VOL.4 - N.1 | NOVEMBRO - 2013 ISSN 2237-9282
ITACOATI AR A Uma Revista Online de Cultura ARTIGOS
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ENSAIOS
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RESENHAS
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LITERATURA
DOSSIÊ: Representações da Interdisciplinaridade: entre a discussão e a prática
UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE
Fabiana de Oliveira Lima | NASEB/UFPE Luciana Menezes | Letras/UFPE Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE Thiago Sales | NASEB/UFPE
Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto Carlos Newton Junior | UFPE Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência de Literatura Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de Nanterre/Paris/França Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE
Danielle Vilela
SUMÁRIO: CARTA DO EDITOR...................5 JOVEM COLABORADOR Educação popular na perspectiva educacional indígena............8 Ana Claudia Santos Silva
História, Metodologia, Memória.............16 João Paulo Nascimento de Lucena
DOSSIÊ As Entranhas das Humanidades: Reflexõesacerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição...........24 Danieli Siqueira Soares
Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor............36 Fabiana de Oliveira Lima
Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ campus Volta Redonda-RJ...................53 Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho
A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar..................76 Nathália Alvarenga Porto Costa
Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade....................86 Rejane Peres Costa
ENTREVISTA Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo...............96 Thiago de Oliveira Sales
ENSAIO FOTOGRÁFICO Livre que pensamos. Louvre que somos..........................105 Texto e Fotografias de Claudio Xavier
LITERATURA FOLIAS NA FAZENDA: UM RELATO MEMORIAL........................111 Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz
carta do editor: Vai nascer o sujeito capaz de idealizar o presente. Só há mesmo
“lembradores” e “ansiosos”. Fica, portanto, essa coisa de idealizar o passado: De dizer, por exemplo, que os antigos viviam o que diziam e
diziam o que viviam – é bem isso a opinião de Pierre Hadot e Michel Foucault sobre cínicos e estoicos. Porque os antigos, dizia Hadot,
vivenciavam as ideias! E nós não, nós teorizamos aquilo que gostaríamos de viver e vivemos aquilo que limitamos a idealizar. É por isso que, no
cristianismo, o verbo se fazia carne – o gesto do Cristo foi a radicalização absoluta da possessão corporal de uma ideia. A Itacoatiara, agora no
quarto volume, surgiu da “serena impaciência”, se é que isto é possível,
da antropóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira, de “substancializar uma ideia”. Cida, como é conhecida, queria “samplear” o movimento plural do
mundo sob as páginas de uma revista regida pela “cultura” – cultura como
5
metaconceito, ou seja, cultura como aquilo que realça o gosto pela
natureza. É preciso entender “cultura” no pensamento de Cida Nogueira
para melhor entender a Itacoatiara. Cultura não é o oposto da natureza, nem sua complementariedade antagônica óbvia, como postula Edgar Morin e, também, Gilbert Durand. Tampouco é uma “queda” e um
“retorno” de estados que se alternam sob os auspícios de um “perspectivismo antropológico” aguçado. Cultura é interdição saudável para melhor realçar a natureza – porque Cida, a partir de uma psicanálise
singular, restaura o interdito de Lévi-Strauss para desvelar a vida como um enigma insuperável que melhor se degusta quando apimentado. A
interdição está ali presente para isso: Criamos interdições para melhor
degustar as transgressões – algo entre o incesto de Lévi-Strauss e o
desejo na acepção de Sade. Criamos interdições, e chamamos a isso de cultura,
para
experimentar
a
“natureza”
em
estado
bruto
(desculturalizada a partir da desconstrução da “norma” imposta). A “norma” permite o jogo, e o jogo, por sua vez, é aquilo que se descreve
em termos dessa velha e sacra antinomia antropológica: natureza e cultura. por
E esta edição é, portanto, uma retomada disto tudo, não apenas haver,
neste
número,
um
dossiê
específico
sobre
interdisciplinaridade, mas sim, por agregar uma tentativa de pluralidade
de caminhos que não se esquiva ao enigma e ao sentido do trágico – como apontava o filósofo José Marinho.
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 5 - 6
O dossiê, organizado por Fátima Branquinho e Fabiana Lima,
disserta sobre limites e improvisos da prática interdisciplinar, tentando
recuperar àquilo que Cida postulava como um exercício de “religação” de saberes. Há momentos onde isso irrompe pela tradição, tal como indicou
Daniele Siqueira, e outros, descritos por Nathália Alvarenga e Vagner Francisco, em que as urgências do discurso ambiental contemporâneo clamam pela religação necessária a toda ecologia.
A preocupação interdisciplinar apresenta-se reforçada na sessão
“jovens colaboradores”, na qual os artigos de Ana Claudia Santos e João Paulo Lucena discutem e revisam questões de método e possíveis religações de saberes em situações escolares.
Na sessão de fotografia, Cláudio Xavier, a partir da articulação de
imagens colhidas em deambulações intercontinentais, pensa o homem
enquanto espécie de “museu ambulante de artefatos em busca da
aceitação” – seres reduzidos a pequenos exercícios de vaidade e
escambo. Entretanto, esses “sujeitos que são troças” não deixam de nos
maravilhar. Na entrevista, a Itacoatiara segue em sua empreitada de
6
“deixar a ver” o homem etnografado, ou seja, o “homem geral” que erige
teorias específicas – este que constrói e desconstrói edifícios teóricos. Há por fim um conto, no qual a memória desvela o jeito lúdico de brincar
com proporções, em que Carlos Japiassú discorre sobre uma casa... Uma casa nunca abandonada.
Thiago Sales.
JOVEM COLABORADOR:
Educação popular na perspectiva educacional indígena Ana Claudia Santos Silva
História, Metodologia, Memória João Paulo Nascimento de Lucena
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Educação popular na perspectiva educacional indígena
Ana Claudia Santos Silva
Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de JaneiroUERJ
8 Resumo
Este artigo é uma pesquisa teórica, que tem por objetivo
apresentar a educação indígena brasileira ao longo do tempo. Dialoga
com a educação popular, na medida em que a educação indígena incorpora saberes que apostam na diversidade cultural, respeita e estimula os processos próprios de aprendizagem, investe na pedagogia
da oralidade e nos saberes que circulam fora da escola. Observa-se uma
interação entre a educação libertadora de Paulo Freire e indígena, pois esta valoriza o aluno, seu conhecimento prévio e o leva a refletir sobre
seu lugar na sociedade, preservando e transmitindo a cultura de acordo com a sua realidade.
Palavras–chave: educação popular, educação indígena, movimento indígena.
JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA
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A visão da sociedade em relação aos índios
Pode-se observar nas escolas brasileiras em geral, uma educação
que não abrange claramente o conhecimento sobre os índios, tanto na
história, como na atualidade. E com isso, o professor por falta de instrução, embasado em materiais didáticos com visão etnocêntrica, acaba por transmitir uma imagem distorcida dos indígenas para os
alunos, criando estereótipos como a generalização do índio e a crença de que este é um povo primitivo e ultrapassado. Como nos mostra Freire: “Se nós não tivermos um conhecimento correto sobre a história indígena, sobre o que aconteceu na relação com os índios, não
poderemos explicar o Brasil contemporâneo. (...) tentar compreender
as sociedades indígenas não é apenas procurar conhecer “o outro”, “o diferente”, mas implica conduzir as indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos.” (FREIRE, 2006, p.1)
Para exemplificar como ocorre esta visão generalizada que se tem
do índio, citaremos o relato feito em aula, na Universidade do Estado do
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Rio de Janeiro, por uma aluna que integra um grupo de pesquisa que estuda a cultura indígena. Ela contou sobre uma menina índia, que estuda em uma escola urbana, e recebeu uma prova com a seguinte questão:
Como os índios vivem? A menina, para não contrariar a professora,
colocou a resposta de acordo com o que havia aprendido em aula: vivem nas florestas, se alimentam da caça, usam arco e flecha, tanga e dormem em redes. Modo de vida este, totalmente diferente da sua realidade.
Muitas pessoas acreditam que a partir do momento em que um
índio começa a ter contato com a cultura branca e passa a adquirir
algumas coisas dessa cultura, ou seja, se ele passa a usar roupa ou relógio, deixa de ser índio. Ao pensar por esta lógica, o brasileiro que
possui um computador, usa calça jeans, ou come um hambúrguer, então não seria brasileiro, pois faz uso de coisas que não são típicas da nossa cultura.
Teor histórico da Educação indígena
Antes da chegada dos europeus em terras brasileiras, não havia na
sociedade indígena que aqui vivia, a instituição que conhecemos hoje como escola. Porém, possuíam formas próprias de transmitir em sua
língua, saberes referentes à cultura e tradição de seu povo. Não havendo JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA
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especialista em educação, o aprendizado ocorria em qualquer ambiente,
através das relações sociais, onde cada membro da tribo transmitia seus conhecimentos aos demais. Como não conheciam a escrita, ensinavam através da oralidade. Os adultos envolviam crianças e adolescentes em
todas as atividades, onde o aprendizado se dava pela prática, os mais novos tinham como exemplo os mais velhos, sendo função destes transmitir valores morais, crenças e culturas do seu povo.
A escolarização indígena brasileira tem suas origens ainda no
século XVI, período em que se deu início o processo de colonização. Os
primeiros responsáveis por essa escolarização foram os missionários católicos, que permaneceram com esta atividade até o fim do período
colonial, por delegação da Coroa Portuguesa. A iniciativa de educar os índios tinha como função a catequese e civilização. Mas sabe-se que seu principal objetivo era o de submeter politicamente os nativos, dominar seu território e explorar suas riquezas naturais. Nas palavras de Freire: “As primeiras escolas para índios – e não de índios – centradas na
catequese, ignoram as instituições educativas indígenas e executaram uma política destinada a desarticular a identidade das etnias,
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discriminando suas línguas e culturas, que foram desconsideradas no processo educativo.” (FREIRE, 2000a, 2004 p.1)
Os índios ao concluírem que deveriam se unir, em prol da luta por
suas causas e sobrevivência, iniciaram movimentos e organizações, para reivindicarem os seus direitos, e procuram de forma árdua, afirmar e garantir o seu espaço dentre a sociedade brasileira contemporânea. Através desses movimentos, houve a preocupação em preservar a sua
cultura, crenças e língua nativa. Entre os motivos que contribuíram para
este aumento populacional, estão o reconhecimento da identidade indígena, e a aceitação desta pela sociedade.
Movimento indígena pela busca de uma educação escolar diferenciada
A partir da década de cinquenta, com a vinda do Summer Institute
of Linguistics (SIL)
1
ao Brasil, surgiram novas propostas para a educação
Summer Institute of Linguistics (SIL) foi uma missão evangélica americana, criada no México na década de 1930. Por influência de intelectuais latino-americanos, o movimento se expandiu por toda América Latina. O SIL se aliou ao movimento indigenista. O resultado desta aliança foi 1
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do índio. O movimento que teve como ícone em nosso país, Darci
Ribeiro 2, propunha uma educação bilíngüe 3, como programa das escolas
públicas indígenas, além da defesa de seus direitos. Sendo assim, os meios de expressões linguísticas, não seriam mais reprimidos no espaço
escolar e teriam como objetivo preservar as línguas indígenas. O domínio da língua portuguesa pelos índios serviria como um meio de se
comunicar com os demais membros da sociedade brasileira, além de poder garantir e reivindicar seus direitos. Entretanto,
em
19
de
dezembro
de
1973,
período
que
compreendia a presença do Regime Militar, foi elaborada a lei 6.001,
título V, artigo 50, do Estatuto do Índio, dispondo, entre outras coisas,
que a educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional. Entretanto, pode-se entender que ao invés de promover a
integração indígena na sociedade, como deveria ser o real objetivo da lei
citada, esta ignora o direito do índio de manifestar livremente sua cultura em ambiente escolar.
Mais tarde, esta liberdade de manifestação cultural indígena na
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educação, foi assegurada pela Constituição de 1988, onde diz que o “ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” (Constituição Federal De 1988, art. 210, par. 2º).
Entretanto, por mais que o movimento SIL tenha sido um passo
importante no que se refere à educação do índio, e que a este, tenha sido
assegurado o direito por lei, de manifestação cultural, o objetivo da
escola ainda era o de tentar trazer o índio para a civilização. Pois, na educação formal, apesar de existirem professores índios, esta continuou sendo planejada por órgãos não-indígenas, tirando assim, a autonomia
da população nativa de elaborar seu próprio currículo. Além disso, a visão
a dupla identidade do membro do SIL (a de lingüista para os grupos nacionais e a de missionário para o público evangélico). 2 Darci Ribeiro (1922 a 1997) foi antropólogo, romancista e educador. Dedicou os primeiros anos de sua carreira (1947-56) em defesa das causas indígenas no país. Escreveu uma vasta obra etnográfica e em defesa da causa indígena. 3 No caso referido acima de educação escolar indígena, era ministrado o ensino da língua nativa de cada tribo e da língua portuguesa como segunda língua. JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA
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passada sobre os índios nas escolas não-indígenas continuou sendo preconceituosa, não estando de acordo com a realidade.
Sendo assim, em julho de 1991, o movimento dos professores
indígenas do Amazonas e Roraima 4, passou a discutir formas originais de educação, de acordo com as reivindicações de cada um dos povos indígenas que participavam do movimento. Esta discussão resultou na
declaração que foi ganhando força com o passar dos anos. Entre os princípios manifestados nesta declaração se encontram:
“1- as escolas indígenas deverão ter currículos e regimentos
específicos, elaborados pelos professores indígenas, juntamente com suas comunidades, lideranças, organizações e assessorias;
11- é garantido o uso das línguas indígenas e dos processos próprios de aprendizagem nas escolas indígenas;
13- nas escolas dos não–índios será corretamente tratada e veiculada
a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos e o racismo.” (SILVA, 1994, p.46)
Ainda em 1991, a educação indígena, por Decreto Presidencial,
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passou a ser responsabilidade do Ministério da Educação (MEC). E a partir deste momento, houve uma melhora significativa no sistema educacional.
Com o passar do tempo, a cultura indígena foi ganhando mais
atenção e respeito por parte da sociedade e do Estado, sendo garantido
por lei, o apoio e incentivo a mesma. No artigo 215 da Constituição Federal de 1988, foi promulgado que o estado “(...) garantirá a todos o
pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.” (Constituição Federal de 1988, art. 215) Esta lei foi completada em 2005, com a emenda constitucional nº 48, que reconhece a importância de valorizar a diversidade étnica e regional.
Mobilizações e lutas de movimentos sociais indígenas, resultaram
finalmente em uma educação escolar diferenciada, feita por índios e para os índios. Nesse sentido, houve a implementação de uma formação de
magistério indígena, que capacita índios e não-índios para lecionar nas escolas das aldeias, sendo
assegurado a preservação e o ensino da
cultura local. Uma reportagem feita por Roberta Bencini, em 2005, para a revista Nova Escola, apontou que há mais de 2 mil pessoas cursando o
Movimento organizado por professores indígenas de nove regiões: alto e médio Solimões; abaixo Amazonas; alto, médio e baixo Madeira; rio Negro (no Amazonas); Roraima e Acre. Procuram discutir sobre como conseguir uma escola adequada, atentando as necessidades de cada tribo.
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magistério indígena, provavelmente este número vem crescendo ao longo dos anos.
Em 1998 o MEC apresenta um Currículo Nacional para as Escolas
Indígenas. Este busca uma educação flexível, cuja base se mantém um pouco parecida com o modelo de ensino antigo dos povos indígenas,
com a preocupação de preservar os costumes, o conhecimento e a história da formação de cada povo. Em aulas de história, o professor
procura explorar relatos orais, imagens, desenhos e músicas com saberes
educativos da própria comunidade. Os alunos são incentivados a criar e
recriar a literatura local, em forma de livros e na disciplina de Educação Física tem-se uma preocupação em trabalhar atividades que desenvolvam o corpo através de danças, técnicas de caça, pesca e plantio, jogos e brincadeiras tradicionais. Sendo este o currículo que vigora atualmente.
Como podemos observar no texto de Bagno (1999), “Que país?
Que povo? Que língua?”, muitos brasileiros sabem que o idioma que
falamos no Brasil, o português, é derivado do latim. Mas a maioria desconhece a história do idioma no país e da sua relação com as diversas
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outras línguas indígenas, que aqui se falavam antes da chegada de Pedro Álvares Cabral.
Diversas comunidades da família Tupi e Guarani habitavam o litoral
brasileiro entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Havia entre elas uma grande
proximidade cultural e linguística. Para estabelecer uma comunicação com os nativos, os portugueses foram aprendendo os dialetos e idiomas indígenas. A partir do tupinambá, falado pelos grupos mais abertos ao
contato com os colonizadores, criou-se uma língua geral comum a índios e não-índios. Ela foi estudada e documentada pelos jesuítas para a catequização dos povos indígenas. Em 1595, o padre José de Anchieta a
registrou em sua Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Essa língua geral derivada do tupinambá foi a primeira influência recebida pelo idioma dos portugueses no Brasil.
Na segunda metade do século XIX, os autores do Romantismo
tentam retratar em sua obra uma brasilidade que distinguia a ex-colônia
de Portugal. Além de exaltar a figura do índio, autores como José de Alencar e Mário de Andrade trazem para a literatura a linguagem própria
do brasileiro, na busca por uma identidade nacional. O movimento
modernista, no começo do século XX, retoma a idéia romântica de resgate das origens e construção de uma identidade própria. Entretanto, tais romances mostravam um índio com características européias, sem
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fazer jus realmente a sua cultura. Desse modo, destacamos a importância
da inserção da História do Brasil, sobretudo em relação ao índio, no que tange ao estudo do português da América do Sul, visto que a cultura
indígena foi de suma importância para a história cultural-linguística do Brasil, apesar da pouca divulgação dessa contribuição.
Considerações finais
A sociedade indígena após vários séculos de opressão, vem
tomando o seu espaço e reafirmando a sua identidade. Mostrando-se
capaz de organizar e reger seu povo, através de culturas e saberes
próprios, estruturando a educação de acordo com as suas reais necessidades.
A educação indígena dialoga com a educação libertária de Paulo
Freire, no sentindo em que tem por objetivo educar as pessoas de acordo
com sua precisão, estimulando a participação, cooperação, reflexão do
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mundo e como este deve se colocar para que seja possível um diálogo, buscando sempre a melhoria da população.
Se baseando na carta dos indígenas das Seis Nações, que Benjamin
Franklin divulgou, pode encontrar o determinado trecho:
“(...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles
voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da
floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a
nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.
Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos
nobres senhores da Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens,
que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens.” (FRANKLIN, Benjamin apud BRANDÃO, Carlos R. 1987, p.10)
Diante da citação acima, fica claro a precisão de uma educação
diferenciada, de acordo com o que a determinada sociedade propõe como primordial, uma educação que respeite o conhecimento que a
pessoa já tem, utilizando como ponto de partida para o conhecimento que o educador tem por objetivo.
Nas palavras de Melià “(...) não há um problema da educação
indígena, pelo contrário, o que existe é uma solução indígena ao JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA
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problema da educação.” (MELIÀ, 1999, p.1) Esta fala traduz bem o que foi abordado neste trabalho, já que a educação popular indígena, que após
tantos anos de lutas e movimentos, foram conquistando mais autonomia,
pode assim utilizar o espaço escolar formal para propagar sua cultura e trabalhar métodos próprios de educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, Marcos. (1999), “Que país? Que povo? Que língua?”. III Semana
de Letras e Artes. Universidade Estadual de Feira de Santana.
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. (2006), “Movimento indígena
etnopolítico: história de resistência e luta.” In: O ÍNDIO BRASILEIRO: O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL DE HOJE. Brasília: Coleção educação para todos.
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15
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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (1987), “Educação? Educações: Aprender com o
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REIRE, José Ribamar Bessa. (2004), “Trajetória de muitas perdas e poucos
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FREIRE, José Ribamar Bessa. (2009), “Cinco ideias equivocadas sobre os
índios”. In: Siss, Ahyas & Monteiro, Aloísio. Educação, Cultura e Relações Interétnicas. Rio de Janeiro: Editora da UFRRJ.
FREIRE, Paulo. (1997), “Pedagogia da Esperança”. São Paulo: Editora Paz e
terra, 4º edição.
FUNAI. Estatuto do Índio. LEI Nº 6.001 - DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973.
Disponível em: http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html > Acesso em: 09 de abril 2011.
MELIÀ, Bartomeu. (1999), “Educação indígena na escola”. In: Cadernos
Cedes, ano XIX, nº 49.
SILVA, M. Ferreira Da. (1994),“A conquista da escola: educação escolar e
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000636.pdf
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História, Metodologia, Memória
João Paulo Nascimento de Lucena
Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco e
bolsista de Iniciação Científica pelo Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões – Gestão Política Pedagógica: Diálogo entre a
Universidade e Comunidades (SESu/MEC), onde coordena o Grupo de Estudos sobre o Patrimônio Cultural (GEPaC). Interessado em
estudos relacionados à História & Memória, História do Patrimônio em Pernambuco e História do Recife, atualmente desenvolve
16
projeto
de
pesquisa
no
seguinte
eixo
temático:
Memória,
Modernização, Recife, Patrimônio. Também é monitor voluntário na disciplina História Moderna I. E participou da organização da coletânea de artigos do 3º Encontro de Estudantes Pesquisadores: O Recife em debate. Recife: Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 2013.
MONTENEGRO, Antonio Torres. (2011), História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto.
“A história é essa busca incessante dos homens, talvez mágica, talvez absurda, de um sentido para a vida.” (Rezende, 1994, p. 42)
Apresentar em poucas páginas a ideia geral de um livro é um
exercício reflexivo prazeroso e ao mesmo tempo um encargo que exige
cautela: várias coisas a se dizer e poucas delas compreendidas, ou pelo menos sentidas. Méritos a parte... O percurso entre aquilo que é
dito/escrito e a recepção pelo ouvinte/leitor não é retilíneo. Pelo contrário, o contexto, a performance, o momento psicossocial do sujeito, entre outras coisas e, sim, o uso de códigos lingüísticos adequados ou
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não, interferem nesse processo de apreensão e significação do discurso.
“Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor” (Sant’anna, 2001, p.11).
Não há fórmula cartesiana na relação entre os indivíduos: o corpo
social é orgânico e, portanto, individual/coletivo, reagindo a estímulos do
seu viver cotidiano e interagindo com os símbolos por ele produzidos.
Evidentemente, a cultura, enquanto criação/reinvenção do homem,
também o é (Rezende, 1994). Homens e mulheres infligem significados às coisas que lhes rodeiam, e não o contrário; o significado nasce dessa
tensa relação: a busca de compreensão do movimento das coisas no tempo e de suas ramificações acrescida/perdidas nesse processo.
Nesse sentido, a memória apresenta-se como “o que fica do
passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado” (Pierre Nora apud Le Goff, 2003, p.267). Isto é, a memória revela-se enquanto um
“saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a
forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,
17
sustentando cada tomada da palavra.” (Orlandi, 2010, p.31)
O processo de rememoração implica, contudo, a impossibilidade
de reviver aquela experiência primeira à flor da pele. Segundo Antonio Torres Montenegro em artigo publicado anteriormente,
“este movimento permanente de ressignificação da memória a partir
das experiências do presente, associado a todo o conjunto de processos de fundação de outras memórias definem um vasto espectro de possibilidades de relações com o passado.” (1997, p. 200)
Estas são questões que cerceiam o trabalho do historiador que se
utiliza da história oral na coleta e registro dos relatos orais de memória. Dissemos utiliza porque estamos de acordo com o postulado de
Guimarães Neto (2011, p.1) segundo o qual “a história oral não é uma disciplina, mas uma metodologia ou prática de pesquisa” que não
objetiva contrapor-se à escritura e nem deve ser tratada como
reconstituição de um “elo perdido” ou muito menos chave explicativa de retorno ao registro primeiro da memória e do acontecido.
Em consonância com isso encontra-se o autor de História,
Metodologia e Memória. Nele, Antonio Torres Montenegro discute a
validade do uso da história oral como metodologia para a produção histórica dos acontecimentos e, sobretudo, das práticas do homem nos deslocamentos significados.
de
outras
temporalidades,
produzindo
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outros
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“Uma narrativa que privilegia aspectos e temas caros ao debate
metodológico e o permanente diálogo com a historiografia anterior e posterior ao golpe civil-militar de 1964.” (Montenegro, 2010, p.13)
Segundo Guimarães Neto (2011), todo bom livro de história é
resultado de pesquisa com base nos documentos e na atividade da
escrita: ele revela os vestígios de seu fazer. Isto é, ele contém os traços,
ou o modus operanti segundo Michel De Certeau (1982), que dão a ver a combinação do lugar sócio institucional de produção do discurso, as práticas científicas adotadas e a escrita. Todo texto de história é,
portanto, um texto problema: ele próprio objeto e também sujeito de sua
ciência que revela, de certa forma, a preocupação do autor e, por conseguinte, mas não estritamente, a de seu tempo.
