada pela atividade laboral, fosse ela no mercado formal ou informal. A alternativa encontrada pelos nossos informantes, frente a esse estado de coisas, vai sempre no sentido da construção de relações fora do eixo familiar. Seja pela via da religiosidade, da instituição (CAPS), da vizinhança e/ou pelo trabalho (Este último é, por exemplo, o caso de Anderson. Frente à escassez material e diante das dificuldades em conseguir o benefício, resta a ele arranjar formas de participação no mercado informal, visando complementar a renda familiar). O aspecto dessa relação que nos interessa - e que parece ser comum aos três casos - é que ao incorporarem o isolamento familiar perpetrado no espaço doméstico - que nesses casos demonstrava-se reprodutor de situações de estigma e violências em diversos níveis - esses usuários significarão, como sua casa, a rua e outros espaços. Se, como lembra Damatta (1997), a casa, no imaginário popular, simboliza o espaço de hospitalidade, durabilidade dos laços consanguíneos, distinguindo-se da rua, simbolizada como espaço público, fluido e virtualmente perigoso, a realidade de nossos informantes demonstra que são em outros espaços onde se tecerá a maioria de suas relações. É o próprio Damatta que chama a atenção para o fato de que casa e rua são espaços opostos, mas que se complementam dinâmica e relativamente, “posto que há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas, tornando-se sua ‘casa’, ou seu ‘ponto” (Damatta, 1997, p.39). A relação com o território é certamente um dos fatores que problematizam o universo cultural, simbólico e estético desses sujeitos. Se o território se faz no uso - os “usos” feitos pelos usuários não deixa dúvidas de que no território destes estão o CAPS, a vizinhança e as instituições, como a Previdência Social. É na dinâmica relacional entre essas dimensões do território que os sujeitos constituem sua identidade social, seja no sentido do reforço de uma identidade negativa (como parece se dar na busca pela aposentadoria e de outros benefícios sociais, cuja aquisição implica o reiteramento do rótulo), seja pela busca de construção de uma identidade positiva, pela inserção em um espaço religioso onde o sujeito é referenciado como fiel portador de problemas, como todos os outros fiéis, por exemplo. Com isso dizemos que a circulação pelo território não imputa, por si só, a liberdade. Embora a experiência no espaço remeta à sensação de liberdade, ela também, antiteticamente, pode trazer a sensação de apilhamento. Apilhamento é sentir-se cheio, restringido, vigiado. A sensação de que, quando construídas próximas umas das outras, “as casas têm olhos” (Tuan, 1983, p.68). Isso significa que a experiência de uso do território está perpassada por relações de poder, vigilância, classificação e ideologia. 722

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Não só nas ruas onde residem, mas nos próprios bairros, são diversos (e, às vezes, sutis) os conflitos entre usuário/familiares, usuários/vizinhança e familiares/vizinhança. A dinâmica de proximidade com o lugar, muitas vezes, quebra o relativo anonimato, revelando a biografia dos sujeitos (Goffman, 1975). Os sujeitos que ali residem se conhecem mesmo que à distância; conhecem os momentos de crise. Na vivência, reconstroem o seu imaginário pela historicidade das ações construídas no cotidiano. Assim, os momentos de crise despertam uma relação ambígua por parte dos vizinhos, indo da reação agressiva até o isolamento e o suporte ao usuário e seu familiar.

Considerações finais Neste estudo, descrevemos e analisamos algumas questões empíricas e teóricas sobre o território usado pelos usuários de um CAPS. Partindo de uma contextualização do lugar, tentamos compreender como esse território complexo e multifacetado é vivido pelos usuários. Verificamos que sua territorialidade não encontra limites às fronteiras desse tipo de serviço, daí buscarmos compreender como a experiência de uso do território pode contribuir para ampliar as possibilidades de atuação dos CAPS. Diante disso, como o território vivido pelos usuários pode se articular com a ação dos CAPS? Não só os usuários, mas o próprio CAPS, fazem uso do território, portanto, estão inseridos na dinâmica do lugar, em, pelo menos, duas perspectivas: Como agência terapêutica balizada em parâmetros biomédicos, o CAPS se territorializa, buscando dar um sentido à ação do cuidado, que, muitas vezes, concorre com os de outras agências terapêuticas (Não por acaso, a religiosidade é ainda, dentro do serviço, vista pelos usuários e técnicos com ressalvas, ambos enrijecendo a distinção entre esses espaços). Encontrar pontos de interseção que não descaracterizem ambos os espaços é um grande desafio já que, na prática, o território simbólico do campo da prática religiosa tem servido como importante ponto de vivência social aos usuários. A outra perspectiva é o CAPS como agência terapêutica de atenção psicossocial, cuja agenda deve coadunar com a clínica do sujeito, tirando o serviço da invisibilidade, ampliando a teia de diálogos com a vizinhança e contribuindo para busca da equidade. Casos iguais ao de Ana são ilustrativos da pouca visibilidade territorial que serviços como os CAPS podem ter. Aqui, evidencia-se uma necessidade latente de os serviços ocuparem os espaços dos bairros, não só com atividades informativas, mas, antes, como meio de poder “afinar” sua prática clínica às especificidades dos contextos onde estes usuários vivem. Esse momento de transição de modelos, ainda recente na cidade de Salvador, abre uma lacuna a ser preenchida pela potencialidade de debates e ações sobre saúde mental, no território. Nesse ponto, o CAPS – e outros dispositivos que coadunem com as propostas da Reforma – parecem ocupar importante papel pedagógico, na medida em que são agentes que se territorializam, no sentido de territorializar práticas de cuidado. Usuários, familiares, vizinhança, profissionais, instituições, miríades que compõem o território e que, quando não problematizados, acabam por limitar a voz do sujeito a quem se pretende incluir, obliterando, por seu turno, a elaboração de respostas a questões como: dentro dos recursos disponíveis no território (objetivo e subjetivo), qual tipo de inclusão pode ser apanágio desse sujeito? Com efeito, o território dos usuários que acompanhamos é um território problemático no sentido de que impõe a não-passividade diante dos sistemas de objetos – entendidos como o mundo material criado ou não pelos homens, e sobre o qual eles atuam (Santos, 2006) – desafiando-os a formularem suas alternativas aos problemas concretos vivenciados no cotidiano. Não há como ser inerte frente a essas questões, daí surgir como imperativa, ao CAPS, a reflexividade de uma prática que não aliene o sujeito em relação ao meio em que vive, mas contribua para situá-lo, de maneira crítica e transformadora (Freire, 1996), cabendo aos serviços a incorporação de tecnologias que façam sentido dentro dos sistemas locais de cuidado (Pitta, 2001). Para tanto, caminha, concomitante ao entendimento teórico do território, uma dimensão de hermenêutica e humanização, que vem da necessidade de transpor as barreiras da diferença do lugar social ocupado pelos sujeitos envolvidos na clínica e voltar-se para o território de “carne e osso”, ou seja, como produto de relações sociais das quais os usuários são protagonistas, ainda que em posição COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desigual. Inserido no território, mas também se constituindo como um território, cabe ao CAPS, portanto, não ser um território à parte.

Colaboradores Marcos Roberto Paixão Santos desenvolveu a etnografia, elaborou a primeira versão do manuscrito, realizou análise e organização dos dados e a redação da versão final do artigo. Mônica de Oliveira Nunes responsabilizou-se pela coordenação da pesquisa, construção metodológica, discussão dos aspectos teóricos, revisão crítica dos manuscritos e da versão final do artigo. Referências ALVES, P.C. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre itinerário terapêutico. In: RABELO, M.C.; ALVES, P.C.; SOUZA, I.M.A. (Orgs.). Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p.125-37. AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. São Paulo: Fiocruz, 1996. BARRETO, S.M.G. O processo de inclusão social dos portadores de transtornos mentais: discursos e práticas em um CAPS. 2009. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009. BIRMAN, J. A cidadania tresloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos doentes mentais. In: BEZERRA, JÚNIOR, B.C.; AMARANTE, P. (Orgs.). Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992. p.71-90. BOURDIEU, P. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: ______. O poder simbólico. 12.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p.59-73. ______. Espaço social e espaço simbólico. In: ______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 8.ed. Campinas: Papirus, 2007. p.13-33. CLAVAL, P. O território e sua transição na transição da pós-modernidade. GEOgraphia, v.1, n.2, p.7-26, 1999. DAMATTA, R. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. FREIRE, P. Educação como prática para liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. HAESBAERT, R. Territórios alternativos. São Paulo: Contexto, 2002. KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. Suffering and its professional transformation: toward an ethnography of interpersonal experience. Cult. Med. Psychiatr., v.15, n.3, p.275-301,1991. MONKEN, M.; BARCELLOS, C. Vigilância em saúde e território utilizado: possibilidades teóricas e metodológicas. Cad. Saude Publica, v.21, n.3, p.889-906, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v21n3/24.pdf>. Acesso em: 8 jul. 2007. ONOCKO-CAMPOS, R.; FURTADO, J.P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de centros de atenção psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saude Publica, v.22, n.5, p.1053-62, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v22n5/18.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008. 724

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SANTOS, M.R.P.; NUNES, M.O. Territorio y salud mental: um estudio sobre la experiencia de los usuarios de un Centro de Apoyo Psico-social en Salvador, Bahía, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.715-26, jul./set. 2011. El objetivo deste estudio sobre los usuarios de un Centro de Apoyo Psico-social (CAPS) fue entender como la experiencia de estes usuários podría contribuir para ampliar las posibilidades de intervención de los CAPS. Fueron realizados tres estudios de caso, utilizando técnicas de observación sistemática del cotidiano de los usuarios, diarios de campo y entrevistas autobiográficas, abarcando las categorías de análisis: relación entre los usuarios y el territorio; espacio económico y de trabajo; espacio cultural, simbólico y estético. Los resultados muestran que el territorio de los usuarios se presenta como problemático, e em el sentido de que impone la no pasividad em relación con los sistemas de objetos, que los reta a formular alternativas a los problemas experimentados em la vida cotidiana. Por lo tanto, surge como um desafío para que los CAPS afinen sus prácticas clínicas con las especificidades de los contextos y prácticas vividas por los usuarios.

Palabras clave: Territorio. Salud mental. Desinstitucionalización. Inclusión social. Recebido em 07/06/10. Aprovado em 27/01/11.

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Narrativas e experiências acerca da loucura: uma reflexão de profissionais de Comunicação

Josenaide Engrácia dos Santos1 Cristina Maria Sousa Cardoso2

SANTOS, J.E.; CARDOSO, C.M.S. Narratives and experiences about madness: a reflection by communication professionals. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.727-39, jul./set. 2011. This study aimed to reflect on narratives and experiences of communication professionals with regard to madness. To understand this experience, we interviewed 14 communication professionals in Salvador: five journalists from four newspapers, five journalists from four television stations and four broadcasters from four radio stations (AM and FM radio). We chose social constructionism as the methodological approach to guide this research because it allows for broader capture of the sense of madness. The views about madness that arose in the narratives took on three dimensions: conceptions of madness; experiences and living with madness; and the relationship between madness and the media. The narratives produced took positions taken from past experience and reflected social practices, such as activity in the media.

A proposta foi refletir sobre as narrativas e experiências dos profissionais de Comunicação acerca da loucura. Optouse pelo Construcionismo Social como abordagem metodológica da pesquisa por permitir captar o sentido da loucura. Foram entrevistados 14 profissionais de comunicação de Salvador, Bahia, Brasil: cinco jornalistas de quatro jornais; cinco jornalistas de quatro emissoras de televisão, e quatro profissionais de radiodifusão de quatro emissoras de rádio (rádio AM e FM). As visões sobre a loucura surgidas nas narrativas assumem três dimensões: concepções sobre a loucura; experiências e vivências com a loucura; e relação mídia e loucura. As narrativas produzidas constituem uma tomada de posição diante de uma experiência vivida, a qual interfere nas práticas sociais, como, por exemplo, a atuação na mídia.

Keywords: Narratives. Madness. Communication. Media.

Palavras-chave: Narrativas. Loucura. Comunicação. Mídia.

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1 Universidade de Brasília. Faculdade de Ceilândia, QNN 14 Área Especial, Ceilândia Sul. Caixa Postal 7380. Brasília, DF, Brasil. 72.220-140 engracia@unb.br 2 Especialização em Saúde Mental, Universidade Católica do Salvador.

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Introdução Na impossibilidade natural de vivenciar as diversas situações que se manifestam no cotidiano humano, o homem só conhece os fenômenos vividos por seus semelhantes por meio de notícias, sejam essas passadas boca a boca, lidas em revistas, jornais e afins, anunciadas através do rádio ou da televisão, divulgadas por meio da rede mundial de computadores ou de outros veículos voltados para atender a um direito autêntico do ser humano: o da comunicação. E aqui entram o grande valor, poder, influência e efeito social da mídia, por esta constituir um recurso de extremo valor na questão da subjetividade do sujeito e na circulação de conceitos e opiniões. Ela produz sentidos no imaginário popular e mobiliza as pessoas em torno do que veicula. Tudo o que a mídia difunde carrega em seu âmago uma série de representações associadas a situações passadas. E se as situações já experimentadas coletivamente têm um viés, um contorno culturalmente enraizado, certamente esse viés acompanhará as novas notícias, caso não seja abordada com responsabilidade a evolução pela qual passa ou passou o fenômeno que está sendo noticiado. A partir do publicado, o consumidor dos veículos de comunicação pode decidir se o que está divulgado faz sentido e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação. Para criar consciências críticas, o enunciado deveria não só transmitir conteúdos, mas também atualizar informações anteriores com maior profundidade. Afinal, não seriam também papéis da mídia – além de informar, expor, articular, difundir, revelar e explicar – formar opiniões e aguçar o pensamento crítico da população? O presente trabalho tem como tema as experiências e narrativas dos profissionais de comunicação sobre a loucura. Para compreender essa experiência, recorremos a relatos que os profissionais de comunicação produziram sobre a loucura. O recurso às narrativas possibilita empreender uma reflexão acerca do contexto em que esta experiência se desenrola e ganha sentido. Apenas quando situamos o profissional de comunicação no quadro da vida é que podemos, realmente, compreendê-lo, captá-lo enquanto parte de um movimento que envolve retomada de descoberta do sentido no curso da própria experiência. Inquestionável meio de fazer circular repertórios, a mídia tem o poder de criar espaços de interação, propiciando novas configurações aos esforços de produção de sentido. O poder da mídia na figura dos profissionais de comunicação, hoje, alargou-se muito, passando a ser vista como constituidora de sentidos (Lopes, 2006a), ocupando um lugar de referência que traz para si a condição de compor sujeitos, produzir discursos e dar visibilidade a qualquer conteúdo. Quando se deu o fechamento de três instituições psiquiátricas privadas em Salvador – uma em 2003 e duas em 2006, chegando perto de mil leitos fechados na capital baiana –, a imprensa notificou o fato amplamente na ocasião, afinal, era uma notícia de interesse público e de forte apelo e impacto social. Por conta disso, seria natural que um assunto de tamanha envergadura continuasse sendo pautado, particularmente na mídia impressa, a fim de prover a sociedade dos novos encaminhamentos e caminhos terapêuticos que estavam sendo oportunizados aos portadores de transtornos mentais a partir de então. Após o tumulto causado pelo fechamento dos hospitais psiquiátricos, a mídia não tem feito mais referência à situação dos portadores de transtorno mental. A sociedade não quer saber? Ou a mídia não se interessa em veicular? E os espaços alternativos, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – criados para serem serviços substitutivos do hospital psiquiátrico e para promoverem a construção de uma rede efetiva de cuidados em saúde mental – têm sido convenientemente abordados pela imprensa baiana para orientar a população? E quando alguma divulgação acontece na mídia local, quais os discursos utilizados para tal veiculação? Como os profissionais de comunicação veem a loucura? E assim o discurso da mídia vai construindo e desconstruindo imagens de identidade coletiva, revelando-se um forte parceiro ou adversário. As imagens coletivas que a mídia constrói são resultado dos discursos que ela elabora, num jogo simbiótico de poder e exclusão que, até hoje, muito pouco tem beneficiado a cidadania dos portadores de transtornos mentais.

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Os métodos da pesquisa Optamos pelo Construcionismo Social, como abordagem teórica metodológica para orientar esta pesquisa, porque ele permite captar o sentido da loucura para a mídia tal como ele emerge das falas dos jornalistas e radialistas, não o definindo a priori. Essa abordagem possibilita capturar o processo da produção de sentidos dentro dos contextos sociais, já que se interessa por identificar os repertórios, as formas com as quais as pessoas descrevem sua compreensão e vivência de mundo. Os conteúdos expressos pelo indivíduo, que são essencialmente heterogêneos, traduzem o pensamento, o senso comum de um dado grupo social (Spink, 2003). O Construcionismo Social entende o indivíduo em uma perspectiva social. O Campo empírico da pesquisa foi in loco, em quatro jornais de Salvador (mídia impressa) = cinco jornalistas; quatro emissoras de televisão (mídia televisiva) = cinco jornalistas; e quatro emissoras de rádio (mídia radiofônica AM e FM) = quatro radialistas, dando um total de 14 profissionais de comunicação entrevistados. Os critérios de inclusão foram: ter concluído os cursos que o autorizem a ocupar suas funções; estar na atividade há um tempo mínimo de dois anos; trabalhar em algum veículo da imprensa formal, seja este público ou privado. Os entrevistados foram nomeados de: E1 / E2 / E3 / E4 / E5 / E6 / E7 / E8 / E9 / E10 / E11 / E12 / E13 / E14. A pesquisa atendeu ao que preconiza a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996), que regulamenta os aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, e foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica do Salvador (UCSaL). A coleta de dados consistiu em uma entrevista semiestruturada composta de três questões norteadoras. A escolha metodológica mencionada visou a uma busca descritiva, analítica e interpretativa do sentido do indivíduo. O interesse da análise está em compreender como as noções mentalizadas são construídas e usadas na sua relação com os contextos sociais (Spink, 2003). Para a análise das entrevistas, foi utilizado o mapa de associação, que tem o objetivo de sistematizar o processo de análise das práticas discursivas em busca de aspectos formais da construção linguística, dos repertórios utilizados nessa construção e da dialogia implícita na produção de sentidos (Spink, Lima, 2004). O mapa dá subsídios ao processo de interpretação e facilita a comunicação dos passos subjacentes ao processo interpretativo. A construção do mapa iniciou-se pela definição de categorias temáticas gerais, baseada na literatura investigada e no objetivo do trabalho. A partir da categorização das respostas, foram organizados os conteúdos, preservando-se a sequência das falas, iniciando-se com categorias gerais. Mesmo sendo iniciado com categorias gerais, o próprio processo de análise pode levar à redefinição das categorias, gerando uma aproximação paulatina com os sentidos (Pinheiro, 2004). A técnica do mapa de associações de ideias envolveu os seguintes passos: a) utilizou-se um processador de dados tipo word for windows e digitou-se toda a entrevista; b) construiu-se uma tabela com números de colunas correspondentes às categorias utilizadas; e c) usou-se as funções cortar e colar para transferir o conteúdo do texto para as colunas, respeitando-se a sequência do diálogo. (Spink, Lima, 2004, p.107-8)

Obteve-se, como resultado, um efeito escada, ou seja, a fala dos entrevistados foi gravada, posteriormente transcrita, e, depois, transportada em sua totalidade para mapas de associação de ideias, respeitando a ordem da fala original. Usamos um roteiro que foi dividido em colunas temáticas de associação de ideias. A entrevista dividiu-se em blocos de três colunas. Cada coluna incorporava uma pergunta: como nomeia a loucura, como a descreve e como a explica. A primeira coluna – como nomeia a loucura – serviu de marcador para a introdução dos blocos subsequentes e associativos. Na

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segunda coluna – como descreve a loucura – foram colocadas as respostas efetuadas a partir da primeira coluna. E a terceira coluna – como explica a loucura –, mais densa, englobou todas as explicações do conteúdo das associações e constituiu uma forma de análise, permitindo compreender o processo da dialogia da pesquisa. Neste ponto temos por foco a discussão dos principais aspectos levantados pelos jornalistas, sobretudo no que concerne às experiências, vivências e representação da mídia.

Resultados – repertório em imagens e vivências As visões sobre a loucura surgidas nas narrativas assumem dimensões em três tipos básicos: concepções sobre a loucura; experiências e vivências com a loucura; e relação mídia e loucura.

Concepções sobre a loucura No discurso dos jornalistas e radialistas entrevistados, a loucura aparece como um termo extremamente polissêmico, quando percebemos, na linguagem corrente, usos e sentidos dos mais diversos. Nas narrativas dos entrevistados, a compreensão da loucura bordeja entre alguns universos. Um deles é o universo da clínica médica, ilustrado nos discursos de: E2 - “... uma psicose, sintomas de esquizofrenia, alucinações e tal...” E8 - “... foi diagnosticado que ele tinha esquizofrenia...” E11 - “... problemas físicos e mentais...” E13 - “... ele é esquizofrênico...” E14 - “... é um paciente, na verdade, que está desassistido...”

A experiência está fundada no distúrbio como resultado de processos subjetivos, é a percepção científica da loucura pelo saber médico-organicista (Pelbart, 1989): E6 - “... a loucura também é uma doença...” E2 - “... eu tive contato com sintomas de psicose...” E8 - “... ele manifestou a doença...”

Já em outros discursos, é identificado o universo do medo, onde é descrita a ideia de que o portador de transtorno mental vive em um ritmo diferente. Nesses discursos aparece o louco de comportamento bizarro, estranho. Surge aqui a associação entre o ser maluco e o estar na rua. A associação do maluco ao domínio social da rua é a perda da condição de pessoa, que se reflete em uma crescente negligência, tanto com relação aos outros quanto a si mesmo (Rabelo, Alves, Souza, 1999). E6 - “... uma pessoa de rua, né, um maluco de rua...” E8 - “... elas não estão no seu juízo normal...” E9 - “... associando o louco à violência...” E10 - “... aquela loucura do sujeito que cometeu aquele crime...” 730

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E12 - “... eu comecei a achar mesmo que era loucura, mais pelo comportamento dela, né, assim desequilibrado [...] e tinha uns momentos assim de agressividade...” E13 - “... comportamento estranho...”

As falas também trazem à tona a loucura socialmente aceita, aquela argumentada pela máxima popular que diz que “de médico e louco cada um tem um pouco”, e com a qual muitos dos entrevistados se identificam, até carinhosamente. Nesses momentos, os discursos se revestem de tom cúmplice, afetuoso e ingênuo ao nomearem a loucura. A loucura esteve associada à dimensão do saber que representava uma forma privilegiada de acesso à verdade divina, ou seja, nem sempre a loucura significou doença (Pelbart, 1989). E10 - “... nessa órbita vivem, transitam, operam várias pessoas, já operaram, né, que tiveram contato com, digamos, com essa situação da loucura, que pode ser também uma situação de extremo prazer, de extrema transportação interna [...] poder dar mais vazão àquela loucura boa que ele tem em si...” E14 - “... será que o cara não tá um ponto na frente? será que ele não tá um pouco mais à frente, ele não tá vendo o que a gente não enxerga?”

Assim, a loucura pode ser empregada para qualificar algo surpreendente, excepcional, maravilhoso, para designar um ato, fala ou demonstração de alegrias extravagantes que ultrapassem o convencional ou as regras sociais (Houaiss, 2001). Um tipo de experiência subjetiva, algo como perda do autocontrole, da razão ou da consciência de si; um distúrbio ou alteração mental; uma atitude imprudente, insensata; uma paixão desmedida. A linguagem revela as coisas e lhes dá significados. Os relatos colhidos neste estudo ilustram isso. É, sim, na linguagem que o homem procura articular-se com os vários aspectos do mundo e externaliza o sentido das experiências do seu cotidiano. Desta forma, homem e mundo, em uma condição subjetivoobjetiva, deixam transparecer semelhanças e diversidades entre os seres humanos diante da vivência de realidades similares.

Experiências e vivências com a loucura Defrontados com eventos de doença mental, os profissionais de comunicação são convidados a pensar sobre a origem do problema e as ações que passaram a assumir. A grande maioria dos entrevistados descreve algum tipo de experiência com a loucura. E4 - “... toda rua que se prezava em Salvador tinha seu louco de estimação [...] na minha rua tinha Saborosa, por exemplo, que oscilava ali entre a loucura e o alcoolismo, mas era, vamos dizer, um louco. Ele vivia mesmo à margem, corria atrás da gente, a gente brincava com ele. Mas tinha outros loucos mais perigosos que nos davam susto mesmo, jogavam pedra na gente. Então, era muito comum antes, ali nos anos de 1970, cada rua baiana de Salvador ter seu louco de estimação, né...”.

Os casos narrados mesclam descrições dessa experiência e comentários sobre ela. E2 - “... o meu contato com a loucura, além do contato profissional, de reportagem, de clínica com gente como o próprio doente mental, tenho um contato diário, porque tenho um sogro que – eu não sei nem como é que você está definindo a loucura aí no trabalho – mas eu tive contato com sintomas de psicose, né”.

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E3, ao contar uma visita que fizera a uma instituição psiquiátrica da cidade, para realizar uma reportagem jornalística, diz: “... lembro que ali recebi muitas cantadas na ala feminina, acho que pela libido aflorada das pacientes. [...] Uma delas chegou a me atacar... [risos] [...] No final das contas, não consigo definir como foi toda aquela coisa”.

Conforme descrita, a experiência parece envolver um forte senso de descompasso entre ator e contexto, oscilando entre uma tensão ou investida constante contra um quadro de eventos e relações cujos detalhes ressaltam como se vistos por lentes de aumento. Deve-se examinar melhor a noção de experiência. Sem dúvida, uma experiência só é o que é em relação à vida que lhe circunscreve. A experiência funda-se em um senso de pertença e cumplicidade com o mundo, que antecede qualquer elaboração reflexiva sobre objetos, e que nos orienta, abrindo possibilidades de ação (Souza, Rabelo, 2000). E8 fala da sua experiência e dos conselhos recebidos da mãe, quando criança: “... a impressão que minha mãe passou pra mim, né, desde a infância, ela sempre falou pra eu ter cuidado na rua quando eu estiver próximo de pessoas que têm problemas mentais, [...] eu sempre procuro não ficar muito próxima das pessoas porque elas não estão no seu juízo normal, elas são pessoas que têm a doença e, a qualquer momento, elas podem surtar e podem agredir quem estiver próximo a elas. Eu tomo esse cuidado...”.

Dentro dos relatos das experiências pessoais, temos E9 falando do sofrimento pelo qual sua irmã passou: “... tenho minha irmã que teve pânico, síndrome de pânico, que não é uma loucura, mas que aí ela foi nesse centro que até achou uma psicóloga...”.

A compreensão da loucura não é um objeto que contemplamos de fora, mas um mundo em que estamos envolvidos, com o qual já nos importamos de alguma maneira, é uma realização prática diante do mundo (Souza, Rabelo, 2000). Essa compreensão descrita pode ser ilustrada na fala de E11, quando ele relata uma experiência com um sofredor psíquico que representou muito para ele como ser humano: E11 - “... já tive experiência com loucura cerca de dez anos atrás, mais ou menos, um pouco mais talvez, quando tive a oportunidade de conviver com um colega que [...] passou por um problema de dificuldade na vida. [...] A experiência veio me mostrar as dificuldades que pessoas que têm esse problema convivem na cidade de Salvador e também no estado da Bahia, [...] pude abrir os olhos no sentido de compreender mais o ser humano, compreender mais as dificuldades, as intempéries que cada um pode passar”.

Em toda experiência, o ator reconhece uma situação. O reconhecimento funda-se, é claro, na memória, mas não é simplesmente trazer de novo o passado. Podemos entender que repetir o passado é também reencontrá-lo e aplicá-lo em certo contexto, o que implica tanto conservação quanto criação, ou seja, a experiência não constitui um evento fechado em si mesmo. Assim, ao mesmo tempo em que retoma uma configuração prévia de sentido, a experiência envolve descoberta do sentido em sua aplicação (Gadamer, 1997). O movimento entre retomada e descoberta, que se desenrola na experiência, diz respeito à sua historicidade, à forma como nela estão implicados passado e futuro. Entretanto, nem sempre a vivência favorece a quebra do preconceito, como se pode concluir da fala de E8:

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“... e muitas pessoas, até pessoas que eu conheço, elas não deixam tão claro, elas não deixam tão evidente que têm problemas mentais, isso é coisa de família. Eu mesmo, eu não saio por aí dizendo que eu tenho um parente que tem esquizofrenia, entendeu, porque as pessoas começam a olhar pra você de uma forma diferente...”.

Alguns entrevistados vivenciaram a loucura no contexto do trabalho: E13: “... realmente, já tive uma experiência, e foi no meu primeiro emprego, quando eu comecei. E foi uma experiência que me causou certo choque, certa sensação assim de desconforto e me incomodou muito. E me deixou um pouco preocupado com a profissão que eu tava começando [...] E esse colega, ele tinha um comportamento que a gente ficava um pouco preocupado, todos nós na emissora ficávamos preocupados. [...] Depois de seis meses, ele começou a ter um comportamento estranho: conversar sozinho, a agir de uma forma que as pessoas ficaram preocupadas, e aí foi piorando essa coisa de falar só, de agir com um comportamento estranho...”.

Nas narrativas colhidas pode-se identificar que o significado das coisas deriva das interações sociais que as pessoas têm com seus companheiros. O que importa não são os sintomas que o indivíduo apresenta, mas a forma como eles são percebidos e categorizados por aqueles que estão ao seu redor (Scheff, Goffman apud Souza, 1999). A experiência com loucura no trabalho produziu um sentido que veio a interferir nas atividades laborais. As práticas discursivas são diferentes maneiras pelas quais as pessoas, por meio dos discursos, ativamente produzem realidades psicológicas e sociais (Pinheiro, 2004). Assim, os pacientes mentais sofrem não de doença mental, mas de contingências: a visibilidade de suas ações, ou o nível mais ou menos baixo de tolerância da comunidade, status socioeconômico (Souza, 1999). Isso pode ser ilustrado por E13, ao relatar que aquele seu colega portador de transtorno psíquico recebera respostas antagônicas da parte de duas empresas nas quais trabalhou, em momentos diferentes, porém apresentando sintomas semelhantes. E13 conta da primeira experiência do colega: “A rádio [...], depois de algum tempo, demitiu esse cidadão”.

Em seguida, E13 fala da segunda experiência vivida pelo mesmo colega: “... Essa mesma pessoa, depois de [...] dez anos depois, ele veio trabalhar aqui [...], e acho que entre seis, oito meses depois ele teve um acesso de loucura [...], não demitiram [...], ele foi internado, fez um tratamento e aconteceu que ele melhorou. Hoje trabalha, [...] hoje realmente ele está uma pessoa normal”.

Chegamos a outras narrativas em que a loucura é descrita como signos de sérios distúrbios. As pessoas que tiveram contato mais estreito com algum portador de transtorno mental descrevem a loucura com mais pesar, com menos ingenuidade, com mais realismo, e também fazendo uso de significantes mais voltados ao vocabulário médico e menos ao uso comum. Como diz E11: “... nada como viver, nada como acompanhar, próximo, de per si, in loco, a situação...”

E10, ao ser perguntado se já tivera alguma experiência com a loucura no seu cotidiano jornalístico, relacionou imediatamente a loucura à periculosidade, ao dizer: “... Eu, particularmente, não gosto nem de escrever sobre polícia, matérias de editoria de polícia, porque não gosto de me envolver com crimes, com assassinatos, com a violência...”

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O que motivaria essa relação loucura/periculosidade que E10 fez de forma tão automática, tão espontânea? Seria preconceito? Desconhecimento? Falta de interesse? Para alguém que atua na mídia, tal vinculação chama a atenção. A configuração dos signos relativos à doença mental recai sobre os signos de violência e atitudes agressivas (Rabelo, Alves, Souza, 1999). E8, por exemplo, faz referência a sensações de desconforto, de incômodo: “... eu fico incomodada”, diz, várias vezes. E5 e E6 chegam a trazer os significantes “pavor”, “medo muito grande” para descrever situações vividas. A doença, como uma identidade negativa e socialmente estigmatizada, não permite ao indivíduo o retorno à vida normal, como se nada houvesse acontecido. Quando E8 relata sua experiência de diálogo com um funcionário do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), por causa de um interno que teria quebrado um caqueiro em um sítio ecológico, ele não esconde sua indignação ao conferir a discrepância entre crime e pena, manifestando sua solidariedade ao agente de tal ato: “É, o cara foi lá e surtou, em determinado momento, sei lá, quebrou o caqueiro, é verdade: três anos de cadeia no manicômio judiciário!!!...”.

Vemos, portanto, que, se por um lado colhemos repertórios que apontam para sentimentos de medo, indiferença ou preconceito, por outro, identificamos relatos que apontam para sentimentos de compaixão, tolerância, compreensão. Entretanto, isso só está presente nas pessoas que testemunharam a face sofrida da loucura. Nesse particular humano, como em todos os assuntos subjetivos da vida, a experiência faz a diferença.

Relação mídia e loucura A loucura parece situar-se entre aqueles conceitos de muito difícil explicação. Todos os entrevistados encontraram dificuldades para expressar sua compreensão a respeito do tema. Entre suspiros e semblantes que sugeriam um não saber, e talvez certo mal-estar provocado pelo inusitado da pergunta, eles tentaram expressar suas opiniões. E6 parece condensar muitas falas ao confessar: “... A loucura pra mim ainda é uma incógnita, ainda é uma incógnita...”.

A narrativa da identidade é construída com os outros e com os meios de comunicação (Canclini, 1999). E14 diz: “... que a mídia televisiva não acompanhe, a radiofônica [é] até bem mais restrita, tudo bem, mas acho que a mídia escrita sim, ela tem condição de fazer um trabalho de cobrança, de acompanhamento, mas não faz”.

“A palavra é a revelação de um espaço onde os valores fundamentais de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam” (Sousa, 1995, p.27). A mídia também expressa seu preconceito. Diz-nos E13: “... O preconceito faz com que a gente se afaste, não queira nenhum tipo de contato, e até de informação. Eu acho que a mídia, sim, ela tem feito, mas poderia fazer muito mais, né. [...] Tô falando da mídia num âmbito nacional, mas no âmbito local, não. Não tem matérias em jornal falando sobre isso, nem na televisão, nem no próprio rádio não se preocupa em desenvolver algum tema nesse sentido...”.

A construção da identidade é indissociável das relações sociais que estabelecemos. E E13 exemplifica isso:

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“... com a experiência que eu tive, a primeira e única experiência com a loucura [...], na época eu estava até achando que tinha alguma coisa a ver com a atividade de radialismo...”.

Por meio desse exercício, a identidade pessoal é construída paralelamente à identidade coletiva, uma vez que afirmar seu pertencimento a grupos sociais ou comunidades específicas exige que cada história de vida particular integre de forma ativa a história coletiva (Habermas, 1987). Ou seja, o autor aponta que “as pessoas” preferem justificar seus argumentos e sua opinião com base na ideia preconcebida segundo a qual quando a televisão (ou “a mídia”) representa a loucura, o faz apenas com o intuito de denegrir sua imagem, de “piorar as coisas”, de passar uma ideia de medo e desassistência. E9 ilustra muito bem esse ponto de vista: “... eu acho que a mídia poderia ajudar nesse sentido, no sentido de divulgar, até para as pessoas que têm esses familiares não se sentirem envergonhadas, ou querendo trancar, como se o doente mental provocasse uma vergonha, entendeu? E não é. [...] Todo mundo tá sujeito a isso, entendeu, não tem jeito. E que isso fosse visto de forma mais natural pra que pacientes e familiares sofressem menos. Mas eu não vejo o interesse da mídia em vir antes [do problema]. Depois é que eu vejo os casos na mídia no sentido de crimes, entendeu? Mas no modo geral, não, eu não vejo a mídia [preocupada em esclarecer], nem nos tratamentos...”.

Em relação a isso, E2 explica que: “... a televisão tem uma tendência natural de ser mais superficial, pelo tempo, o assunto entra diluído entre vários outros e tal, então nesse ponto a contribuição acaba não sendo a característica do veículo. Existem programas especiais um pouco maiores que, às vezes, se aprofundam, e acho que cumprem bem isso [...]. Aqui [...] a gente tem [um programa] que vai um pouco além e já tratou do tema, mas no jornalismo diário é sempre muito difícil. [...] Não é fácil abordar isso pela televisão...”.

Entretanto, E7 é bem mais enfático ao falar da relação – ou não-relação – entre mídia e loucura: “A mídia não pensa nada sobre a loucura, a mídia nem liga!!! Você não vê em jornal nenhuma reportagem especial tratando esse tema sério!...”.

A partir dessas narrativas, podemos inferir que a mídia é um espaço que pode, sim, reproduzir preconceitos e que trata o tema loucura como sem relevância, ou até sem importância. Continuando com E9: “... Eu acho que a mídia se interessa muito mais quando tem um caso de violência. É o que eu observo como alguém que assiste ao jornal, e também como profissional. Eu, pelo menos, na redação e com as pessoas que trabalham em outras redações, é sempre depois de algum crime e de alguma coisa que chame a atenção da opinião pública pela violência, ou porque é parente, e daí as pessoas ficam procurando a causa daquilo. Foi por loucura? Ou sei lá, foi por qualquer outro motivo? [...] Não vejo reportagens que tentem mostrar a situação, assim, de uma forma corriqueira e comum”.

Podemos afirmar que as práticas discursivas constituem a linguagem em ação, a forma objetiva pelas quais as pessoas produzem sentidos e relacionam-se no cotidiano (Spink, Medrado, 2004). A partir da perspectiva da produção de sentidos é possível perceber como a mídia foi se formando, uma vez que essa significação é um processo contínuo e histórico. O significado de que, para a mídia, a loucura não tem valor e não agrega lucro é mencionado pela maioria dos entrevistados, a exemplo de E11: COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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“A mídia é comercial, é negócio. E isso, de certa forma, não dá audiência, não dá retorno econômico. Consequentemente, é um lado esquecido. Nós não damos atenção porque a nossa construção é nesse aspecto. A gente precisa de audiência, a audiência é faturamento, a empresa cobra, pede isso – isso todas elas, sem exceção. O rádio e a televisão não têm compromisso com a formação, têm compromisso com a informação, e nem sempre é verdade que ela pode ser aprofundada. Consequentemente, são coisas superficiais”.

A alusão que E11 faz à superficialidade com que alguns temas, particularmente os de interesse público, são abordados na mídia reporta-nos ao pensamento de Heberlê e Sapper (2006), quando dizem que os campos sociais se veem tocados pela ação das mídias, mas não podemos ficar esperando da mídia mais que a disseminação contínua dos vários posicionamentos. Isso porque o saber dos jornais é extremamente superficial, mas extenso. Eles se confessam perecíveis; não tratam de fins ou princípios (Lage, 2001). E12, ao falar de sua atuação profissional voltada para a temática da loucura, acaba por ilustrar o dito acima: “... Eu confesso que na mídia não tenho acompanhado muito como é que está sendo a construção dessa história, mas o que eu já vi, pouco assim, e até de comentários mesmo, é que criaram os Centros de Atenção Psicossocial. [...] Eu não vejo esse acompanhamento em jornal. Eu não vejo isso acontecer. Eu acho que é um caso ou outro, tipo o crime que aconteceu há pouco tempo lá em São Paulo, envolvendo aquele cartunista, então as pessoas começam a pensar nessa questão da loucura. [...] Os jornais têm feito algumas matérias em relação a esse universo da loucura quando eventualmente acontece algum crime. Agora há pouco teve aquele crime lá em Goiás, acho que dos jovens, então, começou-se a questionar se a pessoa tinha condição de sair, ele tinha um problema psiquiátrico, então ele não poderia ter saído da penitenciária. Então eu só vejo um pouco dessa coisa da cobertura da imprensa”.

A linguagem cotidiana expressa nos repertórios é fundamental na formação dos sentidos que são compartilhados pela mídia; não a linguagem entendida de forma estática, mas a linguagem posta em movimento no dia-a-dia e que influencia o sujeito.

Discussão Entre o sujeito e suas narrativas, há uma relação intrínseca, que não é apenas uma manifestação simbólica dos discursos que circulam socialmente, mas uma expressão simbólica do sujeito em relação ao seu posicionamento no mundo e sua participação social revelada na linguagem. A linguagem é prenhe de sentidos subjetivos, emoções, afetos, entre outros (Ricouer, 1987), a linguagem é o processo pelo qual a experiência privada se faz pública. Os discursos dos entrevistados, segundo Spink (2004), trazem à tona as ideias com as quais convivemos, as categorias que usamos para expressá-las e os conceitos formalizados a partir de domínios diversos (da religião, arte, filosofia), de grupos que nos são próximos (família, comunidade, vizinhança), e da mídia em geral. É a produção de sentidos caracterizada nos discursos. Para captar o sentido de um discurso é preciso recuperar o contexto dialógico em que ele se situa (Bakhtin, 1981). As práticas discursivas moldam e constituem os fenômenos sociais (Lopes 2006b); consequentemente, as práticas sociais produzem sentidos nos meios midiáticos. As formas pelas quais os entrevistados ligados à mídia nomeiam, descrevem e opinam sobre a relação mídia-loucura deixam fortes marcas e parecem incorporar que as variações da loucura tratam as diferenças em uma mesma perspectiva: a de encarar a loucura como distúrbio ou periculosidade, sentido que é repassado para a sociedade. O que é comunicado (Ricouer, 1987) é a sua significação, que é a prática discursiva intrínseca à prática social. Vestida injustamente com a roupagem da violência ou maquiada ingenuamente como sinônimo de liberdade, o fato é que a loucura tem tido uma só realidade, uma só posição no espaço da mídia: a da 736

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exclusão e negação de sua condição humana merecedora de respeito e dignidade, o que foi retratado pelos profissionais de comunicação entrevistados. Não podemos esquecer que o modo de construção das notícias é povoado de representações (Lopes, 2006b). É o universo da linguagem, onde a ideologia aparece como dimensões construtivas dos discursos e da realidade social. As narrativas aqui investigadas dos profissionais de comunicação comovem, enfurecem, persuadem, incitam a ação. Assim, contribuem para o reconhecimento das experiências vividas por outros, sobretudo no universo da mídia, campo de interlocução e discussão da realidade social da loucura no mundo da comunicação.

Reflexões finais Pensar as narrativas dos profissionais de comunicação como discurso é percebê-las como constituintes de uma prática que se caracteriza não somente por representar o mundo, mas também por significá-lo e construí-lo, sem perder de vista a constituição discursiva da sociedade como prática social. As narrativas sobre a loucura organizam-se ao redor de temas como estigma, preconceito e violência, revelando formas próprias de abordar e lidar com o problema. Os temas põem à mostra o sentido da loucura e as concepções acerca da mesma para os profissionais de comunicação e, consequentemente, da mídia, que parecem compreendê-la como a ruptura de elos que conectavam o indivíduo aos contextos. Nas narrativas, o sujeito fala sempre de algum lugar, e não fala sozinho. Isto implica compreender que as práticas discursivas moldam e constituem os fenômenos sociais; por conseguinte, as práticas sociais produzem sentidos. Esta afirmação demanda a compreensão de que as pessoas lidam com práticas concretas na sua existência e no cotidiano. Logo, os discursos não atuam sozinhos, mas estão conjugados a outras práticas sociais, como é o caso dos profissionais de comunicação das várias mídias. Encontram-se, também, nas narrativas, informações relevantes acerca da maneira ainda estigmatizada e excludente com que a loucura é tratada, reforçando as ideias de periculosidade e segregação com as quais o portador de transtorno mental e a sociedade têm convivido há muito tempo. A loucura é vista como doença e como assunto público; contudo, não circula na mídia. Pior: quando circula, está associada à rejeição e, até mesmo, à violência, o que leva à perpetuação dessa segregação, dessa hostilidade social midiaticamente justificada. Quanto à circulação de informações pela mídia, podemos dizer que as mesmas contribuem para a estigmatização quanto ao tema loucura. Diante desta premissa, a notícia passa a ser um lugar de construção de sentidos, de sujeitos e de realidade, produzida, reproduzida e transformada nos discursos, ou seja, nas notícias. Violenta, divina ou libertadora, a loucura expressa o modo de convivência dominante nas narrativas, o que repercute na mídia e nas práticas sociais.

Colaboradores As autoras Josenaide Engracia dos Santos e Cristina Maria Souza Cardoso participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e da revisão do manuscrito.

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SANTOS, J.E.; CARDOSO, C.M.S. Narrativas y experiencias sobre la locura: una reflexión de profesionales de la comunicación. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.727-39, jul./set. 2011. Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre las narrativas y experiencias de profesionales de la comunicación sobre la locura. Para entender esta experiencia se realizaron entrevistas con 14 profesionales de comunicación de Salvador, Bahia, Brasil: cinco periodistas de cuatro periódicos; cinco periodistas de cuatro estaciones de televisión y cuatro profesionales de radiodifusión de cuatro emisoras de radio (radio AM y FM). Elegimos el constructivismo social como un enfoque metodológico para guiar esa investigación, ya que permite captar el sentido de la locura. Los puntos de vista sobre la locura que se plantean en los relatos se presentan en tres dimensiones: concepciones sobre la locura; convivio y experiencias con la locura; los medios de comunicación y la locura. Los relatos reflejan una tomada de posición frente a una experiencia vivida, la cual interfiere en las prácticas sociales, por ejemplo, en los medios de comunicación.

Palabras clave: Narrativas. Locura. Comunicación. Médios de comunicación. Recebido em 09/08/10. Aprovado em 04/11/10.

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A musicoterapia na sala de espera de uma unidade básica de saúde: assistência, autonomia e protagonismo *

Adriana de Freitas Pimentel1 Ruth Machado Barbosa2 Marly Chagas3

PIMENTEL, A.F.; BARBOSA, R.M.; CHAGAS, M. Music therapy in the waiting room in a primary healthcare unit: care, autonomy and protagonism. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.741-54, jul./set. 2011. Receptiveness is a guideline of the National Humanization Policy that establishes the basic principles of the National Health System (SUS). The waiting room is part of the theoretical and practical discussion of receptiveness. The need for actions to promote implementation of this guidance has inspired the creation of the first research on music therapy at a primary healthcare unit. This article presents the results from this research, which had the aim of contributing towards the reception through music therapy in the waiting room, by means of the operational category of waiting. The methodology consisted of a qualitative approach and involved interviews and music therapy activities. The results revealed the users’ outrage about the long waiting times and turned the place into an area of care, autonomy and protagonism. The research showed that music therapy is a strategy to be disseminated to other primary healthcare units.

O acolhimento é uma diretriz da Política Nacional de Humanização que concretiza os princípios básicos do Sistema Nacional de Saúde (SUS). A sala de espera inserese na discussão teórica e prática do acolhimento. A necessidade de ações que fomentem a implantação desta diretriz inspirou a realização da primeira pesquisa sobre a musicoterapia em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), cujo objetivo foi contribuir para o acolhimento com a prática musicoterápica na sala de espera, por meio da categoria operacional – espera. A metodologia incluiu entrevistas e atividades musicoterápicas. Resultados revelam a indignação dos usuários quanto à longa espera e a transformação do local em um espaço de assistência, autonomia e protagonismo. A pesquisa aponta a Musicoterapia como estratégia para ser difundida em outras UBS.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde. Humanização da assistência. Acolhimento. Musicoterapia. Sala de espera.

Keywords: Primary healthcare. Humanization of assistance. User embracement. Music therapy. Waiting room.

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Elaborado com base em Pimentel (2009). 1,2 Programa EICOS (Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Guineza, 435. Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.755-330. drica.oficina@ gmail.com 3 Curso de Graduação e Pós-graduação de Musicoterapia, Conservatório Brasileiro de Música, Centro Universitário. *

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A MUSICOTERAPIA NA SALA DE ESPERA ...

Introdução O acolhimento, diretriz da Política Nacional de Humanização (PNH) e concretizador dos Princípios Básicos do SUS (Gomes, Pinheiro, 2005; Solla, 2005; Merhy, Campos, Cecílio, 1994), deve estar presente de forma transversal em toda Unidade Básica de Saúde (UBS). No encontro com o outro, em qualquer local da UBS, é necessária, aos profissionais de saúde, uma postura de escuta, de cordialidade e de predisposição para resolver os problemas trazidos pelos pacientes. Uma das traduções de acolhimento é a relação humanizada, acolhedora, que os trabalhadores e o serviço, como um todo, têm de estabelecer com os diferentes tipos de usuários. Neste ínterim, o vínculo entre eles se forma e fortalece as relações entre os atores envolvidos no serviço à saúde (Gomes, Pinheiro, 2005; Solla, 2005; Merhy, Campos, Cecílio, 1994). Um dos maiores problemas enfrentados pelo SUS é a realidade das filas e o tempo de espera que os usuários suportam para conseguirem ser atendidos. Por isso, a sala de espera recebe atenção privilegiada para as ações em prol da humanização na atenção básica e passa a ser utilizada como local de execução de atividades do acolhimento. A sala de espera está presente na maioria dos dispositivos de atenção à saúde, como nos hospitais e unidades básicas. É um lugar público, dinâmico, onde as pessoas aguardam o atendimento de saúde. Um espaço onde estão presentes a subjetividade e as pluralidades (cultura, etnia), que emergem através do processo interativo, que ocorre por meio da linguagem (Teixeira, Veloso, 2006). O termo ‘sala de espera’ é polissêmico, porque nem sempre esta atividade é realizada em uma sala. Pode ser num corredor, um hall, um espaço ao ar livre (Paixão, Castro, 2006). As atividades da sala de espera são direcionadas frequentemente à educação em saúde. Equipes de enfermagem e psicólogos costumam utilizar esse ambiente para divulgar programas de saúde, tirar dúvidas, criar vínculos com os usuários, ajudando no desenvolvimento do acolhimento na UBS. Esta realidade gera críticas em relação ao trabalho realizado neste local, como a limitação da visão de acolhimento pela equipe de enfermagem que focaliza todas as suas ações para atividades que somente envolvam tema sobre educação em saúde (Deslandes, Dias, 2006; Gomes et al., 2006; Silveira et al., 2004). A partir destes fatos, surgem discussões a respeito dos limites do acolhimento e sobre a necessidade de maiores reflexões sobre o assunto. A existência de filas e o prolongado tempo de que precisam dispor para a resolutividade de seus problemas ainda fazem parte das grandes dificuldades que os usuários enfrentam. As maiores dificuldades para a implementação do acolhimento na UBS estão: na adesão dos profissionais e, sobretudo, na dos médicos; na inclusão de novos atores nas equipes multiprofissionais; na relação entre os usuários e as equipes profissionais; nas divergências entre as equipes, e na construção de meios para desenvolver o acolhimento (Solla, 2005; Franco et al., 1999; Merhy, 1999). É grande o desafio imposto à proposta do acolhimento. A Psicossociologia traz contribuições pela ampliação do horizonte teórico do conhecimento. Oferece uma possibilidade de diálogo entre várias disciplinas, como a sociologia, a antropologia e a psicologia. A Psicossociologia, desdobramento da Psicologia Social, se dedica ao estudo de grupos, sociedades, organizações e comunidades em situações cotidianas, englobando discussões sobre gênero, etnia, representações simbólicas culturais, modernidade e pós-modernidade, e analisa a implicação destes temas na relação humana. Esta análise se dá por meio das palavras, das representações, das condutas no contato consigo e com o outro, levando em consideração a subjetividade presente nesta relação (Certeau, 2007; Bauman, 2003; Azevedo, Braga Neto, Sá, 2002). O estudo sobre sala de espera, segundo Merhy (1997), enfatiza a importância das atividades de acolhimento em espaços de mediação nos quais se produz a relação de escuta e responsabilização. A partir do encontro entre os profissionais e usuários, constituem-se os vínculos e compromissos que devem nortear os projetos de intervenção. Neste processo, o trabalhador utiliza o saber, que é sua principal tecnologia, tratando o usuário como sujeito portador de direitos. As atividades neste local são integrantes de um projeto amplo de acolhimento, pois o mesmo possui caráter transversal (Brasil, 2006). Deve ser realizado em toda a Unidade, em todos os setores, durante o encontro com o outro. A necessidade de utilizar o pensamento crítico constante, a criação, o ‘trabalho 742

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vivo’ (Merhy, Pinto, 2007; Merhy, Onocko, 1997) é fundamental para não oferecer uma única atividade e acreditar que se está concretizando a proposta ampla de acolhimento. Para este artigo, traz-se uma proposta de intervenção prática que favorece a interdisciplinaridade, contribuindo para o debate em curso sobre a humanização, acolhimento e sala de espera, por meio dos resultados da pesquisa “A musicoterapia na sala de espera de uma Unidade Básica de Saúde: os usuários rompem o silêncio”, voltada à recepção dos usuários com a utilização da musicoterapia. O objetivo da pesquisa foi contribuir para o acolhimento por meio da prática musicoterápica na sala de espera em uma UBS. A pesquisa buscou apreender os motivos e significados que os usuários atribuem ao tempo em que aguardam seu atendimento médico, o que configurou a categoria operacional ‘espera’, objeto desta investigação. A prática da musicoterapia se dá por meio de métodos de improvisação, composição, recriação ou da audição, facilita a expressão e a produção dos sentimentos, pensamentos e atos dinamicamente transformados no contato com o outro. Essa prática se difere da simples utilização da música na sala de espera (Chagas, Pedro, 2007). A justificativa de trazer a prática da musicoterapia para a UBS apoia-se nas contribuições desta profissão ao desenvolvimento da humanização na atenção hospitalar (Vianna, 2008; Chagas, 2004; Fialho, 2004; Sá, 2004). O estudo anterior, realizado por Pimentel (2005), levantou as convergências entre a Política Nacional de Humanização e a musicoterapia, apontando as possibilidades da atuação musicoterápica em sua operacionalização. Puderam-se verificar os ganhos possíveis de se contar com a musicoterapia em uma equipe multiprofissional voltada para a humanização. A ideia de intervir nos serviços de atenção à saúde por meio da musicoterapia surgiu no estudo acima mencionado. Originou-se da inquietação, como sanitarista, de idealizar as mudanças necessárias aos serviços de saúde, e, como musicoterapeuta, reconhecer, na musicoterapia, um potente instrumento mobilizador. Em continuidade ao estudo anterior e com o recorte necessário para uma qualificada pesquisa de mestrado, elencou-se, como prioridade de atuação, o trabalho na sala de espera, e estabeleceu-se a ideia da intervenção relatada neste artigo, que traz os resultados da pesquisa realizada.

Aspecto teórico O conceito de tecnologia leve (Merhy, Onocko, 1997), representada pelas relações interpessoais, compõe o quadro teórico da discussão deste artigo. Tal tecnologia é produzida no trabalho vivo em ato e está presente no processo de relações, no encontro entre o trabalhador de saúde e o usuário. Neste momento criam-se cumplicidade, vínculo, aceitação e produção de responsabilidade. O trabalho vivo é aquele que valoriza o pensamento crítico, a subjetividade das relações e o contato com o outro (Silveira et al., 2004; Negri, 2002). É o motor da produção, da inovação, e está presente no processo de desenvolvimento de todo trabalho. Porém, o produto não está acabado ao término de sua criação, ele é repensado, avaliado, recriado e adaptado. Esta perspectiva nos distancia da ideia do trabalho com um início e um fim. A cada desafio nasce uma abordagem, um novo caminho. Esse movimento contínuo gera uma dinamicidade presente em toda ação viva. O trabalho vivo aparece em oposição ao trabalho morto, como: regras fechadas, protocolos rígidos e trabalhos mecânicos que são reproduzidos automaticamente. O trabalho vivo é catalisador, produzindo mobilização (Negri, 2002). No espaço de mediação, surge o contato com o outro. É neste encontro que se desponta a arena tensa constituída dos conflitos de interesses e subjetividades. A notável dificuldade de estabelecer a qualidade do contato humano torna-se um dos maiores obstáculos para a consolidação da prática humanizada (Sá, 2004). O conceito de cotidiano foi trazido ao estudo como meio de aproximação da realidade do serviço de saúde buscando entender o dia a dia da UBS. O termo cotidiano, através do olhar curioso e, sobretudo, investigador, de Michael de Certeau (2007), ganha vida e cientificidade unindo estudos sobre a cultura popular e o comportamento social, atravessando a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história e a economia. O estudo do cotidiano compreende como as pessoas se apropriam, com o tempo, dos conhecimentos científicos e constroem um novo saber, unindo, aos conhecimentos científicos, os culturais, vinculados à crença, à etnia e às tradições, estabelecendo-se, assim, um novo senso comum. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Levigard e Barbosa (2010) demonstram a emergência do conceito de cotidiano como instrumento de análise de realidade social. A musicoterapia é uma carreira que suporta técnicas próprias e específicas, e seu principal instrumento é o som. A prática musicoterápica difere-se da prática de um músico por vários motivos, dentre eles: a musicoterapia tem formação específica em nível de graduação e pós-graduação; possui um arcabouço teórico próprio que insere, além da música, disciplinas adequadas a sua prática do cuidado, como psicopatologia, neurologia, psiquiatria, psicologia da música, neurociência, entre outras; o mais importante na prática musicoterápica não é a estética, mas, sim, o que é expresso pelo sujeito; a escuta do musicoterapeuta é treinada para perceber e reconhecer a subjetividade do cliente, intervindo quando necessário; o musicoterapeuta utiliza, como instrumento de trabalho, todo material sonoro (sons de ruídos, do ambiente, de objetos, e não só da música propriamente dita), e o conceito de música para a musicoterapia é diferente do conceito de música para o músico. Qualquer pessoa pode participar da musicoterapia, mesmo as que possuem limite de afinação, dificuldade rítmica, deficiência física e/ou mental ou que não saibam tocar nenhum instrumento. O musicoterapeuta é treinado a se adequar ao outro em relação ao tom, ao repertório, ao jeito de tocar, à interpretação e às mudanças4 que o outro faz nas músicas propostas. Assim, a execução das atividades que esta pesquisa se propôs não pode ser realizada por um músico, e sim por um profissional musicoterapeuta, graduado em Instituição de Ensino Superior reconhecida pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). A musicoterapia valoriza o que a pessoa consegue fazer musicalmente5, e busca estimular a atuação dela a partir do que expressa. Instiga a utilização de instrumentos, do canto, do corpo como instrumento sonoro, e a percepção e apropriação6 dos sons que envolvem o ambiente. O participante é mobilizado a sair da postura passiva. Um dos conceitos que fazem parte do corpo teórico da musicoterapia e que foi trazido para a pesquisa é o de paisagem sonora: conjunto de sons que estão inseridos em determinado ambiente e a forma com que influenciam no comportamento das pessoas presentes. Este conceito, criado por Schafer (2001), contribui para o entendimento de como os sons presentes no ambiente da sala de espera afetam diretamente as pessoas, considerando o simbolismo psíquico que guarda cada som.

A pesquisa O estudo apoiou-se na necessidade do desenvolvimento de ações que sejam aplicadas de forma a modificarem as práticas de saúde, que possam influenciar no modo de agir das pessoas contribuindo para a transformação do modelo de atenção aos cuidados da saúde. A intervenção musicoterápica foi pontual, com intuito de atender a investigação proposta pela pesquisa realizada.

Metodologia O enfoque qualitativo desse trabalho voltou-se para o estudo da Espera como tema principal, levantando a contribuição da musicoterapia na sala de espera. Foi direcionado a contribuir com o acolhimento, no momento em que os usuários adultos aguardam o atendimento em uma UBS no município de Nova Iguaçu. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, conforme resolução 196/1996 do 744

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4 Mudanças na música seriam os erros que os músicos ou, até mesmo, pessoas leigas reconhecem quando são cometidos com mais visibilidade. Para a musicoterapia, estes erros são mudanças que foram feitas e podem ser explicadas por vários motivos: propositalmente, para expressar determinado pensamento; inconscientemente, expressando algo que pode ser refletido e elaborado pelo participante, por exemplo.

5 Considera-se musical, para a musicoterapia, todo som que o participante faça: sons nasais, sons corporais, sons com objetos, músicas completas. Para a musicoterapia, os sons não precisam ser sequenciados nem organizados para serem musicais.

6 Apropriar-se do som do ambiente significa dizer que se pode utilizar um som do ambiente para criar uma música, para reproduzi-lo modificando-o sonoramente e/ou para imitá-lo e falar sobre ele.


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Conselho Nacional de Saúde. Durante a coleta de dados, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa de campo passou, inicialmente, por uma fase exploratória, com observação participante, atividades musicoterápicas e escuta dos atores nela envolvidos, a fim de identificar os problemas e o tema central que norteou a investigação. Nesta fase, a intervenção foi planejada estabelecendo o procedimento adotado. Os instrumentos de pesquisa adotados foram: revisão bibliográfica, observação participante, atividades musicoterápicas, entrevistas e diário de campo. A metodologia foi organizada de modo a trabalhar com quatro grupos de investigação em dias distintos: dois grupos passaram pela prática musicoterápica e dois grupos de controle não passaram pela intervenção. As entrevistas foram realizadas em todos os grupos após a consulta médica. O material das entrevistas foi submetido à análise de conteúdo (Bardin, 1997), como será visto mais adiante. A observação participante e o diário de campo da pesquisadora estiveram presentes durante toda a investigação. Nas atividades realizadas na sala de espera, foram aplicados métodos que possibilitam a participação de todos os integrantes do grupo. Mesmo sem saber tocar, as pessoas puderam se expressar cantando, tocando, criando letras, ritmos e melodias. Essa abordagem foi utilizada porque promove liberdade de expressão, fomenta o protagonismo e a autonomia.

O campo de estudo Por um cuidado ético, a UBS não será identificada explicitamente. 7

A pesquisadora fez parte da equipe do Ambulatório de Saúde Mental, no período em que se deu a pesquisa, sendo uma das profissionais da UBS na ocasião. 8

A UBS7 cobre 100% da população cadastrada e comporta três Equipes de Saúde da Família (ESF), três Equipes de Saúde Bucal (ESB) e uma Equipe do Ambulatório de Saúde Mental Infanto-Juvenil8. Todas compartilham a mesma sala de espera. A ESB agenda os pacientes por hora marcada e atende no horário previsto. Os usuários agendados para os médicos chegam à Unidade aproximadamente às 7h30min. Às 8h começam os atendimentos realizados pelas técnicas de enfermagem, que aferem a pressão arterial e conferem o peso corporal. Após, os usuários aguardam a consulta sentados em bancos coloridos (estilo banco de praça), que ficam dispostos um atrás do outro, enfileirados. Algumas pessoas preferem ficar de pé. As crianças presentes brincam e correm durante a espera. Os adultos conversam. Entre 12h e 13h, a unidade fica praticamente vazia. À tarde, vários usuários procuram por resultados de exames, informações, remédios e pelos atendimentos no Ambulatório de Saúde Mental e na equipe de Saúde Bucal. Os dias da semana em que são realizados o exame preventivo, pré-natal e palestras são os mais movimentados.

Sujeitos de pesquisa Foram adotados três critérios de inclusão para escolha dos sujeitos: ser adulto; ser usuário da Unidade, e aceitar participar da pesquisa. Contamos com 67 pessoas entre 18 e 73 anos de idade. Todos participaram das entrevistas e foram organizados em quatro grupos. Grande parte destes usuários são moradores do próprio bairro e pertencem à cobertura do PSF da UBS. Como o Ambulatório de Saúde Mental Infanto-Juvenil tem uma área territorial grande, abrangendo muitos bairros, alguns usuários se deslocam por grande distância até chegarem a esta Unidade de Saúde.

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Procedimentos As atividades foram realizadas em quatro dias, que foram constituídos por grupos de usuários diferentes. Todos aguardavam o atendimento médico na sala de espera. Os quatro grupos participaram com o seguinte procedimento: em dois deles, realizou-se a atividade musicoterápica com duração de quarenta minutos, e, nos outros dois, não se realizou a atividade musicoterápica como meio de comparação para se obter maior rigor metodológico (Giere, 1984). Todos os grupos passaram pelas entrevistas após a consulta médica. O procedimento adotado foi igual para todos os quatro grupos, com exceção da prática musicoterápica e da explicação referente a ela: Grupos sem musicoterapia - abordagem e apresentação da equipe: os usuários presentes foram abordados com a apresentação da equipe de pesquisa (pesquisadora e ajudante de pesquisa); convite: foi feito o convite de participação na pesquisa; TCLE: o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi lido em voz alta e as dúvidas expostas foram elucidadas antes da assinatura; consulta Médica: paciente se dirige à consulta médica; entrevista: realizada após a consulta. Grupos com musicoterapia - abordagem e apresentação da equipe: apresentação da equipe de pesquisa para os usuários presentes; convite: os usuários foram convidados a participarem da pesquisa; TCLE: leitura em voz alta do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, elucidação das dúvidas e a assinatura do mesmo; esclarecimento sobre a prática musicoterápica: comunicação sobre a realização da atividade de musicoterapia durante a espera pelo atendimento e aviso de que esta seria uma intervenção pontual com fins voltados para a pesquisa; musicoterapia: realização das atividades musicoterápicas, nas quais o participante escolhia o instrumento para tocar, sugeria canções, cantava e compunha; consulta médica: os pacientes chamados saíam da atividade para serem atendidos pelo médico; entrevista: realizada após a consulta. A sala de espera, nos dias da prática musicoterápica, foi arrumada de maneira condizente com os métodos utilizados, satisfazendo dois fatores importantes ao desenvolvimento da atividade: permitir que, ao sentarem, as pessoas pudessem se ver, e que todos tivessem acesso aos instrumentos disponíveis no local. Então, formou-se um semicírculo com os bancos. Os instrumentos foram postos no centro e a abertura do semicírculo ficou direcionada para os consultórios médicos, para que os usuários pudessem acompanhar a dinâmica do atendimento. A pesquisa foi direcionada aos usuários, porém, não foi vedada a aproximação dos profissionais que transitavam pelo espaço, pois este é um local de circulação da UBS. Assim, o profissional podia parar, observar e participar, se quisesse, junto com os usuários.

Análise dos dados As entrevistas continham perguntas sobre o momento da espera pela consulta médica. O material coletado foi codificado e categorizado. Inicialmente, houve a análise temática do material das entrevistas, trabalhando com temas como unidades de registros (Bardin, 1997). De posse da transcrição das entrevistas, partiu-se para a leitura do material, identificando, recortando as unidades de registro e categorizando-as. Os dados mais frequentes foram organizados em duas ramificações: motivos alegados para o tempo da espera e o significado da espera. As informações do diário de campo e da observação participante fizeram parte da discussão. Observou-se que, além da temática espera, os usuários aproveitaram o momento de escuta proporcionado pela entrevista e trouxeram suas opiniões sobre todo o serviço oferecido na UBS. Os trechos das entrevistas, que foram selecionados para este artigo, trazem nomes fictícios, evitando a identificação dos participantes. Nos grupos sem musicoterapia, os usuários apresentaram vários motivos para a espera prolongada, como: o atraso do médico, a forma de marcação, a existência de poucos médicos com relação à demanda local e a falta do médico ao serviço. Porém, a maioria dessas queixas não aponta, com clareza, o motivo central da espera pelo atendimento. A forma de marcação da consulta não altera o tempo da espera de atendimento, porque os usuários já estão com as consultas marcadas; os médicos raramente faltam o serviço e a ESF cobre 100% da sua área, tendo médicos suficientes para isso. 746

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Apesar destas queixas, dificilmente, durante o período em que estavam esperando, levantavam-se para reclamar, preferindo criar burburinhos ao seu redor. Reclamavam uns com os outros e, quando os médicos chegavam, faziam silêncio. Porém, durante a entrevista, alguns deixaram claro o desejo de expressar seus pensamentos e a insatisfação de não encontrarem, na unidade de saúde, uma pessoa que lhes ‘desse ouvidos’. Uns se expressavam em tom triste, outros pareciam ser indiferentes, e havia aqueles que demonstravam insatisfação, apesar de aceitarem a situação, mas a maioria dos entrevistados demonstrou agitação ao expressar suas queixas sobre o serviço. Foi possível notar a revolta destes usuários, que aumentavam o tom de voz quando os ACS passavam pelo local da entrevista. Seguem alguns trechos das entrevistas realizadas nos grupos que não tiveram a intervenção musicoterápica: “o médico demora muito a chegar... fica cansativo...” (Márcia); “A pressão sobe, cê fica de mau-humor, se estressa... então não tem o que fazer...” (Fabiana); “eu me irrito, fico logo nervosa e quem se dá mal, sou eu... porque eles... não tão ligano não...” (Bárbara); “tem que esperar, né? Eu preciso... Olha as pessoas como é que fica, tudo agoniada ó...” (Júlia). A sala de espera sem a musicoterapia tem como características: o movimento dos profissionais que caminham pelo ambiente e não demonstram tempo para a aproximação com o usuário neste momento; as conversas, em duplas ou trios, e o silêncio de alguns usuários que aguardam a consulta médica. Porém, mesmo com a sala de espera lotada, os usuários revelam que se sentem sozinhos: “dá até sono, a gente fica aqui sozinho, esperando, esperando” (Raphael), “aqui fica cada um na sua, a gente espera sozinha” (Carla). Os significados expressados em relação ao momento de espera pelo atendimento médico foram identificados como: ‘postura passiva’, ‘sofrimento’, ‘impaciência’, ‘agonia’, ‘mau humor’, ‘revolta’, ‘impotência’, ‘perda de tempo’, ‘menosprezo’, ‘cansaço’, ‘tristeza’, ‘mal-estar físico’ e ‘estresse’. Nos grupos com musicoterapia, à medida que os usuários chegavam à sala de espera e percebiam a realização da prática musicoterápica, aproximavam-se espontaneamente dos instrumentos, ouvindo as canções produzidas pelos outros usuários que já estavam presentes. Quando não havia mais lugar para sentar, ficavam de pé junto ao violão e ao canto. Constatou-se, assim, a capacidade de a musicoterapia unir as pessoas de lugares, jeitos, idades e crenças diferentes, formar um grupo, proporcionar a troca e a conversação entre os participantes. Mesmo as pessoas que optaram por sentar nos bancos mais distantes, cantavam de lá mesmo e participavam do seu jeito. A sala de espera com a prática musicoterápica muda sua característica. Os usuários falam que estão juntos com outras pessoas e que isto é bom, apontam os momentos de canto coletivo como: “todos cantando juntos” (Joana), “todos juntos esperando” (Fátima), “a gente fica com todo mundo cantando e tocando” (Andrea). Durante a atividade, compuseram melodias criando canções curtas com seus próprios nomes e com os nomes dos outros usuários. Aproveitavam para cantar estas canções logo que ouviam as auxiliares de enfermagem informando o próximo paciente que seria atendido pelo médico. Assim, a chamada passou a ser feita de forma cantada pelos próprios usuários, e todos conseguiam identificar o nome do paciente que seria atendido. Os participantes afirmaram que desta forma não ficavam confusos e apreensivos de escutarem seus nomes durante a chamada. Com isso, observamos uma maior satisfação dos usuários por meio dessa intervenção. Percebia-se, através das composições musicais, que a sala de espera tornava-se um lugar de criação, de produção e de troca entre os participantes. Eles demonstravam maior autoconfiança e superação de seus limites, descobrindo novas habilidades à medida que tocavam, cantavam, improvisavam e recebiam respostas positivas do grupo que era conduzido pela musicoterapeuta. Os grupos que vivenciaram a musicoterapia conseguiram eleger o motivo principal da espera: o atraso dos médicos. Conclui-se que a musicoterapia proporcionou um meio de avaliação do serviço, facilitando a percepção dos usuários para o real problema enfrentado por eles durante a espera: o horário que os médicos chegam à UBS. Com a prática musicoterápica, as pessoas falam dos bons sentimentos, mas isso também deixa aparecer o sentimento oposto. Quando os usuários revelam que, com a prática musicoterápica, eles esperam com mais paciência, fica claro que, sem ela, sofrem com a impaciência, apontando seu descontentamento com a espera e a reação negativa que esta causa em seu bem-estar, em sua saúde. 747


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Como exemplos, seguem alguns trechos acompanhados de comentário: “Ah eu acho bom porque distrai a pessoa... a pessoa não fica tão ansiosa pra quando o médico chegar e então quando a gente chega lá dentro já chega mais calma. Bem melhor” (Sofia).

A usuária afirma que esperar causa ansiedade e que é melhor com a musicoterapia: “O ambiente ficou melhor [...]” (Jurema).

Esta fala traz a ideia de que o ambiente pode melhorar e de que a musicoterapia deu conta disto: “Tendo esses instrumentos é muito melhor. Muito válido, né? mais relaxante, né [...]” (Kátia).

Esse trecho traz à tona a tensão sentida pelo usuário durante a espera e enfatiza que gostou de participar, sentindo-se ativa durante a espera: “A gente espera com mais paciência, achei ótimo” (Maria).

Mostra a impaciência que ficava implícita: “Eu acho legal... porque eu já estava aqui dormindo, né? (risos) A espera é cansativa, né? O médico chega tarde, com isso aqui relaxa [...] é bem melhor” (Augusto).

Esta fala mostra que a espera é cansativa e que algumas pessoas assumem uma postura passiva enquanto aguardam o atendimento. Revela a tensão causada pela espera, aponta o motivo da espera prolongada e confirma que a atividade musicoterápica a ajudou a relaxar e a transformar o ambiente: “Você fica mais leve, sem isso (referindo-se a musicoterapia) as crianças choram, gritam [...]” (Joséfa).

O trecho acima deixa claro que a paisagem sonora da sala de espera influi no bem-estar das pessoas que estão aguardando. A transformação sonora por meio da musicoterapia possibilitou a sensação de leveza sentida pela usuária. Nos grupos com musicoterapia, alguns usuários perceberam que já estavam sendo assistidos durante a espera pelo atendimento médico. Sentem-se cuidando de si: “Tem gente que não tem paciência, né? as mães também, as avós ... quer dizer é uma terapia pra nós, pros funcionários e pras crianças, né?” (Carla); “Os médicos chegam à hora que querem mesmo, então a gente fica aqui cuidando da gente[...]” (Márcia); “quando você tá naquela ansiedade de procurar por médico e médico... com essa terapia assim de música e instrumento até você desvia o pensamento de outras coisas, então você praticamente já até melhora [...]” (Lena); “eu mesmo cheguei aqui caidinha agora já tô ótima!” (Jussara).

Resultados e discussão A musicoterapia foi escolhida como estratégia de intervenção porque a sua prática envolve o encontro com o outro, o cuidado à saúde como o objetivo genuíno desta terapia, e o reconhecimento dos benefícios já alcançados na humanização hospitalar. 748

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Os resultados da pesquisa revelam os significados expressados em relação ao momento da espera, destacando-se o desrespeito sentido pelos usuários diante do atraso dos médicos em todos os grupos participantes. A musicoterapia facilitou a expressão para esta queixa e, ao mesmo tempo, permitiu que fossem assistidos. Durante as atividades, os participantes interagiram através do canto, dos instrumentos musicais, dos movimentos corporais, das gargalhadas, do choro, dos olhares. Neste momento, encontravam-se presentes: emoções, lembranças, sofrimentos e alegrias. A musicoterapia possibilitou trabalhar com as conexões de sentimentos, símbolos e histórias, permeando o tecido subjetivo que preenche o espaço da vivência. A sensação de não-pertencimento ao grupo fragiliza as pessoas, que acabam sentindo-se incapacitadas, fracas para lutar pelos seus direitos, buscando por mudanças positivas no serviço. O sentimento de pertencimento através da atividade musicoterápica fortalece a capacidade grupal e dá voz ao pensamento desta comunidade formada todos os dias na sala de espera. Em todos os grupos, os dados apontam a insatisfação dos usuários, que se sentem desrespeitados pela espera prolongada. Esta é uma constatação séria, que revela a realidade nas práticas de saúde em toda rede pública. Os usuários aguardam a consulta sentindo-se impacientes, de mau humor, cansados, estressados, preocupados, ansiosos e perdendo tempo. Nos grupos em que houve a intervenção, a musicoterapia, além de facilitar o levantamento das opiniões sobre o momento da espera pelo atendimento, refletindo e avaliando o serviço, proporcionou assistência, autonomia e protagonismo aos usuários. Foram ouvidos e sentiram-se leves, valorizados, animados, calmos, pacientes, tolerantes, e com o humor, a saúde e o bem-estar físico melhorados. A oportunidade de expressão dos sentimentos, de percebê-los e de pensar sobre eles, aponta para a identificação de certo protagonismo por parte dos usuários – eles tiveram a oportunidade de falar, cantar, tocar e de serem escutados. Também parece despontar certa autonomia. Através das escolhas de músicas e instrumentos, puderam transformar a realidade da sala de espera. Como o instrumento principal da musicoterapia é o som, foi inevitável a transformação da paisagem sonora que, antes, se constituía do som das portas abrindo e fechando, do burburinho das pessoas conversando, das crianças correndo, da voz das técnicas de enfermagem chamando os pacientes para a consulta, dentre outros. A paisagem sonora passou a constituir-se dos sons dos nomes dos pacientes sendo cantados, dos instrumentos tocados, do coral simples que uniu as vozes de todos os usuários. Os participantes relataram que com a prática musicoterápica: “o ambiente ficou melhor” (Zilda); “aquela confusão, acabou, todo mundo falando ao mesmo tempo” (Lucíola). A musicoterapia fortaleceu o vínculo entre o usuário e a UBS, pois os participantes das atividades com musicoterapia, mais frequentemente, procuravam a equipe de pesquisa para falar sobre o serviço. Este fato é bastante relevante, visto que o fortalecimento do vínculo é uma das propostas que precisam estar presentes nas ações de acolhimento. Alguns profissionais participaram da musicoterapia junto com os usuários. Estiveram presentes: 67% das enfermeiras das ESF, 56% dos ACS, 100% das Técnicas de Enfermagem, 100% da equipe de Serviços Gerais e 67% das Auxiliares de Consultório Dentário da ESB. Os profissionais e os usuários se relacionavam de forma igualitária durante as atividades. Todos cantavam, sugeriam e escolhiam músicas. As opiniões dos profissionais, assim como a dos usuários, não eram sempre aceitas pelo grupo, fazendo-os conversar e discutir sobre a escolha e seus gostos pessoais. Alguns usuários aproveitavam a circunstância para tirar dúvidas com as enfermeiras. O participante, durante a atividade, escolhia o instrumento exercitando sua criatividade, iniciativa, liderança e reproduzia as canções do seu jeito, protagonizando a sua participação na atividade proposta, descobrindo novos potenciais. A presença de todos juntos fazendo música pôde suscitar, através da prática musicoterápica, a valorização dos profissionais e dos usuários, ou seja, a valorização do sujeito, a inter-relação das equipes que estavam presentes e destas com os usuários, possibilitando a produção de sujeitos. Mesmo que os profissionais não fizessem parte da pesquisa, sua participação espontânea teve relevância pela interação mantida com o usuário, constituindo-se como um achado que merece ser pontuado. 749


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Sem a musicoterapia, observamos que os médicos passavam pela sala de espera e não cumprimentavam os usuários. No entanto, com a prática musicoterápica mediando esta relação, sorriam para os pacientes quando atravessavam a sala de espera. Cada momento de musicoterapia é único, marcado por suas diferenças e semelhanças, e esta característica nos permite perceber o papel de protagonistas que as pessoas assumem durante o processo de criação na vivência musicoterápica, seja na atitude de tocar e escolher um instrumento, de cantar sua canção preferida, de dançar, de escolher as músicas que o grupo vai ouvir e executar. Em termos conceituais, a musicoterapia se constitui como tecnologia leve, um saber específico que é posto em prática por meio do ‘trabalho vivo’ em ato (Merhy, Pinto, 2007; Merhy, 1999; Merhy, Onocko, 1997), dependente da existência do encontro entre as pessoas, mediando as relações, considerando a subjetividade e a tensão presente neste cenário, estimulando a criatividade, a troca, a expressão, a vivacidade do ser. É importante ressaltar que a música mecânica, aquela que é reproduzida no aparelho de som, não envolve as pessoas de tal modo a organizar os sons do ambiente. As pessoas continuariam passivas ouvindo música. Neste caso, a música mecânica, na sala de espera, seria mais um ruído tumultuando, ainda mais, o ambiente e prejudicando o bem-estar e a saúde dos presentes. A proposta da musicoterapia neste espaço é fomentar a participação das pessoas, produzindo autonomia, protagonismo e oferecendo assistência na sala de espera. Percebe-se uma nova forma de fazer e pensar saúde. A utilização da sala de espera como espaço de criação; de expressão livre; de produção; de rompimento com o silêncio nocivo, com a monotonia, com a passividade e com a sensação de tempo perdido. Mostra o fazer e o pensar a saúde diante do trabalho vivo, na relação cotidiana entre os usuários e os profissionais de saúde, e a pertinência da inserção de novos profissionais na arena. Paralelamente a este fato, emergiu, desta experiência, a expressão do sentimento de desrespeito: o que antes só aparecia como queixa, pode ser decodificado como uma sensação, presente nos usuários, de estarem sendo desrespeitados. No que se refere aos profissionais, observa-se que tiveram um retorno imediato ao serem tocados pela musicoterapia. Logo após a coleta de dados, o Ambulatório de Saúde Mental da UBS - ao qual a pesquisadora era vinculada – saiu da Unidade. Isto dificultou a devolução imediata da pesquisa. Porém, recentemente, conseguiu-se retornar à UBS e reunir a equipe para apresentar os resultados obtidos. Como o dia a dia da Unidade é dinâmico, nem todos os atores envolvidos estavam presentes. Escolheu-se o horário de almoço para facilitar a participação dos profissionais. Dessa forma, contou-se com 67% da ESF, 80% dos ACS, 67% da ESB, estando presente: ACS, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, auxiliares de higiene bucal, dentista e a coordenação da UBS. Os médicos continuaram os atendimentos neste período e não participaram deste momento. A receptividade dos profissionais foi positiva. Demonstraram interesse e gosto por terem participado da pesquisa como anfitriões para o desenvolvimento de temas fundamentais e comuns nos serviços de saúde. Os primeiros pontos destacados pela equipe foram: a alegria sentida, no ambiente, com as atividades; a harmonia, no ambiente, com os sons organizados, e o aumento da predisposição dos profissionais no trabalho. Após, ressaltaram a surpresa que tiveram com os sentimentos expressos pelos usuários e levantaram a situação principal que norteia a espera: o atraso dos médicos. Na discussão, foram apontadas as dificuldades que são encontradas para solucionar a questão, como: salários defasados; vínculo precário; falta de insumos, de estrutura e logística, e a desvalorização do profissional. A equipe trouxe o argumento de que estes problemas giram em torno de todos os profissionais de saúde, e não somente dos médicos. Enfatizaram a necessidade do investimento pessoal, fruto da automotivação, para garantir o mínimo de efetividade nos serviços oferecidos e a busca permanente de melhorias das condições encontradas, hoje, nos serviços de saúde. Em continuidade à proposta de devolução, afixou-se o resumo do trabalho nos murais da Unidade para o acesso dos usuários, e as enfermeiras se comprometeram a passar, para os profissionais ausentes, os achados da pesquisa, levando esta discussão para outras reuniões. Encerrou-se a apresentação mantendo-se aberta a reflexão e a discussão fomentada pela investigação. Acredita-se que a difusão desta pesquisa possa sensibilizar gestores, profissionais médicos e de outras áreas. 750

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Considerações finais O estudo realizado teve o objetivo de contribuir para o acolhimento com a prática musicoterápica na sala de espera, por meio da categoria operacional espera. Revelou a espera pelo atendimento, a dinâmica do serviço à saúde, as relações interpessoais. A fundamentação teórica embasou a utilização de uma nova forma de intervenção na sala de espera de uma UBS: a musicoterapia. A pesquisa possibilitou inserir, na sala de espera, uma inovação. Trouxe a atenção básica às possibilidades das experiências bem-sucedidas na assistência hospitalar. A pesquisa revelou a indignação dos usuários quanto à espera prolongada e frequente. A prática musicoterápica potencializou a expressão, fomentando o protagonismo e a autonomia. Possibilitou conhecer o pensamento dos usuários com relação à acessibilidade ao serviço, satisfazendo a ideia da prática das ações de acolhimento. Diferentemente das práticas habituais voltadas para a Educação em Saúde, desenvolvidas na sala de espera, a pesquisa apontou uma nova metodologia pioneira no Brasil. A musicoterapia, como estratégia de acolhimento na sala de espera, visa inserir, gradualmente, um espaço de promoção de conversas, de escuta, de aproximação de todos os atores envolvidos com a saúde. A musicoterapia não tem o objetivo de enganar os usuários otimizando o tempo da espera para ser sentido de forma mais rápida. Tem o objetivo de acolher, estimular, escutar os usuários, de maneira que se sintam seguros, capazes de colocarem suas opiniões sobre o serviço, e oferecer assistência durante a espera pelo atendimento. O dia a dia desta UBS pode ser vislumbrado por um novo olhar, mediante a estratégia de intervenção proposta: a partir da valorização dos profissionais, dos usuários e da integração destes; do desenvolvimento da expressão; da paisagem sonora harmonizada; da autonomia e do protagonismo dos usuários que foram estimulados à autoconfiança, a descobrirem novas potencialidades e a superarem limites. A sala de espera tornou-se um espaço para cuidar de si, criar, interagir, refletir sobre o serviço e expressar-se. A sensação do tempo perdido e de ociosidade deu lugar à produtividade, ao protagonismo, à formação de novos sujeitos. A atividade proporcionou uma escuta qualificada, uma integração igualitária entre os profissionais e usuários, além de promover uma aproximação e valorização destes atores, construindo uma rede de conversação. A Psicossociologia assumiu o papel fundamental para toda a investigação, mantendo-a viva e alimentando a discussão teórica por meio de um olhar amplo que estuda as relações com o outro considerando as diversas faces existentes neste cenário. O estudo proposto englobou: a cultura, a história, o tempo, o cotidiano, a ciência e a subjetividade. A musicoterapia configura-se como tecnologia leve e como trabalho vivo em ato. A potência mobilizadora presente na prática musicoterápica possibilita a expressão de opiniões, promovendo um espaço seguro, dando suporte, cuidando e assistindo os usuários em suas necessidades. A pesquisa foi direcionada a uma parte do processo de acolhimento, colaborando com a humanização do serviço. Mesmo que seus achados não possam ser generalizados, a primeira pesquisa realizada no Brasil sobre a musicoterapia em uma UBS parece indicar que a prática musicoterápica é uma estratégia válida, contribuindo para implantação do Acolhimento. Pode ser incluída em outras UBS, levando novos atores e iniciativas ousadas para a fomentação de mudanças nos serviços. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A MUSICOTERAPIA NA SALA DE ESPERA ...

Seus resultados apontam para a necessidade de novas pesquisas quanto à contribuição da musicoterapia na humanização da atenção básica. Levantar a possibilidade de se fomentarem mudanças no processo de trabalho, no empoderamento dos usuários, no incentivo a sua expressão, promovendo a participação social, são exemplos de investigações possíveis. A complexidade em que se insere a saúde demanda ações conjuntas, integradas, com investigações e tentativas permanentes na busca de melhoramentos constantes. A musicoterapia pode ser muito instigante neste processo.

Colaboradores Adriana Pimentel é autora da dissertação de mestrado que deu origem a este trabalho, e redigiu o artigo. Ruth Barbosa orientou a pesquisa e participou da redação e revisão do artigo. Marly Chagas coorientou a pesquisa e participou da redação e revisão do artigo. Referências AZEVEDO, S.C.; BRAGA NETO, F.C.; SÁ, C.M. Indivíduo e a mudança nas organizações de saúde: contribuições da psicossociologia. Cad. Saude Publica, v.18, n.1, p.235-47, 2002. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997. BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BRASIL, Ministério da Saúde. O acolhimento como uma diretriz da política nacional de humanização da atenção e gestão do SUS. Brasília: Secretaria de Políticas de Saúde/Departamento de Atenção à Saúde, 2006. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. v.2. CHAGAS, M. Projeto encanto: avaliando a implantação de uma proposta na humanização hospitalar. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM MUSICOTERAPIA, 5., 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Conservatório Brasileiro de Música, Centro Universitário, 2004. CHAGAS, M.; PEDRO, R. Processos de subjetivação na música e na clínica em musicoterapia. 2007. Tese (Doutorado) - Programa EICOS de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2007. DESLANDES, F.S.; DIAS, B.A.M. Expectativas sobre a assistência ao parto de mulheres usuárias de uma maternidade pública do Rio de Janeiro, Brasil: os desafios de uma política pública de humanização da assistência. Cad. Saude Publica, v.22, n.12, p.2647-55, 2006. FIALHO, P.B. As possíveis correlações da musicoterapia com a política de humanização na maternidade-escola da UFRJ. 2004. Monografia (Graduação) Conservatório Brasileiro de Música, Centro Universitário, Rio de Janeiro. 2004. FRANCO, T.B. et al. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim, Minas Gerais/Brasil. Cad. Saude Publica, v.15 n.2, p.345-53, 1999. GIERE, R. Understanding scientific reasoning. Nova York: Winston, 1984. 752

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PIMENTEL, A.F.; BARBOSA, R.M.; CHAGAS, M.

artigos

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A MUSICOTERAPIA NA SALA DE ESPERA ...

