Interface
Comunicação, Saúde, Educação
APRESENTAÇÃO
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NOTA DOS EDITORES
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DEBATES 111
ENSAIOS sobre violência Violência contra a mulher: interfaces com a Saúde Lilia Blima Schraiber Ana Flávia Lucas P. D'Oliveira
debatedores Marco Segre Antonio Luiz Caldas Jr. Luis Carlos Giarola Sueli Ferreira Martins Pedro Geraldo Novelli Luciana Lunardi Marcelo Coltro José Carlos de Paula Carvalho Lucia Helena Rangel Renato Janine Ribeiro
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Velhice, alteridade e preconceito: 29 dimensões do imaginário grupal com idosos José Carlos de Paula Carvalho Violência nas primeiras letras: 41 a escola num conto de Machado de Assis Sílvia Craveiro Gusmão Garcia Antonio Manoel dos Santos Silva Violência: paradoxos, perplexidades e reflexos no 51 cotidiano escolar Altair Macedo Lahud Loureiro ARTIGOS e RELATOS A problematização da violência como experiência de 63 ensinar em Saúde Heloniza O.G. Costa Las politicas de reforma universitaria: la logica 75 global y la respuesta local - el caso de la Argentina Marcela Mollis Conhecimento, tecnologia e sociedade: em busca de 95 referências interpretativas da ação Jairo Ferreira Margarete Axt
Tradição, trote e violência Maria do Patrocínio Tenório Nunes Warth Luiz Felipe Lisboa
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LIVROS
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TESES
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NOTAS BREVES ESPAÇO ABERTO
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A voz das armas Moacyr Scliar
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Cartas de Rodez Ana Teixeira CRIAÇÃO
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Criando lugar(es) para acolher a falta de lugar Mariângela Quarentei
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Sempre, quase sempre Silvio Shigueo Nihei
Interface
Comunnication, Health, Education
DEBATES INTRODUCTION EDITORS NOTES
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ESSAYS on violence Violence against women: interfaces with Health care Lilia Blima Schraiber Ana Flávia Lucas P. D'Oliveira
debaters Marco Segre Antonio Luiz Caldas Jr. Luis Carlos Giarola Sueli Ferreira Martins Pedro Geraldo Novelli Luciana Lunardi Marcelo Coltro José Carlos de Paula Carvalho Lucia Helena Rangel Renato Janine Ribeiro
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Old age, otherness and prejudice: dimensions of the 29 group imaginary relative to the elderly José Carlos de Paula Carvalho Violence in early education: school as depicted in a 41 short story by Machado de ssis Sílvia Craveiro Gusmão Garcia Antonio Manoel dos Santos Silva Violence: paradoxes, perplexities , and reflexes on daily 51 school routines Altair Macedo Lahud Loureiro
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BOOKS
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THESES
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BRIEF NOTES OPEN SPACE
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The role of the weapons Moacyr Scliar
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Letters from Rodez Ana Teixeira
ARTICLES and REPORTS The problematics of violence as a teching experience 63 in the healthcare field Heloniza O.G. Costa University reform policies: global logic and local 75 response - the case of Argentina Marcela Mollis Knowledge, technology and society: the search for 95 interpretative references for action Jairo Ferreira Margarete Axt
Tradition, hazing and violence Maria do Patrocínio Tenório Nunes Warth Luiz Felipe Lisboa
CREATION 195
Creating places to receive the psychiatric patients Mariângela Quarentei
204
Always, almost always Silvio Shigueo Nihei
Apresentação
O presente número de INTERFACE coloca para os leitores uma reflexão urgente e necessária: a VIOLÊNCIA, nas suas mais diferentes formas de manifestação. Esta abordagem vem se somar a muitos outros estudos e comunicações que se multiplicam no país. O espaço que a mídia, a divulgação científica e o debate político têm dado ao tema, nos últimos dez anos, passou a ser muito mais amplo do que toda a reflexão intelectual que havia acontecido nas décadas anteriores deste século, no Brasil e no mundo. Essa pauta de debate que considero necessária tem sido explicada de várias formas pelos estudiosos do tema. Segundo filósofos como Domenach e demógrafos como Jean Claude Chesnais, a preocupação com a violência cresce nas sociedades, pari passu com o desenvolvimento da consciência de cidadania, pois a valorização dos indívíduos enquanto sujeitos, por meio da internalização dos seus direitos, leva a maior valorização da vida e ao repúdio de todas as formas de dominação, de opressão, de discriminação de cerceamento das liberdades e de lesão física e psicológica. Portanto, segundo esses e muitos outros autores, a publicização do tema da VIOLÊNCIA, não necessariamente significa a mesma coisa que o aumento da violência. Em 1995, o Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (CLAVES/ENSP/ FIOCRUZ), do qual participo, levantou a produção nacional sobre o tema no país. Numa revisão bibliográfica quase exaustiva, encontrou que 85% de todo o acervo intelectual sobre o assunto no Brasil, havia sido escrito a partir da década de 80, intensificando-se no final da mesma, evidenciando o fato de que a violência havia se tornado um tema relevante para a consciência nacional. Mais que isso, porém, os dados epidemiológicos vieram corroborar a preocupação, mostrando que no final da mesma década, a violência (nomeada na Classificação Internacional das Doenças - CID - como causas externas ) havia se constituído na segunda causa de mortalidade no país, apenas abaixo das doenças cardio-vasculares. E no caso da população de 5 a 49 anos, as causas externas, desde então, passaram a ocupar o primeiro lugar no obituário geral. Essa mudança, que significou, sobretudo para a juventude, a troca de posição com as doenças infecciosas e parasitárias (que apresentaram uma sensível queda desde os anos 60), vem preocupando as autoridades públicas, os estudiosos e a sociedade em geral. A violência enquanto manifestação concreta de mortes, lesões, perdas, sofrimentos, medos e angústias tornou-se parte inseparável de nosso drama social. O esforço que os editores de INTERFACE realizam ao colocar o tema em pauta deve ser louvado por vários motivos. Primeiro, porque ninguém detém o monopólio da verdade, embora o tema seja objeto de estudos, pesquisas, debates, propostas e programas políticos e sociais. Pelo seu caráter polissêmico e controverso, a violência acaba fugindo a qualquer esquema estabelecido. É sempre um assunto para reflexão. Em segundo lugar, por ser a revista um veículo que pretende refletir sobre comunicação, necessita participar do debate inconcluso sobre o papel da mídia na produção, ampliação, banalização, como também na prevenção da violência. E em terceiro lugar, ao tratar da educação, é muito importante que este periódico coloque em debate público algumas questões fundamentais que estão hoje na agenda de interesse da sociedade: as teias ocultas que fortalecem as relações entre indivíduo-sociedade, propiciando interações civilizadas e dialógicas e vice-versa; a construção das bases de igualdade de oportunidades, cujo patamar é o acesso à educação formal; e por fim, o papel da escola na construção da consciência de cidadania. Porque, o avesso da violência, não é a não-violência, é a CIDADANIA. Maria Cecília de Souza Minayo
agosto, 1999
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Introduction This issue of INTERFACE places before our readers an urgent and necessary reflection: VIOLENCE, in the highly varied forms in which it manifests itself. This approach adds to the many other studies and communication elements that are multiplying throughout the country. The visibility bestowed upon the theme over the last ten years through the media, scientific disclosure and political debate has become substantially greater than all the intellectual reflection that had taken place in the preceding decades of the present century, both in Brazil and in the world. This debate agenda, which I regard as a necessity, has been explained in many ways by those who have studied this theme. According to philosophers such as Domenach and demographists such as Jean Claude Chesnais, the concern with violence grows within societies in parallel with the development of an awareness of citizenship, because the worth of individuals as such, through the internalization of their rights, leads to lending a greater value to life and to the rejection of all forms of dominance, oppression, discrimination, or restrictions to freedom, as well as of physical and psychological injuries. Therefore, according to the above authors and many others, publicizing the theme of VIOLENCE does not necessarily represent an increase in violence. In 1995, the Latin American Center for Studies on Violence and Health (Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde - CLAVES/ENSP/FIOCRUZ), to which I belong, assessed the domestic production on this theme in Brazil. Through a near-exhaustive review of bibliography, it found that 85% of all of the intellectual property on the subject in Brazil had been written as from the eighties. The output increased toward the end of that decade, illustrating the fact that violence had become a theme relevant to national consciousness. Furthermore, the epidemiological data corroborated the concern, demonstrating that, at the end of that same decade, violence labeled external causes under the International Classification of Diseases (CID - Classificação Internacional das Doenças) had become the second cause of death in the country, second only to cardio-vascular diseases. Furthermore, as regards the population aged 5 to 49, external causes, since then, have evolved into the top ranking general cause of death. This transformation, which meant (for youth in particular) the exchange of position with infectious and parasitic diseases (which have undergone a substantial drop since the sixties) has led public authorities, scholars and society at large to become concerned. Violence as a concrete manifestation of deaths, injuries, losses, suffering, fear and anguish has become an inseparable part of our social drama. The endeavors of the publishers of INTERFACE in raising this theme are praiseworthy for several reasons. Firstly, because although it is the object of studies, research, debate, proposals and social and political programs, no one holds a monopoly of truth. Given its multifaceted and controversial character, violence cannot be dealt with through any pre-established scheme. It remains forever a subject for reflection. Secondly, given that this is a vehicle intended to provide reflections on communication, it must take part in the unconcluded debate on the role of the media in the production, amplification, and banalization, as well as in the prevention, of violence. Thirdly, in dealing with education, it is very important that this journal bring to public debate some of the fundamental issues currently included in the agenda of interests of our society: the hidden webs that strengthen the relations between the individual and society, enabling civilized and dialogical interactions and vice-versa; the construction of the basis for equal opportunities, whose gateway is access to formal education; and, finally, the role of schools in building the awareness of citizenship. Because the reverse of violence is not the lack thereof, but CITIZENSHIP. Maria Cecília de Souza Minayo
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Interface - Comunic, Saúde, Educ
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NOTA DOS EDITORES
Em nossa sociedade marcada pelas mais cruéis contradições — desigualdades sociais, relações de opressão, intolerâncias diversas etc —, a mulher, o velho, a criança, o doente mental ... aparecem como instâncias privilegiadas dessa crueldade. Trazer estas questões para o campo do discurso é mais um compromisso que Interface assume em favor do humano. Como observa Hannah Arendt, humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos somente quando algo se torna objeto de discurso; e é nesse processo de falar e discutir experiências que aprendemos a ser humanos. Da seção de ensaios à criação, a violência, trazendo em sua face oposta a questão da ética, surge construindo uma rede complexa de saberes que vai expandindo superfícies de diferentes campos de estudo para desvelar suas articulações. Sem deixar de demarcar as fronteiras que caracterizam as áreas do saber, Literatura, Antropologia, Filosofia, Psicologia, Ciência e Arte exploram, neste número, trilhas em torno do tema. A confluência temática atravessa, assim, quase todas as páginas da revista. Na seção de debates, por sugestão de um estudante universitário, o “trote aos calouros na universidade” ganha destaque pela atualidade e abre novos espaços de interlocução: professores e estudantes trazem suas idéias, problematizam experiências, constróem reflexões sobre o tema. No conjunto da revista, dois outros temas de grande relevância no cenário contemporâneo e, ao mesmo tempo polêmicos, anunciam as preocupações de Interface para os próximos números, já no ano 2000: tecnologia e avaliação. Viabilizar esse projeto é uma tarefa de construção coletiva para a qual será fundamental a participação de nossos leitores. Editores
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Elisete Alvarenga, 1999
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ensaios
Violência contra mulheres: interfaces com a Saúde
Lilia B. Schraiber1 Ana Flávia Lucas Pires d Oliveira2
SCHRAIBER, L. B., D'OLIVEIRA, A. F. L. P. Violence against women: interfaces with Health care, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
This essay deals with the theme of violence from the standpoint of violence against women. It discusses the historical precedence of taking violence against women as a Legal issue and as an object of Justice, outlining parallels with the emergence of the problem as a Healthcare issue, as well as one of the targets of the Public Health area and of medical and sanitation practices. KEY WORDS: violence, women's health; women's right; women.
Este ensaio procurará tratar do tema violência sob o recorte da violência contra mulheres. Discute a precedência histórica da tomada da violência contra a mulher como questão do Direito e objeto da Justiça, traçando paralelos na emergência do problema como questão de Saúde e alvo da Saúde Pública e das práticas médico-sanitárias. PALAVRAS-CHAVE: violência; saúde da mulher; direito da mulher; mulheres.
1 Professora da Faculdade de Medicina da USP/Departamento de Medicina Preventiva e docente/pesquisadora do Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa. Email: liliabli@usp.br 2 Médica sanitarista responsável pelo Programa de Saúde da Mulher no Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa e doutoranda da Faculdade de Medicina da USP/ Departamento de Medicina Preventiva.
agosto, 1999
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LILIA SCHRAIBER E ANA FLÁVIA D'OLIVEIRA
Este ensaio procurará tratar do tema violência. Contudo, vamos fazê-lo sob um recorte especial: a violência contra mulheres. Uma das razões mais importantes para assim procedermos, em dias de crescentes denúncias das mais variadas formas de atos de violência no cotidiano social, é a de que se trata de uma experiência muito singular, singularidade esta que faz com que, mesmo nos dias atuais, em que, de fato, estamos nos voltando para a violência como grande problema social, a violência contra mulheres não encontre um adequado e profícuo canal de publicidade: não há, ainda, um lugar social e um campo de intervenção e saberes que a reconheça como objeto seu; como seu alvo de estudos, seu alvo de intervenção. Sem reconhecimento e definição de onde se alocar no espaço público, será difícil seu relato e exposição; será quase impossível um percurso de ação sobre ela. Por isso, muitos que a estudam apontam para sua invisibilidade social, com o que não apenas concordamos, mas, indo além, diríamos: não há onde ou como tornar-se plenamente visível. Não tem, exatamente, um locus seu nas práticas sociais, bem como não há linguagem apropriada para nomeá-la e lidar com suas questões internas dos determinantes às suas conseqüências, no âmbito da vida e da saúde da mulher. Dois têm sido seus campos recentes de algum acolhimento, nada por inteiro ou muito eficaz. No entanto, espaços e práticas sociais em que mulheres em situação de violência puderam e podem expressar de algum modo o problema e buscar algum tipo de intervenção. Em seqüência historiográfica, na década de 80 a Justiça e a partir dos anos 90 também a Saúde têm sido tais campos. Todavia, são, ambos, apenas rotas imperfeitas . Iniciando nossa discussão pelo termo mais geral violência diremos que este é um termo polissêmico e tem sido exaustivamente repetido pela mídia e trabalhado por inúmeros pensadores de áreas diversas. O termo, tal como usado, denota grande alargamento de nomeações, que vão desde as formas mais cruéis da tortura e do assassinato em massa, até aspectos mais sutis, mas considerados opressivos na vida moderna cotidiana, como a burocracia, a má distribuição de renda, certas normas culturais, entre outros. Alguns pesquisadores que estudam a violência em geral propugnam definições abrangentes quanto ao contexto social, que levem em conta a chamada violência estrutural (Habermas, 1980; Joxe, 1981; Minayo, 1994; Bourdieu, 1995). Minayo (1994), definindo o campo de estudo da violência para a Saúde Pública, chama a atenção para a violência imperceptível, embutida na sociedade, determinada pela apropriação desigual de bens e informações, que formaria uma rede menos aparente de violência, já que seriam visíveis apenas episódios mais agudos, como a violência física explícita. Para ela, a rede em seu todo é composta pela delinqüência, em seus aspectos rapidamente reconhecidos como violência, entre eles ferimentos, assassinatos e mortes; pela violência estrutural do Estado e das instituições que reproduzem as condições geradoras da violência; e pela resistência às condições de desigualdade, que algumas vezes se expressa também pela agressão física. Estas três formas articular-se-iam em rede e estariam conectadas. Domenach (1981) chama a atenção para o fato de a violência só recentemente ter se tornado um problema central para a humanidade,
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VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES: INTERFACES...
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O autor considera que a violência é uma liberdade (real ou suposta) que se opõe e pretende submeter outras. E se é sempre moralmente condenável, por outro lado, é indissociável da experiência humana. Para ele, pois, condenar todas as violências é impossível e hipócrita. Fazer o elogio da violência, por outro lado, é criminoso.
apesar de presente em toda a história. Conforme este autor, tornar certas práticas sociais uma questão de violência, associa-se à própria modernidade com seus valores de liberdade e felicidade, consolidados na criação da cidadania e dos direitos humanos para todos. A partir deste momento, ações que eram percebidas como inevitáveis na ordem do mundo e mesmo desejáveis passam a ser indesejáveis e combatidas. Criação humana, a violência, como as demais práticas sociais, pode e deve ser controlada, senão erradicada3 . Já a violência contra a mulher foi expressão cunhada pelo movimento social feminista há pouco mais de vinte anos. A expressão refere-se a situações tão diversas como a violência física, sexual e psicológica cometida por parceiros íntimos, o estupro, o abuso sexual de meninas, o assédio sexual no local de trabalho, a violência contra a homossexualidade, o tráfico de mulheres, o turismo sexual, a violência étnica e racial, a violência cometida pelo Estado, por ação ou omissão, a mutilação genital feminina, a violência e os assassinatos ligados ao dote, o estupro em massa nas guerras e conflitos armados (Grossi, 1995; OEA, 1996). Enunciada como prática da tradição nos relacionamentos amorosos em especial, a violência cometida por pessoas íntimas, que envolve também filhos, pais, sogros e outros parentes ou pessoas que vivam na mesma casa a que chamaríamos de violência doméstica - está profundamente arraigada na vida social, sendo percebida como situação normal. A noção de violência doméstica, algumas vezes associada apenas à violência conjugal contra a mulher, surge com força entre as feministas americanas e também do Brasil (Stark & Flitcraft, 1996; Heise, 1994; Grossi, 1995; Saffioti, 1995), tornando pública e condenável uma situação antes corriqueira e estritamente do domínio privado. Claro está que a noção de violência doméstica pode confundir-se com a idéia de violência intrafamiliar, neste caso modificando um pouco o espectro de agressores e agredidos (do domicílio para a família), bem como deslocando o olhar de gênero enquanto aproximação do problema. Do ponto de vista empírico, neste âmbito familiar de longe se destaca a magnitude dos atos contra as mulheres e meninas, mas o termo não deixa de ser referência para violência também contra meninos, homens, crianças ou idosos (em um recorte mais etário) e perpetrada por distintos familiares, em que se incluiriam igualmente as mulheres. Ao contrário do recorte violência doméstica , a intrafamiliar é campo de estudo mais antigo, datando dos anos 70. Mas no interior de todas essas concepções e termos usados para designar a violência contra mulheres, não há como negar a precedência da violência sexual, abrindo campo para evidenciar todas as demais. Neste caso, há outra mesclagem que se processa e a violência pode ser perpetrada por conhecidos ou por estranhos, desde que referida às relações sexuais não consentidas e também referida a um aspecto relacional de difícil delimitação empírica, o assédio. No entanto, estes dois tipos quer de ato violento, quer de agressores, caracterizam situações distintas. A agressão sexual por um desconhecido é bastante diversa da mesma agressão cometida por uma pessoa próxima, íntima, que se ama (ou amou) e com quem se escolheu conviver, ainda que esta escolha seja algumas vezes mais próxima do
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constrangimento. E o assédio, tal qual a violência na esfera psicológica como muitos chamam as humilhações, ameaças ou desqualificações e, por vezes, as agressões a pessoas/bens queridos - são componentes da violência que dependem em muito dos contextos culturais das práticas amorosas ou dos relacionamentos entre homens e mulheres. Esta conceituação, portanto, possui também interseções com as demais e suas próprias imprecisões. O que vem sendo enunciado são formas diversas de violência, com expressões variadas e particulares, que compartilham este significado social comum - a iniqüidade de gênero (Heise, 1994). A violência contra a mulher diz respeito, pois, a sofrimentos e agressões dirigidos especificamente às mulheres pelo fato de serem mulheres. Como termo genérico, agora para referir à situação experimentada pelas mulheres, quer remeter também a uma construção de gênero, isto é, se em primeiro lugar evidencia uma dada ocorrência sobre as mulheres, também quer significar a diferença de estatuto social da condição feminina, diferença esta que faz parecer certas situações de violência experimentadas pelas mulheres especialmente a violência que se dá por agressores conhecidos, próximos e de relacionamento íntimo, como experiências de vida usuais. A noção de gênero vem muitas vezes sendo confundida com a idéia de sexo feminino, quando em realidade surgiu exatamente para destacar essa distinção. Enquanto sexo indica uma diferença anatômica inscrita no corpo, gênero indica a construção social, material e simbólica, a partir desta diferença, que transforma bebês em homens e mulheres, em cada época e lugar de distintas maneiras. A idéia é antiga. Simone de Beauvoir (1970) já dizia, desde os anos 50, que não se nasce mulher, torna-se mulher. O que tem um surpreendente avanço nos anos 80 e 90 é o refinamento e a complexificação desta idéia e uma ampliação de seu uso nos mais diversos campos de estudo, tais como História, Antropologia, Sociologia, Psicologia, Direito, Crítica literária, Psicanálise, Educação, Saúde e Economia, entre outros. Em um dos textos mais conhecidos que definem o conceito (Scott, 1995), gênero é essencialmente definido como uma interseção entre duas proposições: ... o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder (p.14). Masculino e o feminino são, pois, constructos sociais, o que se contrapõe à noção da essencialidade dos comportamentos sociais com base nas características sexuais: o homem sempre poderoso e agressor; a mulher sempre desprotegida e vítima... Cabe, no entanto, ressaltar que a nomeação de vítima permaneçce muito associada à mulher até por razões históricas, fato relacionado às origens da tomada da violência contra mulheres como evento passível de intervenção na esfera pública. Iniciando-se a visibilização dessa situação vivida como um problema público e uma questão de Justiça, bem como iniciando-se alguma intervenção social de proteção às mulheres no campo dos Direitos Humanos, com o reconhecimento de atos violentos e dos assassinatos das mulheres (o que em passado não tão remoto foi aceito em nome da defesa da honra masculina), passa a Justiça legalmente a reconhecer familiares como agressores / criminosos e mulheres, como vítimas . Se o termo cabe com precisão na linguagem do Direito, é evidente a expansão semântica que se dá para seu uso disseminado em
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É interessante registrar que recentemente o jornal Folha de São Paulo publicou uma série de depoimentos de escritores, homens e mulheres, em que revendo Dom Casmurro de Machado de Assis, pronunciavam-se todos acerca de CAPITU, julgando-a quanto à questão do suposto adultério, tema central da trama do romance. E o título-chamada da matéria foi CAPITU absolvida! Eis a boa mudança dos tempos.
5 Claro está que há um grande movimento contemporâneo no sentido de começar a incluir os homens nos projetos de investigação e trabalho com o tema, mas os esforços ainda são incipientes e claramente minoritários.
outras esferas de atuação não pertencentes ao exercício da lei e julgamento dos crimes. No campo jurídico todas as pessoas em conflito, sejam homens ou mulheres, serão ou réus ou vítimas... Já nas esferas, por exemplo, da saúde, da assistência social ou outras formas de atuação, a tomada de qualquer sujeito na condição de vitima é significá-lo de saída como sujeito de menor potencialidade diante das suas possibilidades de vir a ser sujeito plenamente potente, isto é, de deter plenamente auto-domínio e soberania de decisões, daí que se perpetue a noção da mulher como um sujeito incapaz, à semelhança das crianças, dos doentes... ou dos loucos, em maior grau! Incapaz de decisões, incapaz de pleno domínio de si... então necessitaria de eternos tutores ! Ora, esta é a própria construção social do feminino denunciada e repudiada pelo movimento de mulheres e que constrói a concepção das mulheres como eternos dependentes . Pode, do ponto de vista histórico, explicar, sem eticamente justificar, tanto a cultura da proteção necessária (passando as próprias mulheres a se conceberem da mesma forma e conceberem seus companheiros como os provedores ), proteção que não se confunde com cuidado , quanto a cultura de que os sujeitos dependentes, sempre infantilizados como sujeitos sociais, precisam de eterna vigilância e educação rigorosa, o que em passado já bem próximo, significava punições físicas e sanções morais, para o aprendizado da adequada conduta social. Assim, não será espantoso que agressores e agredidas pensem a si próprios numa relação mais educativa que de casal, fazendo parte esta educação do sentimento amoroso! 4 Além disto, o advento, nos anos 90, do uso generalizado do conceito de gênero não deslocou inteiramente a abordagem e o direcionamento das ações implementadas de seu alvo preferencial - a mulher para pensar também estratégias de conhecimento e intervenção sobre os homens5 , pelas mesmas raízes históricas já apontadas. Tais considerações foram feitas não com o intuito de se tratar, aqui, desta complexa questão. A vitimização das mulheres e o significado sóciocultural da problemática interativa, das relações intersubjetivas em geral e no âmbito familiar e conjugal, em particular, constitui tema merecedor de tratamento mais profundo e detalhado. O que quisemos apontar, como se desenvolverá a seguir, foi, de um lado, a precedência histórica da tomada da violência contra mulheres como questão do Direito e objeto da Justiça, para à frente traçarmos paralelos com sua emergência como questão de Saúde (qualidade de vida) e alvo da Saúde Pública e das práticas médico-sanitárias. De outro lado, quisemos destacar o fato de que, sem linguagem própria, a violência contra mulheres vê-se revestida de linguagens emprestadas , códigos, nomes, formas de expressar e formas de pensar que serão usadas de empréstimo pelas mulheres que querem se comunicar ou lidar com o problema no interior dessa situação vivida/relatada ou situação a ser compreendida/apreendida. Do direito à Saúde No Brasil, desde os primeiros anos da década de 80, surge um ativo movimento feminista que tem duas principais bandeiras: a violência e a saúde da mulher. Nesta época, o assassinato de algumas mulheres de classe
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LILIA SCHRAIBER E ANA FLÁVIA D'OLIVEIRA
média por seus maridos ou ex-maridos é acompanhada de intensa mobilização para evitar a absolvição dos criminosos com base nos argumentos de legítima defesa da honra e caráter passional do crime, como era comum ocorrer então (Verardo, 1995). Acusando a impunidade reinante para os crimes de violência conjugal, e a transformação da vítima em ré através de seu julgamento moral, o movimento passa a solicitar a princípio que os crimes cometidos nas relações íntimas tivessem um tratamento equivalente aos crimes de igual natureza ocorridos entre desconhecidos, nas ruas, baseado no fato de que os direitos deveriam ser iguais para todos. Enunciado o problema da violência conjugal, o que era uma situação comum mantida em segredo no mundo privado, passa a ganhar o espaço público e exigir soluções. A partir daí, várias iniciativas de apoio às mulheres são organizadas por grupos feministas em diversas cidades do país, como os SOS-Mulher em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Estes serviços, mantidos voluntariamente por feministas, tiveram dificuldades e precariedades institucionais (Verardo, 1995), mas seu objetivo foi cumprido: a violência contra a mulher, na sua forma mais conhecida, a violência conjugal, era agora uma questão pública. O movimento de mulheres inicia parcerias com o Estado no sentido da implementação de políticas públicas para trabalhar com esse problema. Em 1983 é criado o Conselho Estadual da Condição Feminina, em São Paulo; em 1985 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), também no Estado de São Paulo. A instituição das DDMs permitiu que delegacias especiais para crimes contra a mulher, com funcionárias exclusivamente mulheres e devidamente treinadas, fossem implantadas, dando enorme visibilidade ao problema. O Brasil foi o primeiro país no mundo a propor este tipo de intervenção. Hoje em dia, já são mais de cem DDMs só no Estado de São Paulo, mais de 180 em todo o país (Brandão, 1996) e inúmeras delegacias do mesmo tipo em diversos países da América Latina (Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe, 1996). As DDMs foram o primeiro e grande recurso no combate público à violência contra a mulher e especialmente à violência conjugal no país. Seu caráter é basicamente policial: detectar transgressões à lei, averiguar sua procedência e criminalizar a violência doméstica. Note-se que quando é enunciada como desvio da normatividade social, e não mais uma norma aceita socialmente, a violência doméstica foi interpretada em primeiro lugar como um crime, e que, apesar da saúde ser uma importante bandeira feminista, durante a década de 80, a idéia desta forma de violência como um problema da esfera da saúde era quase inexistente. O crime é uma transgressão da norma social aceita, e, como tal, enquadra-se na lei e é passível de responsabilização e punição.
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No entanto, ainda que a lei a princípio seja feita para ser aplicada a todas as relações interpessoais, observam-se muitas dificuldades ao tentar aplicá-la na esfera das relações conjugais, familiares e muito íntimas. O crime de lesão corporal leve, por exemplo, tem características e sentidos muito diversos quando se trata da briga de dois desconhecidos em um bar ou das relações cotidianas de um casal, mas a lei brasileira não considera este fato na definição e apuração do crime e na determinação da pena. Esta diversidade não significa que um crime seja mais legítimo que o outro, mas sim que assumem significados diversos para os presentes. Dirigir a questão da violência doméstica ao Judiciário acabou por tornar aparente que os crimes cometidos por pessoas muito próximas das vítimas têm uma configuração própria e necessitam regulação penal e também civil específicas, além de um compromisso do Estado em garantir o acesso e o funcionamento desses mecanismos. Também deixa claro que as leis podem encobrir a desigualdade justamente pelo apelo da igualdade. Nem todos são iguais perante a lei, embora para a lei todos sejam exatamente iguais, como sabemos. Diversos países latino-americanos aprovaram, nos últimos anos, leis específicas para a violência doméstica (Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe, 1996), mas o Brasil ainda não realizou este passo. As avaliações desses processos demonstram, entretanto, que, mesmo com leis específicas para a violência doméstica, a linguagem jurídica continua apresentando muitos problemas para enquadrar as situações de violência. A partir dos anos 90, além de remeter o problema à área da justiça e da polícia, que demonstraram resistências importantes e diversos problemas na incorporação do tema, o movimento de mulheres inicia nova estratégia. A discussão da violência contra a mulher foi remetida estratégica e conscientemente para três campos principais: os direitos humanos, a saúde e o desenvolvimento social, os três já consolidados e reconhecidos internacionalmente (Heise et al., 1996). O movimento buscou associar a violência a estas questões já reconhecidas como importantes, utilizando este prestígio para colocar a violência contra a mulher na agenda internacional. Além disto, estes campos tinham conceitos e ferramentas que poderiam ser úteis no trabalho com a violência contra a mulher, tais como a linguagem dos direitos e a noção de prevenção, por exemplo. Ao fazer este movimento, o tema encontra novas linguagens possíveis de expressão e trabalho além da jurídica e policial, e passa a ser explorado como um problema também de saúde. Os dados epidemiológicos são bastante expressivos. Os homens, e especialmente os homens jovens, estariam muito mais sujeitos que as mulheres à violência no espaço público, e especialmente ao homicídio, cometido por estranhos ou conhecidos. Já as mulheres estão mais sujeitas a serem agredidas por pessoas conhecidas e íntimas do que por desconhecidos, o que pode significar violência repetida e continuada que, muitas vezes, se perpetua cronicamente por muitos anos ou até vidas inteiras. As estatísticas a seguir dão uma noção da prevalência disseminada do problema ao redor do mundo, e especialmente em alguns países do continente americano, ainda que de forma grosseira e com diferenças importantes na metodologia de coleta de dados:
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LILIA SCHRAIBER E ANA FLÁVIA D'OLIVEIRA
País e autor
Amostra
Tipo de amostra
Achados
Canadá
12300 mulheres de 18 anos ou mais
Amostra nacional representativa
25% das mulheres (29% das que alguma vez foram casadas) informam haver sido atacadas fisicamente por companheiro atual ou anterior desde os 16 anos de idade.
(Larrain, 1993)
1000 mulheres entre 22 e 55 anos em Santiago envolvidas em uma relação por 2 ou mais anos
Amostra aleatória estratificada
60% foram abusadas por companheiro, 26,2% foram fisicamente abusadas
Colômbia, 1990
3272 mulheres urbanas; 2118 mulheres rurais
Amostra nacional representativa
20% abusadas fisicamente,33% abusadas psicologicamente, 10% estupradas pelo marido
488 mulheres de 15 a 49 anos
Amostra representativa
52% de violência física
2143 casais oficialmente casados ou coabitando
Amostra probabilística a nível nacional
28% reportam ao menos um episódio de violência física
(Statistics Canada, 1993)
Chile
Nicarágua, Leon (Ellsberg et al., 1998)
EUA, 1986
Adaptado de Heise et al., 1994
Esta violência tem conseqüências para a saúde que vão além dos traumas óbvios das agressões físicas. A violência conjugal tem sido associada com o aumento de diversos problemas de saúde como baixo peso ao nascer, queixas ginecológicas, depressão, suicídio (Stark & Flitcraft, 1996), gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis (DST), queixas gastrointestinais, queixas vagas, e outras (Heise et al., 1994). A prevalência de violência na gestação tende a ser ainda maior que os índices de prevalência encontrados para violência física e sexual no último ano em populações não grávidas. Isto fez com que alguns autores postulassem que a gravidez poderia consistir um risco aumentado para violência (Stark & Flitcraft, 1991; McFarlane, 1992). Mulheres que sofrem violência física e sexual parecem utilizar mais os serviços de saúde. Por outro lado, os profissionais de saúde não identificam ou pelo menos não registram a violência em prontuário como parte do atendimento. Stark & Flitcraft (1996) encontraram 2,8% de casos de violência doméstica identificados pelos médicos em uma consulta em serviço de emergência, enquanto o estudo mais detalhado de todo o prontuário mostrou que 9,6% destas mulheres tinham sido agredidas físicamente e 15,4% delas tinham histórias de lesões prováveis ou sugestivas de violência doméstica. Em São Paulo, estudo em um serviço de atenção primária mostrou que 57% das mulheres atendidas relataram algum episódio de violência física na vida. Apenas 10% dos casos estavam registrados em prontuário (Schraiber & D'Oliveira, 1999). Embora muitas vezes não registrem nenhuma menção à violência
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doméstica, os profissionais de alguma forma reconhecem a situação, porque prescrevem diferenciadamente: 24% das mulheres em situação de violência atendidas em um pronto-socorro receberam tranquilizantes ou analgésicos, enquanto 9% das mulheres com lesões não intencionais tinham a mesma prescrição. Quando reconhecida, ainda que não registrada como tal, a situação de violência também leva a mais encaminhamentos para serviços de saúde mental: 15% das pacientes que viviam situações de violência doméstica tiveram este tipo de encaminhamento, enquanto apenas 4% das vítimas de lesões não intencionais receberam a mesma orientação (Stark & Flitcraft, 1996). Um estudo que tem sido muito citado (Sugg, 1992) busca estudar as barreiras à esta detecção pelos profissionais médicos. Foram realizadas entrevistas abertas com 38 profissionais, predominantemente médicos de atenção primária de uma rede de serviços da HMO em Washington, buscando as dificuldades percebidas por esses profissionais para a identificação do tema. Os autores utilizam no título uma associação bastante expressiva: trabalhar com a violência é difícil porque é como abrir a Caixa de Pandora. Este mito foi citado repetidamente pelos entrevistados e refere-se a uma caixa que, assim que aberta, libera a doença, a insanidade, o vício, a maldade no mundo. Este mito mostra o medo de trabalhar com diabos que poderiam ser liberados ao se tratar do assunto (Sugg & Inui, 1992). As propostas para a área de saúde têm sido, basicamente, as de introduzir a busca ativa de casos, com perguntas rotineiras nas anamneses de serviços de diversas naturezas (Pronto-socorro, pré-natal, ginecologia, saúde mental etc...) para a identificação, registro e referência adequada dos casos. No Brasil, temos uma outra intersecção interessante, que diz respeito à introdução, no inicio dos anos 90, da realização do aborto legal (estupro e risco de vida para a mãe) na rede pública de saúde. Este movimento resultou em mais de dez hospitais em todo o país que hoje realizam o procedimento, alguns dos quais também prestam assistência multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Mas a incorporação da violência à área de saúde não se dá sem questões. Assim como a linguagem do crime não expressa adequadamente toda a complexidade da violência doméstica e sexual, tampouco a linguagem da doença consegue este feito, guardando possibilidades, mas também riscos importantes. Delegacias de Defesa da Mulher e Serviços de Saúde Apesar das DDMs, e do aumento de denúncias que elas propiciaram, a impunidade continua e muitos processos não são instaurados, poucos chegam a julgamento e o número de condenados é ínfimo. Esta ineficácia das DDMs deve ser analisada com cuidado, porque pode iluminar alguns aspectos importantes para pensarmos a incorporação do tema pela Saúde. A retirada da queixa, procedimento muito comum, podendo atingir cerca de 70% dos registros (Brandão, 1996), é um fato recorrente que vem minando a credibilidade da estratégia, já que reforça o mito de que as mulheres não querem mudar a sua situação, e gostam de apanhar . É interessante notar, entretanto, que o uso das DDMs pelas mulheres parece seguir uma
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lógica diversa da lógica da instituição policial, e mesmo do movimento feminista, como nos mostra Brandão. Se para a polícia a queixa tem que ser tratada do ponto de vista penal, isto é, na linguagem jurídica do crime, as mulheres que se queixam raramente consideram essas queixas como passíveis de criminalização. Tendo as Delegacias como único recurso visível de enfrentamento do problema, bastante legitimado entre as classes populares e extremamente divulgado nos últimos anos, especialmente pelo movimento feminista, como um lugar de defesa dos direitos da mulher, as mulheres buscam nelas uma mediação do conflito privado. A concepção do que seja exatamente direitos ou interesses das mulheres, entretanto, varia bastante, e uma boa parte da demanda dirigida às Delegacias são intervenções na área civil, como soluções legais para a separação ou outras expectativas, tais como dar uma dura no marido, que não se enquadram na função primária da polícia penal tal como compreendido pelas trabalhadoras das Delegacias, isto é, verificar e apurar o crime. As mulheres que procuram a DDM têm uma visão global de seu problema, cujo sentido é bem mais complexo do que os crimes tipificados em lei, como a lesão corporal. A própria agressão física pode não ser o problema para algumas delas, já que a perturbação da ordem familiar que ela indica pode ser bem mais importante. Brandão nota, entretanto, que assim que as mulheres pesquisadas percebem que sua queixa não pode ser reconhecida pela instituição policial, tratam de tentar adequar sua demanda à linguagem jurídica do crime, denunciando, por exemplo, uma ameaça , para legitimar a reclamação de um marido que está perturbando a ordem doméstica, por exemplo, com amantes e bebedeiras, já que o problema assim enunciado não se enquadra em nenhum crime previsto em lei. Por outro lado, as trabalhadoras das DDMs tampouco consideram as queixas como pertencentes ao que entendem como seu campo de atuação, já que muitas vezes estas não podem ser enquadradas em crimes tipificados em lei, e já que percebem que a intenção das mulheres muitas vezes está distante da idéia de punir seus parceiros conforme previsto em lei. A retirada da queixa é um procedimento extremamente comum que resulta da interação das vítimas , hesitantes em criminalizar penalmente o parceiro que está perturbando a ordem doméstica, com as policiais, que percebem nas queixas uma situação mais social ou psicológica , desqualificando-as como crime. Nesse sentido, as profissionais da Delegacia e as mulheres que as demandam compartilham de igual interpretação do fato: a violência doméstica não lhes parece uma ocorrência passível de criminalização. Daí o encontro que se verifica no ato de retirada da queixa. Este encontro contrasta fortemente com a proposta de política pública reivindicada pelo movimento feminista, assumida pelo Estado e materializada nas DDMs, que busca justamente tratar esses eventos como crimes passíveis de averiguação e punição, baseando-se em uma idéia liberal de direitos individuais. Brandão (1996) ressalta que esta interpretação da retirada da queixa lhe dá um sentido diverso da idéia comum de que o procedimento seria fruto da falta de consciência das mulheres de seus direitos ou de sua cidadania, ou de sua submissão, enquadrando o processo como uma ocorrência institucional a partir de concepções de direitos diversas.
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A retirada da queixa não é, entretanto, percebida pelas mulheres como contraditória ao movimento que as levou a registrá-la. Ao contrário, elas tendem a retomar a negociação com o acusado em uma posição superior à qual se encontravam anteriormente. Na ótica dessas mulheres, a suspensão do processo seria, então, não um ato contraditório à denúncia, mas um elemento que pode favorecer o retorno da reciprocidade rompida, que é muitas vezes o seu interesse principal (Brandão, 1996). Por outro lado, para as trabalhadoras das Delegacias, a retirada da queixa confirma a idéia de que a demanda foi mal dirigida, não estando dentro de sua competência profissional de intervenção. Ainda que compartilhem da idéia de que as situações relatadas não se enquadrem como crime, usuárias e trabalhadoras divergem, portanto, quanto às expectativas de intervenção possível das Delegacias e aos resultados alcançados. Podemos imaginar que com os serviços de saúde possa ocorrer situação análoga, guardadas as devidas especificidades. Além de transgressão da norma civil - crime -, a violência estará sendo, neste caso, nomeada como causadora de alterações da normatividade vital - doença. Se para os policiais não é exatamente uma demanda pela ação penal diante de um possível crime, este sofrimento da mulher em situação de violência tampouco é doença para os médicos e profissionais de enfermagem, a não ser que haja alguma base anatomo-patológica objetiva para justificá-lo. Neste último caso, a interpretação de doença pode ser acolhida e a violência perde seu sentido e sua importância, tendendo a ser desconsiderada. Do contrário, esta queixa é desqualificada, alegando-se ser de ordem social ou psicológica, e não é acolhida pelo serviço, que opera sob a racionalidade biomédica de intervenção, isto é, a doença como alteração anatomo-patológica enquanto alvo da atuação profissional. Por outro lado, da perspectiva das mulheres, todo o sofrimento que levam aos serviços de saúde é potencialmente doença, e como tal pode e deve ser diagnosticado e tratado com base em um saber científico e, portanto, bastante legitimado. Esta nos parece ser a expectativa das mulheres em serviços de saúde em razão de sua própria constituição como usuárias. Como se dá, então, a interação entre usuárias e profissionais de saúde, desde o momento em que a mulher percebe o sofrimento como doença e resolve procurar um serviço, até o momento em que segue uma orientação e tem (ou não) sua demanda atendida? O interior deste processo, a atividade assistencial em saúde, é o centro desta interação: é ali que é negociado (ou não) o quanto o sofrimento pode ser traduzido em doença, e os significados que isto pode ter nesta interação. É ali, portanto, que o que foi vivido pode ser percebido como transgressão e violência, ou não, e que as alternativas terapêuticas são negociadas ou impostas.. A área da saúde, assim como a polícia, tem dificuldades em trabalhar questões percebidas como culturais, ou sociais e até psicológicas. A proposta mais divulgada para os serviços, de simplesmente detectar a violência contra a mulher com busca ativa, de rotina, ou screening, pode ter o efeito inesperado de, detectada a violência, a demanda ser rejeitada como nãodoença , porque social, ou por outro lado ser percebida como patologia, o que também levanta questões, por reduzir ao corpo individual aquilo que é por definição das interações humanas. A patologia não é responsabilidade
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daquele que está doente, e cabe ao profissional habilitado conduzir o doente de volta ao estado de normalidade. Para isto, o sujeito doente é expropriado de seu juízo privado acerca de seu corpo e deve entregar-se em mãos profissionais e seguir corretamente todas as prescrições. Parece-nos que, ao aplicar a idéia de doença à violência, podemos incorrer em um acirramento da idéia de vítimização colocada no início deste ensaio, reforçando a idéia de que as mulheres nessas situações seriam sujeitos incompletos, que necessitariam de uma tutela especializada. A solução pode acabar, assim, por ter um impacto menor sobre o problema ou muito diverso do esperado, como parece estar ocorrendo com as DDMs. Existirá algum espaço próprio para este sofrimento que a princípio não tem lugar ? Não tem lugar no corpo, não tem lugar no trabalho... Não tem lugar na lei, não tem lugar na patologia... Terá este sofrimento sem lugar alguma linguagem que o represente? Como poderá ser expresso, falado, escrito, mostrado? Poderá ser escutado e compreendido no direito ou na saúde? Poderá ser trabalhado? De que forma? Quais suas conseqüências técnicas e políticas? Sem lugar definido ou reconhecido no âmbito das práticas que poderiam acolher demandas e necessidades relacionadas à violência de gênero, a violência experimentada pelas mulheres e seus efeitos na vida e na saúde não encontram canais de expressão ou comunicação já que não possuem códigos, nomeações ou linguagens que lhe seriam próprias. Este vivido não é, por parte dos profissionais, reconhecido e nomeado como demanda a ser acolhida pelos dois discursos competentes aqui tratados: o da Lei e o da Medicina. O movimento de mulheres vem tratando de infiltrar nestes discursos uma linguagem própria para abordar a violência contra a mulher. Apesar de seus esforços e grandes avanços, no entanto, a Medicina e o Direito permanecem virtualmente impermeáveis em termos de uma linguagem própria de expressão do problema. Serão, entretanto, a nosso ver, alvo por parte das mulheres de uma tentativa de aproximação neste sentido: sem ser crime, a violência será uma espécie de transgressão da ordem ; sem ser doença, uma espécie de transgressão do corpo . Possibilidades de atuação na Saúde Nossos cinco anos de trabalho com a questão, associados à nossa experiência em implantação, supervisão e avaliação de Programas de Saúde de Atenção Primária e elaboração de um Guia Prático de Serviços (1999) nos permitem esboçar algumas opiniões preliminares de caminhos possíveis para que as rotas tentadas se tornem ao menos um pouco mais adequadas à expressão, ao acolhimento e à resposta para um problema tão comum e ao mesmo tempo tão ignorado no cotidiano das práticas em saúde. A violência é uma situação de vida de difícil manejo e solução e está presente na vida da maioria das pessoas, em graus maiores ou menores. Por esta razão, devemos lembrar que os profissionais de saúde, assim como as policiais, não se encontram protegidos desta situação, e que muitas vezes, ao introduzir a questão em algum serviço para que se comece a trabalhá-la, necessitaremos acolher também os próprios profissionais; e que durante todo o trabalho deve-se ter atenção para esta questão (D'Oliveira & Schraiber, 1998). Ao mobilizar para o problema, podemos tocar em
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situações latentes que podem agudizar-se na vida das(os) próprias(os) trabalhadoras(es) e de sua família, que devem receber supervisão e suporte. Para que se possa abordar o problema nos serviços, é necessário contar com um espaço de expressão para as angústias e questões da clientela, que não se resuma à aproximação biomédica estrita, ou à busca de patologias conforme definidas pelo saber médico. Outros profissionais que atuam na saúde, como os de Psicologia, Enfermagem e Serviço Social, têm alguma experiência com a escuta de problemas que não são exclusivamente biomédicos. Isto não significa, obviamente, abandonar a vocação específica dos serviços, mas sim, em nome de sua melhor eficácia técnica, escutar a(o) usuária(o) em toda a complexidade de sua demanda. Já está demonstrado o quanto a violência pode estar relacionada a diversos problemas de saúde comuns na prática clínica e à baixa resolutividade do serviço em suas ações. Ouvir a demanda relacionada à violência significa ouvir o usuário (e isto é bastante complexo!!), e também a estar consciente da existência do problema e poder perguntar sobre ele, no momento apropriado e sem constrangimentos. Uma situação que afeta de 20 a 50% das mulheres não pode ser objeto de estigmatização ou vergonha e o receio dos profissionais em abordar o assunto muitas vezes expressa um julgamento moral próprio, e não um constrangimento em expor a situação por parte das usuárias. Portanto, é necessário pensarmos, em cada serviço e em cada situação assistencial, quais seriam os canais de expressão, grupais ou individuais, mais propícios e adequados para possibilitar a emergência da questão. É necessário que a situação enunciada seja acolhida, qualificada e tratada com respeito e sigilo estrito. O grande risco aqui é tratarmos a violência como uma doença ou como um risco em saúde, e deduzirmos imediatamente daí um conjunto de procedimentos e ações que a mulher deve seguir para poder curar-se do problema. Se a violência é um problema com sérias conseqüências para a saúde, ela é uma situação que extrapola em muito esta esfera, e continua sendo uma situação de vida, com toda a complexidade que isto implica. A pressa dos profissionais de saúde em tratar o problema pode ser extremamente contraproducente, uma outra violência, já que pode desrespeitar a trajetória da mulher e da família, e acabará por frustrar os trabalhadores que se sentirão pouco resolutivos em sanar o problema. Qualificar a violência como algo indesejável e injusto pode reforçar a situação para a pessoa, já que legitima seu sofrimento; por outro lado, abre possibilidades de transformação pela consciência do processo a que se submete. A resolução do problema, quando possível, não se dará no âmbito específico da saúde. Portanto, é necessário que os serviços de saúde, ao abordarem o problema, estabeleçam com cada mulher uma escuta responsável, exponham as alternativas disponíveis em termos de acolhimento e intervenção (DDM, apoio jurídico, apoio psicológico, casa abrigo, ONGs etc...) e decidam com ela qual seriam as alternativas melhores para o caso, incluindo-a ativamente na responsabilidade pelo destino de sua vida. No município de São Paulo, reunimos informações sobre todas as opções assistenciais existentes, compilamos essas informações separando-as por diversas modalidades
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assistenciais (policial, jurídica, psicossocial especializada e básica e médica) e publicamos um Guia de Serviços contendo todo este material. O Guia vem sendo distribuído para todos os serviços que prestam assistência a mulheres na cidade, e constitui material fundamental para este trabalho, disponibilizando as referências possíveis. A decisão compartilhada é fundamental aqui, para que consideremos a mulher como um sujeito pleno, e não a violentemos mais uma vez ao tratá-la como incapaz. O encaminhamento decidido de forma unilateral pelo profissional de saúde, e algumas vezes mal compreendido pela mulher, pode ter resultados desastrosos, como é o caso da referência quase automática para serviços psicológicos, que podem ser interpretados pela mulher (e algumas vezes por sua família) como um atestado de que o problema é exclusivamente seu e que seu funcionamento subjetivo estaria alterado de alguma forma (doença da cabeça). Além disto, é necessário respeitar o tempo de cada uma. Muitas vezes a conversa ou informação que acontece hoje fará sentido ou será utilizada pela usuária meses, ou anos depois, a depender do seu processo e das suas condições objetivas. Isto não desmerece o trabalho, desde que não usemos critérios de resolutividade imediata para avaliá-lo, e sim a idéia de que a disseminação dessas informações para a população é importante na construção da idéia de cidadania. O simples conhecimento da existência de serviços especializados no assunto pode ter uma importância fundamental na percepção que a mulher tem do caráter social de sua situação, como demonstra nossa experiência. É importante notar que, ao contrário do que parece ao senso comum, uma boa parte das pessoas que vivem em situações de violência já tiveram diversas decisões e ações no sentido de romper a violência, mas muitas vezes não foram bem sucedidas nas instituições às quais recorreram. Este caminho truncado de busca de alternativas foi nomeado como rota crítica por pesquisadores da Organização Panamericana de Saúde, e está repleto de desencontros, desestímulos e falta de acesso na tentativa de uso de Delegacias, advogados e outras instituições. Estando na rota da maioria das mulheres, que por um motivo ou outro o utilizam, os serviços de saúde têm o dever de constituir-se como um local de acolhimento e elaboração de projetos de apoio, ao invés de ser mais um obstáculo na tentativa empreendida pelas mulheres de transformação de sua situação. Referências bibliográficas BEAUVOIR, S. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educ. Real., v.20, n.2, p.133-84, 1995. BRANDÃO, E.R. Nos corredores de uma Delegacia da Mulher: um estudo etnográfico sobre as mulheres e a violência conjugal. Rio de Janeiro, 1996. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Medicina Social, UERJ. DOMENACH, J.M. La violencia. In: LA VIOLENCIA y sus causas. Paris: UNESCO, 1981. D'OLIVEIRA, A.F.L.P., SCHRAIBER, L.B. Violence against women: a physician's concern? In: FIGO, XV World Congress of Gynecology and Obstetrics, 1998, Londres. Proceedings... Londres, 1998, p. 157-63.
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SCHRAIBER, L. B., D'OLIVEIRA, A. F. L. P. Violencia contra mujeres: Interfaces con la Salud, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. Este ensayo procurará tratar del tema violencia bajo el recorte de la violencia contra mujeres. Discute la precedencia histórica de la tomada de la violencia contra la mujer como cuestión de Derecho y objeto de la Justicia, trazando paralelos en la emergencia del problema como cuestión de Salud y objetivo de la Salud Pública y de las prácticas médicosanitarias. PALABRAS-CLAVE: violencia; salud de la mujer; derecho de la mujer; mujer.
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Velhice, alteridade e preconceito: dimensões do imaginário grupal com idosos*
José Carlos de Paula Carvalho1
PAULA CARVALHO, J. C. Old age, otherness and prejudice: dimensions of the group imaginary relative to the elderly, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v. 3 , n.5, 1999.
The text focuses on the problematics of old age and the treatment given to it within urban-industrial societies shaped by the Kapitalismus Geist and the rationalization flows that permeate them, in the form of the production of othernesses that thus become agents of prejudice strategies, with the deep socio-psycho-anthropo-organizational dynamics being the problematics of the Shadow or the outgrowths of the unconscious in its various strata constituting the dynamics known as the phantasmagoric pole of socio-cultural groups, which dynamics is denied by the competent line of discourse in its several levels of development, from the managerial to the clinical, including the circuit of speech and therefore of communication with the elderly, and raising the complex problem of an education for the second half of life and of a perlaboration of the images of Death. KEY-WORDS: old-age; otherness; unconscious; prejudice.
O texto enfoca a problemática da velhice e o tratamento que a ela é dado nas sociedades urbano-industriais formadas no Kapitalismus Geist e nos fluxos de racionalização que as permeiam sob as formas da produção de alteridades que assim agenciam estratégias de preconceito, sendo a profunda dinâmica sócio-psico-antropoorganizacional a problemática da Sombra ou as enações do inconsciente em seus vários estratos, constituindo a dinâmica chamada pólo fantasmático dos grupos sócio-culturais, dinâmica essa que é denegada pelo discurso competente em seus vários níveis de elaboração, do gerencial ao clínico, passando-se pelo circuito da fala, portanto da comunicação com idosos, e levantando-se o intrincado problema de uma educação para a segunda metade da vida e de uma perlaboração das imagens da Morte. PALAVRAS-CHAVE: velhice; alteridade; inconsciente; preconceito.
* Conferência proferida no Seminário O idoso e a cidade de São Paulo, promovido pela Secretaria Municipal da Família e do Bem Estar Social SP, março de 1998. 1 Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP.
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JOSÉ CARLOS DE PAULA CARVALHO
Para todos os velhos de minha(s) vida(s). Para o Venerável.
