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FOTOLIVRO: fotografia, design e narrativa | Cris Nery
Artigo FOTOLIVRO: fotografia, design e narrativa
Cris Nery1
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Inicio este texto com a seguinte indagação: quais as afinidades e dessemelhanças entre os ensaios fotográficos e os fotolivros? A princípio, podemos aproximar o fotolivro do ensaio fotográfico porque ele é, também, uma sequência de fotografias que, sozinhas, não são mais importantes que o todo. Nesse sentido, ao refletir sobre o suporte da impressão ou sobre a ampliação fotográfica, um ensaio fotográfico pode, por exemplo, ter como suporte: o papel fotográfico emoldurado; as telas de tecido; as projeções em paredes; as imagens digitais etc. Podem, ainda, ser expostos em galerias e museus, em sites e redes sociais, em museus virtuais, em revistas digitais e impressas, e também publicados como livros de fotografia, catálogos ou até mesmo fotolivros. No fotolivro, a fotografia é impressa nas páginas de um livro, o que o torna suporte e também uma linguagem artística. As fotografias sequenciadas em um fotolivro devem, portanto, utilizar a linguagem artística desse suporte para narrar o que será contado pelo autor/fotógrafo. Há outro suporte para a impressão das fotografias, denominado Livro de Artista.
1 Doutora em Design; Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais – Belo Horizonte/MG. Para saber mais sobre as referências utilizadas neste texto da Revista Tangerine: NERY, Cristiane Gusmão. Tese: Imagens Cruzadas: design gráfico e montagem cinematográfica na edição de fotolivros. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Antônio Silva. 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/44335655/IMAGENS_CRUZADAS_Design_ gr%C3%A1fico_e_montagem_cinematogr%C3%A1fica_na_edi%C3%A7%C3%A3o_de_ fotolivros Acesso em: 08 mar. 2022.
Porém, trata-se de uma discussão mais ampla, a qual não será abordada neste momento. Recomendo a leitura da pesquisa do Professor Doutor Amir Cadôr para mais aprofundamento2 . Dito isto, sumariamente, o fotolivro é um livro e, portanto, se insere no contexto de qualquer tipo de livro, uma vez que o conteúdo precisa ser desenvolvido, o design editorial precisa ser projetado, a diagramação precisa ser realizada, assim como o tratamento das imagens, a impressão, a publicação, a distribuição, as doações de exemplares e/ou as vendas. Tais processos nos levam a pensar na pergunta feita por Lyons (2011): afinal, quem faz os livros? 3 Ele explica que os autores escrevem textos, daí a questão da autoria. Mas, quem faz o objeto livro? Para Lyons (2011), o livro é feito por diversos profissionais e dentre estes está o Designer, que é quem “constrói” o objeto livro, escolhe o tipo de papel, o tamanho, a diagramação das imagens, as cores, a tipografia, a capa, os acabamentos etc. As gráficas imprimem, e os editores publicam os livros. A produção de um livro envolve, portanto, uma grande rede de profissionais (LYONS, 2011). Sendo assim, se os autores escrevem os textos, podemos dizer que os fotógrafos são autores que produzem as fotografias e criam uma narrativa que querem contar a partir das imagens que fazem. O fotolivro é, portanto, uma narrativa contada por meio das fotografias do fotógrafo/ autor. Por essa razão, a produção de um fotolivro assemelha-se à produção de outros livros. Porém, no desenvolvimento de um fotolivro, a parceria entre o fotógrafo, o designer e o editor torna-se, por assim dizer, o alicerce para o sucesso da obra. Tratase de um trabalho cujo autor/fotógrafo deve participar de todas as decisões gráficas, uma vez que elas irão influenciar a “leitura” da história que ele quer narrar por meio das fotografias. Além disso, a sequência das imagens quase sempre é pensada antes pelo fotógrafo, visto que em alguns momentos ela acontece durante a diagramação da obra.
2 Professor Amir Brito Cadôr. Disponível em: http://somos.ufmg.br/professor/amir-brito-cador Acesso em 03 mar. 2022. 3 LYONS, M. Livro: uma história viva. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011.