PIMENTEL, A.F.; BARBOSA, R.M.; CHAGAS, M. La Musicoterapia en la sala de espera de una Unidad Básica de Salud (UBS): cuidado, autonomía y protagonismo. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.741-54, jul./set. 2011. La recepción es una directriz de la Política Nacional de Humanización, que concretiza los principios básicos del Sistema Nacional de Salud (SUS). La sala de espera se inserta en la discusión teórica y práctica de la recepción. La necesidad de adoptar medidas para promover esta directriz inspiró la creación de la primera investigación sobre Musicoterapia en una UBS, cuyo objetivo fue contribuir a la recepción, con la práctica de musicoterapia en la sala de espera, a través de la categoría operacional - espera. La metodología se basó en entrevistas y actividades de musicoterapia. El resultado reveló la indignación de los usuarios acerca de la larga espera y convirtió el lugar en un ámbito de la atención, autonomía y protagonismo. La encuesta muestra la Musicoterapia como una estrategia que debería ser extendida a otras UBS.

Palabras clave: Atención primária de salud. Humanización de la atención. Acogimiento. Musicoterapia. Sala de espera. Recebido em 18/09/10. Aprovado em 22/12/10.

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artigos

A visão de moral dos profissionais de uma unidade básica de saúde e a humanização* José Roque Junges1 Rafaela Schaefer2 Jessica Prudente3 Raquel Elisa Ferreira De Mello4 Cassiane Silocchi5 Marielli de Souza6 Guilherme Wingert7

JUNGES, J.R. et al. The moral vision of professionals at a primary healthcare unit and humanization. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.755-62, jul./set. 2011.

The aim of the study was to analyze the moral vision of professionals working in a primary healthcare unit and to indicate its implications for the strategy of humanization of healthcare. This was an investigation of exploratory nature with a qualitative approach. Data were gathered at a primary healthcare unit and were subsequently interpreted using discourse analysis. The professionals perceived morality as having good intentions in the care provided, such that the results are more a consequence of technical procedures than an ethical issue. The guidelines for the National Humanization Policy propose co-responsibility and comanagement among healthcare professionals, managers and users, in order to achieve the objectives of humanization, problem-solving and excellence in healthcare provision. In conclusion, if humanization is not a matter of charity, but rather a fulfillment of user rights, professional ethics should not depend on good intentions but be based on results that are identified with responsibility.

Keywords: Ethics. Morality. Primary Health Care. Humanization of care. Social responsibility.

A proposta deste estudo foi analisar a visão moral dos profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e apontar suas implicações para a estratégia da humanização da assistência. Trata-se de uma investigação de natureza exploratória, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados em uma UBS e, posteriormente, interpretados pela análise do discurso. Os profissionais identificam moral como ter boas intenções no atendimento, sendo os resultados mais uma consequência de procedimentos técnicos do que uma questão ética. As diretrizes da Política Nacional de Humanização propõem a corresponsabilidade e a cogestão de profissionais, gestores e usuários, para o alcance dos objetivos da humanização, da resolutividade e da excelência na prestação dos serviços de saúde. A humanização não é uma questão de caridade, mas corresponde à realização dos direitos do usuário; a ética do profissional não pode estar pautada pela boa intenção, deve ser baseada nos resultados, identificando-se com a responsabilidade.

Palavras-chave: Ética. Moral. Atenção Primária á Saúde. Humanização da assistência. Responsabilidade social.

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Fontes financiadoras Edital MCT/CNPQ/ MS-SCTIE-DECIT N.023/2006. 1-7 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Caixa Postal 101 (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. 93.001-970. jrjunges@unisinos.br *

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Introdução A Política Nacional de Humanização (PNH) perpassa todos os processos e atores envolvidos no Sistema Único de Saúde (SUS), visando desfragmentar e desverticalizar os processos de trabalho na construção coletiva de saúde. A humanização é o eixo da ética nas práticas de saúde, pois propõe movimentos instituintes de crítica e problematizações constantes acerca dos processos em saúde. A percepção dos profissionais sobre moral na humanização interfere nas relações pessoais, nos processos de trabalho e na gestão, estando diretamente ligada ao que é produzido na prática profissional. Assim, faz-se importante diferenciar entre o instituído como prática corrente e o instituinte como análise crítica correspondente aos conceitos de moral e de ética, a fim de contextualizar a discussão deste estudo (Brasil, 2004). Segundo Cortina e Martinez, 2005, “moral” é o conjunto de princípios, normas e valores que cada geração transmite à geração seguinte na confiança de que se trata de um bom legado de orientações sobre o modo de se comportar para viver uma vida boa e justa. Nesse sentido, a moral está ligada à vida prática, influenciando comportamentos e atitudes, em um sentido mais geral. Em contrapartida, a moralidade compõe a vivência subjetiva da moral de forma mais particular. Já a “ética” é a disciplina filosófica que constitui uma reflexão de segunda ordem sobre os problemas morais, ou seja, pressupõe crítica e reflexão sobre tais problemas. Dessa forma, as reflexões dos profissionais acerca da moralidade de suas práticas e ações determinam o modo de entender a humanização. Além dessa distinção, é importante, para a discussão sobre a prática de humanização, a diferença proposta por Weber, 2003, entre ética da convicção e ética da responsabilidade. A primeira está baseada em ações bem-intencionadas, tirando do sujeito a responsabilidade dos resultados, já que o que interessa é a manutenção da pureza da doutrina. Por sua vez, a ética da responsabilidade pressupõe um sujeito que deve se responsabilizar pelas consequências de suas ações. Por isso, segundo Weber (2003, p.94): A ética absoluta é imune às consequências. Essa é a questão decisiva. Há um contraste abismal entre a ação resultante da ética atemporal que visa aos fins – isto é, em termos religiosos, “O cristão age com retidão e deixa os resultados nas mãos do Senhor” – e a ação resultante da ética da responsabilidade, na qual se deve prestar conta das consequências previstas das próprias ações.

Para a humanização, entendida como ética dos serviços de saúde, é importante conhecer qual é a visão moral dos profissionais e analisá-la eticamente a partir da compreensão de Weber. A visão moral dos profissionais pesquisados foi construída no contexto da discussão sobre humanização. Nesse sentido, a humanização servirá, também, como referência para análise da visão moral dos profissionais. A humanização estabelece-se como a construção/ativação de atitudes ético-estético-políticas em sintonia com um projeto de corresponsabilidade e qualificação dos vínculos interprofissionais e entre estes e os usuários na produção da saúde. Éticas porque a defesa da vida constitui o eixo de suas ações. Estéticas porque estão voltadas para os processos de invenção das normas que regulam a vida. Políticas porque é na relação entre os homens que se operam as relações sociais e de poder (Brasil, 2004). Destaca-se que, na literatura, encontram-se muitos estudos que refletem a ética acerca da humanização na realidade hospitalar, pois o contexto de gravidade e as situações-limite predispõem a uma evidência dessas questões. Entretanto, o trabalho em atenção primária também representa uma realidade complexa, mas a escassez de estudos desta temática reflete a visão hospitalocêntrica ainda presente na cultura da maioria das pessoas. O objetivo do artigo é analisar a visão moral dos profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e apontar suas implicações para a estratégia da humanização.

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artigos

Metodologia O presente artigo é fruto da pesquisa “O discurso dos trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em São Leopoldo (RS) sobre a humanização dos serviços”, inserida na linha de pesquisa “Vulnerabilidade em Saúde e Bioética” do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Trata-se de uma pesquisa exploratória com abordagem qualitativa, cuja coleta de dados realizou-se através de grupos focais. A partir do contato com a Secretaria Municipal de Saúde, a UBS da Vila Campina foi indicada como local apropriado para os objetivos da pesquisa. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo CEP da Unisinos. O universo empírico da pesquisa foi definido intencionalmente, tendo presente as diferentes competências profissionais e o maior tempo de serviço na unidade. O grupo focal era integrado por uma médica (M), um dentista (D), dois enfermeiros/as (E1 e E2), três técnicos/as de enfermagem (T1, T2 e T3), um atendente da portaria (P), um encarregado do almoxarifado (A) e a gestora da unidade (G), totalizando dez participantes escolhidos entre os cerca de sessenta que atuam na unidade, mais o pesquisador/facilitador (F) da discussão focal. Foram feitas oito reuniões, de uma hora e meia cada, com o mesmo grupo, sobre diferentes aspectos da humanização, como: direito à saúde, subjetividade, integralidade, acolhimento, resolubilidade, responsabilidade, intersetorialidade e suas interfaces com o cotidiano dos profissionais. As interações e discussões foram digitalmente gravadas e o texto transcrito foi trabalhado e interpretado através da metodologia da análise discursiva. Esse tipo de análise é o mais adequado quando se trata de interações discursivas de um grupo focal organizado em vista de um objetivo, como é o caso de profissionais de uma unidade básica. Não seria pertinente fazer entrevistas individuais com os trabalhadores e depois analisá-las pelo método de análise de conteúdo, porque não interessam os significados dados por cada um à humanização, mas sim o discurso sobre esta temática que surge na interação entre os participantes da discussão. A realidade da humanização não existe independente das interações que acontecem na unidade, portanto, ela só está presente no discurso que acontece nessas interações. Em outras palavras, a realidade é continuamente construída pelo discurso e está presente no discurso. Isso significa assumir uma visão pragmática da linguagem, porque a linguagem é ação e o seu significado depende essencialmente do contexto (Rueda, 2003; Potter, Wetherell, 2002; Austin, 1998). A análise do discurso não trabalha com a codificação em categorias temáticas, como é o caso da análise de conteúdo, mas em repertórios interpretativos que são conjuntos de diálogos interativos que tecem discursivamente a realidade. A partir da análise da transcrição de um dos grupos focais, surgiram repertórios interpretativos a respeito da humanização, relacionados à moral.

Resultados e discussão No discurso dos profissionais emergem duas principais concepções acerca da moral: a primeira é a de que uma atitude moral consiste em ter boas intenções; a segunda é a de que o importante são os resultados, independentemente das intenções. Dessa forma, há uma alternância no discurso do grupo entre agir conforme suas intenções e agir responsabilizando-se pelos resultados da ação, prevalecendo uma percepção de moral baseada em princípios e convicções, independente dos resultados. Faz-se necessário realizar uma análise ética sobre a moral, utilizando-se os pressupostos da ética da convicção e da ética da responsabilidade segundo Weber, 2003. Assim, a moral baseada na intenção, corresponde à ética da convicção, e a moral baseada nos resultados corresponde à ética da responsabilidade. No levantamento dos resultados, foram encontrados alguns repertórios sobre a moral em sua relação com a Política Nacional de Humanização (PNH). Para analisar as falas discursivas, parte-se de uma visão pragmática, que define a linguagem como ação. As pessoas que fizeram parte dos grupos focais estão agindo ao falarem, construindo sua realidade no discurso. O primeiro repertório analisado expressa os significados dados pelos profissionais em relação à moral, entendida como boa intenção ou consequência. O repertório abaixo foi construído no oitavo grupo focal no momento em que os participantes foram incentivados a discutir sobre a Humanização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como eixo da ética nos serviços de saúde. A partir destas interações discursivas, apareceu o seguinte diálogo: P: Mas se for uma boa intenção vai ter consequências boas! [...] T1: Toda ação tem uma reação. [...] P: No caso quando ta fazendo já... No caso quando tá fazendo já sabe a consequência ou depois vai ficar sabendo qual a consequência que teve? F: Às vezes nem todas as consequências são previsíveis... E2: Pois é... Daí vale a intenção. Agora se ta fazendo já, ah, eu tenho aquela intenção... [...] E2: ...Mas a consequência não pode ser boa. T1: Toda ação tem uma reação. [...] P: Daí a intenção não vale, daí pior é a consequência! F: Aí vale as consequências? M: A consequência não é questão ética! F: Não? T1: Ela não teria que ter uma ação... F: Seria questão de intenção só? M: De imperícia, de negligência, mas não de...

A análise do discurso traz os deíticos de pessoa (pronomes pessoais) que situam o contexto de enunciação do discurso (Rueda, 2003). Neste repertório estes deíticos não são referidos, revelando um discurso impessoal, que (des)implica o sujeito. As falas são abstratas, não explicitando o sujeito da ação, nem individual, nem coletivo. Dessa forma há uma ênfase no contexto do discurso, e não nos agentes responsáveis pelos processos, e uma desresponsabilização do profissional de saúde. Uma das diretrizes da PNH afirma que, para que se possa reforçar o conceito de clínica ampliada, essencial para a efetivação do atendimento em atenção primária, é necessário que haja um compromisso do profissional com o sujeito e seu coletivo, bem como a corresponsabilidade de todos os atores envolvidos no processo de produção de saúde (Brasil, 2004), o que se apresenta em dissonância com o repertório descrito acima. Para a compreensão deste repertório, é importante referir mais um dos elementos da análise do discurso, a indexicabilidade. Ela explica o contexto da enunciação, revelado neste repertório a partir de falas gerais sobre as ações e suas consequências, apresentando contradições no discurso. A enunciação sempre acontece num contexto que fornece o significado específico da palavra. Por isso, é necessário analisar o contexto para entender o que é dito (Rueda, 2003). O contexto da Unidade Básica de Saúde pesquisada apresenta uma condição estrutural específica: ela engloba, além dos cuidados primários, a emergência e o agendamento de especialidades, sobredeterminando a demanda. Além disso, devido ao excesso de demanda, ambiente físico reduzido e ausência de reuniões de equipe, não há uma reflexão sobre os problemas e os desafios da unidade. Tais reuniões poderiam compor um momento de construção dos sujeitos de saúde (usuários e profissionais) e permitir a execução de uma das diretrizes da PNH, que prega o diálogo permanente entre os atores presentes no contexto assistencial, promovendo a gestão participativa (Brasil, 2004). Dessa forma, constitui-se um ambiente pautado na execução individual de cada função, isolada do todo, fato este que será explicitado na análise discursiva a seguir. O que eles estão fazendo ao falar? O discurso revela uma antecipação defensiva para possíveis consequências indesejadas, pois eles enfatizam que as suas práticas profissionais estão baseadas na ética da convicção, ou seja, da boa intenção. Essa postura discursiva se relaciona com a realidade do cotidiano e com os processos de trabalho centrados nos procedimentos e técnicas, bem como na formação centrada no fazer de cada especialidade. O apego aos procedimentos e protocolos na discussão 758

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subjetiva acaba levando a compreensão para o lado prático, o que acarreta falta de clareza no discurso. Além disso, a falta de um coletivo formado, que se comunica e traça objetivos em comum, reforça essa individualização, através da ausência de corresponsabilidade e cogestão. A contraposição weberiana entre a ética de convicção e a ética de responsabilidade fica evidenciada no momento em que alguns profissionais afirmam a ideia de que, necessariamente, boas intenções acarretam “boas” consequências. Esta fala deixa de lado a dimensão da responsabilização pelo processo de cuidado como um todo. Ainda, neste repertório, é afirmado que: “a consequência não é questão ética [...], mas de imperícia, de negligência [...]”. Tal observação demonstra uma visão de que as consequências da ação têm relação com procedimentos técnicos das ações em saúde, e não com uma postura ética. O próximo repertório tem como temática predominante uma falta de diferenciação entre normas/ regras e valores pessoais, pois há uma alternância no discurso que evidencia um entendimento conflituoso entre os conceitos. Parte-se do pressuposto de que normas referem-se a noções de boa educação e etiqueta, constituindo regras de convivência grupal que cada indivíduo deve seguir. Já os valores, segundo Cortina e Martinez, 2005, constituem atitudes que pautam comportamentos que estão baseados no ethos coletivo de uma comunidade. Nesse contexto aparece o seguinte diálogo: M: Tá no código de ética, to falando no código de ética. T1: Tá nos teus princípios, mas... E2: Princípios e valores. M: De etiqueta! T1: A princípio, tu tens que às vezes passar por cima dos teus princípios para um bem maior. [...] T1: Às vezes pode ser uma urgência: “Ah não vou atender porque é uma reunião”. E daí tu deixaste e é uma emergência entendeu? Tu tens que passar por cima dos teus princípios, é aquilo que tu estavas falando antes. G: Mas é que daí tu coloca numa balança, o que tu podes passar por cima e o que tu não podes. T1: Sim, mas sempre tem que se passar.... G: Atender o celular tu pode passar por cima... [...] F: Agora vamos pegar as normas das enfermeiras, médicos que estão no código. Ele tem normas, deveres. Ser ético depende de executar, de cumprir esses deveres que estão no código, ou algo mais? T1: Eu acho que é algo mais. F: O que é esse mais? T1: As normas, tu não consegues seguir até por infra-estrutura e tudo mais. A norma às vezes manda usar um equipamento em determinada medicação, mas tu não tens, então tem que enjambrar, tu não tens aquilo que o paciente precisa, tens que passar por cima da norma, para que o paciente possa ser atendido. E2: Mas pode ter consequências. T1: ... É com certeza, que não era a minha intenção. E2: Que não era tua intenção, mas tu vai ter conseqüências.

A falta de diferenciação entre princípios e normas fica explícita nas falas do repertório, pois os profissionais vão intercalando conceitos de maneira indiscriminada, ora referindo-se ao código ético, ora referindo-se a valores e princípios, para nomear a mesma ação, como se uma concepção se articulasse com a outra. Essa indiferenciação é demonstrada, também, quando os profissionais referem-se a atender o celular como uma questão de ética, mas que, na realidade, constitui uma regra de convivência. Se a humanização identifica-se com um conjunto de estratégias para qualificar a atenção e a gestão do SUS, ela se estabelece, segundo a PNH (Brasil, 2004), como construção/ativação de atitudes éticoCOMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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estético-políticas em sintonia com um projeto de corresponsabilidade e qualificação dos vínculos interprofissionais e com os usuários; então, a humanização depende essencialmente de princípios e valores interiorizados, e não tanto do puro cumprimento de normas de código ou de protocolos. Por isso é sempre possível e, às vezes até necessário, passar por cima de regras procedimentais fundado em princípios e valores e movido por atitudes de corresponsabilidade, de qualificação dos vínculos e de defesa da vida. Nesse sentido, nunca se pode passar por cima dos seus princípios, porque eles são a causa da construção/ativação de determinadas atitudes de convicção. Transigir dos seus princípios seria assumir uma a atitude antiética (Cortina, Martinez, 2005). Referindo-se à definição já apresentada de deíticos (Rueda, 2003), será necessário utilizar a mesma para a análise deste repertório. Nesta interação discursiva, o deítico de pessoa “tu” aparece diversas vezes. A partir do momento que o sujeito não diz “eu tenho que fazer”, mas “tu tens que fazer”, acaba tirando a responsabilidade de si, excluindo-se indiretamente, mesmo quando fala de uma prática própria. Partindo do pressuposto de que falar é agir, o que eles estão construindo ao falar? Os sujeitos buscam amenizar a responsabilidade individual, mas tendem a não atribuir essa responsabilidade ao grupo, pois o trabalho na equipe investigada apresentou-se de maneira fragmentada e com pouca comunicação. O uso do “tu” ao invés do “eu”, ao falar das próprias práticas, sugere uma tentativa de abrandar a responsabilidade, construindo, no discurso, um sujeito implicado/desimplicado. Ao se confrontarem com a proposta de uma reflexão de segunda ordem sobre suas práticas, em relação à PNH, demonstram dificuldade de se posicionarem enquanto sujeitos na relação com outros sujeitos na produção de saúde/cuidado. Outro elemento importante da análise de discurso é a implicatura, ou seja, utilizar uma palavra (ou expressão) querendo referir outro significado (que não o seu próprio), o qual só pode ser entendido no contexto da enunciação (Rueda, 2003). Assim, a análise da expressão “sempre tem que passar” indica uma necessidade constante de não só passar por cima de normas e regras, como também de princípios éticos. Para eles, a consequência é uma questão técnica, e os resultados estão ligados ao uso correto dos procedimentos. Quando se referem a ter que “enjambrar”, “passar por cima” dos valores, eles justificam essa atitude diante de uma possível consequência negativa através da ética da boa intenção. Mas, para assumir as consequências negativas de passar por cima de regras e procedimentos, baseado em princípios e valores, é necessário ter atitudes e convicções interiores para responsabilizar-se, e não apenas boa intenção. Ter uma atitude ética em relação às consequências seria responsabilizar-se pelo resultado, mesmo em condições precárias de ambiente, o que constituiria a ética na saúde. Humanizar significa garantir à palavra a sua dignidade ética. Isso remete a pensar a dimensão relacional das práticas da saúde. O discurso dos profissionais demonstra preocupação com os aparelhos (tecnologias duras) e com as especialidades (tecnologias leves duras), mas, no contexto da atenção primária, as tecnologias leves desempenham um papel fundamental que transversaliza todos os outros tipos de tecnologias. Essas três formas apontam para o que Merhy (2000) chama de valises tecnológicas do profissional da saúde. Mesmo sabendo que as duas primeiras são importantes no atendimento ao usuário, a atenção básica trabalha com tecnologias relacionais de grande complexidade, pois lida com problemas do cotidiano que “dizem respeito aos modos de viver, sofrer, adoecer e morrer no mundo contemporâneo, utilizando poucos equipamentos” (Brasil, 2009, p.9). Nessa perspectiva, Deslandes (2004) destaca a importância das tecnologias de escuta de negociações comportamentais e organizacionais, e Teixeira, 2003, aponta para as tecnologias de conversa, onde as redes de serviços de saúde passariam a ser tratadas como redes de conversações, propondo o acolhimento dialogado, ou seja, uma técnica de conversa que ajuda a interpretar as necessidades do usuário a fim de satisfazê-las. Esse espaço relacional, que pode ser criado com o acolhimento dialogado, permite que o profissional de saúde entenda, de maneira mais clara, as necessidades reais de cada usuário, pois este relata seu modo de levar a vida, assim como as dificuldades enfrentadas no seu dia a dia. A PNH traz, como uma de suas diretrizes, a implementação de um sistema de comunicação que amplie o compromisso social dos trabalhadores de saúde (Brasil, 2004). Dessa forma, humanização implica uma mudança cultural que aponta para uma mudança ética, a qual pressupõe a defesa da vida. A proposta da humanização (Brasil, 2004) e as discussões sobre o seu embasamento teórico insistem que ela não se identifica com a atitude de bondade, mas configura-se como respeito aos direitos do 760

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usuário, alcançado através da construção coletiva, num processo de cogestão e corresponsabilidade dos usuários e profissionais (Rios, 2009; Oliveira, Collet, Viera, 2006). Atendimento humanizado não significa uma atitude supererogatória de caridade, mas o acolhimento do usuário em suas necessidades, entendido como algo ao qual ele tem direito. Nessa perspectiva, a humanização não depende da boa intenção do profissional, mas da satisfação das necessidades do usuário que se manifesta nas consequências. Por isso, a ética do profissional deve ser pautada pelas consequências para o alcance da resolubilidade do problema que levou o usuário a procurar a unidade. Se o respeito aos direitos implica, igualmente, uma superação do paternalismo e um incentivo do protagonismo e da autonomia do usuário (Brasil, 2004), então a moral do profissional não pode depender da boa intenção que leva a atitudes paternalistas, mas das consequências em superar a dependência e em promover o empoderamento por meio da educação em saúde. Os textos críticos sobre a humanização insistem também que não se pode descarregar somente nos profissionais a causa pelo mau atendimento (Simões et al., 2007; Oliveira, Collet, Viera, 2006; Gastaldo, 2005). A estratégia depende, essencialmente, de uma mudança nos processos de trabalho e de um respeito pelos direitos do próprio profissional. Ele precisa se sentir parte do processo, corresponsável na cogestão da unidade. Por isso a humanização não depende apenas da boa vontade do profissional, mas de seu comprometimento com o processo de trabalho regido pela PNH. Neste sentido, a moral nas práticas da saúde não pode estar fundada nas boas intenções dos profissionais, mas na responsabilidade em assumir conjuntamente, como equipe multiprofissional, a gestão da unidade.

Considerações finais Resgatando a afirmação, proposta na introdução, de que a humanização é o eixo da ética nas práticas de saúde, pois propõe movimentos instituintes de crítica e problematizações constantes acerca das práticas em saúde (Brasil, 2004), pode-se verificar que existem contradições em relação aos resultados obtidos na análise das interações discursivas dos profissionais pesquisados. Segue-se disso que, nos repertórios analisados, evidencia-se um discurso instituído e cristalizado, centrado na queixa, denunciando um conformismo com a situação do contexto de trabalho. Dessa forma, a equipe parece esperar intervenções externas que possam vir a solucionar os problemas e as carências do serviço, explicitando uma falta de protagonismo e corresponsabilidade dos sujeitos referidos. A equipe de profissionais está implicada com a manutenção da lógica dos processos de trabalho centrados na aplicação individual de procedimentos e na intenção de dar conta da demanda, organizando-a. O que é ser ético nesse contexto? Se as condições são tão precárias, como se promovem mudanças? Pensando na perspectiva da ética da responsabilidade, mesmo em um ambiente com deficiências estruturais e organizacionais, seria necessário um movimento que mobilizasse, inicialmente, uma reflexão coletiva acerca deste quadro para, posteriormente, agenciar mudanças e transformações. Considerando a relação entre moral e ética, observou-se que os profissionais constroem um discurso moralista acerca da Humanização, analisando suas próprias práticas, ficando distante de uma visão crítica que possibilitaria uma postura ética.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências AUSTIN, J.L. Cómo hacer cosas con palabras. Barcelona: Paidós, 1998. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. O HumanizaSUS na Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

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A VISÃO DE MORAL DOS PROFISSIONAIS ...

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. CORTINA, A.; MARTINEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005. DESLANDES, S.F. Análise do discurso oficial sobre humanização da assistência hospitalar. Cienc. Saude Colet., v.9, n.1, p.7-13, 2004. GASTALDO, D. Humanização como processo conflitivo, coletivo e contextual. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.17, p.389-406, 2005. MERHY, E.E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.6, n.1, p.109-16, 2000. OLIVEIRA, B.R.G.; COLLET, N.; VIERA, C.S. A humanização na assistência à saúde. Rev. Latino-am. Enferm., v.14, n.2, p.277-84, 2006. POTTER, J.; WETHERELL, M. Discourse and social psychology: beyond attitudes and behaviour. London: Sage Publications, 2002. RIOS, I.C. Humanização: a essência da ação técnica e ética nas práticas de saúde. Rev. Bras. Educ. Med., v.33, n.2, p.253-61, 2009. RUEDA, L.I. El análisis del discurso en las ciencias sociales: variedades, tradiciones y práctica. In: ______. Análisis del discurso: manual para las ciencias sociales. Barcelona: UOC, 2003. SIMÕES, A.L.A. et al. Humanização na saúde: enfoque na atenção primária. Texto Contexto Enferm., v.16, n.3, p.439-44, 2007. TEIXEIRA, R.R. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/Abrasco, 2003. p.89-111. WEBER, M. A política como vocação. Brasília: UnB, 2003.

JUNGES, J.R. et al. La visión moral del profesional de una unidad básica de salud y la humanización. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.755-62, jul./set. 2011. La propuesta fue analizar la visión moral de los profesionales de una Unidad Básica de Salud (UBS) y señalar sus implicaciones para la estrategia de la humanización de asistencia. Se trata de un estudio exploratorio con enfoque cualitativo. Los datos fueron colectados en una UBS e interpretados por el análisis del discurso. Los profesionales identifican la moral como tener buenas intenciones en la asistencia, siendo los resultados más una consecuencia de procedimientos técnicos que una cuestión ética. Las directrices de la Política Nacional de Humanización proponen la coresponsabilidad y la cogestión de los profesionales, gestores y usuarios, para lograr sus objetivos de la humanización en la prestación de y de la excelencia en la prestación de los servicios de salud. La humanización corresponde a la resolución de los derechos de los usuarios; la ética de lo profesional se debe basar en los resultados, con la identificación de su responsabilidad.

Palabras clave: Ética. Moral. Atención Primaria. Humanización de la asistencia. Responsabilidad social. Recebido em 03/09/10. Aprovado em 30/03/11.

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A doação renal em textos científicos: entre as metáforas do presente e da mercadoria

Luciana Freitas Fernandes1 Idilva Maria Pires Germano2

FERNANDES, L.F.; GERMANO, I.M.P. Kidney donation in scientific texts: between the metaphors of gift and commodity. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.765-77, jul./set. 2011. This study consisted of a literature review that examined discursive production on kidney transplantation with a living donor. It sought to understand the interpretative repertoires of living kidney donation that have been constructed and disseminated in the medical literature, through examination of a selection of scientific papers. Eighty-nine articles published in international journals between 1999 and 2010 were analyzed. The analysis highlighted a set of topics that could be grouped along two thematic strands: psychosocial aspects of donation and strategies for increasing the number of living donors. These strands are anchored in the metaphors of “gift” and “commodity”. Both of them aim towards promoting organ donation and have specific effects. The gift metaphor compels individuals to make a spontaneous and altruistic donation; the commodity metaphor constructs the body as a collection of recyclable parts that are subject to commercial exchange.

Keywords: Kidney transplantation. Living donors. Discourse.

Este trabalho de revisão analisa a produção discursiva sobre o transplante renal com doador vivo, buscando compreender os repertórios interpretativos da doação renal intervivos construídos e disseminados na literatura médica, mediante análise de uma seleção de artigos científicos. Analisaram-se 89 artigos veiculados, entre 1999 e 2010, em periódicos internacionais. A análise destaca um conjunto de tópicos que podem ser enquadrados em dois eixos: aspectos psicossociais da doação e estratégias de ampliação do número de doadores vivos. Esses eixos ancoram-se nas metáforas do “presente” e da “mercadoria”, ambas a serviço da promoção da doação de órgãos e com efeitos específicos. A metáfora do presente constrange os indivíduos à doação espontânea e altruísta; a da mercadoria constrói o corpo como um conjunto de partes recicláveis, passíveis de troca comercial.

Palavras-chave: Transplante de rim. Doadores vivos. Discurso.

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Hospital Universitário Walter Cantídio, Universidade Federal do Ceará (UFC). Rua Capitão Francisco Pedro, 1290. Fortaleza, CE, Brasil. 60.430-370. luffreitas@yahoo.com.br 2 Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFC. 1

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Introdução O transplante de órgãos surgiu na década de 1950 e tem chamado a atenção da sociedade, invocando diversas considerações clínicas, sociais, psicológicas e, sobretudo, bioéticas. O uso rotineiro de partes do corpo como “ferramentas terapêuticas” (Lock, 2002), que traduz o poderoso imaginário mecanicista na biomedicina, tem um lugar privilegiado no tratamento de pacientes crônicos. A prática do transplante de órgãos, portanto, equilibra-se entre os valores e possibilidades da tecnologia em crescente avanço e os aspectos éticos e morais implicados nas demandas, políticas e ações do sistema de saúde coletiva. No início, os transplantes renais foram feitos predominantemente com doadores vivos, em virtude da precariedade dos imunossupressores e dos métodos de conservação do órgão (Linden, 2009). Posteriormente, o transplante renal com doador cadáver ganhou maior expressão. Atualmente, o transplante renal intervivos chega a ser preferido em alguns centros no exterior (Birkeland, 2006; Lennerling, Forsberg, Nyberg, 2003). De acordo com Andersen et al. (2005), se comparado ao transplante com doador cadáver, o transplante renal com doador vivo está associado a alguns benefícios que encorajam o uso desses doadores: aumenta a sobrevida do paciente e do enxerto, possibilita cirurgias sincronizadas de receptor e doador, e favorece a redução do tempo de espera pelo transplante. Se comparado com a diálise, o transplante renal aumenta a qualidade de vida e sobrevida do paciente (Gaston et al., 2006). No Brasil, o rim pode advir tanto de um doador cadáver, quanto de um doador vivo. O doador cadáver é o indivíduo em morte encefálica cuja família autoriza a retirada dos órgãos para transplante. O doador vivo relacionado é um parente até quarto grau ou cônjuge. O doador vivo não relacionado é alguém sem nenhum vínculo familiar com o receptor, que decide, espontaneamente, sem coerção ou remuneração, doar um de seus rins. As inovações da medicina criaram novas áreas de decisão para as pessoas em relação a seus corpos (Radley, 2000). O transplante intervivos exige o posicionamento dos pacientes, familiares e equipes de saúde em relação à retirada de um órgão de uma pessoa sã em prol de uma pessoa doente. A partir do atendimento psicológico de doadores e receptores de órgãos para transplante renal, conduzido pela primeira autora deste artigo, surgiram algumas indagações sobre o modo como as pessoas justificam sua intenção ou ato de doar um órgão, considerando que, ao fazê-lo, aceitam subtrair uma parte de seu corpo em nome de determinados valores e objetivos. Tais argumentos tendem a se sustentar em discursos mais amplos, entre os quais se encontram os discursos científicos. Reconhecendo o papel dominante dos discursos especializados do campo médico, aqui pretendemos identificar quais os repertórios interpretativos disponíveis, na literatura acadêmica, sobre doação de órgãos intervivos, que fornecem modos distintos de posicionamento em relação à questão, com potencial para estimular ou constranger a prática. Repertórios interpretativos são “elementos essenciais usados pelas falantes para construir versões das ações, dos processos cognitivos e outros fenômenos”, e são constituídos por “uma gama limitada de termos usados em construções estilísticas e gramaticais específicas” (Wetherell, Potter, 1988, p.65). É comum que os repertórios envolvam uma ou mais metáforas-chave e um conjunto de tropos ou figuras do discurso. Nesse sentido, podemos perguntar: como as revistas científicas especializadas em transplante têm construído a noção de doação intervivos e quais os repertórios interpretativos em circulação? Esta revisão analisa a produção discursiva sobre o transplante renal com doador vivo, buscando compreender os repertórios interpretativos da doação renal intervivos construídos no campo médico, mediante análise de tópicos discutidos em uma seleção de artigos científicos. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica na base de dados Medline, através do portal da BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), no método integrado, com o campo de busca assunto e os termos “doadores vivos” e “rim”. Inicialmente, a busca gerou 3.321 textos. Foram selecionados artigos e editoriais em inglês e português, no período de 1999 a 2010, sendo utilizado, ainda, o filtro “doadores vivos” (assunto principal) e “humano” (limites), resultando em 1.743 artigos. A partir de ferramenta disponibilizada pela base de dados BVS (o filtro “revistas”), chegou-se à distribuição desses artigos em 766

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seus respectivos periódicos. Dentre os cinco primeiros periódicos em número de artigos, optou-se por trabalhar com quatro: Transplantation; American Journal of Transplantation; Nephrology, Dialysis, Transplantation e Clinical Transplantation. Os periódicos foram selecionados por serem publicações médicas já consagradas no campo dos transplantes de forma geral (Transplantation, American Journal of Transplantation, Clinical Transplantation) e do transplante renal (Nephrology, Dialysis, Transplantation), sendo bastante utilizados como fonte de consulta e publicação por profissionais de medicina. Após exclusão dos artigos que se referiam aos aspectos clínicos e cirúrgicos da doação intervivos e relatos de experiências de centros transplantadores, o corpus foi constituído por: 32 textos do Transplantation, 26 textos do American Journal of Transplantation, 16 textos do Nephrology, Dialysis, Transplantation e 15 textos do Clinical Transplantation. Os periódicos são dedicados à temática da medicina, especialmente à do transplante, e os autores são predominantemente médicos, embora também sejam desenvolvidas discussões de outros campos, como a antropologia, sociologia e psicologia. Assim, entende-se que os periódicos selecionados nos fornecem uma amostra da produção discursiva da ciência médica que contribui para a formação e circulação de repertórios interpretativos de interesse desta investigação. Com base na análise dos textos, destacamos alguns tópicos recorrentes e relevantes na produção de sentidos sobre a doação intervivos. Tais tópicos podem ser enquadrados em dois grandes eixos – dos aspectos psicossociais da doação e das estratégias de ampliação de doadores vivos – que, como veremos, fazem circular as metáforas da doação de órgãos como “presente” e como “mercadoria”. Embora, na organização do artigo, esses eixos e seus tópicos sejam discutidos separadamente, ressaltase que são aspectos profundamente imbricados e que não há descontinuidade entre eles nos debates acerca da doação intervivos.

Aspectos psicossociais da doação intervivos Fatores que favorecem ou dificultam a doação Muitas pesquisas sobre transplante se voltam para a discussão da oferta de órgãos e concentram-se, prioritariamente, nos fatores que podem contribuir para/ou dificultar a doação de órgãos. A pesquisa serve como estratégia para identificar: subgrupos de não-simpatizantes da doação, que deveriam ser alvo de esforços visando ampliar o número de doações (Haustein, Sellers, 2004); preocupações e medos que interferem na vontade de doar (Boulware et al., 2002), ou, ainda, intervenções eficazes para ajudar pessoas a conseguirem doadores (Reese et al., 2009). Diversos motivos para doação de órgãos têm sido identificados, tais como: altruísmo, obrigação moral, crenças religiosas, pressão externa e culpa (Lennerling et al., 2004). Lennerling, Forseberg e Nyberg (2003) identificaram sete categorias de motivos: desejo de ajudar, autoestima aumentada, identificação com o paciente, benefício próprio pela melhora da condição de saúde do receptor, lógica, pressão externa, e sentimento de dever moral. Franklin e Crombie (2003) destacam outras motivações, como: ganhar aceitação da família, impossibilidade de recusar a doação, e necessidade de recompensar os cuidados recebidos pela receptora na infância. Tais aspectos evidenciam que as relações familiares são centrais na doação intervivos. Não raro a doação é fruto de um processo onde a família vai escolher quem melhor cabe no papel de doador. A decisão de doar, mesmo quando é espontânea (o doador se oferece), frequentemente acontece dentro de um movimento familiar, e não de forma isolada. Em pesquisa de Walton-Moss et al. (2007), metade dos doadores indicaram que a doação foi uma decisão partilhada na família.

Processo de tomada de decisão O processo de tomada de decisão da doação, fortemente imbricado com as motivações para a doação, é investigado por alguns autores. Na pesquisa de Andersen et al. (2005), um dos principais motivos identificados para a doação era o papel do indivíduo na família. De acordo com os autores, ser o irmão mais velho era crucial na decisão de doar. A decisão dos irmãos era vivida como autônoma, mas, ao mesmo tempo, havia o reconhecimento de que era influenciada pelas expectativas da família. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Os autores concluem que a decisão de doar é um processo complexo, e que a dinâmica da família e expectativas relacionadas aos papéis dos sujeitos têm lugar importante nesse processo. No caso de mães, o estudo de Franklin e Crombie (2003) ressalta que a doação é experienciada como uma extensão natural do papel materno. O mesmo não foi observado em alguns pais e irmãos. A pesquisa de Lennerling, Forseberg e Nyberg (2003) salienta o aspecto instantâneo da decisão, predominantemente baseada nas emoções e anterior ao recebimento de maiores informações sobre o transplante e a doação. Na pesquisa de Andersen et al. (2005), a decisão de doar foi imediata, com pouca reflexão prévia acerca dos prós e contras da doação, em alguns casos, e fruto de um processo de reflexão, em outros. Os autores destacam que a existência de mais de um potencial doador levava a família a uma discussão que caracterizava uma tomada de decisão racional. Os doadores negaram qualquer tipo de pressão para doar. Franklin e Crombie (2003) e Reimer et al. (2006) também destacaram o aspecto imediato e voluntário da oferta de doação. A maioria dos sujeitos ofereceu o rim espontaneamente, sem que fosse solicitado. No estudo de Franklin e Crombie (2003), todos os pais e mães afirmaram que doar era a coisa natural a fazer. A concepção da doação como a coisa natural a fazer também foi relatada por Lennerling, Forseberg e Nyberg (2003), mesmo entre doadores não relacionados. A aceitação da oferta de um doador vivo não é unânime e nem isenta de ambiguidades. Às vezes, receptores têm de ser convencidos pelos doadores ou familiares (Schweitzer et al., 2003). Conforme mostram Martínez-Alarcon et al. (2006), em uma pesquisa realizada na Espanha, apenas 35% dos pacientes em uma lista de espera aceitariam receber órgão de doadores vivos. A maioria prefere esperar na fila por um doador cadáver. Na pesquisa de Kranenburg et al. (2007), com pacientes renais em fila de espera para transplante, 18% dos entrevistados não desejavam receber um rim de doador vivo e 3% relataram dúvidas. Muitos pacientes não consideravam o transplante com doador vivo temendo os riscos aos quais os doadores estariam submetidos. Dentre os pacientes que aceitariam um doador vivo, 80% afirmaram que não pediriam um órgão para alguém. A oferta é que asseguraria a natureza espontânea e voluntária da doação. Alguns entrevistados relataram temer uma resposta negativa à solicitação do órgão, experiência que poderia trazer impactos indesejáveis à relação.

Riscos e repercussões Na literatura médica sobre doação intervivos, também se sobressaem debates sobre questões éticas. Alguns autores citam o princípio primum non nocere (princípio da não-maleficência) no cerne da discussão acerca de doadores vivos (Barri et al., 2009; Kasiske, Eckardt, 2009). A despeito de ser um procedimento correntemente aceito entre profissionais, e mesmo na sociedade, algumas discussões acerca da validade de impingir um dano à saúde de um sujeito saudável em prol de uma pessoa doente ainda resistem. Nesse sentido, a questão dos riscos para o doador parece ser central. Nos trabalhos há uma preocupação com o consentimento informado (Hanto, 2008; Boulware et al., 2002): doador e receptor devem estar conscientes dos riscos e benefícios do procedimento. O transplante com doador vivo é considerado um procedimento eficaz e seguro para os receptores (Lima, Petroianu, Hauter, 2006; Lunsford et al., 2006). Entretanto, ao contrário da doação cadáver, a doação intervivos envolve a possibilidade de complicações clínicas para o doador e problemas psicológicos antes e depois da doação. Embora os riscos cirúrgicos a curto prazo sejam baixos, os riscos a longo prazo ainda foram pouco estudados (Gibney et al., 2007; Gaston et al., 2006), havendo referências a uma pequena parcela de sujeitos que doaram um rim e, posteriormente, vieram a necessitar de transplante renal (Fehrman-Ekholm, 2006). Ainda assim, de acordo com Gaston et al. (2006), os riscos associados à nefrectomia são eticamente justificáveis e clinicamente aceitáveis. O processo de avaliação prévio ao transplante (Friedman, 2008; Birkeland, 2006) e o acompanhamento sistemático e a longo prazo, após a doação ( Clemens et al., 2006), buscariam minimizar esses riscos. De acordo com Boulware et al. (2002) e Weitz et al. (2006), diversos estudos indicam que as taxas de complicação de doadores bem selecionados são baixas e consideradas como mínimas por especialistas clínicos. Entretanto, ansiedade, depressão e conflitos conjugais foram relatados (Clemens et al., 2006), bem como quadros depressivos associados à perda do enxerto por parte do doador 768

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(Fehrman-Ekholm et al., 2000) e transtorno de ajustamento (Smith et al., 2003). Na pesquisa de Reimer et al. (2006), um número significativo de doadores vivos relatou apreensão em relação à possibilidade de rejeição do órgão, bem como temor de consequências negativas para suas famílias, prejuízos para a saúde e medo dos riscos da cirurgia. Os trabalhos parecem oscilar entre a minimização do risco e a estimativa de um risco aceitável. Steiner e Matas (2008, p.930) questionam a viabilidade da promessa de não causar danos e a necessidade de aceitar que se pode “fazer mal eticamente”. Robert Steiner (2004) sugere que os centros transplantadores aceitem a realidade do risco para o doador e o fato de que algumas pessoas escolhem se submeter a esse risco. Segundo Weitz et al. (2006), uma relação risco/benefício aceitável para doador e receptor é um pré-requisito para realizar transplante de rim de doadores vivos. Os riscos parecem ser minimizados, uma vez que se espera que “a recompensa psicológica supere o risco de danos físicos” (Boulware et al., 2002, p.186). Observa-se ainda que a doação tende a ser apresentada, em alguns trabalhos, como um benefício mútuo para doador e receptor. Diversas pesquisas citam as repercussões positivas da doação para os doadores. Os benefícios citados na literatura incluem: melhoria das relações e aumento da autoestima (Clemens et al., 2006), felicidade (Fehrman-Ekholm et al., 2000), bem-estar, satisfação e gratidão pela oportunidade de doar (Mark et al., 2006). A qualidade de vida aparece frequentemente como um indicador que confirma os benefícios da doação para o doador. De acordo com Fehrman-Ekholm et al. (2000), a doação promove índices superiores de qualidade de vida em relação à população em geral e aumenta a autoestima. Johnson et al. (1999) realizaram um estudo para investigar a qualidade de vida de doadores após o transplante. Segundo os autores, os escores do grupo superaram os da população na escala SF-36 - mesmo resultado encontrado por Smith et al. (2003). Estudos brasileiros (Padrão, Sens, 2009; Lima, Petroianu, Hauter, 2006) mostraram resultados semelhantes em relação à qualidade de vida. De acordo com as pesquisas, a qualidade de vida de doadores era igual ou, mesmo, superior à qualidade de vida do grupo de controle. Nejatisafa et al. (2008) avaliaram a qualidade de vida de doadores vivos não relacionados no Irã, não sendo observada nenhuma melhoria. De acordo com os autores, o aumento da qualidade de vida é observado em doadores relacionados cuja doação está associada a aspectos altruístas. No caso da maioria dos doadores iranianos, a doação motivada por ganhos financeiros, em um contexto de pobreza, não teria o impacto positivo na qualidade de vida. De acordo com revisão de Clemens et al. (2006), a saúde psicossocial de doadores tende a não melhorar ou, mesmo, se alterar com a doação. Poucos doadores apresentam repercussões negativas, como: depressão, ansiedade, stress, diminuição da qualidade de vida e sintomas psiquiátricos. A revisão também salienta que a maioria das pesquisas mostra que os sujeitos doariam novamente. O arrependimento em consequência da doação é investigado em alguns estudos. Na pesquisa de Fehrman-Ekholm et al. (2000), os doadores, um ano após a cirurgia, afirmam não terem se arrependido. Mesmo resultado encontrado por Franklin e Crombie (2003), cujos entrevistados negaram arrependimento, até nos casos em que algum conflito se instalou após doação. Resultados diferentes foram relatados por Johnson et al. (1999). Dentre os entrevistados, 4% relataram arrependimento em relação à doação, 4% acharam a experiência estressante e 8% extremamente estressante. Os autores concluem que os doadores cujos receptores morreram apresentavam maior tendência a afirmar que não doariam novamente, caso fosse possível. Lima, Petroianu e Hauter (2006) também encontraram um índice significativo de arrependimento em relação à doação (6%) entre doadores. Uma parcela ainda maior dos entrevistados (13%) relatou deterioração na relação como doador após o transplante. Frequentemente, os riscos para os doadores são avaliados em termos de morbidade e mortalidade. Poucos trabalhos se dedicam a aspectos como os efeitos na relação do doador com o receptor. Sanner (2003) encontrou sentimentos de dívida em receptores de rim de doadores vivos, os quais se utilizavam de dois mecanismos para lidar com tais sentimentos: salientar que o doador também se favoreceu com a doação (por exemplo, angariando a admiração dos outros) ou minimizando a importância da doação. Há relatos de consequências positivas da doação no vínculo afetivo da dupla. Na pesquisa de Andersen et al. (2005), a percepção de que a relação com o receptor ficou mais estreita depois da 769


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doação foi um relato comum entre os entrevistados. De acordo com os autores, o ato de doar cria um forte laço entre doador e receptor. Franklin e Crombie (2003) confirmam o fortalecimento de vínculo percebido por pais doadores, embora alguns dos receptores declarassem alguma forma de conflito a partir da doação. Na pesquisa de Franklin e Crombie (2003), o sentimento de dívida nos doadores não parecia estar presente de forma a causar impacto na relação entre irmãos; porém foi relatado por adolescentes que receberam enxerto de um dos genitores.

Estratégias de ampliação dos doadores Doadores não relacionados A questão da oferta de órgãos para transplante parece ser um discurso presente de forma transversal nos artigos sobre doação de órgãos intervivos. No campo dos transplantes, a demanda de órgãos excede a disponibilidade, e a falta de doadores é apontada como fator limitante dos procedimentos (Gaston et al., 2006). A escassez de órgãos para transplante é utilizada como uma justificativa para que os centros transplantadores examinem todas as possíveis alternativas (Mathieson et al., 1999). Uma delas é o transplante de órgãos de pessoas não relacionadas. Frequentemente, esses doadores são esposas e esposos; pessoas não relacionadas geneticamente, mas com um laço familiar e com interesses na saúde do companheiro, o que configuraria uma doação eticamente justificável (Mathieson et al., 1999). A maioria dos centros americanos também está disposta a considerar amigos próximos como doadores, mesmo com algum desconforto em relação a essa fonte de doação (Spital, 2001). Uma categoria mais controversa de doador vivo não relacionado seria composta por pessoas que se oferecem para doar um rim para um estranho na lista de espera. Esses doadores são chamados de “bons samaritanos” (Kranenburg, Weimer, 2008; Rodrigues et al., 2008), havendo uma ênfase do aspecto altruísta de suas motivações. Esse tipo de doação ainda é polêmica, sendo ora considerada um ato de heroísmo (Matas, Schnitzler, 2004), ora um ato irracional e patológico (Henderson et al., 2003). A legislação brasileira não encoraja esse tipo de doação. Entretanto, em outros países, diversos centros transplantadores começam a aceitar doação de rins por estranhos, quer seja não dirigida (o doador não pode escolher o receptor) ou dirigida (Hilhorst et al., 2005). Spital (2003) investigou a vontade de doar um rim a um estranho e o impacto da permissão da doação direcionada. Cerca de um quarto dos entrevistados disse que doaria um rim a um estranho gratuitamente, e a maioria deles doaria mesmo que eles não pudessem escolher os receptores. Abordagem mercadológica O mercado de órgãos é listado como uma alternativa para a escassez de órgãos, uma vez que o sistema de órgãos baseado na doação seria inadequado para dar conta das necessidades presentes e futuras de transplantes de rins. Essa abordagem mercadológica prevê tanto a compra do órgão como incentivos indiretos para a doação. Israni et al. (2005) fazem uma síntese das propostas de incentivo à doação de órgãos. O modelo de remuneração de mercado, como em outros mercados, baseia-se nas leis da oferta e da procura para determinar o valor do rim. Um segundo modelo prevê um valor fixo de compensação pelo órgão e baseia-se no princípio de que contribuições semelhantes merecem remuneração semelhante. O modelo do reembolso de despesas sugere que o doador tenha custeadas despesas eventualmente relacionadas à doação, como alimentação, estacionamento e passagens. Esse modelo baseia-se no princípio de que o doador não deve se beneficiar financeiramente com a doação, mas também não deve ter prejuízos em virtude de sua contribuição. Alguns autores defendem a regulação de um mercado de rins de doadores vivos como a única solução para as grandes listas de espera (Matas, 2004; Matas, Schnitzler, 2004). Matas (2004) advoga que uma solução possível para diminuir a morte de pacientes em fila seria o estabelecimento de um sistema regulado de vendas de rim. De acordo com o autor, esse mercado aumentaria o fornecimento de órgãos, não violaria nenhuma norma ética e teria chance razoável de ser estabelecido com sucesso. 770

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artigos

Outros autores se colocam contrários ao mercado de órgãos (Caplan, 2004; Kahn, Delmonico, 2004). A questão da autonomia e da exploração é trazida como argumento basal dessa oposição. Caplan (2004) discute a capacidade de escolha racional da pessoa que vende seu rim em um cenário de falta de alternativas, uma vez que a venda estaria ligada a necessidades financeiras. Para Caplan, pessoas envolvidas na venda de órgãos, mesmo em um mercado fortemente regulado, estariam violando a ética médica, uma vez que profissionais estariam ajudando as pessoas a causarem prejuízos a si mesmas exclusivamente por dinheiro. Consequências indesejáveis para a relação entre médico e paciente e ameaças à bioética são argumentos contrários ao mercado de órgãos, que “diminui a dignidade humana e desvaloriza a própria vida humana à qual os médicos dedicaram nobremente suas carreiras” (Kahn, Delmonico, 2004, p.179). Autores enfatizam a necessidade de se discutirem as implicações éticas e logísticas de se legalizar a remuneração financeira para a doação de rim, diante da sabida existência de casos de comércio ilegal de órgãos. Entretanto, em alguns países, o comércio de órgãos já é legalizado e suas consequências são bastante discutidas. A legislação do Irã permite incentivos financeiros para doadores de rim e, embora a doação seja voluntária, a pobreza é reconhecida como sendo uma motivação frequente em muitos casos (Nejatisafa et al., 2008). De acordo com Budiani-Saberi e Delmonico (2008), 93% dos paquistaneses que venderam um rim para saldar uma dívida relataram não ter tido melhoria financeira significativa e permaneciam em débito. Os autores argumentam que o sistema de pagamento em dinheiro tem como alvo os pobres, privilegia quem pode pagar, mina a oferta altruísta, e escapa à regulamentação do governo. Assim, parte do debate ético sobre comércio de órgãos parece polarizar-se entre o direito à saúde e as necessidades dos pacientes que morrem na fila de espera para transplante e a necessidade de proteção daqueles cuja carência financeira e direito de vender um rim operam uma condição de vulnerabilidade.

Presente e mercadoria: metáforas persuasivas nos discursos científicos Observa-se que as fontes analisadas produzem dois sentidos hegemônicos da doação de órgãos, cada um ancorado numa metáfora específica: o presente e a mercadoria. Metáforas são repertórios interpretativos e “são cruciais para a maneira como as pessoas consolidam e ampliam ideias sobre si, suas relações e seu conhecimento do mundo” (Sparkes, Smith, 2004, p.613). Desta forma, metáforas operam como recursos discursivos, moldam práticas sociais e fornecem tanto possibilidades como constrangimentos para os discursos sobre doação de órgãos. O sentido do presente ancora-se na metáfora da doação como “presente de vida” e está indissociavelmente ligada ao discurso altruísta da doação. Os termos “presente” ou “dádiva” são frequentemente empregados para se referir ora ao transplante, ora à doação, não só em textos científicos, mas na mídia e nos argumentos de pacientes e profissionais de saúde da área. Nessa perspectiva, o órgão é um “presente de vida”. Kaplan e Williams (2007, p.497) fazem a ressalva de que não é “um presente trivial, nem pode ser minimizado o impacto na vida de quem recebe o presente”. O que o presente possibilita é a continuidade da vida (no caso do coração, por exemplo) ou a melhoria da qualidade de vida e aumento da sobrevida (no caso do rim). Nesse sentido, como “presente de vida”, o transplante de órgãos opera como um poderoso símbolo de a capacidade da ciência biomédica triunfar sobre a doença e a morte (Crowley-Matoka, 2005). Em especial o transplante entre vivos é citado como um dos sucessos mais notáveis da medicina moderna (Spital, Jacobs, 2007). A metáfora do presente é predominante. O corpo e suas partes são recursos terapêuticos que não devem ser vendidos, e sim ofertados. “Doar órgãos como presente implica em voluntarismo e altruísmo”, destacam Spagnolo e Comoretto (2009, p.111). Desta forma, valores como solidariedade, altruísmo e bondade costumam acompanhar as discussões acerca da doação de órgãos intervivos que esta metáfora opera. Observa-se que, frequentemente, a metáfora do presente está a serviço da promoção da doação intervivos e lança mão de um vocabulário moral onde a doação é construída como um ato valoroso e COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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desejável: trata-se de reforçar valores universais vinculados à manutenção da vida e dos sentimentos, e esforços humanos no sentido de favorecê-la. O doador pode se sentir uma pessoa melhor, “orgulhoso, bravo, heróico” (Clemens et al., 2006, p.2971). O não-doador não se beneficia desse status, pois não faz o que se espera dele, uma vez que a doação para um familiar é, de certa forma, presumida. A metáfora do presente constrange os potenciais doadores a um tipo particular de doação, cujos pressupostos são: é natural e desejável que um familiar doe, e essa doação deve ser altruísta. Do ponto de vista do receptor, a doação envolve a necessidade de aceitar o presente e o interdito de solicitar a doação, uma vez que o órgão deve ser ofertado. Ademais, conforme salienta Gordon (2001), o discurso e o encorajamento da doação de órgãos intervivos como um “presente de vida” tendem a ignorar as preocupações do receptor acerca dos prejuízos para si e para a relação. No campo dos trabalhos científicos, a maioria dos autores equaciona a doação intervivos a um ato altruísta, incorporado na metáfora do presente. Nancy Scheper-Hughes (2007) representa uma contundente exceção quando apresenta a doação intervivos como um processo de captura de órgãos dentro da família que envolve uma intensa e privada dinâmica familiar, frequentemente imperceptível mesmo aos médicos mais cuidadosos. A autora salienta aspectos de coerção e o chamado ao “sacrifício” por parte da família, cujos comportamentos “predatórios e violentos” estariam a serviço da manutenção do grupo (Scheper-Hughes, 2007, p.507). Nesta perspectiva, a doação não é vista como presente, mas antes com uma pilhagem, onde o doador é subtraído pela família e coagido ao sacrifício pelos laços e regras familiares. Assim, a autora centra a problemática não nos riscos físicos da doação intervivos, mas nos riscos sociais e familiares menos visíveis aos profissionais. Embora o presente pareça ser a metáfora dominante, os textos científicos também apresentam o órgão como uma mercadoria, algo que pode ser repassado numa relação de troca. Frequentemente, nos artigos, os repertórios interpretativos incluem termos da economia, como “demanda”, “oferta”, “suprimento”. O substantivo “órgão”, não raro vem acompanhado de adjetivos como “escasso”, como uma mercadoria cuja falta deveria ser revertida: “Há apenas duas formas de eliminar a escassez de órgãos. A primeira é reduzir a demanda. [...] A única outra solução é aumentar a suprimento de rins transplantáveis” (Gaston et al., 2006, p.2548). Essa abordagem, geralmente, faz uso de um vocabulário moral do direito e da autonomia, bem como do utilitarismo. A metáfora da mercadoria está presente na própria discussão acerca da legitimidade ética da doação intervivos. O transplante intervivos baseia-se na premissa de que a doação traz riscos mínimos para o doador e é compensado pelas vantagens definitivas para o receptor (Emara et al., 2008). Caplan (2004) salienta que a retirada de um rim fere o princípio primum non nocere, mas seria moralmente justificável diante do desejo da pessoa de fazer o bem a outra. Assim, a questão da doação intervivos é ponderada pela relação custo/benefício, frequentemente utilizada no campo econômico. Entendemos que a discussão da abordagem de mercado ultrapassa a metáfora do rim como mercadoria. Nessa discussão não se trata do rim “metaforizado” como uma mercadoria, é antes o rim de fato mercantilizado. A prática da “doação” como fato mercantil explicita todas as suas dimensões nesta afirmativa de Matas (2004, p.2008): Por [mercado] regulado quero dizer um sistema no qual um preço fixo é pago ao doador vivo ou vendedor (pelo governo ou por uma agência aprovada pelo governo); o rim seria alocado por um critério previamente definido, similar ao utilizado com doadores cadáver (e todos na lista de espera podem receber um rim vendido); critérios seriam definidos para avaliação do vendedor, aceitação e acompanhamento posterior e com seguro para resguardar a proteção do vendedor.

No tipo de relação encampado pela metáfora da mercadoria, doador e receptor são, respectivamente, fornecedor (ou mesmo vendedor) e consumidor. Embora a relação que a metáfora do presente opera tenda a ser considerada ideal para a doação de órgãos, observa-se que a crescente ênfase no uso dos mais diversos fragmentos do corpo pela medicina parece estar solapando, gradativamente, esse ideal.

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Considerações finais Como vimos, na literatura médica, existem dois repertórios interpretativos recorrentes sobre a doação de órgãos intervivos, ancorados em metáforas específicas: o presente e a mercadoria. Ambas estão a serviço da solução do problema da escassez de órgãos, discurso transversal nos textos estudados e na política de transplantes. A discussão da doação como presente e mercadoria não é nova. O transplante de órgãos visto como uma modalidade de troca é discutido por alguns autores no escopo da teoria de Marcel Mauss, que presume três obrigações sociais acerca das trocas: dar, receber e retribuir (Gill, Lowes, 2008; Lamanna, 1997). Outros autores discutiram a mercantilização dos órgãos (Svenaeus, 2010; Steiner, 2004). A presente revisão acabou por se concentrar em artigos de outros países. Embora o transplante e a doação de órgãos sejam fenômenos globalizados, é imprescindível atentar para as especificidades dos contextos locais, da cultura, instituições e indivíduos envolvidos nesses processos. No Brasil, o comércio de órgão é proibido por lei. Doar é nobre, comercializar é crime. Nesse contexto, o uso da metáfora do presente atende a duas funções importantes: promove a doação de órgãos como ato altruísta e valorizado, ao mesmo tempo em que separa o ato da doação dos atos de comércio, distanciando o presente da mercadoria (Shaw, 2010). Cada uma dessas metáforas opera de formas específicas, com efeitos nos indivíduos e nas políticas de saúde. E ambas são eficientes na promoção da doação de órgãos para fins terapêuticos. A metáfora do presente constrange os indivíduos a um tipo particular de relação de doação: é natural e desejável que um familiar doe espontânea e altruisticamente, e essa doação deve ser aceita como algo valoroso. Desta forma opera ainda como um imperativo moral para doação, cerceando a liberdade de um familiar que não quer doar. Já a metáfora da mercadoria enfatiza a noção do corpo como um conjunto de partes recicláveis, passíveis de troca, minimizando as relações inseparáveis entre corpo e identidade, e favorecendo usos e abusos do corpo pretensamente justificados pelo princípio da autonomia, como a venda de órgãos motivada pela pobreza. Embora esses discursos sejam antagônicos (o altruísmo opõe doação e comercialização), observa-se que essas metáforas não são excludentes, antes se hibridizam nas práticas discursivas. Conforme salienta Lock, as metáforas associadas com órgãos humanos encorajam uma confusão acerca do valor dos mesmos: A linguagem da medicina insiste que partes de corpos humanos são entidades materiais, totalmente desprovidas de identidade quer estejam no doador quer no receptor. Entretanto, para promover a doação, órgãos são animados com uma força vital que, argumenta-se, pode ser presenteada, e as famílias dos doadores não são desencorajadas de entender a doação como uma forma de permitir que seus familiares ‘vivam’ nos corpos dos receptores. (Lock, 2002, p.1409)

Exemplo disso são as campanhas publicitárias pró-doação, que ora se utilizam da noção da vida sendo presenteada e continuada no receptor (Santa Casa, s/d), e ora do corpo como reservatório de recursos recicláveis doados gratuitamente e alienados de subjetividade (ATX-BA, s/d). O transplante de órgãos trouxe, para alguns pacientes crônicos, a possibilidade de melhoria da qualidade de vida e, mesmo, manutenção da vida onde antes não existia nenhuma. Não pretendemos advogar contra ou a favor da doação de órgãos intervivos, mas antes refletir sobre as possibilidades e limites dessa prática. Como profissionais de saúde e pesquisadores sociais, entendemos a doação de órgãos como uma prática social, e consideramos que doadores de órgão dão sentido à experiência recorrendo a repertórios interpretativos que a cultura e os contextos locais disponibilizam. Os repertórios científicos são recursos discursivos dominantes, com grande poder de se perpetuarem e orientarem ações. Desta forma, os repertórios interpretativos acerca da doação renal, utilizados nos periódicos especializados, são de particular interesse para a compreensão da produção de sentido e devem ser alvo de outros COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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aprofundamentos e novas pesquisas. Destacamos, ainda, a relevância da exploração de outras práticas discursivas, como as leis e a mídia e seus efeitos na experiência dos indivíduos, bem como na formação da identidade e na relação entre corpo e identidade. Tal exploração é imprescindível para que possamos fortalecer, transformar ou resistir às correntes formas de doar, favorecendo outras formas de ser (ou não ser) um doador vivo de órgãos.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências ANDERSEN, M.H. et al. Living donors’ experiences 1 wk after donating a kidney. Clin. Transplant., v.19, n.1, p.90-6, 2005. ATX-BA. Cartaz campanha de doação. s/d. Disponível em: <http://img.blogs.abril. com.br/1/tresporquatro/imagens/propeg1.jpg>. Acesso em: 2 mar. 2010. BARRI, Y. et al. Primum non nocere: is chronic kidney disease staging appropriate in living kidney transplant donors? Am. J. Transplant., v.9, n.4, p.657-60, 2009. BIRKELAND, S.A. Kidney donation: all gifts have a price. Transplantation, v.81, n.9, p.1259-60, 2006. BOULWARE, L.E. et al. The general public’s concerns about clinical risk in live kidney donation. Am. J. Transplant., v.2, n.2, p.186-93, 2002. BUDIANI-SABERI, D.A.; DELMONICO, F.L. Organ trafficking and transplant tourism: a commentary on the global realities. Am. J. Transplant., v.8, n.5, p.925-9, 2008. CAPLAN, A.L. Transplantation at any price? Am. J. Transplant., v.4, n.12, p.1933-4, 2004. CLEMENS, K.K. et al. Donor nephrectomy outcomes research (DONOR) network. Psychosocial health of living kidney donors: a systematic review. Am. J. Transplant., v.6, n.12, p.2965-77, 2006. CROWLEY-MATOKA, M. Desperately seeking normal: the promisse and perils of living with kidney transplantation. Soc. Sci. Med., v.61, n.4, p.821-31, 2005. EMARA, M. et al. Evidence for a need to mandate kidney transplant living donor registries. Clin. Transplant., v.22, n.5, p.525-31, 2008. FEHRMAN-EKHOLM, I. Incidence of end-stage renal disease among live kidney donors. Transplantation, v.82, n.12, p.1646-48, 2006. FEHRMAN-EKHOLM, I. et al. Kidney donors don’t regret: follow-up of 370 donors in Stockholm since 1964. Transplantation, v.69, n.10, p.2067-71, 2000. FRANKLIN, P.M.; CROMBIE, A.K. Live related renal transplantation: psychological, social and cultural issues. Transplantation, v.76, n.8, p.1247-52, 2003. FRIEDMAN, A.L. Do we treat live donors as patients or commodities? Transplantation, v.86, n.7, p.899-900, 2008. GASTON R.S. et al. Limiting financial disincentives in live organ donation: a rational solution to the kidney shortage. Am. J. Transplant., v.6, n.11, p.2548-55, 2006.

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Palabras clave: Trasplante de riñón. Donadores vivos. Discurso. Recebido em 06/07/10. Aprovado em 04/02/11.

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An open-system approach to medical professionalism: a controversy within the sociology of professions

Tiago Correia1

CORREIA, T. O profissionalismo médico visto como um sistema aberto: uma controvérsia na sociologia das profissões. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.779-91, jul./set. 2011. This article focuses on a specific debate within theories of professions. Despite different trends, there has been difficulty in theorizing some dimensions of the dominant perspectives because of predominant institutional attention. The aim here was to reinforce the debate with complementary conceptualization of professionalism and, consequently, to foster new understandings of professional relationships. The argument lies in shifting the analytical level from the professions to professionals, as a basic step in conceptualizing individual action within professional contexts. This concern becomes increasingly important as the professional discretion structurally held by individuals becomes greater, since the ability to choose leads more explicitly to internal differentiation of professions. Systemic influence is felt given that social structures are intrinsically involved in actions, which represent exteriorizations of individually internalized processes. Consequently, it becomes necessary to consider the reasons for behaviors and the meanings individually conferred on professional dimensions.

Este artigo debruça-se, num debate específico, nas teorias das profissões. O objetivo é reforçar o debate numa conceptualização complementar do profissionalismo, abrindo novos entendimentos sobre as relações profissionais. O argumento reside na mudança do nível analítico das profissões para os profissionais, como passo elementar para conceptualizar a acção individual em contexto profissional. Esta preocupação é tanto mais importante como maior for a discricionariedade profissional estruturalmente detida pelos indivíduos, dado que a capacidade para escolher conduz, de uma forma mais explícita, à diferenciação interna das profissões. A influência sistêmica faz-se sentir considerando que as estruturas sociais estão intrinsecamente envolvidas nas ações, as quais representam exteriorizações de processos individualmente internalizados. Consequentemente, torna-se necessário considerar as razões para os comportamentos e os sentidos individualmente conferidos às dimensões profissionais.

Keywords: Medical discretion. Social structures. Agency. Sociological theory. Sociology of professions.

Palavras-chave: Discricionariedade médica. Estruturas sociais. Agência. Teorias sociológicas. Sociologia das profissões.

Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/IUL). Av. das Forças Armadas. Lisboa, Portugal. 1649-026. tiago.correia@iscte.pt

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Introduction2 This article is the result of sociological research carried out in public hospitals, the goal of which was to understand the implications of the New Public Management (NPM) on the professional relations between managers and doctors3. The initial questions that motivated the research were: how has the increasing power attributed by governments to managers affected medical autonomy? Is medicine under a more rigorous administrative ‘panoptic’ control? Here, the goal is not to develop any argument in relation to that empirical process, but to delimitate the discussion around a theoretical controversy inside sociology of professions. In fact, and despite health professions can be analysed either in a sociological or a public health perspective, its main theoretical developments in the European debate come from a sociological background. The point is that my qualitative-intensive nature research revealed some dynamics that lacked the proper conceptual understanding provided by the sociology of professions. For instance, which theoretical elements are offered by the sociology of professions to explain how professionals in the same situations and contexts, and in the same hierarchical position, i.e. holding identical technical and organizational roles and functions, can exhibit ways of acting that can be so different or even contradictory? Despite the different theoretical traditions, this difficulty illustrates the prominence of a conceptual institutional program in theories of professions, which has therefore been responsible for a process in which this sociological field has been closing in its empirical object. In other words, the conceptual development of professions from the 1960s has somehow been immune to social theory. The main objective of this work is therefore to reinforce the professional debate to sociological theory and, consequently, to operate what some authors presents as a necessary overview in which social phenomena are analyzed simultaneously from the agential and the structural angle (Guibentif, 2007). This is a very sensitive concern since the relation between action and structure, as the elementary basis of sociology, has been viewed over time as contradictory much more than cumulative4. One of the most important implications of such an understanding is to overcome a reifying interpretation of professional groups that is favored when individual action is interpreted merely as the result of professional structures, which subverts the individual’s active role concerning the expected intraprofessional similarities and interprofessional dissimilarities5. At first sight, this might seem a minor question but considering the professional discretion (Evetts, 2001) structurally possessed by professions as medicine, the implications of this possibility to decide and act individually in performing the day-to-day professional activity cannot be disregarded. What constitutes the individual medical decision becomes a problem, since it seems impossible to understand why organizational rules are respected differently in each medical service. This reflection is based largely on the francophone literature bringing some contributions not commonly seen in the current debate within sociology of professions. This is the specific case of the open action system presented by Crozier and Friedberg in the late 1970s. Note that the purpose of this article is not to close this controversy. On the contrary, it is expected to further the discussion on these dimensions, revealing some concerns that have in some way been omitted in the dominant Anglo-Saxon literature. The paper is divided in two parts. First, the problems with the existing conceptual frameworks for an understanding of reflexivity in professional relations 780

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2 This article is a part of a broad concern that has been presented in different contexts (Correia, 2010, 2009a, 2009b). During that trajectory I had the opportunity to discuss some drafts with persons to whom I would like to express my gratitude for their useful and critical comments: Professor Graça Carapinheiro and Professor Alan Stoleroff (supervisors of my Ph.D. research), Professor Julia Evetts, Professor Carlos Miguel Ferreira, Professor Pierre Guibentif, Professor Noémia Lopes, Professor Lilia Schraiber and my colleague Pedro Jacobetty. I would like also to thank to the anonymous referees for the comments that allowed to improve the final version of this text. 3 Reference that is made to my doctoral research financed by Foundation for Science and Technology (Portugal), ref: SFRH/BD/35841/ 2007.

4 Despite of the delimitation inside sociology this theoretical exercise may also be useful for the conceptualization of health professions from the public health perspective. 5 The term ‘reification’ is used in the sense employed by Giddens (1984), according to whom social phenomena tend to overvalue structural properties as if they were laws of nature – which, ultimately, ignores the role of human agency in the course of change.


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is explained, and second, a better conceptual framework is presented that enables a new direction to be taken when researching professionalism.

Is there anything left to say about the theory of professions?

Such a time reference does not ignore earlier contributions like the Chicago School or authors from the 1930s such as Carr-Saunders. On the evolution of the conceptual body within the sociology of professions, see for instance Saks (1983), Torstendahl (1990) or Sciulli (2005). 6

No current work on professions can ignore power, autonomy and authority as their elementary conceptual dimensions. This draws on the main trends in the sociology of professions after the Second World War, namely functionalist, interactionist and systemic or comparative trends6. After the initial thoughts of classical authors such as Durkheim, Spencer or Weber who considered the role of professions in social development (Dubar, 1991), the trajectory of the sociology of professions in the last 60 years has been mostly characterized as a set of successive reactions to the understandings provided by functionalists (Merton, 1982; Parsons, 1966). Anglo-American interactionists like Hughes (1965), Freidson (2001, 1975, 1970), Johnson (1972), Larson (1977), or Collins (1990) are just a few examples of different conceptualizations whose common denominator is a process-oriented conception of professions. The thought of Michel Foucault (1975) is usually associated to this; his contributions conceptualized how medical knowledge constitutes itself as power, thus structuring different aspects of social life. More recently, the sociology of professions has witnessed the emergence of a third main systemic perspective that somehow tries a combination of both functionalist and interactionist contributions (Champy, 2009; Abbott, 1988). However, despite these synthesis approaches, is possible to argue that the current debate continues to discuss the difference between functionalist and interactionist premises. An explicit example is found in the conceptualization of professionalism (Evetts, 2006, 2003; Sciulli, 2005; Burrage et al., 1990; Siegrist, 1990). The main idea on the evolution of the theories of professions is that regardless of such significant theoretical divergence, these authors and perspectives all have a similar aspect: the professions are conceptualized largely on the institutional level. This means that the interest in professions is focused on the influence of other structures (knowledge, state, clients or other professions) much more than on the conceptualization of professionals’ behavior. We only need to think, for example, about the main questions that have engaged the protagonists in professions since Second World War: ‘what is a profession?’, ‘how does an occupation becomes a profession?’, ‘in which circumstances can that process happen?’, ‘what are the profession’s social functions?’, ‘which are the evolutionary possibilities for professions?’ (Rodrigues, 2002, p.3). Such institutional attention tends to disregard the individual construction of professionalism, how it is interpreted and, more importantly, activated in professional practices. Value is thus attached to what is constituted by practices and representations resulting from a similar education and later from professional socialization (i.e. a body of formal knowledge acquired from school, which extends to work experiences). Consequently, it is largely professional structures that consider, define and differentiate action: in these ways, the normative value system of professionalism in work, and how to behave, respond and advise, is reproduced at the microlevel in individual practitioners and in the workplaces in which they work. Some of the differences in occupational socialization between occupations have been identified but the general process of shared

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occupational identity development via work cultures, training and experience was regarded as similar across occupations and between societies. (Evetts, 2006, p.135)

However, one must question whether professional socialization can be understood as socialization that is independent of other previous and parallel socialization sources. Scrutiny of this kind easily falls into an analytical position that is quite insensitive to what individuals had been before becoming workers and what individuals are simultaneously with being workers. In other words, it can favor a compartmentalized analysis of the subjects, as if their professional practices and, naturally, their representations of the exercise of the profession were enough proof against other social influences. Therefore, the role of individual trajectories in the daily professional activity must be considered, regardless of the restrictive weight of professional fields. At stake is the “presumption of the automatic impregnation of the whole social existence through the professional events” (Pinto, 1991, p.221), bearing in mind that “the significant categories of [social] trajectories are not necessarily the same that structures the fields of social practice” (Dubar, 1991, p.78). This theoretical concern emerged during my doctoral research7. The problem was that the complex empirical reality experienced in hospitals revealed some interactions that were not easily problematized by any of the abovementioned trends: (I) why do some doctors agree that the hospital’s chairman of the board must be a manager while others advocate that only a doctor can thoroughly understand the hospital’s organizational dynamics? (II) Why do some doctors argue that it is necessary to reinforce administrative control due to public expenditure, whereas others consider it to be unacceptable, offensive and perverse to subject doctors to such control? (This refers to doctors with similar structural positions in the medical career and similar professional experience). Note that the concern about the processes inside professions cannot be said to be new in this sociological field. Strauss et al. (1963) already designated the ‘negotiated order’ as a significant process within hospital organizations, in which complex negotiations are conducted by different professionals to fulfil individuals’ interests. This paradigm is close to Freidson (1975), for whom professions are more than a uniform body of interests and actions, as well as to other important perspectives of this period which underline how day-to-day processes diversify professional structures (e.g. ‘official goals’ and ‘operative goals’ by Perrow, 1963; or ‘elastic autonomy’ by Stelling, Bucher, 1972). The question is that despite the explanation of how day-to-day processes are experienced in these organizations, the analytical focus has been centred mainly on the institutional side of professions. This is why we say that even the interactionist perspective does not allow a proper understanding of how those processes are individually interpreted and, more importantly, individually activated. In other words, the different meanings that justify the reproduction of, or change in, the professional structure. My point here is that while, on one hand, it should be understood that professional structures are as much structuring as they are structured as interactionists have shown, on the other, understanding the interaction processes cannot overlook the role of individual action in the enactment of those processes. This argument leads to an important aspect regarding the construction of the theories of professions in which the discussion carried out gradually ignored the key concepts in sociological theory: structure and action. Note that this must be understood only as a discursive omission, since adopting a functionalist or 782

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7 As said previously, that research seeks to address the implications of the NPM on the professional relations between managers and doctors in the Portuguese hospital public sector. The field research was conducted in one public hospital from October 2008 to July 2010. It involved a qualitative intensive methodological strategy composed of direct observations of two medical services (surgery, including liver transplantation, and internal medicine) and 26 semi-structured interviews to those service doctors and to the managers of the hospital’s board of directors. The case study was chosen according to the legal model of the hospital, since at that time it was the last public hospital in Lisbon not to be turned into a public business entity. This process has meanwhile been completed and has become dominant in the public sector.


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interactionist perspective always involves making a decision on the understanding given to structures and actions. How can the way Parsons conceptualizes his professional essentialist perspective (1966) be detached from the social system theory (1951)? An example of this discursive omission is clearly seen in the analysis made by Strauss et al. (1982). They observe that hospital in-patients have distinctive reactions when hospital professionals expect their behavior to consist of submission and passivity in accepting medical treatment (thus criticizing Parsons’ concept of the ‘sick role’). Although the theoretical objective proposed by the authors is not to analyze action and structure, this is actually their theoretical basis: the degree to which professional medical knowledge is unable to standardize what constitutes behavioral diversity. What this proves is a closing process that sociology of professions has been made in their analytical object, thus ignoring the fundamental sociological basis: social order (Pires, 2007). However, it must be stated clearly that like any other sociological field, the sociology of professions is not impervious to the interpretations given to such concepts, since they are elements of unequal meaning within different epistemic frameworks, which define the multi-paradigm nature of the discipline (Silva, 2006). Some recent contributions on professions have already made reference to the need for an analytical investment in individuals, as we theorize here. Individual professional activity is mainly conceptualized as a result of what professionals conceive as being their professional roles, possibilities, relations, expectations, interests, and experiences (Currie et al., 2009; Timmermans, 2008; Kirkpatrick et al., 2007; Doolin, 2002; Causer, Exworthy, 1999; Harrison, 1999). Although the motives for, and the structure of, individual action are not theoretically conceptualized, these studies offer a trace to a sociological approach that does not ignore individual forms of appropriating (in the sense of internalizing) institutionalization processes as regards professions and their fields of intervention.

Sociological theory’s contributions to conceptualizing professionalism from an open-system perspective

Consider an agent instead an actor means that the performance of a role in a certain social context is understood as the result of past influences and, simultaneously, singular ways of understanding themselves, their social roles and the other agents with whom they are related (for further explanations, see Pires, 2007). 8

As we have seen, the motivation for this discussion is related with problems that the existing conceptual frameworks have to conceptualize freedom of action in professions with a high level of professional discretion. In fact, although at first glance agents seem to be empowered to make changes in the social structures, this ability cannot be seen as common to all: it depends on the places occupied in different social strata and the related power resources possessed (Mouzelis, 1991; Bourdieu, 1989; Crozier, Friedberg, 1977)8. However, the possession of the necessary resources to act upon the structures does not mean that this is automatically implemented. That is why contexts of social reproduction do not mean the absence or eradication of individuality, and it is necessary to conceptualize the meanings given individually to the action: ‘I do not want to change because…’. From this point of view, situations of change not only involve the capacity to act but also the intention to do so. This idea is concerned with any kind of behavioral reification: doctors do not necessarily disagree with managers just because they are doctors. Nor are managers against medical professionals’ autonomy simply because hypothetically this might be the main obstacle to managerial control. At stake is a more complex and individualized process than institutional professional relations realize. So the objective COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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is to overcome an analytical position that, on one hand, inclines towards a structuralism of individual action and, on the other, does not recognize the existence of objective social frameworks that set limits on the social subjects’ horizons. After all, as Lahire (2005) mentions, given the complexity of the real, sociology cannot seek pure ways of acting and seeing individuals, supposedly guaranteed by the sharing of similar objective and relational conditions. On the analytical level, reproduction and change should be left open, and it is necessary to construct a model that takes into account the reasons guiding individual behavior. As Alexander (1988) states, social order does not contradict the contingency of individual action, which has both an interpretive and strategic side. One fundamental clarification is that we are not denying any kind of pattern of action or social pressures external and previous to individuals, which could be interpreted as an individualistic approach of human action. Therefore, the principle of the dualism of structure (Archer, 1995) is adopted, considering that actions are delimitated by previous constraints9. Although it has been argued previously that one of the fundamental theoretical arguments of this discussion is the non closure of scientific fields in their empirical objects, a more specific ensemble of pertinent structural dimensions must be considered for the analysis of professional action. Consequently, that principle of non closure process is ensured here on one hand, by the nature of the structural dimensions considered, which involves not only a more specific process to professional sphere but also others from a wider political nature; and on the other hand, by the inclusion of personal (besides professional) socializations in the influence of reflexivity construction, which brings open processes to professional behaviors. Therefore, the concrete system of action under discussion is defined by three different structural levels: a macro systemic level of supranational influences generating ideologies of the meaning of public activity and, consequently, the function given to the NPM; an organizational level where that ideology materializes in rules and orientations closely linked with the specific contingencies of each organization and medical services and the national political, economic and financial systems; and a professional jurisdiction level, which is the space of action and responsibility of every profession. Two kinds of professional jurisdiction are at stake here. An internal jurisdiction that refers to the power resources individually possessed within the medical field. Different places are occupied due to dimensions like the professional trajectory, the monopoly of information, the area of expertise or the personal relations. The second kind of professional jurisdiction is external and represents the space of action, competencies and responsibilities that each profession possesses (e.g. Abbott, 1988). Authors like Freidson (2001, 1994) or Champy (2009) argue that these spaces are created through two different but cumulative processes: as a result of social attributions externally given to professions (e.g. by state) due to their social functions, and as a result of corporative processes of closure and conquest. Specifically about the medical space of action, Schraiber (2008), considers that its understanding must involve the dimension of knowledge, as well as the dimension of work. This means that today it is impossible to ignore the labor structure in relation to any profession – even in the paradigmatic case of medicine – in which the knowledge is considered as its structural and differentiated condition. More specific contexts must therefore be considered for professions as well others from a wider nature, which defines the place that each profession occupies in a given space and function10. 784

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9 The principle of the dualism of structure relies on the causal relation between structure and action, different from the recursive relation defended by Giddens (2000, 1984). Archer develops her perspective according to the realistic assumption from Bhaskar (1979), to whom the specific ontological statute of the social reality differentiates it from the natural world: first, because social structures only exist through the action that they structure; second, because social structures exist through the way in which individuals construct them; third, because social structures are not immutable in time and space.

A similar position can be identified in Carapinheiro’s work (1993) about the medical work in organizational contexts. The author centers on the dimension of medical power derived from the expertise socially possessed, considering hospital organizations as the spaces where such power is constructed and reproduced in interaction with other professional expertise and lay experiences.