O texto de Antonio Torres Montenegro não é diferente. Centra-se
sobre as formas pelas quais os entrevistados atribuem significados à sua memória e reflete sobre a construção de uma história que contemple a pluralidade desses sentidos e as várias formas de contá-la, pois
“a análise histórica tem como foco primordial as relações, os
percursos, as práticas, porque através do seu estudo é que se poderão
18
construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca o objeto ou a coisa à palavra.” (Montenegro, 2010, p. 31)
A própria palavra texto, que vem do latim textus, significa tecido,
isto é, aquilo que é tecido junto. E é procedendo com cautela que identificamos um pesquisador que tece e cose com rigor teórico
metodológico uma tessitura narrativa que privilegia um fecundo diálogo entre as fontes orais e a escrita. Assim, Montenegro preocupa-se em
“apontar o quanto as experiências históricas, tecidas nos relatos orais,
devem romper com os sentidos instituídos com base em análises que
desconhecem as condições de sua produção, suas estratégias e ordenamentos discursivos.” (2010, p.14)
História, Metodologia e Memória contém seis artigos dispostos em
capítulos. No primeiro deles, Rachar as palavras: uma história a contrapelo, Montenegro apresenta um balanço do processo pelo qual o estatuto
do
método
científico
de
René
Descartes 1
foi
sendo,
Filósofo francês que publicou o Discurso do Método (1637), obra que regeu o conceito de ciência no Ocidente por três séculos (XVII-XIX) e que operava com o que hoje Edgar Morin (2011) chama de “paradigma da simplificação”, termo que utiliza para se referir ao paradigma cartesiano que apresentava os seguintes procedimentos do que deveria ser entendido por conhecimento científico: tomar o objeto por claro e evidente; disjunção do conhecimento; hierarquizar do mais simples ao mais complexo; e generalizar, estabelecendo leis. Ou seja, “um modelo científico que defende a existência de uma realidade natural, 1
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paulatinamente, minado pelas críticas e contribuições de outras áreas do conhecimento ao longo século XX, sobretudo as recentes discussões da
física contemporânea, com a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein e a
Teoria da Incerteza, de Heisenberg, e suas ressonâncias no campo das ciências humanas, em especial na História.
No segundo capítulo “Narradores itinerantes”, o autor problematiza
a relação entrevistador-entrevistado sob a ótica do texto “O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin. Dentro deste artigo há uma seção muito interessante intitulada Gilda e
seus Príncipes, fruto de um projeto de pesquisa realizado junto a
trabalhadores (as) e moradores (as) do Bairro do Recife na década 1980 com o objetivo de reconstruir seus fragmentos de memória acerca daquele bairro. Revelando-se uma grande narradora, Gilda recorda as lições tiradas das suas experiências e projeta assim uma janela pela qual
podemos visualizar o grupo de mulheres no qual se encontrava inserida, pois “suas histórias são as de outros milhares de mulheres. A memória
individual e a coletiva alinham-se, assim, de maneira inseparável”
19
(Montenegro, 2011, p. 63).
O terceiro e sexto capítulos “Ligas Camponesas e sindicatos rurais
em tempo de revolução” e “Labirintos do medo: o comunismo (19501960)”, respectivamente, são artigos que revelam a gama de documentos de que o autor dispôs para analisar o impacto da mobilização camponesa
e do medo daquilo que se difundia amplamente na mídia como a iminência do perigo comunista, associados “à destruição de valores e
práticas muito caros à sociedade, como a família, a propriedade privada e a religião.” (Montenegro, 2011, p. 16)
Por fim, o quarto e quinto capítulos “Arquiteto da Memória: nas
trilhas dos sertões de Crateús” e “Política e Igreja Católica no Nordeste (1960-1970)”, respectivamente, discutem acerca da atuação da Igreja Católica no âmbito das lutas políticas estabelecidas nas décadas de 1950
e 1960 no Brasil, assim como a política mundial adotada pelo Vaticano contra o avanço do comunismo, espiritismo e protestantismo nos países periféricos, que “informa e ao mesmo tempo ajuda a situar a relação que
se estabelece entre setores da Igreja Católica e as esquerdas antes do golpe de 1964; e também a lenta mudança política que se observa nessa.” (Montenegro, 2011, p.17)
pronta, matematicamente determinada e submetida a leis, independente da intervenção ou participação humana” (Montenegro, 2010, 24). JOVEM COLABORADOR | HISTÓRIA, METODOLOGIA, MEMÓRIA| JOÃO PAULO NASCIMENTO DE LUCENA
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Para o pesquisador que busca se debruçar sobre a complexidade
da história oral e seu intermitente diálogo com a memória e as tensões e
questionamentos teóricos e metodológicos suscitados pela adoção dessa prática de pesquisa, História, Metodologia e Memória é livro de
referência. Para o curioso leitor, a obra constituir-se-á de sumo interesse e explanação, pois concilia assuntos caros à História com uma escrita leve e objetiva que não prescindi do rigor no uso de palavras e conceitos.
Para o estudante de história é leitura obrigatória, pois o livro é
uma lição de como produzir uma narrativa não sujeita a sucessão temporal e à causalidade, mas de uma tessitura entremeada de uma multiplicidade de fragmentos de discursos dos atores sociais cotidianos que revela uma história a contrapelo. Uma lição de como contar.
A escolha da capa talvez informe àqueles mais atentos acerca do
que se trata o fazer historiográfico: trata-se de um trabalho de artífice,
de um trabalho de carpinteiro ou marceneiro cuja precisão é exercício apreendido com determinação e paciência através da oralidade e da prática. O historiador é, portanto, um contador-artesão.
20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE CERTEAU, Michel. (1982), “A operação historiográfica”. In: A escrita da
história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, pp. 56-108.
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. (2011), “Historiografia, diversidade e história oral: questões metodológicas”. In: LAVERDI, R. et. al. História, diversidade,
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do
olhar”.
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contemporâneos da história oral – 1996. Campinas: CMU/Unicamp, pp. 197212.
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Contexto.
MORIN, Edgar. (2011), “A inteligência cega”. In: Introdução ao pensamento
complexo. Porto Alegre: Sulina, pp. 09-16.
ORLANDI, Eni Puccinelli. (2010), “Sujeito, História, Linguagem”. In: Análise de
discurso: princípios e procedimentos. 9. ed. Campinas: Pontes Editores, pp. 23-
55.
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REZENDE, Antonio Paulo. (1994), A cultura e a construção dos espelhos. Disponível em: http://www.ufpe.br/ppgfilosofia/index.php?option=
com_content&view=article&id=324&Itemid=246. Acesso em: 18 de março de 2013.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. (2001), “Ler o mundo; O Furor de Ler”. In: Ler o
Mundo. São Paulo: Global, pp. 10-12.
21
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dossiê: Representações da Interdisciplinaridade: entre a discussão e a prática
As Entranhas das Humanidades: Reflexões acerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição. Danieli Siqueira Soares
Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor Fabiana de Oliveira Lima
Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ – campus Volta Redonda-RJ Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho
A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar Nathália Alvarenga Porto Costa
Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade Rejane Peres Costa
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Apresentação
Desenvolver textos sobre interdisciplinaridade confrontou-nos
com algumas constatações e controvérsias que envolvem a integração de
disciplinas. O primeiro intuito foi trazermos experiências de tais integrações e ao mesmo tempo, observar teorias que embasaram a
valorização da interdisciplinaridade enquanto prática indispensável para o
cotidiano – seja ela científica ou não. Enfim, já estamos fazendo separações. De fato, nossa vivência acadêmica ainda costuma nos direcionar a especialização dos assuntos e não há estímulos a uma
prática interdisciplinar que amplie nossa condição de percepção e análise daquilo que estudamos.
6 23
Acompanharemos ao longo dos cinco textos diferentes discussões
sobre como a integração de disciplinas pode ocorrer com ou sem planejamento. Assim como, como é possível decidirmos por tratar os
nossos estudos de modo interdisciplinar. Um conjunto de autores nos
ajudaram a realizar reflexões sobre um dos assuntos mais discutidos, apontado como solução para o desvelar de aspectos complexos: Edgar
Morin, Ilya Prigogine, Bruno Latour, Josef Brozek, Marcel Mauss, entre tantos outros.
No caminho trilhado, visitamos desde experiências etnográficas
como meio para a prática interdisciplinar, passando pela possibilidade de soma entre o tradicional e a ciência, seguindo das ideias sustentáveis
como aporte a integração e chegando a importância do conceito para a prática pedagógica. A sequência dos textos não é linearmente lógica e terá um sentido diverso para cada leitura.
DOSSIÊ | APRESENTAÇÃO
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As Entranhas das Humanidades: Reflexões acerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição.
Danieli Siqueira Soares Graduada em Ciências Sociais – UFPE; Mestre em Antropologia –
UFPE; Doutoranda em Sociologia – UFPB; Professora Substituta do Departamento de Sociologia – UFPE.
24
Resumo
Seja na esfera individual ou social o movimento é constante,
desta forma uma ciência que se proponha ciência do homem, ou ciência do ser humano, ou ciência da humanidade, deveria considerar este ritmo das coisas, do tempo, do ser, do estar, da vida que se constituem pela
mudança. E assim, dentro desta perspectiva, as identidades, os acontecimentos e tudo de mais concreto que queiramos imaginar, está
inteiramente fragmentado. As Parteiras – pontes para este estudo -
podem ser entendidas como bricoleur, conceito abordado por LéviStrauss (2010), visto que seriam dotadas da capacidade de criar a partir do que está dado.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Parteiras, Tradição.
ENSAIOS | AS ENTRANHAS DAS HUMANIDADES: REFLEXÕES ACERCA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS, INTERDISCIPLINARIDADE E TRADIÇÃO | DANIELI SIQUEIRA SOARES
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Introdução
Parto da premissa, como afirma Castoriardis (1982:162) que “a
arte não descobre, mas constitui”, no sentido de que criação não é
descoberta, mas constituição do novo e que a relação disso com o real não é uma relação de verificação.
E já aproveitando para refletir nas ondas da complexidade, tão
altas e tão profundas, que vão e vem, assim como a maré, como num ciclo incessante de afirmações e refutações, vê-se que ao partir de um
principio, talvez, contrariando Castoriardis já falamos de um apriorismo. Ao mesmo tempo sugiro que repensemos a significação de conceitos,
começando quem sabe pelo o de a priori, visto que o próprio Castoriardis
apesar de sua crítica ao funcionalismo e ao estruturalismo nos confirma que a constituição dos símbolos não é livre (numa liberdade ilimitada) nem para o indivíduo, nem para a sociedade, é sempre tomada a partir de “algo que já existe”.
25
O simbolismo não pode ser nem neutro, nem totalmente adequado,
primeiro porque não pode tomar seus signos em qualquer lugar, nem pode tomar quaisquer signos. Isso é evidente para o indivíduo que encontra sempre diante de si uma linguagem já constituída, e que se
atribui um sentido “privado” e especial a tal palavra, tal expressão, não
o faz dentro de uma liberdade ilimitada, mas deve apoiar-se em alguma coisa que “aí se encontra”. Mas isso é igualmente verdadeiro
para a sociedade, embora de uma maneira diferente. A sociedade
constitui sempre sua ordem simbólica num sentido diferente de que o indivíduo pode fazer. Mas essa constituição não é “livre” [...] Todo
simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes. (CASTORIARDIS, 1982:146-147).
Serão os sujeitos ao chegar ao mundo, pensando mesmo num
modelo transumano, uma tabula rasa? Entendendo a sociologia como filha da modernidade, ou seja, presa na gaiola das loucas e dos loucos, para não dizer, já dizendo, vestida com o “manto de ferro” weberiano,
visualizo o eterno dilema, ou quem sabe até, psicose desta ciência. O que
é sujeito? O que é objeto? O que é agência? O que é estrutura? O que é parte? O que é todo? Eles se relacionam? Como? Quem tem soberania? Onde o pesquisador (sociólogo, etnólogo, antropólogo, etnógrafo,
musicólogo) fica em meio a isso tudo? É sujeito? É objeto? Categoria indefinida? Constrói realidades junto aos seus “pesquisados”?
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Este de fato parece ser um caminho sem volta, pelo qual a ciência
social, em minha opinião, não pode se esquivar visto que faz parte de um mundo
ou
mesmo
“sistema
mundo”
como
afirmam
as
teorias
descoloniais, que passa por intensas e profundas transformações
epistemológicas, epistêmicas, hermenêuticas. É como se o mundo estivesse sendo e precisa ser “virado ao avesso”, assim como uma
metáfora usada por algumas Parteiras Tradicionais quando afirmam que
pra parir a vida é preciso virar ao avesso, é preciso acessar o
“pensamento selvagem”, compreendendo que este pensamento está
presente em todos os seres humanos, ou seja, pensamento selvagem não é o pensamento do selvagem, do primitivo, é “o” primitivo e é esse que o mundo parece talvez ainda sem saber está vorazmente a procura.
Inspirada em Bruno Latour pergunto será que já fomos modernos?
Ou foi tudo simplesmente uma tradição inventada? Quiçá um sonho, ou pesadelo. Se somos, fomos ou deixamos de ser modernos, ou se tudo
não passa ou não passou de uma tradição inventada, será que é isso que verdadeiramente importa?
26
O caso da Universalidade
Talvez
a
universalidade
existente
aquela
da
estrutura
do
pensamento humano 1, jamais poderá ser captada por inteiro pela ciência social
ou
qualquer
outra
ciência,
provavelmente
por
que
esta
universalidade é infinita, o que se poderia acessar por momentos seriam as variações dos temas universais, que muito possivelmente também não podem ser captados em sua totalidade visto que as variações em suas entranhas são da mesma forma universais, ou seja, tendem ao infinito.
Poderíamos chamar este processo de pieces of variation, se pudemos
falar em alguma captação, falamos de “pedaços destas variações”, que ao
serem captados já não são mais o que eram. E por que teriam que ser? Eis a questão.
A mudança é contínua, incessante, a única coisa que parece de fato
está sempre presente é a transformação. Um passo a frente, já não
estamos mais no mesmo lugar. Diria o mangue beater, Chico Science.
1
Em termo lévistraussiano.
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Seja na esfera individual ou social o movimento é constante, desta
forma uma ciência que se proponha ciência do homem, ou ciência do ser
humano, ou ciência da humanidade, deveria considerar este ritmo das coisas, do tempo, do ser, do estar, da vida (que não só humana, vale
ressaltar, ritmo da existência, de todas as espécies, vegetais, minerais,
animais) que se constituem pela mudança. E assim, dentro desta
perspectiva, as identidades, os acontecimentos e tudo de mais concreto que queiramos imaginar, está inteiramente fragmentado.
Não ser mais o que era não significa dizer que nada mais tem a ver
com o que passou. Os ‘pedaços’ se reatualizam, no entanto os elos
permanecem. Parece às vezes que a lógica da racionalidade, de um conhecimento secularizado busca romper completamente os elos, entre o antes e o depois, aliás, pensar em termos de antes e depois já parece ser resultado desta lógica.
Tempo. Este é um ponto chave para pensar a metodologia no
contexto das ciências sociais. Braudel (1990) nos convida a este
mergulho. O equipamento necessário para o êxito desta empreitada é
27
antes de qualquer coisa reconhecer a importância da interdisciplinaridade
entre as ciências sociais. O dialogo entre a história, a sociologia, a antropologia e as diversas ciências do homem (e da mulher!), permitirá repensar
um aspecto muito importante dentro do contexto das
humanidades que é “a duração social”.
Aponta para a pluralidade do tempo social. E assim defende uma
historia de longa, como diz Braudel (1990), muito longa duração. É a
passagem do instantâneo para uma história de amplitude secular. Critica a ideia de ‘acontecimento’, que é explosivo, ruidoso, dura um momento apenas, só é possível enxergar sua chama e nada mais.
Como sugere Braudel (1990), a perspectiva da longa duração
valoriza aspectos da continuidade que costumam ser enquadrados pela
razão moderna (a qual, por vezes se mostra unicamente irracional). Braudel (1990) enfatiza a realidade como “reconstrução”.
[...] Inquiridor do tempo presente só alcança as ‘finas’ tramas das estruturas, sob a condição de reconstruir ele também, de antecipar hipóteses e explicações, de rejeitar o real tal como ele é percebido, de
truncá-lo, de superá-lo; operação que permitem todas elas escapar
aos dados para os dominar melhor, mas que – todas elas sem exceção – constituem reconstruções. Duvido que a fotografia sociológica do
presente seja mais ‘verdadeira’ que quadro histórico do passado, e séENSAIOS | AS ENTRANHAS DAS HUMANIDADES: REFLEXÕES ACERCA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS, INTERDISCIPLINARIDADE E TRADIÇÃO | DANIELI SIQUEIRA SOARES
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lo-á
tanto
menos
quanto
reconstruído. (1990:20-21).
mais
afastada
pretenda
estar
do
Ainda pensando na variável tempo podemos com certeza dialogar
com diversos autores das ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (2002) propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências
compondo
dentre
outras
propostas
a
noção
de
epistemologias do sul. Ele critica o modelo da razão ocidental caracterizando-a como razão indolente (nos termos de Leibiniz). Sugere o
modelo
de
razão
cosmopolita
onde
estariam
presentes
três
procedimentos sociológicos, a saber, a sociologia das ausências, das emergências e o trabalho da tradução.
O foco que busco ressaltar aqui da perspectiva de Boaventura é o
da temporalidade, a partir da proposta de ‘dilatação do presente’. Este talvez possa ser um ponto de dialogo com a tese de longa duração de Braudel.
Além de se considerar única, “diminuir” a multiplicidade do mundo
e o expandir ao mesmo tempo a partir de suas regras, a racionalidade
28
ocidental contrai o presente e expande o futuro. Já a racionalidade cosmopolita busca o inverso, contrair o futuro e expandir o presente, a
partir daí, amplia-se também o mundo. A sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, as das emergências expande o domínio das experiências sociais possíveis. Logo,
para Boaventura a alternativa à teoria geral, ou seja, a universalização da ciência é o trabalho da tradução, o qual incide tanto nos saberes quanto nas suas práticas.
O problema da invenção do outro
A ‘invenção do outro’ parece ser tema recorrente nas ciências
sociais, às vezes com grande preocupação epistemológica a respeito desta prática sociohumana, mas de fato onde residirá o problema em
inventar o outro se nos ‘auto-inventamos’ constantemente? Como, por que e para quê. Reside aí a essência da questão. O cru só existe em
relação ao cozido, o ‘outro’ só existe por que ‘eu’ o invento, caso contrário ele jamais seria outro (nem eu mesmo/a). O contexto em todo caso se dá de forma relacional. É na relação que está ancorado o problema da ‘invenção do outro’’. Algumas correntes do pensamento na
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ciência social não consideram nas entrelinhas de suas ciências tão científicas a invenção que o outro faz de si próprio, nem tão pouco as
relações de poder que são angariadas por esta invenção relacional. Diversos dispositivos de poder estão presentes nesta relação, um deles
citado por Castro-Gómez (2005) utilizando as análises da venuezuela
Beatriz Gonzalez Stephan sobre os dispositivos disciplinares do poder no contexto latino americano no século XIX, é a letra, representada nas constituições, nos manuais de urbanidade e nas gramáticas de indioma.
Castro-Gómez critica o “projeto da modernidade” em termos
Habbermasiano ressaltando a importância dos estudos pós-colononiais no campo das ciências sociais em especial por estes terem apontado que o surgimento dos Estados nacionais na Europa e na América não se deu
de forma autonôma, ou seja, pelo simples processo de transição entre a tradição e a modernidade, onde a racionalidade (weberiana) seria uma
qualidade inerente as sociedades ocidentais. E sim que houve uma
contrapartida estrutural fundamental para este surgimento: a colonização da Europa além mar. Este, segundo ele, é o principal limite das ciências
29
sociais que reproduzem o imaginário colonial de que o colonialismo não representou
modernidade.
destruição,
historiografia.
Essa
mas
ideia
foi
também
o
é
caminho
inevitável
reproduzida
pela
para
a
propria
Ainda de acordo com Castro-Gómez, as ciências sociais se
constituem
neste
espaço
de
poder
moderno/colonial
e
nos
conhecimentos ideológicos gerados por ele. A ciência social nunca vivenciou um ‘ruptura epistemológica’ – no sentido Althusseriano, face a
ideologia. Reproduz e se reproduz a partir da lógica da colonialidade, do evolucionismo, da Europa como centro, do caminho necessário a ser
trilhado por todas as nações, da bárbarie rumo à civilização. Neste
sentido, as ciências sociais funcionam estruturalmente como ‘aparelho ideológico’, nascem entre o século XVII e XVIII e se sustetam por uma imagem
colonial
de
caráter
ideológico.
Das
portas
para
dentro
legitimavam a exclusão e disciplinamento daqueles individuos que não se
enquadravam no modelo de subjetividade necessário para que o estado implementasse suas políticas de modernização.
Das portas para fora
legitimavam a divisão internacional do trabalho e as desigualdades nos
termos de troca e e comércio entre o centro e a periferia. A produção de alteridade para dentro e para fora faziam parte de um mesmo dispositivo de poder.
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E as ciências sociais seguem o desafio de aprender a nomear a
totalidade
sem
cair
no
essencialismo
e
no
universalismo
dos
metarrelatos, tornar visíveis os novos mecanismos de produção das
diferenças em tempos “novos”, e livrar-se de uma série de categorias
binárias que já não servem para pensar o contexto atual (Castro-Gomez, 2005).
O cru existe em relação ao cozido, mas não quer dizer que um se
sobrepõe ao outro, assim se pensadas como os dois lados de uma mesma
moeda, com toda complexidade que o fato requer, vale ressaltar. Assim
sendo, os dados do ‘campo’ sociológico jamais poderão ser coletados, eles são construídos e reconstruídos, assim como o próprio campo o é.
A experiência das Parteiras: saber e tradição
Assim como é de costume na sociedade das luzes de pôr os pares
em polos opostos foi feito também com a noção de “Mythos” e “Logos”,
30
onde ao primeiro foi dado o caráter de interioridade, da subjetividade,
entendida como fábula desprovida da verdade e ao Logos foi direcionado o caráter da Razão, da objetividade e da verdade.
De acordo com MORIN (1986) esses dois polos estão imbricados
numa teia complexa.
Os mitos não podem ser estudados de forma isolada, pois o mito é
composto de todas as suas variantes. (Lévi-Strauss, 2003). Os mitos obedecem a alguma lógica própria do imaginário coletivo.
O saber mágico é mitológico e mitopoético em sua essência e
desta maneira ele está presente nas sociedades ditas “sem escrita” bem como nas sociedades contemporâneas, isto é, em plena fumaça urbana
do século XXI. Assim também acontece com o arquétipo da Mulher Sábia, ele perpassa a barreira do tempo, vai ganhando novas características, se transformando, mas continua se referindo a uma temática universal. Está
presente no imaginário coletivo. Os saberes das Parteiras estão englobados neste contexto ultrapassando as barreiras do tempo e do
espaço, mas remetendo sempre a uma imagem específica, da Mulher enquanto curandeira, detentora de conhecimentos sagrados. Desta forma
podemos considerar que a Tradição ela é mítica, visto que ela modifica suas variantes, mas ela permanece viva.
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De acordo com Balandier (1997) de modo algum a tradição e seus
processos cognitivos podem ser tomadas como imóveis, rígidos e parados para sempre no tempo e no espaço. Estes aspectos concedem a
tradição um caráter sobre-humano, divino, onde o saber pertencente a
ela foi revelado por heróis, deuses ou fundadores míticos e ela torna-se
como um depósito sagrado desses saberes e seus transmissores como que porta-vozes desses poderes originais.
As Parteiras podem ser entendidas como bricoleur, conceito
abordado por Lévi-Strauss (2010), visto que seriam dotadas da
capacidade de criar a partir do que está dado. A Parteira Tradicional parece possuir um saber que realiza adaptação e resolução de problemas, a partir do reordenamento habilidoso do que está disposto.
O conhecimento das Parteiras no Brasil é repassado de forma oral
através das gerações. Esta oralidade também ocorre em outros povos
como é o caso dos índios Cuna que habitam o território da República do Panamá. Baseado em dados publicados em um texto mágico religioso de
Wassen e Holmer 2 sobre a cura xamanística entre os índios Cuna, Lévi-
31
Strauss (2003) nos relata sobre a importância da oralidade para este povo. Refere-se a um longo encantamento cuja versão indígena ocupa dezoito páginas. A situação é de um parto difícil e o diálogo é entre a
parteira e a parturiente. O fato é que ali cada interlocutor repete exatamente a frase do outro antes de responder-lhe, isto se dá, de
acordo com Lévi-Strauss (2003:222) “pela necessidade dos povos
limitados à tradição oral de fixar exatamente pela memória aquilo que foi dito”. Vejamos:
A doente diz a parteira: Certamente eu estou vestida com a quente vestimenta da doença. A parteira responde à doente: Tu estás certamente vestida com a quente vestimenta da doença, assim também eu te escutei. (Lévi-Strauss, 2003:222).
Ainda baseado nos mesmos dados citados acima, Lévi-Strauss
(2003) propõe interessantes perspectivas teóricas com relação à eficácia simbólica que um mito e um rito podem oferecer. Depois de detalhar este processo xamanístico, ele afirma que o mito é vivido no corpo interior e possui uma eficácia e um fim.
2
HOLMER, Nils M. & WASSEN, Henry. Mu-Igala or the way of Muu, a medicine song from the Cunas of Panamá. Göteborg, 1947.
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A cura, pois, se daria através de um conjunto de crenças no qual a
doente acredita, e ela faz parte de uma sociedade que também acredita
nestas crenças, onde podemos perceber o caráter social que tem grande importância na eficácia do mito.
Para Lévi-Strauss, o inconsciente é formado por um conjunto de
estruturas preexistentes e se reduz à função simbólica que em todos os
homens se exercem sob as mesmas leis (isto é, a forma de operar o
pensamento humano é a mesma em todos os povos atemporalmente). Segundo ele, é importante ressaltar que a estrutura permanece a mesma
independentemente da forma que o mito seja recriado (pelo sujeito
individual, pelo sujeito coletivo, pela tradição). Vejamos algumas palavras do autor:
Quer seja o mito recriado pelo sujeito quer seja tomado de
empréstimo à tradição, ele só absorve de duas fontes, individual ou coletiva (entre as quais se produzem constantemente interpenetrações
e trocas), o material de imagens que ele emprega; mas a estrutura permanece a mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza. (Lévi-Strauss, 2003:235).
32
Com suas rezas, manipulação de ervas e formas específicas no
partejar as Parteiras reafirmam e materializam a relação com o dom. As Parteiras Tradicionais estão constantemente atualizando o mito do dom,
daimon através do ritual do parto. No momento do parto o tempo é
transformado, já não mais se vivencia o tempo Chronos e sim o tempo Kairos que é o tempo fora do tempo, o tempo do divino, da renovação da vida, o tempo mítico.