... e esse foi meu estudo para o ofício de ter alma . (Cecília Meireles) Como o pão é, de todos os alimentos, o mais necessário, a meditação sobre a morte é, dentre todos os exercícios, o mais necessário... E é verdadeiramente significativo que os próprios pagãos afirmaram algo semelhante, pois que definem a filosofia como sendo a meditação da morte... (São João Clímaco) Aquilo que parece mau (o Mal...), é simplesmente a condição de um Bem maior... (Carl Gustav Jung) A transição entre a manhã da vida e o depois do meio-dia da vida dá-se por uma transmutação de valores. Sem nenhuma preparação os homens chegam à segunda metade da vida, e de modo quase que imprevisto; pior ainda, atingimos o após meio-dia da vida cheios de preconceitos, de ideais, de verdades que eram até agora nosso arsenal. Ora, é impossível viver o crepúsculo da vida com a mesma programação da manhã, pois aquilo que era então importante, provavelmente será de pouca significação e a verdade da manhã será o erro do crepúsculo. (Carl Gustav Jung)
Antropologicamente, como Jung lembra na imagem do Sol em sua ascensãodeclínio-renascimento do Outro lado, uma imagem da Vida humana, todos temos a mesma comunidade de destino ... e, por isso, não deixamos de ser interpelados pela Vida humana em suas várias fases, a morte inclusive (Morin, 1997). A interpelação que nos é dirigida tem o significado de assumirmos com seriedade, responsabilidade, dignidade, mas, sobretudo, plenitude (Jung, 1963) o sentido de cada fase e estarmos atentos para aquelas pelas quais já passamos pois teremos um dever de com-preender aquelas pelas quais já passamos, como a infância e a juventude, e em não transformá-las, quando vividas por outros mais jovens que nós, em propostas preconceituosas de como vivê-las, julgando-as segundo nossa experiência vivida. Um dever do adulto é, se vive com plenitude, desenvolver a abertura e a receptividade e mais ainda para aquelas fases por que ainda não passamos, a morte inclusive. O melhor é dosar entre certa preparação e o deixar-se surpreender, espontaneamente. Se não desenvolvermos essa atitude interior e exterior para conosco e para com os outros, estaremos
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VELHICE, ALTERIDADE E PRECONCEITO...
sendo fonte de criação de preconceitos e estigmas, de que seremos as primeiras vítimas! Em que consiste essa atitude? É uma atitude hermenêutica e uma atitude antropológica (Morin preferiria antropolítica , ou seja, envolvendo uma política do Homem): como hermenêutica é uma atitude compreensiva, o que significa que estou nela implicado desde sempre e comprometido, e é por isso que ela diz algo a mim e me motiva a falar dela, como se o outro e aquilo de que eu falasse fossem, como na realidade o são, meandros para eu chegar até esse aspecto e essa perspectiva em mim mesmo. A isso se chama com-preensão ou im-plicação : temos algo em comum, apesar de... se isso me encanta, ou se isso me assusta. Por isso sou interpelado, e a isso pode-se reagir vendo-ouvindo-abertamente, tentando a arte viva-vividavívida de compreender... ou a arte mortífera de estigmatizar... Querer aproximá-la mediante uma pedagogia da escuta , ou dela querer me livrar exorcizando-a e "tornando os outros mais diferentes do que na realidade o são" (Lévi-Strauss, 1974, p. 2-3) para justificar meu ato de me livrar deles com as melhores intenções do mundo. Veja-se o filme As melhores intenções . Porque, nesse caso, diz Dollard, quem quer afogar seu cão, diz que ele está com raiva ... e criamos toda a mecânica do preconceito, que essencialmente consiste em produzir Outros , outros dotados de tanta diferença engendrando angústia que é preciso deles me livrar. E deles eu me livro por meio das estratégias do preconceito sustentadas pela operacionalidade técnica e político-administrativa do discurso competente , sendo a dinâmica profunda de ambos os aspectos aquilo que Jung designou como problemática da Sombra (Zweicg, 1994; Paula Carvalho, 1997). Mas, antes de virmos ter a esse aspecto da atitude, vejamos o que nos ensina o fato de reagirmos às diferenças com uma pedagogia da escuta . Só o fato de se falar e é Ricoeur quem o diz em uma pedagogia , significa que é preciso haver um (árduo) aprendizado e que esse aprendizado é uma formação que, sem dúvida, encontrará pelas fuças a antropolítica do preconceito-discurso competente, com a qual terá que se haver... mas essa é outra questão, das políticas públicas e das contra-políticas públicas... A pedagogia da escuta significa que temos a aprender com a lição das palavras e com a lição de mestres. A lição de palavras a etimologia e o campo semântico salutarmente nos lembra que, segundo Kovalewsky (1998), em grego, em latim e em velho eslavo, escuta se refere, e envolve, obediência , ou essa tem suas raízes na escuta ; como diz o autor, ela abre o ouvido interior . Entretanto, no campo semântico dos aspectos religiosos dessas línguas, está logo presente a humildade , que remete por sua vez a húmus e a homem : escutar é obedecer a algo os gregos diriam a heimarmene , o Destino que estava acima dos deuses e dos homens; os romanos diriam o Fatum , ou o fado dos ibéricos; os românticos alemães diriam Schicksal ... a Voz interior , mas a algo que é, sente-se, de dimensão maior e de maior sentido que os empobrecidos egos e ao que os homens reagem recebendo como se fossem
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uma terra fértil, pois aqui vão germinar grãos que partem de outros , mas como se foram seus próprios. Esse húmus vai ser cultivado e a esse campo cultivado, culto, se diz cultura , que é uma liturgia (uma obra coletiva oriunda da troca de escutas como verdadeiro diálogo), mas que visa ao crescimento pleno individual (Jaspers, secundado por Evdokimov, vai nos lembrar, integrando esse campo semântico, que isso se diz etimologicamente auctoritas , ou seja, autoridade , que nada tem a ver com as encarnações laicas e políticas e institucionais da autoridade , mas com o crescimento e a plenitude oriundos dessa pedagogia da escuta). A lição de mestres nos diz que essa pedagogia é uma educação negativa , ou seja, com Rousseau, que só podemos, e devemos, ensinar o que não-fazer para chegar a esse crescimento pleno, mas não dizer qual é seu conteúdo: indicamos, numa poética da sugestão, o como e não os quês , e mais, com Rogers, para que isso aconteça é preciso haver um espaço de acolhida, e para criá-lo é preciso perder tempo e ter ócio , para que se veja e se deixe aprender que o rio corre por si mesmo. Não é preciso, por ora, senão marcar como essa antropolítica vai contra um pensamento da produtividade e uma ética do trabalho entronizadas no discurso competente (Chauí, 1989) e na burocratização da vida social e cultural (Lapassade, 1975)... que anda de mãos dadas com a produção das alteridades , ou seja, daqueles todos que, por seu modo de ser e seu estilo , são refratários à persuasão e à fábrica de ilusões das promessas sociais do planejamento e das administrações de vidas (Mills, 1967) e, assim, são considerados margens porque estão à margem da ideologia da sociedade urbano-industrial e unidimensional (Marcuse, 1969) , e marginalizados; são considerados outros (ou alteridades ), porque recusam o Mesmo que une a muitos os dominantes no centro, e são produzidos , para serem execrados, mais diferentes do que na realidade o são, e sobre os quais, subalternidade , recaem os preconceitos e os estigmas. Porque essa atitude hermenêutica que os faz se oporem, quando não tanto, pelo tão simples fato de existirem como uma dissidência libidinal-existencial (Lapassade & Lourau, 1970), é uma atitude apofática , em termos técnicos significando uma negatividade ativa contra a atitude catafática as receitas operacionais e técnicas das catáfases institucionais , ou como explicita o grande Berdiaev, a política das sujeições aos vários instrumentos da escravização da liberdade do homem (Berdiaev, 1997) das instituições totais (Goffman, 1978), das escolas aos centros culturais... Essa atitude catafática , da positividade produtivista, racional e eficiente permeia a burocratização da vida social regida pelo princípio da realidade e do rendimento . Sua origem está na racionalização em nível de empresa econômica, cujo modelo burocrático se generaliza para a vida dos grupos sociais como um todo (o pai é um burocrata, o professor é um burocrata, o agente cultural é um burocrata, os técnicos são burocratas, os acadêmicos são burocratas...), dando-se essa mesma racionalização no nível sócio-cultural e no da personalidade: a ética protestante dá origem (Weber, 1967) à conduta metódica de vida e à moral do trabalho (Paula Carvalho, 1989), que se generaliza como a proposta de uma vida desvivida. Veja-se o filme de Kurosawa, Viver . Essa atitude catafática de burocratização da vida social e de racionalização técnica está
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alicerçada num projeto de redução generalizada da vida e se estriba num discurso da competência . Segundo Lefebvre (1970), as características desse projeto de redução generalizada são as seguintes: 1. redução da sabedoria ao saber, e depois do saber ao conhecimento, e depois do conhecimento à informação e da informação à operacionalidade: a formação foi substituída pela ansiedade por receitas daqueles que desaprenderam a descobrir e só sabem apertar parafusos, o que se chama pensamento operacional e técnico; 2. redução das potências do imaginário e de tudo que não se enquadra na racionalidade técnica como desnecessário e pernicioso, o ócio da reflexão e da descoberta, sobretudo, porque é perder tempo e time is money ; 3. a lógica da dominação e do poder como sustentáculos antropolíticos contra a cidadania em seus dinamismos de conscientização libertária e autogestionária. Mas o instrumento que persuade e convence, e que é inculcado e internalizado pela subalternidade, é o discurso competente : só alguém que está investido em determinada função tem a devida competência para falar sobre coisas das quais ela tem o monopólio em virtude de se presumir que, por ela estar naquela função, mesmo que o seja por concursos e pela indústria cultural ou pela propaganda da mídia, no melhor dos casos, presume-se, e depois acaba-se convencendo que ela tem mesmo um saber... quando, na realidade, ela é uma consócia da burocratização da vida social... e seu saber e sua competência são aqueles de que nos falam o projeto de redução generalizada : um apertador de parafusos sob as máscaras de saber fazer ... e, portanto, poder . É o pensamento operacional ou mesmo operatório dos muitos que só sabem re-produzir a ordem sócio-cultural e a estrutura de poder que os paga bem, pois agenciam (agentes, assistentes) a fábrica de ilusões . Porque o discurso competente funciona à base do par ilusão-alusão efeito de conhecimento-desconhecimento . Mills dizia que o planejamento administrativo nas sociedades industriais unidimensionalizadas sabe o que é melhor para todos, pois diz o que devem todos querer, como fazer para alcançar isso e, como não irão alcançar mesmo, o que fazer para se consolar... e aí entra a sociedade de consumo e a fábrica de ilusões. Produzimos ilusões, mas das quais não se tem suficiente consciência, pois isso induziria à revolta; assim, a ilusão envolve uma camuflada alusão a que cada um reconheça também de modo camuflado, pois seria então fator de conscientização! qual a sua posição social ("você sabe com quem está falando?", Matta, 1980)... E assim parece criar um conhecimento, pois se reputa que os emissores desse discurso detenham saber e tenham competência (vejam-se esses temas nos discursos da propaganda política de Fernando Henrique Cardoso e de Mário Covas em receitas escritas, após o discurso persuasivo , na televisão) e que, ouvi-los mas não é a escuta de que falamos, conquanto mesmo essa escuta possa, por absurdo, trazer os mesmos frutos... mas numa atitude apofática , traz conhecimento, quando na realidade há uma
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aparência-efeito de conhecimento, que em profundidade é um desconhecimento... Em profundidade, toda essa mecânica será precisamente o que Adorno chamou de personalidade autoritária , Lobrot (1973), de estrutura de personalidade autoritária e, com mais justeza e dramaticidade, Reich (1978a, 1978b, 1983) designou como estrutura caracterial autoritária e moral dos zéninguéns , de alta periculosidade, pois seus valores não são bióticos , mas tanáticos (portadores de morte como desviver uma vida plena) e agenciadores de estigmas, preconceitos e perseguições às alteridades , de que o livro do autor, O assassinato de Cristo , é uma ilustração trágica. Como sintetiza Dadoun, temos aqui a autoridade do côro dos zéninguéns , que é o contrário de nossa auctoritas . aqueles que jogam as primeiras pedras, aqueles que vêem o cisco no olho do vizinho mas não vêem a trava que está no próprio olho, aqueles que têm telhado de vidro mas atiram pedras no do vizinho, aqueles que focam e criam rumores assassinos, aqueles que jogam a polícia e os cães e a multidão e os psiquiatras, e os educadores, e os administradores e os técnicos nas pegadas do vagabundo, do judeu, do negro, do imigrado, do marginal, das crianças e dos velhos, e aqueles que proclamam em grandes berros místicos suas furibundas verdades religiosas, políticas, científicas e todos aqueles incontáveis zé-ninguéns que seguem em coro de igreja, de partido ou de seita os führers , aglutinando-se e fazendo-se multidão, esquecendo-se em sua porção de Sombra, para saborear a calúnia, criar o rumor, veicular mentira e difamação, constituir as tribos de aclamação, alimentar as fogueiras, correr para o linchamento e, de todo o coração e com toda a boa intenção, assegurar a boa administração dos asilos, das prisões, dos campos de concentração, das escolas, dos centros culturais, os salvadores do país, que querem o bem do povo, sabendo o que é melhor para ele, e a massa imensa e pretensamente silenciosa que baba jogando as últimas pedras, eis algumas figuras da peste emocional ... (Paula Carvalho, 1997, p. 184)
Porque aqui encontramos a dinâmica profunda das estratégias do preconceito aliada aos aspectos ético-políticos: esses, são o etnocentrismo e o discurso competente do projeto de redução generalizada induzido pela burocratização da vida social e por uma fabricação cultural ( animação cultural ), fundamentando-se na racionalidade técnica e na conduta metódica de vida e na ética do trabalho produtivo e eficiente e rentável e envolvendo modelos entrópicos de organização das atividades e uma gestão cultural baseada na heteronomia e numa concepção acabada do Homem . Já a dinâmica profunda que nutre e parte daquelas exclusões-estigmatizações sociais se situa na problemática da Sombra : os outros (alteridades) que foram tornados mais diferentes do que são para serem afogados com as melhores das intenções, que foram produzidos e construídos , esses outros incomodam porque são aspectos meus e de meu
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grupo e de minha cultura mas com eles incompatíveis... por isso eu os exorcizo e os encarno nos bodes expiatórios , que sendo executados, limparão minha consciência e o ser social... Eles são, como diz Jung, a sombra coletiva do meu grupo, ou o inconsciente que incomoda reconhecer, o que é inconsciente às meias, mas tem a ver comigo; só que, nesse choque, que é um choque moral, lembra Jung, porque me obumbra e obumbra a Luz da Razão de meu grupo e de cujo contato adviriam perigo, impureza, sujeira... é melhor que contato não haja, que fiquemos, como diz Leach (1970), nós x eles ; daí, ou nós, ou eles... evidentemente nós. E daí as estratégias do preconceito estribadas numa dinâmica exorcista-projetista do inconsciente pessoal-grupal: Lévi-Strauss lembra que frente a essas negatividades sócio-culturais (ou negativizações que propõem contra-discursos e contra-universos ) as sociedades ou são antropofágicas (devoram o inimigo ou as periculosidades marginais) ou são antropoêmicas (vomitam fora e cercam o vomitado com cercas e muros que isolam o perigo do contágio). Taguieff (1988) diz que teremos, então: antropofagia dialógica, antropofagia digestiva, antropoemia genocida-etnocida e antropoemia da tolerância. Essas são as estratégias de preconceito no tratar as alteridades. Lembrando autores estudiosos de mentalidades, que mostram como o velho e a velhice passam a ser construídos-produzidos socialmente como alteridades passíveis de assim serem tratados (Bois,1989; Gutton, 1990); lembrando que do famoso Colóquio de Roma, En Marge: l Occident et ses autres , os velhos são assim estigmatizados, vejamos, a par dos dinamismos gerais e das razões genéricas já exploradas e comuns a todas as margens e marginalizados , porque os velhos o são e como nem se percatam disso, ou então são sutilmente inculcados e persuadidos. Luke, em Old Age , diz que os velhos que já o sabemos, nesse universo concentracionário das organizações racionais-produtivas da unidimensionalizada sociedade urbano-industrial, improdutivo, margem e alteridade... quando não parasita ... recebem três presentes (de grego...): o corpo decrépito , a raiva impotente e a ruminação das memórias . Mas o que esses presentes trazem que incomodam e fazem dos velhos objetos de segregação sóciocultural e da bondade assistencial-tecno-administrativa? O corpo decrépito traz consigo as imagens de situaçõeslimites geradoras de angústia, apesar de nos ser uma comunidade de destino (mas numa sociedade que, fundada no progresso técnico e nas luzes da razão, estigmatizou como interditos ou tabus o que a desconstrói... mais dia, menos dia, e a cada um de nós...), quais sejam, o desfazimento do refúgio familiar, o abandono, a doença, a perda da vitalidade atlética ... a morte. Em suma, como diz o belo e profundo estudo de Marc Augé e de seu grupo de antropologia da doença e da morte (Augé & Herzlich, 1984), a presentificação do Mal (entenda-se, da
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Sombra Coletiva), pois não temos, nesse Ocidente tecnoburocrata, uma pedagogia da Morte, observam Ziégler (1970) e Thomas (1989), de diferentes pontos de vista. E, assim, como os estudos de Douglas (s.d., 1983) e os de Guattari (1974) mostram, se sobre a imagem do corpo as sociedades inscrevem-gravam as imagens prezadas pela sociedade, com a mudança dessa imagem do corpo, numa sociedade que teme o Mal-MorteSombra-Inconsciente, o aparecimento de outra imagem (de corpo, de sociedade... que só poderá remeter à ancestralidade) o é de outra imagem, a imagem de uma alteridade , contra a qual mobilizam-se as gestões médicas, assistenciais, a indústria mortuária (nos EUA, por exemplo, tornando belo e asséptico ao mortocadáver), em suma, as várias administrações do Bem e das bondades bem intencionadas da tecnoburocracia e dos planejamentos. Pois o morto é perigo, e a Morte ainda mais. Quanto à raiva impotente , basta-nos lembrar que todas as margens são usadas, porque são produzidas pelo centro, são produzidas para o centro e seus interesses de preservar, por oposição a um eles que é social e culturamente exibido numa arena ou num circo, um nós que é o Mesmo e não o Outro. Déroche (1987) mostrou como eles são usados e persuadidos a se deixarem usar... e daí a impotência de se fazer reconhecer essa nova imagem com seus traços peculiares ou ao menos que os deixem viver a segunda metade da vida com seus alvos específicos, como diz Jung. E, por conseguinte, os gradientes da resignação à raiva impotente: porque essa sociedade, em que a sabedoria foi reduzida ao pensamento tecno-operatório, não há velhos sábios , mas ressentidos, como lembra Scheller, e o velho é puerilizado . Porque a imagem do velho sábio ou da velha sábia (Weaver, 1996) remonta a uma sociedade tradicional , e o retorno, ou o refazimento dessa lhaneidade tecnoburocrática pela dinâmica das iniciações às classes de idade e às sociedades iniciáticas é um anacronismo, senão um escândalo... Porque a orientação tradicional da ação social, em Weber, ou o pensamento tradicional e a autoridade carismática contradizem a praxeologia da sociedade urbano-industrial, assim como uma lição de coisas e de costumes. Segue-se a ruminação das memórias... cuja monotonia cansa a todos, loucos por inovações... mas é que na ruminação repetitiva das memórias e no contar estórias e essa sociedade é uma sociedade que não tem memória e se louva de não a ter, por um complexo de partenogênese de adultos ... aparece o dinamismo do mito porque, é Jung quem o diz, e assim o estuda a psicocrítica de Mauron, uma vida só se conta e ao se contar revelase-lhe o mito pessoal, cuja descoberta é a suprema realização do indivíduo e do processo de individuação (Paula Carvalho, 1998) , que é escândalo para as sociedades históricas (Paula Carvalho, 1992), apesar de o progresso e a história serem o mito... do Ocidente. O mito, essa alteridade por excelência! Então, contra essas três mensagens outras , as estratégias do preconceito aplicadas aos velhos e à velhice.
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A antropofagia dialógica usa o diálogo para reduzir o outro ao Mesmo, fazendo-o se persuadir-iludir que assim é o melhor, que estará atualizado , impedindo-o, assim, de manifestar a singularidade de sua fase de vida e de articular a vida sobre esse novo sentido dessa nova fase. É o que acontece com todos os bem-intencionados administradores de assistência como educadores-pedagogos do preconceito e da alienação. É o que vemos com a puerilização dos velhos nos centros culturais, por exemplo, regidos não por uma verdadeira pedagogia do ócio (Cuenca Cabeza, 1995) mas por um dirigismo planejado do lazer que leva o nome de animação cultural e de fabricação cultural (Teixeira Coelho, 1986). Viver , de Kurosawa, filme já citado, é exemplo disso, assim como do contrário o são Madadayo e Dersu Uzala , mas também a conflitividade que é o tema de Rapsódia em Agosto . Uma vez que se impede convencendo ou obrigando, violência simbólica que caracteriza esse diálogo a livre expressão e a constituição de um núcleo interior e, eventualmente, de grupos antônomos e autocentrados e autogestionários articulados em torno dessas constelações específicas de uma fase da vida fato tão característico das sociedades não-históricas, como evidencia a naturalidade violenta do filme A Balada de Narayama , só resta proceder à indigesta digestão dessa subcultura etária potencial, o que se chama enculturação e aculturação, a impossibilidade de constituir e dar seqüência secundum natura ou a perda de uma cultura e de um imaginário específicos, ou seja, a impossibilidade de uma identificação e de uma identidade ou sua perda. É a antropofagia digestiva , como vemos no filme E a luz se fez... . O contrário, nessa pedagogia da escuta , poderemos vê-lo nos filmes A festa de Babette e A excêntrica família de Antônia . Um ponto altamente inquietante, para essa pedagogia da escuta , consistiria em avaliar, por exemplo, a partir dos questionamentos de Lallive d Épinay, até que ponto os Programas das Universidades de Terceira Idade não são solidários dessa estratégia de preconceito... Já a antropoemia genocida ou etnocida é ilustrada sobejamente pela história, na medida em que grupos de velhos, ou de velhos de uma certa procedência, são dizimados sem escrutínio e maior moralidade. Isso desde a eutanásia no mundo euro-asiático antigo... até relatos fílmicos como o belíssimo A pequena loja da rua principal . De modo provocante, e perverso, poderíamos lembrar, no cruzamento dessa estratégia com as anteriores, numa perversa inversão de propostas, numa heterotelia (resultados opostos aos que se propunha fazer com o grupo de velhos numa política assistencialista) de um ritual de rebelião, o denso filme de Buñuel, Viridiana . Enfim, a antropoemia da tolerância , ambígua como a antropofagia dialógica, respeita... e tolera tanto que acaba por cercar em ghettos , asilos, appartheids , repúblicas etc. e cria a incomunicabilidade sócio-cultural e propicia a eficaz manipulação desses grupos segregados, respeitados, até os reduzir à curiosidade e ao exotismo... ainda que o seja das autogestões ... O filme Os filhos da natureza é um eloqüente exemplo dessa temática numa república (não-clínica) para/de velhos. Ao começo dizíamos de uma atitude hermenêutica, que examinamos, e de uma atitude antropológica ou antropolítica de uma pedagogia da escuta ... e agora de uma pedagogia do ócio ... e de uma pedagogia do
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imaginário , ligada às específicas observações da psicologia analítica de Jung com relação a uma antropolítica para/da segunda metade da vida. Seu fundamento é essa atitude apofática que antropologicamente se estriba no fenômeno da neotenia humana (Paula Carvalho, 1990; Gehlen, 1987; Lapassade, 1968) à concepção de homem como ser heterônimo (que gira em função dos outros e desempenha papéis sociais) e acabado (que se perfaz segundo o modelo da curva de vida produtivisita onde nada mais cabe ao velho senão morrer... sem dizer que morre, sem avisar, se possível, pelas doenças etc.), a proposta da psicologia profunda de Jung e da antropologia hermenêutica precisam de uma filosofia do inacabamento e da educação permanente , pois a imagem do Sol mostra que, mesmo em se pondo, no crepúsculo, continua Além, auroral, e sua morte é aparente, na verdade, mudança de registro, dimensão e hemisfério... Pois bem, quando os etólogos afirmam que o homem é um neóteno neg-entrópico , estão a afirmar que o homem, segundo Lorenz, que desenvolve Gehlen, é um ser especialista da não-especialização , um ser aberto ao mundo , um ser destinado a espaços euriecéticos (amplificados) , um lúdico explorador de transicionalidades e espaços potenciais , um ser da álea, do acaso, do risco, do perigo e da crise , um ser inacabado e hipercomplexo ... portanto um Homem cuja vocação é o inacabamento e a aprendizagem permanente , que carece de um ecossistema (físico e mental) para que possam se desenvolver esses traços e, com a criatividade , nascerem mundos ( cosmos e caos ); todos têm a tendência a pensar na criança, que aos poucos será castrada e reduzida ... Entretanto, não existe Puer sem Senex e reversivamente; por isso podemos dizer que essa é a ecologia mental para que os velhos, em seus nichos de emigração interior (Duvignaud, 1970), possam elaborar sua opus da segunda metade da Vida. A antropolítica da neotenia humana e a pedagogia do ócioimaginário fundam-se em profundidade no par arquetípico PUER-SENEX, e como a imagem do Sol, imagem do trajeto da VIDA, perfaz um círculo urobórico, do mesmo modo os VELHOS SÁBIOS. Mas essa imagem de Ressurreição passa pela imagem da Paixão e da Crucifixão pela ideologia unidimensional da sociedade urbano-industrial e pelos estigmas dos preconceitos sabendo, entretanto, que a VIDA É PÁSCOA... e ninguém constrói sua casa na passagem... Para tanto temos um Viático, que é a cibernese do imaginário com grupos visando-se, pela transformação do regime de imagens, à comutação de grupos-sujeitados em grupos-sujeito , tecnicamente uma sociologia do imaginário grupal . Referências bibliográficas AUGÉ, M., HERZLICH, C. Le sens du Mal: anthropologie, histoire, sociologie de la maladie. Paris: Archives Contemporaines, 1984. BERDIAEV, N. De l esclavage et de la liberté de l homme. Paris: DDB, 1997. BOIS, J. P. Les vieux: de Montaigne aux premières retraites. Paris: Fayard, 1989.
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PAULA CARVALHO, J. C. Vejez, alteridad y preconcepto: dimensiones del imaginario grupal con ancianos, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v. 3 , n.5, 1999. El texto enfoca la problemática de la vejez y el tratamiento que se le da en las sociedades urbano-industriales formadas en el "Kapitalismus Geist"y en los "flujos de racionalización"que las penetran bajo las formas de la producción de alteridades que así agencian estrategias de preconcepto, siendo la profunda dinámica socio-psico-antropo-organizacional la problemática de la Sombra o las excrecencias del inconsciente en sus varios estratos constituyendo la dinámica llamada "polo fantasmagórico" de los grupos socio-culturales; dinámica que el "discurso competente" denega en sus varios niveles de elaboración, del gerencial al clínico, pasando por el circuito del habla, por tanto de la comunicación con anciano, y lavantándose el intrincado problema de una "educación para la segunda mitad de la vida" y de una pre-elaboración de las imágenes de la muerte. PALABRAS-CLAVE: vejez; alteridad; inconsciente; preconcepto.
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Violência nas primeiras letras: a escola num conto de Machado de Assis
Sílvia Craveiro Gusmão Garcia
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Antonio Manoel dos Santos Silva
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GARCIA, S. C. G., SILVA, A. M. S. Violence in early education: school as depicted in a short story by Machado de Assis, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
Based on Conto de Escola (School Tale), by Machado de Assis, this text provides a reflection on the issue of violence in the history of our education, analyzing the process of schooling that was in force in Brazil up to the nineteenth century. This consisted of the teacher dominating pupils by means of instruments of fear and coercion, with the purpose of building their character, even though, to this end, teachers resorted to acts of violence. With this analysis as a starting point, it became apparent that the greater the extent to which power depends on maintaining the privileges of a given class, the greater the extent to which violence will prevail in the social structure and, therefore, in education, as one of its institutions. KEY WORDS: character building; education; violence.
Baseando-se no Conto de Escola, de Machado de Assis, o texto reflete sobre a questão da violência na nossa história da educação, analisando o processo de formação escolar, vigente no Brasil até o século XIX, que consistia em o professor sujeitar seus alunos por meio de instrumentos de coerção e medo, com o fim de formar-lhes o caráter, mesmo que para isso recorresse a atos violentos. A partir das análises desenvolvidas, pode-se pensar que quanto mais o poder se fundar na manutenção de privilégios de uma classe, mais a violência se impõe na estrutura social e, portanto, na educação, como uma de suas instituições. PALAVRAS-CHAVE: formação do caráter; educação; violência.
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Pós-graduanda em Literatura Brasileira, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, IBILCE-UNESP, São José do Rio Preto, SP.
2
Professor do Departamento de Letras Vernáculas do IBILCE-UNESP, São José do Rio Preto, SP.
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SILVIA GARCIA E ANTONIO MANOEL SILVA
Machado de Assis (l839-l908) publicou em l884 o conto Conto de Escola, recolhido em l896 no livro Várias Histórias. Além de fazer parte de um livro que se considera como o apogeu da narrativa curta machadiana, o conto possui também valor estilístico próprio e características distintivas, já assinaladas pela crítica: apóia-se, muito provavelmente, em reminiscências da infância, harmoniza a narrativa de personagem com a narrativa analítica e concentra seu foco crítico e reflexivo sobre a formação do caráter. Tratase de um conto sobre educação e sobre a escola. O conto está narrado em primeira pessoa, abrindo-se com uma precisa indicação de data e de local: A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de l840. Naquele dia uma segunda-feira, do mês de maio deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. (Machado de Assis, 1959b, p. 532)
O menino Pilar (o narrador quando criança), hesitante entre os espaços livres e abertos, locais para brincar, acaba optando pela escola. Motivo da opção: o castigo que o pai lhe aplicara (uma sova de vara de marmeleiro), por ter faltado duas vezes às aulas. Já na escola, recebe de outro menino, Raimundo, filho do mestre, uma proposta: trocar uma explicação por uma moeda de prata. Outro aluno, Curvelo, vai ao mestre e delata os colegas. O severo professor, Policarpo, castiga os meninos, batendo neles com a palmatória. Pilar promete vingar-se, mas Curvelo foge com medo. No dia seguinte, após sonhar com a moeda, Pilar sai com a intenção de procurá-la, já que o mestre, antes da punição, a havia atirado à rua. Estando a procurar a moeda, Pilar se sente atraído por um batalhão de fuzileiros. Acompanha-o e depois retorna para casa sem moeda e sem ressentimentos. Adulto, o narrador, rememorando esses fatos, salienta que Raimundo e Curvelo foram os primeiros a lhe mostrar a existência da corrupção e da delação. O conto nos mostra de imediato o problema da relação entre professor e alunos, bem como o problema da formação moral. Sobre o primeiro, lembre-se Gilberto Freyre que vamos citar e comentar, antes de voltarmos ao objeto de nossa análise: E felizes dos meninos que aprenderam a ler e a escrever com professores negros, doces e bons. Devem ter sofrido menos que os outros: os alunos de padres, frades, professores pecuniários , mestresrégios estes uns ranzinzas terríveis, sempre fungando rapé; velhos caturras de sapato de fivela e vara de marmelo na mão. Vara ou palmatória. Foi à força de vara e palmatória que os antigos , nossos avós e bisavós, aprenderam Latim e Gramática; Doutrina e História Sagrada. (1987, p. 417)
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Ao descrever o martírio do ensino colonial antes da Independência e mesmo que se desconte a idealização morenizadora Gilberto Freyre está, na verdade, chamando a atenção para os regulamentos rígidos do sistema escolar desde o seu nascimento. A escola brasileira, desde a origem, absorveu o mesmo conceito de educação que vigorava nas famílias: disciplina rígida com severas punições. A disciplina se entendia como um instrumento de controle do professor sobre os alunos, um instrumento tanto mais eficaz quanto mais pesada fosse a mão que com ele operasse o corpo transido pelo medo. Não é demais lembrar que a pedagogia, como disciplina patriarcal, apoiou-se em grande parte nas condições de coerção com que se formou o Brasil: de conquistadores sobre conquistados e de senhores sobre escravos. Gilberto Freyre assim ilustrou esse quadro: Nos antigos colégios, se houve por um lado, em alguns casos, lassidão fazendo-se vista grossa a excessos, turbulências e perversidades dos meninos por outro lado abusou-se criminosamente da fraqueza infantil. Houve verdadeira volúpia em humilhar a criança; em dar bolo em menino. Reflexo da tendência geral para o sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro. O mestre era um senhor todo-poderoso. Do alto de sua cadeira, que depois da Independência tornou-se uma cadeira quase de rei, com a coroa imperial esculpida em relevo no espaldar, distribuía castigos com o ar terrível de um senhor de engenho castigando negros fujões. Ao vadio punha de braços abertos; ao que fosse surpreendido dando uma risada alta, humilhava com um chapéu de palhaço na cabeça para servir de mangação à escola inteira; a um terceiro, botava de joelhos sobre grãos de milho. Isso sem falarmos da palmatória e da vara esta, muitas vezes com um espinho ou um alfinete na ponta, permitindo ao professor furar de longe a barriga da perna do aluno. (1987, p. 419)
O menino no Brasil foi vítima, quase tanto quanto o escravo, do sadismo patriarcal. Esteve sujeito a diversas formas (moral, sentimental, física) e instrumentos de sofrimento: as várias espécies de palmatória, a vara de marmelo, às vezes com alfinete na ponta, o galho de goiabeira, o cipó, a pancada ou o empurrão no cachaço, o puxavante de orelha, o beliscão simples, o beliscão de frade, o cascudo, a palmada, o safanão. A lista
Marcos, 9 anos, 1992 Renan, 8 anos, 1992
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poderia aumentar se acrescentássemos os castigos descritos pelo padre Jerônimo Serpa no Tratado de Educação Física-Moral dos Meninos, publicado no começo do século XIX. Esse padre, que condena os castigos, fala do raspar a cabeça à navalha, do açoite, das horas em joelhos sobre caroço de milho etc., como exemplos dos maus tratos comuns nas casas e nas escolas. Lembremos que, nos dois primeiros séculos de Brasil colonial, os colégios dos jesuítas, depois os seminários e colégios de padres, foram os grandes responsáveis pela irradiação de cultura. Nesse sistema educacional, a ordem e a autoridade primavam sobre tudo; os castigos, inclusive corporais, dados por irmãos leigos e não pelos padres, faziam parte do processo educativo. O castigo do pensum , por exemplo, que consistia em copiar dezenas ou centenas de vezes a mesma frase, a mesma página ou até livro inteiro, foi substituído pelo castigo corporal. Em l827, na reunião da Comissão de Instrução Pública da Câmara dos Deputados, foi apresentada a emenda de Baptista Pereira e Cunha Mattos, buscando terminar com as punições: Ficam proibidos os castigos corporais, sob pena de culpa (Moacyr, l936, p. l87). A réplica, no entanto, veio logo em seguida, quando o Sr. Hollanda Cavalcanti disse presumir que muito pouca gente soubesse realmente ensinar sem o uso da palmatória, completando que quanto não dizem hoje: ah! se meu mestre me desse bastante pancada eu seria hoje mais feliz . Para que excluir a palmatória? (Moacyr, l936, p. l87). Pouco mais de cem anos depois, lê-se numa crônica de Mário de Andrade, O grande cearense , que esse modo de pensar continuava inerente em nossos costumes pedagógicos extraescolares: Delmiro costumava falar que brasileiro sem sova não ia, e por sinal que ele mandou sovar gente sem conta, bem feito. Era um gênio da disciplina. (...) Si um menino falhava a aula, Delmiro mandava chamar o pai pra saber o porquê. Chegou a despedir os pais que roubavam um dia de estudo aos filhos, por causa de algum servicinho. Às vezes, com os meninos mandriões, reunia cinco, seis, e mandava um negrão chegar africanamente a palmatória na bunda dos tais. (Os filhos da Candinha, p. 42)
Voltemos outra vez no tempo. Em l839, o Presidente da Província de Minas Gerais, no desejo de melhor orientar a instrução, encarregou os técnicos Fernando Vaz de Melo e Francisco de Assis Peregrino do parecer sobre métodos e modificações a serem adotados. Peregrino, de volta da França, procurou descrever minuciosamente o chamado ensino simultâneo. Tratando da escola modelo, faz a lista dos instrumentos caídos em desuso. Entre estes se contavam os escritos de punição em quadros onde havia, com grandes caracteres, as palavras preguiçoso, falador, mentiroso, brincador. Esses quadros se afixavam (quando ainda vigia o costume) no peito dos alunos que fossem julgados merecedores desses epítetos desmoralizadores. Em suas considerações, o relator discorre sobre o dever dos professores: cooperar
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pela boa saúde dos condiscípulos, desenvolver sua inteligência e dirigir sua moralidade. Também na Província de Minas Gerais, o professor Fulgêncio Moreira Maia Júnior, ao fazer um comentário sobre o ensino misto e descrever um dia de aula, deixa transparecer um detalhe a respeito da punição: Às 9 horas, chamada. Revista da roupa, mãos, rosto e unhas. O aluno pouco asseado deveria ser lavado na própria aula, à vista de todos. (Mourão, 1959, p. 41)
Finalmente, mais um registro. No ano de l867, houve uma disposição oficial em Minas Gerais proscrevendo os castigos corporais usados durante muito tempo. A recomendação era a de só empregar a repreensão, o trabalho de leitura e de escrita fora das horas regulares, castigos que levassem o aluno ao vexame, a comunicação aos pais para castigos maiores e, por último, a expulsão da escola reservada aos alunos comprovadamente incorrigíveis , medida extrema adotada depois de esgotados todos os outros meios coercitivos. Paulo K. Corrêa Mourão, em O Ensino em Minas Gerais no Marcos, 9 anos, 1992 tempo do Império, acrescenta: poderia haver também advertência particular ou pública, mudança para lugar inferior na classe, tarefa extra etc. Permitia-se ainda medida adotada até nos primeiros anos da República por o aluno de pé ou de joelhos, até mesmo com os braços abertos. Esgotados os castigos propriamente escolares, o professor comunicaria ao pai do aluno o procedimento deste, quando não se emendasse. (1959, p. 41)
Talvez tenha sido o conhecimento desse ambiente rigidamente coercitivo que tenha levado Lúcia Miguel Pereira a sugerir estes possíveis acontecimentos: Sombria escola de antigamente, com a palmatória à mostra. A Joaquim Maria não deve ter sido nunca necessário aplicá-la. (...) Talvez, como naquele Conto de Escola evidentemente autobiográfico, tivesse apanhado alguma vez, por ensinar aos companheiros o que aprendia com tanta facilidade. (1955, p.39)
A figura do mestre-escola, referida constantemente em nossa literatura como objeto ironizado e também como instrumento da coerção e do medo, aparece várias vezes em Machado de Assis. Mas se trata de apenas um dos aspectos pelos quais o nosso maior escritor procura refletir sobre a
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educação. Não custa referir a importância que atribui ao seminário na formação de Bentinho em D. Casmurro ou os vínculos sugestivos que estabelece, pelo contraste entre natureza e cultura, entre o comportamento dos gêmeos Pedro e Paulo em Esaú e Jacó e todo o processo de educação familiar. Não há dúvida de que em Memórias Póstumas de Brás Cubas encontramos de modo sugestivo mais forte as contradições existentes na educação familiar. A volubilidade do personagem narrador e sua deformação de caráter encontram suas raízes nessa oposição entre a coerção pública, feita pelo pai, e o elogio na intimidade do lar, para o mesmo ato repreensível. Também neste grande romance, Machado de Assis aborda o tema da escola em dois capítulos. No XIII sintetiza suas observações sobre uma sala de aula de primeiras letras e, no XX, rememora a vida acadêmica de Brás Cubas. Relembrando sua experiência como aluno de primeiras letras, Brás Cubas mistura mágoa e reconhecimento, como se os castigos e a disciplina rígida fossem uma necessidade da melhor formação. Citemos: Só era pesada a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus Dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre, Ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe e o Mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem Me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas Ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de l8l4, tão superior à Espada de Napoleão. (Machado de Assis, 1959 b, p.432)
O romance também completa o ciclo da educação escolar tratando da universidade, de um modo que nos faz recordar o ambiente coimbrão descrito em O reino da Estupidez, de Francisco de Mello Franco, e O desertor das Letras de Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Na linha dessa tradição crítica, Machado de Assis nos põe diante do contraste entre ensino e cultura ornamental, educação abstrata e realidade concreta, titulação e (in)competência, contraste que uma leitura atenta descobrirá como característica freqüente em toda sua obra ao lado de outra, sutil ou explicitamente apresentada, que é a violência sob diferentes concretizações. Vejamos como isso se dá no conto escolhido. Na maior parte de sua obra, Machado de Assis ocupou-se com a existência que se levava no Rio de Janeiro, principalmente enquanto lugar da Corte, mas também como capital da República nascente. Sonia Brayner observa, em O conto de Machado de Assis, que em sua obra aos tipos, hábitos e cacoetes sócio-culturais do Rio de Janeiro, mescla-
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se a generalização de conceitos e observações sobre a natureza humana (l980, p. 11). No Conto de Escola o assunto reduz-se a um episódio ocorrido em sala de aula, sendo que a própria progressão da narrativa incide mais sobre a psicologia das personagens que sobre a ação, pois o conto evolui no sentido de representar os tortuosos caminhos da formação moral. Mais preocupado com os procedimentos ou as atitudes do que com os fatos, o autor esboça as cenas com o realismo apropriado à visão e à experiência das coisas cotidianas. Por se definir por meio do desenvolvimento de um flagrante objetivo, explorando um acontecimento plausível pelo relato minudente, finalizando à maneira das fábulas e usando muito o diálogo, o conto parece ao mesmo tempo realista e clássico. E como o autor se vale do ponto de vista em primeira pessoa e nos remete a cenários de sua época, deixa-nos a impressão de autobiográfico. Trata-se de uma receita tipicamente machadiana que funde equilibradamente o antigo e o novo, o imaginário e o real pela apropriação criadora de um modelo que, em suas mãos, tornou-se algo original, conforme já assinalado por Agrippino Grieco: a felicidade suprema de Machado foi vir num instante em que, sem concorrentes respeitáveis, pode adaptar aqui, /com um talento prodigioso, o modelo do conto francês, transmitindo a impressão de ser inventor autônomo, de fornecer um padrão absolutamente original, e isso com tal autoridade que ainda hoje quem quer que vá pelo mesmo caminho dos franceses parece ir pelo caminho de Joaquim Maria. (1959, p. 11)
A delimitação espaço-temporal do conto, já a conhecemos: predomina a escola, o mês é maio, o ano l840, no fim da Regência. Nessa época valia a excessiva rigidez na educação. O professor podia usar e abusar de sua autoridade, aplicando castigos corporais, de modo que a coerção social, própria de todo processo educativo, se fazia por meio da disciplina escolar apoiada em ameaças e violência física. O personagem narrador, rememorando esses procedimentos, assim se exprime: O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. (Machado de Assis, 1959a, p. 534)
E mais adiante descreve a prática punitiva: Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dous, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos semvergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio,
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apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio! (Machado de Assis, 1959a, p. 536)
Fica evidente que a violência física se soma à violência moral como modos de persuasão e como instrumentos de opressão e repressão que substituem qualquer outra pedagogia. Referindo-se à possível intenção subjacente neste conto, Fernando Paixão escreve que o que está em jogo é o indivíduo despertar para uma determinada consciência crítica frente à sociedade e suas relações. Cada um de nós teve vivências idênticas, mais ou menos marcantes, mas a trajetória se repete no sentido de que a idílica infância teve de ser abandonada em nome da razão, do conhecimento, do mundo do trabalho, em nome, enfim, das experiências novas que o correr da idade foi produzindo. (1992, p. 206)
As personagens centrais do conto são o narrador (Pilar), Curvelo, Raimundo meninos, os três e Policarpo, o professor, pai de Raimundo. Dois mundos se opõem, o infantil e o adulto, sendo este a fonte do terror (que perpassa pela sala de aula) e de opressão violenta. Na esfera infantil, Pilar e Raimundo são os que se movem pela disciplina do castigo corporal, enquanto Curvelo, o delator, faz a ponte entre os dois mundos. Como na realidade, a escola se apresenta como extensão da casa e da família. Tanto Pilar quanto Raimundo agem por medo aos pais, não sendo diferentes as punições sofridas dentro e fora do ambiente escolar. O pai de Pilar, um ex-militar ríspido e intolerante (p.532), que vê na escola um meio de transformar o filho em caixeiro, não economiza a vara de marmelo. Quanto a Policarpo, que maltrata os alunos, demonstra maior severidade com o próprio filho, trazendo-o sob constante vigilância e em constante medo. Nos breves diálogos travados entre Pilar e Raimundo, o tom de voz fica sempre baixo, como se os meninos se achatassem ao peso da autoridade do mestre. Nesse ambiente pesado, Raimundo e Pilar negociam com o conhecimento, Curvelo os denuncia, determinando o castigo descrito e a humilhação pública. Quase se pode concluir que a violência gera a corrupção e a delação e estas desdobram aquela, numa cadeia sem fim. Poder-se-ia concluir que Machado de Assis qualifica a escola de primeiras letras como lugar de origem da violência? Nada disso. Pode-se, sim, afirmar que nosso maior escritor deixa transparecer que as ações violentas deitam raízes na estrutura da sociedade. Quanto mais o poder constituído se fundar na autoridade privilegiada de uma classe, ou seja, quanto mais a manutenção do poder depender da manutenção de privilégios, mais o princípio de autoridade coercitiva se impõe, transformando as instituições sociais em
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instrumentos dessa imposição. Machado de Assis, no conto, nada mais faz do que explicitar, esteticamente, essa instrumentação e as conseqüências no processo de aprendizagem e na formação do caráter. Na sociedade do tempo, construída sobre a exploração dos vencedores sobre os vencidos, mantida pelo sistema de produção fundado no trabalho escravo, garantida na hegemonia política da classe senhorial, a violência, como ação contrária à ordem moral ou à ordem da natureza, constituía um imperativo categórico. Restaria confirmar essa conclusão pela releitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas (onde o escravo alforriado repete, quando patrão, a mesma violência sofrida tempos antes pelo senhor), pela leitura das crônicas escritas entre abril e junho de 1888, pela leitura de outros contos, inclusive o Conto Alexandrino, de Histórias sem Data (quando trata da violência justificada pela pesquisa científica) e, finalmente, pela análise de uma crônica sobre os motivos possíveis da crueldade humana, publicada em junho de 1895 com o título de O Autor de Si Mesmo. Tudo isso, porém, constitui assunto para outro trabalho. Referências bibliográficas ANDRADE, M. Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins, 1963. CALMON, P. História Social do Brasil. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1937, v.1. (Coleção Brasiliana, 40). FELIPPE, F. Aspectos do Romance Psicológico de Machado de Assis. Logos, Curitiba, n. 17, p. 54-9, 1953. FREYRE, G. Casa-grande & Senzala. 25.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. GRIECO, A. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. MACHADO DE ASSIS, J. M. Conto de Escola. In: ___ Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959. v.2, p. 532-537. MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In:___ Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, v. 1, p 409-549. BRAYNER, S. O conto de Machado de Assis. In___ (Org.). O conto de Machado de Assis: antologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, p. 7-17. MATOS, M. Machado de Assis - o homem e a obra. São Paulo: Nacional, 1939. MOACYR, P. A Instrução e o Império. São Paulo: Nacional, 1936.v.1. MOURÃO, P. K. C. O ensino em Minas Gerais no tempo do Império. Minas Gerais: Centro Regional de Pesquisas Educacionais, 1959. PACHECO, J. A literatura brasileira - realismo. São Paulo: Cultrix, s.d., v.3. PAIXÃO, F. A leitura como educação dos sentidos. COLE, 8. Anais. Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 1992, p. 205-14. PEIXOTO, A. Noções de história da educação. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1936. PEREIRA, L. M. Machado de Assis: estudo crítico e bibliográfico. 5.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
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GARCIA, S. C. G., SILVA, A. M. S. Violencia en las primeras letras: la escuela en un cuento de Machado de Assis, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. Basándose en el Cuento de Escuela de Machado de Assis, el texto reflexiona sobre la cuestión de la violencia en nuestra historia de la educación, analizando el proceso de formación escolar, vigente en Brasil hasta el siglo XIX, que consistía en que el profesor sujetase a sus alumnos por medio de instrumentos de coerción y miedo con el fin de formar su carácter, aunque para ello recurriese a actos violentos. A partir de los análisis desarrollados se puede pensar que cuanto más el poder se funde en el mantenimiento de privilegios de una classe, más la violencia se impone en la estructura social y, por tanto, en la educación, como una de sus instituciones.
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PALABRAS-CLAVE: formación de carácter; educación; violencia.
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Violência: paradoxos, perplexidades e reflexos no cotidiano escolar
Altair Macedo Lahud Loureiro1
LOUREIRO, A. M. L. Violence: paradoxes, perplexities, and reflexes on daily school routines, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
The cornerstone of the thoughts recorded in this article is an analysis framework , hinged on the theories of the imaginary, of complexity and of the cultural analysis of groups, for interpreting the phenomenon of violence. The said thoughts constitute a reflection on the paradoxical nature of the phenomenon, and rely on the theoretical part of research on the representation images and symbols of violence in schools, further expanded with empirical findings concerning the perplexity and unpreparedness of educators to negotiate with it. The article relates violence to the absence of otherness, the presence of ethnocentrism , and cognitive colonialism in schools and within educational processes. KEY WORDS: violence; imaginary; daily school routine. Um "quadro de análise", construído com as teorias do imaginário, da complexidade e da culturanálise de grupos, para a interpretação do fenômeno da violência, é a base dos apontamentos aqui registrados. São reflexões sobre o caráter paradoxal do fenômeno, apoiadas na parte teórica de pesquisa sobre as representações - imagens e símbolos - da violência nas escolas, ampliadas com as constatações empíricas da perplexidade e despreparo dos educadores para "negociar" com ele. Relaciona violência com a ausência de "alteridade", a presença de "etnocentrismos" e o "colonialismo cognitivo" na escola e nos processos educativos. PALAVRAS-CHAVE: violência; imaginário; cotidiano escolar.
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Professora do Departamento de Planejamento e Administração da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília PAD/FE/UnB.
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"É preciso mudar o olhar (...) e começar a ver. Mais vale bem colocar uma questão do que buscar soluções para falsos problemas. Paráfrases sobre temas de Morin e Poincaré. Você chama de violentas as águas de um rio que tudo arrasta, mas não chama de violentas as margens que o aprisionam. Berthold Brecht
A intenção não é abordar, da violência, seus aspectos conseqüentes, sua concretude na realidade cotidiana de possível horror ou repulsa. O que pretendo é descobrir elementos que constituem o fenômeno, tornar visível sua natureza para poder reconhecê-lo no momento de lidar com ele na escola. O que me leva, desta forma, a estudar o tema, é seu caráter paradoxal, a ambivalência de sua interpretação, perplexidades geradas e constatadas e a conseqüente necessidade de se conhecer a origem da violência, reconhecendo seus elementos constitutivos e contextuais. Roger Dadoun diz que geralmente só levamos em conta os aspectos externos da violência (...) sobre os quais o homem parece não ter qualquer domínio, fatores que lhe seriam impostos, a contragosto, violentamente (...). Privilegia-se, desta maneira, uma concepção eruptiva da violência (...) enquanto que são rechaçadas a violência cega e as origens das violências de onde quer que elas venham . (Dadoun, 1998, p.8)
Para discussão do fenômeno da violência, utilizo uma rede de leitura tecida com as teorias do Imaginário, de Gilbert Durand (1989), da 2 Complexidade , de Edgar Morin (1973, 1990, 1993) e da Culturanálise de 3 Grupos , de Paula Carvalho (1990), detendo, pois, a atenção na dimensão simbólica do fenômeno, entendendo-a como mediadora entre as relações do ser humano com o mundo e vendo nela função organizatória na práxis social. Assumo com Paula Carvalho que as práticas sociais são práticas simbólicas e as organizações educativas, em sua dimensão simbólica, retratam esse aspecto da questão. (...) As organizações sociais têm como alvo, organizar o comportamento e educar, sendo portanto organizações educativas. (...) A escola é um sistema sócio-cultural (...) um sistema simbólico constituído de grupos reais e relacionais que vivenciam códigos e sistemas de ação e as práticas escolares e educativas que ocorrem no interior da escola são práticas simbólicas. (Paula Carvalho, 1987, p.182-3)
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Complexidade pode ser entendida como o conjunto de princípios de inteligibilidade que, unidos uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo físico, biológico e antroposocial (...); uma lógica probalística, elástica, dialógica, generativa; a ideologia dos macroconceitos recursivos que embasa as ordens físicas e organizacional. In PAULA CARVALHO, J.C., 1996.
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A culturanálise de grupos (...) é um campo de pesquisa, mas também um instrumento, uma ferramenta para conhecer e mapear a cultura dos grupos formados ou em formação; teoria/ instrumento sócioantropográfico de análise da realidade, da cultura.
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Compreendo o imaginário como dinamismo organizador (Durand, 1989). As imagens constelam-se em torno de um ímã aglutinador, que as organizam, apresentando-se relacionadas umas com as outras sob a forma de sistema (o imaginário) que informa, que traz em si, as evidências (as emergências) de uma determinada estrutura antropológica do imaginário, imaginário entendido aqui como o campo balizado pelo (...) conjunto das representações numa cultura dada (Durand, apud Charon, 1984); como o conjunto das relações de imagens que constitui o capital pensado do Homo sapiens (G. Durand, 1989). Assim, a visão de mundo de uma comunidade/grupo está aí expressa, está contida em suas representações imagético simbólicas. As representações simbólicas são colhidas no trajeto antropológico que se resume, conforme Durand, no fato de nossas pulsões internas , íntimas, se simbiotizarem com as intimações, pressões, do meio cósmico e social e disto resultando o imaginário representado de forma simbólica (Durand, 1989). O ser humano, em sua individualidade, é um ser que deseja, aspira, sonha, pulsa e quer ser feliz (pólo latente), mas que está submerso em uma sociedade, submetido a uma cultura, em um meio que o pressiona, que exige dele (pólo patente). Como ser social, o homem cumpre (ou descumpre) determinações, normas, nem sempre de seu agrado. Estas pressões, obrigações exteriores, alheias à sua vontade, fazem-no esquecer, esmagar ou protelar seus sonhos (internos): o homem (espécie e não gênero) por necessidade ( dever ser ) cumpre o pré-determinado, nem sempre decidido por muitos, muito menos por ele próprio. Este é o bailado do eu e do nós: a ciranda cadenciada (do querer e do dever, da necessidade com a obrigação), do uno no múltiplo, a transgressão ou a disciplina, e daí a luta social ou a agressão individual no cotidiano miúdo, na realidade vivida, para viver ou sobreviver. É neste trajeto simbiótico, do dentro e do fora, nesta dança do eu com o nós, quer dizer, da vontade interior (da natureza) com a necessidade exterior (com a cultura), que se pode localizar o imaginário dos grupos. O imaginário realiza a sutura epistemológica entre a natureza e a cultura. Quer dizer: o latente e o patente , pólos do interior e do exterior (em uma linguagem culturanalítica), neste transitar contínuo, deixam formar imagens que se apresentam de forma variada e que podem ser tipificadas em regimes e estruturas (Durand, 1989), o que oferece indicativos preciosos para a compreensão (análise compreensiva) da complexidade do fenômeno estudado, presente na prática social, portanto nas práticas simbólicas das organizações educativas. Organizações essas também complexas que precisam ser consideradas em sua complexidade e dimensões, a simbólica, inclusive, sem redução ou simplificação mutiladora de sua realidade. Como afirma Teixeira (1990), toda prática simbólica agencia processos simbólicos organizacionais de teor educativo (...) As práticas simbólicas são, necessariamente, organizações educativas, porque criam vínculos de solidariedade e de contato. Como lembra Morin (s.d.), convém pensar o impensado que subjaz às molduras, à visão de mundo que se coloca como condutora dos juízos, raciocínio e pensamentos da realidade.