Podemos aplicar para esse processo, o conceito de Imagens Cruzadas de Etienne Samain (2012) 4. Para o autor as imagens possuem a capacidade de gerarem significados quando são colocadas umas ao lado das outras. Importante ressaltar que a sequência das fotografias influencia a história que será contada, assim como a ordem dessas imagens, a posição e o tamanho que ocupam na página e a definição da cor. A beleza das fotografias pode ser suficiente para o sucesso de um livro de fotografias, mas pode não ser suficiente para o êxito de um fotolivro, uma vez que é necessário saber construir a narrativa utilizando a linguagem desse suporte. Por isso, são muito comuns as aproximações feitas entre a teoria da montagem cinematográfica e a sequenciação de fotografias em fotolivros. E, como explica Samain (2012), uma única imagem já tem o poder de suscitar nossos pensamentos, mas quando diferentes imagens se cruzam, elas detêm o poder de alterar o interpretante – a partir da Semiótica de Peirce (1995)5 . Uma vez discutido o suporte fotolivro, partiremos agora para o ‘lugar’ de exposição dos fotolivros. Por exemplo: onde encontramos fotolivros, onde estão expostos? Como temos acesso? Como compramos? O lugar do fotolivro pode ser desde a livraria física e virtual para compra; passando pelas galerias e museus onde são expostos e consultados como acervo, até as bibliotecas, específicas de fotografia e arte, ou bibliotecas comuns. Os fotolivros já são produzidos para comercialização, mas há uma grande questão quanto à distribuição. Como fazer com que essa produção chegue ao grande público e não se torne restrita ao público dos festivais de fotografia?
4 SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas, SP: Unicamp, 2012. 5 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Editora Perspectiva, 1995.
Dessa forma, o Fotolivro se inclui em toda a história do livro como tecnologia humana, além de adicioná-lo, também, na história das tecnologias que foram surgindo para inserções das imagens em livros, tais como as iluminuras, xilogravuras, litogravuras e a ampliação e a impressão da fotografia em papel. Como explica Kossoy (2006), a fotografia foi, inclusive, uma solução para imprimir imagens em papel, ou seja, imprimir com luz6 . E, afinal, o que faz um fotolivro ser um fotolivro? Especialmente, é a intenção do autor/fotógrafo em contar uma história com um formato de narrativa visual7 . Fotolivro é um termo que surge no início do século XXI para denominar certos livros fotográficos que se distinguiam de outros tipos de publicações que continham fotografias em seu miolo, por justamente proporem uma narrativa visual. Em suma, os fotolivros objetivam contar uma história. Essa qualidade os diferencia, principalmente, de outros impressos, tais como: revistas, jornais, catálogos de exposição; ensaios fotográficos publicados em revistas ou coleções; livros de artistas, entre outros. A grande questão é que algumas dessas distinções são fronteiriças. Por exemplo, um catálogo de exposição pode vir a ser um Fotolivro. Um Livro de Artista também pode vir a ser um Fotolivro e assim por diante. Por isso, é importante identificar que a intenção do autor ou fotógrafo ao produzir o objeto Fotolivro (normalmente com a parceria de ao menos dois outros profissionais: o designer e o editor) seja criar uma narrativa por meio das fotografias.
6 KOSSOY, B. Hercule Florence: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. 7 Para saber mais sobre Narrativa Visual: ALVES, André. Os argonautas do mangue. Precedido de Balinese character (re)visitado por Etienne Samain. Campinas, SP: Editora da Unicamp e Imprensa Oficial, 2004.
Villatoro (2017) explica que o fotolivro possibilita acrescentar à linguagem fotográfica outro elemento: a narrativa8. Narrativa esta que não necessariamente precisa ser linear, podendo, até mesmo, ser abstrata, fragmentada, paradoxal, não-linear, fantástica. O nome Fotolivro também foi aceito devido ao seu uso em diversas publicações de coletâneas de Fotolivros, tais como: Fotolivros Latinoamericanos9; The Photobook: A History,10 publicado em três volumes. Ao longo das décadas de 2000, 2010 e 2020 muitas coletâneas foram publicadas, surgiram encontros em festivais de fotografia e também seminários acadêmicos para discutir e expor fotolivros. Grandes exposições foram realizadas, muitas delas para acompanhar o lançamento das coletâneas. Foi o caso da exposição ‘Fotolivros latino-americanos’ realizada no Instituto Moreira Salles de São Paulo em 201311 e da ‘Exposição Fenômeno Fotolivro’ em 2017 no CCCB – Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona que lançou juntamente uma série de catálogos que objetivam refletir sobre o suporte enquanto linguagem12 .