Para Lévi-Strauss o mito fornece sentido para nossa existência. E o
rito permite a atualização dos mitos. Quando se ritualiza, se cristaliza e se materializa os próprios temas universais.
As práticas efetuadas pelas Parteiras fazem parte de um conjunto
ritual, possuem eficácia tanto material quanto simbólica. Em um ritual de nascimento, por exemplo, alguns chás, manobras e rezas praticadas pela Parteira podem promover a dilatação do colo do útero que está
paralisada, possibilitando desta forma à efetivação do nascimento. Logo, este rito é produtor de sentido. De um, dentro uma multiplicidade de sentidos existentes na trama complexa da vida.
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‘Desde dentro’ e ‘desde fora’, ‘para dentro’ e ‘para fora’...
A interdisciplinaridade
Como a ciência acadêmica, ainda em grande medida baseada nos
moldes da razão instrumental, lida com o conhecimento dito tradicional ou popular? Como ir além das cercas que dividem o mundo em dois (seja
o mundo das coisas ou o mundo das ideias)? O terreno é sinuoso e muitas
vezes
até
Interdisciplinaridade.
minado.
Uma
possível
solução
é
nomeada
Buscar a interseção entre os conhecimentos, ligar as diversas
disciplinas, as formas de ver, sentir e estar no mundo é um objetivo nem sempre alcançado, em especial se falamos da relação entre saberes, de
um lado científico, de outro popular. Dispositivos de dominação envolvem esta relação, que ‘inventa o outro’ como exótico muitas vezes,
como é o caso das Parteiras tradicionais. Seja pelas ciências sociais ou pelas ciências da saúde a interdisciplinaridade nem sempre vale para
33
todos/as. É só respondermos as perguntas: onde está a maioria das Parteiras? Como elas vivem?
Como transitam na sociedade? Tem sua
profissão reconhecida? da
O caminho trilhado nesta relação entre os saberes muitas vezes é o
apropriação/violência,
como
afirma
Boaventura
(2007).
O
conhecimento dito científico se apropria do conhecimento dito popular. E o “dito” pressupõe uma relação de superioridade versus inferioridade.
Além da apropriação produz-se o outro saber como ‘não existente’, e excluem
às
pessoas
envolvidas
corroboram para este processo.
neste
saber.
As
ciências
sociais
E assim a interdisciplinaridade efetivamente deixa uma lacuna.
Como percebido a partir da experiência das Parteiras tradicionais que continuam em grande medida desvalorizadas, inclusive de direito, visto que sua profissão não é legalizada, ou seja, as Parteiras não possuem direitos e benefícios trabalhistas, mesmo sendo um dos ofícios mais antigos do mundo. E mais além e preocupante é o fato de que seu saber é
apropriado, posto sob o ‘crivo’ da ciência, validado com outro nome, a
partir de outra lógica, e elas (nós), as Parteiras continuam sendo perseguidas pelos cartórios de registro civil, pelos conselhos regionais de
medicina, pelos próprios médicos e em alguns casos até por parte do chamado movimento de humanização do parto.
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Em nome da interdisciplinaridade se criam novas instâncias de
poder, de forma mais sutil e talvez até mais potencializada. Esta é uma dimensão forte e presente na relação de outros saberes com o saber tradicional das Parteiras. Assim percebo.
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34
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WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo-Texto
Integral, Edição revisada, São Paulo, Editora Martin Claret, 2003.
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Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor
Fabiana de Oliveira Lima Turismóloga graduada e mestre em Antropologia – UFPE; Doutora em
Ciências
Sociais,
Antropologia
Doutoranda em Gestão, UÉvora, Portugal
–
UFP,
Porto,
Portugal.
36 Resumo
Desde as Grandes Guerras a humanidade tem buscado outras
fontes de referência, principalmente para o desenvolvimento dos estudos científicos. O termo interdisciplinaridade é vastamente discutido e
apontado como solução para os nossas inquietações atuais. No entanto, como podemos identificar a aplicação da interdisciplinaridade? Para
buscar caminhos a esta questão, debruçamo-nos sobre uma breve retomada do contexto de valorização da integração de disciplinas e
buscamos exemplos da prática interdisciplinar a fim de reconhecer como ela pode ser empreendida em diferentes situações.
Palavras-chave:
Comportamento.
Prática
interdisciplinar,
Antropologia
do
Consumo,
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Introdução
A integração formal de disciplinas distintas emerge como solução
para compreender os eventos e conjunturas sociais que se instauram
incisivamente após as duas grandes guerras mundiais. Durante as décadas
de
1950
e
60,
muitos
investimentos
em
tecnologia
e
infraestrutura trouxeram novos olhares para as mais distintas áreas científicas, principalmente para aquelas diretamente envolvidas com o desenvolvimento e planejamento nos grandes centros urbanos.
Interdisciplinaridade passou a ser apontada como possibilidade
para adentrar, apreender elementos que estariam entre disciplinas
distintas, ampliando a possibilidade de avanços, aumento da criatividade e inovação 1. A principal motivação apontada para integrar disciplinas
adveio das reconhecidas limitações metodológicas de cada uma delas estudada separadamente. A conjuntura socioeconômica imprimiu a
urgência de encontrar novos sentidos, refazer estruturas e apontar outros
37
caminhos para a humanidade. Contudo,
o
principal
questionamento
quanto
à
interdisciplinaridade persiste sobre as condições de praticá-la: será que é
de fato possível ou simplesmente, é sempre praticada sem que haja um parâmetro para identificarmos como acontece? Por outro lado, as
primeiras indicações dessa prática entre distintas áreas científicas também foi incentivada pelo excesso de especialização, principalmente nas ciências da saúde, que acabaram por dificultar até mesmo compreensões menos complexas sobre as matérias dessa área.
Quando pensar a integração de disciplinas?
Josef Brozek 2 é apontado por Julie Klein (2005) como um dos
cientistas pioneiros na indicação das práticas interdisciplinares para as ciências da saúde, a partir da publicação de seu artigo “General Aspects
O termo inovação é aplicado no referido período como único caminho para atingir o “equilíbrio perdido” com as duas grandes guerras. Para mais, ver Barro (1944) e Peter Drcuker (1950) 2 Nascido em 1913 na atual República Tcheca, emigrou para os Estados Unidos em 1939, quando já possuía PhD em Psicologia. Desenvolveu diversos estudos sobre o comportamento humano e as influências da nutrição no mesmo (MASSIMI; CAMPOS, 2004). 1
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of Interdisciplinary Research in Experimental Human Biology” (1944).
Muito embora, a ideia de “Integração” já tivesse sido defendida pelo
psicólogo Herbet Spencer em 1855, assim como a teoria da “Instrução Integrada”, desenvolvida por Alexis Bertrand em 1898. Brozek demonstra
como pesquisas desenvolvidas por psicólogos 3 sobre o comportamento humano e os hábitos nutricionais estão diretamente implicadas – os aspectos bioquímico, psicológico e fisiológico seriam essenciais para resultados mais proveitosos nos estudos da biologia humana.
Portanto, defendeu que a colaboração entre disciplinas, embora
exigisse maior dedicação do cientista, era indispensável, tendo em consideração que a realidade é composta de uma complexidade muito
maior. Em um segundo artigo, ressaltou a interdependência científica e a necessidade de uma ciência mais realista:
The Interdisciplinary approach in scientific research is a logical alternative to scientific atomism brought about by specialization of research workers (BROZEK, 1945, p. 110).
Além da biologia humana, a disciplina de história passou por
38
transformações importantes ainda na primeira metade do século passado. Historiadores alemães reconheciam como insuficientes as ferramentas
metodológicas
utilizadas
até
então
e
recorreram
a
Sociologia, Filosofia e Antropologia, constituindo o que chamaram de
“História interdisciplinar”. O principal intuito era estabelecer alianças metodológicas, a começar pela Sociologia, em 1937 (HORN; RITTER, 1986).
A força propulsora da “História interdisciplinar” 4, na Alemanha e
França foram os fortes apelos a especialização e as limitações impostas pela mesma, ao passo que a complexidade dos temas apenas cresciam.
On reflection, however, it is clear that less specialization is not a possible solution, for it is this very drive towards specialization since the start of the nineteenth century which today has given us precise
and accurate knowledge in all of our academic disciplines. The growth
of significant knowledge depends upon an accumulation of more and more complex bodies of information, and these bodies of information in turn are the results of more and more complex methods of analysis. (HORN; RITTER, 1986, p. 428)
Nomeadamente, “Lewis, J; Sarbin, T. Studies in Psychosomatics. The influence of hypnotic stimulation on gastric hunger contractions. Psychosomatic Medicine, 5, 125-13, 1943” 4 Também conhecida como “Nova História”, Escola dos Annales. 3
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A história enquanto disciplina não trata apenas do passado, logo, o
historiador possuiria o papel quase de um etnógrafo na concepção do
que fora chamado de “História Cultural” aqui no Brasil e nos Estados Unidos (HUNT 5, 1984). Para além dos fatos históricos estão envolvidas
imagens, simbologias e representações culturais que interferem na interpretação do passado. Nesse sentido, os aportes metodológicos de outras ciências humanas poderiam servir de grande suporte para a
compreensão histórica – entretanto, o referido conceito interdisciplinar e
sua aplicação não tenha recebido uma quantidade significativa de adeptos quando fora lançado.
O contexto em que ocorrem os fenômenos cientificamente
observados
incluem
negligenciados
pelos
uma
série
de
especialistas.
E
fatores tal
que
costumam
negligência
empobrecer a compreensão do próprio fenômeno.
acaba
ser
por
Na Antropologia, podemos ampliar as observações. Os estudos
etnográficos, principalmente aqueles desenvolvidos por Malinowski e seus adeptos, serviram de impulso para que fossem pensadas as
39
economias de culturas distintas – de povos menos ‘desenvolvidos’- como
campo de pesquisa para as economias locais. Aliás, a etnografia aos
moldes do funcionalismo e posteriormente do neo-estruturalismo, é uma
das principais ferramentas metodológicas utilizadas por outras ciências – conforme veremos mais adiante.
A interdisciplinaridade parece emergir num momento em que as
respostas disponibilizadas pelas teorias e metodologias influenciadas
pelo positivismo não conseguiam mais saciar as dúvidas. E embora o termo ainda persista com dificuldades de aplicação, parece que reconhecê-lo como necessário é uma máxima.
Em 1962, Edward LeClair publicou um artigo sobre as diferenças e
contribuições entre a economia e a antropologia. Embora distinga
veementemente os interesses de ambas as disciplinas, ressalta que a
‘economia é como um processo social’ 6, parte de um sistema complexo e
dinâmico. O economista Karl Polanyi, por exemplo, estudou a Nova Sociologia Econômica (NSE), que reconhecia economia e sociedade
Ver “Politics, Culture, and Class in the French Revolution (University of California Press)” ou “Apresentação – História, Cultura e Texto. In:. A Nova História Cultural. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 6 “We shall see presently that, in fact, economizing may be a social process in a much more fundamental sense” (LeCLAIR, 1962, p. 1.190) 5
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mutuamente enraizadas, e se utilizou de pesquisas sobre sistemas tribais
primitivos para descontruir a ideia de que todas as sociedades se
encaminhariam para a busca constante do aumento da produção – como
pensava a Economia Moderna.
Logo, a economia humana estaria imiscuída em instituições
econômicas e não-econômicas, presente claramente nas sociedades que precederam
o
capitalismo
institucionalizado
–
compreensão
que
contrariava as perspectivas de Adam Smith. Polanyi (1992), aprofundou suas pesquisas sobre estudos etnográficos e utilizou os conceitos de reciprocidade, simetria e centralidade: Reciprocity
symmetrical
denotes
movements
groupings;
between
redistribution
correlative
designates
points
of
appropriational
movements toward a center and out of it again; Exchange refers here
to vice-versa movements taking place as between ‘hands’ under a Market system (POLANYI, 1992, p. 35)
Reciprocidade
teria
uma
relação
direta
com
redistribuição,
movimento natural das sociedades. Enquanto simetria, possuiria uma
40
relação direta com a centralidade dos bens, princípio das instituições para garantir o seu funcionamento. Os sistemas de reciprocidade, ou as redes, também foram defendidos como movimentos importantes e
saudáveis na economia por Mark Granovetter e Richard Swedberg – ação
econômica é socialmente situada. Esses dois autores defendem que os mercados não seriam autorreguláveis e que os governos, por mais que empreendam esforços, não conseguirão regulá-los.
A chamada “falácia da regulação de mercado” defendida e
justificada por Karl Marx, Maynard Keynes e Karl Polanyi – resguardadas as distintas trilhas seguidas pelos mesmos - reconhece que termos como desregulação ou liberação financeira e monetária, desintegração de padrões, instabilidade econômica poderiam ser manifestações óbvias
para a percepção do quanto os movimentos sociais influenciam no processo de produção-consumo, e nos consequentes direcionamentos de mercado.
O movimento dinâmico estaria presente em todos os objetos e
consequentemente, em todas as sociedades. E isso não faria referência
direta a uma ideia linear de ciclo de vida de um produto. Há uma grande dificuldade
em
gerir,
controlar
os
movimentos
econômicos.
Tal
constatação também é feita por Ilya Prigogine (1996) curioso com os estudos de termodinâmica desenvolvidos por James Yorke – que batizou ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA
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a “Teoria do Caos” – desenvolveu pesquisas empíricas sobre o equilíbrio dos sistemas. Os resultados de suas pesquisas trouxeram à tona a ideia
de que o caos é a representação do movimento vivo e criativo. Assim, no
cotidiano, inclusive dos seguidores de Adam Smith, nada seria tão passível de controle ou estabilidade. Aliás, a irreversibilidade do tempo
não permitiria que o novo chegasse se o tempo fosse passível de controle, fosse estável.
Podemos então enaltecer o caos todos os dias pela não estagnação
dos objetos, do nosso corpo, do pensamento, da própria economia, da história ou da biologia, enfim. A ideia de que o caos é também
representação da criação e renovação foi utilizada para os estudos mais avançados sobre o processo de inovação nas empresas. Sim, no mesmo
período em que as ideias de interdisciplinaridade emergem com maior
força, o mercado está, por sua vez, pensando maneiras alternativas de continuar vivo – inovar aparece como ‘evolução’ do inventar novas tecnologias (PETERS, 1993).
O tão desejado equilíbrio, de acordo com Prigogine, poderá surgir,
41
imprevisivelmente, da desordem produzida pelo caos. De certa maneira, a
especialização das disciplinas também objetiva o controle dos fenômenos estudados. Assim, a interdisciplinaridade seria um caminho para a ciência
que pretende manter-se viva, como defendeu Brozek (1946). Se os fenômenos não ocorrem de modo isolado e são irreversíveis, para que possamos nos debruçar sobre os mesmos, independente de nossa área científica,
precisamos
interdisciplinares.
nos
permitir
a
aplicação
de
metodologias
Como aplicar o conceito de interdisciplinaridade?
Considerando que a perspectiva interdisciplinar aplicada enriquece
a percepção sobre os mais distintos fenômenos científicos, é preciso
pensar em como aplica-la. Haverá um método para esta aplicação? Se optarmos por seguir os apontamentos do premiado químico Prigogine,
estabelecer um parâmetro de controle não seria a melhor maneira de
apreender um fenômeno. Mas, as indicações de fortes pesquisadores da interdisciplinaridade, como Klein (2005), Brozek (1946), Horn (1986) é de estabelecermos alianças metodológicas. No ato de investigação estaria o melhor
momento
para
visualizarmos
a
importância
de
integrar
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disciplinas. Sim, embora não sem antes dedicar tempo e atenção ao
estudo de outras disciplinas, exercitar a curiosidade que deve ser característica básica de todo cientista.
John Lynch (2006) justifica que, apesar de percebermos claramente
que há interdisciplinaridade entre as ciências, há uma grande dificuldade de coloca-la em prática. Primeiro porque não há uma aprovação unânime
da importância da sua prática. O que se vê frequentemente é um discurso de
interdisciplinaridade
fazendo
sombra
a
prática
de
estudos
especializados. Outras vezes, o que é chamado de prática interdisciplinar pode não passar de uma representação mal acabada de um conjunto de ‘retalhos’ de disciplinas distintas.
Se fizermos um estudo breve sobre uma disciplina distinta da que
estudamos, poderemos inserir elementos,
fragmentos dessa nova
disciplina na análise dos estudos que desenvolvemos sobre a nossa
disciplina. Mas isso não se caracteriza como prática interdisciplinar. Logo,
há uma dificuldade imposta pela ciência que exige resultados mais imediatos e adequados aos interesses dos fundos de financiamento:
42
como aprofundar e ao mesmo tempo expandir a percepção científica se
os prazos e interesses requerem resultados mais breves? É válido
refletirmos sobre as condições que o contexto de produção científica oferecem a prática interdisciplinar.
Como articular os ‘retalhos’ de distintas disciplinas? Isso porque,
ainda há outra dificuldade apontada por Lynch (2006), a possibilidade de ocuparmos, por exemplo, o papel de um sociólogo que ‘brinca’ de
economista por uns instantes, ou de um psicólogo que acha interessante
a postura de um antropólogo e se traveste do mesmo, também por uns instantes.
Brozek (1944, p. 512) apontava ainda que a aplicação de
ferramentas metodológicas de outras disciplinas científicas requeria experiência, como testes, para que pudéssemos verificar a tríade básica
onde-como-porque antes de tentar entender qualquer fenômeno: “It’s
fully integrated only after extensive experience of working and thinking together”. É preciso exercitar o diálogo com outros cientistas, de outras
áreas, buscar compreender os seus parâmetros de investigação, os seus interesses e anseios diante do que estudam. E como realizar este feito
num contexto em que não conseguimos facilmente ler os artigos científicos de nossas áreas de estudo?
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entre
Bem, diante dos que defendem a prática metodológica colaborativa disciplinas,
se
não
experimentamos
outros
caminhos
de
investigação para nossos estudos, estaremos fadados a mumificação de
nossas ideias. Por outro lado, essa prática exige maior dedicação aos
estudos, maior curiosidade do cientista – aparentemente, as pontes virão da desordem de conhecimentos que ele adquirir. A curiosidade deve ser
expandida a outras áreas também, como as condições sociais, os hábitos culturais, suas experiências cotidianas.
Entretanto, se imaginarmos que, embora sejam empreendidos
esforço na especialização das ciências, com certo sentido de “aparar
arestas” que dificultem o encontro de boas respostas às questões
científicas, na prática, é impossível não integrar nas interpretações científicas?
Bruno Latour 7 (1994) entende que a compreensão sobre os
fenômenos científicos não se exime da influência das experiências dos
cientistas, da expressão econômica internacional do nosso país, dos
fenômenos climáticos ou dos objetos envolvidos no estudo empírico. Se
43
não conseguimos de fato separar, não haveria uma necessidade implícita
de reunir. A integração de disciplinas seria então um formalismo institucional com fins de exaltar a generosidade que alguns cientistas
podem ter? Ou um posicionamento político frente a imposições institucionais quanto a resultados?
A análise sociotécnica proposta por Latour (1994) poderia ser
considerada como uma ferramenta metodológica de integração, pois está
focada na teoria ator-rede 8, na ideia de que interagimos com os objetos e que eles fazem parte de uma rede de sentidos que atribuiremos aos nossos estudos. Desde o ambiente concreto de um laboratório, a roupa
que vestimos, passando pelas nossas representações culturais. Nada escapa. Inclusive e principalmente a tecnologia.
O interesse de Latour pelas temáticas da tecnologia e suas derivações, como inovação, estão presentes já na sua primeira obra, publicada em 1979, Laboratory Life, resultado de dois anos de pesquisa na California. De 1982 até 2006 foi professor no Centre de Sociologie de l’Innovation, na Ecole National Superiéure de Mines, Paris. 7
Para Latour (1994), ator e ação estão intrinsecamente ligados, pois o ator é aquilo que cria – tudo que é capaz de participar de uma ação é também capaz de criar, portanto, humanos e não-humanos são atores também. E o mais importante, interagem. A interação é o que liga a todos em uma mesma rede – sem cessar. O ato de fazer é inato ao humano, no qual interdepende diretamente dos não-humanos. 8
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De fato, não podemos falar de interdisciplinaridade sem mencionar
quão importante foi a tecnologia para disseminar a sua relevância
científica. Através da tecnologia, as diversas disciplinas encontrariam o seu ápice de desenvoltura. Assim, uma das grandes contribuições de
Latour é apontar que, não apenas a tecnologia faz parte da construção da
sociedade, como também, é ela mesma a própria sociedade. Afinal,
“forgetting artifacts (in the sense of things) has meant the creation of that
other artifact (in the sense of illusion): a society that has to be held in place with just the social” (1996, p. 236). E se não queremos continuar a elaborar visões idealizadas da nossa sociedade, devemos ter em mente que, “objects do something, they are not merely the screens or the
retroprojectors of our social life” (1996, p. 236).
Portanto, seguindo as orientações teóricas e empíricas de Latour
(1994, 1996) a preocupação que alguns cientistas possuem em
especializar seus estudos dentro de disciplinas específicas não os faz escapar das influências externas nas suas interpretações científicas.
Inclusive, as conclusões ou respostas que são alcançadas pela ciência
44
hoje, podem e muito provavelmente irão amanhã encontrar seus opostos.
Uma preocupação em estabelecer metodologicamente parâmetros
para a prática da interdisciplinaridade pode ser desfeita a partir da
compreensão de Prigogine e mesmo de Latour. A criação ocorre num processo descontrolado, desordenado, que, por ventura, pode conter traços de ordem, indicar algum ponto de equilíbrio quando atingir uma forma – o que não significa seu ponto máximo.
Também podemos observar essa relação intrínseca entre o
cientista/pesquisador e os fenômenos que estuda por outro prisma. . Na
Antropologia, Marcel Mauss (1968) inaugura uma atitude interdisciplinar
e fala de máscaras sociais que estão sobrepostas ao indivíduo,
antecipando os trabalhos de Ruth Benedict (1983) e Margareth Mead (1988). Mauss sugeriu que observássemos as técnicas corporais, os
movimentos dos corpos, acreditando que as técnicas de intervenção direta no corpo, tal como o parto, eram grandes concentrados do que
seria determinada cultura, como se fossem a substancialização daquela
cultura. Ou seja, se a cultura é um processo de criação do homem, todos os seus movimentos criadores, inclusive os corporais irão falar dela.
Como considera que os hábitos, crenças e tradições variam de uma
cultura para outra, considera que a técnica também é algo que pode
variar até dentro de uma mesma cultura, nos seus diferentes grupos. O ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA
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que Mauss chama de técnica “é um ato tradicional eficaz (e vejam que nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja
tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição (1934, p. 217)”.
Portanto, a técnica está imiscuída no contexto cultural, relacionada
com as práticas religiosas tradicionais, bem como às práticas econômicas e sociais e são representações simbólicas das sociedades as quais se
referem. A prática da técnica não está reduzida, neste sentido, ao manuseio ou confecção de um instrumento, a definição de modelos. Mas
também está representada nele. Assim, desconsiderar a técnica é também desconsiderar parte da cultura.
Como estamos mergulhados num profundo lago de incertezas,
definir padrões torna-se uma tarefa árdua, e muito provavelmente, sem grande relevância, dado que o porvir não faz parte das ferramentas que dispomos.
Latour
parece
apontar
que
nunca
dispusemos
de
tal
ferramenta; o contexto em que estávamos inseridos anteriormente criava a ilusão, ou o idealismo, de que a possuíamos de alguma maneira.
45
O que permanece extremamente válido é a ideia de que o
conhecimento é aprofundado quando abrimos espaço para outras formas de conhecimento, outras maneiras de expressar o interesse e curiosidade
por ‘descobrir’, aprender. Muito embora, possamos reconhecer a aplicação de metodologias de outras disciplinas com o intuito de ampliar o panorama de compreensão sobre um assunto/fenômeno.
Etnografia para a microeconomia
A antropologia do consumo é um dos ramos da antropologia
econômica, iniciada com os estudos de Marcel Mauss sobre o princípio de reciprocidade nas culturas, ilustrado com o conceito de dádiva. Desse
modo, pretendia observar as trocas para além do seu aspecto utilitário, pensando as questões simbólicas e culturais que as permeiam, ou seja,
traz a ideia de que o comércio não deve ser observado apenas como
gesto mercantil, outrossim, embalado numa estrutura econômica maior,
tendo em vista que o ato da troca (reciprocidade – que inspirou Polanyi) envolve um todo mais complexo. O “Ensaio sobre a dádiva”, publicado em 1923-24, apresentava a mesma como elemento de imensa densidade por
ser um dos aspectos cruciais para promover a agregação de grupos. ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA
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Afinal, a troca é a materialização dos vínculos – sejam políticos, sociais ou econômicos. Desse modo, a antropologia do consumo procura
identificar os substratos da reciprocidade que se escondem por detrás do
processo da compra – ou como veremos nos actuais estudos de Denny e
Sunderland (2006), o aspecto metafórico da compra. Em parte, isto leva-
nos a compreender supostas “decisões absurdas” 9 que vão ao encontro
do que se espera para lograr êxito num investimento ou numa qualquer empreitada lucrativa.
Algumas corporações têm utilizado os serviços de consultoria de
antropólogos para terem, para além da visão mercadológica de seus
produtos, a metafórica, ou seja, são estudos do comportamento do consumidor numa perspectiva etnográfica.