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It is relatively linear to understand that the performance of any profession as dependent work (dependent on the professional entity responsible for the contractual relation, including payment, work conditions and all other aspects that are associated with this nature) requires submission to different kinds of rules. This submission is the most rigorous mechanism that guarantees the necessary predictable nature of any complex capitalist bureaucratic organization in modernity (Weber, 1983). From the professional point of view, the acceptance of these constraints is related with the financial, social and emotional necessity represented by the performance of a professional activity in the western modern societies. The rules are not restricted to one source or nature: the formal can be defined by the employment entity (organizational rules), by one particular direction (rules from a service/department), or by the profession (deontological code), and also include all informal rules derived from the regular life in all social spaces. Another straightforward argument is that the submission to rules tends to be intensify progressively as the professions become less liberal (private). Although the medical profession involves both dependent and private activity, it must be conceptualized through the submission to a social order composed, as has been seen, of a whole ensemble of rules that are general to society and other professions, as well as more specific rules associated to the particular nature of that profession (its social function and the social power acquired). In fact, the system of rules that organizes and coordinates all interactions within each profession is more or less intense, tacit, informal as well as sanctioning (Burns, Flam, 2000; Giddens, 1984), and it is impossible to search for simple and predictable ways of acting in these constraints. Applying this same open-system basis to both structural rules and intraprofessional relations, the possibility of divergence and contradiction inside relatively stable and similar fields must be considered. For Crozier and Friedberg (1977), the sharing of an individually recognized ethical dimension is the agglutinating element capable of sustainting a system like this – stable even without the necessary formal internal mechanisms of control and domination. Durkheim (1977) has already designated this as the social solidarity present in the division of work, or lately the social function of symbolic power argued by Bourdieu (1989). In medicine, the orientation toward the patient, whose social function is granted by medical knowledge (expertise), is the ethical dimension responsible for professional stability that is simultaneously individually perceived. Like doctors, hospital managers have an internal professional structure which is not highly differentiated; this reveals the need to consider other mechanisms responsible for the time/space reproduction of professional structures. In this case, the ethics responsible for the profession is located in the management of public property in order to guarantee patients’ general well-being. As has been argued before, the main theoretical aim of this article is to perceive the dual nature of social phenomena: both from its structural and agential angle (Guibentif, 2007). According to Schraiber (2008), although daily work is a part of a more general configuration of the labor sphere, it also has an individualized existence. At stake is a process that results from the link between the individuals and the different places and roles that they assume in society, taking into account the way in which they locate themselves in those spaces as well as the persons in interaction. It is from this perspective that the systemic articulation emerges between system and agent based on individual action (Crozier, Friedberg, 1977). For these authors the argument is simply that it is not possible to conceptualize the institutional level without knowing how the ‘game’ is played individually. A fundamental point must be clearly stated in order to develop this theorization: how can the problem be solved of individual deviations in relation to the external existence of social structures and rules. Durkheim (1887a apud Alexander, 1986) and then Bourdieu (2002, 2001) considered social order as simultaneously external and prior to action and internal to each member of every social fields. It is therefore impossible to search for unequivocal ways of respecting social order in any social group, knowing that the first condition for this variability derives from the resources of power socially possessed by the group and by each of its members individually. Accordingly, the structure level is not only located prior to agency, delimitating its behaviors, but is also at a subsequent phase, incorporating the agency’s reflexivity. In this way, social reality becomes 785


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individually objectified (Boudon, 2003), considering behaviors as individual exteriorizations of previous internalization processes. This internalization relates the reflexive capacities which are constructed in an articulation between social and professional socializations and interests and expectations. Note that a full discussion on the theoretical construction of how reflexivity is conceived is beyond the scope of this article. In brief, reflexivity is understood to be the regular cognitive exercise usually made by individuals on how they conceive the surrounding contexts as well their places and roles in those different spaces (Archer, 2007; Hamel, 2007). However this does not mean that actions are usually taken consciously in relation to the goals pursued with those actions. The reader must therefore know that it is understood that human action possesses different levels of intentionality: from unconsciousness to consciousness. In other words, from automatic reproductions, in which individuals do not know ‘why’ and ‘for what’ they act – basically the habitus (Bourdieu, 2002, 2001, 1986) – to reflexive and instrumental intentionality, when the individual is aware of the intent and the purpose of that behaviour. Nevertheless, we are discussing the different ways of ‘being’ intrinsic to social agents, which allows professionalism to be interpreted by its structures and by the way in which it is structured by the individual action. Against this double existence of structures – external and simultaneously internal to individuals –, current political contexts, their implementation in each organization and professional jurisdictions can be understood as the product of a symbiosis between constraints and possibilities, exteriority and interiority. First, considering that NPM is chiefly an ideology about how public activity must be provided according to current fiscal and economic pressure (Pollitt, 1990), its materialization cannot be dissociated from its policy makers. Once more what is at stake is the professional discretion derived from these structural positions. Take, for example, the measures that constitute the welfare state(s). Although it can be claimed that this theoretical proposition has divergent materializations due to the specific reality of each country/or groups of countries (Esping-Andersen, 1990), in our understanding it can be associated to how those politicians responsible for the institutionalization of each model conceive it. Their political convictions, interests and pacts, as well as how they conceive such an intervention model must be known when articulating the dimensions presented in the construction of reflexivity. Politicians are involved in political structures that socialize them, but their action is the result of how they individually objectify the party’s ideology. One leader is not the same as another leader, and the party’s action is intimately related to this individuality. From this point of view, they can be assumed as individual and collective subjects, due to their responsibility for how a given model exists and is configured currently and therefore in the future. Second, if NPM is an ideology which is materialized differently by each political leader, its organizational implementation must also be understood as the product of specific interventions; this considers hospital managers again as individual and collective subjects. Since every organization is a human system that cannot be generalized in its formal and informal conditions and processes (Crozier, Friedberg, 1977), any change introduced at this level has to combine these organizational specificities – the so-called organizational culture – with the managers and environmental contexts. What is negotiated within the organizational ‘games’ is intimately dependent on its constituted parts, which are influenced by systems outside the organization and by individual ways of performing professional roles, according to past learning, interests and expectations. Thirdly, as the interactionist perspectives have shown, even when ‘professional jurisdictions’ are defined, which is the result of an institutional process, it cannot be ignored that once they are individually appropriated they will invariably have the effect of an individual action, hence reflexivity. For example, given the current configuration of professional jurisdictions in Portugal, a doctor who is a service director has full authority to decide on issues as important as the features of the service he/she runs, the kind of intervention professionals may make, or the fulfillment of the rules imposed by the Board of Directors. It therefore comes as no surprise that no two services, even of the same medical speciality, are exactly the same. It is obvious that the ability to introduce changes into professional jurisdictions is always related to what one considers to be its borders. We are not talking about changes in the elementary skills that 786

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structure and define each profession, but rather the spaces that are more peripheral to that nucleus which distinguish professions from each other. A further example illustrating this is linked to the medicine/nursing relationship. Although main research on this topic mentions unmistakable elements for structuring the content of nursing work as defined by medicine, indicative of Taylorism in this division of labor (Freidson, 1975; Chauvenet, 1972), I consider it extremely pertinent that head nurses could actually constrain the spheres of medical influence on the nursing work. Serum administration and taking blood samples are just a couple of tasks included in the category ‘medical work delegated’ to nursing professionals, since these are mainly performing tasks. Nevertheless, the head nurses in some services demand that these tasks are performed by doctors (especially younger doctors delegated by older doctors) as they do not consider this part of a nurse’s responsibilities. As this is not common to all head nurses, it illustrates that it is not necessarily the place occupied in the professional structure that is at stake, but mostly the way in which those professionals perform their professional roles reflexively when interacting with others. As a result, these tasks are actually done by nurses in other services without any opposition from the respective head nurse. This demonstrates that it is vital for current sociological studies, notably where the medical field is the empirical object, to provide a conceptual framework of analysis that encompasses both external social structures and also the way in which these structures represent an intrinsic connection between exteriority and individuality. After all, is action an univocal and linear reproduction of structures? If so, it must be shown how structures are reproduced over time and space independently from the social agents. Transposing this to the understanding of professionalism, we believe it has an ideology constructed by cohesive groups that share specialized and scientific rationalities. These rationalities are communicated through institutions accredited for that purpose, with quite stable rules and structures reproduced in time and space, though potentially variable according to the contingencies of the context in which they are exercised. This stable but contingent external existence of professionalism is associated with a parallel internalized existence as regards the professionals. The reproduction of the rules and structures of these groups, is both dependent on factors associated with the social order, and also filtered by an agency constituted by individual perceptions and interests that diversify the exercise of those structures, hence different ways of conceiving professionalism.

Final remarks The debate presented addresses problems within the existing conceptual frameworks when an understanding of professional relations among professions with a high degree of professional discretion is at stake, namely in relation to, the structural capacity to act individually as professions. While individual motivation remains obscured in the theory of professions, the main perspectives fail to understand the reason why individual differences can be found in terms of how professional power, authority and autonomy are activated. Furthermore, they justify differences in inter-professional relations, which are not restricted to a manager-doctor relation. In this way, the present discussion is extremely important for reviewing the way nurses or other occupational groups develop their activities under a dominant and structural profession. Conceptually we saw how reflexivity, as the ability to think and evaluate consciously, may in fact articulate contemporary perspectives from sociological theories not commonly associated with each other. The attention given to reflexivity and to the structure of human action has intentionally been left as an open-ended discussion; however, different traditions (Anglo-American but mostly francophone) have been used to propose what is seen as a more explicit concern of sociology of professions field with the sociological theory. This can be said to represent a first step in theorizing professional action and conceptualizing professionalism in a way that truly materializes Freidson’s (2006, p.60) intention: “[…] je suis parfois un interactionniste symbolique, mais qu’en d’autres occasions je suis wébérien, marxiste, fonctionnaliste et même tout simplement un narrateur”.

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CORREIA, T.

CORREIA, T. Profesionalismo médico visto como un sistema abierto: una controversia en la sociología de las profesiones. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.779-91, jul./set. 2011. Este artículo se centra en un debate sobre las teorías de las profesiones. Se intenta fortalecer el debate en una conceptuación del profesionalismo y de las relaciones profesionales. El argumento radica en cambiar el nivel de análisis de las profesiones para los profisionales, como paso elemental para conceptuar la acción individual en contexto profesional. Esta preocupación es tanto más importante cuanto mayor es la discreción profesional estructuralmente consentida, ya que la capacidad de elegir conduce explícitamente a la diferenciación interna de las profesiones. La influencia sistémica se hace notar teniendo en cuenta que las estructuras sociales están intrínsecamente comprendidas en las acciones, y estas son exteorizaciones de procesos individualmente interiorizados. Se hace necesario considerar las razones de los comportamientos y los significados individualmente dados a las dimensiones profesionales.

Palabras clave: Discrecionalidad médica. Estructuras sociales. Agencia. Teorías sociológicas. Sociología de las profesiones. Recebido em 04/08/10. Aprovado em 04/04/11.

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O conceito de equidade no desenho de políticas sociais: pressupostos políticos e ideológicos da proposta de desenvolvimento da CEPAL *

Maria Lucia Frizon Rizzotto1 Claudimara Bortoloto2

RIZZOTTO, M.L.F.; BORTOLOTO, C. The concept of equity for designing social policies: political and ideological assumptions of the development proposal of CEPAL. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.793-803, jul./set. 2011. This paper analyzes some of the philosophical fundamentals of the concept of equity, incorporated by multilateral agencies, including CEPAL, as intellectual platform for State intervention and the design of social policies. CEPAL, in 1990, published a report with a diagnosis and a set of proposals designed to guide governments in the region to establish a new pattern of development in Latin America. This text formed the basis for the preparation of documents for social sectors like health and education. In all of them the concept of equity is widely mentioned as a principle for State action in the context of social policies and to reduce inequalities in the region. This resulted in a pattern of public policies in which equity appears as a central category, hence the interest in studying its fundamentals.

Keywords: Equity. Health planning guidelines. CEPAL. Theory of justice. Social policies.

Neste trabalho analisam-se alguns dos fundamentos filosóficos do conceito de equidade, incorporado por organismos multilaterais, entre eles a CEPAL, como plataforma intelectual para a intervenção do Estado e para o desenho de políticas sociais. A CEPAL, em 1990, publicou um informe com um diagnóstico e uma série de propostas destinadas a orientar os governos da região no sentido de estabelecer um novo padrão de desenvolvimento na América Latina. Esse texto serviu de base para a elaboração de documentos para áreas sociais como saúde e educação. Em todos eles, o conceito de equidade é amplamente evocado como um princípio para a ação estatal no âmbito das políticas sociais e para a redução das desigualdades existentes na região. Isso resultou em um padrão de políticas públicas nas quais a equidade aparece como uma categoria central, daí o interesse em estudar os seus fundamentos.

Palavras-chave: Equidade. Diretrizes para o planejamento em Saúde. Cepal. Teoria da justiça. Políticas sociais.

* Resultado parcial de pesquisa financiada pela Fundação Araucária. 1 Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Universitária, 2069, Jardim Universitário. Cascavel, PR, Brasil. 85.801-110. frizon@terra.com.br 2 Discente, Mestrado em Biociências e Saúde, Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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Introdução O estudo da equidade é importante na medida em que se trata de uma categoria que tem orientado a intervenção do Estado no campo social e no desenho de políticas públicas na América Latina nas últimas décadas. A mudança, ao menos em relação ao discurso, que passa a atribuir ao Estado responsabilidade na redução das enormes desigualdades sociais existentes, resulta da constatação empírica das consequências de, pelo menos, duas décadas de crises econômicas que debilitaram as economias nacionais, e das estratégias de solução que destruíram a capacidade dos Estados Nacionais de intervirem nos setores sociais, ao mesmo tempo em que elevaram exponencialmente o nível de pobreza de enormes contingentes populacionais. Além do índice de pobreza na região crescer devido ao desemprego, à redução de salários, à transferência de riqueza para os países centrais na forma de pagamento dos juros da dívida externa, esse aumento também se deu pela apropriação desigual dos resultados da produção no interior de cada país, onde, com a benevolência do Estado, alguns enriqueceram à custa do empobrecimento de muitos. Se a culpa pelas crises do capitalismo nas décadas de 1970 e 1980 foi atribuída ao Estado, que havia se agigantado e assumido responsabilidades que não eram suas, mas do mercado, devendo, portanto, ser reduzido em tamanho e em funções; paradoxalmente, ao final da década de 1990, esse mesmo Estado é chamado a ajudar a resolver, agora, as sequelas deixadas pelas reformas econômicas colocadas em prática no período de hegemonia neoliberal. O resultado mais escandaloso desse período, e por isso o mais criticado, foi e continua sendo a desigualdade social existente em países da região, ou seja, a forma de distribuição da riqueza e renda entre os estratos sociais em cada país, que colocou a América Latina como a região mais desigual do mundo. Portanto, o problema não estaria apenas na necessidade de aumento da riqueza produzida para melhorar as condições de vida das pessoas, mas, nos mecanismos instituídos que asseguram a divisão dessa riqueza de forma extremamente desigual, independente do parâmetro que se utilize para medi-la. Tal realidade, inaceitável sob qualquer ponto de vista que se utilize para analisá-la, passa a ser combatida com propostas de ação estatal no campo das políticas sociais, sustentadas, em parte, no conceito de equidade, que remete à ideia de justiça vinculada a uma variante do pensamento liberal. Trata-se de uma alternativa, ainda no campo liberal, que se complementa com a ideia, também liberal, de estado mínimo; e aos questionamentos que os adeptos do pensamento neoliberal fizeram às políticas sociais colocadas em prática no âmbito dos chamados Estados de bem-estar a partir do fim da segunda guerra mundial. No campo econômico, a alternativa apresentada para os países da região latino-americana foi no sentido de aumentar a produtividade dos diferentes setores da economia para melhorar a competitividade e, desta forma, ter uma melhor inserção no mercado mundial globalizado. É nesse contexto que, a partir do início da década de 1990, ganha relevância, em documentos de organismos internacionais e nos discursos de governantes, dirigentes e empresários, a ideia de equidade social, como ideia-força para o desenho de políticas sociais e para a intervenção estatal nesses setores da sociedade. Por meio de políticas sociais, o Estado deveria assumir o desafio de corrigir as desigualdades existentes, sem realizar qualquer ruptura com princípios liberais clássicos, como a garantia de propriedade. A equidade, nessa perspectiva, contribuiria para a reprodução ampliada da nova ordem do capitalismo, uma vez que o conceito se pauta em uma concepção de justiça cujo princípio se refere ao acesso aos “mínimos sociais”, a fim de garantir a sobrevivência e a reprodução da força de trabalho nas novas condições de flexibilização, precarização e desregulamentação. A forma com que cada governo interpretou e incorporou a equidade, enquanto princípio para o desenho e a implementação das políticas sociais, sofreu variações no tempo e na intensidade, uma vez que os pressupostos, como as próprias políticas, resultam dos projetos de cada governo e da correlação de força em cada contexto. No caso brasileiro, é possível afirmar que as políticas sociais, durante toda a década de 1990 e início da década seguinte, pautaram-se na ideia liberal de equidade, assumindo características focalizadas, residuais e compensatórias, em grande medida decorrentes da concepção de Estado que os governos do 794

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período assumiram, das reformas que realizaram na estrutura mesma deste Estado e das políticas econômicas adotadas, que limitaram a capacidade e as possibilidades de intervenção estatal no campo social. Políticas estas decorrentes da assimilação das orientações advindas do Consenso de Washington e dos acordos de ajuste realizados entre os governos, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Com o governo Lula, iniciado em 2002, houve certa recomposição do Estado e aumento de investimentos em políticas públicas, com privilégio de algumas áreas, especialmente educação e políticas de transferência de renda. As ações no campo social assimilaram o pressuposto de que o Estado deve promover a justiça social, intervindo no sentido de “mitigar” as desigualdades existentes na sociedade por meio de políticas públicas, pautadas, em linhas gerais, na mesma concepção de equidade. Ao mesmo tempo, o governo retoma, como atribuição do Estado, o planejamento da economia visando à promoção do desenvolvimento econômico e social. É possível afirmar também que o governo Lula incorpora elementos da proposta cepalina na medida em que adota diretrizes propostas por este órgão para a instituição de um novo padrão de desenvolvimento, as quais foram expressas originalmente no informe: Transformación Productiva con Equidad: la tarea prioritaria del desarrollo de América Latina y el Caribe en los años noventa, publicado em 1990, e em outros documentos setoriais elaborados posteriormente. Esta forma de compreender o Estado e as políticas sociais não é um privilégio dos governos brasileiros, mas uma orientação amplamente divulgada, já que se trata de um fundamento teórico que sustenta uma visão de mundo e de sociedade. Tentemos entender, então, os pressupostos políticos, ideológicos e filosóficos que fundamentaram a ação do Estado e o desenho das políticas sociais nas últimas décadas na maioria dos países latino-americanos. Qual a origem desse pensamento no qual se articula o conceito de equidade ao de justiça social? Melhor dizendo, qual a relação da noção de equidade, incorporada na proposta de desenvolvimento da CEPAL, com certa teoria liberal de justiça, cujo centro reflexivo é examinar princípios de justiça que deveriam regular uma “sociedade bemordenada”, normatizando-a no sentido de que seja minimamente justa, quer dizer, que todos disponham de bens indispensáveis, para se evitar uma guerra hobbesiana entre todos? A origem de parte dos valores normativos que têm fundamentado, em maior ou menor medida, a ação do Estado e o desenho de políticas sociais nas últimas décadas pode ser encontrada em “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, pensador americano do campo das filosofias política e moral, que viveu entre 1921 e 2002. A primeira versão da obra com este título foi publicada em 1971, posteriormente, Rawls reviu alguns aspectos de sua “teoria da justiça como equidade”, particularmente no que se refere à pretensão universalista e ao caráter filosófico, afirmando que as ideias básicas que apresentou e que defendeu combinam-se para formar uma concepção política da justiça, válida em uma democracia constitucional, sem a ambição de ser uma verdade universal, nem válida para toda e qualquer forma de governo, o que inicialmente chegou a defender. Considerando a sua vinculação ao campo da filosofia política, vale a pena destacar o papel que o autor atribui a esse campo do conhecimento. Para Rawls (1997, p.2), uma das funções da filosofia política, como parte da cultura política de uma sociedade, é a função prática de “enfocar questões profundamente controversas e verificar se, a despeito das aparências, é possível descobrir alguma base subjacente de acordo filosófico ou moral”, ou, se não houver base de acordo, ao menos reduzir as diferenças irreconciliáveis “para que se mantenha a cooperação social com base no respeito mútuo entre os cidadãos”. Além dessa função, o autor atribuiu outras três: (1) contribuir para o modo de um povo pensar o conjunto de suas instituições políticas e sociais, bem como suas metas e aspirações básicas; (2) função de orientação, no sentido de elaborar uma concepção que ajude os membros da sociedade a compreenderem a si mesmos como participantes do status político e como este status afeta a sua relação com o mundo social; (3) função de reconciliação, “acalmando” a ira contra a sociedade e sua história, fazendo com que os membros aceitem e reafirmem, positivamente, o mundo social. Além dessas, uma quarta função seria a de examinar os limites práticos da política e, nesse sentido, a filosofia política seria realisticamente utópica (Rawls, 1997). No momento em que vem à tona a teoria da justiça de Rawls, na década de 1970, o mundo vivia um período de intensas transformações no campo político, ideológico, econômico e cultural, como: 795


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a guerra fria, a expansão das experiências socialistas, a guerra do Vietnã, a ascensão econômica de países como o Japão - que começava a ameaçar a hegemonia dos Estados Unidos; e o surgimento de movimentos culturais e contraculturais, como: o de maio de 1968, o movimento feminista, o movimento hippie e o Rock and Roll. Esse contexto explica, em alguma medida, a emergência da teoria da justiça de Rawls, que recupera a visão consensualista presente em Locke, Rousseau e Kant, em face da necessidade de se estabelecer um novo consenso social – função própria do campo político – que impedisse o esgarçamento e a ruptura da sociedade e favorecesse a continuidade da cooperação numa ordem que assegurasse os princípios liberais básicos de liberdade e de propriedade. Sobre o pensamento do referido autor, Casanova (2007, p.102) afirma que: Manteniéndonos al interior de la filosofía liberal con respecto a una sociedad justa, Rawls encara el impasse del liberalismo histórico – hobbesiano y lockeano – del argumento en torno a las relaciones entre libertad e igualdad, proponiéndonos escapar de la trampa teórica del sujeto egoísta propia del estado de naturaleza. Y ciertamente que se ocupa de la igualdad social más allá del derecho natural a la propiedad, incluyendo la fundamentación del papel del Estado y el propósito de la política.

Para Rawls, os sujeitos, ao se associarem em uma posição de igualdade, abrem mão dos interesses individuais e, coletivamente, instituem os princípios gerais da sociedade, que são estabelecidos a partir de um consenso social. É desse consenso que surge, no entendimento do autor, a teoria da justiça como equidade, sendo que uma concepção de justiça deve considerar “um padrão pelo qual se devem avaliar aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade” (Rawls, 1997, p.10). Nessa perspectiva, a justiça não se relaciona unicamente à justiça formal, ou seja, à instituição de leis e normas jurídicas, mas, aos direitos e deveres de todos os cidadãos de uma dada sociedade e à garantia de um mínimo de bem-estar para todos no ponto de partida, o que depende, substancialmente, de um sistema de cooperação, sem o qual ninguém pode alcançar uma vida satisfatória. A visão consensualista de Rawls se contrapõe à teoria utilitarista, também liberal, que entende que a sociedade está corretamente ordenada e é justa quando suas instituições mais importantes garantem o maior saldo líquido de satisfação, obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros. Ainda é possível afirmar que o autor em questão se filia ao liberalismo humanista, defendendo a necessidade de instituições, no caso o Estado, que possam corrigir as desigualdades sociais que se originam nas diferenças de propriedade e riqueza econômica, vale dizer, no mundo da sociedade civil de proprietários e não-proprietários, ou o que é o mesmo, do mercado - já que não há problema que os indivíduos nasçam em situações desiguais, o problema estaria em que as instituições básicas da sociedade consigam ou não corrigir ou amenizar essas desigualdades. Esses elementos ajudam a compreender como esta teoria acabou, em parte, sustentando ideologicamente a construção da proposta de desenvolvimento da CEPAL, também ela oriunda do Consenso de Washington, e sobre a qual trataremos posteriormente neste texto. Em 1990, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) lança o informe Transformación Productiva con Equidad: la tarea prioritaria del desarrollo de América Latina y el Caribe en los años noventa, onde apresenta os fundamentos para um novo ciclo de desenvolvimento regional, em substituição ao padrão de desenvolvimento com base na substituição de importações, que teria se esgotado. Esse informe orientou, nas décadas seguintes, a elaboração de documentos e políticas específicas para diferentes áreas sociais.

A teoria de justiça de Rawls Vejamos, então, os principais elementos que constituem a teoria de justiça de John Rawls, parte do substrato teórico das políticas sociais em curso em grande parte dos países latino-americanos, que 796

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buscam aperfeiçoar ou “ajustar” as democracias às lógicas que reorganizam o capital, a produção e o trabalho nesta fase de capitalismo financeiro globalizado. Para o autor da referida teoria, uma das metas da justiça como equidade é “fornecer uma base filosófica e moral aceitável para as instituições democráticas e, assim, responder à questão de como entender as exigências da liberdade e da igualdade” (Rawls, 1997, p.6-7). Ressalta que as ideias centrais da concepção de justiça são: a ideia da “sociedade como um sistema equitativo de cooperação social que se perpetua de uma geração para outra”, de cidadãos como pessoas livres e iguais, e de uma sociedade bem-ordenada, regulada por uma concepção pública de justiça. São considerados iguais porque se supõe que todos possuem minimamente as faculdades morais necessárias para viver em sociedade e se envolver na cooperação social por toda a vida, como cidadãos iguais (Rawls, 1997). Portanto, para o autor, uma sociedade é bem-ordenada quando, além de estar planejada para promover o bem de seus membros, é regulada por uma concepção pública de justiça, isto é, (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, (2) as instituições políticas e sociais respeitam esses princípios, e (3) os cidadãos têm um senso normalmente efetivo de justiça e agem de acordo com esses princípios e com o que a sua posição na sociedade exige (Rawls, 1997). Logo, em uma sociedade bem-ordenada, regulada por uma concepção pública e compartilhada de justiça social, todos teriam um entendimento comum do que é justo e injusto. Além disso, a noção de sociedade bem-ordenada, regulada por uma concepção compartilhada de justiça, deveria dar pistas de como pensar “os casos difíceis em que é preciso lidar com as injustiças existentes. Também deveria ajudar a esclarecer objetivos de reformas e identificar quais as iniquidades mais nefastas cuja retificação é, portanto, mais urgente” (Rawls, 2003, p.18). Rawls considera a sociedade como uma associação de pessoas que reconhecem regras de conduta e, em geral, as seguem. Essas regras especificam um sistema de cooperação que se destina a promover o bem de todos os seus membros, os quais entendem que a vida em sociedade é melhor do que se cada um dependesse de seus próprios esforços para alcançar seus objetivos. No entanto, reconhece que há interesses divergentes entre os membros da sociedade sobre a distribuição dos benefícios maiores produzidos pela colaboração; daí a necessidade de se definirem critérios consensuais - repetimos, tarefa da política - ou seja, princípios que determinem a forma mais adequada de divisão dos resultados dessa produção. O conjunto desses princípios, bem como a sua utilização como parâmetro de conduta institucional e pessoal, denomina-se justiça social. Portanto a justiça, nessa concepção, seria um quadro geral para o ordenamento do sistema social, de tal forma que a distribuição sempre desigual dos resultados da cooperação seja considerada justa por todos os membros, não importando qual seja o partilhamento final. Ele seria aceito e considerado justo se as pessoas, quando da definição dos critérios de justiça, estivessem em condições equitativas. Nesse caso, entende-se por condições equitativas “quando as partes encontram-se simetricamente situadas na posição original”, com um “véu de ignorância”, ou seja, os representantes que elaboram o acordo/pacto desconhecem as posições sociais, as doutrinas abrangentes, a origem, a raça e os dons naturais das pessoas que representam. Dessa forma, a “posição original” colocaria os representantes longe das circunstâncias particulares da estrutura básica da sociedade, que poderia distorcer o acordo. O autor reconhece que esta é uma situação não encontrada no mundo real, mas que deve ser suposta no momento da definição dos critérios de justiça social (Rawls, 1997). A concepção de justiça como equidade “transmite a ideia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é equitativa” (Rawls, 1997, p.14). Pauta-se em princípios de justiça, estabelecidos em uma situação hipotética original de igualdade, por pessoas livres e racionais (liberdade equitativa) que estão preocupadas em promover seus próprios interesses e, para isso, definem os termos fundamentais de sua associação, ou seja, definem os princípios básicos de justiça, atribuindo direitos, deveres e critérios para a divisão dos benefícios sociais (Rawls, 1997). Trata-se, portanto, de um consenso original ou de um ajuste equitativo sobre os princípios básicos de justiça social que devem ordenar a sociedade e, consequentemente, regular todos os acordos subsequentes. Casanova (2007), analisando a noção de Justiça em Rawls, ressalta que esta se refere a uma forma de ordenamento social baseado na cooperação entre os indivíduos, na reciprocidade econômica e na 797


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liberdade de concepções morais que regulam a vida das pessoas, as quais convergem nas instituições, principais reguladoras das ações individuais. Segundo este autor, Rawls enfatiza a importância da sociedade liberal bem regulada que, nos moldes pós-modernos, nega e anula os conflitos de classe, bem como delineia uma concepção ética liberal que supõe a possibilidade de uma cooperação social capaz de amenizar os efeitos competitivos desagregadores do mundo capitalista. Para Rawls, o objeto primário da justiça seria a estrutura básica da sociedade, ou seja, as instituições políticas e sociais e a maneira como essas instituições interagem enquanto um sistema de cooperação, ou, mais especificamente, a forma como as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social ao longo do tempo. Por instituição, o autor entende um sistema público de regras que define cargos, posições, direitos, deveres e poderes. As instituições mais importantes seriam: a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais. Sendo exemplos dessas instituições: a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular dos meios de produção, e a família (Rawls, 1997). Como já afirmado, Rawls entende que a estrutura básica deve ser o objeto primário da justiça política, porque nela os efeitos são mais profundos e estão presentes na vida de todos, desde o nascimento. O autor “intui” que: Essa estrutura contém várias posições sociais e que homens nascidos em condições diferentes têm expectativas diferentes, determinadas, em parte, pelo sistema político bem como pelas circunstâncias econômicas e sociais. Assim as instituições da sociedade favorecem certos pontos de partida mais que outros. Essas são desigualdades especialmente profundas […]. É a essas desigualdades, supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que os princípios da justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar. (Rawls, 1997, p.8) (grifo nosso)

Rawls, ao admitir como naturais as diferenças de classe, transfere para as instituições políticas a responsabilidade para resolver as desigualdades existentes. Dessa forma reforça e alimenta o atual modo de produção da vida, uma vez que desconsidera a necessidade de transformação da sociedade para superar as diferenças estruturais, enfatizando que é possível resolver, no capitalismo, os problemas da desigualdade a partir de consensos para o estabelecimento de contratos crescentemente racionais. A noção de equidade, difundida pela CEPAL e por outros organismos multilaterais, bem como o caráter das políticas sociais colocadas em prática nas últimas décadas por vários governos latinoamericanos, tem parte de sua fundamentação nessa teoria, que atribui, ao Estado e às políticas sociais, uma função corretiva e compensatória das desigualdades. Na leitura de Silva (2003, p.40) sobre a teoria da justiça de Rawls, as políticas sociais, [...] ao corrigirem a estrutura básica, não deixam que apenas o mercado decida o que cada um deverá receber. Assim poderia se usar a expressão justiça procedimental pura para caracterizar a forma como a estrutura básica da sociedade distribui os benefícios de cooperação social. Mas é somente com a interferência das políticas sociais que o processo econômico e social pode ser considerado um sistema cuja distribuição é sempre justa, seja qual for o seu resultado.

Vejamos, então, os dois princípios básicos propostos por Rawls (2003) em sua teoria da justiça, os quais devem servir de parâmetro para uma sociedade bem-ordenada e para as instituições da estrutura básica da sociedade: (1) cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e de direitos básicos, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos, e (2) as desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e a posições abertas a todos, em condições de justa igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade. Os princípios básicos da teoria da justiça destinam-se a regular a atribuição de direitos e deveres, e esclarecer a existência de diferenças e desigualdades no interior da sociedade. 798

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Rawls pressupõe que as desigualdades na sociedade são inevitáveis, e seria exatamente em tais desigualdades que os princípios da justiça social deveriam ser aplicados em primeiro lugar, visando avaliar e interpretar os aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade e a divisão das vantagens sociais. Para ele, uma concepção de justiça, “é uma interpretação da atuação de seus princípios na atribuição de direitos e deveres e na definição da divisão apropriada de vantagens sociais” (Rawls, 1997, p.11); trata-se apenas de uma parte de um ideal social, pois um ideal de sociedade, além de um padrão distributivo da estrutura básica da sociedade, envolveria, também, as virtudes dessa estrutura, uma concepção de sociedade e uma visão do modo como os objetivos e propósitos da cooperação devem ser entendidos (Rawls, 1997). Contudo, para o autor, a função de uma concepção política de justiça não é ditar normas ou dizer como resolver problemas específicos, mas, formular um quadro teórico, a partir do qual os problemas possam ser abordados. Ainda para Rawls (1997), em toda sociedade existem desigualdades justas, ou seja, os casos em que a distribuição desigual de bens sociais primários, como direitos, liberdade e oportunidade (definidos pelas instituições mais importantes), bem como renda e riqueza (reguladas pelas instituições mais importantes), seja vantajosa para todos, caracterizando o princípio da diferença; a injustiça existiria quando a desigualdade, a apropriação desigual dos bens sociais primários não beneficiar a todos e, sobretudo, não beneficiar aos membros menos privilegiados da sociedade. “Os homens partilham dos bens primários seguindo o princípio de que alguns podem ter mais se esses bens são adquiridos por modalidades que melhorem a situação daqueles que têm menos” (Rawls, 1997, p.100). De acordo com o autor, o bem é a satisfação de um desejo racional, e os bens primários devem ser acessíveis a todos, especialmente aos menos favorecidos, que precisam ter um mínimo de satisfação social realizada, a fim de garantir o bem-estar e a sobrevivência. Dessa ideia desdobra-se o princípio do mínimo existencial, que deve preceder, inclusive, os princípios de justiça, já que a satisfação das necessidades básicas do cidadão é necessária para que este tenha condições de exercer os próprios direitos e liberdades, previstos nos princípios de justiça. Sobre essa questão destaca-se o comentário de Casanova (2007, p.102): Aceptando que son indispensables unos mínimos sociales de equidad: con bienes primarios básicos, estima que de lo que se trata es de garantizar condiciones adecuadas que protejan a los desfavorecidos siempre que ello no restrinja ni las libertades ni los derechos innatos, sobre todo, el de la propiedad. De esta última argumentación, que mantiene intocada la formulación del liberalismo histórico, su negativa a pensar más allá de aquellos mínimos, las desigualdades que provienen del control de esos derechos, según las formas concretas que determina la distribución de la riqueza material en los grupos.

Essa breve incursão pelo pensamento de Rawls busca esclarecer alguns dos fundamentos ideológicos e políticos que têm sustentado uma concepção de Estado e, consequentemente, o desenho de políticas sociais em muitos países da América Latina nas últimas décadas. Trata-se de uma teoria que busca “refuncionalizar” a ideia de democracia e apresentar elementos para melhor ordenar a sociedade capitalista, cada vez mais complexa e desigual.

Equidade na proposta de transformação produtiva da CEPAL Uma das formas com que a CEPAL incorporou a noção de equidade está assim expressa no texto que apresenta a proposta de um novo padrão de desenvolvimento para a América Latina: “y como definición de equidad se adoptó la relación entre el ingreso del 40% de la población de ingresos más bajos y el 10% de la de ingresos más altos”, sendo que essa relação varia de um país para outro (CEPAL, 1990, p.63). Assim, identifica-se que, para a CEPAL, entre outros significados (sendo este de caráter econômico), equidade é uma relação entre o crescimento observado em um dado país e a distribuição da renda que nele se realiza; ou seja, resulta de uma comparação entre os estratos sociais extremos que compõem uma dada sociedade em termos de apropriação de renda, a partir do que esta mesma sociedade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.38, p.793-803, jul./set. 2011

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entende ser “razoável” em termos de divisão da riqueza produzida. Deduz-se daí que as análises que buscam identificar as diferenças sociais de uma dada realidade variam de acordo com as diferenças existentes em cada sociedade. Esse mesmo entendimento é encontrado no texto de Fernando Fajnzylber, denominado Industrialização na América Latina: da “caixa-preta” ao “conjunto vazio”, publicado em 1988, e que serviu de base para a elaboração posterior, da CEPAL, do documento Transformación Productiva con Equidad: la tarea prioritaria del desarrollo de América Latina y el Caribe en los años noventa, citado anteriormente. Fajnzylber mostra que cálculos feitos, pelo Banco Mundial, para os países centrais considerados equitativos, revelaram que os 40% da população de renda mais baixa detinham uma receita equivalente a 80% da obtida pelos 10% de renda mais alta, o que daria uma relação de 0,8. Quando analisados os países da América Latina, reduzindo pela metade a expectativa, ou seja, a 0,4, mesmo assim identificou-se que nenhum país havia conseguido atingir o esperado até a década de 1980, e que, em outras regiões do mundo, países com o mesmo nível de crescimento e desenvolvimento tinham realizado uma melhor distribuição de renda. Disto depreende-se que a observação empírica da falta de equidade é dada pelas desigualdades existentes em cada sociedade. Tal parâmetro economicista levou a CEPAL a admitir que a década de 1980 foi o período de menor equidade na região, com: empobrecimento substancial da população, queda do Produto Interno Bruto por habitante, debilitação do setor econômico, elevadas taxas de desemprego, crescimento da informalidade e queda dos salários, com intensificação da pauperização dos estratos populares e a precarização de suas condições de vida. A CEPAL defende que é possível identificar melhora na equidade em um país quando se observam avanços em, pelo menos, um dos três objetivos seguintes: El primero es minimizar la proporción de personas y hogares cuyas condiciones de vida se ubican por debajo de lo que la sociedad considera aceptable. El segundo es promover el desarrollo de los talentos potenciales existentes en todos los grupos de la sociedad, eliminando progresivamente los privilegios y discriminaciones jurídicamente establecidos, así como la desigualdad de oportunidades de cualquier tipo, entre ellas las asociadas al origen social, étnico o geográfico, o bien al sexo. El tercero es buscar que ni el poder ni la riqueza, ni tampoco los frutos del progreso, se concentren de tal manera que se restrinja, para las geraciones futuras y presentes, su ámbito de libertad. (CEPAL, 1996, p.2) (grifo nosso)

Concluiu, então, que a trágica realidade regional era decorrente do insuficiente dinamismo econômico e do inadequado padrão de desenvolvimento latino-americano, cujo traço principal era a incorporação insuficiente do progresso técnico. Portanto, era fundamental instaurar aqui um novo padrão de desenvolvimento, que não só promovesse o crescimento econômico, mas deveria fazê-lo com equidade, ou seja, de uma forma mais justa (Fajnzylber, 2000). Como estratégia de superação desse modelo estagnado de desenvolvimento e crescente desigualdade social, a CEPAL passou a propor mudanças na estrutura produtiva dos países da região, cujo modelo de exportação primária deveria dar lugar à industrialização de manufaturas, com agregação de valor aos produtos, assimilação do progresso técnico e inovação tecnológica, para, assim, melhorar a produtividade e a competitividade em nível internacional. A dinâmica de competição e concorrência nos mercados estimularia, cada vez mais, a renovação tanto de recursos humanos como de máquinas e equipamentos, condição necessária para a manutenção de qualquer economia no mercado internacional (CEPAL, 1990). O processo de transformação produtiva é considerado, nesta proposta, importante aspecto para mudar a realidade econômica e social dos países latino-americanos que, ao retomarem o crescimento econômico, incorporariam estratos da população ao processo produtivo, observando-se um aumento progressivo dos salários, elevação do nível de vida desses estratos, e uma melhor política distributiva.

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En primer término, en la medida en que la transformación productiva contribuya al crecimiento, innegablemente se facilitará la adopción de una política distributiva, aun cuando ello no sea condición suficiente para lograrlo. En segundo lugar, si el crecimiento se logra a base de niveles ascendentes de aplicación de una política distributiva, al surgir la posibilidad de vincular la evolución de los salarios con la de la productividad […]. (CEPAL, 1990, p.81)

Contudo, a transformação do processo produtivo com base na equidade, “tampoco ocurra automáticamente, ni resuelva a situación de los marginados de las actividades que van siendo objeto de innovación técnica”, isso requer programas desenvolvidos pelo Estado, sobretudo aos que se encontram na informalidade (Cepal, 1990, p.81). Para esses setores, deveriam ser aproveitadas as atividades que já realizam de modo a viabilizar sua participação em melhores condições nas economias nacionais. Para a formulação desses programas, os governos deveriam diagnosticar as carências dos setores mais pobres, de forma a interferir no problema onde ele realmente existe, satisfazendo as necessidades básicas relacionadas a: nutrição, moradia, atenção sanitária e educação básica. Tais programas constituem ações compensatórias do Estado, que deve adequar os serviços sociais às necessidades dos setores mais pobres da população. Assim, o Estado, como uma instituição básica, é convocado a participar no sentido de resolver ou compensar as desigualdades. Os argumentos para a proposição desse tipo de intervenção são encontrados no pensamento rawlsiano, conforme já identificado por Casanova (2007, p.103): Mirándola desde el punto de vista de la función política, en una sociedad de este tipo el Estado debe corregir el extremo de la desigualdad con políticas públicas que descansa en el criterio de que sólo es admisible una asignación diferenciada de recursos hacia aquellos grupos en peores condiciones de vida, siempre que no desmejore la situación del colectivo según la distribución jerárquica “natural” de talentos y riquezas. Para garantizar tal escenario lo que corresponde no es vulnerar los derechos – libertades – materiales de adquirirlos sino introducir criterios de igualdad de oportunidades y de equidad en la distribución hacia los que presentan mayores desventajas para que dispongan pues de los mínimos para que se sostengan.

Para o autor, a diferença desse pensamento em relação ao liberalismo clássico está no papel indispensável atribuído ao Estado para manter e organizar a sociedade, assim estruturada. A debilidade do pensamento de Rawls estaria em que “deja por fuera de la construcción teórica de la sociedad histórica la producción en la organización material de recursos y riqueza: el modo social de apropiación y reparto de los bienes, obviando de la reflexión las sociedades que no se ajustan al modelo” (Casanova, 2007, p.103).

Considerações finais Como foi possível observar na exposição do texto, a noção de equidade presente na proposta de desenvolvimento da CEPAL para a América Latina, a partir da década de 1990, denominada “transformação produtiva com equidade”, fundamenta-se, em alguma medida, no pensamento de autores como John Rawls, que se filiam à vertente liberal humanista e se distanciam, em alguns aspectos, do liberalismo conservador. Enquanto este defende o Estado Mínimo e a não-intervenção estatal nos diferentes setores da sociedade, a não ser para garantir o direito à propriedade e à liberdade, aquele, apesar de admitir as desigualdades sociais como naturais e de “obviar” as consequências estruturais da propriedade privada dos meios de produção, atribui certo protagonismo ao Estado, no sentido de que este deve garantir mínimos sociais para todos os cidadãos, inclusive para que estes possam exercer o direito de liberdade.

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Tomando por base os pressupostos apresentados no texto, é possível entender melhor o tipo de intervenção estatal e o desenho das políticas sociais implementadas, com menor ou maior coerência com esses fundamentos teóricos, em grande parte dos países latino-americanos nas últimas décadas. Note-se que o conceito de equidade, incorporado e difundido pela CEPAL e por outros organismos multilaterais, em acordo com a teoria que lhe dá sustentação, não rompe com a ideia de igualdade de oportunidades; vincula-se, genericamente, ao conceito de justiça social redistributiva nos marcos da sociedade capitalista, procurando resolver, com um argumento legitimador teórico e não-histórico, os problemas e as contradições inerentes a esse modo de produção. Equidade, assim compreendida, refere-se a uma ação estatal voltada para os mais necessitados e à igualdade jurídica, mas nunca a uma igualdade material, logo, está longe da utopia marxiana de uma sociedade igualitária entre os homens, onde sejam respeitadas as necessidades e as capacidades individuais. É possível afirmar também que essas ideias ganharam força e se tornaram mais precisas na “segunda geração de reformas”, que tratam especificamente da nova institucionalidade do Estado. Tais reformas, auspiciadas ainda no Consenso de Washington, encarregar-se-ão precisamente de engrenar os aparatos públicos, “reinventando” um Estado management, transferindo áreas sociais ao mercado (privatização) e descentralizando a gestão. Um texto que complementa o que temos analisado e expressa essa direção é Educación y conocimiento: eje de la transformación productiva con equidad, texto amplamente analisado por estudiosos da área da educação no Brasil. Destaca-se, ainda, a incorporação pouco crítica do conceito de equidade e de justiça social por autores de diferentes matizes ideológicos e em diferentes áreas sociais, como tem sido o caso da substituição do princípio da igualdade pelo de equidade no Sistema Único de Saúde brasileiro. Embora no cotidiano do trabalho em saúde a prática dos profissionais da área, em grande medida, se paute no pressuposto de que se deve dedicar mais tempo e mais recursos para quem mais necessita, traduzindo certa noção de equidade, isso não pode ser “transportado” para o campo da macropolítica, espaço onde ocorrem as disputas e se decide sobre a repartição e o uso do fundo público. Preocupa a centralidade assumida pelos conceitos de equidade e de justiça social no discurso de setores progressistas no campo da saúde, que acaba secundarizando direitos consagrados constitucionalmente, como o direito à saúde integral e igualitária para todos, em face da impossibilidade de o Estado atender a todas as demandas neste campo. O argumento é de que as demandas são infinitas (em muitas situações, impróprias) e os recursos são escassos. Assim, diante da escassez, da falta de pessoal e das limitações de serviços de saúde, defendem que o Estado deve estabelecer prioridades com base nos princípios de equidade e de justiça social, tratando categorias históricas como universais. Por fim, ressalta-se que, atualmente, está em curso em vários países da América Latina, por meio de governos progressistas, uma revisão das reformas neoliberais e uma atualização das correntes igualitaristas radicais do século XIX, nas quais se busca construir um novo sentido ao conceito de equidade, próximo do conceito de igualdade, percebendo as desigualdades como estruturais, ou seja, produzidas como consequência da forma com que a sociedade se organiza, e não como naturais. Logo, muda o caráter das políticas sociais e a forma de intervenção do Estado.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências CASANOVA, R. Para una cartografía de las ideas de la transición venozolana: conversaciones sobre proyecto nacional, Estado y política social. Caracas: Ediciones FEGS, 2007. CEPAL. Transformación productiva con equidad: la tarea prioritaria del desarrollo de América Latina y el Caribe en los años noventa. Santiago: CEPAL, 1990. ______. Equidad y transformación productiva: un enfoque integrado. Santiago de Chile: CEPAL, 1996. FAJNZYLBER, F. Industrialização na América Latina: da “caixa-preta ao “conjunto vazio”. Santiago do Chile, 1988. In: BIELSCHOWSKY, R. (Org.). Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro: Record, 2000. v.2. p.851-86. RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. SILVA, R. Formação moral em Rawls. Campinas: Alínea, 2003.

RIZZOTTO, M.L.F.; BORTOLOTO, C. El concepto de equidad en el diseño de políticas sociales: presupuestos políticos e ideológicos de la propuesta de desarrollo de la CEPAL. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.793-803, jul./set. 2011. Este trabajo analiza algunos de los fundamentos filosóficos del concepto de equidad, incorporado por los organismos multilaterales, entre ellos la CEPAL, como plataforma intelectual para la intervención del Estado y el diseño de las políticas sociales. CEPAL, en 1990 publicó un informe con un diagnóstico y un conjunto de propuestas destinadas a orientar a los gobiernos de la región a fin de establecer un nuevo padrón de desarrollo en América Latina. Este texto sirvió para la preparación de documentos para los sectores sociales como salud y educación. En todos ellos el concepto de equidad es ampliamente mencionado como un principio de la acción estatal en el ámbito de las políticas sociales y reducción de las desigualdades en la región. Esto dio lugar a un padrón de las políticas públicas en el cual la equidad aparece como una categoría central, de ahí el interés en el estudio de sus fundamentos.

Palabras clave: Equidad. Diretrices para la planificación en salud. CEPAL. Teoría de la justicia. Las políticas sociales.

Recebido em 08/11/10. Aprovado em 04/04/11.

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Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da Saúde Coletiva Maria de Fátima Araújo1 Lilia Blima Schraiber2 Diane Dede Cohen3

ARAÚJO, M.F.; SCHRAIBER, L.B.; COHEN, D.D. et al. Penetration of the gender perspective and critical analysis on the development of this concept within scientific production on public health. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.805-18, jul./set. 2011. Gender-based scientific production within public health from 1990 to 2008 was studied. A total of 1343 congress abstracts and 251 published articles was examined regarding their distribution in time, authorship, methodological approach, fields of knowledge and topics covered. The articles were also analyzed regarding epistemological coherence between the intention to use gender and actually doing so over the study, and regarding methodological consistency in applying the concept in terms of complete or partial meaning given to gender in accordance with its theoretical construction. The results showed that, despite its increasing penetration, 25.1% of the studies reduced gender to sex, what was considered to be non-coherent use; 37.8% had coherent gender use but gave it partial meaning; and only 37.1% gave it the complete meaning. In conclusion, gender has an important presence within the field, but is worked up in a methodologically imprecise manner that is lower than its analytical potential.

Keywords: Gender and health. Public health. Scientific production.

Estudou-se a produção científica brasileira baseada em gênero na Saúde Coletiva, entre 1990-2008. Um total de 1.343 resumos de trabalhos de congressos e 251 artigos publicados foi examinado segundo: distribuição temporal, autoria, abordagem metodológica, áreas de conhecimento e temáticas abordadas. Os artigos foram também analisados quanto à coerência epistemológica entre a intenção e o uso efetivo de gênero ao longo do estudo e quanto à consistência metodológica de aplicação do conceito em termos do sentido completo ou parcial dado a gênero de acordo com sua construção teórica. Resultados mostraram que, embora com penetração crescente, 25,1% dos estudos reduzem gênero a sexo, uso considerado não coerente; 37,8% possuem uso coerente de gênero, mas lhe atribuíram um sentido parcial, e apenas 37,1% deram-lhe o sentido completo. Conclui-se que gênero tem importante presença no campo, mas é trabalhado de modo pouco preciso metodologicamente e inferior a seu potencial analítico.

Palavras-chave: Gênero e saúde. Saúde coletiva. Produção científica.

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1-3 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2170. São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. faraujo@assis.unesp.br

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Introdução A inclusão de questões de gênero nos estudos científicos do campo da Saúde, no Brasil, ocorre desde os anos 1980. Mas a presença do termo “gênero” surge a partir de 1990 e consolida-se nos anos 2000, quando se verifica o crescimento dos estudos em gênero, especialmente na Saúde Coletiva, área em que o conceito teve maior penetração (Aquino et al., 2003; Campos, 2000). Contribuíram para isso: a natureza multidisciplinar e política dessa área (Schraiber et al., 2009), a forte influência do feminismo na luta contra desigualdades e iniquidades de gênero e seu efeito na saúde, sobretudo das mulheres (Corrêa, 2002; Aquino, 1999), além das recomendações de organismos internacionais (Gómez, 2002). Direito básico, a saúde sempre foi prioridade nas reivindicações feministas, inicialmente voltadas para determinadas necessidades da saúde reprodutiva da mulher, depois ampliadas para a saúde sexual e os direitos sexuais e reprodutivos (Villela, Monteiro, 2005; Costa, Aquino, 2000), e outras questões, como as masculinidades e sua relação com a saúde (Schraiber, Gomes, Couto, 2005; Arilha, 1999). A mudança da “perspectiva da mulher” para a “perspectiva de gênero”, com ênfase na dimensão interativa das relações entre homens e mulheres, foi um marco importante na incorporação do conceito ao campo. No entanto, essa incorporação envolve muitos problemas de natureza epistemológica. Apesar da relevância que o conceito conquistou, ainda é difícil seu equacionamento como categoria de análise. Mesmo mundialmente, seu uso é bastante heterogêneo entre os pesquisadores (Louis, 2006; Kergoat, 1996). Alguns utilizam “gênero” em oposição a “sexo”, para distinguir o fator cultural do fator biológico; outros trocam um termo pelo outro, tomando “gênero” como uma variável empírica, e não como categoria de análise, como propõe a perspectiva feminista. É frequente, também, o uso de “gênero” como substituto de “mulher”; ou, ainda, apenas para enfatizar a dimensão relacional de gênero, sem levar em conta as desigualdades de poder, fundamento central do conceito (Scott, 1986). As dificuldades na compreensão e aplicação do conceito de gênero não ocorrem somente na Saúde; estão presentes em diferentes disciplinas, inclusive no campo feminista (Saffioti, 2001). Porém, esses problemas não são necessariamente negativos. Como lembra Butler (1990), são fundamentais para avançar na reflexão crítica acerca do conceito. No Brasil, há poucos estudos analisando a inclusão de “gênero” na saúde (Villela, Monteiro, Vargas, 2009; Aquino, 2006; Corrêa, 2002), e todos salientam seu crescimento. Todavia, reconhecem a falta do exame específico da contribuição teórica que o campo da Saúde estaria realizando, aprofundando-se, assim, o estudo da qualidade conceitual com que se dá a referida crescente inclusão da perspectiva de gênero. Mesmo o mais recente trabalho (Villela, Monteiro, Vargas, 2009), embora acrescente nessa direção, carece de um exame que qualifique melhor o desenvolvimento conceitual praticado na produção do campo, buscando identificar quais os sentidos de gênero usados nas análises e interpretações realizadas. Apenas aponta que 71 artigos (23%) das 307 publicações levantadas fazem algum uso analítico, sem qualificá-lo e examinar como se deram as aplicações do conceito ‘gênero’. Tal qualificação é central para evidenciar os diversos entendimentos e aproximações que a produção em Saúde Coletiva vem operando do conceito, o que permite identificar, nos dizeres de Butler (1990), de que modo esse campo aprimora ou modifica o conceito, fornecendo-lhe significados consistentes, ou não, com sua construção histórica. Um segundo aspecto, nessa mesma direção da contribuição da Saúde ao adensamento conceitual da teoria de gênero, diz respeito ao exame do contraste entre a intenção de seu uso, declarada nos pressupostos do estudo, e os modos efetivos de sua aplicação na produção e análise do material considerado. Esse exame não aparece nas revisões realizadas. Na mencionada revisão de 2009, identificam-se estudos que tomam o pressuposto de gênero, sem examinar se o pressuposto é coerentemente operado ao longo do estudo. Por fim, um terceiro aspecto ainda não considerado por outras revisões diz respeito aos trabalhos apresentados em Congressos, o que permite ter uma noção melhor da penetração da perspectiva de gênero na Saúde Coletiva e do volume de estudos. Como marcação de tendência, os Congressos são mais sensíveis a uma cartografia do conjunto de trabalhos que os distintos pesquisadores da Saúde Coletiva estão realizando. 806

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artigos

Assim, a presente pesquisa tem dois objetivos: 1 mapear a penetração da perspectiva de gênero no campo, por meio dos trabalhos (resumos) apresentados nos Congressos da Saúde Coletiva e de artigos publicados em periódicos da área; 2 evidenciar os conteúdos histórico-políticos do conceito ‘gênero’ e analisar, epistemologicamente, a inclusão desses conteúdos nos artigos. Nesse segundo objetivo pretendeu-se não apenas identificar a presença de gênero, mas discriminar o modo pelo qual se faz presente, analisando quais sentidos conceituais foram considerados no interior da produção analisada.

Bases teórico-metodológicas do estudo A epistemologia geral e a epistemologia feminista orientam a análise desta pesquisa. A primeira, com base em Bruyne, Herman e Schoutheese (1977) e Samaja (1993), para identificar teorias, métodos, procedimentos da produção dos dados empíricos e análises interpretativas ou explicativas usados nos estudos. A segunda, para identificar os diferentes usos e sentidos atribuídos ao conceito de gênero, o rigor metodológico na aplicação do mesmo, e a coerência entre a teoria de gênero adotada e o desenvolvimento de todo o estudo. A epistemologia feminista reúne um quadro conceitual que define um campo e uma forma de produção do conhecimento científico sobre gênero, articulando-o a diversas dimensões da vida social: cultura, subjetividade e sexualidade, relações de poder, entre outras (Rago, 1998). Seu instrumental analítico, de caráter crítico e emancipatório (Puleo, 2000), pode ser usado para além do campo feminista ou da “questão feminina”. Mas essa apropriação por outros campos disciplinares envolve problemas, especialmente quando os conceitos são empregados descontextualizados de sua vinculação teórica. Por isso é necessário, do ponto de vista epistemológico, que se valorize a precisão conceitual nos estudos e o seu desenvolvimento prático nas investigações. Ou como diriam Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999), é preciso exercer boa vigilância epistemológica no curso das pesquisas. Uma primeira questão que se coloca é a da origem do conceito, o que permitirá reconhecer sua construção e as implicações epistemológicas decorrentes. Gênero é um termo polissêmico, e o debate em torno dele está longe de se esgotar. No mínimo, três fatores contribuem para isso. Primeiro, os diferentes significados atribuídos à palavra nas diferentes línguas e contextos (Fraisse, 2003; Scott, 1986). Outro fator é sua imbricação com o termo “sexo” (Tubert, 2003; Butler, 1990; Scott, 1986). Embora definido como construto que se diferencia de sexo, um não pode ser apreendido sem o outro. A categorização social do sexo biológico influencia a construção social de gênero. Como ressalta Butler (1990), gênero não é somente a inscrição cultural de um sexo determinado; é também o aparato produtor pelo qual se estabelecem o sexo e as relações de poder - as diferenças de gênero são diferenças culturais e de poder. Um terceiro fator seria o novo sentido atribuído a gênero na teorização feminista: um conceito com estatuto teórico e epistemológico (Louro, 1996; Barbieri, 1993; Scott, 1986), portanto, estando presente e se expressando, sobretudo, em desenhos e análises de pesquisas. O termo “gênero” surge no meio científico em 1950, nos estudos sobre transexualidade desenvolvidos por pesquisadores norte-americanos. Seu uso solucionava dificuldades conceituais no estudo de pacientes que nasciam com o sexo biológico ambíguo, ou quando o sexo do nascimento não coincidia com a identidade sexual desejada (Stolke, 2004). Mas o termo só ganha evidência com a publicação de Sex and Gender (Stoller, 1968), livro que inaugura o debate em torno do conceito, depois incorporado ao campo feminista (Stolke, 2004; Fraisse, 2003). No entanto, a referência a Stoller é frequentemente omitida na literatura feminista, que atribui a origem da noção de gênero a Simone de Beauvoir (1962). Para os defensores dessa posição, a famosa frase de Beauvoir (1962, p.9) “não se nasce mulher, torna-se mulher” já contemplava a distinção das esferas biológica e sociocultural, ideia mais tarde desenvolvida pelas feministas como uma nova noção histórica e sociológica (Rubin, 1975; Oakley, 1972). Na década de 1970, as feministas americanas começaram a usar ‘gênero’ para enfatizar o caráter social das distinções fundadas sobre o sexo e rejeitar o determinismo biológico implícito nos termos “sexo” ou “diferença sexual”. Na década seguinte, o termo ganha centralidade no debate feminista, com status de conceito teórico, instrumental crítico e político extremamente útil na análise das COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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diferenças e desigualdades entre os sexos. Com isso, optar pelo conceito passou a ser uma decisão de ordem epistemológica que implica uma dada opção teórica (Louro, 1996; Barbieri, 1993; Scott, 1986). No Brasil, o uso de ‘gênero’ só ganha visibilidade no início de 1990, quando da passagem dos “estudos da mulher” para os “estudos de gênero” (Costa, 2004; Costa, Bruschini, 1992). Essa passagem marca a preocupação com o aspecto relacional de gênero e ênfase nas diferenças e assimetrias de poder, distanciando-se das explicações polarizadas sobre papéis sexuais. Nisto, teve grande influência Joan Scott (1986). Esta autora foi particularmente importante por recuperar o debate feminista em torno do conceito e sistematizá-lo, destacando três dimensões de análise: social, relacional-comparativa e ético-política. No resgate que faz, critica o uso de gênero como categoria descritiva, porque, apesar do termo enfatizar que as relações entre os sexos são construções sociais, seu uso descritivo nada diz sobre o modo como essas relações foram construídas, como funcionam em termos de relações de poder e como mudam ao longo da história. No sentido descritivo, gênero é apenas um conceito associado ao estudo de coisas relativas às mulheres e aos homens, dentro de uma perspectiva comparativa, mas sem criticar os paradigmas históricos existentes. Por isso, Scott, ultrapassando esse sentido descritivo, historiciza o conceito e defende seu uso como categoria analítica para entender como, ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber e poder sobre a diferença sexual. Na compreensão da autora, gênero significa o saber a respeito das diferenças sexuais. Produzido pelas culturas e sociedades, tal saber é sempre relativo. Seus usos e significados nascem de uma disputa política e são meios pelos quais as relações de poder são construídas. Este saber não se refere apenas a ideias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais específicos, já que todos constituem as relações sociais. É uma forma de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável dela. Portanto, ao tomar gênero como uma categoria histórica, Scott enfatiza os significados variáveis e contraditórios atribuídos à diferença sexual e os processos políticos através do quais esses significados são construídos e hierarquicamente valorizados na vida social. Ao mesmo tempo, rejeita o caráter fixo e permanente das representações de gênero e reduções dos contrastes de gênero a meras oposições binárias, possibilitando a desconstrução das leituras essencialistas e naturalizadoras de universais masculinos e femininos. Esse uso de gênero como categoria de análise surgiu como algo renovador nos estudos feministas, mas, na prática, há muitas tensões e desacordos entre os autores. Um desses desacordos, segundo Heilborn (1994), refere-se ao estatuto cognitivo do conceito. Questiona-se, com base em diferentes premissas, se gênero é uma categoria empírica ou é, antes, uma categoria analítica. Para a antropóloga britânica Marilyn Strathern (1988), gênero é apenas um meio de aglutinar, em determinada sociedade, o modo como se organizam as práticas e as ideias em torno dos sexos e dos objetos sexuados. Portanto, não teria estatuto analítico, sendo categoria empírica que assinala uma descontinuidade entre corpos, objetos, eventos, de uma determinada ordem simbólica particular. Já Scott (1986) defende o uso de gênero como categoria de análise, no que é seguida por Louise Tilly (1994). No presente estudo, adotou-se a perspectiva destas últimas duas autoras e, ainda, de Butler (1990), acerca do impacto de gênero nos modos de viver o corpo e que repercutem nos processos saúdedoença. Assim, foram considerados dois possíveis sentidos analíticos e interpretativos na aplicação do conceito: um sentido completo, que leva em conta não só as diferenças sociais e culturais entre homens e mulheres, ou entre masculinidades e feminilidades, mas também o entendimento de como se produzem essas diferenças como desigualdades de poder; e um sentido parcial, em que há apenas a comparação descritiva das diferenças entre masculino e feminino, sem interpretação das questões de poder. Definiu-se, para este estudo, o período 1990-2008, porque foi a partir de 1990 que o termo “gênero” passou a constar dos estudos científicos, e, também, para marcar a distinção entre os estudos que, embora abordem “questões de gênero”, não fazem referência ao termo, nem o adotam como conceito. Desenhou-se a pesquisa em duas etapas: o mapeamento da penetração da perspectiva de gênero no campo e a análise crítica da aplicação do conceito. Na primeira etapa levantou-se a produção em todos os congressos do campo, publicada na forma de resumos (em livros de resumos impressos ou cd-rom), e a produção de artigos publicada nos principais periódicos da Saúde Coletiva. Na segunda 808

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artigos

etapa, procedeu-se ao exame epistemológico dos artigos (textos completos), para avaliar como o conceito ‘gênero’ foi neles desenvolvido. A produção em artigos foi levantada em: Cadernos de Saúde Pública (CSP); Revista de Saúde Pública (RSP); Ciência & Saúde Coletiva (CSC); Saúde e Sociedade (SSoc); História, Ciência e SaúdeManguinhos (Manguinhos); Physis: Revista de Saúde Coletiva (Physis); Interface - Comunicação, Educação e Saúde (Interface) e Revista Brasileira de Epidemiologia (REB). Foram selecionados apenas os artigos que incluíram ‘gênero’ em, pelo menos, um dos seguintes tópicos do texto: título, resumo ou palavras-chave. Essa inclusão foi tomada com a intenção de operar o conceito no estudo. Na seleção consideraram-se: os trabalhos de revisão ou ensaios teóricos, artigos originais de pesquisas com dados primários ou secundários, e relatos de pesquisas completas. O mapeamento levou em conta: o ano do evento e das publicações; a modalidade do congresso (geral do campo, em Epidemiologia e em Ciências Sociais) e identificação do periódico; características da autoria (sexo dos autores e número); abordagem metodológica (pesquisa qualitativa, quantitativa ou mista); as subáreas de produção do campo e as temáticas enfocadas. Na classificação das abordagens metodológicas, quando não explicitadas, foram considerados: o desenho da pesquisa, o cálculo da amostra, as técnicas de produção de dados, instrumentos de pesquisa e o tipo de análise realizada. Quanto às temáticas, partiu-se do existente no campo (Aquino, 2006), reagrupando-se alguns temas por suas interfaces e destacando novos. Foram definidas seis temáticas: 1 sexualidade e reprodução – estudos sobre a saúde da mulher, DST/HIV/Aids, comportamentos sexuais, prevenção e cuidados, vulnerabilidade masculina e feminina, concepção e contracepção, sexualidade e gravidez na adolescência, e outros relacionados à mulher, família e conjugalidades; 2 agravos à saúde – estudos sobre processos de adoecimento físico e mental, prevenção, controle de doenças, uso abusivo de drogas, doenças crônicas e específicas, e, ainda, saúde mental, saúde do idoso e saúde bucal, que, só a partir de 2005, passaram a incorporar gênero; 3 violência – estudos sobre violência de gênero (contra a mulher, sexual e conjugal), doméstica contra crianças e adolescentes, homicídios masculinos e outras formas de violência e vulnerabilidade social; 4 trabalho – estudos sobre saúde do trabalhador e saúde ocupacional, trabalho feminino (doméstico e profissional); 5 masculinidades - estudos sobre homens, identidade masculina e temas ligados à saúde do homem, incluindo comportamentos de prevenção, cuidados com a saúde e acesso aos serviços de saúde; e 6 outros - estudos teóricos sobre gênero, revisões, saúde ambiental, lazer e saúde, outros. Já a análise crítica do desenvolvimento do conceito ‘gênero’ valeu-se, na leitura dos artigos, do exame da coerência epistemológica entre a intenção declarada de valer-se do conceito e sua efetivação ao longo do texto; e do exame das aplicações do conceito nos estudos, em usos consistentes do mesmo, e nos quais o sentido parcial ou o completo foram atribuídos a gênero. Foram incluídas, também, nessa análise, as abordagens metodológicas, as temáticas enfocadas e as áreas de produção internas à Saúde Coletiva. Na classificação por áreas de produção, adotou-se o padrão do próprio campo: 1) Epidemiologia; 2) Ciências Humanas e Sociais em Saúde; e 3) Políticas, Planejamentos, Gestão e Avaliação em saúde. Para tal observou-se o tipo de estudo e a filiação dos autores a áreas ou programas de pós-graduação declarados em seus currículos ou nos grupos de pesquisa, e, em raros casos, a explicitação da área nas palavras-chaves da publicação. Foram considerados da Epidemiologia: os estudos de prevalência, frequências de ocorrências de determinados eventos, fatores associados em estudos transversais, estudos específicos de riscos e ensaios clínicos. Nas Ciências Humanas e Sociais foram incluídos os estudos sobre atitudes, comportamentos, representações sociais, formação ou identificação de subjetividades e intersubjetividades, além dos ensaios teóricos e metodológicos sobre gênero e saúde de modo geral. E, na área de Políticas de saúde e afins, foram incluídos: os estudos sobre organização, funcionamento e gestão de serviços, formulação de políticas e/ou programas e suas implantações, além de todos os desenhos de avaliação das políticas e dos serviços. No exame da coerência entre a intenção de usar gênero e o uso efetivado, considerou-se coerente o estudo em que essa intenção é apresentada na Introdução – parte em que os pesquisadores constroem seu olhar e deixam claros seus pressupostos teóricos e metodológicos – e efetivada ao longo do texto, mediante a aplicação do conceito nas demais partes do estudo: métodos, análise dos dados e discussão dos mesmos com retorno aos pressupostos teóricos. Foram considerados não coerentes, os estudos que 809


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declararam a intenção de uso do conceito na introdução do artigo, mas nas partes subsequentes do texto não mais o consideraram, ou reduziram gênero ao sexo dos indivíduos estudados. Quanto ao exame dos sentidos atribuídos ao conceito de gênero, foram considerados apenas aqueles já identificados como coerentes na intenção declarada, verificando-se o modo como o conceito foi analiticamente utilizado na interpretação, de acordo com a teoria de gênero. Consideram-se, como já dito, duas possibilidades de aplicação do conceito: com sentido parcial e com sentido completo, distintas pelo uso analítico ou não das desigualdades de poder. No levantamento e apresentação dos dados, foram utilizadas a planilha eletrônica Excel e o Epi Info 6,0.

Resultados A penetração da perspectiva de gênero Para o período considerado, de 39.521 resumos de trabalhos apresentados em congressos, foram encontrados 1.343 (3,4%) declarando a perspectiva de gênero, e dos 9.399 artigos, 251 (2,7%), como mostra a Tabela 1. Esses dados indicam que, apesar de crescente, a perspectiva de gênero está incluída em uma proporção pequena dos estudos da Saúde Coletiva (3,3%). O exame desses dois tipos de produção do campo, mostrou que, embora seja maior a penetração da perspectiva de gênero na produção em resumos em congressos (3,4%) do que na produção em artigos (2,7%), as duas modalidades de publicações crescem em todo o período, concentrando-se mais ao seu final (2005-2008). Este aspecto foi observado em todos os periódicos estudados e em todos os congressos do campo.

Tabela 1. Distribuição da produção total (N), em gênero (n), publicada em congressos e em periódicos, segundo o período de publicação. Brasil, 1990-2008 Período 1990-1996 Tipo de publicação Resumos de congressos Saúde Coletiva Epidemiologia Ciências Sociais Subtotal Artigos de periódicos CSP RSP CSC Manguinhos Interface RBE SSoc Physis Subtotal Total geral *

N

n

1997-2000 n

N

709 7 (1,0%) 2486 22 (0,9%) 6 (2,4%) 246 3441 35 (1,0%)

3909 126 (3,2%) 1492 28 (1,9%) 0 (0,0%) 0* 5401 154 (2,8%)

537 501 0 74 0 0 99 0 1211 4652

598 384 87 181 156 45 52 64 1567 6968

5 (0,9%) 2 (0,4%) 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0 (0,0%) 0 (0,0%) 7 (0,6%) 42 (0,9%)

2001-2004 N

n

2005-2008 n

N

5853 180 (3,1%) 8224 5578 150 (2,7%) 5800 0 (0,0%) 5224 0** 1141 330 (2,9%) 19248

349 168 307 824

(4,2%) (2,9%) (5,9%) (4,3%)

12 (2,0%) 945 29 (3,1%) 1436 57 (4,0%) 707 32 (4,5%) 2 (0,5%) 490 18 (3,7%) 0 (0,0%) 324 7 (2,2%) 791 28 (3,5%) 358 12 (3,4%) 1 (0,6%) 303 2 (0,7%) 232 4 (1,7%) 0 (0,0%) 148 4 (2,7%) 140 1 (0,7%) 252 5 (2,0%) 1 (2,2%) 78 1 (1,3%) 193 15 (7,8%) 2 (3,8%) 9 (6,7%) 1 (1,6%) 89 1 (1,1%) 135 19 (1,2%) 2517 63 (2,5%) 4104 162 (3,9%) 173 (2,5%) 13948 393 (2,8%) 23352 986 (4,2%)

Total N 18695 662 15356 368 5470 313 39521 1343

n (3,5%) (2,4%) (5,7%) (3,4%)

3516 103 (2,9%) 2082 54 (2,6%) 1202 35 (2,9%) 916 15 (1,6%) 8 (1,5%) 536 7 (1,6%) 437 422 18 (4,3%) 288 11 (3,8%) 9399 251 (2,7%) 48920 1594 (3,3%)

01 congresso no período, dados indisponíveis; ** nenhum congresso no período

Não obstante, internamente à produção em artigos e à produção em resumos em congressos, há uma heterogeneidade de presença e de crescimento dos estudos em gênero, para os diferentes periódicos e congressos. Nesse sentido, observa-se, em alguns casos, um súbito incremento da produção em gênero, como nos congressos de Ciências Sociais e nos periódicos SSoc e Physis. Neste 810

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artigos

último caso, destacam-se os números especiais ou parte de um número do periódico dedicado ao tema Gênero, com picos de produção no volume total de publicações em determinados anos. Quanto aos congressos, é nítida a menor penetração de estudos de gênero nos eventos da área de Epidemiologia, sendo quase a metade dos eventos da área de Ciências Sociais. A Tabela 2 apresenta algumas características da produção analisada quanto à autoria (número e sexo dos autores) e temas tratados. Observa-se a predominância de um a dois autores por estudo, quer na modalidade resumo, quer em artigos. Quanto ao sexo dos autores, há poucos estudos com participação apenas masculina, sobressaindo a presença exclusiva das mulheres (51%) para todas as temáticas. Por outro lado, é relevante a proporção de estudos com autoria mista (42%), o que demonstra que os estudos, em gênero, não mais se restringem ao campo feminino.

Tabela 2. Distribuição do sexo e número de autores da produção em gênero, segundo temas tratados em resumos de congressos e em artigos de periódicos. Brasil, 1990-2008 Sexo dos autores* Características Resumos de congresso Agravos à saúde Masculinidades Sexualidade e/ou Reprodução Trabalho Violência Outros Subtotal Artigos de periódicos Agravos à saúde Masculinidades Sexualidade e/ou reprodução Trabalho Violência Outros Subtotal Total geral

Número de autores

n

Masculino

Feminino

Ambos

1a2

3a6

7 ou mais

423 (100%) 68 (100%) 386 (100%) 145 (100%) 158 (100%) 163 (100%) 1343 (100%)

35 (8,9%) 8 (11,8%) 11 (3,0%) 8 (6,1%) 6 (3,9%) 13 (8,6%) 81 (6,4%)

145 (37,0%) 33 (48,5%) 234 (65,0%) 68 (52,3%) 91 (58,7%) 88 (58,3%) 659 (52,5%)

212 (54,1%) 27 (39,7%) 115 (32,0%) 54 (41,5%) 58 (37,4%) 50 (33,1%) 516 (41,1%)

200 (47,3%) 49 (72,1%) 268 (69,4%) 92 (63,4%) 85 (53,8%) 104 (63,8%) 798 (59,4%)

171 (40,4%) 17 (25,0%) 98 (25,4%) 41 (28,3%) 47 (29,7%) 46 (28,2%) 420 (31,3%)

52 (12,3%) 2 (2,9%) 20 (5,2%) 12 (8,3%) 26 (16,5%) 13 (8,0%) 125 (9,3%)

69 (100%) 11 (100%) 86 (100%) 32 (100%) 33 (100%) 20 (100%) 251 (100%) 1594 (100%)

5 (7,2%) 1 (9,1%) 8 (9,3%) 2 (6,2%) 2 (6,1%) 2( 10,0%) 20 (8,0%) 101 (6,7%)

46 18 (26,1%) (66,7%) 4 (36,4%) 6 34 (54,5%) (39,5%) 44 13 (51,2%) (40,6%) 17 13 (53,1%) (39,4%) 18 11 (54,5%) (55,0%) 7 121 (35,0%) (48,2%) 110 637 (43,8%) (42,3%) 769 (51,0%)

36 (52,2%) 11 (100,0%) 64 (74,4%) 20 (62,5%) 26 (78,8%) 12 (60,0%) 169 (67,3%) 967 (60,7%)

30 (43,5%) 0 (0%) 18 (29,9%) 12 (37,5%) 4 (12,1%) 7 (35,0%) 71 (28,3%) 491 (30,8%)

3 (4,3%) 0 (0%) 4 (4,7%) 0 (0%) 3 (9,1%) 1 (5,0%) 11 (4,4%) 136 (8,5%)

* 87 (6,5%) resumos de congresso inclassificáveis quanto ao sexo do autor.

Quanto às instituições envolvidas e regiões do país (dados não publicados), há predominância do sudeste, seguido da região nordeste. As parcerias entre instituições são mais frequentes dentro da mesma região, mas há produções, resultantes de estudos multicêntricos, envolvendo pesquisadores de até quatro instituições e regiões diferentes. A forte predominância da presença feminina e a COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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concentração da produção nas regiões sudeste e nordeste também foram identificadas no estudo realizado por Aquino (2006). No que diz respeito às áreas da Saúde Coletiva, às temáticas tratadas e às abordagens metodológicas, os resultados (dados não publicados) mostram, para os artigos, o esperado de acordo com estudos já realizados (Villela, Monteiro, Vargas, 2009; Aquino, 2006): maior presença dos estudos quantitativos na área da Epidemiologia (80,7%) e dos estudos teóricos e qualitativos na área das Ciências Humanas e Sociais (82%), área esta que também apresenta a maior parte dos estudos que adotam metodologia quali&quanti (58,3%). Na Tabela 3 nota-se uma pequena quantidade de estudos na área de Políticas, Planejamento e Gestão, e de estudos que aliam metodologia quantitativa com qualitativa relativamente a abordagens exclusivas. Quanto às temáticas, nota-se, pela primeira vez, um comportamento diverso da produção do tipo resumos de congressos frente à de artigos em periódicos. Assim, a área de Epidemiologia concentra a maior parte dos estudos sobre “agravos à saúde” nos resumos e artigos. Mas, para temas como “masculinidades”, “trabalho” e “violência”, há uma presença de estudos em Epidemiologia muito maior nos resumos de congressos do que na produção em artigos, o que repercute em mesmo sentido na proporção da abordagem quantitativa nessas temáticas nos dois tipos de produção. Tabela 3. Distribuição da produção em gênero por áreas da Saúde Coletiva e metodologias de pesquisa empregada, segundo temas tratados. Brasil, 1990-2008 Áreas da Saúde Coletiva

Temas tratados Resumos de congresso Agravos à saúde Masculinidades Sexualidade e/ou reprodução Trabalho Violência Outros Subtotal Artigos de periódicos Agravos à saúde Masculinidades Sexualidade e/ou reprodução Trabalho Violência Outros Subtotal Total geral

n

Ciências Humanas Epidemiologia e Sociais

Política

Metodologia de pesquisa Qualitativa Quantitativa Quali & Quanti

423 (100%) 68 (100%) 386 (100%) 145 (100%) 158* (100%) 163 (100%) 1343 (100%)

41 (9,7%) 49 (72,1%) 258 (66,8%) 73 (50,3%) 76 (48,1%) 68 (41,7%) 565 (42,1%)

370 (82,5%) 14 (20,6%) 96 (24,9%) 68 (46,9%) 65 (41,1%) 59 (41,1%) 672 (50,0%)

12 (2,8%) 5 (7,4%) 32 (8,3%) 4 (2,8%) 17 (22,1%) 36 (22,1%) 106 (7,9%)

46 (10,9%) 48 (70,6%) 264 (68,4%) 76 (52,4%) 82 (52,2%) 85 (52,1%) 601 (44,8%)

369 (87,2%) 17 (25,0%) 92 (23,8%) 65 (44,8%) 58 (36,9%) 70 (52,1%) 671 (50,0%)

8 (1,9%) 3 (4,4%) 30 (7,8%) 4 (2,8%) 17 (10,8%) 8 (4,9%) 70 (5,2%)

69 (100%) 11 (100%) 86 (100%) 32 (100%) 33 (100%) 20 (100%) 251 (100%) 1594 (100%)

12 (17,4%) 10 (90,9%) 55 (64,0%) 22 (68,8%) 19 (57,6%) 7 (35,0%) 125 (49,8%) 690 (43,3%)

54 (78,3%) 0 (0%) 20 (23,3%) 9 (28,1%) 9 (27,3%) 12 (60,0%) 104 (41,4%) 776 (48,7%)

3 (4,3%) 1 (9,1%) 11 (12,8%) 1 (3,1%) 5 (15,2%) 1 (5,0%) 22 (8,8%) 128 (8,0%)

10 (14,5%) 11 (100%) 54 (62,8%) 20 (62,6%) 22 (66,7%) 8 (40,0%) 125 (49,8%) 726 (45,6%)

57 (82,6%) 0 (0%) 27 (31,4%) 10 (31,3%) 9 (27,3%) 11 (55,0%) 114 (45,4%) 785 (49,3%)

2 (2,9%) 0 (0%) 5 (5,8%) 2 (6,3%) 2 (6,1%) 1 (5,0%) 12 (4,8%) 82 (5,1%)

* Perda de um registro para resumos em congresso, com abordagem sobre a temática violência, pois não foi possível classificá-lo com relação à metodologia de pesquisa utilizada.

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artigos

Já na área de Ciências Sociais, em que as temáticas “masculinidades”, “trabalho” e “violência” detêm a maior produção quer em artigos, quer em resumos, observa-se aquele descompasso nos dois tipos de produção quanto à temática “agravos à saúde”, de modo inverso ao observado na Epidemiologia, sendo a produção em artigos maior que em resumos para essa temática. Esse aspecto diferencial está presente também no total das produções em gênero por área da Saúde Coletiva, pois, na modalidade artigos, por exemplo, a maior parte da produção é em Ciências Sociais (49,8%), ao passo que, em resumos de congressos, a produção passa a ser maior para a Epidemiologia (57,8%), repercutindo no total da produção em gênero por área, estando a Epidemiologia com 48,7%, frente às Ciências Sociais, com 43,3%. Também há impacto na classificação das temáticas nos dois tipos de produção, pois, enquanto, em resumos, as duas primeiras temáticas são, pela ordem, “agravos à saúde” e “sexualidade e reprodução”, na produção em artigos, essa ordem se inverte, sendo a produção em “sexualidade e reprodução” maior que em “agravos à saúde”. Observa-se ainda que, na área de Políticas, a temática com maior presença é a da “sexualidade e reprodução”. Em termos da tendência temporal, há um grande aumento da produção em “sexualidade e reprodução” a partir de 2001, em inversão com “agravos à saúde”, que volta a crescer mais a partir de 2005 (dados não publicados), quando se observa crescimento de novos temas, como saúde do idoso, saúde bucal e saúde mental. Esse grande crescimento da produção de gênero na temática “sexualidade e reprodução” pode ser atribuído à expansão de recursos destinados a programas de pesquisa, intervenção e prevenção da Aids/DST e gravidez na adolescência, na última década, quando também se vê o crescimentos de estudos sobre gênero e trabalho (Araújo, 2009). Outro impulso, observado a partir de 2005, ocorreu no estudo de temas relacionados a violência e saúde (Schraiber, D’Oliveira, Couto, 2006), violência de gênero e, também, homens e masculinidades, temática inexistente em período anterior.

A análise crítica da aplicação do conceito: coerência no uso e sentidos atribuídos O exame epistemológico dos artigos identificou os usos do conceito (aplicação como categoria de análise) e os sentidos (compreensão teórica) atribuídos a gênero nos estudos. Quanto aos usos, levou-se em conta a coerência entre seu uso como pressuposto ou intenção do estudo e a continuidade de desenvolvimento ao longo do estudo. Como já mencionado, foram considerados não coerentes os estudos que assumiram gênero como pressuposto, mas operaram apenas com a variável empírica “sexo” na produção e análise dos dados. Quanto aos sentidos dados ao conceito, nos estudos coerentes e que desenvolveram o conceito ao aplicá-lo nas análises e discussões apresentadas, esse sentido correspondeu à parte da construção de gênero como categoria analítica, quando a análise se restringe a uma descrição (ou comparação) das diferenças sociais e culturais observadas entre os sexos; ou correspondeu à forma completa, tal como construído na teoria feminista de gênero, ou seja, fazendo uso de todo seu potencial teórico-analítico, que inclui as dimensões socioculturais e as desigualdades de poder constitutivas das relações de gênero. Os resultados apresentados na Tabela 4 mostram que 25,1% dos artigos usam gênero como sexo dos indivíduos estudados, o que foi considerado uma não-coerência com a intenção de gênero declarada e valorizada para fins de análise interpretativa. Já os estudos que apresentaram coerência na aplicação analítica do conceito, a maioria da produção em artigos (74,9%), metade deles valeu-se de um sentido parcial de gênero e, outra metade, do sentido completo do conceito, em suas análises. A área das Políticas destaca-se como a que mais aplica o conceito no sentido completo, embora seja a área de menor produção em gênero, ainda que isso ocorra apenas em cerca de 60% da produção na área. A segunda área nessa direção é a das Ciências Sociais. Quanto à metodologia da pesquisa empregada, como seria de se supor, é na pesquisa qualitativa, ou na sua forma combinada com a quantitativa, que o sentido mais completo de gênero apresentou maior ocorrência. Contudo, destaca-se, nas pesquisas qualitativas, uma proporção nada desprezível (45%) de aplicação de gênero no sentido parcial, fato que se repete nas pesquisas quali&quanti.

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Tabela 4. Distribuição dos artigos de periódicos por sentido dado a gênero, segundo as áreas da Saúde Coletiva, metodologia de pesquisa e tema tratado. Brasil, 1990-2008 Sentido de gênero Não coerente Características da produção Área da Saúde Coletiva Ciências Humanas e Sociais Epidemiologia Política Metodologia de pesquisa Qualitativa Quantitativa Quali & Quanti Temática Agravos à Saúde Masculinidades Sexualidade e/ou reprodução Trabalho Violência Outros

Coerente

Sexo n = 63 (25,1%)

Completo n = 93 (37,1%)

Parcial n = 95 (37,8%)

Total n = 251 (100%)

7 (5,6%) 52 (50,0%) 4 (18,2%)

63 (50,4%) 17 (16,3%) 13 (59,1%)

55 (44,0%) 35 (33,7%) 5 (22,7%)

125 (100%) 104 (100%) 22 (100%)

4 (3,0%) 58 (50,9%) 1 (8,3%)

70 (52,0%) 17 (14,9%) 6 (50,0%)

51 (45,0%) 39 (34,2%) 5 (41,7%)

125 (100%) 114 (100%) 12 (100%)

40 (58,0%) 0 (0%) 5 (5,8%) 8 (25,0%) 1 (3,0%) 9 (45,0%)

7 (10,1%) 5 (45,5%) 40 (46,5%) 12 (37,5%) 27 (81,8%) 2 (10,0%)

22 (31,9%) 6 (54,5%) 41 (47,7%) 12 (37,5%) 5 (15,2%) 9 (45,0%)

69 11 86 32 33 20

(100%) (100%) (100%) (100%) (100%) (100%)

Nas temáticas examinadas, “violência” apresenta o maior uso do sentido completo de gênero, embora não atingindo a totalidade da produção nessa temática. Em segundo lugar, aparece “sexualidade e reprodução”, seguida de perto pela temática das “masculinidades”. A maior dificuldade de trabalhar gênero com seu sentido completo apresenta-se na temática “agravos à saúde”, ainda assim, 41% dos estudos conseguem avançar conceitualmente em gênero e 10% chegam ao sentido completo do conceito. A temática “trabalho” também chama a atenção, pois, mesmo sendo uma das primeiras a aderir a gênero, ainda mantém 25% de sua produção sem se valer do conceito nas análises efetuadas, e apenas 37,5% de sua produção com uso do sentido completo de gênero.

Discussão Com relação às características gerais da produção, os resultados confirmam tendências já apontadas em outros estudos. Porém, mais que isso, evidenciam a mudança da perspectiva dos “estudos sobre a mulher” para os “estudos de gênero”. De fato, houve um crescimento significativo da presença de gênero na produção científica em todas as áreas da Saúde Coletiva. Alguns fatores contribuíram para isso, como a expansão de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação na área, e interesses das agências de fomento em pesquisa pelo tema (Fundação Ford, Fundação MacArthur, CNPQ, Ministério da Saúde, Secretaria Especial da Mulher). Esse crescimento expressa a importância que a abordagem adquiriu no campo da Saúde nos últimos anos, embora, na prática, não tenha se traduzido no uso da categoria com todo seu potencial analítico. A análise dos dados mostra que há muitos problemas na operacionalização de gênero como categoria analítica, indicando dificuldades na compreensão do conceito e em sua apropriação para questões do campo da saúde, consequentemente, em sua aplicação. Os resultados indicam que quanto mais interdisciplinar o estudo ou menos voltado a agravos à saúde, maior é a facilidade de traduzir o conceito para o campo da saúde. Essa é uma questão essencial, mas ainda não discutida com maiores detalhes. Deve-se notar, primeiramente, a questão apontada quanto à incoerência do uso do conceito ao longo de todo o estudo apresentado. O que isso significa? Do ponto de vista da classificação utilizada, a “não-coerência” implicou a intenção de usar a perspectiva de gênero, apresentada na construção geral

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artigos

do estudo (Introdução e Justificativa), mas não alcançada na construção de métodos e técnicas para produzir dados ou modalidades de seleção de dados, o que seria central para poder analisá-los da perspectiva de gênero. E isso diz respeito a estudos com base empírica nova ou por dados secundários. O que se quer dizer é que a escolha desses últimos e a das técnicas que produzirão os primeiros deveria pautar-se conceitualmente em gênero. Alguns dos estudos chegam a referir, em suas bibliografias, autores ligados à construção do conceito. Outros não fazem referência a qualquer vinculação teórica, apenas tomam o conceito como algo dado, como se fosse um conceito autoexplicativo, o que, efetivamente, gênero não é. Nestes casos, gênero é reduzido a uma das variáveis do estudo, o que por si só não significa uma perspectiva de análise. Assim, embora referir os sexos dos indivíduos seja a medida básica para contrastar socioculturalmente homens e mulheres, e então também tratar de suas desigualdades de poder, essa medida que torna gênero uma variável empírica, por si só, é insuficiente para a análise de gênero. Além do que, também simplifica muito a identidade masculina e feminina como construção sócio-histórica, tendendo a essencializar tais identificações na aproximação apenas biológica dos indivíduos, e a desqualificar relações de gênero e desigualdades entre indivíduos de mesmo sexo. Da perspectiva epistemológica, a consistência esperada seria a de que gênero fosse compreendido e usado como “categoria analítica histórica”, sentido mais completo do conceito. Só assim os estudos em saúde contribuiriam com o desenvolvimento do significado de gênero em questões próprias ao campo. Qual o significado de seu uso parcial, então? Nesse caso, o que se observa são as dificuldades e imprecisões na aplicação analítica do conceito, o qual esteve contemplado na metodologia do estudo e modalidades de produção de dados. Dentre as inconsistências observadas, uma situação muito frequente foi o destaque, na introdução e/ou na metodologia, da intenção de usar gênero como categoria de análise histórica, inclusive com referência ao conceito de Scott (1986) - que contempla as três dimensões: sociocultural, relacional e poder -, e, na análise, considerar apenas o seu sentido sociocultural, sem qualquer referência às desigualdades de poder. Outra situação também muito comum foi a referência às desigualdades de gênero e poder na introdução do trabalho, mas, na análise dos dados, o uso de gênero apenas como categoria descritiva das diferenças sociais e culturais percebidas entre homens e mulheres. É importante ressaltar que as inconsistências epistemológicas e metodológicas encontradas variam de acordo com a área dos estudos, como se observou nos dados apresentados. Essas diferenças apontam dificuldades maiores ou menores para a transcrição do conceito, formulado no campo das Ciências Sociais, para o campo da Saúde. Isso levaria à indagação se a maior coerência e consistência entre os usos e sentidos de gênero, observada nos estudos da área de Políticas, seguida das Ciências Humanas e Sociais, completam seu ciclo analítico e explicativo até as questões próprias da saúde, ou não. Afinal os estudos sobre, por exemplo, violência ou trabalho, ou mesmo masculinidades, podem ter focalizado substantivamente questões sociais e culturais, e terem ficado nesse plano mais geral, pouco atingindo diretamente questões de saúde-adoecimento ou as de seu cuidado e atenção (assistência). O contraponto - que de certo modo indicaria ser essa primeira problemática uma questão no campo - é dado pelo movimento contrário observado na temática “agravos à Saúde”, a qual certamente focaliza questões da saúde-adoecimento e mostra maior dificuldade de se valer do conceito de gênero. A dificuldade, portanto, não está no reconhecimento da importância da perspectiva de gênero, mas na sua aplicação no interior da prática científico-tecnológica. Adicionalmente, quanto às análises de gênero desenvolvidas nos artigos examinados, há também uma grande variedade. Boa parte delas se baseia na perspectiva feminista com referência à literatura da área (Saffioti, 2001; Kergoat, 1996; Louro, 1996; Butler, 1990; Scott, 1986). Esta perspectiva é a mais precisa conceitualmente, uma vez que foi no contexto feminista que “gênero” se desenvolveu como categoria de análise. No entanto, há estudos que, mesmo fazendo referência à perspectiva feminista, nem sempre utilizam o conceito em todo o seu potencial analítico. Muitos estudos adotam ‘gênero’ de forma pouco discriminada, tanto definindo as relações sociais entre os sexos, quanto como um sinônimo, “politicamente correto”, da palavra “sexo”. Outros, que enfatizam a “perspectiva relacional de gênero”, têm, muitas vezes, um caráter despolitizador por ocultarem a subordinação feminina e tratarem apenas do contraste das diferenças. A perspectiva mais 815


PENETRAÇÃO DA PERSPECTIVA DE GÊNERO ...

crítica, portanto, mostrou-se a mais difícil de ser realizada nos estudos, mesmo quando em produção das áreas de conhecimento mais ‘similares e próximas’ à da construção do conceito. Tendo em vista o conjunto da produção examinada, pode-se dizer, então, que apesar do aumento da penetração da perspectiva de gênero na Saúde Coletiva, grande parte dos estudos não aprofunda a análise de gênero como um dos principais eixos das desigualdades sociais em saúde. Essa dificuldade não é uma característica da produção brasileira. Foi observada, também, em outros contextos, conforme apontam Borell e Artazcoz (2007) em estudo sobre a investigação em gênero e saúde na Espanha. Por fim, pode-se dizer que, apesar de todos os problemas identificados na inclusão de gênero na saúde, um passo fundante foi dado na direção da transversalidade de gênero como componente interpretativo e explicativo das questões da saúde, já que não se encontra ausente de nenhuma das áreas da Saúde Coletiva e de nenhuma das possibilidades metodológicas de seus estudos.