8 VILLATORO, V. La imagen que narra. Catálogo de la Exposiçión Fenómeno Fotolibro. RM: Barcelona, 2017. 9 FERNÁNDEZ, Horacio. Fotolivros latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 10 PARR, M; BADGER, G. The Photobook: a history. Volume I. Londres; Phaidon Press Limited, 2004. 11 Exposição Fotolivros latino-americanos. IMS. Disponível em: https://blogdoims. com.br/fotolivros-latino-americanos/ Acesso em: 02 mar. 2022. 12 Exposição Fenômeno Fotolivro. CCCB. Disponível em: https://www.cccb.org/es/ exposiciones/ficha/fenomeno-fotolibro/225004 Acesso em: 02 mar. 2022.
Os pesquisadores e estudiosos se debruçaram a estudar os livros ilustrados fotograficamente (Photographically illustrated books13) desde a incorporação de fotografias coladas nas páginas dos miolos de livros a partir da década de 1840. Dessa forma, o termo Fotolivro passa, também, a denominar livros do “passado”, digamos, anteriores ao século XXI e que continham as mesmas “qualidades ou definições” que, de acordo com os estudiosos, caracterizavam um fotolivro. Portanto, a partir da adoção do termo Fotolivro e de todos os eventos e discussões a seu respeito, foi natural que fotógrafos, designers e editores quisessem publicar fotolivros e participar dos eventos. Explicando de forma elementar: as fotografias são produzidas por um fotógrafo, o objeto livro é diagramado por um designer e publicado por um editor. Ainda temos aqui vários profissionais que podem estar envolvidos, principalmente no que se refere à produção gráfica, além da comercialização, distribuição e discussão em torno da autoria. O autor pode ser o fotógrafo, que conta a história. Ou a história pode ser construída em parceria pelos profissionais envolvidos, designer e editor. O autor pode ser o fotógrafo ou pode ser uma autoria conjunta.
13 Photographically illustrated books. British Library. Disponível em: https://www. bl.uk/collection-guides/photographically-illustrated-books# Acesso em: 08 mar. 2022. Para saber mais: The Pencil of Nature. 1844–46. William Henry Fox Talbot. MET. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/267022 Acesso em: 08 mar. 2022. Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions. 1843 – 1853. Anna Atkins. The New York Public Library. Disponível em: https://digitalcollections.nypl.org/collections/ photographs-of-british-algae-cyanotype-impressions#/?tab=about Acesso em: 08 mar. 2022.
De qualquer forma, surgiram as feiras, publicações independentes, convocatórias de bonecas de fotolivros cuja premiação era a publicação e a distribuição do fotolivro vencedor. Basta digitar na busca da internet o termo Convocatória de Fotolivros14 ou em inglês Photobook Dummy Award15 e a lista que surge é interminável. E o mais interessante é que foi um fenômeno mundial e que adentrou também o meio acadêmico e os estudiosos das universidades, museus, bibliotecas e variados tipos de instituições. Citando Horacio Fernández, “a biblioteca agora é o museu” (2017)16 . Para citar algumas bibliotecas em que podem ser encontrados fotolivros e livros de fotografia: Coleção Livro de Artista em Belo Horizonte organizada pelo Prof. Dr. Amir Cadôr17; A Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles em São Paulo18; Foto Colectania em Barcelona / Espanha19; entre outras. Acrescenta-se, também, a importante Base de Dados de Livros de Fotografia20 .