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Importante é também reconhecer , com Giegerich (1979), que estuda o terrorismo, a nossa solidariedade e vínculo com aquilo que nós abominamos, a nossa identidade com aquilo que nós não somos (p.6). Transgressão e agressividade são dimensões da violência, a se analisar no comportamento individual e coletivo nas escolas. Observando escolas públicas, com uma prática de escuta , ouvi de um aluno o relato de um fato violento , com ele acontecido na escola. Ele, em certa altura do relato, diz: Não sei o que deu em mim; parecia um bicho, fiquei cego... . Sobre o mesmo fato, a professora entrevistada conta que separaram os brigões e tudo voltou ao normal. Mas ao sair da escola, a referida professora vê uma aglomeração de alunos e percebe que os mesmos meninos novamente se engalfinhavam. Ela diz: Não sei o que deu em mim, fiquei enfurecida, saltei entre os dois e, correndo o risco de ser furada pelo ferro que um deles segurava como arma, separei os meninos. Aí está evidente o desconhecimento da origem da atitude tomada, nas expressões idênticas, usadas pelos envolvidos, ao referirem-se a um impulso cego que neles brotava e que ambos não sabiam o que era, mas comparavam-se, naquela possessão, a animais, bichos furiosos. De onde vem este impulso? Qual sua origem? Como compreendê-lo? A violência tem várias facetas e nem todas se mostram com clareza, o que leva a dizer que ela é um fenômeno complexo, delicado, escorregadio, que desperta sentimentos contraditórios de raiva, ódio, medo, mas também de piedade. É um fenômeno que não se deixa analisar facilmente em sua profundidade original, pois permanece sombreada, ofuscada por causas mais explícitas, espalhafatosas, que nos desviam a atenção. Como lembra Sorel (1992, p.18) (...) existe em todo conjunto complexo uma região clara e uma escura . (...) é dever da ciência enfrentar a complexidade enquanto tal, em vez de se deter nas partes mais claras e mais simples ...
O lado escuro, a sombra omitida, escondida sob as virtudes valorizadas pelo social, pela cultura e pelo próprio indivíduo, de repente se mostra. O lado sombrio da natureza humana e da sociedade, o mal, aparece obscurecendo o ângulo iluminado pela cultura e assim causa mal-estar. A violência, em nossos dias, sai da sombra, ou é a própria sombra que aflora, emerge do individual e do social, sem deixar de ser sombra e passa a ser, não se pode negar, um fenômeno real, visível em seus estardalhaços ou subliminar, subjacente às regras, normas etc.; está em todo lugar; invadiu, ou explodiu nos lares, bares, hospitais, igrejas etc; e as escolas, a ela, não ficaram imunes. Há muito a violência rompeu os muros escolares, irrompeu na escola parecendo querer ficar, dominar, malgrado as intenções e ações para combatê-la nos seus efeitos, sem sucesso, contudo. Mas, o que se percebe é que nem só de fora, do exterior, a violência chega à escola. Ela explode também de dentro para fora, na pedagogia adotada, nos princípios
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propostos, na maneira de os propor e buscar a concretização, na ausência da alteridade , no etnocentrismo e furor pedagógico (Paula Carvalho, 1997). Alteridade entendida como o respeito à diferença e etnocentrismo, como a atitude de privilegiar um universo de representação propondo-o como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos e cultura diferentes . O colonialismo cognitivo da violência simbólica , firmado em um paradigma clássico, desconsidera as outras culturas, considerando-as como subalternas , ou culturas outras ; a educação e as organizações educativas, com seus planos, calcados num modelo de racionalidade técnica, impõem esse colonialismo cognitivo: o etnocentrismo pedagógico , com uma gestão escolar autoritária e impositiva para vincular as diferenças das culturas grupais (Paula Carvalho, 1990, p.76-7). Roger Dadoun (1998, p.52) alude ao (...) fracasso de um sistema educativo que se revela impotente para transformar o potencial de violência do sujeito, e que apenas aplica próteses culturais que se despedaçam na primeira oportunidade.
O que fica patente é que a violência não surge só de fora, nem só de dentro da escola, do estabelecimento de ensino-aprendizagem, da comunidade de aprendizagem, mas também da organização do sistema educacional, do anacronismo de suas ações, da incapacidade atual de propor estruturas para formar para este mundo, para esta era, e de ver o erro, a falha com outros olhos. Isto, já em si mesmo, é um fato violento, uma violência contra o indivíduo e contra a sociedade. Edgar Morin, entendendo a organização que envolve seres humanos, como dinâmica e complexa, enfatiza a capacidade da auto-organização inerente aos sistemas vivos. Lembra o fato da coexistência permitida e aceita do erro, da desordem, do desvio, do devaneio, da transgressão que diferencia os sistemas vivos das máquinas artificiais, que, com o erro, param, ao contrário do homem (sistema vivo) que, no erro e com o erro, pode catapultar o sucesso, uma nova organização (Morin, 1973). Daí o lado positivo, difícil e não corriqueiramente aceito ou visto, da violência como estruturante (Maffesoli, 1987). A violência, a falha, o erro, a transgressão, instauram uma nova ordem, desequilibram ordenamentos anteriores, cristalizados e impõem a reorganização, podendo promover a união de contrários, que passam a ser concorrentes, complementares (Morin, s.d.). A organização engessa a liberdade diminuindo a concretização pessoal e individual dos sonhos, das pulsões interiores e exerce sobre o homem, em nome da disciplina e da ordem, a pressão externa . Esta pressão crescente ou exagerada pode gerar a violência, a transgressão. Convém, no entanto, também considerar que estando a violência em todos os lugares, onipresente , a violência nos atinge, nos desconcerta e nos toca por seus estrondos , nos ensurdece por gritos ininteligíveis e por suas pressões cotidianas que nos
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esmagam, anulam, espremem, pressões fatigantes que nos estressam , não seria conveniente admitir que por isso ela está na própria raiz do humano? (Dadoun, 1998, capa final)
Dadoun (1998) se questiona sobre este fato e recorre a passagens bíblicas para demonstrar a tese do homo violens , isto é da violência inerente ao próprio homem. A violência é um dos fenômenos sociais mais singulares que a história menciona (Sorel, 1992). Na verdade, o que se percebe é que se trata de fenômeno delicado por sua ambivalência e heterogeneidade. Pressupõe fatos e ações, maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural, algo, ou alguém, que force outro alguém a agir contra a sua vontade" (Michaud, 1989). Portanto, a violência pode estar no fato de alguém, ou de uma comunidade, ter de agir em desacordo com seus interesses próprios, com seus desejos íntimos ou comungados por um grupo. Está implícito, na natureza da violência, a força, a intimidação, e uma vontade primeira, latente, amortecida, calada. Com Sorel (1992, p.23) lembramos que (...) a força tem por objetivo impor a organização de uma certa ordem social na qual uma minoria governa, enquanto a violência tende a destruição dessa ordem . A violência envolve inibição, desconsideração, anulação do interesse profundo, próprio, singular, ou mesmo coletivo, na medida em que se expande em um número de pessoas reunidas em grupo ou comunidade com sua(s) vontade(s). A violência espraia-se, denotando a oposição à paz preconizada, à ordem imposta e até aceita, por alguns, mas que alguém, ou o grupo, perturba ou questiona . Portanto, a noção de violência remete a força, vigor, potência, profanação, transgressão, à força em ação , ao mesmo tempo em que quer dizer quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa (Brunel, 1997). A luta pelo que se pensa ser direito próprio, remete à reorganização, o que nos faz pressentir a presença do paradoxo. A violência é real e deixa marcas . Portanto, mesmo que nos afastemos do julgamento valorativo, ela sugere ou permite ver a força não qualificada, o que é complexo, pois ela perturba uma ordem e envolve agressões (Lorenz, 1974), dor e maus tratos. Pode-se dizer que esta violência, como dano físico, é facilmente identificável, mas que, quanto à violação às normas, quase que qualquer coisa pode ser considerada uma violência. É mais visível, palpável, a violência física; enquanto pode-se processar sorrateira a violência às normas: pode haver quase tantas formas de violência quantas forem as espécies de normas (Michaud, 1989). Por sua vez, Michael Maffesoli (1987) entende a violência como uma centralidade subterrânea , vendo nela modulações que agrupa em três modalidades: violência dos poderes instituídos, violência anômica e violência banal (p.2). A violência do poder instituído, oficializado, refere-se ao descaso do poder em relação aos demais; a força que oprime uns e investe outros do direito de ignorar os afetos, desejos e vontades. A violência anômica refere-se ao
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ODILE REDON, A armadura, 1891. The Metropolitan Museum of Art, New York
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fenômeno como estruturante do fato social, num movimento de duas mãos: como destruição e construção, numa íntima correlação entre si. A violência banal é uma discordância íntima, interna, que se expressa por uma arte de fachada, da ironia, do cômico (Maffesoli, 1987). Considerando o paradoxal na idéia de violência, Maffesoli (1987, p.9) diz que a violência é uma forma envolvente que tem suas modulações paroxístas e suas manifestações minúsculas e, de forma bela, o autor lembra o halo de mistério que envolve o fenômeno dizendo (...) misteriosa violência que nos obscurece, que ocupa nossa vida e nossas discussões, que perturba nossas paixões e razões". A violência, ao mesmo tempo que causa constrangimento, morte, dor e horror, é considerada como estruturante coletiva, podendo-se, assim admitir, com Robert Nisbet (1987, p.4), que provavelmente não existe forma de organização totalmente desprovida de violência, pelo menos em grau moderado . O autor, ao referir-se à guerra violência oficial - , alude à fascinação pela espécie de comunidade que pode ser criada por ela , e a sua fatal atração que reside na mobilização de energia (...) nos efeitos integradores do conflito (...) e à realidade do esquecimento de discórdias e rivalidades internas diante de um ataque . Na violência, permitido e interdito alternam-se no tempo e espaço, conforme as visões de mundo. Noções hoje contaminadas ou, mais que isso, transformadas nas suas concepções, como no caso do advento da tecnologia que, rápido, tomou conta do mundo, amputando, por um lado, cérebros, braços vigorosos, ou pernas velozes; substituindo o ir e vir naturais por virtuais viagens, andanças solitárias, acompanhadas pela Internet, consultas e aprendizagens. As noções de tempo e espaço (da hora, ou do outrora - outra hora - e das distâncias - não lonjura ) modificaram-se, e isto não significa, a priori, revolta contra o mecanismo criado para auxiliar a vencer as agruras da vida e dificuldades da natureza, para tornar a vida mais segura e benigna, mas , problema sim, quando representa a máquina que sobrepujou o mecanismo: a máquina política, a máquina dos grandes negócios, a máquina cultural e educacional que fundiu benesses e maldições num todo racional, que violenta. (Marcuse, s.d., p.17)
Segundo Lorenz (1974), a agressividade, cujos efeitos são freqüentemente idênticos aos da pulsão de morte, é um instinto como qualquer outro, e em condições naturais, contribui como todos os outros, para a
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conservação da vida e da espécie. E o paradoxal também se encontra no fato de que, se por um lado, o homem é livre e tem desejos, por outro, esbarra na necessidade da organização. Lembro, com Muniz Sodré (in Maffesoli, 1987) que, de um lado, temos a organização, do outro, os indivíduos; com Simmel, que existe a priori o instinto de combate (...) e como o conflito é ponto central de uma compreensão do fato social , e que existe uma certa proporção de harmonia ou de discórdia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis na sociedade (in Maffesoli, 1987, p.15). Max Weber (in Maffesoli, 1987, p.14), considerando a força, a potência, na violência, diz que é preciso compreender a violência (...) como manifestação maior do antagonismo existente entre vontade e necessidade. Mafffesoli (1987, p.14) insiste que a luta é o fundamento de qualquer relação social . Com Serge Blondeau (1997) lembro que o que para um observador externo representa uma coisa, para o outro, para o ator, executor do fato, envolvido, implicado no acontecimento, significa outra. Isto justifica uma outra postura: os culpados e os inocentes podem-se substituir nesta dinâmica, trocar de lugar, e o julgamento não se justifica, não se sustenta como oportuno, é apressado. É comum a emoção dirigir as respostas sobre o ato de violência, sobre um fato violento. Nossa indignação pode se transformar em lástima, em piedade, conforme nossa posição no tabuleiro do jogo. Pois paradoxalmente, à reação do não, do combate, do extermínio, da edificação de muro e fortaleza, há uma reação positiva para com tal conduta detestável, que consiste em compreender tais eventos como um apelo, uma demanda de ir para dentro de nós (...) questionar em que ponto devemos mudar nós mesmos? (Giegerich, 1979, p.190)
Nas andanças pelas escolas, não tem sido difícil encontrar professores apavorados, agredidos e agredindo; diretores desnorteados, "suspendendo", "expulsando", "transferindo", excluindo, cumprindo ou descomprindo o regimento, improvisando estratégias para o combate; alunos assustados e assustando, desvairados ou acuados com medo ou audácia insana excitados 4 pelo "mito do herói" identificado no transgressor que passa a líder; pais angustiados: condenando, culpando para se eximir do que entendem como culpa, ou se culpando silenciosamente ou agressivamente; professores, direções e pais em conjunto, ou desconjuntadamente, despreparados, bem intencionados, talvez, mas, por vezes equivocados no fogo do dia a dia do convívio com a violência em sua vida ou consigo mesmo. A impotência é geral. O imaginário do medo, o imaginário catastrófico permeiam as falas, as salas, as atitudes por vezes precipitadas e inócuas. A perplexidade acontece; é visível. A violência desafia as razões, desperta as emoções mais díspares e atitudes esdrúxulas, sem nexo, para quem se diz educador. Em uma das escolas visitadas, o diretor dizia: na minha escola não há violência . Há um tempo atrás aconteceram casos de violência aqui na
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Segundo E. Neumann (História da origem da consciência. São Paulo: Cultrix, 1990) no processo de constituição da consciência do eu, é fundamental a passagem do estágio matriarcal, indiferenciado, para o estágio de diferenciação. A figura central deste processo é o herói, projeção simbólica fundamental para a formação da estrutura interna da personalidade.
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escola, no curso supletivo noturno. Hoje não temos mais a presença da violência . Mas como o senhor conseguiu esta proeza? Extinguindo o curso supletivo da escola. Isto faz lembrar a anedota do pesquisador que estava provando não existir um tipo de pedra em determinada região e que em certo dia encontra essa pedra. Não teve dúvidas, continuaria afirmando a não existência de tal tipo de pedra naquele local: empurrou a pedra precipício abaixo, fazendo-a desaparecer. São as pedras indesejadas (etnocentrismo/alteridade), alunos transgressores expulsos, jogados precipício abaixo. Isto é educação? O mais provável é que seja a existência da ainda idéia positivista da ordem. Ordem a ferro e fogo. Mas, não é oportuno julgar! Na ânsia de extinguir do planeta a violência que incomoda, desorganiza, assusta e vem ceifando vidas, horrorizando com a presença, em si, da monstruosidade, do ainda não entendido, da frustração do não-sucesso no combate, da arrogância da presença em todos os lugares, da imprevisibilidade quanto a seu surgimento, estratégias contra ela são elaboradas e levadas a cabo, mas é preciso reconhecer na violência sua fonte real, sua origem. Sem raiz cortada, ela pode novamente e sempre brotar, para desgosto de todos nós. Como expressa Giegerich (1979), na violência cega algo pretende ter, e em altos brados, a palavra e quer ser ouvido, mas nós, educadores, não estamos sabendo entender, decodificar o pedido de socorro da sociedade que quer ou precisa mudar, inscrito nas mensagens desagradáveis, imbutido nos gritos dissonantes que ainda só identificamos como violência, que ressoam desusados, sem harmonia, diferentes do até aqui e agora aceito em nossas escolas. Há uma situação incômoda, e uma reflexão profunda a fazer. Urge repensar o que subjaz às nossas estruturas de pensamento. É preciso mudar o olhar... (Morin, s.d.). Referências bibliográficas BLONDEAU, S. Um élève a été giflé par um enseignant: I acte de violence es signes au sens, du sens aux actes. In.: LES SCIENCES de I Éducation; pour I ère nouvelle reveu internationale, Violence et Education, Université de Caen, cerce, n. 2, v.30,1997. CHARON, J.E. L esprit et lascience 2: imainaire er realité. In.: COLLOQUE de Wasihgton, Etats Unis: Albin Michel, 1984. Mimeogr. DADOUN, R. A violência. Ensaio acerca do homo violens. Trad. P. Ferreira, C. Carvalho. Rio de Janeiro: Difel, 1998. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Lisboa: Ed. Presença, 1989. DURAND, G. Mito e sociedade. A mitanálise e a sociologia das profundezas. Trad. N. Júdice. Portugal: A regra do Jogo. 1983. GIEGERICH, W. O terrorismo como tarefa e como responsabilidade. In.: ANALYT. Psychologie, Centro de Integração e Desenvolvimento. 1979. p.190-215 ( Reflexões do ponto de vista da psicologia profunda). LORENZ, K. A Agressão. Uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1974.
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MAFFESOLI, M. Dinâmica da violência. Trad. C. M. V. França. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987. (Biblioteca Vértice: v.7). MARCUSE, H. Eros e civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Trad. Á. Cabral. 8.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. MICHAUD, Y. A violência. Trad. Garcia. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Coleção Princípios e Fundamentos). MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Dulce Matos. 2.ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. (Epistemologia e Sociedade). MORIN, E. O enigma do homem. Trad. Fernando de Castro Ferro. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (Le paradigme perdi: la nature humaine. Paris Seuil,1973). NISBET, R. A comunidade militar e as reformas de Clístenes (Os Filósofos Sociais). In: CURSO de Humanidades. Vol. II - Material Didático da Disciplina de História da Cultura. São Paulo, 1987. PAULA CARVALHO, J. C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990. PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cultural. São Paulo: FEUSP, 1990. Mimeogr. PAULA CARVALHO, J. C. A inquisição e o problema da alteridade: uma abordagem da Antropologia Profunda. Rev. Ciênc. Soc. v.18/19, n.12, 1987-1988. PAULA CARVALHO, J. C. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas. Interface Comunic, Saúde e Educ., v.1, n.1, p.181-5, 1997. PAULA CARVALHO, J. C. As raízes e complexidade das noções de educação fática e cotidiano oximorômico: Atas do VIII Ciclo de Estudos do Imaginário. Recife, Centro de Estudos do Imaginário, Departamento de Antropologia, UFPE, 1996. SOREL, G. Reflexões sobre a violência. Trad. P. Neves. São Paulo: M. Fontes, 1992. TEIXEIRA, M. C. S. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago,1990.
LOUREIRO, A. M. L. Violencia: paradojas, perplejidades y reflejos en el cotidiano escolar, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. Un "cuadro de análisis" construido con las teorías del imaginario, de la complejidad y del análisis cultural de grupos para la interpretación del fenómeno de la violencia, constituye la base de las anotaciones aquí registradas. Son reflexiones sobre el carácter paradójico del fenómeno, apoyadas en la parte teórica de la pesquisa sobre las representaciones - imágenes y símbolos - de la violencia en las escuelas, ampliadas con las constataciones empíricas de la perplejidad e incompetencia de los educadores para "negociar" con él. Relaciona la violencia con la ausencia de "alteridad", la presencia de "etnocentrismos" y el "colonialismo cognitivo" en la escuela y en los procesos educativos. PALABRAS-CLAVE: violencia; imaginario; cotidiano escolar.
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artigos e relatos
A problematização da violência como experiência de ensinar em Saúde*
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Heloniza O.G. Costa
COSTA, H. O. G. The problematics of violence as a teaching experience in the healthcare field, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
This article contains a report on facing violence, which constitutes a major health care problem for the population that is within the sphere of action of the UNI-Ba Project for the Barra Sanitation District in Rio Vermelho. This issue has become fundamental as an element of the thinking involved in the development of healthcare practices as part of the process of professional training. The text debates the need for professional education to be socially contextualized, so as to provide professionals with the tools they require to face problems and the population s true health care requirements. It also comments on the strategies used to ensure a close interconnection of the world of teaching and the world of work the reality taking the latter as an element of fundamental importance, if active methods capable of providing a positive contribution to the development of socially committed individuals are to be adopted in the processes of teaching and learning. KEY WORDS: violence; teaching-learning process. O artigo traz o relato do enfrentamento da violência, enquanto problema prioritário de saúde da população da área de atuação do Projeto UNI-Bahia - Distrito Sanitário Barra - Rio Vermelho. Esta questão tornou-se fundamental para pensar o desenvolvimento de práticas de saúde no processo de formação profissional. Discute a necessidade de uma formação socialmente contextualizada, que instrumentalize os profissionais para o enfrentamento de problemas e das reais necessidades de saúde da população. Comenta sobre as estratégias utilizadas para assegurar uma articulação estreita entre o mundo do ensino e o mundo do trabalho - a realidade -, considerando-a como de fundamental importância quando se pretende adotar metodologias ativas no processo ensino/aprendizagem que contribuam para a formação de sujeitos socialmente comprometidos. PALAVRAS-CHAVE: violência; processo ensino-aprendizagem.
* Agradeço a todos os alunos, professores, representantes das organizações comunitárias, profissionais e técnicos dos serviços de Saúde e das instituições envolvidas no Fórum Comunitário de Combate à Violência, que estão dando concretude às ações. Agradeço, em especial, ao professor Jairnilson Paim, o verdadeiro autor da experiência. A mim coube, como coordenadora das atividades, elaborar a primeira versão do texto, que contou com suas contribuições, críticas e sugestões. E às companheiras Maria Eunice X. Kalil (Bice) e Ana Luiza Vilasboas, co-autoras, pois participaram nas discussões do conteúdo do trabalho, na organização e formato do texto. 1
Professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia; diretora executiva do Projeto UNI-Bahia.
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Introdução O campo da saúde tem passado por sucessivos movimentos de recomposição das práticas sanitárias, decorrentes das distintas articulações entre sociedade e Estado, definindo, em cada conjuntura, as respostas sociais às necessidades e aos problemas de saúde: a higiene, do século XVIII; a Medicina Social e o Sanitarismo do século XIX; no século atual, a Saúde Pública, o Preventivismo, a Saúde Comunitária, a Saúde para Todos no ano 2000; os SILOS / Distritos Sanitários/Cidades Saudáveis (Paim & Almeida, 1998). Esses movimentos têm influenciado o processo de formação dos profissionais de saúde, permitindo o desenvolvimento de iniciativas apoiadas por organizações internacionais, que apontam a inadequação da formação profissional, frente às necessidades sociais de saúde da população2 . Estas iniciativas reconhecem a situação de crise na formação dos profissionais e propõem rever o papel do profissional e a prática em saúde, as condições da prestação dos serviços e os cenários para o processo ensino/ aprendizagem3 . (Feuerwerker, 1997). Pereira (1997), fazendo uma revisão de estudos que analisam o contexto educacional neste final de milênio, afirma que a crise na educação e na formação profissional precisa ser analisada e compreendida a partir dos pressupostos que fundamentam o paradigma da ciência moderna. Este, nas palavras de Prigogine apud Pereira, privilegia a ordem, a estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o papel primordial das flutuações e da instabilidade (p.52). A autora acentua que as mudanças e transformações aceleradas estão trazendo instabilidade e incertezas não só ao redor de nós, mas em nosso interior, provocando mudanças em nossa forma de conceber e representar o mundo exigindo rupturas com princípios e valores que nos serviam de referência. Citando Santos, diz que vivemos o final de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica, de um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento verdadeiro, cuja validade funda-se na objetividade do conhecimento, resultado da separação entre teoria e prática. Para o paradigma da ciência moderna conhecer é sempre contar, quantificar, por isso, para se ter o conhecimento, torna-se necessário reduzir a complexidade da realidade, dividindo, fragmentando. Nossos currículos refletem esse paradigma. Fragmentados em disciplinas, partem do teórico para o prático: primeiro o aluno aprende conteúdos isolados para depois aplicá-los à realidade. Daí a ênfase em procedimentos apoiados na repetição e memorização de relações, muitas vezes arbitrárias para o aluno. Dentro dessa lógica, o conhecimento estrutura-se, predominantemente, como um saber acabado, descontextualizado e a-histórico - ao qual se chega por um único caminho. Concluindo, a autora diz que o ensino precisa de novos métodos para conviver com o presente e construir o futuro (Pereira, 1997). Por outro lado, no Brasil, os diversos movimentos teórico-organizativos na saúde têm sido vividos em contexto de crise da assistência e de falência dos modelos de atenção, sucessiva e formalmente experimentados. Configura-se, pois, um quadro epidemiológico cada vez mais complexo, com a não resolução dos problemas de saúde da grande maioria da população,
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O estudo divulgado em 1970, sobre as características gerais da educação médica na América Latina, coordenado por Juan Cesar Garcia em 1976; as reuniões sobre Princípios Básicos para o Desenvolvimento da Educação Médica na América Latina e no Caribe ; o trabalho de Jorge Andrade sobre o Marco conceptual de la educación médica en la America Latina . Em 1976, aconteceram as reuniões sobre Princípios Básicos para o Desenvolvimento da Educação Médica na América Latina e no Caribe , a Conferência Mundial de Educação Médica, de 1988 em Edimburgh (Feuerwerker, 1997, p.33-60).
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3 No Brasil, a partir da criação da Comissão de Ensino Médico, em 1971, que articulada a ABEM e outros setores relacionados ao ensino médico, elaboraram vários documentos críticos em relação ao ensino da medicina, apontando para a necessidade da diversificação dos cenários de prática, criticando a fragmentação do conhecimento e a inadequação das metodologias pedagógicas. Outras iniciativas da ABEM colocam críticas na mesma direção, reconhecendo a necessidade da interrelação entre a estrutura assistencial, a prática médica e a educação médica. (Feuerwerker, 1997, p.48-51). Na década de 80 a preocupação da ABEM deslocou-se da questão dos currículos para uma formação que viabilizasse a Reforma Sanitária - realização do Seminário para Preparação do Médico
A PROBLEMATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA...
Generalista/1986 (ABEM/MEC/F. Kellogg), quando foi proposta a formação de um médico capaz de diagnosticar e resolver os problemas de saúde mais freqüentes em sua área de atuação... Preocupação similar aparece nos movimentos mundiais de preparação para a Conferência Mundial de Educação Médica, de 1988 em Edimburgh, promovida pela Federação Mundial de Educação Médica (Feuerwerker, 1997, p.60-2).
aliada à insatisfação dos usuários com os serviços recebidos. Num contexto dessa natureza, como pensar a formação dos profissionais de saúde? E em que medida pode-se pensar uma intervenção no sistema de saúde via processo de formação?
Aprendizado e realidade Pretender uma formação de profissionais socialmente contextualizada, que os instrumentalize para enfrentar os problemas de saúde da população, remete, não apenas ao perfil do profissional, ao conteúdo do ensino, às metodologias pedagógicas, mas também aos cenários pertinentes à formação - sua articulação com o mundo da prática, com a realidade social e com as necessidades de saúde da população. Considerando que é no cotidiano vivencial onde se ritualizam, problematizam, produzem e legitimam as formas do viver, o cotidiano é um ponto de referência por excelência para o direcionamento das práticas de ensino e práticas de investigação, enquanto práticas sociais que buscam contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Seria, então, necessário reconhecer e incorporar, nas práticas pedagógicas, o cotidiano, uma vez que, a partir dele, pode-se visualizar um possível caminho para uma formação e prática profissional que leve em consideração o presente e os determinantes dos fenômenos saúde-doença; mesmo porque, para poder estudar o processo saúde/enfermidade se requer considerar os sujeitos sãos e enfermos não unicamente para explicá-los e sim para compreendê-los e conjuntamente construir potencialidades de ação (Granda apud Paim, 1998, p.310). As intervenções sobre os problemas de saúde exigem ações que devem se orientar para a aplicação de conhecimentos muito além do hoje considerado técnico - científico; envolvem dimensões no campo das relações interpessoais e institucionais, conflitos de valores e princípios. Mesmo problemas aparentemente de natureza técnica podem expressar conflitos latentes nos modos de pensar e atuar dos profissionais. De todo modo, não há aprendizagem adequada se os atores não tomam consciência do problema e se nele não se reconhecem, em sua singularidade. Segundo Paim (1996), para formar profissionais de saúde que atuem como sujeitos sociais comprometidos com a eqüidade, democracia e emancipação humana, cuja prática permita uma mediação estratégica quanto às políticas mais amplas e à adoção de valores solidários à vida, algumas características devem ser enfatizadas, dentre elas: capacidade de análise do contexto em relação às práticas que realiza; compreensão da organização e gestão do processo de trabalho em saúde; exercício de um agir comunicativo ao lado do estratégico; atenção a problemas e necessidades de saúde; senso crítico quanto a efetividade e ética das intervenções propostas ou realizadas; permanente questionamento sobre o significado e sentido de seu trabalho e dos seus projetos de vida.
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Ou seja, não somente se necessitam de conhecimentos para apreender a realidade, mas também se deve realizar uma aproximação gnoseológica distinta com vistas a encontrar na realidade - ademais de conhecimentos - saberes, desejos, sentidos, projeções de luta e mudança, que constituem também, aspectos fundamentais da ação humana. (Escuela de Salud Publica apud Paim, 1998, p.310)
Portanto, além de desenhos curriculares mais flexíveis, metodologias pedagógicas ativas, é de fundamental importância considerar os cenários de ensino-aprendizagem, dadas as possibilidades que oferecem ao processo e a influência que exercem na formação de profissionais.
Violência: problema prioritário de saúde A elevação da mortalidade por causas externas, no país e no mundo, sobretudo nos grandes centros urbanos, tem colocado a violência na pauta dos problemas nacionais e internacionais (Laurenti et al., 1972; Mello Jorge, 1979, 1981, 1982; Radis, 1984, 1985, 1990; World Bank, 1989; CBIA/ Unicef, 1991). A inclusão da violência no campo da saúde, como está colocada na revisão sintética do relatório Rastro da Violência em Salvador (FCCV, 1998),4 se deu pela sua magnitude e transcendência expressa no caráter endêmico e epidêmico que adquire em algumas áreas, pelo clima de medo e insegurança social5 gerado pela veiculação na mídia das violências intencionais, pela tendência dos indivíduos recorrerem à violência como recurso para resolver problemas6 , bem como pelos altos custos para o setor saúde, decorrentes do atendimento às vítimas da violência. A Declaração da Conferência Interamericana sobre Sociedade, Violência e Saúde , realizada pela Organização Panamericana da Saúde, em 1994, além de assumir a violência como problema de saúde, atribui, como gênese desse problema, as desigualdades e as injustiças sociais, as discriminações sociais, as quais destróem a democracia e o bem estar coletivo, geram frustrações,
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4 Violência entendida como ação intencional realizada por indivíduo ou grupo, dirigida a outro que resulte em óbito, danos físicos, psicológicos e / ou sociais, implicando na utilização da força física ou da coação psíquica e moral (Franco, 1990)
5 Pesquisa realizada em Salvador (Machado et al., 1997, p.202), revela que 89% dos entrevistados sente insegurança quando caminha nas ruas, 69%, quando dirige seus carros e 52%, nos locais de trabalho.
O Projeto Atitudes e Normas Culturais frente à Violência em Cidades Selecionadas da Região das Américas ACTIVA, (OPAS/UFBA/UNEB, 1997) - constatou que 5,6% dos entrevistados (equivalendo a 139.850 pessoas) possuíam arma de fogo e 21,1% pretendiam adquirir este instrumento. Encontraram, ainda, um contingente de 32% dos entrevistados que declararam estar dispostos a fazer justiça com as próprias mãos.
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A PROBLEMATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA...
marginalizam as populações, perpetuam os conflitos e lesam a integridade familiar. Ressalta, também, que é dever do Estado empreender todos os esforços necessários para reduzir os fatores que determinam a violência e comprometem a qualidade de vida das pessoas, para assegurar a plena vigência do Estado de Direito. Além disso, convoca os governos de todos os países para assumirem como prioridade o desenvolvimento de planos e programas intersetoriais de prevenção e controle da violência, bem como a promoção da convivência pacífica. No Brasil, o trabalho de Souza & Minayo (1995) registra que a violência representou para o país, ao longo dos anos 80, a perda de 850.307 pessoas (número bem maior do que o resultante de alguns conflitos bélicos), na grande maioria mortas precocemente, em plena idade produtiva. Assim, a mortalidade por causas externas tem assumido uma importância crescente no perfil epidemiológico da população brasileira, ocupando o segundo lugar nas principais capitais do país - Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador - superadas apenas pelas doenças cardiovasculares. Contudo, ao se considerar a faixa etária de 15 a 49 anos, as diversas formas de violência assumem o primeiro lugar. E, no conjunto das violências, os homicídios apresentam tendência de crescimento. Cabe salientar que os homicídios se acentuam principalmente entre as pessoas do sexo masculino e jovens. Sua participação entre as mortes por causas externas de crianças e adolescentes até 17 anos na Região Metropolitana de Salvador passou de 14,9% em 1989, para 25,8% em 1990 (Cedec, 1997), atingindo, em Salvador, 34,6%, em 1997 (FCCV, 1997). Em 1997, 1.578 residentes da cidade de Salvador sofreram mortes violentas, dentre os 4.123 laudos registrados no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues. Entre as mortes violentas, 50,0% foram caracterizadas como homicídios, sendo a maioria das vítimas homens (84,1%), jovens ( 46% entre 15 e 29 anos), negros (88,7% entre negros e pardos ), solteiros, desempregados ou subempregados. A arma de fogo foi responsável em Salvador, por 80,9% dos óbitos por homícidio, revelando o problema do tráfico de armas nesta região. Estes números, baseados no registro de mortes, não expressam todo o espectro do problema. A violência praticada contra a mulher, por exemplo, assume outras características - em função da maneira como esta é socializada - e nem sempre se torna visível, a exemplo da violência doméstica, que ocorre no âmbito das relações particulares entre integrantes da mesma família, tendo normalmente a casa como o espaço físico privilegiado para sua manifestação. Segundo dados divulgados pelo IBGE em 1990, a ocorrência da violência física contra mulheres é quase três vezes maior do que contra os homens (32% para 10%), e 63% das agressões físicas contra mulheres acontecem na sua própria residência". (FCCV, p. 16, 1998)
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O relatório Rastro da Violência em Salvador (FCCV, 1998), baseado nos registros de 1997 do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, demonstra ainda que as classes menos favorecidas são freqüentemente mais vítimas da violência urbana. Ou seja, esses eventos não atingem de forma igualitária todos os segmentos da população. Reforça-se, portanto, a compreensão de que em uma sociedade marcadamente desigual no que se refere aos direitos sociais do cidadão, a mortalidade e a morbidade também se apresentam de modo desigual, tornando algumas camadas da população mais vulneráveis do que outras. Se não há como deixar de considerar a violência como parte da realidade da vida e da saúde das populações, então é preciso enfrentar a necessidade de preparar profissionais de saúde para atuar na prevenção, diagnóstico, tratamento, cuidado e reabilitação das condições complexas de saúde. Para que se possa produzir impacto sobre elas, precisa-se de intervenções que ultrapassem o âmbito já delimitado do setor de saúde.
O ensino-aprendizagem e a violência a perspectiva
da construção de novas práticas sanitárias
Os Projetos UNI7 têm assumido o desafio de formar profissionais de saúde preparados para resolver os problemas de saúde da maioria da população, experimentar modelos de atenção mais eqüitativos e eficazes e desenvolver a participação social em saúde. Tal desafio exigiu um deslocamento do eixo da formação, centrado no hospital e na atenção curativa, para uma formação que instrumentalizasse o aluno para atender as necessidades sociais de saúde. Exige pensar a formação de profissionais para uma assistência à saúde baseada no princípio da integralidade da atenção. Nesse sentido, uma primeira questão está posta: como simultaneamente provocar mudanças nos modelos de ensino e de atenção, uma vez que os cenários existentes, o mundo da prática, retratam um modelo a ser superado? Para fazer frente a esta situação, o UNI - Bahia assume, como eixo para o trabalho em parceria (universidade, serviços de saúde e comunidade), o enfrentamento dos problemas de saúde definidos como prioritários na sua área de atuação. Os problemas de saúde se constituíram no foco de convergência dos interesses dos parceiros e no espaço que dá o sentido para a existência e articulação das ações do conjunto dos atores envolvidos em direção a objetivos acordados. Ou seja, considera-se que os problemas de saúde têm potencial para mobilizar vontades, agregando diferentes interesses da academia, dos serviços e da comunidade; e são, também potencialmente, capazes de dar direcionalidade às ações, tornando-as socialmente relevantes.
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7 Os Projetos UNI - Uma Nova Iniciativa na Educação dos profissionais de saúde: união com a comunidade, iniciativa da Fundação Kellogg, desenvolvida a partir de 1992, foram implantados em 23 universidades de 11 países da América Latina, tem como principal estratégia o estabelecimento de parceria entre ensino, serviço de saúde e comunidade, com propósito de desencadear mudanças no modelo de ensino e de atenção à saúde, bem como na forma de participação social em saúde (Kisil & Chaves, 1994).
Oskar Kokoschka, Ilustração para Mörder, Hoffnung der Frauen, 1908.
A PROBLEMATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA...
Na perspectiva da reorganização da atenção à saúde, ao trabalhar tendo os problemas como eixo, pretende-se um deslocamento do objeto de intervenção do setor saúde, que passa a ter outras conformações para além do indivíduo doente, e força a utilizacão de outros meios de trabalho e de outras articulações que transcendem o âmbito do setor de saúde. Além disso, traz a possibilidade de conformar práticas articuladas de promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde, com todo o espectro de conhecimento e técnica que são próprios do setor. A partir dessa opção, no âmbito do Projeto UNI-BAHIA, comunidade, profissionais de saúde, alunos e professores da universidade identificaram e definiram os problemas prioritários e a violência desponta como o principal agravo da área. No mesmo período é publicado o relatório sobre a Análise da Situação de Saúde no Município de Salvador (Paim, 1995), apontando a violência como segunda causa de morte da população e primeira causa, se considerada a faixa etária de menores de 49 anos. Definir a violência como problema prioritário da área do Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho (área de atuação do UNI - Bahia) veio reforçar a perspectiva apontada pelo Projeto, na medida em que o enfrentamento desse problema tem exigido um conhecimento interdisciplinar, uma prática multiprofissional e uma articulação intersetorial. Tem possibilitado, portanto, um espaço de ensino-aprendizagem prático, no qual está sendo possível a atuação articulada de alunos, professores, comunidade e pessoal de serviços de saúde. Sendo um problema não tratado usualmente pelo setor saúde, exceto no que se refere à assistência médico-hospitalar, a violência tem forçado a busca de alternativas de ação que estão fora dos mecanismos e das possibilidades usuais desse setor. A necessidade de encontrar meios que possam impactar, com mais efetividade, o problema, tem levado à intersetorialidade, à articulação de conhecimentos e de instrumentos de distintas áreas do saber, à articulação ensino/pesquisa/ação-intervenção.
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O Fórum Comunitário de Combate à Violência a articulação universidade/comunidade/serviços A constatação feita por representantes da comunidade, profissionais de serviços, professores e alunos da disciplina Políticas de Saúde, do aumento na violência em áreas de atuação do UNI-Ba., situação confirmada pelo relatório da pesquisa Análise da Situação de Saúde no município de Salvador (Paim, 1995), motivou a realização, em 1996, na comunidade do Vale das Pedrinhas, do Seminário sobre Violência e Saúde. Desse evento saiu a proposição de constituição de um fórum que agregasse os diversos setores interessados e envolvidos com a questão da violência, para coordenar as ações de enfrentamento desse problema. Assim, em agosto de 1996, o Fórum Comunitário de Combate à Violência foi constituído pelos segmentos do Projeto UNI-BAHIA, para operacionalizar as práticas intersetoriais inerentes ao enfrentamento desse complexo e multifacetado problema de saúde. Nessa perspectiva, incluiu em sua organização outros setores governamentais e não governamentais das áreas de educação, segurança pública, do setor jurídico e social, passando a ser o organismo coordenador das ações contra a violência na área de atuação do Projeto, o Distrito Sanitário Barra Rio Vermelho. A partir da constituição do Fórum, todos os seus componentes, incluindo profissionais de saúde, segurança pública, representantes das organizações comunitárias, professores e alunos das diversas áreas, participaram da elaboração do plano de ação para o combate à violência, o qual tem orientado as práticas dos diversos setores e segmentos em quatro linhas de ação: monitoramento e produção de conhecimento sobre a violência; organização de uma rede de atendimentos às vítimas da violência, programa educativo junto a escolares; e mobilização social. Assim, desde a fase inicial de operacionalização do Plano Operativo de Combate à Violência até o presente momento (quatro semestres letivos) a atuação dos alunos, dos profissionais de saúde e da comunidade tem sido marcante no desenvolvimento das linhas de ação definidas pelo Fórum. O quadro a seguir ilustra as atividades em desenvolvimento:
ODILE REDON, O homem cactus, 1882. Coleção Ian Woodner, Nova Iorque
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PROJETO
LINHAS DE AÇÃO
SISTEMA DE VIGILÂNCIA DAS VIOLÊNCIAS
Monitoramento e produção de SISTEMA DE VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA DOS HOMICÍDIOS
ESTRUTURAÇÃO DA REDE DE ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA
conhecimento sobre a violência;
Organização de uma rede de atendimento às vítimas da
INTEGRANTES
RESULTADOS
Professores, alunos de medicina da disciplina de Políticas de Saúde - Instituto de Saúde Coletiva; profissionais do Instituto de Medicina Legal Nina Rodrigues e profissionais da gerência e da rede de serviços do Distrito Sanitário/técnicos contratados pela Unicef.
Relatório "Rastro da Violência em Salvador"; pesquisas (entre elas "Violência entre escolares"); Professores, alunos de medicina da disciplina projeto para o de Políticas de Saúde - Instituto de Saúde monitoramento da Coletiva; profissionais da gerência e da rede morbidade da de serviços do Distrito Sanitário; técnicos do violência; nível central das Secretarias Estadual e Municipal de Saúde Professores, alunos de medicina da disciplina Políticas de Saúde, curso de Medicina/ISC; profissionais da rede (unidades de saúde, órgãos de segurança pública, ministério público e ONG's)
violência
Guia de Serviços para informar à população e aos profissionais envolvidos sobre os serviços existentes
PROGRAMA CIDADANIA PARA A PAZ PROGRAMA COMBATE À VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO E FUNDAMENTAL NO DISTRITO SANITÁRIO BARRA/RIO VERMELHO
TREINAMENTO DE ADOLESCENTES
DECLARE AMOR AO SEU BAIRRO
Desenvolvimento
Alunos da disciplina Desenvolvimento da Comunidade e Comunicação, curso de Nutrição; representantes da comunidade
de programa educativo junto a escolares
Alunos da disciplina Desenvolvimento da Comunidade e Comunicação, curso de Nutrição; representantes da comunidade e professores das escolas
Mobilização social Alunos da disciplina Odontologia Social, curso de Odontologia; alunos da disciplina para desenvolver Introdução à Medicina Social, curso de cidadania e auto- Medicina; profissionais dos serviços de saúde; grupos de adolescentes da comunidade e estima representantes da associação de moradores da área
campanhas publicitárias
alunos e professores de Medicina, Enfermagem, Nutrição, Medicina Veterinária, Psicologia e Farmácia, profissionais dos serviços, representantes da Polícia Militar e de delegacias especializadas, alunos de outras áreas e lideranças comunitárias
Trabalhos educativos com escolares, alunos e professores (Enfermagem, Nutrição e Psicologia) e professores da rede de ensino
Formação de agentes multiplicadores para a saúde
organização e realização de feiras de Saúde e outros eventos
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Além dos resultados para o ensino, o trabalho tem estimulado a mudança de práticas de organizações e instituições parceiras: a Delegacia de Proteção à Mulher tem estruturado o seu trabalho para desenvolver ações preventivas, pelo acompanhamento psicológico e social de famílias consideradas de risco. Além disso, organizou um sistema de informação que permite o mapeamento constante de ocorrência de atos violentos para identificar as áreas e situações de risco, a fim de garantir uma atuação mais oportuna e imediata. A Polícia Militar está implantando o projeto Polícia Comunitária , em articulação com a comunidade, que busca, ao lado da repressão não violenta ao crime, participar de medidas de prevenção da violência, aliada a uma atuação de proteção ao cidadão. As ações do Fórum têm extrapolado seu âmbito de atuação, indo além de atividades no espaço do Distrito Sanitário Barra Rio Vermelho. A Secretaria Estadual de Saúde deu um destaque à questão da violência quando elaborou, como desdobramento do Plano Estadual de Saúde, o Plano de Ação para a Redução da Morbimortalidade por Causas Externas na Bahia - PARMCEX, designando o Departamento de Vigilância à Saúde para coordenar e implementar as ações de combate à violência. Esse Departamento está trabalhando em articulação com o Fórum, compondo, inclusive sua Secretaria Executiva. Vale registrar que o PARMCEX foi aprovado, por unanimidade e com voto de louvor, pelo Conselho Estadual de Saúde, em setembro de 1998. Na Universidade, o projeto UFBA em Campo, iniciativa da Pró-Reitoria de Extensão, visando promover o desenvolvimento de práticas dos alunos das diversas carreiras, pela articulação entre ensino, serviços e sociedade, organizou, em 1998, a participação da Universidade no Carnaval, através do Projeto Folia Universitária, com o propósito de estimular um carnaval sem violência. Seu objetivo acadêmico foi, também, o de realizar atividades de pesquisa sobre o carnaval (visando produzir conhecimento sobre a produção do carnaval no seu lado oculto ). O Folia Universitária, juntamente com o Fórum e o Diretório Central dos Estudantes, organizou e participou da Caminhada pela Paz , abrindo o carnaval, numa das áreas mais concorridas de Salvador. Segmentos religiosos e organizações que lidam com questões relacionadas aos Direitos Humanos têm buscado articular-se ao Fórum e estão desenvolvendo campanhas em favor da paz e pela não violência. Os canais de TV, os jornais e as rádios locais têm mantido reportagens freqüentes sobre a violência e divulgado o trabalho do Fórum. Em 1998, empresas ligadas à propaganda e publicidade engajaram-se no trabalho do Fórum e elaboraram uma campanha, com produção de outdoors, cartazes, folhetos, adesivos, spots para rádio e clips para televisão. Considerações finais Mesmo no espaço singular de algumas disciplinas, a experiência vem demonstrando que o ensino centrado no aluno e pautado nos problemas e necessidades de saúde da população tem contribuído para uma atuação multiprofissional e intersetorial, permitindo o desenvolvimento de ações nos diversos níveis de atenção, que buscam enfrentar os problemas, beneficiando os indivíduos e a comunidade. Esse cenário tem garantido um espaço de atuação que permite planejamento, elaboração de projetos, realização de pesquisas, manejo de
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sistemas de informação, organização de serviços, assistência e comunicação social em saúde (interação com diferentes grupos da comunidade, com outros profissionais e com distintas organizações). Enfim, tem permitido uma inserção no mundo do trabalho, na realidade, resultando em intervenções que possibilitam a experimentação de novos instrumentos de trabalho e de novas formas de agir em saúde. As articulações, tanto com diferentes profissionais, como com diferentes setores, exigem, também, o desenvolvimento da capacidade de negociação, bem como habilidade para lidar com o outro - portador de distintos interesses e distintos saberes. Um verdadeiro estímulo à capacidade relacional intervenções que não se reduzem a aplicação de um instrumental técnico e/ou de um conhecimento dado à priori. O processo de avaliação e auto-avaliação discente tem apontado esse espaço como privilegiado para o desenvolvimento de habilidades e atitudes que instrumentalizam os alunos para entenderem e enfrentarem a realidade concreta, compreendendo o significado e a dimensão da Saúde Coletiva e o compromisso social da universidade. Além de contribuir para o amadurecimento pessoal. Estamos constatando que os resultados até então alcançados se aproximam, em muito, dos propósitos e princípios que orientaram a experiência e que em muito se aproximam daqueles contidos nas propostas de Diretrizes Curriculares apresentadas pela Rede UNIDA ao Ministério da Educação, fruto de um amplo debate entre os projetos que lidam com a formação de recursos humanos para a saúde, dentre eles: currículos fundamentados no humanismo e em metodologias ativas; relação de equilíbrio entre teoria e prática; diversificação dos cenários de aprendizagem; pesquisa integrada ao ensino, com participação de profissionais dos serviços e da comunidade; educação orientada aos problemas mais relevantes da comunidade; educação centrada no aluno visto como sujeito do processo de ensino-aprendizagem. (REDE UNIDA, 1998, p.12)
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COSTA, H. O. G. La problemática de la violencia como experiencia de enseñar en Salud, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. El artículo relata el afrontamiento de la violencia como problema prioritario de salud de la población del área de actución del proyecto Uni-Bahia - Distrito Sanitário Barra/Rio Vermelho, Brasil. Discute la necesidad de una formación socialmente contextuada que ayude a los profesionales a afrontar los problemas y las necesidades reales de salud de la población. Comenta las estrategias utilizadas para asegurar una articulación estrecha entre el mundo de la enseñanza y el mundo del trabajo - la realidad. PALABRAS-CLAVE: violencia; proceso enseñanza-aprendizaje.
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Las políticas de reforma universitaria: la lógica global y la respuesta local el caso de la Argentina *
Marcela Mollis
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MOLLIS, M. As políticas de reforma universitária: a lógica global e a resposta local - o caso da Argentina, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
Este trabajo se propone reconstruir la historia reciente de las políticas universitarias en Argentina, con especial referencia a la evaluación universitaria. Esperamos brindar un relato que exhiba la génesis y el desarrollo de las políticas y los organismos que las pusieron en marcha en la década de los 90, a partir de una agenda de la modernización universitaria surgida en el contexto internacional (agencias) y posteriormente instalada a niveles regional y nacional. Los movimientos estudiantiles, las marchas, huelgas y otras reacciones de los actores universitarios, ponen de relieve un renovado sentido de la crisis institucional en la región que denota particularidades y similitudes, las dos caras de los procesos globalizadores de fin de milenio. PALABRAS-CLAVE: universidad; evaluación; Argentina.
Este trabalho se propõe a reconstruir a história recente das políticas universitárias na Argentina, com especial referência à avaliação universitária. Esperamos oferecer um relato que descreva a origem e o desenvolvimento das políticas e os organismos que as colocaram em marcha na década de 90, a partir de uma agenda de modernização universitária sugerida no contexto internacional (agências) e posteriormente instalada em níveis regional e nacional. Os movimentos estudantis, as marchas, greves e outras reações dos atores universitários põem em relevo um renovado sentido da crise institucional na região, que denota particularidades e semelhanças aos processos globalizadores do final de milênio. PALAVRAS-CHAVE: universidade; avaliação; Argentina.
* Este trabajo reproduce parte de los resultados de dos proyectos: Estudio comparado de la evaluación de la educación superior en Argentina, Brasil y Canadá, y Calidad, innovación y mecanismos para la evaluación y la acreditación universitarias. Un estudio comparado entre Argentina y Estados Unidos dirigido por Macela Mollis, subsidiado por el Programa UBACYT, de la Secretaría. de Ciencia y Técnica de la UBA, en el Instituto de Investigaciones de Ciencias de la Educación IICE. Integran el equipo de investigación, como Investigadora invitada la Dra. Estela Mara Bensimón de la University of Southern California, investigadores principales: Daniel Suarez, Florencia Carlino, Liliana Jofre, Sofia Dono Rubio y Jimena Servi, en el marco del programa de Investigaciones comparadas en Educación Superior. 1
Profesora de la Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires.
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El abandono del Estado Benefactor en los 90 y su reemplazo por un Estado que evalúa la prestación pero descentraliza la administración educativa, impactó en las dinámicas de poder económico y político, promoviendo en los sistemas de educación superior latinoamericanos y de los países postsocialistas fundamentalmente, profundos cambios así como reformas nominales, superficiales e innovaciones inconclusas. Durante la dictadura modernizante de Pinochet en Chile, comenzó el período de reformas ejemplares de la educación superior para América Latina. A partir de la recuperación democrática de los países de la región, se fueron consolidando respuestas adaptativas de algunas universidades públicas a las demandas de una agenda internacional promovida por el Banco Mundial fundamentalmente y más tarde por el Banco Interamericano de Desarrollo BID (los ejemplos de México, Colombia, y Argentina), así como severas resistencias institucionales (como en Bolivia y Brasil) (Mollis, 1999). Las presiones externas de parte de los gobiernos centrales, se orientaron hacia la diversificación de fuentes de financiamiento (venta de servicios y arancelamiento), reformas curriculares (acortamiento de carreras para obtener una rápida inserción laboral), selectividad en el acceso (sistemas de ingreso), promoción de carreras no tradicionales orientadas al mercado (Marketing, Finanzas, Sistemas etc), actualización docente y la rápida expansión de universidades privadas. Estas tendencias forman parte de una agenda internacional que se aplica en América Latina como en los países post-socialistas europeos y constituyen el contexto internacional en el que se insertan nuestras reformas universitarias actuales. En Argentina, se produjo un cambio significativo en las políticas universitarias desde la creación de la Secretaría de Políticas Públicas y la promulgación en 1995 de la Ley de Educación Superior (No. 24.521) respecto de la introducción de mecanismos centralizados para la evaluación y acreditación universitaria en manos de la Comisión Nacional de Evaluación y Acreditación Universitaria, CONEAU, y su impacto en el significado institucional de la autonomía y la redefinición de la calidad universitaria . Las reformas actuales de la Universidad de Buenos Aires aspiran tener como eje orientador a la autonomía institucional respecto de las presiones externas del gobierno central y como propósito final, la adecuación de la oferta curricular a las demandas del tercer milenio manteniendo su identidad institucional pluralista, democrática, formativa en las profesiones, las humanidades y la producción científica. La evaluación y la acreditación universitaria constituyen dos ejes clave para entender las tendencias globalizantes en materia de políticas para el campo de la educación superior argentina (Mollis, 1994a; 1994b; Mollis & Bensimon, 1999). Las recomendaciones del Banco Mundial y de otras agencias internacionales están presentes en la construcción de políticas neoliberales no sólo para la región, sino también para los países centrales orientados por intereses tecnocráticos economicistas (Berman, 1999, Mollis & Bensimon, 1999). La globalización en el campo de la educación superior (McGinn, 1994, Chomsky & Dieterich, 1997) y las dinámicas de respuestas locales a la construcción hegemónica de políticas, demandan un tipo de reflexión sobre
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ELISETE ALVARENGA (fotos da série Erosão), 1999
LAS POLÍTICAS DE REFORMA UNIVERSITARIA...
la evaluación y la acreditación y su impacto en la innovación universitaria desde una perspectiva internacional-nacional y comparada, en función de algunos conceptos clave para la topográfica de Bourdieu2 : la conformación del campo evaluativo, el juego de valores e intereses irreductibles a los de otros campos, los discursos de agencias internacionales que producen/ reproducen los poderes simbólico (ideas) y real (recursos), así como los gobiernos, agentes y actores locales que luchan por la legitimidad y la distribución de parcelas de poder simbólico y real (Carlino & Mollis, 1997; Paviglianiti et al., 1996) Conflicto y poder, dos fuerzas que constituyen el campo evaluativo de la educación superior como un campo donde el discurso y las prácticas de las agencias internacionales (Banco Mundial, UNESCO, BID), del gobierno central, y de los actores universitarios, se interpelan en un contexto de negociación más política que académica (Mollis, 1995a). En función de lo descrito, sostenemos que el escenario real de la evaluación universitaria, emerge de una red de alianzas y enfrentamientos entre agentes e instituciones por un lado, y teorías, valores y procedimientos, por el otro (Carlino & Mollis, 1997). Dicha red se traduce en conflictos organizacionales de distinta índole y determina la definición de parámetros de valor de la producción universitaria (tanto de conocimientos como de recursos). Por un lado, el Estado como principal organismo de financiación, por el otro, el sector empresarial que demanda cierto tipo de perfil humano y recursos tecnológicos, pero además, los estudiantes que pretenden una formación y una acreditación que los posicione mejor en el mercado laboral, así como el movimiento estudiantil defiende conquistas históricas herederas de la Reforma Universitaria, los investigadores que hacen del desarrollo científico su profesión y los convierte en demandantes de condiciones favorables para la producción científica, además de los profesores que requieren mayor reconocimiento institucional y social para promover la función docente -por la acción gremial o académica (Mollis, 1993). Para sintetizar, la nueva conformación del campo evaluativo de la educación superior se gestó entre distintos actores promovidos por la aplicación de las recientes políticas neoliberales de la administración Menem: la Ley de educación Superior con sus respectivos organismos (CONEAU y Fondo para el Mejoramiento de la Calidad, FOMEC), los convenios establecidos con algunas universidades, la aplicación de las políticas de incentivos, en base a recomendaciones de las agencias internacionales (Mollis, 1994a; Mollis, 1994b). En cuanto al concepto de calidad de la educación superior , reconocemos que es un concepto imposible de definir de modo unívoco y homogéneo, dada su naturaleza política, multidimensional y subjetiva. La dimensión política de la calidad se manifiesta por el intenso interés que los gobiernos (europeos y latinoamericanos) han desarrollado por la medición de la misma y la implementación de políticas acordes con los resultados de la medición. Cuando se trata de construir un
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sistema de medición de la calidad es necesario tener en cuenta una variedad de criterios que se cruzan e interactúan entre sí. Por esta razón, un ranking de instituciones basado en una escala unidimensional, constituye una herramienta insuficiente y perjudicial para evaluar la calidad institucional.