Colaboradores Maria de Fatima Araujo e Lilia Blima Schraiber participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e revisão do texto. Diane D. Cohen participou da produção dos dados, análise e redação final. Referências AQUINO, E.M.L. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Rev. Saude Publica, v.40, n.esp., p.122-32, 2006. _______. A questão de gênero em políticas públicas de saúde: situação atual e perspectivas. In: SILVA, A.L.; LAGO, M.C.S.; RAMOS, T.R.O. (Orgs.). Falas de gênero. Ilha de Santa Catarina: Mulheres, 1999. p.161-72. AQUINO, E.M.L. et al. Gênero, sexualidade e saúde reprodutiva: a constituição de um novo campo na Saúde Coletiva. Cad. Saude Publica, v.19, supl.2, p.198-9, 2003. ARAÚJO, M.F. Análise crítica da produção científica brasileira sobre gênero: interface com a saúde coletiva. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2009. (Relatório final de pesquisa em pós-doutoramento). ARILHA, M. Homens, saúde reprodutiva e gênero: o desafio da inclusão. In: GIFFIN, K.; COSTA, S.H. (Orgs.). Questões da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p.455-67. BARBIERI, T. Sobre la categoria género: una introducción teorico-metodologica. Debates Sociol., n.18, p.2-19, 1993. BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. BORELL, C.; ARTAZCOZ, L. Investigación en género y salud. 5.ed. Madrid: OSM, 2007. BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.C.; PASSERON, J.C. A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. Petrópolis: Vozes, 1999. BRUYNE, P.; HERMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da pesquisa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. BUTLER, J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990. CAMPOS, G.W.S. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas. Cienc. Saude Colet., v.5, n.2, p.219-30, 2000.

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ARAÚJO, M.F.; SCHRAIBER, L.B.; COHEN, D.D. et al. La penetración de la perspectiva de género y análisis crítico de la evolución del concepto en la producción científica en Salud Pública. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.805-18, jul./set. 2011. Se estudia la producción científica brasileña basada en género en Salud Colectiva entre 1990-2008. Un total de 1.343 resúmenes de conferencias y 251 artículos publicados fueron examinados según distribución temporal, autoría, enfoque metodológico, áreas de conocimiento y temas planteados. Los artículos fueron también analizados por la coherencia epistemológica entre la intención y el uso real de género en el estudio de la coherencia y la aplicación metodológica del concepto en términos de sentido total o parcial dado a género por su construcción teórica. Los resultados muestran que, aun que com la penetración cada vez mayor, 25,1% de los estudios de género se reducen a sexo, un uso considerado no coherente, 37,8% tienen uso coherente de género, pero con sentido parcial, y sólo 37,1% ledierón sentido completo. Se concluye que el género tiene una presencia significativa enel campo, pero su utilización es poco precisa metodológicamente y abajo de su potencial analítico.

Palabras clave: Género y salud. Salud pública. Produción científica. Recebido em 06/11/10. Aprovado em 27/01/11.

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artigos

A notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes: uma comparação entre os dispositivos americanos e brasileiros Jeanne de Souza Lima1 Suely Ferreira Deslandes2

LIMA, J.S.; DESLANDES, S.F. Mandatory notification of sexual abuse against children and adolescents: a comparison between American and Brazilian mechanisms. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.819-31, jul./set. 2011. Mandatory notification of cases of violence is an instrument capable of mobilizing a network of protection for children and adolescents and constituting an information system aimed at planning public policies to deal with such cases. This paper aimed to: (a) describe the historical context of combating sexual violence against children and adolescents and the notification process in Brazil and the United States; and (b) establish parameters for comparison between Brazilian and American realities. For these aims, a document investigation on laws, ordinances and regulations relating to mandatory notification of sexual abuse against children and adolescents was conducted, complemented by national and international literature on this matter. It could be seen that while the notification process in the United States is detailed, with distribution across the states, studies in Brazil still require further detailing on this issue, especially with regard to regional initiatives.

Keywords: Mandatory reporting. Child sexual abuse. Sexual violence against children and adolescents.

A notificação compulsória dos casos de violência é um instrumento capaz de mobilizar a rede de proteção às crianças e adolescentes e de compor o sistema de informação, visando ao planejamento de políticas públicas para seu enfrentamento. O trabalho tem como objetivos: (a) caracterizar o contexto histórico de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, e o seu processo de notificação, no Brasil e nos Estados Unidos (EUA); (b) estabelecer parâmetros de comparação entre a realidade brasileira e americana. Para tanto, realizou-se uma pesquisa documental de leis, portarias e normativas sobre a notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes, complementadas pela literatura nacional e internacional acerca da questão. Pode-se observar que, enquanto nos EUA o processo de notificação é detalhado e distribuído por seus estados, no Brasil os estudos ainda requerem maior aprofundamento sobre a temática, sobretudo no que diz respeito às iniciativas regionais.

Palavras-chave: Notificação de abuso. Maus-tratos sexuais infantis. Violência sexual contra crianças e adolescentes.

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Elaborado com base em pesquisa documental e bibliográfica resultante de tese de doutorado em andamento (Lima, 2008-2012). 1 Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil, Rio de Janeiro. Av. Afonso Cavalanti 455, 801, Cidade Nova. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20.211-110. jeanne.limas@gmail.com 2 Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz. *

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Introdução A discussão em torno do abuso sexual de crianças e adolescentes inicia-se na década de 1970 nos EUA e na Europa Central a partir dos anos de 1980. No Brasil, foi a partir da segunda metade dos anos de 1980 que essa problemática começou a preocupar defensores de direitos humanos e trabalhadores na área de atenção à criança e ao adolescente, ligados, sobretudo, a organizações não governamentais e aos meios acadêmicos. Neste sentido, o repúdio à violência sexual reflete, de um lado, as mudanças acerca das concepções que as sociedades construíram da sexualidade humana e, de outro, a posição e o status da criança nas sociedades (Azevedo, Guerra, 2000). Com a institucionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente é constituído um novo paradigma de proteção integral, determinando o reconhecimento de crianças e adolescentes brasileiros enquanto sujeitos de direitos, concebidos na condição de pessoas em desenvolvimento. Com o advento dessa Lei, prevenir a ameaça ou violação de direitos contra crianças e adolescentes se configura um dever de cada um e de toda a sociedade de modo geral. No entanto é inegável a posição privilegiada de algumas categorias profissionais, especialmente da educação e da saúde, em razão da sua atuação cotidiana com esse segmento (Bezerra, 2004). A notificação compulsória da violência pela saúde pública demonstra o compromisso legal e assume sua responsabilidade na proteção integral de crianças e adolescentes, sendo compreendida como um instrumento disparador de ações, permitindo adotar medidas imediatas para interferir no ciclo da violência. A atuação deve se dar de forma diferenciada, em conjunto com a rede de proteção, com definição de atribuições no âmbito da prevenção, do atendimento e do acompanhamento dos casos (Ferreira, 2002; Gonçalves, Ferreira, 2002). Observa-se que a notificação da violência contra crianças e adolescentes é recente na realidade brasileira. Pouco se conhece o contexto político e institucional e os padrões adotados para sua efetiva operacionalização. Tampouco se conhece amplamente sobre seus fluxos e qual a mobilização de recursos efetivamente desencadeados pela notificação compulsória realizada pelos profissionais de saúde. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivos caracterizar e comparar o processo de notificação das violências contra crianças e adolescentes, com foco no abuso sexual, nas sociedades brasileira e americana. O confronto da experiência brasileira com a realidade dos EUA, uma das pioneiras no mundo, visa destacar os desafios, as potencialidades de aprendizado, e buscar estratégias para melhor implementação desta prática em nosso país.

Material e método Para este estudo, foi realizada uma pesquisa documental (Gil, 1991) de leis, portarias e normativas sobre a notificação compulsória das violências contra crianças e adolescentes, com foco no abuso sexual. O acervo dos documentos foi complementado pela pesquisa bibliográfica (Marconi, Lakatos, 2009) da literatura nacional e internacional acerca da questão. As fontes de pesquisa foram: 1 documentos disponíveis nos sites oficiais do Brasil e EUA (descritos a seguir); 2 artigos científicos publicados em periódicos de saúde pública e disponíveis nas bases de dados Scielo (www.scielo.org) e Bireme (www.bireme.br/php/index.php), que correspondem às Ciências da Saúde em Geral (Lilacs, Medline, Cochrane, Scielo, áreas especializadas, dentre outras) e portais de periódicos SCOPUS (www.scopus.com/home.url) e ISI (www.isi.com); 3 portais Teses e dissertações em Saúde Pública (www.thesis.cict.fiocruz.br) e Teses Fundação Oswaldo Cruz (www.teses.cict.fiocruz.br). Foi feita ainda a consulta no buscador de informação científica SCIRUS (www.scirus.com). O período de busca correspondeu aos últimos dez anos. Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) utilizados para a consulta em bases bibliográficas foram: notificação compulsória, abuso sexual contra crianças e adolescentes, sistemas de informação e suas expressões equivalentes. Os portais ISI e SCOPUS foram consultados com os conectores de busca: notification OR subnotification AND abuse sexual AND information systems. Foram levantados 184 documentos, selecionados 27 artigos, uma dissertação e uma tese. Os artigos que não se referiam às 820

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realidades brasileira e americana, bem como os textos que se distanciavam do objeto de estudo foram excluídos da pesquisa. Para o acesso aos documentos e informações oficiais dos EUA foram consultados os sites governamentais: Child Welfare Information Gateway (www.childwelfare.gov), Centers for Disease Control and Prevention (www.cdc.gov), Department of Health and Human Services (www.hhs.gov) e o Department of Justice (www.justice.gov). As informações sobre a rede de apoio às situações de violência sexual foram obtidas pelos sites de organizações não governamentais: Rape, Abuse and Incest National Network Hotline (www.rainn.org); National Sexual Violence Resource Center (www.nsvrc.org); Violence Against Women Network (www.vawnet.org); Prevention Connection (www.preventconnect.org); Stop it Now (www.stopitnow.org); Rape Crisis Center (http:// rapecrisis.com/index.php); Sexual Assault Centers (http://www.sacenter.org/index.php). Para se obterem informações sobre as leis e os documentos brasileiros, foram acessados os sites governamentais do Ministério da Saúde (www.saude.gov.br) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos (http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/spdca/). Buscou-se, ainda, informações sobre a rede de apoio, artigos e publicações disponíveis em sites de organizações não governamentais, sendo estes: o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes – Cecria (http://www.cecria.org.br) e o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância – CRAMI (http://www.crami.org.br/). A análise dos documentos oficiais pautou-se no seguinte roteiro investigativo: data de institucionalização da notificação compulsória da violência sexual contra crianças e adolescentes; descrição das formas de notificação nos dois países; principais diretrizes para sua utilização; categorias profissionais mais envolvidas neste processo; utilização dos registros de notificação como um componente do sistema de informação, visando à formulação de políticas públicas para o enfrentamento do abuso sexual contra crianças e adolescentes. A análise percorreu as seguintes etapas: classificação do tipo de texto (classe de documento/artigo); leitura e fichamento dos textos; categorização temática segundo as categorias previamente fixadas no roteiro investigativo e aquelas que emergiram do acervo (Minayo, 2008); descrição e análise dos conteúdos sobre a realidade nacional e americana separadamente; análise comparativa. Foram estabelecidos alguns parâmetros para a comparação do processo de notificação compulsória da violência sexual contra crianças e adolescentes entre o Brasil e os EUA: contexto político e institucional (marcos legais), existência de mecanismos de formalização da notificação; práticas adotadas em função da notificação; existência de protocolos específicos para a violência sexual associados à notificação.

Resultados A visibilidade do abuso sexual: a experiência pioneira americana A experiência dos EUA é reconhecida como uma iniciativa estatal pioneira em regular ações públicas para o enfrentamento da violência intrafamiliar (Finkelhor, 1979). Foram criadas, na década de 1970, várias instituições e programas destinados ao enfrentamento da negligência e do abuso sexual contra crianças e adolescentes: o National Center for Child Abuse and Neglect e o Center for the Prevention and Control of Rape, ambos de Washington e filiados ao Department of Health Education and Welfare (www.hhs.gov); já o National Law Enforcement Administration constituiu-se um ramo do United States Department of Justice em Washigton (www.justice.gov). O Child Welfare Information Gateway foi criado em 1974, em Washington. É um serviço do Departamento de Saúde dos EUA que disponibiliza publicações, sites, bancos de dados e de pesquisa. O material cobre uma gama de temas sobre a notificação dos maus-tratos contra crianças nos estados americanos; a prevenção das situações de abuso e negligência contra crianças e o cuidado com o seu bem-estar; a adoção; além da divulgação das ações oferecidas nos estados americanos para os casos de abuso e negligência contra crianças (www.childwelfare.gov). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A preocupação com o abuso sexual tomou tão grande vulto nos Estados Unidos que a Divisão de Prevenção da Violência do Center for Disease Control and Prevention (CDC) propôs que este fosse considerado um problema de saúde pública, devido à alta incidência sobre as crianças no referido país, às implicações imediatas e futuras para a saúde das vítimas, e pela possibilidade da replicação do fenômeno em futuras gerações (Alvarez et al., 2005). Ao se tomar o abuso sexual como um problema de saúde pública, pode-se aumentar a atenção para o problema, acelerar esforços para compreendê-lo, ampliar o espectro das estratégias para enfrentá-lo, e estabelecer ações de prevenção (Basile, Saltzman, 2002). No final da década de 1970, qualquer pessoa, em qualquer localidade do país, podia obter informações de que necessitasse sobre o problema do abuso sexual doméstico de crianças e adolescentes, sem ter de se identificar, bastando telefonar para a instituição local de proteção à família, ou à criança, ou a um centro de aconselhamento familiar (Armstrong, 1978). Atualmente, cada estado americano tem, pelo menos, uma agência oficial autorizada a investigar casos suspeitos, e toda cidade oferece algum tipo de serviço de proteção à criança. O Rape Crisis Center - RCC (www.rapecrisis.com/index.php) foi fundado em 1975, voltado para a prestação de serviços às vítimas de violência sexual e suas famílias. O Centro desenvolve ainda estratégias de prevenção primárias voltadas para estudantes. O RCC possui serviço de aconselhamento, através de telefone, que funciona 24 horas. A linha direta assegura que as vítimas da violência sexual possam falar sobre a sua problemática e receber orientação sobre os serviços de apoio. O Sexual Assault Centers (www.sacenter.org/index.php) foi criado em 1978, visando proporcionar tratamento para crianças, adultos e famílias afetadas por este problema, através de serviços de aconselhamento e educação. Os Rape Crisis Center e Sexual Assault Centers surgiram independentemente ou dentro de organizações feministas, de unidades de enfrentamento ao crime sexual (estatais e municipais) e hospitais. Desde então, inúmeros estudos foram desenvolvidos para: dar visibilidade ao fenômeno; evidenciar a natureza complexa do problema, e demonstrar as graves consequências para as vítimas (Douglas, Finkelhor, 2005; Finkelhor, 1994; Finkelhor, 1984; Finkelhor, 1979).

A notificação compulsória do abuso sexual contra crianças e adolescentes no contexto americano Desde o final da década de 1970, todos os estados americanos já haviam estabelecido a notificação compulsória dos casos de violência contra crianças, no entanto essa ação tinha ampla variação no país. Médicos, assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos, entre outros profissionais, em oito estados americanos, estavam obrigados a notificar o abuso quando dele tomassem conhecimento. Em sua maioria, os casos deveriam ser notificados ao departamento de Serviços Sociais. Em alguns estados, como o de Maryland, podia ser, alternativamente, à Polícia ou ao Departamento de Serviços Sociais. Em outros, como o da Califórnia, era obrigatório notificar à polícia (Brieland, Lemmon, 1977). Atualmente, todos os cinquenta estados e territórios americanos possuem leis e políticas que especificam os procedimentos para notificação compulsória de casos suspeitos de abuso sexual contra crianças. O relatório deve ser feito de forma imediata em caso suspeito ou confirmado (U.S., 2008a). Os padrões para se fazer uma notificação variam de estado para estado. Em todas as jurisdições, o relatório inicial pode ser feito por via oral, através dos serviços de proteção à criança (Child Protective Services - CPS), ou a uma agência de aplicação da lei. O propósito da notificação/relato oral é facilitar a proteção imediata das crianças e prevenir possíveis agravos de saúde. Em vinte estados, além dos territórios de Samoa Americana, Guam e Porto Rico, a notificação compulsória deve ser feita por escrito após o relato oral. Em oito estados, Distrito da Columbia e Ilhas Virgens, o relatório por escrito só pode ser requisitado pelo departamento ou agência que recebeu a notificação inicial (U.S., 2009). A maioria dos estados oferece números de telefone gratuitos para receber as denúncias de abuso ou negligência. Os relatos podem ser feitos anonimamente para a maioria desses números. Vários estados e territórios exigem do notificante fornecer o nome e o contato, quer no momento inicial do relato oral ou como parte de um relatório escrito. Em Wyoming, o(a) notificante não tem de fornecer a sua identidade como parte do relatório escrito, mas se a pessoa tem provas, como vídeos, fotografias ou raios-x da criança, o seu nome deve ser fornecido (U.S., 2009). 822

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Todas as jurisdições têm disposições legais para manter a confidencialidade dos registros de abuso e negligência. A identidade do(a) notificante é protegida contra a divulgação em 39 estados e cinco territórios americanos. Essa proteção é mantida mesmo quando outras informações do relatório são divulgadas. A liberação da identidade do/a notificante é permitida em algumas circunstâncias específicas e ordenada pelo tribunal, tais como: quando há uma razão convincente para sua revelação ou sob uma constatação de que o(a) notificante fez um relatório falso. Em algumas jurisdições, o(a) notificante pode renunciar à confidencialidade e autorizar a liberação de seu nome (U.S., 2008e). Em 31 estados, além dos territórios de Samoa Americana, Guam, o Norte das Ilhas Mariana e Porto Rico, existem procedimentos específicos que devem ser seguidos em casos de morte suspeita de crianças, especialmente por exposição a substância química. Em geral, os estatutos orientam que a notificação compulsória deve ser feita a um legista. Para os Estados que não possuem esta especificação, serão adotados os procedimentos padrões de notificação. O Federal Child Abuse Prevention and Treatment Act (CAPTA) obriga os estados a adotarem políticas e procedimentos para atenderem às crianças expostas a substâncias químicas, especialmente em casos de abuso ou negligência (U.S., 2008d). De acordo com as informações do documento Mandatory Reporters of Child Abuse and Neglect: Summary of States Laws (U.S., 2008a), quase todos os estados americanos possuem legislação específica designando as profissões cujos membros são obrigados a notificar casos de maus-tratos, sendo os mais comuns: assistentes sociais; professores e outros responsáveis pelo estabelecimento escolar; médicos, profissionais de saúde mental e outros trabalhadores responsáveis pelo cuidado de saúde; prestadores de cuidados infantis; médicos legistas. Somente os estados de Nova Jersey e Wyoming exigem que todas as pessoas notifiquem os casos de maus-tratos contra criança, sem especificar a profissão. Outras profissões frequentemente são requisitadas a notificarem casos de maus-tratos contra crianças, como as ligadas aos filmes comerciais e fotografias. Em 26 estados, os membros do clero, os praticantes da Ciência Cristã ou curandeiros religiosos são incluídos entre os profissionais obrigados a notificar casos suspeitos de maus-tratos. Na maioria das instâncias, eles são considerados como um tipo de provedor de cuidados de saúde (U.S., 2008c). Cerca de 40 estados, o Distrito de Colúmbia, Samoa Americana, Guam e Porto Rico possuem centrais de registro para investigação dos casos de abuso e negligência contra crianças e adolescentes. As centrais de registro são normalmente utilizadas para auxiliar as agências de serviços sociais na investigação, no acompanhamento e na prevenção de casos de abuso, além de manterem as informações estatísticas para a equipe e fundamentarem ações específicas para o enfrentamento da violência contra crianças (U.S., 2008b). Em vários estados, os registros são usados para resguardar as pessoas que serão responsáveis pelo cuidado das crianças. A maior parte dos estados requisita uma verificação na central de registros do estado ou território, como parte da investigação de antecedentes para os candidatos a pais adotivos ou os indivíduos que desejam se tornar prestadores de cuidados de crianças ou adolescentes. A informação é disponibilizada ao setor de cuidados infantis, às escolas e à rede de saúde (U.S., 2008b). O tipo de informação contida nas centrais de registro varia de estado para estado, mas, geralmente, inclui: o nome da criança e o endereço, o nome da mãe, do pai ou guardião/responsável, o nome dos irmãos, a idade da criança, as condições do domicílio onde a(s) criança(s) reside(m), a natureza dos danos causados à criança; o nome do suposto autor e as conclusões das investigações. Alguns estados mantêm todas as denúncias de abuso e negligência nos seus registros centrais, outros mantêm apenas os relatórios. O acesso às informações mantidas nos cadastros ou registros e o tempo de permanência das informações também variam entre os estados (U.S., 2008b). As leis e políticas em todas as jurisdições especificam procedimentos para dar respostas iniciais às notificações encaminhadas às agências. O propósito final do sistema de notificação é garantir a segurança e o bem-estar da criança. Todos os estados exigem que os serviços de proteção à criança iniciem a investigação em até 72 horas. Em grande parte dos estados, se exige que as investigações se iniciem imediatamente, em menos de duas horas e não mais de 24 horas quando houver motivos razoáveis para acreditar que uma criança está em perigo iminente. As abordagens adotadas para responder as notificações variam de estado para estado, mas quase todos utilizam um tipo de avaliação de segurança e gravidade que determina quais as que requerem respostas imediatas (U.S., 2009). 823


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Os estados de Arizona, Delaware, Kentucky, Louisiana, Minnesota, Nevada, Oklahoma, Texas, Vermont, Virginia e Wyoming usam diferentes sistemas de respostas; os casos mais graves são designados para serem investigados policialmente, e os casos menos graves para atendimento e avaliação das famílias. Quase todos os estados categorizam os relatórios de acordo com a gravidade dos casos de violência contra crianças, e atribuem respostas às situações de violência em momentos diferenciados (U.S., 2009). As investigações podem ser conduzidas pelos centros de proteção à criança, por uma agência de aplicação da lei, ou por ambas as agências; as avaliações da família são conduzidas pelos serviços de proteção à criança. Os casos que envolvam abuso físico ou sexual ou conduta criminosa podem ser investigados por uma agência de aplicação da lei em, aproximadamente, 15 estados e nas Ilhas Virgens. Em nove estados, os relatórios são encaminhados para as agências de aplicação da lei quando o provável autor da violência é uma pessoa diferente dos pais ou de outros cuidadores. A maioria dos estados também exige que as informações sejam cruzadas entre as entidades profissionais. Geralmente, os relatórios são compartilhados entre as agências de serviços sociais, as agências de aplicação da lei e o Ministério Público (U.S., 2009). Todos os estados americanos, o Distrito da Columbia e o governo federal possuem registros de atos sexuais criminais conhecidos como Leis de Megan (Megan´s Laws). Estas leis foram denominadas após a morte de Megan Kanka, uma menina de sete anos que foi violentada e assassinada, em 1994, por um vizinho com histórico de condenações anteriores por delitos sexuais contra crianças, cujo antecedente criminal era desconhecido pela família da criança (Kamoie et al., 2003). Nesse sentido, os estados são obrigados a publicar em seus registros on-line, com acesso fácil e imediato, informações sobre os agressores na internet, na imprensa, em panfletos disponíveis ao público, nas reuniões de bairro. O propósito afirmado é proteger o público dos potenciais danos futuros que podem ser causados pelo agressor (Kamoie et al., 2003; Myers, 1996).

A visibilidade do abuso sexual na sociedade brasileira A partir dos anos de 1970, emerge, no cenário brasileiro, a inclusão de demandas sociais, até então inexistente, como ponto de pauta dos movimentos sociais, ampliando reivindicações para além da esfera capital/trabalho. Essas demandas são reivindicadas por novos atores sociais, representados pelo Movimento de Reforma Sanitária, pelo Movimento Feminista, pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), pela Pastoral do Menor, pelas Entidades de Direitos Humanos, Organizações Não Governamentais (ONG), entre outros (Sanchez, Minayo, 2004). Estes atores sociais se envolveram com processos mobilizatórios internacional e nacional para estabelecerem um novo paradigma de atenção à infância e adolescência: o da proteção integral. Nesta lógica, no campo da saúde, foram criados, pioneiramente, pela sociedade civil, alguns serviços de atendimento psicossocial às crianças e adolescentes vítimas de violência: o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância (CRAMI), datado de 1985, na cidade de Campinas em São Paulo; e a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), criada em 1988, na cidade do Rio de Janeiro - tendo como objetivos atender crianças e adolescentes em situação de violência doméstica, exploração sexual e no trabalho, e estabelecer ações de prevenção (Lins, 2008). Os profissionais de saúde, em especial os pediatras, foram responsáveis, em grande parte, por denunciar as situações de violência contra crianças e adolescentes que chegavam às unidades de saúde. Nesse sentido, várias ações foram estabelecidas para a assistência às vítimas, que contribuíram para o aumento da visibilidade dessas situações, tais como capacitações e a elaboração do Guia de Atuação frente a maus-tratos na Infância e na Adolescência, contendo orientações para pediatras e demais profissionais que trabalham com crianças e adolescentes (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2005). Foi somente no final dos anos de 1990, que o Ministério da Saúde, por meio de pressão do movimento feminista e de entidades nacionais e internacionais ligadas à garantia dos direitos humanos, implementou políticas e normatizou ações de prevenção e tratamento dos agravos decorrentes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. A Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, elaborada em 1998 e atualizada em 824

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2005, pela área técnica de Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, busca organizar a assistência nos serviços públicos de saúde, normatiza o atendimento clínico, os cuidados médicos e de enfermagem, a coleta de material para identificação do agressor, a anticoncepção, a quimioprofilaxia das DST/HIV/Aids, os procedimentos para interrupção da gravidez, além do apoio psicológico e social (Brasil, 2005). Outros avanços podem ser observados na atenção às crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. É importante acrescentar o lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, em 2000. Vale destacar que o Estado do Rio de Janeiro estabelece seu Plano de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes em 2004. No entanto vários estados brasileiros ainda não formularam seus documentos, o que impede o estabelecimento de ações articuladas que permitiriam a intervenção técnica, política e financeira para o enfrentamento da violência sexual; e, mesmo os estados que possuem o referido documento, ainda aguardam que os municípios formulem seus respectivos planos e se comprometam com o enfrentamento da violência sexual, como é o caso do município do Rio de Janeiro, que até a presente data não o oficializou. Todos esses passos citados são importantes para a legitimação da política de enfrentamento da violência sexual, embora não sejam suficientes, pois podem se restringir, apenas, a formas institucionalizadas de tratar o problema, “confinando-o nos tentáculos da burocracia” em lugar de tornálo uma questão de debate público e de ações efetivas (Minayo, 2006, p.64).

O contexto brasileiro para a notificação da violência sexual contra crianças e adolescentes Vale destacar que, até o final dos anos de 1990, não existia um instrumento que pudesse servir de base de dados para dar visibilidade às situações de violência contra as crianças e adolescentes e, consequentemente, não se dispunha de maior planejamento para o estabelecimento de ações para o enfrentamento dessa problemática. As poucas fontes de dados disponíveis se referiam às informações coletadas nos serviços que atendiam crianças e adolescentes nesta situação, como: o CRAMI-Campinas, o CRAMI do ABCD, a ABRAPIA no Rio de Janeiro e, posteriormente, o Programa de Atenção à Vítima de Abuso Sexual (PAVAS) e o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), ambos vinculados à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, entre outros (FrançaJunior, 2003). A obrigatoriedade de comunicação ao Conselho Tutelar, nos casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos na respectiva localidade, é prevista no ECA, através do artigo 13. Observa-se que o tempo levado para institucionalização da notificação compulsória varia de acordo com cada realidade, e seu processo será marcado pela compreensão dos profissionais e gestores envolvidos acerca dessa problemática e de suas repercussões para a saúde pública, os recursos materiais e humanos disponíveis, a rede de atendimento e o investimento orçamentário (Brasil, 2008). A Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ), por exemplo, implantou, em 1996, a ficha de notificação compulsória de casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos contra crianças e adolescentes, com o propósito de atuar, em parceria com os Conselhos Tutelares e demais órgãos de apoio, atendendo a observância dos preceitos legais contidos no ECA. No estado do Rio de Janeiro, a notificação de maustratos contra crianças e adolescentes foi instituída pela Secretaria de Estado de Saúde em 1999, através da Resolução nº 1.354/1999. Somente em 2001, o Ministério da Saúde institucionalizou a notificação compulsória de maus-tratos contra crianças e adolescentes, atendidos no Sistema Único de Saúde, através da Portaria Nº 1968 - MS/ GM de 26/10/2001. Esta apoia-se no Art. 87, inciso II, da Constituição Federal; no Capítulo I, do Título II da Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990, em sua determinação de que casos suspeitos ou confirmados deste agravo deverão ser comunicados ao Conselho Tutelar, prevendo penalidade para médico e responsável por estabelecimento de saúde que não o realizem; e nos termos da Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes e Violências, em sua diretriz sobre o monitoramento das violências (Brasil, 2004, 2002, 2001a, 2001b). A normatização, no setor saúde, da comunicação ao Conselho Tutelar padronizou o instrumento a ser utilizado em todo território nacional, ampliou a obrigatoriedade a todos os profissionais no âmbito do COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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SUS e estabeleceu o fluxo para a ficha no âmbito da saúde. Segundo a Portaria MS/GM no 1.968/2001, o profissional de saúde deverá preencher a ficha em duas vias, sendo uma delas encaminhada ao Conselho Tutelar da área de moradia da criança ou adolescente atendido, e a segunda à Secretaria Municipal de Saúde, que deverá enviar, posteriormente, à Secretaria Estadual de Saúde (Brasil, 2001a). Ao longo dos últimos vinte anos, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o setor saúde, através de sua função estratégica na rede de proteção de criança e adolescente, tem desempenhado papel fundamental, não só na prevenção, detecção e atenção às crianças e adolescentes em situação de violência, mas na construção de informação sobre este fenômeno. O Ministério da Saúde vem desenvolvendo e aperfeiçoando os sistemas nacionais de informações existentes que permitem o monitoramento das situações para fins de vigilância epidemiológica. Este monitoramento é realizado por meio da análise dos dados da declaração de óbito e da autorização de internação em hospitais públicos, fornecidos, respectivamente, pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), constituindo importante ferramenta para o conhecimento de parte considerável das situações de violência no país. Os dados referentes a esses sistemas estão disponíveis na internet e têm auxiliado o trabalho dos gestores e profissionais para a tomada de decisões e na melhoria dos serviços oferecidos. Considerando as limitações do SIM e SIH/SUS em descrever as características apenas dos casos violentos cujo desfecho tenha sido o óbito ou a internação, respectivamente, o Ministério da Saúde implantou, em 2006, o sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com a finalidade de obter dados e divulgar as informações sobre violências e acidentes, o que permitirá conhecer a magnitude desses graves problemas de saúde. O sistema VIVA foi estruturado em dois componentes: 1) vigilância contínua de violência doméstica, sexual e/outras violências interpessoais e autoprovocadas (VIVA contínuo), implantada em serviços de referência para as violências; e 2) vigilância sentinela de violências e acidentes em emergências hospitalares (VIVA sentinela). A vigilância epidemiológica de violências e acidentes vem complementar as análises epidemiológicas já realizadas com os dados dos sistemas de mortalidade e de morbidade hospitalar (Brasil, 2009). Devido às suas especificidades no que se refere ao caráter compulsório das notificações de violências contra crianças, adolescentes, mulheres e pessoas idosas, e no sentido de viabilizar a articulação e integração com a rede de atenção e proteção social às vítimas das violências, a coleta de dados se torna universal e contínua e passa a integrar o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), permitindo sua consolidação em todo o território brasileiro. Deste modo, a partir de 2009, o componente de vigilância contínua do sistema VIVA foi incorporado ao Sinan Net, adequando-se às suas normas especificas, no que diz respeito à padronização de coleta e envio de dados (Brasil, 2009). Cabe destacar que a notificação compulsória, encaminhada para o Conselho Tutelar, das situações de violência contra crianças e adolescentes atenderia ao primordial propósito de acionar a rede de proteção social, a fim de cessar as formas de abuso e restituir seus direitos. Por sua vez, a notificação no âmbito do setor Saúde permite a análise epidemiológica dos casos, fornecendo subsídios para a organização dos serviços e a formulação de políticas públicas de saúde. Trata-se de propósitos distintos que se complementam no enfrentamento das violências contra a infância e adolescência.

Discussão EUA e Brasil: alguns parâmetros de comparação A notificação da violência contra crianças e adolescentes, sobretudo o abuso sexual, e sua institucionalização, depende primeiramente de um conjunto de ações de ordem legal, política, cultural, ética e teórica. No campo político, tanto nos EUA como no Brasil estiveram presentes os movimentos sociais representados, especialmente, pelo Movimento Feminista; entretanto há diferença no tempo de inclusão da referida problemática na agenda da política pública. Como refere Minayo (2006), o reconhecimento da violência na pauta da saúde no Brasil vem se dando de forma “fragmentada, lenta, intermitente, mas progressiva” (Minayo, 2006, p.53). 826

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Foi possível observar que, em ambos os contextos, há uma legislação que obriga os profissionais a notificarem casos suspeitos ou confirmados de negligência e abuso contra crianças. Em vários estados americanos foram criadas legislações que obrigam a comunidade religiosa a notificar casos de violência contra crianças dos quais tomem conhecimento. Os professores e a comunidade escolar foram citados como importantes notificadores nos estados americanos (Smith, Lambie, 2005; Kenny, 2004). Há uma definição no calendário escolar, especialmente nos cursos universitários, do mês de conscientização do abuso sexual, com a veiculação de informações e da rede de apoio. Diferentemente da realidade brasileira, onde se observa que a comunidade escolar apresenta dificuldades e resistência para a notificação da violência contra crianças e adolescentes, sendo esta realidade um campo fértil para investigação e pesquisa. Em ambos os contextos, foram observados, através da literatura, que muitos profissionais se veem num dilema ético, uma vez que, em muitas situações, o princípio da integridade familiar se contrapõe ao princípio dos melhores interesses da criança (Alvarez et al., 2005; Ferreira, Schramm, 2000). No entanto, a notificação dos casos de violência deve ser reconhecida como um recurso necessário para a proteção de crianças e adolescentes e um dever do profissional. Observa-se que, mesmo nos EUA, onde a notificação é amplamente utilizada há aproximadamente quarenta anos, ainda persistem dificuldades no que se refere ao preparo dos profissionais para reconhecerem os indicadores de abuso, sendo premente uma maior sensibilização e envolvimento de educadores, profissionais de saúde e outros atores-chave comprometidos com a quebra do ciclo de violência e a prevenção de possíveis agravos de saúde (Smith, Lambie, 2005). Esta questão também é um problema a ser enfrentado, com seriedade, no contexto brasileiro. No Brasil desde 2001, o Ministério da Saúde vem progredindo em termos de implantação de uma ficha padronizada de notificação para melhor conhecer a magnitude e gravidade dos casos de violência intrafamiliar e sexual, capilarizando, para todas as unidades públicas de saúde do país, a possibilidade de notificação. Nota-se que a introdução da notificação para as situações de violência se insere no contexto brasileiro tardiamente, no entanto, a padronização das informações para todo o território permitirá caracterizar a violência ocorrida, os encaminhamentos realizados, entre outras informações, de acordo com suas especificidades regionais. Diferentemente dos EUA, onde há uma profusão de fichas e mecanismos diferenciados para o enfrentamento das violências, dificultando a caracterização padronizada dos casos. Outra diferença é que, nos EUA, os registros de violência estão vinculados aos serviços de proteção à criança, o que pode facilitar o acesso à rede de apoio. Nesse sentido, grande parte dos investimentos é destinada à rede de serviços sociais. Já no Brasil os principais esforços vêm se dando na área da saúde. Contudo, no que concerne às situações de abuso sexual, ainda se observa que os procedimentos que padronizam o atendimento são aqueles voltados aos casos agudos (Brasil, 2005). Nas situações de violência crônica com o mesmo agressor, situação frequente no abuso sexual intrafamiliar, não há orientação específica. Nota-se, ainda, que o atendimento está centrado na figura do médico, por conta da prescrição do protocolo das doenças sexualmente transmissíveis/aids. Os serviços de referência na saúde, nos estados americanos, para as situações de violência sexual, disponibilizam kit de profilaxia e de coleta de sêmen para identificação do agressor. A preocupação é de acumular provas em vistas à punição do(a) agressor(a), neste caso, a criminalização. De acordo com as informações disponíveis, há ligação efetiva dos serviços de saúde com os centros de apoio à criança, ao adolescente, à família e à polícia. Em relação aos materiais e equipamentos para as situações de violência sexual, são previstos, na Norma Técnica brasileira, equipamentos adicionais, como aparelho de ultrassonografia e equipamentos fotográficos para registro de eventuais lesões físicas. Esses registros poderiam servir como provas materiais no caso de futuras investigações, entretanto é de conhecimento que os serviços de referência no atendimento à violência sexual na área da saúde não funcionam na forma como é prevista. Nota-se, portanto, que a realidade americana prioriza, em suas ações, a punição criminal, e a brasileira até reconhece a importância de responsabilização legal, mas não implementa mecanismos efetivos para isto. Identificou-se, nos documentos oficiais americanos, uma preocupação com a preservação da identidade do(a) notificante, o que contribui para a sua segurança e a legitimidade do processo, 827


A NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA DO ABUSO SEXUAL ...

viabilizando, assim, a notificação dos casos de negligência e abuso contra crianças e adolescentes; diferentemente da realidade brasileira, onde, ainda, prevalecem muitas dúvidas sobre a sua resolutividade, equívocos nos procedimentos adotados em função da notificação, a atuação dos Conselhos Tutelares e fragilidade da rede de apoio às situações de violência contra crianças, adolescentes e suas famílias. Nessa perspectiva, nos estados americanos, as leis são cumpridas de forma heterogênea. No Brasil, há um avanço considerável na proposição de leis, políticas, portarias e planos voltados para as situações de violências. Contudo, ainda prevalece, na prática cotidiana, o descumprimento de muitos destes preceitos. Observou-se, ainda, nos documentos oficiais, ações por parte dos estados americanos voltadas para o atendimento ao provável autor da agressão. Diferentemente da realidade brasileira, onde os serviços de atendimento ao(à) provável autor(a) são escassos e oferecidos por organizações não governamentais. Em relação aos sistemas de informação, no Brasil, ainda há grande dificuldade de comunicação entre os sistemas existentes voltados para as situações de violência, especialmente o Sistema de Informação de Agravos Notificados (Sinan) e o Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia), que ainda carece de investimento para sua sustentabilidade e credibilidade. Ambos os contextos corroboram que o atendimento às vítimas de violência sexual deve se dar de forma interdisciplinar e intersetorial, buscando uma articulação com a rede de atendimento às crianças, adolescentes e famílias, além de serviços de atendimento ao(à) provável autor(a) da violência, pois as iniciativas isoladas não permitirão um impacto positivo na vida das crianças e adolescentes. Vale destacar que a detecção de casos, por parte dos serviços, varia, ainda, de acordo com um grande número de fatores, tais como: presença e gravidade de lesões resultantes do abuso, circunstâncias familiares e comunitárias que bloqueiem a comunicação, visibilidade da instituição, e a sensibilidade de profissionais de saúde e educação para a detecção de abusos, entre outros (FrançaJunior, 2003). É de suma importância o investimento na descrição do processo de notificação da violência, visando extrair do empírico as lógicas e arranjos presentes no cotidiano das instituições de saúde, além de conhecer e partilhar as experiências dos profissionais envolvidos com a notificação. Parte-se da premissa de que a notificação é uma informação que vai desencadear medidas de proteção à criança, ao adolescente e de apoio à família. Neste processo estão previstas etapas que vão desde a abordagem da criança, do adolescente e de sua família, até o acompanhamento do caso, demandando a mobilização de recursos materiais e humanos e o trabalho em parceria com a rede de apoio. Em ambos os contextos, a notificação foi percebida como um disparador do sistema de proteção à criança e adolescente, além de permitir a implantação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento e a prevenção da violência. O presente estudo apresenta limitação no que se refere à proporção do exercício crítico, uma vez que foram enfatizadas as limitações do contexto brasileiro por maior conhecimento dessa realidade.

Colaboradores As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.

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LIMA, J.S.; DESLANDES, S.F.

artigos

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LIMA, J.S.; DESLANDES, S.F. La notificación obligatoria de abuso sexual contra niños y adolescentes: una comparación entre los dispositivos de Estados Unidos y de Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.819-31, jul./set. 2011. Este artículo tiene por objetivos describir el contexto histórico de afrontamiento a la violencia sexual contra niños y adolescentes y su proceso de notificación oficial en Brasil y en los Estados Unidos da América (EUA), además de establecer parámetros de comparación entre las dos realidades. Para tal, hubo una investigación de leyes y documentos sobre dicha notificación, complementada por literatura nacional e internacional sobre la materia. En EUA tal proceso de notificación se presenta detallado y distribuido por estados, mientras en Brasil, los estudios requieren aún más profundidad de temática, principalmente respecto a las iniciativas regionales.

Palabras clave: Notificación obligatoria. Abuso sexual infantil. Violencia sexual contra niños y adolescentes. Recebido em 18/11/10. Aprovado em 26/01/11.

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artigos

A abordagem de redução de danos em espaços educativos não formais: um estudo qualitativo no estado do Rio de Janeiro, Brasil *

Kátia Mendes de Souza1 Simone Monteiro2

SOUZA, K.M.; MONTEIRO, S. Harm reduction approach in non-formal educational situations: a qualitative study in the state of Rio de Janeiro. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.833-44, jul./set. 2011. This paper discusses the contributions of the harm reduction approach towards educational practices relating to health and drugs, in non-formal situations, from an analysis on the theoretical and methodological fundamentals and activities of a project developed by the Oswaldo Cruz Institute, among educators from nongovernmental organizations in Rio de Janeiro, from 2006 to 2007. Guided by a qualitative approach, this study analyzed the educators’ professional practices, the paths taken and the institutional context, by means of document analysis, interviews and direct observations. The findings revealed that the educators had appropriated and given new meaning to the concepts dealt with in the project, in relation to education for autonomy, harm reduction and vulnerability, guided by a dialogical and critical approach towards the knowledge construction process.

Este artigo discute as contribuições da abordagem de redução de danos para a prática educativa em saúde e drogas, em espaços não formais, a partir da análise dos fundamentos teórico-metodológicos e das atividades de um projeto desenvolvido pelo Instituto Oswaldo Cruz, com educadores de organizações não governamentais do estado do Rio de Janeiro, Brasil, de 2006 a 2007. Orientado por uma abordagem qualitativa, o estudo analisou a trajetória e as práticas profissionais de educadores e o contexto institucional, por meio da análise documental, de entrevistas e observações diretas. Os achados revelaram que houve apropriação e ressignificação, pelos educadores, dos conceitos abordados no projeto relativos à educação para autonomia, redução de danos e vulnerabilidade, orientados por uma abordagem dialógica e crítica do processo de construção do conhecimento.

Keywords: Health education. Drugs. Harm reduction. Methodology. Educator training.

Palavras-chave: Educação em Saúde. Drogas. Redução de danos. Metodologia. Formação de educadores.

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Elaborado com base em Souza (2010); projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. 1,2 Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365, Pavilhão Lauro Travassos, sala 22. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.045-900. mendesdesouzaktia@ gmail.com *

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A ABORDAGEM DE REDUÇÃO DE DANOS EM ESPAÇOS EDUCATIVOS ...

Introdução Inúmeros estudos quantitativos revelam um expressivo aumento de consumo e dos danos causados pelo uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas em faixas etárias cada vez mais precoces no Brasil (Galduróz et al., 2004; Paulilo, Jeolás, 2000; Guerchman, 1998; Bemfam, 1992). Em termos das ações de controle e prevenção/educação do uso indevido de drogas, os estudos apontam para as limitações e insucesso da abordagem tradicional de negação total ao uso de drogas, conhecida como “Guerra às Drogas”. Argumenta-se que as ações educativas sobre saúde e drogas devem ser planejadas junto ao público-alvo, combinando os interesses e conhecimentos de educadores e educandos e as necessidades e potencialidades da realidade local. A contextualização das ações educativas confere mais sentido e valor para os envolvidos no programa, pois procura considerar as características de cada comunidade relativas à diversidade de usuários, aos tipos de drogas disponíveis na região e ao contexto cultural e socioeconômico das diversas realidades. Tais aspectos possibilitam a criação de estratégias mais adequadas e pertinentes a cada realidade (Santos, Soares, Campos, 2010; Soares et al., 2009; Martini, Furegato, 2008; Feffermann, Figueiredo, 2006; Canoletti, Soares, 2005; Laranjo, 2004; Soares, Jacobi, 2000; Carlini-Cotrim, 1998). No contexto das reflexões assinaladas, o Ministério da Saúde adotou, como forma inovadora para as políticas de saúde, a abordagem de redução de danos, que se define pela busca de uma diminuição dos níveis de danos relacionados ao uso de drogas, tanto para o usuário quanto para a sociedade de forma geral. Este conceito ganhou visibilidade a partir dos programas de controle do HIV/AIDS voltados para usuários de drogas injetáveis: As ações de redução de danos constituem um conjunto de medidas de saúde pública voltadas para minimizar as consequências adversas do uso de drogas. O princípio fundamental que orienta [a RD] é o respeito à lei e a liberdade de escolha, à medida que os estudos e a experiência dos serviços demonstram que muitos usuários, por vezes, não conseguem ou não querem deixar de usar drogas e, mesmo esses, precisam ter o risco de infecção pelo HIV e hepatite minimizados. (Brasil, 2001a, p.12)

O conceito de redução de danos resulta numa crítica à proposta da abstinência como discurso único e verdadeiro na prevenção ao uso indevido de drogas (Fonseca, 2005; Figueiredo, 2002). Nesta direção, o uso ou abuso de drogas não constitui um fenômeno exclusivamente individual, mas se relaciona à drogalidade do indivíduo (Acselrad, 2005). Esta é entendida como as relações que cada pessoa estabelece com as drogas, mediada por fatores diversos, que incluem as dimensões: biológica, psicológica, familiar, socioeconômica e cultural, contrapondo-se a uma visão tradicional e repressiva que reforça preconceitos. Apesar de ainda representar uma novidade para muitos profissionais de educação e saúde e gerar polêmicas por ter um caráter inovador no enfrentamento do uso indevido de drogas, o conceito de Redução de Danos tem sua origem nos anos de 1920 na Inglaterra. Nesse período, uma comissão de médicos ingleses - Comitê Rollerston - concluiu que poderia ser ocasionalmente necessário manter uma pessoa utilizando drogas para ajudá-la a levar uma vida mais produtiva. Em 1950, no Canadá, uma província se torna a primeira jurisdição na América do Norte a adotar a manutenção de metadona para reduzir os danos associados ao uso de heroína. Nos anos de 1960, o tratamento com substituição por metadona passa a ser adotado em outras localidades da América do Norte (Hilton et al., 2000). As estratégias de Redução de Danos vêm sendo implantadas no Brasil através dos Programas ou Projetos de Redução de Danos (PRD), que contemplam um conjunto de ações desenvolvidas, em campo, por redutores de danos, tais como: distribuição de seringas, atividades de informação, educação e comunicação (IEC), aconselhamento, encaminhamento, vacinação contra hepatite B e outras ações preventivas. A estruturação deste trabalho se deu a partir de estudos realizados, como o “Projeto AJUDE BRASIL” (Caiaffa, 2001), que identificou o perfil dos usuários de drogas injetáveis participantes de cinco programas de redução de danos apoiados pela Coordenação Nacional de DST/Aids, (atualmente denominada Departamento de DST, Aids e hepatites virais); bem como o Estudo 834

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Multicêntrico da Organização Mundial de Saúde – fase II (Brasil, 2001b), que reavaliou as características dos usuários de drogas no Rio de Janeiro, Salvador e Baixada Santista, e identificou as respectivas taxas de infecção pelo HIV e os vírus das hepatites B e C. Grande parte da mobilização por este trabalho se deve às organizações criadas após a “IX Conferência Internacional de Redução de Danos”, que ocorreu em São Paulo, em 1998. A Associação Paulista de Redutores de Danos (APRENDA) e a Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA) são constituídas por: redutores de danos, usuários de drogas ou não, técnicos de diversas áreas, e pessoas comprometidas com as questões de drogas-HIV-cidadania. Santos, Soares e Campos (2010) constatam a existência de diferentes concepções de redução de danos adotadas na literatura, advindas dos conceitos de sujeitos e objetos adotados pelos diversos autores. Como forma de não incorrer em pragmatismos, setorizando as relações entre objetos e sujeitos, conforme recomendam as autoras, a concepção de redução de danos apresentada neste artigo baseia-se numa compreensão mais global e crítica sobre a realidade histórica e social: A partir da Saúde Coletiva, é possível observar a preocupação em compreender a complexidade que cerca o fenômeno das substâncias psicoativas na sociedade contemporânea, e a constituição da RD, como um novo paradigma, requer um arcabouço teórico-metodológico amplo e interdisciplinar que inclua os saberes de diversas áreas para que não fique restrita ao excesso de pragmatismo e a compreensões desvinculadas e desconectadas da totalidade social. (Santos, Soares, Campos, 2010, p.1007)

A literatura nacional e internacional associa a abordagem de Redução de Danos à formulação de estratégias educativas, onde educadores e educandos necessitam reconhecer os diferentes aspectos envolvidos no processo do uso de drogas, quais sejam: o tipo, a quantidade e a frequência da droga consumida, e o contexto social, cultural, histórico e jurídico do uso. Nestas estratégias, são considerados: as relações entre consumo e formação de rede social, experiências sexuais, projetos de vida, o processo saúde e doença, as situações de violência, entre outros (Laranjo, 2004; Soares, Jacobi, 2000; Carlini-Cotrim, 1998; Paglia, Room, 1998). A maior parte dos estudos citados investiga a perspectiva da redução de danos no âmbito escolar formal. O presente artigo objetiva analisar a prática educativa em saúde e drogas em espaços não formais, no caso, organizações não governamentais com práticas de educação em saúde no âmbito comunitário. Tem-se o propósito de identificar em que medida a formação dos profissionais sobre saúde, educação e drogas, somada à trajetória profissional e ao contexto de atuação profissional, contribuíram para: 1) a compreensão dos participantes sobre as diferentes dimensões históricas, socioculturais e econômicas associadas ao uso devido e indevido de drogas lícitas e ilícitas; 2) estimular a promoção de ações educativas embasadas em propostas problematizadoras e transformadoras; 3) fomentar o estabelecimento de uma rede local entre os participantes e demais organizações, garantindo a sustentabilidade e a continuidade das ações, por meio da implementação de estratégias integradas. Canoletti e Soares (2005) ressaltam a importância e, ao mesmo tempo, a escassez da explicitação do processo formal de avaliação em projetos de prevenção, que sinalizem os resultados atingidos a médio e longo prazo. No presente artigo são apresentados e analisados os resultados após cerca de dois anos de realização do projeto. Por meio deste enfoque, objetiva-se avançar na discussão sobre o profundo hiato entre a teoria e a prática no campo da educação em saúde, expresso pela constatação de que as reorientações, resultantes das reflexões teóricas e metodológicas nessa área, não vêm sendo traduzidas ou operacionalizadas, nas práticas educativas, pelos educadores (Gazzinelli et al., 2005).

Metodologia O desenho metodológico baseou-se no entendimento dos significados produzidos no âmbito cultural, atualizados nas relações entre os sujeitos, dialogando com modelos socialmente compartilhados COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A ABORDAGEM DE REDUÇÃO DE DANOS EM ESPAÇOS EDUCATIVOS ...

(Víctora, Knauth, Hassen, 2000; Geertz, 1989). Nesse marco teórico, a trajetória pessoal e profissional dos educadores, incluindo a formação, associada ao contexto institucional, ganhou destaque na análise das repercussões de um projeto sobre saúde, educação e drogas. Este projeto – “Saúde e Drogas: Desenvolvimento e Avaliação de Ações Educativas em Programas Sociais” – doravante chamado Saúde e Drogas, foi desenvolvido por uma instância pública de produção de conhecimento científico, a Fiocruz, especificamente pelo Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (LEAS) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC)3, com o apoio do Instituto C&A de Desenvolvimento Social. O público-alvo desta experiência foram educadores de quatorze organizações não governamentais que atuavam na educação não formal de adolescentes e jovens no Estado do Rio de Janeiro. Desenvolvido no período de fevereiro de 2006 a julho de 2007, seu objetivo foi contribuir para o desenvolvimento e avaliação de programas educativos sobre saúde, drogas e temas afins. Para fins deste artigo, foram analisados dados secundários, na forma de relatórios e registros, das ações desenvolvidas ao longo da formação dos educadores. Na leitura destes documentos, buscou-se identificar o nível de adequação do plano de ação, expresso pela clareza, objetividade e coerência com o referencial teórico, e o nível de integração com a instituição, expresso pelo grau de receptividade para a proposta e pelo grau de sustentabilidade e continuidade das ações. Este exame inicial permitiu a seleção de cinco, das quatorze instituições que faziam parte do projeto original. Além da análise documental, foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observações diretas. Foi entrevistado um educador de cada uma das cinco instituições selecionadas, totalizando cinco educadores que, além de terem participado do projeto, permaneciam na instituição dois anos após sua finalização. As entrevistas foram antecedidas de uma apresentação da equipe de trabalho, espaço físico e forma de organização dos processos de trabalho de cada uma das instituições. Este processo propiciou o acesso ao ambiente e à organização do cotidiano institucional. Foi realizada uma observação direta de uma reunião de equipe e de algumas atividades institucionais. Os dados das entrevistas e das observações foram organizados por meio da identificação de núcleos de sentido e da categorização temática (Minayo, 2007), e articulados aos achados da análise documental. A integração das diferentes fontes teve o propósito de discutir a lógica de significados relacionados à prática educativa na interface entre redução de danos e drogalidade, entendendo que o projeto sobre saúde, educação e drogas havia oferecido um repertório de conceitos, perspectivas e instrumentos que rompiam com um modelo hegemônico de abordagem às drogas. Para manter o sigilo, os educadores foram identificados através de nomes fictícios.

Resultados e discussão Fundamentos teórico-metodológicos e ações do projeto Saúde e Drogas A análise documental possibilitou o acesso aos fundamentos teórico-metodológicos do projeto Saúde e Drogas, revelando uma formação orientada para práticas educativas pautadas nos conceitos de autonomia, redução de danos e vulnerabilidade. Nestes marcos, comparece uma filosofia problematizadora com uma abordagem dialógica e crítica do processo de construção do conhecimento. 836

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3 O projeto foi coordenado por Simone Monteiro e desenvolvido por Gilberta Acselrad, Sandra Rebello, Cristina Alvim C. Branco e Marly Cruz (Monteiro et al., 2008).


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artigos

A articulação dessa abordagem educativa ao conceito de redução de danos resulta numa crítica à proposta da abstinência como discurso único e verdadeiro na prevenção ao uso indevido de drogas. Ao ter o objetivo de esclarecer e dialogar sobre os efeitos danosos relacionados ao uso de drogas, a educação para a autonomia, considera o direito e o respeito à liberdade de escolha da cada indivíduo. Dentro desta perspectiva, critica a importância dada pela sociedade apenas às drogas de uso ilícito, que reforça o estigma dos usuários e a permissividade aos danos decorrentes do uso de drogas lícitas (Acselrad, 2005). Tal perspectiva se coaduna com os pressupostos do conceito de vulnerabilidade, que considera a interação de fatores de natureza biológica, epidemiológica, social e cultural para a proteção ou exposição a determinado dano à saúde (Ayres et al., 2006). Orientada pela articulação entre os fundamentos dos conceitos de educação para autonomia, redução de danos e vulnerabilidade, a equipe responsável pela formação priorizou a divulgação de conhecimentos e o estímulo ao debate sobre as dimensões histórica, epidemiológica, jurídica, sociocultural e econômica acerca das drogas, diferenciando-se da visão preconceituosa e alarmista presente em propostas educativas e nos discursos acerca do tema. Tendo em vista que a vulnerabilidade e a exposição aos danos relacionados ao uso de drogas são específicas de cada contexto social, as ações educativas previstas foram construídas com base nas trajetórias e inserção profissional dos educadores, objetivando ações contextualizadas e baseadas na noção de corresponsabilidade. Nota-se, a partir dos documentos e arquivos analisados, que o projeto Saúde e Drogas teve, como forma de acesso às instituições, uma abordagem participativa e não normativa. A utilização de uma carta-convite como instrumento para oferecer a proposta ilustra esta perspectiva. Das 23 instituições não governamentais com parcerias com o Instituto C&A, em fevereiro de 2006, 14 responderam ao convite e participaram da 1ª oficina de formação, demonstrando o interesse pela formação. Destaca-se, ainda, como estratégia metodológica, a realização de três oficinas com intervalos de três a seis meses, com o oferecimento e discussão de conteúdos para a elaboração de planos de ação e a entrega de um kit de materiais educativos e referências bibliográficas. Com o objetivo de orientar o processo e implantação dos planos de ação e a inserção das ações de prevenção ao uso abusivo de drogas nas instituições, após a primeira oficina, foram realizadas visitas de acompanhamento. As oficinas que se seguiram propiciaram a apresentação dos trabalhos desenvolvidos a partir dos planos de ação institucionais, com consequente intercâmbio de experiências entre os participantes. O intervalo entre as oficinas e o acompanhamento permitiu que os educadores refletissem sobre a formação oferecida e suas repercussões nas experiências cotidianas, fomentando um diálogo sobre as articulações entre a teoria e a prática. O exercício de apresentação de suas propostas e ações estimulou a sistematização e verbalização da prática, favorecendo o intercâmbio de visões e a reelaboração coletiva dos projetos locais. Ressalta-se que, ao longo de todo o Projeto, foram realizados exercícios de avaliação processual onde os participantes expressavam-se, tanto pela escrita quanto verbalmente, sobre as atividades desenvolvidas, contribuindo para possíveis reorientações das ações. Como última etapa da metodologia, destaca-se a realização do Seminário “Saúde, Drogas e Educação”, que permitiu uma análise sobre o valor atribuído pelo projeto à dimensão coletiva de construção de conhecimento voltado para o educador que atua na abordagem às drogas. A devolução de todo o processo se deu na forma de uma publicação (Monteiro et al., 2008), visando: socializar o conhecimento adquirido ao longo da experiência, estimular o desenvolvimento de novas ações, e valorizar a perspectiva dos educadores na produção de conhecimentos.

Análise das trajetórias profissionais nos diferentes contextos institucionais A caracterização do perfil profissional de cada educador permitiu revelar aspectos da trajetória profissional e identificar o conhecimento prévio, os interesses e a experiência dos educadores sobre as drogas. Ademais, possibilitou uma melhor compreensão sobre os significados dos conceitos relacionados ao tema de uma forma geral, na relação com os pressupostos e conceitos oferecidos pelo Projeto. Situando os sujeitos no seu contexto cultural, sobretudo no que se refere as suas trajetórias profissionais, assinala-se que os cinco entrevistados possuíam cursos de graduação na área de ciências COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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humanas, tendo dois deles cursos de Mestrado. Esta descrição nos permite inferir que este perfil de formação contribui para uma sintonia entre as propostas do projeto e a adesão a uma visão ampliada sobre a relação entre juventude e drogas. Formações anteriores nas áreas de droga dependência e produção de audiovisual acentuam o interesse para reunir, a formação técnica, a uma formação geral afinada com a área social, cultural e humana. Destaca-se, ainda, que o tempo de atuação dos educadores na área de educação em saúde era superior a dez anos, e o período de inserção na instituição atual variou entre três e dez anos. Em se tratando de um vínculo com organizações não governamentais, que tendem a ter certa rotatividade de profissionais em função da variação de projetos e apoios financeiros, pode-se considerar que o período descrito é um tempo significativo de adaptação, estabilidade e vínculo institucional. As trajetórias profissionais construídas, ou seja, os diferentes conhecimentos e experiências vivenciadas contribuíram para processos criativos na aproximação com os jovens. Isto foi ilustrado por duas educadoras, que elaboraram, de forma coletiva, histórias em quadrinhos e um filme, como estratégias lúdicas de abordagem da temática das drogas. Estas trajetórias encontraram um contexto institucional que favoreceu o desenvolvimento das propostas educativas. Neste sentido, as condições de trabalho dos educadores, os temas desenvolvidos e o grau de espaço e de autonomia dado pela instituição para criar e incluir novas temáticas, no caso, as drogas, configuramse como aspectos importantes para a análise. As instituições têm um tempo de existência que variou entre nove e 29 anos, e competências reconhecidas nas áreas de educação, saúde, arte-educação, produção teatral, audiovisual e inclusão digital. Quer dizer, atuam em diferentes campos e têm dinâmicas de funcionamento específicas. De forma geral, realizam ações voltadas à prevenção, educação, desenvolvimento comunitário e direitos humanos, mas diferenciam-se no desenvolvimento de temáticas: saúde, gênero, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis/Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, violência, drogas, arte, música, dança, teatro, meio ambiente, cidadania, informática e produção de vídeos. Algumas realizam trabalhos de pesquisas e/ou contato direto com o público-alvo, na comunidade, nas escolas e em hospitais. Os jovens são o público-alvo para a maioria destas instituições, sendo que algumas organizações também envolvem a família dos jovens nas atividades. Quanto à sustentabilidade, algumas instituições baseiam-se em trabalho voluntário e contam apenas com doações de pessoas físicas, enquanto outras possuem projetos de mais longo prazo, com pessoas contratadas, uma ampla rede de parceiros e financiamento de instituições nacionais e internacionais. Em suma, os diferentes contextos institucionais, funções desempenhadas e tempos de inserção revelaram variações nos graus de autonomia para a implementação de propostas e ações dos educadores. Os educadores que participaram das oficinas se tornaram referência para o trabalho, mas, em algumas instituições, foram incluídos outros educadores, coordenadores e os próprios jovens na corresponsabilização pelas ações. O perfil profissional, envolvendo a formação e a experiência do educador, e a receptividade do contexto institucional, somada ao apoio e sustentabilidade das ações, foram condições decisivas para o bom desenvolvimento dos planos de ação propostos. O contexto institucional representa a base onde são construídos os processos de trabalho do educador. Se este dispõe de um ambiente acolhedor, com boas relações interpessoais, de tempo suficiente e de condições materiais para planejar, propor, desenvolver, sistematizar e avaliar as ações educativas, ele se sente mais seguro para implementar ações criativas e inovadoras. Como a abordagem de redução de danos não é uma linha hegemônica em nossa sociedade, a ausência de um contexto institucional favorável compromete a aproximação e a discussão sobre o tema. Embora o curso de formação desenvolvido pelo projeto Saúde e Drogas tenha incentivado a constituição de uma rede entre as instituições participantes, os educadores entrevistados indicaram que não houve uma aproximação entre as instituições após a finalização do projeto. Igualmente, não foi observado um envolvimento das famílias das populações atendidas pelas instituições nas atividades propostas. A identificação do não-estabelecimento da rede social local comprometeu, em parte, a sustentabilidade e a continuidade das ações. Observa-se que a abordagem da redução de danos é um tema novo e polêmico na sociedade de forma geral, e que há poucos projetos com ações e financiamento nesta linha com os quais as instituições participantes no projeto Saúde e Drogas pudessem se articular e interagir. 838

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Os significados produzidos pelos educadores sobre redução de danos Para alguns participantes, que relataram experiências de diferentes tipos de uso, abuso e dependência química entre seus familiares, o curso teve um sentido ainda mais amplo, por tocar em aspectos da vida pessoal relacionados a vivências emocionalmente dolorosas e difíceis. Além das experiências familiares, foi interessante observar a relevância e o sentido que o conceito de redução de danos, bem articulado com o de educação para autonomia, passou a ocupar na vida pessoal e profissional de cada educador. Ainda que com diferentes formulações, as opiniões dos participantes reforçam a necessidade da ampliação desta linha de debate para educadores, jovens, famílias e para a sociedade de forma geral. Nesta direção, Rosa fez uma interessante comparação entre a abordagem centrada na prevenção e a aplicação do conceito de redução de danos na prática educativa: “Pra mim, a redução de danos parte do pressuposto de que a gente está imerso, é autor de relações e nestas relações a gente pode encontrar maneiras de promover saúde nestas relações, o que difere da lógica da prevenção, que é uma lógica quase que puritanista, de que a gente pode supor que estas relações vão deixar de existir, quando elas não vão porque é condição humana que estas relações existam. [...]. É lidar com o que existe de fato, e como é que a gente pode lidar com o que existe de fato, acho que o “de fato” pra mim tem haver com esta dimensão da realidade e não da fantasia: “Os meninos não vão usar.” Eles vão, não, eles já estão (usando drogas)”.

O trecho anterior nos remete às críticas à perspectiva preventiva, pautada no modelo biomédico, na qual o corpo humano é analisado de forma fragmentada, desconectado da rede de relações que compõe o sentido de sua vida (Czeresnia, 2003). Destaca-se ainda, neste modelo, a redução do sujeito ao objeto da intervenção, com sua concomitante perda de autonomia. A perspectiva de redução de danos vai ao encontro de uma abordagem democrática sobre a saúde. Nesta direção, José aponta, na abordagem educativa adotada pelo projeto, a possibilidade de uma democratização dos conhecimentos e a sua tomada de responsabilidade como educador de jovens: “Deve haver esclarecimento e este é o papel da escola. A família não tem este suporte. É liberdade de escolha, ele tem esse direito e tem a liberdade de usar de experimentar, ter acesso, ser usuário. [...] Educação para autonomia, para mim, é dar condições, embasar, ter ferramentas, e que ele possa construir e ser responsável por ele e por aquilo que está a sua volta”.

A abordagem de redução de danos pressupõe o direito ao acesso a conhecimentos científicos atualizados, mas evita interpretações ou julgamentos próprios; reconhece o educando como cidadão que tem o direito de receber informações e orientações e que irá decidir por si. Nesta linha, a saúde é compreendida pela construção e capacidade de escolhas dos atores sociais envolvidos no processo. Reforçando o conceito de construção de autonomia, Freire (1996) defende que só há aprendizado quando o ser humano está na condição de sujeito, e não de objeto da ação educativa. Cada sujeito possui sua história de vida e questões de saúde, e estas estão sempre relacionadas à coletividade. Para Margarida, o conceito trouxe uma “leveza para o olhar”, tirando o peso da responsabilidade exclusiva do usuário e facilitando a compreensão das influências do contexto social e cultural nas escolhas dos indivíduos. Esta abordagem aproxima o educador para tratar do tema com usuários: “Eu entendi que é fazer a vida deste usuário um pouco mais fácil, um pouco mais simples, e colocá-lo no lugar, nem da vítima e nem do errado, nem do certo. Fazê-lo entender que... sim, ele está usando, mas o que a gente faz pra não ser tão avassalador? Tem a ver com a valorização dessa pessoa, porque eu acho geralmente é tratado com muito preconceito. Eu sei que é muito difícil, não é fácil e tem a ver com incluí-lo também, responsabilizá-lo pra estar melhor e com ajuda da comunidade. Eu entendi desta forma: ele tem responsabilidade,

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mas o entorno também tem, e ele pode sair deste lugar da culpa. Porque eu acho que isso é muito ruim, que dificulta muito”.

Nas análises acerca dos efeitos negativos das campanhas pela abstinência de drogas, discute-se como esta linha culpabiliza o indivíduo por problemas macrossociais. Não se discutem as implicações do fortalecimento da sociedade de consumo pela mídia e do modelo econômico neoliberal, que estimulam o desejo de consumo pelos segmentos juvenis das diversas classes sociais, com vistas à aceitação social (Martini, Furegato, 2008; Moreira, Silveira, Andreoli, 2006). A observação da entrevistada, seguida da analise anterior, é concordante com a pesquisa sobre o projeto “Escola é Vida”, desenvolvido nas unidades públicas estaduais de ensino de São Paulo, centrado na redução de danos. A pesquisa apontou que professores e estudantes, sentindo-se participantes e mobilizados, passaram a ser mais tolerantes e solidários com relação ao uso de drogas (Soares, Jacobi, 2000). A criação de espaços de discussão sobre redução de danos mostra-se como alternativa para o enfrentamento de processos de culpabilização dos indivíduos. Assim, a abordagem de redução da vulnerabilidade aos danos relacionados ao uso de drogas se configura num processo dinâmico, multifacetado e determinado por diversos fatores, rompendo com a responsabilização do indivíduo. Este processo não prescinde da necessidade da superação dos obstáculos de ordem material, cultural e política, que poderiam manter o indivíduo vulnerável, ainda que esclarecido. Para Ana, a proposta inovadora da formação oportunizou a revisão e atualização sobre o tema drogas para uma campanha comunitária com jovens de uma escola estadual, cujo produto final seria uma radionovela e uma história em quadrinhos, ambas produzidas pelos alunos. Ana utilizou uma metodologia participativa, com momentos de discussão sobre os temas e a divisão em grupos de trabalho para a produção de textos, desenhos, encenação. A campanha culminou com uma festa na escola e o lançamento de um material em áudio (compact disc) dos materiais produzidos. Estes materiais apresentam uma abertura, ao invés de proporem prescrições de comportamentos, ideais ou soluções finais para os assuntos abordados. A continuidade das ações foi favorecida pela possibilidade de execução do compact disc em ambientes comuns aos jovens e seus familiares, como salões de beleza e outros locais de convívio, e pela praticidade e rapidez de leitura dos quadrinhos, permitindo releituras e novas discussões sobre o tema. Seguindo, igualmente, a ênfase interdisciplinar proposta pela redução de danos, Rosa criou uma estratégia para abordar o fenômeno das drogas de forma vivencial e prazerosa, diferenciada das formações muito teóricas e racionais já conhecidas sobre o tema, oferecendo uma formação continuada para os vinte e cinco educadores de sua equipe. Na ocasião da entrevista, um dos grupos de educadores estava desenvolvendo um projeto de produção de um filme sobre tradições das famílias dos jovens, sendo a maioria do Nordeste. Após as pesquisas e elaboração do roteiro, surgiu o tema do cangaço. Ela cita que as referências do curso têm voltado frequentemente, pois os jovens fizeram uma associação direta com o tráfico, muito presente em suas comunidades: “Ontem apareceu com muita força a questão do tráfico, eles relacionando o cangaceiro com o traficante, e começando a contar todas as relações que eles conhecem, que eles tem, que eles veem. [...] Não era uma aula sobre tráfico de drogas; não foi um pressuposto: “Não! O tráfico é ruim! Não faça uso! Não lide com ele!” Como se ele não existisse...Completamente diferente de quando você cria uma ambiência e uma relação com estes meninos a ponto de, num trabalho que fala sobre o cangaço, quando eles estão filmando uma história que eles mesmos criaram, que tem haver com o cangaceiro, e na feitura do filme e este tema do traficante de onde ele mora aparece, carregado das histórias, dos sentidos”.

Por meio desta metodologia dialogada, foi possível perceber, positivamente, a proposta dos projetos desenvolvidos há anos pela instituição onde Rosa atua. No diário de bordo dos educadores, são registradas as suas experiências e a fala dos jovens, onde se identifica uma prática de educação problematizadora: 840

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“Pelo fato de a gente trabalhar com a formação deste sujeito, como alguém que precisa se reconhecer autor de sua própria história nesta relação com este mundo...todo esse investimento que a gente faz, desde muito pequeno, pra esta percepção de: Quem sou eu? Quem sou eu nesta relação com o outro? Quem é esse outro? Que lugar é esse que a gente tá? Como estes sujeitos se fortalecem, não como sujeitos isolados, mas como sujeitos que só são porque estão em relação com estes outros e com este contexto. Sujeito que tem condições de fazer escolhas, que tem condições de se posicionar com autonomia frente a algumas questões, que tem desejo de se implicar com algumas transformações que se fazem necessárias para o bem de todos”.

Esta proposta educativa crítica se mostra como uma superação do amedrontamento sobre o uso de drogas evidenciado na abordagem tradicional. A abordagem repressiva pode despertar a curiosidade e o desejo de experimentação, sem estimular a capacidade de percepção mais cuidadosa sobre o corpo e a saúde. O clima de temor e mistério sobre as drogas deixa o jovem mais vulnerável e desprovido de informações consistentes acerca de cada tipo e efeito de droga. Os calmantes, os remédios de emagrecimento e anabolizantes, por exemplo, vêm tendo um consumo abusivo entre jovens e adolescentes (Figueiredo, 2002). A articulação dessa abordagem educativa ao conceito de redução de danos evidencia a necessidade de se elaborar um discurso ligado à drogalidade, ou seja, sobre as relações que os indivíduos estabelecem com as drogas, que permita transferir a ênfase do enfoque da droga em si e das implicações do consumo de forma isolada, para uma perspectiva centrada nas relações estabelecidas entre o indivíduo e as necessidades e estímulos sociais ao uso de drogas. Dentro desta perspectiva, critica a importância dada pela sociedade apenas às drogas de uso ilícito, que reforça o estigma dos usuários e a permissividade aos danos decorrentes do uso de drogas lícitas (Acselrad, 2005). Metodologia e resultados semelhantes foram descritos por Soares et al. (2009), a partir da experiência de oficinas de instrumentalização de trabalhadores de instituições sociais no território de abrangência de uma Unidade Básica de Saúde. Foi verificado que a criação de espaços dialógicos sobre as drogas mostrou-se “instrumento potente para que os sujeitos - agentes e co-produtores do processo educativo – participem com a finalidade de transformar a práxis reiterativa em práxis criativa” (p.196), produzindo uma alteração qualitativa da prática social.

Conclusões O processo de aprimoramento das estratégias de redução de danos, tanto no Brasil como em outros países, nos leva a concluir que o uso de drogas não deve ser tratado de forma isolada, mas como um dos muitos danos a serem reduzidos na população, por meio de intervenções mais dignas e humanas, promovidas pela sociedade civil organizada e por políticas governamentais no campo da Saúde Pública, preferencialmente, de forma conjugada. A redução de danos como conceito parece necessitar, para sua divulgação, de metodologias ativas de ensino-aprendizagem que permitam rever representações culturais arraigadas sobre as drogas. No caso analisado, a utilização de estratégias pedagógicas participativas no desenvolvimento de um projeto sobre saúde e drogas com educadores de organizações não governamentais permitiu a desconstrução de valores e a revisão de outros. Pode-se constatar que a metodologia utilizada pelo projeto baseou-se na construção compartilhada do conhecimento, ou seja, implicou: “um processo comunicacional e pedagógico entre sujeitos de saberes diferentes, convivendo em situações de interação e cooperação, que envolve o relacionamento entre pessoas ou grupos com experiências diversas, interesses, desejos, motivações coletivas” (Carvalho, Acioli, Stotz, 2001, p.103). A temporalidade, ou seja, o reconhecimento do tempo como processo necessário à elaboração do conteúdo, fez parte da metodologia da experiência analisada neste artigo. Este aspecto parece ter favorecido o incremento do diálogo e a revisão de posturas pessoais e profissionais por parte dos sujeitos participantes. A análise empreendida na incorporação do conceito de redução de danos na COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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prática educativa não formal refere-se tanto à consideração das trajetórias pessoal/profissional construídas quanto ao contexto institucional, que podem favorecer ou dificultar as abordagens das drogas pela perspectiva da redução de danos. Canoletti e Soares (2005) identificam que a maior parte da produção científica sobre programas de prevenção às drogas, de 1991 a 2001, encontra-se numa categoria transitória entre o modelo hegemônico de guerra às drogas e um novo modelo em construção, ligado à redução de danos. Ademais, esta produção está relacionada a um estágio de experimentação, mais com a apresentação de orientações e propostas do que a descrição do desenvolvimento de programas de prevenção propriamente ditos. Este estudo revela, portanto, um avanço na aproximação entre teoria e práticas neste campo. Um possível limite de nossa análise refere-se à necessidade de se investigarem experiências com o conceito de redução de danos aplicadas em realidades de educação não formal, onde os sujeitos responsáveis pelo trabalho não possuam nível de escolaridade e formação que retratem acúmulos críticos sobre cultura e sociedade. E que, além disso, não tenham uma estrutura organizacional tão favorável à absorção dos conteúdos sobre redução de danos.

Colaboradores Kátia Mendes de Souza foi responsável pela coleta de dados, análise e redação do trabalho. Simone Monteiro participou da análise, redação e revisão final do artigo. Agradecimentos Gostaríamos de agradecer a todos os educadores que participaram do estudo, e à equipe do projeto Saúde e Drogas, pelo acesso aos dados sistematizados. Referências ACSELRAD, G. A educação para autonomia: construindo um discurso democrático sobre as drogas. In: ACSELRAD, G. (Org.). Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005. p.183-212. AYRES, J.R.C.M. et al. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006. p.375-417. BEMFAM. Sociedade Civil Bem-estar Familiar no Brasil. Pesquisa sobre saúde reprodutiva e sexualidade do jovem: Rio de Janeiro, Curitiba e Recife - 1989/90. Rio de Janeiro: BEMFAM, Centers for Disease Control and Prevention, 1992. BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST/AIDS. Manual de redução de danos. Brasília: Ministério da Saúde, 2001a. ______. Ministério da Saúde. A contribuição dos estudos multicêntricos frente à epidemia de HIV/Aids entre UDI no Brasil: 10 anos de pesquisa e redução de danos. Brasília: Ministério da Saúde, 2001b. CAIAFFA, W. Projeto AjUDE-BRASIL: avaliação epidemiológica dos usuários de drogas injetáveis dos projetos de redução de danos apoiados pela CN-DST/AIDS. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. CANOLETTI, B.; SOARES, C.B. Programas de prevenção ao consumo de drogas no Brasil: uma análise da produção científica de 1991 a 2001. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.9, n.16, p.115-29, 2005.

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Palabras clave: Educación en Salud. Drogas. Reducción de Daños. Metodología. Formación de educadores. Recebido em 05/11/10. Aprovado em 09/03/11.

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artigos

Questões de sexualidade masculina na atenção primária à saúde: gênero e medicalização

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Thiago Félix Pinheiro1 Márcia Thereza Couto2 Geórgia Sibele Nogueira da Silva3

PINHEIRO, T.F.; COUTO, M.T.; NOGUEIRA DA SILVA, G.S. Issues of male sexuality in primary health care: gender and medicalization. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.845-58, jul./set. 2011. Following the direction of masculinity studies, this paper presents an ethnographic investigation on the approach to male sexuality taken at two primary healthcare units in Natal, Rio Grande do Norte. The objective was to comprehend how the sexuality of male users of the facilities is presented within the care context and how the demands that arise within this context are addressed. In interviews with users and observations of day-to-day activities in the units, sexually transmitted infections, prostate cancer prevention and erectile problems stood out as major problems. There was an abbreviated superficial professional approach, grounded in the parameter of medicalization. Although some users accept the medical discourse and submit themselves to medicalization, it is possible to identify signs of resistance. This paper discusses how the insignias of gender not only can create barriers in healthcare, but also can lead to construction of dialogical relations between professionals and male users.

Keywords: Male sexuality. Masculinity. Medicalization. Primary Healthcare.

Este artigo apresenta pesquisa etnográfica a respeito da abordagem da sexualidade masculina em dois serviços de atenção primária à saúde em Natal/Rio Grande do Norte, Brasil. Seu objetivo é compreender como a sexualidade dos homens usuários dos serviços se apresenta no contexto da assistência, e como as demandas que se configuram nesse âmbito são abordadas. Em entrevistas com usuários e observações do cotidiano dos serviços, destacam-se, como principais problemas: as infecções sexualmente transmissíveis, a prevenção de câncer de próstata e os problemas relativos à ereção. Observa-se uma abordagem profissional superficial, abreviada e ancorada no parâmetro da medicalização. Embora alguns usuários incorporem o discurso médico e se sujeitem à medicalização, é possível identificar sinais de resistência. Discute-se como as insígnias de gênero podem, para além de marcar barreiras na assistência à saúde, provocar a construção de relações dialógicas entre profissionais e usuários homens.

Palavras-chave: Sexualidade masculina. Masculinidade. Medicalização. Atenção primária à saúde.

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* Elaborado com base em Pinheiro (2010); pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), submetida e aprovada pela Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa (CAPPesq) da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A pesquisa multicêntrica da qual o trabalho faz parte também foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente, a Universidade Federal de São Paulo. 1,2 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2177, Cerqueira César. São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. thiagopinheiro@ hotmail.com 3 Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Introdução Com o intuito de discutir a abordagem da sexualidade masculina na Atenção Primária à Saúde (APS), o presente artigo problematiza as configurações da relação entre homens e profissionais-serviços de saúde a partir de questões da sexualidade e dos delineamentos que elas assumem nesse contexto. O percurso que segue se ancora na articulação de algumas noções teóricas. A primeira é o conceito de gênero como um princípio ordenador e normatizador de práticas sociais, construído em função das condições que histórica e socialmente estabelecem as relações sociais de sexo, permeadas pelo poder e desigualdade (Scott, 1995). A segunda é a ideia de medicalização, compreendida como o processo de expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por meio da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se fossem problemas médicos (Tesser, 2006). E, finalmente, utilizase a noção de sexualidade como referência aos aspectos da vida sexual, atentando-se, contudo, para o fato de que a sexualidade diz respeito à produção de conhecimento sobre as práticas sexuais, historicamente inscrita no campo biomédico e no próprio processo de medicalização (Foucault, 2007).

Homens e masculinidades na saúde O lugar ocupado pelos homens na produção de conhecimento em saúde tem se configurado de modo paradoxal ao longo do tempo. De certo modo, eles sempre estiveram no foco da maioria dos estudos da área, mas foram tomados, quase sempre, como parâmetro da humanidade; o homem como equivalente a ser humano (Kimmel, 1992). Essa perspectiva pouco se aproxima dos homens como sujeitos concretos, inseridos em contextos socioculturais determinados pelo gênero e outros atributos (classe, raça/etnia, geração etc.) que, postos em relação, são produtores de diferentes construções e vivências de masculinidades (Connell, 1997). A partir da década de 1990, os homens passaram a ser abordados como segmento populacional do sexo masculino nas investigações dos padrões de morbimortalidade que consideravam a diferenciação sexual nos indicadores epidemiológicos (ver, por exemplo, Laurenti, Mello Jorge, Gotlieb, 2005). Nas duas últimas décadas, os homens têm sido estudados com base na perspectiva de gênero, que oferece abordagem mais contextualizada com a construção social das masculinidades. Essa perspectiva, para além da construção social de gênero, engloba a dimensão relacional e de poder (Scott, 1995). É tributária dos estudos de vertente feminista – estabelece-se na crítica às desigualdades de gênero, à naturalização dos comportamentos e à medicalização dos corpos – e fortemente influenciada pelo movimento gay que, desde a década de 1970, chamava a atenção para a opressão a que os homens homossexuais eram submetidos por contrariarem os padrões de gênero estabelecidos socialmente (Arilha, 2005). No campo da saúde, atentou-se para a influência da construção social das masculinidades na produção de comportamentos de risco à saúde e em dificuldades relacionadas à prática do cuidado (Courtenay, 2000). Somadas a isso, nas políticas públicas de saúde e na estrutura organizacional dos serviços, tornaram-se visíveis desigualdades que comprometem a relação dos homens com os serviços e o cuidado em saúde (Couto et al., 2010; Figueiredo, 2005). Essas diferenças têm sido investigadas, especialmente, na APS, modalidade assistencial que, nos moldes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), propõe-se a ser porta de entrada do sistema público de saúde e estratégia para a reorientação do modelo de atenção. Embora os serviços da APS sejam apresentados como a opção da rede pública mais procurada por homens e mulheres para o cuidado em saúde (Pinheiro et al., 2002), a presença dos homens nesses espaços é sempre inferior à das mulheres, que configuram a clientela prioritária de tais serviços, assim como crianças e, mais recentemente, idosos (Figueiredo, 2005). Nesse sentido, ocorre em tais espaços uma invisibilidade dos homens: como alvo de intervenção em saúde, expressa sobretudo na falta de programas e atendimentos direcionados aos homens; como usuários, que têm dificuldades para acessar os serviços ou para serem acolhidos com suas demandas; e como sujeitos de cuidado, que, pela expectativa dos profissionais de que o homem não cuida de si 846

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nem de outras pessoas, não são estimulados às práticas de prevenção e promoção de saúde (Couto et al., 2010). A vida sexual se destaca, no cenário dos estudos orientados pela perspectiva de gênero, como um dos pilares da construção do masculino e como esfera na qual, especialmente, se expressam os valores hegemônicos de masculinidade, representados pela virilidade, potência e dominação, e ancorados na ‘naturalização’ de uma sexualidade instintiva, incontrolável e mais acentuada que a feminina. O exercício sexual, orientado por tais valores, frequentemente, é associado ao não-cuidado em saúde e ao comportamento desprotegido em relação a si mesmo e aos outros (Gomes, 2008; Silva, 2007). Dado que as questões de saúde sexual e reprodutiva são reconhecidamente relacionais, a sexualidade masculina passou a configurar um tema de relevância para os estudos e intervenções no campo da saúde pública. Nesse sentido, essa temática emergiu do silêncio no qual estava imersa até a década de 1980, quando, frente à epidemia da aids, os homens foram inseridos nas discussões da área (Portella et al., 2004). Essa inserção, segundo Arilha (2005), tem sido feita tomando-se por base a ideia de que os homens são sujeitos capazes de atuar com facilidade no campo das escolhas sexuais e reprodutivas, e detentores de um poder uníssono. Essa crença está presente nos documentos de conferências da ONU. Ao mesmo tempo, os debates feitos nessas conferências buscam democratizar as relações de gênero a partir do incentivo da ‘educação’ dos homens para a participação nas tarefas domésticas, no âmbito da paternidade e no contexto das práticas sexuais. Na produção científica sobre os homens na área da saúde pública, a sexualidade masculina é um dos temas que se destacam. Entretanto, esse tema é discutido com base nos seguintes núcleos de sentido: sexualidade infectante (sustentado pela maior participação dos homens nos perfis epidemiológicos das Infecções Sexualmente Transmissíveis/IST ou pelo envolvimento dos homens com a prostituição), heterossexualidade e não-monogamia (Gomes, Nascimento, 2006). No âmbito das intervenções em saúde, diferentemente da sexualidade feminina, que, pela via da medicalização, foi tomada como objeto de um intenso controle, a sexualidade masculina tem se limitado a abordagens pontuais em situações de infertilidade, IST ou início de envelhecimento. Essas abordagens têm ocorrido, preferencialmente, nas consultas com o clínico geral, a partir de uma evocação de problemas sexuais (Bozon, 2004). A concepção de ‘disfunção sexual’, que entrou em cena com o advento do Viagra®, marca a superação das interpretações místicas acerca da então ‘impotência sexual’ e da abordagem psicológica desse problema pela explicação puramente orgânica e pela exclusividade do tratamento medicamentoso. A sexualidade, nessa transição, passou a ser pensada sob perspectiva mecânica, dissociada da parceria e emancipada do declínio inerente ao envelhecimento (Sohn, 2008). Nesse percurso, parece ter começado a ganhar força um processo de medicalização do corpo e da vida sexual dos homens, expresso, como lembra Aquino (2005), na grande produção de pesquisas e publicações (incentivadas pela indústria farmacêutica) a respeito de tal disfunção, assim como da ejaculação precoce e da reposição hormonal para o tratamento da andropausa ou climatério masculino. Consoante a essa discussão, neste artigo, analisa-se como, no contexto de serviços de APS organizados segundo a ESF, apresentam-se questões relativas à sexualidade masculina e as possibilidades de sua abordagem pelos profissionais desses espaços. De forma mais específica, são apresentados, como temas que se destacam nessa abordagem: as IST, a prevenção de câncer de próstata e os problemas relativos à ereção.