Para Mary Douglas, “dando o devido crédito ao entendimento
metafórico [do consumo], podemos chegar a uma ideia mais precisa de
por que os consumidores compram bens (2006, p. 27)”. Portanto, esse caminho
considera
aspectos
subjetivos
(antropologia)
e
pós-
funcionalistas (teorias da administração). De acordo com o pensamento
46
de Peter Drucker, mais do que grandes estratégias organizacionais, as empresas precisam saber tomar decisões. Portanto, quando buscamos um modelo ele servirá de parâmetro de observação do fenômeno que nos
interessa, mas não transformará este fenômeno. Será como um quadro de
referências para que as decisões não sejam tomadas as escuras
completamente, e ao mesmo tempo, para que estas decisões – tão caras no mundo dos negócios - mesmo em momentos de grande pressão não sejam meros impulsos de resposta.
A partir dos estudos de Sherry (2008), foi possível observar que os
métodos já bastante conhecidos dos etnógrafos e antropólogos acabam
por se mostrar eficazes no reconhecimento das necessidades e gastos
dos consumidores. A etnografia descreve, retrata e demonstra como os hábitos socioculturais estão relacionados ao consumo.
Consumer culture has been characterized as an ethic, a standard of living, and a power structure, each of which encourages individuals to equate commodities with personal welfare and, ultimately, to conceive of themselves as commodities (SHERRY, 2008, p. 88)
Christian Morel (2002) escreveu interessante obra que procurava identificar o que se esconde por detrás da insistência em repetir ações que nos trazem prejuízos. Utilizando diversos exemplos de empresas que repetiam os mesmos erros, acabou por desvelar aspectos outros para além dos planeamentos óbvios do lucro garantido.
9
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Nesta perspectiva, a proposta seria encontrar um caminho
sustentável para o consumo através da observação do comportamento do consumidor – e assim obter respostas para uma produção sustentável.
Apesar de ser mais frequentemente encontrada em pesquisas
relativas ao consumo (Simonson, 2001; Sherry Jr. 2008; Urry, 2001; Jafari,
2005; Suchman, 2007; Ngai, 2003), a utilização da ferramenta de observação
do
comportamento
não
está
restrita
a
grupos
de
consumidores, estendendo-se também ao comportamento empresarial,
principalmente no que diz respeito a relação das rotinas das práticas organizacionais e a eficiência dos modelos/estruturas organizacionais aplicados pelas empresas, como é possível notar em algumas pesquisas realizadas por Weiermair (1990).
De acordo Suchman 10 (2007), em 1991 um artigo (Coping with
47
Cultural Polyglots) da New York Times reportava a existência de antropólogos empregados em grandes corporações. Um outro (Studing the Natives on the Shop Floor), no mesmo ano, foi publicado pela Revista Business Week. Na Revista Anual de Psicologia (ARP) de 1962 foi publicado um capítulo intitulado “Consumer Analysis”. No final dessa mesma década foi fundada a Associação de Pesquisas sobre Consumo.
Por volta desse período, os estudos sobre consumo consolidavam-se
como disciplina. Do final dos anos 1960 até os anos 1980, os estudos estiveram focados no comportamento de compra com ênfase em modelos chamados compreensivos. Segundo o que nos apresentam os estudos de Simonson (et al),
Comprehensive models of buyer behavior served a purpose in integrating various components and, in some ways, defining the field, they could not effectively tested, and significance of the actual insight they provide may be debatable (2001, p. 251).
Os
estudos
realizados
nessas
duas
décadas
advinham
de
influências multidisciplinares e estavam divididos principalmente em duas correntes: Behavioral Decision Theory – BDT, relacionada a Social
Cognition Consumer Research – SCCR; Por outro lado, estavam os estudos pós-modernos, interpretativos e o Positivist Consumer Research (modelos que serão explicados mais a frente). Nos anos 1990, a maioria dos autores da ACR (Association for Consumer Research) e do JCR
(Journal
of Consumer Research) era composta por pessoas que
Ainda são citadas pela autora as obras de Klein “No logo: taking aim at the bullies (2000)”; Lury “Brands: the logos of the Global Economy”; Walsh “Corporate Anthropology (2001)”. 10
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frequentaram cursos de administração ou economia, diferentemente dos
anos 1980, em que empresários e membros do governo, além de acadêmicos de áreas diversas faziam parte dos grupos de autores. Esse aprofundamento de perspectiva acabou por redesenhar os modelos de observação do comportamento do consumidor.
De acordo com os estudos de Weels, a compreensão dos
sociólogos a cerca do comportamento do consumidor trouxe outras possibilidades de interpretação aos dados e também nova utilidade para as pesquisas do gênero. Nomeadamente, para pesquisas que procuravam
adequar possíveis produtos. “In the 1980s, ideas from anthropology and
ethnography generated helthy controversy, new vitality, and new important ways of thinking about consumer behavior (1993, p. 494)”. Na óptica de Simonson (et al, 2001), nos estudos realizados, o
fator social teve menos expressão em relação ao cognitivo na decisão de
consumo. Os aspectos que envolvem o fator social são família, influências sociais, grupos de referência, auto percepção, atribuições; Já os do grupo cognitivo são o comportamento de decisão, memória e conhecimento,
48
linguagem, busca variada (diversificada), pré-consciência (o processo de decisão iniciado) e a preconcepção do produto (influenciada também por
um tipo de percepção intuitiva. Ou seja, o aspecto metafórico, já referido anteriormente, parece ter maior peso no comportamento de compra).
Denny e Sunderland (2006; 2005), que têm costumeiramente
desenvolvido trabalhos juntas, são duas das principais autoras sobre o estudo etnográfico do comportamento do consumidor e ao mesmo
tempo, duas consultoras do Practica Group 11. Nestas empresas elas aplicam a pesquisa etnográfica. E no que consiste um trabalho etnográfico? O primeiro aspecto é a descrição do que se vê, ouve e
observa; depois, a interpretação dos dados obtidos procura reunir o máximo de informações para compor verdadeiramente um cenário; por
fim, as análises comparativas vão além de uma perspectiva quantitativa dos dados, possibilitando uma compreensão mais ampla de situações mais complexas.
As autoras descrevem seu processo de pesquisa afirmando que
“research consumer behavior in situ and analyse metaphors as they are instantiate in social action, including behaviors, speech, organization and É possível conhecer melhor o trabalho das autoras e de outros pesquisadores do género na página do grupo na Web: www.practicagroup.com 11
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artifacts, and thoughts (2005, p. 1450)”. Para tanto, são recolhidos textos, fotos, vídeos, entrevistas – introspective and report data – considerando para o mundo real a ação real nele. Na construção de suas estratégias de pesquisa e análise de dados utilizam a metáfora como
direcionamento: “metaphor as a trope of everyday language thus
becomes a prism through which to observe and refract consumer behavior (2005, p. 1450)”. Assim, procuram compreender o que não seria tão óbvio mas tem grande relevância no processo de decisão da compra.
Em um de seus estudos realizados, observaram de que modo a
metáfora do computador tem afetado a percepção do indivíduo sobre si mesmo e sobre a sociedade. “These metaphors have also affected our
sense of how our minds work”. Tal afirmação leva a pensar como tais
intervenções afetam também a percepção do que é necessário para viver
have observed that portable devices and wireless communications have given people the ability to collapse temporal and physical space between home and Office, private and public, work and Play (2005, p. 1463)” Todas essas observações contribuíram para pensar
bem.
49
“We
novos designs de celulares e também de mesas para escritório, levando
em consideração o tempo que dispomos, a utilização do computador e as funções que temos agregado ao mesmo, como de comunicador com os
principais grupos sociais do indivíduo, principal instrumento de produção e arquivamento de trabalhos, enfim.
O diferencial de suas pesquisas é trazido pelo método. A
etnografia permite uma melhor adequação metodológica, também por acomodar bem diversas ferramentas de coleta de dados, inclusive de carácter
qualitativo
e
quantitativo.
Pois,
segundo
as
autoras,
“ethnography, because of its apparent ‘observational’ component, can be embraced by business as a closer accounting os life as it occurs, and thus be seen as a direct line to truth. (Denny e Sunderland, 2007, p. 430)”. Logo, quem produz determinado bem ou serviço pode encontrar-se distante ou mesmo numa posição superficial em relação às necessidades e preferências de consumo. E mesmo uma pesquisa de mercado pode
negligenciar os aspectos metafóricos, tão importantes no comportamento
do consumidor. Este método de Denny e Sunderland é aplicado identificando as formas de interação existentes na situação observada. O foco deve estar no valor simbólico, ou mesmo no sentido simbólico de
um determinado produto para aquele possível consumidor. As autoras
estão constantemente publicando nos principais jornais científicos que ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA
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abordam o tema do consumo e disponibilizam parte de seus textos na
página de seu grupo. Essa seria uma forma de socializar as pesquisas realizadas e demonstrar de que forma os resultados obtidos podem de fato inferir no sucesso de um produto lançado.
Da Interdisciplinaridade ao comportamento do consumidor
A prática interdisciplinar parece possível através de outras
metodologias, como sugeriu Brozek, Polanyi, Latour. Ao mesmo tempo,
pensar na integração de disciplinas abre espaço para que seja reconhecido o fato de que as experiências cotidianas, a intimidade do sujeito pesquisador são elementos constituintes de suas interpretações.
A etnografia utilizada para compreensão do comportamento do
consumidor mostra-se uma ferramenta eficaz inclusive para encontrar alternativas eficientes para uma relação mais ‘produtiva’ entre produção e demanda.
50
Interdisciplinaridade inspira maior dedicação e curiosidade por
parte de quem queira praticá-la – embora pareça fácil pois vivenciamos o caos e a complexidade, sistematizar ideais desse gênero requer maiores esforços empreendidos, pois implica sair da ‘zona de conforto’.
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Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ – campus Volta Redonda-RJ
Vagner Francisco Marinho da Silva
Doutorando do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente (PPGMA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e docente do IFRJ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro).
Fátima Teresa Braga Branquinho
53
Pós-Doutora em Estudos Sociais da Ciência, pelo Centre de
Sociologie de l’Innovation da École Nationale Supérieure des Mines
de Paris, é atualmente professora de Antropologia e Educação da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente na mesma universidade.
Resumo
Este
artigo
pretende
apresentar
as
atividades
integradas
desenvolvidas por um núcleo de educação ambiental no Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, campus Volta Redonda/RJ. As ações de educação ambiental em escolas têm exigido um
trabalho interdisciplinar entre professores, uma promoção de palestras sobre o tema e adequações na infra-estrutura física para que possam contribuir para minimizar os impactos ambientais locais. Palavras-chave:
Redonda/RJ.
educação
ambiental,
interdisciplinaridade,
Volta
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Introdução
Este estudo pretende apresentar as atividades propostas pelo
Núcleo de Educação Ambiental (NEAm) 1 do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) 2, campus Volta Redonda/RJ, desde a sua criação em 2010.
O NEAm foi criado nesta instituição para atender a necessidade de
organizar ações e aprofundar reflexões que envolvam a Educação
Ambiental e sua implementação em espaços escolares (BRASIL, 1999). Suas atividades estão propostas, basicamente, na adequação da estrutura do campus para amenizar seus impactos ambientais, nas ações de intervenção
pedagógica
no
processo
ensino-aprendizagem
para
promoção de uma Educação Ambiental interdisciplinar e na formação de educadores ambientais. As atividades deste núcleo ocorrem a partir das propostas de representantes dos professores, dos alunos e dos técnicos administrativos que auxiliam no seu processo de construção coletiva, dando-lhe um caráter democrático. Articula-se, também, aos cursos de
54
Formação Inicial e Continuada de Professores (graduação e pósgraduação).
A cidade de Volta Redonda está localizada na região sul-
fluminense e seu entorno urbano possui aproximadamente quinhentos
mil habitantes (IBGE, 2010). O contexto geográfico, do ponto de vista socioambiental, é bastante desafiador porque Volta Redonda apresenta vários problemas advindos da maior indústria siderúrgica da América
Latina (Companhia Siderúrgica Nacional), que se manifestam na poluição do ar, na exploração intensiva de recursos naturais, além da degradação
do rio Paraíba do Sul. Como outras cidades de porte médio do Brasil, a
cidade vive ainda sérios desafios ligados à gestão dos resíduos sólidos, ao saneamento básico e à ocupação irregular do solo urbano.
Em Volta Redonda está localizado o IFRJ que oferece cursos
técnicos
em
Metrologia
e
Automação
Industrial
(Ensino
Médio),
licenciatura em Física e Matemática (graduação) e a Especialização lato
sensu para professores (pós-graduação).
1 O estatuto do Núcleo de Educação Ambiental foi aprovado na 36ª Reunião Ordinária do Colegiado do campus no dia 08 de julho de 2010. 2 O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro foi criado, de acordo com a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, mediante a transformação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis.
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Por muitas décadas, os problemas ambientais foram escamoteados em nome do avanço industrial e do desenvolvimento econômico do país. A partir
do
processo
de
redemocratização
na
década
de
1990,
concomitante à realização de grandes convenções internacionais sobre o Meio Ambiente, os movimentos intelectuais e políticos relacionados às
questões ambientais se intensificaram e fortaleceram contribuindo para a
geração de instrumentos legais importantes como a Lei 9.795/99 3. A
instituição dessa lei traduz a indissociabilidade entre o ambiente propriamente dito, as preocupações com a sua conservação e a produção de conhecimento sobre ele.
Assim, as questões ambientais locais têm exigido mudanças de
valores, percepções, olhares, posturas, hábitos e práticas constituindo
um cenário onde a escola é fundamental para a construção de saberes sobre tais questões, sobretudo quando ela pode construir uma crítica
sobre ações educativas baseadas em uma concepção de ciência cartesiana 4.
Nessa perspectiva, percebe-se que as práticas desenvolvidas no
55
NEAm encontram obstáculo no despreparo dos educadores em relação à compreensão da noção de interdisciplinaridade. Tal compreensão exige
crítica sobre a concepção hegemônica de ciência que institui abismos dualistas tais como sujeito/objeto, fatos científicos/valores sociais,
conceitos/contextos assim como reflexão sobre a relação entre atividades educativas e concepções pedagógicas que dicotomizam natureza e cultura, com base no paradigma racionalista moderno 5.
Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica e
análise de documentos sobre a criação e as ações do NEAm no IFRJ
campus Volta Redonda.
Em 1999, é promulgada a Lei nº 9.795, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental. Ela definiu a educação ambiental como "uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal", não como disciplina específica no currículo de ensino, mas presente em todas as matérias. A lei estende a obrigatoriedade da Educação Ambiental para uma variedade de instituições: instituições educacionais públicas e privadas dos sistemas de ensino, órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e outros órgãos públicos (desde federais até municipais), envolvendo entidades não governamentais, de classe, meios de comunicação. 4 Entende-se aqui que um dos parâmetros da construção do conhecimento na ciência moderna é pautado no racionalismo cartesiano, como será verificado na sequência do texto. 5 Sobre a relação entre concepções de ciência e de educação, cf BRANQUINHO, F.T.B. 2004 e BRANQUINHO, F.T.B. e SANTOS, J.S. 2007. 3
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O artigo contribui para aprofundar as discussões sobre a temática
da Educação Ambiental a partir de observações sobre Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ/campus Volta Redonda à luz de noções construídas por
Boaventura de Souza Santos e Egard Morin, apontando a possibilidade de
valorizar as peculiaridades culturais locais e de propor caminhos para as práticas educativas de Educação Ambiental.
O contexto socioambiental do IFRJ – campus Volta Redonda
Segundo
contexto
de
LOPES
Volta
(2004),
Redonda
elementos
levaram
a
singulares
um
presentes
processo
social
no de
ambientalização. O termo ambientalização é um neologismo semelhante
a outros utilizados nas ciências sociais para designar novos fenômenos
ou novas percepções sobre fenômenos de um processo 6. Ele indica um processo histórico associado a uma interiorização de diferentes aspectos da questão pública do meio ambiente pelos grupos sociais. O processo
56
de
ambientalização
levaria
as
pessoas
a
uma
mudança
no
comportamento (trabalho, cotidiano, escola) e a transformações no Estado.
Dois fatores serão relacionados ao processo de ambientalização no
caso de Volta Redonda e serão discutidos neste artigo: os conflitos
sociais ao nível local e seus efeitos na incorporação de novas práticas; a educação ambiental como novo código de conduta individual e coletiva.
Volta Redonda é uma cidade que possui características singulares
no que se refere aos problemas socioambientais. Nela está localizada a
maior siderúrgica da América Latina e historicamente a cidade foi palco de muitos conflitos trabalhistas que perpassavam por questões de ordem política e ambiental. Desde sua fundação na década de 1940 até a década
de 1990 a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN – foi uma empresa
estatal (LOPES, 2004). Duas questões chamam a atenção: o fato de que os Esse é o ponto de vista para análise adotado no presente artigo. Contudo, vale destacar que há um movimento intelectual no campo das ciências sociais que busca rever o conceito mesmo de “social” e que descreveria o processo de “ambientalização” com base na noção de ecologia política que está atrelada a um procedimento metodológico denominado metafísica experimental (sobre isso cf. Latour, Bruno, 2004). No âmbito desse movimento, o problema intelectual associado à noção de “ambientalização” seria formulado a partir da teoria do atorrede que busca superar abismos dualistas como, por exemplo, natureza/sociedade, já citados.
6
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problemas ambientais causados pela atividade siderúrgica na cidade (poluição do ar, gestão dos resíduos sólidos e poluição da água, por
exemplo) não tinham tanta notoriedade até a década de 1990 e o atual
contexto ambiental, social, econômico e político da indústria - que foi privatizada em 1993 - no município.
Segundo LOPES (2004) a fiscalização ambiental sobre a CSN
durante o período da ditadura militar não ocorria porque o município era
considerado área de segurança nacional. A fiscalização da poluição aquática começa com a Feema (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente) em 1985 com uma ação pública judicial instaurada pelo município de Macaé que pede o reparo dos danos ambientais causados pela CSN no rio Paraíba do Sul.
Na mesma época chamam atenção também os casos de leucopenia
nos trabalhadores das coquerias causada pela exposição ao gás benzeno.
A preocupação com as saúde dos trabalhadores levam os sindicatos a pressionarem a fiscalização da saúde ambiental proporcionada pela empresa a seus empregados.
57
Recentemente foram descobertos depósitos subterrâneos de
resíduos sólidos, provavelmente feitos nas décadas de 1970 e 1980, em áreas da empresa espalhadas pela cidade. Alguns bairros ocuparam
algumas destas áreas e se desenvolveram em cima destes aterros, comprometendo a saúde de seus moradores.
Dois acontecimentos mudaram o contexto de atuação da CSN em
Volta Redonda: sua privatização na década de 1990 e o endurecimento das leis ambientais e de saúde do trabalhador nas últimas décadas.
A prefeitura e do governo estadual pressionaram e conseguiram a
inclusão de uma cláusula ambiental no edital de privatização com o
objetivo de criar compensações pelos impactos implícitos causados pela empresa na cidade. De acordo com LOPES (2004) tal política provocou a
“descoberta da poluição”. Houve um crescimento no número de ações
contra a indústria em torno das compensações ambientais e o resultado foi um aumento significativo das multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização ambiental 7.
Alguns exemplos: a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi multada, no dia 9 de dezembro de 2010, em R$ 20 milhões por provocar o vazamento de resíduos de carvão mineral no Rio Paraíba do Sul, em Volta Redonda. O acidente aconteceu no dia 27 de novembro. A multa foi aplicada pelo Conselho Diretor do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão executivo da Secretaria Estadual do Ambiente (SEA). Em agosto de 2009, a
7
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A forte dependência política e econômica da cidade de Volta
Redonda em relação à indústria CSN criou vários conflitos de ordem socioambiental. A referida indústria, que é a grande “provedora” de divisas e empregos para a cidade é, ao mesmo tempo, o maior agente nocivo que compromete a qualidade de vida e saúde das pessoas que lá moram. Segundo COSTA (2004):
A prática ambiental urbana ganha contornos de grande complexidade em uma realidade heterogênea como a brasileira, na qual as cidades
convivem ao mesmo tempo com problemas típicos da pobreza – ocupações irregulares de áreas ambientalmente frágeis como encostas e áreas alagáveis, baixo índice de coleta e tratamento de esgotos,
entre outros – e problemas relacionados a altos padrões de vida e consumo – entre os quais, congestionamento de trânsito e poluição atmosférica por veículos, crescimento do volume de resíduos sólidos, ou padrões construtivos intensivos no uso de energia (p.199)
A interdisciplinaridade como caminho para a educação ambiental escolar
58
O conceito de modernidade nos remete ao período histórico
iniciado pelas Grandes Navegações e o Renascimento. A concepção moderna de mundo, na qual se fundamenta a ciência, é marcada em sua
origem por novas concepções da Física e da Astronomia. A Revolução
Científica marca a transição entre a “filosofia natural” e um novo período
em que cientistas buscam fundamentar o conhecimento em leis matemáticas mais rigorosas e uma busca intensa pela quantificação da
natureza. Este contexto histórico foi proporcionado inicialmente, entre outras, pelas contribuições da teoria heliocêntrica de Copérnico, pelas leis matemáticas elaboradas por Kepler e pela descrição matemática da natureza feita por Galileu (HENRY, 1998).
O eixo epistemológico que tem no pensamento a fonte principal do
conhecimento chama-se
racionalismo.
Segundo
o racionalismo,
o
conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente
necessário e universalmente válido. No racionalismo, quando a razão
julga que determinada coisa é assim, tem que ser assim e que é assim em todas as partes do mundo, chega-se ao verdadeiro conhecimento. O
mesma CSN foi multada em R$ 5 milhões pelo vazamento de grande quantidade de óleo que afetou o Rio Paraíba do Sul e por lesar o meio ambiente. Na época, o órgão aplicou multas diárias de R$ 50 mil enquanto a empresa não resolvesse o problema.
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juízo, portanto, a respeito de qualquer coisa não se funda em qualquer experiência, mas sim no pensamento (HESSEN, 1976).
A forma mais antiga do racionalismo encontra-se em Platão. Em
sua teoria da anamnésis, Platão diz que a alma contemplou as idéias
numa existência pré-terrena e recorda-se delas quando percebe através
do sensível. Portanto, para ele o conhecimento é uma reminiscência (HESSEN, 1976).
O paradigma moderno foi construído a partir da racionalidade
cartesiana durante o século XVII. Na Idade Moderna, Descartes atribuiu à
razão a origem do conhecimento: “Eu penso, logo existo”. O método
dedutivo de Descartes era caracterizado por partir do geral para o particular, ou seja, você “divide” o todo em tantas partes quanto forem necessárias para poder compreendê-lo.
O método cartesiano, de uma forma geral, partia do pressuposto
da análise. A realidade poderia ser desvendada através de rígida divisão
metódica e sistematizada partindo do mais simples ao mais composto. O
59
entendimento separado do funcionamento das partes que constituem o todo levaria ao entendimento da verdade e o mundo poderia ser explicado através desse método analítico (DESCARTES, 1987).
[...] em vez desse grande número de preceitos que se compõe a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, [...] O segundo,
o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem melhor
resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos,
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para
subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais
compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se
precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir (DESCARTES, 1987, p. 38).
O método cartesiano é uma das bases do atual paradigma
científico. O saber científico ou ciência é o conjunto de conhecimentos adquiridos através de métodos rigorosos e sistematizados. O seu objetivo
passa pela necessidade e pela universalidade dos conceitos que são
válidos em qualquer tempo e em qualquer lugar. O conhecimento científico possui um método rigoroso de observação, coleta de dados,
formulação de hipóteses, construção de modelos, comprovação através de resultados e estruturação de leis ou teorias universais.
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A crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa premissa fundamental, que Descartes errou. A Física do século
XX mostra-nos convincentemente que não existe verdade absoluta em
ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados. A crença cartesiana na verdade infalível da ciência ainda é, hoje, muito difundida e reflete-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. O método de pensamento analítico de Descartes e
sua concepção mecanicista da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e podem ainda hoje ser muito úteis. Mas só serão
verdadeiramente úteis se suas limitações forem reconhecidas [...] (CAPRA, 1982, p. 53).
Com a ascensão do racionalismo cartesiano e a visualização de
uma possível matematização da natureza, ocorreu também a ascensão do método científico como caminho possível para se chegar às certezas
inquestionáveis do conhecimento. Os experimentalismos científicos
ganham força com as contribuições de Bacon que, através do empirismo,
apresenta a possibilidade do método indutivo caracterizado por partir do
conhecimento particular para o estabelecimento do conhecimento
60
universal (HENRY, 1998).
O método científico é o principal responsável pelo rápido
desenvolvimento das técnicas e tecnologias que pode ser observada nos
últimos séculos e cada vez mais aceleradamente nas últimas décadas. O processo evolutivo destas novas tecnologias e técnicas modificou
profundamente as relações sociais, econômicas e políticas no interior da
sociedade e modificaram a relação desta sociedade com a natureza. O capitalismo
como
meio
de
organização
político-econômica
foi
historicamente consolidado a partir do aprimoramento destas técnicas e
tecnologias que vieram ao encontro dos interesses deste sistema produtivo que, na busca primordial do lucro, investiu maciçamente nos projetos e empreendimentos da ciência moderna.
A partir da emergência deste modelo todo o conhecimento que não
obedece à rígida metodologia criada pelos padrões experimentais e
matemáticos da ciência moderna não é considerado pela academia, ou seja, não tem o seu atestado de “verdade” universalmente válido. Todas
as outras formas de conhecimento produzido pela sociedade são
colocadas em caráter duvidoso quanto à credibilidade quando não obedecem aos procedimentos do método científico.
Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas
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as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios
epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo
paradigma científico com os que o precedem. Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento dos
planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande
síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente na consciência
filosófica que lhe conferem Bacon e sobretudo Descartes (SANTOS, 2001, p. 3).