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La otra cara de la crisis, hacia el fin del milenio Los productores de conocimiento sobre la universidad argentina en los 80 se referían de modo reiterado a la crisis universitaria asociada casi exclusivamente con la crisis de financiamiento. En otras palabras, interpretaban la crisis del modelo institucional como expresión de una crisis económico-financiera. Con la recuperación democrática (1983), el debate se desplazó de la crisis universitaria a la evaluación para el mejoramiento, y la discusión acerca de las políticas de financiamiento de este nivel fue reemplazada por el debate acerca de la evaluación para la obtención de recursos propios (Mollis, 1994 a; 1994 b). Actualmente, en los inicios del nuevo milenio, ya no se discute la necesidad de buscar fuentes propias de financiamiento para aumentar los recursos del estado, y el problema de la calidad universitaria queda asociada al problema de la responsabilidad social de las universidades respecto del producto que producen y el público que atienden (concepto equivalente a la expresión anglosajona accountability) (Mollis, 1997). Así es como los escenarios económicos y sociales de los 90 de los países latinoamericanos, con sus estados debilitados y presupuestos disminuidos han instalado las políticas de evaluación de la calidad universitaria, como un tema de carácter prioritario y central. Sin embargo, la necesidad de evaluar, la preocupación por la calidad y la orientación del campo económico hacia el eficientismo constituyen una vieja trilogía, hoy articulada en una trama conceptual que aspira ser diferente. En realidad se trata del resurgimiento de las ideas economicistas de la educación, a pesar de haber entrado en crisis en la década del 70, cuando numerosas investigaciones corroboraron la relativa independencia que existe entre los sistemas educativo y económico. Recientemente, con motivo del anuncio de un recorte en el presupuesto educativo de 300 millones de dólares acordado entre el representante del Fondo Monetario Internacional y el Ministro de Economía, quedó evidenciada la absoluta dependencia que la educación tiene respecto de la economía política sustentada por el modelo neo-liberal de la administración Menem. El anuncio promovió una protesta a la vez, ruidosa y silenciosa de parte de actores de la sociedad civil y la renuncia de una debilitada Ministra de Educación, (los movimientos estudiantiles interrumpieron el tránsito,
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cortaron calles, profesores universitarios dictaron clases públicas en las veredas, y una gran cantidad de conductores no hicieron sonar sus bocinas cuando vieron interrumpida su circulación en la ciudad de Buenos Aires, por columnas de jóvenes secundarios y universitarios al compás de cánticos alusivos). El relato del paradigmático suceso, culmina con la decisión de parte del gobierno de no aplicar el ajuste presupuestario al sector educativo en función de la respuesta de la sociedad argentina a favor de la educación. La tecnocracia-económica en Argentina como en otros modelos modernizantes de la región -, orienta los intereses públicos del Estado hacia la satisfacción de los intereses privados de las agencias internacionales, de los inversores y las finanzas de Wall Street. De este modo se producen los mentados efectos globalizadores en las políticas educativas, inimaginables desde una visión histórica nutrida por el optimismo pedagógico de figuras como Simón Bolívar, o Sarmiento en el siglo pasado. El desarrollo social debía venir de la mano del desarrollo educativo, y por la tanto las élites dirigentes liberales en los países de la región fomentaron y priorizaron hacia fines del siglo XIX, la puesta en marcha de los sistemas públicos de educación obligatoria, y concibieron a las universidades como instituciones de formación política-ciudadana para las jóvenes generaciones que dirigieron los destinos nacionales. Los 80 han sido una década de ajustes estructurales , de despliegue de la doctrina neoliberal, de imposición de un nuevo esquema de disciplina financiera y de modernización del Estado: los conceptos estratégicos fueron: reducir, diferenciar, despedir y disciplinar. Parafraseando a David Slater (1992, p.36) ajustar la estructura es mucho más que un ejercicio para los economistas , es cambiarle la vida a la gente, a los habitantes y ciudadanos de una nación. La re-semantización del pensamiento liberal, la reformulación semántica del histórico liberalismo que concebía a la educación como la antorcha que iluminaba el camino del desarrollo, hoy es reemplazada por la filosofía política del individualismo posesivo y del darwinismo social. El principio liberal por el cual el Estado debía encarnar la defensa de los derechos públicos a la educación y a la salud, se transformó en el decálogo para el buen consumidor, según el cual los estudiantes y enfermos que pueden pagar los servicios son clientes , y el resto los excluídos del sistema. La configuración del pensamiento hegemónico proclive a las verdades neoliberales en sentido gramsciano - se produjo a través de la americanización de las políticas de reforma como por ejemplo, el imperio discursivo del mercado como fuente de financiamiento, la descentralización educativa, el management universitario que reemplaza el concepto de gobierno universitario, el fomento de la expansión de las universidades privadas, las mediciones cuantitativas de la calidad institucional, las carreras universitarias orientadas al mercado (Ingeniería en Sistemas, Administración de Empresas, Ciencias de la Comunicación etc.), reconocidas en la literatura norteamericana como the entreprennurial university etc.
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La respuesta local a la dinámica global Con el lamentable suceso de un Ministro de Economía anunciando un recorte de 300 millones de dólares del presupuesto educativo, y la decisión que el sector más castigado por el ajuste acordado con los representantes del Fondo Monetario Internacional, debía ser Educación y no los gastos reservados del gobierno , se puso en evidencia el reinado de las Cuatro I de Kenichi Ohmae (1995). En su obra The End of the Nation State, Ohmae reconoce que el estado-nación está económicamente esclerótico y que, aunque juegue un papel en la economía mundial, perdió completamente su capacidad de control sobre la economía nacional ante la imposibilidad de controlar el cambio y proteger su moneda. Las cuatro I orientadoras del desarrollo financiero y la expansión económica, son para el autor nipón, la Industria, la Información tecnológica, los Inversores y los Individuos como consumidores. El estado-nación se ha vuelto disfuncional como organización económica: carece de incentivos (como históricamente los tuvo en la era del capitalismo industrial), credibilidad, herramientas, legitimidad, debido a que los flujos financieros están condicionados por gente e instituciones sobre quienes los estados-nación no tienen control práctico (Ohmae apud Torres, 1998, p.78)
Consideramos como respuesta local a la lógica global, las estadísticas que exhiben el imperativo categórico del modelo neoliberal aplicado en Argentina: la exclusión social. Desde 1993, en la ciudad de Buenos Aires y en la provincia de Buenos Aires (el 33% de la población nacional se concentra en ambas jurisdicciones, donde viven 12 000.000 de habitantes) la pobreza creció un 63%, esto significa que en la zona de mayor concentración demográfica del país hay más de 3.000.000 de pobres. En 1993 los pobres sumaban 1.800.000, el número de indigentes era de 487.000 y aumentaron en 1998 a 810.000 (Indec, 1999). La falta de trabajo es sin duda la variable con mayor incidencia en los índices de pobreza y subocupación. En Argentina existen 3.500.000 personas con problemas de empleo: 1,7 millón están desocupados y 1,8 millón se encuentran subocupados (los que trabajan menos de cuatro horas diarias aunque quieran hacerlo por más horas). La tasa de desempleo más alta se registró en mayo de 1995 con el 18,4% en tanto que la subocupación alcanzó el 11,3%. Desde entonces la desocupación fue disminuyendo hasta el 12,4% en octubre de 1998 y la subocupación aumentó al 13,6% (Ministerio de Economía e INDEC). En suma, hacia fines de la administración de Menem y comienzos del tercer milenio, Argentina tiene un 25,9% de pobres del total de la población 33.000.000. Por otra parte, la deuda externa argentina se multiplica: de 80 mil millones de dólares en 1995, llega a 110 mil millones. En enero de
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1999 el gobierno tenía un déficit público previsto de 2.650 millones de dólares y por acuerdo con el FMI se decidió ampliarlo a 2.950 millones. El compromiso del gobierno con el Fondo fue muy breve: en Abril se volvió a pactar una nueva ampliación del déficit a 4.950 millones. Walter Molano, economista en jefe para América Latina de la casa de Bolsa del BCP Securities, asegura que la difícil situación fiscal de la Argentina va a llevar al país a un punto en que le resulte difícil conseguir financiamiento: «la Argentina tiene una relación entre la deuda y exportaciones que es una de las más preocupantes de América Latina» (Clarín económico, 16 de mayo de 1999, p.5). Estos indicadores constituyen la respuesta local a las demandas internacionales a favor del ajuste fiscal. Son el resultado de las políticas de exclusión, y marginación social conjuntamente con la concentración de la riqueza, la privatización de las empresas públicas y las leyes de flexibilización laboral, acuerdos derivados de negociaciones crediticias efectuadas con el Fondo Monetario Internacional.
Presentaremos los conceptos claves de la UNESCO (1998,1995), el Banco Mundial (1995) y el Banco Interamericano de Desarrollo (1997) extraídos de sus documentos más recientes sobre educación superior, los cuales presentan algunas significativas coincidencias así como someras diferencias entre sí con respecto al problema de la evaluación de la calidad universitaria (Mollis & Bensimon, 1999). En octubre de 1998, tuvo lugar en la sede principal de la UNESCO la Conferencia Mundial sobre Educación Superior. Los documentos producidos, ofrecen una visión actual de los problemas de la educación superior en el mundo. Proponen alternativas para enfrentar los retos educativos del siglo XXI y consolidarse como fundamento para la definición de políticas educativas en la enseñanza superior. El documento Hacia una Agenda XXI para la Educación Superior sintetiza los resultados de las conferencias regionales y describe el conjunto de misiones que los sistemas de enseñanza superior llevan a cabo y debieran avanzar en un futuro inmediato. En primer lugar, la misión fundamental de la educación superior es servir a la persona humana; en segundo lugar, la misión tradicional de mantener, incrementar y difundir conocimientos a través de la investigación y la creación intelectual, así como la enseñanza y difusión de estos conocimientos. Esta misión debe incluir la tarea de desarrollar capacidades endógenas para adquirir y aplicar conocimientos existentes y para crear nuevo conocimiento, asimismo es tarea de la educación superior educar ciudadanos responsables. En tercer lugar, se afirma
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Los organismos internacionales comparados: el Banco Mundial, La UNESCO y el BID
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que la educación superior se ocupa de modo particular de los aspectos éticos y culturales: preservar y afirmar la identidad cultural, promover la propagación y creación de valores culturales, proteger e impulsar la diversidad cultural y participar activamente en el desarrollo de la comprensión intercultural, constituyen un conjunto de misiones indiscutibles. Por último, se señala que la educación superior debe contribuir a la implementación del aprendizaje permanente. Este documento enfatiza la importancia que tienen los sistemas de educación superior para establecer y armonizar las relaciones entre la sociedad y el Estado. Subraya el papel estratégico de las alianzas (partnership) entre las instituciones de educación superior y los diferentes actores sociales para promover el desarrollo de dichas instituciones en la perspectiva de alcanzar mayores niveles de pertinencia social y correspondencia entre el mercado de trabajo y las innovaciones tecnológicas, competencias y conocimientos. En cuanto a los protagonistas de la educación superior, los estudiantes y los profesores, se admite que: aún reconociendo el potencial de las tecnologías de la enseñanza a distancia, la interacción profesor-estudiante y las relaciones entre estudiantes, en cuanto contactos humanos, son formativas y educativas. Con respecto a los estudiantes se subraya la importancia de que estos desempeñen un papel activo en las instituciones enseñanza superior, y que este papel sea reconocido por las instituciones y traducido en apertura de posibilidades, para que los estudiantes y las organizaciones estudiantiles participen en la toma de decisiones y el diseño de cursos de acción (UNESCO, 1998). La UNESCO en el documento de 1995 hacía referencia a tres conceptos clave que determinaban las funciones, la respectiva posición nacional e internacional de los sistemas de educación superior: relevancia, calidad e internacionalización, en coincidencia con los requerimientos por la eficiencia, la calidad y la responsabilidad social del documento Lessons of the Experience del Banco Mundial. La relevancia está asociada al cumplimiento con excelencia de las tres metas básicas - investigación, enseñanza y servicios - en permanente conexión con las necesidades de la sociedad en el sentido amplio, promoviendo todo tipo de interacción entre las universidades y otras instituciones educativas. Uno de los pre-requisitos indispensables para satisfacer dichas metas indica que esas relaciones deben promoverse en base a dos principios básicos: la libertad académica y la autonomía institucional. En cuanto al problema del financiamiento, existe una importante diferencia entre el BM y la UNESCO. Si bien esta última reconoce la necesidad de diversificar las fuentes de financiamiento, el Banco Mundial se refiere al gasto universitario y no a la inversión. Por su parte la agencia europea reconoce que el Estado debería considerar a la educación superior más que como un gasto, como una inversión nacional a largo plazo. Para avanzar en la
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calidad de la oferta educativa, prioriza la actualización y perfeccionamiento de los profesores, el desarrollo de programas que aumenten las capacidades intelectuales de los estudiantes y, sobre todo, la incorporación de contenidos interdisciplinarios y multidisciplinarios. La calidad es una variable multifacética que remite a la calidad de los profesores, de los estudiantes y de los programas, calidad de la infraestructura y ambiente académico, todos integrados en el concepto de calidad institucional. Finalmente, el mentado documento insiste en que la evaluación de la calidad (quality assessment) es esencial para encontrar soluciones al problema de las crisis institucionales y del sistema. Advierte que los procedimientos evaluativos no deberían ser impulsados sobre la base de intereses financieros exclusivamente, ni tampoco considerar los indicadores cuantitativos como únicos resultados de la medición. Recomienda el empleo complementario de metodologías de evaluación de la calidad institucional cuanti y cualitativas. En este sentido, ambos documentos de la UNESCO en cuanto a las misiones de la educación superior y al problema de la evaluación de la calidad, tienen una perspectiva diferente a la del Banco Mundial y a la del BID, como se analiza a continuación. El Banco Mundial elaboró en 1993, un diagnóstico sobre la universidad en la Argentina. En él, se aborda el problema de la calidad vinculándola con dos conceptos claves de la historia universitaria latinoamericana, autonomía y financiamento estatal, a los que considera causas del empobrecimiento cualitativo: Las universidades padecen pobre calidad, desmoralización y politización. Representan un problema difícil para el gobierno, porque son legalmente autónomas. Esto implica que mientras el dinero para ellas pasa por el Ministerio de Educación, no son realmente controladas por el Ministerio. (Banco Mundial, 1993, p.89)
Este organismo detecta la peligrosidad subyacente a las prácticas instaladas en las universidades, lo que justifica la necesidad de un control ministerial y una asignación selectiva de recursos, como estrategia de solución. Asume que existe una flojera generalizada en el desempeño de los académicos , lo cual es motivo justificado para evaluar su productividad, a fin de otorgarle a dicho personal un estímulo económico para revertir esta tendencia. La idea de flojera aparece a través de conceptos como ineficiencia, indisciplina, politización, desmoralización: Problemas de baja calidad e ineficiencia también afectan a las universidades. Los docentes de este nivel están pobremente compensados comúnmente trabajan sólo part-time, y frecuentemente faltan a sus clases o hacen sólo mínimos esfuerzos para enseñar. Los estudiantes disfrutan la gratuidad de la educación pero generalmente toman mucho más tiempo del necesario para completar un curso de estudio, o abandonan antes de terminar sus estudios. Además, la educación superior está
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altamente politizada: las universidades son legalmente autónomas, los estudiantes participan en las elecciones de su gobierno, y las facultades están frecuentemente irrumpidas por la confrontación política entre partidos y grupos de intereses. Una de las razones de la baja calidad es el gasto inadecuado e ineficiente. Aunque el gasto deberá incrementarse como parte de una solución a los problemas del sector educación en Argentina, deberá ser acompañado por cambios institucionales para resolver serios problemas de moral e indisciplina. (Banco Mundial, 1993, p.83-4).
En este discurso, el desprestigio se extiende también a los estudiantes. Se sugiere como solución una evaluación permanente ( monitoreo ) del rendimiento del alumno, la restricción del ingreso y el pago de arancel. Se vincula el ingreso libre con el despilfarro de recursos universitarios, y con el aumento de la politización universitaria (Banco Mundial, 1993, p.89). El último documento del Banco Interamericano de Desarrollo (BID, 1997), muestra algunas diferencias respecto de los documentos producidos por sus competidores del Banco Mundial en cuanto a la forma de producción (consultas previas a expertos y autoridades universitarias latinoamericanas) y ciertas ideas que fundamentan el diagnóstico de los logros y las deficiencias de las instituciones de educación superior. El eje temático que organiza el documento se refiere a la necesidad de tener en cuenta el alcance y la calidad de los resultados de la educación en América Latina con el propósito de proponer estrategias para el mejoramiento de la misma (BID, 1997, p. 4-5). El BID pretende aplicar al área de educación superior, los mismos criterios que aplica para sus otras inversiones: apoyar las actividades y/o proyectos que tengan un sentido económico, que produzcan mayores beneficios que los que puede producir el mercado, que satisfagan una prioridad social y que no puedan ser llevados a cabo por las fuerzas del mercado exclusivamente . En cuanto a los instrumentos de medición de la calidad, rechazan los instrumentos homogéneos y generalizables, ya que consideran necesario evaluar la calidad de acuerdo con las cuatro misiones específicas institucionales: a) el liderazgo académico que forma a las élites nacionales; b) la formación profesional; c) la capacitación y formación técnica y d) la educación general cuasi-profesional (artes liberales). Por último, respecto de las estrategias para mejorar la educación superior, se plantean dos objetivos: por un lado apoyar las iniciativas innovadoras que aspiren lograr cambios; por el otro, buscar partners (el estado, los estados provinciales, los privados) que apoyen aquellas iniciativas donde el mercado falle y el estado necesite recursos (BID,1997, p.26) Analiza las funciones o misiones de las instituciones universitarias y reconoce la diversidad como un rasgo inherente a la naturaleza universitaria. Como producto de la diversidad y atendiendo la misma, propone una tipología atractiva desde el punto de vista de su originalidad aunque de dudosa aplicación en los sistemas de educación superior latinoamericanos. Frecuentemente, las cuatro misiones caracterizadas por
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Moura Castro y Levy, se llevan a cabo en la misma institución universitaria. De acuerdo con la tipología, proponen diversas modalidades de financiamiento: por ejemplo, a la misión liderazgo académico correspondería un tipo de financiamiento público basado en el desempeño, en cambio a la misión educación general cuasi-profesional (un término confuso) le correspondería el menor subisdio público y la mayor acreditación externa (en este segmento quedarían incluídos los profesorados y las carreras humanísticas; qué sectores del mercado estarían interesados en financiar dichas ofertas?). Una de las debilidades conceptuales del documento del BID reside en la incompatibilidad que existe entre la tipología y la realidad institucional latinoamericana. En América Latina abundan las universidades multifuncionales y complejas, que de acuerdo a la tipología señalada, deberían aplicar distintas lógicas presupuestarias y diferentes tipos de administración burocrática al interior de cada institución universitaria. Por otro lado, a pesar del reconocimiento a la diversidad institucional y la variedad de fines (las cuatro misiones, por ejemplo), se sigue considerando prioritaria la función investigación por sobre el perfil enseñante y la formación profesional. Existe sin embargo un reconocimiento de parte del Documento del BID al papel fundamental e irremplazable que las universidades de administración pública prestigiosas, tienen con respecto a la formación de las élites científicas, culturales y políticas que en los diagnósticos del Banco Mundial, no aparece. Otra importante diferencia entre ambas agencias internacionales, se refiere al reconocimiento del BID respecto del papel limitado del mercado. Éste no debe ni puede aparecer como única fuente de financiamiento para las actividades de formación científica y política del cuerpo dirigente de los países latinoamericanos, porque correría el riesgo de desaparecer la investigación pura y la producción de cultura. ?
La regulación del sistema de educación superior En la conformación del campo de políticas universitarias argentinas, consideramos ELISETE ALVARENGA (foto da série Erosão), 1999 necesario destacar algunos hitos clave de este proceso que concluyeron en una definitiva hegemonía de parte del Ministerio de Cultura y Educación (MCE), y en la consecuente regulación del sistema de educación superior. El MCE ha utilizado dos tipos de estrategias en función de la respuesta universitaria a su política. En la primera etapa - a partir de la implementación del subproyecto 06 - su estrategia consistió en la instalación de mecanismos técnicos (know how) en un marco conceptual de supuesta neutralidad que provocó serias dificultades para la negociación de acuerdos institucionales. Dado que las universidades nacionales - y algunas privadas - desconfiaron de las intenciones implícitas de tales estrategias, hacia fines de 1992 se
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produjeron cambios significativos que introducen la segunda etapa. En febrero de 1993 se creó la Secretaría de Políticas Universitarias (SPU). Así comenzó a desarrollarse un doble movimiento estratégico de parte del gobierno central. Por un lado, el Ministerio de Educación sin escuelas , creó una estructura técnica, material y humana al servicio de la producción de políticas para el sector universitario específicamente. Por otro lado, y a través del personal estilo de gestión del primer Secretario de la SPU, comenzó una intensa búsqueda de acuerdos y apoyos institucionales a las políticas de la secretaría. De este modo, a la estructura gubernamental de la SPU se sumó un conjunto de negociaciones regulatorias, ambos instrumentos para consolidar los objetivos políticos del gobierno central en materia universitaria. A partir de entonces un nuevo capítulo se inició en la historia de nuestras universidades que bien podría denominarse evaluación bajo sospecha (Mollis, 1994 a). La iniciativa en favor de evaluar la calidad universitaria se había gestado extra-muros académicos a partir de un proyecto financiado por un organismo internacional como el Banco Mundial. La respuesta de la mayoría de las universidades representadas en el Consejo Interuniversitario Nacional, CIN, ante el subproyecto 06 puede caracterizarse como de resistencia crítica, visible a través de los fundamentos presentados en los documentos de las comisiones regionales y la Comisión de Enseñanza del CIN. El proyecto de evaluación de la calidad universitaria auspiciado por el Ministerio de Educación había sido inicialmente vinculado a una racionalidad económica-financiera no sustentada necesariamente en el mejoramiento de la calidad universitaria sino en la preocupación por la distribución presupuestaria. Sin embargo, a medida que se habían ido elaborando esos documentos, las comisiones regionales del CIN proporcionaban razones que legitimaban la instalación de procesos evaluativos tendientes a interpretar, cambiar y mejorar la calidad universitaria , a la vez que daban cuenta de mecanismos evaluativos ya existentes en las instituciones. Asimismo, se temía que la evaluación, utilizada en forma estandarizada, pudiera estar orientada a privilegiar el funcionamiento de los campos del conocimiento ligados con los aparatos productivo y tecnológico, dejando de lado otros campos disciplinarios (humanidades, artes, ciencias sociales) por considerarlos ineficientes. Entre tanto, los rectores y secretarios académicos nucleados en torno al CIN comenzaron a institucionalizar la necesidad de la evaluación universitaria como parte de las políticas de gestión y del planeamiento institucional. Además desarrollaron posiciones frente a los aspectos políticos, teóricos, metodológicos y técnicos que dichas prácticas involucran. En este marco, se produjo desde el ámbito académico liderado por la comisión de Enseñanza del ClN, abundante material documental, que testimonia nuestra descripción.
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Tal como se deriva de este breve relato y como se aprecia en la crónica de acontecimientos (Carlino & Mollis, 1997), el Subproyecto 06 produjo lo que hemos denominado un efecto boomerang (Mollis, 1994b, p.120), en el sentido de haber generado importantes y novedosas consecuencias para la construcción del campo de la evaluación universitaria. Inicialmente como reacción y luego como contra-propuesta, las universidades nacionales sistematizaron, explicitaron y difundieron sus propios marcos teóricos y metodológicos acerca de la evaluación. A continuación mencionaremos los hechos que describen las tendencias descritas: ·la firma de convenios entre universidades y la Secretaría para la realización de evaluaciones internas y externas, ·la evaluación de los académicos a través del Programa de Incentivos a docentes-investigadores de las universidades nacionales ·la construcción de la CAP (Comisión de Acreditación de Posgrados) y la correpondiente acreditación de posgrados, ·la promulgación de la Ley de Educación Superior (1995) y por su intermedio, la creación de la CONEAU. ·la creación y puesta en marcha del FOMEC (Fondo para el Mejoramiento de la Calidad) En suma, la creciente hegemonía conquistada por el gobierno central a través de las políticas e instrumentos de la SPU, promovió una suerte de regulación heterónoma de la dinámica universitaria, que desde la Reforma Universitaria de 1918 y durante los períodos democráticos, se había caracterizado por su autonomía académica. A continuación se presentan los hechos más significativos que caracterizan esta segunda etapa de las políticas centrales para la educación superior de la administración neo liberal de Menem (1993-1997). Heteronomía y autonomía en la política de evaluación de la calidad universitaria Una particularidad de las políticas universitarias del gobierno central, fue la heteronomía conquistada por el marco regulatorio y la complicidad de algunos técnicos operadores de las agencias internacionales que tuvieron el know how y los recursos materiales para instalar un tipo de lógica globalizada . Se impulsó la evaluación universitaria más allá de las tradicionales prácticas autónomas de evaluación: concursos docentes, cátedras paralelas, evaluaciones estudiantiles de cátedras y programas de estudio etc.). En algunas universidades (las más viejas y orientadas a la investigación como la UBA, la Universidad de La Plata, la Universidad de Córdoba etc), las prácticas evaluativas estaban incorporadas a la cultura institucional en los segmentos de mayor excelencia y perfil científico, (facultades de Ciencias Exactas y Naturales o Filosofía y Letras). En otras (Ciencias Económicas, Derecho, Odontología etc.) las prácticas evaluativas no constituían una actividad prioritaria para la formación profesional o
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vocacional. Sin embargo, en el curso de cuatro años, el gobierno negoció acuerdos no previsibles en el marco de las históricas políticas reformistas que el Consejo Interuniversitario Nacional de rectores solía representar. El espíritu de esta segunda reforma, es generoso y complejo dado el tamaño de la UBA y la diversidad de intereses al interior del propio diseño de reforma. Sin embargo, quienes dominan la producción de las reformas universitarias en este fin de siglo son: el Gobierno (impulsado por sus compromisos ELISETE ALVARENGA (pintura da série Erosão), 1999 internacionales), el Mercado (carreras cortas, diplomas intermedios vinculadas a la administración y al gerenciamineto empresarial) y finalmente, los académicos, estudiantes, administrativos y un nuevo grupo de interés reconocido como tecnoburocracia. La histórica reforma del 18, fue definitivamente gestada por los estudiantes identificados con la futura clase dirigente nacional, apoyados por el gobierno, preocupados por la calidad académica que derivó en los concursos docentes. En las unidades académicas de la UBA que han iniciado su proceso de reforma (acortamiento de las carreras, títulos intermedios, cambio de plan de estudios, orientaciones profesionalizantes etc.) existe una evidente participación de los actores reconocidos como tecno-burocracia académica, y abundan testimonios de docentes investigadores y estudiantes que desconocen o no acuerdan - con la orientación de la reforma. A continuación se presentan algunos de los factores que tuvieron mayor incidencia en la producción del contexto de negociaciones con los rectores y la instalación de prácticas heterónomas en la cultura universitaria. La oleada de creación de universidades nacionales nuevas. Entre 1988 y 1995, se da un proceso paulatino de creación de universidades nacionales cuyo número asciende a diez, en total. Esto implica que, en seis años y medio, el subsistema de universidades nacionales se amplió en casi un 40%, pasando de 26 a 36 instituciones. Este proceso es relativamente contradictorio con la escasez de recursos declarada por el gobierno central, para invertir en las universidades ya existentes. Por otra parte, estas creaciones no condicen ni expresan las necesidades de la comunidad local de desarrollo de determinados recursos humanos en sectores regionales específicos sino, más bien parecen expresar una racionalidad del tipo político-clientelista y la construcción de nuevas hegemonías en el interior del CIN. En primer lugar, la creación de estas nuevas instituciones refleja una estrategia orientada por el clientelismo político de los diputados de los dos partidos mayoritarios frente a la comunidad del radio de influencia donde se crea la universidad. En segundo lugar, expresa la voluntad del gobierno central de alterar la representatividad del mapa político partidario de los rectores del CIN: entre las diez universidades nuevas, cuatro de sus rectores tienen una filiación al
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menemista, en tanto que las seis restantes - creadas en función del interés de legisladores de los dos partidos mayoritarios- están intervenidas por un rector normalizador elegido por el MCE. En tercer lugar, esta nueva oleada de universidades nacionales puede representar un intento para desequilibrar la concentración de poder institucional de las universidades más grandes y tradicionales del país, opositoras al oficialismo. La creación de la Secretaría de Políticas Universitarias y el cambio de estrategia política operada desde el MCE hacia las universidades La creación de esta Secretaría como espacio específico de producción de políticas para el sector universitario revela la voluntad del gobierno de regular y controlar las dinámicas de las instituciones de educación superior, en el marco de las tendencias propuestas por la SPU coincidentes con las tendencias recomendadas por los organismos internacionales. Desde su creación, a comienzos de 1993, esta Secretaría ha estructurado un conjunto de políticas, en base a negociaciones y regulaciones que promovieron acuerdos y desacuerdos de actores tales como el grupo de rectores de las nuevas universidades o la Federación Universitaria Argentina respectivamente. Parte importante de su estrategia política ha sido la de generar y concentrar recursos (fundamentalmente, técnicos, financieros e información) que el sector requiere. En tal sentido, la concentración de tales recursos, posicionan a la SPU en un espacio de poder condicionante para las negociaciones y contribuye a generar estrategias de intervención en la relación entre el gobierno central y las universidades, novedosas en la historia de la educación superior. La promulgación de la Ley de Educación Superior No 24.521 La mentada Ley fue promulgada el 7 de Agosto de 1995 y comprende a las instituciones de formación superior, sean universitarias o no, nacionales, provinciales o municipales, tanto estatales como privadas, todas las cuales forman parte del Sistema Educativo Nacional regulado por la ley 24.195. Consta de IV Títulos, subdivididos en Capítulos y Secciones con un total de 89 Artículos. Los temas que encabezan cada parte expresan las cuestiones sobre las cuales legisla: . de la Educación Superior: Fines y objetivos, Estructura y Articulación, Derechos y Obligaciones; . de la Educación Superior No Universitaria: responsabilidad jurisdiccional de las instituciones, títulos y planes de estudio, evaluación institucional; . de la Educación Superior Universitaria: instituciones universitarias y sus funciones, autonomía: su alcance y sus garantías, condiciones para su funcionamiento - requisitos generales -, régimen de títulos, evaluación y acreditación; . de las Instituciones Universitarias Nacionales: creación y bases organizativas, órganos de gobierno, sostenimiento y régimen económico financiero; . de las Instituciones Universitarias Privadas (no hay subtítulos);
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. de las Instituciones Provinciales (no hay subtítulos); . del Gobierno y coordinación del sistema Universitario; . disposiciones complementarias. La ley nº 24.521 introduce cambios sustantivos en lo que respecta a los históricos conceptos de autonomía, financiamiento y gobierno universitario. A modo de ejemplo, autoriza a las instituciones universitarias a estableceer el régimen de acceso, permanencia y egreso de sus estudiantes en forma autónoma (en las universidades con más de 50.000 estudiantes, el régimen de admisión, permanencia y promoción puede ser definido por cada Facultad); autoriza a cada universidad a que fije su propio régimen salarial docente y de administración de personal, asegurándoles el manejo descentralizado de los fondos que ellas generen; podrán promover la constitución de sociedades, fundaciones u otras formas de asociación civil destinadas a apoyar la gestión financiera y a facilitar las relaciones de las universidades y /o facultades con el medio; los órganos colegiados tendrán funciones de definición de políticas y de control, en tanto que los unipersonales tendrán funciones ejecutivas; modifica la integración del claustro de profesores autorizando al conjunto de los docentes (auxiliares inclusive) para ser elegidos como representantes de dicho claustro; aumenta el número de cuerpos representados en los órganos colegiados integrando a los representantes no-docentes y establece como requisito para los representantes estudiantiles la regularidad y aprobación de dos materias como mínimo por año. Además de introducir cambios que afectan tradicionales prácticas universitarias, también pone en marcha procesos de evaluación inéditos a través del establecimiento de organismos y actores dedicados exclusivamente a tal fin. Se promueve la evaluación institucional, tanto interna como externa. La evaluación interna - a cargo de las propias universidades - tiene como objetivo analizar los logros y dificultades en el cumplimiento de las funciones universitarias, así como sugerir medidas para su funcionamiento. La evaluación externa se realiza cada seis años, y está a cargo de la Comisión Nacional de Evaluación y Acreditación Universitaria. Junto con este órgano pueden existir entidades privadas reconocidas para tal fin. En ambos casos con la participación de pares de reconocida competencia. La CONEAU, es un órgano descentralizado y funciona en jurisdicción del Ministerio de Cultura y Educación. Está conformado por 12 miembros designados por el PEN a propuesta del CIN (5 miembros), el CRUP (3 miembros) la Academia Nacional de Educación (1 miembro), las Comisiones de Educación del Congreso (2 miembros), el Ministerio de Educación (1 miembro). Duran en sus funciones quatro años. A través de la acreditación cualquiera de estos organismos otorgan el reconocimiento público a las instituciones, garantizando a la sociedad que reúne ciertos estándares previamente establecidos. Las recomendaciones que surgen de la evaluación tendrán carácter público. En lo que a coordinación interuniversitaria se refiere, es preciso señalar que con anterioridad a la Ley 24.521, el CIN era un organismo de adhesión voluntaria por parte de los rectores de las universidades nacionales. A partir de la mentada Ley (Cap. Vll, Art. 73) se establece que el Consejo Interuniversitario Nacional estará
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integrado por los rectores o presidentes de las instituciones universitarias nacionales y provinciales reconocidas por la Nación, que estén definitivamente organizadas . En este sentido, obliga a todos los rectores o presidentes a formar parte de dicho organismo, prescribiendo su pertenencia. Esta novedad puede ser interpretada en el marco de la búsqueda de desequilibrio en la representatividad política de los rectores que participan en el CIN. Aquel histórico espíritu marco de la llamada Ley Avellaneda con sus quatro artículos, hoy es reemplazado por una ley con 89 artículos que remite, por comparación, a un espíritu más reglamentarista. Se puede detectar cierto tipo de tensión entre un enfoque neoliberal que aspira la desregulación orientada por la libertad de los mercados y el nuevo tipo de financiamiento en función de méritos (incentivos) y algunas expresiones que buscan el control de parte del gobierno central con el consecuente impacto en las libertades académicas y la autonomía. Entre las universidades públicas que interpusieron recursos de amparo por considerar que la mentada ley es anti constitucional en lo que respecta a la autonomía y la autarquía universitaria , se encuentran: la Universidad de Buenos Aires, la Universidad de Rosario, la Universidad de Mar del Plata, la Universidad de La Plata. Las universidades, - avaló un juez federal -, no pueden ser tenidas como dependencia, delegación, o descentralización del Poder Ejecutivo nacional, puesto que tienen jerarquía institucional demarcada por la misma Constitución (La Nación, in Mollis, 1996, p.111).
La Economía Política internacional como fuerza constitutiva de las reformas universitarias favorables a la acreditación y evaluación La economía política de la educación, como lo señalaba Martin Carnoy a comienzos de los 80, considera que la educación está configurada por las relaciones de poder entre diferentes grupos económicos, políticos y sociales. Para los economistas políticos, ningún estudio de los sistemas educativos y sus respectivas reformas, puede dejar de lado el análisis explícito o implícito de los fines y el funcionamiento de los gobiernos. Por esta razón hemos presentado en este artículo acciones e intencionalidades de agencias internacionales, globales y locales, así como la respuesta del gobierno argentino condicionada por esta trama de poder económico, político y social. El contexto de globalización económica que favorece el intercambio de capitales financieros auspiciado por las agencias de crédito internacionales, ha promovido en los últimos diez años, experiencias de evaluación y control universitario en el marco de las políticas de regulación de los estados neoliberales de los países periféricos y también centrales. En la región latinoamericana, como en África y Asia, las tendencias regulatorias son semejantes respecto del papel que le cabe a órganos dependientes o vinculados a los intereses del gobierno central con la función de controlar aspectos académicos de la vida institucional. Este hecho ha promovido concomitantemente, una reacción de parte de universidades e intelectuales con tradición autónoma, quienes demandan órganos de acreditación y evaluación independientes de los gobiernos, legítimamente orientados hacia
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el mejoramiento de la calidad institucional. Habrá que reflexionar sobre el impacto futuro de las políticas recientemente diseñadas en el caso argentino, para evaluar la incidencia de las mismas en el mejoramiento de la gestión institucional y en el cumplimiento de las misiones institucionales. Nuestra historia estuvo signada por una sucesión de hechos protagonizados por un actor del campo internacional, el Banco Mundial, y dos actores locales del campo de la producción y difusión de políticas universitarias: el Ministerio de Cultura y Educación (MCE) y el Consejo Interuniversitario Nacional (CIN). En un lapso menor de seis años, el problema de la evaluación universitaria se instaló en las agendas de las políticas institucionales y en la vida cotidiana de las universidades nacionales y privadas. El accionar del CIN en cuanto a la producción de políticas de coordinación o articulación universitaria, resultó limitado y poco eficiente en comparación con el know how (material y simbólico) empleado por la SPU para impactar en el sistema. La SPU posee una estructura edilicia y material (diversas oficinas distribuidas en los dos edificios del MCE) y dispone de un equipo técnico estable (además de consultores externos contratados para proyectos específicos) que explican el éxito de su gestión en concordancia con los lineamientos del Banco Mundial que hemos presentado. Las experiencias internacionales (norteamericanas y europeas), ponen de manifiesto que la calidad se define en la cultura y el proyecto institucional de cada universidad, a partir de la función enseñanza, tanto como a partir de las funciones de investigación o gestión. La mirada evaluativa, definida por la comunidad en su conjunto (docentes, estudiantes, investigadores, autoridades y pedagogos) y la reflexión sobre la práctica, constituyen hasta el momento, los legítimos instrumentos para impactar en el sentido de mejorar las instituciones. Con esta orientación comienzan a replantearse los nuevos lineamientos de agencias internacionales como el Banco Interamericano de Desarrollo. Entre la heteronomía producida por el marco regulatorio y los agentes de control, y la autonomía de las instituciones, quedan los actores, los únicos sujetos con capacidad de apropiarse de los conflictos para mejorar y ayudar a crecer o no- su propia institución. Todo proceso de cambio institucional genera acuerdos y desacuerdos, y promueve estrategias que tienden a silenciar las disidencias para operar con las coincidencias en aras de un resultado observable, como lo es un nuevo plan de estudio, convenios con empresas, o graduados que se insertan en un mercado de trabajo reducido. Sin embargo, los protagonistas de las innovaciones universitarias, necesitan conocer los valores que sustentan los promotores del cambio, para comprometerse con las decisiones, implementar acciones y superar la superficialidad de las reformas. Las reformas nominales - las que sólo le cambian el nombre a las estructuras -, consideran que el único cambio institucional posible se gesta extra-muros, es concebido por una tecno-burocracia ajena a las instituciones, que administra la reforma desde el centro , la aplica verticamente y confunde a los actores con los objetos de la innovación.
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Esta lógica externa, contradice el valor prioritario de la confianza en los actores como protagonistas de la innovación, para apropiarse de los resultados en el mediano y largo plazo. Probablemente, el protagonismo de los actores y la autogestíon de la innovación, constituyen las tradiciones más útiles para enfrentar el tercer milenio, heredadas de la Primera Reforma universitaria de 1918. Referências bibliográficas BANCO INTERAMERICANO DE DESARROLLO (BID) La Educación Superior en América Latina y el Caribe: documento de estrategia. Washington: DC, p.4-5, 1997. BANCO MUNDIAL. Argentina: from insolvency to growth. A World Bank country study. Washington: DC, 1993. BANCO MUNDIAL. Lessons from the experience. Washington: DC, 1995. BOURDIEU, P. Campo de poder y campo intelectual. Buenos Aires: Folios, 1983. BOURDIEU, P. Cosas dichas. Barcelona: Gedisa, 1988. CARLINO, F., MOLLIS, M. Políticas internacionales, gubernamentales e inter-institucionales de evaluación universitaria: del Banco Mundial al CIN. Rev. Inst. Invest. Cienc. Educ. p.22-36, 1997. COMO se recauda y en qué se gasta? Clarin, Buenos Aires, 16 de maio 1999, Suplemento Economico, p.5. CHOMSKY, N., DIETERICH, H. La Aldea Global. Txalaparta: Nafarroa, 1997. INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICAS Y CENSOS. Estadísticas Oficiales 1998. Buenos Aires, 1999. McGINN, N. The implications of globalisation for higher education. In: Learning from Experience: policy and practice in aid to higher education, CESO, Paperback, The Hague, n.24, p.77-93, 1995. MOLLIS, M. Crisis, calidad y evaluación de las universidades: tres temas para el debate. In: KROTSCH, P., PUIGGROS A.(Comp.). Universidades y Evaluación: estado de la discusión. Buenos Aires: Aike, 1994a. MOLLIS, M. Estilos institucionales y saberes: un recorrido espaciotemporal por las universidades europeas, japonesas y latinoamericanas. Rev. Educ., n.303, p.120, 1994b. MOLLIS, M. En busca de respuesta a la crisis universitaria: historia y cultura. Perf. Educ., n.69, p.34-40, 1995a. MOLLIS, M. Relato de experiencias de evaluación universitaria: el caso de la Universidad Nacional de la Plata. In: _______ Evaluación de la calidad en la Universidad. Buenos Aires: Ciencias Economicas, Secretaria Pedagógica, 1995b. p.99-118. MOLLIS, M. El sutil encanto de las autonomías: una perspectiva histórica y comparada.Pensamiento Universitario, v.4, p.102-15, 1996. MOLLIS, M. The paradox of the autonomy of Argentine universities: from Liberalism to Regulation. Latin Am. Perspect., p.211-56, 1997. MOLLIS, M., BENSIMON, M. Calidad de la educación superior desde una perspectiva comparada: el caso de la Agentina y los Estados Unidos. In: CASANOVA, H., RODRIGUEZ, R. (Comp.) La Universidad Latinoamericana Modernizada. México: Siglo XXI, 1999. ?
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MOLLIS, M. University reform policies: global logic and local response the case of Argentina, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. This paper intends to reconstruct the recent history of university policies in Argentina, with particular reference to university evaluation. We expect to offer an account describing the origin and the development of said policies and the bodies that put them into practice in the nineties, based on a program for modernizing universities, suggested within an international context (agencies) and latter implemented at regional and national levels. The student movements, marches, strikes and other reactions of the university stakeholders highlight a renewed perception of the crisis of the institution in the region, which shows peculiarities and similarities relative to the globalization processes that are taking place at the closing of this millenium.
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KEY WORDS: university, evaluation, Argentina.
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Conhecimento, tecnologia e sociedade: em busca de referências interpretativas da ação
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FERREIRA, J., AXT, M. Knowledge, technology and society: the search for interpretative references for action, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999.
This essay discusses aspects of the relations between society, knowledge, and technology, taking into account Marxist theories on social production and education, as well Jean Piaget s socio-genetic perspectives. The hidden facet of these theories refers to the polemics on the cognitive possibilities revealed as a result of information and computer communication technology. Relativizing both one and the other approach, we seek in the several construction steps the theoretical references for the interpretation and evaluation of the aforementioned relations, focusing on the pedagogical action in environments equipped with information technology, as regards the opposition between autonomy and heteronomy. KEY WORDS: technology; society; education.
Este texto desenvolve pontos da relação entre sociedade, conhecimento e tecnologia com o recorte das teorias marxistas sobre produção social e educação, e a perspectiva sociogenética de Jean Piaget. A face oculta dessas teorias refere-se às polêmicas sobre as possibilidades cognitivas abertas pelas tecnologias de informática e telemática. Relativizando uma e outra abordagem, buscamos - nos vários passos de construção - as referências teóricas para a interpretação e avaliação daquelas relações, com os olhos voltados à ação pedagógica em ambientes informatizados, nos termos da oposição entre autonomia e heteronomia. PALAVRAS-CHAVE: tecnologia; sociedade; educação.
1 Professor do Centro de Ciências da Comunicação da Universidade Federal do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS. E-mail: ferreira@netu.unisinos.tche.br. Url: http://ccc.unisinos.tche.br/users/f/Ferreira/
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Laboratório de Estudos Cognitivos do Instituto de Psicologia (LEC-UFRGS). E-mail: maaxt@vortex.ufrgs.br
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Introdução O recorte utilizado para este texto tem como referências as teorias de Marx e Piaget. Lucien Goldmann (1959) desenvolveu a hipótese de que as teorias de ambos são correspondentes do ponto de vista epistemológico e homólogas (enquanto teoria social e psicológica). Por sua vez, Piaget, em Estudos Sociológicos (1983), estabelece uma série de identidades entre sua concepção (estruturalismo genético) e as concepções de Marx. Queremos aqui discutir não o plano da epistemologia ou das correspondências entre uma teoria e outra, mas sim sugerir um caminho para a análise dos processos de produção social informatizados e com isso preencher lacunas existentes entre a reflexão marxista e as proposições de Piaget . O ponto de partida é a afirmação de Piaget de que nas condutas dos indivíduos há duas espécies de interação: sujeito-objeto e sujeito-sujeito. Esta formulação equaciona a análise dos processos sociais de forma convergente com Marx, que afirma as relações (compreendidas também como ação) indivíduo-natureza e indivíduo-indivíduo, ambas mediadas pelo modo de produção, como básicas do desenvolvimento histórico. Entendemos que esta é a relação que deve ser construída na análise das configurações dos ambientes informacionais. Começamos por situar a tecnologia nos processos de produção social, partindo das interpretações de Marx e desdobrando-as conforme interpretações contemporâneas aproximadas ao marxismo. As relações destes processos com a educação e o conhecimento são discutidas a partir da contribuição marxista. Discutimos, também, a abordagem de Jean Piaget sobre interação, cooperação, autonomia e heteronomia, tomando como foco orientador a interpretação dos processos de produção social informatizados/telemáticos e suas relações com a educação e conhecimento, nos termos da autonomia e/ou heteronomia. A tecnologia na produção social O conceito de tecnologia que utilizamos tem o sentido construído por Marx. Tecnologia é meio de produção (instrumentos de trabalho) que, na contemporaneidade, objetiva a racionalidade científica. Longe, porém, da neutralidade, a tecnologia é uma composição passível de uma demarcação no tempo/espaço de sua ocorrência (o que já define seu caráter histórico, que alguns entendem universal), e também de seus vínculos psicogenéticos com determinadas formas de agir (ação preexistente, incluindo a ação na produção social) e pensar (racionalidade da própria ação específica e geral), no contexto da divisão social do trabalho manual e intelectual e indissociáveis das estratégias de classes e camadas sociais (Ferreira, 1997). Um dos espaços de uso efetivo das tecnologias - que hoje são produzidas por um campo de especialistas, cientistas e tecnólogos - é o da produção social, diferente do espaço de consumo. Uma tecnologia de informática e telemática, entretanto, pode ser a mesma no espaço da produção e no do consumo (por exemplo, um microcomputador). O conceito de produção do qual partimos é o de Marx, buscando,
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3 Para Baudrillard, nem o objeto material construído pelo pensamento marxista existe na forma de necessidades naturais. O objeto de consumo é signo e significado dissociado de seus referentes. O predomínio do virtual nas representações sociais é dominante na era das mídias. Estas idéias (Baudrillard, 1972 e 1996) partem de um implícito conceitual que questionamos: seriam os significados reais existentes apenas simbólicos, em oposição à virtualidade das representações sígnicas? Nem significantes, nem significados podem ser resumidos ao simbólico e ao virtual; a significação pode ser também construção social.
entretanto, sua relativização. Dos Manuscritos, passando pela Ideologia Alemã, até a Introdução e ao Capital, as relações entre trabalho (atividade dos indivíduos) e produção são reconstruídas de forma cada vez mais complexa. Nos Manuscritos, produção é ao mesmo tempo relação (intercâmbio orgânico) indivíduo-natureza e indivíduo-indivíduo. Na Ideologia Alemã, Marx afirma as forças produtivas como forma que abrange a cooperação e divisão do trabalho e, ao mesmo tempo, desenvolvimento dos meios (instrumentais) para satisfazer o mundo da necessidade. Nesta obra, Marx afirma as formas de produzir (incluindo aí, as formas determinadas de organização social da produção - de cooperação, divisão social do trabalho e de propriedade -, e principalmente a propriedade dos meios de produzir) como referência essencial de uma concepção de história. Estes conceitos seriam depois desdobrados: o modo de produção é uma síntese dos processos de produção e processos de valorização - entendidos cada um como mutuamente implicados e de autonomia relativa na configuração das relações sociais de produção. As sociedades devem ser situadas, periodizadas em seu passado e hierarquizadas em seu presente conforme as variações no contexto desta dialética. Portanto, produção social não é trabalho - sequer assalariado -, nem apenas formas de produzir. Não se pode dizer, entretanto, que as tecnologias de informática e telemática se restringem às atividades dos indivíduos neste espaço de produção social no sentido marxista do conceito. Neste conceito, os processos de produção têm a sua objetividade registrada nos meios de produção (objetos de trabalho - natureza e matérias primas - e meios de trabalho - pernas, mãos, instrumentos, prédios, estradas), nos objetos (materiais para consumo individual e produtivo) e na atividade humana. Isto é, trata-se da atividade dos indivíduos para a produção de objetos materiais, utilizando meios de produção (tecnologias, matérias primas e espaços) também materiais3 . Esta inserção das tecnologias nas formas de produção social específicas de bens materiais continua a existir, mas já as tecnologias dos processos de produção e de objetos produzidos de rádio, televisão e jornal atestam um deslocamento de uso das mesmas para espaços de produção especificamente relacionados às representações sociais (isto apesar de envolverem uma dimensão material e, por isso, industrial: papel, ondas magnéticas e elétricas), como resultante de um processo psicogenético que tem suas origens no fato de que não há representação sem suporte material (por exemplo, as relações entre cérebro-mente, som e palavra oral, imagem e escrita). A representação, entretanto, é uma dimensão diversa do suporte tecnológico - do produto ou do meio de produção deste produto. Vários autores construíram análises destes processos de produção que extrapolam os limites dos conceitos relativos à forma industrial de produzir (Morin, 1990 e Herscovici, 1995).
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A informática/telemática vai compor também o universo de processos de produção externos aos ramos e setores industriais - imprescindíveis ao funcionamento da economia mercantil em seu conjunto, mas que já não se encontram subordinadas às mesmas configurações do processo de produção industrial, base da análise marxista da subordinação real do trabalho ao capital (Offe, 1989). Estas atividades - vinculadas ao processo de circulação e distribuição de mercadorias materiais e simbólicas e às atividades estatais, científicas, e técnicas etc... - integram uma das bases em que se desenvolve a informática/telemática (as máquinas de calcular, a classificação de documentos, a máquina de escrever, o uso de tecnologias de comunicação interpessoal etc.) A informática e telemática tanto superam (integram, elevam e negam alguns aspectos de) as tecnologias de produção industrial como as vinculadas à produção de representações sociais, passando pela objetivação de técnicas de especialistas - médicos, geólogos, técnicos especializados - e atividades de serviços, e vão se inserir nestes ambientes enquanto meios técnicos de produção (Ferreira, 1996). Esta inserção, entretanto, não é neutra. Os processos de produção na sociedade mercantil - a subestrutura chamada por Marx de forças produtivas ou de formas de produção - são indissociáveis do capital como forma histórica (de estruturação) das relações sociais de produção. A criação de tecnologia e seu uso estão recortados pelas estratégias sociais. Acentuamos aqui aquelas específicas do capital: as suas formas de racionalidade (burocrática e econômica) típicas (a economia do tempo, a eficácia operacional/funcional, as regras técnicas de uso). No que se refere à educação, estas transformações/desenvolvimento dos ambientes coletivos de produção informatizada/telematizada podem ser pensadas em termos de relações práticas, todas consideradas em suas autonomias relativas, condicionamentos mútuos e identidades entre as formas de consumo cultural mediatizado e educação; entre a produção social e educação; entre projeto pedagógico e ambientes tecnológicos de produção do conhecimento. Sem nos concentrarmos numa ou noutra direção, procuramos nos próximos itens discutir basicamente as duas últimas relações. Tecnologia, produção social e educação A questão da continuidade e descontinuidade das relações entre produção social e educação frente às tecnologias de informática/telemática na produção social abrange uma vasta literatura. Queremos aqui nos restringir às abordagens críticas, começando pela marxista. A divisão social do trabalho manual e intelectual, as hierarquias (Brighton Labour Processo Group, 1991) entre os produtores - dialética da objetivação e reconhecimento -, a subordinação real regulada por regras técnicas e normativas a partir de critérios de eficácia no tempo/espaço da produção, e os processos de fragmentação/desqualificação, acentuadas por Marx como implicações da organização produtiva capitalista, são retomadas por estes e outros autores para analisar as transformações e as formas de produção
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social. Eles também discutem como estas formas se apresentam nos termos de determinações para o campo da educação (Da Silva, 1991). Neste recorte, produção social - dialética dos processos de produção e de valorização do capital - e educação são pares homólogos, em que a autonomia da educação é reduzida ou subordinada. Assim, por exemplo, as separações entre teoria e prática, a fragmentação dos conteúdos curriculares, a formação unilateral, a separação entre ética, estética e ciência, são dimensões sociais da escola que expressam os dilaceramentos da produção social. A tecnologia é, na perspectiva marxista, uma objetivação do trabalho social, cujo desenvolvimento e utilização está recortado pela racionalidade do capital, cujos agentes reificam sua obra - desenhada conforme seu projeto - como forma universal de racionalidade. Consideramos que a estratégia final do capital - enquanto relação social estruturada e estruturante - é a realização do projeto cibernético, colocado como ponto de substituição plena do trabalho vivo por trabalho morto na esfera da produção social (transformando o conjunto da produção social em capital: atividades e meios de produção) (Habermas, 1992; Ferreira, 1997). Uma das questões que se coloca aqui, em termos genéricos, é a da lacuna/ descompasso (ferida sempre reaberta na esfera das atividades do trabalho na produção social) entre os processos de objetivação do trabalho social preexistente (na forma de atividades dos indivíduos, incluindo aí as atividades cognitivas conscientes e inconscientes) em tecnologias e de subjetivação dos indivíduos (colocados, com o uso das mesmas, frente a novas demandas cognitivas - individuais e sociais) ante o ambiente social de produção. Esta nova configuração é objeto de várias hipóteses quanto à divisão social do trabalho manual e intelectual. Adam Schaff (1991) prevê o fim da divisão social do trabalho na esfera da produção em decorrência das tecnologias de informática. André Gorz (1983) considera que continuarão existindo ambientes de produção social caracterizados pela heteronomia (técnica e normativa, baseada na divisão social do trabalho), abrindo-se ao mesmo tempo espaços para autonomia, compreendidos numa lógica individual e comunitária. Frigotto (1991), partindo de Schaff, analisa este processo do ponto de vista das possibilidades positivas emergentes da produção social que, rebatidas na educação, abrem-se à politecnia, associação entre trabalho intelectual e manual, relações entre adultos e crianças na produção, e à convivência na teoria e prática na ação social.