Aspectos metodológicos Este trabalho decorre de uma pesquisa multicêntrica voltada à investigação da relação entre homens e serviços de saúde em quatro estados brasileiros: PE, RJ, RN, SP (Couto et al., 2009). A pesquisa foi orientada pela perspectiva etnográfica, que tem longa tradição na antropologia e dispõe, como pressuposto fundante, da interpretação dos aspectos simbólicos e culturais nos contextos sociais em que ocorrem (Peirano, 1995). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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O recorte empírico para este trabalho se detém na investigação de duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da cidade de Natal/RN, ocorrida entre agosto de 2007 e março de 2008. Como critérios de seleção dos dois serviços em Natal/RN, assim como dos demais serviços participantes do projeto multicêntrico, foram considerados: tempo de funcionamento de, pelo menos, dez anos - sendo que a equipe de saúde em atividade funcionasse há, pelo menos, dois anos; volume de demanda igual ou maior que mil atendimentos/mês; presença de equipe multiprofissional; sensibilidade e disponibilidade da chefia para integrar a pesquisa. Foram analisados diários de campo produzidos em observações etnográficas e depoimentos colhidos em entrevistas em profundidade com homens usuários de uma ou de outra dessas duas UBS. As observações foram realizadas por pesquisadores treinados, em dias e horários de funcionamento padrão dos serviços e no contexto das diversas atividades internas e externas às UBS, durante três meses, para cada um dos serviços. Foram entrevistados 29 homens na UBS1 e 28 na UBS2, totalizando 57 entrevistas em Natal/RN. Durante o período de observação etnográfica e no contexto do atendimento aos usuários, foram realizados os convites das entrevistas. Mediante o aceite por parte dos usuários, era verificada a disponibilidade para a realização imediata, no próprio serviço, ou em data agendada segundo a conveniência de local, dia e horário para o usuário. Assim, parte das entrevistas foi realizada no serviço e parte na residência dos entrevistados; todas em ambiente privativo e sem a presença de terceiros. No que diz respeito às temáticas investigadas na pesquisa multicêntrica, foram destacados, para a análise empreendida neste trabalho, os aspectos relativos à sexualidade masculina enquanto demandas e/ou questões apresentadas às UBS, e as respostas oferecidas. O trajeto analítico-interpretativo foi orientado pela hermenêutica filosófica, segundo a qual a compreensão ocorre como interpretação, na qual está implicado o sujeito que interpreta, com seu ‘modo de ser linguagem’. Assim, o encontro entre o sujeito que busca conhecimento e o sujeito que informa é melhor definido como um diálogo, em que, em vez de se alcançar o significado contido no fenômeno, negocia-se tal significado. O compreender e o interpretar consistem sempre em participar de um diálogo em que os horizontes se fundem (Ayres, 2008). O tratamento dos dados teve o seguinte percurso: leitura do material proveniente das observações e entrevistas, com recorte dos trechos com questões relacionadas à sexualidade; leitura exaustiva dos trechos; identificação de assuntos e sentidos; interpretação e construção de uma síntese dos mesmos; articulação das questões encontradas com a literatura referente e a perspectiva teórica de gênero.

Homens e questões de sexualidade nas Unidades de Saúde Pedro pedreiro penseiro esperando o trem [...] esperando aumento para o mês que vem esperando a festa, esperando a sorte e a mulher de Pedro esperando um filho pra esperar também (Chico Buarque, 1966)

Os homens entrevistados inserem-se num contexto de pobreza urbana. São moradores das redondezas das UBS pesquisadas, cujas localidades apresentam grande similaridade em termos de localização geográfica (não fazem parte da faixa litorânea e não apresentam conexões com o setor de turismo, uma das principais atividades econômicas da cidade) e de aspectos socioeconômicos (situam-se em bairros da periferia, que contam com pouca infraestrutura e que possuem altos índices de desemprego e violência). A figura de Pedro Pedreiro, personagem de Chico Buarque, parece ser, grosso modo, uma boa caracterização para esses homens, aqui nomeados metaforicamente de Pedro4: homens simples, em arranjos familiares tradicionais e com poucas perspectivas de melhora de vida. O Quadro 1 detalha alguns aspectos sociodemográficos dos usuários.

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Os homens entrevistados serão todos identificados como Pedro, mas diferenciados pelas iniciais de seu nome. Ex.: Pedro RS.

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Quadro 1. Caracterização sociodemográfica dos homens entrevistados Características sociodemográficas Raça/cor (autorreferida) Branco Pardo Negro Sem informação Estado civil Casado/união estável Solteiro Separado/divorciado Posição na família Chefe Filho/neto Mora só Sem informação Escolaridade Analfabeto Alfabetizado/Ensino Primário Fundamental incompleto Fundamental completo Ensino Médio incompleto Ensino Médio completo Ensino Superior incompleto Ensino Superior completo Sem informação Trabalho Empregado/autônomo Aposentado/licença médica Desempregado Estudante Sem informação Renda familiar Até R$ 500 R$ 501 a 1.000 R$ 1.001 a 1.500 Acima de R$ 1.500 Sem informação

Quantidade de homens por grupo etário 26 a 45 anos (n=20)

46 a 60 anos (n=20)

8 1 8 0

6 11 0 3

4 13 1 2

18 (36,6%) 25 (43,8%) 9 (15,8%) 5 (8,8%)

6 11 0

12 6 2

18 1 1

36 (63,1%) 18 (31,6%) 3 (5,3%)

5 11 0 1

13 5 1 1

18 0 1 1

36 (63,1%) 16 (28,1%) 2 (3,5%) 3 (5,3%)

0 1 8 1 6 1 0 0 0

0 0 5 1 4 5 1 1 3

5 3 3 1 1 3 1 0 3

5 (8,8%) 4 (7,9%) 16 (27,1%) 3 (5,3%) 11 (19,3%) 9 (15,8%) 2 (3,5%) 1 (1,7%) 6 (10,5%)

6 0 2 8 1

15 0 5 0 0

12 6 1 0 1

33 (57,9%) 6 (10,5%) 8 (14,0%) 8 (14,0%) 2 (3,5%)

7 6 2 1 1

5 8 3 0 4

6 5 5 2 2

18 (31,6%) 19 (33,3%) 10 (17,5%) 3 (5,3%) 7 (12,3%)

16 a 25 anos (n=17)

Total (n=57)

As UBS pesquisadas funcionam nos moldes da ESF, que destina-se a assistir, por meio de atividades internas e externas, os moradores da região pela qual cada unidade tem responsabilidade sanitária (Brasil, 2007). Ambas funcionam no horário das 7h30min às 11h30min e das 13h30min às 16h30min. Na ocasião da pesquisa, a UBS1 dispunha de três equipes de Saúde da Família, e a UBS2, de duas. Além dos profissionais nucleares - médico/a, enfermeira, dentista, técnicas de enfermagem, agentes comunitários/as de saúde e auxiliar de consultório dentário -, a UBS1 contava com nutricionista e técnico em exames laboratoriais; a UBS2, com psicóloga, assistência social e fisioterapeutas. Em relação ao espaço físico, as duas UBS dispunham de instalações suficientes para prestar assistência, havendo salas individuais para os atendimentos, exames e procedimentos, e áreas coletivas, como sala de espera, recepção e locais para reuniões e atividades educativas, além de copa e lugar destinado à esterilização de materiais. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Tomando mais propriamente as questões em torno da sexualidade, observa-se que a estrutura organizacional das UBS reflete a atenção desigual dada a homens e mulheres nesses serviços. A abordagem à sexualidade dos usuários e das usuárias acontece de forma bastante diferente, o que permite a referência a uma abordagem à sexualidade masculina, em distinção a uma feminina, como mostra a observação a seguir: A abordagem à saúde sexual na UBS acontece, em parte, vinculada às atividades de planejamento familiar ou à saúde da mulher. O cuidado com a prevenção das IST acaba por ser uma extensão das consultas em que as usuárias tratam de reprodução ou fazem exames ginecológicos. O tema chega aos homens, portanto, com menor frequência e dissociado do viés reprodutivo, em consultas variadas em que alguma demanda nesse campo surja. (Diário de campo, UBS1)

A sexualidade masculina é abordada de forma pouco sistemática, não dispondo de um espaço demarcado na agenda de programas dos serviços (como acontece com a sexualidade feminina), e encontra, portanto, menos vias para ser inserida na discussão e intervenção em saúde. Dessa maneira, ela se apresenta de forma dispersa, podendo ser encontrada em meio a questões, queixas ou demandas que aparecem em diferentes momentos da assistência e se concentram em três temas, que serão discutidos a seguir. Infecções Sexualmente Transmissíveis A abordagem das IST aponta uma contradição entre a perspectiva dos homens usuários e a dos profissionais das UBS. De um lado, os primeiros acreditam tratar-se de um dos mais frequentes, senão o principal problema de saúde que acomete os homens. Ademais, acreditam que, entre eles, a incidência de IST é maior do que entre as mulheres. “{Quais são os principais problemas de saúde dos homens? As coisas das quais eles mais se queixam?} O que eu vejo de amigos, de pessoas próximas é questão de ter doença sexualmente transmissível. Às vezes, eles ficam até mais vulneráveis do que as mulheres. Aqui no bairro teve uma época que teve bastante casos desse tipo, porque eles às vezes não se cuidam, né?, de usar preservativo, esse tipo de coisa”. (Pedro GP, 28 anos)

Reproduz-se, assim, uma associação entre homens e IST, também encontrada na literatura, e que se sustenta na maior participação dos homens nos perfis epidemiológicos das IST. Essa participação se destaca no caso da aids, cujas notificações no Brasil revelam que, historicamente, houve uma predominância dos homens em relação às mulheres (Gomes, 2008). Uma vez que vários usuários se identificam como alvo de IST, seria esperado, na assistência prestada a eles pelos serviços, um número considerável de atendimentos motivados por esse problema de saúde. Todavia, além de as UBS não enfatizarem esse problema como um foco de atuação, os profissionais não lhe atribuem grandes dimensões, inferindo, pelos poucos casos que chegam aos serviços, que há uma baixa incidência, sobretudo entre os homens. Os casos citados pelos profissionais se tratam, segundo eles, de quadros simples: infecções por gardnerella, tricomoníase, candidíase, sífilis, etc. Alguns foram diagnosticados nos exames preventivos ginecológicos, outros em outras consultas de praxe, em que os próprios usuários apontaram os sinais da doença. [...] A maioria dos atendimentos em saúde sexual é realizada com mulheres. [...] As usuárias são advertidas da necessidade da participação de seus maridos no tratamento; no entanto, alertam que eles se recusam a ir à unidade com esse fim. Dessa forma, o tratamento para o casal é orientado à mulher, que é incumbida de repassar para o companheiro. A enfermeira dificilmente tem informações a respeito da realização do tratamento pelo homem. (Diário de campo, UBS1)

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Nesse sentido, é oportuno resgatar o posicionamento do Ministério da Saúde (Brasil, 2010), ao reconhecer que, a despeito de uma aparente simplicidade no lidar com as IST, trata-se, ainda hoje, de um grave problema de saúde pública, por sua magnitude, pela dificuldade de as pessoas identificarem seus sintomas e, sobretudo, por serem grandes facilitadores da transmissão do HIV. Considerando-se que a maioria dos casos de IST referidos pelos profissionais foi identificada entre as mulheres nos atendimentos ginecológicos, é possível perceber que a suposta baixa incidência desses agravos entre os homens está vinculada ao direcionamento da assistência para a atenção à sexualidade feminina. A detecção de IST neles costuma partir apenas de sua própria iniciativa em procurar os serviços com esse fim ou de uma abordagem indireta dos profissionais, tendo as parceiras como mediadoras. Adicionalmente, a abordagem observada nos serviços dirige-se apenas à doença em si e a seu tratamento. As questões que a cerceiam, os significados atribuídos pelos sujeitos, seus receios e dúvidas não são contemplados pela atuação profissional; parecem não caber na assistência oferecida, ancorada na perspectiva da medicalização. De modo particular, os casos de IST em homens, quando apresentados, foram encaminhados a outros serviços para realização do tratamento. Nesse sentido, as IST dos homens (ao contrário das que acometem as mulheres) são tratadas como um problema de alçada da assistência especializada, encontrando pouco espaço e atenção nos serviços da APS. Contrárias a essa realidade, as diretrizes da Política Nacional de DST/AIDS (Brasil, 1999) preconizam que o diagnóstico e tratamento das IST devem ser oferecidos nos vários níveis de atenção do SUS. Embora seja prevista a implementação de unidades de referência em UBS selecionadas pelas coordenações estaduais e municipais, os profissionais da APS, ainda que não especialistas, estão habilitados a realizar diagnóstico por abordagem sindrômica, assim como tratar as doenças e orientar usuários/as a esse respeito. O encaminhamento a serviços de referência implica tornar mais longo o caminho que o usuário deve percorrer até chegar ao tratamento, tanto pela necessidade de ir a outro serviço (e enfrentar novas dificuldades, como filas, esperas, distância) quanto pelas próprias dificuldades de encaminhamento, como mostra o exemplo: “Eu acho que foi da primeira vez que eu tive [uma IST], eu tive uma relação sexual, aí eu falei com a doutora, não sei nem quem foi ali, ela deu as informações corretas, eu falei o que era, ela não pediu pra ver. {Não pediu?} É. Ela disse que esse problema não era com ela, era com o médico de pele, um negócio assim, ela me encaminhou. [...] Ela passou um remédio. “Olhe, tome esse remédio aqui, mas é só pra aliviar a dor – um negócio assim – porque esse não é um remédio pra sarar. Assim, eu não entendo, vou encaminhar você para o médico de pele.” Aí, ela pegou e encaminhou, mas demorou [...] para o encaminhamento chegar. [...] Demorou um mês, três semanas, por aí”. (Pedro RS, 18 anos)

Prevenção ao câncer de próstata O câncer de próstata consiste em um dos problemas mais lembrados na discussão da saúde dos homens. A popularidade desse agravo pode ser verificada no discurso dos próprios usuários das UBS: “Tem os problemas da próstata aí, que só dá em homem, mas o resto das doenças eu acho que é pra homem e pra mulher, não é?”. (Pedro SR, 62 anos)

Esse problema de saúde é acompanhado por uma tensão proveniente dos sentidos acionados pelo formato de um dos procedimentos utilizados na prevenção, o toque retal. Por envolver a exposição e o contato com as nádegas dos usuários homens, esse procedimento assume a conotação de ameaça à masculinidade. Dado que a região das nádegas iguala o homem à mulher e, portanto, pode feminilizá-lo, entra, no roteiro da conduta orientada pelo modelo hegemônico de masculinidade, a necessidade de proteger COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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essa região do toque e, mais ainda, da penetração. Na cultura brasileira, a penetração consiste num elemento fundamental para a construção simbólica de gênero, uma vez que o masculino é definido como ativo, insertivo, o que penetra (DaMatta, 1997). Pela conotação sexual que adquire e aciona, a prevenção do câncer de próstata torna-se assunto relacionado à sexualidade masculina pelo viés da ameaça à masculinidade. Daí, o toque retal ou a simples alusão a ele serem, com frequência, acompanhados de constrangimento ou vergonha, inclusive por parte dos homens mais jovens, que estão longe de serem indicados à realização desse procedimento. Nessa direção, se dá a resistência ou a recusa de alguns homens a se submeterem ao exame. “Aquele... Como é que é? Agora me esqueci... Da próstata, como é? Só esse mesmo. Eu acho que eu não ficaria à vontade não. [...] Nem com médico, nem médica, nem com nada. [...] Rapaz (risos), eu digo a você que eu não iria não. Eu acho que não”. (Pedro LN, 18 anos)

De acordo com Gomes (2003), vários pontos de tensão podem estar envolvidos no toque retal (incômodo com a penetração, receio de dor física e simbólica, de ter ereção, de ficar descontraído), e os profissionais, por partilharem do imaginário social, também podem ficar constrangidos e inseguros diante da possibilidade de medos e fantasias dos usuários. A racionalidade médica, na qual não cabem tais interpretações, de um lado, fundamenta a neutralidade como característica do olhar e da postura dos profissionais, neutralidade essa que tem tornado possível a realização de procedimentos como o toque retal, a despeito das tensões e resistências emergentes. De outro lado, sustenta a pouca importância dada aos sentidos que esse procedimento adquire frente à construção das masculinidades, o que pode ser visto, como lembra Gomes (2003), na escassez de estudos que se detêm em tal reflexão, e no despreparo de profissionais que realizam esse procedimento e planejam as campanhas de prevenção. Comumente, essa racionalidade se impõe aos usuários, que a adotam como verdade sobre a relação com o profissional e, em especial, sobre o contato físico. Dessa forma, nota-se a conformação de vários homens ao procedimento do toque retal, motivada, muitas vezes, pelo receio de agravamento da saúde: “Eu tô querendo fazer a marcação pra o exame da próstata, que eu nunca fiz. Tô com 54 anos e não fiz ainda. [...] O médico que diz, aquele da televisão, diz que com 40 anos o cara tem que fazer. E tá matando muito homem a próstata, né? Aí quero marcar um para fazer, vou pedir o encaminhamento, se Deus quiser”. (Pedro JO, 54 anos)

Nesse sentido, a entrada em cena da prevenção do câncer de próstata pode representar também um avanço na medicalização do corpo e da vida sexual dos homens. Paralelo a isso, a reação dos usuários homens ao possível processo de medicalização, especialmente ao problematizarem esse procedimento, toma por base o modelo tradicional de masculinidade. “{E você já imaginou assim como seria fazer esse exame? [...]} Rapaz, eu nunca tive essa experiência não e também eu tô até desinformado; eu questiono, com esse sentido, [...] de, por exemplo, ser um toque e tal, o médico vem, chega e fica observando ali. Então, eu digo o seguinte: não estamos no tempo da pedra lascada, nós estamos hoje num mundo informatizado, talvez tenha um tipo de aparelho que chegue e já resolva esse problema sem tá precisando dessa coisa velha, antiga. [...] Tem esses incômodos, os comentários, brincadeira, lorota, aquelas coisas bobas, né? [...] {Mas o que você acha desse exame em relação à masculinidade? Ao homem fazer um exame desse tipo?} Rapaz, se a gente for olhar o lado profissional, a gente vai se sentir bem; mas, se for pro lado da sua imagem e tal, é chato. [...] Rapaz, o cara foi lá e fez assim, assim... Se um cara passar assim ao menos a mão no traseiro de outro, já leva porrada; mas no exame é um profissional que tá ali, ele vai cuidar da saúde, pra ele é normal”. (Pedro NP, 45 anos)

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Ao questionar e sugerir uma intervenção informatizada, o usuário revela a tentativa de proteger sua masculinidade no âmbito social, haja vista que tal atributo é sempre atualizado no empírico, por meio da validação de outros homens (Silva, 2007; DaMatta, 1997). Ele parece recorrer ao argumento da neutralidade e normalidade da intervenção profissional para seu próprio convencimento quanto à necessidade de se submeter ao procedimento. No entanto, proteger o ideal de masculinidade em certos momentos, para alguns, pode ser mais importante do que se cuidar.

Problemas relativos à ereção No título de ‘problemas relativos à ereção’, agrupam-se as denominações de disfunção sexual ou impotência sexual, e as referências feitas, explícita ou implicitamente, por meio de termos descritivos ou metafóricos, à dificuldade ou impossibilidade de ter ereção. Esses problemas foram largamente citados pelos usuários ao se referirem a questões de saúde que afetam os homens, seja como vivência do problema ou como situação hipotética. Em qualquer desses casos, trata-se de uma situação que adquire significados atrelados à(s) masculinidade(s). Uma vez que a ‘potência’ e a atividade sexual (com penetração) são símbolos da virilidade, a ‘impotência’, representada por esses problemas, surge como contraponto (Gomes, 2008). Considerando que esses problemas se inscrevem, predominantemente, nos relatos do segmento acima dos 45 anos, tal condição assume ainda o sentido de falência do organismo. “Mas a queixa maior que eu acho é ficar velho e acabar a potência, o homem fica mais fragilizado, é isso aí. [...] Tem homem que toma Viagra, eu nunca tomei. Pra mim é isso, se a minha potência acabou, então é isso, acabou. Tudo tem começo e fim. Eu não vou inventar essas coisas não”. (Pedro FR, 68 anos)

Imersos em vários sentidos e significados, os problemas relativos à ereção encontram, assim como as IST, uma resistência maior que a habitual a serem levados ao serviço. Alguns homens, se não permanecem em silêncio, procuram, para lidar com esse problema, caminhos que desviem do serviço de saúde e, em especial, de profissionais mulheres. Nas observações realizadas, esses problemas, quando surgiram como queixa ou temática no contexto dos atendimentos, foram tratados de forma abreviada e superficial. A cena a seguir se refere à observação de uma consulta e ilustra a dificuldade tanto do médico quanto do usuário em abordar o assunto: Na ocasião, o médico realizava um atendimento a um senhor de 59 anos que sofre de hipertensão arterial: - O senhor toma esse medicamento há algum tempo já. O senhor se dá bem com ele? - Sim. A pressão baixou, não foi? - Mas baixou pouco. Era para baixar mais. E me diga uma coisa: o senhor é casado, não é? [Paciente confirma com a cabeça] Como estão as relações com sua esposa? Está tudo certo? - Assim, o senhor tem que ver que eu não sou mais um jovem... [Médico interrompe] - Veja bem, esse medicamento que o senhor está usando, o propanolol, é bom, mas a gente geralmente não passa para homem porque ele diminui a libido. Por isso que eu perguntei ao senhor como estavam as relações. - Não. Está tudo bem. Não afetou nada não. - Bom, se o senhor está me dizendo que está tudo bem... - Está sim. Você vai ver, na próxima consulta, minha pressão vai ter baixado mais. - Ok. Mas vamos ficar de olho. Qualquer coisa, a gente troca a medicação. (Diário de campo, UBS1)

Nesse atendimento, além de o único aspecto da sexualidade do usuário enfatizado ter sido a suspeita de ‘diminuição de libido’, a abordagem do profissional considerou apenas a possibilidade de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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interação do medicamento com a atividade sexual, como se esta estivesse desligada de outros fatores como o estágio de vida do usuário, sua relação conjugal, suas condições emocionais, sociais etc. Em revisão da perspectiva teórica e das intervenções no tratamento da ‘disfunção erétil’, Winton (2000) ressalta o desenvolvimento do modelo biomédico que, focado nas estruturas biológicas e na interação entre a biologia e química no corpo, torna-se cada vez mais o paradigma dominante no campo das ‘disfunções sexuais masculinas’. De forma semelhante, outros autores (Potts et al., 2006; Aquino, 2005) discutem o lugar dessas disfunções na medicalização do corpo e da vida sexual dos homens. É possível inferir que a não-adesão ou os questionamentos de alguns usuários ao tratamento prescrito para os problemas relativos à ereção podem representar uma resistência à possível medicalização, conforme ilustra a fala que o usuário, atendido na consulta descrita acima, dirige ao pesquisador após deixarem a sala do médico: Você viu? Ele achava que tinha problema na medicação. Mas eu vou lhe contar. Sabe o que foi? Eu fiz estripulia, bebi e comi umas comidas salgadas, por isso a pressão deu alta. E outra, eu não vou dizer a ele, minha mulher é velha já, mas eu pego umas negas e não tenho problema nenhum. (Diário de campo, UBS1)

O usuário expôs informações que não contou ao médico, possivelmente devido à falta de disponibilidade do profissional para acolher as demandas que fogem à lógica de intervenção da biomedicina. Não contar as ‘estripulias’ pode ser reflexo do receio de compartilhar comportamentos que, embora significativos para o seu bem viver, poderiam ser condenados por uma postura normatizadora do médico. Considerando o parâmetro da biomedicina, a sexualidade masculina tende a ser abordada como função sexual, da qual o dado mais objetivo é a ereção, que acaba por ser um resumo ou uma tradução da funcionalidade sexual do homem. Nesse sentido, os problemas relativos a ela assumem o lugar de disfunção, como fica óbvio no termo consagrado atualmente na nomenclatura científica predominante, que toma a ‘diversidade’ como ‘disfunção’ (Potts et al., 2006). Essa perspectiva aparece em outras consultas observadas, de modo a direcionar a conversa acerca da sexualidade pela lógica da fisiopatologia: A médica salienta que a glicose está alta. Chama atenção para o perigo da diabetes e os possíveis prejuízos nos rins, olhos, extremidades, incluindo pênis. “Tô com problema nesses três mesmo”, afirma Pedro IC. A médica pergunta ainda sobre como está sendo administrada a medicação. Ele informa que nem sempre toma a mesma dosagem, às vezes aumenta, às vezes diminui. Ela ressalta que se deve tomar os medicamentos “religiosamente”. O usuário argumenta que determinado remédio deixa-o “morto”, sem poder ter relações sexuais. Pergunta se não há um jeito de tomar remédio e não ficar impotente. A médica explica sobre o excesso de glicose, diabetes, hipertensão e as consequências para a função sexual. Segundo ela, “todo homem vai ter impotência.” [...] Orienta sobre realizar atividades físicas, fazer dieta, uso de medicamentos, ficar do lado de quem gosta. Pedro IC relata novamente sua demissão e o fato de ultimamente estar nervoso por isso, chegando a tomar três diazepans por dia. “Isso ai acaba com aquela função, viu?” Ressalta a médica. Explica sobre o uso de benzodiazepínicos. (Diário de campo, UBS2)

É interessante notar que a abordagem que reduz a saúde sexual ao funcionamento erétil do pênis deixa de problematizar a ereção como condição (in)dispensável ao exercício da sexualidade. Tal problematização poderia ampliar a discussão acerca das práticas, ainda centrada em certa hierarquia moral que coloca, no topo, a penetração vaginal e, como clímax, a ejaculação masculina (Villela, Arilha, 2003). Perde-se a oportunidade de questionar a centralidade dessa forma hegemônica de fazer sexo e contemplar possibilidades alternativas. Adicionalmente, a abordagem descrita – feita a partir da lógica da medicalização e, em especial, da interação de medicamentos ou de efeitos secundários de outras patologias – não vislumbrou 854

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tratamentos possíveis para o problema apresentado, senão a intervenção nesses supostos agentes causadores. Na direção contrária, Levine (2000) defende que, devido à sua grande influência na qualidade de vida dos homens acometidos (afetando a autoestima, a autoimagem, produzindo aumento de ansiedade, depressão e dificuldade nas relações), e por se apresentarem, também, como indicativos ou sintomas de outras doenças (como as cardiovasculares, por exemplo), os profissionais do ‘Primary Care’ deveriam concentrar maior atenção nas questões relativas à saúde sexual dos usuários nos exames físicos de rotina e no levantamento da história pessoal. Embora tal proposição tenha sido apontada para o contexto estadunidense, tem a mesma relevância para a APS no Brasil. Nesse sentido, a abordagem de problemas relativos à ereção nas UBS pode produzir uma atenção mais integral aos usuários, uma vez que permite articular a assistência ou prevenção desses problemas ao acompanhamento de outros com quais eles podem estar relacionados, como a hipertensão arterial, tratada prioritariamente nos serviços da APS.

Considerações finais Diante do percurso realizado, é possível pensar que, pela íntima relação com a construção das masculinidades, a sexualidade masculina pode configurar uma via de acesso às representações dos homens a respeito do próprio corpo e da própria saúde, abrindo um possível caminho para a aproximação entre eles e os serviços. O que se observa nos serviços, no entanto, é uma abordagem superficial, abreviada e ancorada no parâmetro da medicalização, de modo que a sexualidade só cabe nas discussões e intervenções profissionais (e, por repetição, na queixa dos usuários) se estiver na lógica da fisiopatologia. Nesse formato, a atuação dos profissionais e a estrutura organizacional dos serviços não têm dado conta de assistir os usuários (e, certamente, as usuárias) em suas necessidades em saúde sexual. Isso implica acrescentar, à vulnerabilidade dos indivíduos ao adoecimento nos níveis individual e social, fatores que os vulnerabilizam no âmbito programático (Ayres et al., 2006) – provenientes das políticas de saúde, do pouco espaço e suporte oferecidos nos serviços para lidar com questões relativas à sexualidade que, juntos, coadunam para a não-efetivação dos direitos sexuais. Comparado à medicalização do corpo e da vida sexual das mulheres, já bem sedimentada ao longo de mais de dois séculos nas práticas em saúde (Vieira, 2002), o processo equivalente com o corpo e a sexualidade dos homens começa a ser sentido nos últimos anos (Gomes, 2008; Aquino, 2005). Da mesma forma, a reação à medicalização já tem história no caso delas. No caso dos homens, a reação se movimenta ainda, construindo os argumentos e buscando reconhecimento. É óbvio que o atraso da inserção dos homens no processo de medicalização está atrelado à posição social de vantagem que historicamente ocuparam em relação às mulheres. Isso não justifica que a construção de uma equidade de gênero seja buscada por meio do ‘desempoderamento’ dos homens diante da medicalização. Isso não seria equivalente a empoderar as mulheres. Como defendem Carrara et al. (2009), destituir os homens da posição historicamente construída em nome de uma sujeição dos mesmos às normas da medicina é uma questão de exercício do poder médico sobre os homens. Alguns homens têm incorporado o discurso médico e se sujeitado a suas determinações. Nesse sentido, é importante reconhecer que os homens, a despeito das barreiras à sua presença nos serviços, têm buscado atendimentos, têm demandado atenção. Isso fragiliza o argumento de que a prática do cuidado é exclusividade da ‘natureza’ ou da socialização feminina. Entretanto, é também importante notar que os homens, de alguma forma, têm resistido à medicalização, o que potencializa a necessidade de participação desses sujeitos na construção da assistência oferecida. É interessante lembrar que o próprio termo saúde sexual esteve, inicialmente, atrelado à noção de sexualidade (inscrita no modelo biomédico), tendo sido utilizado como equivalente a esta. Apenas recentemente (2006), a Organização Mundial de Saúde ampliou a definição de saúde sexual para além da ideia de ausência de doenças, disfunções ou enfermidades, incorporando a referência aos direitos sexuais e a uma abordagem positiva da sexualidade e dos relacionamentos sexuais (Paiva et al., 2008). Essa nova perspectiva tanto pode subsidiar uma assistência mais integral à saúde e às questões sexuais, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como pode fortalecer uma atuação de profissionais e usuários de serviços de saúde que caminhe na direção de resistir à medicalização. Diante do cenário em que a leitura estereotipada de que os homens não se cuidam se depara com dados que mostram que o homem, ao buscar cuidado, muitas vezes não se submete à medicalização, talvez seja oportuno propor também uma abordagem positiva dos valores e características relativos ao masculino (e ao feminino), na qual as “insígnias de gênero possam ser usadas no sentido de crescimento mútuo” (Villela, 1999, p.212). Significa fazer uma aposta de que os atributos do masculino possam ser qualidades que ajudem homens e mulheres no cuidado à saúde, por exemplo, o saber e o poder sobre o sexo poderia facilitar o uso do preservativo. Nesse sentido, a assunção de fragilidade e vulnerabilidade não precisa implicar submissão. Afinal, diante de um obstáculo à saúde, é preciso um re-conhecimento de uma fragilidade a ser cuidada, que não tem de ser oposta aos aspectos de assertividade do sujeito. Nessa direção, os atributos de força e poder e a dificuldade de se sujeitar ao outro, característicos do padrão hegemônico de masculinidade, podem levar os homens a uma resistência à submissão à medicalização imposta nas questões de sexualidade, bem como podem provocar a construção de relações dialógicas entre profissionais e usuários homens. Mas, para isso, é imperativa a construção de outra racionalidade na saúde, a partir da qual o comprometimento com o sofrer do outro seja capaz de desviar o foco da doença para dar evidência à vida que se produz mesmo no adoecimento. Se as dificuldades de reconhecimento dos carecimentos em torno da sexualidade estão presentes no desafio de entender-se com o outro, de acessar o que é obstáculo à vida para além da doença, para compreender o que os Pedros Pedreiros cuidam e/ou preservam em detrimento das possibilidades de adoecimento, é vital reconhecer a importância da dimensão relacional do trabalho em saúde e mudar os modos desse saber-fazer, incluindo sujeitos e coletivos.

Colaboradores Thiago Félix Pinheiro redigiu a primeira versão do texto. Márcia Thereza Couto colaborou na delimitação do recorte do artigo e na segunda versão do texto. Geórgia Sibele Nogueira da Silva colaborou com comentários e sugestões na segunda versão do texto, e todos os autores trabalharam juntos na versão final do manuscrito. Referências AQUINO, E.M.L. Saúde do Homem: uma nova etapa da medicalização da sexualidade? Cienc. Saude Colet., v.10, n.1, p.19-22, 2005. ARILHA, M.M. O masculino em conferências e programas das Nações Unidas: para uma crítica do discurso de gênero. 2005. Tese (Doutorado) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005. AYRES, J.R.C.M. Para comprender el sentido práctico de las acciones de salud: contribuiciones de la hermenêutica filosófica. Salud Colect., v.4, n.2, p.159-72, 2008. AYRES, J.R.C.M. et al. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: CAMPOS, G.W.S. et al. (Orgs.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006. p.375-417. BOZON, M. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. 2010. Disponível em: <http://www.aids.gov.br>. Acesso em: 5 mar. 2010. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Básica. Política Nacional de atenção Básica. 4.ed. Brasília: SAB, 2007.

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Palabras clave: Sexualidad masculina. Masculinidade. Medicalización. Atención primaria de salud. Recebido em 04/12/10 . Aprovado em 07/03/11.

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artigos

Saberes e práticas do agente comunitário de saúde na atenção à saúde do trabalhador Thais Lacerda e Silva1 Elizabeth Costa Dias2 Eliana Cláudia de Otero Ribeiro3

LACERDA E SILVA, T.; DIAS, E.C.; RIBEIRO, E.C.O. Knowledge and practices of community health agents in workers’ healthcare. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.859-70, jul./set. 2011. Community health agents play a fundamental role in workers’ comprehensive healthcare through registering and gathering information on the sociodemographic profile of this population and identifying productive activities developed at home and in the vicinity, along with possible risk factors for workers’ health. This study was based on competency reference points and sought to understand community health agents’ work processes, placing value on their knowhow and perceptions of work-health-illness relationships, in order to guide the capacitation processes. It was developed in a city located at metropolitan region of Belo Horizonte, Minas Gerais state, and used the card collection technique, which is part of the “Visualization in Participatory Programmes” method. Actions within the fields of competency of health promotion and organization of healthcare were identified. The results stress the importance of new studies that take into consideration the changes in community health agents’ work processes when aiming to developing workers’ healthcare actions.

Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) desempenham papel fundamental na atenção integral à saúde dos trabalhadores, cadastrando e recolhendo informações sobre o perfil sociodemográfico desta população, identificando atividades produtivas desenvolvidas no domicílio e peridomicílio e os possíveis fatores de risco para a saúde dos trabalhadores. Este estudo baseia-se no referencial das competências e busca compreender o processo de trabalho do ACS, valorizando seu saber fazer e sua percepção sobre as relações trabalho-saúdedoença, para orientar os processos de capacitação. Foi desenvolvido em um município da região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais e utilizada a técnica card colection, que integra o método VIPP (Visualization in Participatory Programmes). Foram identificadas ações nas áreas de competência: promoção da saúde/ prevenção de doenças e organização do cuidado. Os resultados reforçam a importância de novos estudos que considerem as mudanças no processo de trabalho do ACS ao se pretender desenvolver ações de saúde do trabalhador.

Keywords: Occupational Health. Primary Health Care. Competency-Based Education. Community health agent.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Atenção primária à saúde. Educação baseada em competência. Agente comunitário de saúde.

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1 Projeto “Desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador na Atenção Primária à Saúde”, grupo Saúde & Trabalho, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Prof. Alfredo Balena, 190, 8º andar/sala 817, Santa Efigênia, Belo Horizonte, MG, Brasil. thaislacerda@gmail.com 2 Departamento de Medicina Preventiva e Social, UFMG. 3 Coordenadoria de Ensino e Divulgação Científica, Instituto Nacional de Câncer.

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SABERES E PRÁTICAS DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE ...

Introdução A definição da Atenção Primária à Saúde (APS) como eixo organizador do cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS), pelo Pacto pela Saúde de 2006 (Brasil, 2006), impôs a necessidade de rearranjo institucional e a definição de novas atribuições e papéis para os profissionais de saúde e o controle social. Na atenção à Saúde do Trabalhador, essas mudanças se expressam, entre outras, no desafio de fazer com que a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), principal estratégia de implementação da Política para a área, organize as ações a partir da APS e redefina o papel a ser cumprido pelos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST). Neste contexto, algumas das atribuições dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) necessitam ser requalificadas, com implicações para os processos de capacitação e educação permanente desses profissionais. Os ACS vêm se transformando em força de trabalho numerosa e constituem-se atores importantes para o reordenamento do cuidado no SUS, desde o início da institucionalização do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), em 1991. Seu trabalho pode ser considerado complexo em função do papel de “elo” entre a comunidade e a equipe, que se expressa em um movimento duplo: decodifica, para a população, “modos de fazer” do sistema oficial e fornece, aos profissionais de saúde, elementos essenciais para a compreensão dos problemas de saúde das famílias e das necessidades da população (Nunes, 2002). Na produção do cuidado à saúde dos trabalhadores, os agentes desempenham papel fundamental, em especial, pela facilidade de acesso aos usuários no território de atuação, possibilitando a identificação do perfil ocupacional dos membros das famílias, das atividades produtivas desenvolvidas no espaço domiciliar e peridomiciliar, e dos fatores de risco para a saúde e o ambiente relacionados aos processos produtivos. O desempenho desse papel requer do ACS múltiplos saberes e habilidades, o que pressupõe a necessidade de formação sólida e permanente deste trabalhador, com foco na atuação em equipe. Essas exigências, quanto ao desempenho, ganham relevância no cenário das mudanças, na configuração do trabalho e nas relações de produção, que têm resultado no aumento do trabalho informal, familiar e em domicílio (Dias et al., 2011). É nesse contexto que se destaca o desafio de preparar o ACS para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador, reconhecendo a diversidade de suas experiências diárias de enfrentamento dos problemas que envolvem as relações trabalho-saúde-doença e incorporando esses saberes nos processos de capacitação. Assim, a partir do reconhecimento de conceitos e práticas por eles empregados no cotidiano de trabalho, o presente estudo busca favorecer a definição de conteúdos que devem compor seu processo de educação permanente. Este artigo traça o perfil de competência dos ACS para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador, construído com base na valorização do saber fazer destes trabalhadores, incorporando o próprio trabalhador no processo. Também são discutidas as principais dificuldades relatadas pelos agentes para a implementação dessas ações.

Metodologia Trata-se de estudo descritivo-exploratório de construção coletiva visando definir o perfil de competência dos ACS para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador. Utilizou-se a abordagem dialógica de competência, definida como sendo a mobilização de atributos pessoais para a realização de ações em contextos específicos. A ação, própria do campo profissional, e os atributos a ela subjacentes e mobilizados em um contexto específico conformam o desempenho, por meio do qual se pode inferir a competência (Ribeiro, Lima, 2003). Foi utilizada a técnica “card colection”, que integra o método “Visualization in Participatory Programmes” (VIPP) (Unicef, 1993), buscando a identificação, análise e discussão das tarefas 860

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desenvolvidas pelos agentes e os atributos mobilizados para desempenhá-las. VIPP integra um conjunto de técnicas de grupos utilizadas para facilitar a interação entre os atores envolvidos e criar um processo de construção do conhecimento coletivo. A opção pela construção coletiva do perfil de competência do ACS para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador está embasada na valorização de seu saber fazer, princípio fundador da área. Nesse sentido, contribuir para a qualificação dos agentes exige conhecer e apreender os saberes e práticas que eles mobilizam para o desenvolvimento das ações de Saúde do Trabalhador em seu território de atuação. O estudo foi realizado em um município da região metropolitana de Belo Horizonte, MG. Na escolha do local influíram o perfil produtivo complexo do município, lócus de diversas atividades produtivas de grande, médio e pequeno porte, e a experiência de trabalho integrado do CEREST com a rede básica de saúde. Foram selecionadas unidades de saúde com presença exclusiva do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, devido à predominância deste modelo no município em estudo. Outros critérios utilizados para a escolha das unidades estudadas foram: a) maior cobertura da população adscrita pelo Pacs, b) grau de articulação prévia com o CEREST regional, e c) desenvolvimento prévio de ações de Saúde do Trabalhador, entre elas, o mapeamento das atividades produtivas e a notificação de agravos relacionados ao trabalho. Com base nos critérios enunciados, foram escolhidas duas unidades básicas de saúde. O critério de maior tempo de atuação no Pacs foi utilizado para a seleção dos vinte ACS participantes do estudo. O grupo ficou constituído por agentes do sexo feminino, com escolaridade mínima de Ensino Fundamental completo, média de idade de 44,4 anos e tempo médio de serviço na função de 8,3 anos. O perfil de competência foi construído com base em três oficinas. Na primeira, os ACS foram convidados a explicitar sua compreensão sobre as relações trabalho-saúde-doença e a relatar as ações desenvolvidas consideradas como “ações de Saúde do Trabalhador”. Tarjetas foram distribuídas às agentes para que pudessem escrever as ações realizadas, que, a seguir, foram afixadas em um mural de forma a permitir o reconhecimento das atividades descritas. A discussão das atividades registradas no painel permitiu o seu reagrupamento segundo sua natureza e a forma como são desempenhadas. Os relatos dos ACS foram registrados por dois relatores e as discussões gravadas. Os registros, complementados pelas transcrições das gravações, foram sistematizados em matriz de análise utilizada para identificar os núcleos de sentido, tal como proposto por Bardin (2007). Os resultados da análise permitiram a construção do perfil de desempenhos dos ACS. Na segunda oficina, destinada à validação dos desempenhos pelos ACS, foi solicitado aos agentes que indicassem o grau de concordância ou discordância com cada desempenho expresso nos enunciados, organizados previamente, utilizando-se a escala Likert (Malhotra, 1996). Foram considerados válidos os itens que obtiveram grau de concordância total ou parcial. Após a avaliação dos agentes acerca dos itens descritos nos quadros, discutiram-se os itens assinalados na escala abaixo de três (sem opinião; discordância parcial ou total). As sugestões de mudanças da forma e da linguagem empregadas na descrição dos desempenhos foram incorporadas e validadas pelos agentes. A terceira oficina contou com a participação de profissionais envolvidos na linha de cuidado do usuário trabalhador: gestores, médicos e assistente social das unidades básicas de saúde (UBS) e do CEREST, enfermeiros coordenadores do Pacs, e representantes dos ACS que haviam participado da primeira e segunda oficina, totalizando 19 profissionais. Nesta oficina foi discutido e validado o perfil de competência dos ACS utilizando-se a mesma escala Likert. Os participantes das oficinas assinaram, previamente, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), conforme a Resolução 196/96.

Resultados A descrição das ações reportadas pelos ACS e caracterizadas por eles como pertencentes ao campo da Saúde do Trabalhador se assemelha àquelas descritas no Caderno 5 da Atenção Básica:

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notificar à equipe de saúde a existência de trabalhadores em situação de risco, trabalho precoce e trabalhadores acidentados ou adoentados pelo trabalho; informar à família e ao trabalhador o dia e o local onde procurar assistência e planejar e participar das atividades educativas em Saúde do Trabalhador. (Brasil, 2001, p.16 )

É interessante observar que os ACS incorporam essas ações na sua prática cotidiana em seu território de atuação, ainda que não tenham recebido preparação específica para tal. A identificação das ações desenvolvidas e dos atributos mobilizados para sua execução permitiu a definição dos desempenhos, os quais foram organizados em duas áreas de competência: promoção da saúde e prevenção de doenças/agravos e organização do cuidado. As discussões sobre as ações desenvolvidas no campo da promoção da saúde e prevenção de doenças/agravos permitiram apreender os desempenhos descritos no Quadro 1.

Quadro 1. Perfil de competência dos Agentes Comunitários de Saúde para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador Área de competência: Promoção da Saúde e Prevenção de Agravos/Doenças Desempenhos Em sua visita domiciliar o agente observa, identifica e registra em que as pessoas trabalham e as situações de trabalho de todos os membros da família, reconhecendo o trabalho como fator importante na promoção da saúde e na prevenção de agravos em diferentes faixas etárias e gêneros. Observa cuidadosamente o espaço domiciliar e peridomiciliar, em busca das atividades produtivas desenvolvidas no território, e identifica os possíveis fatores de riscos relacionados e que podem estar expondo o trabalhador, família ou a comunidade. Orienta, de forma ética, o trabalhador sobre os riscos a que ele pode estar exposto, assegurando uma escuta atenta ao valor que ele dá ao que faz, às precauções e/ou medidas que ele toma para preservar seu trabalho/emprego e ao conhecimento que já tem sobre as doenças ocupacionais. Busca sensibilizar o trabalhador para o reconhecimento da importância de seu trabalho como produtor de saúde e potencial produtor de doença. Explorando a liderança que possui em sua área de abrangência e o conhecimento que tem pelo levantamento e registro de informações sobre doenças e/ou acidentes relacionadas ao trabalho, participa do planejamento de mutirões na comunidade, ligados à saúde do trabalhador. Com base na sistematização, na unidade básica de saúde, dos dados obtidos no registro de ocupações, riscos e agravos à saúde do trabalhador, participa de grupos de discussões e práticas educativas para usuários com doenças específicas relacionadas ao trabalho.

As ações de promoção da saúde e prevenção de agravos/doenças podem ser sintetizadas em: a) o mapeamento das atividades produtivas desenvolvidas no território de abrangência da unidade, incluindo o trabalho domiciliado; b) a identificação de fatores de risco para a saúde e o ambiente, relacionados ao trabalho; c) a orientação sobre medidas de prevenção de agravos e proteção do trabalhador, e d) a participação em ações de mobilização social. Na área de organização do cuidado, foram identificadas as ações de: a) identificação e acompanhamento do cuidado dos usuários acidentados no trabalho ou portadores de doenças relacionadas ao trabalho; b) identificação e análise de problemas e necessidades da população possivelmente relacionados ao trabalho, e c) a comunicação desses problemas às equipes de saúde. Os desempenhos requeridos para o desenvolvimento dessas ações podem ser visualizados no Quadro 2. Os conhecimentos e as habilidades requeridos para o desenvolvimento dessas ações, assim como as dificuldades e problemas identificados para concretizá-las, serão discutidos a seguir. 862

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Quadro 2. Perfil de competência dos Agentes Comunitários de Saúde para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador Área de competência: Organização do Cuidado Desempenhos Inclui as atividades de saúde do trabalhador em sua agenda de ações de saúde (como por exemplo: nas visitas domiciliares, no planejamento de grupos educativos etc), com base em sua compreensão ampliada de saúde, que inclui qualidade de vida, alimentação, moradia, trabalho e lazer, e de que o trabalhador formal ou informal é um usuário do SUS. Atua como elo entre a comunidade e as unidades básicas, por meio do registro preciso e repasse das informações oportunas à equipe, reconhecendo seu papel na prevenção de agravos relacionados ao trabalho. Realiza registro das informações sobre doenças e acidentes relacionados ao trabalho em instrumentos ajustados para esta finalidade e assegura o repasse dessas informações à equipe, compreendendo a importância do registro das informações de problemas relacionados ao trabalho para que se tornem prioridade de atuação nas UBS. Busca estabelecer relação entre queixas dos membros das famílias de sua área de atuação e as atividades produtivas desenvolvidas. Respeitando os princípios éticos, inclui, em seus relatórios à coordenação da UBS, informações relativas aos achados ligados à saúde do trabalhador relevantes para a organização do plano de cuidado ao usuário. Discute com a equipe, sempre que possível, as possibilidades de melhoria de acesso, acolhimento e encaminhamento ágil, com base no conhecimento das necessidades e dificuldades do usuário trabalhador, entre elas, a frequente resistência do empregador na liberação do trabalhador para a realização de consultas médicas em serviços de saúde.

Discussão O perfil dos ACS que participaram desse estudo apresenta semelhanças com o de outros registros encontrados na literatura, no que se refere ao gênero, idade e escolaridade (Martins et al., 1996; Ferraz, Aertz, 2005). A predominância de mulheres desempenhando a função de Agente Comunitário de Saúde tem sido correlacionada ao papel tradicional de cuidadora que a mulher desempenha na sociedade (Ferraz, Aertz, 2005). A possibilidade de se tornar uma ACS representou, para muitas dessas mulheres, o ingresso no mercado de trabalho e a remuneração de atividades que, muitas vezes, desenvolviam em caráter voluntário na comunidade (Silva, 2001). O tempo de serviço no Pacs, em média 8,3 anos, sinaliza baixa rotatividade desse trabalhador na atividade e constitui um fator importante no processo de qualificação do agente, que se constrói em suas práticas diárias de trabalho (Ferraz, Aertz, 2005). É interessante registrar que as ACS que participaram do estudo não haviam recebido nenhuma capacitação específica no tema Saúde do Trabalhador. Entretanto, sua formação técnica com foco na concepção ampliada de saúde e a experiência adquirida no desenvolvimento de suas práticas diárias com a comunidade facilitaram o reconhecimento do trabalho enquanto determinante do processo saúde-doença.

Perfil de competência requerido do ACS para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador No elenco de ações de promoção da saúde e prevenção de agravos/doenças prescritas para serem desenvolvidas pelos ACS, as que se referem ao campo da Saúde do Trabalhador são restritas em decorrência de fatores diversos, tais como: a falta de informações sobre o perfil de morbimortalidade dos trabalhadores; a priorização no desenvolvimento de ações direcionadas aos grupos definidos a partir de diretrizes nacionais, como, por exemplo, o controle da hipertensão e diabetes, o cuidado maternoinfantil; a persistência do modelo assistencial centrado na consulta médica individual em detrimento das ações coletivas; entre outros. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Entre as sugestões para facilitar o desenvolvimento dessas ações, os ACS destacaram a importância da identificação da ocupação de todos os membros das famílias adscritas às unidades básicas de saúde e o reconhecimento das atividades produtivas desenvolvidas no território de atuação, com ênfase no trabalho domiciliado. Na rotina de trabalho dos ACS, o preenchimento do item “ocupação” na ficha de cadastramento familiar, denominada ficha A (Brasil, 1998), permite a caracterização do perfil ocupacional da população adscrita. Já a identificação das atividades produtivas presentes no território deve estar incluída no diagnóstico situacional, realizado pelas equipes da APS na fase de reconhecimento do território para a implantação das equipes, devendo ser atualizado periodicamente. A identificação e caracterização das atividades produtivas desenvolvidas no domicílio são feitas pelo ACS durante as visitas domiciliares. Para isso, os ACS devem contar com instrumentos, suporte técnico e capacitação permanente. No estado de Minas Gerais, a Coordenação Estadual de Saúde do Trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde elaborou uma ficha de cadastro de atividades produtivas domiciliares, que inclui a identificação dos possíveis riscos para a saúde decorrentes de seu desenvolvimento. Essas informações obtidas deverão subsidiar as equipes no planejamento e desenvolvimento das ações de vigilância e assistência direcionadas a esse grupo de trabalhadores. Uma observação ou queixa recorrente dos ACS se refere à não-incorporação, de forma sistemática, das informações sobre as atividades produtivas desenvolvidas nos espaços domiciliares e peridomiciliares, no planejamento de ações de saúde direcionadas ao cuidado dos trabalhadores. Uma explicação para o fato achado deve-se à ênfase no desenvolvimento de programas básicos prescritos, tais como: o controle de hipertensão, diabetes, tuberculose, entre outros, desconsiderando o papel do trabalho na determinação do processo saúde-doença. Os resultados do estudo também permitiram identificar, como importante dificuldade a ser superada nos processos de educação permanente dos ACS, a otimização do registro das ocupações dos membros das famílias. Para isto é fundamental que o ACS compreenda o conceito de trabalhador na perspectiva do SUS. De acordo com a Política Nacional de Saúde do Trabalhador (PNST) para o SUS, trabalhadores são “todos os homens e mulheres que exercem atividades para seu próprio sustento e ou de seus dependentes, qualquer que seja a forma de inserção no mercado de trabalho, nos setores formal e informal da economia”(Brasil, 2004, p.4). Por outro lado, a Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) define ocupação como sendo “a atividade exercida pelo cidadão em um emprego ou outro tipo de relação de trabalho, como por exemplo, o trabalho autônomo”, o que é distinto e independente da profissão do cidadão (Brasil, 2009). A dificuldade do ACS em reconhecer o trabalhador do setor informal está refletida no manual do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), que orienta os profissionais a registrarem, no espaço “atendimento específico para acidente de trabalho”, presente na ficha D, somente os atendimentos em que o laudo do exame médico constante do verso da CAT (comunicação de acidente de trabalho) estiver preenchido (Brasil, 1998). Observa-se que esta orientação contraria o princípio de universalidade, na medida em que não inclui, como acidente de trabalho, as ocorrências com os trabalhadores que não são cobertos pelo Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) da Previdência Social. Assim, os ACS e uma parcela significativa dos profissionais do SUS necessitam ser orientados, no sentido de incorporarem o conceito abrangente de trabalhador descrito na PNST para o desempenho adequado de suas atividades. Essa mudança implica superar barreiras culturais históricas que associam a figura do trabalhador ao vínculo formal registrado na carteira de trabalho. Os ACS também expressaram a dificuldade de distinguir profissão de ocupação, o que prejudica o preenchimento desse item na ficha A. Nesse sentido é importante que estes conceitos estejam claros tanto para o agente quanto para o familiar entrevistado. O ACS deve estar preparado para identificar os trabalhadores e as diferentes situações de trabalho desenvolvidas em seu território de atuação. Outra questão relevante nas práticas dos agentes se refere ao desenvolvimento da habilidade de percepção de risco, que segundo Wiedmann (1993, p.3) é: “a habilidade de interpretar uma situação de potencial dano à saúde ou à vida da pessoa, ou de terceiros, baseada em experiências anteriores e sua extrapolação para um momento futuro, habilidade esta que varia de uma vaga opinião a uma firme convicção”. 864

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Observou-se que a percepção que os ACS têm dos riscos presentes no trabalho está relacionada à identificação do perigo. Guilherme (2008) diferencia os conceitos de risco e perigo. Define que risco “é a probabilidade e a intensidade de dano resultante da exposição a um perigo”. O mesmo autor define perigo como um agente (físico, químico ou biológico) ou uma ação que pode causar dano. No dicionário Houaiss (2009), perigo é uma situação ou eventualidade em que pode ocorrer um dano. Para o desenvolvimento de ações de Saúde do Trabalhador na APS, o ACS deve ser capaz de identificar situações de perigo presentes nas atividades produtivas potencialmente geradoras de danos e agravos à saúde dos trabalhadores e da comunidade, em particular naquelas que são desenvolvidas no domicílio. As discussões com os ACS revelaram que o desenvolvimento de atividades produtivas no domicílio é frequente e, muitas vezes, representa a alternativa encontrada pela família para garantir seu sustento. Essas atividades são geralmente desenvolvidas de forma rudimentar e improvisadas, sem conhecimento sobre os riscos e medidas de proteção/prevenção aos trabalhadores. O trabalho domiciliar pode ser considerado como a atividade remunerada exercida no espaço de moradia de quem o realiza. Tal atividade pode assumir a forma assalariada ou por conta própria, podendo o trabalhador realizar todo o processo produtivo ou algumas de suas etapas (Neves, Pedrosa, 2007). A identificação das diferentes situações de risco à saúde, relacionadas ao desenvolvimento das atividades produtivas, permite ao agente: levar essa informação para ser incorporada no planejamento das ações de saúde; contribuir para a orientação sobre a adoção de medidas de prevenção e proteção de acidentes e/ou doenças relacionadas ao trabalho, e encaminhar, sempre que necessário, o usuário trabalhador à unidade básica de saúde responsável pelo seu acompanhamento. No que se refere às ações de promoção da saúde e prevenção de agravos/doenças, é importante observar o papel desempenhado pelos ACS, em particular no desenvolvimento de ações educativas. A habilidade de saber ouvir os usuários foi destacada pelos ACS como sendo de grande relevância para a realização das ações educativas. Nesse sentido, a orientação sobre os possíveis riscos para a saúde e para o ambiente, relacionados ao seu trabalho, e as possíveis medidas de proteção tem, como ponto de partida, a percepção do trabalhador sobre seu trabalho. Isto requer do agente escuta qualificada e a capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes para orientar e encaminhar adequadamente o trabalhador. A atitude de escuta pressupõe a capacidade do profissional de propiciar um “espaço para que o usuário possa expressar o que sabe, pensa e sente em relação à sua situação de saúde, bem como de responder às reais expectativas, dúvidas e necessidades do usuário” (Filgueira, Deslandes, 1999, p.124). Ceccim (2004) destaca que é preciso modificar o processo de formação dos trabalhadores da saúde, que têm sido formados como se já possuíssem habilidades inatas, como, por exemplo, a capacidade de escuta de forma qualificada. Os agentes demandam qualificação e supervisão para realizarem as orientações sobre os riscos relacionados ao trabalho e as medidas de proteção do trabalhador, utilizando, muitas vezes, seus próprios saberes extraídos do senso comum e de suas experiências anteriores. Silva (2001) destacou, em seu estudo, a falta de instrumentos, tecnologias e saberes para as diversas dimensões esperadas do trabalho do agente. A autora reitera o uso, pelos ACS, do saber “emprestado” dos profissionais da equipe, como médicos e enfermeiros. A postura de “agente educador” assumida pelos ACS se aproxima da conceituação de Freire (1997) sobre a educação enquanto comunicação, diálogo. Segundo o autor, a comunicação implica uma reciprocidade, não admitindo o sujeito passivo. Destaca que o diálogo deve ser capaz de diminuir a distância entre a expressão significativa do técnico e a percepção, pelos trabalhadores, em torno do significado. Em suas palavras: “A expressão verbal de um dos sujeitos tem que ser percebida dentro de um quadro significativo comum ao outro sujeito. Se não há acordo em torno dos signos, como expressão do objeto significado, não pode haver compreensão entre os sujeitos, o que impossibilita a comunicação” (Freire, 1977, p.67). Nas falas dos ACS, foi possível perceber sua compreensão de que o fazer educativo não se reduz ao ato de transmissão ou de extensão de um saber, mas implica a comunicação, o diálogo. 865


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Além das ações direcionadas para as famílias nas visitas domiciliares, os agentes também desenvolvem trabalhos com grupos e com a comunidade. Algumas delas, classificadas neste estudo como sendo pertencentes ao campo da promoção e prevenção, são formas de participação em projetos de mutirão e mobilização social. Os agentes têm sido aliados importantes no planejamento e desenvolvimento de projetos de mobilização social, em grande parte devido à sua aceitação na comunidade, o que facilita a sensibilização e adesão da população. Além deste papel, observa-se também a importância de suas percepções e o valor da coleta de informações acerca das condições de saúde da população, o que, muitas vezes, representa o direcionamento para o planejamento deste tipo de ação. A mobilização social é algo que “ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade, decide e age com um objetivo comum, buscando cotidianamente, os resultados desejados por todos” (Toro, Werneck, 2004, p.11). Os autores destacam ainda que mobilizar “é convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados”. No campo da Saúde do Trabalhador, a mobilização social é uma ferramenta de atuação importante, na medida em que requer a atuação de diferentes atores, como os próprios trabalhadores, empresas, profissionais de saúde, entre outros, e, ao mesmo tempo, demanda o estabelecimento de diferentes níveis de vinculação e responsabilização desses atores no processo. No campo da organização do cuidado, observou-se que os ACS desenvolvem ações de acompanhamento do cuidado do usuário trabalhador, incluindo: a identificação de necessidades e problemas decorrentes das relações trabalho-saúde-doença, a comunicação às equipes de saúde, e o acompanhamento das ações de saúde. Para o campo da Saúde do Trabalhador, é essencial que o ACS reconheça o usuário como trabalhador e, a partir desse reconhecimento, identifique as demandas e necessidades destes usuários. Isto implica, entre outras coisas, que o agente incorpore, em suas práticas, o conceito ampliado de saúde, como definido na Lei Orgânica de Saúde 8.080: “a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Brasil, 1990, p.1). Entre as dificuldades observadas a partir dos depoimentos dos agentes sobre o desenvolvimento de seu trabalho, destaca-se a convivência com o sentimento de frustração e desgaste decorrente do tensionamento entre o que a população apresenta como demanda e o que as instituições podem oferecer para sua resolução. Campos (1997) explica que isso ocorre quando se tomam os valores de uso e utilidade do serviço como se fossem equivalentes às necessidades sociais. Tal fato se agravou com a implementação do Pacs em grandes cidades, colocando, em evidência, uma nova lógica de necessidades sociais advindas de questões como: o desemprego, a violência, o uso de drogas, entre outras. Neste sentido, as equipes da APS lidam, de forma crescente, com outras necessidades sociais/de saúde, além das já incorporadas nos serviços, como, por exemplo: o controle da hipertensão, da diabetes e a assistência materno-infantil (Furlan, 2008). Essas questões apontam para a importância de capacitação dos profissionais que atuam na APS para a realização da análise do território, que consiste na coleta e sistematização de dados demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos, político-culturais e sanitários (Monken, Barcellos, 2005). Esses dados irão possibilitar: o conhecimento da situação de saúde e condições de vida da população, a eleição de problemas prioritários, e a identificação de dispositivos necessários para o desenvolvimento de intervenções intersetoriais e interinstitucionais, contribuindo, assim, para o desenvolvimento de ações mais efetivas. Muitas vezes, o não-atendimento das demandas da população identificadas pelos ACS é interpretado pela comunidade como sendo decorrente da pouca resolubilidade de seu trabalho, resultando na falta de reconhecimento das ações desenvolvidas pelos agentes (Jardim, Lancman, 2009). É interessante observar que os ACS atribuem as dificuldades encontradas para transformar as demandas da comunidade em ações resolutivas, no âmbito da vigilância e assistência, à falta do reconhecimento dos problemas decorrentes da relação trabalho-saúde-doença, enquanto um problema de saúde pública, que, assim, não são priorizadas pelas equipes da APS.

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Nesse sentido, os agentes chamam a atenção para a necessidade de se ampliar a visibilidade dos problemas relacionados ao trabalho por meio do registro dos dados sobre doenças e acidentes relacionados ao trabalho previstos na Portaria 104 (Brasil, 2011). Como exemplo, fazem analogia à situação de combate à dengue, que é entendido como prioritário pelo governo e equipes de saúde. Os ACS destacaram que o fato de registrarem, com qualidade e quantidade, dados sobre os agravos relacionados ao trabalho em um determinado território poderá contribuir para o entendimento da questão enquanto problema de saúde pública. A demanda dos ACS por capacitação e suporte técnico, manifestada a propósito da melhoria dos registros de doenças e agravos relacionados ao trabalho, também aparece em relação à identificação de situações de trabalho desenvolvidas nos domicílios e aos perigos relacionados. Na área de organização do cuidado, o ACS orienta o usuário sobre o caminho a ser percorrido na rede, informando-o sobre o fluxo para a atenção integral. As visitas domiciliares do ACS, além de permitirem o acompanhamento do usuário na linha de cuidado do SUS, favorecem a identificação e superação de obstáculos para uma atenção ágil e resolutiva. Entre as limitações para o acesso ao cuidado, os ACS destacaram a baixa procura dos trabalhadores, particularmente do sexo masculino, às unidades básicas de saúde, explicada, além dos fatores culturais, pelas restrições impostas pelo horário de funcionamento do serviço, muitas vezes incompatível com o horário de trabalho do usuário. Recente estudo etnográfico, desenvolvido sobre a relação do homem e a assistência à saúde na APS, reforça estes achados e aponta a criação de horários alternativos para o atendimento dos trabalhadores como uma das estratégias facilitadoras. Entretanto, outros fatores citados foram: a inexistência de programas voltados para a atenção à saúde dos homens e a incapacidade dos profissionais de reconhecerem os homens como usuários nos serviços (Couto et al., 2010). Pode-se observar, finalmente, que o conhecimento da atuação do agente na Saúde do Trabalhador, para a construção do perfil de competência, desvelou a discrepância existente entre o que é prescrito e o que é seu trabalho real. Apesar de o SUS definir a promoção da saúde como foco de atuação do ACS, ele continua enfrentando “problemas velhos”, entre eles: o controle da desnutrição, a mortalidade materna e infantil, e a cura da tuberculose. Somam-se a estes, as diversas demandas e problemas que acompanham os processos de urbanização, como: a favelização, a falta de saneamento básico, o desemprego, o aumento da poluição e a distribuição desigual dos riscos para a saúde advindos de processos produtivos instalados nas periferias, que transformam a forma de adoecer e morrer dos trabalhadores e da população circunvizinha. Assim, faz-se necessário realizar estudos mais detalhados sobre as mudanças que vêm ocorrendo no processo de trabalho do ACS diante da ampla diversidade de problemas, necessidades e demandas que integram seu território de atuação, a fim de contribuir para a melhoria dos processos de qualificação e valorização profissional destes atores tão importantes para o desenvolvimento da atenção integral à saúde no SUS.

Considerações finais Os resultados do estudo demonstram que as ações de Saúde do Trabalhador desenvolvidas pelos ACS em seu território de abrangência podem ser caracterizadas como pontuais e pouco institucionalizadas, dependendo, em grande parte, de iniciativas pessoais. Observou-se que o agente não possui preparação prévia específica para lidar com as questões que envolvem a relação trabalho-saúde-doença, o que o faz recorrer ao senso comum e/ou aos saberes adquiridos em experiências prévias com outros usuários ou, até mesmo, com familiares, para orientar o encaminhamento dos problemas. É necessário que os processos de capacitação e educação permanente dos ACS incorporem essas questões, permitindo o desenvolvimento de ações resolutivas de cuidado dos trabalhadores.

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O estudo possibilitou desvelar que, entre as dificuldades enfrentadas pelo ACS no desenvolvimento de seu trabalho, estão aquelas decorrentes da ambiguidade do lugar que ocupa no SUS, ora representando a comunidade, ora a equipe de saúde. Outra questão de destaque refere-se à pouca valorização do trabalho do agente pelas equipes de saúde, que têm dificuldades para incorporar as informações coletadas por eles no planejamento e execução das ações de saúde direcionadas aos usuários e famílias. A participação plena dos ACS no desenvolvimento do cuidado aos trabalhadores requer, além de investimentos na educação permanente, a revisão dos processos de trabalho das equipes de saúde.

Colaboradores Thais Lacerda e Silva responsabilizou-se pela revisão da literatura, o delineamento da metodologia, o estudo de campo e a redação do manuscrito. Elizabeth Costa Dias participou do delineamento da metodologia, do estudo de campo e colaborou na redação do manuscrito. Eliana Cláudia Ribeiro colaborou no delineamento da metodologia, estudo de campo e revisão do manuscrito. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelecer fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2011. ______. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/informacoesGerais.jsf>. Acesso em: 10 ago. 2009. ______. Ministério da Saúde. Portaria n.399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS e aprova Diretrizes Operacionais do referido Pacto. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Saúde. Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica, Área Técnica de Saúde do Trabalhador. Cadernos de Atenção Básica: Programa Saúde da Família, 5. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. ______. Ministério da Saúde. Manual do sistema de informação de atenção básica (SIAB). Secretaria de Assistência à Saúde, Coordenação de Saúde da Comunidade. Brasília: Ministério da Saúde, 1998. ______. Lei n.8.080, de 19 set. 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990. p.1. CAMPOS, G.W.S. Análise crítica das contribuições da saúde coletiva à organização das práticas de saúde no SUS. In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. p.113-24.

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LACERDA E SILVA, T.; DIAS, E.C.; RIBEIRO, E.C.O.

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SABERES E PRÁTICAS DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE ...

LACERDA E SILVA, T.; DIAS, E.C.; RIBEIRO, E.C.O. Saberes y prácticas del agente comunitario de salud en la atención a la salud del trabajador. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.859-70, jul./set. 2011. Los Agentes Comunitarios de Salud (ACS) desarrollan un papel fundamental en la atención a los trabajadores. Identifican las características de la poblacion trabajadora, las actividades productivas desarrolladas dentro y cerca de los hogares y los factores de riesgo para la salud relacionados a estos procesos de trabajo. Este estudo orienta los procesos de capacitación para el desarrollo de estas actividades, basado en el modelo de competencias. Fue realizado en una ciudad metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, y fue utilizada la técnica de tarjetas de colección, buscando entender el proceso de trabajo de los ACS y su percepción sobre las relaciones trabajo-salud-enfermedad. Fueron identificadas acciones en las areas de promoción y prevención en salud y la organización del cuidado, que necesitan ser incorporadas en las capacitaciones. Los resultados refuerzan la importancia de nuevos estudios que consideren cambios en el proceso de trabajo de los agentes al pretenderse desarrollar acciones de la salud del trabajador.

Palabras clave: Salud laboral. Atención pimaria de Salud. Educación basada en competencias. Agente comunitario de salud. Recebido em 16/06/10. Aprovado em 27/12/10.

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Necessidades e dificuldades de tutores e facilitadores para implementar a política de educação permanente em saúde em um município de grande porte no estado do Paraná, Brasil * Fernanda de Freitas Mendonça1 Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes2

MENDONÇA, F.F.; NUNES, E.F.P.A. Needs and difficulties of tutors and facilitators in implementing a continuing health education policy in a large municipality in Paraná. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.871-82, jul./set. 2011. To strengthen continuing health education (CHE) policies, tutors and facilitators of CHE have been trained. This study was proposed in order to uncover their needs and difficulties during the process of implementing CHE. This was a qualitative investigation conducted among nine tutors and ten facilitators of CHE in the municipality of Londrina, Paraná. The data-gathering instrument consisted of semi-structured interviews and the data were analyzed in accordance with the discourse analysis proposed by Martins and Bicudo. The results showed that institutionalization of CHE was highlighted among the needs, and persistence of hegemonic practices was a difficulty. Based on the results, CHE needs to be consolidated through practicing it in healthcare services, because only in this way will tutors, facilitators and other healthcare professionals be able to overcome the limitations that permeate the process of implementing CHE.

Keywords: Health policy. Continuing Health Education. Work processes in healthcare. Personnel management in healthcare.

Para o fortalecimento da política de Educação Permanente em Saúde (EPS), tutores e facilitadores de educação permanente em saúde foram formados. No intuito de desvendar suas necessidades e dificuldades durante o processo de implementação da EPS, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa com nove tutores e dez facilitadores de EPS de Londrina, estado do Paraná. Como instrumento de coleta de dados foi realizada a entrevista semiestruturada, e os dados foram analisados conforme análise de discurso proposta por Martins e Bicudo. Entre as necessidades, destaca-se a institucionalização da EPS, e, como dificuldade, a persistência de práticas hegemônicas. Com base nos resultados é necessário consolidar a EPS por meio de sua prática nos serviços de saúde, pois só dessa maneira, tutores, facilitadores e demais profissionais de saúde terão capacidade de superar as limitações que permeiam o processo de implementação da EPS.

Palavras-chave: Política de saúde. Educação Permanente em Saúde. Processo de trabalho em saúde. Gestão de pessoal em saúde.

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Elaborado com base em Mendonça (2007), pesquisa financiada pelo CNPQ e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Londrina. 1 Curso de Enfermagem, Departamento de Enfermagem, Faculdade Integrado de Campo Mourão. Rodovia BR 158, KM 207. Campo Mourão, PR, Brasil. 87.300-970. fernandamendonca@ grupointegrado.br 2 Departamento de Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Londrina. *

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NECESSIDADES E DIFICULDADES DE TUTORES E FACILITADORES ...

Introdução O Ministério da Saúde (MS) instituiu a política nacional de Educação Permanente em Saúde (EPS), por meio da Portaria 198/GM, em 2004. Essa política surgiu com o propósito de transformar a assistência à saúde e a formação dos profissionais, buscando incorporar, às práticas de atenção e de ensino, a reflexão, a problematização, o trabalho em equipe e a integralidade, como também promover a articulação entre os órgãos de gestão, serviços de saúde, controle social e instituições de ensino (Brasil, 2004). Em 2007, houve reformulações na portaria que regulamentava esta política, sendo publicada, então, a portaria 1996/GM. Destaca-se que a nova portaria enfatiza as especificidades regionais como estratégia de identificar as distintas necessidades de formação e desenvolvimento do trabalho em saúde (Brasil, 2007). Apesar de existir uma regulamentação garantindo a legalidade da política, havia muitas fragilidades entre os profissionais de saúde sobre o que era e como trabalhar com a EPS (Merhy, Feuerwerker, Ceccim, 2006). Portanto, para fortalecer essa política, o MS, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), formou tutores e facilitadores de EPS em todo o país. O curso foi formatado em dois encontros presenciais e na modalidade de Educação a Distância (EAD), com duração de cinco meses. Em 2005, a proposta foi ampliada para municípios e regiões dispostos a adotar a EPS como estratégia de gestão da produção da saúde (Brasil, 2005a). No Paraná, a equipe da autarquia do município de Londrina compreendeu o potencial da EPS como uma ferramenta capaz de promover mudanças no processo de trabalho em saúde. Dessa forma, para favorecer o desenvolvimento da EPS, houve a formação de nove tutores para apoiar a formação de cento e oitenta facilitadores. Após a formação de tutores e facilitadores de EPS, nenhum processo de avaliação foi realizado, logo, não se conhecem quais as necessidades e dificuldades que esses sujeitos enfrentam para implementar a EPS nos dias atuais. Diante dessas lacunas de conhecimento e dos diversos obstáculos que permeiam o processo de implementação de EPS, sobretudo a reprodução das práticas hegemônicas, torna-se relevante investigar quais as necessidades e dificuldades vivenciadas por tutores e facilitadores de educação permanente em saúde no Município de Londrina, PR.

Método Trata-se de um estudo descritivo-exploratório que utilizou a abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa trabalha com descrições dos fenômenos, sendo o significado a preocupação essencial desse tipo de abordagem (Triviños, 1987). Entende-se que o significado determina, ou seja, dá molde à forma como as pessoas pensam e agem; logo, é por meio da compreensão das significações que se conseguem desvelar as vivências e as representações que as pessoas têm a respeito de algo (Turato, 2005). A pesquisa foi realizada no município de Londrina, PR, com nove tutores e dez facilitadores de EPS. Foram entrevistados todos os tutores do município, que fizeram o curso pelo MS, e os facilitadores que foram formados pelo município de Londrina. Como o número de tutores era pequeno (nove), todos foram entrevistados. Por outro lado, o número de facilitadores (cento e cinquenta) foi determinado pela saturação das informações coletadas, ou seja, quando se perceberam repetições nas falas dos entrevistados, de modo que a inclusão de novos sujeitos não traria maior diversidade de informações. A seleção dos facilitares de EPS ocorreu por amostragem intencional e orientada pelo critério de entrevistar pessoas de diferentes categorias profissionais, a fim de se desvelar o fenômeno sob os diferentes papéis que os profissionais ocupam em uma equipe. De acordo com Thiollent (2004), a amostragem intencional se justifica pela relevância que as pessoas selecionadas apresentam em relação a um determinado assunto. Nesse estudo, utilizou-se como instrumento de coleta de dados a entrevista semiestruturada, a qual, além de valorizar a presença do pesquisador, oferece todas as perspectivas possíveis para que o 872

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informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias. As entrevistas foram conduzidas por um roteiro contendo questões sobre a caracterização dos sujeitos do estudo e quatro questões referentes às percepções sobre: conceito de EPS, curso de facilitadores, necessidades e o papel do tutor e do facilitador de EPS. Contudo, neste estudo, o enfoque se limitou às questões que exploravam as necessidades e dificuldades pelos tutores e facilitadores de EPS. Salienta-se que este roteiro foi testado em entrevistas realizadas com um tutor e com um facilitador de outro município. O período de coleta de dados foi de dezembro de 2006 a janeiro de 2007. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Foram retirados os vícios de linguagem e feita a correção ortográfica para proteção dos participantes da pesquisa. Para a análise das entrevistas, foi utilizada a análise de discurso proposta por Martins e Bicudo (2005). Os participantes foram identificados por códigos a fim de se assegurar o sigilo de sua identidade. Para identificar os tutores, foi utilizada a letra T, e para identificar os facilitadores, a letra F. As entrevistas em cada grupo foram numeradas; logo, cada letra recebeu um número conforme a ordem da realização das entrevistas. Os princípios éticos que nortearam esta pesquisa estão contemplados na Resolução 196/96, que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos (Brasil, 1996). Esta pesquisa foi autorizada pela Autarquia Municipal de Saúde e aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa UEL.

Resultados e discussão Caracterização dos participantes Dos 19 participantes do estudo, 16 eram do sexo feminino e a idade variou de 29 a 52 anos. Eles pertenciam a distintas categorias profissionais, destacando-se que todos os tutores possuíam formação universitária (enfermagem, medicina, odontologia e pedagogia), enquanto os facilitadores possuíam desde o Ensino Fundamental até o nível Superior (agente comunitário de saúde, auxiliar de enfermagem, enfermagem, medicina e odontologia). Os entrevistados trabalhavam nos seguintes níveis de atenção à saúde: pronto-atendimento, urgência e emergência, especialidades, atenção básica, instituição de ensino, e profissionais que atuam no gerenciamento dos serviços de saúde em nível central.

Categorias de análise Conforme mencionado anteriormente, o presente estudo aborda as categorias referentes às dificuldades e necessidades vivenciadas por tutores e facilitadores de EPS para implementar esta política durante o processo de trabalho em saúde.

Dificuldades no processo de implementação da EPS Durante o processo de implementação da EPS, surgiram diversas dificuldades. Para eles, a assistência à saúde é fragmentada, as práticas são curativistas e centradas em procedimentos. O estudo de Peduzi (2007), realizado com gestores de serviços de saúde, revelou que a maioria dos estabelecimentos de saúde apresentam um trabalho individualizado por profissional. “Nós ainda temos um sistema de saúde muito focado na pessoa do profissional médico, a população ainda vê dessa forma, os próprios profissionais também, muitos entendem dessa forma”. (T6) “Continua fragmentado, centrado lá no procedimento, no profissional”. (F2)

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O estudo de Farah (2006), realizado num período em que a política de EPS ainda era incipiente, revela que os profissionais da equipe saúde da família já consideravam sua implementação como algo difícil por alterar uma lógica cristalizada. A persistência das práticas hegemônicas e fragmentadas, ao mesmo tempo em que representa um desafio, também reforça a necessidade da implementação da política de EPS. Quando se fala em superar as práticas hegemônicas, é preciso ressaltar que não se trata de uma competição entre as práticas hegemônicas e as contra-hegemônicas, ou de definir em qual dessas práticas se encontra a verdade absoluta. Essa superação se faz necessária porque as práticas tradicionais não dão conta de responder aos desafios atuais, uma vez que há pouca abertura para o diálogo, para a escuta, para a integralidade e para a construção coletiva. Além disso, a fragmentação da assistência, justificada muitas vezes pela complexidade dos problemas de saúde, tende a provocar desinteresse, alienação e a falta de responsabilidade nos profissionais de saúde (Brasil, 2005b; Campos, 1997). Outra consequência da fragmentação da assistência se expressa na falta de compreensão dos trabalhadores sobre a totalidade do trabalho (Ribeiro, Pires, Blank, 2004). As práticas hegemônicas produzem alienação nos sujeitos e esta se manifesta pelo grau de afastamento do profissional de suas responsabilidades em defesa da vida e pelo modo como se estruturam as relações nos serviços de saúde (Campos, 1997). De acordo com Campos (1997), usuários e profissionais de saúde são reduzidos a objetos, redução que acontece quando há situações de desequilíbrio de poder, isto é, a detenção de poder provoca, no sujeito, o desejo de se impor, eliminando qualquer vestígio de piedade e de solidariedade. Essa tendência de tentar objetivar o trabalho em saúde, como se ele acontecesse independente do agente executor e do sujeito doente, faz com que os profissionais encarem o usuário como um objeto, e não uma pessoa. Assim, é necessário romper com essas representações e valorizar as subjetividades presentes no profissional e no usuário de saúde. A falta de organização da demanda é apontada pelos sujeitos do estudo enquanto algo que sobrecarrega e limita a disponibilidade do facilitador em compartilhar os saberes e implementar a EPS com a equipe. “ [...] a dificuldade é conciliar a possibilidade de você ter espaço de reflexão com a demanda do dia-a-dia! Se você não for uma pessoa que planeja, que seja firme em garantia de espaços de reflexão, você acaba se envolvendo na rotina do trabalho [...]”. (T4)

Nesse discurso percebe-se quanto os participantes do estudo têm dificuldade de reconhecer os problemas do dia a dia enquanto fundamento para o exercício da EPS. É preciso salientar que a EPS se alimenta dos problemas e das necessidades presentes em um serviço de saúde. Como afirma Roschke (2006, p.35), a EPS “reconhece e opera com a complexidade, fragmentação, incerteza e o conflito inerente ao processo de trabalho nas instituições dos serviços.” Campos (2007) sugere, como alternativa para atenuar a demanda de um serviço, o envolvimento dos usuários, das famílias e da comunidade com a produção de saúde. Salienta-se que a EPS se apoia, entre outras coisas, no protagonismo dos sujeitos, inclusive dos usuários. Segundo alguns tutores, a limitação de governabilidade tem se constituído um fator que também traz dificuldades, por despertar a sensação de impotência e frustração. “[...] eu tenho limite de atuação, passou daquele limite, minha governabilidade é nula, então [...] não consigo mais”. (T1) “[...] é um espaço de muito sofrimento para o trabalhador, de muita frustração porque é tão complexo que muitas vezes têm alguns fatores que você não consegue intervir”. (T3)

É importante destacar que a limitação de governabilidade não é um problema em si; o que torna isso um problema é quando seus limites são reduzidos, tirando dos profissionais um poder, ou seja, uma autonomia que lhe era essencial para promover uma assistência à saúde de qualidade. 874

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Testa, citado por Giovanella (1989), ao falar sobre os resultados do exercício do poder, considera o poder cotidiano e o societal. O poder cotidiano se concretiza nas decisões do dia a dia sobre como e o que fazer. Por outro lado, o poder societal resulta da construção da sociedade; dessa forma, se processa a longo prazo. É importante enfatizar que o poder cotidiano está contido no poder societal; logo, há uma determinação do primeiro sobre o segundo. Nesse sentido, é preciso que se valorizem os resultados obtidos pelo poder cotidiano, ou seja, mesmo havendo limitações de atuação, o sujeito deve valorizar as ações que estão dentro de seu alcance. Outra dificuldade relatada por tutores refere-se à falta de comprometimento e responsabilização dos profissionais com o serviço público. Confirmando os resultados desta pesquisa, o estudo realizado por Cotta et al. (2006), com profissionais da atenção básica, revela que a insatisfação salarial é uma entre as razões que levam os trabalhadores de saúde a não se comprometerem e não considerarem o trabalho na ESF como atividade principal. Ricaldoni e Sena (2006) salientam em seu estudo que é essencial haver pessoas comprometidas, criativas e envolvidas com a EPS, para se construírem práticas inovadoras. Para os facilitadores, a maior dificuldade está em pôr em prática os conceitos adquiridos no curso e “repassar” esses conceitos aos demais integrantes da equipe, de modo que eles também se sintam estimulados a implementar a EPS. O ato de repassar, transmitir o conhecimento é algo ainda presente no discurso dos sujeitos. De acordo com Freire (2002), o conhecimento não é algo que possa ser transmitido, mas é construído e reconstruído historicamente. O repasse do conhecimento, como se fosse um objeto, não propicia a interação entre o sujeito e aquilo que precisa ser aprendido (Vasconcellos, 1992). Essa forma de educar é denominada por Freire (2006b) de educação “bancária”, em que os conhecimentos são depositados nos educandos pelo professor que se julga possuidor do saber. Dessa forma, o educador se assume enquanto sujeito do processo, e os educandos são meros objetos. Ao contrário dessa concepção, Freire (2006b) destaca que, no processo de ensino, tanto o educador quanto o educando são educados, ambos são sujeitos do processo, pois constroem o conhecimento em comunhão uns com os outros. Anastasiou (2007) relata que o processo de ensino envolve o apreender e o aprender. O apreender significa segurar, prender, pegar, tomar para si, implica uma ação. Por outro lado, o verbo aprender significa tomar conhecimento, não pressupõe uma ação. Como o aprender é algo mais presente na formação dos sujeitos, pela influência da pedagogia tradicional, a dificuldade relatada pelos participantes sobre a falta de motivação da equipe pode estar associada à forma passiva de os facilitadores compartilharem seus conhecimentos. Freire (2002) e Vasconcellos (2007) mencionam que a motivação surge, sobretudo, da identificação do objeto de conhecimento com a realidade dos sujeitos. Pois os sujeitos não substituem e nem somam seus conhecimentos, mas os constroem com base em seus conhecimentos prévios; dessa forma, só haverá incorporação de novos conceitos quando houver a participação ativa no processo de reconstrução, e quando os novos conhecimentos fizerem parte da realidade e corresponderem às necessidades dos sujeitos (Roschke, 2006). O exercício de aproximar o objeto de ensino à realidade do trabalho deve ser uma constante na atuação dos tutores e facilitadores. O estudo de Job (2006) também revela que as atitudes dos facilitadores se restringem a transmitir o conhecimento, não envolvendo as pessoas no processo de discussão. Os entrevistados citam que há muita resistência dos profissionais que não participaram do curso em aceitar as novas propostas de trabalho. De acordo com eles, a atuação do facilitador é mal interpretada pelos demais profissionais: “Eu queria saber se tem alguma fórmula mágica para gente fazer as pessoas aceitarem [...]”. (F5) “[...] é muito difícil fazer com que as outras pessoas entendam que essa mudança tem que acontecer e que essas pessoas também vejam que você não está querendo se aparecer”. (F7)

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Um tutor refere que essa resistência dos profissionais pode estar relacionada à falta de persistência dos facilitadores, que desistem de implementar a EPS logo que esbarram em alguma dificuldade. Todas essas dificuldades vivenciadas pelos facilitadores podem estar associadas à falta de compreensão do papel do facilitador, tanto por parte dos profissionais e, até mesmo, dos próprios facilitadores. O estudo de Ricaldoni e Sena (2006), apesar de reconhecer as potencialidades da pedagogia problematizadora utilizada pela EPS, questiona se os profissionais de fato a dominam. É preciso considerar que assumir o papel de tutor e facilitador em meio a um contexto repleto de obstáculos representa um grande desafio, que não será superado instantaneamente. É no dia a dia, aprendendo com os erros, que tutores, facilitadores e demais profissionais devem construir esse novo jeito de agir em saúde.