14 Exemplo de uma das convocatórias para publicação de fotolivros realizadas no Brasil. Revista ZUM. Disponível em: https://revistazum.com.br/en/festival-zum-2021/ convocatoria2021/ Acesso em: 02 mar. 2022. 15 Exemplo de uma convocatória internacional importante de bonecas de fotolivros. THE KASSEL DUMMY AWARD. Disponível em: https://fotobookfestival.org/kasseldummy-award/ Acesso em: 02 mar. 2022. 16 FERNÁNDEZ, Horacio. La biblioteca es el museo. Catálogo de la Exposiçión Fenómeno Fotolibro. RM: Barcelona, 2017. 17 Coleção Livro de Artista. Disponível em: https://www.bu.ufmg.br/bu_atual/ especiais-e-raros/artes/livro-de-artista/ Acesso em: 02 mar. 2022. Blog da Coleção Livro de Artista. Disponível em: https://colecaolivrodeartista.wordpress.com/ Acesso em: 02 mar. 2022. 18 Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. Disponível em: https:// ims.com.br/acervos/biblioteca-ims-paulista/ Acesso em: 02 mar. 2022. 19 Foto Colectania. Disponível em: https://fotocolectania.org/es/collection/ Acesso em: 02 mar. 2022. 20 Base de Dados de Livros de Fotografia. Disponível em: https://livrosdefotografia. org/ Acesso em: 02 mar. 2022.
Partindo, portanto, do pensamento da fotografia, do design e da narrativa, apresentarei dois fotolivros citados por Horacio Fernández na coletânea Fotolivros Latino-Americanos (2011), os quais estão disponíveis para consulta no acervo da Coleção Livro de Artista: Aeroporto, de Claudia Jaguaribe (2002), e Doorway to Brasilia, de Aloisio Magalhães e Eugene Feldman (1959). Devido à importância das duas publicações, é possível encontrar muitas informações disponíveis sobre ambas as obras, caso surja o interesse em aprofundar mais a respeito. Aeroporto, de Claudia Jaguaribe, foi publicado em 2002. De acordo com Fernández (2011, p. 206), o projeto Aeroporto incluía uma exposição e um catálogo. Porém, “Claudia conseguiu quebrar a rotina do mundo da arte e fazer do livro uma obra autoral, no mesmo nível de exigência da exposição” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 206). Ainda de acordo com o autor, o design de tal obra é assinado por Rodrigo Cerviño Lopez.
Aeroporto. Claudia Jaguaribe, 2011. Foto: Cris Nery. 0ut. 2019. Fonte: Coleção Livro de Artista/UFMG.
Doorway to Brasilia, de Aloisio Magalhães e Eugene Feldman, foi publicado em 1959 e tanto as fotografias, quanto o design são creditados aos dois profissionais. De acordo com Fernández (2011, p. 81), as possibilidades de linguagem das artes gráficas empregadas na primorosa impressão do fotolivro o tornam um exemplo de “riqueza de texturas, tonalidades e transparências das fotografias, sua escala monumental, o cuidado dos contrastes exagerados ou da impressão do foco, a elegância da fonte New Gothic, em negrito, impressa em cinza; enfim, todo o alarde gráfico de um livro tão extraordinário quanto seu tema” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 81). Em minha tese de doutorado (NERY, 2020, p. 176-188), me foi possível observar toda a riqueza expressa pelo livro, uma vez que realizei uma análise da obra que compreendeu diversos aspectos, tais como ficha técnica; partes do fotolivro; análise descritiva; análise de conteúdo; análise do projeto gráfico; objeto; material e layout21 . A base de dados de livros de fotografia disponibiliza um review da obra, ou seja, uma visualização das páginas sendo passadas. Trata-se de um recurso bastante utilizado e divulgado para disponibilizar fotolivros de maneira digital22 .
21 NERY, Cristiane Gusmão. Tese: Imagens Cruzadas: design gráfico e montagem cinematográfica na edição de fotolivros. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Antônio Silva. 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/44335655/IMAGENS_CRUZADAS_Design_ gr%C3%A1fico_e_montagem_cinematogr%C3%A1fica_na_edi%C3%A7%C3%A3o_de_ fotolivros Acesso em: 08 mar. 2022. 22 Doorway to Brasilia. Disponível em: https://livrosdefotografia.org/publicacao/459/ doorway-to-brasilia Acesso em 7 mar. 2022.
Doorway to Brasilia. Aloisio Magalhães e Eugene Feldman, 1959. Foto: Cris Nery. 0ut. 2019. Fonte: Coleção Livro de Artista/UFMG.
Para encerrar este texto, gostaria de ressaltar novamente a enorme quantidade de informações que podem ser obtidas on-line para quem se interessar em ‘descobrir’ fotolivros e seus autores. São monografias, dissertações, teses, pesquisadores, seminários, revistas, artigos, festivais, convocatórias, exposições, acervos, coleções, bibliotecas. Divirtam-se!