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Estas análises nos levam não só a considerações sobre os processos de produção social, conhecimento e tecnologia, mas, antes de tudo, à compreensão de que as atividades dos indivíduos em suas interações com os objetos e outros indivíduos não ocorrem num ambiente social nulo e de apropriação de uma tecnologia neutra; muito mais do que isto, estas interações se desenvolvem em espaços estruturados ELISETE ALVARENGA , 1999. conforme relações entre várias estruturas estruturadas e estruturantes, dialeticamente condicionadas, o que significa inclusive autonomia relativa de uma em relação à outra. Tratando-se de processo de produção, estas estruturas abrangem ao mesmo tempo as implicações da racionalidade econômica (do capital enquanto estrutura estruturada e estruturante) e da racionalidade da subestrutura produtiva (relações entre cooperação/divisão do trabalho, hierarquias/consensos, qualificação/desqualificação e teoria/ prática). Nestas formas de produção, a tecnologia enquanto meio técnico de produção ocupa um lugar especial, na medida em que a objetivação das atividades anteriores dos indivíduos é uma construção social - estrutura estruturada - recortada e projetada por estratégias diversas, com conflitos que, na fase industrial da sociedade mercantil, foram hegemonizadas por aquelas desenvolvidas pelos agentes do capital, que integraram, na produção social, sua forma e os produtos da criação científica e tecnológica (definindo, na estrutura técnica de produção, lugares/posições de atividade sujeitoobjeto e possibilidades de interação social entre os produtores). Porém, se na produção social ocorre esta supremacia das estratégias de racionalidade econômica (e burocrática, se considerarmos as contribuições de Weber e da Escola de Frankfurt), Marx vai situar sua gênese não na produção em si, mas sim nas formas de trocas sociais que se desenvolveram na história. O conceito de reificação é, assim, central à crítica às formas de heteronomia nas relações sociais.
Conhecimento e reificação Rompendo com a visão hegeliana, Marx vai definir a linguagem, a comunicação, a consciência ética e cognitiva como formas da produção social. A experiência coletiva da produção social, neste sentido, é uma práxis (síntese de consciência e ação) determinante do conjunto da vida social. Na Ideologia Alemã (1975), esta formulação está indicada na hipótese de que a consciência é contemporânea da linguagem, porém ambas são derivadas da produção e das trocas dos objetos materiais, que fundam as possibilidades cognitivas e comunicacionais dos sujeitos. Marx entenderá que estas possibilidades estão recortadas pela alienação resultante da divisão social do trabalho - manual e intelectual (separação entre ciência e atividade produtiva) e das várias formas de trabalhos concretos diferenciados. A Ciência é inserida por Marx nas formas superestruturais de alienação,
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Neste sentido, nada mais superficial que considerar, na perspectiva de Marx, o desenvolvimento científico e tecnológico, no modo de produção capitalista, como o aspecto ativo e positivo do processo históricosocial (em contraposição à negatividade das relações sociais de produção capitalista). Este aspecto foi ressaltado por uma vertente do marxismo e acabou se transformando, também, no calcanhar de aquiles das críticas a Marx realizadas pela teoria crítica (Escola de Frankfurt).
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na medida em que seus agentes a compreendem como outra coisa além da consciência da prática existente, que representa efetivamente qualquer coisa sem representar qualquer coisa de real (1975, p. 41). Tal como o Estado, o Direito, a Moral e a Arte, a Ciência é tão somente uma forma especial da produção, estando sujeita a suas determinações (Marx, 1980). A alienação da vida real (a da produção social) se refere aos processos internos ao modo de produção (infraestrutura), no caso alienado em relação aos processos (de atividade dos produtores), aos produtos do trabalho (produzido para o mercado) e à subjetividade (por ser fundado no reino da necessidade e por se desenvolver sob formas não conscientes). Esta formulação já aparecera nos Manuscritos (1980), no qual se aborda a ciência e a tecnologia como integrantes da vida social, através da indústria, no duplo sentido: de uma positividade (emancipatória) e uma negatividade (desumanização)4 . Tais reflexões são posteriormente integradas em novos conceitos. Em O Capital, Marx (1982, Vol. I) relaciona as várias formas de alienação ao fetiche da mercadoria (ampliado ao fetiche do capital). Ao contrário da produção, que se desenvolve dentro de uma determinada comunidade, em que as trocas sociais ocorrem em vários planos simultaneamente, as interações sociais mercantis reduzem o contato social às trocas entre produtos e seus equivalentes (moeda). As variadas dimensões da produção e interações sociais, em toda sua complexidade, são reduzidas aos valores econômicos de objetos produtivos e produzidos. O valor do trabalho e das trocas sociais são, portanto, resumidos e transferidos aos objetos de troca. Isto é, antes da alienação interna (histórica) aos processos de produção, a alienação decorrente da reificação das interações sociais subjacentes à transformação dos valores de uso (dos objetos) em valores abstratos de troca entre os produtores privados, já acontecia no artesanato que produzia para o mercado. Marx afirmará que a reificação das formas de pensar é homóloga e desdobra a reificação que ocorre nestes processos mercantis. Neste sentido, é por causa da reificação que o conhecimento - por exemplo, da teoria do valor - não modifica a prática social daqueles que estão presos às circunstâncias mercantis. Pelo contrário, na ação social dominante, estes continuam vinculados às formas de pensamento socialmente válidas - objetivas para as condições do modo de produção -, relativas à busca das relações práticas entre os produtos do trabalho ou de efetivação dos valores mercantis. O conhecimento científico, entretanto, será incorporado ao modo de produção na medida em que corresponda às estratégias dos agentes sociais, num processo de conflitos hegemonizados pelo capital. Neste sentido, o capitalismo tem suas bases transformadas permanentemente. Outra consideração importante de Marx no
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Capital é que a reflexão (conhecimento social) é posterior à ação, isto é, o conhecimento sobre as formas de vida humana, e também sua análise científica, segue sobretudo um caminho oposto ao desenvolvimento real. Começa post festum e, por isso, com os resultados definitivos do processo de desenvolvimento (Marx, 1982, vol.1, p. 73). Assim, por exemplo, a teoria do valor (Smith e Ricardo) é posterior à experiência social da vida mercantil, mas - considerando a hipótese acima - nem por isso, na vida concreta, deixa de ocorrer a reprodução nos parâmetros da reificação5 . Mas, na ação social Marx observa também a antecipação. O acento na antecipação da ação por parte dos agentes sociais aparece, por exemplo, quando afirma (na Ideologia Alemã) o trânsito do instinto à consciência (mesmo sob a forma de consciência de que é gregário) como momento que demarca o início da vida especificamente social; estabelece (no Capital, Cap. V, p. 149) uma divisória entre as formas de trabalho do conjunto das espécies animais e o indivíduo humano (a representação do que fazer). É no ato de representar, de prefigurar, que se estabelece a distinção entre o trabalho do indivíduo humano e dos animais em geral, na busca da satisfação de suas necessidades6 . A partir destas direções, sugerimos pontos de interpretação das mudanças tecnológicas e relativas ao conhecimento contemporâneo. Primeiro, a gênese moderna da informática (considerando os fatos pós século XV) confirma que a ciência (o saber-pensar) e a criação tecnológica (que implica a antecipação de uma ação) se autonomizam da produção (que no artesanato se apresenta como saber-fazer), desprendendo-se dos vínculos imediatos com esta, para se transformar também em atividade de agentes sociais especializados (no caso da gênese da informática, são signos destas transformações o filósofo Bacon, o matemático Boole, e o tecnólogo Babagge). No caso, a invenção tecnológica passa a depender da capacidade das operações abstratas do pensamento lógico e matemático e da transformações destas operações em atividades maquínicas concretas, por um processo de construção e aproximações antecipatórias e simulatórias. Como já observamos, o uso de tais tecnologias na produção social em geral será recortado pelas estratégias dos agentes sociais, hegemonizadas pela lógica da reificação. Assim, consideramos válida a dialética da humanização e desumanização, subjetivação e objetivação, alienação e emancipação, expropriação e apropriação como pares subjacentes ao desenvolvimento científico-tecnológico da informática na contemporaneidade (Ferreira, 1995). Segundo, a inércia reprodutiva, acionada pela reificação das estruturas preexistentes por parte dos agentes especializados de criação tecnológica e pela produção social em geral no sentido de manter o valor das tecnologias, se desdobra em ambientes de produção informatizados reprodutores das estruturas reduzidas quanto às possibilidades da ação, reflexão e superação da heteronomia. No caso específico da produção de ambientes educacionais, esta reprodução aparece nos projetos de instrução programada, baseados em concepções condutivistas-comportamentalistas (o que implica em redução da complexidade), convergente com programas de racionalização burocrático-econômica da educação e construção do conhecimento (no
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5 Por decorrência desta consciência prática, há o inverso: a reificação afeta a teoria. Na economia política, Jevons, Walras e Pareto abandonam a teoria do valor trabalho, e adotam a perspectiva da reificação na teoria do valor utilidade (subjetiva, para o consumidor, e mercantil) dos objetos. Na sociologia, a crítica de Bourdieu aos estruturalistas os situa como reificadores das estruturas (sem agentes) históricas e sociais.
6 Este é o ponto de articulação do esforço de Lukács (1984), que buscou estas relações entre conhecimento e trabalho, tomando por base os escritos filosóficos hegelianos de Jena. Para Lukács, o conhecimento tem sua gênese na esfera do trabalho. Trata-se da forma pela qual o intercâmbio indivíduonatureza pode ser realizado conforme as finalidades socialmente estabelecidas. A questão das finalidades também está ancorada na esfera do trabalho. Este é o caminho de sua crítica a Kant, que transforma a construção das finalidades numa questão abstrata. Ao mesmo tempo, procura assim explicar a gênese - no trabalho - do surgimento das várias formas de concepções de mundo nas quais se discute o destino da espécie (o mito, a ciência e a filosofia). O conhecimento tem sua gênese, para Lukács, na investigação sobre a natureza indispensável à elaboração dos meios de trabalho. A causalidade específica da natureza surge assim como ponto de
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apoio para uma nova objetividade (a objetividade das estruturas sociais), diversa da primeira, que contém incorporada as finalidades da espécie. Lukács, entretanto, faz apenas poucas referências empíricas de como estas relações entre conhecimento e trabalho se desenvolvem na história: a geometria como abstração da experiência do trabalho na Antigüidade; a roda estimulando a visão de uma terra redonda, girando em torno de um eixo; ou, mais primitivamente, a descoberta das características dos materiais em sua manipulação visando finalidade (madeiraem-si e casa; pedra-emsi e machado); e, finalmente, a sugestiva idéia de que a finalidade de voar permaneceu irrealizável até o momento em que a investigação sobre os meios e causalidade atingiu um determinado ponto. Os limites desta reflexão estão na concentração das interações sujeitonatureza (este limite se apresenta na interpretação de Marcuse sobre a gênese da ciência e da técnica), deixando de lado as interações sujeitosujeito como base da construção do conhecimento social; em apontar a questão da causalidade sem se aproximar da discussão da implicação (mesmo que em outros escritos (Lukács, 1979) discorra sobre a negação como uma categoria reflexa e ao mesmo tempo do sujeito), quando o conceito de práxis coloca também a questão inversa: como a consciência implica em ação.
roteiro aberto por propostas como a de Jacques Atalli (Gorz, 1983) ou das próprias megaempresas de software), quando não se constituem simplesmente em bricolagens entre várias ferramentas compostas em decorrência de um fascínio pela tecnologia em si (valendo aqui a reificação das próprias tecnologias, que se reproduzem em sua própria medida e valor). Terceiro, considerando as relações entre modo de produção, tecnologia e conhecimento indicadas acima, podemos colocar as seguintes questões: ·Tendo em vista a hipótese de que o conhecimento social não se objetiva na sociedade a não ser que as interações práticas contextualizadas pelo modo de produção estejam abertas às possibilidades por ele desenvolvidas, a informática/telemática abre novos vetores nas interações sociais que nos permita pensar a superação da reificação nas trocas entre os agentes sociais situados na produção social? ·Como compreender as continuidades e descontinuidades da heteronomia subjacente à reificação (em suas facetas materiais e subjetivas abordadas anteriormente) em ambientes informatizados de produção social? ·Como analisar e avaliar as diversas experiências sociais de interação em ambientes informatizados - criando produtos, conhecimentos e comunidades - sob os critérios da emergência de novas possibilidades sociais superadoras da reprodução e reificação das estruturas sociais? Vários autores ofereceram e oferecem respostas a estas questões, mesmo que partindo de outros corpos teóricos e problemas. Assim, teóricos como Schaff, Gorz e Lévy indicam que a informática/telemática abre um caminho alternativo - de autonomia - frente às estratégias desenvolvidas nos projetos restritos à lógica da reprodução social (e, portanto, de heteronomia). Nos limites deste texto, procuraremos, entretanto, desenvolver uma argumentação sobre as possibilidades da heteronomia e da autonomia da produção social nos marcos da teoria piagetiana, sob olhar das variantes e invariantes sugeridas pelo marxismo para análise dos processos coletivos de produção e suas possibilidades cognitivas. Consideramos, para elucidar a linha de argumentação, que há um fio condutor das questões anteriores. Como compreender as atividades coletivas, em sua causalidade e as implicações sociais vinculadas aos processos produtivos, para além das configurações típicas da reificação e heteronomia delas decorrentes?
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Cooperação: estruturações do sujeito A epistemologia genética de Piaget oferece trilhas para responder a esta questão. Aqui nos interessa, em especial, a gênese do conhecimento em torno das interações sociais. Na vida social, a idéia de operação é substituída pela cooperação isto é, operações efetuadas em comum entre vários indivíduos (Estudos Sociológicos, 1973). Ou seja, nem toda interação é cooperativa. Como dentro do próprio conceito de interação7 há uma indissociabilidade entre interações sujeito-objeto e sujeito-sujeito, operação e cooperação são abordadas também como faces da mesma moeda. O conceito de cooperação, para Piaget (1973), considera a própria ação desenvolvida em conjunto por vários indivíduos (fazer uma ponte, construir uma casa etc...) como espaço de interações infraestruturais (que chama também de subestrutura), e causais na vida coletiva (Estudos Sociológicos, 88), que correspondem às condutas na vida psicológica. Porém, a cooperação não é apenas concreta, também é formal, isto é não ocorre apenas no plano da ação mas também no da consciência. Na vida psicológica e social, a indiferenciação não se esgota com a ação (mesmo que obtenha sucesso), na medida em que somente o processo de conceituação (específica das interações) propiciará a superação dos esquemas prévios a partir dos quais os indivíduos organizam sua ação nesses ambientes. Conceituar significa transpor os limites do procedimento. Ou seja, se a interação é a base do conhecimento, a tomada de consciência da mesma requer um esforço a mais por parte dos sujeitos no sentido da conceituação do fazer (Piaget, 1973), o que ocorrerá em interações de novo tipo (proposicionais e intelectuais). Mas qual o objeto empírico e de formalização conceitual nas interações da vida social? São as regras sociais - responde Piaget, seguindo o caminho aberto por Durkheim, porém dele discordando sobre as regras como fato social possível apenas nas relações de heteronomia (coações) sobre os indivíduos orgânicos de uma determinada sociedade. O estudo das regras do jogo tem aqui o seu valor literal e figurado. Regras do jogo de bolinhas, do jogo de xadrez (Piaget, 1994) e da vida social, tanto no que se refere a sua prática, como à tomada de consciência das mesmas - no contexto de regras de interações pedagógicas, estrito e lato senso, de heteronomia e coação, de autonomia, de dialogia ou monólogo - estão recortadas em algumas possibilidades estruturais relativas a seus aspectos formais, suas dimensões concretas e características pedagógicas de sua construção. Do ponto de vista de sua estruturação, a ação coletiva (que diferenciamos aqui de cooperação) concreta ou representativa se desdobra, propõe Piaget, em ritmos, regulações e agrupamentos - os mesmos observados no desenvolvimento psicológico individual. Os ritmos (estações do ano, sazonalidades, gerações etc) demarcam a fronteira entre o natural e ELISETE ALVARENGA , 1999. o social. As regulações sociais já se constituem em
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O conceito de interação em Piaget é uma superação do senso comum sobre o termo: interação é uma síntese, num patamar superior, que agrega a teorias das estruturas inatas no sujeito e as teorias que vêem o conhecimento como resultante (reflexo) do meio ambiente.
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formas de coordenação de vários ritmos, porém sem atingir ainda o nível da lógica co-operatória concreta (e, logo, formal), como, por exemplo, trocas entre indivíduos em que não há conservação do ponto de vista do outro, nem de reciprocidade, típicos dos agrupamentos. Finalmente, os agrupamentos são co-operatórios concretos e formais. Em termos concretos, estas regras vão se referir, na vida social, às normas e aos valores, símbolos e sinais (códigos) verbais e não verbais que possibilitam as trocas entre os sujeitos. As normas estabelecem as regras das interações, atingindo os vários planos destas (as regras gramaticais, os conceitos, as operações, as regras técnicas e morais etc). Se as operações individuais se constituem sempre em imperativos hipotéticos que demarcam a coerência da ação psicológica, as regras definem os imperativos categóricos da ação coletiva. Os valores se constituem em sistemas de classificação da realidade que se apresentam nas interações dos indivíduos tanto em relação aos objetos como nas interações sujeito-sujeito. Coações da herança estrutural e autonomia Seguindo a lógica do pensamento de Piaget, poderíamos ser levados a afirmar que também na vida social a cooperação concreta nem sempre encontra expressão normativa, valorativa e comunicativa dos agrupamentos, isto é, a tomada de consciência social seria trabalho que redobra o próprio esforço social despendido nas ações concretas de cooperação. Se esta extrapolação tem validade, afirmaríamos que o conhecimento social (em torno de normas, valores e signos) é sempre posterior à ação. Daí a idéia de que a adaptação social às novas formas de produção social serão posteriores às ações envolvidas na construção dessas formas, o que significa uma diferenciação das possibilidades cognitivas conforme a diversidade própria das configurações subestruturais dos ambientes de produção social (ou seja, ambientes em que ocorrem a ação). Entretanto, esta correlação encontra na vida social novos processos. A reconstrução no pensamento - ou seja, como conceituação - das interações só ocorre do ponto de vista da gênese e desenvolvimento histórico das representações sociais que transitam dos símbolos mitológicos às formas de racionalidade contemporânea. Isto é, no plano da história, a consciência é posterior à ação. Porém, as formas construídas de representação e ação apresentam-se como acabadas para cada novo integrante desta sociedade. A vida social herda as estruturas e subestruturas construídas (relativa aos signos, valores e normas) das gerações passadas, as quais carregam consigo as várias possibilidades: representações simbólicas pré-racionais, associações mais ou menos lógicas e irracionais e verdadeiras proposições lógiconormativas e morais, todas elas com caráter implicativo. Piaget se refere ao fato de que a reconstrução das representações por parte dos indivíduos depara-se sempre com estruturas e subestruturas representacionais preexistentes numa determinada sociedade. Ponderamos que os indivíduos se deparam também com determinadas formas específicas - históricas e sociais - de ação (por exemplo, como construir uma casa, como fazer uma ponte, como pescar etc.). A atividade adaptativa nas sociedades
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não ocorre, portanto, numa redoma, na qual o indivíduo desenvolva suas interações com os objetos e alguns sujeitos, mas num contexto social que impõe determinadas ações e representações estruturadas e estruturantes como desafio quanto às possibilidades de interações (individuais e sociais). Isto é passível de observação mesmo nas pesquisas clínicas de Piaget, o mais próximo de um isolamento do indivíduo psicológico: os desafios, a linguagem e a norma subjacente à realização das experiências são indissociáveis de uma determinada herança sociocultural - a língua, os tipos de ações contempláveis, as relações lógicas em jogo (relativas à Física e à Matemática, por exemplo) etc - que sobredeterminam as interações. A genialidade de Piaget está em escandir (descentrar) deste ambiente de heranças aquilo que é específico e constituidor concreto da atividade do sujeito. A dificuldade está em extrapolar estas conclusões para ambientes com outros tipos de herança. Por exemplo, como ocorre o desenvolvimento de crianças de uma tribo indígena que desconheça as operações lógicomatemáticas formais? Qual será o teto representacional no interior de sua cultura? E o que pode acontecer se de algum modo chegarem a ser desafiados, mediante novas possibilidades de conceituação, à formalização de suas estruturas cognitivas? Resta sempre a hipótese plausível de que o desenvolvimento vai até determinados níveis representativos - a partir dos quais ocorre uma inflexão que tangencia e é polarizada centripetamente pelas ações e representações socialmente herdadas. Não fosse assim, todas as sociedades teriam chegado ao pensamento lógico-formal e matemático, antes da emergência destas formas de representação na Antigüidade. O vetor de universalidade não implica, portanto, num desenvolvimento sempre existente e atualizado, até as operações formais ou interações regradas por normas, independente das condições socioculturais no tempo e no espaço. O que, por outro lado, não quer dizer, absolutamente, que, enquanto representante da espécie humana, o indivíduo orgânico de qualquer cultura tenha interditado seu acesso em direção a formas mais complexas de conhecimento. A acomodação dos indivíduos à cultura - que, conforme nossa interpretação, existe como estrutura material e simbólica refere-se tanto às estruturas representacionais como às estruturas da própria ação presentes na herança histórica. Estas estruturas da vida social serão também assimiladas e reconstruídas pelos indivíduos em cada momento do presente conforme seus próprios esquemas e sistemas de significação, tanto no plano da ação quanto no da representação, o que implica em determinadas direções individuais e sociais de coordenações das ações, variáveis não só conforme os possíveis da ação, mas também dos possíveis das representações, e da relação dialética entre ambos. Finalmente, as coações das estruturas sociais preexistentes não implicam que o processo pedagógico, estrito e lato senso, inerente às normas configuradas, tenha que ser imposto coativamente às gerações e, por aí, redutor das possibilidades cognitivas decorrentes de injunções específicas das interações nascidas das regras, normas e valores de fundação de um ambiente de produção social mediado por tecnologias.
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Porém, há aqui uma correspondência com o que discutimos anteriormente. O desequilíbrio dos processos sociais está implicado tanto nas normas representacionais como nas normas da arquitetura de produção, ocultas ou explícitas, naquilo que não propicia o desenvolvimento adaptativo - pelas coações, desqualificações, subordinações, inacessibilidade à prática, aos jogos lúdicos, às descobertas autônomas das formas de fazer e se relacionar. Retornando às reflexões de Marx, podemos afirmar que a reificação destas estruturas é, mais do que a herança, a fonte da heteronomia. A heteronomia - como observa Piaget (1973) - não se refere apenas às coações. As trocas realizadas em interações não coativas porém baseadas no laissez-faire, ocorrentes em avaliações intuitivas oscilando em torno de um equilíbrio sem atingi-lo, e só conhecendo uma conservação aproximativa (p.60) - já que os pressupostos de valorizaçãodesvalorização das trocas são matizados por esquecimentos, lembranças casuais, traduções de estimativas por associações e probabilísticas, de imprevisibilidade e de ausência de antecipações, reversibilidade, conservação e reciprocidade - favorecem também a relação heterônoma dos sujeitos com as atividades coletivas. Podemos assim precisar dois planos diferenciados de coação e autonomia. As estruturas sociais preexistentes definem uma coação inevitável da herança histórica: os indivíduos devem conviver com as ações e representações - normas, valores e sinais - que encontram na sociedade em que estão inseridos. Outro plano é o das interações dos sujeitos com estas estruturas, que serão mediadas por formas coativas e de laissez-faire (heteronomias decorrentes de reificações) ou dialógicas (autônomas, ou respeito mútuo entre os interlocutores, de desconstrução/reconstrução das estruturas), por bloqueios às potencialidades adaptativas da espécie ou por configurações que permitam sua reconstrução histórica.
Considerações finais Portanto, muito antes de qualquer proposição idealizadora, destacamos: a tecnologia nem sempre propicia uma ação cooperativa, e portanto nem sempre vai se constituir, junto com outros dispositivos, em ambiente propício ao conhecimento social e individual. Num processo de produção industrial, por exemplo, parcela da cooperação concreta está objetivada em movimento articulado do sistema maquínico, que inclusive determina - em sua vertente fordista - a distribuição do tempo/espaço/movimento, estabelecendo coações técnicas na ação. O taylorismo, por sua vez, redobrou esta heteronomia ao estabelecer o cálculo dos movimentos do corpo. O mesmo ocorre hoje com os sistemas especialistas, baseados em paradigmas
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da Inteligência Artificial. A ação dos sujeitos é antes de tudo fragmentada enquanto ação cooperativa. A reconstrução histórica destas estruturas herdadas se faz também nas regras e nos valores implícitos e explícitos às configurações tecnológicas - sejam elas de informática ou telemática -, que são desenhadas na correlação de forças entre os agentes sociais. Sugerimos (utilizando as formulações de Piaget) a seguinte hipótese: somente as interações em processos de produção social baseadas em normas, valores e formas discursivas que favoreçam a autonomia dos parceiros propiciam e asseguram a própria desconstrução/reconstrução das estruturas sociais preexistentes. Estas devem ser investigadas não só na esfera das representações, mas também nos aspectos implicativos situados nas estruturas do ambiente da ação, o que significa pensar e projetar uma arquitetura informacional compatível com uma proposta cooperativa. No caminho oposto estão as normas, os valores e sinais,, que por sua forma ou conteúdo, estabelecem implicações sobre as interações do tipo coativo e heterônomo, características dos espaços sociais de reprodução. O equilíbrio de determinado ambiente de produção social mesmo informatizado e telematizado tem que ser analisado, portanto, sob o triplo aspecto: das configurações da estrutura do ambiente naquilo em que estão abertas a possíveis cognitivos individuais e sociais (em termos de ação e representações - qualificação/desqualificação, teoria/prática, cooperação/ divisão do trabalho, adultos/crianças, autonomia/hierarquias que podem ser reagrupadas como valores, normas e discursos do próprio ambiente); das normas e dos valores e discursos de fundação e gestão do ambiente; das normas e dos valores e discursos emergentes nas atividades dos indivíduos no contexto do ambiente, reificando ou desconstruindo/reconstruindo as estruturas herdadas. Este processo de desconstrução/reconstrução das estruturas herdadas faz parte de um esforço individual/coletivo constante de construção da autonomia, nunca dada, sempre conquistada e novamente reconquistada, sob pena de permanência no estado de alienação com relação ao conhecimento e à sua produção. Trata-se de um estado dinâmico de estruturação constante da autonomia contra o processo desintegrador, fragmentador, reprodutor, em busca de uma estabilidade nunca encontrada, sempre ameaçada. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, J. Para uma crítica na economia política do signo. São Paulo: M. Fontes, 1972. BAUDRILLARD, J. Tela total: mitos e ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1996. BOURDIEU, P. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. DA SILVA, T.T. (org) Trabalho, Educação e Prática Social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. FERREIRA, J. A codificação do simbólico pela inteligência artificial. Estudo sobre a objetivação do saber e saber-fazer em meios técnicos de produção. Porto Alegre, 1997. 345p. Dissertação (Mestrado) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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FERREIRA, J., AXT, M. Conocimiento, tecnología y sociedad: en busca de referencias interpretativas de la acción, Interface _ Comunicação, Saúde, Educação, v.3 , n.5, 1999. Este texto desarrolla puntos de relación entre sociedad, conocimiento y tecnología con el recorte de las teorías marxistas sobre producción social y educación y la perspectiva sociogenética de Jean Piaget. La cara oculta de esas teorías se refiere a las polémicas sobre las posibilidades cognitivas abiertas por las tecnologías de informática y telemática. Relativizando ambos planteamientos, buscamos en los varios pasos de construcción las referencias teóricas para la interpretación y valuación de sus relaciones con los ojos vueltos hacia la acción pedagógica en ambientes informatizados, en los términos de oposición entre autonomía y heteronimia. PALABRAS-CLAVE: tecnología; sociedad; educación.
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ELISETE ALVARENGA trabalha cor, linha, forma, textura a partir do conceito de erosão. ... tem na terra/areia/argila o material para sua criação. (Parte da exposição "Erosão", Teatro Municipal de Botucatu, 1999).
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debates
Tradição, trote e violência
Tradição: Transmitir ou entregar. Transmissão. Laço do passado com o presente. Costume.
Trote: Zombaria, gracejo ou indiscrição que se comete com alguém. Brincadeira que estudantes veteranos fazem com os calouros.
Maria do Patrocínio Tenório Nunes Warth
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Luiz Felipe Lisboa
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Violência: Constrangimento físico ou moral exercido sobre a vontade de alguém para obrigá-lo a consentir ou a submeterse à vontade de outrem. Força material ou moral empregada contra a vontade ou liberdade da pessoa. Emprego da força para superar a resistência de uma coisa ou pessoa.
Eram os pobres novatos que os veteranos soavam à cacholeta, fraternalmente. Raul Pompéia, O Ateneu.
Vinte e dois de fevereiro de 1999. Início do curso de graduação para 180 novos alunos da Faculdade de Medicina da USP. Primeiro dia oficial de aulas. Como tradicionalmente ocorre há 87 anos, o curso se inicia com a aula inaugural proferida pelo Diretor da Faculdade de Medicina. Assunto escolhido: a necessidade de praticar a medicina de maneira humanitária, mostrar as origens daquela casa aos novos membros, Tradicional: que se lembrar a importância do conhecimento científico, técnico e artístico da incorporou aos profissão que escolheram. hábitos. Inovação: a Presidente do Centro Acadêmico Osvaldo Cruz, o Presidente da Associação Atlética Acadêmica Osvaldo Cruz, o Diretor do Departamento Científico e o Diretor do Show Medicina recepcionam os novos colegas.
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Professora do Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, USP.
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Acadêmico do 3º ano de graduação, Faculdade de Medicina, USP.
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Durante estas apresentações, percebe-se um certo clima intimidatório por parte de alguns veteranos. Pede-se a eles que respeitem os colegas calouros e veteranos. Avisa-se que os que não quiserem participar do trote podem se retirar pela porta dos fundos do Teatro da FMUSP. Aproximadamente quarenta pessoas optam por sair por aquela porta e não participar daquele tipo de comemoração. Finda a apresentação, começa a tradicional sessão de corte de cabelos. Joga-se farinha, ovos e tintas nos novatos. O clima é de festa, confraternização e intimidação. Em fila, seguem para a Atlética, antes passando pela estação de metrô, caminham aproximadamente quinhentos metros até o clube, onde os calouros são lavados. Sentados nas arquibancadas da piscina, cantam estimulados pelos veteranos.......bebem.....e, finalmente, pulam na água. Chuva torrencial. Churrasco, bebidas, música... Arrastam-se pessoas pelo chão, brincadeira-da-colher etc. Tarde. Noite. Escuridão. Silêncio. Manhã de terça-feira, 23 de fevereiro de 1999. Sol, céu azul, calor. Um corpo no fundo da piscina. O corpo de um calouro da Faculdade de Medicina. Professores de diferentes disciplinas em volta da piscina. Os veteranos, os calouros... Choro. Silêncio. Tristeza. Consternação. Impotência. Medo. Aflição. Incredulidade. As horas e os dias que se seguiram foram de luto; busca pelo que teria ocorrido; enfrentamento de informações desencontradas, muitas vezes maliciosas e, por vezes, mentirosas sobre os fatos, gerando desconfiança, medo, raiva, impotência, intimidação. Teria havido violência? Fora o aluno morto por algum ou alguns colegas emocionalmente mais descontrolados? Teria ocorrido uma sessão de tortura? O que será que levou ao fundo da piscina o jovem rapaz de 22 anos, recém-ingresso na Casa da Arnaldo? Até o momento, não foram concluídas as investigações oficiais sobre o fato. Entretanto, das variadas versões, parece fazer sentido aquela que relaciona esta terrível perda a um lamentável acidente, que pode ter acontecido no momento do tradicional banho coletivo dos alunos na piscina, parte integrante do trote há muitos anos. O laudo de necropsia não evidenciou sinais de violência externa. A partir deste ocorrido, iniciou-se, de maneira espontânea e ainda não organizada, uma série de discussões sobre o trote na Faculdade de Medicina da USP. Teria o trote sido violento? Houve excessos? As opiniões, embora muitas, podem ser resumidas em dois pólos. De um lado, aqueles que julgam ser este um dos trotes mais civilizados, dentro da USP e entre as escolas médicas. De outro, aqueles que consideram todo e
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ENSOR, 1889 (detalhe)
DEBATES
TRADIÇÃO, TROTE, VIOLÊNCIA
qualquer tipo de trote uma violência, com a ocorrência de excessos por parte de quem o pratica. Portanto, houve e sempre haverá, para os defensores desta idéia, violência na aplicação do trote, qualquer que seja sua forma. Trote, na acepção que está sendo empregado, é um vocábulo usado apenas no Brasil. Em outros países recebe designações variadas. Em todos os lugares, o trote pode ser incluído entre os rituais de iniciação e de passagem, de grande importância para marcar a data e a nova situação do calouro. Relatos datados do século XII contam a ocorrência de trotes com passagens de violência física e cobrança de bens materiais por parte dos ENSOR, 1889 veteranos. Há uns poucos relatos de coibições oficiais, com o objetivo de (detalhe) proibir os excessos e conter a violência. Percebe-se, nesses relatos, o reconhecimento de uma purgação imposta aos calouros pelos veteranos de então, com três fases bem distintas: um ritual de recepção, um período de servidão e uma emancipação. Aparentemente, este tipo de hábito se difundiu, sem grandes modificações até os dias atuais, com variantes conforme o país em que acontece. A violência no trote pode ter culminado com a morte de um calouro já nos idos de 1831. A este fato somam-se outros tantos que comprovam a freqüência de violência física e moral nos trotes praticados, particularmente nas escolas de Medicina, Direito e Engenharia. A busca das origens em relatos sobre trotes mostra um outro aspecto da questão, a responsabilidade e o envolvimento das instituições de ensino com o trote. Ora, o trote sempre foi o espaço e a atividade restrita aos alunos, sem qualquer participação do corpo docente. De fato, talvez o trote seja uma fórmula encontrada pelos alunos, nos primórdios das universidades, para fazer frente à relação professor/ aluno a única oficialmente possível. Ao longo da história, apenas as tragédias suscitam algum tipo de reação nas autoridades, sob forma de proibições sumárias e punições. A tragédia da FMUSP trouxe à tona fatos ainda não discutidos e situações complexas que precisam ser bem avaliadas. Ao longo destes quase quatro meses, soube-se que houve, na recepção aos calouros de 1999, excessos praticados por alguns veteranos. Excessos de natureza física e psíquica. Entretanto, tais fatos surpreendem por não serem ocorrências novas. Há mais ou menos vinte ou trinta anos vinham sendo praticados. Surpreende, ainda, parte dos calouros tê-los considerado brincadeiras normais . A sociedade mudou. A velocidade da geração de conhecimentos, a facilidade de acesso a esses conhecimentos, o desenvolvimento tecnológico são fantásticos nos dias atuais. Apesar disto, a forma de receber os novos alunos nas faculdades, ao menos no Brasil, continua muito parecida com aquela dos tempos medievais, parece parada no tempo. Por que indivíduos com acesso à cultura, sem grandes problemas sociais e econômicos se envolvem em situações de violência e risco como já tantas vezes relatadas? Pesquisa recente, realizada pela UNESCO em parceria com a FIOCRUZ na
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DEBATES
cidade do Rio de Janeiro, procurou captar e analisar como o jovem vivencia e percebe a violência e a cidadania. Ouviu 1220 jovens de 15 a 19 anos, entre setembro e dezembro de 1998. Todas as formas de violência mencionadas pelos entrevistados - discussão, agressão física, venda e uso de drogas, ameaça e agressão sexual - são mais bem percebidas pelos jovens de maior poder aquisitivo. Esta percepção induz às Cidadania: Qualidade de seguintes conclusões: a violência parece generalizada e cidadão. Qualidade de uma difundida em todas as camadas sociais; existe uma diferença pessoa que possui, em uma de percepção e tolerância em relação à violência determinada comunidade dependendo do meio econômico, social e cultural. política, o conjunto de Aparentemente, a violência parece mais natural para o direitos civis e políticos. jovem mais pobre do que para indivíduos de classe média e alta. Segundo o coordenador da pesquisa, Júlio Jacobo Waiselfisz, a violência aparece como negação do direito do outro e emerge quando as noções de cidadania não estão consolidadas, agravando-se em condições sociais e econômicas precárias. Ora, é amplamente conhecido o perfil médio do estudante de Medicina da USP. Ele faz parte das classes média e alta. Suas condições sociais e culturais não são precárias. Falta-lhe, talvez, noção de cidadania. Sabemos que a noção de cidadania em nosso país precisa ser resgatada, ou talvez desenvolvida, já que o padrão de trote é o mesmo há cerca de vinte, trinta anos na FMUSP. Isto minimiza a explicação simplista da falta de limites e a banalização da morte pelos jovens, atualmente. Se os alunos que adentram as faculdades de Medicina possuem, em sua maioria, um perfil que lhes permite reconhecer e não tolerar a violência, como explicar o comportamento que apresentam nos rituais de recepção aos novos colegas? Embora sem uma base científica, algumas possibilidades podem ser aventadas, 1 o ingresso nas escolas médicas é precedido por um período de grandes esforços e sacrifícios, mais ou menos duradouros. A competição, nessa época, é máxima e privilegia o desempenho individual; 2 o curso médico é física e mentalmente desgastante. Quase não há horários para os jovens se dedicarem a sua juventude; 3 o modelo de relação ainda vigente nas escolas médicas é de domínio do docente e submissão do aluno. Isto ocorre desde a situação mais "branda" de apenas injetar conhecimento sem que haja troca entre o docente e o discente, até atos como jogar o bisturi no aluno, funcionário, colega; 4 uma das características mais comuns aos médicos é o autoritarismo.
Os veteranos, principalmente os do sexto-ano, chegam em grupo para a
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TRADIÇÃO, TROTE, VIOLÊNCIA
recepção aos novos colegas, com uma enorme frustração contida e os calouros, reprimidos e isolados pelo preparo para o vestibular. Os primeiros querem repetir tudo (desde os tempos medievais) aquilo que fizeram com eles. Inclusive o modelo de dominação pelo poder que vêm observando durante o curso médico. Os segundos não estão amadurecidos para entender seus direitos e deveres. Ficam alienados por um bom período. Estão deslumbrados. Estão sós. Não têm um grupo em que se apoiar. Segundo o aluno Luiz Felipe Lisboa, do terceiro ano de graduação em Medicina pela FMUSP, nós, estudantes de Medicina, estamos há muito com nosso limiar de violência aumentado; não consideramos violência atos estritamente desrespeitosos, invasivos, humilhantes. O que teria levado à atual situação? Talvez toda a violência externa à medicina (o mundo miserável no qual vivemos) acrescida de vidas limitadas à profissão (e a sua perspectiva). Considerando que talvez nós tenhamos um perfil psicológico extremamente diferenciado (mesmo que não seja praxe admitir ou considerar essa possibilidade), a hierarquia entre os acadêmicos dos diversos anos leva a situações de submissão à vontade ou à ordem alheia. Paralelamente, a impunidade reina (ou simplesmente os atos violentos não são trazidos à tona), pelo medo de ser segregado, isolado, tanto na vida universitária quanto no mercado de trabalho (não ser indicado por colegas etc...) .
É importante salientar que isto não implica dizer, então, que é bastante provável que alguém tenha cometido a barbaridade de assassinar friamente um colega, como vários jornalistas e outros profissionais aventaram por ocasião da tragédia da FMUSP. É leviano e violento julgar sem o conhecimento adequado da situação. A ocorrência da morte do calouro e o trote violento precisam ser adequadamente apurados. É agressivo e de repercussão desproporcional buscar um bode expiatório para a situação. Nestes quatro meses, a sociedade e a imprensa buscaram uma solução mágica e também medieval: encaminhar para a forca aquele que parecesse o mais violento dos veteranos. Se ele foi ou não o responsável pela morte do calouro, não é a questão a ser discutida. A sociedade precisa de um nome que a acalme, assim como de uma pílula para dormir ou para emagrecer. Não há interesse em discutir as causas, razões, situações. Prefere-se qualquer solução, ainda que temporária e paliativa. Recentemente o presidente norte-americano Bill Clinton solicitou um estudo sério, que busque e identifique os motivos que levam a juventude de seu país a praticar atos violentos como os que têm sido divulgados ao mundo. É necessário e urgente entender o que se passa para poder atuar adequadamente.
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E os professores e as instituições? Em relação ao trote, uma parte considera que nada tem a ver com isso. Outra que o trote já deveria ter sido sumariamente proibido. Há ainda aqueles que entendem ser o trote uma atividade dos alunos e que toda e qualquer interferência externa será uma forma de intervenção nas atividades recreativas do grupo. Há pensamentos e atitudes diferenciadas entre os docentes, mas a somatória resulta na convivência paralela de duas categorias de indivíduos dentro de um mesmo espaço: alunos e professores. Não se permite troca, o que seria altamente enriquecedor para as duas partes. Cada grupo ou segmento social pode, sob determinadas circunstâncias, colocar em prática formas específicas de violência como garantia de sua identidade. Sujeitos envolvidos em uma situação de violência estariam se valendo desse instrumento para a construção ou garantia de manutenção de sua subjetividade marcando, assim, sua fronteira com o exterior. Seria o distanciamento da escola, na figura de seus docentes, em relação aos alunos e vice-versa? Embora com fatos pregressos a fazer estatística, não se considerou adequadamente o risco de se deixar para um grupo de pessoas o governo de uma situação cheia de possibilidade de acidentes. Para esclarecer melhor, é preciso lembrar que em qualquer lugar onde se junte bebida, extroversão, piscina, mar etc. é necessário se precaver de eventuais acidentes. E mesmo respeitosos doutores se excedem em situações como esta. Que dizer, então, de jovens que avaliam a vida como infinita e o risco de morte próximo a zero? A forma mais simplista de resolver a situação parece ser a de assinar um documento proibindo o trote nas instituições de ensino. O decreto do fim do trote não garante absolutamente nada. Talvez possamos enquadrar mais facilmente alguns exageros. Porém, nunca é demais lembrar que significará apenas a punição de alguém e não a prevenção de ocorrências desagradáveis. A proibição sumária já foi estabelecida muitas vezes e, freqüentemente, resultou em maior violência. De mais a mais, os alunos que agora se preparam para o vestibular têm certo grau de expectativa em relação à recepção que sofrerão por época do início das aulas nas faculdades em que entrarem. Simplesmente proibir estas festas seria altamente decepcionante. É necessário lembrar, entretanto, que provavelmente ninguém (ou quase ninguém) quer ser humilhado. Toda crise traz consigo uma adição, desde que se perceba este elemento aditivo. A atitude mais sensata para reverter a situação dos trotes estudantis pode vir de uma ampla e corajosa discussão a respeito das atitudes vigentes. Nesse processo, é fundamental a participação eqüitativa e ativa de professores e alunos iniciando, assim, um novo paradigma de relação entre estas classes. O processo de criação das novas formas de receber calouros deve ser genuíno e pertencer àqueles com quem este aluno vai se relacionar. Romper com tradições desabonadoras é fundamental, mas um rompimento abrupto, sem preparo e sem discussão e engajamento de todos os ENSOR, Ingresso de Cristo em Bruxelas (detalhe), 1889
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elementos envolvidos, não terá substância suficiente para sobreviver. Certamente este ano a memória não permitirá trotes nos moldes conhecidos, mas com o tempo ela vai-se apagando e tudo volta a ser como antigamente. O processo de discussão precisa estar vivo no interior de cada escola, e se fortalecer com troca entre as escolas. Este processo precisa ser conduzido pelas lideranças estudantis e institucionais de cada local, que trabalharão com um conjunto maior, buscando uma mudança cultural, trabalhosa e longa, mas mais adequada à época em que se vive: o limiar do século XXI. Neste processo, será fundamental, também, entender melhor os sentimentos de professores e alunos. É preciso abrir espaços de trocas entre alunos e destes com seus professores; discutir os modelos vigentes nas escolas médicas, considerando o que estes apresentam de positivo e de negativo; perceber a diversidade de pessoas que compõem um todo, buscando-se o respeito às diferenças. É imprescindível discutir a sociedade e os rumos que ela toma, o papel de cada um neste mecanismo, os valores vigentes, a participação da família na construção destes valores e sua interferência nesta fase da vida dos estudantes.
Referências bibliográficas Folha de São Paulo. 3º Caderno. 25-05-1999, p.3-6. Grande Enciclopédia Larousse Cultural MATTOSO, G. O calvário dos carecas: história do trote estudantil. São Paulo: EMW Editores, 1985.
ENSOR, A intriga, 1890
PALAVRAS-CHAVE: Violência; Universidades; trote estudantil
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Trote violento contra calouros universitários
Marco Segre1
Notícias de trote violento contra calouros universitários têm sido comuns, desde sempre. Vez ou outra há vítimas fatais e o "trote" passa, então, a ser discutido pela imprensa. Formam-se comissões de sindicância nas faculdades, chamam-se psicólogos, bacharéis e cientistas sociais para opinarem sobre o "fenômeno"... Há bastante hipocrisia nisso tudo, porque há décadas se sabe o que é o trote e as reações do público sempre variaram da sorridente cumplicidade com esse "baile de debutantes", à tolerância enfastiada e até à inaceitação mais severa. Como encarar o fato? (falo do fato em si, independentemente de surgirem vítimas fatais). Trata-se, indiscutivelmente, de uma violência. A consideração de que se trata de um "ritual" que faz parte da tradição acadêmica deste e de alguns outros países não altera esse aspecto. A amputação do clitóris em certos grupos islâmicos, as práticas de emancipação de adolescentes em tribos indígenas, as humilhações impostas aos recrutas do exército são outros exemplos em que a justificativa do "cultural" poderá também ser levantada. Mas, por esse caminho, também justificaríamos a lavagem étnica de Kosovo ou até mesmo as câmeras de gás de Auschwitz.
1 Médico, professor de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP. Membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
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Há, sim, violências que são até prazeirosas para suas vítimas. Sem recorrermos ao exemplo do ótimo filme "O império dos sentidos" - em que o estrangulamento progressivo era estímulo erótico para dois amantes o prazer de ser submetido à dor ou a humilhações por seus pares (é o caso de todos os rituais de iniciação) advém do orgulho de ser admitido numa "casta superior". E quanto mais pessoas virem, maior será esse prazer. Não estamos aqui, porém, para discutir o prazer ou desprazer que o trote pode causar em uns e outros. Eu mesmo, por ocasião de minha entrada na FMUSP, não odiei o trote. Houve algo de festivo, para mim, na participação solidária, com antigos e novos companheiros, nessa "maratona" que se sucedeu à minha auspiciosa entrada na Faculdade. Cresci. Aprendi a perceber "algo mais" na postura de muitos (não todos) "veteranos" que "dão o trote". Há sentimentos de vingança contra o que muitos deles sequer atinam. Há prazer na submissão de indefesos, no "tudo posso", há revanchismo no "eu passei por isso e agora é a vez deles" (talvez seja por isso que, não me tendo sentido vilipendiado pelo trote, não tive o desejo de retribuí-lo). Mas também não é para avaliarmos todos os aspectos emocionais que permeiam o trote que escrevo este artigo. Virei professor de Bioética. Embora eu não atribua à "autonomia, beneficência, não maleficência e justiça", o sentido que os principialistas lhe querem dar (linha de Beauchamps e Childress), pois fujo de tudo o que seja normativo em termos de "pensar e sentir humanos", é claro que, na maioria das vezes, o trote é uma violação da autonomia. O fato de muitos acabarem gostando (ou, até mesmo, de já iniciarem gostando) lembra-me o adágio de "se você for estuprada, relaxa e goza". Sorte de quem pode. É absolutamente certo, também, que qualidade de vida é subjetividade. Que se faça uma consulta, antes do trote, para saber quem o deseja. E que se especifiquem, como num contrato, as condições em que ele será aplicado. E que se obtenha a anuência, por escrito, dos "sujeitos". Afinal, serão essas mesmas pessoas que, ao cabo de um curso de Medicina, deverão saber que, tanto para o exercício profissional como para a pesquisa em seres humanos, exige-se o consentimento esclarecido! Não será fácil, para os professores de Bioética, transmitir para esses alunos (ex-calouros e ex-veteranos) o valor do respeito à autonomia após todas suas vivências no trote e fora dele. Estamos quase na virada do milênio. Expande-se o fundamentalismo religioso, muitos se escondem atrás do cientificismo e do determinismo (o gene explica tudo, para que teríamos, então, que pensar e decidir?). Não obstante isso, fala-se bastante em respeito aos valores humanos, à individualidade, à etnia e à opção sexual. Com quem estamos, no embate entre essas duas tendências? Não tenho qualquer dúvida de que o verdadeiro desafio da virada do milênio passa pelo humanismo. E este, certamente, não passa pelo trote, nem pela cumplicidade a todo tipo de violência. Também não passa pela gabolice irresponsável e insensível de atribuir a si mesmo um homicídio que, até, não se haja praticado!
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A privatização da violência
Antonio Luiz Caldas Junior
2 MARX, K., ENGELS, F. Textos. São Paulo: Edições Sociais, 1976.
3 Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. São Paulo: Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1986.
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A partir do texto Trote, Tradição e Violência permito-me fazer breves reflexões sobre o tema em nossa sociedade. 1 Valores e comportamentos dos humanos decorrem de suas condições materiais de subsistência e não o contrário (Marx provou isso suficientemente)2. Justificar determinados comportamentos com base apenas na tradição , carece, pois, de fundamento. As tradições só subsistem se sobrevivem seus determinantes estruturais. O milenar mito da virgindade sucumbiu em apenas uma geração. Nossas avós suportavam a idéia de casar virgens, aos catorze, quinze, dezoito anos, se muito. As mudanças da inserção da mulher no mercado de trabalho e a postergação do casamento, para além dos vinte, trinta anos, fez ruir o mito. Afinal, o espírito, naturalmente está ansioso, mas a carne é fraca (Marcos 14:38)3. O mundo subjetivo sucumbe ao objetivo. Igualmente, é a violência da vida cotidiana que sustenta a cultura da violência dos veículos de comunicação e não o contrário. Não há, pois, como defender a prática do trote com base apenas na subsistência de uma tradição. 2 A tradição cultural é pontuada freqüentemente de violência e tragédias pessoais e sociais, próprias da barbárie pré-histórica, indignas, nos dias atuais. Milhões de mulheres tiveram seus pés mutilados na China feudal e capitalista. Outros milhões são submetidas anualmente, na África, à violência
Médico, professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp.
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da clitoridectomia. E quem perpetra e perpetua estas tradições ? As mesmas mulheres que há pouco dela foram vítimas. Sinais de incivilidade ? Mas, não fazem o mesmo os civilizados membros da Real Marinha Australiana ao humilharem seus calouros ? 3 Não causa qualquer surpresa, pois, que pessoas da classe média , sem problemas sociais ou econômicos , se envolvam em atos de violência e, em casos extremos, de morte. Nem cabe acreditar que a violência seja um predicado das classes populares. Ao contrário, a violência sempre existiu na classe dominante, já que é exatamente por ela que a dominação de classe é garantida. Que violência maior haveria do que aquela decorrente da fome, da miséria, das seqüelas impostas pela exploração predatória da escravidão, do colonialismo e do imperialismo, agora travestido de globalização ? 4 O que alarma as classes médias e a burguesia é a percepção de que a violência (que sempre existiu) agora lhes chega à porta, inclusive pelas mãos de seus próprios filhos. Assim ocorre nos EUA, Inglaterra, ou Brasil: jovens bem situados incendeiam um índio em Brasília; aqui e ali, filhos naturais e adotivos executam seus pais, avós, irmãos, colegas de escola; o encontro de um corpo é o resultado indesejável do ritual de passagem da mais conceituada Faculdade de Medicina do país. 5 Ora, onde encontrar resposta para a disseminação incontida e tolerada da violência, que nos ameaça e com a qual, banalizada, de alguma forma, nos acostumamos? Certamente, muitas são as respostas. Entretanto, gostaria de destacar que nossa sociedade sucumbe ante uma ideologia que é a negação do sentimento coletivo, da cooperação, da colaboração e da solidariedade (que subsistiu, nem que fosse apenas no plano formal, até mesmo sob o capitalismo monopolista). Hoje, o (neo)liberalismo assume, sem dissimulação, os pressupostos da competição, da concorrência e da sobrevivência seletiva como condições necessárias à chamada nova ordem econômica mundial . Fermenta a exclusão social e a violência. O navio naufraga, e o comandante anuncia que os escaleres, em número insuficiente, serão ocupados pelos mais competitivos . Como garantir nesta circunstância qualquer norma de convivência e respeito razoavelmente civilizados e solidários? 6 Em crise, o capitalismo acirra suas contradições econômicas e sociais. Coexiste, porém, uma profunda crise das ideologias que dominaram o comportamento social no presente século4 . No campo idealista, sucumbe o neo-positivismo em sua expressão funcionalista, calcada em conceitos tais como integração, totalidade, equilíbrio, ajuste e controle social. Naufraga o Estado-de-bem-estar-social, de inspiração keynesiana, que vendia a ilusão do progresso e desenvolvimento social para todos. De outra parte, o pensamento marxista ainda se ressente da derrocada das experiências socialistas do leste europeu. O materialismo histórico e dialético, solidário e comunista por essência, mergulha em reflexões sobre os descaminhos e erros cometidos em seu nome. 7 Neste cenário, atendendo às necessidades ideológicas da exclusão econômica (neo)liberal e aproveitando-se dos erros de um coletivismo que em muitos momentos nos negou a necessária e justa individualidade, difunde-se, especialmente dentre as classes médias, o pensamento
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NUNES, E. D. (org) Juan César Garcia: Pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez, 1989.