Necessidades sentidas por tutores e facilitadores de EPS Os discursos revelam diversas necessidades vivenciadas por tutores e facilitadores para implementar a EPS. Entre as relacionadas ao profissional, destacou-se a necessidade de apoio da equipe, atitudes de respeito e valorização do profissional. O apoio da equipe, conforme os entrevistados, torna-se essencial para a implementação da EPS, uma vez que esta exige uma construção coletiva. No entanto, eles revelam que há muita resistência dos profissionais em relação à proposta da EPS. Este mesmo resultado foi encontrado no estudo de Job (2006), também realizado com facilitadores. Para Peduzzi (2007), o trabalho em equipe pode ser reconhecido a partir da identificação de um conjunto de elementos. Entre esses elementos a autora cita a colaboração e a cooperação entre os profissionais, o que contraria a fala a seguir, em que um dos profissionais expressa o grau de descrédito à proposta da EPS: “[...] no primeiro dia que eu cheguei após o curso, uma pessoa, um profissional me perguntou: O que vocês ficaram fazendo lá? Daí eu falei um pouco da filosofia, da reflexão no processo de trabalho [...] E essa pessoa me disse assim: quantas maconhas você fumou hoje?”. (F4)

O apoio da equipe é importante, pois a aprendizagem na EPS se dá, sobretudo, no coletivo. Os diferentes olhares e concepções permitem maior aproximação da realidade, à medida que se detectam pontos cegos e se levantam distintas questões, possibilitando a produção das insatisfações, as quais são essenciais para desencadear mudanças (Feuerwerker, 2005). Cabe salientar que, ao valorizar o trabalho coletivo, a EPS não exclui a singularidade do sujeito. Pois, conforme Morin (2006), o sujeito oscila entre o princípio da exclusão e o princípio da inclusão. O princípio da exclusão representa a singularidade do sujeito, isto é, não há ninguém no mundo que pensa e age da mesma forma que outra pessoa. Já o princípio da inclusão é, ao mesmo tempo, complementar e oposto ao descrito anteriormente. Neste o sujeito compartilha ou adota ideais de outra pessoa, ou seja, o sujeito inclui, na sua subjetividade, outro sujeito, criando a oportunidade de comunicação. Os tutores também reconhecem, como necessidade, a importância de se respeitar e ter consciência da limitação do Homem durante o processo de implementação da EPS. A limitação humana existe devido ao contínuo processo de produção do sujeito (Freire, 2006a; Campos, 2000). O inacabamento justifica a constante busca do Homem por algo mais. Essa busca, para Freire (2006a), expressa o fundamento da educação enquanto um processo permanente. Freire (2006a) acrescenta que o Homem, ao perceber-se inacabado, tem consciência de que sua existência no mundo não está isenta de influências sociais, econômicas, culturais, ideológicas e políticas, e nem é totalmente escrava delas. Nesse sentido, o profissional de saúde deve estar consciente de que a ideologia dominante pode ser alterada pela inserção de novas práticas, as quais devem ser permanentemente apreendidas.

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Outra necessidade relatada pelos facilitadores refere-se à valorização do profissional de saúde pela gestão, pelos próprios profissionais e pela população. “[...] quando eu falo valorizado, eu falo tanto valorizado pelo trabalho que ele desempenha, a maneira como ele desempenha o trabalho, quanto pela valorização profissional em termos de ganho mesmo”. (F8)

Um tutor, por sua vez, declara que é preciso que os próprios profissionais comecem a se valorizar, utilizando os avanços percebidos, no dia a dia, na prática do trabalho. “[...] então quem vê hoje a saúde da família, sabe que mudou muito, mas as pessoas que estão lá no dia-a-dia elas percebem que a demanda aumentou, que o trabalho delas aumentou e que talvez a qualidade do que elas fazem não é percebido. Então quando vai qualificar isso, é realmente mostrar o quanto que avançou, o quanto que é importante o trabalho que elas fazem”. (T2)

Para que o profissional sinta-se valorizado, Campos (1997) refere que é preciso, entre outras coisas, que o trabalho seja reconhecido pelo próprio trabalhador, pelo cliente e pela sociedade. Contudo, esse reconhecimento não acontece, pois a forma como a assistência à saúde está organizada, isto é, fragmentada, traz prejuízos tanto para o trabalhador quanto para a sociedade. A fixação do profissional em uma determinada atividade produz, no mesmo, alienação; ele perde a capacidade de criar, como também não se sente ativo no processo e, portanto, não responsável pelo objetivo final da intervenção, que é a produção de saúde. O mesmo autor acrescenta que, ao se concentrar em atos esvaziados de sentido, não há vocação que resista à repetição de ações parcelares. Para transformar esse cenário, Campos (1997) aponta alguns caminhos. Corroborando os resultados deste estudo, uma dessas estratégias seria a aproximação dos trabalhadores com os resultados de seus trabalhos. Para conseguir atingir essa aproximação, é importante favorecer e criar mecanismos que estimulem a participação e o envolvimento de todos os profissionais da equipe. Além disso, garantir a liberdade aos profissionais, mas também delegar a eles responsabilidades. A combinação de autonomia profissional com definições de responsabilidades representa uma das principais estratégias para se assegurar a qualidade em saúde; no entanto, o equilíbrio entre essas duas condições não figura o ponto ideal de funcionamento. É necessário descobrir diversas combinações de graus de autonomia e responsabilidades, considerando cada contexto. Também emergiram necessidades relacionadas ao processo de trabalho. De acordo com os participantes, é preciso criar espaços de discussão. “[...] a gente tem que ter um momento de maior proximidade mesmo, de discussão”. (F3) “[...] criar espaços de discussões, espaços horizontais de discussões [...] promover espaço de discussão, dentro da unidade, dentro da equipe, no espaço com o usuário, com controle social, conselho municipal, com a academia”. (T1)

Para os sujeitos do estudo, os espaços de discussão favorecem a construção coletiva e facilitam o enfrentamento dos problemas. Discutir o processo de trabalho implica assumir responsabilidades, e isso gera desconfortos, uma vez que vêm à tona necessidades que exigem uma ação. Um estudo realizado com docentes de uma universidade estadual do Paraná revelou que os espaços de discussão promovidos pelas ações de educação permanente contribuem, positivamente, para o profissional refletir sobre sua prática pedagógica (Faria, 2008). Campos (2000) fala sobre a importância da existência de espaços coletivos. Para este autor, um espaço coletivo é um lugar e um tempo específico, em que se dá o encontro entre sujeitos. Estes espaços são destinados à comunicação, escuta, expressão de desejos, interesses, aspectos da realidade e, também, à análise e elaboração de estratégias que se destinam à solução de necessidades. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Os espaços coletivos são importantes, pois favorecem o desenvolvimento integral das pessoas, utilizando o próprio trabalho e as atividades cotidianas. Com isso, superam-se iniciativas episódicas que não promovem alterações nas organizações (Campos, 2000). Dessa forma, é preciso que os espaços coletivos se incorporem ao cotidiano dos trabalhadores de saúde, sejam em assembleias com profissionais e usuários, em reuniões ocasionais, em sessões para discussão de casos, oficinas de planejamento, entre outros. Os discursos apresentam necessidades de materiais e espaço físico para a realização de reuniões e atividades programadas. “[...] quando você começa a discutir o seu processo de trabalho, as dificuldades, as facilidades, identifica os problemas e quando você vai fazer uma proposta de intervenção para resolver o problema [...] Você precisa de estrutura”. (T3)

Necessidades semelhantes foram encontradas no estudo de Cotta et al (2006). Nesse estudo, a falta de transporte, de infraestrutura e de equipamentos foram as principais dificuldades vivenciadas por profissionais da Equipe Saúde Família (ESF). Os facilitadores afirmam que, muitas vezes, a equipe não consegue enxergar as próprias necessidades por estar “naturalizada” com os problemas presentes na localidade. Quando isso acontece, é muito importante contar com o olhar de quem está fora do processo. Esse auxílio é citado como uma necessidade, pelos participantes do estudo. Quando uma prática social se estabiliza, se repete com certa frequência, ela é percebida como se fosse uma regra natural; dessa forma, os sujeitos sentem dificuldades em mudar e, até mesmo, perceber falhas em uma prática que parece ser tão natural (Brasil, 2005b). Contar com o apoio de uma pessoa que esteja de fora do processo para perceber as falhas é algo importante; no entanto, isso não deve eximir a equipe de refletir sobre o processo de trabalho. Campos (2000) discute isso ao se referir aos Apoiadores Institucionais, cuja tarefa principal é promover, acompanhar e apoiar processos de mudança nos modelos de atenção e nos modos de gestão em saúde, tomados como indissociáveis. Os participantes salientam a importância de se formarem novos facilitadores. Para os participantes, a formação de mais facilitadores fortaleceria o processo de implementação da EPS, uma vez que mais pessoas compreenderiam a importância dessa política, amenizando a resistência dos trabalhadores acerca da EPS. “[...] acho que deveria ter outro processo agora aqui, em Londrina deveria ter um outro processo com os facilitadores para formar mais gente nas mesmas unidades”. (T3)

Por outro lado, um tutor afirma que a compreensão sobre a política de EPS não deve depender totalmente da formação de facilitadores, mas sim da prática da EPS e de tempo para que essa proposta seja amadurecida e disseminada pelos facilitadores já formados. Testa, citado por Giovanella (1989), refere que, além de novas consciências determinarem novas práticas, novas práticas também determinam novas consciências. “[...] não adianta você querer fazer mil cursos, formar cinco mil facilitadores, que desses cinco mil vão ser facilitadores efetivamente no máximo 10 pessoas. Então é questão de tempo. A política já foi gestada, já foi iniciada, mas demora um pouco”. (T9)

Não se pode negar: a formação de facilitadores contribui para fortalecer a implementação de EPS; contudo, é preciso ter cautela e não fazer do curso a solução de todos os problemas, pois, assim, correse o risco de reproduzir as práticas hegemônicas, em que se realizavam diversos cursos de capacitação, sem, contudo, promover mudanças. A formação de facilitadores não pode constituir a única estratégia para desenvolver a EPS; o curso traz os meios, mas o que de fato determina a mudança é a implementação da EPS no cotidiano do trabalho; afinal, o foco é o trabalho, e não o curso.

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artigos

Conforme afirma Nunes et al. (2008), a Educação Permanente em Saúde é um processo, e não uma capacitação estanque, portanto, a formação de facilitadores não deve se encerrar como mais um curso para profissionais. A maior necessidade apontada pelos participantes refere-se ao apoio da gestão, isto é, à institucionalização da política EPS. Os participantes afirmam que, para a EPS ser assumida como uma estratégia de mudança, é preciso que ela seja institucionalizada, pois é preciso garantir um espaço institucional para assegurar a sustentabilidade dessa política. “[...] a educação permanente sozinha não vai fazer milagre, precisa que a instituição crie outros instrumentos que colaborem na mesma direção, nós ficamos remando contra a maré sozinhos”. (T7)

Essa também é uma necessidade apontada pelo estudo de Limo et al. (2009), realizado com coordenadores ou responsáveis pelo setor de educação permanente dos serviços públicos de saúde do município de Florianópolis. Segundo esses sujeitos, há falta de estímulo por parte da Secretaria Municipal de Saúde, que, muitas vezes, apenas encaminha capacitações obrigatórias e padronizadas nacionalmente pela gestão tripartite. Vale ressaltar que a percepção de falta de apoio da gestão municipal pode apontar para a incompreensão da gestão sobre a magnitude desse processo. Como afirma Farah (2006), o processo de EPS não se limita a processos de capacitação; é fundamental que a gestão assuma sua responsabilidade de acompanhar e supervisionar as equipes no processo de trabalho. Os tutores citam que um dos caminhos para institucionalizar a EPS é avaliar e apresentar os resultados, os reflexos desse processo sobre a prática e os indicadores de saúde. As ações de monitoramento e avaliação devem ser incorporadas ao serviço como uma atividade permanente (Roschke, 2006). Corroborando a ideia do tutor sobre avaliar as ações de EPS, a nova Portaria 1996/GM menciona que a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde propõe indicadores para o acompanhamento da política de EPS dentro do processo de pactuação unificada de indicadores, que serão integrados aos indicadores do Pacto pela Saúde (Brasil, 2007).

Considerações finais A educação permanente em saúde, enquanto uma proposta contra-hegemônica, traz necessidades e dificuldades para os profissionais de saúde que buscam implementá-la no dia-a-dia do trabalho, sobretudo, para tutores e facilitadores de EPS. Os resultados desse estudo evidenciaram uma série de necessidades, entre elas destacam-se: o apoio da equipe, a criação de espaços de discussão, a valorização do profissional e, sobretudo, o apoio da gestão no processo de implementação da EPS. Em relação às dificuldades, os sujeitos salientaram a resistência dos profissionais e da própria organização da assistência pautada na lógica biomédica. Também houve relatos sobre a falta de compromisso de alguns profissionais e limitação de governabilidade. Com base nesses resultados, percebe-se que tutores e facilitadores, sobretudo tutores, em certos momentos, demonstram maturidade em relação à EPS, sobretudo quando remetem a esta política a necessidade de construção processual e que envolve o coletivo. Por outro lado, em outras situações, trazem discursos relacionados à transmissão de saberes, a valorização demasiada de cursos, enfim, características típicas do modelo hegemônico. Isso revela que tutores e facilitadores, mesmo tendo passado por um processo de formação e serem considerados profissionais preparados para impulsionar esta política no cotidiano dos serviços de saúde, também estão em processo de evolução, de apropriação desta proposta. Diante disso, é preciso fortalecer a ideia de que a EPS se apreende na prática, com o apoio da gestão e no enfrentamento dos problemas diários dos serviços de saúde. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Colaboradores A autora Fernanda de Freitas Mendonça responsabilizou-se pela coleta e análise dos dados e pela redação do artigo. A autora Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes responsabilizou-se pela análise dos dados e redação do artigo. Referências ANASTASIOU, L.C. Ensinar, aprender, apreender e processos de ensinagem. In: ANASTASIOU, L.C.; ALVES, L.P. (Orgs.). Processos de ensinagem na universidade: pressupostos para as estratégias de trabalho em aula. 7.ed. Joinville: Univille, 2007. p.15-43. BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1996/GM/MS, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. _______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. A educação permanente entra na roda. Brasília: Ministério da Saúde, 2005a. _______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Curso de facilitadores de educação permanente em saúde: unidade de aprendizagem – análise do contexto da gestão e das práticas de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005b. _______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 198/GM/MS, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para formação e do desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. ______. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 196/96, de 10 de outubro de 1996. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde, 1996. CAMPOS, G.W.S. Subjetividade e administração de pessoal: considerações sobre modos de gerenciar o trabalho em equipes de saúde. In: MERHY, E.E.; ONOCKO, R. (Orgs.). Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p.229-66. _______. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000. ______. Saúde Paidéia. 3.ed. São Paulo: Hucitec, 2007. COTTA, R.M.M. et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiol. Serv. Saude, v.15, n.3, p.7-18, 2006. FARAH, B.F. Educação permanente no processo de organização em serviços de saúde: as repercussões do curso introdutório para equipes de saúde da família – experiência do município de Juiz de Fora/MG. 2006. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2006. FARIA, M.J.S.S. et al. Os desafios da educação permanente: a experiência do curso de medicina da Universidade Estadual de Londrina. Rev. Bras. Educ. Med., v.32, n.2, p.248-53, 2008. FEUERWERKWER, L.C.M. Educação permanente em saúde: uma mudança de paradigmas. Olho Mágico, v.12, n.3, p.13-20, 2005. FREIRE, P. Sobre educação popular: entrevista com Paulo Freire. In: TORRES, R.M. (Org.). Educação popular: um encontro com Paulo Freire. 2.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p.67-108. _______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006a. _______. Pedagogia do oprimido. 44.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006b. GIOVANELLA, L. Ideologia e poder no planejamento estratégico em saúde: uma discussão da abordagem de Mário Testa. 1989. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública, Rio de Janeiro. 1989.

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MENDONÇA, F.F.; NUNES, E.F.P.A.

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MENDONÇA, F.F.; NUNES, E.F.P.A. Necesidades y dificultades de facilitadores y tutores para desarrollar la política de educación permanente en salud en un gran município en Paraná, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.871-82, jul./set. 2011. Para fortalecer la política de Educación Permanente en Salud (EPS) se formaron los tutores y facilitadores de la educación permanente en salud. El objetivo de ese estudio es fue descubrir sus necesidades y dificultades durante el proceso de aplicación de la EPS. Se trata de una investigación cualitativa con nueve tutores y dez facilitadores de EPS en Londrina, estado de Paraná. Como herramienta de recopilación de datos se llevaron a cabo entrevistas semi-estructuradas y los datos fueron analizados como el análisis del discurso propuesto por Martins y Bicudo. Entre as necesidades se destaca la institucionalización de la EPS y entre las dificultades, la persistencia de la práctica hegemónica. Es necesario consolidar la EPS a través de su práctica en los servicios de salud, sólo de esta manera, los tutores, facilitadores y otros profesionales de la salud tendrán la capacidad de superar las limitaciones actuales del proceso de aplicación de la EPS.

Palabras clave: Políticas de salud. Educación Permanente en Salud. Proceso de trabajo en Salud. Administración de Personal en Salud. Recebido em 05/11/10. Aprovado em 23/03/11.

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artigos

O Sistema Único de Saúde como paradigma nas representações sociais dos cirurgiões-dentistas Sérgio Xavier de Camargo1 Luiza Nakama2 Luiz Cordoni Junior3

CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L. The Brazilian National Health System as a paradigm in dentists’ social representations. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.883-900, jul./set. 2011. The purpose of this study was to investigate whether the Brazilian National Health System (SUS) is recognized by dentists as a paradigm for professional practices. This was a qualitative study that analyzed the social representations of SUS among these professionals. The study group was formed by dentists whose professional activity was connected with public healthcare services, specifically public servants and university teachers, consisting of three cases: traditional public service professionals in Londrina (Paraná); family healthcare strategy professionals in Curitiba (Paraná); and dentistry school lecturers in Londrina (Paraná). The results showed three possibilities: a lack of knowledge about SUS; knowledge and skepticism; and knowledge and Utopia. It was concluded that SUS is not completely recognized as a reference point for dental care among dentists, and that dentists’ adherence to the SUS project was dependent on an association between knowledge of SUS and personal faith in its viability.

Este estudo se propôs a verificar se o Sistema Único de Saúde (SUS) é reconhecido pelos cirurgiões-dentistas como paradigma para a prática profissional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que analisou as representações sociais do SUS desses profissionais. O grupo de estudo reuniu dentistas com atuação profissional vinculada aos serviços públicos de Saúde, especificamente servidores públicos e professores universitários, sendo constituído por três casos: profissionais do serviço público tradicional de Londrina (PR); profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) de Curitiba (PR); docentes de faculdades de Odontologia de Londrina (PR). Os resultados evidenciaram três possibilidades: desconhecimento do SUS; conhecimento e ceticismo; conhecimento e Utopia. Conclui-se que o SUS não é plenamente reconhecido como referencial para a atenção odontológica pelos cirurgiões-dentistas, e que sua adesão ao projeto SUS se dá apenas na contingência da associação entre conhecimento do SUS e crença pessoal em sua viabilidade.

Keywords: Brazilian National Health System. Dentistry. Family health. Social representations. Human resources.

Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Odontologia. Saúde da família. Representações sociais. Recursos humanos.

1,3 Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina (CCS/UEL). Avenida Robert Koch, 60. Vila Operária. Londrina, PR, Brasil. 86.039-440. sergioxc@uol.com.br 2 Departamento de Medicina Oral e Odontologia Infantil, CCS, UEL.

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Introdução A República Federativa do Brasil – configurada como Estado Social e Democrático de Direito, promotor de justiça social – tem, na garantia de atenção à Saúde, um de seus maiores desafios. Conta para tanto com o Sistema Único de Saúde (SUS), instituto legítimo e democrático de mais de vinte anos, advindo da Reforma Sanitária. Conforme Junges (2009, p.285), quando a maioria dos países do Primeiro Mundo iniciava um processo de desmonte do Estado de bem-estar social, seguindo a cartilha neoliberal, o Brasil apostou num sistema público de saúde fundado na universalidade e na equidade do acesso aos recursos necessários a uma saúde integral. Essa opção nacional foi fruto de um pacto construído, durante anos, com muita eficiência política e social pelo movimento sanitarista brasileiro.

Muitos autores têm analisado os avanços e impedimentos na efetivação do SUS como estratégia de consolidação da Reforma Sanitária, que objetiva, mais que garantir saúde, efetivar a transformação da realidade social, enquanto projeto emancipatório da sociedade (Cohn, 2009; Menicucci, 2009; Paim, 2009, 2008; Santos, 2009; Campos, 2008; Mendes, 1996, 1993). O SUS, pretendendo garantir e efetivar direitos sociais, é construído em processo histórico resultante da ação de múltiplos vetores sociais, de interesses por vezes contraditórios, sendo, há muito, apresentado como um processo social em construção (Mendes, 1996). Um dos principais vetores desse processo histórico é constituído pelos profissionais que nele atuam. Conhecer o referencial simbólico destes atores quanto ao SUS é fundamental para compreendê-lo em seu contexto presente, bem como em suas perspectivas futuras. Tais significados, socialmente produzidos pelos profissionais, podem ser compreendidos pelo estudo das Representações Sociais (RS), que se revelam sob a forma de “teorias” representativas da interpretação coletiva da realidade (Berger, Luckmann, 2002; Moscovici, 1981). Segundo Moscovici (1978), a representação social é um conjunto organizado de figuras (que se constituíram em imagens) e de expressões socializadas (que se constituíram em linguagem) que realçam e simbolizam as situações e os atos. A representação produz comportamentos, visto que define a natureza dos estímulos que nos rodeiam e provocam; ao mesmo tempo, determina esses comportamentos, à proporção que define o significado das respostas a serem dadas aos estímulos. Para se conhecer o papel dos profissionais no processo social de construção do SUS importa saber quais são suas RS em uma dimensão político-assistencial reveladora de ideologias que as sustentam. Tais RS devem ser confrontadas com paradigmas idealizados do SUS. Especificamente quanto à Saúde Bucal, muitos autores (Frazão, 2009; Frazão, Narvai, 2009; Narvai, 2006; Roncalli, 2000; Cordón, 1998) têm discutido as necessidades e os anseios da população pelo exercício deste direito, bem como os grandes desafios relativos à sua efetiva realização. De acordo com Nunes et al. (2008, p.413), as práticas profissionais dos cirurgiões-dentistas que atuam nos serviços públicos de saúde refletem o modelo flexneriano de formação das diversas instituições de ensino brasileiras. Apesar do crescente aumento no número de faculdades de odontologia nas últimas décadas e das novas diretrizes curriculares, poucas mudanças podem ser observadas na formação de seus egressos.

Em face das mais de duas décadas de instituição jurídica do SUS, das dificuldades de sua implantação como Modelo de Atenção em Saúde no Brasil, e, em especial, relativamente à atenção odontológica no SUS, cogita-se que os significados das RS dos profissionais possam ser fatores associados a esta realidade. Como objetivo, o estudo propõe verificar se o SUS é reconhecido como paradigma válido pelo cirurgião-dentista para a prática profissional odontológica e, ainda, identificar e analisar estas RS do cirurgião-dentista sobre o SUS. 884

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CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.

De acordo com Triviños (1987), “podemos entender por entrevista semi-estruturada, em geral, aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa” (Triviños, 1987, p.146). 5

Conforme o autor, o Estudo Multicaso diferencia-se do Estudo Comparativo de Casos por propiciar a possibilidade de estudar dois ou mais sujeitos, organizações, sem a necessidade de perseguir objetivos de natureza comparativa. 6

Procedimentos metodológicos

artigos

O reconhecimento do Programa Saúde da Família (PSF) como Estratégia Saúde da Família (ESF) foi instituído pela Portaria nº 648/GM de 28 de março de 2006 (Brasil, 2007). Este trabalho utiliza a terminologia ESF, não obstante preserve a terminologia PSF quando referente às manifestações dos trabalhadores de saúde entrevistados, visto ser este o termo consagrado pelo uso em suas relações de comunicação intersubjetiva. 4

O grupo de estudo foi constituído por 26 cirurgiões-dentistas com atuação profissional vinculada ao SUS, configurando três casos ou subgrupos de estudo: a) profissionais do serviço público tradicional; b) profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF)4; c) docentes de faculdades de Odontologia. Para a seleção da população de estudo, foi utilizada a estratégia de amostragem não probabilística, intencional. O subgrupo dos profissionais tradicionais foi constituído por oito dentistas da rede pública de Londrina, não inseridos na ESF, e o subgrupo dos profissionais da ESF, por oito dentistas da rede pública de Curitiba. Para ambos os subgrupos, foi estabelecido o critério de seleção dos profissionais por máxima variação ou heterogeneidade (Patton, 2002), com os quatro profissionais com maior tempo no serviço público e maior idade, e os com menor tempo de serviço público e de menor idade, a partir de informações fornecidas pelas secretarias municipais de saúde. O subgrupo dos docentes foi constituído de dez dos 16 professores universitários das disciplinas de Odontologia Social e Preventiva e de Odontopediatria, dos cursos de Odontologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR), instituição privada, de Londrina. No período de coleta de dados, o município de Curitiba já contava com ampla experiência da inserção da Odontologia na ESF, e o município de Londrina estava na iminência de iniciar esta inserção. Foi usada a estratégia de seleção mista (Patton, 2002), com seleção por caso crítico para o grupo de estudo, e seleção por máxima variação, para os subgrupos de estudo. O caso crítico permite generalização dos resultados por inferência. A máxima variabilidade permite verificar a influência dos fatores idade e tempo de atuação no SUS, bem como propiciar maior amplitude e diversificação das RS. Foram realizadas entrevistas com os profissionais, seguindo um roteiro semiestruturado5, entre junho e novembro de 2003, sendo proposta a questão: “Como você vê o SUS?”. Todas as entrevistas foram concedidas espontaneamente, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido firmado entre entrevistados e entrevistador, além do Termo de Compromisso do pesquisador junto ao Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Estadual de Londrina, no qual foi aprovada a pesquisa. Os dados foram transcritos, processados com auxílio do programa de software NVivo, versão 1.2, e analisados pela técnica de Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2004). Esta investigação, de natureza qualitativa, configurou-se um Estudo Multicaso6 (Triviños, 1987) e um Estudo de Caso Coletivo7 (Stake, 2000), e utilizou a análise temática das Representações Sociais como instrumento teórico-metodológico para pesquisar os significados e valores dos cirurgiões-dentistas, relativos ao SUS. As RS são definidas por Moscovici (1981) como um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais, e equivalentes, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crença das sociedades tradicionais, e à versão contemporânea do senso comum. Minayo (2002) fundamenta o tema na sociologia clássica de Durkheim, Marx e Weber, entre outros. Segundo a autora, em Durkheim, as Representações Coletivas são categorias de pensamento com que as sociedades expressam sua realidade, a partir de fatos sociais. Em Marx, as representações, as ideias e os pensamentos são o conteúdo da consciência, determinada pela base material da vida real. Em Weber, as ideias (RS) são juízos de valor que os indivíduos dotados de vontade possuem, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.38, p.883-900, jul./set. 2011

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com autonomia frente à infraestrutura material. Em Schultz, as RS no cotidiano são o senso comum, construído e interpretado a partir do dia a dia. Este estudo pressupõe, conforme Oliveira e Werba (2002), que RS sejam “teorias” sobre saberes populares e do senso comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e interpretar o real. Neste estudo, RS referentes ao SUS foram identificadas; estas RS foram tratadas como temas de análise pela técnica de análise de Conteúdo, modalidade Temática, seguindo metodologia de Bardin (2004). Como método de interpretação, na análise dos dados, preferiu-se a análise hermenêutico-dialética, conforme indica Minayo (2000), que a considera adequada às dimensões e dinâmicas das complexas relações que tenham a saúde como objeto de investigação. Para Bardin (2004), a análise de conteúdo comporta diferentes fases: 1) a préanálise; 2) a exploração do material; 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Seguindo este referencial, o presente estudo realizou: a leitura flutuante, a escolha dos documentos e a constituição de um corpus (conjunto dos documentos a serem submetidos à análise), a formulação das hipóteses e dos objetivos, privilegiando os procedimentos exploratórios, e a preparação do material (material e formal). Quanto ao tratamento dos resultados, foi escolhido o tema8 como unidade de análise. Por fim, outras duas categorias fundamentais para a análise proposta são: a dimensão política e a dimensão ideológica destas representações. A dimensão político-assistencial das representações é evidenciada por Paim (2002), ao apontar quatro tipos de concepções vigentes sobre o SUS: a) o SUS democrático, desenhado pelo projeto da Reforma Sanitária Brasileira; b) o SUS formal, juridicamente estabelecido pela Constituição Federal; c) o SUS real, refém dos desígnios da chamada área econômica do governo, do clientelismo e da inércia burocrática; d) o SUS-para-pobre, “um susto pobre para a doença do pobre, uma medicina simplificada para gente simples”, mediante políticas de “focalização” (Paim, 2002, p.253). A análise representacional do SUS em sua dimensão ideológica requer definição do termo “Ideologia”. Mannheim (1968) faz distinção entre dois tipos de observação e enunciação falsos: uma concepção particular e uma concepção total de ideologia. Para o autor, a concepção particular, inclui todas as expressões cuja falsidade é devida à ilusão de si mesmo ou de outros, intencional ou não, consciente, semiconsciente ou inconsciente, que ocorre em nível psicológico e se assemelha estruturalmente à mentira. Chamamos de particular a esta concepção de ideologia. [...] A Sociologia do Conhecimento, por outro lado, toma como seu problema exatamente esta estrutura mental em sua totalidade, tal qual ela aparece nas diferentes correntes do pensamento e dos grupos histórico-sociais. [...] Uma vez que a suspeita de falsificação não se inclui na concepção total de ideologia, o uso do termo “ideologia” na Sociologia do Conhecimento não possui intenção moral ou denunciadora. (Mannheim, 1968, p.287-8)

Quanto à utopia, afirma Mannheim (1968, p.216) que

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7 Stake (2000) distingue três tipos de estudos de caso a partir de suas finalidades: intrínseco, instrumental e coletivo. No estudo de caso intrínseco, busca-se melhor compreensão de um caso apenas pelo interesse despertado por aquele caso particular. No estudo de caso instrumental, ao contrário, o interesse no caso deve-se à crença de que ele poderá facilitar a compreensão de algo mais amplo, uma vez que pode servir para fornecer insights sobre um assunto ou para generalização amplamente aceita, apresentando um caso que não se encaixa; no estudo de caso coletivo, o pesquisador estuda conjuntamente alguns casos para investigar um dado fenômeno, podendo ser visto como um estudo instrumental estendido a vários casos.

8 Segundo Bardin (2004), “[...] o tema é a unidade de significação que se libera naturalmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura. O texto pode ser recortado em idéias constituintes, em enunciados e em proposições portadores de significações isoláveis. [...] Fazer uma análise temática consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação e cuja presença ou freqüência de aparição podem significar alguma coisa para o objectivo analítico escolhido. [...] o tema é geralmente utilizado como unidade de registro para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de tendências, etc.”. (Bardin, 2004, p.99)


CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.

artigos

Um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual se insere. Esta incongruência é sempre evidente pelo fato de que este estado de espírito na experiência, no pensamento e na prática se oriente para objetos que não existem na situação atual. [...] Iremos nos referir como utópicas somente aquelas orientações que, transcendendo a realidade, tendem, a se transformarem em conduta, a abalar, seja parcial, ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento. Ao limitar o significado do termo “utopia” ao tipo de orientação que transcende a realidade e que, ao mesmo tempo, rompe as amarras da ordem existente, estabelece-se uma distinção entre os estados utópicos e os ideológicos.

Löwy (2000) sintetiza o pensamento Mannheimniano quanto ao fenômeno “Ideologia Total” em suas manifestações de ideologia e utopia: ideologia é o conjunto das concepções, ideias, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução da ordem estabelecida. São todas aquelas doutrinas que têm um certo caráter conservador no sentido amplo da palavra, isto é, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, servem à manutenção da ordem estabelecida. Utopias, ao contrário, são aquelas ideias, representações e teorias que aspiram a uma outra realidade. Deste modo, as utopias têm uma função subversiva, uma função crítica e, em alguns casos, uma função revolucionária. O presente trabalho faz distinção semântica entre o uso acadêmico do termo sociológico “Utopia” (uma das formas de manifestação da Ideologia Total) – que aspira à mudança – e o termo “utopia”, alusivo ao uso do senso comum – que o associa à impossibilidade de mudança. Também faz distinção entre Ideologia (Total), fenômeno maior, e ideologia, sua forma de manifestação associada à manutenção da ordem estabelecida e, em decorrência, associada à utopia. Paradigma corresponde a um conjunto de noções, representações e crenças, compartilhadas por um determinado segmento de sujeitos sociais, tornando-se um referencial para a ação (Paim, 1997). Então, este estudo pressupõe que o conceito de SUS, como paradigma, refere-se ao conceito de “SUS democrático”, como visão social de mundo Utópica, de acordo com os ideais estabelecidos pela Reforma Sanitária Brasileira.

Resultados e discussão Os cirurgiões-dentistas foram identificados, em seus subgrupos de estudo (Londrina, Curitiba e Docentes), pelas letras L (SUS Tradicional de Londrina), C (SUS ESF de Curitiba) e D (Docentes de Londrina). Logo, L3 refere-se à terceira entrevista do subgrupo do SUS Tradicional, de Londrina; C8, à oitava entrevista do SUS ESF, de Curitiba; e D1, à primeira entrevista do subgrupo dos Docentes, de Londrina. As intervenções do pesquisador, nos diálogos, quando necessárias, foram identificadas por (P). A partir das entrevistas realizadas, foram identificadas 23 RS relativas ao termo SUS, que foram agrupadas em três categorias ou Sistemas Representacionais: Representações de Desconhecimento; Representações de Realidade; e Representações de Conhecimento (Quadro 1). No Sistema do Desconhecimento (S1, Quadro 2), verificou-se uma representação-chave para a compreensão do tema de pesquisa: o desconhecimento do SUS, por parte do entrevistado. Este percebe a ausência de referenciais cognitivos que lhe permitam avaliar com justeza o SUS, o que gera uma situação desconcertante: o profissional integra o SUS, mas dele não se reconhece parte. O fato é emblemático da descontextualização do profissional quanto ao sistema de saúde em que está inserido, seu autodesconhecimento enquanto ator social, no desempenho de suas atividades profissionais. O fato chama a atenção para dois aspectos importantes: a formação profissional e o alcance do ideário da Reforma Sanitária. Verificou-se, no subgrupo Londrina, um déficit, não de formação técnica, mas de formação política, relativamente ao SUS. De acordo com Neide Deluiz (1997), o SUS requer um “novo trabalhador”, sendo necessário um conjunto de habilidades que contemplem a interação comunicativa e a ampliação do espectro de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.38, p.883-900, jul./set. 2011

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Quadro 1. Representações sociais dos cirurgiões-dentistas quanto ao conceito SUS, por sistemas representacionais. Londrina e Curitiba, 2004. Nº

Representações sociais

Sistemas

1

Desconhecimento sobre o SUS

2

O dentista fora do SUS

3

O SUS não resolve

4

Desconhecimento do PSF

5

O SUS repassador de recursos

6

Assistência de má qualidade

7

SUS para pobres

8

A política atrapalha o SUS

9

Dificuldades financeiras do SUS

10

Acesso deficiente ao SUS

11

Atenção especializada deficiente

12

Imagem negativa do SUS na sociedade

13

Teoria diferente da prática

14

O SUS é inviável (“utopia”)

15

O dentista dentro do SUS

16

O SUS como solução

17

Reconhecimento do PSF

18

Assistência de boa qualidade

S3

19

Excelente concepção teórica

Sistema do Conhecimento

20

O SUS é viável (Utopia)

21

O SUS como processo social

22

Compromisso com o SUS

23

Participação Popular e Controle Social

S1 Sistema do Desconhecimento

S2 Sistema da Realidade

funções, superando a educação exclusivamente tecnicista. Para a autora, a formação do profissional da saúde deve ter por base alguns níveis de competências associados às respectivas categorias de capacidades e habilidades. Entre elas, estão as competências: técnica (capacidade de dominar as tarefas, regras e procedimentos da área específica de trabalho); organizacional (capacidade de autoplanejamento e de auto-organização, na medida em que desenvolve a flexibilidade no processo de trabalho); comunicativa (com seu grupo de trabalho); social (uso de conhecimentos adquiridos no mundo do trabalho e na vida cotidiana no desempenho de sua função); pessoal (assumir a responsabilidade sobre o trabalho); de cuidado (capacidade de interagir com o paciente, levando em consideração suas necessidades e escolhas); de serviço (compreensão dos impactos que suas ações terão direta ou indiretamente sobre os serviços ou usuários) e sociopolítica (capacidade de refletir sobre a esfera do mundo do trabalho). A Constituição Federal de 1988, art. 200, inciso III, declara competência da gestão do SUS “o ordenamento da formação de recursos humanos da área da saúde” (Brasil, 2003, p.40). A Lei 8.080/90, art. 27 (Brasil, 1990), também prevê seja esta uma atribuição do SUS em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, além da elaboração de programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal, o que vem sendo apontado nas VIII, IX, X e XI Conferências Nacionais de Saúde (Ceccim, Armani, Rocha, 2002). Desde a criação do primeiro curso de Odontologia do país, na Bahia, em 1882, até a implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Odontologia (Fernandes Neto, 2010; Terada, Nakama, 2004), tem havido a preocupação de se adequarem os currículos odontológicos, que 888

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Quadro 2. Representações sociais e narrativas dos cirurgiões-dentistas sobre o SUS, referentes ao Sistema do Desconhecimento. Londrina e Curitiba, 2004. Representações sociais

Narrativas do Sistema do Desconhecimento

1 Desconhecimento sobre o SUS

[...] Essa parte do SUS, vou falar a verdade para você, eu não tenho muita noção de como funciona mesmo o SUS em si, como um todo, eu não faço muita idéia, eu estou um pouquinho bitolado na área da odontologia, então no SUS, eu não tenho muita noção de como funciona, de como que é a hierarquia, como que eles fazem, como que eles vêem a demanda, como que eles tentam suprir essa demanda, como que eles fazem a distribuição de profissionais, isso eu não tenho noção nenhuma, preciso me informar melhor... (L5)

2 O dentista fora do SUS

[...] no meu posto, onde eu atendo, existia um dentista credenciado pelo SUS, que a gente dava guia, só que agora ele se descredenciou e a gente não tem para onde jogar esses pacientes [adultos], se descredenciou justamente acho que pelo baixo preço que o SUS paga para os dentistas, parece que era um absurdo o que ele recebia, e ele se descredenciou. [...] O SUS deveria ser muito melhor administrado, muito melhor trabalhado isso daí, porque é uma judiação mesmo, como eu falei com você lá, aquele dentista, a gente tinha uma noção de como ele trabalhava, você falava assim: Como uma pessoa pode trabalhar numa estrutura tão pequena que é dado, numa estrutura tão.... a odontologia pelo SUS, [risos] as vezes fica deixada bem de lado mesmo. [ -Você faz parte do SUS também? (P)] - Não, pelo SUS não. A gente é municipalizado, pela rede... [- como você vê esse atendimento da rede? (P)] -Muito bom, muito bom... [L1].

3 O SUS não resolve

Olha, eu acho o SUS um grande problema [risos]... Eu acho o SUS solução pra quase nada, viu, na odontologia [é] que eu estou falando isto pra você (D9).

4 Desconhecimento do PSF

Agora, o SUS eu não sei, o SUS não tem nada com o Programa de Saúde da Família, ou tem também? Acho que não, não é? É mais, mais separado isso [...] (L6).

5 O SUS repassador de recursos

Eu acho que [o SUS] é um atendimento muito deficitário no país, ele existe mas não cumpre o papel, não tem o que falar, não faz o papel que deveria fazer. É uma forma só de, talvez em temos de repasse de dinheiro, para instituições, mas ele em si não funciona. É isso! (D8).

6 Assistência de má qualidade

[Vejo o SUS] Com muita tristeza, com muita tristeza mesmo. Eu creio que poderia ter um modelo mais abrangente, qualidade, poderia melhorar muito na qualidade [...] (D5).

7 SUS para pobres

[...] eu acho que saúde [...] é uma coisa muito cara para ser extensiva a todos, eu acho que tinha que ser proporcional: o carente deveria ter tudo de graça, aquele que não consegue pagar tudo, ter uma parcela, e aquele que pode pagar, pagar. A saúde é cara, ela onera muito o Estado, quero dizer, a gente mesmo, porque o Estado é a gente, é imposto, então isso onera muito, [...] eu não acho que seja viável, eu vou ser sincero para você, esse posto [de saúde] aqui é um pouco diferenciado, você vê muitos paciente que antes seriam de convênios ou até mesmo de consultório particular, que tem toda condição de fazer um tratamento em consultório particular; não fazem, e vem aqui, e muitas vezes esse paciente está tomando a vaga de um paciente que não tem condições, tem lista de espera, aí eu tenho a lista de espera, então este paciente pode estar tomando a vaga de um paciente que não teria condições financeiras nenhuma (L8).

evoluíram de uma concepção originariamente tecnicista ao mais amplo estabelecimento do perfil do egresso/profissional, conforme propõem as referidas Diretrizes no artigo 3º da Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior (CNE/CES), de 19 de fevereiro de 2002: O Curso de Graduação em Odontologia tem como perfil do formando egresso/profissional o Cirurgião-Dentista, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor técnico e científico. Capacitado ao exercício de atividades referentes à saúde bucal da população, pautado em princípios éticos, legais e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade. (Brasil, 2002, p.10)

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Ao que se junta o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PróSaúde), lançado em 2005, de iniciativa do Ministério da Saúde, que se destina à reorientação da formação de profissionais de saúde por uma escola integrada ao serviço público de saúde e que dê respostas às necessidades concretas da população brasileira na formação de recursos humanos, na produção do conhecimento e na prestação de serviços, direcionados a construir o fortalecimento do SUS (Brasil, 2010). No campo da gestão da saúde bucal, vislumbra-se uma complexa agenda em que a formação de recursos humanos toma parte (Frazão, 2009). A III Conferência Nacional de Saúde Bucal (CNSB) entendeu que, quanto à formação e trabalho em saúde bucal, o sistema de Ensino Superior não está cumprindo o seu papel na formação de profissionais comprometidos com o SUS e com o controle social. A formação dos trabalhadores da saúde não se orienta pela compreensão crítica das necessidades sociais em saúde bucal (Narvai, 2006). Segundo a III Conferência Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2005, p.70), A expansão das equipes de Saúde da Família deixou evidentes as limitações do perfil atual de formação, como um ponto de estrangulamento na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Os componentes técnicos da educação na graduação e pós-graduação em saúde geralmente não estão voltados para as necessidades de saúde da população nem para o emprego ou criação de tecnologias assistenciais inovadoras.

Conforme Pucca Junior (2004), na saúde bucal, somos herdeiros da tradição materno-infantil, e os serviços necessitam se organizar e necessitam de outras demandas de formação profissional: O debate se coloca quando se busca a adequação profissional frente às demandas sociais necessárias, sejam elas de natureza pública ou privada, que são, inevitavelmente, as necessidades do conjunto da sociedade, ou seja, o que se espera que o profissional desempenhe após o seu ingresso no mercado de trabalho. (Pucca Junior, 2004, p.151-2)

Segundo Paim (2009), a questão dos recursos humanos, presente na agenda política da 8ª. CNS, não encontrou ressonância nem prioridade, e constitui grande dívida do Estado brasileiro com aqueles que constroem o SUS a cada dia. Tânia Nunes, em entrevista a Noronha et al. (2002, p.12), declara que “A questão da formação profissional está na Reforma desde a sua origem. Já naquela época, se via a necessidade de um salto qualitativo dado pela politização e pela inquietação que deveriam caracterizar uma educação profissional mais comprometida com o movimento típico da reforma da saúde”. A formação de recursos humanos para a saúde diferencia duas modalidades de educação no trabalho: a Educação Continuada em Saúde (ECS) da Educação Permanente em Saúde (EPS). A Educação Continuada é uniprofissional, visa uma pratica autônoma, enfoca temas de especialidades, objetiva atualização técnico-científica, esporádica, baseia-se na pedagogia da transmissão, e resulta em apropriação. A Educação Permanente é multiprofissional, visa uma prática institucionalizada, enfoca problemas de saúde, objetiva a transformação das práticas técnicas e sociais, é contínua, com pedagogia centrada na resolução de problemas e resultando em mudança (Mancia, Cabral, Koerich, 2004; Almeida, 1999). O Ministério da Saúde, ao instituir a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, afirma que “os processos de educação permanente em saúde têm como objetivos a transformação das práticas profissionais e da própria organização do trabalho” (Brasil, 2009, p.20). Para Feuerwerker (2007), a educação dos profissionais de saúde tem uma importância grande na conformação de conceitos e de práticas na área da saúde: [...] em comum com o movimento da reforma sanitária brasileira, o movimento de mudanças na formação tem o compromisso ético-político com a saúde da população brasileira e com os princípios do SUS. Educação na saúde, então, é um campo a ser trabalhado do ponto de vista da produção de conhecimento e das práticas sociais. Essa é uma tarefa para todas as 890

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profissões da saúde. Mais: é uma tarefa para todos os campos de saber entre-cruzados com a saúde e com a educação na produção do compromisso ético-político que norteia o movimento da reforma sanitária brasileira. (Feuerwerker, 2007, p.4)

Outro aspecto fundamental que deve ser tratado na análise do desconhecimento do SUS pelos profissionais do SUS é o referente ao alcance dos seus conceitos e princípios. Muitos profissionais do SUS não são atingidos pela retórica da Reforma Sanitária, e, mais que isto, nem mesmo a conhecem. Algumas representações do SUS o associam ao atendimento prestado por dentistas em seus consultórios privados, remunerados por um sistema de credenciamento. Este modelo de financiamento e repasse de recursos, conhecido por Plano de Pronta Ação (PPA), surgiu em 1974, ano de criação do Ministério da Assistência e Previdência Social, e universalizou a atenção às urgências (Mendes, 1992). Esta forma de assistência é hoje residual no SUS para a atenção odontológica, configurando mais exceção que regra nos modelos de atenção vigentes. Ainda assim, o SUS foi significativa e anacronicamente relacionado ao PPA, e o “dentista do SUS”, ao “dentista do PPA”, do período INAMPS e, portanto, pré-SUS. Ocorre a “inampização” do SUS, forma de descentralização das ações de saúde com transferência de gestão, sem mudança do modelo assistencial, revelando-se um dos nichos mais nítidos de apropriação privada da rés pública, fenômeno conhecido como privatização do Estado. O município é visto como mero prestador de serviços, seja à previdência social (quando existia o INAMPS), seja ao SUS (após a extinção do INAMPS) (Mendes, 1992). Em parte do subgrupo dos docentes, o SUS não é mais percebido como INAMPS, mas ainda o é como o SUS comprador de serviços. O SUS “inampizado” é percebido como financiador das atividades clínicas, mas não como modelo de lógica assistencial, como pode ser observado em clínicas odontológicas de universidades, elementos constitutivos de um SUS que, conquanto as subvencione, permanece invisível, subliminar, ignoto a alunos e docentes. Neste contexto, a ESF apresenta-se como um instituto distante, afastado da realidade do entrevistado, alheio à sua percepção como importante tentativa de reorganização da Atenção Básica. O período de coleta de dados permitiu captar, nesta representação, o momento histórico vivido pelos profissionais de Londrina, que assistiam, com distanciamento, ao início da implantação da ESF no município, representação associada: à insegurança dos profissionais quanto à mudança do modelo assistencial que a ESF suscitava; ao desconhecimento mesmo do SUS e, consequentemente, da ESF; às dificuldades estruturais de sua implantação; e, ainda, ao receio de que o evento pudesse pôr a perder todo um trabalho preventivo bem-sucedido, ainda que focado em faixas etárias limitadas. Apesar de dúvidas e receios, verificou-se o reconhecimento de que a ESF está associada a um maior acesso aos serviços de saúde, ainda que percebido como um “atendimento para adultos”, em distinção ao atendimento infanto-juvenil tradicionalmente ofertado. Esta identificação “ESF dentista para adultos”, que muito tem prosperado atualmente, configura a negação do desafio da integralidade que o justifica como estratégia de reorganização da Atenção Básica. O primeiro sistema evidencia as representações ligadas ordinariamente ao desconhecimento do SUS, o que determina uma autopercepção externa ao mesmo, refletindo na incompreensão do sistema. Esta incompreensão determina uma avaliação do SUS pelas experiências da realidade traduzidas pelo senso comum. O SUS é, assim, identificado como ausência de solução e, no limite, como o próprio problema. Nesta lógica do desconhecimento, a ESF não é uma estratégia estruturante de um modelo assistencial democrático e equitativo, mas sim um ente distante e indefinível, citado pelos noticiários de televisão e, portanto, dissociado da concretude da prática profissional, no cotidiano das Unidades Básicas de Saúde. O SUS é ainda identificado com os antigos prestadores do INAMPS, ou a um mero repassador de recursos financeiros, no fenômeno da “inampização” do SUS, mais característico nas instituições de ensino. Neste contexto, o SUS está vinculado, irremediavelmente, a um atendimento de baixa qualidade, débil, mínimo, não resolutivo, como um serviço pobre para gente pobre, conforme Paim (2002). Esta representação consubstancia a própria negação do Sistema Único e dos objetivos da Reforma Sanitária; logo, é a percepção do SUS como o não-SUS, ou, ainda, como o anti-SUS.

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Quadro 3. Representações sociais e narrativas dos cirurgiões-dentistas sobre o SUS, referentes ao Sistema da Realidade. Londrina e Curitiba, 2004. Narrativas do Sistema da Realidade

Representações sociais 9 Dificuldades financeiras do SUS; 10 Acesso deficiente ao SUS; 11 Atenção especializada deficiente

O problema é quando a situação vai se atrasando, as doenças vão se agravando, então estão precisando de mais recursos, mais especialidades, mais tecnologia, de maquinário, você vê que estrangula, que realmente vai ficando muito mais caro e... uma parcela muito grande da população que fica de fora! (D1).

12 Imagem negativa na sociedade

Nós conseguimos sair daquela velha máxima que dizia: “O [atendimento] público é de baixa qualidade e não presta”. Então eu acho que só de reverter esta idéia que se tinha, não vou dizer que não tenha, que não exista isto ainda. O serviço público ainda está vinculado à imagem dos antigos prestadores do INPS, que serviço público era pra mutilar, era pra arrancar dentes, era para fazer obturação de baixa qualidade. Mas felizmente esse quadro, essa visão, ele está mudando [...] (D7).

13 Teoria diferente da prática

O SUS é um sistema que exemplifica o que eu disse logo no início: O discurso é um, a prática é outra. Acho que o discurso do SUS com a prática não tem nada a ver uma coisa com a outra (D5).

8 A política atrapalha o SUS; 14 O SUS é inviável (“utopia”)

Por causa dos nossos governantes, não vai ter saúde para todo mundo, não vai, porque eu falo, o que estraga nesse país é o Congresso, tinha que ter democracia, mas sem Congresso, dá para ser assim? Democracia sem Congresso? [...] se cada um fizer a sua parte, acho que as coisas vão melhorando, mas saúde para todo mundo é utopia, assim como país sem fome também é utopia [...] (L2).

O Sistema da Realidade (S2, Quadro 3) expressa, em suas representações, todas as características vivenciadas no dia a dia dos serviços públicos de saúde. A política é vista como um fator desorganizador do SUS: a falta de prioridade política e a corrupção dos entes públicos determinariam um subfinanciamento do setor Saúde, alimentando, assim, a percepção de uma das maiores debilidades do sistema, sua razão de ser e, também, seu maior desafio: a dificuldade de acesso universal físico ao sistema. Não é por outra razão que o levantamento do Ministério da Saúde e do CONASS (Biancarelli, 2003) apontava as filas de espera como a maior queixa dos usuários. As dificuldades de acesso irradiamse pelos demais níveis de atenção, como o secundário e o terciário, e, também, nos serviços odontológicos, a deficiência quanto ao atendimento de especialidades foi captada enquanto representação da realidade do SUS. As dificuldades concretas na operacionalização diária põem em cheque a real capacidade de atender às expectativas e às demandas da sociedade e podem ser decisivas na elaboração das representações do SUS pelos sujeitos sociais: a frustração e o ceticismo. Através da frustração nas experiências do passado e do presente, o profissional desacredita do SUS como resposta viável para o futuro. As falas de C4, D8 e L8 mostram o tênue limite entre crença e descrença no SUS, e o processo frustração/ceticismo em ação: “(P) Você acha [o SUS] realizável?: – Eu acho. Olha, eu quero achar que seja realizável. Eu quero achar. Como eu falei: Não quero perder as esperanças. Mas acho que ainda é bem difícil e que tem um longo caminho pela frente para ser seguido. Não é fácil”. (C4) “– Eu acho que [o SUS] é um atendimento muito deficitário no país, ele existe mas não cumpre o papel, não tem o que falar, não faz o papel que deveria fazer. É uma forma só de, talvez em termos de repasse de dinheiro, para instituições, mas ele em si não funciona. É isso!”. (D8) “– Eu sou muito cético quanto ao SUS, eu acho que saúde [...] é uma coisa muito cara para ser extensiva a todos, eu acho que tinha que ser proporcional: eu acho que o carente

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deveria ter tudo de graça, aquele que não consegue pagar tudo, ter uma parcela, e aquele que pode pagar, pagar. [...] eu não acho que seja viável [...]”. (L8)

O homem se faz livre e autônomo na medida em que delibera, fazendo uso da razão (Kant, 1995). Neste aspecto, é relevante que a aceitação do SUS como referência, pelo profissional, uma deliberação ética e política, também derive de uma escolha racional e livre em acreditar, mobilizando recursos do pensamento e da vontade na perspectiva de alcançar os objetivos colimados. Do conflito entre frustração/ceticismo e esperança/perseverança, apenas o processo histórico validará ou não, a posteriori, as opções do presente. Entretanto, a fala de C4: “eu quero achar que o SUS seja realizável, não quero perder as esperanças” é suficientemente eloquente da centralidade desta categoria. Corroboram esta interpretação os resultados de Oliveira et al. (2008), que refletem as principais características e dificuldades do sistema de saúde brasileiro, tais como os recursos humanos, o financiamento, as condições do atendimento da população, a participação e o acesso da clientela ao sistema bem como um conhecimento fragmentado dos princípios que regem o SUS pelo grupo estudado. A dimensão das atitudes, presente na representação, revela dois posicionamentos distintos: um negativo referido às dificuldades enfrentadas para a implantação do SUS; e outro positivo relativo aos direitos assegurados pelo novo sistema. (Oliveira et al., 2008, p.204)

Por fim, o Sistema do Conhecimento (S3, Quadro 4), que opera em lógica diversa. Este conjunto representacional está associado às aspirações de efetivação do SUS como modelo alternativo de atenção à saúde. Este sistema parte, primeiramente, do autoconhecimento do profissional sobre o desempenho de seu papel, enquanto ator na sociedade. O entendimento e a segurança em se perceber parte de um todo e, por isso, parte do SUS, possibilita a compreensão dos propósitos da Reforma Sanitária, e o SUS como solução às desigualdades e instrumento de justiça social. A ESF deixa de ser um instrumento de propaganda político-administrativa e passa a ser uma formulação organizacional e paradigmática de um novo modelo de atenção em saúde. Surgem, então, as representações de qualidade do sistema, de uma prática integral e universalista. A excelência da concepção teórica é reconhecida pelo profissional, que percebe a necessidade e premência de sua implementação efetiva. No paradoxo da realidade vivida e da realidade a ser construída, o profissional entende a viabilidade do projeto, ainda que sem a ilusão do imediatismo e da facilidade, reconhecendo, também, a importância de sua participação ativa na construção da realidade projetada. Este ciclo se completa quando o profissional transcende sua própria existência e se plenifica na relação social, valorizando, assim, a Participação Popular e o Controle Social, por entendê-los instrumentos de legitimação e emancipação da sociedade da qual faz parte. Conforme o Quadro 5, o subgrupo dos profissionais de Londrina, no modelo tradicional ainda não integrado à ESF, apresentou, predominantemente, representações de desconhecimento e de realidade do SUS, impossibilitando sua identificação com a proposta. Altamente significativo e revelador é o fato de que a única entrevista representativa de conhecimento e utopia, crença e compromisso com o SUS, no subgrupo Londrina, adveio de profissional membro da equipe gestora dos serviços odontológicos municipais (L4), divergindo francamente das demais entrevistas do subgrupo. Por seu turno, o subgrupo dos docentes de Londrina mostrou-se o mais heterogêneo, possuindo desde profissionais totalmente alheios e desinformados, passando por outros matizes de desinformação, descrença e/ou descaso, até outros, claramente identificados com os princípios e pressupostos do SUS. Suas representações pulverizaram-se por todos os sistemas de representação, caracterizando preocupante lacuna quanto ao SUS, em prejuízo da formação profissional de seus alunos, temporariamente tutelados mas, potencialmente, profissionais autônomos (lato sensu), cidadãos esclarecidos e comprometidos com o SUS e com a sociedade à qual prestarão serviço. O subgrupo dos profissionais da ESF de Curitiba apresentou resultados nitidamente diferentes dos demais grupos, compartilhando representações de realidade e de conhecimento do SUS, sem produzir concepções de desconhecimento, independente do tempo de atuação e da idade - o que sugere ser a ESF um modelo mais adequado ao entendimento da estrutura do sistema, possibilitando maior consciência social e política do profissional. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.15, n.38, p.883-900, jul./set. 2011

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Quadro 4. Representações sociais e narrativas dos cirurgiões-dentistas sobre o SUS, referentes ao Sistema do Conhecimento. Londrina e Curitiba, 2004. Narrativas do Sistema do Conhecimento

Representações sociais 15 O dentista dentro do SUS; 16 O SUS como solução

Sinto-me até honrado de ter participado em [19]86 da 8ª Conferência [Nacional] de Saúde, e até a gente ver a coisa, o embrião era o SUS e o SUS é o grande caminho mesmo. Eu acho que ele já é um Sistema Único de Saúde, é claro que tem dificuldades, é claro que tem caminhos ainda longos para percorrer, mas a saída é essa, é a União assumindo o serviço de saúde [...] (L4).

17 Reconhecimento do PSF

[...] eu fico apaixonada, todas as vezes que eu leio sobre Programa de Saúde da Família, sobre promoção de saúde, sobre visita domiciliar, eu acho que é por aí mesmo. Sobre a adscrição de clientela, sobre territorialização, planejamento ascendente, é isso aí! (D3).

18 Assistência de boa qualidade

[...] hoje nós temos serviço público de qualidade comparável ao serviço que é prestado nas melhores clínicas odontológicas, dentro dos melhores padrões higiênico-sanitários, com todos os materiais descartáveis, com uso das DPI [dispositivos de proteção individual], respeitando normas de biossegurança e muitas vezes uma qualidade melhor do que a gente observa em clínicas particulares” (D7).

19 Excelente concepção teórica; 20 O SUS como processo social

O SUS, eu vou te dizer uma coisa, enquanto sistema eu acho ele fantástico. Eu acho assim é um sistema em termos de concepção, em termos de você pegar os princípios do SUS, ele é maravilhoso! Você pensar eqüidade, universalidade [...] eu vejo a evolução muito grande nesses anos desde a implantação do SUS, até hoje. [...] Então eu vejo este lado do SUS. Eu vejo que é impossível que só o SUS seja justo! Enquanto você tiver desigualdade social e um monte de outras injustiças, o SUS não vai resolver! (D6).

21 O SUS é viável (Utopia); 22 Compromisso com o SUS

[...] as pessoas que trabalham na saúde pública, que têm compromisso, que têm um idealismo, acreditam no SUS, acreditam nesse sistema [...] eu acho que não tem retrocesso, não tem saída, o Sistema Único de Saúde, isso é o que a gente vislumbra, é ele gerenciando a política pública na área da saúde nesse Brasil, acredito nisso, luto e trabalho para que isto aconteça (L4).

23 Participação Popular e Controle Social

Uma coisa que eu gosto, que eu valorizo muito, no SUS, é uma oportunidade que a população teve de vir e sentar a mesa, com todos os governantes, e botar pra fora tudo que a comunidade quer, trabalhar com a questão mais local, a comunidade mesmo. Então, assim poder colocar de uma forma, e falar: “olha, nós somos usuários, mas a gente manja também, entendeu? Sabe! O país é nosso, a saúde é nossa”, então isso o SUS trouxe, esta possibilidade ele trouxe! Nós somos iguais. Nós somos três esferas, mas nós estamos assim só divididos de forma só a organizar a coisa! Mas o poder e a voz são a mesma! (D10).

Atributos de gênero não puderam responder pelas diferentes representações observadas, ao menos entre os subgrupos Londrina e Curitiba, pois, entre este último, contaram-se apenas mulheres, o que limitou possíveis conclusões. Entre os subgrupos Docentes e Londrina, não houve diferença quanto ao gênero. Referentemente ao tempo de atuação profissional e a idade dos entrevistados, os fatores não explicaram as RS entre o subgrupo Londrina, Curitiba e Docentes, mostrando-se irrelevantes. Além do conceito do SUS, outras dimensões influenciam na elaboração das RS sobre o SUS: a relação do profissional com o próprio conceito, e seu posicionamento frente a este. As representações de desconhecimento se associam ao conceito de “SUS para pobres”, em uma relação de negação do SUS, onde o profissional se posiciona fora do SUS; as representações de realidade se associam ao conceito de “SUS real”, em uma relação de aceitação parcial do SUS, onde o profissional se posiciona à sua margem; e as representações de conhecimento se associam aos conceitos de “SUS formal” e “SUS democrático”, em uma relação de aceitação plena do SUS, onde o profissional se posiciona dentro do SUS. No subgrupo Londrina, houve predominância de representações de desconhecimento e de 894

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artigos

CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.

Quadro 5. Distribuição das representações sociais dos cirurgiões-dentistas sobre o SUS, por profissional, subgrupo de pesquisa, sistema de representações, sexo e idade/tempo de atuação profissional. Londrina e Curitiba, 2004. Curitiba

Londrina Sis. Nº

S1

Representações sociais

1

1

Desconhecimento sobre o SUS

2

O dentista fora do SUS

F

3

O SUS não resolve

F

4

Desconhecimento do PSF

5

O SUS repassador de recursos

F

6

Assistência de má qualidade

F

7

SUS para pobres

8

A política atrapalha o SUS

9

Dificuldades financeiras do SUS

10 Acesso deficiente ao SUS

2 3 4 5 6 7 8 1 2 3 4 5 6 7 8 F

M F

F

F

M F

F

F

F

M

F

F

F

F M

F M

M

F

F

10

M M F

F F

F

F

F

F

M F

M F

F

M F

M F

F

F

F F

F

F

M F

F

16 O SUS como solução

M

F F

F

F

F

M

F

F F

F

F

F

F

F

20 O SUS é viável (Utopia)

M

21 O SUS como processo social

M

22 Compromisso com o SUS

M

F

F

F

F F F

M Masculino

F

F

F M

M F

F M

F

F

F

F

F

F

F F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

F

23 Participação Popular/Controle Social

F

M

F

F

F

M

F

F

F

M

F

F

F

S3 19 Excelente concepção teórica

M

F

F

M

M

F

F

F

F

F

F

F F

F

M

18 Assistência de boa qualidade

7 8 9

M

M M

15 O dentista dentro do SUS

17 Reconhecimento do PSF

4 5 6

M

13 Teoria diferente da prática 14 O SUS é inviável (“utopia”)

1 2 3

F

M

S2 11 Atenção especializada deficiente 12 Imagem negativa na sociedade

Docentes

F

F

M F

F

F

M

F

F

F

F

F

F M

F

F Feminino

Maior idade e maior tempo de atuação Menor idade e menor tempo de atuação

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O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE COMO PARADIGMA ...

realidade; no subgrupo Curitiba, predominaram representações de conhecimento e de realidade; no subgrupo Docentes, as representações distribuíram-se entre os três sistemas, de desconhecimento, de realidade e de conhecimento do SUS. O conhecimento enquanto elemento estruturante para o estabelecimento do SUS como referência para os profissionais é hipótese plausível. Contudo, caracteriza-se elemento necessário, mas não suficiente: o mero conhecimento do SUS não basta para a efetiva manutenção da estrutura representacional de conhecimento, Utópica. Se apartado da vontade, frente ao adverso contexto da realidade, o conhecimento pode produzir ações sociais de manutenção das iniquidades, via atitude cética, de descrença relacionada às perspectivas do SUS. Se a atitude não contempla a perspectiva de mudança, configura-se assim, também, uma postura ideológica. Tanto o sistema do Desconhecimento quanto o do Conhecimento compartilham as representações de Realidade, e encontram, na frustração quanto às expectativas do SUS, passagem para a visão ideológica, através do ceticismo. Dessa forma, o ceticismo e a frustração são mecanismos de reprodução da ideologia referente ao SUS. Paim (2002) vislumbrou este risco, quando aventou a possibilidade de os princípios finalísticos do SUS serem desmoralizados e transformados em reação contra o SUS e a Reforma Sanitária, em vez de estimularem novos esforços e forças interessados em reduzir a distância entre a retórica e a realidade. Assim, a questão decisiva é a viabilidade ou não do SUS, na percepção dos profissionais entrevistados. A representação da viabilidade do projeto SUS, associada ao conhecimento, define o profissional que tem o SUS por paradigma.

Conclusões Este trabalho propôs verificar a validade do SUS como referencial para o cirurgião-dentista. Para isto, é necessário, primeiramente, que ele seja conhecido. Este trabalho demonstrou que o fato, em parte, não ocorria, seguindo o SUS como um grande desconhecido. E ainda: somente o conhecimento não garante o reconhecimento do SUS enquanto referência válida, se sua ciência estiver apartada de uma visão social de mundo Utópica, transformadora. Para que o SUS seja válido enquanto paradigma para seus profissionais, é necessário que seja aceito em duas dimensões diferentes: a dimensão cognitiva e a dimensão Ideológica (Ideologia Total). As representações dos entrevistados evidenciaram três possibilidades: a) Desconhecimento do SUS; b) Conhecimento e ceticismo; c) Conhecimento e Utopia. A primeira possibilidade não permite o SUS como referencial, por deficiência do pressuposto mínimo: o conhecimento de seus princípios. Na segunda, há relativo conhecimento do SUS, mas a realidade e suas dificuldades concretas não possibilitam a crença na viabilidade do projeto da Reforma Sanitária, conduzindo a um ceticismo mortal. Estas duas primeiras possibilidades produzem, por caminhos diferentes, o mesmo resultado: uma postura de natureza e consequências nitidamente ideológicas, fora do SUS ou à margem deste, porquanto, na negação ou aceitação parcial do SUS, a realidade é mantida e reproduzida, em todas as suas iniquidades. A terceira possibilidade é a que atinge os fins da Reforma Sanitária e a sustenta. Com o conhecimento do SUS associado à Utopia, ao desejo ativo de mudança, à crença na viabilidade do projeto SUS, os ideais da Reforma Sanitária podem se concretizar. Conclui-se que o SUS é apenas parcialmente reconhecido como referencial cognitivo e político-ideológico, para a atenção odontológica, pelos cirurgiões-dentistas. O desenvolvimento deste paradigma contribuirá com a garantia dos pressupostos de universalidade/equidade/integralidade do SUS, a refletirem, no Brasil, por vocação constitucional, uma sociedade consciente, autônoma, democrática, justa e solidária.

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CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.

artigos

Colaboradores Sérgio Xavier de Camargo e Luiza Nakama participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Luiz Cordoni Junior participou de sua discussão, da redação e da revisão do texto.

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CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.

artigos

NUNES, M.F. et al. A proposta da Educação Permanente em Saúde na formação de cirurgiões-dentistas em DST/HIV/Aids. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.12, n.25, p.413-20, 2008. OLIVEIRA, F.O.; WERBA, G.C. Representações sociais. In: STREY, M.N. et al. (Orgs.). Psicologia social contemporânea: livro-texto. Petrópolis: Vozes, 2002. p.104-17. OLIVEIRA, D.C. et al. A política pública de saúde brasileira: representação e memória social de profissionais. Cad. Saude Publica, v.24, n.1, p.197-206, 2008. PAIM, J.S. Uma análise sobre o processo da reforma sanitária brasileira. Saúde Debate, v.33, n.81, p.27-37, 2009. ______. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EDUFBA, 2008. ______. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade? In: ______ (Org.). Saúde, política e reforma sanitária. Salvador: Centro de Estudos e Projetos em Saúde/Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, 2002. p.245-59. ______. Bases conceituais da reforma sanitária brasileira. In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. p.11-24. PATTON, M.Q. Qualitative research & evaluation methods. 3.ed. London: Sage, 2002. PUCCA JUNIOR, G.A. Políticas de saúde bucal e a formação de um novo perfil profissional. In: TERADA, R.S.S.; NAKAMA, L. (Orgs.). A implantação das diretrizes curriculares nacionais de odontologia: a experiência de Maringá. São Paulo: Hucitec, 2004. p.149-58. RONCALLI, A.G. A organização da demanda em serviços públicos de saúde bucal: universalidade, equidade e integralidade em saúde bucal coletiva. 2000. Tese (Doutorado). - Faculdade de Odontologia, Universidade Estadual de São Paulo, Araçatuba. 2000. SANTOS, N.R. A reforma sanitária e o Sistema Único de Saúde: tendências e desafios após 20 anos. Saúde Debate, v.33, n.81, p.13-26, 2009. STAKE, R.E. Case studies. In: DENZIN, N.K.; LINCOLN, Y.S. (Eds.). Handbook of qualitative research. London: Sage, 2000. p.435-54. TERADA, R.S.S.; NAKAMA, L. (Orgs.). A implantação das diretrizes curriculares nacionais de odontologia: a experiência de Maringá. São Paulo: Hucitec, 2004. TRIVIÑOS, A.N.S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

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CAMARGO, S.X.; NAKAMA, L.; CORDONI JUNIOR, L.El Sistema Único de Salud como paradigma em las representaciones sociales de los cirujanos dentistas. Interface Comunic., Saude, Educ., v.15, n.38, p.883-900, jul./set. 2011. Este estudio se propone verificar si el Sistema Único de Salud brasileño (SUS) es reconocido por los cirujanos dentistas como paradigma para sus prácticas profesionales. Tratase de una pesquisa cualitativa de las representaciones sociales de estos profesionales. El grupo reunió cirujanos dentistas com actuación en los servicios públicos de Salud en el estado de Paraná, específicamente servidores públicos y profesores universitarios, siendo constituido por tres casos: profesionales del servicio público tradicional de Londrina, profesionales de la Estrategia Salud de la Familia (ESF) de Curitiba y profesores de escuelas de Odontología de Londrina. Los resultados evidenciaron tres posibilidades: desconocimiento del SUS; conocimiento y escepticismo; conocimiento y utopía. Se concluye que el SUS no es plenamente reconocido como referencial para la atención odontológica por los cirujanos dentistas, y que su adhesión al proyecto SUS ocurre solamente en la contingencia de la asociación entre conocimiento del SUS y creencia personal em su viabilidad.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Odontología. Salud de la família. Representaciones sociales. Recursos humanos. Recebido em 16/04/10. Aprovado em 04/04/11.

900

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debate

Saúde e antropologia: contribuições à interpretação da condição humana em ciências da saúde *

Tullio Seppilli1

Introdução A fundação teórico-empírica da antropologia parece marcada por uma questão crucial que atravessa sua história e as ciências humanas como um todo, com heterogêneas e relevantes consequências em seus horizontes de referência, linhas de fundo, metodologias investigativas, modelos interpretativos, diretrizes próprias de pesquisa, além dos efeitos e uso social de seus resultados. Esta questão, como foi sendo “resolvida”, pesou fortemente sobre fenômenos humanos de grande expressão social, legitimando ou contrastando, por exemplo, racismo, colonialismo ou “exclusão” feminina, incidindo sobre atitudes ante o desvio ou a diversidade, influenciando o próprio paradigma de nossa medicina oficial. Especialmente neste terreno, as ciências humanas implicam diretamente algumas das mais relevantes expressões das dinâmicas de hegemonia e de poder, tornando-se provavelmente as “menos neutras” no panorama de contribuição das ciências à medicina ou saúde. Questão crucial das ciências humanas, seu núcleo duro (um debate ainda vivo), sintética e inapropriadamente definida como a questão do relacionamento entre natureza e história. Tentarei, aqui, uma formulação mais atual, deixando em aberto questões ineludíveis para efetivas interpretações da condição humana, tendo em vista contribuir com a ciência na saúde. Quanto e como pesa, no comportamento dos indivíduos, a sua natureza biológica? Quanto e como pesam as suas experiências e o seu viver em um determinado contexto histórico-social? Quanto e como a disposição, o funcionamento e o devir histórico de uma sociedade dependem da sua própria lógica global, mesmo além da natureza biológica dos próprios indivíduos que a compõem, das “necessidades naturais” desses indivíduos e de seu estágio evolutivo no processo de hominização? Se aquilo que diversifica as várias civilizações deriva da heterogeneidade dos seus percursos históricos e dos contextos ambientais com os quais tais percursos tiveram que confrontar-se, não de uma diferente constituição biológica dos indivíduos que a compõem, aquilo que “permanece similar” em toda civilização – que com frequência chamamos de “universalmente humano” – depende somente da substancial homogeneidade biológica do homo sapiens? Somente daquilo que a humanidade alcançou como estágio atual no seu processo evolutivo? Não

Elaborado com base no ensaio teórico de profundidade preparado como estudo ao ciclo de investigações “Salute e complessità: viaggio nei campi del sapere”, organizado pelo Istituto Superiore di Sanità, Roma, de março a novembro de 2005. 1 Fondazione Angelo Celli per una cultura della salute. Ex Monastero Santa Caterina Vecchia, Strada per Ponte d’Oddi, 13. Perugia, Itália, 06125. seppilli@ antropologiamedica.it

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*

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SAÚDE E ANTROPOLOGIA

dependeria também de características que ultrapassam a esfera biológica e são, mesmo assim, comuns a todo tipo de existência humana enraizada em uma rede de relações sociais? Também de algumas matrizes não biológicas e, mesmo assim, inerentes a qualquer condição social, independentemente do tipo de civilização? Qual grau de autonomia é possível supor, em síntese, e quais interações entre o “nível” de organização da constituição biológica individual e aquele do sistema social? Em que medida e por meio de quais processos o horizonte social se integra, sem unicamente sobrepor-se, com a natureza biológica dos próprios indivíduos no processo de formação de pessoas concretas, sua subjetividade e seus comportamentos? O nó de fundo, em essência, é o de que é impossível interpretar a condição humana sem levar em conta seus dois níveis constitutivos essenciais, os dois “níveis de organização” que a envolvem mais diretamente: o componente biológico e o componente histórico-social, que coexistem e se cruzam, mesmo que com diferentes pesos nas diferentes situações. Ocorre em qualquer rumo que uma pesquisa tome, de tal forma que resta impossível separá-los, atribuindo ao biológico o “individual”, ao histórico-social o “coletivo”. A “naturalidade” do indivíduo é irremediável e profundamente condicionada pelo nosso viver, desde o nascimento, na sociedade, a ponto de tal “naturalidade” não ser empiricamente verificável. De outro modo, cada sociedade humana é formada por indivíduos biologicamente constituídos, não podendo, por isto mesmo, não relacionar-se, mesmo que de formas historicamente heterogêneas, com suas necessidades e potencialidades “naturais”. Cada sociedade, portanto, não pode não responder – mesmo que de forma heterogênea e de maneiras desiguais – às exigências biológicas básicas da espécie humana. Tais respostas e, em certa medida, as próprias exigências, constituem-se como expressões específicas das específicas características de cada sistema social. Cada sociedade somente pode organizar-se a partir das características e das potencialidades somáticas e psíquicas inerentes à constituição biológica da espécie humana, tendo de selecionar e adestrar as potencialidades funcionais ao seu sistema de vida e aos papéis que o caracterizam. Assim, o social não se sobrepõe simplesmente ao biológico, constitui-se integrando os próprios indivíduos em uma rede de relações, como um sistema organizativo mais “complexo”, a partir das naturalidades biológicas individuais, remodelando suas características. Já foi dito em outro texto que atingimos recíproca autonomia e, ao mesmo tempo, relações de integração entre os dois níveis – biológico e social – aos quais coloca-se (e tem-se de indagar) a condição humana, cuja especificidade consiste justamente em colocar-nos, ao mesmo tempo, como produto de determinantes e correlações naturalístico-biológicas e como expressão da existência de uma organização social que nos transcende como indivíduos particulares e constitui-se como um sistema, condicionando-nos radicalmente, segundo uma lógica própria, relativamente autônoma, qualitativamente diferente, em relação àquela que regula os processos em que se manifesta nossa constituição biológica individual. Desta forma, em um mesmo indivíduo, quanto deriva do condicionamento social não é simplesmente sobreposição aos processos biológicos. A substituição de situações naturais por situações-estímulo qualitativamente novas - expressões históricas de arranjos de vida e de contextos ambientais socialmente produzidos – reestrutura profundamente todos os mecanismos biológicos de adaptação. A interposição de uma inevitável mediação social, às vezes muito complexa, no esquema de cada resposta comportamental às necessidades e às próprias pulsões instintivas, modifica em larga escala, suas formas e seu êxito naturais, adequando-os às condições de existência produzidas pelo sistema social, introduzindo inibições ou canalizações impostas pelos códigos culturais, agregando significados e funções novas, segundo esquemas sempre diferentes, em relação às diversidades das singulares situações históricas.

A função e existência da cultura No decorrer do longo processo de hominização – cuja duração é estimada hoje em torno de quatro milhões de anos – os nossos antepassados organizaram-se, de fato e sempre mais fortemente, em redes de correlações coletivas (sistemas sociais), capazes de produzir, pelo impacto global do grupo e de uma articulação interna de funções, tipologias de resposta sempre mais calibradas e incisivas aos desafios ambientais. Nasceu, assim, um novo “nível de organização” da vida humana, o qual “funciona” como 904

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SEPILLI, T.

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sistema, não como simples somatório dos indivíduos e das suas individuais capacidades. Desde as suas primeiras formas, esse novo “nível de organização” foi assumindo, justamente como sistema, uma relativa autonomia de funcionamento respeitante à lógica de funcionamento biológico dos próprios indivíduos que o integram e uma sempre mais rápida dinâmica de mudança histórico-social, em certa medida autônoma respeitante às mais lentas dinâmicas de mudança evolutivo-biológica. A transformação das civilizações, sua sucessão e sua diferenciação planetária produzem-se de tal modo: mediante processos internos à lógica dos sistemas sociais, no decorrer, portanto, de tempos históricos, durante os quais em termos biológico-evolutivos não se produz, de fato, sensível variação. A constituição do sistema social, ou seja, de um nível de organização superior aos indivíduos particulares, teve influência decisiva no destino humano e levou o homem a atingir peso sempre maior no seu contexto ambiental e uma sempre progressiva autonomia em relação à “natureza externa”. Produziu um complexo e estratificado sistema de relações entre indivíduos e um consequentemente recíproco, mesmo que desigual, poder de condicionamento. Determinou a formação de um novo constructo, a cultura, um patrimônio intersubjetivo de modelos mentais – representações cognitivas, valores, esquemas comportamentais – produzido aos poucos pelos indivíduos em função dos estímulos e dos problemas oriundos das concretas condições de existência das suas comunidades: em cada uma das quais, tais modelos resultam substancialmente compartilhados não somente por causa de uma relativa homogeneidade das situações e dos horizontes de referência, mas também, em larga escala, como consequência do desenvolvimento de uma rede estável de intercâmbios comunicacionais. Assim, por meio da produção social de símbolos e códigos, de redes de comunicação interindividuais e, portanto, também transgeracionais, os modelos mentais (culturais) puderam ser trocados e acumulados, de tal forma que, desde os tempos mais remotos, as comunidades humanas conseguiram dispor de grandes e orgânicos patrimônios coletivos de instrumentos cognitivo-operacionais funcionais para enfrentarem, de forma conjunta, as tarefas relacionadas ao seu sistema de vida: patrimônios muito mais ricos e “validados” do que aqueles que qualquer indivíduo poderia ter isoladamente produzido ao longo de sua própria vida, embasando-se exclusivamente nas próprias experiências pessoais (não comunicando a outros, teria, em todo caso, desaparecido junto com ele). Deste modo, para qualquer indivíduo, a aquisição do patrimônio cultural da própria comunidade traduz-se não somente em uma enorme ampliação de modelos mentais disponíveis, mas também em um grande “simplificador social”. Diante das situações que a cada momento se apresentam, ele não necessita construir sozinho, do nada, com todos os riscos de possíveis erros, os modelos interpretativos e operativos necessários, já que, diante de algum evento/tarefa/mensagem, já possui chave de leitura, instrumento de avaliação, esquema adequado de esperas e de respostas ou, pelo menos, orientação de acesso/encontro. Adquiriu isto mediante sua socialização e o consequente processo de enculturação, uma rica plataforma de modelos já validados e socialmente compartilhados. O que lhe permite concentrar-se, de forma mais fácil, sobre os elementos “novos”, que exigem, portanto, certa criatividade cultural-pessoal. A comprovação disto está evidenciada, por outro lado, pelas dificuldades objetivas e pelas vivências subjetivas de isolamento e inadequação de quem, como os migrantes, entra de improviso em um contexto cultural diferente, ou seja, em um contexto “outro” daquele que lhe é usual. A função e a própria existência da cultura parecem, em larga escala, um dado específico da condição humana: a constituição das redes comunicativas e a consequente patrimonialização coletiva dos modelos mentais – a formação. A cultura ou, ainda, a “consciência social” representa provavelmente a virada decisiva, o verdadeiro “salto de qualidade” produzido pela organização social da espécie humana e pela sua lógica interna de funcionamento sistêmico. Neste sentido, o caráter coletivo (social) das respostas humanas aos desafios ambientais condicionou fortemente a própria direção do processo evolutivo (biológico). Não por acaso, os homens, na atualidade, são individualmente muito mais fracos, do ponto de vista físico, que seus ancestrais, e são, por outro lado, dotados de um aparelho neuropsíquico muito mais complexo, funcionalmente conectado às complexidades dos processos de elaboração e troca cultural construído socialmente ao longo do tempo para enfrentarmos coletivamente nossa condição existencial. Seria bom demorar um momento - mesmo sob forma esquemática - em alguns aspectos da cultura e alguns dos seus mecanismos de formação e transformação, que evidenciam sua determinante função 905


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intermediadora entre indivíduo e contexto, constante interação com o funcionamento global do sistema social: a) O enraizamento das culturas em horizontes concretos naturais e histórico-sociais aparece tematicamente orientado e focalizado sobre as situações e tarefas que os indivíduos têm em função do território e da organização social em que estão inseridos. Estratégias de atenção, representações do mundo, saberes, valores, metas de vida, modelos, papéis e técnicas de trabalho – qualidades humanas privilegiadas, inteiro perfil cultural – relacionam-se funcionalmente, em cada comunidade, com os problemas criados pelas concretas condições dentro das quais os homens embasam sua existência, seus mecanismos de sobrevivência, diferentes, por certo, numa comunidade de pescadores, vilarejo campesino, tribo de pastores nômades ou entre cidadãos de uma metrópole industrial. b) As sociedades estruturalmente estratificadas, articuladas em segmentos sociais caracterizados por funções heterogêneas e condições de vida (consequentemente, por assimétricas relações de poder), manifestam certo grau de heterogeneidade cultural interna. Pontos de vista, modelos, papéis e competências dos indivíduos colocados em diferentes posições na estrutura geral do sistema, mesmo compartilhando algumas orientações de fundo, manifestam - inevitavelmente - diferenças subculturais sensíveis. Podemos afirmar que os patrimônios culturais dos indivíduos resultam tanto mais heterogêneos quanto mais heterogêneas são as condições e experiências - diretas ou “comunicacionais” - dos seus percursos biográficos e vice-versa. c) Nas sociedades estratificadas os diversos segmentos sociais têm um peso diferente nos mecanismos de produção e circulação cultural. Frente às situações concretas, cada segmento expressa uma possibilidade peculiar de resposta interpretativa e operativa e uma capacidade peculiar de elaborar autonomamente modelos culturais e difundi-los no espaço social. Cada segmento, contudo, expressa uma diferente abertura à aceitação de modelos formulados e difundidos por outros segmentos sociais. A esta capacidade de alguns segmentos do sistema social de produzir em constructos mentais e de influenciar, mediante processos específicos, o patrimônio cultural de outros segmentos, definimos como hegemonia. Por meio deste processo, os grupos que direcionam os mecanismos de funcionamento de um sistema social e estabelecem suas regras - colocando-se, portanto, em uma situação de poder são, geralmente, capazes de condicionar de maneira determinante também os modelos mentais e os estilos comportamentais das outras camadas sociais, orientando-as para práticas funcionais à reprodução da ordem social existente (a ordem social dentro da qual tais grupos determinam sua posição dominante). O patrimônio cultural das camadas subalternas resulta fortemente determinado “pelo alto”, embasado no papel que elas têm de atuar na “perfeita” reprodução do sistema social dentro do qual devem continuar sendo subalternas. Isso acontece mediante um jogo complexo de processos de controle social, não somente fundados sobre mecanismos de coerção/repressão, mas atuados, em larga escala, em uma rede articulada de organizações e intermediações formadoras das orientações culturais e dos modelos de comportamento, embasado em estratégias institucionais específicas e como consequência da própria experiência diária de cada indivíduo dentro da lógica de funcionamento do seu próprio contexto e de sua aparente “obviedade”. Ficamos diante de um nó metodológico central para a interpretação da subjetividade e dos comportamentos individuais e dos grupos - que não podem ser compreendidos se não dentro deste quadro sistêmico - e também para a própria interpretação global do funcionamento dos sistemas sociais “estratificados” nos quais, frente a grandes maiorias subalternas, a gestão do poder e de suas regras e a maior disponibilidade de bens socialmente produzidos concentram-se em minorias limitadas e privilegiadas. Nenhuma forma de poder, em uma sociedade “estratificada” - caracterizada, portanto, por uma real e significativa iniquidade de bens e direitos - poderia de fato sustentar-se mediante processos de controle social exclusiva ou preferencialmente fundados sobre mecanismos de pura e simples coerção/repressão. Os grupos que estão no topo da sociedade exercitam seu poder e sua capacidade de direção por meio de processos de conformação cultural de todos os estratos sociais às regras do sistema e ao papel a eles designados para seu funcionamento global. Mediante este “condicionamento preventivo à conformidade”, essas regras aparecem como “óbvias” e os comportamentos desviantes resultam extremamente reduzidos, de tal forma que, no quadro dos processos de controle social, sua repressão mais ou menos intensa e mais ou menos ampla dependendo dos regimes políticos - resulta sempre, respeito aos processos de hegemonia, como a 906

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menor cota, a “exceção”, a “última instância”, que ocorre nos casos limitados em que a hegemonia não teve sucesso. Com importantes implicações: a tomada de consciência relativa ao significado dos processos de hegemonia e a sua importância na determinação das propensões, das opiniões e das próprias opções políticas, comporta inevitavelmente - sobretudo em uma sociedade “midiática” como a nossa, caracterizada por poderes comunicativos largamente assimétricos - a necessidade e a oportunidade de se rediscutir o conceito de liberdade como mera ausência de coerção e, ao mesmo tempo, de definir de maneira não ingênua e não simplista as regras de uma democracia real. d) Nas sociedades “estratificadas”, a heterogeneidade das condições de existência e experiência dos vários segmentos sociais e os efeitos heterogêneos que determinam, nos diferentes segmentos, os processos de hegemonia e circulação cultural, produzem inevitavelmente uma segmentação da própria cultura ou, em outras palavras, uma diferente configuração nos vários extratos em que a sociedade está organizada. Ainda assim, mesmo caracterizada por certo grau de heterogeneidade interna, a cultura pode permanecer globalmente coerente na medida em que os patrimônios culturais das diferentes camadas se colocam todos dentro de uma única lógica sistêmica: a lógica de funcionamento da formação econômico-social existente. Nas sociedades feudais, por exemplo, o funcionamento global do sistema e de suas formas de poder era garantido pela produção de uma heterogeneidade cultural coerente entre os diversos atores sociais que as constituíam (senhores feudais, servos da gleba, artesãos), uma diversidade que se traduzia no desempenho das diferentes funções atribuídas pela lógica do sistema a cada um desses atores. Portanto, uma cultura internamente heterogênea resulta, em função desta diversidade, globalmente coerente. e) A existência de uma heterogeneidade de modelos e patrimônios culturais, dentro de uma sociedade, até mesmo dentro de um segmento, pode expressar uma real incoerência do conjunto de sua cultura, no sentido da coexistência de modelos mentais funcionais à lógica do sistema social existente e de outros que se colocam fora dessa lógica e resultam, portanto, incongruentes e, de qualquer forma, alternativos. Tal condição, presente nas sociedades caracterizadas por certo grau de dinamismo, marca largamente todas as épocas históricas, como a nossa, em que se manifestam processos de rápida mudança e/ou de interação significativa entre diferentes contextos de civilização. Estes elementos de incoerência cultural - difusamente distribuídos no tecido social - aparecem, normalmente, em derivação de duas grandes ordens de dinâmicas conjunturais. Primeiro, a presença, junto com a cultura expressa pelo regime social dominante, de expressões culturais que remetem a aspectos de um regime anterior, já superado ou marginalizado pelos mecanismos sociais dominantes ou, ao contrário, a expressões culturais onde se manifesta a antecipação de novas lógicas sociais ainda não afirmadas integralmente, de qualquer forma, expressões de uma rápida transição de sistemas sociais. Nesses casos, nos deparamos com resistência conservadora ou, ao contrário, com capacidade relativamente autônoma de produção e difusão cultural. Portanto, de uma possível (mesmo que parcial) nova hegemonia por parte de grupos sociais antagônicos em relação àqueles dominantes: últimas manifestações de regimes ultrapassados ou, ao contrário, vanguardas empenhadas em uma estratégia de mudança do regime dominante. Segundo, o ingresso de elementos culturais provenientes do exterior, de outros sistemas sociais, isto é, fenômenos de aculturação e efeitos de interação nos territórios “de fronteira”, por exemplo, ou fenômenos de “influência a distância” (importação de objetos ou de técnicas produzidas em outros lugares ou influências midiáticas) ou ainda consequências da chegada de “outra” (diferente) cultura (imigrantes, escravos importados com o tráfico, colonizadores), com diferentes resultados, evidentemente, em relação à sua consistência numérica e, sobretudo, nas suas relações de poder com a população nativa. Em toda esta casuística, vemos produzir-se, dentro de uma sociedade, a presença de elementos culturais incoerentes com a lógica do regime dominante que podem gradualmente desaparecer ou, ao invés disso, afirmar-se definitivamente ou reagir ao “novo”, persistindo, de certo modo, mediante processos de refuncionalização ou, ainda, integrar-se com os modelos locais (sincretismo, crioulização). Substancialmente, consolidam-se, nas sociedades (e em suas diferentes camadas), os modelos culturais que - nas condições dadas e nas relações efetivas de hegemonia e de poder - consentem mais realisticamente que os indivíduos possam interagir entre eles e enfrentar de forma mais eficaz as tarefas que têm a cumprir: modelos que, ao encontrarem uma verificação diária concreta de funcionalidade 907


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operacional no sucesso dos comportamentos que eles produzem em situações reais, podem persistir mesmo por muito tempo, ao longo de gerações, ou deixar lugar ao aparecimento de novos modelos, na medida em que a ação dos homens e da natureza, ou um deslocamento territorial de uma comunidade, traduzem-se em mudança de contextos de referência, causando, deste modo, a disfuncionalidade dos modelos anteriores, sua obsolescência e um inevitável processo ativo de remodelagem e mudança cultural. Não se faz a história das culturas e nem, portanto, sua interpretação, se não em relação à história concreta dos homens que as produzem e as utilizam dentro de contextos histórico-sociais determinados: dos homens, portanto, e dos sistemas sociais dentro dos quais eles ativamente se situam, em posições determinadas, dentro de específicas redes de relações, frente a situações e possíveis respostas também historicamente determinadas. É neste quadro sistêmico que toma forma o mecanismo de suporte do processo histórico, a perene dialética histórico-social entre as condições materiais da existência dos homens colocados em contextos sociais historicamente determinados e as formas históricas de sua consciência e, portanto, a produção e a transformação das culturas.