Toda esta tecnologia proporcionada pelo avanço das ciências
trouxe comodidades e conforto para uma parte da sociedade que pode pagar por eles. Este avanço tecnológico não pôde ser estendido ainda de
uma forma democrática para todos, e é justamente aí que se tem um dos principais problemas da sociedade atual: um problema de ordem
socioeconômica. Pode-se dizer que a sociedade vive atualmente um momento de grande preocupação com o meio ambiente. As ciências
advindas do pensamento científico moderno, que produziram toda esta
tecnologia e conhecimento técnico (a serviço do capital), e a forma como
61
historicamente a sociedade se organizou nos moldes do capitalismo globalizado ainda não resolveram muitos dos problemas que emergem e que exigem soluções rápidas e urgentes. TOZONI-REIS diz:
O desenvolvimento intenso e acelerado dos conhecimentos técnicos e
científicos que permitem um conhecimento mais profundo dos processos ecológicos da natureza não tem conseguido mudar a
relação dos homens com o ambiente em que vivem. [...] A biotecnologia, por exemplo, possibilita avanços na agricultura, na saúde dos homens e dos animais, na alimentação, na produção de
compostos químicos industriais, na proteção dos recursos naturais e do meio ambiente, na produção de novas formas de energia, etc. No entanto, ao transformar a vida e a natureza em mercadoria, a
sociedade moderna cria gigantescos problemas socioambientais que exigem soluções urgentes (2004, p. 34).
Esse modelo de pensamento que é inerente ao homem moderno e
no qual a sociedade edificou as bases de um rápido processo evolutivo tem se mostrado muito desgastado, à medida que muitos dos problemas
(principalmente os de ordem ambiental e social) não estão próximos de uma fácil resolução. Além disso, alguns problemas práticos/teóricos de
natureza epistemológica têm exigido uma análise menos fragmentada e sim mais holistizada em relação aos desafios e adversidades da vida contemporânea (CARVALHO, 2004).
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No documento oficial dos Temas Transversais propostos pelo
Ministério da Educação (MEC) é possível perceber uma crítica pertinente à discussão:
Sem
os
estudos
empírico-experimentais,
fundamentais
para
a
construção do conhecimento científico, certamente não seria possível
todo o saber que a civilização ocidental acumulou. No entanto, boa
parte do desenvolvimento científico, que se evidencia nos progressos tecnológicos do século XX, está ligada a essa razão instrumental centrada na preocupação de desvendar, intervir, operar, servindo de
suporte ao crescimento econômico, transcendendo, inclusive, a intencionalidade do cientista, em sua ação individual. Portanto, está
inserido nas regras do mercado, na lógica desenvolvimentista e pouco preocupado com aspectos finalistas da vida humana (BRASIL: PCN's 1998, p. 179).
O pensamento cartesiano teve uma relevância muito grande no
período
histórico
em
que
se
desenvolveu,
fazendo
com
que
principalmente as ciências exatas, impulsionadas pelo sistema econômico capitalista em plena ascensão, avançassem para caminhos novos onde a pesquisa,
62
o
rigor
metodológico
hegemonia sobre as outras ciências.
e
os
resultados
garantiram
sua
Capra (1982) é um dos problematizadores desta questão: o
racionalismo promove a separação rígida do meio natural que não possibilita a comunhão e cooperação dos homens com a grande variedade de seres vivos que compõem o meio ambiente. Essa tendência
é causada pela concepção mecânica do mundo, que parte da idéia de divisão do todo em elementos separados (método analítico). Desta forma,
o meio ambiente seria formado por peças separadas a serem exploradas por diferentes grupos de interesses.
A falta de diversidade e o reducionismo foram outros dos
principais problemas evidenciados a partir da separação imposta pelo modelo hegemônico do método científico. A natureza foi explicada a partir de um conjunto de leis da Física, da Matemática e da Biologia reduzindo-se a complexidade real.
A crítica filosófica contemporânea a este modelo é a diminuição de
novos horizontes possíveis para o conhecimento quando coloca as
Ciências Humanas em um plano secundário na ordem de importância. As Ciências Exatas parecem ter, com seu caráter objetivo e preciso, uma
utilidade maior aos intuitos da produtividade econômica e à tecnologia a
serviço do capital. Tal reducionismo não permite uma compreensão mais ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO
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abrangente da realidade e condiciona a construção do conhecimento a uma visão limitada e que ainda não deu conta de resolver muitos problemas, como o ambiental, por exemplo.
A sociedade convive atualmente com vários problemas de ordem
ambiental causados principalmente pela apropriação intensa, rápida e
mal gerenciada dos recursos naturais. Poluição hídrica e atmosférica, aumento na geração e acúmulo de resíduos sólidos, desertificação – estes são alguns dos principais problemas.
No caso ambiental, a visão compartimentada do modelo científico
sobre a natureza não consegue abranger o todo, ou seja, o aspecto
orgânico da inter-relação existente entre as partes dessa totalidade. As
possíveis soluções para a crise ambiental só podem ser visualizadas a partir do momento em que é possível compreender a realidade como
múltipla, mutável e impregnada por uma teia de relações complexamente
constituídas e que exigem uma visão tão igualmente holística, não-linear e sistêmica.
63
Esta tarefa não parece ser tão simples uma vez que o modelo
estrutural de pensamento já está socialmente consolidado e isso perpetua de geração em geração fazendo com que as mudanças sejam paulatinas.
Não cabe aqui expressar uma negação ao paradigma científico vigente,
mas construir um argumento crítico objetivando a discussão e superação dos problemas gerados pelo histórico desenvolvimento deste modelo que são inerentes ao modo de pensar e a de agir das pessoas.
Para Morin (1997), paradigmas são estruturas de pensamento que
de modo inconsciente comandam nosso discurso, ou ainda segundo o mesmo autor o paradigma seleciona e determina os conceitos e as operações: “designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e
opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem,
pensam e agem segundo os paradigmas inscritos culturalmente neles” (MORIN, 2000, p.25). De forma semelhante, Capra (1997, p.32) define paradigmas
como
“uma
constelação
de
concepções,
valores,
de
percepções e de práticas compartilhadas por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular da realidade, a qual constitui a base da
maneira como a comunidade se organiza”. A partir da visão destes
autores é possível visualizar que muitas das práticas cotidianas estão impregnadas de um modelo que parece ter sido pré-estabelecido e que
são
externalizadas
pelas
pessoas
através
discursos e das ações individuais ou coletivas.
dos
pensamentos,
dos
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O
racionalismo
cartesiano
é
o
modelo
hegemonicamente
constituído para permear estes pensamentos, discursos e práticas cotidianas. Ele foi a base do modelo científico da modernidade, metodicamente objetivado para explicar o mundo através das lentes da
simplificação e divisão em partes para entender o todo, da especialização
e sistematização das ciências, da experimentação científica laboratorial, da comprovação dos resultados tidos como verdadeiros se válidos universalmente, etc.
A grande divisão das ciências e a diferenciação entre as disciplinas
que levam a esta visão compartimentada do conhecimento influenciou todo o campo científico e a vida pública em geral. Surgiram e surgirão numerosos campos científicos e especializações, alguns com o mesmo objeto de estudo em comum, mas mantendo a desconexão e a ignorância entre si, dificultando a compreensão do real (SANTOMÉ, 1998).
O resultado das disciplinas incomunicáveis explica as deformações e
aplicações erradas da ciência que vem sendo denunciadas atualmente.
Segundo Morin (1991, p.62), “a ciência tornou-se cega pela sua
64
incapacidade de controlar, prever e mesmo de conceber o seu papel
social, pela sua capacidade de integrar, articular, refletir seus próprios conhecimentos”.
A compreensão de qualquer acontecimento humano sempre está
interligada por diversas dimensões e por isso é multifacetada, ou seja, a realidade é multidimensional.
Pode-se afirmar que na sociedade percebe-se esta rede de ligações entre diferentes nações, governos, políticas e estruturas econômicas e sociais, exigindo uma análise mais integrada e inter-relacionada.
Uma das conseqüências dos ditames dados pelo modelo científico
é a divisão do conhecimento em várias disciplinas. As disciplinas
escolares encontram-se fragmentadas, compartimentadas, isoladas e tal
especialização acabou por provocar a redução da real complexidade do conhecimento. A escola foi instituída como “lugar onde conhecer é
estabelecer poder e domínio sobre o objeto conhecido, impossibilitando uma compreensão diversa e multi-facetada das inter-relações que constituem o mundo da vida” (CARVALHO, 2004, p. 65).
Esta grande diferenciação de disciplinas influenciará todo o âmbito
escolar e a vida dos futuros cidadãos de uma forma geral. São várias as
disciplinas escolares, algumas delas com conteúdos em comum, porém ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO
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mantendo uma total desconexão entre si, o que dificulta enormemente a compreensão do real e completa do conhecimento.
Efetuaram-se progressos gigantescos nos conhecimentos no âmbito
das especializações disciplinares, durante o século XX. Porém, estes progressos
estão
especialização
que
dispersos, muitas
desunidos,
vezes
devido
fragmenta
os
justamente
contextos,
à
as
globalidades e as complexidades. Por isso, enormes obstáculos
somam-se para impedir o exercício do conhecimento pertinente no próprio seio de nossos sistemas de ensino (MORIN, 2000, p.40).
A forma como a escola atualmente organiza o seu currículo está
pautada nesta forte divisão e separação entre as disciplinas. Até a forma
enrijecida como são organizados os horários a partir das séries finais do
Ensino Fundamental retira a possibilidade de uma integração maior entre professores de disciplinas diferentes ou de conteúdos em comum.
A visão sobre a realidade a partir de uma disciplina específica não
parece o bastante para explicar uma realidade de aspecto global e complexa.
65
A interdisciplinaridade consiste em uma nova maneira de conceber
o campo da produção do conhecimento buscada no contexto disciplinar
que ainda se encontra compartimentado. Seria uma forma de superação à
rígida divisão das disciplinas que, por permanecerem isoladas, não permite a estruturação de um pensamento inter-relacional e estruturado.
A interdisciplinaridade não pretende a unificação dos saberes, mas deseja a abertura de um espaço de mediação entre conhecimentos e articulação de saberes, no qual as disciplinas estejam em situação de mútua coordenação e cooperação, construindo um marco conceitual e
metodológico comum para a compreensão das realidades complexas. A meta não é unificar as disciplinas, mas estabelecer conexões entre
elas, na construção de novos referenciais conceituais e metodológicos consensuais,
promovendo
a
troca
entre
os
conhecimentos
disciplinares e o diálogo dos saberes especializados com os saberes não científicos (CARVALHO, 2004, p. 121).
Assim, a interdisciplinaridade exige uma nova maneira de conceber
o campo da produção do conhecimento a partir de uma reorganização e reestruturação
da
maneira
de
se
pensar
libertando-se
condicionamentos históricos que fazem parte da natureza do homem.
dos
O maior desafio é superar o que foi imposto culturalmente pelo modelo científico hegemônico às pessoas que aprenderam a pensar de
forma a contemplar essencialmente a especificidade de cada disciplina
isolada sem, no entanto tecer redes entre os conhecimentos
adquiridos. A própria percepção de mundo muda na medida em que, ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO
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sob a ótica holística, tem-se uma visão mais abrangente, imparcial e consciente de que a realidade tão complexa não é explicada
simplesmente por métodos e padrões impostos pelas ciências
matemáticas e naturais e nem seguidoras sistemáticas dos caminhos impostos pelas leis da Física (CARVALHO, 2004).
A
crise
ambiental
levanta
questionamentos
epistemológicos
pertinentes à forma pela qual a racionalidade moderna trata o problema e expõe sua maior fragilidade: a incapacidade de resolvê-los.
Ao expor a insuficiência dos saberes disciplinares e desejar novas
aproximações para que se compreenda a complexidade das interrelações como base regenerativa dos problemas ambientais, percebe-se,
de forma mais clara, a urgência e necessidade de uma visão inovadora
sobre a forma compartimentada como as disciplinas são trabalhadas. Nesse sentido, Enrique Leff definiu a expressão saber ambiental:
O saber ambiental problematiza o conhecimento fracionado em disciplinas e a administração setorial do desenvolvimento, para
constituir um campo de conhecimentos teóricos e práticos orientado para
a
rearticulação
das
relações
sociedade-natureza.
Este
conhecimento não se esgota na extensão dos paradigmas da ecologia
66
para compreender a dinâmica dos processos socioambientais, nem se
limita a um componente ecológico nos paradigmas atuais. O saber ambiental transborda o campo das ciências ambientais. [...] O saber ambiental
emerge
desenvolvimento conhecimento,
e
desde
das
que
um
ciências,
espaço
produz
de
centradas
exclusão
em
seus
desconhecimento
de
gerado
objetos
no
de
processos
complexos que escapam à explicação dessas disciplinas (1998, p. 124).
O conceito de interdisciplinaridade na educação ambiental escolar
requer o diálogo com autores que fazem uma abordagem crítica do
paradigma científico e promovem uma reflexão sobre práticas educativas.
Entende-se também que a educação ambiental é um ato político (FREIRE, 2005)
e,
assim
como
a
Educação,
tem
papel
fundamental
na
transformação da realidade rompendo com modelos de pensamento
dominantes e com a manutenção do status quo na organização capitalista
iniciada no período moderno.
Partindo do pressuposto de que há um consenso geral sobre a
importância de se discutir e refletir sobre os problemas ambientais na atualidade e que a Educação Ambiental na escola ainda se encontra
bastante incipiente no que se refere às efetivas mudanças pragmáticas (LOUREIRO, 2006), destaca-se o questionamento: como as ações de
Educação Ambiental têm ocorrido efetivamente nas escolas? Segundo ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO
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Guimarães
(In:
LOUREIRO,
2006)
os
educadores,
apesar
bem
intencionados, têm desenvolvido suas atividades de Educação Ambiental permeadas pela reprodução e pela compartimentação do conhecimento.
Isto faz com que haja uma perpetuação dos problemas sem as
necessárias e efetivas mudanças, o que o autor denomina como “armadilha paradigmática”. Sobre isso Guimarães diz ainda:
“É a essa dinâmica que estou chamando de armadilha paradigmática, quando por uma “limitação compreensiva e uma incapacidade
discursiva” (Viégas,2002), o educador por estar atrelado a uma visão
(paradigmática) fragmentária, simplista e reduzida da realidade, manifesta
(inconscientemente)
uma
compreensão
limitada
da
problemática ambiental e que se expressa por uma incapacidade discursiva que informa uma prática pedagógica fragilizada de educação ambiental, produzindo o que Grün (1996) chamou de
pedagogia redundante. Essa prática pedagógica presa à armadilha
pedagógica não se apresenta apta a fazer diferente e tende a reproduzir
as
concepções
tradicionais
do
processo
educativo,
baseadas nos paradigmas da sociedade moderna. Dessa forma, se
mostra pouco eficaz para intervir significativamente no processo de transformação da realidade socioambiental para a superação dos
67
problemas e a construção de uma nova sociedade ambientalmente sustentável.” (In: LOUREIRO, 2009, p. 23-24).
Necessitamos, portanto, aprofundar as discussões nesse sentido
para conhecer os verdadeiros desafios da mencionada “armadilha
paradigmática”. Um desafio poderia ser a multiplicidade de concepções. Qual é a concepção dos professores sobre meio ambiente? E sobre a
natureza? Como a relação sociedade/natureza é concebida pelos professores? Qual é a influência disso na prática educativa?
Como é possível ver no quadro conceitual a seguir (figura 1), a
visão que hoje, hegemonicamente, predomina no mundo é pautada no paradigma racionalista moderno embasado no pensamento científico que, entre outros atributos, promoveu um distanciamento entre a sociedade e
a natureza, sujeito e objeto, purificando-os em estados isolados para preservar sua universalidade e neutralidade, formando assim o que
Latour (2009) caracteriza como Constituição Moderna. Nós aprendemos a olhar o mundo e tudo que ocorre nele dessa forma. Mas, o meio ambiente pode ser compreendido na sua totalidade, simplesmente
separando seus elementos constituintes, e estudando-os de forma a purificá-los como nos faz pensar a perspectiva dos modernos?
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68
Figura 1
Entende-se, portanto, que a visão racionalista-cartesiana de
mundo leva o educador ambiental a uma visão fragmentada
e
compartimentada de meio ambiente, assim como faz hoje a escola ao
apresentar o conhecimento através de disciplinas que permanecem
desarticuladas entre si. A polarização e a visão mecanicista do mundo proposta pelo pensamento cartesiano/newtoniano implicaram em uma herança cultural que hoje constitui o pensamento ocidental. Neste
paradigma o homem é visto como parte separada da natureza. Isto leva a ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO
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uma limitação compreensiva e incapacidade discursiva do educador
ambiental de adotar a visão holística como necessária para entender as múltiplas relações que se estabelecem no meio ambiente. É necessário
entender, sobretudo, que educação ambiental é Educação e, assim como
apresenta-nos o pensamento freiriano, não se transformar a realidade se
não for construída uma educação crítica que leve o sujeito a sua emancipação.
Na crítica ao paradigma racionalista moderno, que sustenta a
separação
homem/natureza,
Latour
(2009)
propõe
a
idéia
de
indissociabilidade de ambos. Segundo o autor, o conhecimento científico levou a sociedade moderna a crer que era possível separar natureza e sociedade,
separando
os
humanos
dos
não-humanos.
Como
conseqüência, uma segunda divisão aparece sendo, portanto, definida
pela separação entre a sociedade dita “moderna” de outras sociedades “não-modernas”.
As reflexões filosóficas, promovidas por Latour, acerca do
pensamento moderno fazem-nos compreender onde estão as origens
69
dos nossos discursos e das nossas práticas. Segundo o autor, talvez,
nunca tenhamos sido modernos, uma vez que a nossa sociedade nunca
funcionou de acordo com a divisão total entre natureza e cultura colocada pelo projeto dos chamados “modernos”. Nesse sentido, os pressupostos constituídos por Latour oferecem subsídios teóricos para
uma nova perspectiva de reflexões sobre a Educação Ambiental e as concepções de Meio Ambiente. Segundo Latour:
(...) Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó
górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte
que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente engenheiros,
no
meio
interior
filósofos,
das
um
instituições
terço
científicas,
instruídos
sem
meio
que
o
desejássemos; optamos por descrever tramas onde quer que estas nos
levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede.
Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas.” (2009,p.9).
As atividades do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ- campus Volta Redonda
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Na
perspectiva
de
desenvolver
um
trabalho
integrado
e
interdisciplinar de Educação Ambiental foi criado o NEAm do IFRJ campus Volta Redonda no dia 08 de julho de 2010 sendo seu estatuto aprovado na 36ª Reunião Ordinária do Colegiado do campus.
A criação do NEAm foi sugerida a partir de um levantamento de
potenciais ações pró-ambientais que poderiam ser desenvolvidas de
forma organizada, processual, interdisciplinar, democrática e contínua neste âmbito escolar. Este levantamento gerou um relatório ambiental que teve como principais eixos:
1 - Adequações na estrutura física do campus; 2 - Educação Ambiental para a comunidade escolar; 3 - Propostas pedagógicas para o ensino; 4 - Gestão ambiental. A preocupação central da elaboração do relatório, da sugestão das
ações e do estímulo à participação democrática na gestão foi o
70
entendimento de que as questões ambientais necessitam de um enfoque
interdisciplinar. Acredita-se que não é possível que uma determinada ação pró-ambiental realizada de forma isolada e sem o envolvimento da
comunidade escolar possa realmente produzir mudanças significativas na realidade.
A partir das propostas iniciais do projeto foram realizadas algumas
atividades que podem ser verificadas no quadro a seguir (figura 2):
CATEGORIA DAS AÇÕES
1
Água
2
Água
3
Água
IMPLEMENTAÇÃ DESCRIÇÃO DA AÇÃO
O
DA AÇÃO Conserto e manutenção da rede
de
água
vazamentos.
para
evitar
Instalação de torneiras com temporizador
nos banheiros. Instalação
de
(ecológicas) descargas
econômicas nos banheiros.
SIM
SIM
NÃO
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Instalação de estrutura que 4
Água
faça
captação
das
águas
pluviais dos telhados para
NÃO
reutilização da água. 5
Lixo
6
Lixo
7
71
Lixo
8
Lixo
9
Lixo
10 11
12
Instalação
ecológicas.
do lixo para reciclagem.
Coleta dos papéis nas salas de
aula
utilização como adubo em jardins e hortas comunitárias.
Diminuir o uso de copos descartáveis.
Criação
Visual
Responsabi li-dade sócio-
ambiental
salas
Coleta de lixo orgânico para
Arborizaçã
Poluição
nas
administrativas.
dos
jardins
plantios de novas mudas. de
uma
comunitária.
e
horta
Diminuição e reorganização de papéis, cartazes e avisos espalhados pelas paredes. Promover
13
e
Arborização
o
lixeiras
Coleta seletiva e destinação
Arborizaçã o
de
produtos corretos:
a
compra
de
eletrônicos
e
materiais
SIM
PARCIAL
PARCIAL
NÃO SIM NÃO
SIM
ecologicamente
eletrodomésticos consumo
SIM
de
de
baixo
energético,
PARCIAL
consumo
reciclados ou passíveis de reciclagem etc.
14
Energia
Instalação de painéis solares de
geração
elétrica.
de
energia
NÃO
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15
Energia
16
Energia
17
Ar
18
Ar
Instalação
de
Instalação
de
solares de água.
19
Ambiental
sensores
de
movimento para economia de energia
Monitoramento da qualidade do ar de Volta Redonda. Utilização
de
renováveis
combustíveis
automobilística. Palestras
Educação
aquecedores
na
de
frota
NÃO
NÃO
PARCIAL
PARCIAL
Educação
Ambiental para a comunidade
escolar sobre água, resíduos
sólidos, reciclagem, poluição
PARCIAL
atmosférica, saúde, etc.
72
20
Educação
Ambiental
Metas
de
lembretes 21
Ambiental
no
consumo de energia e água. Afixação
Educação
redução
de
cartazes
educativos
para
de
condicionado,
ar
os
ventiladores,
22
23
pedagógica s
Propostas
pedagógica s
Propostas
24
pedagógica
25
Propostas
s
NÃO
os
computadores, etc. Propostas
e
desligar as luzes de salas, os aparelhos
NÃO
Desenvolvimento de projetos interdisciplinares sobre meio ambiente
e
Ambiental. Visitas
a
Educação
áreas
de
preservação ambiental. Avaliações sobre
interdisciplinares
Meio
Ambiente
questões ambientais. Incorporação
do
SIM
SIM
e
NÃO
tema
SIM
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pedagógica s
26
Propostas
pedagógica s
transversal “Meio Ambiente” nas ações pedagógicas. Incentivo
à
conhecimento
produção
científico
de
inovação na área ambiental.
e
SIM
Figura 2
Grande parte das atividades propostas foram ou estão sendo
realizadas de forma total ou parcial. No que se refere às ações de
natureza infra-estrutural, esbarra-se em dificuldades burocráticas no
âmbito de licitações e compras. Como instituição pública não é tão simples agilizar a compra e pagamentos de prestação de serviços especializados sem respeitar um cronograma de licitação e sem justificar de forma adequada a necessidades destes gastos.
As atividades de natureza pedagógica e educacional como
palestras, produção científica e projetos interdisciplinares esbarram na
73
dificuldade
de
fazer
com
que
os
docentes
flexibilizem
seus
planejamentos de ensino e cronogramas previstos. Como as ementas das
disciplinas estão além do número ideal de aulas para cumpri-las de
totalmente, tem-se a dificuldade de conseguir com que os professores
possam “ceder” aulas para a realização das palestras.
Considerações finais A presença da indústria CSN em Volta Redonda lhe confere um
ambiente peculiar. Os conflitos e a vulnerabilidade socioambiental do
contexto local têm grande intensidade. A Educação Ambiental no IFRJ campus Volta Redonda se torna tarefa complexa quando se pensa que a comunidade escolar está, de forma direta ou indireta, dependente economicamente da atividade industrial daquela empresa.
O estudo sobre o Meio Ambiente exige uma visão mais holística
para a sua possível compreensão. Neste contexto não é possível separar,
por exemplo, a natureza e a sociedade humana. Pensar analiticamente a separação entre estes dois elementos para compreendê-los é uma
concepção enraizada no pensamento humano, dotada de limitações teórico-científicas e reducionismo do conhecimento.
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As propostas de atividades ambientais integradas no IFRJ, campus
Volta Redonda, dependem do planejamento estratégico das ações e de mobilização política que possa contar não só com os gestores, mas também com professores, pais, alunos e funcionários. Alguns dos principais entraves às atividades foram a burocracia e a falta de preparo,
principalmente dos professores, de lidar com novas metodologias de ensino interdisciplinar.
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A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar
Nathália Alvarenga Porto Costa
Graduanda do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do Grupo de Pesquisa
76
Saberes e Fazeres de Ceramistas Fluminenses coordenado pela Profª Drª. Fatima Teresa Braga Branquinho.
Resumo
Levantamento bibliográfico nas áreas da educação em arte e
educação ambiental permitiu identificar pontos convergentes entre as duas modalidades de educação, dentre eles, a sensibilidade. O artigo
busca discutir, assim, a forma como a sensibilidade é abordada nas respectivas áreas, questionando sua relevância no processo de formação humana e o modo como é apresentada nos respectivos volumes dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Artes e Educação Ambiental. Noções construídas por Humberto Maturana, Maurice Merleau-Ponty e Ana Mae Barbosa fertilizaram a discussão proposta.
Palavras-chave:
sensibilidade.
Educação
Artística,
estética,
Educação
Ambiental,
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UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 76 - 85
Introdução
Uma palavra, treze letras, seis sílabas e incontáveis conotações.
Muito utilizada pelos profissionais das áreas de humanas, sobretudo filósofos, psicólogos e educadores. Todavia, a utilização indiscriminada
do termo nos faz esquecer seu real significado e sua aplicação dentro do campo educacional. O objetivo é discutir a utilização do termo nas duas modalidades
de
educação
e
sua
apresentação
nos
Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, nos volumes 6 e 9, respectivamente, Artes e Meio Ambiente.