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competitivo e personalista, que absolutiza o individualismo e o subjetivismo fenomenológico. O foco ideológico e político, sobre sociedade e classes sociais, amesquinha-se nos domínios do ervaçal idealista, do misticismo, das comunidades fechadas, dos pequenos grupos, das tribos e, no extremo, no mais absoluto privativismo, de conteúdo quase sempre reacionário. 8 Desde meus tempos de Escola Paulista de Medicina, sempre abominei o trote, fosse como calouro fosse como veterano. Como segundanista, até tentei experimentá-lo, sem sucesso. Achei tudo aquilo (humilhação, gritos, ovos, água etc.) desprovido de qualquer sentido humano. De quem consinta cortar os cabelos, pintar o corpo, é até aceitável. Violentar, humilhar, desrespeitar opinião e valores íntimos, jamais! 9 A despeito de tudo, o trote, no passado, era uma instituição coletiva e como tal submetia-se a regras do senso comum. Havia verdadeiras batalhas com a presença, quase unânime de veteranos e (compulsoriamente) calouros. Enfim, uma violência consensualmente admitida e tolerada, como aliás tantas outras a que me referi. Pois, queiramos ou não, até a violência comporta (ou comportava) regras coletivas ou uma ética da transgressão (isto é, transgredir dentro de limites socialmente toleráveis ). 10 Porém, nos últimos anos, o trote privatiza-se. Muitos são os alunos que, sabiamente, abandonam as práticas degradantes e buscam fórmulas receptivas. A ruptura com o sentimento coletivo exalta, no entanto, pequenos grupos que transformaram o trote num tormento inqualificável e em práticas que vão da violência física (como o tradicional afogamento em vasos sanitários) ao atentado violento ao pudor (como a nudez compulsória e a introdução de objetos no reto). Práticas que a despeito do esforço de uns poucos e da indiferença da maioria da comunidade universitária, vicejam aqui mesmo em nosso câmpus. Práticas e comportamentos fomentados pela ideologia que, pretendendo-se pósmoderna, talvez explique e até justifique a triste morte do jovem Edson Tsung-Chi Hsueh na piscina da Associação Atlética Acadêmica da mais conceituada Faculdade de Medicina do país.
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Num bairro periférico de Teerã, as irmãs Zahara e Massoumeh passaram treze anos aprisionadas em casa... pelo pais que as amam...
(Material de divulgação do filme A maçã, Samira Makhmalbaf, 22º Mostra Internacional de Cinema, ã 1998).
O universo feminino reprimido... a história da revolução islâmica...
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Trote na universidade
Luis Carlos Giarola
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A violência no escárnio do trote tradicional (um estudo filosófico em antropologia cultural). Santa Maria-RS: Universidade Federal de Santa Maria, 1993. 45p.
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O trote rotineiro, admitido pelos estudantes, em geral traduz uma concepção de brincadeira e zombaria, na qual se garante fundamentalmente que o veterano se divirta. Na minha experiência, de calouro a veterano, o trote foi uma ocorrência muito marcante. Como bixo, passei por muitas situações de apuro, curti bastante adrenalina, auto-afirmei-me com meus colegas e escapei de todas as modalidades que na época eram temidas. Fui o que se costuma denominar um "bixo esperto". Alguns não passaram tão ilesos assim... Já veterano, queria dar trote, divertir-me com a cara dos bixos, mas ... meu desempenho deixou a desejar: não conseguia assustar, subjugar, ou zombar de um bixo com a criatividade e a desenvoltura de outros veteranos (aos quais, nessa época, eu no fundo até admirava). Os trotes-aberrações (aquelas modalidades que ninguém assume a autoria ou sua defesa perante autoridades, mas que, pelo contrário, condena-as e as atribui a pessoas descontroladas e/ou a veteranos de outros cursos) constituem outra esfera de problema, porque aqui se entrecruzam reminiscências de outras injustiças da sociedade, despertam indignações e clamores por punições, não havendo sustentação assumida para sua ocorrência. Há relatos de atrocidades no trote desde a Idade Média e suas origens remetem a vários aspectos da relação entre as pessoas, estando bem analisado na monografia de Paulo Denisar Vasconcelos 2. Nesse livro, citamse dois casos de óbitos de universitários brasileiros em situações de trote:
1 Médico, professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. Presidente da Comissão de Assuntos Estudantis/FMB.
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Carlos Alberto de Sousa (20 anos -Jornalismo/Universidade de Mogi das Cruzes-SP - 1980), em decorrência de traumatismo crânio-encefálico resultante de agressões de veteranos; e George Mattos (23 anos - Direito/ Fundação de Ensino Superior de Rio Verde-GO - 1990), em decorrência de parada cardíaca ao tentar fugir de veteranos. Hoje, a opinião dos calouros da Faculdade de Medicina de Botucatu, ao término do período de trotes3, é a de que o trote como uma brincadeira ou como uma integração é importante para o início da vida universitária, desde que não ultrapasse os limites da integridade do bixo. Em inquéritos que temos realizado nos últimos anos, menos de 10% dos calouros discordam disto. A grande maioria diz pretender aplicar trotes no próximo ano, trotes agradáveis e leves, respeitando a vontade do calouro, caso ele não queira (sic). Vale lembrar, que o trote (segundo o Aurélio) é uma zombaria a que os veteranos das escolas sujeitam os calouros . E também, que zombaria é uma manifestação intencional, malévola, irônica ou maliciosa, por meio do riso, de palavras, atitudes ou gestos, com que se procura levar ao ridículo ou expor ao desdém ou menosprezo uma pessoa, instituição, coisa etc., e até os sentimentos. De minha vivência atual com o trote, acompanhando e participando da organização de atividades de recepção a calouros e de comissões de sindicância sobre trotes abusivos, posso dizer convictamente, que trote que respeita a vontade do bixo não é considerado trote. O gostoso, o excitante, o gerador de adrenalina é a subjugação do calouro pelo veterano. Devido a isto, acredito que as propostas de trote-cidadão (do tipo ações solidárias e/ou educativas como coletar lixo, pintar escolas, doar sangue etc.) estão fadadas ao insucesso, podendo mesmo serem transformadas em trotes tradicionais, caso haja subjugação em suas realizações. No nosso meio, atividades que construam e desenvolvam a cidadania são bem-vindas e necessárias, mas quem disse que os veteranos, os docentes, os funcionários e os pacientes são 100% solidários? Por que então programar essas atividades só para os calouros? Penso que o trote habitual (excluídos os definidos como aberrantes) está aí presente e sob a anuência das instituições universitárias. É necessária maior definição para sua abordagem no próximo ano: ou continua liberado, ou se cria uma legislação explícita para sua proibição. Não é possível haver um meio termo, porque o limite entre o trote integrador-brincadeira e o trote abusivo é muito tênue e variável de pessoa para pessoa; não dá para ser objeto de um acordo entre os veteranos. Há dois anos tivemos um exemplo de tentativa, em que se definiu como permitidos os trotes de corte de cabelo, pintura de rosto e pedágio4. Em 1999, a única denúncia que motivou uma sindicância diz respeito a situação ocorrida em um pedágio... Há anos, em Botucatu, se investe na proposta de humanização da recepção e negação da humilhação e do abuso no trote. Há inegáveis sinais de progresso. Talvez esteja no momento adequado para se dar força à corrente defensora dos direitos de cidadania proibindo de forma efetiva o trote (com legislação específica e rigor na sua aplicação), ao mesmo tempo em que se organize uma boa recepção aos calouros.
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Comissão de Recepção aos Primeiranistas de 1999 - Grupo Administrativo do Campus de Botucatu/ UNESP. Questionário de avaliação da Recepção/ 99. mimeo.
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Haroldo Amaral. Alunos e diretores discutem limites do trote . Botucatu: Jornal Diário da Serra, 11/03/97. p.2.
Sobre trote e violência
Sueli Terezinha Ferreira Martins
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O artigo Tradição, trote e violência traz para nossa reflexão vários aspectos importantes. Segundo pesquisa citada, a violência entre os jovens de todas as classes sociais tem aumentado nos últimos anos. A banalização da violência nas várias esferas das relações sociais parece subsidiar sua naturalização , formando representações que legitimam muitos comportamentos violentos. O individualismo, a competição, o consumismo e o enfraquecimento de uma ética que respeite o outro, caracterizam de forma hegemônica o estar no mundo hoje. A possibilidade do desenvolvimento do indivíduo e cidadão parece ser cada vez mais uma utopia. Conseqüência da alienação presente nas relações sociais, o indivíduo perde progressivamente o controle sobre sua vida. Neste sentido, a questão da violência precisa ser tratada como um fenômeno social, que extrapola os muros das faculdades. Ela está presente em todos os espaços na sociedade atual. Na verdade, o trote nas Faculdades de Medicina é uma tradição construída no decorrer de muitos séculos e que se mantém até os dias atuais. É, portanto, uma prática violenta há muito tempo. Cabe perguntar se o contexto atual, com o aumento da violência em todas as camadas e espaços sociais, contribui ou não para a exacerbação da violência no ritual de recepção dos novos alunos na faculdade. Em que medida a naturalização da violência está presente na população privilegiada que consegue uma vaga na universidade, em um curso tão concorrido como o de Medicina? A fala do estudante Luiz Felipe Lisboa indica, de certo modo, esse processo
1 Psicóloga social, professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Faculdade de Ciências de Bauru, Unesp.
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quando diz que o limiar de violência dos alunos há muito tempo está aumentando. Desrespeitar, invadir o espaço do outro, humilhar, segundo suas palavras, não são considerados atos violentos. A história recente nos diz que este caminho é um grande equívoco, perigoso, o início da justificação para a violência física e para a exclusão. Basta olharmos para a história dos índios, dos negros, dos judeus, de militantes políticos de esquerda e tantos outros grupos que sofreram violências ímpares. Foram desrespeitados em seus direitos, humilhados publicamente no seu dia-a-dia, desqualificados e excluídos. O que ocorre no trote não é diferente: é violência, coerção, o exercício do poder de uns sobre outros: forma medieval de recepcionar os colegas, de deixar claro, desde o início, quem ali detém o poder. Considerando a violência um fenômeno social e o trote como uma das formas de expressá-la, parece relevante que quase 25% dos calouros da USP tenham escolhido não participar do trote. Quem são esses quarenta alunos e o que pensam sobre o trote? Por que optaram pela não participação? Conheciam as conseqüências deste ato? Talvez esteja aí um pólo importante para a discussão necessária sobre essa prática. Mesmo sob forte pressão dos veteranos, que pode se manter no decorrer dos seis anos de faculdade, aquelas pessoas mantiveram seu direito de escolher e de enfrentar as conseqüências de seus atos. Provavelmente este dado se repita em outras faculdades. Os autores colocam como uma das possibilidades de explicar o comportamento violento nos rituais de recepção o fato de o curso médico ser física e mentalmente desgastante. Será que o trote não faz parte de um conjunto de ações que fortalecem a corporação médica? Ou a primeira prova, de muitas outras que virão, para que o recém-chegado passe a ocupar um espaço privilegiado? Não será o sofrimento anterior à entrada na faculdade, assim como os outros sofrimentos que o curso impõe a seus alunos, uma forma de tentar garantir o status do profissional médico, mesmo em um contexto perverso como o atual, que não garante mais condições de trabalho decentes para esse e outros profissionais? Gostaria de ressaltar o reflexo dessa prática nas relações sociais em geral, e na prática médica em particular. Aspectos como autoritarismo, relação de poder, individualismo etc., se reproduzem na prática médica, sendo apontados, inclusive por pesquisas, principalmente na saúde pública, como um problema relevante da relação médico-paciente, que se caracteriza de modo semelhante à relação que o aluno encontra na faculdade. Esse modelo, muitas vezes, se reproduz na relação médico-equipe de saúde (profissionais de outras áreas, auxiliares etc.), mantendo-se, portanto, uma relação de poder permeada pela violência sutil. Sem dúvida, trote e violência andam tradicionalmente juntos. Concordo que a saída é promover uma ampla e corajosa discussão a respeito das atitudes vigentes, tendo como ponto de partida o trote, enquanto uma das práticas violentas, mas reconhecendo que ela não é a única. Questionar a formação, em seus vários aspectos, parece-me questão urgente, já que suas conseqüências não se restringem ao âmbito do curso, mas interferem na futura prática do profissional e na relação deste com a equipe de trabalho e a população atendida.
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A ética do trote
Pedro Geraldo Aparecido Novelli
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O trote é uma maneira de recepcionar os calouros que ingressam na universidade. Os alunos veteranos são geralmente seus articuladores diretos do trote. A instituição universitária não reconhece oficialmente o trote como a forma mais adequada de recepção embora articule o trote indiretamente, pois acaba aceitando sua prática ou por incentivo de alguns de seus setores ou por não tratar da questão com a devida consideração. Ser acolhido e ser recepcionado representa um deferimento em relação a quem chega e pode também ser gratificante para o mesmo. Quem recepciona dá mostras de respeitabilidade porque reconhece o outro em sua novidade. Contudo, pode-se ser indelicado, agressivo, violento em nome da recepção e, mais ainda, se a recepção estiver envolvida por clima de jocosidade no qual podem ocorrer fatos reais com pretensão de ficção. A recepção pressupõe uma certa gratuidade, pois é iniciativa de quem recepciona. Por isso, o recepcionado tem o direito de aceitar ou não a forma da recepção. Quem recepciona deve pensar mais em si ou no outro ? A minha alegria é a alegria do outro? A alegria é a mesma para o outro e para mim? Quem pretende amar deve indagar-se sobre a própria forma de amar. Um amor ininteligente pode ser pior do que o ódio (Hegel).
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Filósofo, professor do Departamento de Educação do Instituto de Biociências de Botucatu, Unesp.
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Como não se pode contar com o bom senso das pessoas mesmo que muitas digam possuí-lo até demais, faz-se necessário o estabelecimento de balizas norteadoras do comportamento. Em nome do trote pode-se criar o vale tudo . Aqui as leis são outras e as conseqüências e a responsabilidade por elas não cabem a ninguém. Não se tem aqui um Estado dentro do Estado ou ainda a carnavalização do próprio Estado? Há um momento de suspensão de todo estado de direito e de dever? Que privilégio é esse? A quem se deve prestar contas ? Nesse sentido o trote precisa ser incorporado oficialmente pela comunidade universitária e discutido amplamente para que as diversas posições sejam claramente postas. Recepcionar é necessário e possível, mas talvez não o seja nos moldes do trote indiscriminado. A ciência, a religião que possuem um longo histórico marcado pela busca da seriedade destruíram (destróem?) vidas. A sociedade deve estar atenta ao que ela mesma produz para que não venha a gestar a própria morte pelo menos em termos absolutos. O que é bom pode tornar-se mau se empregado indevidamente. Não se pode fazer algo inconseqüente, principalmente quando a vida está envolvida. Como a vida deve ser tratada constitui-se uma questão ética. Trata-se de definir comportamentos que sejam aceitáveis. A ética implica um sujeito ético que deve ser livre e consciente, isto é, sabedor e responsável em relação ao que faz, pois faz para e com alguém mais. A liberdade e a responsabilidade somente existem devido ao outro. A desconsideração do outro indica uma determinada ética que garante a satisfação de determinados interesses. Professores e alunos ensinam e aprendem mutuamente mesmo quando acreditam não o estar fazendo. Todo professor ensina moral mesmo que não o queira. Todo aluno aprende moral mesmo que não o queira. Mas, qual moral é ensinada e aprendida ? O trote é um momento de ensino e aprendizagem: o que se pretende ensinar e aprender com ele? A resposta a essas perguntas passa necessariamente pela ampla discussão do próprio trote dentro de um espaço formal de ensino como a universidade.
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Em uma Universidade Pública... calouros...
... e trote Luciana Lunardi
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Que tempos medonhos chegam, depois de tão dura prova? Quem vai saber, no futuro, o que se aprova ou reprova? De que alma é que vai ser feita essa humanidade nova? Cecília Meirelles
fragmentos*...
Integração aluno-veterano-docente-universidade..
É apenas uma brincadeira e é assim que deve ser encarado, mas não deve passar dos limites.
Deve ser sempre um caminho para novas amizades, não um pretexto para humilhações e falta de respeito.
Para alguns, é a forma que eles têm de se relacionar com os bichos, agora para outros é a forma que eles encontram para se acharem superiores.
Uma maneira de integração, a certo ponto desnecessária e por outro lado divertida, claro que tem que ser controlado.
É uma forma de integração em que não há necessidade de violência ou humilhação.
1 Pedagoga, professora do Departamento de Educação, Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp. * Extraído de questionários aos calouros do campus da Unesp de Botucatu, maio/98.
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DEBATES
Prática saudável e necessária, que serve para integrar e iniciar o calouro na faculdade. É válido, pois o calouro tem oportunidade de conhecer e conviver com seus veteranos ; fazer novas amizades.
É uma maneira de integração equivocada.
É um misto entre brincadeira e humilhação e que necessita ter os limites necessários.
Uma atividade integradora que visa estabelecer amizade entre veteranos e bixos.
Um ritual necessário para os calouros perceberem e sentirem que passam para um novo estágio ... uma festa comemorativa depois de passar do exaustivo vestibular.
Uma maneira de os veteranos humilharem os bixos com a desculpa de integrá-los à faculdade.
Algo inútil e imbecil. Um poder que não deveria ser entregue a veteranos retardados que não sabem se relacionar de forma amistosa.
Totalmente desnecessário e primitivo.
É um meio pelo qual os calouros se integram à faculdade, passando a se sentir parte dela.
É uma brincadeira para integração, dentro dos limites de aceitação de quem vai levar o trote. Integração não é escrever o nome de um bixo em sua testa durante cinco segundos e passar para o próximo bixo: é parar por alguns instantes e, se for escrever no bixo, conversar com ele.
MUYBRIDGE
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Trote e cidadania
Marcelo Coltro1
Será o trote tradicional salutar para o convívio universitário ou um ritual despolitizado e brutalizador? Entender a problemática que envolve o trote nas universidades é um primeiro ponto de reflexão para a transformação desta prática, sem que para isso seja necessário esperar novas tragédias. Segundo seu conceito, o trote é um ato de zombaria a que os veteranos das escolas sujeitam os calouros, ou seja, uma ridicularização e desdém a que o novo universitário será exposto. Entendendo desta forma, não há como ser a favor de uma prática que transforma o sonho de conquistar a cidadania e a busca do conhecimento num ato de subjugação, ferindo todos os preceitos universitários. O trote tem suas raízes na Academia como prática milenar. Na Idade Média, estudantes de vários países, unidos pelo latim como língua universal, procuravam a universidade como uma chance de ascensão social. Nobres, pequena nobreza, burguesia e camponeses compunham a universidade. Consolidadas por seu caráter urbano, as instituições ofereciam tratamento diferenciado para cada um. Numa época de desprezo e discriminação para com o mundo rural, aos camponeses, julgados rústicos, restava o trote. Jacques Le Goff (p.69-70) expressa muito bem essa condição de desprezo: ...zomba-se de seu odor de besta-fera, de seu olhar perdido, de suas longas orelhas, de seus dentes parecendo presas. Extraem-lhe supostos chifres e excrescências. Banham-lhe e limam-lhe os dentes. Em uma paródia da confissão, ele enfim reconhece vários vícios .
Quinto-anista de Medicina na Universidade Federal de Pelotas; coordenador geral da Denem - Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina.
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DEBATES
Segundo Paulo Denisar Vasconcelos, o trote caracteriza-se como um rito de iniciação; é um cerimonial milenar de agressão e violência contra o calouro: confirma a idéia do trote como um rito de passagem às avessas, como prática oposta aos valores humanistas e civis da universidade . Que isso aconteça em um país que faz sacrifícios desmedidos para possuir universidades e que precisa delas para acelerar seu desenvolvimento é um paradoxo. O que importa assinalar é que não sairemos da atual situação sem mudanças radicais de mentalidade - não só dos universitários , mas dos que podem absorver os produtos do seu trabalho ou contribuir para o alargamento das esferas de influência dos serviços de ensino e de pesquisa das universidades. A recepção politizada aos calouros é salutar para o convívio universitário e deve ser desenvolvida e trabalhada dentro das instituições. Permite que os calouros, e não os bixos como na Idade Média, compreendam a universidade e passem a conviver mais de perto com conceitos de autonomia. A recepção deve ser encarada como um rito de iniciação necessário, capaz de produzir massa crítica desde o início da vida acadêmica e de levar a escola a ultrapassar seus muros, transformando a educação profissional, formal e não formal. O trote pode ser parte de um projeto educativo global, integrado e articulado na luta por uma educação de qualidade para todos, que acabe gerando indivíduos capazes de estabelecer seus próprios limites de intervenção na sociedade. Esta prática de recepção já existe em várias universidades do país, mas é preciso difundi-la. A versão despolitizada e bruta do trote é uma herança deixada pelo AI-5, de 1968, que acirrou o controle sobre as universidades e impediu a manifestação político-cultural das calouradas estudantis, que se constituíam, na época, em espaços de contestação e de crítica social. Não podemos mais viver das heranças e nem vivenciar a democracia da idade média. Afinal, os tempos são outros...
Referências bibliográficas: VASCONCELOS, P. D. A violência no escárnio do trote tradicional - um estudo filosófico em antropologia cultural. Santa Maria-RS: Universidade Federal de Santa Maria, 1993. p.14-5. LE GOFF, J. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Braziliense, 1989.
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Anotações sobre aspectos temáticos e contextuais da violência: vetores sugestivos José Carlos de Paula Carvalho
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O fenômeno (as manifestações) e a instituição (os institutos, as regras canalizando institucionalmente a agressividade através de confrarias ) do trote fazem ressaltar uma rica problemática quando considerados sob a ótica da violência originária e da destrudo , do imaginário do anômico / a-estrutural , dos ritos de iniciação e suas transferências míticas no liminóide dos rituais de rebelião / rituais de inversão , todos eles fatores que emergem numa sociedade urbano-industrial que, por ter perdido as instituições e o espaldar da tradição das sociedades arcaicas , instaurando-se o vazio institucional , apresenta-se como uma heterocultura e um bricolage , por onde, nessa atmosfera de desencantamento de mundo , irrompem a Sombra Coletiva e o pano de fundo mais amplo da problemática do Mal . Alguns pontos merecem ser repensados na dinâmica violência / agressividade / destrudo / iniciação / trote...ecologia mental da angústia e da morte / problemática do Mal / Sombra Coletiva...corporeidade. 1 Eliade mostrou que a iniciação é uma mutação ontológica de estado / estatuto , destacando-se sobretudo os ritos de iniciação da puberdade e da adolescência ao estado adulto; nas sociedades tradicionais são os ritos de iniciação que regulam a dinâmica sócio-psico-organizacional, aqui no caso das classes de idades ; mas têm a sustentá-los todo o respaldo de uma metafísica sócio-cultural , que canaliza de modo construtivo a agressividade e a violência, precisamente através daquilo que, dentre outros, Zahan e Erny chamaram de sociedades ou confrarias iniciáticas e pedagogias iniciáticas .
1
Filósofo e Antropólogo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Coordendor de Projeto Integrado Interinstitucional "Violência, imaginário e educação", FEUSP/CNPq.
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DEBATES
Se os ritos de passagem (Van Gennep), de um a outro estado, comportam provas / provações , feridas simbólicas / feridas reais e mutilações / cicatrizes e a morte , eventualmente, o advento dessa morte eventual é provido de Sentido, pois as sociedades arcaicas dispõem de uma pedagogia da morte , como mostrou Thomas. Há, portanto, uma coerência simbólica de ação nessas sociedades holistas (Dumont). Entretanto, nas sociedades urbano-industriais , com a laicização, as religiões políticas (Aron) e a instauração do projeto de Entzauberung ( desencantamento de mundo ) - advindo com o espírito do capitalismo e suas racionalizações em nível de economia, de sociedade (burocratização da vida social), de cultura e de personalidade, como com Max Weber salientou Habermas, essa unidimensionalização do homem proscreve a tradição e a afetividade como orientação da ação social, pois juntamente com a organização racional do trabalho acontecem as racionalizações secundarizantes . Estas que a psicanálise de Freud mostrou na construção repressiva da cultura, aliás construção de Thanatos ou pulsão de morte, a que Róheim, com a teoria do trauma ontogenético nas origens da cultura , deu magníficos desenvolvimentos , de certo modo aliado ao projeto iluminista da DeusaRazão e dos direitos humanos e de cidadania, nessa atmosfera de exorcismo da sensibilidade, da paixão, do alógico, de pathos e pothos...pelo espírito prometeico-fáustico que então canalizava a agressividade e a violência no sentido da construção do capitalismo, do homem burguês e das experiências burguesas . Enquanto se acreditou antes da Decadência finde-siècle , a Sombra Coletiva da então Modernidade na primavera industrial , agressividade e violência foram canalizadas produtivamente (vale dizer, o princípio do prazer foi substituído não só pelo princípio de realidade , mas numa confusão ideológica entre razão e racionalismo, entre razão técnica e razão política, mostraram Marcuse e Morin, tornou-se a realidade no princípio do rendimento ) e quando explodiam ou ameaçavam explodir às margens e nos interstícios, como nos duelos estudantis e no instituto do Mensur, eram canalizados mas não sem dificuldades... nas confrarias estudantis que cultivavam o ódio e acariciavam as cicatrizes como viáticos da experiência burguesa de ascensão social e paginação (Le Goff) da destrudo (Weiss). Perdêramos, entretanto, o respaldo das pedagogias iniciáticas e das pedagogias da morte (agressividade e violência), da agressividade violenta, das provações, da purificação moral, da guerra, do sentido educativo (pedagogos como Paulsen, teólogos como Harnack etc.) contido no Mensur... mas experiência vivida também da ética do companheirismo e da intimidade, do tribalismo contido nesses institutos. Remetemos o leitor ao indispensável texto de Peter Gay, O Cultivo do Ódio . Diz o autor: Ao oferecer camaradagem e ocasiões para regressões coletivas, os Corps e as Burschenschaften funcionavam como antídotos para a ansiedade adolescente, a solidão, e muitas vezes o isolamento asssustador, e como alívio para os estudos, vistos como uma disciplina árida e repetitiva...A adolescência, na moderna cultura de classe média, com certeza, é uma época tempestuosa, excitante e
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ANOTAÇÕES SOBRE ASPECTOS TEMÁTICOS...
excitada. É tempo de testes e de experimentação, um tempo que volta a encenar os dramas e revive as paixões infantis. Os sentimentos sexuais agressivos que a criança aprendeu a encarar como impróprios e perversos, sentimentos que são colocados além da consciência, agora retornam, quase literalmente com uma vingança. O comportamento expressivo, desajeitado, violento, muitas vezes irracional, dirigido contra todos, inclusive contra si mesmo, parece menos uma escolha do que um destino. A maturação fisiológica permite que as fantasias de triunfos sexuais passem de fúteis e vagos sonhos a possibilidades precisas e acessíveis. O mesmo é verdade para a agressão: a rebelião contra a autoridade paterna, impossível, quase impensável, nos anos infantis, agora parece estar ao alcance do adolescente. Mas as visões grandiosas de onipotência e de supremacia são sombreadas pelo assustador pesadelo do fiasco. E assim as novas forças do adolescente se tornam uma fonte de conflitos e de ansiedades, bem como o desejo de reter objetos de amor infantil teimosamente se confronta com o desejo de se livrar deles, e a agressão é tecida na textura de florescentes fantasias sexuais...Dessa perspectiva o Mensur parece ter sido brilhantemente concebido para enfrentar as devastações da puberdade. Sem dúvida, até mesmo na Alemanha, a grande maioria das pessoas, homens e mulheres, tinha de atravessar o campo minado da adolescência sem o benefício de um duelo ritual. Mas então outros ritos de passagem estavam à sua espera, na escola, na família, nas ruas. E muitos desses ritos, fossem eles provas engenhosamente elaboradas ou trotes violentos, eram exercícios de rara crueldade impostos ao aspirante a adulto, justificados aos olhos dos que os infligiam como necessários passos através da fronteira da maturidade...Melhor ainda, o Mensur e seus substitutivos infligia dor suficiente para gratificar o mais exigente superego...O Mensur era a codificação da adolescência; era um caminho - não o único, ou o melhorpara que certos burgueses do séc.XIX regulassem suas agressões. Não chegava a ser uma receita para a maturidade pessoal ou política. Mais do que a maioria dos arranjos sociais que disciplinavam a belicosidade, o Mensur era paradoxal e imensamente instrutivo, nas maneiras contraditórias de cultivar o ódio. Elaborado para conter o espírito de agressividade, estimulava tal espírito: controlava a violência e canonizava-a. (Gay, 1995, p.39-41)
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DEBATES
2 Nesse vetor de engendramento da Modernidade/Decadência em seus institutos sobre a agressividade / violência, como nos defrontamos com as ritológicas da pós-modernidade nos âmbitos da cultura, da escola e da profissão? Com a psicanálise, estabelece-se o nível fundacional da cultura através do id num processo de sublimação repressiva - tão bem contextualizado contemporaneamente por Marcuse em Eros e Civilização - levada a cabo pelo superego; entretanto, nessa anamorfose Freud reconhece a ambivalência de todo o processo ao supor, e cada vez mais vinculá-lo, à ação da pulsão de morte ou Thanatos como princípio, de tal modo que, opondose à pulsão de vida ou Eros ou libido, configura-se aquilo que Weiss designou como destrudo, ou seja, o instinto de morte que estrutura a cultura, e a sociedade e sua ação, como instinto de agressividade e de morte através das formações reativas, como precisou também Róheim. Destarte, com Klein, com Róheim, amor e ódio estão mesclados e, por um lado, respondem pelo caráter de instauração violenta originária (violência originária) da sociedade e da cultura, e de seu caráter tanático (agressivo e mortífero) e entrópico e, por outro lado, mostram como não se pode esquivar à essa ambivalência da violência originária por meio de uma supersocialização do homem (Wrong), como pretende o oponente projeto iluminista , pois a acolhida e o reconhecimento dessa destrudo apresenta propriedades verdadeiramente evolucionárias para o homem. Assim como Brown destacou no livro "Vidas contra a morte": o escândalo é a luta da vida contra a morte, pois o universo é entrópico e a instauração da sociedade e da cultura não pode elidir a presença da destrudo, da violência originária ou "essencial" (Girard), portanto da agressividade e da violência e da morte, em suma conectadas no instinto de dominação, reconhecido como um dos motores da realização das injunções do espírito do capitalismo (seja voltado para a agressão pelo controle da Natureza, seja do Homem, seja pela realização do trabalho competitivo). E tudo isso é regido por Thanatos ou pela pulsão de morte e pelo comportamento agressivo. Reconhece-se, portanto, como ineludível no âmago da cultura e das organizações sociais e grupais, nas atividades e produções, a presença de uma capacidade de ser agressivo , como diz Sandler, funcionando em diversas circunstâncias, mobilizada por qualquer coisa desagradável experimentada, seja ela pressão externa ou impulso interno (Gay, p.535). No âmbito da organização da Cidade, a história comparada da ideologia tripartida dos indo-europeus, obra magistral de Dumézil, dentre as funções organizatórias da sociabilidade e das ordens , viria reconhecer também a ineludível função guerreira ou marcial...; um dos fundadores da moderna sociologia das organizações, Pareto reconhecia na estruturação social uma dinâmica como embate entre as classes das persistências ou das conservações e a classe da adaptação ou instinto de combinação, ligando as primeiras ao embate pelo território como função predatória / estruturas de defesa e ataque e como função produtiva / estruturas de elaboração e cultura dos alimentos, ambas entretanto vinculadas ao já referido instinto de dominação. Trata-se, portanto, do estabelecimento de uma polemologia ineludível no âmago da natureza humana: a guerra (e
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Encontramos o grupo do devaneio muscular ou da myopsyche, nos vandalismos de adolescentes do Colegial da EEPSG. João Pedro Ferraz/Ibirá/SP, ou imaginário da errância e digressão desordenada; o imaginário da derrelição e o imaginário da diabolética, respectivamente nos mesmos grupos etários do Liceu Pasteur/SP e do Colégio Iavne-Beith Chinuch/SP, textos aos quais remetemos o leitor, pois será um dos públicos de calouros- e de futuros veteranos...- a ingressarem sobretudo em Medicina, Engenharia e Direito, cujas paisagens mentais assim levantamos de dentro e de fora das instituições e institutos-regras.
portanto a agressividade, a violência, a angústia, a morte, a dominação...) é a mãe de todas as coisas, como longínquamente falara Heráclito. Biologicamente duas descobertas viriam dar prolongamentos e saturação positiva a tais posições: de modo ambivalente, a fetalização ou neotenia humana, como veremos; e bem próximo da revolução biológica , que aqui não trataremos, a descoberta do triunic brain (MacLean, Laborit) e suas implicações, sobretudo do sistema límbico - que faz a dinâmica do Inconsciente e de seus princípios adentrarem, estruturando, as relações vinculares pessoais e societais através daquilo que Morin chamou de disrupção afetiva e agressiva, que se torna o fundamento do homo demens e do homo violens, que também somos. A neotenia humana ou juvenilização é um processo hipercomplexo (Morin). Lorenz e Gehlen ensinam-nos que o homem é um ser aberto para o mundo (a busca da ampliação do espaço stenoecético), um especialista da nãoespecialização, um aprendiz por curiosidade ativa, um lúdico-explorador, um ser permanentemente incompleto e inacabado, portanto, um ser do acaso, da álea, do risco, do perigo (da periclitação), da desordem complexificante, ser ambígüo, ambivalente e crísico, em busca da antropolítica da neg-entropia (da libido e de Eros), mas que irá se defrontar com a antropolítica entrópica na vida bio-psico-social e na educação (porque aqui, com a neotenia, só é compatível uma educação negativa ou contra-educação e um imaginário do conflito e da ruptura pela busca de conteúdos não dados por uma educação reprodutora ou praxeológica estribada num imaginário da ordem e da segurança e estribados no instinto de dominação), que irá portanto enfrentar, de início fora, o impacto com a destrudo civilizacional, e posteriormente intragrupo, como portadores que seus membros são da Sombra Coletiva... portanto potenciais bodes expiatórios do coletivo da ordem, pois são acuados a serem ovelhas negras . Poderemos ver na antropolítica da counter-culture como isso se deu, em termos sócio-culturais e educativos, sobretudo porque tendo a ver não só com a educabilidade e a sociabilidade, mas com a educação e a escola, pois foram revoltas estudantis como rituais coletivos de iniciação à uma outra maturidade . Mas é importante que se destaque, desde já, e mais uma vez, que a cenarização mítico-ritual, em ambas as perspectivações, presentificou...a violência originária irredutível, mesmo no modelo da comunidade . Ao mesmo tempo poderemos ver como, a partir de então, desponta uma teoria da crise e uma teoria da anomia, que nos levarão de imediato para as características da atual sociedade e cultura, e culturas escolares e profissionais, da pós-modernidade. Estudamos desde 1982 essa totalização sócio-cultural e grupal como imaginário do a-estrutural e do anômico, tendo identificado as categorias do comportamento organizacional alternativo e tendo estudado a presentificação desse universo da angústia em várias escolas, na esteira de Projetos Integrados, onde sempre se associa à presença da violência e da agressividade 2, da angústia, da ansiedade, do medo ... e do pânico... envolvendo muitas vezes não a evitação , mas o enfrentamento angustiado (por exemplo, com as gangues de skin-heads, de meninos de rua , de galeras ...). 3 Desde meados das décadas de 60 à de 70 assistimos aos movimentos agosto, 1999
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DEBATES
PICASSO, Sonho e mentira de Franco, 1937
contra-culturais e à gestação do que seria a heterocultura (Poirier) pósmoderna, uma hibridação entre matrizes sócio-culturais e psicoorganizacionais, educativas, provenientes da modernidade, e seus imperativos produtivistas, e as matrizes emergentes como pseudomorfoses (Spengler) da tradição, com os retornos cíclicos (riccorsi de Vico). Vimos se constituirem uma sociedade e uma cultura, com suas instituições, pulverizadas; assistimos à proliferação do neo-tribalismo (Maffesoli) apoiando-se nos fenômenos dos bandos de adolescentes estudados por Niederhoffer-Bloch - com seus rituais de iniciação à inacabada maturidade e à entrada na vida (Lapassade) - e, mais em profundidade, tendo como base a ontogenia da ritualização de passagem estudada por Erikson, em suas dimensões sócio-biológicas, psico-culturais e educativo-organizacionais através do processo de especiação 3 onde a escola é a unidade de base, segundo Erikson. Estudos vários (Rodrigues de Lima, Braun Mont Alverne, Itmann...) mostraram a proxêmica (o espaço físico e o espaço mental) da escola como tendo assim se transformado num cenário mítico-ritual agenciando uma corporeidade outra / uma corporação outra numa nova ecologia mental através de processos e rituais de passagem dos intragrupos e inter-grupos, das classes de idade sobretudo (daí as provas, exames, os trotes) de que o funcionamento da escola apresentado por Bourdieu ilustra tão bem o caráter laico-probatório e a conjugação entre violência física e violência simbólica, através das provas, exames...trotes. Mas nessas novas matrizes pseudo-especiatórias ou tribais de ritos de iniciação à tradição modernosa ou à modernidade tradicional, com os ritos de passagem e a liminaridade para a pertença, encontramos a mais ampla contextualização dessa pseudo-espécie chamada escola, com suas tribos , nas molduras mais amplamente compreensivas da liminaridade (Turner e Gluckman) e da anomia (Duvignaud e Bourdin) da sociedade em mosaico (Lacroix), onde o vazio institucional (Lewin e Bourdin) permite que, através dos ritos de passagem como liminaridade (ritos de inversão e ritos de rebelião), na escola como em seus intra-grupos tribos , venha se liberar a destrudo e a gama de agressividade, violência e desordem que consigo ela carreia, de tal modo que os templos de cultura se tornam cenários míticorituais para catarse das formas da destrudo, fundamentalmente marcadas nos momentos, nos ritos e nas cerimônias de passagem...da adolescência caloura à maturidade veterana. Especifiquemos alguns pontos, retomando trechos que já dissemos alhures: A anomia, conforme os trabalhos de Lacroix, situa-se nas molduras
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A constituição sóciocultural de pseudoespécies equivalentes às biológicas, com as propriedades de criação de um peculiar estilo de seleção e admissão baseado no enclausuramento, nos mecanismos de defesa do in-group como membro e de exclusão através das estratégias do preconceito (Taguieff : antropofagia e antropoemia) dos considerados outgroup , numa produção, portanto, de alteridades e de outros; o acesso será tanto mais probabatório e permeado de violência, assim como a luta contra os outros , quanto mais prestigiosa for a pseudo-espécie / tribo / grupo / bando / gangue etc. e tanto maior for o vazio institucional .
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de uma teoria da crise, que também é uma teoria do Estado - os momentos de efervescência criadora escandem a história das sociedades-, e fundamentalmente de crise da centralidade social, a qual se dilui sob a ação de dois processos complementares: um de dispersão - o processo que Moles e MacLuhan chamaram de organização da cultura de mosaico - e outro de dilatação - a lógica hipocomplexa da homogeneização ou o processo de inflação e turgescência das sociedades afluentes, descritos por Touraine e por Baudrillard. Nesse sentido, a anomia caracteriza uma forma, e a fundamental no plano das representações, de criatividade social. Implica um triplo movimento de desvendamento com relação ao que as instituições, os valores e as imagens procuram mascarar, de subversão desses modelos pelo comportamento ou a expressão, de livre invenção, de bricolage , de criação por ensaio e por erro. Tal forma ou dimensão das crises concerne o centro. São as encruzilhadas da cultura e da ação que são questionadas: ideologias, valores, normas e modos de comunicação. E a anomia só se desenvolve plenamente conquistando o centro por uma generalização das manifestações periféricas "..." A anomia refere-se a uma crise de implosão... afeta o sentido dos atos, sentido esse que deixa de aparecer com clareza; torna impossível a previsão do comportamento de outrem, de que não se sabe mais que esperar; ela despolariza as relações sociais; as hierarquias, as posições e as redes de relações tornam-se instáveis ou inapreensíveis... A anomia provoca a emergência individual e pseudo-especiatória ( tribal / grupal) do recalcado e do não-dito, tratando-se, entretanto, do recalcado fundamental, ou seja, de questões que, formuladas, para elas não temos respostas e que, aos poucos, são submetidas ao trabalho da denegação ideológica... (Paula Carvalho, 1990, p.122-3)
Portanto a anomia é ambivalente, pois propicia o vazio institucional ausência generalizada de pontos de referência e de perspectiva...é desordem instituída, essencialmente periférica, na medida em que, mesmo em se podendo tornar um perigo para o centro na eventualidade de se ampliar a toda uma instituição, não acarreta necessariamente a comunicação, mais se afastando dos centros do que visando a atingi-los (idem, p.125) - e a implosão da destrudo. Mas é também um viático de contestação/revelação das disfunções e disnomias de uma sociedade e de uma cultura e, assim, por exemplo, através da liminaridade e seu modelo de communitas , dos rituais de inversão e de rebelião, pode provocar as instituições a falarem o não-dito, tendo assim o efeito de engendrar a dissidência libidinal e, em termos de análise institucional e de pedagogia implicativa (Lapassade, Lourau, Hess), dizemos que ela tem um efeito analisador. Entretanto, como historicamente mostrou de sobejo a contracultura, mesmo nesses casos, foram ativadas a violência e a agressividade, ainda que como defesas contra a agressão do poder externo e estatal...Portanto, mesmo em seu bifrontalismo, o imaginário do anômico e
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DEBATES
a-estrutural secreta a violência, a agressão, a angústia...sobretudo porque advindo numa sociedade pulverizada onde a orientação é atribuída, é rateada entre as pseudo-espécies ( tribos , bandos, gangues) de que, lembremos, segundo Erikson, a escola é o modelo / campo exemplar. Nesse momento de perda da totalização, as tribos fazem suas leis...numa atmosfera de anomia e de vazio institucional e, junto à arbitrariedade tanatocrática da cultura alimentada pela destrudo e por Thanatos, potencia-se essa arbitrariedade intra-grupos e inter-grupos na luta pela validação única e excluinte dos códigos tribais como normas universais : a ação desencadeada é arbitrariamente potenciada pela conjunção entre o autoritarismo e a arbitrariedade, contidos no instinto ou pulsão de dominação, que vimos ser uma das expressões da pulsão de morte. Como então, nesse universo da entropia positiva, da dominação tanatocrática, da reprodução autoritária ou das personalidades anômicas, dos grupos como tribos , em suma, como nesse universo de angústia e de paisagem mental de morte escandalizar-se com a violência originária emergente num trote? Como esperar aqui uma autoregulação outra, por Eros e pela pulsão de vida, que é aquilo a que visam as boas intenções do projeto iluminista através da constituição da cidadania? Como afirma Morin, em O homem e a morte , nesse universo o escândalo não é a morte, o escândalo é a vida... Por isso o projeto iluminista , ao se centrar numa supersocialização da natureza humana , numa filosofia da consciência, da vontade e do ego, nas religiões políticas (Aron e Sironneau: nazismo, fascismo, stalinismo...e todas as formas de totalitarismo e fundalismo, inclusive o fundamentalismo econômico do Brasil atual...), pode não vir a termo com as trevas do inconsciente e da violência originária, com o Mal, contra o qual ele luta, como barbárie, ficando no domínio da própria destrudo civilizacional por inoperatividade de propostas que aprofundem a nada bela natureza humana que aqui emerge como Sombra Coletiva e retorno de Dionísio / Pã (Jung e Hillman)... 4 De um modo amplo, o estudante terá seus passos regidos pelos quadros da burocratização da vida social e por uma pedagogia burocrática (Lobrot, Ardoino, Hess), que irá regular seus fatores e modos e estilos relacionais, organizados de modo produtivo e despersonalizado. Lefebvre, no Manifesto Diferencialista , caracteriza esse amplo quadro contextualizador de projeto de redução generalizada articulado pela razão técnica e pela racionalidade técnica e racionalização do trabalho (produtivo e competitivo), apontando-lhes os seguintes traços: redução do conhecer ao conhecimento e do conhecimento à informação (perda da formação, portanto); redução da ação e da reflexão aos esquemas operacionais (saber técnico e tecnologias); redução do possível ao provável e expurgo do imaginário e da afetividade (materialismo, agnosticismo e perda da sensibilidade, assim como da consciência antecipativa que provê às transformações das estruturas fantasmáticas); redução da álea, do risco, do acaso, da desordem complexificante...(neotenia pervertida que permite aqui adentrarem os componentes de destrudo da ação, portanto a angústia, a ansiedade, a agressividade, a violência... postas a serviço de um imaginário
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ANOTAÇÕES SOBRE ASPECTOS TEMÁTICOS...
da ordem e da segurança, que garantirá o sucesso ético-político e econômico através de uma deontologia do corpo produtivo e do discurso da competência); eliminação das diferenças pela repetição (trato destratado do Outro e monotonia / unidimensionalização / homogeneização entrópica da rotina de vida e de trabalho, abrindo caminho inconsciente para as explosões destrutivas da vida nos momentos das passagens ); articulação do projeto tecnocientífico à dominação política ( instinto de dominação e agência/ agentes da tanatocracia). O estudante e o médico, nessa ampla pedagogia burocrática, tornam-se também burocratas e gestores de negócios de saúde, administradores de infortúnios para o qual não há resposta, como mostraram os estudos de Augé, de Herzlich e de Laplantine, para o problema e o sentido do Mal, que estão na origem da Medicina e no trato com os doentes. Mas esse Mal se presentifica, nas molduras civilizacionais, como presença da Morte e do Tempo, ao que se tem que reagir, defensivamente fugir por denegação... E como mostram Jaques e Bastide, as instituições e os institutos são mecanismos de defesa potenciados contra tais fatores anxiógenos, vale dizer, certo conhecimento e certos procedimentos científicos são usados para introduzir um contrapeso contratransferencial à emergência dessa problemática: Devereux, em Da angústia ao método nas ciências do comportamento , mostrou com convicção e peso como as instituições e os saberes são usados nesse sentido sob máscaras científicas, sendo um ritual de evitação da morte , que explodirá como violência e agressividade projetada nos ritos de passagem e de adentramento de pertença que são, por exemplo, os trotes: daí a anomia e a destrudo, em suma, a regência por uma deontologia denegada, e portanto projetada, da morte e do poder tanatocrático. Para enfrentar esses fatores anxiógenos, e as eventuais explosões anômicas do denegado, não só os momentos dessa permissividade denegada são regulados (nos trotes, provas etc.), mas deve haver escudos mais eficientes e constantes: são eles a imagem legada do corpo produtivo e o discurso burocrático da competência. Ambos introduzem as relações impessoais e de dominação como fatores de relação... Os trabalhos de Reich (pedagogicamente desdobrados por Schmidt) mostraram, juntamente com os de Le Breton, como cada sociedade produz a imagem do corpo de que carece, e assim a imagem do corpo com a qual lidamos é uma imagem social do corpo, que é uma imagem do próprio corpo social. Mexer com a imagem do corpo é mexer com a estrutura da sociedade e da cultura. Os trabalhos posteriores de Douglas, peculiarmente interessando a biólogos e médicos, evidenciam que há uma ética social e uma deontologia (que podem ser estratégias de preconceito ), uma moral modelando imagem do corpo como se fosse fato biológico , na realidade sendo coisa social ... por sob a cientificidade, um moralismo defensivo... Assim, tocar na imagem (social) do corpo é tocar na sociedade e na imagem requerida de sociedade que o engendrou; por isso os perigos e as lutas, como Laplantine evidenciou, com os sistemas de etiologia e de prognoses... Ora, sabemos, pelos trabalhos desenvolvidos, que o estudante, o professor e o médico... e o paciente (persuadido pelo discurso da competência...) recebem a imagem de um corpo produtivo, de um corpo em estase libidinal (Reich), mais regido pelas disnomias e
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disfunções que põem a denegada morte como horizonte, do que a imagem de um corpo de amor, de um corpo orgástico, como se expressa Brown. E o discurso da competência (Chauí) será o veículo burocrático, despersonalizador, despótico, sabido (e poderoso) dessa retórica da persuasão e da inculcação... dos valores tanatocráticos, quando professores e médicos se permitem o luxo de se relacionar com o estudante e com o paciente sobre suas razões ... manifestas, porque há uma gama de ocultas que defensivamente permanecem na ocultação... Por isso a tendência é a de deter o saber ... e impô-lo sob a máscara da confiança e da credulidade (não da credibilidade) , mas geralmente sob a violência e agressividade de um silêncio...
Referências bibliográficas GAY, P. A experiência burguesa, da rainha Vitória a Freud: III. O Cultivo do Ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PAULA CARVALHO, J.C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
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Da infância ao amadurecimento: uma reflexão sobre rituais de iniciação
Lucia Helena Rangel1
As classes de idade não são definidas dessa forma por todos por todas as sociedades indígenas. Diversas nomenclaturas remetem para classificações mais detalhadas, designando com termos específicos faixas etárias intermediárias, tais como: crianças que ainda não andam, crianças que andam até os primeiros sinais de puberdade, jovens em processo de iniciação, casados sem filhos, casados com um filho, com mais de um filho, avós com um neto, com mais de um neto. Dado que a variação classificatória é muito grande, adotou-se, neste trabalho, a forma de classificação em três classes de idade para facilitar a exposição.