Compartilhamento emocional interindividual e modelos individualistas de competição A hipótese de que, dentro do forte condicionamento que os indivíduos sofrem por parte de contextos particulares de uma ou outra civilização, operem também fatores “mais permanentes”, inerentes a qualquer contexto de vida social, parece hoje bastante plausível, mesmo que seja provável que nos diferentes contextos tais fatores possam ter resultados heterogêneos. Fundamentalmente, falamos da existência e da importância de elementos presentes em todas as civilizações, ou seja, comuns a “todos os homens”, sem que eles derivem da substancial homogeneidade da atual constituição biológica da espécie humana: a hipótese, em outras palavras, de um “universalmente humano” de caráter meta-histórico, mas de matriz social. Não me refiro à questão, muitas vezes colocada, da universalidade do tabu do incesto. Parece-me mais interessante sublinhar uma condição de fundo comum a todos os homens: que para satisfazer suas necessidades, mesmo as mais elementares, todo indivíduo - em qualquer tipo de sociedade - tem de se deparar com sua inevitável dependência de uma “negociação” e de uma “ativa intermediação” com outros homens, vivendo, por isso, constantemente, na necessidade objetiva, mas também subjetiva, de uma relação positiva, mesmo que mínima, com seu contexto relacional. O que parece ter muitas implicações na estruturação dos equilíbrios psíquicos pessoais. Esta condição geral parece articular-se em uma miríade de situações conectadas com o contexto de sociedades específicas e com a posição e história pessoal dos indivíduos que as constituem. Dessa forma, as regras de funcionamento dos diferentes sistemas sociais traduzem-se numa maior ou menor “abertura” à necessidade - comum aos homens de qualquer sociedade - de viverem dentro de redes positivas de relações sociais no seu entorno. Assim, por exemplo, na constituição de uma perturbação psíquica hoje muito frequente - o sempre mais difuso sentimento de solidão depressiva que atinge grande parte das camadas sociais na nossa civilização - pesa fortemente a contradição que se origina da própria lógica do nosso sistema social, entre a necessidade operacional e emocional que impulsiona todo indivíduo em direção à cooperação, solidariedade e compartilhamento emocional interindividual e, de outro lado, os modelos individualistas de competição exasperada que operam em cada uma das esferas da vida social junto com a desagregação dos laços de suporte primário. Claramente, com relação aos fenômenos cada vez examinados, os determinantes biológicos e histórico-sociais manifestam, nos vários casos, uma importância heterogênea, um peso específico, por vezes, bem diferente. Em alguns casos, um ou outro desses determinantes parece quase irrelevante, o que se reflete na própria instrumentação conceitual das diferentes disciplinas que constituem, no seu conjunto, as ciências humanas. Na disciplina de Anatomia Humana, para exemplificar, normalmente resta excluída, em uma aproximação inicial, toda referência à história econômico-social, mesmo que saibamos que o comprimento do fêmur e nossa própria altura aumentaram sensivelmente no último século por causa da importante melhoria das condições alimentares e de vida e, portanto, das suas 908

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consequências sobre nosso fenótipo. Por outro lado, nos estudos de História da Arte podemos, em uma aproximação inicial, excluir (ou melhor, considerar como óbvia) a consideração de que a forma da mão humana e a neurofisiologia do nosso sistema visual e da nossa percepção cromática das ondas luminosas constituem uma pré-condição necessária do trabalho e dos resultados produtivos de um pintor. Trata-se justamente, nesses casos, de pré-condições relativamente estáveis ou que, pelo menos em uma aproximação inicial, podem ser consideradas como “pano de fundo”. A interação entre o “biológico” e o “social”, contudo, está no próprio centro da indagação: no estudo destas áreas, as distintas ciências humanas, cujo referencial é, em geral, um só dos dois níveis de organização da humanidade - “biológico” ou “social” - têm de, necessariamente, convergir na direção de uma integração mais imediata, pois, na ausência desta, toda interpretação aparece fragmentada e carente. Com essas características, evidenciam-se pelo menos quatro grandes áreas de integração mais próxima: a) da alimentação como resposta social a uma necessidade biológica primária, a necessidade da nutrição: uma resposta social enraizada nos modos de produção e nas técnicas de trabalho, com importantes implicações simbólicas e emocionais, numerosas funções secundárias e consequências psíquicas e psicossomáticas precoces; b) da sexualidade: nenhuma pulsão biologicamente determinada, provavelmente, sofreu, na história da humanidade, no campo das relações sociais, um tão heterogêneo e tão rígido arco de interdições, canalizações, implicações simbólicas e emocionais, sanções ético-morais e normativas, projeções organizativas e institucionais, de tal forma que é difícil, agora, distinguir suas diferentes raízes; c) das técnicas corpóreas: resultado da seleção e do adestramento sociocultural das potencialidades biológicas do corpo humano coerentes com as tarefas e os estilos comportamentais previstos nos contextos sociais específicos; e d) do processo saúde/doença: área na qual a medicina moderna aprofundou-se com sucesso crescente, focalizando progressivamente sua complexa dimensão biológica (disease); com relação à qual, todavia, aparece sempre mais claro – como antecipado, sobretudo pelas disciplinas psi e pela pesquisa antropológica – o peso das condições e dos estilos de vida, das dinâmicas socioculturais e relacionais e das vivências subjetivas (illness); e o peso das “regras” que definem, nas diferentes sociedades, o estatuto social de quem adoece (sickness), de tal forma que a recomposição dos saberes, até agora adquiridos por diferentes vias disciplinares, parece hoje uma necessidade primária.

Determinantes sociais e dinâmicas psíquicas Podemos retomar, ainda que brevemente, à temática dos determinantes sociais das patologias humanas e focalizar, em particular, um de seus “percursos”: a função moduladora que, em relação às defesas orgânicas, é atuada pelas dinâmicas psíquicas, isto é, a dimensão da subjetividade como lugar da ativa intermediação, em cada indivíduo, entre a esfera relacional e a biológica. Sobre esta questão versa um difícil debate interdisciplinar iniciado há mais de um século e que, somente agora, insinua-se resolver. Voltemos à segunda metade do século XIX, ao clima de crescente laicismo cultural marcado pelo positivismo e pelas descobertas revolucionárias feitas naqueles anos no âmbito das ciências naturais: evolução das espécies, processo de hominização, existência dos microrganismos e etiologia microbiana de muitas doenças infecciosas. Naqueles anos, de fato, a medicina ocidental passou a concentrar uma atenção quase exclusiva às dimensões biológicas das patologias. Anunciava-se um horizonte de grandes sucessos cognitivos e operacionais. A biologia parecia, então, por muitos motivos, como o terreno científico de vanguarda, aquele que visivelmente “premiava”, o que representava a verdadeira prova do rigor e da “objetividade” de um trabalho de pesquisa sério. Naqueles anos a medicina ocidental abandonou, com pouquíssimas exceções, um real interesse pelo quadro relacional dos pacientes e suas experiências de vida, que havia, ao invés disso, caracterizado a investigação e o debate sobre as causas dos fenômenos patológicos desde o século XVII: exclusão da subjetividade e do social, que pesa fortemente até hoje. No próprio interior do campo biológico, um aprofundamento sempre mais rigoroso COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e positivo dos vários “objetos” correspondeu a uma progressiva setorialização dos saberes e consequente ulterior corrosão de uma visão sistêmica global. A atenção à subjetividade nas dinâmicas dos processos saúde/doença e seus fatores relacionais e socioculturais desenvolveu-se, desta forma, por um período bastante longo, fora do campo médicoinstitucional, seguindo linhas de investigação do âmbito das disciplinas psi e antropológicas. Não é este o momento de reconstruir em detalhes esse complexo, articulado e por vezes tortuoso percurso, em direção ao qual somente há pouco tempo parece estar finalmente iniciando convergir também a biomedicina. Valeria a pena, porém, recordar com simples notas, alguns pontos nodais deste progressivo reconhecimento, que abrange pouco mais de um século e que pode ser sintetizado com fórmula um pouco esquemática: “a psique pode fazer adoecer, a psique pode curar”. Em 1890, Freud dedica páginas significativas à observação de que, nos mecanismos de cura, a relação do paciente com o terapeuta e a confiança nas suas capacidades desenrolam uma função tão importante quanto aquela constituída pelo medicamento prescrito pelo médico (Freud, 1967). Em 1892, o grande psiquiatra da clínica Salpêtrière, Charcot, intervém no incandescente debate sobre casos de faith-healing aberto pelas “milagrosas curas” de Lourdes, superando, por um lado, as posições daqueles que atribuíam esses casos ao aparecimento sobrenatural da Virgem Maria e, por outro, as que, ao contrário, negavam simplesmente a autenticidade da cura. Num texto, rapidamente famoso, ele afirma que curas desse tipo podem certamente ocorrer, mas sua causa deve ser atribuída à produção de estados psíquicos particulares nos próprios doentes, uma fé absoluta na cura, um intenso estado subjetivo de espera, reforçado, por outro lado, pelo pathos coletivo da peregrinação. Em 1913, um renomado antropólogo francês, Saintyves, concluindo uma cuidadosa investigação sobre o sucesso dos curandeiros que, no interior da França, curavam as verrugas por meio de rituais “mágicos” – sucesso amplamente documentado mesmo recentemente na Itália e em outros países – propõe interpretação igualmente centrada na função de um psiquismo ativado pela certeza da eficácia de tais práticas, por parte dos pacientes, plausível no contexto da cultura tradicional camponesa. Em 1926, Mauss, uma figura central na socioantropologia francesa do século XX, apresenta ampla documentação, de origem australiana e polinesiana, sobre mecanismo análogo, mas de sentido oposto, sobre os efeitos mortais produzidos pela certeza de “dever morrer” (por causa da violação de um tabu, por exemplo): uma certeza culturalmente induzida pelo contexto social (Mauss, 1966). É uma temática que será outras vezes retomada na pesquisa antropológica, como no decorrer do longo debate realizado de 1942 até quase final dos anos 1980 na América do Norte, sobretudo nas revistas “American Anthropologist” e “Psychosomatic Medicine”, ao redor da interpretação da “morte por vodu”, e depois em importante ensaio de Lewis na Grã-Bretanha em 1977. Já em 1949, a atenção dos estudiosos foi atraída pelo ensaio de Lévi-Strauss, analisando o longo texto de um canto produzido por um xamã cuña (uma população indígena da América Central) para ajudar em um parto doloroso e difícil: ensaio rapidamente famoso, onde o bom êxito da intervenção xamânica foi interpretado segundo a hipótese de que o canto constitui, nessas situações, “uma manipulação psicológica do órgão doente”, e é utilizada, para este propósito, a expressão amplamente difundida, apesar de certa ambiguidade semântica, de eficácia simbólica. Desde 1923, a importância do psiquismo nos processos saúde/doença e naqueles de cura tinha sido organicamente enfrentada num texto de um grande psicopatologista francês daquele tempo, Janet; e a corrente psicanalítica havia largamente explorado - em termos teórico-práticos - os processos definidos por somatização: uma linha de integração entre psicanálise e medicina, da qual também nasceria mais tarde a reflexão que, iniciando com Viktor von Weizsäcker, até Arminda Aberastury e Victor Chiozza, da Alemanha à Argentina, produziu, no terreno teórico, empírico e operacional, o instrumento da “patografia” e, de forma mais geral, a ideia de forte relação entre orientações da personalidade e prováveis direções da patologia individual, a assim chamada psicossomática psicanalítica. Sobre esta problemática, a reflexão interna à biomedicina, com poucas exceções amadureceu muito mais tarde. Importantes observações vieram, é verdade, da neurofisiologia soviética, já em 1935, graças a um aluno de Pavlov, Speranskij, a propósito da influência do sistema nervoso central na patogenia de algumas doenças infecciosas de clara origem bacteriana. Além do desenvolvimento progressivo e bastante autônomo das várias correntes da medicina psicossomática - que sempre conservaram uma 910

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relação com a matriz psicanalítica. Só há pouco tempo a medicina ocidental passou a manifestar interesse efetivo e concreto pela influência do psiquismo nos processos saúde/doença, o que é bastante paradoxal se considerarmos que, mesmo que só para uma utilização ligada à avaliação da eficácia específica dos novos fármacos, a biomedicina já maneja há muito tempo conceitos como o de efeito placebo e efeito nocebo. Este mais recente interesse, na biomedicina, foi desenvolvido ao longo de três linhas de investigação. Uma primeira trabalhou centralmente sobre o peso dos estados emocionais na produção e no desenvolvimento das doenças chamadas orgânicas, cruzando-se, assim, com as muitas pesquisas da antropologia médica sobre a crença - atestada em numerosas culturas folclóricas, sobretudo na América Latina - de que um susto forte e imprevisto possa constituir a causa de graves distúrbios, também, em dimensões que chamaríamos hoje somáticas. Uma segunda, mais recente, que podemos, um pouco apressadamente, denominar por estatístico-epidemiológica, chegou a estabelecer a existência de correlações significativas entre estados psíquicos - de tipo depressivo, por exemplo - e a vulnerabilidade a determinadas patologias infecciosas (em geral, “somáticas”) retomando, assim, neste terreno, aquilo que tinha sido colocado em evidência, muitos anos antes, como por Speranskij. Uma terceira, que de qualquer modo parece decisiva - porque não se limita a acertar as correlações entre psiquismo e saúde/ doença, mas busca descobrir seus mecanismos - é representada por uma nova disciplina que vem sendo desenvolvida no Ocidente nos últimos cinquenta anos: a psiconeuroendocrinoimunologia, ou seja, o estudo dos mecanismos complexos e dos vários canais por meio dos quais o sistema nervoso central consegue modular o nosso sistema imunitário. Em certo sentido, o desenvolvimento da psiconeuroendocrinoimunologia permite, pela primeira vez, verificar uma medicina científica capaz de incorporar e integrar as contribuições da biomedicina com a importante função da intermediação psíquica entre os estímulos relacionais e os processos corpóreos, produzidos pela psicologia, pela antropologia e pelas ciências sociais em geral. Recupera, em uma perspectiva epistemologicamente unitária, tantas “verdades” propostas pelas muitas medicinas folclóricas e não ocidentais, permitindo iniciar a edificação de uma medicina científica ao menos integrada ou, finalmente, sistêmica.

Considerações finais Durante a segunda metade do século XIX teve início o quase ininterrupto percurso de vitoriosas conquistas da medicina científica moderna e constituíram-se, também de forma institucional, não somente a antropologia, mas outras ciências humanas fundamentais, como a psicologia e a sociologia. Foi um período fortemente caracterizado pelas ideias do positivismo, extremamente fecundo, mas marcado por um forte, ainda que desigual, reducionismo biologicista. Durante este percurso complexo e contraditório, entrelaçado com a contemporânea construção ideológica e institucional de novas estruturas de Estado e de novos impérios coloniais – o ofuscamento dos fatores sociais da condição humana levou a enormes erros interpretativos e a uma infundada legitimação de uma grave hierarquização entre os dois sexos e entre os diversos grupos étnico-culturais e, consequentemente, a pesados processos de exclusão, opressão e repressão das populações extraeuropeias, das classes subalternas, da loucura e de todas as formas de desvio, e até da própria “metade feminina” das sociedades europeias que julgavam ter alcançado o vértice da evolução humana. Durante anos, em nome dos efeitos positivos de uma “seleção dos mais aptos”, que se supunha produzida, se livres de interferências sociais, pelos mecanismos evolutivos “naturais”, foi possível negar, em numerosos fóruns, a oportunidade de qualquer investimento público destinado ao sustento e à saúde das classes pobres (a teoria do assim chamado “darwinismo social”). Como é sabido, a superação do positivismo seguiu, nos vários países, caminhos nem sempre iguais, produzindo, de qualquer modo, em maior ou menor medida, uma fratura dos saberes e das sensibilidades intelectuais, que foi chamada de “duas culturas”: “científica” e “humanística”, separadas entre si. Na Itália, onde, em oposição ao positivismo, afirmou-se no setor das “humanidades” desde o princípio do século XX e, depois, durante o fascismo, um historicismo idealístico tingido, por vezes, de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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elementos retomados dos vários espiritualismos contemporâneos, o fenômeno das “duas culturas” e da separação dos seus currículos formadores, pesou mais gravemente e por mais tempo que em outros lugares. Levou à total separação entre uma “antropologia física”, estritamente naturalística, e uma atenção idealística ao social, unicamente dirigida aos percursos históricos, e ao grave enfraquecimento global das ciências humanas mediante a quase total eliminação, até a metade do século, daquelas como a antropologia sociocultural, a psicologia e a sociologia - que teriam permitido garantir, realmente, uma ponte entre as duas áreas. Em outros lugares, sobretudo na França e nos países anglo-saxônicos, onde teve lugar um incremento paralelo mais equilibrado da pesquisa naturalística e daquela socioantropológica e psicológica, o problema da relação entre os dois grandes compartimentos das ciências humanas continuou, de diferentes maneiras, a ser proposto, e foram iniciadas significativas, ainda que parciais, tentativas de intersecção e integração. Comprovam-no, por exemplo: as recorrentes propostas de uma teoria das assim chamadas “necessidades humanas”, pesquisas sobre a relação entre repressão sexual e personalidade, “revisões sociais” da psicanálise freudiana clássica, interpretações do agir humano formuladas pelos etólogos e sociobiólogos e, em geral, o forte confronto ao redor da importância da herança genética e dos fatores sociais no desenvolvimento das potencialidades corpóreas e na constituição das propensões individuais e dos estilos comportamentais. Trata-se, todavia, de tentativas que permaneceram setoriais, viciadas pela parcialidade das abordagens e pelas consequentes aporias, restritas num estéril contraste entre o risco “biologicista” e o risco “sociologicista”. A questão de fundo, para iniciarmos a construir um sistema orgânico das ciências humanas e para edificarmos, desta forma, uma antropologia geral, creio, portanto, seja aquela cujo perfil tentei esboçar: a de que um efetivo delineamento científico dos estudos sobre o homem somente se funda em uma abordagem sistêmica, embasada nos dois níveis em que se organiza a condição humana e se realiza a sua relação com o contexto ambiental (nível biológico e nível histórico-social); que esses níveis sejam examinados e interpretados, tendo em conta suas relações de integração e ao mesmo tempo sua recíproca autonomia e especificidade. Somente nesta perspectiva poderia ter sentido e valor heurístico uma articulação dos estudos sobre o homem em ciências humanas específicas, com uma autonomia, ainda que relativa e ao mesmo tempo com uma possível convergência interpretativa e operacional. Apenas embasando-se nesta abordagem seria possível harmonizar os três modelos interpretativos que, separados, caracterizaram, até nas denominações verbais, as três principais “correntes” da antropologia moderna, privilegiando, respectivamente, a abordagem da estrutura ou da função ou, ainda, da historicidade. Nesta perspectiva, sem dúvida, muito ainda precisa ser trabalhado sobre o terreno das aquisições empíricas necessárias e sobre aquele das construções interpretativas, mas parece-me muito importante, no trabalho em saúde, manter constantemente aberto um horizonte de referência sistêmico e unitário.

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debate

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A interpretação do processo saúde/doença tem sido marcada pelo positivismo e pelas ciências naturais. A medicina/saúde ocidental concentrou uma atenção quase exclusiva às dimensões biológicas das patologias, demarcando sucessos cognitivos e operacionais, a biologia representando a verdadeira prova de rigor e objetividade. A função moduladora em relação às defesas orgânicas era atuada pelas dinâmicas psíquicas, a dimensão da subjetividade como lugar da ativa intermediação, em cada indivíduo, entre as esferas relacional e biológica. O reconhecimento dos fatores comportamentais e socioculturais desenvolveu-se fora do campo médico-institucional, seguindo linhas de investigação das disciplinas psicológicas e antropológicas. O texto tenta esboçar que um efetivo delineamento científico dos estudos sobre o homem somente pode fundar-se em uma abordagem sistêmica, em que os níveis biológico e histórico-social, que organizam a condição humana e realizam sua relação com o contexto, precisam ser examinados e interpretados em suas relações de integração, em sua recíproca autonomia e especificidade.

Palavras-chave: Antropologia médica. Ciências humanas. Cultura e saúde. Formação em saúde. Educação e cultura da saúde. Health and anthropology: contributions to the interpretation of the human condition in the health sciences The interpretation of the health/disease process has been marked by positivism and by the natural sciences. Western medicine/health has focused almost exclusively on the biological dimensions of pathologies, delimiting cognitive and operational successes, biology representing the true proof of rigor and objectivity. The modulating function in relation to the organic defenses used to be enacted by the psychic dimensions, the dimension of subjectivity being the place of the active intermediation, in each individual, between the relational and biological spheres. The recognition of the behavioral and sociocultural factors was developed outside the medical-institutional field, following lines of investigation of the psychological and anthropological disciplines. The text tries to outline that an effective scientific design of the studies about man can only be founded on a systemic approach, in which the biological and historical-social levels, which organize the human condition and realize its relation to the context, need to be examined and interpreted in their relations of integration, in their reciprocal autonomy and specificity.

Keywords: Medical anthropology. Human sciences. Culture and health. Health education. Education and health culture. Salud y antropología: contribuciones a la interpretación de la condición humana en ciencias de la salud La interpretación del proceso salud/enfermedad ha sido marcada por el positivismo y por las ciencias naturales. La medicina/salud occidental concentró atención casi exclusiva a las dimensiones biológicas de las patologías, demarcando sucesos cognitivos y operacionales, representando la biología una verdadera prueba de rigor y objetividad. La función moduladora en relación a las defensas orgánicas era actuada por las dinámicas psíquicas, la dimensión de la subjetividad como lugar de activa intermediación en cada individuo, entre las esferas relacional y biológica. El reconocimiento de los factores comportamentales y socio-culturales se ha desarrollado fuera del campo médico-institucional, siguiendo líneas de investigación de las disciplinas psicológicas y antropológicas. El texto intenta esbozar que un efectivo delineamiento científico de los estudios sobre el hombre sólo se puede apoyar en un enfoque sistémico en que los niveles biológicos e histórico-sociales que organizan la condición humana y realizan su relación con el contexto necesitan examinarse e interpretarse en sus relaciones de integración, en su recíproca autonomía y especificidad.

Palabras-clave: Antropología médica. Ciencias humanas. Cultura y salud. Formación en salud. Educación y cultura de la salud.

Recebido em 31/01/11. Aprovado em 16/04/11.

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O mais profundo é a pele The most profound is the skin Piel el más profundo Emerson Elias Merhy1

Combater a colonialista antropologia do século XIX, eurocêntrica, e seus efeitos discriminação, exclusão, dominação, entre muitos outros - é fundamental para se abrirem novas pautas à antropologia e às ciências sociais em geral. Torna-se mais significativo quando vivemos em um “mundo” completamente distinto daquele: novas dinâmicas sociais e novas conformações dos grupos sociais vêm marcando como superados vários dos paradigmas então construídos. Vemos que, para as lutas sociais, hoje, conta mais a conformação de grupos que apostam na autenticidade de modos de existência no entre dos processos capitalísticos de subjetivação, como o caso exemplar do movimento homossexual, buscando outra formulação à construção do comum na diversidade. O movimento pela criação de novos direitos, antes não imaginados, possibilita a noção de que o comum na diversidade é a consideração do diverso como enriquecimento das convivências, e não como ameaça, o que vem pautando, em várias frentes de luta, outras formas de se conceber o significado das lutas coletivas, que as visões sobre luta de classes não dão conta. Movimentos de muitos matizes afirmam-se como biopotências numa época de sociedade de controle (Pelbart, 2003), o que já podia ser visto, desde algum tempo, em modos de luta como o de Antonin Artaud, que se dizia um estrangeiro na sua língua e apontava, com suas formas de viver, as possibilidades dos interstícios, do agir no entre os lugares instituídos, seja do olhar do dominante ou do dominado, abrindo pontos de vista do mesmo lugar. Talvez modos de existência desviantes sejam algo mais interessante do que formas antihegemônicas de viver. No contemporâneo, esses desvios micropolíticos têm tido força de abrir linhas de fuga, como já vimos em certos movimentos de gênero ou de afirmação sexual. Guattari (1987) nos mostra intensamente esse tipo de aposta. Nessa direção, a noção de multidão - como o lugar da produção e emergência de coletivos - pode ser algo mais interessante, na medida em que sua conformação pode ser múltipla, conforme indicam Hardt e Negri (2005, 2001), não tendo que adquirir, obrigatoriamente, configurações já fechadas, a que uma interpretação marxista, mais clássica, nos obrigaria. Por isso, experimento certa ambiguidade: à parte de me sentir convocado e atraído, verifico um paradigma que considero insuficiente para dar conta das

Pós-Graduação em Clinica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Professor Rodolpho Paulo Rocco, 255. Cidade Universitária. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21.941-913. emerson.merhy@gmail.com

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questões que temos vivido no âmbito das lutas sociais contemporâneas. Intrigou-me o uso feito da noção de hegemonia e o esforço de afirmar a grandeza da visão marxista. Sob uma leitura culturalista, busca a unicidade entre os campos constitutivos da condição humana - biológico e social -, subsumindo aquele por este. O texto repõe o clássico marxista ao afirmar que “não se faz a história das culturas e nem, portanto, sua interpretação, se não em relação à história concreta dos homens que as produzem e as utilizam dentro de contextos histórico-sociais determinados”; repõe a dialética marxista e a determinação em lugar dos coengendramentos e coproduções. Não que isso em si seja um erro ou um acerto, mas tais afirmações contêm efeitos e implicações. Não dá para apontar tudo isso sem consequências para o debate proposto. O marxismo não tem nada de ingênuo, ao contrário, constrói, efetivamente, uma ontologia que expressa uma metafísica clara: faz-se, no trabalho, o homem como práxis social, assim, a formação social é devedora da natureza dos modos de produção. Uma sociedade capitalista, seja qual particularidade a habite, opera como sociedade capitalista, logo, seus grupos sociais são classes ou frações de classe, e suas relações se compõem a partir desse lugar determinante, o que nos faz olhar para qualquer fenômeno social, no campo da política ou da cultura, como resultado da condição social de classe. A noção de hegemonia, forjada no começo do século XX, trazia a compreensão de relações entre as classes sociais fundamentais da sociedade capitalista da época, olhada sob as perspectivas de Antonio Gramsci, trazendo, para o campo da luta social da classe operária italiana, o conjunto dos trabalhadores rurais, que eram atraídos pelos setores sociais dominantes, contribuindo de modo definitivo para a derrota das lutas emancipatórias dos operários organizados. O conceito de hegemonia tem precisão contextual e, como tal, é operatório. Um conceito mais ampliado ou transladado não o retira do campo doutrinário da sua produção. Tenho controvérsias com esse conceito, mesmo quando aplicado no começo dos 1900 ou em qualquer outra época das lutas sociais, pois estou convencido de que implica a aposta na criação de uma vanguarda que domina uma massa – sob a perspectiva da adesão a um ideal de sociedade que não o seu, mas do outro, o da vanguarda. Como tal, querer ser hegemônico é querer trocar uma forma de dominação por outra e não produzir relações democráticas radicais, que suportem o (e dêem suporte ao) comum na diversidade. O comum na diversidade é diferente de “certo grau de heterogeneidade interna” onde “a cultura permanece globalmente coerente na medida em que os patrimônios culturais das diferentes camadas estão todos, funcionalmente, ao redor do funcionamento de uma mesma formação econômico-social”. A aplicação de uma antropologia de identificação gramsciana, em uma sociedade capitalista que se produz na lógica do trabalho imaterial, dentro de novas possibilidades de conformação dos grupos e coletivos sociais, onde há configurações diferentes da multidão que aí emerge (Negri, 2002) e das relações de poder que os constituem, não conseguiria compreender a própria mudança que vem ocorrendo no cerne das relações capitalistas de produção, neste século XXI, nas quais a forma de produção do valor se desloca do campo da mercadoria típica da produção industrial para o mundo da produção ordenado pelo conhecimento e pelas tecnologias relacionais, operando profundas modificações na antiga estética das classes sociais, tão caras ao pensamento marxista dos séculos anteriores. Creio que vale um debate sobre isso no campo da antropologia que Seppilli expressa, conforme suas preocupações centrais. Entretanto, há outra grande questão no seu material que, também, leva-me a abrir outro tipo de debate: a busca de unidade entre os campos biológico e social, dos hominídios até os dias atuais da humanidade, para constituir uma visão mais universal e consensual sobre a condição humana. Intriga-me uma ideia de separação corpo e alma, colocada em dúvida desde o século XVII por Spinoza (2007), mas central no pensamento de Descartes (1973), que procurava, na Glândula Pineal, o lugar de passagem do corpo para a alma, e vice-versa. Senti algo equivalente na referência ao surgimento de “uma inteira nova disciplina”, a psiconeuroendocrinoimunologia. O autor lembra que esta chega para “iniciar a construção de uma nova e mais avançada medicina científica”, com capacidade de incorporação e integração das “grandes contribuições da biomedicina com as muitas contribuições sobre a função central da intermediação psíquica entre os estímulos relacionais e os processos corpóreos, produzidos aos poucos pela psicologia, pela antropologia e, em geral, pelas ciências sociais”. 916

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Essa busca de unidade na ciência tem sido objeto de bons debates por parte da Filosofia da Ciência, e encontra, em um pensador como Boaventura de Sousa Santos (1989), reflexões que trazem questões interessantes para essa pretensão tão longa no pensamento ocidental, inclusive sobre a impossibilidade de sua realização; mas também há que se considerar outro aspecto: a própria noção de corpo. De que corpo estamos falando? De órgãos ou do prolongamento sem órgãos? (Merhy, 2009). Kant (1993) trouxe uma concepção mais sofisticada que o tema da Pineal (ou da psiconeuroendocrinoimunologia) quando nos apresentou um corpo de órgãos cujo mais nobre era a razão. Recoloco: o que é o corpo biológico? Tudo isso está em (e abre) questão neste texto. Talvez tentar construir o forjamento de algo como o conceito de condição humana não seja muito viável, pela simples razão, como afirmava Foucault (1987), de que o homem não existe. Na mesma linha, Nietzsche (2001) havia dito que a pele é o mais profundo do homem, um ser que só ex-iste.

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Recebido em 09/09/09. Aprovado em 23/06/10.

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“Nós nunca nos realizamos”: invisibilidades, incompletudes, encruzilhadas “We never fulfill ourselves”: invisibilities, incompleteness, crossroads “Nosotros nunca nos realizamos”: invisibilidades, estados incompletos, encruzijadas Angel Martínez-Hernáez1 Ricardo Burg Ceccim2

É um prazer comentar o texto do Professor Tullio Seppilli, referência intelectual para diversas gerações de antropólogos; especialmente, para aqueles que conformaram as gerações posteriores à crise das “grandes teorias” em antropologia e em ciências sociais. Crise que gerou a irrupção de uma profusão de “pequenos saberes” e uma fuga da produção teórica de pretensão generalista, mas também a queda da parcimônia na produção de pensamento em benefício de um conhecimento cada vez mais fragmentado, especializado, instrumental e precipitado. A “sociedade líquida”, baseada no excesso e desperdício, como na terminologia que Bauman (2006) tem utilizado para definir a sociedade de nosso tempo, seria, a nosso juízo, também aplicável a grande parte da produção contemporânea em antropologia e, quiçá, em ciências sociais. “Academia líquida”, poderíamos dizer, onde o horizonte de referências muda antes que se sedimente, onde o atual já é antigo e descartável. Era de hiperprodução, aceleração e desperdício, onde algumas vezes se encontram belas exceções a esta tendência, como o texto de Seppilli, que nos devolve o prazer por um saber profundo, holístico e pausado dos fenômenos sociais e da condição humana. O texto recupera uma das funções da teoria marxista para pensar a díade natureza/cultura - ou natureza/mundo histórico-social, se assim se preferir. Referimos-nos à função descritivo-analítica desta teoria e suas possibilidades para fazer visível o invisível - ou o deliberadamente invisibilizado - no jogo de dominação; para mostrar o conflito que subjaz ao aparente consenso mediante conceitos como o de hegemonia. Ainda que as fronteiras entre ciência social e ideologia sejam sempre porosas, Seppilli nos fala mais de um como são as coisas do que de um como deveriam ser, colocando a posição do antropólogo que produz pensamento (marxiano) mais que doutrina (marxista), que descreve mais que prescreve, que interroga mais que produz “certezas”. Seppilli retoma, oportunamente, as grandes perguntas fundacionais da antropologia e, também, da antropologia médica, e seu objetivo de dar conta dessa espécie de “fato biossocial total3” que constitui a enfermidade e a aflição humana. Uma tarefa polêmica no mundo contemporâneo, onde os horizontes reais e imagéticos, derivados da biologia molecular e suas biotecnologias associadas, nos devolvem uma imagem hipertrofiada sobre as potencialidades do reducionismo biológico para explicar os fenômenos, e não o contrário, a constatação de outras evidências, como a 918

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Universidad Rovira i Virgili - Espanha. angel.martinez@urv.cat 2 Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1

3 Em alusão a e transformação do conceito de “fato social total” de Mauss (2010).


MARTÍNEZ-HERNÁEZ, A.; CECCIM, R.B.

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importância da cultura como sistema da realidade e para a realidade, como diria Geertz (1973), que determina tanto a possibilidade de ler a natureza quanto a eventualidade de reescrevê-la. Um reducionismo biológico irreflexivo, que não se pensa a si mesmo e, portanto, não consciente de sua condição de realidade cultural. Poderíamos perguntar: é possível falar de natureza como uma espécie de bionatureza alheia ao mundo social, quando é evidente que os saberes e práticas que darão conta dela nunca serão uma realidade propriamente natural, mas cultural e histórico-social? Há vários problemas que derivam deste questionamento, antes de qualquer determinismo cultural ingênuo. Um é a validade do próprio conceito de natureza, que, faz tempo, deveria haver-se matizado; pois como bem indica Seppilli, na ordem do humano, o social não se sobrepõe ao biológico, uma vez que o constitui. Talvez devêssemos falar em socionatureza, assumindo esta complexidade e, de vez, a sua integração na coprodução de realidades (Martínez Hernáez, 2008). Uma socionatureza que não devém da maior ou menor capacidade instrumental para intervir, domesticar, modificar ou – inclusive – recriar o mundo natural, pois sempre esteve aí, na particular cosmovisão ameríndia das relações interespécies, em fenômenos como os efeitos placebo e nocebo ou em um simples sintoma atuando como condensador de significado, poder, biologia e história social. Também a socionatureza está na inconsciência derivada de não pensar-se como pensamento, o que caracteriza a biomedicina contemporânea, em sua naturalização do mundo, das enfermidades, das terapias e de seu próprio conhecimento. A mal chamada ciência, quem sabe melhor chamada ideologia científica ou cientificismo, eximese de enfrentar a complexidade dos fenômenos; essa “bruxaria superior”, como diria ironicamente Gramsci (1985), tenta invisibilizar sua condição de realidade histórico-social a partir de artifícios como o suposto isomorfismo entre as palavras e as coisas. Como estabelecer as coordenadas para orientar-nos neste mundo socionatural aceitando, de vez, as limitações derivadas de pensarmos a nós mesmos? Seguindo Lévi-Strauss, poderíamos dizer que a complexidade desse objeto de estudo é maior que nossa capacidade para compreendê-lo. É provável que esta condição faça de nossas disciplinas saberes menos “neutros”, ainda que prefiramos dizer que mais conscientes de sua falta de neutralidade. A antropologia se instala nesse leque reflexivo que visibiliza as próprias limitações. Não obstante, cremos que sem esta reflexividade dificilmente pode cumprir-se o objetivo de se criar alguma perspectiva alternativa ao determinismo biológico, como apontavam Lewontin, Rose e Kamin (1984) em Not in our genes, já há mais de duas décadas. Como diziam esses autores, os críticos do determinismo biológico, temos atuado assiduamente como bombeiros que acudimos a um incêndio na metade da noite e nunca dispomos de tempo suficiente para criarmos um “edifício à prova de incêndios”. Algumas vezes, o incêndio é uma determinada teoria sobre as relações entre quociente intelectual e raça, outras, sobre a determinação genética das preferências sexuais ou da delinquência. Todos esses incêndios podem ser sufocados rapidamente com “a água fria da razão”, entretanto, necessitamos de novas coordenadas para darmos conta da natureza socionatural das enfermidades e aflições humanas e para construirmos uma ética da atenção e do cuidado. Necessitamos aportes teóricos como o de Seppilli, que nos permitam repensar a complexidade da condição humana. Mas outros interrogantes nos são despertados pelo artigo de Seppilli: a questão da completa incompletude e a incompleta completude da condição humana. Somos indivíduos incompletos que nos completamos por obra da cultura, como 919


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dizia Geertz (1973). Ao que poderíamos agregar que a cultura é, por sua vez, uma obra inconclusa que necessita dos indivíduos para (in)concluir-se, para renovar-se e para (in)concluir-se de novo em um tempo tão aberto como incerto ou, ainda, como nos indica Foucault (1987), acolher as novidades que instauram sempre novas formas de regularidade. Se há uma transformação, como informa Foucault, ela é descontínua, pois não é uma nova verdade aquilo que emerge como novidade, é uma disruptura. São relações de força que dão vigência, ou ao contrário, levam ao abandono dos saberes que ali estavam. Ante a admissão da existência de regularidades biossociais (permanências), se põe a regularidade das novidades (permanente emergência ou invenção4), ou seja, modos de subjetivação emergem como “forma de atividade sobre si mesmo” (Foucault, 2002). Toda cultura é a expressão de jogos de verdade, é território de verificação dos modos dinâmicos de subjetivação ou das práticas que permitem, ao sujeito, transformar seu próprio ser; nessa medida não há uma verdade das ciências biomédicas que possa prescindir do entrelaçamento com as ciências sociais e humanas. Não se trata da inclusão dos determinantes sociais e históricos, mas da inclusão, também, de um imponderável. Nos termos de Foucault: a luta e a liberdade (Foucault, 2004). Encruzilhada que faz com que a condição humana seja completamente incompleta e definidamente indefinida, pois, como dizia Pessoa no Livro do Desassossego: “nós nunca nos realizamos”. Argumentava Lévi-Strauss (1978) que cada um de nós é pouco mais que uma encruzilhada onde sucedem coisas, pois o eu (tanto o je como o moi) não existe para além desse ponto da estrutura onde o fluir da vida social nos atravessa. Tal afirmação pode parecer herética em um tempo caracterizado pela sacralização do sujeito e do corpo individual como espaço fundamental da identidade; essa ideia do indivíduo autônomo e soberano que a modernidade desenha como limite das únicas certezas; esse sujeito é, também, a imagem que se desenha na areia da praia e que se dissolve com a próxima onda (Foucault, 1987). Somos na medida em que somos cruzamento e abertura de caminhos: encruzilhadas.

“Invenção”, no sentido etimológico de invenïre, isto é, ‘saber, conhecer’; ‘obter, adquirir’; ‘encontrar, achar, vir sobre alguma coisa’ (no sentido de que a invenção não vem do nada, mas é como um inédito que sobrevém de coisas que ali estavam ou restavam). 4

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debate

MERHY, E.E.

Novos saberes, sentidos e significados, por meio de práticas geradas por indivíduos em relação New knowledge, senses and meanings by means of practices generated by interrelated individuals Nuevos saberes, sentidos y significados, por medio de prácticas producidas por individuos en relación Madel Therezinha Luz1 César Sabino2

Ao nos acercarmos do texto de Tullio Seppilli, um autor, a nosso ver, clássico da antropologia médica, a primeira atitude é de respeito. Sabemos que não encontraremos deslizes e que se trata de um autor com experiência teórica – e de campo – cujas bases se assentam nos clássicos da disciplina. Seppilli inova teoricamente, entretanto, ao trazer, para o campo de reflexão da antropologia social, o pensamento político de Gramsci, com duas de suas categorias centrais, isto é, hegemonia e coerção, necessárias – embora raramente utilizadas – para se entenderem processos de mudança na história da cultura humana. Neste trabalho, o autor nos traz, além desta questão, digna de acolhimento e aprofundamento posterior, a questão central das ciências humanas em relação à vida, ou das relações entre elas e as ciências da vida, presente no pensamento social desde o fim do século XIX e não resolvida até o momento, a nosso ver. Em outras palavras, como explicar diferenciações individuais e culturais sem levar em consideração os condicionamentos humanos vitais (biológicos, seguindo aqui Seppilli) e sem considerar que eles se dão (sempre se deram, desde as origens da história) em contexto social, isto é, em redes de relações interindividuais, que definem o perfil específico dos seres que denominamos humanos? Esta questão é fundante das ciências sociais, especialmente quando postas diante das ciências da vida, sobretudo da biologia, presentemente, das biociências. Entretanto, outra questão que está nos fundamentos das ciências humanas é justamente a inexplicável – ou, até hoje, insuficientemente explicada – e irredutível diversidade individual dos seres humanos entre si, em fase das determinações biológicas, como das sociais, isto é, classes, raças, etnias, gêneros e tantas categorias quantas têm sido designadas para enquadrar socialmente a espécie humana. Com efeito, a individualidade humana é irredutível, a nosso ver, tanto ao determinismo biológico quanto ao social. A questão não se resume, portanto, à dicotomia biológica versus social, discutida por nosso autor no presente texto, mas a uma “tri-cotomia”. Designando-a em termos adjetivos, são as três irredutíveis dimensões humanas: biológica, psicoemocional e social. O setor discursivo das ciências humanas que se ocupa das questões individuais do sujeito humano está nas disciplinas “psi” (psicanálise e psicologia, com todas as suas correntes, controvérsias, acordos e desacordos). A densidade factual e teórica

1 Departamento de Ciências Humanas e Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Praia do Flamengo, 98, apto. 1111. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22.210-030. madelluz@superig.com.br 2 Departamento de Estudos Políticos, Curso de Ciência Política, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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que essas disciplinas alcançaram obriga-nos a considerar o fato humano - e, em decorrência, o fato cultural - não como bidimensional (biológico e social), mas como tridimensional. Em outras palavras, biopsicossocial (Luz, 2008; Mauss, 1974). Embora o autor escreva sobre a importância de compreendermos os estados emocionais na produção das doenças orgânicas, e dos “aspectos psíquicos de tipo depressivo” relacionados à produção de doenças infecciosas, e, nesta vertente, destaque à contribuição da psiconeuroendocrinologia para a compreensão da intermediação psíquica entre estímulos relacionais e os processos físicos, seu texto não confere destaque maior à dimensão singular da subjetividade humana, tratando-a, mesmo, como categoria residual. Embora o texto contribua significativamente para o esclarecimento da importância da dimensão social na constituição do ser humano – e, por conseguinte, para o seu adoecimento e cura – Seppilli não confere, a nosso ver, o devido destaque à terceira dimensão (psicológica), também fundamental para esta formação. É verdade que a literatura antropológica, continuamente, tem demarcado sua singularidade entre ela e as chamadas ciências “psi”; porém, a importância das dimensões psicológicas não foi esquecida mesmo nos primórdios da formação disciplinar das ciências sociais. O problema está presente desde os debates do final do século XIX, atravessando o século XX, com as escolas funcionalista e estruturalista, chegando, hoje, aos desdobramentos dos “pós-estruturalismos”, presentes tanto na sociologia de Pierre Bourdieu e seus seguidores, quanto na antropologia e na etnologia de Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola, citando alguns poucos exemplos. Em 1923, Mauss, ampliando o conceito de fato social de Durkheim, elabora a concepção de fato ou fenômeno social total (defendida no clássico Ensaio sobre a dádiva), ressaltando que os fatos sociais seriam não apenas pluricausados, pois consistiriam em elementos econômicos, religiosos, políticos, jurídicos etc., simultâneos, mas também apresentariam o fator psicológico como elemento fundamental para sua formação. Neste aspecto, Mauss sugere ser importante, para o pesquisador, não esquecer (devido ao fato de seu método dividir, reduzir, parcelar e abstrair) que a realidade é, por fim, sistêmica e indivisível. Mais do que isso: é necessário destacar que o fato social total se encarna sempre em uma experiência individual, visto serem os humanos integrais, não divididos em faculdades ou peças necessitando, também, de atenção a sua subjetividade, posto ser a vida em sociedade apenas um dos fragmentos que os constitui como tais (Lévi-Strauss, 1974; Mauss, 1974). Lévi-Strauss, seguindo a trilha desta abordagem, que caracterizará a chamada escola sociológica francesa, marca a importância do inconsciente estrutural como item característico de um saber – o antropológico – que além de ser uma espécie de astronomia das ciências sociais, também não deixaria de ser um tipo de psicologia, pois apesar de “os mitos se pensarem nos homens”, o indivíduo, com sua singularidade existencial e criativa, seria fundamental para a existência das sociedades, já que sem “os esforços encarniçados [...] e o poder imaginativo da parte de alguns indivíduos”, a descoberta de soluções fundamentais e a invenção de técnicas realizadas, em grande parte, pela observação e experimentação de alguns, as inúmeras e singulares soluções para os universais problemas humanos não teriam sido encontradas. Destarte, “as sociedades a que chamamos primitivas não têm menos homens como um Pasteur ou um Palissy do que as outras” (Lévi-Strauss, 1976, p.82). Seríamos injustos se não destacássemos que Sepilli descreve as dimensões psicológicas como fundamentais na configuração do que chamamos ser humano. Aliás, o autor chega a esboçar a concepção desta dimensão como espécie de intersecção entre o nível biológico e o social (por ele denominado relacional), sendo os problemas de integração, neste último nível, uma das causas principais do adoecimento psíquico e, mesmo, orgânico. Todavia, esta hipótese não é plenamente desenvolvida no texto, embora esteja sugerida de forma brilhante. Gostaríamos de frisar que, apesar de citar o texto clássico de Lévi-Strauss sobre a eficácia simbólica para tratar a subjetividade como intermediação entre o que denomina como os dois níveis fundamentais, o autor italiano poderia ter enriquecido a questão da subjetividade e sua importância na dinâmica social se abordasse, por exemplo, o problema do inconsciente estrutural e o papel fundamental do subconsciente nesta abordagem. O subconsciente seria a instância na qual cada um de nós, singularmente, acumularia experiências e intensidades únicas, compondo histórias pessoais, léxico individual, singular e di-ferente (Lévi-Strauss, 922

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LUZ, M.T.; SABINO, C.

debate

1975). Talvez esta seja uma dimensão que mereça maior atenção dos pesquisadores das ciências sociais aplicadas à saúde. É possível que, nesta dimensão molecular, as experimentações micropolíticas venham produzir brechas no funcionamento opressivo dos sistemas sociais, liberando processos de singularização que sugerem novas solidariedades e, portanto, novas dinâmicas sociais (Luz, 2008, 2003; Deleuze, Guattari, 2010, 1997). Em outras palavras: se a ausência de solidariedade pesa sobre a subjetividade e a psique do indivíduo no capitalismo atual, provocando, entre outros fatos, o adoecimento, a perda do sentido da vida e o suicídio, há também produção de novos saberes, sentidos e significados, por meio de práticas geradas por indivíduos em relação.

Referências DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010. ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. v.3. LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história. In: ______. (Org.). Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1976. p.51-94. (Coleção Os Pensadores) ______. A eficácia simbólica. In: ______. (Org.). Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p.214-36. ______. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, M. (Org.). Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. v. 1. p.1-36. LUZ, M.T. Notas sobre a política de produtividade em pesquisa no Brasil: conseqüências para a vida acadêmica, a ética no trabalho e a saúde dos trabalhadores. Polit. Soc. - Rev. Sociol. Pol., v.7, n.13, p.205-28, 2008. ______. Novos saberes e práticas em saúde coletiva: estudos sobre racionalidades médicas e atividades corporais. São Paulo: Hucitec, 2003. MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: ______. (Org.). Sociologia e antropologia.São Paulo: Edusp, 1974. v.2, p.39-184. Recebido em 18/10/10. Aprovado em 23/11/10.

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Beyond binaries in medical knowledge: a call for epistemological reflexivity Além dos binarismos na educação e conhecimento médico: um chamado à reflexividade epistemológica Más allá de los binarios en la educación y conocimiento médico: una llamada a la reflexión epistemológica Sara Donetto1 Alan Cribb2

Prof. Seppilli draws attention to the impossibility of separating the biological from the socio-historical dimensions of any serious study of human processes. We wish to strongly endorse his argument for more integrated approaches. In particular we wish to lament the persistence of sharp distinctions between ‘hard’ and ‘soft’ forms of knowledge in undergraduate medical education and argue that attempts to address this dichotomy need to move beyond ‘zero-sum’ disputes about the correct ‘proportions’ of hard and soft and look for ways to transcend this distinction. During two academic years of fieldwork in a UK medical school3 we found unhelpful epistemological dichotomies and polarisations of learning. Dividing practices that separated ‘science’ from experiential, psycho-emotional and sociocultural knowledge appeared over and again in the data. It was common, for the medical students we spoke to, to distinguish a more ‘scientific’ and a more ‘human’ aspects of their medical learning. These were usually represented as two poles of a continuum. Of course, ‘good’ doctors were expected to be able to place themselves somewhere more or less half-way between these poles; nevertheless the underlying conceptualisation of medical knowledge assumed ‘scientific facts’ existed in a separate domain of learning from the ‘fluffy’ one in which communication and psychosocial factors belonged. ‘Knowledge’ for medical students had an almost concrete, solid, quantifiable character; ‘to have a lot of your science’ (Milele, Year-2) was the foundation of being a good doctor, whilst communication ‘skills’ were a useful complement to this knowledge. Areas of knowledge were hierarchically positioned by students as a function of the extent to which they were seen as ‘definitive’ in shape. For example, many students were ambivalent about ethics. Whilst a few thought it provided useful reminders of the importance of respecting different beliefs and practices4, they were concerned that it lacked ‘a bottom line’: ‘ok these are all the things we have to think about but in this country this is what we do. This is what’s written in the law’ (Sandro, Year-2 equivalent). This discomfort with forms of learning unaccompanied by concrete protocols for practice pointed to a more general discomfort with uncertainty, fuzzy boundaries, and non-linear explanatory models. Ethics teaching encourages forms of explorative, open-ended thinking which are seen as uncomfortable. This 924

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1,2 Centre for Public Policy Research, Dept. of Education and Professional Studies, King’s College London. Franklin Wilkins Building, Waterloo Road, London SE1 9NH. sara.donetto@kcl.ac.uk

3 Between 2005 and 2007, SD carried out extensive observations of various teaching settings in the medical school (workshops, lectures, tutorials, small group sessions) and semistructured interviews with 30 students and 11 educators (Donetto, S. Critical awareness in undergraduate medical education: an ethnographic study of one UK medical school. 2009. Unpublished PhD thesis). For further details on the methodological approach of this study, see Donetto, S. (2010). Medical students’ views of power in doctor– patient interactions: the value of teacher–learner relationships. Medical Education, 44:187-196.


DONETTO, S.; CRIBB, A.

See for example, Liang’s (Year-4) comment: In terms of our learning, that is true, you do have to keep things separate. […] And that’s what I find quite fascinating about psychiatry. At the same time, the body is linked to the mind, it’s also a completely different thing, and something you can study by itself 5

GMC, General Medical Council (2003). Tomorrow’s doctors. London: GMC; DoH, Department of Health (2004). Medical schools: delivering the doctors of the future. London: DoH, Crown Copyright. 6

discomfort was even more marked in the ways in which students talked about mental health and psychiatry. Psychiatry, one student explained, was an unpopular discipline: ‘because if you’re a student you want things simple. You want …signs, symptoms, organic signs and symptoms and a proper diagnosis… whereas psychiatry it’s a lot more …understanding and, you really have to acquire the skill of getting into people’s minds and finding out what the matter is.’ (Liang, Year-3) More generally, people suffering from mental illness were frequently perceived by students as ‘unpredictable’, and symptoms of mental illness were considered difficult to explain ‘scientifically’ and even more difficult to relate to. For students in later years it was not unusual to articulate a clear distinction between the physical and the mental5. Students’ habit of somehow separating the psychological aspects of human suffering from the physical ones was also evident in the ways they sometimes conceptualised disease as a thing in itself, operating a distinction between ‘the disease and the person’ (e.g. James, Year-5; Sandro, Year-2 equivalent). At least on the basis of these data, integrated approaches to the human experience do not seem to have found fertile ground in health professional education. The lack of more integrated conceptualisations of the learning and practice of medical knowledge(s) has important consequences in terms of the reproduction and circulation of hegemonic medical discourses. We want to emphasise here that the sort of distinctions we reported can be seen as an indication of a deeply rooted issue about the epistemological hierarchies that still underpin medical education cultures. These hierarchies tend to position biomedical science as a superior, more valid, form of knowledge to all others, undermining the educational discourses that promote person-centred health care practice, collaborative approaches to clinical interactions and more authentic dialogue in medical work6. More integrated understandings cannot be achieved solely through curriculum changes that follow a zero-sum model, i.e. by which more curricular space is allocated to ‘soft’ subjects in order to complement the ‘hard sciences’ teaching. Rather, we argue, change needs to take place through active questioning of this very distinction. We would suggest that the kind of epistemological reflexivity that is evident in Seppilli’s account needs to become a pervasive and mundane feature of medical schools, such that learners, teachers and researchers are made routinely conscious of the ways in which they construct and classify forms of knowledge. The called for shift would be broadly analogous to the one that has gradually happened in relation to classifications and stereotypes around gender and ‘race’. Once again the task is to recognise but not reify differences; and to seek practices that embody genuinely equal respect by challenging classifications, separations and hierarchies that are constructed as ‘natural’.

debate

See, for example, Barbara (Year-2): ‘I mean, I can be aware of people’s views and opinions […] I know that helps me in being more open minded and not judging a patient and all that there, but you know, how does that work when it comes to making decisions for them, or they’re making decisions for themselves and me not agreeing with it, or…? You know, how does that work?’

4

Recebido em 18/10/10. Aprovado em 17/04/11.

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Réplica Reply Respuesta

Os problemas levantados pelos quatro comentários são muitos e de amplo significado e não é possível enfrentá-los aqui como merecem. Devo, portanto, limitar-me a selecionar alguns pontos e propor somente algumas breves e provisórias observações. 1 Concordo, totalmente, com a ideia de que seja urgente superar a sempre mais grave fragmentação, não só de saberes, mas também de elaborações teóricas, e inaugurar um novo período de sínteses conceituais gerais (e também de horizontes e esperanças coletivas). Em nome da assim chamada morte das ideologias, demasiadas vezes redefinidas como “grandes narrativas”, nos foi declarada a necessária renúncia a uma impossível concepção coerente do mundo e, de fato, foi imposta, em muitas partes da Terra, uma bem precisa ideologia, funcional ao sistema de poder dominante: aquela do individualismo, da competição permanente, da fragmentação social e da ruptura das coesões e da solidariedade, isto é, o modelo de um mundo globalizado e constituído por infinitas pequenas e passivas solidões, incapazes de interpretar e contrastar os processos profundos que as envolvem. 2 Importante, parece-me, a sugestão da “socialidade” da natureza, que acredito possa ser trabalhada em dois sentidos. De um lado, cada indivíduo e cada comunidade percebe a natureza, da qual, por sinal, faz parte, com base na constituição do seu aparato sensorial e na sua própria corporeidade (cada um de nós, por exemplo, “vê” as cores), e a interpreta, a imagina, a vive com base nos modelos elaborados pela sua cultura e nas suas vicissitudes e experiências pessoais e coletivas: uma paisagem não existe “como tal”. De outro lado, a relação do homem e da sociedade com a natureza circunstante é um relacionamento ativo, cujas diretrizes dependem da estrutura, das “necessidades” e das capacidades técnicas de cada sociedade: de tal forma, a maior parte da natureza é diretamente ou indiretamente “humanizada”. 3 Creio que o alargamento da díade biológico-social à tríade biopsicossocial possa ser utilmente considerado sobre o terreno operativo, para enfatizar o peso específico da subjetividade na condição humana: é importante, por exemplo, na etiologia médica e em toda política da saúde, e é justamente um grande problema o persistente atraso da nossa biomedicina, a este propósito, seja na formação universitária, seja na prática profissional. Aliás, a Organização Mundial da Saúde definiu, já em 1948, a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”, mas não creio que, em termos rigorosos, a introdução de um terceiro elemento possa considerar-se teoricamente correta. O indivíduo biológico desenvolve-se num horizonte (social e natural) de situações e experiências que modelam sua própria corporeidade, e esse horizonte é percebido, vivenciado e elaborado, no indivíduo, por um complexo aparelho neuropsíquico, com raízes muito profundas, constituindo-se como a sua “subjetividade”: a qual, todavia, não é “outra coisa”, diferente do indivíduo corpóreo. Vale lembrar, aqui, a longa polêmica filosófico-científica contra a separação entre “corpo” e “alma”. De toda forma,

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SEPILLI, T.

debate

como já mencionei, é muito importante levar em conta, na pesquisa e em qualquer ação que envolva os seres humanos, o peso da subjetividade. Com certeza, os seres humanos são diferentes uns dos outros: não por razões metafísicas, mas porque - mesmo sem considerar as especificidades genéticas e as diversificações fenotípicas ligadas à diversidade de ambiente, de alimentação e de estilo de vida - nenhum percurso biográfico pode ser igual a outro. No processo de formação da nossa personalidade, portanto, cada um de nós vivencia e interpreta as experiências com base em uma especificidade ligada às características de nossa própria história individual. 4 Não creio que possamos, aqui, abrir uma discussão sobre os fundamentos da metodologia marxiana e tampouco sobre seus modelos (indubitavelmente multifatoriais) de análise interpretativa das sociedades. Mas gostaria de ressaltar que o conceito gramsciano de hegemonia quer somente significar que a produção de ideias - ou, se quisermos, de “novas ideias” -, e a capacidade de difundi-las num horizonte social mais amplo, se manifestam mais intensamente nos grupos colocados ativamente no centro dos processos de transformação e/ou que ocupam dentro da sociedade posições de privilégio e estão, portanto, em condições de realizar dinâmicas institucionais mais intensas de organização do consenso. Por isso, a hegemonia é, também, um forte instrumento de poder: mais forte que a própria coação violenta, no conjunto dos processos do assim chamado controle social. Trata-se, portanto, de um conceito que, nas ciências humanas, não tem a ver somente com a situação da classe operária italiana no início do século XX, e, nem mesmo, num sentido restrito, somente com o conceito de “classe”: tem a ver com a história inteira da humanidade, pelo menos desde quando as comunidades neolíticas mais desenvolvidas conseguiram influenciar culturalmente as vizinhas tribos paleolíticas, ou desde quando a Igreja na Alta Idade Média conseguiu, pelo menos parcialmente, “exportar” a ideologia cristã entre as populações urbanas e camponesas da Europa. 5 Talvez não tenha conseguido me expressar de forma clara quanto àquilo que concerne ao papel da psiconeuroendocrinoimunologia: que é só uma das muitas diretrizes disciplinares que confluem na possível edificação de uma ciência humana unitária. Mas que possui o mérito de ter aclarado a natureza dos mais importantes mecanismos por meio dos quais o psiquismo influencia o sistema imunitário e, portanto, nossas defesas orgânicas, confirmando, dessa forma, no terreno biológico, as modalidades de uma conexão cuja existência havia sido há tempo empiricamente averiguada pela antropologia e pelas disciplinas psi. Todas essas temáticas e a maioria dos temas que abordei no ensaio aqui apresentado remetem, aliás, a uma questão epistemológica mais geral, que envolve o próprio significado da antropologia e se manifesta de maneira bem evidente, quando os antropólogos põem, como objeto das suas pesquisas, justamente a biomedicina, isto é, para nós ocidentais, a nossa medicina (Seppilli T., L’antropologia medica “at home”: un quadro concettuale e la esperienza italiana, e Etnomedicina e antropologia medica: un approccio storico-critico, ambos publicados no periódico “AM. Rivista della Società italiana di antropologia medica”, respectivamente, no n.15-16, 2003, p.11-32, e n.21-26, 2006-2008, p.53-80). Em que relação se colocam os dois “saberes”, o antropológico e o da medicina, quando o objeto em discussão é a patologia? (ou melhor, os processos que, na nossa e em outras culturas, são, de uma forma ou de outra, considerados “doenças”). A interpretação bacteriana da peste é considerada pelos antropólogos da mesma forma que qualquer outra interpretação etiológica emic, como a atribuição a um castigo divino? A interpretação bacteriana, mesmo insuficiente, tem para a antropologia o mesmo valor que as outras? Ou este problema não nos interessa? E como resolver o problema na perspectiva de uma ciência humana unificada? Mas este é um outro problema e penso deixá-lo para uma conversa futura.

Recebido em 04/01/10. Aprovado em 05/05/11.

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espaço aberto

Adaptação e simpatia: trajetórias críticas na clínica

*

Erika Alvarez Inforsato1

Exposta a todos os contatos. Em dois lentos pés. Cruzando-se com tudo o que venha pela estrada larga. Na companhia dos que vogam ao mesmo compasso pelo mesmo caminho. Para nenhum destino. Sempre a estrada larga. Lawrence (1994, p.25-6)

No exercício da clínica, considerado enquanto exercício da própria vida, deparamo-nos com intervenções pautadas em funcionamentos já estabelecidos que, por mais que pareçam solidamente edificados, em determinadas situações, nos trazem à visibilidade sua fraqueza e inconsistência. É por esse viés que este escrito pretende seguir, ele é um extrato retrabalhado da dissertação “Clínica barroca – exercícios de simpatia e feitiçaria”, realizada junto ao núcleo de estudos da Subjetividade do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. A pesquisa propôs uma abordagem do encontro da clínica com a noção de barroco, a partir da leitura da obra de Leibniz feita por Gilles Deleuze e do conceito de “dobra que vai ao infinito” (Deleuze, 1991, p.13), intensificado nessa leitura, e que contribui como um dispositivo no exercício crítico da clínica. O procedimento escolhido na pesquisa foi o de atravessar com esse dispositivo algumas situações clínicas, relatadas a partir de experiências com pessoas em situação de grave sofrimento. Por meio da apresentação dos casos, foram problematizadas algumas relações da clínica com temas tais como: inclusão, adaptação, caridade, crueldade. Alguns estudos do barroco no campo das artes foram tomados naquilo que ressalta sua potência enquanto um operador conceitual, diferindo de outros usos que tomam o barroco por um estilo ou escola artística, anacronicamente (Hansen, 2006). Portanto, o percurso com esse termo ocorreu, sobretudo, em consonância com outros conceitos da obra de Deleuze e Guattari, para operar uma crítica e compor um território que se denominou clínica barroca, com algumas das condições necessárias para reativar, na clínica, o compromisso com a criação. A proliferação de princípios do barroco foi desertada, em favor de uma multiplicidade de agenciamentos, a partir da afirmação diferencial da vida (Deleuze, 2001). COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

* Elaborado com base em Inforsato (2005). O projeto do PACTO Programa Permanente de Composições Artísticas e Terapia Ocupacional, mencionado neste artigo, esteve ligado a pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP, Projeto Fapesp 02/ 10358, submetido à aprovação da Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa – CAPPesq, do HC-FMUSP. 1 Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte e Corpo em Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Rua Cipotânea, 51. Cidade Universitária, São Paulo, SP, Brasil. 05.360-160. erikainforsato@usp.br

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ADAPTAÇÃO E SIMPATIA: TRAJETÓRIAS CRÍTICAS ...

Nessa perspectiva, a noção de simpatia aparece como um intercessor que aponta saídas para uma experimentação da clínica, desinvestida das suas configurações convencionadas. Os motores de construção do escrito aqui apresentado ressaltam o viés experimental da pesquisa, enfocado através da apresentação de casos. Neste extrato, a noção de barroco não será diretamente abordada, ela opera em ressonância com um outro conceito - o de simpatia -, tensionando as incidências da moral na clínica. Este caso, em particular, advém de uma situação grupal do cotidiano de atendimentos do Programa Composições Artísticas e Terapia Ocupacional - PACTO, projeto didáticoassistencial do Laboratório de Estudos e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da FMUSP que, desde 1998, desenvolve estudos e pesquisas na interface entre as artes e a produção de saúde, por meio da criação de novas propostas e da parceria com propostas já em andamento, ligadas a equipamentos de saúde e cultura. São iniciativas que apresentam, em comum, alguns elementos: composição grupal heterogênea – grupos constituídos a partir de encaminhamentos e busca espontânea, com pessoas da comunidade em geral e/ou em situação de vulnerabilidade (com percursos por serviços de saúde mental, de atendimento à pessoa com deficiência ou de assistência social); experimentação com atividades artísticas e/ou corporais; e preocupação com aspectos da convivência e da inscrição sociocultural dos participantes e de suas produções (Lima et al., 2009). No relato que se segue, uma situação é desdobrada de um desses projetos: o PACTO Adolescentes - com participantes diagnosticados sob múltiplas rubricas médicas, em que preponderam questões relacionadas à deficiência intelectual e outras que podem ser associadas ao que se denomina, contemporaneamente, adolescência. Sob a necessidade de provocar aberturas e acolhimento aos que cuidam e aos que são cuidados, busca-se, com este exercício textual, intensificar a existência de experimentações que ultrapassem e se desviem dos automatismos, aos quais somos insistentemente lançados, através do exercício de fórmulas que identificam e preestabelecem funcionamentos. Aberturas que atuem com as atividades da clínica, que potencializem a efetuação da vida em sua fragilidade, e que escapem aos métodos de uma adaptação imobilizante, reiteradora de alguns lugares identitários como únicos e absolutos. Terapeutas no exercício da função de “melhoradores da humanidade” - segundo a expressão de Nietzsche sobre aqueles que se colocam a serviço de um “aprimoramento de um determinado gênero de homens” (Nietzsche, 1999, p.380) - numa espécie de sacerdotismo, devoção e caridade, acabamos por adoecer a dimensão “humana”, em nome da responsabilidade pelo cuidado. Bem-intencionados, oferecemos à humanidade critérios para um adaptação inclusiva e, com isto, retiramos dela a força, a debilitamos e, nela, instituímos o sentimento de horror e de apiedamento diante da inadequação corroborando para uma cultura de intolerância, apaziguamento e exclusão. A escrita por aforismos, no caso de Nietzsche, lhe permitiu formulações intensivas na linguagem que nos convidam a deslocamentos importantes, tais como na proposição radical referente às circunstâncias políticas e sociais vigentes e hegemônicas: “No combate com a besta o tornar-se doente pode ser o único remédio para enfraquecê-la” (Nietzsche, 1999, p.380). Hiperbólica à primeira vista, essa proposição é, sobretudo, uma paradoxal oportunidade, ou melhor, a evidência de uma saída inevitável: a do adoecimento e/ou do disfuncionamento eficiente, com o quê se podem repensar os lugares de sofrimento e fragilidade, compreendendo, em outras chaves, o próprio terapeuta e aqueles por ele cuidados. Esses fios de tensionamento são visualizáveis em situações ordinárias dos encontros, sobretudo os da clínica, em que se entreveem tanto as situações de rendição absoluta quanto as de embate persistente, para se poder efetuar um cuidado de outra ordem, que consiga escapar do protocolo social estabelecido cientificamente, qual seja o de “melhorar” quem quer que seja. Nesta estratégia melhoradora, que pode ser denominada moral - na perspectiva do conceito de transvaloração de todos os valores de Nietzsche -, encontram-se, em latência, tendências de amansamento e cultivo de uma determinada espécie de homem; ela se dá numa aposta intersubjetiva de que o homem melhora o homem - conveniente para o que predomina na clínica. Num dos polos desse conceito, Nietzsche preconiza que “todos os valores vigentes até agora (isto é, aqueles que se implantaram a partir da ascensão judaico-cristã) devem ser extirpados em sua raiz, de modo a abrirem caminho para a instauração de novos valores” (Rubira, 2005, p.115). Exemplar de uma destas situações ocorreu num dia em que estávamos reunidos para um dos últimos encontros do grupo PACTO Adolescentes. A narrativa desse acontecimento, feita retroativamente para 930

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efeito desse escrito, quer apresentar uma imagem de intensidade, editada a partir de uma experiência, em que o foco de interesse a ser discutido define quais palavras e em que sequência elementos aproximados àqueles vivenciados podem ser encadeados. Assim, das anotações em cadernos de campo do grupo, somadas às sensações e memórias de minha coordenação, apresenta-se o acontecimento. A sala era a mesma, o grupo era o mesmo. E, entretanto, a sala era outra, o grupo, outro. A preparação para o momento de findar o projeto estava apoiada na concentração dos fazeres em torno dos quais todos estiveram, por quatro anos, numa situação comum. As experimentações artísticas e corporais que desdobraram-se em objetos foram registradas em imagens que poderiam ser transportadas como marcas, e memória de outras marcas que singularizaram todo o processo. Estávamos finalizando catálogos-obras em que cada um deixava registrado e, simultaneamente, criava novos rastros para aquele espaço, naquele grupo. Entre cola, tesoura, fios, latas, tecidos, papel, tentávamos finalizar um universo com pouquíssimas palavras reconhecíveis. Subitamente, apercebi-me de que falava sem parar, e esta percepção passou a girar o tempo da minha presença como terapeuta daquele grupo. Retrospectivamente, dei-me conta de que falava excessivamente há muitos encontros. Essa percepção foi intensificando-se e refinando-se: lembrava e constatava que, por vezes, falava alto, berrava – e aquilo contava-me que, em parte, eu tentava com essa verborragia dar conta da angústia provocada pelo silêncio daquele grupo, ou melhor, por aquela impossibilidade de palavras que, mesmo em se tratando de um processo de finalização, persistia. Alguns participantes efetivamente não falavam: ganiam, gemiam, até mesmo urravam. Palavra articulada, praticamente não havia. Alguns até falavam, de um modo bastante ininteligível, com palavras que ficavam totalmente deformadas. Outros ainda tinham a articulação fonatória preservada, mas não conseguiam encadear nenhum pensamento em fala e gaguejavam. Poucos emitiam palavras tímidas, monossílabos passíveis - somente com muito esforço do interlocutor - de se tornarem uma conversa. E eu gritava, falava incessantemente. Por vezes, colocava música, entre outras razões, na tentativa de preencher aquele espaço vazio ou pleno de ruídos, com alguma coisa que o organizasse e o tornasse mais tolerável - espécie de prótese para suportar o desenrolar dos encontros. E, no entanto, em sua maioria, as músicas colocadas tinham referências dissonantes e estavam cheias de ruídos que intensificavam, sem que eu me desse conta, o insuportável daquelas cenas. Estávamos mais um dia, então, ali reunidos, para mais um encontro. Um dos últimos. Nós mesmos. Nós outros. E um dos participantes descobriu, em uma das sacolas que sempre carregava, uma bermuda que sua mãe trouxera, para trocar caso urinasse em suas calças - o que era habitual. Ele descobriu a bermuda e resolveu colocá-la em seu corpo imediatamente. Em meio ao ateliê, baixou suas calças para retirá-las, e a cueca junto. Desesperei-me também de imediato e segurei suas mãos dizendo-lhe que ele não podia trocar de roupa ali na sala. - Não pode. - Aqui não. - Eu estou te dizendo que não vou deixá-lo trocar de roupa aqui na sala.

Fiquei engasgada. Um disco riscado. Tonta. Queria dizer-lhe o porquê mas não me convencia por nada que prontamente me ocorresse formular, mesmo que até enunciasse muitas frases. - A sala é lugar de trabalho, não de ficar pelado; - Se todo mundo resolver trocar de roupa aqui vamos ter que parar de fazer nosso trabalho; - Nós não nos reunimos para trocar de roupa na sala; etc etc. Tudo aquilo que saía de minha boca cheirava a um acordo excessivamente moral, no qual estava enredada sem notar, até o momento em que aquele garoto enorme se pôs a arrancar as roupas diante de mim. Muita coisa se despia ali. Eu mesma. Todos nós nos despíamos um tanto ali. Eu e as demais coordenadoras nos pusemos a segurá-lo e muito suavemente tentar convencê-lo a não baixar novamente as calças que, insistentemente, levantávamos a cada uma das inúmeras vezes que ele insistia em baixar. Num determinado momento, alguém ofereceu, suavemente, a ele, a possibilidade de trocar, sim, de roupa mas, no banheiro. O impasse continuava e eu, nada suave, extremamente

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rigorosa e autoritariamente o impedia de realizar a troca ali na sala, ao mesmo tempo em que passava a oferecer-me a acompanhá-lo até o banheiro.

O relato cansa. Cansou muito permanecer no acontecido até algum desfecho. Importante também eu pensava -, era o fato de que eu só conseguia impedi-lo de avançar sua atividade de trocar as calças ali na sala porque ele tinha um dos braços numa atrofia acentuada, resultado de uma paralisia cerebral, o que o impossibilitava de realizar com ele qualquer movimento. Daí, eu, com dois braços e toda minha força física, conseguia impedir aquela “montanha” de um só braço funcionante de realizar o que estava querendo. Exaustos, sentados no chão da sala - ele com a bermuda na mão, eu tentando convencê-lo a voltar ao trabalho -, ele aponta seu corpo, num gesto que me dava a entender sendo um “eu” e mostra-me a roupa. Insisti, pela enésima vez, que só no banheiro. Ele, finalmente, concordou, levantando em direção à porta (ele era daqueles que não articulava fala alguma), e então fomos. Lá fez a troca com minha ajuda. No banheiro. E voltamos à sala. Em seguida, pôs-se a insistir em ir embora, empurrando a porta, até que não conseguimos mais detê-lo dentro da sala, sobretudo porque a força física que estava tendo de imprimir contra ele e contra mim mesma era de um tamanho que eu não mais podia suportar. Foi-se. Uma das outras coordenadoras falou sobre termos conseguido realizar um intenso processo de negociação. Isso era certo. Os outros integrantes do grupo oscilavam entre risos e preocupações, e tentavam falar de várias maneiras sobre a dificuldade de fazer coisas com ele. Alguns referiram com pesar a mãe dele, como sendo aquela que vive diariamente situações como essas. Senti raiva. Cansaço. Com o que então se deu a tal negociação? Com uma crença? Um poder? Uma designação? Um acordo? A imagem dessa cena, e todas essas considerações dela decorrentes, permitem pensar direções diversas: negociar, acordar, autorizar, desautorizar, forçar, acolher, conter, designar. É possível arriscar dizer que o que se passou ali guardava relações estreitas com as preceptivas da adaptação. Adaptar enquanto estratégia preferencial: fazer uma prótese com as convenções sociais, e de um ponto de vista “politicamente correto”, justificar-se por inscrever o sujeito na ordem vigente - o que elucidaria a narrativa como uma intervenção preparatória do garoto para ser socialmente aceito, incluído, melhorado. Adequado. Não se pretende, com essas indagações, mistificar o problema da nudez pública - nem legitimar, nem contestar esta regra de conduta (a de que não se deve despir em locais públicos) -, não se quer nem mesmo descartar tudo o mais que podia haver ali, naquele embate com o garoto e suas roupas, que possa relacionar-se aos signos de uma relação que se trava, às vezes, com discordâncias e modos de agir que atropelam e desviam negativamente o movimento de um coletivo. Entretanto, dentre todos os vetores que se pode apontar para pensar o que essa imagem dispara, interessa, para este escrito, o vetor protético, aquele que remete às adaptações e imposições que clinicamente se faz, e com o qual se pode constatar qual e quanta moral age em situações dessa natureza. Paradoxalmente, é importante ressaltar que toda a proposição do projeto do grupo era a de justapor elementos heterogêneos: pessoas com deficiência, artes, adolescência, universidade, trabalhos com o corpo, convivência. A própria eleição do trabalho com as artes acentua a indecidibilidade da situação, uma vez que elas são tomadas no projeto em consonância com a ideia de que: A arte ao contrário de uma operação “desinteressada”: não cura, não acalma, não sublima, não desinteressa, não suspende o desejo, o instinto ou a vontade. A arte, pelo contrário, é “estimulante da vontade de poder”, “excitante do querer”. (Deleuze, 2001, p.153)

Diante desta zona de indeterminação, em que coexistem devires revolucionários e reacionários, pode-se pensar que o percurso metodológico da intervenção no PACTO aproxima-se da noção de simpatia, enquanto uma proposição estética para a terapia ocupacional e para outras clínicas, na medida em que busca sustentar e detectar elementos que possam corroborar para que a vida prolifere. “É a simpatia, agenciar [...] Mas a simpatia não é nada, é um corpo a corpo, odiar o que ameaça e infecta a vida, amar lá onde ela prolifera...” (Deleuze, Parnet, 1998, p.66). A própria formação histórica da palavra simpatia ajuda a evidenciar o sentido que ora pretendemos adotar. Ela é resultado da prefixação “sún-” 932

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correspondente ao prefixo latino com-, no sentido de “juntamente, do lado de, em favor de” -, da palavra grega “pathos” - “estar aberto, estar exposto ou acessível, o que se experimenta” (aplicado às paixões e às doenças). A simpatia, trazida à técnica de uma certa clínica seria um modo de invocar esse pathos, através da afirmação de seu conhecimento. “O exemplo mais simples de conhecimento pático nos é dado pela apreensão de um ‘clima’, o de uma reunião ou de uma festa que apreendemos imediatamente e globalmente, e não pelo acúmulo de informações distintas” (Guattari, 1992, p.161). O pático diz respeito a fragmentos em conexão, em agenciamento, não somados nem fundidos, mas que exercem forças que ora se acoplam, ora se chocam. Um modo de conhecimento que se dá nos interstícios, nos intervalos de um combate. É nesse nível que o engendramento de uma forma é passível de esboçar-se. Um ajuntamento ao pathos é uma simpatia atenta ao risco, sem deixar de corrê-lo. Tomada como arma para fugir, no sentido de buscar os acontecimentos nos meios, fugir dos pontos de origem e das conclusões. Para corroborar com essa perspectiva, e retomando a situação relatada, em sua dimensão reativa, sobretudo no que concerne à possibilidade de refutar um pensamento guiado pela utilidade, torna-se importante questionar a própria necessidade de encontrar uma explicação que dê respaldo a uma intervenção imposta sobre a atividade de alguém. E nesse interrogar, depararmo-nos com o que se destaca nesse modo de intervir: uma moral – retomando a conceituação nitzscheana -, uma linearidade instituída, lógica das origens e finalidades das coisas, que justificaria toda intromissão no curso do fazer de um sujeito singular, em nome da utilidade e da facilitação de sua entrada no mundo dos cordatos, dos que se curvam aos acordos tácitos, dos que se rendem às convenções sociais, dos que se amansam. Ao nos apercebermos apoiados em prescrições morais, sentimos sua paradoxal edificação: dura e fraca, na qual resta o corpo, o corpo animal, orgânico e dissimulado na função de suas forças aplicadas para a reiteração dos funcionamentos hegemônicos, desperdiçando a possibilidade de inventar outros modos de viver, de fazer funcionar a vida. [...] sob a pressão dessa idiossincrasia [democrática], põe-se em primeiro plano a “adaptação”, isto é, uma atividade de segunda ordem, uma mera reatividade, e chegou-se a definir a vida mesma como uma cada vez mais adequada adaptação interna das circunstâncias externas (Herbert Spencer). Com isso, porém, a essência da vida é equivocada: sua vontade de potência; com isso é ignorada a supremacia que tem, por princípio, as forças espontâneas, agressivas, invasoras, criadoras de novas interpretações, de novas direções e de formas, a cujo efeito, somente se segue a “adaptação”; com isso é negado no organismo mesmo o papel dominador dos supremos funcionários, nos quais a vontade de vida aparece como ativa e conformadora. (Nietzsche, 1998, p.67)

Quando Nietzsche enuncia a adaptação nesse trecho de Genealogia da Moral, aponta um desdobramento que, por parecer óbvio, muitas vezes nos escapa: trata-se da obturação de uma inventividade, de uma vontade de vida que, para efetuar-se, depende da possibilidade de inventar novos usos do corpo e suas relações, com formatações não reconhecíveis por nenhuma originalidade essencial. Isto quer dizer, poder retomar, na realização de uma atividade - no exemplo: trocar de roupa, uma atividade cotidiana, tão cara aos terapeutas ocupacionais -, uma série de noções compartilhadas e regramentos sociais automatizados que podem e necessitam - em função de um acontecimento - ser colocados em questão. Não para contradizê-los, mas dizê-los, pela primeira vez numa repetição: a atividade não vai ser inventada originalmente ali, mas vai ser reinventada na medida em que resiste a uma naturalização, que não tem a ver com oposição, mas com encontrar um modo de se fazer. O movimento daquele garoto, ao querer trocar de roupa durante o tempo e o espaço grupal, nada tinha a ver com opor-se às regras de nudez privatizada, nem mesmo negar quaisquer combinados internos ao grupo, e justamente por isso colocava tudo isto em questão. É esta força afirmativa que desafia, pois não nos deixa alternativa senão fugir, buscar saídas que não sejam as duras paredes edificadas para aquela atividade; cavar buracos, encontrar respiros. Negociar, talvez. Evitar adaptar. Mesmo que tenhamos de nos render, no sentido de tornarmo-nos temporariamente passivos, para dar tempo a que algo outro possa existir. Permitir apenas que alguma atividade aconteça, não reagir, abrir COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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espaço para que a atividade de alguém possa tornar-se um acontecimento, favorecendo sua vida a movimentar-se. Quem sabe uma cabana, uma proteção que desse início à noção compartilhada de privacidade evitasse a extensão do escândalo. Quem sabe apenas poder olhar para esse momento difícil e pensar que ele não é natural só por tratar-se de um personagem com deficiência mental; pensar que ali reside uma estranheza capaz de produzir outras ordens no mundo, ainda que seja o mundo daquele grupo. Fazer pensar a vida, obrigá-la a se pensar. O exemplo aqui apresentado, desse modo, deve servir apenas para mobilizar um pensamento, não precisa e nem deve indicar conclusões específicas para essa situação (deixar se despir na sala? obrigá-lo a ficar? encaminhar ao banheiro? criar uma situação de privacidade?); qualquer saída que se acentue seria, no âmbito deste escrito, agir de forma reativa, protocolando condutas terapêuticas e novamente buscando origens e finalidades nas coisas, o que desperdiçaria a possibilidade - que se quer aqui ressaltar como fundamental à clínica - de abertura a outros pensamentos e saídas, ao invés de prescrições. A história é forte, sua motivação é aparentemente banal. Não é isto o que importa. Interessa, com ela, atentar para os modos de agir de quem cuida, interpelar nossas atitudes automatizadas e preocupadas em, antecipadamente, justificar suas finalidades. Importa verificar com ela quanto recaímos de imediato em prescrições morais, e, com isto, desafiar a possibilidade de cuidar, suspendendo os objetivos finais e priorizando o contato do momento presente, seu acontecimento iminente e imprevisível. Nunca é o início ou o fim que são interessantes; o início e o fim são pontos. O interessante é o meio. O zero em inglês está sempre no meio. Os estrangulamentos estão sempre no meio. Está-se no meio de uma linha, e é a situação mais desconfortável. Recomeça-se pelo meio. (Deleuze, Parnet, 1998, p.52)

Não é possível saber qual o melhor gesto, nem para essa nem para qualquer outra situação. Impossível estabelecer o que estará à altura da potência que ela pode acionar e quais os riscos que se pode correr protegendo suficientemente o outro de um maior sofrimento e paralisia da vida. Diante dessa paisagem, o que parece possível é a suspensão de nossos movimentos reativos, poder acompanhar e participar do que acontece, e verificar que o que dali decorre e se extrai é uma convocação. Esse é o gesto, necessário, mas não suficiente. O gesto de nos invocar a cada nova/velha situação; mobilizar-se a pensar, a se deslocar sem saber ao certo para onde, nem por quê. Ainda que se tenha de rastejar: estas próteses, estas adaptações não podem nos condenar à despotencialização dos acontecimentos na clínica e na vida. Se haverá uma razão, uma legitimação pragmática, esta deve ser a simpatia. Não deve ser a caridade a nos mover, não deve ser o ímpeto de correção a nos justificar. Nossa alma precisa poder colocar-se ao lado de outra alma. É por simpatia, e não por adaptação que o desejo pela vida nos coloca em encontros. Porque simpatia significa sentir com e não sentir por [...] Isto é simpatia. A alma a julgar por si mesma, e a preservar sua integridade própria. [...] A alma simpatiza com a alma. E tudo quanto tenta matar-me a alma, a minha alma odeia. (Lawrence, 1994, p.30-3)

Aquém e além das convenções - não se trata de pregar a imoralidade ou a amoralidade, mas pensar que nenhuma regra garante que a vida vai medrar. Apenas o esforço de rejeitarmos nossas intervenções estereotipadas e de nos liberarmos de comportamentos supridores automáticos, pode nos colocar ao lado, encontrar as distâncias, acolher o pathos, o estranhamento. Em lugar de uma assimilação disciplinada para um pertencimento compulsório, apostar no jogo das distâncias, na ressonância aberta dos encontros, para uma espécie de transvaloração dos valores na clínica - para além de qualquer traçado antropomórfico, humanista, científico ou moral. Agir por simpatia e, às vezes, encontrar a melhor intervenção: a aproximação possível, a justa distância, o gesto suficiente.