Considerando o ser humano como ser holístico, entendemos a
sensibilidade como um de nossos aspectos que estão sempre presentes,
porém, qual a relevância atribuída a esta no campo da educação, especialmente na educação artística e na educação ambiental? Aparece exatas vinte vezes em um volume – Artes – e quatro vezes em outro –
Meio Ambiente, mas, como nos mostra Ana Mae Barbosa (2010, p.99),
77
muitos educadores caíram no lugar comum de defender a função primordial
da
arte/educação
como
sendo
o
desenvolvimento
da
sensibilidade, dando-se ao luxo, em sua maioria, de não conceituá-lo dentro do campo. Da mesma forma o discurso é utilizado na educação
ambiental. As implicações deste discurso que, embora tenha sido amplamente validado na academia, tornou-se naturalizado, fez com que grande parte dos educadores se acomodasse em discursos prontos,
deixando de ir além do que já foi legitimado. Vamos então, dar vida ao que aparentava estar esquecido, buscando uma prática docente mais consciente.
Sensibilidade, percepção e emoções: uma ligação transcendente.
Em uma interpretação mais simples, concretizada com uma busca
ao dicionário, talvez o termo sensibilidade pudesse aparecer como
característica de sensível, ou faculdade de sentir. Ora, se encontramos uma simples definição para este termo, a compreensão de seu processo de formação, da faculdade de sentir e de sua relevância para a educação talvez não seja tão simples.
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UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA
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A sensibilidade, elemento primordial para uma educação estética,
nos pode ser esclarecida quando compreendemos as raízes da palavra
estética como aisthèsis, originária de aisthanesthai – compreensão pelos
sentidos. Um dos possíveis significados para aisthèsis é conduzir o mundo para dentro, “como encantamento pela reação sensível à forma
que esse mundo toma pela emoção à imagem do mundo – eidolon” (Carbonell, 2010, p.108).
Desde o início de nossa existência, a sensação se fez presente em
nossa vida. Enquanto seres humanos, somos contemplados por vários
aspectos: cognitivo, social, psíquico e emocional, entre outros. O último, porém, perpassa todos os demais de tal forma que merece ser salientado.
Quando ainda éramos feto, sentíamos o que acontecia do lado de
fora da grande proteção que nos envolvia, mesmo que a linguagem ainda não fosse por nós dominada. Sentíamos a alteração do tom de voz, no carinho ou nos movimentos físicos feitos externamente. Tudo o que
acontecia era percebido e gerava emoções, tal como continua sendo. As emoções geradas por um estímulo externo podem fazer com que o feto
78
chute ou se acalme, por exemplo. Como em uma reação em cadeia, percebemos, sentimos diferentes emoções e respondemos através de ações.
A percepção, conduzida predominantemente pelo nosso olhar
carregado de conceitos pré-estabelecidos ao longo de nossa vivência no mundo, faz acontecer um casamento entre o eu que percebe e o objeto ou situação que está se apresentando diante de mim. Este contato através
do vidente e do visível, embora seja permeado pela bagagem perceptiva
já adquirida, também é capaz de agregar novos significados criando novos
preceitos
e/ou
modificando
os
anteriores.
Um
processo
extremamente dinâmico que ocorre com grande frequência ao longo da vida.
Como nos lembra Maturana (2002, p.23), a emoção nos leva à
ação. Colocando-se contra a supervalorização da razão em detrimento da
emoção na sociedade atual, Maturana vem nos mostrar o quanto a
emoção pode influenciar nossos posicionamentos ao longo da vida, estando sempre presente como plano de fundo de cada atitude tomada.
Através de nossa sensibilidade as emoções podem ser vividas. A
percepção é uma “tomada de posição deliberada” (Merleau-Ponty, 2011) inerente à sensibilidade. Por sermos suscetíveis a diversos estímulos
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através de nossa percepção, sentimos. As sensações, por sua vez,
despertam emoções. Nosso contato com outras instâncias, sejam elas palpáveis ou não, nos proporcionam sensações que dão vida às emoções.
Na primeira infância, experimentamos diversas sensações através
de simulacros da realidade, presentes nos momentos de brincadeiras ou
atividades lúdicas em sala de aula. Seja através dos contos de fadas, fantasias ou canções, os sentimentos são percebidos através das emoções despertadas por nossos sentidos. Em salas de Educação Infantil,
por exemplo, é primordial o contato das crianças com essas experiências emocionais proporcionadas por ambientes diferentes disponíveis para
brincadeiras. Grande parte dos educadores que já passaram por uma
classe com crianças tão pequenas pode perceber o quanto uma criança é capaz de sentir medo com o lobo mau e também sentir dó da Cinderela e
raiva da madrasta. Com estes simulacros, a criança experimenta e traça estratégias para lidar com suas emoções, esta é a justificativa do discurso pedagógico e psicológico a respeito do tema.
A sensibilidade, nada mais é do que a capacidade que temos de
79
perceber o mundo a nossa volta e percebermo-nos também enquanto parte integrante dele. Ao contrário da música de Erasmo Carlos que diz,
“ele é uma criança e não entende nada”, as crianças entendem e sentem. Caso a compreensão não seja tão fácil através das palavras, a
sensibilidade se encarregará de realizar a tarefa. A capacidade de perceber é totalmente particular, fazendo com que a cada olhar de cada
sujeito, um objeto ou situação possa ser percebido de forma diferente,
ressaltando-se características x ou y. O nosso olhar, que em momento algum é neutro, faz com que escolhas sejam feitas através da mudança de foco.
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Figura 1 - Tonucci (1997; p. 34 e 35)
Primeiramente, somos apresentados a uma infinidade de itens que
parecem distantes de nós. Não nos sentimos parte, embora possamos
perceber o que nos rodeia. A noção de pertencimento, porém, pode ser instigada a partir do momento em que compreendemos esta complexa
dinâmica existente entre os elementos externos e os elementos internos a nós. Os elementos externos nos causam estímulos sensoriais que
despertam emoções – gerando a primeira conexão entre o que é
intrinsecamente interno e o que é externo – que são refletidas em atitudes posteriores. O movimento de ida e vinda dos estímulos nos faz
ativos integrantes no processo de formação desta sensibilidade inerente ao
humano,
corroborando
com
os
fatores
biológicos
que
nos
caracterizam enquanto personagens deste grande ensaio chamado ambiente. O território do olhar acaba ocupando seu lugar entre as coisas e não de fora delas, como nos mostra Carbonell (apud Kant):
“A experiência estética nasce do encontro do indivíduo com o infinito
do universo, e ele como parte desse universo. É nesse momento que
80
ocorre o encontro de dois grandes sentimentos humanos: o de ser infinitamente pequeno, contido na imensidão do infinito, mas também o
de
ser
infinitamente
universo.”(p.108)
grande,
contendo
em
si
todo
o
Segundo Merleau-Ponty (2011), a função essencial da percepção é
a de fundar conhecimento a partir do caráter intrínseco do objeto percebido. A forma com que percebemo-nos enquanto parte integrante
do mundo e como percebemos o que nos rodeia, instiga a vontade de
compreensão. Esta vontade faz com que o humano trace estratégias para entender o que ainda não é apresentado de forma compreensível em seu
olhar. Eis que surge a ciência. É necessário que reconheçamos a ciência como uma culminância da vontade humana de entender o mundo
percebido (Merleau-Ponty, 2011, p.89) de forma mais intensa. Em cada ciência, um pressuposto foi estabelecido como ponto de partida para a investigação. Estes pressupostos foram estabelecidos por um olhar. A partir
desta percepção são
traçados
objetivos,
gerando ações e
mobilizando os humanos rumo ao desconhecido. A educação, para além de orquestrar diversas ciências, em suas caixinhas ou em conjunto, precisa entender-se também enquanto ciência do conhecimento humano.
Desta forma, implícita aparece a aceitação do humano em sua inteireza não só biologicamente, mas também cognitivamente, tornando possíveis ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
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as trocas entre os saberes para a compreensão efetiva da realidade a qual fazemos parte. Deste modo, a educação tem o dever de continuar trabalhando a sensibilidade ao longo do processo de formação. Enquanto isso nos Parâmetros Curriculares Nacionais...
Elaborado por intelectuais das diferentes áreas de conhecimento
no ano de 1997, os dez volumes de nossos PCN’s foram formulados como sendo um referencial de qualidade para o Ensino Fundamental
dentro dos limites do território nacional. A intenção inicial seria auxiliar o professor na busca por soluções às grandes questões que emergem no cotidiano da sala de aula através do compartilhamento das discussões
vigentes no campo, contribuindo para uma atuação mais precisa e consciente dentro das escolas brasileiras.
A leitura do documento pode ser iniciada por diversos pontos,
conforme o interesse do leitor, segundo discriminado no primeiro volume. Iniciaremos nossa análise pela ordem sequencial dos cadernos.
81
No primeiro volume, de Introdução, fala-se sobre sensibilidade por duas vezes. Nos objetivos do documento definidos em termos de capacidades
a serem desenvolvidas, encontramos os seguintes itens: “capacidades de
ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma formação ampla” (1997, p.47). Nosso objeto de análise aparece pela primeira vez no documento como subitem das
capacidades
de
ordem
afetiva,
juntamente
com
motivações,
autoestima, e adequação de atitudes no convívio social. A capacidade que se pretende atingir, porém, não pode ser conquistada, pelo simples fato de ser inerente ao ser humano. A sensibilidade é apresentada nos
objetivos de forma predominante como instrumento para a percepção e a
compreensão do que se dá de forma externa aos limites biológicos humanos. É desconsiderada como canal que possibilita a formação das concepções de mundo e tomadas de posição ética e moral, vide o trecho em destaque abaixo:
“Esses fatores levam o aluno a compreender a si mesmo e aos outros.
A capacidade afetiva está estreitamente ligada à capacidade de relação
interpessoal, que envolve compreender, conviver e produzir com os outros, percebendo distinções entre as pessoas, contrastes de temperamento, de intenções e de estados de ânimo.” (PCN, 1997, p.47)
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Entendendo a formação do sujeito discente como sendo contemplado por
diversos aspectos, a segunda aparição do termo acontece dentro do item “Orientações Didáticas”, no subitem “Autonomia”, vinculado à autonomia emocional. Aqui, destaca-se a importância do desenvolvimento da autonomia do conhecimento atrelado a outros aspectos, como por exemplo, a autonomia moral e emocional, que contemplam aspectos como a sensibilidade.
No volume de Artes aparece de forma mais intensa que nos
demais, sendo sua primeira aparição já no primeiro parágrafo, de
apresentação, alegando-se a possibilidade de sua ampliação através da
disciplina. Podemos encontrá-la também descrita como canal entre
artista e espectador (1997, p.29), como matéria-prima expressiva que
configura a obra de arte, “o motor que organiza este conjunto” (1997, p.30) – artista-criação-obra... Porém, nas demais aparições percebemos
de forma latente o uso do termo como justificativa para o ensino,
enfatizando-se veementemente a importância de seu desenvolvimento através do ensino de artes. Dentre estas, uma, em especial, merece
82
destaque:
“Ao fazer e conhecer arte o aluno percorre trajetos de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua relação com o
mundo. Além disso, desenvolvem potencialidades (como percepção, observação, imaginação e sensibilidade) que podem alicerçar a consciência
do
seu
lugar
no
mundo
e
também
contribuem
inegavelmente para sua apreensão significativa dos conteúdos das outras disciplinas do currículo.” (PCN, 1997, p.32)
Neste trecho é apresentado de forma mais clara a importância da
sensibilidade no campo da arte. Porém, este argumento pode ser
facilmente estendido a todas as modalidades de educação, não somente à educação em artes. Ao “alicerçar seu lugar no mundo”, o sujeito torna-se capaz de estabelecer relações de forma conscientemente mais coesa
entre seus semelhantes – que embora biologicamente possam ser
considerados enquanto tal, podem apresentar percepções através do olhar que se distinguem diametralmente – e com o ambiente.
Na parte do documento referente ao Meio Ambiente, o termo
aparece como estratégia de validação de uma educação ambiental no contexto atual e também como um dos objetivos a serem alcançados com
a utilização do Meio Ambiente como tema transversal na educação. Neste volume, a sensibilidade aparece de forma mais consciente quanto a sua função na relação e compreensão entre o eu/mundo.
ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
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Considerações finais
Até que ponto está presente em nossos discursos e nossa prática
enquanto educadores a noção de que a sensibilidade é inerente à condição humana e que assume um papel preponderante para a
formação ética e moral de cada indivíduo social? Até que ponto conseguimos, em nossas salas de aula, respeitar as percepções de nossos
educandos frente ao que lhes é apresentado sobre o mundo e ajudar na
compreensão da noção de pertencimento e corresponsabilidade do eu no mundo?
Na bibliografia das áreas e nos documentos de ordem nacional, a
83
sensibilidade aparece e é destacada como instrumento e canal que facilita a compreensão da relação entre o eu/mundo. Embora inúmeras vezes
citado, o discurso naturalizou-se, o que faz com que sejam guardadas as inúmeras justificativas para sua tamanha importância no campo da educação.
Nas
áreas
de
educação
ambiental
e
educação
artística,
a
sensibilidade ganha maior destaque que nas demais por fazer-se constantemente presente de tal forma que não há como negar sua
existência. Estas áreas tornam-se instrumentos de estímulo para a sensibilidade. Esta, não pode ser ignorada enquanto inerente ao ser
humano, não podendo ser “desenvolvida”, mas sim estimulada. Como qualidade humana, está presente em todas as áreas onde podemos nos
encontrar, uma vez que não pode se separar de nós. Na educação, seja ela de qual modalidade for, ao envolver a relação entre duas ou mais
pessoas e a transmissão/construção de conhecimentos, a sensibilidade ultrapassa sua função biológica de canal e assume posição de peso quando engloba o processo de percepção e atribuições de valor.
O processo de construção do conhecimento engloba todo o
processo de percepção, emoção e ação. A cada novo fator apresentado, da forma como pode ser apresentado, novas reações podem surgir. Daí a importância
da
consciência
docente
da
tamanha
relevância
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da
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sensibilidade no processo educativo. Uma vez dispensada tal reflexão, a prática pode gerar outras consequências, que não as desejadas.
Para tanto, é necessário que na ordem prática, haja troca entre o
sujeito do discurso – o professor – e seus receptores não-passivos. Esta
troca se reflete por meio de diálogo e da prática consciente de sua relevância sobre a formação humana. A postura docente frente ao
conhecimento e aos discentes deve ser encarada como aliada à
concretização deste processo de formação, quando utilizada de forma positiva. Caso contrário, bloqueios podem ser gerados, tornando reais o desinteresse e a falta de estímulos. Talvez aqui possamos encontrar um
dos grandes tesouros para a realização de uma educação íntegra e global: o respeito ao ser humano enquanto dotado de sentidos que ao gerarem emoções, interferem em sua prática.
A concepção de mundo acontece quando já o integramos. Esta
concepção, guiada pela percepção através dos sentidos, pode nos fazer atribuir novos valores àqueles já captados e/ou somente conservar os
que já existem. A educação, enquanto relação humana de busca pela
84
compreensão, carrega consigo a responsabilidade de contribuição na
conscientização das interferências do ser humano no ambiente e de sua
presença enquanto integrante não-passivo do mundo. Trata-se de uma interferência
do
mundo
letrado
para
operar
transformações
nos
indivíduos em determinada direção, unindo os aspectos considerados
socialmente díspares: ambiente e ser humano, intimamente ligados por meio da sensibilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA,
Ana
Mae.
Arte/Educação
internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.
Contemporânea:
consonâncias
CARBONELL, Sonia. Educação Estética para jovens e adultos. São Paulo,
Cortez: 2010.
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais. Introdução, 1997. ____._____________________________. Artes, 1997. ____._____________________________. Meio Ambiente, 1997.
ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:
UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 76 - 85
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011. 1997.
TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas,
85
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UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 86 - 94
Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade
Rejane Peres Costa
Professora da rede municipal e estadual do Rio de Janeiro, graduando de Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, bolsista voluntária de iniciação científica da pesquisa
Saberes e Fazeres de Ceramistas Fluminenses e Pernambucanos conduzida pela Pofª Fatima Branquinho EDU/Uerj.
86 Resumo
Este
artigo
pretende
apresentar
as
atividades
integradas
desenvolvidas por um núcleo de educação ambiental no Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, campus Volta Redonda/RJ. As ações de educação ambiental em escolas têm exigido um
trabalho interdisciplinar entre professores, uma promoção de palestras sobre o tema e adequações na infra-estrutura física para que possam contribuir para minimizar os impactos ambientais locais.
Palavras-chave:
Redonda/RJ.
educação
ambiental,
interdisciplinaridade,
Volta
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Introdução
A experiência de atuar na rede estadual e municipal do Rio de
Janeiro é intrigante: na rede estadual, atuo na disciplina de história, na municipal educando através da brincadeira que é a educação infantil. Trabalhar com os dois extremos da educação básica é um exercício que
provoca reflexão. Afinal, em que momento o conhecimento passou a ser sinônimo de coisa apartada do ser? As crianças pequenas aprendem com
o corpo, com o toque, com o fazer, com o cair e levantar, beijando e
mordendo. Por que meus alunos crescidos só podem usar o movimento nas aulas de educação física e nas outra permanecem com os corpos inertes num exercício para aprender melhor? E ainda delimitados por um
conhecimento restrito a uma determinada área do conhecimento, sem ultrapassar as fronteiras minuciosamente estabelecidas?
Breve, é possível dizer que modernidade racionalizou a realidade
através de disciplinas compartimentalizadas e divididas em áreas do
87
conhecimento. O objeto de estudo do conhecimento científico é aquilo
tudo que está posto na realidade, objetiva ou subjetiva. Mas, a abordagem se dá de forma desintegrada e desconexa, o que causa um
grande apartamento e sentimento de espanto dos não cientistas frente à
descrição de seu espaço ou de seus processos. A escola, um híbrido 1,
que tenta formar cidadãos conscientes dos processos dados na
atualidade, sejam políticos ou científicos, também é a responsável por formatar, docilizar e conformar os corpos e mentes diante do poder
político ou econômico (Foucault, 1997). Neste cenário, encontra-se o
professor dos espaços públicos de aprendizagem, igualmente cindido entre os saberes e fazeres que atravessam sua prática docente, entre as
contradições daquilo que esperam do seu fazer pedagógico expresso friamente por números – de aprovados, de notas, de rendimento, de
coeficiente de rendimento nas sondagens da educação... Por vezes, esse
professor se vê confrontado com a divulgação pública de seu fazer como
o responsável pelo fracasso escolar de muitos que passam por nossas escolas.
A questão dos híbridos é central na análise do antropólogo Bruno Latour. Estes, a que chama quase-objetos, como é o caso do espaço escolar, por já não mais se enquadrarem na posição de objetos, tampouco podem ser qualificados como sujeitos, mistura de elementos sociais e naturais, que transformam e são transformados, num processo dialógico entre humanos e não-humanos.
1
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Compartimentados em nossas disciplinas, delimitados por aquele
saber que não dá conta da vida e de seus fluxos, vamos, em parceria com
nossos alunos construindo aquilo que melhor podemos para nós. Buscando uma outra visão de nós mesmos, diferente daquela que por vezes
nos
atribuem:
incapazes,
incompetentes,
ineficientes.
Extravasamos os rótulos, assim como a vida e o conhecimento que está além daquele espaço. Têm dias melhores, outros mais difíceis. Mas
vamos caminhando e nessa caminhada nos conhecendo, testando nossas
capacidades e o limite um do outro, testamos também a coerência do falar no fazer e muitas vezes, testando a paciência, tal como em todos os espaços coletivos, par além da sala de aula.
É desse “viver a vida”, num espaço precioso que é a escola, que vou
me arriscar a falar sobre a noção de interdisciplinaridade em diálogo com o cenário que acabei de apresentar. Palavra grande e difícil. Difícil de falar, de fazer, de compreender e, ainda, de compreender que a
praticamos, muitas vezes sem nos darmos conta, porque a vida é trans(disciplinar), é poli(disciplinar), é inter(disciplinar), porque a vida não
88
cabe numa caixinha e muito menos as muitas vidas que compõem a escola.
Apontamentos sobre o processo de disciplinarização
Sendo o homem um ser dotado de historicidade cabe-nos
compreendê-lo e também suas obras como fruto de uma época e dentro de um determinado contexto. A produção do conhecimento científico
está ligada a um modelo desenvolvido entre os séculos XVI e XVII na Europa, que deu origem a todo um movimento intelectual e inaugura a
Modernidade. Fundando essa nova razão e criando os conhecimentos
apartados, é nesse momento separado “o mundo natural do mundo social” (Latour, 1994, p. 19). A ciência será sedimentada nos princípios da
objetividade e da neutralidade, a busca pela universalidade e regularidade
dos fenômenos estudados, a quantificação e, aqui o que mais nos interessa, a fragmentação que divide e classifica os fenômenos.
Esse modelo será amplamente aceito e adotado nas ciências
naturais, e mais tarde utilizado nas ciências socias, para serem
reconhecidas como de cunho científico. Essa visão fragmentada nos transmitiu uma noção dicotomizada e disciplinar da realidade. Além
disso, tal visão excluiu as demais narrativas humanas classificando-as ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA
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como concepções primitivas ou mítico-religiosas e, por isso, distantes da
verdade que somente o rigor e o método científico poderiam garantir.
Isso excluiu a maior parte dos saberes e fazeres humanos acerca de suas experimentações de viver e sobreviver no mundo. Apartou o homem do conhecimento e da vida dentro de suas práticas comuns e cotidianas, que
passariam a carregar a partir daí a perspectiva do periférico, marginal e que deveria ser corrigido pela apropriação das verdades científicas ou da
tutela daqueles que as possuem. “Moderno, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour, 1994, p. 15).
À escola coube o papel a rigor de grande garantidora do discurso
válido frente às imprecisões do senso comum que são apreendidos na vivência familiar e comunitária. O que explica o fato das crianças e adolescentes se mostrarem distantes e entediados de um saber que
pouco ou nada fala da sua vida cotidiana, ou pior, que muitas vezes
desqualifica o saber apreendido nas suas relações familiares afetivas. A
89
natureza e o ser humano foram lançados nas trevas da irracionalidade e
da superstição (Nicolescu, 1999), o sujeito foi transformado em um objeto de análise da ciência para só então ser compreendido e entendido, somente dentro dos parâmetros cientificamente válidos.
Como
nos demonstrou tão bem Foucault, a escola foi constituída para que, não só através de conteúdos listados nos currículos, mas por diversos mecanismos - aqueles subjetivos, escondidos no que parece comum e
corriqueiro - fosse possível a apreensão do comportamento ideal, do
lugar dos diferentes sujeitos no mundo estratificado do trabalho. Uma escola ensina aos que deverão obedecer, uma “outra” escola, que precisa
ser diferente, pois essa ensinará a mandar. Conteúdos mínimos pra uns, a oferta plena de conteúdos a outros. Mas, ainda diante de todas essas questões
seguimos
nossas
vidas
nesse
espaço,
mesmo
que
dicotomizado, apartado, hierarquizado, assimétrico, porque ali vivemos e nos constituímos como sujeitos, sujeitos que ensinam, sujeitos que
aprendem, sujeitos que amam, sujeitos que sonham, sujeitos que lutam. E, seguimos constituindo outras adjetivações a esse mesmo espaço: espaço interdisciplinar.
Interdisciplinaridade? ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA
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“O
papel
de
transformando
transformar
a
existência
a
autoridade
humana
num
democrática
“calendário”
não
é,
escolar
“tradicional”, marcar as lições de vida para as liberdades, mas, mesmo quando tem um conteúdo programático a propor, deixar claro, com seu testemunho, que o fundamental no aprendizado do conteúdo é a
construção da responsabilidade da liberdade que se assume.” (Freire, 1996, p. 94)
Desde a década de 1980 tem-se debatido, pensado e escrito com
grande entusiasmo sobre a interdisciplinaridade 2. Diante de um mundo
cada vez mais complexo, os saberes isolados não davam mais conta de descrever os novos processos que eram enunciados, tampouco os problemas
que
se
avolumavam,
mudanças
climáticas,
problemas
econômicos, crises, queda de muros, fim de velhas utopias e início de
novas..... tudo que era sólido se desmanchava no ar, tal como anunciara Marx no seu Manifesto Comunista, já no século XIX.
Nem a história, nem a economia, nem a biologia, nem nada
sozinho dava conta de explicar a multiplicidade do novo, “as naturezas
90
que deveriam ser dominadas de forma absoluta nos dominam de forma igualmente
global,
ameaçando
a
todos”
(Latour,
1994,
p.
14).
Evidenciava-se o fato da vida ser um todo e as dificuldades de se tratar
dela de modo estanque. Procurava-se por novos modelos, recolhendo, às
vezes, velhos modelos deixados à beira do caminho. Darwin, quando desenvolveu sua teoria da evolução das espécies, não se ateve somente à
biologia, ele nem possuía diploma universitário e por isso seguiu fora do conhecimento restrito, navegando num pseudo amadorismo que é ser curioso e entusiasta observador da vida (Morin, 2003, pp. 106-107).
Esse caminho apontava para a possibilidade de superar a crise das
disciplinas, a crise de um conhecimento que perdeu a visão do todo.
Apontava para a aplicação de conhecimentos disciplinares, supostamente
estanques, com possibilidade de dialogar com outros. A ciência e a tecnologia
atual,
possibilidades
de
especialmente um
futuro
as
ciências
humano
da
comum
vida,
cujas
projetam
estruturas
pedagógicas tradicionais não conseguem mais acompanhar. A escola que oferece uma enorme quantidade de informações sem fornecer conexões,
guias e fundamentos para a vida, priva seus alunos de uma experiência de verdade e não somente dados de leitura e apreensão para testes de sondagens. 2
Ver os trabalhos de Ivani Fazenda, por exemplo.
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Tanto professores como alunos são aprendizes e produtos dessa
escola que dividiu e selecionou os conteúdos válidos. Para um novo fazer precisamos de novas ideias que alimentem e inspirem novas práticas, que
tragam novos dados, um caminho feito no caminhar. Novo, ainda não
percorrido, por isso difícil, inseguro, mas que só assim se constituirá.