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Problema comum a todas as sociedades humanas é a passagem da infância para a idade adulta. Pode-se constatar que os processos de socialização e educação das crianças têm como finalidade última a formação do adulto homens e mulheres. Essa afirmação óbvia, não é, por outro lado, banal; refere-se ao fato de que a formação da pessoa requer de cada sociedade um conjunto de práticas sociais associadas às referências culturais em vigor, que implicam na eleição de estratégias e objetivos a respeito da pessoa que se quer formar. O que é ser homem, mulher, cidadão, trabalhador? Para que se forme o ser social, as sociedades despendem grandes esforços e a questão ocupa uma dimensão bastante significativa na vida em comum. Nas sociedades estratificadas, os adultos não serão somente homens e mulheres; serão cidadãos, com maior ou menor poder de interferência política, exercerão profissões variadas, terão poder aquisitivo diferenciado em conseqüência de pertencer a uma determinada classe social, como é o caso, por exemplo, nas sociedades capitalistas. Já em sociedades não estratificadas em classes, os adultos serão homens e mulheres em pleno exercício de suas funções sociais, produtivas e reprodutivas. Entre os povos indígenas que vivem em território brasileiro, por exemplo, pode-se dizer, de forma genérica, que o modelo de sociabilidade está baseado, de um certo ponto de vista, em uma correspondência entre o ciclo da vida e as funções e papéis exercitados pelos indivíduos. Desse modo as etapas etárias - infância, maturidade e velhice equivalem a posições sociais bem definidas2. As categorias de homens e mulheres maduros podem ser identificadas pelas funções e status mais importantes que assumem: casamento, procriação e produção. É possível afirmar que a maior parte do trabalho social realizado
1 Antropóloga, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP. Conselheira da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Assessora do Conselho Indigenista Missionário. E-mail: lurangel@pucsp.br
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cabe a essa categoria de indivíduos: caça, pesca, agricultura, coleta, construções, fabricação de instrumentos e utensílios, objetos de adorno e cerimoniais, preparo e cocção de alimentos. Crianças e idosos também trabalham, mas em intensidade diferenciada, de acordo com sua capacidade. Isso quer dizer que o esforço despendido pelos adultos é o elo de um sistema de reciprocidade cujo sentido é isentar do trabalho os mais velhos e formar a força de trabalho que assumirá a carga mais intensa no futuro. Aos indivíduos mais idosos reserva-se um papel especial relativo à função da palavra forte; sua sabedoria é o continente da experiência da vida, dos ritos, dos mitos, dos valores e das crenças. Sonhos, visões, opiniões dos mais velhos constituem a referência de respeito adotada por todos os membros de uma comunidade. Na sociedade Jamamadi, por exemplo, entoam cantos, contam mitos e histórias de aventura, especialmente dirigidos às crianças, deixando transparecer uma atitude intencionalmente educativa. Sua palavra é forte no âmbito das decisões políticas tomadas pelos adultos. Os velhos são aqueles que viveram mais, por isso sabem mais, e essa condição é fundamental nas sociedades baseadas na tradição oral. As crianças são seres em formação, devem aprender as coisas da vida e preparar-se para os papéis sociais que assumirão no futuro. A socialização das crianças é fortemente marcada pelo treinamento dos papéis e funções referentes ao sexo ao qual pertencem. O trabalho social é dividido entre os sexos, de modo que tarefas masculinas e femininas complementam-se nas relações de produção. Há também marcas distintas no desempenho das funções rituais, na responsabilidade educativa e em todos os âmbitos da vida social, o que faz com que muitos antropólogos concordem com a afirmação de que a esfera doméstica é domínio feminino e a esfera pública, domínio masculino. Mesmo que não haja uma fragmentação tão excludente entre o público e o doméstico, a divisão sexual do trabalho e das funções rituais estão no centro da dinâmica da vida social. Os exemplos são abundantes, mas para citar os mais comuns, em diversas sociedades aos homens cabem tarefas como caça, pesca, construção de casas, derrubada de mato e limpeza de terreno para plantio e às mulheres colheita, cocção de alimentos, corte de lenha, coleta, carregar a tralha nos deslocamentos da família. As mulheres Jamamadi são donas das roças, os homens fazem as roças para suas mulheres. Em diversos momentos do cerimonial Xavante as mulheres não podem participar, sequer podem ver de longe o desenrolar do ritual sob pena de serem castigadas por espíritos terríveis. Em outros momentos homens e mulheres cooperam no trabalho e participam de rituais coletivamente. O processo educativo das crianças é, portanto, um treinamento constante e contínuo de aprendizagem das tarefas e do modo de ser masculino ou feminino. Ao lado da assimilação paulatina de valores e referências culturais mais gerais, as crianças são treinadas pelo método da imitação. Não há formalidade no processo educativo, a criança imita o adulto, a menina a mãe e o menino o pai, fazendo o que ele faz. O pai confecciona um pequeno arco e flechas para seu filho, que passa a utilizá-lo desde cedo para que possa adquirir habilidades de caçador. As crianças brincam de representar as histórias míticas, rindo muito e, por vezes até debochando. Nessas brincadeiras imitam os adultos, o velhos, os animais e os espíritos, em suas maneiras de falar, em suas posturas corporais, e tudo é motivo de riso. E
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DA INFÂNCIA AO AMADURECIMENTO...
assim treinam e aprendem o que devem ser e fazer quando forem adultos. O sentido da educação é a formação do ser independente. Um homem ou uma mulher deve saber todas as tarefas e adquirir todas as habilidades que lhe são próprias. A responsabilidade para que, no futuro, uma criança seja um adulto pleno é da família. Não há, portanto, transferência de funções para nenhuma instituição externa, formal ou disciplinar. Ao contrário, o tipo de vida próprio dessas sociedades exige que o indivíduo seja criativo, saiba resolver problemas com presteza, saiba retornar para casa depois de um dia na mata, saiba defender-se de animais que atacam, saiba construir e fabricar o que quer que seja para sua comodidade e de sua família, conheça plantas, animais e fenômenos naturais, e tenha bem claras as referências culturais de seu povo porque um dia, em idade avançada, serão os pilares da memória coletiva, mesmo que recriada em função das mudanças que a história impõe. A formação da pessoa adulta é o foco do processo de socialização e educação; e isto não é exclusividade das sociedades indígenas. Cada sociedade elege o modo e o momento de transformar uma criança em um ser adulto. Em nossa sociedade construímos um padrão de sociabilidade que passou a incluir, em tempos recentes, uma fase intermediária chamada adolescência. Essa etapa da vida não corresponde, necessariamente, a uma fase biológica definida; criamos, na verdade, uma fase psicológica cuja finalidade é adiar a transformação da criança em adulto. Os avós das pessoas adultas de hoje casavam-se com idade entre 13 e 18 anos; muito comum era o casamento entre uma moça de 15 e um rapaz de 18 anos. A adolescência tem sido cada vez mais ampliada para certas camadas sociais, em nossa sociedade. O retardamento do início das funções produtivas é um dos fatores mais importantes que explicam o fenômeno; quer seja pela falta de empregos, quer pelas exigências de formação profissional cada vez mais especializada, as camadas mais altas da hierarquia social dependem da instituição escolar para alongar a adolescência de seus filhos, deixando-os no limbo da indefinição juvenil, às vezes por mais de dez anos. Por outro lado, nas camadas sociais mais baixas o fenômeno inverte-se, exigindo de crianças de 7, 10 ou 12 anos que abandonem a escola para trabalhar, porque precisam contribuir para o orçamento familiar, mesmo que seja em troca de salários irrisórios. Esses exemplos rápidos mostram que nossa sociedade não possui critérios nítidos para promover a passagem da infância para a idade adulta, porque a adolescência é vivida de maneira diferenciada pelos jovens de classes sociais distintas. Ao que tudo indica, há um padrão psicológico idealizado que faz com que todos os jovens sejam tratados como imaturos, irresponsáveis e em crise constante; mas não há um padrão sociológico comum, que estabeleça obrigações, direitos e atividades típicas dessa fase intermediária. Existem cerimônias que cumprem funções rituais, mas que, no entanto, não marcam definitivamente a passagem: os jovens passam por diversas formaturas, são calouros e veteranos em duas ou três etapas da trajetória escolar, tiram documentos, votam, prestam exames de habilitações, comemoram os aniversários de 15 e 18 anos, compram ou ganham o primeiro sutiã, a primeira camisinha e, tudo isso, pode ser mais ou menos ritualizado nos contextos familiares e escolares. O fato é que não existe uma referência clara a respeito do marco temporal de passagem. É comum que o jovem clame aos pais que já possui 18 anos e, portanto, pode viajar sozinho;
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porém, ainda se deixa levar de automóvel até para ir à escola. A indefinição prolonga-se, a dependência desdobra-se por tempo bastante elástico. Isso mostra que em cada época e em cada lugar há uma maneira específica de marcar o momento de passagem para a idade adulta. O casamento, a procriação e as responsabilidades produtivas, somados a outras características de status, obrigações e direitos, definem essa categoria de pessoas que constitui a força maior da reprodução da vida social. O problema é o estabelecimento, por parte da sociedade, do quando e do como se forma um adulto. Em sociedades, como a brasileira, que não consegue firmar com todos os seus membros o contrato social, porque bloqueia a muitos o acesso aos recursos e ao trabalho, dificilmente poderia ter um marco preciso para a promoção do adulto. Nas sociedades indígenas, a adolescência não é uma fase nem social nem psicológica, porque não é necessária. O corpo dos jovens está apto para a procriação e em seu processo educativo já treinou a aquisição das habilidades práticas pertinentes ao seu gênero sexual; portanto, cabe à sociedade promover sua transformação em adulto. Neste sentido, para completar sua socialização, essa passagem é realizada através de um ritual de iniciação que é um dos mais importantes no ciclo cerimonial. As marcas corporais femininas, a primeira menstruação especialmente, são o indicativo do momento que o ritual deve acontecer. Os rapazes, cujas marcas corporais são menos nítidas, mas que regulam em idade com as meninas que nasceram em período próximo a eles, são identificados por sua estatura, produção de esperma e, muitas vezes, entram em processo ritual muito cedo a partir de nove ou 10 anos. Os rituais de iniciação dos jovens podem durar de um a cinco anos, dependendo de como cada sociedade elabora o processo3. Esse é um momento delicado, a mudança de estado não tem retorno. Ao completar o ciclo ritual, a criança será adulta, pronta para casar, procriar e realizar a reprodução social. Em muitos casos, os rituais iniciáticos dos jovens encerram-se com a cerimônia de casamento. Os rituais de iniciação das mulheres, em geral, implicam um longo período de reclusão, durante o qual as moças quase não saem de casa, chegando até a perder a cor bronzeada da pele por falta de sol; ou saem da reclusão, desbotadas e com os cabelos longos, cobrindo o rosto. Durante um tempo que pode durar de seis meses a dois anos, ou até mais, a contar da primeira menstruação, a moça é recolhida em um espaço reservado dentro de sua casa (um biombo pode ser a delimitação desse espaço), de onde sairá apenas para satisfazer necessidades fisiológicas; é o tempo de aprender a lidar com sua menstruação, de fixar os tabus menstruais, alimentares e outros, repassar conhecimentos e confeccionar os objetos femininos, como se fosse o seu enxoval: redes de dormir para ela e o futuro marido, cestos de carregar, panelas de cerâmica, colares próprios das mulheres adultas, dependendo sempre de qual seja a tradição cultural. Ouvem muitas histórias, conversam com as mulheres mais velhas, enfim, preparam-se para as futuras responsabilidades. Os rituais de iniciação masculinos compõem-se, especialmente, de um conjunto de provações físicas e emocionais, fixação de conhecimentos, valores, crenças etc. Na sociedade Xavante, por exemplo, existe a casa dos solteiros para onde se dirigem os meninos em processo iniciático. Essa casa pode estar localizada no pátio da aldeia, portanto, à vista e ao alcance de
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Nas referências bibliográficas estão indicadas obras que descrevem cuidadosamente os processos rituais peculiares a algumas sociedades indígenas que habitam o território brasileiro.
todos, mas na qual está proibida a entrada das mulheres, que só vão lá para levar alimentos. Durante a iniciação, os meninos podem freqüentar a casa de sua mãe, mas do ponto de vista simbólico, a permanência na casa dos solteiros representa a separação entre o filho e a mãe e, portanto, o preparo para o relacionamento com outra mulher, com quem terá filhos e partilhará responsabilidades familiares. A formação do homem adulto e sua incorporação no universo masculino exige diversos testes de virilidade, força física, domínio das emoções, em particular do medo, e constante aprimoramento das habilidades básicas que o trabalho requer, assim como a assimilação das regras e valores culturais. Desse modo, os meninos passam por uma série de provações que podem incluir atividades, tais como: passar uma ou mais noites sozinho na mata, levar muitas picadas de formigas, permanecer dentro da água, movimentando os braços por longo período de tempo, pisar em brasas, correr durante dias consecutivos, inscrever tatuagens, perfurar partes do corpo, submeter-se a diversas formas de dor e medo, realizar caçadas difíceis. Enfim, a variedade dessas atividades é grande; cada povo elege algumas, mas são consoantes com o seu modo de vida e referem-se à inscrição, no corpo, do universo da cultura. Um outro aspecto importante de ser apontado é que esse processo diz respeito à construção da personalidade do indivíduo. Homens e mulheres não são categorias indiferenciadas, além das características gerais advindas da divisão sexual do trabalho, pertencem a grupos familiares distintos, cada um com ancestrais míticos e totêmicos próprios que conferem aos indivíduos do grupo um modo de ser especial. Os heróis e/ou totens transmitem também herança de comportamento e de temperamento. Desse modo, cada indivíduo elabora sua idiossincrasia a partir das referências de gênero, família e características pessoais, além, evidentemente, das relações de alteridade em cada um desses níveis. Os rituais de iniciação, relativos à mudança de estado da infância para a maturidade, praticamente, encerram o processo de educação básica. O adulto não está pronto e acabado neste momento, seu processo de socialização é contínuo, até a morte; é preciso saber viver e morrer, saber envelhecer e assumir papéis e funções diferenciadas ao longo da vida, porém, o momento de passagem para o estado maduro é crucial, dado o sentido social que é atribuído a essa categoria de pessoas. O adulto deve ser independente, capaz de desempenhar todas a tarefas e resolver todos os problemas que se lhe apresentem em situações esperadas ou inesperadas, evidenciando-se relações de dependência e complementaridade apenas entre homens e mulheres. A única especialização presente diz respeito às funções do xamã ou pajé, ou de alguns indivíduos detentores de habilidades espirituais especiais, que não são de domínio generalizado, porque não são aptidões adquiridas, mas configuram-se como dons atribuídos por poderes
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sobrenaturais. Enfim, é possível afirmar que esse é um modelo de sociedade na qual o vínculo de pertencimento, dado pelo nascimento ou pela criação de um indivíduo dentro do grupo, é o único canal de participação na vida social e de acesso a todos os bens e recursos disponíveis, cabendo ao indivíduo o desenvolvimento de habilidades para a obtenção de comodidades, bens e prestígio. Ninguém, ou alguma instituição, fará nada por ele, mas, também, não haverá nenhum impedimento para que conquiste a posição almejada. A não ser quando se trata de posições políticas de prestígio que dependem do estabelecimento de alianças e do consenso coletivo. Talvez, por isso mesmo, os rituais de iniciação sejam tão rígidos e, no caso masculino, as provações apresentem-se com certa dose de crueldade ou violência, ao menos aos nossos olhos que estranham as culturas alheias. Esses rituais são comandados pelos homens mais velhos, pelos pais, tios, irmãos, primos ou padrinhos, cujos papéis são diversos durante o período iniciático. Os mais velhos estão sempre atentos, fazendo-se respeitar quando julgam estar sendo excessivas as exigências com os iniciados. Termino esta reflexão contando um caso que pode nos aproximar um pouco dos significados do mundo indígena. Em uma aldeia do povo Jamamadi não se realizam mais os ritos iniciáticos da forma tradicional, mas uma série de acontecimentos ajudam a revelar o sentido da educação e da socialização dos meninos: num certo dia, um menino que devia ter, na ocasião, 12 anos mais ou menos, pega uma canoa sozinho e rema igarapé acima. O Igarapé Capana, afluente do rio Purus, é profundo, cheio de curvas fechadas e com muita correnteza. O PEDRIM, 1999
menino saiu por volta do meio-dia e ao final da tarde ainda não havia retornado. Seus pais começaram a externar preocupação; passa o tempo, a noite se aproxima e a apreensão toma conta de todos, mas ninguém faz nada, ninguém sai atrás do menino, só esperam. Não há clima de desespero, só expectativa e preocupação; compasso de espera. A noite cai e, de repente, ouve-se um grito de comunicação que ecoa da direção do igarapé. Contentamento geral, todos correm para a margem; é o menino que chega, ouvindo a fala eufórica do pai - ele conseguiu, ele conseguiu! . O menino é recebido com gritos e ovações, está se transformando num homem. O pai passa os dias seguintes contando orgulhoso a aventura do filho, repetindo sempre - ele conseguiu .
Textos para referência: GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977. JUNQUEIRA, C. Os índios de Ipavu. São Paulo: Ática, 1978. MAYBURY-LEWIS, D. A sociedade Xavante. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984. VIDAL, L. Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira: os Kayapó-Xicrin do rio Cateté. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1977. PALAVRAS-CHAVE: ritos de passagem; sociedades indígenas
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O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia*
Renato Janine Ribeiro
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Não há desculpas para o assassinato, e o caráter fútil que ele assume no trote é particularmente imperdoável. Mas há outros aspectos a considerar. Não defendo o trote, porém lembro que ele é especialmente forte e chocante em Escolas de Medicina, que lidam com experiências humanas radicais, como a morte, para a qual os estudantes nunca foram preparados. Ou seja: a mera proibição do trote, em suas modalidades violentas, embora mais que correta, não vai além da superfície de um problema crucial, que diz respeito ao modo como nossa sociedade pensa a sua relação com o insuportável, o horrível, e delega-a a pessoas que não têm ainda maturidade emocional, nem formação suficiente, para lidar com esses problemas. Pois depois de um ou mais anos de intensa dedicação aos estudos, quase sem se afastar dos livros ou do cursinho, jovens de vinte anos de idade se defrontam nos cursos de Medicina com a dor extrema, o sangue, a morte, o desespero de pacientes e parentes. São muito novos para saber lidar com isso, mas sobretudo não tiveram, nos cursos que fizeram, do ensino fundamental ao ensino médio, nem nos cursos que farão, na universidade, nem provavelmente em suas famílias, quase nenhum aprendizado sobre os aspectos psicológicos e humanos com que vão tratar.
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Algumas idéias deste artigo foram expressas, em versão bem mais curta, na Folha de São Paulo, em 7 de julho de 1999, sob o título O trote e a dor . 1 Filósofo, professor do departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
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Nossa sociedade afastou a morte de seu convívio. Hoje, só por desventura se morre em casa. Para morrer, as pessoas são confinadas num ambiente neutro, hospitalar. Essa questão, aliás, foi analisada por vários historiadores, a começar por Philippe Ariès, que mostrou, no detalhe, como a morte foi sendo repelida do cotidiano, como deixou de fazer parte da vida, para ser algo que com ela entra em completa contradição e que, portanto, com ela não pode conviver. Um ponto de particular interesse para as profissões que lidam com a saúde foi a medicalização, melhor dizendo, a hospitalização da morte, que eliminou quase por completo a idéia de que se possa morrer em casa. As famílias minimamente abastadas praticamente sentem horror de ter, em sua residência, um aposento no qual alguém morreu. A morte, mesmo a não violenta, é, assim, deportada para um espaço asséptico curiosamente, o mesmo que seria o da recuperação da saúde, pois o hospital serve assim para todas as pontas em que a vida entra em contato com seus limites: o parto, a doença de que somos tratados e curados, a morte. Mudou também a idéia de boa morte . Não são poucas as igrejas do período colonial dedicadas a ela. Séculos atrás, no auge da religião cristã, era boa a morte de quem a sentia vir, a tempo de se despedir da vida, do burburinho, dos entes queridos. Hoje, ao contrário, elogiamos a morte que chega sem avisar. É verdade que faz sofrer os familiares, que não tiveram tempo de se preparar para a perda, mas poupa o falecido, que não passou por anos de exames, de internações, de degradação. Evidentemente, quando a morte era passagem para um Além mais valorizado (pelo menos em tese) do que este vale de lágrimas , o ideal seria que cada um tivesse o tempo de se arrepender do que fizera de mal, de fazer as pazes com as pessoas e os sentimentos. Por isso era bom ver a morte chegar: ela permitia o tempo da serenidade. Mas hoje, numa sociedade bastante laicizada, parecemos preferir a morte súbita. Não imaginamos suportar, como doentes, a lenta deterioração do corpo e da vontade, nem, como parentes, esforços e dispêndios cada vez maiores em troca de cada vez menos saúde. Em suma, nossa sociedade priorizando o sucesso, a maximização dos ganhos não sabe o que fazer da morte, da grande perda. E como pode então querer que jovens pouco experientes saibam lidar com ela? Note-se que não estou defendendo a restauração dos valores ditos morais, de uma religião talhada na medida para pôr ordem nos espaços que estão sendo trabalhados pela anomia ou a dúvida. Não pretendo defender a velha moralidade, até porque, primeiro, ela coonestava enorme hipocrisia, segundo, para se sustentar ela precisava de uma crença no absoluto e num outro-mundo feito de castigos e punições, ou, pelo menos, de recompensas: sua base era, assim, bastante interesseira. O que levanto como problema é outra coisa: estamos diante de um problema seriíssimo, e como resolvê-lo? Restabelecer a velha moral, a antiga religião, é solucionar os efeitos sem mexer nas causas. A causa é essa experiência do horror que nada, repito, nada permite esconder (um termo técnico poderia ser colmatar , obturar, tapar). Ora, a tecnologia de que dispõem os acadêmicos de Medicina para lidar com a dor enorme é simples e velha: invertê-la, carnavalizá-la, brincar com ela. Aliás, o mesmo vale para os alunos de Direito, que também entram em
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O TROTE COMO SINTOMA...
2 Refiro-me ao livro de Júlio Cortázar, Histórias de cronópios e famas, no qual aparece esse tipo de pessoas, as esperanças , que acreditam piamente no bem, na boa conduta, na produção de bons resultados mediante as boas maneiras e o bom comportamento.
contato com o sofrimento alheio: num caso, a doença, no outro, a injustiça, fazem os jovens manter uma relação com os limites que nosso físico ou a organização de nossa sociedade, em suma, nossa natureza ou nossa cultura, colocam para o que seria bom, justo, adequado. A dor extrema presenciada assim nos põe diante da falência de tudo o que é ideal ou ilusão. É como se ela devastasse nosso lado Poliana , nosso lado (diria Cortázar) pequena esperança 2 . Insisto: nada prepara ou preparou o jovem, ou dito de outro modo, já que todos nós somos ou fomos jovens, quase nada nos preparou para esse trato com o horrível. A falha está em todos nós. Por isso, na falta de maior sofisticação afetiva, lida-se com a dor extrema do outro mediante as técnicas default que foram sendo gestadas ao longo de milênios, e que visam a excluí-la, a construir em torno de nós uma espécie de cordão sanitário que a impeça de irromper em nossa psique, de infectar-nos, que portanto, assim, conjure seu lado contagioso (de propósito, utilizo imagens da linguagem médica, para mostrar como a dor é vivida como um mal. Ou seja: um fenômeno que surge na relação entre pessoas, de ordem portanto psíquica, sociológica ou antropológica, passa a ser tratado como um problema quase biológico, que requer aparentemente soluções não no plano dos sentimentos e de seu trato, mas no de ações práticas). A carnavalização foi muito estudada na Antropologia, e na história das mentalidades, estes últimos anos. Ela consiste numa troca de posições entre o sério e o burlesco, entre o trágico e o cômico. Assim, no carnaval, o pobre se torna nobre, o negro, aristocrata, o miserável, dançarino de primeira. O que está abaixo sobe. Pela mesma lógica, o que está acima pode descer isto é, ser desqualificado num ritual de catarse. Assim, se vamos além de nosso carnaval brasileiro, criação esplêndida de nosso país e do século XX, para o que foi o carnaval ao longo dos tempos, notamos a grande freqüência com que condutas são condenadas: geralmente, condutas de poderosos, em descompasso com um sentimento público. Por exemplo, na França do século XVI, o charivari era o modo pelo qual os rapazes de pouco dinheiro zombavam de velhos que desposassem mocinhas. Estas eram objeto de desejo dos moços da mesma idade que elas, mas, como quem tinha dinheiro eram os mais velhos, acabavam sendo casadas com estes últimos; o sentimento, bastante difuso, de ser isso injusto, se exprimia mediante uma série de zombarias, dirigidas ao marido. Carnavalizar o existente era, assim, um modo de denunciar a injustiça, a desordem, o errado. Era um modo, numa sociedade em que a injustiça social era regra, de expô-la à execração e, não se podendo mudar a ordem das coisas, de pelo menos dar vazão à raiva, à insatisfação, à oposição a isso. Há um ponto comum entre esses carnavais da tradição cultural pelo menos ocidental, e as brincadeiras de péssimo gosto dos acadêmicos das profissões mais tradicionais, ou pelo menos dos de Medicina e Direito. Quando, por exemplo, se embebedam, ou procedem a trotes violentos, ou fingem pôr fogo em pessoas dormindo, tudo isso não nasce de um mero sadismo dos jovens. Conscientemente ou não (quase sempre, não), o jovem dá continuidade a uma longa tradição pela qual a única forma de lidar com o horror, com aquilo que ele mesmo no fundo tem dificuldade de aceitar, é
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mediante tais brincadeiras. Se, por exemplo, ele vai salvar vidas, mas no dia a dia tem que manifestar presença de espírito e mesmo frieza para cuidar de uma ferida ou proceder a uma operação, ele precisa excluir de si a dor enorme que lhe é transmitida, e o procedimento tradicional para tanto é o de brincar com isso. Até aí, que ele brinque, que faça piadas, não é em si nada mau. Não é diferente do que fazemos em nossos momentos de descontração, em que por exemplo falamos mal do chefe a quem admiramos, ou da companheira a quem amamos, para poder reequilibrar um descompasso que veio de algum excesso de trabalho, de alguma briga perfeitamente administrável. No caso em pauta, variações em torno do humor negro, do macabro, servem para exorcizar a dor extrema que, evidentemente, afeta o jovem que a vê e de certa forma a compartilha. Antes de prosseguir, vale a pena lembrar que a nossa sensibilidade oficial em face da dor alheia é relativamente nova. Quase podemos datá-la de Rousseau e de sua tese, sustentada no Discurso sobre as origens da desigualdade entre os homens (1754), segundo a qual o primeiro movimento de nosso coração, nosso primeiro sentimento, é a piedade , que também poderíamos traduzir como compaixão . Tratase do sentimento que nos faz sentir, com o outro, a dor que o afeta. Aliás, sentimos isso, diz Rousseau, em relação a qualquer ser vivo: não apenas seres humanos, mas também animais. Mesmo que não conheçamos o outro, a dor que o toca igualmente atinge a nós. Essa idéia é nova, em seu tempo. Norbert Elias, em seu O processo civilizador, sobretudo no vol. I 3 , relata o prazer que tinham as multidões, por exemplo no século XVI, assistindo a execuções ou a suplícios de modo geral. Assim, quando faltassem condenados para o grande espetáculo popular que era uma lenta e dolorosa morte no patíbulo 4 , sucedia de uma cidade comprar alguns presos de outra povoação que os tivesse em excesso, ou até mesmo de animais domésticos serem mortos no cadafalso. Assistir à dor alheia era fonte de prazer. O problema, penso, é que talvez não tenha deixado por inteiro de proporcionar esses níveis de gozo. Nietzsche, na Genealogia da moral, fala com bastante lucidez do prazer de infligir a dor ou de vê-la infligida (e lembro que Nietzsche não defende tal prática, apenas observa a sua enorme ocorrência é verdade que em tempos idos, mas sua leitura pode aplicar-se a nossa época também). Mesmo as execuções só deixaram de ser feitas em público há relativamente pouco tempo, - na França, quando terminava a década de 1930. Até então, eram espetáculos populares. Em nossos dias, assim, o que acontece é que não temos mais a duvidosa coragem de assumir que sintamos prazer ao ver a dor alheia. O espetáculo do sofrimento infligido continua existindo basta ouvir os programas matutinos das rádios, em que supostamente se denunciam criminosos mas na verdade se tem prazer em ouvir a narração de sua crueldade ou de sua morte, ou olhar as estantes de fitas de vídeo nas locadoras: mesmo aquelas, como a Blockbuster, que pudicamente se recusam a locar sexo explícito, não sentem vergonha em destacar filmes de violência. Finalmente, no caso da
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3 Trad. bras. por Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2.ed, 1994.
4 Sobre a técnica que consistia em infligir o máximo de dor pelo máximo de tempo, adiando sempre a morte a fim de aumentar o caráter exemplar do sofrimento mostrado ao público, ver Vigiar e Punir, de Michel Foucault.
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5 Deste ponto tratei em meu livro A etiqueta no Antigo Regime, São Paulo: Moderna, 1999.
televisão, não se pode comparar a grita constante contra programas em que se mostra sexo, e a complacência bem maior demonstrada em face da violência. Contudo, todo esse prazer se disfarça, geralmente sob capa moralista. O que acontece, em suma, é que nossa sensibilidade oficial, assumida de público, é rousseauista de solidariedade com os desvalidos mas por baixo dela continua pulsando uma sensibilidade de prazer com a dor alheia, porém que hoje necessita, para se expressar, de boas justificativas. O homem do século XVI tinha prazer imediato ante a dor alheia sem necessidade de justificar-se. Hoje, contudo, depois de duzentos anos de direitos humanos, sabendo que existe a igualdade pelo menos de direito entre todos nós, geralmente se pede auxílio a alguma boa razão para se justificar o prazer que se sinta com a dor do outro. No caso do trote, a situação é ambígua. Por um lado, aplica-se dor sem nenhuma razão justificável ou perdoável: fazer alguém sofrer porque é nosso júnior é um contra-senso, porque o novo, o menor deveria ser protegido, jamais humilhado, pelo veterano. De tal ponto de vista, o trote dá continuidade a essas duas antigas tradições, a da carnavalização e a da dor infligida por prazer, a primeira delas mais ou menos rebelde, a segunda bastante conformista. Há mais um fator, porém. Como é injustificável infligir dor se não for todo médico o sabe como meio econômico para mais adiante suprimir uma dor pior, ou seja, como a dor aplicada apenas por prazer é inadmissível, em especial na profissão que um dia jura por Hipócrates, o sadismo assim expresso culturalmente precisa localizar-se num período bastante específico da vida, ou pelo menos do ano, e codificar-se em rituais coletivos, mais ou menos anônimos, de acumpliciamento generalizado. Note-se que não estou acusando de sádicos, pessoalmente, os que aplicam trotes; podem muito bem sê-lo, mas o que me interessa não é sua psique ou caráter individual, e sim o sentido social de seu comportamento. O sadismo eventual, mas bem datado, previsto no calendário, promovido de público e com um certo tom de brincadeira, constitui assim um ritual de descarga coletiva, de esconjuramento do horror que todos presenciam. Evidentemente, tais condutas se deparam com problemas mais e mais intensos. O primeiro é que afrontam uma consciência cada vez mais difundida da universalidade dos direitos, do respeito à pessoa humana etc. O segundo é a presença das mulheres no ambiente acadêmico. Os rituais de trote são muito machistas em sua origem e natureza. Valorizam um tipo de comportamento comum entre machos pouco elaborados, que dão vazão a todas as funções ditas baixas do corpo (por exemplo, arrotos, vômitos, gases) e que o fazem justamente, eis sua razão, para poderem assumir o resto do tempo um padrão de comportamento elevado , de registro educado, bem-pensante. O problema é que essa válvula de escape vai ficando difícil quando o macho se defronta com o sexo feminino: as mulheres, ao longo do segundo milênio da era cristã, foram enquanto objeto de desejo e destinatário de um discurso da conquista sexual a principal razão para se conter tais atos machistas e se refinar a conduta masculina 5 .
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Finalmente terceiro ponto , a tecnologia da carnavalização repousa numa espécie de contradição, ou de compromisso. Ela inverte as posições habituais da sociedade, e assim denuncia a injustiça, a desigualdade, o erro. Desse viés, é rebelde e mesmo subversiva. Mas só o faz em ambientes localizados, em datas ou momentos precisos e, fazendo-o, quase sempre funciona apenas como exutório para um descontentamento que assim se sublima, que assim consegue uma satisfação imaginária ou simbólica, mas não se converte em ação que modifique, efetivamente, o que causa de fato o descontentamento. Eis o problema de toda carnavalização e, no caso, do trote enquanto válvula de saída para a dor insuportável: ele nunca enfrenta o problema para valer. Precisa ser reposto, ser repetido, o tempo todo. E, como se aceita que o estudante de Medicina ou Direito pratique o trote, que viole mesmo a lei e a moral para descarregar a dor que nele foi sendo introjetada, mas tal conduta é inaceitável para o médico ou advogado uma vez formado, a conseqüência disso é apenas transferir para a profissão inteira um problema que deixou de ser resolvido ou, sequer, de ser pensado no momento devido. Explico-me. O espetáculo da dor física ou mental, no caso do médico, e da injustiça social, no do advogado, é um dado de partida. Pode, o jovem veterano das faculdades de Medicina e Direito, desforrar-se nos calouros da dor que ele próprio sente, e que além do mais sente como uma espécie de traição às promessas que imaginou receber dos mais velhos (vai exercer a sublime missão de cuidar dos doentes, dos aflitos, dos perseguidos... ). Mas, formado, ele não terá mais o direito de vingar-se nos mais novos, e no entanto continuará sentindo essa dor porque a limitação do trote (por ser carnavalização) é que ele nunca resolve o problema na sua raiz, mas apenas encena sua suspensão em seus efeitos. Para voltar às imagens médicas, não passa de um anestésico. Com o passar do tempo, o máximo que se oferece ao profissional de Medicina ou Direito é acostumá-lo ao espetáculo do insuportável. Quatro, cinco anos infligindo trotes ou praticando brincadeiras idiotas provavelmente o deixarão mais ou menos blasé, ou insensível na aparência à dor e à injustiça com que se defrontou. Ele se tornará um conformista, integrado na ordem social que gera ou multiplica dor e injustiça, e levará a vida adiante. Mas, evidentemente, isso o corroerá por dentro. Seria bem interessante um trabalho de pesquisa que fizesse um follow-up dos profissionais dessas duas grandes e importantes áreas, verificando como o fato de não se trabalhar adequadamente a dor compartilhada acaba tendo efeitos pessoais e sociais bastante negativos. Essa é a questão, que vai além das condenações retóricas que criticam o varejo do trote e esquecem o atacado, isto é, os problemas colocados no caso da Medicina quando se procede à socialização de um infinito de dor. Se queremos pôr fim ao trote, ou torná-lo civilizado, social, precisamos antes disso pensar nos modos como nossa sociedade terceiriza o cuidado com o insuportável. Pois, na verdade, o eixo do problema é que a sociedade evita lidar com certas experiências-limite do ser humano, e delega-as a especialistas, os quais, porém, ela não se preocupa em preparar adequadamente. Pior, o que ela lhes atribui, como papel, é tratar o ser
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O TROTE COMO SINTOMA...
6 Ver seu livro A condição humana. Rio de Janeiro: Salamandra; São Paulo: Edusp, 1981.
humano estritamente como coisa; desse ponto de vista, aliás, tudo se oferece em termos de facilidades; até na pesquisa acadêmica e científica se prefere uma abordagem que considere o humano como bios, como vida (o grande exemplo disso é o projeto Genoma), mas que deixe de lado o fato de que este ser somos nós, de que não só somos dotados de consciência como, mais importante, o pesquisador ou o médico é da mesma espécie que o pesquisado ou o paciente. Enquanto outros objetos da ciência são, sempre, apenas objetos, nós, e apenas nós, somos tanto objeto quanto sujeito e já bastaria isso para perturbar as certezas que a pesquisa assim adquira a nosso respeito. Uma distinção grega, retrabalhada por Hannah Arendt 6 , é aqui oportuna: refiro-me à diferença entre fabricação e praxis. Trata-se de distinguir dois modos de ação do ser humano. Um destes consiste em fabricar objetos, e chama-se, em grego, téchne, de que provém a palavra técnica . A fabricação supõe completa passividade do objeto assim constituído. Porém, há outro modo de agir, que em grego chama-se praxis, palavra que utilizamos na linguagem culta num sentido próximo ao de prática, mas que designa especificamente a ação sobre aqueles que também agem. O verbo prattein significa agir sobre quem igualmente age. A praxis não é, pois, uma prática qualquer; não é fabricação; é a prática que incide sobre os humanos, que também agem e com isso constróem extensa e complexa trama de ações e interações. Ora, todo o problema com que lidamos é que o sistema em que vivemos, quer nos hospitais, quer na universidade e mais além, vê muito mais sentido em fabricar do que em agir. Transpondo isso para a nossa questão do trote, veremos que há maior disposição em lidar com o ser humano enquanto alvo de sucessivas intervenções clínicas e cirúrgicas, as mesmas grosso modo que incidiriam sobre qualquer outro ser vivo, do que em considerá-lo na complexidade de sua psique, na sua capacidade de agir e reagir. Sabe-se com que dificuldade certos direitos dos pacientes, como o de ter acesso a sua ficha médica, vão sendo conquistados. O problema crucial é praticamente um só: nas áreas profissionais vive-se muito melhor o monólogo que o diálogo, e é essa postura enviesada que perturba não só o doente, a quem se nega a interlocução, mas o próprio médico (ou o advogado), cujo provável desamparo ou mesmo desespero ante a dor alheia é até mesmo desprezado, como sinal de fraqueza, em vez de ser trabalhado, em busca de uma desejável humanização. Mas isto impõe duas tarefas. A primeira consiste em romper a distância, ainda enorme, que separa nossa consciência ética expressa numa sensibilidade rousseauista da compaixão e dos direitos humanos de uma reação afetiva mais ou menos automática, mal elaborada porém extremamente comum, que se deleita com a dor alheia ou pelo menos a tolera. Insisto, porém, que esta tarefa não se cumpre apenas com exortações à boa vontade, ou pregações religiosas. É preciso ir fundo, e pensar quais são os fatores sociais e psicológicos que reforçam a aposta no sofrimento. Prédicas e campanhas são insuficientes, e mesmo bastante duvidosas, porque confortam as pessoas na idéia de que basta reintroduzir alguma educação moral para pôr termo aos excessos, por exemplo, do trote. Ora, o problema,
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como argumentei, não está no exagero ocasional, e sequer no trote enquanto tal, mas nele enquanto sintoma de processo muito mais amplo e sério de desumanização como procedimento sistemático para lidar com o outro que sofre. E eis a segunda tarefa não será hora, cem anos depois de Freud e de tanto o que fizeram as ciências humanas ao longo do século XX, de pensar em formas mais humanas de lidar com o sofrimento compartilhado? De inventar novos modos de lidar com a dor que presenciamos, e da qual queremos nos desfazer? Isso não vale só para o médico, mas cabe também para o advogado, o promotor, o juiz e o policial: para todos aqueles a quem se delega o papel de mediar nossa relação com o que mais nos devasta: morte, crime, injustiça. No caso dessas profissões, há que rever, não uma cultura do trote que é apenas a ponta do iceberg, mas a idéia de que só nos desumanizando podemos suportar os extremos do humano. Há algo errado nessa crença, mas ela é tenaz, até porque vem da mais remota antigüidade. Em outras sociedades, porém, essa crença vinha junto com uma construção do cimento social de que fazia intensa e explícita parte o contrário da compaixão, porque ao longo dos milênios sempre se exibiu como festa pública o suplício cruel, e mesmo a pena de morte. Já em nosso tempo, a regra é a terceirização, nome muito recente que estou usando para procedimento que pode, no que nos interessa, ser datado de trinta ou cinquenta anos pelo menos: as atividades mais dolorosas, as que mexem mais com a sensibilidade humana, são profissionalizadas e delegadas a pessoas que ficam distantes de nós. Isto significa que entre nós o horror é vivido mesmo como horror, como inaceitável, mas como, ao mesmo tempo, não se sabe lidar com ele, a única saída é excluí-lo, afastá-lo de nós, e tratar com ele de maneira pretensamente técnica, acreditando-se que mediante uma somatória de instrumentos (os inúmeros de que dispõe o médico, o código do advogado, a arma do policial) se pode dar conta de um problema que em sua essência não é técnico, mas social, humano. Sistematicamente, assim, a sociedade varre o seu horror para baixo do tapete. Se queremos uma sociedade melhor, precisamos ir fundo. O dever da sociedade é deixar de ser hipócrita e de condenar apenas os indivíduos que foram pegos excedendo-se nos papéis que lhe foram delegados. Deixo claro que merecem punição, sim, e que o trote violento deve mesmo ser proibido, com seus praticantes sendo punidos no âmbito da universidade e mesmo no da lei penal. Apenas, não cabe tratar, numa retórica fácil, o trote como mero excesso, que seria reprimido deixando-se incólume tudo o que há de insuficiente na formação e na administração do médico. Isto significa, também, um dever ou uma responsabilidade mais específica e precisa dos Conselhos de Medicina, aos quais cabe lidar com a desumanização ou pelo menos com a perplexidade que afeta os médicos já formados, e das universidades, as quais devem mexer nos currículos para pensar menos o corpo humano como objeto de práticas apenas técnicas, e mais a intervenção médica como parte de uma praxis na qual humanos agem sobre humanos.
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livros Fragmentos...
O professor de Medicina - Conhecimento, Experiência e Formação BATISTA, N.A.; SILVA, S.H.S. São Paulo: Loyola, 1998. 181 p.
ENSINO MÉDICO
O percurso de implantação e constituição da Medicina abriu caminhos para o ensino médico: para além de experiências clínicas, propostas pedagógicas foram sendo delineadas com destaque para a observação cuidadosa, a descrição detalhada, o estudo sistemático dos casos e o hospital como lugar privilegiado da prática médica e, portanto, do ensinar e do aprender em Medicina. (p.19) Capra (1982) aponta para a predominância do modelo biomédico na formação e no A organização exercício profissional do médico, sendo do processo de ressaltada uma concepção mecanicista da formação do vida. (...) o autor aponta a tendência à médico foi concentração em partes cada vez menores sendo do corpo, fazendo com que, produzida em freqüentemente, se perca de vista o meio à paciente como ser humano, substituindo-se constituição da o homem doente pela doença do medicina como homem . (p.37) prática e como DOCÊNCIA EM MEDICINA ciência, ... quem é o professor que tem assumido a mediação refletindo as neste processo de formação? Como tem ocorrido o seu opções feitas preparo para a função docente? A pesquisa da CINAEM em relação ao (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do profissional que Ensino Médico) nos traz dados importantes sobre o se desejava docente de Medicina. (...) "para a grande maioria dos formar. (p.20) entrevistados, a docência constituiu-se como atividade complementar à profissão médica. (...) Como Por um lado, a função docente em Medicina decorrência deste perfil docente, a educação caracteriza-se pela complexidade, diversidade, médica parece caracterizar-se como um multideterminação, dinamicidade, exigindo a processo de reprodução endógena, sem interdisciplinaridade. Por outro, a formação em ênfase na produção do conhecimento".(p.50) medicina implica triangulação entre conhecimentos, habilidades e atitudes, A racionalidade didático-pedagógica, concretizada nos espaços de ensino, pesquisa e entendida como reflexão crítica, consistente extensão que envolvem os condicionantes e conseqüente sobre o processo educativo relativos à missão e ao processo de que está sob a responsabilidade do professor desenvolvimento curricular, ao planejamento permanece, de modo geral, como algo de ensino, à interação professor-aluno, à separado do investimento na competência produção de conhecimento sobre a própria técnica em Medicina. (p.52) função docente e à atividade assistencial. (p.48)
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LIVROS
PEDAGOGIA MÉDICA E DIDÁTICA ESPECIAL
Teorizar e praticar a ação educativa em uma perspectiva integradora, superando a fragmentação e despolitização, características do ensino superior ao longo de sua história, é um dos desafios que se colocam para aqueles que têm como horizonte um projeto de universidade comprometido com o processo de transformação democrática. (p.47)
As disciplinas Pedagogia Médica e Didática Especial representam um momento intencionalmente colocado na pós-graduação stricto sensu em Medicina com o objetivo de formar o professor: vindo de uma trajetória acadêmica que não tematiza nem mesmo a dimensão educativa do exercício profissional do médico, e que enfatizou a chamada competência técnica, o pós-graduando tem, em muitos casos, a primeira oportunidade de discutir aspectos da docência universitária e do ensino médico. (p.61)
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PÓS-GRADUAÇÃO
DESAFIOS
Masetto (1988), analisando essas disciplinas na Pós-Graduação, identifica quatro tendências em suas organizações. A primeira tendência ele considera legalista, consistindo em cursos ministrados para cumprir um dispositivo legal. (...) A segunda tendência identificada é a tecnicista, baseada em técnicas que facilitem e aperfeiçoem a comunicação. A organização das disciplinas Pedagogia Médica e Didática A terceira é a filosófica, Especial nos programas oficiais de pós-graduação em privilegiando os aspectos Medicina no Brasil tem sido, freqüentemente, considerada sócio-ideológicos da um desafio. A interdisciplinaridade, as peculiaridades e educação. Finalmente, a expectativas da clientela, a carência de professores quarta é a tendência habilitados a desenvolvê-las e a escassez de pesquisas sobre multidimensional, segundo a a formação do professor de Medicina são características que qual os cursos estabelecem apontam para a necessidade de estudos nessa área. (p.63) como ponto de partida e referencial para trabalhar na sala de aula os problemas nela vividos, as possíveis soluções para os mesmos, a A Pedagogia, entendida como fundamentos da discussão e o treinamento de técnicas prática docente baseados nas ciências da educação, pedagógicas. visa a descrever e a explicar o fenômeno educativo Com muita freqüência observa-se a tendência recorrendo à contribuição de outros campos do legalista nas disciplinas de formação didáticoconhecimento como a Sociologia, a Psicologia, a pedagógica dos cursos de Pós-Graduação. Comunicação, a Filosofia, a Linguagem etc. A tendência tecnicista também é bastante Enquanto a Pedagogia se preocupa com os recorrente, reduzindo a disciplina ao domínio fundamentos, condições e modos de realização, à de recursos instrumentais que, Didática cabe transformar objetivos sócio-políticos supostamente, asseguram a eficiência ao e pedagógicos em objetivos de ensino, trabalho do professor na condução do ensino. estabelecendo seus vínculos com aprendizagens e (p.59) selecionando conteúdos e métodos com vistas ao desenvolvimento dos alunos. (p.60) Tomá-las como práticas de formação, procurando compreendê-las pelo olhar de PEDAGOGIA E DIDÁTICA docentes que a desenvolvem, pela análise de planos de ensino e pela observação de uma experiência concreta no âmbito das referidas disciplinas, permitiu uma fecunda aproximação com sentidos e significados que assumem em diferentes contextos acadêmicos. (p.63)
Entendemos ... que a pedagogia ao apreender a dinâmica dos processos educativos em sua concretude e ao manter trocas com outros campos do saber científico, elabora (ou deveria elaborar) uma teoria da prática pedagógica, a qual ilumina os fazeres no que tange à explicitação das lógicas que os orientam. Articulada a essa concepção de pedagogia, emerge a de didática: de modos diversos aparece expressa como campo do domínio instrumental (técnicas, planejamento e avaliação) que o professor precisa ter para realizar seu trabalho educativo. Esse domínio ora surge como quase auto-suficiente ora assume caráter instrumental que somente adquire significado em meio a problematização sobre os valores, idéias e crenças que dirigem um dado trabalho pedagógico. (p.72-3)
ATITUDE INTERDISCIPLINAR
FORMAÇÃO DO PROFESSOR
LIVROS
Concepções do processo de formação nas disciplinas pedagógicas: as ambigüidades e contradições que têm caracterizado o uso de expressões como atitude reflexiva, curso voltado para a reflexão, ensino reflexivo, podem ser apreendidas, ainda, quando analisamos os objetivos, os conteúdos e as metodologias: assumindo a reflexão como eixo privilegiado nas disciplinas, que objetivos definimos como importantes? Que conteúdos parecem fomentar de maneira especial a reflexão? As estratégias de ensino escolhidas coadunam-se com uma proposta que se quer reflexiva? (p.66) A riqueza dessa observação reside, por um lado, na explicitação de que a opção pela estratégia anuncia, também, os valores que orientam o fazer docente. (p.68)
... o reconhecimento da incompletude dos saberes, de que estes não podem resumir-se às experiências, implicando na construção de instrumentos teóricos e metodológicos que permitam analisar a docência para além das vivências e/ou dos modelos pré-estabelecidos, e a percepção de que articular com profissionais de áreas diferentes amplia possibilidades e descortina ângulos não visualizados, delineiam uma atitude interdisciplinar e um saber docente como uma construção plural e multideterminada. ... nem o professor que é pedagogo ou psicólogo da educação nem o que é médico dão conta, isoladamente, da tarefa de formar o docente de Medicina. O movimento dos professores são exemplos significativos da busca de parceiros na difícil construção de práticas interdisciplinares. (p.77-8)
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PROBLEMATIZAÇÃO
No bojo desse cenário institucional complexo e das trajetórias de formação do profissional que trabalha com o ensino e sobre ele produz conhecimento, identificaram-se perspectivas docentes: A perspectiva docente que centra o processo de formação no professor coaduna-se com a tradição existente no ensino. A transmissão parece ser o eixo das interações em sala de aula. (p.79) Na segunda perspectiva ... A atitude interdisciplinar se anuncia, identificando que o espaço universitário pode e deve criar núcleos de interlocução entre diferentes áreas do conhecimento. (p.81) Uma terceira perspectiva é aquela do diálogo entre professor e aluno, procurando não somente ampliar o conhecimento relativo à docência, mas articulá-lo no concreto das ações de professores de Medicina (p.83).
A PRÁTICA
LIVROS
No espaço da sala de aula, a interação se dá por meio das relações professor-aluno e alunoaluno. Para haver intercâmbio que propicie a construção coletiva do conhecimento, é preciso que a relação professoraluno tenha como base o diálogo. (p.124)
Um dos principais elementos no desencadeamento da discussão é a problematização. Freire e Shor (1986) afirmam que tal estratégia transforma a sala de aula em ambiente propício à re-elaboração e produção do conhecimento. (p.117)
O processo deve permitir a ligação com conhecimentos previamente discutidos com os alunos, estabelecendo as correlações, a contextualização do conteúdo à realidade vivenciada, sua relevância e aplicabilidade, o desenvolvimento e a conclusão ou síntese dos aspectos discutidos. (p.115)
Há necessidade de uma atitude crítica do professor perante a escolha do procedimento, apresentando situações desafiadoras para seus alunos e, assim, ajudando-os na incorporação de novos conhecimentos. (...) A técnica, por si só, não garante a qualidade da educação médica, porém, em uma discussão mais ampla do fazer docente, a sua escolha, desde que contextualizada num processo reflexivo sobre a graduação e relacionada a um planejamento efetivo, desempenha importante papel no processo ensinoaprendizagem do curso médico. (p.124)
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LIVROS
DOCÊNCIA NA MEDICINA
A avaliação deve subsidiar todo processo, fundamentando novas decisões, direcionando os destinos do planejamento e reorientando-o caso esteja se desviando dos objetivos delineados. (p.128) A seleção de técnicas ou instrumentos de avaliação deve considerar os objetivos do ensino e da aprendizagem, a natureza da área de estudo, os métodos e procedimentos usados e o número de alunos. (p.149) A existência de um projeto de docência médica caracterizada por uma reflexão sistemática e consistente sobre os determinantes do trabalho do professor na universidade, particularmente na escola médica, incluindo as dimensões filosóficas, sociais, epistemológicas, pedagógicas e as relativas ao conhecimento da área em que o docente atua, parece possibilitar a busca por edificar trabalhos docentes que sejam reconhecidos por atributos/ competências que ultrapassem a racionalidade técnica. (p.156)
Essa formação terá que instrumentalizar o docente para uma análise que assuma a incompletude e a transitoriedade do conhecimento, delineando uma mediação que se caracterize por competências do professor no campo do domínio do conteúdo, da produção do conhecimento, da organização do processo de comunicação do ensino e das experiências de aprendizagem, das implicações éticas, humanas e sociais, enfim, que esteja orientada para um ensino prospectivo. (p.165)
CONSTRUÇÃO CONTÍNUA
O bom professor, longe de ser uma abstração, é uma construção contínua de todo o docente comprometido com uma formação profissional que extrapole a mera aprendizagem de procedimentos e técnicas. (p.169)
AVALIAÇÃO
As concepções presentes quanto à formação de professores, por serem múltiplas, geram perspectivas do que deve ser privilegiado quando se pensa sobre o que constitui o processo de formar um docente. As diferenças e as convergências entre estas perspectivas se explicitam, por exemplo, quando comparamos o que os pesquisadores colocam como importante para definir o que deve saber um professor ou o que deve caracterizar a prática docente. (p.165)
orgs. Maria Lúcia Toralles Pereira Miriam Celí Pimentel Porto Foresti
Departamento de Educação Instituto de Biociências - Unesp - Botucatu
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A violência: ensaio acerca do "homo violens"
DADOUN, Roger. Tradução de Pilar Ferreira de Carvalho e Carmen de Carvalho Ferreira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998, 112p. (Enfoques. Filosofia)
Ao longo de sua história, o homem tem sido definido como homo sapiens, faber, laborans, ludens, politicus, religiosus, oeconomicus etc., privilegiando, cada uma dessas definições, uma dimensão humana. O autor propõe a definição de homo violens, porque considera a violência característica primordial, essencial, constitutiva do ser do homem. Para além de uma concepção eruptiva da violência como algo que explode, de forma repentina e imprevisível, e que se coloca do lado do desvario, do absurdo, da loucura, ou que se imagina como encarnação do mal e do pecado, o autor formula a hipótese de uma função estruturante essencial da violência, pois, para ele, não há qualquer aspecto da realidade humana que não esteja a ela associado. Evitando julgamentos que impliquem referências religiosas ou patológicas, proporá a análise da violência em três capítulos: Figuras da Violência, Percurso da Violência e Poderes e Violência, lembrando que a violência cobrirá tudo o que tem relação com força, potência, energia, poder. Em Figuras da Violência, o autor traça o percurso temporal, espacial e histórico da violência, partindo do episódio bíblico do crime de Caim que mata seu irmão Abel. Buscando as causas desse fato, afirma que esta violência origina-se no agir do próprio Deus que aceita a oferenda de Abel e recusa a de Caim. O reino da violência instaura-se desde o
princípio do mundo; basta que se leia o Gênesis para se ver isso. A expulsão do paraíso, com seu castigo que atinge a mulher, no ato biológico fundamental do parto, e o homem, em suas atividades vitais; o dilúvio, um verdadeiro biocídio; a Torre de Babel, embaralhando a linguagem dos homens e dispersando-os por toda a Terra. Uma violência pura ou essencial manifesta-se não só no julgamento divino da oferenda de Abel e Caim, como também na proibição de comer do apetitoso fruto da árvore do paraíso e em todos os primeiros gestos demiúrgicos da criação, quando a divindade faz surgir, das trevas e do caos, o universo. Ao homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é dada a ordem de dominar e subjugar os peixes do mar, as aves do céu. A única ocasião em que a violência parece esquivar-se é no descanso sabático. A não-violência associa-se, pois, à interrupção ou suspensão de toda atividade. Essas imagens primordiais - Adão e Eva, a Serpente, Caim, o Dilúvio, a Torre de Babel - têm valor de arquétipos e funcionam como modelos de referência aos quais fazemos alusão continuamente. Se prosseguíssemos no texto bíblico, encontraríamos inúmeros episódios violentos e chegaríamos ao limite absoluto da violência: Jesus, feito homem, morrendo crucificado (p. 23). A história da humanidade não é menos
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pródiga em atos violentos. Testemunha disso são o extermínio e o terrorismo. O extermínio, obcecado pela quantidade, apresenta-se sob a forma de guerra, massacre e genocídio. A guerra - violência institucionalizada, ritualizada - pressupõe a busca da paz e possui regras e leis. O massacre traduz-se por um estrondo selvagem do ódio, do desprezo, das pulsões destrutivas: mata-se, tortura-se, mutila-se. O genocídio é destruição deliberada, sistemática e programada de uma coletividade inteira cujos membros são acusados e tratados como seres inferiores . Para exemplificar, basta lembrar os genocídios promovidos por Hitler e Stalin; o genocídio dos armênios e dos ciganos; o genocídio dos índios das Américas. O terrorismo expressa-se no atentado, ato de violência que acontece em ponto limitado no tempo e espaço, visando a um objetivo definido, mesmo que vitime inocentes. O terrorismo não se percebe como agente de violência, mas como produto de uma violência antecedente: domínio político, exploração econômica, opressão social etc. Sempre uma violência anterior provoca e legitima uma violência posterior. Para participar de um grupo terrorista, é necessária uma iniciação violenta e o grupo é mantido por relações de força e domínio. Em Percurso da Violência, o autor propõe olhar a violência no cotidiano, pois não há palavra, gesto, objeto ou instante que não encubra um grão de violência. Para isso, ele percorre a existência humana, por suas principais etapas, do nascimento à morte. A primeira violência vivida pelo ser humano é o traumatismo do nascimento - violência ontológica, fundadora - pois, expulso do meio intra-uterino, que é calor, proteção, vem para um meio exterior, o mundo da dura necessidade. A infância é palco de múltiplas violências: as provenientes do próprio psiquismo e as exercidas pelo ambiente, entre elas a educação, que se processa sob duas formas de violência: a intelectual e a cultural. A primeira, exercida no processo de
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transmissão de conhecimentos; a segunda, equipando o sujeito com modelos de comportamento, sensibilidade e compreensão a fim de integrá-lo na sociedade. Na adolescência, o ser humano experimenta uma violência orgânica, pelas transformações do corpo. Nesta fase, a violência social se manifesta em todos os níveis: repressão e regulação da sexualidade, estruturação da personalidade, pressões educativas e profissionais. A sexualidade, o trabalho e a racionalidade aparecem marcados pelo pecado, a maldição, a interdição e a transgressão. Embora possamos considerar o lado positivo do amor terno, do trabalho como atividade vital, feliz, e do exercício da razão como suprema grandeza do homem, não nos enganemos. Há estreita relação entre eles e a violência, pois participam de um jogo interminável de trocas, em que cada um dos elementos investe e se apodera do outro para trabalhálo e retrabalhá-lo, de modo que em torno do núcleo representado pelo homo violens grativam o homo sexualis, o homo faber ou laborans, o homo sapiens, e, como elo de ligação, o homo politicus. Sexualidade, trabalho e racionalidade impõem, implacavelmente, a violência de seus determinismos. Sobre esses determinismos, o grupo social enxerta sua própria violência, impondo ou reprimindo escolhas, obrigando a horários, gestos, ritmos, condições de trabalho, e a razão conquistadora pratica o autoritarismo. Analisada a singularidade do homem através do olhar da violência, acabamos encontrando uma violência multiplicada. Contudo, o entrechoque de violências provoca captação e inibição e, por isso, toda violência funciona como resistência a outra violência que tende a fixar (apreender). As violências se consomem umas dentro das outras, dando como resultado uma violência desacelerada. Neste processo paradoxal da violência em suas múltiplas formas multiplicadas-paroxistas e desceleradasresistentes - elabora-se, mediantes suas
LIVROS
BOSCH, Cristo cria Adão e Eva (detalhe da obra O jardim das delícias), 1500
combinações, trocas e turbulências, este eixo central, este núcleo duro, de energia ligada fazendo resistência, onde toma forma, na sua especificidade, o homo violens (p. 62). Neste derradeiro ponto de condensação - sua quintessência -, a violência irradia, mas também nele - que é resistência - a violência se fixa, fica suspensa. Nisto reside a rara virtude do homo violens: cumprir como num instante sabático, a suspensão da violência... (p.63). Prosseguindo na análise, o texto discute a violência como contra-violência, ou seja, parece que tentamos expurgar de nós a violência pelo fato de atribui-la ao outro. Sempre quem começa é o outro, sempre a culpa é do outro. Isto, contudo, esclarece a estrutura do homo violens, ilumina sua face de agressão e revela que o homem é um sercontra. O outro está sempre diante de mim e esta presença me ocupa , me olha , quer me absorver em sua alteridade. Não apenas toda violência é do outro, mas, também o outro é violência, pelo simples fato de ser outro, pelo simples fato de ele ser, existir. Portanto, o outro me inflige uma dupla violência: a da alteridade como tal e a da alteridade que tenta me identificar a si, soterrando minha identidade. Para superar isso, é ainda necessário violência, pois, para resistir, o eu precisa agüentar o golpe, e para que isto aconteça, ele deve ser uma estrutura violenta. Tudo passa. Verdade incontestável que inscreve o homem nesta dimensão absoluta do tempo - passar. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, já dizia Heráclito. Esta passagem do tempo é angustiante, pois é irrevogável, irreversível, irreparável, e nega o viver que é contínua reparação. O tempo é violência. A violência do tempo encrava na
PIETER BRUEGEL, A Torre de Babel
alma perdas irremediáveis e no corpo, sua marca indelével: o envelhecimento. Tudo passa e corre em direção à morte. A morte é a derradeira e suprema violência infligida à humanidade e, com ela, o tempo deixa no ser do homem uma violência aberta. A violência do tempo não termina com a morte porque as criações fantasmáticas fazem os mortos retornarem , perturbando o mundo dos vivos. A violência post mortem, o retorno dos fantasmas, expresso por aparições de vampiros, dráculas, mortosvivos, tão bem retratado pela cinemateca, significa o irredutível enraizamento da violência na realidade humana. Diante desse quadro, pergunta-se: existe um princípio que seja anterior, primeiro, originário, e que sirva de base tanto para a morte como para a violência? É o Princípio do Terror, cuja característica principal a morte exibe com evidência absoluta, inexorável e aterrorizante: a transformação do ser humano em coisa, marcada pelo processo de cadaverização, imobilização total, petrificação. O movimento da vida consiste em distanciar-se violência primordial do inanimado, do mineral, e nada pode ser mais aterrorizante do que a perspectiva de retorno a esse estado de coisa. A violência originária tem por função abrir uma brecha por onde possa passar o sopro do vivente, extraindo-o do domínio do terror de coisificar-se e funcionaria como poder instaurador do homo violens. Em Poderes e Violência, o texto discute a relação entre poder e violência nos sistemas políticos. Violência e poder estão de tal modo associados que podemos dizer que o único problema do poder é a violência e que a finalidade da violência é o poder. O totalitarismo é o sistema no qual o exercício
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LIVROS
do poder consiste numa prática organizada, constante e generalizada da violência. Esta violência se configura, no totalitarismo, pela busca obsessiva da unidade a qualquer preço e pela pretensão a uma comunidade homogênea, reunida em torno do Partido ou do Líder. A filosofia política tem por tarefa interrogarse sobre o fenômeno da violência para definir sistemas de valores (justiça, liberdade, autonomia, direitos humanos) a fim de garantir as condições de equilíbrio social de modo a manter a sociedade aquém do limite que marca o abandono ao sistema totalitário. É o Estado de Direito que retira o homem do estado de natureza e permite ultrapassar a violência original, natural , possibilitando ao homem resistir, inventar a humanidade. Na democracia, a violência aparece como desafio. É necessário afrontar os desafios externos (de outros regimes políticos) e internos (dos grupos que compõem a sociedade). A democracia deve se desafiar e
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desafiar a violência e, para isso, precisa repensar constantemente seus princípios: ser tolerante, livre, pluralista, solidária, aberta e pacífica. A que preço? Pela imposição de violências? Questionamentos e desafios são riscos para a democracia. Contudo, seu risco maior é o desafio de violências parcelares, necessárias e toleráveis, suscetíveis de mais mal que bem, proporcionarem mutuamente equilíbrio. Esta é a aposta democrática. Concluindo, o autor sugere que uma forma de fixar, ou seja, apreender para controlar, a violência é a arte. Não a arte idílica, conformista, mas a arte que, retratando a violência, a elevasse em fluxos de luz, em composições abertas e livres de imposições espaciais, de formas e de cores, pois reenviando para dentro de si, a violência poderia ser controlada pelo homem. Angelina Batista Departamento de Educação Instituto de Biolências UNESP/Botucatu
teses
Imaginário e envelhecimento
Alguns processos de envelhecimento se fazem com perdas ou prejuízos bastante significativos e outros com manutenção, ou mesmo ganho, em termos do desenvolvimento da personalidade. Este trabalho tem por objetivo estudar imagens simbólicas em idosos saudáveis e criativos, tentando dessa forma uma abordagem de sua estrutura psíquica, tomando por referencial a perspectiva teórica constituinte da arquetipologia geral de Gilbert Durand. A noção junguiana de processo de individuação, assim como atributos de indivíduos auto-realizadores tais como descritos por Abraham Maslow, contribuíram para a conceituação de envelhecimento criativo. A apresentação se desenvolve em duas partes: 1 estudo preliminar a partir de material de três anciões nonagenários (estórias, grafismos, sonhos, devaneios e lembranças), nos quais se observou exuberante imaginação simbólica, permeabilidade entre conteúdos da memória e da imaginação, e ausência de uma estrutura recorrente do imaginário; 2 estudo envolvendo um grupo de vinte e seis sexagenários e septuagenários não-senis, avaliados como saudáveis por exame médico e provas psicológicas, como o Mini-exame do Estado Mental e a Escala de Depressão Geriátrica em pesquisa realizada por Ceolim (s.d.) sobre padrão de sono em idosos (Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo). Para este grupo foram coligidos relatos de sonhos e aplicado o Arquétipoteste a nove elementos (AT.9), prova de imaginação e de indução do devaneio, a partir de nove palavras-estímulo, que prevê a
realização de um desenho, seguido de uma estória e, finalmente, um questionário. O AT.9 foi desenvolvido na década de sessenta pelo psicólogo francês Yves Durand com o objetivo de colocar empiricamente à prova a arquetipologia geral de Gilbert Durand e não tem por princípio uma teoria psicodinâmica em específico, mas uma classificação compreensiva das imagens. O que é arquetípico , neste caso, não é a imagem em si, mas a maneira como as imagens são combinadas entre si! Os nove elementos podem, desta forma, ser agrupados, quanto ao conteúdo temático, de quatro maneiras fundamentais: 1 estruturação heróica (tema do combate); 2 estruturação mística (atmosfera de repouso); 3 estruturação sintética (temas do combate e do repouso organizados de forma diacrônica ou sincrônica); 4 universo da não-estruturação, onde os nove elementos são representados isoladamente e sem uma articulação temática aparente entre si. A análise dos dados obtidos revela o predomínio da categoria universo da nãoestruturação, possivelmente relacionado à baixa escolaridade da amostra e a uma espécie de fusão e confusão das imagens, significados e simbolismos que, do ponto de vista formal ou mesmo funcional, assemelham-se à atividade de síntese encontrada na gênese dos processos criativos em geral. Por outro lado, levando em conta os dados de Ceolim, sugere-se que essa prevalência do universo da não-estruturação estaria correlacionada a padrão de sono fragmentar, em sujeitos apresentando cochilo durante o ciclo sono-vigília: ambos, cochilo e não-
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TESES
estruturação, representariam um estilo de (des)organizar as imagens simbólicas, o qual não equivale, necessariamente, à deterioração das funções psíquicas e sim a uma diminuição da nitidez (heróica) com que se apreende ou se representa o mundo. Uma primeira abordagem dos resultados aponta no sentido de indivíduos matutinos apresentarem tendência à estruturação heróica, enquanto indivíduos vespertinos apresentariam estruturação mística das imagens simbólicas. As imagens simbólicas, portanto, mostraramse recursos valiosos na investigação do envelhecimento, indicando que uma certa imprecisão ou borradura parece permear o imaginário (o campo das imagens) em alguns processos de envelhecimento considerados saudáveis.