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Referências DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Antonio Manuel Magalhães. Porto: RÈS-Editora, 2001. ______. A dobra: Leibniz e o Barroco. Trad. Luís Benedicto Lacerda Orlandi. Campinas: Papirus, 1991. DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. GUATTARI, F. Caosmose – um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992. HANSEN, J.A. Barroco, neobarroco e outras ruínas. Floema Esp., v.2, n.2A, p.15-84, 2006. INFORSATO, E.A. Clínica barroca: exercícios de simpatia e feitiçaria. 2005. Dissertação (Mestrado) - Núcleo de Estudos da Subjetividade, Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2005. LAWRENCE, D.H. Whitman. Trad. Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água Ed., 1994. LIMA, E.M.F.A. et al. Ação e criação na interface das artes e da saúde. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.20, n.3, p.143-8, 2009. Disponível em: <http:// www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rto/v20n3/02.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2011. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999. ______. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. RUBIRA, L. Uma introdução à transvaloração de todos os valores na obra de Nietzsche. Tempo Cienc., v.12, n.24, p.113-22, 2005.

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A partir de elementos conceituais relacionados à adaptação e à simpatia, tomados das proposições da filosofia e da literatura de Nietzsche, Deleuze e D.H. Lawrence, este escrito é um exercício crítico no campo problemático da clínica em interface com as artes. A narrativa de uma situação grupal coordenada em parceria com artistas e terapeutas ocupacionais é a imagem-motor que permite entrelaçar estas perspectivas e pensar os desafios lançados no cotidiano com populações sob condições de grave fragilidade e restrição de suas vidas – em função de questões decorrentes de deficiências física e/ou intelectual. Na relação com o sofrimento, a exclusão e a criação, a proposição deste escrito é a de pensar a clínica em trajetórias críticas, ao considerar a complexidade desses processos enquanto convocações: ações e reações que transitam entre enrijecimentos e porosidades, proximidades e distâncias, reiteração identitária e disponibilidade aos desvios.

Palavras-chave: Clínica. Arte. Terapia Ocupacional. Adaptação. Simpatia. Adaptation and sympathy: critical trajectories in the clinic Based on conceptual elements related to adaptation and sympathy, taken from the proposals of Nietzsche’s, Deleuze’s and D.H. Lawrence’s philosophy and literature, this paper is a critical exercise in the problematic field of the clinic in its interface with the arts. The narrative of a group situation coordinated in partnership with plastic artists and occupational therapists is the engine-image that allows interweaving those perspectives and thinking about the challenges in the daily routine of populations under conditions of severe fragility and limitations in their lives – as a result of problems caused by physical and/or intellectual disabilities (impairments). In the relation with suffering, exclusion and creation, the proposal of this paper is to reflect on the clinic in critical trajectories by considering the complexity of those processes as summons: actions and reactions transiting between hardenings and porosities, proximities and distances, identity reiteration and availability for deviations.

Keywords: Clinic. Art. Occupational Therapy. Adaptation. Sympathy. Adaptación y simpatía: trayectorias críticas en la clínica A partir de elementos conceptuales relacionados a adaptación y simpatía, tomados de proposiciones de la filosofía y de la literatura de Nietzsche, Deleuze y D.H. Lawrence, este trabajo es un ejercicio crítico en el campo problemático de la clínica en su interfaz con las artes. La narrativa de una situación grupal coordinada por una asociación de artistas y terapeutas ocupacionales es la imagen-motor que permite entrelazar estas perspectivas y pensar desafíos colocados en el cotidiano de poblaciones bajo condiciones de grave fragilidad y restricción de sus vidas – resultantes de cuestiones relacionadas a deficiencias físicas y/o intelectuales. En la relación con el sufrimiento, exclusión y creación, la proposición de este articulo es la de pensar la clínica en trayectorias críticas al considerar la complejidad de estos procesos como convocatorias: acciones y reacciones que transitan entre endurecimientos y porosidades, proximidades y distancias, reiteración de la identidad y disponibilidad a los desvíos.

Palabras clave: Clínica. Arte. Terapia Ocupacional. Adaptación. Simpatía.

Recebido em 08/09/10. Aprovado em 30/05/11.

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A prática de alfabetização em Informação e Comunicação em Saúde: o olhar dos agentes comunitários de Saúde sobre o projeto de Inclusão Digital em Sergipe, Brasil Pablo Boaventura Sales Paixão1 Valéria Pinto Freire2 Maria de Fátima Monte Lima3 Ronaldo Nunes Linhares4 Ana Valéria Machado Mendonça5 Maria Fátima Sousa6

Introdução No Brasil, o Programa Sociedade da Informação (Socinfo) é considerado, sob a ótica do Estado, um marco para a implantação de políticas de inclusão digital. Em dezembro de 2000, o Programa, por meio do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), produziu o ‘Livro Verde’, traduzindo as políticas públicas na área. Mapeou e identificou as ações de universalização das TIC, para os integrantes de comunidades em risco social, tais como: o investimento em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias; a promoção da informatização da administração pública e do uso de padrões nos seus sistemas aplicativos; a implantação de infraestrutura básica nacional de informações, dentre outras (Brasil, 2000). As políticas de universalização das TIC implementadas, no Brasil, no limiar do século XXI (Lima, 2007), imprimiram urgência na realização de projetos, para os indivíduos, como forma de incluí-los na cultura digital, para além da disponibilização de aparatos tecnológicos. Nesse sentido, incluir digitalmente deve centrar-se na formação de sujeitos ativos, construtores de novos conhecimentos e produtores de informação, e não, simplesmente, a acessibilidade às TIC. Assim entendida, a inclusão digital significa ‘infoinclusão social’, garantia de acessibilidade e conectividade à Socinfo, a partir das inovações midiáticas em TIC, para além das habilidades e do domínio técnico, e que possibilite o fortalecimento do cidadão para o “agir comunicativo” consciente (Habermas, 2001), a partir de práticas de educação dialógica e emancipatória (Freire, 1979) envolvendo todos os níveis de inclusão digital (Sorj, 2003). A percepção de que os sujeitos deveriam ser incluídos num mundo novo, ser alfabetizados para utilizarem as TIC, ampliando sua condição de cidadãos na Socinfo, passou a ser uma constante nos programas e ações de governo, nos mais diversos campos, com atenção especial na Formação Continuada de profissionais nas áreas da educação e da saúde. Considerando a oportunidade e amplitude das ações do Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, este artigo teve como objetivo verificar como um grupo de ACS sergipanos, integrantes do Projeto de Inclusão Digital de Agentes Comunitários de Saúde de Sergipe7, analisam as práticas de Alfabetização em Informação e Comunicação (ALFIN) desenvolvidas pelo mesmo, identificando dificuldades e facilidades destes sujeitos com o uso das TIC. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Mestrandos, Programa de Pós-graduação em Educação (PPED), Universidade Tiradentes. Av. Murilo Dantas, 300. Aracaju, SE, Brasil. 49.032-971. pabloboaventura1@ hotmail.com 3,4 PPED, Universidade Tiradentes. 5,6 Departamento de Saúde Coletiva, Universidade de Brasília.

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7 Este Projeto foi desenvolvido pelas Unidades de Tecnologias da Informação e Comunicação em Saúde (UTICS) e de Estudos e Pesquisas em Saúde da Família (UEPSF), do Núcleo de Estudos em Saúde Pública (NESP), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília (UnB), em parceria com a Universidade Tiradentes (UNIT), para as ações no Estado de Sergipe. Tratase de iniciativa de inclusão digital dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

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A PRÁTICA DE ALFABETIZAÇÃO EM INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO ...

O Projeto ocorreu no período de 2009/10, envolveu 14 municípios, e sua ação pedagógica básica constou de um Curso de Introdução à Informática e da Oficina on-line de ALFIN, para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

Concepção de alfabetização informacional O conceito de alfabetização faz parte do processo civilizatório e, há muito tempo, está presente nas diferentes políticas de educação, da América Latina e do Brasil. Um dos seus maiores representantes é o brasileiro Paulo Freire, (1983, p.1), que entende o ato de alfabetizar como, [...] um processo que envolve uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. [...] Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto [...].

Este processo, portanto, está relacionado à necessidade de uma estrutura discursiva comum, construída a partir da “leitura de mundo”. A palavra, para Freire, é uma ação dialógica, uma expressão e uma elaboração do mundo, que se faz pela comunicação e colaboração. Isto significa a presença do dialogismo, uma interação mútua e comprometida dos sujeitos, no que versa a igualdade em que cada sujeito possa pronunciar e recriar o seu mundo pelas suas próprias palavras. Se ao sujeito histórico for negado o direito à palavra, suas condições objetivas de enfrentar o mundo com autonomia e liberdade serão cassadas. O diálogo, então, se configura como um potente instrumento de mediação para a formação humana. Para Freire, no processo educacional, ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. É despertar, no educando, a curiosidade e o desejo pela busca do conhecimento que trará, para o processo de aprendizagem, outras vozes indispensáveis, além de sua própria. Esta posição curiosa do educando, e que não deveria ser submissa aos ditames do ensino, se for bem trabalhada e incentivada, dará suporte à formação do seu senso crítico, isto é, a sua leitura crítica do mundo (Freire, 1986). Considerando que as condições sociais são históricas, a emergência de cidadãos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de espaços de aprendizagem que lhes possibilitem autonomia, pressupõe a compreensão da educação como processo comunicacional. No entender de Jurgen Habermas, este processo é [...] a forma de interação social em que os planos de ação dos diversos atores ficam coordenados pelo intercâmbio de atos comunicativos, fazendo para isto a utilização da linguagem (ou das correspondentes manifestações extraverbais) orientada ao entendimento. (Habermas, 2001, p.418)

Segundo o autor, torna-se necessária a construção de uma nova racionalidade, definida como ‘racionalidade comunicativa’, em que, através da comunicação que os sujeitos estabelecem entre si, construam-se interações sociais considerando-se: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e instituições, e o mundo subjetivo das vivências e dos sentimentos. Assim, [...] enquanto falante e ouvinte se entendem frontalmente acerca de algo num mundo, eles movem-se dentro de horizontes do seu mundo de vida comum [...] O mundo de vida forma um horizonte e ao mesmo tempo oferece uma quantidade de evidências culturais das quais os participantes no ato de comunicar, nos seus esforços de interpretações retiram padrões de interpretações consentidas. (Habermas, 1990, p.278-9) 938

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PAIXÃO, P.B.S. et al.

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Diferentes sujeitos se reúnem livremente em grupos interdisciplinares e multiculturais, em que todos participam democraticamente das discussões, argumentam, justificam e problematizam sua validade, expressam atitudes, sentimentos e desejos referentes à sua subjetividade, orientados por atos regulativos construídos coletivamente. A interação, portanto, é construída como pretensões de validade (verdade, legitimidade e veracidade); os sujeitos coordenam suas ações, orientando-se segundo normas sociais, construindo um consenso valorativo, um acordo alcançado através da comunicação, com base nestas pretensões de validade (Habermas, 2001). [Essencialmente], um acordo que fundamente e oriente o dialogo como necessidade inerente à condição humana e alimente o mundo da vida como um lugar transcendental, no qual falante e ouvinte vão ao encontro um do outro. (Habermas, 2001, p.179)

Hoje, segundo Lima (2007), em se tratando das possibilidades ligadas às TIC, tais tecnologias aumentam a capacidade de realização dos processos proposicionais, articulados pelo trabalho intelectual. Neste caso, então, a alfabetização ganha outras denominações, como ‘Alfabetização Digital’, mas nem sempre sob a luz dessa concepção. No caso do conceito de Alfabetização em Informação e Comunicação (ALFIN), na perspectiva de Cerveró (2006), relaciona-se aos contextos histórico, econômico, cultural e social, que situam os sujeitos sociais, como fazia Paulo Freire com a tecnologia de sua época, em distintos momentos e em países diferentes, cuja necessidade política determinou a sua prática. Ao estabelecer a relação alfabetização/contexto social, Cerveró, (2006, p.33) afirma que “en la actualidade podemos hablar de alfabetizaciones y analfabetismo en plural, según las capacidades de cada individuo para relacionarse con la información en diferentes códigos, lenguages y contexto”. Assim, essa autora desloca a atenção para a necessidade de um modelo de ALFIN múltiplo, num sentido transversal, associado a novas dimensões de suportes, leituras, interpretações e possibilidades de transformação da informação. Elemento importante do processo de inclusão digital, a Alfabetização Informacional deve, segundo Sorj (2003), cumprir cinco níveis que este considera importante: 1) Existência de infraestrutura física de transmissão ; 2) a disponibilidade de equipamentos, de conexão de acesso ; 3) treinamento no uso do computador e da Internet ; 4) capacitação intelectual e inserção do usuário, produto da profissão, do nível educacional e intelectual e da rede social que determina o aproveitamento efetivo da informação e das necessidades de comunicação pela Internet; 5) a produção e o uso de conteúdos específicos adequados às necessidades dos diversos segmentos da população. (Sorj, 2003, p.63)

Para esse autor, a distinção entre os diferentes níveis de acesso e uso das TIC contribui para desenvolver metodologias de acompanhamento e atuação, pois cada nível é condição de existência do nível superior, enquanto os níveis superiores sempre determinam a utilidade do nível anterior. A interdependência entre os níveis determina a centralidade da ação educativa. Sorj (2003) observa que o último nível está relacionado a duas questões. A primeira é a existência de conteúdos informacionais de interesse para todos os grupos sociais; e a segunda, está relacionada à capacidade do indivíduo de produzir e disseminar conteúdos. Tal perspectiva aproxima-se dos estudos de Paulo Freire (1977, p.45), quando compreende que o processo de aprendizagem e a construção social do conhecimento pressupõem que “o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros no ato de pensar sobre o objeto. Não há um ‘penso’, mas um ‘pensamos’ que estabelece o ‘penso’ e não o contrário”. Assim, a preocupação de Freire com o homem concreto coloca o diálogo como um instrumento importante para a construção de sua autonomia. A compreensão de um processo de aprendizagem coproduzido colaborativamente e dialogal tem, tanto em Habermas, em Freire, quanto em Sorj, uma proposição que vai além da racionalidade COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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instrumental produzida na modernidade. Racionalidade que se constituiu a partir da relação meios-fins, com base na construção de estratégias para a consecução de objetivos, independente dos sujeitos. Neste sentido, tanto em Habermas, como em Freire e Sorj, a ação comunicativa só é possível enquanto uma ação de compartilhamento e de consensos construídos entre os sujeitos, a partir de suas experiências vivenciadas em um contexto partilhado e negociado com os demais. Tratando-se de um processo educativo fundado nas TIC, a atitude profissional de estimular a capacidade autônoma do indivíduo em formação é crucial. A relação ação/reflexão/ação é a base para contribuir com o desenvolvimento da consciência do educando. Esta tarefa envolve a reflexão sobre a ação, e deve acontecer concomitantemente à formulação da sua subjetividade, o que sinaliza, para ele, uma oportunidade de compreender o significado que uma certa atividade tem para a sua existência individual e social. É a compreensão do seu estar-no-mundo, como coloca Freire, que expressa, assim, o processo dialógico em que ele está envolvido, por meio das interações verbais das quais ele participa, e que, também, reconhece a sua voz.

Percursos metodológicos O caminho traçado para a análise do Projeto de Inclusão Digital dos ACS de Sergipe foi o da abordagem da pesquisa qualitativa centrada no Estudo de Caso, por entendermos a singularidade do objeto – práticas de Alfabetização em Informação e Comunicação (ALFIN), quando do desenvolvimento das estratégias pedagógicas na formação dos ACS. A técnica utilizada foi o Grupo Focal, de avaliação qualitativa, não diretiva, que coleta dados por meio das interações grupais e se caracteriza como um recurso para compreender o processo de constituição das percepções, atitudes e representações sociais de grupos humanos. A ALFIN, no Projeto de Inclusão Digital dos ACS sergipanos, realizou-se ao final do Curso de Informática Básica, estruturado via Software Livre e ministrado por multiplicadores escolhidos na comunidade, de cada município. Os conteúdos versaram sobre noções básicas de utilização do hardware e do software, a fim de garantir um bom desempenho no processo de Alfabetização Informacional. A avaliação centrou-se na Oficina de ALFIN por sua capacidade de expressão, também, dos conteúdos do Curso de Informática Básica, pré-requisito da mesma. Esta foi oferecida a distância, durante um período de trinta dias, com carga horária de vinte horas. Os conteúdos foram disponibilizados na página do Projeto8, via mediação de tutoria on-line. Sua estrutura foi composta de quatro movimentos: 1º) aprendendo a pesquisar – abordando-se os aspectos da informação, como: onde encontrá-la e como saber de sua confiabilidade ou não; 2º) aprendendo a escolher - buscou-se demonstrar as formas de refinamento em uma pesquisa na internet; 3º) aprendendo a produzir – criaram-se situações concretas de trabalho de produção de conhecimentos e de informações; e 4º) aprendendo a comunicar – trabalhando-se os conceitos de comunicação colaborativa e o modelo de comunicação todos-todos (Mendonça, 2008), buscou-se demonstrar as possibilidades de utilização de redes sociais e vídeos em suas práticas educativas. Dentre os sujeitos que participaram, foi selecionada, intencionalmente, uma amostra de dez ACS, entre aqueles que mais se destacaram no desempenho das atividades do Projeto Inclusão Digital. O grupo, portanto, teve uma composição 940

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Disponível em: <http:// www.inclusaodigital.unb.br>.

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heterogênea, com sete mulheres e três homens, na faixa etária entre 19 e 55 anos, e com nível de escolaridade que variou entre o 1º grau incompleto e o 2º grau completo. O Grupo focal, com duração de uma hora e meia em cada sessão, possibilitou o registro do discurso dos ACS e a identificação e análise das seguintes dimensões que constituíram o roteiro que orientou as discussões: as mudanças ou não percebidas pelos sujeitos, após a Oficina de ALFIN, uma vez que através desta os elementos do curso de informática básica também se expressaram; as facilidades e dificuldades no decorrer da Oficina; facilidades e dificuldades na busca de informações éticas e confiáveis em sítios da internet; e o auxílio das TIC no processo de trabalho, com as comunidades por eles atendidas. a) Facilidades encontradas pelos ACS na execução das atividades da Oficina Achei as informações com uma linguagem fácil de entender. O que não entendi, procurei na Internet. O que gostei mais foi que os exemplos eram dentro do que fazemos enquanto Agente Comunitário de Saúde. (ACS 1) Gostei dos exemplos e da forma que as informações foram ‘passadas’. Quando vi os exemplos tomei até um susto porque não imaginava que na Oficina teríamos as nossas tarefas como ACS, como exemplo. (ACS 10)

As falas dos ACS 1 e 10 confirmam a preocupação do Projeto quanto à educação comunicacional, já que a adequação da linguagem utilizada na elaboração dos conteúdos e atividades, relacionada ao grau de instrução formal dos sujeitos e ao grau de acessibilidade à informação, fortalece o processo de aprendizagem. Reforça a ideia de que os conteúdos fizeram sentido para se iniciar um processo de reflexão dos sujeitos sobre as suas atividades, pois os conteúdos apresentados diziam respeito às práticas profissionais dos ACS, o que os conduziu a buscarem informações daquilo que não se fez claro e, possivelmente, a tomarem novas decisões, no sentido de transformarem a situação em que se encontravam, na busca de autonomia. A Oficina, ao problematizar o cotidiano dos sujeitos, em uma linguagem adaptada ao contexto cultural dos ACS, pôde auxiliar na compreensão das informações e reforçou o sentimento de pertencimento e valorização do seu trabalho, enquanto importante prática social, no campo da saúde coletiva. Assim, os sujeitos se reconhecem nos contextos sociais em que estão inseridos, propiciando que se percebam a partir de uma outra perspectiva, e possam valorizar as suas práticas sociais. b) Dificuldades encontradas pelos ACS da Oficina de ALFIN Minha maior dificuldade foi saber mexer direito no computador. Depois da Oficina eu não pratiquei muito os conhecimentos passados pelo professor (multiplicador) e acabei esquecendo as informações que ele me passou. (ACS 1) Fiquei muito interessada desde o início e gostei muito do projeto, mais, como nunca tinha nem chegado perto de um computador, fiquei com muita dificuldade de lembrar dos passos que o professor ensinou para ligar o computador e acessar a internet. (ACS 3)

As falas dos ACS 1 e 3 remetem-nos a refletir sobre a necessidade da prática cotidiana da utilização das TIC, pois, para que a informação seja incorporada ao arcabouço de conhecimentos dos sujeitos, fazse necessária a utilização constante desses conteúdos, a fim de que sejam incorporados no seu cotidiano. Estas falas suscitam também a necessidade de se rever e ampliar a carga horária da Oficina de Informática Básica em Software Livre, em vista de um maior domínio das habilidades de utilização das TIC para continuar o processo de formação, de maneira positiva.

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A Oficina de Informática Básica poderia ter sido melhor se o rapaz (multiplicador) fosse melhor preparado para atender nossas necessidades. Entrei sem saber nada sobre computador e de como usar sabia menos ainda, estava cheia de vontade em aprender, mas logo fiquei desestimulada por que o professor (multiplicador) era muito despreparado, não é que ele não soubesse o que estava ensinando, o problema é que ele não sabia como ensinar, ele atropelava tudo porque alguns já sabiam alguma coisa e outras não sabiam nada, como eu. Quando cheguei na Oficina de ALFIN tive muita dificuldade. (ACS 8)

A fala do ACS 8 corrobora a preocupação com a aquisição de habilidades mínimas de informática e amplia nossa expectativa em relação à preparação e o nível de domínio didático/pedagógico dos multiplicadores das oficinas. Ressaltamos que a seleção dos multiplicadores do Projeto obedeceu ao princípio de territorialidade, também atribuído aos ACS. Essa escolha se justifica porque, residindo na comunidade, o multiplicador teria o conhecimento prévio das matrizes culturais, sociais e informacionais dos ACS, o que facilitaria, em tese, a contextualização das informações às realidades vividas por eles, considerando que os sujeitos aprendem mais facilmente quando os conhecimentos compartilhados são ressignificados, a partir das experiências já vividas pelos envolvidos em ações educativas (Freire, 1977). Apesar de os multiplicadores não terem sido sujeitos da Oficina de ALFIN, e sim do Projeto maior, o de Inclusão Digital dos ACS, corroboramos com as colocações dos ACS acerca dos limites desses profissionais – com formação básica de nível médio, alguns não detinham um conhecimento amplo da informática e desconheciam as práticas de informação, educação e comunicação. Questão a ser pensada, pois além de conhecer as comunidades, sua cultura, seus problemas e dificuldades, a formação de tutores, orientadores ou multiplicadores para estas ações deve privilegiar, também, metodologia de trabalho com grupos sociais, de informação, educação e comunicação. Os multiplicadores teriam de abordar as temáticas no contexto dos sujeitos, problematizando-as articuladas à prática profissional dos ACS, junto à comunidade, na relação do processo comunicacional todos-todos, de forma plural (Mendonça, 2008). c) Dificuldades na busca de informações éticas e confiáveis na internet A Oficina foi muito importante para inserir a gente no mundo da tecnologia. O que é ruim é a gente não ter a continuidade do curso porque o que tivemos até agora não deu conta das nossas necessidades. Acho muito complicado a pesquisa na Internet porque a gente tem que ficar atento para saber se aquela informação é confiável. (ACS 10) Pesquisar no, como é mesmo o nome, no google, sei lá se o nome é esse mesmo (risos envergonhados da ACS) é mais fácil. Mais quando se trata da pesquisa na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) o negócio muda de figura porque achei muito complicado pesquisar nela. Pra achar o que você quer tem apertar um monte de botões. (ACS 4)

A infoinclusão social não acontece somente quando os sujeitos dominam as competências técnicas sobre a máquina e a navegação na internet. É imprescindível que sejam incorporadas habilidades para aprender a aprender, aprender a identificar as informações confiáveis para uma posterior utilização e publicização de forma ética. Apesar do ACS 4 ter afirmado que achou fácil pesquisar no google, apresenta dificuldades em pesquisar informações nas bibliotecas virtuais de saúde. A necessidade de continuidade das Oficinas para que possam, de fato, desenvolver as habilidades e competências de forma efetiva é aspecto recorrente nas falas dos ACS. Esse dado chama atenção para que, nas próximas ofertas, seja disponibilizado mais tempo nas atividades de modo geral e, em especial, naquelas que envolvam pesquisas nas bibliotecas virtuais de saúde, já que boa parte das informações disponíveis nos sítios recuperados pelos motores de busca, a exemplo do google, não possibilita a validação da informação encontrada. Sobre a pesquisa nas bibliotecas virtuais de saúde, referida pelo ACS 4, é importante destacar que estas são bancos de dados e, como tal, utilizam-se dos chamados operadores de busca, tais como o: 942

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+, -, e/ou outros. Estes comandos dizem a um sistema de bases de dados como as palavras da expressão da pesquisa se relacionam umas com as outras, permitindo o refinamento da busca. Tais conhecimentos foram trabalhados na oficina de ALFIN, porém, destacamos que as bibliotecas virtuais são estruturadas para a utilização de pesquisadores, tendo em vista as informações divulgadas serem decorrentes: de pesquisas científicas das principais universidades brasileiras e de outros países, do Ministério da Saúde do Brasil, enfim, das instituições de pesquisa. Esse perfil das bibliotecas virtuais dificulta a pesquisa em banco de dados, por parte dos cidadãos pouco familiarizados com esta prática. d) Facilidades na busca de informações éticas e confiáveis Não achei nada difícil porque no curso eu aprendi que devemos procurar sites que sejam das universidades, da secretaria de saúde, das bibliotecas de saúde e outras. (ACS 2) Achei fácil pesquisar no google uma informação de saúde para passar para a minha comunidade, mais achei muito complicado achar informações nas bibliotecas de saúde da internet. (ACS 6)

O ACS 2 informou que, após a Oficina, aprendeu a localizar informações em saúde, em páginas da internet de instituições de saúde. A Oficina de ALFIN, realmente, se preocupou em trabalhar com conhecimentos e informações validadas por instituições confiáveis. Essa realidade impacta positivamente nas comunidades por eles atendidas, visto que a informação publicizada é atual, segura e validada por pesquisadores. As falas desses ACS remetem não só ao desempenho da habilidade de aprender a buscar informações nos sítios oficiais, mas à centralidade do ato de aprender. A relação dialógica no processo de aprendizagem não significa somente passar as informações tanto do multiplicador para ele (falas anteriores), quanto dele para a sua comunidade. A fala do ACS 6 suscita a percepção tanto de “aprender” como de “ensinar a aprender”, porém não problematizadas. e) Como as tecnologias auxiliam no processo de trabalho dos ACS com as comunidades Semana passada passei um vídeo sobre cigarro para a minha comunidade. Eles ficaram impressionados com o pulmão preto pelo cigarro. Achei que eles se impressionaram mais do que se eu falasse do mal que o cigarro faz. Gostei tanto que estou procurando um vídeo pra falar sobre drogas porque tem muitos jovens que fumam maconha por aqui. (ACS 7) No curso eu aprendi que eu posso fazer um folheto pra distribui nas visitas domiciliares. Gostei porque às vezes falta folheto e eu fico sem ter o que mostrar pra pessoas. Pedi pra minha coordenadora deixar imprimir na impressora do posto de saúde. (ACS 3) Depois que fiz a oficina e aprendi como usar os recursos do computador e da internet, não consigo nem me lembrar de como eu era antes porque tudo isso facilitou muito a minha vida como ACS. Embora eu não tenha computador em casa, quando preciso vou a uma lan house ou no telecentro e pesquiso, como nem sempre posso imprimir, copio a informação em um caderno e depois levo para as famílias que visito. Eu me sinto incluída digitalmente porque hoje eu já faço uso do computador e da internet para melhorar minha vida profissional. (ACS 9)

A importância de um projeto de infoinclusão social pode ser mensurada na medida em que os infoincluídos efetivamente utilizem os conhecimentos adquiridos em seu cotidiano e, em especial, em sua formação/prática profissional. As falas destes ACS traduzem que a Oficina possibilitou o domínio de competências que foram além das simples aquisição de habilidades tecnológicas, demonstrando o domínio de conhecimento e autonomia suficiente para a resolução de problemas, a partir da construção de estratégias alternativas para a melhoria de suas atividades. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A mudança de percepção nesta relação se processa na “problematização de uma realidade concreta e [em suas] contradições [e] implica que haja uma apropriação do contexto vivido pelos indivíduos, ou seja, uma inserção nele” (Freire, 1977, p.60). Significa reconhecer o interagir, que é mais que simplesmente enviar e responder mensagens, entender emissão e recepção como espaços recursivos, já que emissor e o receptor passam a fazer parte de um processo de relações interligadas pelos diálogos. Perceber e avaliar os resultados e o impacto do uso destes conteúdos nas famílias sob suas responsabilidades e, sobretudo, produzir novos materiais a partir das pesquisas para utilização em sua prática de ACS, expressam a dialogicidade colocada por Freire. Este constitui um passo importante no processo de infoinclusão social, baseado na construção da autonomia mediada pelas TIC. Desse modo, ampliam-se as possibilidades de construção, reconstrução e aperfeiçoamento das práticas comunicativas, tornando-as mais eficientes no contato do ACS com os sujeitos por ele assistidos e da realidade em que elaboram. f) Mudanças ou não percebidas por eles após a Oficina de ALFIN Comecei a perceber que a internet não serve apenas para mandar e-mail, deixar mensagens no orkut, ela serve também pra eu me preparar melhor para o meu trabalho. Agora sei que posso pesquisar um vídeo de saúde no youtube. As possibilidades que a internet pode me dar são muito importantes para a minha vida. (ACS 8) Descobri que posso continuar estudando e conseguindo conhecimento sem precisar do professor o tempo todo. Isso é muito bom. Mas, ainda tenho muita dificuldade porque não pratico muito, mais sempre que posso vou na lan house e acesso o que está lá no site do projeto de inclusão digital. (ACS 5)

A percepção ampliada do próprio (re)conhecimento da realidade é uma conquista dos sujeitos aprendizes. As práticas de infoinclusão social devem ter, neste ponto de chegada, um de seus objetivos, especialmente aqueles referentes à avaliação, durante e após sua formação, não se restringindo apenas às avaliações cognitivas e/ou referentes ao aprendido enquanto comandos e técnicas, apesar de estes serem pré-requisitos importantes para o desenvolvimento cognitivo na ALFIN. Entretanto, o que muda na visão dos sujeitos aprendizes é a concepção de alfabetização digital. O modelo de comunicação todos-todos é percebido no processo de ALFIN como algo positivo, relativizando a relação um-todos, comum no processo de aprendizagem formal e nos meios de comunicação de massa. Por isso, as políticas e os programas de ALFIN que propõem ações de formação, nesta concepção de aprender, devem ter continuidade. É importante que as políticas orientem, incentivem e financiem os diversos setores do serviço público na construção de programas de formação continuada que atualizem seus colaboradores e prepare-os melhor para responderem às novas demandas sociais. As falas comprovam que ao oferecerem programas de infoinclusão social, o Estado e as instâncias públicas devem estar preparados para atenderem aos novos incluídos, agora com novas necessidades, novos objetivos e novas demandas por formação e especialização, portanto, com mais validade científica.

Considerações finais O decorrer da investigação deixou claro que o processo de infoinclusão social é muito mais complexo do que imaginávamos, no início das ações do Projeto. Embora iniciativas como as do ‘Projeto de Inclusão Digital dos Agentes Comunitários de Sergipe’ venham sendo executadas, com sucesso, em diversos lugares no país, precisamos de políticas rigorosas e contínuas que possam transformar de fato o processo de infoinclusão social do cidadão em agir comunicativo. A inserção das TIC no processo de construção de uma razão comunicativa pressupõe um exercício de compreensão do papel, das circunstâncias e do sentido prático das TIC, no cotidiano dos sujeitos. 944

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Retomando Freire, podemos afirmar que o compromisso pedagógico e a inserção das TIC no cotidiano dos ACS devem partir de uma compreensão da leitura de mundo destes sujeitos e do lugar das TIC na construção significativa do cotidiano. Com base nas falas dos Agentes, propomos que as ações de infoinclusão social devem – partindo dos saberes pré-teóricos, que orientam o sentido e o significado das TIC no cotidiano sociocultural e sociotécnico dos mesmos – incentivar e desenvolver redes de diálogo autônomas, interativas e colaborativas entre estes ACS, muito além da mera utilização da tecnologia. A concepção de infoinclusão social proposta como política de governo deve ser incorporada à prática cotidiana dos sujeitos, nas práticas socioculturais das quais participam na sociedade. Deve, também, garantir a democratização do acesso à internet, via banda larga, e a oferta de espaços gratuitos de acesso, assim como a construção de espaços virtuais de cidadania, tais como o governo eletrônico, entre outros, e considerar, em seus fundamentos, o mundo vivido e o agir comunicativo como norteadores na construção da autonomia e libertação dos sujeitos. Dessa forma, não cabem mais ações/ projetos no campo da infoinclusão social que enfatizem apenas o aspecto objetivo da ação educativa, isto é, que considerem suficientes disponibilizar aparatos tecnológicos para os indivíduos, desconsiderando o papel da razão comunicativa na efetivação de uma educação libertadora, com base na objetivação de uma prática dialógica, consensual e colaborativa dos sujeitos partícipes desta ação e nas relações aí estabelecidas. Só, assim, as TIC poderiam contribuir para a compreensão do próprio mundo da vida.

Colaboradores Os autores Pablo Boaventura Sales Paixão, Valéria Pinto Freire, Maria de Fátima Monte Lima, Ronaldo Nunes Linhares, Ana Valéria Machado Mendonça e Maria Fátima Sousa participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do manuscrito. Referências BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sociedade da informação no Brasil: livro verde. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000. CERVERÓ, A.C. Alfabetización en información y lectura en los nuevos entornos educativos. In: SIMEÃO, E.; MIRANDA, A. (Orgs.). Alfabetização digital e acesso ao conhecimento. Brasília: UnB/CID, 2006. p.29-40. FREIRE, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1986. ______. A importância do ato de ler. In: A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3.ed. São Paulo: Autores Associados, Cortez, 1983. p.102-15. ______. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ______. Extensão ou comunicação? 12.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa 1: racionalidad de la acción y racionalización social. 4.ed. Madrid: Taurus, 2001. v.1-2. ______. O discurso filosófico. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. LIMA, F.M.L. No fio da esperança: políticas públicas de comunicação e tecnologias da informação e da comunicação. Maceió: Edufal, 2007. MENDONÇA, A.V.M. Informação e comunicação para inclusão digital: análise do programa GESAC: Governo Eletrônico Serviço de Atendimento ao Cidadão. Brasília: UnB/CID, 2008. SORJ, B. Brasil@povo.com: a luta contra a desigualdade na sociedade de informação. Rio de Janeiro: Unesco, Zahar, 2003.

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Apresentam-se os resultados iniciais do projeto de Inclusão Digital de agentes comunitários de Saúde (ACS) de Sergipe, Brasil, quando da realização das práticas de alfabetização em Informação e Comunicação (ALFIN), por meio de Oficinas desenvolvidas como estratégia de aproximação entre os ACS de Sergipe e as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Identificam-se caminhos efetivos de infoinclusão social, fundamentando-se na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e nos estudos de Paulo Freire. Utiliza-se a abordagem de pesquisa qualitativa e a tipologia do Estudo de Caso e do Grupo Focal para o esquadrinhamento das práticas de ALFIN a distância.

Palavras-chave: Educação. Comunicação. Saúde. Alfabetização digital. Inclusão social. The practice of literacy in Health Information and Communication: the opinion of the community health agents about the Digital Inclusion project in Sergipe, Brazil This article presents the initial results of the Project of Digital Inclusion of Community Health Agents (CHA) of Sergipe, Northeastern Brazil, when they carried out the practice of literacy in Information and Communication. This happened through workshops developed as a strategy for putting the CHA of Sergipe in contact with the Information and Communication Technologies (ICT). Effective ways of social infoinclusion are identified, based on Habermas’ Theory of Communicative Action and on Paulo Freire’s thought. The qualitative approach was used, as well as the typology of Case Study and Focus Group for scrutinizing the practices of literacy in Information and Communication, using distance learning.

Keywords: Education. Communication. Health. Digital Literacy. Social inclusion. La práctica de la Alfabetización en Información y Comunicación en Salud: la mirada de los agentes comunitarios de Salud en el proyecto de Inclusión Digital en Sergipe, estado del nordeste de Brasil Este artículo presenta los primeros resultados del proyecto de Inclusión Digital de agentes comunitarios de salud (ACS) de Sergipe, Brasil, en el ejercicio de la práctica de la alfabetización en Información y Comunicación (ALFIN) a través de talleres desarrollados como una estrategia para aproximar los ACS de Sergipe y las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC). Busca identificar formas eficaces de inclusión social con base en la Teoría de la Acción Comunicativa de Habermas y en el pensamiento de Paulo Freire. Utiliza el enfoque cualitativo y la tipología de los Estudios de Caso y del Grupo de Enfoque para examinar las prácticas de ALFIN a distancia.

Palabras clave: Educación. Comunicación. Salud. Alfabetización digital. Inclusión social. Recebido em 20/08/10. Aprovado em 07/06/11.

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Representação política e interesses particulares na saúde: o caso do financiamento de campanhas eleitorais pelas empresas de planos de saúde privados no Brasil Mário Scheffer1 Lígia Bahia2

Introdução Diversas evidências são constantemente evocadas para demonstrar que as organizações e empresas de natureza privada, lucrativas ou filantrópicas, que atuam no setor saúde no Brasil, influenciam na definição das políticas e nas legislações setoriais. No entanto, são complexos os dispositivos acionados para proteger ou favorecer a atuação desses grupos que estabeleceram, ao longo do tempo, elos bastante estreitos com o Poder Executivo. O Estado, por meio de políticas econômicas, instrumentos jurídico-administrativos e outras intervenções, contempla interesses de estabelecimentos de saúde (hospitais, clínicas e unidades de apoio diagnóstico e terapêutico), de empresas que comercializam planos e seguros de saúde, e de empresas do complexo industrial da saúde, especialmente a indústria farmacêutica e de equipamentos. Durante o regime militar, as relações entre os grupos econômicos e os ocupantes de cargos governamentais – os denominados “anéis burocráticos” – uniram os setores industriais exportadores, contratadores de obras e extrativoexportadores. O grande capital multinacional e o capital financeiro se articularam aos funcionários do Estado (civis e militares) para garantir seus interesses e sustentar a nova etapa da acumulação e do crescimento econômico. Relações antes estabelecidas por meio de partidos políticos que possuíam alguma influência no Legislativo, transferiram-se para o interior dos ministérios e das autarquias a eles subordinadas, sob a tutela da Presidência da República (Cardoso, 1975). No contexto de redemocratização do país, a plataforma essencialmente conservadora dos grupos empresariais privados foi confrontada com a agenda reformista apresentada pelo movimento sanitário, pelas entidades de profissionais de saúde, instituições de ensino e pesquisa, movimentos populares e associações da sociedade civil, que interferiram decisivamente no processo de debate, elaboração e aprovação da Constituição de 1988. Naquele momento, envolto na atmosfera carregada de tensões impostas pelo setor privado, o texto constitucional introduziu a concepção da relevância pública da saúde. No entanto, a insígnia da complementaridade do privado, sob a qual se sentiram abrigados segmentos empresariais de distintas naturezas e competências, culminou por não especificar, no texto constitucional, o âmbito de sua COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, Cerqueira César. São Paulo, SP, Brasil. 01.246-903. mscheffer@uol.com.br 2 Laboratório de Economia Política da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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abrangência. Assim, a heterogeneidade dos planos e seguros de saúde privados – que, no final dos anos 1980, já eram responsáveis por parte da cobertura da assistência médico-hospitalar de trabalhadores especializados, dos funcionários de empresas estatais e de uma parcela considerável de servidores públicos das três esferas de governo – podia ser atribuída à ausência de regulação e de normas explícitas para a atuação desse setor. A inclusão do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição Federal representou a vitória das teses aprovadas na VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986. O SUS foi apoiado pela aliança entre os partidos com um perfil, então, progressista (PSDB, PT, PDT, PCB, PCdoB e parte do PMDB) no Congresso, aos quais se uniram o movimento sindical e alguns movimentos populares (como, por exemplo, o Plenário Pró-participação Popular na Constituinte). Essa coalizão conseguiu fazer frente aos setores mais conservadores do PMDB, PTB, PDS e PFL, que, organizados em torno do “Centrão”, defendiam os interesses do setor privado da saúde. Segundo depoimento do médico e ex-deputado federal Eduardo Jorge, dois fatores teriam contribuído para a vitória inicial do movimento sanitário na Constituinte: 1) o fato de esse movimento, ao contrário do setor privado, ter iniciado o processo constituinte com uma proposta já consolidada; e 2) a opção, por parte dos setores conservadores, em priorizar a discussão temática das questões relativas à ordem econômica, o que permitiu que um arco de alianças envolvendo o centro e a esquerda dominasse a composição das comissões e subcomissões da área social durante a tramitação no Legislativo (Pereira, 1996). O deslocamento do centro das decisões sobre as políticas públicas, do Poder Executivo para o Parlamento, conferiu maior visibilidade aos interesses dos grupos privados da saúde. O projeto de elaboração da Reforma Sanitária brasileira também expôs a relação entre os estabelecimentos filantrópicos e privados e as políticas públicas de Previdência Social, não apenas em termos da remuneração dos serviços prestados, mas também em relação às acepções sobre o caráter de mercadoria dos procedimentos médico-hospitalares. Ao longo da consolidação da democracia, esses mesmos grupos passaram a investir sistematicamente nos espaços de representação política para viabilizar suas demandas particulares. Ao mesmo tempo, permaneceram atentos a iniciativas de caráter normativo emanadas do Poder Executivo. Não por acaso, cavaram o front da disputa pela nomeação de seus representantes diretos em cargos da saúde considerados estratégicos à preservação e à ampliação de seus negócios. Diante da necessidade de subsidiar o conhecimento sobre a repercussão das pressões desse segmento empresarial sobre o Parlamento, o presente trabalho dedica-se a sistematizar informações referentes a doações dos planos e seguros de saúde para campanhas eleitorais. Para tanto, se apoia na pesquisa dos dados oficiais processados pelo TSE, na consulta da legislação e na literatura sobre o financiamento das campanhas eleitorais e as perspectivas da reforma política

O “caixa dois” nas eleições As relações entre o Parlamento e grupos organizados da sociedade civil não são facilmente evidenciáveis. São distintas as lógicas que movem os grupos econômicos setorizados, daquelas que determinam a atuação dos que defendem interesses mais coletivos e difusos. Já os planos estratégicos dos parlamentares visam, sobretudo, dar visibilidade à sua atuação, com o objetivo final da reeleição (Pilatt, 2006). Mas as preocupações em torno da necessidade de ampliar o controle social sobre o Parlamento têm proporcionado mudanças significativas na percepção, análise de informações e aprimoramento da legislação eleitoral. O principal problema sempre foi a existência de dois caixas de campanha e de uma teia de relações entre os candidatos a mandatos políticos e os grupos de interesses particulares. A utilização de “recursos não contabilizados”, mais conhecida como “caixa dois”, é prática corrente no Brasil. A Lei Eleitoral (Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009), que entrou em vigor em 2010, trouxe avanços, mas não permite que a Justiça Eleitoral trace o caminho seguido pelos recursos desde o doador até o último destinatário. São frágeis, portanto, os mecanismos capazes de coibir o “caixa dois” e as doações ocultas. Existe, ainda, a possibilidade de os partidos assumirem o pagamento das despesas de candidatos. Como 948

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os partidos têm um leque mais aberto de financiadores, a utilização, mediada pelas legendas, de fontes de financiamento que estariam vedadas aos candidatos, impede a identificação dos reais destinatários.

As doações eleitorais registradas O TSE divulga, em sua página na internet (www.tse.gov.br), dados sobre a prestação de contas das eleições desde 2002. Ainda que em caráter preliminar e exploratório, são possíveis levantamentos sobre o financiamento de campanhas e a relação entre doadores (empresas e pessoas físicas) e candidatos eleitos. Abre-se a perspectiva de se exercer um monitoramento mais sistemático sobre a atuação dos parlamentares, porém recomenda-se o exame cauteloso de inferências extraídas das informações sobre os doadores e receptores do financiamento de campanhas eleitorais. Permanece incalculável a persistência e o impacto do “caixa dois” e das inúmeras possibilidades indiretas de se contribuir para os comitês de campanha, como: a cobertura indireta de custos de produtos, serviços gráficos, campanhas publicitárias, imóveis para comitês, dinheiro vivo etc. Além disso, é preciso sublinhar que não é facilmente detectável a relação causal entre o financiamento das campanhas e a atuação do parlamentar em defesa de determinados interesses políticos e econômicos. É razoável supor que a doação possa ter sido inspirada nos compromissos anteriores do parlamentar com o interesse em questão, como ocorre com os representantes das bancada temáticas do parlamento, a exemplo da bancada ruralista. Ainda assim, o mapeamento inicial das relações entre as empresas de planos e seguros de saúde e os representantes políticos é útil para que as entidades da sociedade civil possam acompanhar com mais precisão a atuação dos parlamentares e ocupantes de cargos majoritários. O volume de financiamento tem relação direta com a chance de o candidato se eleger, e a contribuição de forma desigual para as campanhas pode contribuir para a deterioração da representação democrática. Por isso, é fundamental verificar os possíveis efeitos desse tipo de “incentivo” sobre a atuação parlamentar. Isso requer monitoramento constante e acompanhamento individualizado da produção parlamentar e dos ocupantes de cargos majoritários. O atendimento de interesses particulares em detrimento do bem público e do interesse coletivo é um conflito que pode surgir na prática cotidiana do parlamentar, na apresentação de projetos de lei e outras proposições, nas comissões parlamentares e nos posicionamentos públicos. Cabe às comissões permanentes e temáticas, comissões especiais e comissões parlamentares de inquérito (as duas últimas têm duração definida) a análise dos projetos que tramitam no Congresso, além de estudos e investigações sobre temas definidos. Os parlamentares se veem diante de variados “cardápios” de composição de interesses e agentes sociais. Geralmente, ocupam espaço na agenda dos parlamentares: a defesa dos programas partidários, os interesses das bases eleitorais regionais e locais, a interlocução com o Poder Executivo, as demandas de movimentos específicos (gênero, patologias, deficiências físicas, discriminações étnicas, raciais, por orientação sexual etc.), mas também as reivindicações de grupos empresariais setorizados e a formulação da legislação sobre temas econômicos e sociais nacionais. Embora a natureza mais paroquial ou nacional do Congresso, vis-à-vis suas atribuições e prerrogativas, assim como a composição e a representatividade de suas bancadas, seja objeto de pesquisas sistemáticas (Rodrigues, 2002; Santos, 1998), são tênues as evidências sobre as relações entre poder econômico e eleições. Daí a relevância de se problematizar a associação entre estrutura do financiamento de campanhas e os riscos e grau de dependência entre os doadores e seus beneficiários.

Metodologia Desde as eleições de 2006 é possível uma aproximação mais realista da participação dos doadores em campanhas eleitorais, com informações mais consistentes do que as disponibilizadas nas eleições anteriores. O TSE mantém on line o Sistema de Divulgação dos Financiamentos de Campanha Eleitoral para as Eleições. Este instrumento possibilita a consulta pública sobre financiamento da campanha, no caso das eleições de 2006. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Para identificar as empresas de planos de saúde privados na condição de doadoras, utilizou-se a relação de empresas operadoras de planos de saúde (razão social e CNPJ) em atividade, oficialmente inscritas e registradas na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no ano analisado - informação disponível no site institucional www.ans.gov.br. Foram pesquisados, individualmente, no site do TSE, cada um dos dois mil e setenta CNPJs e razões sociais de operadoras ativas cadastradas na ANS até o ano de 2008. A pesquisa foi realizada em dois campos disponíveis no site TSE. Nas informações por “doador”, foi possível obter, a partir da relação do cadastro da ANS, quais foram os planos de saúde doadores, os candidatos beneficiados e o montante doado pela empresa de plano de saúde para cada candidato. Estas informações foram cotejadas e conferidas com as informações disponíveis no site do TSE, no campo “por candidato”, no qual foi possível obter a relação de todos os doadores para cada candidato. Foram, assim, agrupadas informações referentes a empresas de planos de saúde doadoras (razão social, CNPJ e total doado) e candidatos eleitos e não eleitos beneficiados pelas empresas de planos de saúde (nome, partido, cargo eletivo, razão social do(s) doador(es) e total recebido).

Um levantamento exploratório Nas eleições de 2006, as empresas de planos de saúde doaram, oficialmente, mais de sete milhões de reais aos candidatos aos cargos de deputados estaduais, deputados federais, senadores e governadores. Foram identificadas, em 2006, doações contabilizadas de 62 empresas de planos de saúde. Ao se analisar por segmento de atuação dos planos de saúde, fica evidente a predominância da participação das cooperativas médicas, que foram responsáveis por 75,7% do total das doações, contra 24,3% das empresas de Medicina de Grupo. Também chama a atenção a completa ausência, nas doações contabilizadas, das seguradoras de saúde entre os doadores (Sul América, Bradesco etc.), talvez porque sejam apenas um ramo de empresas maiores que atuam com seguros em geral ou no mercado financeiro. No caso dos planos de saúde de autogestão, também não foi computada nenhuma doação nas eleições de 2006, embora algumas empresas que mantêm planos próprios para seus empregados tenham contribuído (na condição de empresa, não de plano de saúde) com campanhas eleitorais. Já os hospitais filantrópicos que comercializam planos de saúde próprios são proibidos, pela legislação eleitoral, de doar recursos para campanhas eleitorais. As três maiores empresas doadoras são cooperativas médicas/Unimeds (Federação das Unimeds do Estado de São Paulo, Unimed Cooperativa Médica, e Unimed do Estado do Paraná). Juntas, doaram mais de 50% do total dos recursos declarados pelas empresas do segmento de assistência suplementar. Somente a Federação das Unimeds do Estado de São Paulo doou, aproximadamente, 40% do total. Em seguida, em quarto e quinto lugares, estão dois planos de Medicina de Grupo: Medial Saúde (incorporada à Amil em 2009) e Golden Cross. A participação das Unimeds contrasta com a inexpressiva contribuição declarada, por exemplo, pela Amil, que já era, em 2006, a maior empresa de Medicina de Grupo e ficou em 51º lugar no ranking de doações. Em 2006, foram eleitos 28 deputados federais que tiveram, entre seus doadores declarados, empresas de planos de saúde. Dentre os eleitos, apenas seis têm profissões diretamente ligadas à saúde, todos médicos. Essas doações parecem ter sido relevantes para o apoio financeiro às campanhas de determinados parlamentares eleitos. Dentre os 28 deputados federais inicialmente eleitos com apoio de empresas de planos de saúde privados, mais o suplente conduzido à vaga, 14 integravam a Frente Parlamentar da Saúde. Fundada em março de 1993, a Frente, segundo seu estatuto, visa “trabalhar, solidária e coordenadamente, para transformar em realidade viva e concreta do povo brasileiro os princípios doutrinários e constitucionais que entendem a Saúde como o bem mais precioso da vida, direito social inalienável e responsabilidade maior do Estado”. A Frente contava, em junho de 2007, com a adesão de 248 deputados federais e 27 senadores. Vale destacar sua participação decisiva na aprovação de importantes proposições em defesa do Sistema Único de Saúde, a exemplo da Emenda Constitucional nº 29 e outros embates para preservar a arquitetura 950

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jurídico-legal do sistema de saúde aprovada pela Constituição de 1988. Porém, a defesa de interesses do setor privado, especialmente na área de prestação de serviços, também integra o programa de trabalho desses parlamentares. Em geral, os discursos de membros da Frente Parlamentar evocam as empresas de planos privados de saúde para argumentar a favor da defesa do equilíbrio do SUS (Garcia, 2004). Nesse sentido, as informações sobre a doação de planos de saúde privados não autorizam uma inferência automática entre a origem da doação e a vocalização, a posteriori, na atuação de membros da Frente Parlamentar em defesa dos interesses exclusivos dessas empresas. Quanto aos deputados estaduais, dentre os eleitos, 27 receberam doações de empresas de planos de saúde, sendo nove de São Paulo, seis de Santa Catarina, cinco do Paraná e quatro do Rio Grande do Sul. Os Estados de Minas Gerais, Amazonas e Sergipe elegeram apenas um deputado cada, com ajuda dos planos de saúde. Nos demais estados, nenhum deputado estadual eleito declarou doação de empresa de plano de saúde. Apesar de as Assembléias Legislativas e os Executivos estaduais não serem espaços decisivos da regulamentação dos planos de saúde, matéria de âmbito nacional, a eleição de deputados estaduais (assim como de vereadores, governadores e prefeitos) comprometidos com o setor de assistência suplementar guarda duas principais lógicas: 1) o interesse dos planos de saúde nas políticas fiscais estaduais e municipais, que podem se traduzir em isenções e benefícios para as empresas de planos de saúde, como já ocorre com algumas vantagens locais proporcionadas às cooperativas médicas e medicinas de grupo; 2) a ampliação do leque de articulações políticas que extrapolam os limites dos municípios e estados, mas que passam a contar com o apoio das lideranças políticas locais. Conforme as doações contabilizadas, três dos governadores eleitos em 2006 foram apoiados por empresas de planos privados de saúde - no caso, a Medial, Federação das Cooperativas Médicas do Rio Grande do Sul e Ascon - Associação de Amparo à Qualidade Médica -, totalizando, aproximadamente, trezentos e trinta mil reais. Cumpre ressaltar, portanto, com base nos registros oficiais do TSE, a preferência das empresas do segmento de assistência suplementar pelo apoio às candidaturas proporcionais. Também foram identificados inúmeros candidatos não eleitos, aos diversos cargos em disputa nas eleições de 2006, que foram beneficiados por doações de planos de saúde privados.

As doações pluripartidárias Ao se analisar a distribuição de recursos entre os partidos dos candidatos que foram beneficiados com doações dos planos de saúde, independente de terem ou não sido eleitos, percebe-se que o partido mais beneficiado foi o DEM (antigo PFL), com 24,53% das doações (R$ 1,75 milhão), seguido do PSDB (com 17,98% ou R$1,28 milhão) e o PV (com 16,33% ou R$ 1,16 milhão). Juntos, os candidatos das três siglas receberam quase 60% das doações. Os maiores beneficiados compõem a base de partidos de oposição ao governo na Câmara na última legislatura. Na hipótese de nova proposta do Executivo para regulamentação dos planos de saúde que, supostamente, viesse a contrariar interesses empresariais, a análise da movimentação das bancadas da oposição deveria levar em conta a contribuição dos planos de saúde para campanhas de parlamentares desses partidos. Os partidos PSB, PPS, PDT e PT receberam, juntos, um quarto das doações dos planos de saúde a candidatos, com cifras que vão de R$ 301 mil (PT) a R$ 656 mil (PSB). Chama atenção a dispersão das doações: candidatos de 17 partidos diferentes as receberam sugerindo uma distribuição, do ponto de vista político-partidário, bastante diversificada das doações.

Os planos de saúde no Parlamento Os vários projetos de lei sobre planos de saúde em tramitação em 2009 eram de autoria de deputados de vários partidos políticos e tratavam, fundamentalmente, de cinco temas: 1) coberturas (alguns dispõem sobre a ampliação e outros sobre a redução da abrangência dos contratos); 2) critérios para a definição dos honorários médicos; 3) critérios para o credenciamento dos médicos; 4) regras para o COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ingresso de pacientes vinculados ou não a planos ou seguros de saúde em estabelecimentos de saúde públicos e privados; 5) provimento de recursos para conferir suporte financeiro aos estabelecimentos de saúde filantrópicos e privados. Os projetos de lei levam em conta a configuração dos planos de saúde como parte integrante do sistema de saúde brasileiro. Daí, as inclinações dos representantes políticos pela mitigação de determinados problemas e pela renúncia à responsabilidade de contribuir para a defesa de interesses públicos universais. Um mesmo partido, por vezes, o mesmo deputado, absorve demandas particularistas e contraditórias entre si. Assim, a função de representação política fica obscurecida pela preponderância da defesa de interesses de determinados segmentos político-econômicos.

A reforma política no Brasil Sem consenso entre partidos e parlamentares, uma das propostas de reforma política prevê o financiamento das campanhas eleitorais exclusivamente com dinheiro público, com a definição de que doações de pessoas físicas e empresas estariam proibidas e sujeitas à punição. Conforme a proposta, nos anos eleitorais, seriam incluídos, na Lei Orçamentária, créditos adicionais para financiar campanhas eleitorais com valores equivalentes ao número de eleitores do País. A proposta de financiamento público, embora meritória, traz a noção equivocada de que, ao ser eliminada a possibilidade de empresas privadas financiarem legalmente campanhas eleitorais, desapareceria a motivação para que elas procurassem influenciar decisões legislativas e executivas de forma a satisfazer seus interesses. A estipulação legal não eliminaria a motivação material, pois os interesses privados sempre agirão ao lado do Estado na busca da satisfação de seus pleitos. A lógica que governa o financiamento eleitoral não é a lógica das leis, mas a lógica do mercado, da oferta e da procura (Abramo, 2007). Outra crítica que pesa sobre a chamada reforma política é a de que as propostas até agora viabilizadas têm caráter apenas de reformar o sistema eleitoral, e não preveem a reforma de quem e como se exerce o poder, e dos mecanismos existentes para controlar o poder. Historicamente, a reforma política entra na pauta do Congresso e do Executivo brasileiro em momentos de escândalos, crises políticas ou de fragilidade da hegemonia do grupo que está no poder. A verdadeira reforma política não se reduz à reforma do voto, dos partidos ou da representação, mas sim à reforma das instituições políticas e do Estado, criando uma nova forma de se exercer o poder e com mecanismos de controle público do Estado. Por isso, devia partir da necessidade da ampliação da democracia participativa, dos espaços de participação dos cidadãos (Moroni, 2007).

Corrupção, lobby e loteamento de cargos No Brasil, é difícil distinguir as relações entre as redes de influência (networking/ lobbies) e o financiamento das campanhas eleitorais e corrupção. Embora esteja claro que fazer lobby não é necessariamente sinônimo de corrupção, também é evidente a percepção de que a área cinzenta mais perigosa de interpenetração entre o lobby e a corrupção é o financiamento das campanhas eleitorais. A rigor, o lobby e a corrupção seriam mutuamente excludentes. O lobby é um empreendimento caro, que mobiliza especialistas e tem resultados incertos, enquanto as práticas corruptas recorrem a meios mais diretos e eficazes. Segundo a literatura especializada, há pouco espaço para o lobby em países nos quais a corrupção é generalizada (Oliveira, 2004). O lobby é uma alternativa ao “neocorporativismo” (Werneck Vianna, 1995), uma forma de articulação de interesses já arraigada na sociedade brasileira. A organização do Estado brasileiro, muito permeável ao particularismo, contribuiu para o desenvolvimento do lobby. A existência de partidos políticos fracos também demonstra um desvirtuamento da função legislativa, que leva a uma certa confusão entre o que é público e o que é privado (privatização do público). Nos EUA, o lobby é legalizado, uma lei de 1995 determina em quais situações as empresas ou organizações (norte-americanas ou estrangeiras) devem registrar, na Câmara e no Senado, quem fará lobby sobre o Congresso e o governo, tendo como diretriz revelar abertamente os interesses legislativos e os meios financeiros envolvidos. 952

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No Brasil, a despeito do generalizado reconhecimento das práticas de lobby, não há unanimidade sobre os possíveis benefícios do enquadramento legal. Em 2009, tramitavam, a passos lentos, oito projetos na Câmara Federal que versavam sobre a regulamentação do lobby, incluindo proposta de legalização e registro da atividade dos lobistas, com prestação de contas de suas atividades. As crises no Congresso Nacional, as muitas Comissões Parlamentares de Inquérito e as denúncias sobre os critérios que favorecem determinados grupos econômicos e políticos na escolha de cargos públicos podem ser atribuídas à utilização e aceitação de mecanismos de pressão invisíveis. Na raiz do debate, situa-se a diferença entre o conceito de lobby (que estaria associado à visibilidade e transparência dos canais de comunicação da sociedade com o Poder Legislativo) e a corrupção (ilegalidade contida nos escândalos decorrentes, por exemplo, de licitações direcionadas e do tráfico de influência). Além disso, a maioria dos projetos em tramitação no Congresso Nacional tem origem no Executivo, o que induz os lobistas a atuarem nos dois poderes. Uma das práticas que mais favorece a corrupção no setor público é a distribuição de cargos sem base em critérios técnicos, visando garantir “pedaços” da máquina pública a partidos políticos ou grupos constituídos. Nesse sentido, a produção legislativa voltada a atender interesses dos planos de saúde, a suposta indicação de cargos da ANS, poderia plasmar conflitos de interesse. Adicionalmente, a atuação dos parlamentares, junto a Ministérios e órgãos do governo federal, na defesa da contratação de determinados planos privados para atender ao funcionalismo público, constituiria uma terceira vertente de ações particularistas. As denúncias de corrupção envolvendo instituições e recursos da área da saúde no Brasil sempre ocuparam papel destacado na mídia. A promessa de medidas enérgicas contra a corrupção tem integrado a plataforma de diversas candidaturas aos cargos majoritários e proporcionais. Contudo, a transposição dos discursos eleitorais para efetivas políticas de controle da corrupção parece requerer mais do que o desenho de medidas burocráticas difusas. Os avanços introduzidos pelo acesso a informações permitem aprimorar o acompanhamento da execução dos orçamentos públicos, mas ainda não são suficientes para desvelar e reverter as complexas interações político-econômicas que ratificam e perenizam dispositivos inadequados de compras e aquisições de produtos, insumos e serviços. A lei que exige a “ficha limpa” para os candidatos, em vigor desde junho de 2010, tornando inelegíveis candidatos condenados por órgão colegiado em crimes como: improbidade administrativa, abuso de autoridade, racismo, tortura, abuso sexual, formação de quadrilha, crimes contra a vida e crimes hediondos, dentre outros – foi um sinal promissor de reversão do atual padrão de intermediação de interesses. A visibilidade de tramas corruptas tem sido sazonal, concentrada no período eleitoral. A ênfase na busca de vilões e heróis que acompanham esse processo reforça a efêmera perspectiva de soluções simplistas para dar cabo da corrupção e das condutas antiéticas. A notoriedade e a disseminação dos casos de corrupção na saúde e em outras áreas não resultaram na identificação e punição dos responsáveis. Portanto, é preciso aprofundar o conhecimento sobre a gênese dos processos de corrupção na saúde, bem como elaborar estratégias para seu enfrentamento e prevenção.

Considerações finais Ainda que as informações oficiais disponíveis sobre os doadores e os beneficiários do apoio financeiro das empresas de planos e seguros de saúde privados não retratem toda a movimentação de recursos nas campanhas eleitorais, é possível, com base nos dados disponíveis, elencar algumas tendências do financiamento: 1) As empresas de planos de saúde privados contribuíram para o financiamento das campanhas de postulantes ao mandato de cargos proporcionais e majoritários nas eleições de 2006, tanto para as eleições de deputados estaduais, federais quanto para governadores, sugerindo o interesse desse segmento econômico pelo acompanhamento de políticas públicas em todas as esferas de governo. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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2) As empresas de planos de saúde privados apoiam candidatos de diversos partidos políticos. Embora existam alguns indícios, como o maior volume de recursos destinados ao apoio a candidatos de partidos situados mais a centro-direita no espectro ideológico, o mercado da saúde suplementar também financia candidatos de partidos considerados de esquerda. 3) A opção pelo apoio a candidatos localizados na mesma unidade federada da empresa de plano privado de saúde, ou em territórios contíguos, parece orientar uma parte da escolha dos destinatários das doações. Mas existem candidatos que foram apoiados por empresas sediadas e atuantes em várias unidades da federação, o que parece indicar expectativas de um desempenho parlamentar voltado à defesa em bloco ou em “bancada” do interesse setorizado. 4) Há preferência pelos candidatos médicos, mas essas empresas não excluem o apoio a candidatos de outras áreas profissionais, que podem se apresentar diretamente como defensores dos interesses dos planos de saúde, mas que, também, podem estar ligados a plataformas de outras políticas setoriais. 5) Alguns candidatos receberam doações mais vultosas de determinadas empresas de planos de saúde, sendo que, em certos casos, o segmento suplementar foi quase que a fonte de financiamento exclusiva de suas campanhas. Essa especialização das fontes de financiamento pode ser indicativa de “apostas” na atuação particularista do representante político. 6) Alguns candidatos foram apoiados por mais de uma empresa de plano privado de saúde, sendo que, em alguns casos, por uma cooperativa médica e uma empresa de medicina de grupo, o que sugere a possibilidade de uma atuação em defesa de interesses comuns ao segmento suplementar. As tendências de conformação de uma rede de defesa de interesses privados poderão se acentuar ou, em sentido oposto, tornarem-se menos evidentes quando defrontadas com certas causas de grande amplitude e de interesses públicos difusos. Não há dúvidas de que o lobby exclui severamente muitos interesses sociais. É necessário, portanto, tornar a representação de interesses privados, ainda que legítimos, mais transparente, equitativa, menos fragmentada e mais próxima da defesa dos interesses da sociedade sub-representados. Somam-se a isso: o combate sistemático à corrupção; o aprofundamento do debate sobre o lobby e pressões exercidas por interesses particulares no Congresso Nacional; uma reforma política que viabilize a democracia participativa; o fim do “loteamento” político de cargos e postos estratégicos no Ministério da Saúde e em suas agências reguladoras. Estamos diante de desafios inadiáveis, colocados aos partidos políticos e às entidades da sociedade civil que postulam a defesa do interesse público, do bem comum e da cidadania plena.

Colaboradores Mário Scheffer e Lígia Bahia participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. 954

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A legislação brasileira normatiza a doação de recursos financeiros provenientes de fontes privadas para as campanhas de candidatos majoritários e proporcionais. Com base em aportes da literatura sobre a estrutura partidária e relações entre o Legislativo e Executivo, o presente estudo analisa, a partir das categorias de representação política e de interesses, as informações sobre empresas de planos de saúde doadoras e as candidaturas destinatárias. As empresas de planos de saúde doadoras foram devidamente identificadas, assim como os recursos doados para candidatos. O cotejamento desses dados fornece um mapeamento de interesses das empresas de planos de saúde projetados no Poder Legislativo, mas não autoriza o estabelecimento de relações causais entre os doadores e a atuação dos parlamentares. O comparecimento das empresas de planos de saúde na disputa eleitoral e a inclinação das doações para partidos situados mais à direita no gradiente político partidário são os principais resultados do trabalho.

Palavras-chave: Planos e seguros de saúde privados. Lobby. Campanhas eleitorais. Sistemas de financiamento. Financiamento em saúde. Political representation and private interests in health: a case study on the financing of voting campaigns by private health plans in Brazil The Brazilian legislation regulates the financial donations from private sources to both majoritarian and proportional election candidates. Based on approaches found in the literature on the party-system structure and on the relationships between the Legislative and Executive, this study uses the categories political representation and interests to analyze the information on donating health insurance companies and the receiving candidacies. The donating health plan companies were duly identified, as well as the resources donated to candidates. Comparing these data allows an assessment of the health plan companies’ interests projected in the Legislative Power, but does not authorize the establishment of causal relationships between donors and the representatives’ performance. The presence in the electoral dispute of health plan companies from every region in the country and the tendency of donations to go to parties on the right of the political spectrum are the major findings of this paper.

Keywords: Private health plans and insurance. Lobby. Electoral campaigns. Financing systems. Health financing. Representación política y los interesses privados en materia de salud: el caso de la financiación de las campañas electorales por compañías de planos de salud privados en Brasil La ley brasileña regula la donación de recursos financieros provenientes de fuentes privadas a los candidatos a las elecciones. Sobre la base de la literatura sobre la estructura partidaria y las relaciones entre el poder legislativo y el poder ejecutivo, este estudio examina, desde las categorías de la representación política y de intereses, la información sobre empresas de planos de salud donantes y las candidaturas destinatarias. Las empresas de plano de salud donantes fueren debidamente identificadas, así como los recursos donados a los candidatos. La comparación entre estos datos proporciona una asignación de los intereses de las empresas de planes de salud involucrados en el poder legislativo, pero no autoriza el establecimiento de relaciones causales entre donadores y la actuación de los parlamentarios. A presencia de las compañías de seguros de salud durante la campaña electoral y la inclinación de las donaciones a los partidos situados más a la derecha en el gradiente políticopartidario son los principales resultados del trabajo.

Palabras clave: Compañías y seguros de salud privados. Lobby. Campañas electorales. Sistemas de financiación. Financiación de la salud.

Recebido em 27/08/10. Aprovado em 21/06/11.

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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livros

GOMES, R. A saúde do homem em foco. São Paulo: Editora Unesp, 2010. (Saúde e Cidadania).

Marco Antonio Separavich1

Lançado em outubro de 2010, o livro A saúde do homem em foco, do educador e pesquisador em Ciências Sociais e Humanas em Saúde, Romeu Gomes, traz informações esclarecedoras e úteis sobre comportamentos, agravos e conceitos que envolvem a saúde masculina. Com o recente lançamento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), pelo Ministério da Saúde, que busca facilitar o acesso aos serviços de Saúde dos homens que, conforme aponta a literatura especializada, não procuram os cuidados de saúde, o tema tem proliferado na mídia. Neste sentido, o livro é bem-vindo, pois contribui para divulgar informações mais criteriosas sobre a saúde masculina. Professor titular do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz/RJ, pesquisador competente e pioneiro, no Brasil, nos estudos sobre saúde do homem e masculinidades, Gomes convida o leitor para uma “conversa sobre um assunto que os homens não costumam falar”(p.7): sua saúde. Contribui para estabelecer esse diálogo a forma simples, didática e franca com a qual expõe conceitos complexos que

frequentemente envolvem o tema, tais como: gênero, estilos de masculinidades, saúde, sexualidade, violência, entre outros. O livro tem o formato de pocket book, um pouco menos de cem páginas, ausência de notas de rodapé, glossário para esclarecer o público leigo sobre os termos técnicos utilizados, o que facilita a leitura, e integra a Coleção Saúde e Cidadania, da Editora Unesp. É dirigido ao cidadão comum, do sexo masculino, não excluindo, no entanto, como sublinhado pelo pesquisador, as mulheres desta conversa, já que o ponto de partida e o fio condutor do texto é o conceito de gênero, pressupondo, assim, o enfoque relacional. No 1º capítulo, a partir da pergunta “o que é ser homem?”, o autor define sinteticamente, mas de forma pontual, gênero como as características impostas aos homens e mulheres no processo de socialização para diferenciar “alguém do sexo masculino do sexo feminino”(p.14). Ressalta a ideia de modelos de comportamentos socialmente esperados para ambos os sexos, que comumente se apresentam estereotipados e tendem a ser internalizados, pensados e reforçados no interior da sociedade. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1 Departamento de Medicina Preventiva e Social, FCM, UNICAMP. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13083-887. mseparavich@hotmail.com

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LIVROS

Buscando esclarecer o conceito de gênero ao público leitor, partindo do repertório da cultura popular, o educador se serve de passagens literárias e musicais - como quando cita a letra da música Super-homem, de Gilberto Gil, para mostrar a existência da ilusão, no imaginário social, de que ser homem é ser bruto, forte, agressivo, autônomo, enfim, ser portador de uma masculinidade idealizada que se contrapõe à ideia do feminino como delicado, fraco, sensível e dependente. Se, por um lado, essas características fazem parte de um modelo ideal de ser homem, de uma masculinidade hegemônica, por outro, Gomes traz algumas falas de entrevistados de suas pesquisas que apontam para a factibilidade parcial do mesmo no cotidiano da vida, pois, “há homens delicados, e outros não; tem homem agressivo e outro já é mais calmo”(p.21), ou seja, homens com características socialmente valorizadas como masculinas e outros tantos com aquelas tidas por femininas, que não deixam de ser, todavia, homens. É esse processo de alteridade que está para além das diferenças corporais, de se perceber diferente, mas também semelhante às mulheres, que pauta as considerações do autor sobre masculinidades e sustenta a sua definição de ser homem, qual seja, “ser uma pessoa que sente, pensa e vive [...] e [que é] capaz de amar outra pessoa”(p.24). No 2º capítulo são apresentados dados epidemiológicos sobre as causas principais de morte e adoecimento de homens e mulheres. Doenças isquêmicas do coração, cerebrovasculares, homicídios, acidentes em transportes terrestres e doenças crônicas das vias respiratórias inferiores ocupam, no caso masculino, respectivamente, os cinco primeiros lugares. Já entre as mulheres, homicídios e acidentes não figuram como causas significativas. Destaca-se que tanto os agravos à saúde quanto as enfermidades em si não se relacionam somente às causas biológicas, encontrando-se intersectados por modelos culturais de gênero que esculpem estilos de vida específicos para cada um dos sexos. Assim, numa sociedade em que poder, força e êxito integram o ideal perseguido de uma masculinidade exemplar, os riscos para se atingir tais fins são assumidos pelos homens como um valor, o que pode comprometer sua saúde e daqueles que os rodeiam. 958

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A própria ideia do cuidado de si obedece a essa lógica, onde prevenção de adoecimentos e cuidado com a saúde são socialmente concebidos como características femininas, expressos exemplarmente na figura da mãe zelosa e da esposa/companheira cuidadora de si e dos membros da família. No entanto, como aponta o autor, essa masculinidade tradicional encontra em certos segmentos da mídia um contraponto, como em algumas revistas que procuram incentivar o homem ao autocuidado do corpo e da saúde, mas cabem ressalvas citadas no texto. Primeiramente, não são dirigidas aos homens em geral, mas a um público específico, ao homem branco, de classe média ou alta, na faixa etária entre vinte e cinquenta anos. Em segundo lugar, valoriza-se a estética do corpo musculoso, de formas esculturais, modelo corporal idealizado para ambos os gêneros. Por fim, há o forte apelo ao aprimoramento do desempenho sexual, reiterando o ideário individualista vigente na sociedade, no qual o sucesso em todos os campos da vida (profissional, sexual etc.) depende única e exclusivamente do cidadão, visto antes como consumidor de produtos e serviços. No 3º capítulo são trabalhados temas referentes à sexualidade masculina. Além de esclarecer as preocupações mais comuns dos homens, tais como problemas com a ereção, ejaculação precoce e o tamanho do pênis, há a distinção entre comportamento e conduta sexuais. Enquanto no primeiro termo há o aspecto generalizante da libido a mover a ação sexual, assumindo a sexualidade um caráter supostamente individualizado, ao se referir à conduta sexual, o autor enfatiza os significados atribuídos às práticas sexuais, notadamente influenciados pela cultura em que se vive. Em termos gerais, a conduta sexual socialmente esperada dos homens é a heterossexualidade, sendo estimulada uma masculinidade heterossexual ostensiva, na qual a quantidade de parceiras se configura como um atestado de ser “mais homem” tanto para si quanto para seus pares, ou na ideia particularmente preconceituosa de “homem que é homem não usa camisinha”. Aqui, o papel masculino na prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e AIDS é destacado, pois há certas formas de viver a masculinidade que colocam em risco a saúde

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Com relação à sexualidade, a padronização do modelo da conduta heterossexual pode levar homens a verem outros que não comungam desse mesmo padrão de orientação sexual como doentes, pervertidos moralmente, “menos homens”, e a partir daí deflagrar um processo de violência, por meio de agressões físicas, verbais etc., tendo por base a homofobia. Embora seja um fenômeno social complexo, o autor sugere alguns passos para a prevenção da violência. É na informação e no esclarecimento dos homens que reside a saída para a diminuição do processo de violência. A divulgação das ideias de que antes de serem homens são pessoas, que não existe um modelo único de masculinidade, de ser homem, e que todos têm direitos de fazer suas escolhas, e que devem, por seu turno, ser respeitadas, constituem o início desse processo. Terminando a conversa, Romeu Gomes tece algumas considerações sobre os cuidados que os homens devem ter para com sua saúde: fazer exercícios físicos regularmente, cuidados com a alimentação, beber água constantemente, o prejuízo do uso de drogas lícitas e ilícitas, a necessidade de se evitar o estresse, e a responsabilidade com a manutenção da própria saúde, com a ida regular aos serviços de saúde. Enfim, ao final do livro nos fica a certeza de que não somente o público leigo irá se beneficiar com a leitura, mas também os profissionais e pesquisadores de Saúde, pois, ao apresentar os problemas e temas que envolvem a saúde masculina, de forma clara e simples, contudo, não menos profunda, o autor possibilita que o olhar sobre os homens se amplie, ficando para trás preconceitos tradicionalmente arraigados em nossa cultura, que impedem de vê-los não como grandes ou pequenos homens, mas, mais próximos do que realmente são.

livros

sexual não só do homem, mas também de outras pessoas. É necessário, portanto, como aponta Gomes, que uma parcela significativa dos homens supere preconceitos e respeite os direitos sexuais; aliás, o respeito às diferenças culturais e de sexo, cor, orientação sexual e classe social são fundamentais para que os direitos reprodutivos e sexuais possam ser assegurados. No 4º e último capítulo discorre-se sobre o prejuízo da violência na vida de homens e mulheres. Numa definição concisa da pesquisadora Maria Cecília Minayo, “a violência consiste no uso da força, do poder e de privilégio para dominar, submeter e provocar danos a outros: indivíduos, grupos e a coletividade” (p.70). O pesquisador ressalta o caráter complexo de tal fenômeno, não sendo possível uma definição completa, mas aponta características que a delineiam: é universal, essencialmente de origem social, perpassada pelas relações sociais, em nossa sociedade, sobretudo, pelas de gênero e de classe. Quando se atenta para a violência de gênero, é comum se dizer que os homens são “naturalmente violentos”. A naturalização da violência masculina torna-se tanto mais tenaz à medida que os indicadores epidemiológicos expressam dados da realidade social: o homem é, ao mesmo tempo, o maior causador e vítima de atos violentos. Trata-se, como sublinha Gomes, no caso da violência intergenérica, de um modelo de gênero, no qual se atribui ao homem o papel de domínio e à mulher o de submissão. Assim, pode-se explicar, em parte, a violência doméstica como a busca pelo predomínio do poder masculino no âmbito privado. Mas, há também a violência intragenérica, perpassada por eixos que constituem o sujeito social, tais como cor, classe e orientação sexual.

Recebido em 01/03/11. Aprovado em 06/04/11.

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criação

“QUALÉ a desse ÓRGÃO??? arte-reflexão sobre o amor Alessio Di Pascucci1 Marília Pinto Petrechen2 Mariângela Scaglione Quarentei3

O artista olha para o mundo e vê coisas nas quais olhos apressados não se detêm. Ele busca capturar, com esse olhar mais contemplativo e investigativo, os sentidos ocultos na superfície dos fenômenos da vida, para, a partir das suas observações, criar livremente o campo da sua expressão. Quando um artista olha para a expressão do amor, na sua vivência amorosa e na vivência amorosa dos que o circundam, e vê algo em comum entre elas, percebe que há um ruído na orquestração da melodia amorosa. Notando esta estranha sonoridade desarmônica vinda de interditos na forma de negação do compartilhamento do sensível, vinda do medo de tudo o que a intimidade do sentimento amoroso pode gerar de mudança na textura dos afetos e na subjetividade dos indivíduos, esse artista é tomado por um desejo de compor criativamente algo que expresse as reflexões dessas percepções.

A intervenção artística “Qualé a desse órgão?” propõe uma reflexão sobre essa dificuldade dos encontros amorosos na sociedade atual. A observação do estranho paradoxo entre o desejo de entrega e estratégias de recuo dos afetos foi a fonte das duas perguntas que se encontram colocadas no material gráfico produzido pelo NUAS - Núcleo de Arte Solta:

- “Do que ele tem medo?” - “O que ele está sentindo agora?” Essas frases, junto à imagem de um coração, foram coladas em locais públicos de diversas cidades brasileiras, com a intenção de criar, nos observadores em trânsito, uma pausa reflexiva sobre suas capacidades e condições afetivas. Se perguntar sobre os próprios sentimentos, se perguntar sobre do que se tem medo e enfrentar seus afetos, são questões fundamentais, nas quais todo o indivíduo deveria se deter para produzir uma ampliação na qualidade da sua expressão afetiva. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

1-3 NUAS - Núcleo de Arte Solta. aledipascucci@gmail.com http://www. nucleodeartesolta. blogspot.com

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Em uma sociedade em que, ainda, os padrões de afetividade e expressão de amorosidade conduzem os corações em direção a um modelo precário para produção de potência, saúde plena e alegria do músculo do amor, é necessário pulsar o pensamento e refletir sobre essa pulsão vital na composição das relações de partilha afetiva expressada no encontro entre o eu e o outro: o Amor. A pequena esfera onde acontece a dinâmica da troca dos afetos entre o eu e o outro é a base da construção do sentido de humanidade. Se quisermos, de fato, construir uma humanidade mais amorosa, teremos de produzir alterações significativas na nossa individual expressão de amorosidade. “Qualé a desse órgão?”, intervenção artística em espaços públicos, quer criar ressonâncias no pensar: a ideia de que os indivíduos são dotados da capacidade de produção de sentimento amoroso e que, quando esse sentimento não segue o seu ciclo natural de fluidez nos encontros, seja por medo ou desconhecimento de suas próprias emoções, o indivíduo adoece em sua alma. E as almas doentes geram corpos e mentes doentes, que produzem uma sociedade na qual se negligencia a importância da expressão do amor na construção da saúde individual e coletiva. Sociedade doente? Do que tem medo? O que sente agora?

NUAS - Núcleo de Arte Solta www.nucleodeartesolta.blogspot.com O NUAS é um dispositivo estratégico para a realização de encontros criativos. Não como um “coletivo de artistas”, mas um colo-ativo para embalar, com afetos, as ideias que querem se transformar em arte solta. Idealizado pelo artista multimídia Alessio Di Pascucci, surgiu do desejo de composições artísticas com outras pessoas.Tem, em sua ideia original, o nãocomprometimento com ser um grupo fixo, mas ser um grupo mutante, aberto, flutuante, em que pessoas se propõem a partilhar corpos e agregar ideias geradoras de vida e arte solta; muitas vezes, de arte-pública. 964

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4 CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso sobre seus temas, conceitos e autores. Trad. Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p.124.

5 DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.156.

criação

DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: BALIBAR, E. et al. (Orgs.). Michel Foucault, filósofo. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. Barcelona: Gedisa, 1990, p.155-163. 3

Tomamos o conceito de dispositivo lançado por Foucault e discutido por Deleuze para falar do NUAS enquanto território-máquina de “fazer ver e fazer de falar”3, como uma “rede de relações que podem ser estabelecidas entre elementos heterogêneos: discursos,... , regramentos, proposições teóricas, filosóficas, morais, o dito e o não dito. [...] Trata-se de uma formação que, em um momento dado, teve por função responder a uma urgência”4. Urgência esta que facilmente associamos à vontade de enunciar por parte de seus integrantes e do conteúdo expressado. Algo urge ser atualizado pelos seus proponentes, tornando-se causa e/ou efeito daquela junção para efetivar performances ou atos artísticos. O NUAS existe quando algo acontece e com quem acontece: uma ideia, vontade ou impulso se gera e agencia outros e modos para ganhar o mundo. Ele existe na ação, é ação, é fabricação de intercessores, como nos diz Deleuze: “o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. [...] é preciso fabricar seus próprios intercessores”5 e “O que é preciso é pegar alguém que esteja “fabulando”, em flagrante delito de fabular. Então se forma, a dois ou em vários, um discurso de minoria. [...] pegar pessoas em flagrante delito de fabular é captar o movimento de constituição de um povo. De certa maneira, o povo é o que falta”6. Enquanto campo de forças, o NUAS atua como ponto de congruência de encontros para ampliar as formas expressivas de seus integrantes e de sua estética, mas pretende, a partir de então, dissipá-los, dispersálos, espalhá-los no campo social.

6 DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.157.

Algumas ações do NUAS: Qualé a desse Órgão? - colagem de material gráfico em locais públicos, 2011 - Botucatu - SP; Araraquara - SP; Amparo - SP ; São Paulo SP e Curitiba-PR. Colagem de material gráfico/sticker art com a imagem de um coração junto às perguntas: “O que ele está sentindo agora?” e “Do que ele tem medo?” - como proposta de reflexão sobre o amor e os afetos. Quanto pesa seu coração? - performance reflexiva sobre o sofrimento amoroso, 2011 - Curitiba-PR. No Largo da Ordem, no período do Festival de Teatro de Curitiba, o performer, segurando um coração de verdade, perguntava às pessoas do local se elas poderiam ajudá-lo a carregar o seu coração, que estava tão “pesado”. Banco dos Encontros – intervenção de oficina teatral, 2011 - Botucatu-SP. Instalação pública, com temática sobre a liberdade, realizada por adolescentes participantes da Oficina Teatral Ações Soltas, coordenada por Alessio Di Pascucci no Ponto de Cultura Espaço Notívagos. Fonte de Renda – reflexão sobre a distribuição de renda no país, 2011 Botucatu-SP. Instalação pública que ocorreu durante a Virada Cultural Paulista em Botucatu. Uma fonte abandonada numa praça da cidade foi “vestida” com tiras de renda enquanto eram distribuídos pedaços de renda às pessoas presentes no local.

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Economia Lúdica – ação-reflexão sobre o valor das coisas, 2010-2011 - Botucatu-SP. Vendas de livros de poesia e produções artísticas nas ruas da cidade, em que os interessados determinavam quanto deveriam pagar. Vão-se os sonhos e ficam os trajes – uma reflexão sobre o abandono amoroso, 2010 Botucatu-SP. Performance-instalação realizada no MAC Itajahy Martins, Museu de Arte Contemporânea de Botucatu. Entre vestidos de noivas de mulheres que foram abandonadas no altar, ao som de música tocada por dois instrumentistas, o performer constrói um corpo cênico a partir da vivência do abandono amoroso. Poesia sem gaiola – ação solta sobre a liberdade poética, 2010 - Botucatu-SP Em praças da cidade, poesias eram lidas e distribuídas.

Sobre os autores Alessio Di Pascucci Artista multimídia, nascido e residente na cidade de Botucatu, interior de São Paulo, atua no fazer artístico desde a década de 1980. No teatro, artes plásticas, dança, vídeo, música e literatura desenvolveu inúmeros trabalhos, entre eles: dramaturgia e direção das peças “Abandono em Branco” e “Beckettianas” (Teatro); exposições “Des-Fotos”e “Vão-se os sonhos, ficam os trajes” (Artes Plásticas); composições gravadas em cds de vários intérpretes e premiações no festival Botucanto (Música); publicação dos livros “Pele” e “Letras Lúdicas” (Literatura) e várias intervenções de rua em performances. Marília Petrechen Performer, pesquisadora e psicóloga. Realiza performances em espaços públicos em diversas cidades brasileiras. Foi intérprete-criadora do

espetáculo “À beira de um lugar”, 2010 e atuou como produtora cultural e educadora na OSCIP CIRCUS- Circuito de Interação de Redes Sociais e no Ponto de Cultura Galpão Cultural- Assis-SP. Mari Quarentei Libriana nascida na Paulicéia, vive entre São Paulo e Botucatu - um interior ... e nos últimos três anos incluiu Curitiba nesse circuito. Terapeuta ocupacional, arte-educadora, terapeuta corporal e acadêmica independente. A micropolítica: uma grande paixão que inspira estudos contemporâneos da subjetividade, criação coletiva (convívio e partilha), ativismo cultural e a apreciar intensamente a filosofia da diferença.Viver com a arte é coisa antiga, como desenhar, contar estórias, fazer máscaras, escrever quase-poesia e, nesse quase encontra a liberdade. É editora de Criação da Interface, atua no Coletivo de Estudos de Terapia Ocupacional e Produção de Vida, CineclubeParatodos, NUAS e produz saraus caseiros.

Vídeos e mais informações: http//www.nucleodeartesolta.blogspot.com Contato: aledipascucci@gmail.com 966

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