Então, certas certezas que apreendemos na infância e nas relações sociais ao longo da vida, por vezes precisam se deslocar, mudar, e abrir espaço para o novo.
Como bem nos lembra Morin, “mais vale uma cabeça bem-feita
que bem cheia” (2003, p. 21). O acúmulo máximo, a mesma lógica que
regula a economia, acaba por influenciar outras formas de agir no mundo. Cremos, há tempo, que a acumulação de muitos saberes, mesmo
que desconexos e sem sentido, é que irá garantir a formação dos sujeitos escolares. O que esses sujeitos farão com as informações que recebem já não importa, o que importa é o saber máximo. Narrando meu fazer, são
muitas as ocasiões que verifico sobre como a escola assegura esse
saber/fazer, mesmo que não constando oficialmente no currículo, numa
91
aula com uma matéria específica, mas porque a vivencia no fazer cotidiano é de extrema valia e eficiência. Em uma turma de nono ano do
ensino fundamental, uma aluna trouxe uma constatação que pode nos ajudar a pensar nesse tema. Ao perceber que assistiria um documentário que introduziria novamente um tema a tratarmos falou:
Professora você vai passar filminho de novo!!! Por que você não passa
um questionário da matéria? É melhor, mais fácil e assim a gente sabe o que vai cair na prova. (J., 14 anos) 3
Essa reação de J. deixou-me bastante consternada. Sendo uma
aluna aplicada e que compreendeu totalmente os instrumentos escolares, sabia que esse fazer se dá com uma sucessão de atos que culminam na avaliação do quanto os alunos foram capazes de decorar desse processo. A palavra escolhida por ela, “filminho”, também denotava o valor dado ao
conteúdo disciplinar escrito e uma produção visual que não compõe oficialmente a matéria em questão. Afinal uma proposta diferente tem
qual sentido para esses alunos calejados dos processos escolares? E qual sentido tem para os professores que há muito tempo estão nessa vivência?
Os demais alunos da turma protestaram e pediram com veemência
assistirem ao filme proposto. Tratava-se do título O Menino de Pijama Diálogo retirado de apontamentos pessoais de uma experiência docente com uma turma de nono ano numa escola estadual no município de Belford Roxo – RJ/2012.
3
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Listrado (2008), pois iniciaríamos os estudos sobre as guerras mundiais. Numa tentativa de aproximação através de uma abordagem subjetiva e
sensível, de como as vidas cotidianas narram seu tempo, seu microcosmo
social, “em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana” (Morin, 2003, p. 45).
Afinal, mesmo que com um começo de demonstrações de
desagrados, ao final do filme a turma emocionou-se e a própria J. declarou ter gostado muito. O debate que se seguiu foi intenso. A turma
não se conformava com as explicações dadas no livro, de forma
simplificada e em tópicos, sobre as causas da guerra. Então estendemos o tema por mais alguns dias para dar conta de procurar respostas mais
satisfatórias. Levamos mais dados que encontramos em pesquisas feitas individualmente e compartilhamos em roda: porque os homens fazem
guerras? As perguntas e as inquietações que elencaram os conteúdos que
foram tratados, mas tratamos principalmente das experiências individuais
com a violência e injustiça social dos nossos tempos. Foi uma experiência
92
docente muita rica para mim e acredito que, pelo interesse provocado, para eles também. A
turma
envolveu
outros
professores
que
encontraram
consonância com o tema que estavam trabalhando – como a professora
de português, que estava trabalhando com textos sobre ética e
convivência social (a professora havia detectado uma animosidade muito grande entre os grupos de alunos que compunham a turma e por isso
essa temática), e a de artes que estava trabalhando com as produções artísticas
desse
período
histórico.
As
aproximações
com
estas
professoras foi iniciativa dos alunos, que não conseguindo parar tudo que conversávamos nas primeiras aulas da manhã, acabavam por contaminar as disciplinas seguintes com a mesma temática. Nós, professores, não soubemos nos aproximar tão bem como os alunos fizeram com nossas disciplinas. Mesmo diante de uma experiência positiva como a vivida, as dificuldades permaneceram, num diálogo ainda difícil, mas numa aprendizagem possível. Então é possível questionar: quem ensina quem nesse processo? E o que temos aprendido (nos permitimos aprender) com nossos alunos?
É na busca de uma escola com mais sentido, para todos os atores
que lá estão, que permitimos as dúvidas, o saber incompleto –
incompleto como somos nós – o saber que se constrói no fazer, no viver,
nas relações cotidianas. No sentido que dou àquilo que pronuncio como
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minha crença ao fazer em consonância “não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo” (Freire, 1996, p. 34). O saber que tem o ser como um todo conectado, objetiva e
subjetivamente, suas experiências e suas crenças, reconhecendo e tratando desses assuntos, não ficando somente nos “saberes válidos”, mas principalmente nos saberes vividos. Esses cheios de sentido porque uma vez experimentados se tornam integrantes do ser.
A disciplinarização escolar visa corpos e mentes. Corpos e mentes
passivas diante do conhecimento e do poder, buscando somente pelas
respostas certas a perguntas que nunca fizeram. Mesmo não se
adequando ou sofrendo com tal processo, os sujeitos escolares apreendem que só terão a excelência se forem massacrados com conteúdos desconexos e, a princípio, sem sentido algum com o cotidiano, com a vida que trasborda de outro jeito fora dos muros da escola. Podemos, afinal, reconhecer que a vida e suas ligações se
realizam, alheias aos limites das disciplinas, alheias ao modelo escolar,
elas se encontram se inter-relacionam e se integram? Como poderemos,
93
professores e alunos, nos integrarmos também nesse processo de interdisciplinaridade?
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NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom: São Paulo,
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ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA
entrevista:
Verstรถrung: Aprendiz de Xamรฃ. Diรกlogos com Laerson Azevedo. Thiago de Oliveira Sales
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Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo.
Thiago de Oliveira Sales – UFPE
Licenciado em História, especialista em Etnomusicologia, mestre em Antropologia, doutor em Antropologia, doutorando em Filosofia.
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Os escribas e os profetas de hoje são esses que agora vendem
palestras motivacionais e tentam promulgar leis esquisitas, do gênero:
não façam isso de forma sexual, por favor! Façam-no, mas não dessa forma sexual, por favor. E os guerreiros de hoje são os executivos e os
futebolistas que vão à televisão comprovaram que deram “à volta por cima” – esses que recebem fortunas para destruir impérios simbólicos,
como fez Aquiles lá em Tróia e Eike Batista nos últimos anos. E os xamãs de agora são esses detentores das terapias contemporâneas, esses que
dominam os compostos químicos e sabem muito bem onde obtê-los: são
herdeiros de Paracelso, não de Hipócrates – porque a alopatia é “paracelsiana”, e não “hipocrática”. O guerreiro vai sempre existir, claro, mas o xamã estará lá presente a sugerir “check-ups”. O que são “check-
ups”? São singelas licença para o viver: após conferir que nossas taxas estão adequadas, podemos enfim continuar vivendo (são esquemas de
prognóstico, e não de diagnóstico, como normalmente se pensa). Todos saem felizes de um check-up bem sucedido: agora sim tenho certeza que
posso continuar vivendo! Estou livre desses “microespíritos” indesejados! Além disso, poderei continuar minha vida indisciplinada e pseudohedonista. Laerson Guilherme cresceu numa casa assim: um pai médico
(médico e veterinário), uma mãe enfermeira, um irmão farmacêutico e uma irmã mais nova também enfermeira. Laerson, como tal, mergulhou ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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nas práticas de cura a partir de um movimento inusitado e, ao mesmo tempo, excessivamente tradicional. Andou ao lado do pai, por entre
municípios distantes e hospitais humildes, na tentativa de curar
“pessoas”. Ora, o que são pessoas? São seres complexos, repletos de
dramas infantis e alegrias adultas – essas coisas que o escritor austríaco
Thomas Bernhard tão bem descreveu numa espécie de literatura muito razinza e “afetuosa”. Bernhard falava mal de todo mundo para depois
dizer que amava a todos – é bem isso a sua escrita; é ranzinza e carinhosa. Curiosamente, Laerson parece Bernhard e, Bernhard, por sua vez, escreveu um livro com a mesma história de Laerson: Perturbação
(Verstörung, 1967), livro emblemático da obra do autor, assemelha-se a
um esboço ariano da trajetória, também cínica, mas tropical e apaixonante, de um sofista proveniente de uma tradicional família de protestantes e xamãs (se é que tal associação é possível).
- Como você começou a acompanhar seu pai como médico? Na década de 90 meu pai foi fazer atendimento no sindicato dos
hoteleiros. Funcionava assim: ele ditava o tipo de exame, a data, ditava
97
tudo, eu escrevia e ele apenas conferia e assinava. Meu pai já tinha certa
dificuldade em “escrever”, por isso eu o ajudava. Fizemos atendimento em muitas cidades do interior próximo ao Município de Bezerros. Depois
que minha irmã percebeu que eu estava acompanhando demais meu pai,
propôs que me dessem 400 reais por mês. Era o dinheiro que eu ganhava por acompanhá-lo.
- E isso obrigava a você ver o “caso” dos pacientes? Claro que obrigava, pois eu tinha que acompanhar. Se bem que, de
fato, não era uma “obrigação”, afinal, quem tinha que saber e, quem
sabia de fato, era meu pai, mas, por curiosidade, acabei vendo muita
coisa. Ele fazia atendimento três vezes na semana e eu o acompanhava
nesses dias. Eu escrevia então todo procedimento clínico, chegava pacientes cardiológicos lá e eu tinha que saber as diretrizes do eletro, onda p, onda q, o complexo QRS... Tinha que saber tudo isso.
- Por que seus irmãos não acompanhavam seu pai? Por que ele escolheu você?
Eu era sempre a “opção” para essas coisas aqui em casa, mas
também, meu pai confiava muito em mim. Talvez porque eu quisesse
entender da coisa, eu tinha interesse, eu não ia apenas por ganhar um dinheirinho, eu tinha curiosidade mesmo.
- Curiosidade pelo quê? Pela morte? ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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Pelo conhecimento, não pela morte, mas pelo conhecimento. Você conhecer dessas coisas lhe dá certa segurança. - Segurança? Como assim? Quando algo acontecer com você, você estará sabendo o que é. Se
eu tiver uma tosse, e essa tosse tiver expectoração, e essa expectoração
tiver “raios sanguíneos”, aí o médico vai dizer “tome esse raio-x e vá
saber”, mas eu diria “raio-x somente não, doutor, passe uma pesquisa de
BK aí no escarro, pois eu quero saber se é tuberculose”. Eu não vou
chegar num consultório e ficar à mercê de um médico que vai passar exames e mais exames para que eu tenha voltas e mais voltas para ele ganhar dinheiro.
- Vivemos numa sociedade hipocondríaca, há uma série de
estímulos
para
buscar
“doenças”
conhecimento não é um transtorno?
e
fazer
check-ups,
não?
Esse
Não. Quanto mais você conhecer da doença, mais hipóteses de
descartar determinadas patologias você tem. O conhecimento aumenta o
98
“grau de consciência” do sujeito. Por exemplo, estou com dois cistos na
tireoide, um cisto de 0.8ml na tireoide esquerda e na tireoide direita, e um no pulmão. Eu li na ultrassonografia e na tomografia: “formações
císticas sólidas de aspecto morfológico condizentes com calcificação”, bem, o que seria isso? Nesse momento pensei: meu PTH tá alto, e o PTH é
regulador do cálcio no organismo, ou seja, ele tá roubando cálcio do organismo e depositando em outro canto. Esse conhecimento já me livrou de ficar encucado com câncer e outras coisas. Outra pessoa que lesse
“cisto na glândula da tireoide...” iria ficar louco, não? Mas com o conhecimento, a gente se livra disso. Se você não tiver o conhecimento qualquer leitura vai ser péssima, você não vai entender nada. Imagina se você abrir o “google” e encontrar que você está com vasculopatia
periférica e que já está com comprometimento no quinto arteiro direito?! Consegue entender isso? Ora, significa apenas que você está com
problema de circulação na mão direita, nesse “dedinho”. Mas, claro, isso pode soar como algo extremamente grave.
- Você gosta de utilizar a palavra “frescura” – tal palavra é, para
você, uma espécie de “conceito”?
Não tenho um conceito formado sobre o que seria “frescura”, mas
funciona mais ou menos assim: nada é da gente, o que foi dado foi dado por alguém que tinha e foi lá e deu (Deus?).
ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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- Ter medo da morte é “frescura”? É, pois algum dia a gente vai morrer, não? A gente não tem medo da morte, a gente tem medo do desconhecido, porque a gente não sabe o que há depois.
- Você também fala muito do pulmão, o que há com o pulmão? Considero o órgão “mais vital” do ser humano. Observei isso em Bezerros, pois percebíamos que no internamento clínico, e até cirúrgico mesmo, quando o paciente perde muito sangue numa amputação, por exemplo,
ele começa a apresentar uma certa insuficiência respiratória, uma certa dificuldade de respirar. Quando o aparelho respiratório é atingido, pode
ter certeza que é o último estágio. O sujeito pode estar bem de tudo, mas
se estiver ruim do aparelho respiratório, então, não há solução. Claro,
tudo isso por uma questão muito simples: o seu corpo passa 10 dias sem comer, 5 dias sem água, mas não passa 5 minutos sem oxigênio – ninguém consegue ficar 5 minutos sem oxigênio. O mergulhador profissional consegue ficar 6 minutos porque treina muito.
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- É por isso que Deus soprou as narinas de Adão? Talvez. Meu amigo entrou na UTI sóbrio, falando tudo, disse ao irmão:
“Traga para mim o livro de Clarice Lispector, quero ler aqui na UTI”. Bem,
começou a cansar, a cansar, e então, insuficiência respiratória e depois
infecção respiratória e então, óbito. Não tinha problema no aparelho cardiológico, não tinha problemas hepáticos, neurológicos, nada, foi
somente um problema de “respiração”. Era um amigo da igreja, sabe? Crescemos juntos. igreja?
- Como foi sua vida na comunidade religiosa? Como você vê a (difícil dizer)... A igreja não é legal. A igreja lhe lapida com uma
porção de dogmas e o sujeito se sente culpado de tanto encherem a
cabeça dele com coisas do tipo: masturbação é pecado, “não sei o que lá mais é pecado”, não pode, você tem que dar 10% do seu dinheiro. A
igreja vai transformando o sujeito num ser paranoico – essas coisas te deixam paranoico. O sujeito vai ficando paranoico com coisas de igreja. A igreja nos prepara para estar casado: “o casado que está certo!”.
- O que acha do projeto de família e demais outras coisas que a
igreja propõe?
Estou para conhecer, antes de morrer, duas pessoas, seja homem e
mulher, mulher e mulher, homem e homem, que resolveram se unir e ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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compartilhar a vida em comum no teto e que se tornaram mais feliz do que quando eram solteiros. Eu não conheço ninguém. Eu não conheço ninguém que tenha sido feliz depois do casamento. Conheço pessoas que
se casaram por obrigação social, casou porque o “tradicionalismo” pede o casamento – os pais pedem o casamento. - E o amor? E sobre o amor? lá!
Amor não existe. Eu não acredito em amor. É invenção grega, sei - E o amor de Deus para o homem? Ele amou a humanidade? O amor? O amor em que sentido? Bem, o amor de casal é mentira. - E o por que as pessoas se agregam? As pessoas se agregam por autoproteção, acho que é isso. Eu
quero que alguém me queira bem, que queira cuidar de mim, e acabo passando isso para outras pessoas, para que os outros me queiram bem.
- Às vezes penso que as pessoas querem uma testemunha da
100
própria biografia.
O homem é só cinza e memória, depois que ele for embora tudo se
esquece... Veja, eu nem sei quem é meu bisavô! Nem sei o nome dele! Só
está na memória do meu pai, quando ele morrer, acabou meu bisavô. Meu tetraneto não vai saber nem quem eu sou! É capaz de ele trabalhar na pizzaria que eu abrir sem saber que fui eu que abri!
- Você tem 35 anos e, aconteceu algo que parece irônico, pois
você se preparou sem querer para “isso” e caiu imerso na medicina sem ser somente para acompanhar, mas também, para ser acompanhado, pois
hoje em dia, você faz hemodiálise. Acha que isso foi uma “brincadeira” do destino? Como é a vida de uma pessoa que estava tanto tempo metido na
medicina indiretamente e, agora, faz hemodiálise? Como é a vida de um paciente com hemodiálise?
Rapaz, hemodiálise é cruel, é pesado. É uma espécie de tratamento
que você fica entre a cruz e a pesada. Se você não entra você vai ter
complicações sérias, circulatórias e tudo o mais. Se você entra, terá outro tipo de complicação, cardiológicas e tal. Mas, tem que entrar para tentar manter a vida, não? Quando há indicação para diálise, tem que entrar pesado. Na verdade são 3 tratamentos: o conservador, que é com dieta, o
dialítico, que é com dialise, e o de transplante, que aí o sujeito
transplanta e fica em observação para ver se funciona. Nenhum dos 3 é seguro, o transplante é interessante, mas é uma cirurgia com risco de ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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vida – o sujeito tá recebendo órgão novo, vai diminuir a imunidade dele,
vai ter que tomar imunossupressor, a própria cirurgia pode infeccionar...É bronca grande, viu? Bronca grande.
- O que mais te impressionou enquanto acompanhou teu pai? Certa vez vi uma criança morrer. Uma criança não merece morrer, afinal
quem merece morrer? E ainda mais por um acidente? Sei lá. Uma vez, sabe, na emergência, entrou um pai e uma mãe desesperados, gritando
com muita gente atrás dele – o pai trazia o menino num braço e a mãe com uma menina no outro braço, havia ocorrido um acidente que tinha
atingido os garotos. Lembro bem de ver o pai ajoelhado, na frente da porta de emergência pedindo “pelo amor de Deus” que não levasse o
menino dele – depois disso, fiquei pensando “deve ser muito difícil ter filhos”. É muito difícil ter filho, muito. Lembro-me de um episódio de
Batman que o mafioso diz algo assim “depois que você tem filho, você se torna um refém”.
- Já agiu como médico por aí?
101
Certa vez uma amiga disse estar sentindo uma dor latejante e
quente, então, um estudante de medicina pediu um RAIO-X para ela. Lembro-me que ela comentou isso comigo e eu fiz uma anamnese e
disse assim: “isso deve ser trombose, fale com o Dr Artur e mostre esse
braço para ele”. Então, o Dr Artur me ligou para agradecer e disse “Parabéns, viu? Você detectou a TVP dela há tempo e ela já está em tratamento”.
- Você se considera um médico que não é médico? Um lutador que
não é lutador? Afinal, você já foi lutador de jiu-jitsu. Um professor que
não é professor? Sei que já foi vigilante, afinal, você se considera o que profissionalmente?
Na verdade eu sou um camaleão social, sabe? Você sabe que eu
não entendo absolutamente nada de português, não? Muito embora eu
seja professor de português. Se você perguntar para mim o que é uma oração assindética e uma sindética eu não sei explicar. - Mas e, ainda assim, você fala muito bem. Sim, eu tenho certa eloquência, tenho certa oratória, um poder de
retórica...
Isso
ajuda.
Todos
sempre
“caem”
na
minha
“pala”.
Cientificamente, eu sou um “sofista”, eu sou cheio de “sofismas”. Eu pego
um chavão, por exemplo: “na escola me ensinara taxonomia, nomes
científicos, me ensinaram a ler os elementos, me ensinaram todo tipo de coisa, mas nenhum professor nunca me chamou a atenção para uma ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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beleza de uma árvore” e saio por aí a repetir essas bobagens e todos se
impressionam, pode? Com esse tipo de coisa as pessoas me acham um intelectual extremamente preparado, pode?
- Acha que os homens têm carência de sofistas? Vou lhe dizer uma coisa (enorme pausa, grave pausa) o ser humano está
muito carente de conhecimento, o ser humano não tem conhecimento.
Também confundimos conhecimento intelectual com burrice, mas não é isso que me refiro.
- Conhecimento em que sentido? Percepção das coisas? Eu quando converso com meus colegas professores, e mesmo pessoas de
outras áreas, eu percebo que conhecimento de mundo, coisas básicas, as
pessoas não têm noção. E há coisas tão graves, coisas que todos deveriam saber, e ninguém sabe. dia?
102
- Você fala que é um sofista, afinal, é possível ser sincero hoje em Não tem como, é impossível. Nunca o homem quis saber verdade
nenhuma. Nunca o homem quis saber verdade nenhuma! - Isso é mais um sofisma?
Isso é mais um sofisma (riso). Ora, deixe-me falar sério, isso não é
um sofisma, isso é algo constatado, nós temos que manter nossas
máscaras sociais. Acha que alguém quer ouvir verdades na cara? Verdades constrangedoras? Ninguém quer ouvir. Acha que eu quero ouvir: “Laerson, tu és doente, não vai voltar a lutar judô agora não” – bem, tu achas que eu quero ouvir isso?
- Acha que na intimidade a gente já sabe de tudo e, na verdade, a
gente já tem a verdade e não quer ouvir a verdade?
Tem esse caso, e tem o caso do sujeito que, de maneira doentia ou
patologicamente falando, ele encobre – ele finge que não sabe! Ele acha que não sabe!
- Então, a verdade vos libertará é uma “falácia”? Acho que a verdade pode aprisionar. Se eu cair na real sobre o que
é de fato minha doença eu acho que posso cair em depressão ou algo assim. Eu sou um sujeito “de não ligar para nada” e fico achando que
tudo é “frescura”. Mas, ao mesmo tempo, essa coisa de achar “frescura” é uma das minhas defesas.
- Acreditar que tudo é “frescura” é um sofisma para si mesmo? ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
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É sim. Porém, eu acredito nisso. Eu procurei acreditar até que eu
consegui. Então, eu penso “mete essa agulha, tira o sangue, filtra que eu
volto para casa”. Na verdade isso se chama “resiliência mental”: é o
homem tentando fazer com que o cérebro dele se torne imune a determinados pensamentos.
- Algum dia o homem vai querer ouvir verdade? Jesus vai voltar
quando o homem quiser ouvir verdade? Será essa a volta de Jesus?
Platão falava sobre isso quando comentava acerca da caverna. A verdade, bem, a verdade é meio dura mesmo. O homem nunca vai querer ouvir a verdade. Não há concursos para você?
- Ei, você quer me dizer a verdade? (risos) Escute, deixe-me
perguntar outra coisa. Você acha que é o tipo da pessoa que guarda muito a verdade para si? O sofista, afinal, sabe das coisas, mas não quer dizer. Protágoras era assim, não?
Há pessoas que vêm conversar comigo coisas que não me
interessam, mas eu me mostro interessado, porque sei que as pessoas
103
precisam disso. Mas lá dentro do meu coração tem uma vozinha que diz assim “que bobagem, eu não quero saber disso não”. Há uma doença,
uma disfunção no lobo central, que a pessoa não consegue segurar a informação. Por exemplo, se eu estou conversando contigo e estou achando essa entrevista uma porcaria, eu iria dizer.
- Vivem mais felizes aqueles que encontram o amor, o dinheiro ou
a saúde?
O dinheiro! É o dinheiro. A coisa mais importante hoje em dia,
nessa sociedade, é “dinheiro”. Por exemplo, se eu tivesse dinheiro agora eu estaria bem, sabe? Pois compraria um rim (mesmo de maneira clandestina). Conheci pessoas que só fizeram um dia de dialise, depois
que soube das complicações que teriam, comprou um rim! Saúde, em
determinados níveis, é comprável também. Porém, se você for pobre e
tiver problema renal, estará encurralado. O sujeito tem saúde, tem o amor dos amigos, mas, no dia que ele perde a saúde, ele está lascado. Se
o sujeito tem um câncer, por exemplo, o que ele vai fazer sem dinheiro? E o câncer pode chegar para qualquer um.
In Memoriam de Dr. Clayton de Azevedo.
ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES
ENSAIO FOTOGRテ:ICO
Livre que pensamos. Louvre que somos. Texto e Fotografias de Claudio Xavier
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Livre que pensamos. Louvre que somos.
Claudio Xavier
Designer, Professor na Universidade do Estado da Bahia-UNEB e no
Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade da UEFS; Doutor em Ciências e Tecnologias da Comunicação, Universidade de Aveiro,
Portugal. Vem pesquisando os seguintes temas: tecnologias digitais e convergência, interface, ciberespaço, ciberaprendizagem, cibercorpo, objetos e espaços de aprendizagem, design e
105
(in)formação visual.
As estratégias humanas de sobrevivência e de interação, nem
sempre dialógicas com o meio-ambiente, se traduzem na eterna e dual relação do que nos forma e do que formamos, do que somos e do que
também queremos ser. O imaginário que se alimenta é o mesmo que
desenvolve arquiteturas, tecnologias, obras de arte e engenharias, biomedicinas, armas bélicas e moda. Criador e criatura se (con)fundem e
todos os esforços retornam transformando a própria espécie e sua capacidade em produzir novos conhecimentos – saberes, práticas.
Como busca incessante, tudo o que criamos e desenvolvemos
existe como um registro ou para registrar o nosso desejo de imortalidade
– signos do tempo e do corpo. As folhas secas que se vão com o vento e se esvaem, cedem lugar a outras folhas que brotam, já incorporadas do
oxigênio necessário a um novo tempo, cada vez mais preenchido pelo gás carbônico.
ENSAIO FOTOGRÁFICO | LIVRE QUE PENSAMOS. LOUVRE QUE SOMOS| CLAUDIO XAVIER
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109
A materialidade das coisas registra o esforço e o desejo ancestral
de domínio do criador sob a sua criatura, um inesperado ato de decepção
por sua incompletude em não revelar o mistério da existência. Não menos angustiante, a (i)materialidade das técnicas contemporâneas revela o esgotamento de possibilidades como se estivéssemos, de forma apocalíptica, diante do Gênesis.