V., 1999
Walter José Martins Migliorini Tese de Doutorado, 1999. Instituto de Psicologia, USP Projeto financiado pelo CNPq
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Hospital-dia da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp: estudo descritivo da população atendida
Poucas questões no cenário mundial conseguem ser ao mesmo tempo tão antigas e tão atuais quanto a assistência que se presta aos portadores de transtornos mentais. Nos últimos anos, no Brasil e em outros países, os Hospitais Psiquiátricos têm recebido diversas críticas, sendo a principal o fato de que estariam mais a serviço da segregação do que do tratamento dos pacientes. Como alternativa, hospitais-dia (HD) e serviços similares foram criados com a intenção de evitar a internação fechada ou até mesmo ser um intermediário entre esta e os ambulatórios. Foram propostos como espaços de atuação interdisciplinar em que o tratamento deveria ir além da mera remissão de sintomas, com abordagem psicodinâmica e atendendo também as famílias. Embora existam no Brasil há mais de 40 anos, ainda há pouca informação sobre estes serviços. Esta escassez de dados motivou a condução de um estudo sobre o HD da Faculdade de Medicina de Botucatu - um serviço que há 18 anos vem tentando se colocar como uma alternativa. Os objetivos, neste estudo, foram descrever a população atendida e sua evolução na internação, segundo vários parâmetros. Foram obtidos dados sociodemográficos, antecedentes psiquiátricos, alterações psicopatológicas, de relacionamento familiar e de níveis de incapacitação psicossocial, a partir de entrevistas estruturadas e instrumentos validados.
TESES
política econômica atual. Hospitais-dia devem também ser acompanhados de perto, visto que, com os recentes estímulos financeiros à sua criação, podem tornar-se um investimento lucrativo em detrimento da qualidade dos cuidados prestados ironicamente, uma das críticas mais contundentes aos hospitais psiquiátricos tradicionais.
Maria Cristina Pereira Lima Dissertação de Mestrado, 1999. Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP
V., 1998
Houve predomínio de mulheres (76,5%) como ocorre em outros serviços de saúde e de indivíduos jovens (61,8% com menos de 40 anos). Em sua maioria os pacientes eram procedentes de Botucatu e região (64,8%), sem vínculo conjugal (70,6%) e com transtornos do humor (44,1%). As internações duraram em média 74 dias, havendo 79,4% dos pacientes com melhora na ocasião da alta. Em 20,6% dos casos a renda familiar provinha do próprio paciente, e em 50%, havia a necessidade de algum tipo de subsídio para o transporte. A renda per capita foi o único fator preditivo de melhora (p=0,03). A duração da internação foi menor entre os indivíduos com sintomatologia depressiva/ansiosa (p=0,02) e maior naqueles com retraimento/ desorientação (p=0,03). Quando se inclui a variável melhora na análise, pacientes com vínculos conjugais mostram um menor tempo de internação (p=0,002). A adesão, avaliada pelo comparecimento ao serviço, foi maior entre os pacientes com vínculos conjugais, menor renda per capita e maior freqüência da família ao serviço. Os achados são compatíveis com a literatura de um modo geral. Chamou a atenção, contudo, a forte associação entre renda e melhora - maior ainda que a relação entre esta última e o comparecimento ao serviço. Esta associação deve ser mais bem estudada, para que a questão o que produz melhora? seja adequadamente respondida. Dados do Ministério da Saúde têm mostrado um aumento de quase 400% no número de HDs no país, sem que haja informações disponíveis sobre seu funcionamento e sua adequação às necessidades da população. Além da fiscalização desses serviços, talvez sejam necessárias outras medidas por parte do Estado, como por exemplo, subsídios financeiros para portadores de transtornos mentais graves. Estes pacientes, muitas vezes, precisam de alguém que lhes preste cuidados e são incapazes de enfrentar o mercado de trabalho - ainda mais agravado pelo desemprego e a recessão que marcam a
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TESES
V., Mixcoalt, 1999
V., Fraqueza e Força, 1999
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notas breves
A participação da ANDES-SN* na CINAEM**: o processo de transformação das escolas médicas brasileiras
A CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) é um colegiado que reúne 11 entidades representativas dos professores universitários, da profissão médica, e de estudantes de medicina do país. Constituída há oito anos, a Comissão tem por objetivos: desenvolver metodologias alternativas ao projeto neoliberal de avaliação do ensino nas escolas médicas brasileiras; aplicar os instrumentos de avaliação em comum acordo com o coletivo das escolas médicas; identificar os problemas e aspectos favoráveis e desfavoráveis que envolvam a formação médica no país; identificar os fatores facilitadores e impeditivos para a construção de novo modelo de formação médica; formular e apresentar estratégias capazes de reforçar os fatores facilitadores e de eliminar/neutralizar os fatores impeditivos do processo de mudança do modelo de formação das escolas; sistematizar, disseminar e divulgar os conhecimentos acumulados e os resultados obtidos com o desenvolvimento da avaliação e do processo de transformação das escolas médicas por meio do potencial de
mobilização social e capital político das entidades que compõem a Comissão e do coletivo das escolas médicas brasileiras. Nascida como um movimento de resistência e oposição de entidades sindicais, científicas e estudantis da área médica à política neoliberal de ranqueamento dos cursos de graduação do país, a partir da implementação impositiva do provão , nesses oito anos de atividades a CINAEM tem desenvolvido seu trabalho no sentido de construir uma nova consciência do ato de avaliar por meio da ampliação da participação ativa de docentes e alunos no processo e da adesão das escolas médicas. A necessidade de se conhecer melhor o ensino médico no país, a falta de tradição acadêmica na sua avaliação e a crise nacional do setor saúde foram marcos fundamentais para a formação da CINAEM. Buscava-se conhecer melhor as escolas médicas brasileiras e o ensino que estas ofereciam. Procurava-se constituir um movimento de envergadura nacional para discutir democraticamente o ensino e a profissão médica com representantes de professores, alunos e da sociedade civil de todas as
* Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior - Sindicato Nacional. ** Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico.
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NOTAS BREVES
regiões do país. No processo de constituição do movimento pelas instituições e entidades ficou definido que a CINAEM deve funcionar independente de governos e sob a coordenação da Associação Brasileira de Educação Médica ABEM, secretariada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior - Sindicato Nacional ANDES-SN, tendo como princípios fundamentais e objetivos a qualidade do ensino médico e o aperfeiçoamento do sistema de saúde, binômio indispensável à boa formação profissional . Enquanto pólo catalisador da mobilização social, a CINAEM foi o principal movimento de aglutinação de professores e estudantes na universidade brasileira, na última década, em torno da política de formação de recursos humanos em saúde. Outro ponto importante foi a incorporação coletiva dos conhecimentos técnicos e instrumentos desenvolvidos para a avaliação reconhecidamente de caráter científico, o que possibilitou a sua aplicação na maioria das escolas médicas do país, bem como o inequívoco salto de qualidade no processo de avaliação, se comparado àqueles até então desenvolvidos. Nesse período, a Comissão desencadeou o processo de avaliação das escolas médicas em duas fases. A primeira, envolvendo 76 escolas, forneceu, por meio de extenso questionário, um rico arsenal de informações acerca da estrutura político-administrativa, infra-estrutura material e recursos humanos, além de informações acerca de modelo pedagógico, produção de pesquisas e prestação de serviços à comunidade. A segunda fase do projeto aprofundou o processo avaliativo, trazendo informações mais precisas e em maior número. Caracterizou-se pelo entrecruzamento das informações de três estudos realizados em 48 escolas médicas: o estudo acerca do perfil do corpo docente e da estrutura econômicapolítica-administrativa das escolas, o estudo envolvendo conhecimentos e habilidades
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adquiridas pelos estudantes no final do processo de formação, e outro envolvendo a avaliação do modelo pedagógico na perspectiva do Planejamento Estratégico Situacional. Com os resultados obtidos nestas duas fases, cada escola médica participante do projeto CINAEM dispõe, hoje, de um conhecimento detalhado da sua realidade, registrado em relatório individual. Por outro lado, o relatório geral do conjunto das escolas participantes permite visualizar a situação atual do ensino médico no país, possibilitando, a cada escola, situar o seu desempenho no contexto do conjunto das escolas estudadas. Da análise global do relatório geral das escolas médicas pode-se depreender informações, dentre as quais destacam-se: Informações relativas às conclusões na primeira fase do Projeto 1 A estrutura político-administrativa da maioria das escolas médicas é centralizada, pouco eficiente e pouco eficaz. A estrutura econômica-administrativa não tem autonomia, é pouco ágil e insuficiente frente às necessidades básicas das instituições. A infra-estrutura material é aquém da desejável e sucateada. 2 Os recursos humanos disponíveis são escassos, pouco preparados e com regime de trabalho insuficiente às necessidades do ensino médico. 3 O modelo pedagógico adotado nas escolas é anacrônico, fragmentado e compartimentado. 4 As escolas têm um papel tímido quanto a produção de conhecimentos (pesquisa) e prestação de serviços à comunidade (extensão). Como conseqüência, formam médicos inadequados às demandas sociais. 5 Entre todas as variáveis estudadas na primeira fase, os recursos humanos e o modelo pedagógico das escolas tiveram o maior poder de determinação na adequação do médico formado. Informações relativas às principais
NOTAS BREVES
conclusões da segunda fase do projeto 1 Observou-se que a formação do corpo docente em nível de pós-graduação stricto sensu é rara entre os professores médicos; o regime de trabalho dominante é o de vinte horas (ou menos) semanais; as atividades de pesquisa e administração são prerrogativas de poucos docentes; e a produção acadêmica é discreta. 2 A remuneração da docência médica está abaixo da realidade do mercado de trabalho médico. Além disso, o processo de educação médica, estimado por meio da aquisição de bibliografias atualizadas, freqüência a cursos, congressos, estágios e outros eventos de caráter científico, é de participação restrita a uma minoria entre docentes médicos, em função do alto custo e da necessidade de afastamento das atividades relacionadas ao cotidiano da profissão médica. 3 A atividade da docência é uma atividade secundária no exercício profissional do médico que, na grande maioria, exerce outras atividades relacionadas ao trabalho profissional, e com maior remuneração do que a atividade acadêmica. 4 Com relação ao processo de formação instituído na escola médica, percebe-se que ocorre de forma predominante a transferência unidirecional e fragmentada de informações (mais teoria e menos prática), com profunda dicotomia entre os conhecimentos básicos e profissionalizantes. 5 As avaliações de aprendizagem são de caráter terminal, coercitivas, centradas na memória, sem contemplar as habilidades e atitudes na aplicação do conhecimento. A gestão da escola médica aparece como centralizadora e reprodutiva e desempenhada por docentes formados na própria escola, sem formação específica para a função e satisfeitos com a estrutura vigente da instituição. 6 Com relação à aquisição de conhecimentos durante o processo de formação, os formandos demonstraram um crescimento cognitivo lento durante o período de graduação e um resultado final aquém do
desejável. 7 Os resultados desta fase demonstram que a formação do docente em termos de pós graduação stricto sensu, bem como o regime de trabalho de quarenta horas e o regime de dedicação exclusiva, estiveram associados a um melhor desempenho do docente e este a um melhor crescimento cognitivo dos alunos. É importante salientar que o processo de avaliação empreitado pela CINAEM e pelo conjunto das escolas médicas brasileiras apresenta-se como claro contraponto às políticas nacionais para o ensino superior propostas pelo atual governo, as quais têm apontado para o desmonte do ensino público e sucateamento dos hospitais universitários e ambulatórios. Em função desta política são flagrantes os sinais de desprofissionalização do professor no sentido de descompromisso crescente da atividade relacionada a docência propriamente dita, junto às atividades de ensino na graduação, em detrimento de outras atividades de maior compensação financeira. Mediante resultados que apontam para uma situação preocupante, de baixa qualidade na formação de médicos no país, torna-se claro o desejo de transformação da realidade por parte de estudantes, professores e dirigentes das escolas médicas. Os sinais da forte mobilização em torno das questões levantadas pela CINAEM têm sido observados em encontros e congressos de estudantes, encontros locais, regionais e nacionais das sociedades médicas e, principalmente, nos congressos da ABEM. Nessa perspectiva surge, a partir do trabalho da equipe técnica assessora da CINAEM, a terceira fase do projeto, intitulada Transformando a Educação Médica Brasileira . Nesta, o projeto se caracteriza pela implementação de mudanças estruturais por meio da intervenção participante nos cursos de medicina, sem perder de vista o contínuo processo de avaliação das escolas. Para sua viabilização estão sendo envidados esforços
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NOTAS BREVES
das entidades no sentido de levantar recursos junto às agências nacionais e internacionais de fomento, sem, contudo, transigir da autonomia da CINAEM sobre a condução política do projeto. Cerca de 72 escolas médicas (de um total de 92) já manifestaram interesse em participar desta nova etapa. A terceira fase é substancialmente diferente das anteriores. Enquanto as duas primeiras puderam ser conduzidas como projetos de pesquisa, porque tinham como objetivo o estabelecimento de um diagnóstico, a atual tem como questão central um amplo processo de mudanças que se situa no campo político-administrativo e institucional. Ou seja, é um projeto de base científica mas, também, uma ação política. Para que este processo seja alavancado em nível nacional faz-se necessária a articulação não só de atores internos à Universidade mas também de outros, principalmente junto àqueles que estão envolvidos no processo de mudança do modelo de prestação de serviços de saúde - o SUS cujo desenvolvimento também não prescinde da ação articulada com a Universidade (no que tange a qualificação de recursos humanos, formulação de novos modelos de atenção, custos etc). Esta parceria é fundamental e estratégica para os dois setores e poderá ser geradora de força política e mobilização suficiente para impulsionar um amplo processo de mudanças do setor saúde no país.
A ANDES-SN tem atuado com marcante presença ao longo da história da CINAEM, por entender que o exemplo oferecido pelo movimento na área médica pode servir ao conjunto da universidade brasileira como um modelo, no qual a lógica da avaliação é voltada para a transformação e melhoria da qualidade do ensino superior no país e não para punição dos estudantes, "ranqueamento" das escolas ou para o simples cumprimento das exigências do mercado. Outro bom exemplo a se espelhar no movimento organizado pela CINAEM é a forma pela qual se procura semear no meio acadêmico a cultura avaliativa, a partir do interesse inerente à Universidade e à própria sociedade em melhorar a qualidade do ensino superior, distinguindo-se pelo pleno exercício da democracia no interior do movimento, pela mobilização social (envolvendo o conjunto das entidades e a comunidade acadêmica) e pela prática de solidariedade, respeito mútuo e autonomia das entidades que compõem o colegiado e as escolas médicas brasileiras.
José Lúcio Martins Machado, 1º Vice-Presidente da ANDES-SN Regional São Paulo e secretário de Comunicação da CINAEM. Professor da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp.
Textos para referência
PALAVRAS-CHAVE: Universidades; Brasil; transformação
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ARAÚJO, J.G.C. O novo ensino médico e a sociedade brasileira. Boletim ABEM, v.26, n.3, 1998. BATISTA, N.A. O ensino médico e a cultura avaliativa. Boletim ABEM, v.26, n. 4, 1998. BELACIANO, M.I. Considerações gerais a respeito do Projeto CINAEM: II Fase. 1998. p.2. (Mimeogr.) CINAEM. Relatório geral de avaliação das escolas médicas brasileiras. 1996. 35p. (Mimeogr.) PICCINI, R. et al. Transformando a educação médica brasileira. Projeto CINAEM: III Fase. 1998. 86p. (Mimeogr.)
Didática no Ensino Superior
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DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR, em hipermídia, representa uma síntese provisória de nossas experiências e reflexões sobre a prática docente na universidade e sobre o uso pedagógico de novas tecnologias de combinação interativa de comunicação. Como síntese materializada em um CD-ROM, pretende ser múltiplas mídias - texto, som, uma contribuição aos profissionais que, oriundos de diferentes áreas do imagem - sob a monitoração do conhecimento, desempenham ou virão a desempenhar o papel de computador educadores, construindo seu caminho na prática cotidiana da sala de aula da universidade. Trabalhando a partir da diversidade de nossas próprias experiências pessoais, ambas com a formação do educador, em diferentes níveis de ensino, numa interface entre educação e comunicação, também nós temos construído nosso caminho. E, nessa trajetória, a vivência de situações quase sempre conflituosas estimulou questionamentos, levando-nos a reorganizar teorias e a elaborar algumas sínteses. O compromisso com a Didática e a Pedagogia, dentro e fora da sala de aula, sempre esteve implícito, em experiências e estudos sobre formação docente, metodologia de ramo da ciência pedagógica, cujo ensino, relação professor-aluno, paradigmas de interpretação da objeto de estudo é o processo de realidade, construção de conhecimento, meios de comunicação, ética. ensino e suas múltiplas Em síntese, o envolvimento com o trabalho pedagógico, formativo. determinações. Caracteriza-se como Nos últimos anos, a possibilidade de uma convivência conjunta na mediação entre "o que", "como" e universidade, trabalhando com profissionais de diferentes áreas e "para que" desse processo com a departamentos, em atividades de assessoria pedagógica, cursos de intenção de promover o encontro formação pedagógica e parceria nos Conselhos de Curso, levou-nos a formativo entre o aluno e a matéria de concentrar nossas atividades de ensino. Explicita o vínculo entre teoria pesquisa em duas questões centrais, do ensino e teoria do conhecimento. campo de conhecimento que se ocupa presentes nos trabalhos que passamos a do estudo sistemático da educação realizar: educação continuada e intencional, investigando os fatores que interface comunicação e educação. contribuem para a formação do DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR, em hipermídia, é um dos homem, os processos e os meios resultados da articulação dessas questões e da reconstrução dessa formação. Os resultados desta conjunta de teorias e práticas individuais. investigação servem de orientação à Comprometidas, assim, com o processo formativo e abertas aos ação educativa, determinando desafios e às possibilidades de um caminhar juntas, explicitando princípios e formas de atuação, que dão direção à atividade de educar.
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Projeto desenvolvido mediante convênio Pró-Reitoria de Graduação/UNESP e IBM do Brasil
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cada vez mais nossas diferenças, retomamos um projeto individual de utilização de sistemas hipermídia em educação e consolidamos o processo de já há algum tempo ensaiado. O objetivo de produzir um material hipermídia foi articular ensino presencial com ensino mediatizado pelo computador, explorando as características particulares deste tipo de "software"- estrutura não linear de navegação, integração de diferentes mídias, interatividade para veicular informações relevantes sobre teoria da educação e teoria de ensino, trabalhadas durante as aulas das disciplinas pedagógicas na pós-graduação. Tendo como metáfora de interface com o usuário a idéia de caminho em construção, o programa foi delineado para ter uma estrutura de navegação composta, prevendo tanto situações de navegação pré-determinada, ramificada, quanto a possibilidade do usuário navegar livremente pelo sistema, a partir do Menu Principal, após as telas de apresentação. Este inclui quatro nós-âncora de navegação, todos integrando texto, imagem e som. Além do acesso aos Créditos do Programa, à Biblioteca e ao Editorial, que sintetiza a história do projeto, em cada tela o usuário do sistema dispõe livremente das ferramentas Anotar, Imprimir, Retorno, Menu Principal e Sair. Como síntese mais elaborada, mas sempre provisória, incorporando outros projetos e consolidando antigas e novas parcerias, Didática em hipermídia pretende favorecer a troca de idéias e a discussão coletiva em torno da formação pedagógica e da prática docente na universidade, em uma proposta de educação contexto continuada mais abrangente, pautada por um processo aberto e caminhos da prática interativo, tendo o computador como uma das mediações pedagógicas. a práxis como caminho novos caminhos Na intenção de contribuir para a compreensão crítica das articulações entre as concepções e as ações pedagógicas de profissionais de diferentes áreas, articulamos os conteúdos de Pedagogia e Didática em uma única disciplina, trabalhando com uma metodologia alicerçada na idéia de conhecimento como construção e comunicação de significados, propostas que possibilitaram, inclusive, a edição da revista Interface, com a
PALAVRAS-CHAVE: didática; pedagogia; ensino superior; hipermídia.
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Montagem a partir de Volpi
consolidação de novas e importantes parcerias.
Miriam Celí Pimentel Porto Foresti Maria Lúcia Toralles Pereira Departamento de Educação, Instituto de Biociências, UNESP/Botucatu email: foresti@laer.com.br toralles@laser.com.br
espaço aberto
A voz das armas
Moacyr Scliar
O governo do Distrito Federal organizou um programa pelo qual armas foram trocadas por cestas básicas, brinquedos e outros objetos. Quando este programa teve início, uma rádio entrevistou várias das pessoas que compareceram ao local previamente designado. O que mais chamou a atenção, em suas declarações, foi o alívio que manifestavam por se desembaraçarem de revólveres, pistolas, fuzis. Era como se estivessem se livrando de uma presença incômoda, perigosa. E é uma presença incômoda, perigosa. As armas entram nas casas pelas mais diversas razões, mas a principal delas é a insegurança. O revólver na mesa de cabeceira deveria ser uma garantia de tranqüilidade
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quanto à eventual ameaça de assaltantes. Pelo menos, este é o motivo mais freqüentemente alegado por aqueles que defendem o direito (e a necessidade) de os cidadãos portarem armas, como é o caso da National Rifle Association, uma enorme organização norte-americana presidida pelo ator Charlton Heston. Não é o que acontece. E não acontece porque, diferente de um eletrodoméstico ou de um utensílio de cozinha, uma arma não fica quieta, esperando ser usada. À semelhança das fontes de radioatividade, a arma emite uma energia, tão metafórica quanto maligna. Esta energia nasce da agressão, a agressão que acompanha a humanidade desde que
Médico e escritor
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ESPAÇO ABERTO
Caim matou Abel. Este primeiro crime, aliás, estabelece um paradigma. Trata-se de um irmão assassinando outro. E não o faz por disputa de comida ou de riqueza: não, o que move o braço assassino é o ódio, a inveja. A Bíblia não diz qual foi a arma usada por Caim, mas qualquer que tenha sido, podemos ter certeza de que ela foi a origem das pistolas e dos revólveres, fuzis e mísseis que hoje conhecemos. A arma carrega consigo agressão, ódio. Ela é fabricada para matar. Não é para assustar, pois neste caso uma imitação bastaria. Não, ela tem o seu funcionamento estudado e testado, está pronta para disparar e, enquanto não o fizer, estará em tensão, uma tensão que contaminará a todos ao redor. E, na verdade, as armas terminam saindo das gavetas e disparando. Não contra assaltantes. Estudos feitos nos Estados Unidos mostram que a maioria das armas guardadas em casa são usadas por um familiar contra outro. Uma discussão que começa banal termina assim num crime espantoso. E discussões não
faltam hoje em nossas cidades. Neste sentido, a Bíblia é também muito ilustrativa. O castigo que Deus dá a Caim é a repulsa da natureza: o solo, mesmo fértil, negar-lhe-á o sustento. Caim vai para a região a leste do Éden e aí funda uma cidade. Assim, a cidade, que é o símbolo do progresso e da civilização, evoca também o crime ancestral - que se repete de mil maneiras diferentes na violência urbana. A cidade é hoje um caldeirão de conflitos. É o lugar onde o automóvel se transforma numa arma. E é o lugar onde a arma propriamente dita triunfa. É preciso desarmar as pessoas e desarmar os espíritos. Desarmar as pessoas pode resultar de uma ação comunitária ou legal; desarmar os espíritos significa entender que a agressão, componente normal do psiquismo humano, pode e deve ser canalizada - para o trabalho, para o esporte. Caim poderia ter resolvido sua desavença com Abel com uma partida de futebol. Seria mais sadio. E ele talvez até ganhasse o jogo.
REUTERSWÄRD, A não violência. Desenhos para a escultura do edifício das Nações Unidas, Nova York
Pequena réplica da escultura 184
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Não quero que ninguém ignore meus gritos de dor, e quero que eles sejam ouvidos Antonin Artaud No Hospital Psiquiátrico de Rodez, quando esteve internado por três anos, depois de passar por vários manicômios franceses, Artaud escreve cartas a seu médico, dr. Ferdière. Aprisionado e maltratado por eletrochoques que prejudicaram sua memória, seu corpo e seu pensamento, "as cartas escritas de Rodez são, para Artaud, um recurso para não perder a lucidez. São o diálogo de um desesperado com seu médico e, através dele, com toda sociedade". Programa da peça "Cartas de Rodez", dirigida por Ana Teixeira, com atuação de Stephane Brodt. Prêmio Shell, direção e ator, e Mambembe, melhor espetáculo 98.
eu represento minha vida...
O teatro da cura cruel
Ana Teixeira
1 Eu represento minha vida - O verbo jouer em francês tem um sentido muito amplo. Significa atuar , representar , interpretar mas também jogar , brincar , arriscar . No teatro, o ator é aquele que joue , a tradução freqüentemente encontrada em português é interpreta mas, no caso de Artaud, o correto seria uma palavra que reunisse o sentido de atuar e arriscar .
Jacques Rivière era o editor da Nouvelle Revue Française em 1924. Artaud envia seus primeiros poemas (Tric Trac du Ciel) a Rivière, mas este recusa a publicação, justificando que ainda são imaturos. Artaud inicia uma correspondência com o editor, não para justificar a qualidade de seus poemas mas para reivindicar o direito à sua existência, para afirmar a necessidade de escrevêlos e a autenticidade das questões ali colocadas. Me falta a concordância entre as palavras e o minuto de meus estados . Rivière propõe a Artaud a publicação desta correspondência, que aparecerá em 1927.
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3 Le Théâtre et son Double Coleção Folio/Essais - Ed. Gallimard, 1964. Coletânea de textos, manifestos e conferências concluídas em 1935.
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Antonin Artaud nasceu na França em 1896. Foi poeta, pintor, escritor, ator e dramaturgo. Seu percurso marcou de modo decisivo áreas tão abrangentes como a literatura, o teatro, a pintura, a filosofia, a medicina e a antropologia. Je joue ma vie1 , declarava Antonin Artaud, e não era uma metáfora. Sua vida é tão ligada à sua obra que poderíamos quase dizer que ele escreveu com a própria vida. O sofrimento físico e mental de que padece e que exprime em sua correspondência com Jacques Rivière2 em 1923, o leva a fazer uso do ópio sob prescrição médica desde os quinze anos de idade. A droga o alivia, mas o obriga a terríveis tratamentos de desintoxicação. Sua vida foi uma eterna procura da cura de sua pavorosa doença do espírito . Poesia, escritura, pintura, desenho, viagens e esoterismo são formas diversas de uma mesma busca. Nesta busca, o teatro e, em particular, a profissão de ator, ocupa um espaço privilegiado. A cena é o lugar eleito para a cura da dor e da impotência intelectual e criativa decorrente dela; o lugar para recuperar uma nova identidade, não-dividida, mediante uma síntese superior do físico e do espírito . Ser ator é a primeira vocação de Artaud; o teatro se apresenta do início ao fim como espaço terapêutico, a cena é a possibilidade de nascer outro , de regenerar o ser. Esta consciência o leva a coincidir sempre sua busca pessoal com a busca de um teatro orgânico, eficaz, necessário, que possibilite ao homem se reencontrar, ou mesmo renascer. Este é o sentido da relação fortíssima, já apontado nos anos trinta no Teatro e seu Duplo3 , entre teatro e vida.
1 Encenadora e professora de interpretação teatral, diretora do espetáculo Cartas de Rodez (1998), com texto de Antonin Artaud, que recebeu o prêmio Shell de melhor ator e melhor direção e o prêmio Mambembe de melhor espetáculo.
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Um teatro eficaz é aquele capaz de refazer a vida, o que não seria possível sem refazer profundamente a cultura no Ocidente. Toda a obra de Artaud foi guiada pelo desejo incessante de reencontrar um ponto de utilização mágica das coisas, recusando uma consciência estética fundada em simulacros, aparências face à realidade empírica das coisas. Ele coloca a questão da linguagem e da manipulação de signos em termos de forças mágicas e da relação mantida, através deles, com o cosmos e com o divino. Para Artaud, o Ocidente europeu é doente porque separado, pois perdeu sua ligação com o divino, com a consciência cósmica. As Cartas de Rodez Em 1937, Artaud recebe um bastão mágico proveniente de um feiticeiro da Savóia, que ele acreditava ser o bastão de São Patrick, patrono dos Irlandeses. É para a Irlanda que ele parte, afim de devolvê-lo ao seu lugar de origem e de encontrar traços da cultura celta. Vivendo em condições precárias, em um país onde ele mal domina o idioma, Artaud vive pregando nas ruas com seu bastão. Acusado de ser um agitador e de vagabundagem, é preso e enviado, num barco, pela polícia de volta para a França. Um incidente ocorrido durante a viagem fez com que ele fosse, a partir de 1937, internado como louco em estabelecimentos psiquiátricos. Ao sofrimento do afastamento, às brutalidades de uma vida comunitária imposta, aos odores da promiscuidade, e às privações da vida em um manicômio, adicionou-se com a Ocupação alemã em maio de 1940, as carências alimentares. Assim, em Ville-Évrard4 , além de sua dignidade e de sua liberdade, Artaud começou a ser privado de seu corpo. Subnutrido, ele se torna um esqueleto, uma sombra dolorosa que tenta manter a vida. Suas cartas, as poucas que se conhece, são longas reivindicações de comida. "E se ainda estou vivo, Euphrasie, é por ter uma constituição anormalmente resistente e também por um perpétuo milagre de Deus mas, na realidade, sou só um cadáver vivo e que se vê sobreviver e vivo aqui com angústias de morte." 5
Artaud ficará esquecido até 1943, quando seus amigos se moverão para salvá-lo. A pedido do poeta Robert Desnos, ele é transferido a Rodez pelo Dr. Ferdière, médico-responsável deste manicômio. Ligado ao movimento surrealista, o médico conhecia Artaud e era um admirador de seu trabalho. Desde sua chegada em Rodez, Artaud inicia uma intensa correspondência com seus amigos, mas também com o médico. Por essas cartas percebemos uma relação ambígua entre os dois: livrando Artaud dos manicômios onde esteve internado em condições extremamente precárias e fazendo com que fosse transferido a Rodez, o médico salva sua vida e, como reconhece o gênio do poeta, o incentiva a retomar sua atividade literária. Ao mesmo tempo, julgando a poesia de seu paciente muito delirante, ele o submetia a violentos tratamentos de eletrochoque, prejudicando seu corpo e sua memória. Apesar da relação de amizade que se estabeleceu entre os dois, o Dr. Ferdière mantinha Artaud privado de sua liberdade e de sua dignidade, obrigando um homem que possuía todos os meios de sua maturidade para trabalhar e se manter, a viver sob a tutela de médicos em um regime de promiscuidade, com pacientes que nada tinham em comum com ele. As cartas são para Artaud um recurso para não perder sua lucidez e testemunhos de um homem em terrível estado de sofrimento e de solidão.
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4 Manicômio francês onde Artaud permaneceu três anos, que se encontrava em zona ocupada pelos alemães.
5 Carta do 23 de março 1942 à Mme. Artaud. Tradução Ana Teixeira.
ESPAÇO ABERTO
Vejo na sua proposta de me trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão. Mas tem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui. Já faz quinze dias que pedi ao Dr. Latrimolière que me deixasse tomar banho todos os dias para me manter limpo. Pedi-lhe também que evitasse me incluir no banho coletivo pois a aproximação de todos os corpos nus e o odor dos gazes mefíticos que alguns doentes exalam
6 Montagem de cartas escritas ao Dr. Ferdière em 12 de fevereiro e 18 de maio de 1943. Extraído do texto do espetáculo Cartas de Rodez. Tradução Lilian Escorel.
ofendem minha castidade, e o que me responderam é que não havia água quente. Pedi ainda que me fizessem a barba pelo menos a cada dois dias e o barbeiro me disse que não tinha tempo. E faz dois meses que o senhor prometeu me mandar uma escova de dentes e até agora não me mandou. O senhor bem pode notar que estou sendo maltratado, e poderá notar que também me trata muito mal, e no fim é a mim que o senhor censura dizendo que não me cuido bem. Suas reprovações me feriram o coração, são uma afronta que preferia não ter ouvido da boca de um amigo. Sempre me preocupei com a higiene de meu corpo e apesar de meu enorme cansaço vou procurar todos os instrumentos de que preciso além de uma escova de dentes. Mas será que o senhor não notou que quase não tenho mais dentes, e que dos trinta e três que tinha só sobraram oito. Parece que o senhor já se esqueceu de como os perdi. É cruel, Dr. Ferdière, censurar um homem ferido e acidentado por maus tratos de não escovar os dentes ao saber que este
ARTAUD, Autoportrait,1946
mesmo homem perdeu os dentes por desgraça .6
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Artaud chega em Rodez em janeiro de 1943. Pouco a pouco ele se refaz, recupera seu peso, seu corpo e também sua mente. Em junho estimam que já está restabelecido o bastante para resistir à brutalidade da sismoterapia, e ele é submetido a uma série de eletrochoques. O eletrochoque, tal como era praticado nessa época, é uma extraordinária barbárie. De uma crise de epilepsia provocada, o doente acorda abobalhado após um coma que dura longos minutos. O eletrochoque abala o pensamento, tornando-o confuso, faz o paciente mergulhar neste estertor por onde se deixa a vida e de onde ele volta com a lembrança atroz de ter sido esvaziado de seu eu. Já na segunda sessão, o corpo de Antonin Artaud não suporta a violência das convulsões e ele sai com fortes dores na coluna vertebral. Assim mesmo, os médicos persistem. Depois do terceiro eletrochoque, elas se tornam insuportáveis, a nona vértebra dorsal é fraturada e o médico deve abandonar este tratamento que causou tantas desordens: será necessário dois meses de leito e de cuidados apropriados antes do corpo poder ficar de pé. No final de outubro do mesmo ano, seu sistema ósseo é considerado bastante sólido para recomeçar o tratamento. Ele é submetido ainda 12 vezes ao eletrochoque e no ano seguinte três outras séries de 12 são impostas. A cada vez ele se revolta, protesta, suplica e fala, com uma lucidez extraordinária, das razões que ele tem para condenar esta prática : O eletrochoque me desespera, tira minha memória entorpece meu pensamento e meu coração, transformame num ausente que se percebe ausente e se vê durante semanas perdido em busca de seu ser como um morto ao lado de um vivo. Na última série eu fiquei durante todo o mês de agosto e setembro absolutamente impossibilitado de trabalhar, de pensar e de me sentir ser. Peço que me poupe de uma nova dor, isto me fará repousar, Dr. Ferdière, e preciso muito de um repouso. 7
No entanto a medicina, esta medicina que mente a cada vez que ela apresenta um doente curado pelas introspecções elétricas de seus métodos, continua a pretender curá-lo atravessando seu corpo com descargas elétricas, jogando seu ser no abismo em 51 comas durante os três anos passados em Rodez. Mas graças a que recursos este homem cujo corpo e mente sofreu tal violência conseguiu não se aniquilar? O Teatro da Cura Cruel Em Rodez, quando ele sente a possibilidade de voltar para a vida exterior, a idéia do teatro reaparece. A produção literária de Artaud neste período é marcada pela forma epistolar, reveladora de seu desejo de dramatizar a escrita , de escrever sempre para alguém, para um leitor-espectador. Além de recomeçar a escrever e desenhar, ele se dedica a uma intensa e quotidiana prática vocal, exercitando sua respiração e seu corpo, praticando cantos e giros conjuratórios que eram também um meio para lutar contra
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7 Montagem de cartas escritas ao Dr. Latrimolière (6 janeiro de 1945) e ao Dr. Ferdière ( 24 de outubro de 1943). Extraído do texto do espetáculo Cartas de Rodez. Tradução Lilian Escorel.
ESPAÇO ABERTO
8 O teatro de Serafim é um texto escrito para a revista Mesures que deveria entrar na composição do Teatro de seu Duplo. Ele só foi publicado em 1948 na coleção Air du Temps.
os feitiços maléficos que o cercavam. Este trabalho, ele o repetiu quotidianamente depois de seu retorno a Paris. A energia que ele produzia, as forças que emanavam de seu corpo enfraquecido, as incríveis variações de altura que obtinha de sua voz, a intensidade e a duração dos gritos aconteciam como um fenômeno de operação mágica. Este era o Teatro da Cura Cruel, um teatro que não precisa de sala, onde o lugar é o corpo do homem proferindo sua vida. Esta prática foi decisiva para a volta de Antonin Artaud à vida e à poesia. Mas estes cantos e giros eram censurados pelo médico-chefe do hospital psiquiátrico. Era desconhecer grosseiramente a teoria do grito e do sopro, do corpo do homem como lugar primordial do ato teatral que ele já tinha formulado nos anos trinta com o atletismo afetivo e o Théâtre de Séraphin8 . Ele faz questão de deixar claro que esta prática é uma lúcida determinação, ligada ao ato de criação, e que não tem nada a ver com uma demonstração de inconsciência. Ele sempre protestava quando seus cantos escandidos eram usados como provas de sua perturbação mental. Eram cantos que acompanham um desenho ou um poema e que ele transpunha como suporte de um signo escrito ou desenhado. O senhor esquece que eu também fui encenador e que todas as peças que fiz eram baseadas numa utilização particular da salmodia e da encantação. Isto é doença mental?
Artaud resistiu em Rodez pela escrita e pelo trabalho que ele impunha a seu corpo e à sua voz, trabalho este que é uma outra forma de escritura. O homem privado de sua liberdade mais elementar foi também privado de seu próprio corpo. Este mesmo corpo cujo funcionamento anárquico o fez sofrer os estados de dor errante e de angústia . Mas o terrível estado de reclusão psiquiátrica constituiu para Artaud uma extraordinária experiência cognitiva. Quando voltou a Paris em 1946, depois de passados 9 anos em manicômios, ele se denomina Artaud, o Mômo, como Artaud, o Louco, o Bufão. Depois de ter sido tanto tempo considerado louco, agora ele sentia prazer em se fazer de louco para dizer certas verdades. Uma destas verdades essenciais diz respeito ao nosso corpo. O corpo atual, desconectado da origem, é o resultado de uma manipulação perpétua e perversa em conseqüência da qual sua anatomia, que deixou de corresponder à sua natureza , deve ser refeita. No final de sua vida e de seu percurso artístico, Artaud concebe o Teatro da Crueldade como um grandioso projeto éticopolítico de insurreição física: trata-se de transformar a cena para que o homem e não somente o ator possa refazer sua anatomia, possa reconstruir um corpo sem órgãos . Este refazer baseia-se na idéia da decomposição e recomposição do corpo e visa essencialmente a desarticulação dos automatismos que condicionam e bloqueiam o indivíduo e o impedem de agir realmente, de modo consciente e voluntário, em cena ou na vida. Depois de Rodez, o Teatro da Crueldade é o teatro de um violento refazer do corpo.
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ESPAÇO ABERTO
ARTAUD, La projection du veritable corps, 1948
Em 1938, o célebre psicanalista francês Jacques Lacan, depois de ter visitado Artaud no Hospício de Sainte-Anne, onde já estava internado há um ano, declarou : Está fissurado, viverá até oitenta anos, não escreverá mais uma linha, está fissurado . As previsões do futuro guru da psicanálise foram completamente desmentidas: dos 26 volumes que compõem as obras completas, somente oito são escritos compostos antes de 1937, isto é, antes que iniciasse o calvário das internações. Artaud morreu em 1948, aos 52 anos.
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criação Colagem...
questões que perpassam uma clínica da inclusão
Criando lugar(es) para acolher a falta de lugar Mariangela S. Quarentei 1
Vou-lhes contar um segredo: A vida é mortal. Clarice Lispector
O que podemos contra todas as forças que ao nos atravessarem nos querem fracos, tristes, servos e tolos? Criar !!!!!!!: a resposta alegre! (Deleuze/Pelbart)
... alegre é a fonte propulsora da ação tal é o jogo lúdico daqueles que pensam e experimentam ... ação contra o assujeitamento das paixões e a desqualificação do desejo. (Fuganti)
Para nós trata-se de inventar novas práticas e conceitos para lidar com a loucura que não sejam instrumentos de segregação, opressão e controle, mas de produção de vida.
1
Terapeuta ocupacional do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu, FMB/Unesp; supervisora das Oficinas de Atividades do Hospital-dia da FMB/Unesp.
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CRIAÇÃO
NÃO É O PARAÍSO Não é o paraíso porque não é fácil viver assumindo as contradições. Romper com o predomínio cultural do modelo segregativo clássico da Psiquiatria, no qual o manicômio constitui a única resposta ao sofrimento psíquico.
MANICÔMIO O manicômio é ainda a resposta que a sociedade dá ao desespero. (Basaglia) À experiência da impossibilidade de suportar o estravazamento de relações demasiado complicadas (a própria vida e o viver), no manicômio deixamo-la impotente, a congelamos, a esterelizamos, tornamos inerte uma comunicação, aceitamos a ruptura da linguagem, pois por ali passam correntes demais (Rottelli); vida demais! MANICÔMIO LUGAR ZERO DA TROCA. (Donzelot apud Rottelli) MANICOMIO: luogo di custodia che, con la scusa della cura , ha transformato i malati in criminali ed di personale medico ed infermietistico in secondini. lugar de custódia que, com a desculpa da cura , transformou a doença em crime e o pessoal médico e de enfermagem em carcereiros. (Cinque anni perla democraziaTrieste) A instituição responde mais às próprias necessidades de auto-reprodução que às necessidades de seus usuários.
...a mais segura e talvez a única garantia de manutenção da saúde, dos bons costumes e da ordem, é a lei do trabalho mecânico e rigorosamente executado (... ) e estou fortemente convencido que não se pode fazer um estabelecimento durável deste gênero, e de utilidade sustentado se não se dispõe sobre essa base fundamental. (Pinel apud Birman)
e desinstitucionalizar significa inverter estas lógicas.
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CRIAÇÃO
DESINSTITUCIONALIZAR A desinstitucionalização do manicômio é interminável porque não se trata de fazê-los sair (internos e trabalhadores) ... A vida é difícil porque precisamos fazer história em lugares ocupados por nossos irmãos-inimigos. ... parce qu'il faut jouer les histoires dans les places occupées par des frères ennemis . (Tosquelles apud Gallio) ... na realidade, a rede é gerada pelo mal estar de muitas pessoas que se identificam com maior ou menor distância ao que se chamou de anti-psiquiatria ou com seus objetivos de luta pela eliminação de todas as formas de reclusão e instituição da violência psiquiátrica. (Basaglia)
Acreditar no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem do controle, ou então fazer nascer novos espaços-tempos...(Deleuze)
O HOSPITAL-DIA unidade do hospital universitário da Unesp/Botucatu Criado em 1980, junto ao Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - FMB/Unesp, o hospital-dia de Botucatu insere-se no movimento brasileiro de transformação do modelo assistencial psiquiátrico, e sua terapêutica está centrada em atividades grupais. Nele: ... as pessoas vão e vêm, permanecem, vivem um espaço possível para criar vida (Rottelli). Na sua vida cotidiana, no trabalho, o centro torna-se assim um microcosmos de elaboração de linguagens, de uma memória individual e coletiva, de projetos, emoções e afetos: microcosmos de sociabilidade, portanto também em sua dimensão simbólica, cultural. Produção de cultura em sentido de uma cultura das necessidades e dos recursos . (DeLeonardis apud Rottelli)
Conversar, escrever, cozinhar, pintar, passear etc, são modos de cuidar/ estar/escutar/acolher o sofrimento, a loucura; dar-lhes tempo e matéria para que, filmando, passeando, cozinhando, cantando recriem maneiras de estar no mundo ... As atividades, o fazer humano, são tomadas como territórios, potência e matéria de criação, expressão ... de modos de existir, de novos começos e da própria fabricação de mundos. (Quarentei) Há alguns anos instituímos nossas Oficinas de Atividades como mediação para a aprendizagem de alunos, estagiários, residentes e profissionais na perspectiva de construirem habilidades de interação, convívio e produção com pessoas em grave sofrimento psíquico. E para os usuários, como oportunidade para experimentar, aprender, apreciar, expressar-se,
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CRIAÇÃO
desenvolver-se, criar e produzir. O problema não é a cura-produtividade, mas a produção de vida, de sentido. Uma existência mais rica de recursos, possibilidades e experiências é também uma existência em movimento-mudança.
OFICINAS DE ATIVIDADES Oficina de música: QUALQUER CANÇÃO . . .onde a MUSA-Música muito presente no cotidiano de todos, solta ou acompanhando algum outro fazer, mas sempre ligada à emoção, a um ser/estar/sentir. Assim, sem pretensões de ensinar música, tudo pode acontecer: a música do dia, a música lembrada-lembrança . . .Lembra daquela? E aquela? Ao mesmo tempo que públicas, muito nossas: hino nacional, mpb, cantigas de roda e até jingles comerciais. Seus fragmentos misturados aos fragmentos de nossas estórias... Ouvir qualquer canção: uma forma simples de compartilharmos a vida. (Quarentei et al)
Criação coletiva, 1998/99 (detalhe).
Oficina de estórias Nosso desafio: criar estratégias para que todo e qualquer potencial de expressão em língua escrita ou oral se efetive, ganhe visibilidade no mundo e possa acrescentar força/intensidade às vidas. Assim, a cada encontro procuramos dar voz aos afetos que insistiam, ... buscamos e encontramos múltiplas maneiras de fabricar estórias e os seus momentos: estórias coletivas/colchas de retalhos, contar causos e rir de nossas estórias; diários, poesias, cartas, bilhetes; estórias a partir de desenhos; imagens que são enigma-narrativas só para os olhos; e quando só era possível falar, um outro atento registrava o fluxo das palavras. (Quarentei et al)
Oficinas (foram e são tantas quanto podem nossos corpos): aquarela, informação, canto, jardinagem, artesanato, pirogravura, pintura, cozinha, leitura, mural, dança, atividade física, argila e modelagem, com o corpo , poesia, colagem. . . . Criação coletiva, 1998/99 (detalhe).
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CRIAÇÃO
Criação coletiva, 1998/99.
MAIS (ALGUMAS DISPERSAS E BELAS PALAVRAS) SOBRE CLÍNICA E CRIAÇÃO O trabalho diário e a mão na massa são sempre mais maçantes que as belas palavras, mas em hipótese alguma se deve abdicar das belas palavras (Pelbart), nelas habitam nosso sonho e nossa utopia: Trancar não é tratar. Na solidão poderiam ter sido simplesmente destruídos pela vida . . . e todos provaram e por momentos chegaram a entre ajudar-se. . . . eis o convívio, a alma da comunidade sem a qual não terão guarida para viver. (Pedrosa) ... tirados do pátio do hospício para a seção de terapêutica, desta para o atelier, do atelier para o convívio, onde passou a gerar-se o afeto e o afeto a estimular a criatividade. (Pedrosa) ... a reinvenção da arte é condição para que ela possa interferir na transformação radical do homem e do mundo. Assim fazendo estaria realizando e ultrapassando as categorias de arte, tornadas categorias de vida, seja pela estetização do cotidiano, seja pela recriação da arte como vida. (Favaretto apud Lima) ... não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão, mas a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se re-singularizar. (Guatarri) ... algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupo podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos. (Winnicott)
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CRIAÇÃO
Não basta reconhecer o direito às diferenças identitárias, com essa tolerância neo-liberal tão em voga, mas caberia intensificar as diferenciações, incitá-las . . .Deveriam existir ateliês de tempo . . . não é simples e ainda estar atento para . . .conectar-se com outro, compor-se, combinar-se, contrapor-se . . .não para fazer bandinha, mas para não deixar que, por solidão, uma temporalidade morra estrangulada ou que alguém sufoque num ponto de horror. (Pelbart)
V. 1998.
A loucura é a ruptura absoluta da obra, é ausência de obra; ali onde há obra não há loucura. (Foulcault)
a relação com o estranho, o estrangeiro, a alteridade, com aquilo que irremediavelmente estará fora do meu espaço, do meu tempo, da minha consciência, do meu eu, da minha palavra, do meu controle. (Pelbart)
Tratar? Talvez apenas mover-se cotidianamente com o usuário ao longo de um percurso que não vise um valor, mas que reconstitua ou crie complexidade e restitua um sentido seu. (Rottelli)
V. 1998.
o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia. (Rosa)
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Você que explora em profundidade e é capaz de interpretar símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios? Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes basta-me uma partícula que se abre no meio da paisagem incongruente, um aflorar de neblina ... (Calvino)
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CRIAÇÃO
FORMAS E FORÇAS
Este é um trabalho clínico pautado no construtivismo e na experimentação ... trata-se de subjetivar ... criar lugar para acolher a experiência mesma da falta de lugar. (Lima)
... não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças. (Deleuze) ... tornar visível. (Klee apud Lima) ... começar a habitar em seu corpo e fazê-lo falar sua língua. (Mannoni) produzir moldura para a errância da aventura. Yanagi/Bienal 96 V. 1999 (detalhe).
GAIOLAS Hoje hospital, amanhã hospício e tal? Quem sabe...? A vida tem que seguir seu rumo certo. Ser como um rio. Como tornar-se rio ambulante perambulante por este corredor escuro, úmido, frio e quente. Tem que seguir seu destino. Seu rumo certo. Sua gaiola de ferro, arame e ouro. Sua gaiola dourada... Fétida e inútil gaiola da vida, da fonte eterna da juventude, transviada, tresviada e desmaiada.
Dizer é momento de produção de afirmação. Movimento de expulsão, de esconjuro, de exorcismo das forças da morte que se apropriam da energia vital. Dizer é momento de luta feroz e surda, de sopro de vida. Dizer já é um início de vitória - mas não se diz o começo da luta, este é indizível. Quando se chega a dizer, é porque a barragem que represava o sopro já sofreu o primeiro abalo. Dizer é momento. Momento em que se quer o que se pode, e já se pode o que quer. Momento que se diz para se poder e se querer mais, mais ainda, muito mais. Momento de gozo. Sinal de que se des-solidarizou das forças da morte. Dizer é declaração de guerra aberta à morte em vida. Dizer é difícil, V. 1999 extremamente difícil. Dizer é um fragmento do exercício . . . (Santos)
Como Éxupèry: redoma para proteger flores brancas, indefesas, inofensivas e alegres e tristes. Gaiolas do vai e do vem. Gaiolas da vida e do amor.
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CRIAÇÃO
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