Esses registros/marcas estão imbricados ao humano, presos
entre a materialidade visível e imaginada, e a (i)materialidade impensável
e efêmera de uma dimensão atemporal que nos convida a ver o (a)cúmulo do que somos. O que somos?
Sujeitos desejantes da (i)mortalidade, nos pensamos livres. Uma liberdade que se quer cada vez mais ampla, posto que nunca gozamos de sua plenitude literária e nunca nos percebemos sujeitos de nossas próprias criações (i)materiais.
Se nos pensamos livres, no fundo acumulamos marcas que nem
sabemos nominar. Mas que nos medeiam e nos impreguinam, a nós
106
mesmos. Somos resultados da nossa própria vassalagem mercantil, pois mais que sermos aceitos, desejamos ser aceitos dentro de um sistema de
regras cada vez mais opressoras e com uma única finalidade: a expropriação e o comércio. Não nos pensamos nem escolhemos, sequer
desejamos qualquer coisa sem as marcas fincadas em nossos espaços e corpos.
Ao fim, somos um museu perdido, sem consciência de um lugar.
Museu de uma virtualidade inalcançável, inconstante e dormente. Museu (in)orgânico que acumula barro e plástico, água e laser, oxigênio e bit,
renew e rugas, sonhos e ilusões, vida e morte.
Do colecionismo primitivo à dinâmica atemporal e aespacial,
chegamos ao cúmulo.
Nestas imagens que se seguem, procuro captar, à luz dos
espaços multirreferenciais de aprendizagem, as marcas que nos constitui nesse museu através dos seguintes vetores:
Religião – as manifestações que representam rituais e ou
aspectos religiosos, institucionais e ou da fé, sacralizados no corpo e no espaço. suas
Comércio – a pregnância das ações e da cultura mercantil em
diversas
contemporâneo.
versões
–
do
capitalismo
ao
informacionalismo
ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109
Tecnologias
(corpo
e
processos
interativos)
–
possíveis
representações para os impactos promovidos pela cultura tecnológica (tecnofóbica e tecnofetichista).
Relações afetivas (e interações sociais) – janelas que se abrem
para uma reflexão sobre as relações afetivas, suas reivindicações e ou representações silenciosas da solidão.
Não-lugar em ausências – registros/marcas de espaços/lugares
da vida contemporânea, que por uma suposta ausência de significado mais se qualificam como não-lugares, nenhures.
As imagens têm como enquadramento diferentes contextos e
sujeitos que ilustram, mais do que na perspectiva intercultural ou de entrelugares, a partir do humano de todos nós.
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Rendas, contas e metais que ornam desde a escravatura.
Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, Cachoeira-Bahia.
ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO
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Empilhando palets, o sal do novo tempo.
Depósito de sal, cultura do sal da cidade de Aveiro-Portugal.
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Novos filtros para a não-visão da Monalisa? Ou a visão (in)imaginada?
Museu do Louvre, Paris-França
ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109
Não sentir-se cabe ou acaba a fé. Ou quando não existo.
Mulçumanas em banho de sol, Tanger-Marrocos.
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O que os olhos não veem. Não significam.
Fachada de um prédio residencial, Bracelona-Espanha. ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO
literatura:
FOLIAS NA FAZENDA:UM RELATO MEMORIAL Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz
SUMÁRIO: CARTA DO EDITOR...................5 JOVEM COLABORADOR Educação popular na perspectiva educacional indígena............8 Ana Claudia Santos Silva
História, Metodologia, Memória.............16 João Paulo Nascimento de Lucena
DOSSIÊ As Entranhas das Humanidades: Reflexõesacerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição...........24 Danieli Siqueira Soares
Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor............36 Fabiana de Oliveira Lima
Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ campus Volta Redonda-RJ...................53 Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho
A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar..................76 Nathália Alvarenga Porto Costa
Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade....................86 Rejane Peres Costa
ENTREVISTA Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo...............96 Thiago de Oliveira Sales
ENSAIO FOTOGRÁFICO Livre que pensamos. Louvre que somos..........................105 Texto e Fotografias de Claudio Xavier
LITERATURA FOLIAS NA FAZENDA: UM RELATO MEMORIAL........................111 Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119
folias na fazenda: um relato memorial Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz
A casa não era tão antiga. Tinha seus trinta anos. Seu especial
interesse estava na extrema simpatia com a qual nos acolhia quando
solicitávamos sua presença: algumas temporadas no ano, fora da normalidade circular da cidade grande.
A estrada
111
O trajeto até ela consumava-se num percorrer épico. Saíamos do
apartamento muito cedo na manhã úmida, o dia anterior passado numa embriagante
ansiedade
pré-viagem.
Percorreríamos
enfadonhos
quilômetros de asfalto, com suas inclinadas perspectivas e seus fios em
movimento, antes de chegarmos às espetaculares 3 horas transitadas sobre a poeirenta estrada de barro. Este ponto era delimitado por uma
parada na última cidade ligada pelo asfalto, o último baluarte urbano. Após um breve lanche na casa de parentes, onde encontrávamos nossos
primos – não tão “urbanoídes” como nós -, partíamos restabelecidos ao encontro do incomensurável. Atravessávamos quatro vilas perdidas no
deserto de barro e pedra antes de chegarmos à última, distante duas léguas da propriedade do meu avô. O mais marcante nesta estrada,
singrando um território esquecido por Deus e pelos homens, era a paisagem brilhantemente nova entrevista no percorrer uniforme e
saltitante do veículo. Imagens irreconhecíveis feriam-me os olhos concentrados. Formas inéditas eram encontradas sob o verde, o cinza e o
amarelo predominante; criando, para mim, um glamour surpreendente de imagens, acostumado que estava ao tédio repetitivo da perfeita geometria urbana. Avenida de avelozes, com seu verde escuro tenebroso,
desfilavam a nossa passagem, seguida da observação preocupante: - se
pegar nos olhos, cega! Pequenos açudes, resplandecentes de uma água prateada, onde lavadeiras esfregavam as roupas no dorso das rochas, davam-nos gana de “flecheirarmos” em suas águas. Óbvio que nossos LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119
desejos eram reprimidos pelo pragmatismo adulto de se chegar ao destino na hora prevista. As
cidadezinhas
eram-nos
nomeadas
à
medida
que
as
cruzávamos: São João do Cariri, Serra Branca, Santa Luzia dos Grudes, -
dos Grudes?! Risos, a dissipar a seriedade da viagem. Enfim, quando as energias infantis já se tornavam sôfregas, o aviso reconfortante:
-
chegamos a Sumé. Sumé era o nome da cidadezinha onde realizávamos
uma parada antes de se pegar uma estrada menor, da qual, percorridos 12 quilômetros, chegaríamos à porteira principal da fazenda, local
convenientemente denominado de “o Doze”. Pequeno pouso para abastecimento no posto de bolão, como para se fazer algumas compras na mercearia soturna e pouco movimentada de Pedro Odon, velho amigo
da família. – Ah! Que notável diferença dos supermercados da capital, aos quais acompanhava minha mãe nas feiras de sábado.
Refeitas as energias, na real constatação do início de nossas
aventuras selvagens, retornamos a estrada, confundida agora com a rua
principal da cidade; pois a antiga e originária, desaguando na igreja e na
112
praça do coreto, com suas pequenas casas e cadeiras na calçada, havia perdido sua importância com a construção da estrada nova. Ao sair da cidade, tomávamos a esquerda uma estrada secundária que interliga os
municípios de Sumé e do Congo. Adentrava-se, nesta, o território do bravio. Se antes a relação com a natureza dava-se principalmente
intermediada pelo olhar, agora ela fazia-se mais física, num contato
quase direto, tornando o último trecho do périplo um verdadeiro desafio para nossos pequenos corpos, os quais encaravam o mundo como um gigante, visto sempre de baixo para cima. A vegetação adensava-se,
invadindo o arremedo de estrada, que, devido às chuvas, era carcomida pelos buracos e catabis.
Ah! Quase esqueci, nossa variant branca 73
havia sido, apesar de seu temperamento arrojado, substituída por uma valorosa perua rural, único veículo que, por seu vigor físico, seria capaz
de superar os fantásticos obstáculos impostos pelos deuses daquela região. E o maior deles, sem dúvida, eram os riachões, pequenos
afluentes do lendário rio Paraíba, que, se completamente vazios durante a estação seca, só reconhecidos pelo seu areal branco e fino, assumiam proporções assustadoras na medida em que desabavam as chuvas; deste
modo, o trecho seco transformava-se num riacho caudaloso, de força e
velocidade invencíveis. Eram quatro os riachos a serem superados; e o maior deles era conhecido como riacho dos Espinhões. Numa ocasião,
quando tentávamos sobrepujá-lo sob uma tempestade noturna, a perua LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119
rural rendeu-se às suas águas perversas e tivemos que sair às pressas
pela traseira do veículo, sendo carregados até a margem. Nesta noite, nos albergamos numa pequena propriedade próxima, a fazenda firmeza, onde fomos recebidos por um velho senhor de modos afetuosos e sorriso
simpático, e, logo depois de secos e de ter comido pamonhas – era junho -, dormimos à luz dos candeeiros. No dia seguinte, passada a tempestade,
os
espinhões
se
apresentavam
em
seu
esplendor
tormentoso: águas barrentas, de um marrom-terra, cruzavam a estreita
estrada com feroz velocidade. Neste dia só pudemos atravessá-lo num Jeep Willys – tração quatro rodas, que fez várias viagens levando as pessoas de um lado a outro de seu leito.
Chegando-se, enfim, a entrada da fazenda, o carro era retido pela
porteira principal. Descíamos serelepes para compor nossa função de abridores de porteiras. Estas, normalmente, possuíam um sistema de trancamento feito de madeira que após puxado com esforço destravava-
se, bastando-se assim empurrá-la para que pudéssemos, ao passo que
se abria, pegarmos carona num de seus degraus; então o carro
113
lentamente
adentrava
a
fazenda,
e
a
porteira
era
encostada
e
devidamente trancada. Era realmente singular a alegria que este simples
processo nos provocava. Até chegarmos a casa-sede da fazenda
enfrentávamos mais quatro porteiras, que existiam para dividir áreas de pasto, e em todas elas conservávamos a mesma vitalidade no fazer manual de um ato inédito às nossas mesquinhas atividades rotineiras.
Penetramos assim no nosso território tão ansiado. Logo ao lado da
cerca de arame farpado demarcadora das terras da fazenda, encontrava-
se a primeira “casa de morador”. Não recordo seu nome, o do pai da
família; crianças lambuzadas de barro vêm nos fazer festa: - gente estranha da cidade que chega. Algumas têm a barriga inchada “mó dos verme”. A fazenda é grande. Percorrem-se uns três quilômetros por um caminho esburacado até se chegar na casa-sede. A propriedade é grande,
uns mil hectares. Como é inverno, a Caatinga está verde, de um verde
florido. Aqui e ali vemos a vegetação rasteira salpicada de florzinhas silvestres. Contraditoriamente ao nome, a Caatinga exala um perfume agradável, sutil, o ar invadindo nossos pulmões com seu odor benfazejo.
Sente-se logo o cheiro de estrume de boi, por incrível que pareça um cheiro bom. O Caatingueiro fechado marca todo caminho; separado por pastos de capim-elefante. A Jurema, que dá nome à fazenda, com seus
espinhos cortantes de fundos arranhões, é predominante; assim como o
inofensivo mameleiro, de folhas grossas – de grande serventia quando se LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119
vai obrar no mato. Aproximamos-nos da casa de Zé Galo, uma espécie de sede da parte norte da fazenda. No passado, ele fora acusado, talvez com razão, de ter matado dois cabras por causa de uma rixa de terras. É
estranho! Pessoalmente Zé Galo era risonho e simpático conosco, e dado a brincadeiras.
São fabulosas as nominações atribuídas aos lugares, assim como
as alcunhas pelas quais as pessoas desta região são conhecidas: Pitôco,
Lavanca, João Vermelho – porque era inteiramente vermelho –, Mané Borracha, Mané Azul – o Pescador –, Ná, Pena; nomes inusitados, de uma criatividade peculiar, imprimiam-nos um encantamento sonoro que nos marcava mais que as próprias pessoas ou lugares aos quais se referiam. Alguns desses “filhos da terra” carregavam histórias que exacerbavam
ainda mais suas impressionantes figuras. João Vermelho, por exemplo, era tomado pela diabete, de longe se podia sentir o odor de sua urina, atraindo pelo rastro deixado na terra uma legião de
formigas saúvas.
Tinha se casado em tempos imemoriais com Minervina, uma negra forte a
qual chamávamos zombeteiramente de Minerva. Já Pitôco era um ex-cabo
114
da polícia; alcoólatra inveterado, fôra trazido pelo meu avô para
permanecer isolado na fazenda, antes que a cachaça, que já tinha levado sua alma, levasse de vez sua vida. Era proibido de ir a feira da cidade nas segundas-feiras. Quando, por fuga, isto ocorria, era encontrado jogado
na rua, desgraçado de bêbado. Todavia, na fazenda aparentava uma
passividade tranqüila, sendo visto sempre só, a realizar pequenas tarefas
domésticas, plantando fruteiras, pescando; tentando esquecer-se. Havia
também os vaqueiros, homens guerreiros, com seus gibões e calças de
couro. Embrenhavam-se cedo no caatingueiro fechado, atrás de reses
perdidas, retornando, muitas vezes, só no dia seguinte. Quem conhece a
Caatinga sabe da dificuldade de se abrir caminho por entre os espinhos dilacerantes das juremas e dos mandacarus. Imagine-se, por vez, montar
a galope solto, sem caminho ou percurso certo, atrás de bois desgovernados. Via-se nos rostos destes bravos sertanejos as cicatrizes fundas deixadas por seu ofício.
Passada a casa de Zé Galo, após uma longa subida à direita,
avista-se
uma
linda
paisagem,
uma
longa
superfície
platinada
expressando reflexos cristalinos de luminosidade do fim de tarde: são as águas do grande açude da Jurema. Da beira da estradinha já podemos ver os marrecos a nadar em suas margens. Passamos pelo balde
e pelo
sangradouro de cimento. Quando o tempo é de muita chuva, o açude sangra por sobre um paredão de cimento – formando um véu de água, tal LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119
qual uma cachoeira. Postando-se em baixo, ao pé do sangradouro,
podíamos tomar banho, recebendo-se uma pesada carga d’água. Depois,
acompanhávamos o correr das águas por uma descida de pedras até dois poços situados na vazante do açude; o primeiro e maior dos dois era
circulado por um chão liso feito de rocha natural e sombreado por pés de algarobas. Era uma grande festa, pois além de se mergulhar no poço, podia-se, sentado na sombra, pescar piabas vindas do açude grande. Aqueles que dominavam a difícil técnica arvoravam-se em jogar a tarrafa, chegando mesmo a pegar traíras grandes. Quando o sangramento parava, escalávamos as pedras de volta ao paredão donde, mergulhando
na água doce, dávamos intensas nadadas até o meio do açude, para voltar rapidamente com medo dos peixes grandes ou de cobras d’água.
Passado o açude entramos na longa reta final, que, findando na
última porteira, dava acesso à querida casa da fazenda.
A Casa
115
A casa era térrea e retangular. Devia medir uns trinta metros de
frente por dez de fundo. Era toda avarandada por um terraço largo onde se penduravam inúmeras redes. E este era cercado por um tipo de flor
violeta que lhe imprimia um típico perfume agreste. Largadas as malas e cumprimentada a velha Sá Rosa, nascida ainda nos tempos da escravidão,
mãe de 18 filhos e com toda uma descendência espalhada pela região, partíamos logo para as corridas e brincadeiras em volta do terraço. A casa fora construída de modo que seu lado maior e frontal como que abraçasse quem chegava à porteira de entrada, a qual distava uns 50
metros da casa. Seu lado menor, à direita limitava-se com uma outra
construção na qual estava instalada a cozinha, com seu forno de carvão, e uma espécie de sala de espera
composta de bancos de madeira sem
pregos. Contígua a esta se achava o que chamaríamos de sala de jantar, uma única e enorme mesa com espaço para 20 pessoas, pois familiares e
trabalhadores comiam juntos sentados em dois compridos bancos, onde, na cabeceira, estabelecia-se o patriarca, o avô. Duas mulheres de
moradores – empregadas na casa – ficavam durante toda a refeição a
espantar o enxame de moscas que tentava pousar na comida, além de deixarem uma bacia de espuma de sabão num canto como armadilha
para as mesmas. O interior da casa era composto por três quartos de
casais, para os pais; duas salas espaçosas, nas quais todos se reuniam à LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
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noite, depois da janta, para se assistir televisão: o problema é que a imagem em preto e branco era péssima e só aparecia a seu bel prazer, em intervalos nada regulares; era melhor desistir, acostumados que
estávamos com a boa imagem da TV da cidade; entretanto, os moradores,
em pé, encostados a uma janela grande que dava para o terraço, insistiam, extasiados, em ver os flashes da programação noturna
concedidos pelo aparelho antigo. Um quarto grande e largo, composto por quatro beliches era onde dormiam as “crianças”. Existiam três janelas que se abriam para um terreno cercado por algarobeiras e mangueiras
onde se improvisava um campo de futebol. Mais ali, um pouco para a esquerda, avistava-se o cata-vento, para o qual nos dirigíamos nos fins de tarde a fim de tomar o terrível banho gelado, pois o único banheiro da
casa, por conta da arraigada falta d’água, era de uso exclusivo dos adultos. No entanto, antes do banho nos refestelávamos colhendo e
comendo as inúmeras frutas existentes no sítio em volta do cata-vento:
goiabas, laranjas-cravo, mangas, pinhas, corações-da-índia, azeitonas pretas, e a mais típica das frutas da região: o umbu. O umbuzeiro é uma
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árvore alta que dá um sombreado fechado, só se alcançando o fruto com
o auxílio de uma vara, com a qual, cutucando-o, derruba-se-o no chão.
É uma fruta verde, do tamanho de uma sirigüela, com um gosto doce-
azedo, mas delicioso em sua peculiaridade; se verde, solta um ácido que
deixa os dentes, como se diz, “travados”; com uma bacia de umbus é possível se fazer a tradicional umbuzada: fervida no leite.
O teto da casa não tinha forro, assim não havia o isolamento
sonoro encontrado nos prédios modernos. Os ruídos e as conversas podiam ser ouvidos em qualquer parte dela. As falas de alcova, portanto,
tinham que ser sussurradas ao pé do ouvido. Se quisesse ser escutado
por todos bastava-se elevar a voz. O boa noite era dado coletivamente.
Dormíamos olhando para o interior do telhado devassado, vendo as traves de madeira, e acordávamos com as frestas de luz que passavam
por entre as telhas quebradas. Estas eram nosso maior terror. Ali, morcegos escondiam-se de dia, para, à noite, voar livremente pela casa lembrávamos das amedrontadoras histórias dos moradores acerca dos morcegos-vampiros, ou das cobras que caíam do telhado em cima das pobres criancinhas. Os móveis eram todos antigos, da época da construção da casa. Nas paredes, retratos de antepassados desejosos de vida, porém presos ao limite da moldura oval: rostos estranhos, desconhecidos,
atentavam-me
a
curiosidade
histórias, que, afinal, era a minha própria.
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para
conhecer
suas
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Nossos dias apresentavam uma rotina quase ritualística. Éramos
acordados as 05:00h da matina, por uma sirene nos intimando a ir ao
curral tomar leite de vaca tirado na hora; pegávamos um copo de
alumínio, colocávamos três dedos de açúcar e íamos correndo para o curral, a uns duzentos metros da casa. Lá, nos compenetrávamos vendo o
vaqueiro, sentado num tamborete – o bezerrinho amarrado e babando aos pés da mãe -, fazer jorrar com movimentos precisos da mão o leite
original, o qual podia variar um pouco de gosto de acordo com a vaca
escolhida. Ouvíamos concentrados os comentários sobre as reses: o touro
holandês que quebrava uma cerca, e entrava a brigar com o dócil touro zebu, apelidado de ”violino”; a febre aftosa que havia atacado duas vacas; e observávamos largamente os movimentos instintivos do rebanho no rebuliço do curral. Um fato sempre me provocava indignação: não se sabe
o motivo, uma das vacas recusava a maternidade do bezerrinho, negando-lhe o leite. Este, coitado, atônito, insistia em suas tetas, mas era
misteriosamente rejeitado. Uma anomalia da natureza? Vai saber. De
volta a casa, por volta das 07:00h, esperávamos o café reclinando-nos
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nas cadeiras de balanço, a contemplar o sereno da manhã, sentindo os raios mornos do sol reconfortar-nos do derradeiro frio noturno – pois,
como no deserto, se de dia o calor era forte, à noite a temperatura despencava e tínhamos de dormir com cobertores. Mesmo de estômagos já
cheios
de
leite,
comíamos
o
indefectível
cuscuz
com
leite
acompanhado de algumas bolachas recheadas com manteiga de garrafa; raramente comia-se pão. Com o sol a subir, era hora de uma reunião de
cúpula a fim de se decidir a programação matinal. A decisão, peremptória, sempre ficava a cargo dos adultos. A escolha felizmente corroborava nossas expectativas: - vamos tomar banho de açude!
gritávamos em feliz algazarra. Restava saber em qual deles, pois eram
quatro os açudes, e cada um reservava um projeto aventureiro específico, já que possuíam uma singularidade extraordinária, a começar pelos diferentes trajetos geográficos que percorríamos para alcançá-los. Assim,
vejamos: tínhamos o mais tradicional, o já referido açude velho da
jurema; era também o mais próximo, após uma caminhada de meia hora
chegávamos ao seu largo e acolhedor paredão. Só no trecho final encontrávamos
dificuldades,
tinha-se
que
se
superar
um
riacho
equilibrando-se num caminho de pedras que servia como ponte. O segundo açude não se definia como tal, era conhecido simplesmente como a barragem. Sendo o mais recente, possuía um ar moderno, com
requintes tecnológicos em sua engenharia. Também tinha um paredão, mas de enorme risco, visto que um de seus lados limitava um fatal LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ
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precipício de vinte metros. Seu maior atrativo, no entanto, estava neste
fundo, pois foram construídas duas grandes torneiras que, abertas,
provocavam uma pesada queda d’água. Existia uma escada de marinheiro por onde descíamos e, segurando-nos para não sermos levados pela
força da água, recebíamos aquela pesada carga sobre nossos corpos. O
terceiro era o que eu mais gostava, fora dotado de um nome feminino
composto por um diminutivo, o açude da cachoeirinha, o qual representava perfeitamente sua índole. Perpassava nele uma suave
mansidão na passividade de suas águas paradas. Seu nome provinha do fato de que quando sangrava, seguia por um declive de rochas formando uma pequena cachoeira. Esta desaguava num vale premiado por
coqueiros, melancias e pés de cana-de-açúcar. Sugávamos o mel da cana e a água encarnada das melancias, enquanto um ágil morador subia nos coqueiros
arremessando-nos
lá
de
cima
os
cocos
mais
verdes.
Concluíamos a nossa festa de líquidos sabores, entornando na boca a água dos cocos a nos sujar com seu mel nossa cara e nossos corpos. Sem
problema, logo depois corríamos, atirando-nos impetuosos na água
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gelada do açude. Por ser o mais longínquo, a ida a cachoeirinha tinha de ser planejada com antecedência. Aguardávamos ansiosos a confirmação do passeio. Uma vez lá, a fabulosa paisagem comungava com nossos
espíritos, nutrindo-os com o jorro de sua sensorialidade brilhante e benéfica. O último, e o maior deles, era o famigerado açude do capa.
Ainda hoje não encontro explicação para o nome. Só sei que ele nos
infundia um certo temor, e uma estranheza. Muito raramente íamos nele, pois de difícil acesso e não muito dado a receptividades infantis. Em sua
grandeza, era um território para os maiores. Mané Azul, o pescador, todos os dias antes do amanhecer o navegava em seu pequeno bote,
resgatando sua rede coalhada de curimatãs, pacus e traíras. Tinha tamanha capacidade de guardar a água que só chegou a sangrar uma vez, na histórica chuva de 67, quando seu paredão estourou causando um desastre nas diversas plantações que irrigava.
Após as aventuras da manhã, ao meio-dia em ponto, estávamos
todos preparados para o almoço. Era uma lauta refeição: iniciava-se com
um prato servido unicamente de feijão, cobria-se este com farinha e
amassava-se a mistura até se formar uma pasta grossa. O feijão era servido como uma introdução, uma entrada, não havia salada, as carnes predominavam: a tradicional carne de sol com macaxeira, carne de bode,
de carneiro, guisado de galinha, ou então peixes de água doce; o arroz geralmente substituído por macarrão, e pouco tempero. Não havia
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geladeira, os animais eram mortos pela manhã e destripados diante de
todos, no terreiro grande em frente da cozinha. Durante o almoço,
comentários sobre a fazenda, discussões políticas e alguns “causos”
engraçados. Por fim, o cafezinho, um leve descanso na varanda para se tomar uma fresca, e a retirada geral para os quartos: era o momento da sesta. Até as quatro horas quando o sol relaxava, não se saía de casa;
aperreados com as moscas, partíamos para o lanche; novas brincadeiras,
ou um banho de açude com o sol a se por sobre o sertão majestoso. No
jantar, logo após o tempo escurecer, um prato de coalhada com açúcar, o xerém amassado, e um pouco de arroz com paçoca. Às nove, depois de
alguma conversa e um jogo de sueca no alpendre, os olhos quase a fechar espontaneamente, nos entregávamos ao sono dos Deuses.
Bem a história é demasiada longa, e como não há um desfecho
espetacular, vamos ficando por aqui, não sem antes esquecermos da
resposta de Pitôco quando perguntado onde ficava aquela região: - É lá,
no meio do mundo!
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UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE