Principios 132 web

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SOCIEDADE AMIGOS DE LÊNIN Entidade surge para estimular a reflexão, a divulgação e o estudo do pensamento de Vladimir Lênin

ISSN 1415788-8

ALDO REBELO Em entrevista, ministro do Esporte faz balanço positivo da “Copa que reacendeu o Brasil”

TEORIA, POLÍTICA E INFORMAÇÃO Nº 132 AGO./SET. 2014 R$ 12,00

AVANÇO X RETROCESSO

Dilma Rousseff representa a mudança em curso e o avanço; Aécio Neves e Marina Silva, o retrocesso. Basta conferir os programas, as declarações dos postulantes e o campo político e social que os sustenta.

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Editorial

Na polarização entre avanço e retrocesso, Marina reforça a oposição conservadora

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tragédia que ceifou a vida de Eduardo Campos teve um impacto significativo nas águas da sucessão presidencial. Pelas mãos deste infortúnio, Marina Silva se tornou candidata a presidente e, depois de rapidamente pactuar com os banqueiros, reconfigurou o processo eleitoral. Vale a pena percorrer a sinopse dos fatos desde o dia do sinistro. A nação reagiu com espanto e comoção ante a perda inesperada de uma liderança que se projetava como força renovadora. Entretanto, na mesma noite daquele atroz 13 de agosto, entremeio ao luto e ao espanto, a oligarquia financeira, ostensivamente, sem nenhum constrangimento, entrava em cena com o intuito de tentar se apropriar da tragédia, de administrá-la a serviço daquilo que é sua obsessão nestas eleições: impedir a qualquer custo a reeleição da presidenta Dilma Rousseff. Uma infantaria de jornalistas e “cientistas políticos” — os berrantes da grande mídia — fez soar uma diretiva do “mercado”: sem demora, o PSB deveria anunciar o nome de Marina Silva no lugar do líder precocemente morto. Diante de hesitações no ninho dos tucanos sobre qual cenário lhes seria mais conveniente, veio a ordem do comando supremo do consórcio oposicionista (oligarquia financeira e a grande mídia, setores mais conservadores das classes dominantes): antes de tudo, garantir o segundo turno. E a probabilidade de havê-lo, vociferou o “mercado”, é com Marina na cabeça de chapa do PSB. Mas, e se a Marina ultrapassar Aécio e ir para segundo turno? “Paciência”, tudo menos Dilma. Em círculo de aço, assim se fechava o estratagema da oligarquia financeira, anunciado às escâncaras pelos veículos de comunicação. Antes de o nome da líder da Rede ser ungido, a grande mídia fez desfilar uma romaria de personagens da nata das alas mais conservadoras das classes dominantes, quase rogando para que Marina aceitasse a candidatura. Gente graúda da alta finança, em “off ” ou às claras – e, pasmem, mesmo

O debate de ideias e propostas deixará mais claros para o eleitor os reais compromissos de cada candidatura

barões de um setor do agronegócio – derramaramlhe elogios, com mensagens do tipo: “mercados não temem Marina”. Provas e contraprovas de que Marina adotara a bula do rentismo foram apresentadas aos montes. Ou por suas próprias palavras ou por declarações de seu “guru” liberal, o economista Eduardo Giannetti. No dia 17 de agosto, data da cerimônia fúnebre de Eduardo Campos, houve, por assim dizer, uma transferência simbólica da capital da República para Recife. Dezenas e dezenas de lideranças nacionais presentes, entre elas a presidenta Dilma Rousseff, governadores de vários estados, o ex-presidente Lula, e também o candidato tucano Aécio Neves e, é claro, Marina Silva, até então companheira de chapa de Eduardo Campos. Um mar de gente — calculou-se mais de cem mil pessoas, gente do sertão, do agreste, do litoral, da Capital — em contrição e homenagem ao neto de Miguel Arraes. Uma verdadeira romaria do povo em tributo ao líder que lhe foi arrancado por uma tragédia. A presença de Dilma Rousseff e de Aécio Neves, do ex-presidente Lula e de expoentes do campo político hostil ao ciclo progressista que vigora no país desde 2003, para além da civilidade, simboliza que o significado do legado e a herança de Eduardo estão, objetivamente, em disputa entre o campo político

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conservador e o campo político de esquerda. É certo que Eduardo Campos — que apoiou os dois mandatos de Lula, que foi seu ministro e que também sustentou parte do mandato de Dilma — como candidato a presidente da República se apresentou um duro crítico do atual governo. Mas, embora acossado pela mídia, nunca atacou o ex-presidente Lula, ao contrário, manteve a coerência e sempre sublinhou os méritos do governo lulista. Caso Eduardo Campos, poupado da tragédia, não fosse para o segundo turno, que posição adotaria? Efetivamente, ninguém poderá responder a esta pergunta. Portanto, os tucanos, os “marineiros” , as forças conservadoras que tentam profanar sua memória política, na tentativa de transformá-lo num ícone do campo político conservador, no elenco dos que nutrem ou se moveram pelo preconceito e ódio ao ciclo político aberto pela vitória de Lula em 2002, o fazem por pura má-fé e manipulação política. A decisão do PSB de indicar Marina como candidata a presidente da República, tal como veio a se oficializar por sua direção nacional, no dia 20 de agosto, embora tomada com ares de unanimidade, logo veio a revelar as contradições entre históricos dirigentes do partido de Miguel Arraes e sua “hóspede”. Isto se manifestou, por exemplo, com o grito de protesto do secretário-geral da legenda, Carlos Siqueira. A tensão persiste, embora a pressão do pragmatismo seja grande. Marina sobe nas pesquisas de sondagens de intenção de voto com o mantra falsificador da chamada “nova política” com o qual tenta engabelar setores sociais descontentes e pactuando com os banqueiros todos os compromissos exigidos pelo rentismo, como é caso da anunciada “independência” do Banco Central. O consórcio da oposição conservadora sustentava até então como opção número 1, o tucano Aécio Neves. Mas se Aécio ficar na poeira, como indicam as pesquisas, parte do bloco das classes dominantes que apoia o tucano, de mala e cuia, passará a apoiar Marina. Jornalões já ostentam manchetes: “Para derrotar Dilma, mercado ‘marinou’”. Quando escrevemos este texto, final de agosto, a oligarquia financeira vive um entreato e se fraciona: uma parte já migrou para a candidata da Rede-PSB, outra ainda tenta “salvar” a candidatura de Aécio. Por que o “mercado” não “marinaria”? A cada segundo Marina repete que através de lei vai instituir a independência do Banco Central, leia-se, retirá-lo da esfera do governo federal e subordiná-lo à égide do

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capital financeiro. E mais, vejamos as declarações da herdeira do Itaú, senhora Maria Alice Setubal, e de Maurício Rands, ambos responsáveis pelo plano de governo de Marina: “Não vamos propor reduzir a taxa de juros por decreto. (...) É pelas leis do mercado que vai haver uma redução da taxa de juros”. O Programa de governo, anunciado no dia 29 de agosto, é um arremedo embelezado do programa neoliberal dos trágicos anos 1990, desta feita, acrescentando uma cereja no topo do bolo: a independência do BC, “o quanto mais rápido possível”. Assim, a essência da sucessão presidencial não se alterou. As eleições de outubro seguem polarizadas por dois projetos, por dois caminhos opostos: avanço versus retrocesso. Podemos afirmar, com certeza, que tal polarização se agudizou. Neste confronto, Dilma Rousseff representa o polo da mudança e do avanço; Aécio Neves e Marina Silva, o retrocesso. Basta conferir os programas, a plataforma de campanha, as declarações dos postulantes e o campo político e social que os sustenta. A presidenta Dilma Rousseff é a liderança capaz de, com base nas conquistas dos últimos 11 anos, conduzir o país a uma nova etapa de desenvolvimento. Dilma como presidenta soube defender o Brasil no período em que os efeitos da grande crise mundial do capitalismo passaram a afetar com mais danos as economias dos países em desenvolvimento. Dilma se proclama compromissada, em um novo mandato, a realizar as reformas estruturais de que o país precisa e empreender transformações que alavanquem o crescimento da economia do país e elevem, ainda mais, a qualidade de vida do povo brasileiro. Princípios, coerente com a linha editorial que adotou desde 2003, nesta hora em que a nação está polarizada em dois campos políticos bem nítidos – avanço versus retrocesso –, torna público o seu apoio à campanha de reeleição da presidenta Dilma Rousseff. Nesta reta final, o confronto se acirra. A oposição conservadora, apoiada nas pesquisas, tenta criar artificialmente a euforia do “já ganhou”. É imperativo ao campo político democrático, popular e patriótico desencadear um grande movimento político, social, eleitoral que abarque uma vigorosa luta de ideias, reuniões, plenárias, atos de rua, intenso diálogo com os eleitores. A quarta vitória do povo, com a reeleição de Dilma Rousseff, segue ao alcance das mãos da Nação, mas requer intensa luta nas múltiplas frentes da campanha. Adalberto Monteiro Editor


Sumário Copa 2014

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Entrevista com Aldo Rebelo

A Copa que reacendeu o Brasil................

Outro grande legado da Copa Laurindo Lalo Leal Filho.............................

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A organização do futebol brasileiro e o sentido das mudanças Antonio Rodrigues........................................

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Para que o 7 x 1 não seja em vão Fernando Damasceno e Cláudio Gonzalez..........................................

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Eleições 2014

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Não há “terceira via”, mas dois projetos em confronto Renato Rabelo ...........................................

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O discreto charme de Marina Silva Sérgio Saraiva ..............................................

As mulas-sem-cabeça de Aécio Neves e Marina Silva Osvaldo Bertolino.........................................

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Estratégia nacional-popular x Plano Real “puro sangue” Elias Jabbour.................................................

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Sindicalistas e estudantes defendem governo e reeleição de Dilma Cézar Xavier...................................................

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Brasil O Brasil acabou? Projeto nacional e impasses na gestão territorial do Brasil Evaristo Eduardo de Miranda ...................

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Com a Cúpula de Fortaleza, BRICS aceleram tendência a um mundo policêntrico Ronaldo Carmona.........................................

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Entrevista com Manoel Rangel

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Uma política de Estado para o cinema e o audiovisual..........................

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Sumário

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Internacional Califado: reino de terror que serve ao imperialismo Lejeune Mirhan.............................................

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Elementos de reflexão sobre a conjuntura política colombiana: paz, governo, sociedade e Constituinte Pietro Alarcón................................................

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A guerra criminosa de Israel contra o povo palestino Socorro Gomes..............................................

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História

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1914 – guerra e revolução José Carlos Ruy.............................................

Anos 1990: a dinâmica macroeconômica a partir do Plano Real e a nova (des)configuração do mundo do trabalho Tamara Naiz Silva.........................................

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Teoria

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A esquerda brasileira e o marxismo contemporâneo João Quartim de Moraes.............................

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Sociedade dos Amigos de Lênin Redação....................................................

Cultura A morte do touro Mão de Pau: o encantamento de Ariano Suassuna Joan Edesson de Oliveira......................

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Resenhas Rui Facó, o marxismo com a cara do Brasil José Carlos Ruy......................................

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Blogueiros, uni-vos (mas nem tanto...) Felipe Bianchi e Altamiro Borges........

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Copa 2014

Entrevista com Aldo Rebelo

A Copa que reacendeu o Brasil

André Cintra e Cláudio Gonzalez*

Em entrevista à Princípios, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, faz um balanço da organização e do legado do Mundial-2014. Segundo Aldo, para além dos números, o “ponto alto” do evento foi “a qualidade espiritual do nosso povo”, que levou a Copa a ser “celebrada no mundo inteiro” e ainda despertou “um sentimento de confiança” na população. De quebra, diz o ministro, “o Brasil sai do Mundial ainda mais credenciado para organizar os Jogos Olímpicos de 2016” 5


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rincipal nome do governo federal à frente da Copa do Mundo, o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, não acredita no ditado segundo o qual “a estatística é a arte de torturar os números até que eles confessem”. Mas, ao receber a reportagem da Princípios para esta entrevista exclusiva, seu único pedido é, por assim dizer, uma renúncia às eloquentes estatísticas do Mundial-2014. “Não vamos falar dos números, certo? Isso já foi esmiuçado naquela coletiva – e nem é o mais importante para avaliar o que foi a Copa.” Na coletiva a que Aldo se refere, realizada em 14 de julho, um dia depois da final do torneio, a presidenta Dilma Rousseff apresentou, ao lado de 17 ministros, o balanço da Copa. Números expressivos foram anunciados, como a marca de um milhão de

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estrangeiros que visitaram o Brasil durante o Mundial. A própria Dilma, porém, fez questão de ressaltar que o povo brasileiro foi o maior trunfo do País para promover, com incontestável sucesso, a “Copa das Copas”. Aldo Rebelo compartilha dessa visão. Os números, por excelência, são mensuráveis – e o maior legado da Copa, a seu ver, é intangível. “O que ficou mesmo – o ponto alto do Mundial no Brasil – foi a qualidade espiritual do nosso povo. Fizemos uma Copa celebrada no mundo inteiro principalmente por esse fator, que nem é material. ”Mesmo sem o hexacampeonato da Seleção Brasileira, há muito a comemorar, diz o ministro. “A Copa reacendeu no País um sentimento de confiança, de otimismo, de capacidade, de superação de desafios.”

Princípios: Há conAldo Rebelo, ministro do Esporte senso de que o Brasil se destacou na organização do Mundial-2014. Quais foram os principais desafios enfrentados na fase de preparação? Aldo Rebelo: A Copa do Mundo é um evento previsível. Para quem vai organizar, há sempre a referência das úl“Sempre tive a ideia timas edições. O que podemos de que realizaríamos fazer é balancear nossos próprios desafios com aqueles que a Copa do Mundo foram superados lá atrás, por dentro de nossas países como Alemanha, Japão, França e África do Sul. Tivemos condições e com toda a particularidade de fazer a Coa tranquilidade – até pa num país-continente, onde construímos os 12 estádios e porque o Brasil já fez preparamos – ou adaptamos coisas mais difíceis e – a infraestrutura urbana. Os aeroportos não foram reformamais importantes do dos para servir à Copa. Brasília que a Copa. já precisava de um aeroporto novo. De 2003 para 2013, sem O que ficou mesmo – Copa nenhuma, o movimento o ponto alto do evento ali passou de 2 milhões para 16 milhões de passageiros. Houve – foi a qualidade a preocupação com a segurança espiritual do nosso por causa dos acontecimentos durante a Copa das Confederapovo” ções.

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Princípios: Em que medida a Copa das Confederações funcionou como um grande evento-teste para o Mundial? Aldo Rebelo: A preparação para a Copa das Confederações foi uma espécie de antessala ou vestibular para a organização da Copa do Mundo. Dos 12 estádios, seis ficaram prontos. Toda a metodologia de acompanhamento das obras foi desenvolvida lá. A cada mês, sabíamos exatamente o quanto a construção de estádios tinha evoluído. Com base nessa evolução – de três, quatro ou cinco pontos percentuais ao mês –, podíamos variar o ritmo das obras e rever as necessidades de mão de obra, matérias-primas e equipamentos. Era possível projetar o prazo para o término da construção – a data em que o estádio estivesse 100% executado. Princípios: Além desse planejamento, a que se pode atribuir o sucesso da Copa? Aldo Rebelo: Sempre tive a ideia de que realizaríamos a Copa do Mundo dentro de nossas condições e com toda a tranquilida-


Copa 2014 Foto: Agência Brasil

de – até porque o Brasil já fez coisas mais difíceis e mais importantes do que a Copa. Hoje, ninguém fala mais de aeroporto, mobilidade urbana ou segurança. O que ficou mesmo – o ponto alto do Mundial no Brasil – foi a qualidade espiritual do nosso povo. Fizemos uma Copa celebrada no mundo inteiro principalmente por esse fator, que nem é material. A Copa reacendeu no País um sentimento de confiança, de otimismo, de capacidade, de superação de desafios. Acima de tudo, deu ao mundo também a ideia de um país que pode reunir capacidade, competência execuPresidenta Dilma reuniu ministros para relatar à imprensa balanço positivo da Copa tiva e emoção – essa qualidade espiritual do nosso povo de receber e tratar bem o turista. O mundo percebeu isso taram na desorganização, na imprevidência– mas não e divulgou com muita nitidez o Brasil – o que vai retinham convicção nem certeza dessa aposta. Agiam sultar em investimentos para o País e até em credibipara desgastar o governo e, principalmente, para colidade na agenda internacional. Já somos o país mais locar em xeque uma das qualidades da presidenta da requisitado para as forças de paz da ONU. República, que é capacidade gerencial. O objetivo político da campanha contra a Copa era manchar essa Princípios: Ao que parece, a boa organização do capacidade. Mundial ajudou até a inviabilizar grandes manifestações. Se houvesse problemas no comanPrincípios: Um dos eixos da organização da Codo de um ou outro plano operacional, o clima de pa foi a gestão integrada entre União, estados e insatisfação poderia ter aumentado? municípios. Além de instituir a Matriz de ResAldo Rebelo: Creio que não. Haveria, nesse caso, mais ponsabilidades, o governo federal conseguiu um sentimento de decepção do que de protesto. As estabelecer uma relação permanente com as 12 pessoas que criticavam a preparação da Copa precidades-sede, que são administradas pelas mais viam uma baderna, um protesto geral – achavam diversas forças políticas. Qual balanço o senhor que o comportamento do povo seria diferente. Mas faz desse processo? a população acolheu bem o evento, as seleções, os Aldo Rebelo: Agora mesmo acabei de enviar os agradevisitantes. Os críticos só reconheceram as qualidades cimentos a todos os governadores e prefeitos envoldo nosso povo porque não tinham mais outro arguvidos, a todos os secretários municipais e estaduais mento a defender. da Copa. Tivemos um bom entendimento. Independentemente dos partidos que governavam, foi um Princípios: Havia sinceridade nas críticas à Copa ambiente de muita cooperação. Graças a isso, pudeou era uma espécie de oportunismo, com viés mos antecipar os problemas, fazer as coisas e enconpolítico? trar as soluções. Aldo Rebelo: As críticas não foram sinceras. As pessoas podem ser conduzidas por má-fé, e os críticos da Princípios: A Fifa é acusada de mercantilizar o Copa não eram ignorantes. Estamos falando de um futebol e a Copa a um tal ponto de impedir a ida país que construiu esta base física, este território e esda população mais pobre aos estádios. Na Copa tas metrópoles; que se tornou a sétima economia do no Brasil se evidenciou este problema e se abriu mundo; que tem a agricultura mais pujante e compeuma janela de oportunidades para que se mude titiva do Planeta; que fabrica aviões e computadores. esse cenário? Como um país desses se atrapalharia com a Copa do Aldo Rebelo: A Fifa tem interesses comerciais, como Mundo? Por razões políticas e ideológicas, eles apostodos os promotores de grandes eventos. Mas, pa-

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132/2014 Foto: Bruno Santos

ra você ter uma ideia, a arrecadação de patrocínio dos Jogos Olímpicos é muito maior que a da Copa – e a receita da Fifa, de US$ 4 bilhões, não é quase nada do que gira no mundo do dinheiro. Mesmo com todas as críticas à Fifa, conseguimos ao menos 50 mil ingressos para indígenas e beneficiários do Bolsa Família. Havia uma cota, a categoria 4, em que os ingressos para a Copa eram mais baratos, em média, do que os do Campeonato Brasileiro. Os operários que trabalharam nos estádios também ganharam ingressos. Torcedores estrangeiros em geral elogiaram opções de transporte para ir aos jogos Princípios: Mas a Copa não induz ainda mais à mercantilização do futebol? Aldo Rebelo: Não partilho e até desconfio da unanimicriaram Flamengo, Palmeiras, Corinthians, São Paudade contra a Fifa. Em qualquer lugar onde se realize lo, Vasco da Gamaetc. O Estado só chegou ao futebol a Copa do Mundo – nos Estados Unidos, na Alemanha nos anos 1940, com Getúlio Vargas. O mercado – que ou na África do Sul –, o evento não será popular. O é mais dos anos 1980-90 – chega com dinheiro e emproblema é que, em relação ao futebol, há um preconpresários, mas sem valores. ceito. Não vejo uma cobrança igual à de elitização de Até então, os jogadores eram artesãos, pagos pelos outros eventos que são produzidos a um custo muito admiradores de sua arte. O mecenas era o torcedor. elevado, como os torneios de Wimbledon ou Roland Recentemente, o governo teve de socorrer alguns de Garros, o Grande Prêmio de Mônaco da Fórmula 1 ou nossos heróis, os ex-campeões mundiais, que vivem um show da Madonna. Tenho uma opinião crítica em em situação difícil e ganharam uma pensão. O merrelação à Fifa, mas também tenho uma crítica a essa cado melhorou a renda do futebol e passou a pagar crítica que se faz. melhor seus artistas. Hoje, os jogadores ganham forO poder da Fifa não está baseado na Europa ou midavelmente bem. Mas o dinheiro, ao mercantilinos Estados Unidos – mas também nos asiáticos, nos zar o futebol, transforma o torcedor numa espécie de africanos e nos latinos. A Fifa e o Vaticano são dois consumidor em busca de resultados. Não é bom. O centros de projeção geopolítica que não estão sob conque liga os torcedores a seus clubes é o afeto, a paixão, trole do eixo de poder que governa o mundo. Numa a fantasia. A mercantilização rompe com esses valores questão sobre a Síria, o Vaticano pode ter uma posição e quebra essa relação. independente. A ONU não reconhece a Palestina, mas a Fifa tem uma posição diferente e chega a reconhePrincípios: O clima festivo nas ruas surpreendeu? cer os palestinos como membros plenos, com direito Aldo Rebelo: A Copa é um evento que tem muita força, a disputar as Eliminatórias para a Copa. Isso não a muito apelo. Quando era na Itália ou no México, a exime de seus erros, mas provavelmente incomoda gente já parava tudo. Com uma Copa no Brasil, toaqueles que, para além dos erros da Fifa, censuram do mundo ia querer ver e partilhar. A diferença é que seu não-alinhamento a certo eixo de poder. não foi só no Brasil. Quando o Pentágono alterou seu horário de trabalho, a porta-voz foi questionada pelos Princípios: O que afasta o torcedor dos estádios? jornalistas: “Vão alterar a agenda só para acompaAldo Rebelo: O que estamos vendo, como diria Caetano nhar a Copa?”. E ela respondeu: “Sim, o mundo não Veloso, é “a força da grana que ergue e destrói coisas produz eventos que reúnam tantos países como a Cobelas”. Há empresários que têm mais força e faturam, pa para uma agenda positiva”. De fato, é o único amanualmente, mais do que Flamengo e Corinthians. biente, a única instância, em que o Irã pode derrotar É uma deformidade, uma morbidez, que precisa ser os Estados Unidos sem que isso tenha consequências, combatida. Os clubes de futebol nasceram à margem como ocorreu na Copa da França. Ao término do jogo, de duas formidáveis instituições da sociedade moeles se confraternizaram e se abraçaram. Onde mais, derna – o mercado e o Estado. Não foram estes que além da Copa, é possível uma coisa dessas?

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Copa 2014 Princípios: Seja pela invasão de turistas sul-americanos, seja pelo desempenho de suas seleções, a Copa foi um marco para duas ou três gerações de torcedores do continente. Como se explica esse fenômeno? Aldo Rebelo: Os latino-americanos, mas principalmente os sul-americanos, não chegaram a jogar em casa, mas é como se fosse a casa da família. Ainda que haja distância, somos vizinhos. Até mesmo do Equador e do Chile, somos vizinhos indiretamente. Para o europeu, que atravessou o Atlântico, é mais difícil. Mas os sul-americanos, todos eles – o argentino, o uruguaio, o chileno, o colombiano –, estão habituados a jogar aqui na Libertadores da América, se sentem confortáveis e ficaram mais à vontade na Copa. O Equador já levou até título no Maracanã, com a LDU, contra o Fluminense.

gestão do futebol. Quem promoveu as mudanças foi essa gente que acreditava que o mercado daria dinamismo ao futebol brasileiro. São pessoas que hoje se comportam, cinicamente, como se não tivessem nada a ver com essa legislação. O governo, então, tem muitos limites. O que tentamos fazer agora é reestruturar a dívida dos clubes.

Princípios: O governo vai mesmo comprar essa briga? Aldo Rebelo: Às vezes, há pessoas que acham estranho renegociar R$ 4 bilhões em dívidas de clubes de futebol. Mas é menos do que se sonega de impostos em um único dia no Brasil. Somos um país que paga, por ano, mais de R$ 300 bilhões de juros da dívida pública e mais de R$ 300 bilhões de juros da dívida privada. Por que não renegociar Princípios: Por que o Brasil R$ 4 bilhões com instituições que detém a sétima maior ecosão fundadoras da identidade na“Com as reformas nomia do mundo, mas está cional? Não haverá perdão nem neoliberais dos anos abaixo de países como Turanistia. Os clubes vão pagar as quia e Ucrânia na economia dívidas e assumir compromissos 1990 e por força da do futebol? – de gestão, de transparência, de Lei Pelé, o Estado Aldo Rebelo: A participação do furesponsabilidade com o pagamentebol no PIB do Brasil, hoje, é em to dos tributos e das obrigações foi afastado da torno de 1%. Temos de dobrar trabalhistas futuras. gestão do futebol. esse número, chegar a 2%. É o O problema no nível trabaprimeiro passo para melhorar a lhista não é dos jogadores que Quem promoveu as participação do futebol brasileiro ganham R$ 400 mil ou R$ 600 mudanças foi essa no PIB internacional do futebol. mil,mas, sim, da imensa maioria Vinte por cento desse PIB munque ganha um ou dois salários gente que acreditava dial estão nas mãos dos ingleses mínimos. Muitas vezes, esses joque o mercado daria e uns 18%, com os alemães. Degadores trabalham e não recebem. pois vêm Espanha, Itália, outros Vamos pôr isso tudo como contradinamismo ao futebol países – e o Brasil lá embaixo. partida. Multa não resolve, porbrasileiro” É preciso cuidar do nosso fuque o clube recorre. Se os salários tebol, e temos problemas estruatrasarem, a punição será técnica, turais para resolver. Nosso princomo perda de pontos e rebaixacipal campeonato tem uma média de público inferior mento. Com isso, conseguimos oferecer a perspectiva à de uma liga, à dos Estados Unidos, que até antes de tirar os clubes do sufoco e tornar o futebol brasileide ontem era amadora. Temos uma média de público ro mais competitivo, sem recorrer a patrocinadores ou menor do que a da Liga Chinesa, que até outro dia a detentores de direitos de imagem ou de TV. nem existia. Há menos público nos estádios brasileiros do que na Liga de Críquete da Índia. A Alemanha Princípios: A realização da Copa pode ser um e a Inglaterra têm populações bem menores que a divisor de águas? Podemos aproveitar o legado nossa, mas uma média de público no futebol maior. do evento – como 12 arenas de padrão internacional e novos protocolos – para iniciar um Princípios: A goleada de 7 a 1 da Alemanha sobre ciclo de desenvolvimento e modernização do a Seleção Brasileira, na semifinal da Copa do nosso futebol? Mundo, ajudou a desencadear um debate sobre Aldo Rebelo: É o que deve ser feito. Precisamos mea organização do futebol no País. Como o goverlhorar a gestão do espetáculo, a credibilidade. Quanno federal pode contribuir nessa discussão? do você menos espera, aparece um juiz como aquele Aldo Rebelo: Com as reformas neoliberais dos anos Edílson Pereira de Carvalho, que foi preso, e nos obri1990 e por força da Lei Pelé, o Estado foi afastado da gou a refazer um monte de partidas. Agora mesmo,

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houve outra confusão – se rebaixava ou não rebaixaPrincípios: Depois da Copa, é mais difícil atacar va a Portuguesa. Como é que a partida termina com a Olimpíada? um resultado que pode mudar 15 dias depois? Essas Aldo Rebelo: É importante que o Brasil tenha um amcoisas precisam ser enfrentadas. Os clubes precisam biente de crítica e fiscalização aos atos dos governanse fortalecer para conseguir segurar os astros. Bons tes. Mas, para a Copa, os irresponsáveis e aventureiros jogadores atraem mais público. previram atrasos, caos aéreo, manifestações. A Copa As arenas modernas, confortáveis, seguras e hiseria uma hecatombe, porque assim estaria anunciagiênicas ajudam nisso. Imagine uma senhora ou do. Era como se bastasse a profecia do caos para que o uma moça que precisasse ir ao banheiro em algum caos se realizasse. O que esses críticos mais perderam de nossos estádios antigos. Era uma tragédia, algo não foi a aposta numa Copa caótica. Essa é uma perconstrangedor. Mesmo o saudosismo em relação aos da temporária. A crítica perdeu a credibilidade, e isso, geraldinos é de gente que nunca foi a uma geral – de certa forma, é lamentável. Vão dizer o que, agora, que via tudo pelo “Canal 100” da Olimpíada? Mesmo se houver e achava bonito. Eu fui a uma problemas, o comportamento degeral e sei que é horrível. A viles tenderá a ser mais cauteloso, “Mesmo o saudosismo são do jogo, rente ao gramado, mais cuidadoso. Primeiro, vão ter em relação aos é péssima – e ainda lhe jogam de esperar os fatos. tudo de cima, da arquibancada. geraldinos é de gente O geraldino precisa ir ao estádio, Princípios: Os atrasos registraque nunca foi a uma mas em condições dignas, por dos em algumas obras da Comeio de uma política que assepa servem de alerta para os geral – que via tudo gure a presença da população de Jogos de 2016? pelo ‘Canal 100’ e baixa renda. Aldo Rebelo: O fator tempo é um ativo difícil. Não há como recuperá achava bonito. Eu fui -lo. Se precisarmos de mais tijolo, a uma geral e sei que é de cimento ou de aço, é só encoPrincípios: Cada vez mais, mendarmos que vamos ter em nossos jovens craques sohorrível” nham em jogar na Europa e mãos. Se perdemos o tempo, não serem reconhecidos entre os dá para repor na loja. Mesmo lemelhores do mundo. Como vando isso em conta, vamos, sim, convencê-los de que vestir a camisa da Seleção dar conta de cumprir o cronograma. Há, fundamentalBrasileira é mais importante, ainda mais numa mente, duas obras importantes para a Olimpíada. Uma Copa do Mundo? delas é a Vila Olímpica, que teve os prédios erguidos e Aldo Rebelo: Eu me lembro da seleção americana de vai comportar 18 mil atletas. A outra é o Parque Olímbasquete – o “time dos sonhos” – que disputou a pico, que está dividido em duas áreas – Jacarepaguá Olimpíada de 1992, em Barcelona. Todos os jogae Deodoro. Sessenta por cento das obras em Deodoro dores eram milionários, mas jogaram pelos Estados já ficaram prontas – parte delas, aliás, foi feita para os Unidos e arrasaram. Às vésperas da primeira partiJogos Mundiais Militares, realizados em 2011. Em Jada, contra os angolanos, um repórter perguntou a carepaguá, a maior parte das obras foi iniciada. um dos jogadores: “O que você sabe de Angola?”. E o jogador: “Não conheço nada, mas sei que eles vão Princípios: Os resultados da Copa podem atrair mais investidores na Olimpíada? se dar muito mal”(risos). A seleção jogava não pelo Aldo Rebelo: Em março de 2012, a Olimpíada do Rio – salário, mas pelo país deles. Queriam que os Estados Unidos conquistassem o título de uma maneira que que tinha acabado de começar a vender as cotas de patrocínio – já havia arrecadado mais em patrocínio marcasse época. do que a Olimpíada de Londres, que ocorreria dois Os nossos jogadores, sobretudo os que jogam em meses depois. Um banco que patrocinava a Copa entimes de ponta, são todos celebridades. Não sei até que ponto julgam a Copa do Mundo como uma coisa trou na disputa por uma cota, mas perdeu para uma importante para eles. Muitos saíram daqui muito ceinstituição que fez uma oferta mais de três vezes superior. A Olimpíada tem tudo para ser um sucesso. do. A Seleção também fica muito exposta como mercadoria, submetida ao calendário de patrocinadores, *Os jornalistas André Cintra e Cláudio Gonzalez como os “jogos da Nike”. Isso desgasta a relação da entrevistaram Aldo Rebelo no apartamento do Seleção com os torcedores – e também a relação dos ministro em São Paulo no dia 26/07/2014 próprios jogadores com a Seleção.

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Copa 2014

Outro grande legado da Copa

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Tiragens de jornais e revistas em queda, audiências de telejornais despencando são as respostas do público, cada vez mais consciente de que, por esses meios, não escapa do pensamento único. E, sem dúvida, essa tomada de consciência é um dos maiores legados da Copa realizada no Brasil Laurindo Lalo Leal Filho*

lém de estádios, aeroportos e alguns novos serviços de transporte, a Copa do Mundo no Brasil deixou um outro grande legado: a certeza de que precisamos ampliar a liberdade de expressão no país. Restritas a alguns jornalões diários, a revistas semanais monocórdicas (com exceção da Carta Capital)

e a um conjunto oligopolizado de emissoras de rádio e TV, a informação homogênea – já denunciada há muito tempo pela mídia alternativa – tornou-se cristalina na Copa. A revista semanal de maior tiragem chegou a anunciar que devido ao ritmo das obras dos estádios o Brasil só teria condições de realizar a Copa

Pessimismo da mídia e histeria anti Copa cederam lugar à paixão do povo pelo futebol

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em 2038. Mas não foi só ela que vendeu essa menAo que tudo indica, no entanto, lá como cá, a tira aos brasileiros. Foi a mais descarada, sem dúpopulação não foi na onda da mídia. Estádios, ruas vida, não contando no entanto com o privilégio da e praças lotaram, nunca houve tantos turistas cirexclusividade. culando pelo Brasil ao mesmo tempo como durante Basta consultar os jornais ou a Copa. Talvez pudesse ter vindo conseguir acesso aos telejornais mais, não fossem os fantasmas dos últimos anos para constatar plantados pela mídia. Ao que tudo indica, que todos rezaram pela mesma Até a crítica de que o ex-presino entanto, lá como cartilha. O objetivo era desacredidente Lula exagerou ao propor à tar da capacidade do governo braFIFA um número maior de cidacá, a população sileiro de oferecer as condições nedes-sede foi por água abaixo. Tonão foi na onda da cessárias para a realização de um das deram conta do recado. evento desse porte. Diante de tudo isso os meios mídia. Estádios, ruas A expressão “imagina na Code comunicação sequer fizeram e praças lotaram, pa” foi uma das mais ouvidas em autocrítica e, claro, não se responaeroportos, rodoviárias, avenidas e sabilizam pelas perdas causadas nunca houve tantos estradas congestionadas e até em ao país. Basta ver que a torcida turistas circulando filas de bares e restaurantes, nos contra não desapareceu. Pequenos últimos tempos. Refletia a expecpelo Brasil ao mesmo incidentes, comuns a qualquer tativa negativa criada pela mídia grande evento, ganharam destempo como durante em torno do evento. taque. Para não falar da mesma O clima ruim propagado desrevista, antes mencionada, que a Copa. Talvez sa forma se alastrou mundo afora. soltou a manchete no meio da Copudesse ter vindo Equipes estrangeiras de jornalispa: “Só alegria até agora”. O “até tas baseadas no Brasil são raras. agora” era revelador da intenção. mais, não fossem os Na maioria dos casos a cobertura Ao transitar das questões esfantasmas plantados do país é realizada por apenas um tritamente políticas para as polícorrespondente que se pauta, invatico-esportivas a mídia tradicional pela mídia riavelmente, pela mídia nativa. deu uma contribuição importanDeu no que deu. Até uma te para a revelação a um público Brazuca (bola oficial desta Copa) incandescente mais am-plo do seu papel disseminador de um pense aproximando como um meteoro mortal sobre o samento único, antagônico aos interesses da ampla Rio de Janeiro ilustrou a capa de uma revista alemaioria da população brasileira. mã. O Brasil era um perigo para quem por aqui se Tiragens de jornais e revistas em queda, audiênaventurasse neste 2014. Governos de alguns paícias de telejornais despencando são as respostas do ses alertaram seus cidadãos para esses riscos. público, cada vez mais consciente de que, por esses Tentava-se destruir em pouco tempo todo o esmeios, não escapa do pensamento único. forço empreendido pelo governo brasileiro, a parComo através do mercado não há solução para tir de 2002, para fazer do país um ator respeitado, o problema – ao contrário, ele só joga a favor da não apenas pelas transformações que operava inconcentração da propriedade dos meios –, resta a ternamente, mas também por sua seriedade e casaída única da presença do Estado, regulando a copacidade de ação política no cenário internacional. municação para ampliar a liberdade de expressão. Basta lembrar o protagonismo de Brasília, ao A consciência dessa necessidade por camadas lado do governo turco, ao alinhavar com o Irã um cada vez mais amplas da população é, sem dúviacordo nuclear estimulado e depois boicotado pelos da, um dos maiores legados da Copa realizada no Estados Unidos. Brasil. Há uma cena impagável no filme Habemus Papam, do diretor italiano Nanni Moretti, quando após a morte do Papa o seu sucessor (representado * Laurindo Lalo Leal Filho é professor de pelo excelente Michel Piccoli) reluta em assumir comunicação da ECA/USP e diretor/apresentador do o posto. Um dos cardeais, desesperado com a deprograma VerTV da TV Brasil mora, alerta que daquele jeito logo o presidente do Brasil estaria por lá para ajudar a encontrar uma solução. Artigo publicado originalmente no site Carta Maior, atualizado.

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A organização do futebol brasileiro e o sentido das mudanças (1)

Antonio Rodrigues*

O Governo Federal pode e precisa agir em face desse patrimônio nacional e econômico, que é o futebol profissional. Deveria incidir, entre outros pontos, sobre o consórcio entre a grande mídia e os cartolas, pois, além de os direitos de transmissão representarem a maior parcela da receita dos grandes clubes, violarem o direito dos torcedores, são incompatíveis com a natureza pública das concessões de radio-televisão 13


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pós a eliminação da Seleção Brasileira na Coque a discussão do tema, até aqui, muito pouco ou pa de 2014 tornou-se lugar comum afirmar quase nada revela, e pelo andar da carruagem talvez que o futebol brasileiro precisa mudar. Além seja reduzida a muito barulho por nada. do placar do “Mineiraço”, a grande mídia muito contribuiu para a vulgarização da Os “leopardos” da CBF avessos à necessidade de mudanças no futebol atramudança vés do espaço dado, imediatamente após a derrota, à nem sempre sincera indigAs mazelas do futebol nacional e reivindicação nação dos “especialistas”, os quais, salvo honrosas por mudanças são tão antigas quanto a própria orexceções, praticaram contorcionismos verbais para ganização desportiva do país. Em 1938, Tomás Mazequilibrar o discurso mudancista com a cumplicidazoni, pioneiro do jornalismo esportivo, constatava o de baseada em interesses comuns que mantêm de fato de que o futebol brasileiro, nas décadas antecelonga data com a direção da CBF. Por outro lado, é dentes (!), passava a impressão de uma fábrica próspera, inegável que o clamor por mudanças no futebol brasiprodutiva e dinâmica, mas muito mal dirigida, com fases leiro reflete também a posição declarada das maiores até de verdadeiros colapsos. A reflexão desesperançada autoridades do país diretamente responsáveis pela do cronista concluía que o suceder-se dos anos nos deu realização da Copa, ainda que as uma experiência suficiente para não recentes manifestações do governo levarmos a sério a política dos clubes revelem cuidado em calibrar o tom e esperar algo da mentalidade dos diA questão é da crítica ao status quo da organirigentes (“Problemas e aspectos do estrutural dos zação desportiva para não perder o nosso futebol”, São Paulo, 1939). foco da celebração dos muitos rePassados 76 anos, os ecos das paproblemas e sultados positivos obtidos pelo país lavras de Mazzoni reverberam na descaminhos da fora do campo. denúncia do Bom Senso F.C., publiChamam a atenção dois recencada em 14 de julho de 2014 sob o organização do tes pronunciamentos de autoritítulo “Porque a tragédia da Copa futebol brasileiro. dades da República que ilustram não afetará a CBF – As artimanhas o referido discurso pró-mudanças dos cartolas para impedir a muDesde sempre, dança” (4). pós-goleada. Dois dias depois do quando se fala em O texto do Bom Senso F.C. jo“massacre” de Belo Horizonte, em ga luzes sobre a manobra dos 47 10 de julho de 2014, durante briemudanças o tema dirigentes do futebol profissional fing da FIFA, o ministro do Esporte, vem à tona; no brasileiro para “blindar” preventiAldo Rebelo, afirmou que o futebol vamente a direção da CBF contra brasileiro precisa de mudanças. A derentanto, muda-se as reivindicações por mudanças rota para a Alemanha evidencia ainda para ficar no na estrutura de poder e gestão da mais essa necessidade (2) No dia seentidade diante do fracasso da guinte, 11 de julho, a presidenta mesmo lugar Seleção na Copa. A “blindagem” Dilma Rousseff declarou em enfoi concretizada pela eleição antrevista à GloboNews que o grande tecipada da diretoria para o próximo quadriênio aprendizado daquele dia [08-07-2014] é a consciência de (2015-2019), pois o pleito que deveria ocorrer entre que nós temos de mudar o futebol brasileiro (3). os meses de outubro de 2014 e abril de 2015 – porDiante de toda a retórica em favor das mudanças tanto, após o final da Copa – foi realizado no mês é preciso destacar que o significado forte desta palade abril de 2014, elegendo o candidato único da sivra traduz a ideia de transformação e, nesse sentido, tuação, Marco Polo Del Nero. A manobra garantiu mudar quer dizer modificar um estado, modelo ou a sobrevida do modelo tradicional de governança situação pré-definidos. Contudo, a palavra mudança instituído pelo primeiro presidente da entidade, também quer dizer troca de lugar; mudar, no caso, sigJoão Havelange, prócer da organização do futebol nifica apenas deslocar algo ou alguém de um local ou brasileiro desde 1956, quando se tornou dirigente função para outro. Neste último sentido, a mudanda antiga Confederação Brasileira de Desportos – ça não equivale à transformação; ao revés, não raro CBD (antecessora da CBF). Por mais de meio século mudanças são realizadas para manter o estado das Havelange influiu decisivamente na organização do coisas no mesmo lugar. Portanto, é de todo pertinenfutebol nacional, quer como dirigente da CBD/CBF te especular sobre qual é o sentido das apregoadas quer como presidente da FIFA. Em 1989, Havelanmudanças necessárias ao futebol brasileiro, uma vez

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Lei “Maguito Vilela” permitiu às “entidades sem fins lucrativos” continuarem livremente contribuindo para a fortuna de cartolas como João Havelange (e.) e Ricardo Teixeira

ge fez de seu então genro, Ricardo Teixeira, presidente da CBF. Após 23 anos no comando, acossado por denúncias de corrupção, Teixeira transmitiu o cargo a José Maria Marin, que agora entroniza o cartola paulista Del Nero, legítimo representante da oligarquia do futebol brasileiro. Havelange/Teixeira e seus vassalos ditam os rumos e as regras do jogo por mais de 60 anos. A toda evidência, este apego ao poder deriva muito menos da paixão pelo esporte e muito mais dos interesses econômicos relativos ao football business, como demonstram apenas os números extraídos dos balanços da CBF e dos clubes brasileiros, isto é, de suas contabilidades por dentro. Mudam nomes, mudam regras, mas tudo continua como sempre e, se é verdade que muita coisa mudou desde os tempos de Mazzoni, a nação aturdida pelas recentes blitzes alemã e holandesa contempla os cartolas da CBF e constata, assombrada, a verdade da máxima da personagem criada por Tommaso di Lampedusa na obra Il Gatopardo (O Leopardo): se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. A frase de Tancredi se aplica perfeitamente ao futebol brasileiro. Senão vejamos.

Mudanças para ficar no mesmo lugar e os negócios do futebol As mudanças legislativas relativas à falácia (para não dizer fraude) que sustenta serem os clubes de futebol profissional no Brasil “entidades sem fins econômicos” – mais que um exemplo paradigmático da aplicação da frase de Lampedusa – constituem a materialização da mudança como expediente de engodo. A questão é estrutural para a compreensão

dos problemas e descaminhos da organização do futebol brasileiro porque diz respeito aos entraves políticos e administrativos que impedem a criação de condições objetivas para a formação dos nossos atletas e qualificação geral das competições nacionais profissionais (5). Desde sempre, quando se fala em mudanças no futebol brasileiro o tema vem à tona; no entanto, muda-se para ficar no mesmo lugar. Senão vejamos. Ao estabelecer originalmente as bases de organização dos desportos em todo o país durante a ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas proibiu a organização e funcionamento de entidade desportiva de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais sob qualquer forma (Decreto-Lei nº 3.199/41). Cinquenta e dois anos depois, com o objetivo de instituir normas gerais sobre desporto, a “Lei Zico” (Lei nº 8.672/93), dentre dezenas de assuntos tratados, deu aos clubes a faculdade de transformarem-se em sociedades comerciais com finalidades desportivas; porém, a despeito da autorização legal, a “falta de apetite” dos dirigentes esportivos para empreender levou-os a ignorar a faculdade prevista em lei e continuar fruindo das muitas benesses de que seus clubes e eles próprios gozam em decorrência do status de “entidades filantrópicas”. Passados menos de cinco anos da publicação da “Lei Zico” sobreveio a “Lei Pelé” (Lei nº 9.615/98). A nova lei, igualmente no bojo de dezenas de disposições atinentes às normas gerais sobre desporto, tornou obrigatória a constituição ou contratação de sociedades com fins econômicos ou comerciais para a prática de atividades relacionadas a competições de atletas profissionais. Porém, às vésperas do término do prazo concedido pela lei para efetivação das mudanças, a famigerada

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“bancada da bola” obteve do ex-presidente FHC a criado um arcabouço legal adequado e suficiente edição da Medida Provisória nº 2.011/2000, que repara a regulação da exploração e gestão do futeconverteu a obrigatoriedade imposta aos clubes à mera bol profissional – não resolveu os graves problemas faculdade. A medida provisória foi sacramentada pela criados pela dissimulação dos negócios do futebol, “Lei Maguito Vilela” (Lei nº 9.981/2000) que garanque continua operando através de uma estrutura de tiria às “entidades sem fins lucrativos” continuarem governança arcaica e carcomida por intermitentes livremente contribuindo para a fortuna de seus diridenúncias de corrupção, cuja base é formada por gentes e parceiros de negócios, como comprovam os clubes em regra mal geridos por dirigentes acopatrimônios de Havelange, Teixeira et caterva. bertados sob o manto dos estatutos jurídicos das A questão da regulamentação legal da explo“entidades sem fins lucrativos”, que os protegem ração econômica do futebol emergiria, uma vez das normas tributárias e da responsabilidade civil mais, em 2003; porém, e penal pelos atos praticados desta feita, a lei sancioà frente das entidades do funada pelo ex-presidente tebol. Lula não foi preordenada a instituir normas gerais e Duas propostas de mudar totalmente a “Lei mudanças legislativas Pelé”; tampouco injetou cirúrgicas e uma ação gás no debate estéril sopolítico-administrativa bre o direito (faculdade) ou dever (obrigatoriedaVisto que as mudanças de) dos clubes de futebol amplas, gerais e irrestritas, profissional de transforcomo nos casos do Decreto marem--se em empre-Lei nº 3.199/41, Leis Zico sas. A Lei nº 10.672/2003 e Pelé, sempre tenderam a concentrou-se, cirurgiregular o sistema desporticamente, no tema do modelo de vo nacional garantindo a manuA principal inovação exploração e gestão do futebol tenção do status quo, penso que legal deve incidir profissional, alterando a “Lei Peo governo federal muito poderia lé” para dispor que estas atividacontribuir com mudanças no sensobre o consórcio des constituem exercício de atividade tido da transformação caso tome a entre a grande mídia e econômica, sujeitando-se à obseriniciativa de encaminhar duas vância dos princípios da transpaos cartolas. Os direitos inovações legais de âmbito esperência financeira e administrativa e cífico e uma ação político-admide transmissão da moralidade na gestão desportiva, nistrativa. dentre outros, independentemenA principal inovação legal derepresentam a maior te de sua forma de constituição ve incidir sobre o consórcio entre parcela da receita jurídica. Além disso, reconheceu a grande mídia e os cartolas. Os a organização desportiva do país direitos de transmissão represendos grandes clubes como patrimônio cultural brasileiro tam a maior parcela da receita dos e passam longe de elevado interesse social, inclusive grandes clubes e passam longe dos para legitimar a atuação do Minisbalanços dos pequenos e médios. dos balanços dos tério Público na sua proteção e deAlém disso, os acordos financeiros pequenos e médios fesa. Concomitantemente à procelebrados pelos grandes clubes mulgação da Lei nº 10.672/2013, acabam por violar até mesmo o dio ex-presidente Lula promulgou a reito dos torcedores, privando-os Lei nº 10.671/2013, o Estatuto de Defesa do Torcede acesso às partidas graças a cláusulas de excludor, que instituiu um regime jurídico especial, arsividade incompatíveis com a natureza pública das ticulado com o Código de Defesa do Consumidor, concessões de radiotelevisão. É preciso criar uma lepara a proteção e defesa dos direitos individuais e gislação específica que garanta a aplicação dos princoletivos dos torcedores brasileiros frente à organicípios da transparência financeira e da moralidade zação desportiva. nas negociações de direitos de transmissão; respeite Não obstante, a realidade revela que a vigência o direito dos torcedores, bem como institua a disdas leis promulgadas em 2003 – apesar de terem tribuição solidária das receitas. Não parece justo ou

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Outra mudança que deve ocorrer na legislação é a majoração da idade mínima para contratação de jogadores brasileiros por clubes estrangeiros e a proteção dos direitos dos jovens atletas; atualmente é possível levar adolescente para fora do país a partir dos 14 anos

adequado ao fortalecimento do futebol profissional brasileiro que meia dúzia de grandes clubes, “sem fins econômicos”, açambarque praticamente todos os recursos gerados por competições que só acontecem com a participação de dezenas de clubes de menor porte. O novo modelo deve prever a distribuição igualitária de parte dos recursos a todos os participantes da competição, combinada com a distribuição de parcela segundo o desempenho das equipes. Outra mudança que deve ocorrer na legislação é a majoração da idade mínima para contratação de jogadores brasileiros por clubes estrangeiros e a proteção dos direitos dos jovens atletas; atualmente é possível levar adolescente para fora do país a partir dos 14 anos. Por outro lado, os clubes devem garantir aos atletas a formação necessária à cidadania e ao desenvolvimento sadio, garantindo ao atleta adolescente a escolarização e o convívio com a família.

Por fim, mas não menos importante, do governo federal que anseia por mudanças depende exclusivamente a iniciativa de promover, diretamente ou através de convênios, a fiscalização do cumprimento das leis já em vigor pelos clubes, federações e CBF, principalmente no que diz respeito à administração de recursos públicos repassados e ao equilíbrio das contas das entidades. Tanto o Ministério do Esporte quanto os órgãos de controle, em especial o TCU e o Ministério Público, cada um nos limites de suas competências, devem atuar para garantir a moralidade e a transparência na gestão das entidades do futebol brasileiro. Só assim poderemos criar condições para alcançar a excelência dentro de campo e voltar a ostentar com orgulho a legenda de país do futebol. *Antonio Rodrigues do Nascimento é advogado e professor de Direito, especialista em Direito Administrativo e Direito das Relações de Consumo, autor de Futebol & relação de consumo (Editora Manole, 2013)

Notas (1) Artigo originalmente publicado no Blog do Sorrentino – Projetos para o Brasil: http://waltersorrentino.com.br/2013/03/25/ futebol-torcida-consumidor/ (2) http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/07/ministro-dos-esportes-pede-mudancas-no-futebol-brasileiro-marca-profunda.html. Acesso em 24/07/2014. (3) http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/07/globonews-eleicoes-renata-lo-prete-entrevista-dilma-rousseff-pt.html. Acesso em 24/07/2014. (4) https://medium.com/@BomSensoFC/por-que-a-tragedia-da-copa-nao-afetara-a-cbf-a10386edfad2. Acesso em 24/07/2014. (5) Futebol & relação de consumo. São Paulo: Manole, 2013.

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Para que o 7 x 1 não seja em vão Fernando Damasceno e Cláudio Gonzalez*

Criado em setembro de 2013, Bom Senso Futebol Clube ganha força após a Copa e passa a contar com o apoio da presidenta Dilma Foto: Roberto Stuckert Filho/ PR

Q 18

Presidenta Dilma Rousseff e o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, recebem Atletas do Bom Senso Futebol Clube

uando o árbitro mexicano Marco Rodriguez apitou o final de jogo no início da noite do último dia 8 de julho, no Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte (MG), as reações pelo Brasil afora foram as mais diversas. Diante do placar de 7 a 1, da Alemanha sobre os anfitriões da Copa

do Mundo de Futebol, houve quem se limitasse a chorar e outros que se viram enfurecidos. Não faltaram também os que preferiram beber para esquecer a humilhação, tampouco os que saíram à caça de explicações razoáveis para tamanho vexame. Foi grande o choque de realidade entre os que tentaram entender a diferença abissal entre o futebol demonstrado por Brasil e Alemanha. Até a semi-


Copa 2014 final da Copa do Mundo, o time comandado por Luiz Felipe Scolari nem de longe chegou a encantar o povo, mas suas vitórias serviram ao menos para que a esperança a respeito do título fosse mantida. Diante da goleada acachapante, restaram poucas dúvidas: o “país do futebol” deixou de ser vanguarda e passou à condição de aprendiz do esporte mais praticado em todo o planeta. Se essa constatação foi notada pela maioria da população em um momento de dor, não faltaram no meio esportivo determinados personagens que há tempos alertavam para as carências do futebol brasileiro dentro e fora de campo. Entre jornalistas (poucos), dirigentes, empresários, árbitros, técnicos e atletas, sempre houve vozes dissonantes e com capacidade de incomodar aqueles que comandam há décadas a estrutura do futebol brasileiro. A partir dessa linha de pensamento, nos últimos anos ninguém obteve mais destaque e exibiu maior capacidade de organização do que o Bom Senso Futebol Clube.

Líderes e estratégia

organização do futebol no país: (1) mudanças no calendário; (2) fair-play (jogo limpo) financeiro; e (3) alterações para o conforto dos torcedores.

Discrepância em campo

Quando os atletas do Bom Senso mencionam o problema do atual calendário, alguns dados saltam aos olhos. Dos 684 clubes brasileiros, 583 não contam com uma programação com atividades esportivas que contemplem os 12 meses do ano. “Os clubes menores e, consequentemente, todos os seus profissionais, são muito prejudicados”, diz o trecho de um dos documentos do movimento. De fato, o cenário é preocupante para os clubes que estão longe da elite do esporte nacional. Por conta da falta de planejamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), há equipes que disputarão em 2014 apenas 15 jogos oficiais, enquanto potências como São Paulo, Corinthians ou Flamengo, com o acúmulo de competições, poderão entrar em campo até 85 vezes este ano. Times principais Diante desse cenário, pelo Brasil disputam cerca de 68 afora é fácil encontrar atletas profissionais que trabalham apenas três partidas por ano. Na ou quatro meses por ano. Enquanto isso, entre os clubes da primeira diEuropa, a média é de visão o que se vê é um grande des50 jogos. Enquanto gaste físico pelo excesso de jogos e isso, é fácil encontrar a queda acentuada da qualidade do futebol apresentado. A elite nacional no Brasil atletas joga cerca de 68 partidas por ano. Na Inglaterra, a média é de 50 jogos; na profissionais de Espanha, 48; Na Itália, 45; e na Aletimes menores que manha, nova campeã do mundo, os principais atletas jogam em média trabalham apenas 41 vezes na mesma temporada.

A articulação do movimento se iniciou em meados de 2013, quando foi divulgado o calendário do futebol brasileiro para 2014 – ano marcado pela realização da Copa do Mundo no país. Devido ao evento, os jogadores teriam menor tempo de férias e uma pré-temporada reduzida, elementos que, na opinião dos líderes do Bom Senso, trariam prejuízo à qualidade dos espetáculos e riscos à preparação física dos atletas. Entre as principais lideranças três ou quatro meses que se reuniram para debater alternativas ao modelo inicialmente Finanças em dia por ano proposto para 2014 estavam jogadores consagrados, como o meia O Bom Senso bate firme em Alex (Coritiba), o goleiro Rogério Ceni (São Paulo), uma tecla: os clubes brasileiros não podem gastar o zagueiro Paulo André (ex-Corinthians, atualmente mais dinheiro do que o montante que arrecadam. Sono futebol chinês) e o goleiro Dida (Internacional), mente ao governo federal, as equipes devem cerca de entre outros de menor fama. Desde então, milhares R$ 2,5 bilhões. de atletas – tanto da elite nacional quanto de divisões “Isso ocorre porque não há controle financeiro efeinferiores – já manifestaram seu apoio ao Bom Senso tivo sobre os clubes”, diz um dos documentos do Bom e vêm ajudando na escolha de prioridades de discusSenso. “A falta de regulamentação permite a criação de são para sua categoria. uma bolha inflacionária”, corrobora o texto, que defenApós cerca de um ano de fundação do movide o chamado “jogo limpo” financeiro para assegurar mento, inúmeros debates e diante da derrota soque as contas dos clubes não entrem em colapso. frida pela seleção brasileira na Copa do Mundo, A ideia dos atletas é criar uma espécie de agênos jogadores decidiram escolher três pontos como cia reguladora para monitorar as atividades finanprioridade em sua estratégia por mudanças para a ceiras dos clubes, dotada de autoridade para aplicar

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sanções como multas e penas esportivas em caso de descumprimento das normas. O modelo é inspirado na fórmula que vem sendo aplicada com sucesso em cinco ligas europeias. Um dos resultados esperados pelo Bom Senso é o de estimular investimentos em longo prazo nos clubes, como na formação de atletas e na infraestrutura, em detrimento do pagamento de transferências milionárias e salários estratosféricos.

O cliente deveria ter razão

vos extracampo para deixar de acompanhar in loco os jogos de seu time. O Bom Senso vê potencial no futebol brasileiro para que o público volte a lotar as arenas do país, mas crê que para isso é preciso unidade para enfrentar os interesses envolvidos, dos quais fazem parte atores importantes como diversas autoridades políticas, emissoras de televisão e a própria estrutura arcaica que se chavão que propõe a organizar os espetáculos.

O velho estabelece a relação entre quem compra e quem vende um produto não tem condições de ser seguido à risca nos estádios brasileiros

O velho chavão que estabelece a relação entre quem compra e quem vende um produto não tem condições de ser seguido à risca nos estádios brasileiros. Os atletas perceberam que o espetáculo por eles protagonizado poderia apresentar mais atrativos do que os atualmente oferecidos. Não é por acaso que o Campeonato Brasileiro é apenas o 18º torneio que mais recebe torcedores em todo o mundo. Seja pela má qualidade de transporte público oferecido, pelo preço dos ingressos, pela falta de segurança e comodidade ou pelo horário dos jogos (muitos deles se encerram à meia-noite, durante a semana), o torcedor brasileiro tem inúmeros moti-

Apoio do Palácio do Planalto

Pouco antes do começo da Copa do Mundo, a presidenta Dilma Rousseff e o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, receberam em Brasília representantes do Bom Senso. Nesse primeiro contato, os atletas puderam expor algumas de suas ideias para modernizar o futebol no país. Após o primeiro encontro, alguns dos atletas se mostraram satisfeitos pelo posicionamento da presidenta, que teria ficado “estarrecida” com alguns dos relatos. Segundo os jogadores, Dilma se comprometeu na ocasião em ajudá-los em quatro frentes: fortalecer a Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE); apoiar a democratização da estrutura políti-

Manifesto define diretrizes de luta dos atletas Confira a seguir a íntegra da ata da primeira reunião do Bom Senso Futebol Clube e seu Manifesto de fundação: “Hoje, dia 30 de setembro de 2013, reunimos pela primeira vez parte do grupo signatário do movimento Bom Senso F.C., que já conta com o apoio de mais de 300 atletas das Séries A e B do Campeonato Brasileiro. O encontro contou com a presença de 20 jogadores de vários clubes do país e teve como objetivo definir propostas centrais para questões que têm repercutido no rendimento dos atletas e na qualidade do nosso futebol, tais como: 1- Calendário do futebol nacional 2- Férias dos atletas 3- Período adequado de pré-temporada 4- Fair-play Financeiro 5- Participação nos conselhos técnicos das entidades que regem o futebol Ao fim da reunião, um documento foi assinado por todos os atletas presentes. O mesmo será encaminhado à CBF requisitando um encontro para que possam ser debatidos os temas acima, visando a benefícios ao futebol brasileiro. Bom Senso Futebol Clube, Por um futebol melhor. Para quem joga, Para quem torce, Para quem transmite, Para quem patrocina. Para quem apita. Por um futebol melhor para todos”.

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Copa 2014 ca do esporte; garantir maior segurança nos estádios; e criar um Grupo de Trabalho para desenvolvimento de um Plano Nacional de Desenvolvimento do Futebol. Após o resultado decepcionante na Copa, Dilma chamou novamente o Bom Senso ao Palácio do Planalto. Uma das medidas já anunciadas pela presidenta diz respeito à criação de mecanismos que sirvam para evitar a migração precoce dos talentos brasileiros para outros países. Para tanto, o governo federal encomendou, junto à Fundação Getúlio Vargas, um estudo que analisará os mercados futebolísticos da França, Inglaterra e Polônia, países nos quais os direitos econômicos dos atletas são exercidos prioritariamente pelos clubes, e não por empresários.

Legados da Copa Antes da realização da Copa do Mundo no Brasil, muito se discutia sobre os legados que seriam deixados após a realização do evento. Hoje se sabe que muitos deles (como os estádios e as obras de infraestrutura) permanecerão, mas foi somente após o vexame dentro de campo que a sociedade vislumbrou a possibilidade de mudanças mais profundas na organização do futebol brasileiro. O Brasil, no entanto, tem condições de ir além. Daqui a exatos dois anos, em 5 de agosto de 2016, o Rio de Janeiro receberá as Olimpíadas. Assim como o futebol, a estrutura que comanda os demais esportes no país também apresenta uma série de problemas que podem ser enfrentados por atletas de outras modalidades, dirigentes e até mesmo pelo governo federal. Após a Copa, o Bom Senso divulgou uma Carta Aberta na qual expôs suas críticas mais profundas à CBF. Para mudar o esporte no país, os atletas pedem maior democracia. “A falta de visão que desorienta o nosso futebol é resultado direto deste processo político arcaico, em que treinadores, jogadores, árbitros e executivos não têm quaisquer instrumentos para incidir nas decisões relevantes do futebol no país”, diz o texto, que tem como um alvo bem definido o futebol, mas cujo conteúdo se estende às demais modalidades esportivas do país.

Protestos em campo marcam ascensão do Bom Senso

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riado em setembro de 2013, foram necessários cerca de dois meses para que o Bom Senso Futebol Clube ganhasse maior visibilidade perante o cenário esportivo no Brasil. A tática encontrada por seus líderes exigiu um nível elevado de articulação. Sua primeira manifestação ocorreu na 30ª rodada do Campeonato Brasileiro daquele ano, já no final de outubro, quando os atletas de todas as dez partidas da Série A deram abraços coletivos antes dos jogos, para demonstrar sua união. Mas foi na 34ª rodada, já em meados de novembro, que os atletas deram um passo mais ousado diante da torcida e das câmeras que transmitiam as partidas. Diante da indiferença da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em estabelecer um diálogo para debater mudanças na estrutura do futebol no país, em todos os jogos os atletas decidiram ficar imóveis e com os braços cruzados durante os 30 segundos iniciais de cada partida. Seja pela TV ou ao vivo, nos estádios, o recado dos atletas aos dirigentes se tornou claro: o Bom Senso já contava com apoio o bastante para iniciativas mais ousadas, como uma greve ampla, caso a CBF não aceitasse dialogar com o movimento.

*Da redação

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O goleiro do São Paulo, Rogério Ceni, fala durante evento de apresentação das propostas do Bom Senso F. C.

Líderes do Bom Senso se destacam pela eloquência

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um hotel, confortável, tranquilão, vou jogar 90 minutos, tomar banho e vou embora para casa. E o torcedor? O cara sai de casa ou do trabalho, precisa ir para o estádio dez horas da noite, assistir ao jogo, voltar para casa, e ainda precisa acordar sete horas da manhã no outro dia. Poxa, isso é desumano. Por isso que os estádios estão vazios. A CBF é apenas uma sala de reuniões” – Alex, meia do Coritiba, ao Diário Lance!

“Acho que a CBF não tem uma interferência dentro do futebol tão grande. A CBF cuida apenas da Seleção Brasileira. Quem realmente cuida do futebol brasileiro é a Globo. A gente sabe que a Globo trabalha na dependência da novela. A gente brinca aqui no Coritiba que os jogos de quartafeira só rolam depois do último bei-jo da novela. Pô, a gente joga bola dez horas da noite. Eu, que vou jogar, vejo uma situação ruim, preciso ficar no hotel o dia inteiro esperando um jogo dez horas da noite. Isso é ruim. Mas estou dentro de

“Não acho que a seleção fracassou tanto. As pessoas perderam a razão e se deixam levar pela emoção e pelo placar de 7 a 1. Minha visão não mudou por causa da Copa e nem minhas críticas. O Brasil, fazendo tudo errado, chegou à semifinal. Algumas informações: 70% dos atletas profissionais ficam desempregados seis meses por ano, clubes grandes acumulam dívidas, dirigentes nunca são punidos, clubes pequenos estão jogados às traças, jogadores entram na justiça do trabalho e podem esperar por até dez anos pra receber os atrasados, a formação e a capacitação de profissionais é empírica e insuficiente e a média de público nos estádios tem a 18ª posição no ranking mundial, atrás até de Estados Unidos e Austrália. Se não estamos no fundo do poço, estamos bem próximos dele. E a solução dada pelos dirigentes do futebol brasileiro é trocar a comissão técnica, o coordenador, o médico e o assessor de imprensa da seleção. Tem que ter muita cara de pau, não? Imagine se trilharmos o caminho correto? Seremos imbatíveis” – Paulo André, zagueiro do Shanghai Shenhua, ao Diário do Centro do Mundo.

companhar entrevistas de jogadores de futebol,

seja no Brasil ou no exterior, costuma ser uma tarefa entediante. Cada vez mais tutelados por assessores de imprensa, os atletas se acostumaram a dizer frases triviais, sem procurar qualquer tipo de polêmica ou contestação em relação ao ambiente que os cerca. Se em outros tempos o Brasil contou com exceções como Sócrates, Afonsinho, Casagrande e Romário, hoje alguns dos líderes do Bom Senso demonstram ter a capacidade de dialogar de igual para igual com outros setores da sociedade, a fim de obter maiores conquistas para sua classe profissional e colocar o dedo em algumas das feridas que há décadas atingem o futebol nacional. Confira algumas dessas frases:

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Capa

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Não há “terceira via”, mas dois projetos em confronto Morte trágica de Eduardo Campos e ascensão de uma nova candidata embaralham o jogo eleitoral, mas não mudam a essência da disputa presidencial, que continua girando em torno de dois projetos de país: o democrático-nacional-popular liderado por Dilma Rousseff e o financista-conservador de base neoliberal representado pelas candidaturas de Aécio Neves e Marina Silva

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Renato Rabelo*

o atual estágio, em agosto, a campanha eleitoral presidencial no Brasil atingiu o nível mais elevado de virulência da oposição contra a candidata Dilma Rousseff, que representa o novo ciclo político progressista inaugurado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2003. As forças políticas conservadoras internas e externas, vinculadas à dominância liberal financeira do capitalismo, não suportam mais, tudo fazem e tudo farão para barrar um quarto mandato presidencial (completando 16 anos) das forças democráticas, populares e progressistas. “É demais”, julgam eles! E intensificam por todos os modos a contratendência reacionária.

No terreno da economia O baixo crescimento (que se transformou em elemento importante da campanha) e a inflação (superdimensionada pelas forças conservadoras) têm sido dois temas frequentemente utilizados pela oposição para atacar o governo. Ela apregoa o fracasso da economia numa aposta contra o Brasil. No caso do baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a tática oposicionista é clara: retiram os índices brasileiros do ambiente internacional – isolando-os da interferência externa de uma crise do capitalismo mundial que vem desde 2008 influenciando os mercados em todos os continentes. É bastante elucidativo o gráfico que ilustra este artigo, onde trazemos a lista do crescimento do

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PIB por regiões, países e blocos econômicos ao longo do tempo, comparados com o crescimento do Brasil. Na primeira coluna apresentamos os PIBs de regiões, países e blocos durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Depois, a mesma lista durante o segundo governo FHC, e assim sucessivamente durante os dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva e no atual governo de Dilma Rousseff. A linha dos índices de crescimento do PIB no Brasil está marcada em amarelo e os países que cresceram mais que o Brasil em azul. Você verá que durante os dois governos de FHC praticamente todos os países cresceram mais do que o nosso. Enquanto nos dois governos de Lula e nestes três primeiros anos do governo Dilma, o Brasil inverteu esta tendência crescendo bem mais do que importantes países do chamado mundo desenvolvido, como Estados Unidos, França, Alemanha, entre outros. O mais interessante é verificar na coluna do período exato da crise do sistema financeiro mundial (desencadeada a partir dos EUA) que de 2008 a 2013 o desempenho brasileiro foi bem acima do da maioria dos países e regiões, ficando abaixo apenas do PIB da China, da Índia, da Turquia e Polônia. Em outras palavras – ao contrário de informar a realidade dos fatos –, a oposição tenta enganar os eleitores extraindo os índices do seu contexto econômico concreto. Mas temos de encarar a condição objetiva: não há uma reação de superação dessa situação em curto prazo no plano econômico. Antes, a ampliação da distribuição de renda e maior inclusão social se faziam com maior crescimento da economia. Esta situação po-


Eleições 2014 de que a inflação declina neste ano. E agora, Aécio? Como fazer a campanha sistemática de que há um “estouro inflacionário” inevitável? A inflação no período Lula e Dilma sempre esteve sob controle, diferente sim, do último mandato de Fernando Henrique Cardoso quando a inflação disparou. Outro aspecto importante dos ataques oposicionistas é motivo de forte disputa que se acirra neste momento. Refere-se à política externa do Brasil, ou seja, a linha de inserção soberana do país iniciada pelo primeiro governo de Lula, continuada por Dilma. Isto contraria sobejamente os interesses das forças conservadoras e dos grandes círculos financeiCrescimento real do PIB ros. Estes setores defendem Médias anuais (%) essencialmente a volta a um alinhamento automático no FHC FHC Lula Lula Total Total Dilma Crise plano econômico e político 1 2 1 2 FHC Lula Países, regiões Acumulado com os EUA e a Europa. e blocos 2003 2013 1995 1999 2003 2007 2011 1995 2003 2008 Contrariando esta ban1998 2002 2006 2010 2014 2002 2010 2013 deira oposicionista, em meados de julho realizou-se em Mundo 3,5 3,4 4,7 3,2 3,4 3,4 3,9 3,8 2,9 Fortaleza, no Ceará, talvez a Economias 3,0 2,7 2,8 0,6 1,7 2,9 1,7 1,6 0,7 reunião mais importante do Avançadas BRICS (Grupo integrado por Área do Euro 2,4 2,4 2,0 0,2 0,4 2,4 1,1 0,8 -0,3 Brasil, Rússia, Índia, China e União 2,7 2,6 2,6 0,3 0,8 2,7 1,5 1,2 -0,1 África do Sul). E agora, dianEuropeia te do êxito histórico desta 6ª Maiores 2,8 2,4 2,5 0,2 1,7 2,6 1,4 1,4 0,5 Cúpula do BRICS, se reforça economias a ação comum do Bloco em 1 EUA 3,9 2,9 3,2 0,3 2,3 3,4 1,7 1,8 1,0 decisões fundamentais que 2 China 9,5 8,4 11,0 10,8 8,0 8,9 10,9 10,2 9,0 abre caminho para alcance de 3 Índia 6,3 5,3 8,6 8,1 5,3 5,8 8,3 7,5 6,4 uma nova ordem mundial. E 4 Japão 1,0 0,7 1,8 0,0 1,0 0,8 0,9 0,9 0,1 a presidenta demonstrou sua influente liderança trazendo 5 Alemanha 1,5 1,7 1,2 0,7 1,6 1,6 1,0 1,1 0,7 ao Brasil todos os países da 6 Rússia -3,0 6,5 7,2 2,4 2,6 1,7 4,8 4,3 1,7 União de Nações Sul-Ameri7 Brasil 2,5 2,1 3,5 4,6 2,0 2,3 4,0 3,5 3,0 canas (Unasul) e o quarteto 8 França 2,2 2,4 1,9 0,2 0,8 2,3 1,0 1,0 0,1 da Comunidade de Estados 9 Reino Unido 3,7 2,9 3,3 -0,3 1,5 3,3 1,5 1,4 -0,2 Latino-Americanos e Caribe10 Itália 1,8 1,8 1,2 -0,9 -0,8 1,8 0,2 -0,2 -1,5 nhos (Celac), quando o Brasil viveu uma semana de “gran11 Indonésia 1,5 3,3 5,3 5,8 6,0 2,4 5,5 5,7 5,9 des negócios” – os múltiplos 12 México 2,8 1,8 3,4 1,2 3,0 2,3 2,3 2,5 1,7 e proveitosos acordos realiza13 Espanha 3,7 4,0 3,5 0,0 -0,5 3,9 1,8 1,0 -1,0 dos com a China, Rússia e os 14 Canadá 3,2 3,6 2,7 0,9 2,1 3,4 1,8 1,9 1,3 outros membros do BRICS. 15 Coreia 3,9 7,6 4,1 3,5 3,1 5,7 3,8 3,5 2,9 Mais importante ainda: nesta reunião de cúpula foi 16 Turquia 6,2 0,8 7,5 2,3 4,3 3,5 4,8 4,9 3,3 assinado o acordo de cons17 Austrália 4,1 3,5 3,2 2,7 2,8 3,8 3,0 3,0 2,5 tituição do Novo Banco de 18 Polônia 6,3 2,8 4,8 4,3 2,8 4,5 4,5 4,0 3,1 Desenvolvimento (NBD) pa19 Holanda 3,7 2,6 2,0 0,9 -0,1 3,2 1,4 0,9 -0,3 ra o BRICS. A sede do banco 20 África do Sul 2,6 3,2 4,6 2,7 2,6 2,9 3,6 3,4 2,2 ficará na China e o primeiro presidente será indiano. O Fonte: FMI. (para 2014 World Economic Database April 2014)

dia amortecer, em certo grau, as contradições básicas entre os setores dominantes do sistema e as políticas de maior conquista social. Agora com crescimento modesto é que as forças conservadoras vão explorar onde poderão mais promover a cizânia, estimulando a desconfiança e o descrédito no governo, no meio empresarial e no seio do povo. A outra temática recorrente é a questão da inflação. Verificamos com a divulgação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) na primeira semana de agosto que ingressamos no quarto mês consecutivo de queda na inflação. A previsão geral é

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Brasil indicou o primeiro presidente do Conselho de Administração do banco, que terá como objetivo o financiamento de projetos de infraestrutura em países emergentes – com capital inicial de US$ 50 bilhões, mas que poderá chegar a US$ 100 bilhões.

ra no Pinel”, disse Holanda Barbosa. A prática desmascarou, assim, um conceito básico da ortodoxia neoliberal. Daí a desconfiança crescente dos monopólios financeiros e do conjunto das forças conservadoras em relação ao governo da presidenta Dilma. Eles A América Latina e o Brasil não querem perder. Ao contrário, impõem garantias para ganhar mais, nesse momento de crise gloNo caso da América Latina, com o avanço políbal financeira e econômica e de baixa do crescimentico das esquerdas e das forças democráticas – em to econômico em seu conjunto. Isso se reflete agora luta contra as forças conservadoras e pró-imperiano embate aceso acerca do aumento real contínuo listas, fundamentalmente –, estamos diante do emdo salário mínimo, da manutenção de elevado nível bate entre o projeto democrático popular, e suas de emprego, da contenção da elevação dos juros, de variantes, e as imposições do projeto financeiro diminuição do superávit primário, de câmbio meliberalizante, assentado nos paradigmas neolibenos valorizado, e de protagonismo do Estado, não rais. Por isso que, no caso do Brasil, afirmamos que do mercado, na distribuição de renda e na condunos encontramos, nestas eleições ção da economia. de 2014, diante de uma encruziOra, diante dessa situação, o lhada: avançar no projeto demoprincipal candidato da oposição, AéO atual governo crático e popular, aprofundando cio Neves, em função de seus comfaz esforços para as mudanças, ou retroceder ao promissos fundamentais, é quem projeto da oligarquia financeira incorpora o projeto liberal e finanenfrentar a situação neoliberalizante. Estão em jogo, ceiro e vai defender a volta ao aliatual sem penalizar assim, a perspectiva e o futuro do nhamento principal com os EUA e Brasil, com suas implicações, pela seus aliados. O resultado é que Aécio os trabalhadores dimensão do país, no contexto do procura resgatar Fernando Henrique e nem recuar dos curso político e econômico neste Cardoso, e a fonte de seu modelo e continente – reforçando ou abaprojeto para o país. Por isso cerca-se investimentos lando o caminho democrático e dos ideólogos e condutores da polítisociais. A linha popular. ca neoliberal aplicada na década de Nas condições atuais do Brasil, 1990 pelos governos de FHC, como de distribuição na luta entre continuar o avanço Pedro Malan e Armínio Fraga. Esse de renda foi o das mudanças ou retroceder, com é o seu lado e o seu rumo. a predominância do baixo cresPortanto, diante da questão de próprio motor do cimento da economia, se eleva a fundo de “quem pagará a conta?”, desenvolvimento, radicalização. Nessa situação qual o lado que assume Aécio não pode o fundo da questão? Em última ser o dos trabalhadores, ou seja, desde Lula, seguido instância é: quem pagará a conta? da maioria do povo. O seu modelo por Dilma Por isso, quando a presidenta Dile projeto real é identificado com a ma afirma não ter sido “eleita palinha de compromissos com a olira trair a confiança do povo, nem garquia financeira e seus sócios, e a para arrochar o salário dos trabalhadores”, mesmo hegemonia política do imperialismo estadunidense e numa situação de impacto da crise mundial do cadas grandes potências capitalistas. pitalismo e do baixo crescimento econômico do país, A prova maior disso é que nos altos círculos finanela toma posição ao lado dos trabalhadores: estes ceiros e monopolistas não se escondem a preferência não deverão pagar a conta! e esforço pela vitória da oposição, protagonizada pela Sim, o atual governo faz esforços para enfrentar candidatura Aécio. Porta-vozes desses círculos afira situação atual sem penalizar os trabalhadores e mam que em um “choque de credibilidade” – ou seja, nem recuar dos investimentos sociais. A linha de dar-lhes as garantias de suas exigências – “um goverdistribuição de renda foi o próprio motor do deno Aécio teria muito mais força do que um segundo senvolvimento, desde Lula, seguido por Dilma. O governo Dilma” para assim agir. Dizem, com Aécio o salário mínimo subiu em termos reais, caíram o “aperto fiscal será maior, a Selic deverá subir mais, o desemprego, o trabalho informal e a desigualdade: realinhamento de tarifas de serviços públicos poderá “se alguém dissesse isso em 2002 iam trancar o caser feito rapidamente”. Isso é só a ponta do iceberg.

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Eleições 2014 Sabemos quem ganha efetivamente com isso. Estas medidas são parte das políticas impopulares, deixadas escapulir em um pronunciamento pelo presidenciável Aécio. A sua lógica maior é que a única saída passa pelo resgate – primeiro dos donos do grande capital – para depois (se der) transferir certa renda para uma parte da população. Em suma, governam voltados para atender a um terço da população. Assim foi realmente o que aconteceu durante o período de governo de FHC.

Oposição camufla seu projeto Em consequência destes fatores é que os principais candidatos da oposição não apresentam abertamente seus projetos, não deixando explícita qual a sua real alternativa. Suas práticas tornam-se expressão de notória contradição. Em recente entrevista do presidenciável Aécio Neves para órgãos conjuntos da mídia e sites da internet, e agora no Jornal Nacional da TV Globo, ele procura se apresentar como candidato da “mudança” (Qual mudança?); evita ser especifico na apresentação de propostas, principalmente na área econômica, para não perder votos. No terreno político, o tucano não tem como dizer que a articulação de um eventual governo seu será diferente da do modelo atual de alianças; na área social Aécio promete manter programas sociais, numa atitude de disfarce no contexto eleitoral. Nos meios intelectuais, “cientistas políticos” e outros menos cotados tendem a nivelar a candidatura de Dilma com os demais da oposição. Defendem um ponto de vista de que há uma ausência de projeto e propostas em todos, neste período da luta politica-eleitoral. Apresentam um quadro em que os três candidatos principais não entusiasmam, não reacendem a esperança. A oposição não podendo apresentar um projeto explícito se concentra no viés antiDilma. Desde a antecipação da campanha presidencial, há um ano, o consórcio oposicionista, tendo os grandes grupos monopolistas da mídia verberando para milhões, vem deflagrando de fato uma contínua e crescente campanha de descrédito da presidenta Dilma, atiçando o descontentamento, açulando o preconceito contra a primeira mulher presidenta do Brasil, inflando até o rancor em camadas médias altas da população. A campanha midiática e da oposição formal encadeia um movimento a outro, passando assim sucessivamente pelo vaticínio de uma “tempestade perfeita”que arrastaria o Brasil para uma aguda crise, ao recorrente apelo de apagão elétrico que não

surge, ao denuncismo eleitoral contra a Petrobras, enquanto a própria Goldman Sachs elege a estatal brasileira como investimento prioritário na área de energia na região; aos vaticínios de pesado alarmismo acerca da inviabilidade da realização da Copa Mundial de Futebol no Brasil. Vejam que um após outro anúncio não se confirmam. A situação chega ao paroxismo quando se busca de qualquer modo, através de pretextos gratuitos, culpar a presidenta por tudo o que acontece. A realização da Copa no Brasil foi um grande êxito de organização, segurança e hospitalidade. Desconsolados com isso, encontraram na desastrosa derrota do Brasil diante da Alemanha o fato que pudesse reverter o êxito da Copa, açulando a perspectiva de que a derrota da Seleção prejudicaria Dilma na corrida eleitoral. Em suma, estamos no curso de um grande embate político e ideológico, da luta polarizada e radicalizada entre dois projetos opostos de desenvolvimento e mudança; em vez do debate aberto e comparativo de programas, o principal candidato da oposição é inespecífico (os demais também), prega uma “mudança”, escondendo seu conteúdo essencial – mudar para trás –, falseia a realidade, concentra sua tática em desacreditar a presidenta açulando o preconceito e o ódio; numa demonstração de fachada eleitoral, visando a ganhar votos na área popular, faz promessa sem autoridade para isso, de manter programas sociais de Lula e Dilma. Temos a convicção e a confiança de que a presidenta é uma liderança capaz de renovar a esperança e conduzir o Brasil a uma nova etapa de desenvolvimento. Nesse sentido, ela chega à conclusão de que alcançamos o limiar de um “novo ciclo histórico” em nosso país para consolidar e aprofundar ainda mais as conquistas (Convenção Nacional do PT). Em decorrência disto, apresenta o que ela define como um Plano de Transformação Nacional, concebido para realizar o grande conjunto de mudanças. Convergindo com essa assertiva é que o PCdoB ofereceu à candidata um conjunto de ideias e propostas ao seu governo. O avanço das mudanças, conforme o Partido tem assinalado, para além de uma necessária coalizão ampla, exige o protagonismo de uma esquerda forte e da mobilização dos movimentos sociais. E para que tenhamos uma esquerda forte no Brasil é indispensável, nestas eleições, a vitória do projeto eleitoral dos comunistas que será construída em sinergia com a grande mobilização nacional pela vitória de Dilma e dos nossos aliados.

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Pouco antes desta edição de Princípios ir para a gráfica, ocorreu o acidente aéreo que tirou a vida do exgovernador de Pernambuco e candidato à presidência da República pelo PSB, Eduardo Campos, junto com os dois pilotos da aeronave e quatro assessores do candidato. Diante do trágico acontecimento, Princípios pediu ao autor do artigo, Renato Rebelo, que incluísse no texto algumas reflexões sobre esta perda trágica para a política brasileira e avaliasse os impactos e o significado da candidatura de Marina Silva. Veja abaixo: Antes de mais nada, é preciso Ao mesmo tempo, é preciso dizer que o PCdoB sempre teve registrar que a candidatura de uma relação muito próxima com Eduardo Campos, ao se distanciar o PSB e com o ex-governador. do campo de esquerda, levado a Compartilhamos do espanto e da buscar alianças e compromissos à dor que o Brasil sente pela morte direita do espectro político e, posdo amigo e companheiro de lutas teriormente, na incorporação de Eduardo Campos e nos solidarizaMarina Silva ao PSB, passou a vimos com o sofrimento dos famiver um dilema que refletia em poliares e amigos de todas as vítimas sições contraditórias no esboço de desta tragédia. seu programa. Este ainda não tiMarina não tem A relação política e amizade nha chegado a ter uma fisionomia entre o PCdoB e o candidato e definida, apesar de emitir indicacompromissos presidente do PSB vem de longe. ções de um modelo de desenvolnítidos com a Desde o início de sua militância vimento nacional comprometido política no movimento estudantil com as exigências impostas pesoberania do Brasil, e intensifica-se nas jornadas com los grandes círculos financeiros com o avanço Miguel Arraes à frente do governo globalizados e brasileiros, nas de Pernambuco, seu avô e grancondições atuais da grande crise democrático, de amigo dos comunistas. Essa financeira e econômica mundial. com a política de parceria política se eleva quando Portanto, exprimindo um sentio PCdoB apoia as campanhas de do político de alcance nacional valorização da Eduardo ao governo de Pernamcontrário à estratégia e tática, renda do trabalho, buco, em 2006 e em 2010, fazendo defendidas pelo PCdoB. Ora, departe também da sua equipe de pois da morte trágica de Eduardo do salário mínimo governo. Campos, o PSB homologou a cane de garantia de Na esfera nacional, nos dois didatura de Marina Silva à presigovernos do presidente Lula, quer dência da República, após grande elevado nível de seja como presidente do PSB, depressão da mídia reacionária e de emprego. Ela tem putado federal ou ministro de Estarepresentantes do grande capital do, Campos partilhou com o nosso financeiro, resultando um arranjo real compromisso Partido de várias iniciativas com o de mútuo interesse pragmático, com interesses intuito de apoiar o governo e fazer entre Marina e o PSB. avançar as mudanças. alienígenas e Candidatura de Marina Na atual sucessão presidencial, tendenciosos vem embalada pelo disembora legitimamente Eduardo curso neoliberal tenha optado por um caminho dide ONGS ferente do nosso, vínhamos preinternacionais A tendência que vai prevalecenservando o diálogo e o respeito redo, considerando os últimos aconcíproco e nunca o PCdoB duvidou tecimentos, é de Marina se comda possibilidade de reencontro poprometer mais com o modelo neoliberal de resgate da lítico. oligarquia financeira dentro e fora do país. Mas, em Neste sentido, avaliamos que a morte repentina decorrência da realidade contraditória que passou a vide Eduardo Campos é uma tragédia que não apenas ver o PSB, muitas lideranças desse Partido defendem ceifou a vida de um pai de família, um companheiro posições que se aproximam do campo democrático de lutas, um amigo de muitas jornadas. Ela roubou progressista. da nação uma liderança promissora.

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Eleições 2014 As primeiras sondagens de opinião, de forma planejada pelo consórcio oposicionista, foram realizadas num ambiente de comoção provocada pela morte repentina de Eduardo Campos. Ainda é preciso acompanhar os desdobramentos sobre o curso político-eleitoral para se certificar das tendências predominantes. Entretanto os acontecimentos recentes já demonstram que a candidatura de Marina Silva altera o quadro eleitoral. Ela já tinha obtido um quinto dos votos válidos na eleição presidencial de 2010. Além disso, agora, os grandes grupos midiáticos agem semeando uma imagem messiânica da candidata da Rede/PSB e capitalizando para ela o sentimento irradiado de insatisfação nos diversos estratos sociais. Assim, pode-se presumir maior competitividade dessa candidatura, abrindo com seu ingresso na disputa maior possibilidade de realização de segundo turno. Diante dessa nova situação podemos dizer que vai se conformando um realinhamento de forças que não foge à polarização fundamental: entre a tendência democrática, nacional e popular e a tendência financeira liberal, de base neoliberal. Essa polarização existe no Brasil hoje e em geral na América Latina, obviamente, diferenciando o nível de consequência e avanço dos projetos em cada país. Em nosso país agora, tendo presente o que está em jogo e o sentido histórico das eleições presidenciais, a propalada “terceira via” serve a quem? É um expediente político que serve objetivamente à direita, aos estratos dominantes conservadores, aos defensores de matiz neoliberal. A prova é que são eles a bradar interessados na existência dessa terceira via de aparência, numa tentativa de contar com dois planos de ação, A e B, cuja estratégia comum de seus propósitos é: interromper o ciclo político aberto por Lula no Brasil, derrotando agora a presidenta Dilma na reeleição à presidência da República. A candidatura de maior confiança desses círculos financeiro-liberal-conservadores é de Aécio Neves, portanto, o plano A; mas, eles procuram considerar um plano B, que também possa servir aos seus interesses, desta feita por meio da candidatura de Marina, que pode até se tornar a alternativa principal do campo oposicionista, conforme a evolução da situação. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já afirmava desde antes, que seria válida a vitória de qualquer candidato, uma vez que derrotasse a presidenta Dilma e as forças progressistas. E agora, com a candidatura de Marina dando sinais de se inclinar à direita, altos representantes do sistema financeiro e seus acólitos se assanham em vender essa candidatura como protagonista de uma “nova política”.

Uma nova encruzilhada Desde há muito Marina vem dando acenos de aproximação com as forças reacionárias e revanchistas contrárias ao período Lula/Dilma, concentrando seu alvo de ataque nessa última. Apesar disso, Marina demonstra certa incompatibilidade na relação com os tucanos, vide sua contrariedade nas alianças acordadas pelo PSB em São Paulo, Paraná, Santa Catarina. Na área econômica, agora na disputa presidencial, figuras proeminentes e instituições da alta finanças vêm abertamente destacando em Marina suas afinidades com as definições, diretrizes e determinações da oligarquia financeira. Eles se exprimem confiantes, sugerindo ser uma possível aliada a suas exigências. Em prova disso, Marina tem demonstrado ser moldável e ajustada aos paradigmas neoliberais e dobrável aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos e Europa, contrária à nova situação advinda no esforço de integração sul e latino-americana, e na parceria geoestratégica formada pelo BRICS. Marina incorpora uma cênica messiânica, diz que a tragédia recém-acontecida “estava escrita”, portando-se como uma predestinada pela “providência divina” a salvar o Brasil da “velha política” e dos “novos costumes”. Isso nos permite dizer que ela assume um perfil obscurantista e fundamentalista, distante do curso do avanço civilizacional. Marina não tem compromissos nítidos com a soberania do Brasil, com o avanço democrático, com a política de valorização da renda do trabalho, do salário mínimo e de garantia de elevado nível de emprego. Ela tem real compromisso com interesses alienígenas e tendenciosos de ONGS internacionais, estando afastada do desafio de firmar a inserção soberana do Brasil, elevar o seu protagonismo no atual contexto internacional. É dever dos comunistas dizer forte e em bom tom para o povo brasileiro que, nestas eleições de 2014, estamos diante de uma encruzilhada: as mudanças democráticas e progressistas, o ascenso social de vastas camadas empobrecidas da população, a extensão do mercado interno, e a elevação do papel do Brasil na cena internacional, iniciados em 2003, só poderão seguir e avançar com a reeleição da presidenta Dilma, sendo ela apoiada em todos os sentidos pelo ex-presidente Lula; fora desse caminho – seguindo o outro caminho da encruzilhada –, temos a convicção de que faremos um caminho de volta, de retrocesso das conquistas econômicas com distribuição de renda, do progresso social e da afirmação soberana do Brasil. Essa é a grande batalha de sentido nacional diante do povo brasileiro nas eleições de 2014. * Renato Rabelo é presidente nacional do Partido Comunista do Brasil

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O discreto charme de Marina Silva Sérgio Saraiva*

Marina Silva personifica uma contradição sedutora, sorri para a modernidade enquanto se apresenta confiável ao conservadorismo. Depois de Collor de Mello e FHC, é o novo ilusionismo da direita Marina e o olhar às nuvens

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arina é um caso de radicalismo improvável de ser posto em prática. Alimenta simultaneamente esperanças nos extremos do nosso espectro político. A extrema-esquerda e a direita se unem para apoiá-la. “Terceira via” paradoxal, Marina faz oposição ao centro. Um governo Marina é a garantia da traição a um dos lados que hoje a apoiam. No entanto, messiânica, parece trazer em si a certeza das ações necessárias para a consecução de cada uma dessas esperanças. Marina não tem a solução dos problemas, Marina seria a solução. Mas uma solução que não se dá à maçada de apresentar propostas concretas. Marina encarna um discurso de crítica ao sistema. Mas é algo pensado para ser vago, fugidio. É como olhar as nuvens. Cada um vê nelas o que quer ver, as nuvens em momento algum se responsabilizam por nossos sonhos, apenas os inspiram. Marina tem um quê de modernidade que se expressa em um falar protofilosófico que parece ser compreensível apenas aos iniciados, mas, sem dúvida, transmite confiança no que fala. E, assim, afasta o contraditório. Para fazer o contraditório é necessário entender os argumentos do interlocutor. Se o que se ouve não passar de um jogo de palavras pretensamente modernoso, como contraditá-lo? Marina pode ser tudo, mas tola ela não é, vai adiar o quanto puder o debate sobre suas contradições.

Marina Silva é um poço de contradições Marina tem origem no movimento ecológico, mas há muito isso deixou de ser seu campo de militância. Alguém se lembra da última causa na qual Marina esteve à frente, dando a cara à tapa?

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Vinda das classes populares, de pequenos agricultores e extrativistas da floresta amazônica, Marina tornou-se ícone da classe média urbana do Sudeste e Sul. Já há tempo que o Acre deixou de ser seu referencial. Na Folha de S.Paulo, a colunista Eliane Cantanhêde, dias atrás, saudava uma das características de Marina que deve ajudá-la em muito na conquista de votos – é evangélica. Mas Marina não encarna a “nova política”, aquela na qual não se trata eleitores como se fossem parte do “curral eleitoral” do candidato? Questionar Marina sobre sua posição em relação à descriminação do aborto é ocioso. Mas ninguém ainda perguntou à Marina a sua posição sobre o ensino religioso nas escolas públicas. Ou sobre o currículo escolar das aulas de ciências no ensino fundamental ou de biologia no ensino médio. Musa dos “verdes”, é criacionista. Sua posição sobre esses assuntos seria muito relevante para seus eleitores. Apesar de ser lembrada pela causa ecológica, Marina é apoiada por banqueiros e industriais. A Natura e o Itaú são quase parte do seu partido. Se é que não são o seu “partido”, já que o Rede ainda habita o campo das possibilidades.


Eleições 2014 Alguém já ouviu uma palavra de Marina sobre a manutenção das conquistas sociais dos últimos 12 anos? O Bolsa Família, o PROUNI, o PRONATEC, o “Mais Médicos” e a recomposição do valor do salário mínimo, por exemplo? O que sabemos de Marina a respeito da política econômica? Que Marina defende a ortodoxia neoliberal expressa no tripé – metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante. Música para os ouvidos da especulação financeira. Metas de inflação são alcançadas, no mais das vezes, com juros altos e trazendo a inevitável redução da atividade econômica, mas altos ganhos ao setor financeiro. O superávit primário vai garantir os recursos necessários para pagar os tais juros, mas, com a redução da atividade econômica, a solução é o corte dos gastos sociais. E o câmbio flutuante garante os ganhos de capital pela simples intermediação financeira praticada por fundos de investimentos internacionais ou sediados em “paraísos fiscais” e nos coloca vulneráveis a ataques especulativos que realimentam o processo de especulação. Por fim, com a livre circulação de capitais, base da ideia de câmbio flutuante, está assegurada a expatriação integral dos lucros dos “investidores internacionais” e dos investidores internacionais. Algum jornalista já questionou Marina sobre isso e se isso não seria uma retomada do modelo do governo FHC?

E quanto ao papel do Banco Central na condução da política econômica? Bom, em relação a isso, Marina já se posicionou. E claro, ela é favorável à autonomia do Banco Central – não autonomia formal, mas autonomia de facto. “Nós não defendemos a formalização da autonomia do Banco Central. Na realidade, a autonomia já faz parte das leis que pertencem a esse ramo do direito. Mesmo que (a autonomia) não seja formalizada ela se estabelece a partir do consenso social, político cultural. (Se isso fosse para o debate do Congresso), criaria um risco de colocar em discussão uma questão como essa. Se um grupo decidir que não terá autonomia, nós estaríamos diante de uma fragilização dos instrumentos de política macroeconômica que não é desejada. Não há necessidade de institucionalização”. Um exemplo da prolixidade a serviço da dissimulação de intenções. E pensar que Aécio apanhou um bocado por ter se comprometido com as tais “medidas impopulares”. Há ainda outras questões em aberto em relação a um hipotético governo de Marina Silva.

Marina é uma adversária do agronegócio – os tais “latifundiários”. Ocorre que o agronegócio não é mais, no Brasil, apenas a agricultura e a pecuária tradicionais. O conceito correto para nós é o da agroindústria. Trata-se da nossa área de maior desenvolvimento tecnológico, um dos nossos maiores empregadores, inclusive com empregos de nível superior, e a principal fonte de exportações brasileiras e uma das nossas garantias contra a inflação. Qual será a fonte de receitas que Marina irá buscar para substituí-lo? Turismo ecológico? É bom que se pergunte isso a Marina. Como também sobre qual a sua opinião em relação à área da mineração, da exploração do pré-sal e da geração de energia elétrica. E sobre a privatização e o papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico.

Precisamos conversar sobre Marina Aécio não conseguiu formar empatia com o eleitor, patina na casa dos 20% de intenções de voto há meses. Só cresce agregando “in extremis” o voto de ódio antipetista. Mas nem assim as pesquisas apontam uma vitória, sequer um segundo turno é garantido. Tem, além disso, todo o passivo dos seus governos e correligionários em Minas. Marina não. Pode-se moldá-la às expectativas dos sonhadores, dos indecisos e dos insatisfeitos. E, com ela, é possível odiar o PT sem ter de baixar ao nível do calão, de mandar a presidente da República “tomar no ....”. Garante a volta do conservadorismo ao poder, mas com a leveza de uma “sacerdotisa dos povos da floresta”. Um símbolo charmoso e dissimulado como o foram os ares de modernidade e dinamismo com Collor de Mello e de intelectualidade com Fernando Henrique Cardoso. E esses governos foram o que foram. Por tudo isso, aqueles que defendem a posição da esquerda, da socialdemocracia, precisam muito falar sobre Marina, apontar mais uma tentativa de engodo. Depois de Collor de Mello e FHC, Marina é o novo ilusionismo da direita. *Sergio Saraiva é pedagogo e químico com pós-graduação em gerência da produção. Durante 20 anos foi operário do ABC paulista, professor universitário e da rede pública de ensino. Atualmente trabalha com consultoria e treinamento na área de gestão Texto publicado originalmente em: http://jornalggn.com.br/blog/sergio-saraiva

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As mulas-sem-cabeça de Aécio Neves e Marina Silva Osvaldo Bertolino*

O debate sobre o atual quadro econômico brasileiro, no âmbito da campanha eleitoral da sucessão presidencial, é talvez a maior vitrine de pessoas e ideias que resistem ferozmente ao avanço das concepções progressistas no Brasil

Cabeças do neoliberalismo: André Lara Resende, Armínio Fraga, Edmar Bacha, Eduardo Gianetti, Elena Landau, Gustavo Franco, Neca Setubal e Pedro Malan 32


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vocabulário das principais cabeças cio Lula da Silva (especialmente o período em que ideológicas dos projetos das duas canAntônio Palocci reinou absoluto como ministro da didaturas da direita – Armínio Fraga Fazenda). Ele fez eco às palavras da candidata que (Aécio Neves), André Lara Resende e tem defendido o chamado “tripé” (superávit primáEduardo Giannetti (Marina Silva) – é rio, câmbio flutuante e metas de inflação). o samba de uma nota só do velho projeto neoliberal, que de tanto ser repetido Receita de Simonsen dói nos ouvidos: independência do Banco Central (em bom português: O Brasil conhece bem essa reentregar a gestão da economia braceita. A rigor, ela começou a ser imO samba de uma sileira ao sistema financeiro interplementada ainda nos governos da nacional), melhorar o ambiente de ditadura militar de 1964. Em 1979, nota só do velho negócios, simplificar tributos, reo então ministro do Planejamento, projeto neoliberal, verter políticas consideradas interMário Henrique Simonsen, ao deivencionistas na economia e abrir xar o comando da equipe econôque de tanto ser mais o país à competição internamica recomendou ao seu sucessor, repetido dói nos cional. Os três professam a religião Antônio Delfim Netto, suas ideias de Wall Street e não deixam dúsobre “estabilidade”, “necessidade ouvidos, inclui: vidas a respeito do diapasão pelo de ajustes” e “austeridade fiscal”. independência qual estão afinando as propostas Por trás das palavras de Simonsen dos seus candidatos. estavam concepções plantadas pedo Banco Na tradução para um idioma la ditadura e que resultaram, nos Central, melhorar menos áspero, o que eles propõem anos 1980, na famosa “década são medidas como um novo plaperdida”. Somava-se ao diagnóstio ambiente no de privatizações, contenção do co conservador a afirmação de Side negócios, salário mínimo e revisão da polímonsen de que o Brasil não teria tica de desonerações, o incentivo como sustentar o ritmo vigoroso de simplificar tributos, ao consumo. Eles fazem parte de crescimento dos anos 1970 e que reverter políticas um grupo integrado por rostos “duros ajustes” eram necessários. O resultado? Bem, não é preciso bem conhecidos, ícones da nefasconsideradas muito conhecimento sobre econota “era FHC”, como Edmar Bacha, intervencionistas mia para saber quem pagou a conta Gustavo Franco e Elena Landau. daquele desastre. As marcas na viAécio Neves reforçou os chavões na economia e da do país foram profundas: inflaneoliberais ao falar sobre as muabrir mais o país ção fora de controle por longos 15 danças que pretende realizar, caanos, o que originou uma sucessão so seja eleito. Citou entre elas “a à competição de fracassados planos econômicos; redução da intervenção do Estado internacional pouco investimento em atividades na economia” e a adoção de mediprodutivas; descrédito internaciodas “para deixar nossos custos de nal e por aí a lista segue. Chegamos produção menos onerosos”. Aécio à “estabilidade” da “era FHC” e por consequência ao também listou, nos itens da sua plataforma econôfundo do poço. A reedição dessa ladainha agora inmica, o “resgate dos pilares da nossa economia, codica que infelizmente aquela história está querendo mo estabilidade da moeda, responsabilidade fiscal e renascer das cinzas. Mais uma vez, duas correntes livre flutuação do câmbio”. de opinião divergentes marcam o debate econômico. Marina Silva ainda não se pronunciou longamente sobre o tema, mas o seu rumo não difere em nada Obsessão nacional deste de Aécio. Contudo, em recente entrevista à revista Época, das Organizações Globo, Lara Resende A primeira coloca a “estabilidade” acima de tudisse que “não há nenhuma garantia de que mais do; a segunda defende que o país deve buscar crescer interferência do Estado signifique necessariamenmais e mais e explica que isso não será possível sem te menos desigualdade”. Falando ao jornal Folha de as medidas que procuram destravar o país. Os conserS. Paulo, Giannetti disse que um eventual governo vadores, como sempre, gostam de manipular esse tipo Marina seria similar à segunda gestão de Fernando de debate. Há algum tempo, o instituto de pesquisa Henrique Cardoso (FHC) e à primeira de Luiz Iná-

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para ilustrar a convicção e o sectarismo dessa ideia Vox Populi, de Belo Horizonte, perguntou aos brasileiros se eles preferem mais inflação e mais emprego ou do que a teoria do bolo – seus defensores têm o ar a mesma inflação com o mesmo desemprego. Apenas de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era 11% preferiram a segunda opção, contra 38% que disFHC” vimos isso com nitidez. seram aceitar mais inflação se fosse Dizia-se, com a habitual obvieacompanhada de mais emprego. Foi dade para encaixar um sofisma, que o sinal para que uma série impreso bolo (a economia nacional) era O desenvolvimento sionante de bobagens começasse a um só e tinha de ser dividido em do país, ao contrário aparecer na mídia. Os ‘’comentarispartes iguais. Não adiantava querer tas’’ não perderam a oportunidade aumentar as partes enquanto o bolo do que dizem os para atacar o governo exatamente fosse o mesmo. A análise monetáconservadores, por esse flanco: a fictícia ameaça da ria-culinária que faziam tinha como volta da inflação. mandamento principal a contenção deve sim ser uma O desenvolvimento do país, ao da inflação, sacrificando o desenobsessão nacional. contrário do que dizem os conservolvimento. E era ilustrada com um vadores, deve sim ser uma obsessão exemplo matemático – diziam que Sem um horizonte nacional. Sem um horizonte econôo bolo tem 100 unidades, logo deve econômico claro, mico claro, não há como destravar ser dividido em partes que somam a economia para que ela cresça de 100 ao final. Esta foi, por exemnão há como forma autossustentável. Cresciplo, a propaganda da “Lei de Resdestravar a mento sustentado quer dizer que o ponsabilidade Fiscal”, que blindou país consegue financiá-lo de forma o superávit primário. Um engodo, economia para que não-inflacionária e sem pressões está claro. Responsabilidade fiscal é ela cresça de forma externas. Infelizmente, a economia uma ideia saudável, não resta dúbrasileira, combalida pela gestão devida, mas ela tem de estar a serviço autossustentável sastrosa dos anos da ditadura e da de uma causa ainda mais justa: a “era FHC” – e que avançou pelo goresponsabilidade social. verno Lula com Antônio Palocci –, ainda está longe de alcançar esse objetivo. Muito mais longe do que dizem Diagnóstico simples essas pessoas que pedem mais “estabilidade” mesmo à custa de menos produção e menos investimento púA teoria era a de que quando são destinadas 80 blico. Felizmente, o país se livrou da ditadura “ortodounidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia xa” e ingressou num debate sério e democrático para outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na definir o caminho do seu desenvolvimento. “era FHC” – o então presidente da República chegou a Teoria do bolo dizer que a Marcha dos 100 mil, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua poEm um país com tantas carências, assim que um lítica econômica, era “ a marcha dos sem rumo”. Qual problema sai da linha de frente outros ocupam seu seria a alternativa? Segundo eles, não havia. lugar. E essas carências, que de fato são grandes, Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas continentais, só serão resolvidas com anos e anos de matemáticas não devem substituir o desenvolvicrescimento econômico. E só se consegue crescer por mento de um povo que habita uma região cheia de muito tempo com planejamento. E com debate deriquezas naturais. A política econômica de um país mocrático – ideia proscrita dos manuais da “ortodonão pode ser determinada por simples conceitos moxia”. Infelizmente, ainda é muito presente em nosnetários. Esta autossuficiência dos neoliberais esclaso cotidiano aquele mecanismo ingrato que impede rece muitas coisas sobre os problemas sociais e ecoque o país discuta seu futuro. Um exemplo disso é o nômicos do Brasil. E suscita novas indagações sobre mais recente falatório em torno da questão fiscal, os a atualidade do dilema inflação e desenvolvimento – investimentos estatais. as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda A direita, é óbvio, tem interesse em atravancar o não lhe trouxe solução. progresso do país. Seguir à risca a sua receita seria Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do da existência deste diagnóstico é o erro fundamenbolo, levada a cabo nos anos de ditadura, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor tal dos neoliberais – que tratam política econômica

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Eleições 2014 e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex -presidente do Banco Central na “era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico, mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes últimos anos dos governos Lula e Dilma Rousseff.

Tom de profecias Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na “era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos. Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias pelos czares da economia na “era FHC”, cresceram as evidências de que, à época, o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que se empolgaram e sectarizaram-se na defesa de teses ‘“ortodoxas” – talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto –, foram repudiados por todos os que não rezam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.

O debate que interessa O Brasil se livrou desse mantra e, em certa medida, passou a valorizar a necessidade de mecanismos para melhorar a vida da população. A constatação de que o impacto do crescimento econômico sobre o bem -estar da população é decisivo levou imediatamente à pergunta (particularmente importante para os países com muitas pessoas pobres, como é o caso do Brasil): como distribuir a riqueza de forma eficiente? Entre os fatores determinantes para a melhor utilização dos recursos disponíveis está o papel do Estado. No fundo, esse é o debate que realmente interessa. Economias do tamanho da brasileira não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o Brasil não só necessita dessa taxa como precisa que

O dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira

ela seja contínua. Para reduzir a pobreza, elevando a renda per capita, estudos mostram que o PIB precisa crescer entre 5% e 6% ao ano apenas para incorporar a mão de obra que está entrando anualmente no mercado de trabalho. Ou seja: além de crescer, o Brasil precisa distribuir a renda e se desenvolver.

Melhorias infraestruturais Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. Comparemos esses dados com alguns números da Finlândia, que não cresceu tanto. Sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de US$ 20 mil, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros – expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade –, os finlandeses têm características de país muito mais desenvolvido que o Brasil. A questão é que países desenvolvidos já possuem usinas de energia, estradas e outras infraestruturas para atender a suas necessidades. Nesses casos, o crescimento tende a ser naturalmente mais lento. Mas no Brasil ainda há muito por fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infraestruturais. Ou seja: o Brasil não só pode como deve crescer acima de 5%.

Reflexão de Raúl Prebisch O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos ao desenvolvimento do subcontinente. A Comissão Econômica Para a América Latina (Cepal) foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora

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Boa oferta de empregos e aumento da renda do trabalhador são conquistas do atual governo que ficarão seriamente ameaçadas com o retorno das políticas neoliberais

de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos. Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento. Com poucos governos de visão social, o Estado esteve por muito tempo ausente não apenas da tarefa de distribuir renda mas também da de habilitar toda a sociedade a participar da dinâmica produtiva. A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado.

Estado virtuoso Essa situação começou a mudar com a eleição de Lula em 2002. Com o avanço da cidadania, a

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sociedade também avançou. Multiplicaram-se as instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira ágora desses novos tempos. Mas o Estado ainda precisa ser mais bem cobrado no desempenho de suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados devem estar sob o crivo de segmentos sociais mais vigilantes para impor limites à privatização do Erário. O governo federal tem feito esforços para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável. No entanto, precisa acelerar a recuperação da sua capacidade gerencial a fim de fazê-lo cumprir o seu papel. Ou melhor: o Estado precisa se credenciar para cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos. Pode-se dizer que estamos passando de um Estado do mal -estar social para a possibilidade de se ter um Estado virtuoso, que assegure a todos brasileiros condições satisfatórias de vida. Governar sem essa premissa, como querem os gurus econômicos de Aécio Neves e Marina Silva, equivale a soltar na praça mais uma dessas mulas-sem-cabeça que os neoliberais tanto gostam de cultuar. *Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e colaborador da revista Princípios


LANÇAMENTO

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Romualdo Pessoa, a exemplo do que fez na preparação da sua obra A esquerda em armas,, foi ao teatro dos combates e, munido de lentes argutas, levantou informações com a minudência de um arqueólogo. Garimpou, lapidou e apresentou esta preciosa contribuição para se entender um pouco mais a fundo o que é o Brasil e a alma dos brasileiros. A Guerrilha do Araguaia é, sem dúvidas, uma das principais marcas das lutas populares gravadas na história do Brasil.

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Estratégia nacional-popular x Plano Real “puro sangue” Elias Jabbour*

Dilma e seus aliados representam o processo histórico, cuja realização pode colocar o país diante de um horizonte inteiramente novo, com mais possibilidades de desenvolvimento. Aécio, por sua vez, é expressão do velho. É o Plano Real “puro sangue”, com todas as suas consequências nas arenas da economia, da política e da democracia

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período iniciado com a eleição de Lula em 2002 deve ser observado partindo do princípio de processo histórico. Importante salientar isso na medida em que no Brasil, e no mundo, começaram a desmoronar as verdades absolutas vendidas como mercadorias baratas na década de 1990. Por exemplo, a estória do “fim da história” e a vitória acachapante do ideário/dogma liberal expressaram-se numa verdadeira pasteurização do discurso político, notadamente na Europa e nos EUA, da direita e da esquerda. Fenômeno este que não ocorreu, da mesma forma, na periferia do sistema. Mais: como nunca – nos últimos 30 anos – ficaram tão claras diante do público as reais diferenças entre direita e esquerda. E o que significa de fato a contradição entre processo histórico(progresso) x apostasia(retrocesso).

Processo histórico x apostasia Evidente que a correlação de forças, notadamente numa formação social complexa como a brasileira, joga água no moinho de determinadas institucionalidades, sendo a principal delas a implantada em 1994 com o advento do Plano Real, consolidada com a imposição da política de metas de inflação em 1999 que transformou a “estabilidade monetária” de política de governo em política efe-

tiva de Estado. O que não impossibilita demarcação de fronteira neste aspecto na mesma proporção em que o país deixa de deslanchar em função desta excrescência. Eis um aspecto central do acúmulo estratégico de forças no rompimento das institucionalidades criadas no citado ano de 1994. Visão de processo histórico, transformações qualitativas no âmbito da superestrutura e possibilidade de superação do quadro instituído em meados da década de 1990 são os elementos que possibilitam demonstrar as diferenças programáticas entre os principais candidatos à presidência da República. É evidente que Dilma e seus aliados consequentes representam o processo histórico, cuja realização pode colocar o país diante de um horizonte inteiramente novo e marcado por mais possibilidade de desenvolvimento. Aécio Neves, por sua vez, é expressão do “velho”, da apostasia, que ainda não se compadeceu de sua proscrição. É o Plano Real “puro sangue” com todas as suas consequências nas arenas da economia, da política e da democracia. Enfim, a radicalização de posições é expressão concreta do atual estágio do processo histórico iniciado em 2002. Por outro lado, o cenário demanda estratégia e visão estratégica sofisticada, sob o risco da vitória da apostasia.

Banco de Desenvolvimento do BRICS ou o FMI?

Dilma e seus aliados representam o processo histórico, cuja realização pode colocar o país diante de um horizonte inteiramente novo e marcado por mais possibilidade de desenvolvimento

Existem diferentes formas e formatos de apresentar ideias e intenções. A linguagem falada pode dar mais condição de explicitude, dependendo da ocasião. O que está escrito é algo mais elaborado e, dialeticamente, com grande margem ao superficial, com maior mediação. Porém, sempre indicando um rumo, um caminho e uma estratégia. A essência é perfeitamente observável dependendo da espessura da própria aparência. Exemplo desta relação está no próprio programa e discurso do candidato oposicionista. Quando o assunto é tido como de “fronteira”, as diferenças de forma diminuem. Vejamos pelo menos dois pontos de fronteira, sua essência e forma de agitação, nos campos da política externa e da macroeconomia. As Diretrizes Gerais do Plano de Governo do PSDB, em sua página 56 (“Política Externa”) dispõe sobre, Reexame das políticas seguidas no tocante à integração regional para, com a liderança do

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dos pacotes de financiamento que o FMI organiza. Não há muita clareza sobre esse tópico, mas volta e meia aparece a ideia que o novo fundo poderia ‘competir’ com o FMI e montar programas alternativos de apoio em ‘outras bases’, o que apenas pode ser tomado como um bom roteiro para um romance de A possibilidade de subentendimento do enunciaficção científica, onde o contribuinte morre no fim” do, ou seja, a declaração de apostasia fica latente em (3). circunstâncias públicas. “Primazia da liberalização O objetivo é a defesa do FMI, levando em conta comercial” é algo que cala fundo. A exposição públio princípio para o qual foi criado eesquecendo-se do ca deste objetivo estratégico foi utilizada como forma que ocorreu a quem precisou deste fundo. A forma de demarcar fronteira com o governo antes, durante é a ironia típica de um tecnocrata cuja verdade nune depois da Cúpula do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, ca escapa de sua mente. O argumento é o “bolso” China e África do Sul) realizada em Fortaleza. O do contribuinte financiando uma verdadeira “avenobjetivo sob formato de “agitação tura”, ignorando – evidente – os e propaganda” foi estampado no custos sociais e políticos da alterAcordos bilaterais de nativa dada pelo FMI ao combate à título da matéria publicada no Estadão (2), onde se lê, “Aécio sinaliza inflação no Brasil. Gustavo Franco livre comércio com mudança na política externa”. No deveria ser mais consequente, copaíses do centro do corpo da citada matéria, o reaciolocando na ponta do lápis os prenarismo ficou escancarado quanjuízos ao “bolso do contribuinte” sistema significam do propôs que a política externa anexos aos juros da dívida externa aplicação integral da e das condicionalidades impostas brasileira “prioriza o alinhamento ideológico e promove alianças por ocasião da quebra do país em Lei das Vantagens apenas com países vizinhos”. Isso 1999 seguido pelo “socorro” do Comparativas após o país fechar uma aliança com FMI de US$ 40 bilhões.Trata-se da oBRICS em torno da formação de “face externa” do Plano Real e Gusno comércio um banco de desenvolvimento com tavo Franco ao menos é honesto ao internacional, capital inicial de US$ 50 bilhões. colocar em prova suas convicções e Na verdade, trata-se, anexa a este as de seu candidato a presidente da redundando em acordo, da planificação do comércio República. mais proscrição da externo nacional alçado ao grau de questão financeira plausível de solução. O candidato da indústria A liberalização financeira seria um “Preferência pela Liquidez” retrocesso sem precedentes quando o oposto é praticado justamente por países como A política externa pode ser vista como extensão a Alemanha e os Estados Unidos. Esta forma de plade uma opção, radical ou não, da política macroeconificação é uma tendência, quase uma lei objetiva nômica. A liberalização comercial deve ser precedida do processo de desenvolvimento. É desta forma que por sua congênere cambial. Acordos bilaterais de lideve se observar a ascensão dos países BRICS no cevre comércio com países do centro do sistema signário internacional. A apostasia possível é o reverso nificam aplicação integral da Lei das Vantagens Comdesta tendência. parativas no comércio internacional, redundando em Neste sentido, seria interessante questionar o mais proscrição da indústria – o que, visto em procescandidato da oposição acerca das relações do Brasil so histórico, não passa de mais uma face da apostasia com o BRICS, e seu banco de desenvolvimento, e o incutida numa “visão puro sangue”, fundamentalisque seu governo faria diante da iminência de uma ta e ultraortodoxa dos piores “pais do Plano Real” crise cambial: recorreria aos parceiros do BRICS ou (FMI, PUC-Rio). ao FMI? Existem medidas cuja impopularidade não pode Pergunta de resposta não distante. Um alto memser expressa pelo próprio candidato, independentebro da tropa de choque oposicionista, Gustavo Franmente de a estabilidade monetária ainda ser uma poco, responde à questão sem meias palavras: “A ideia lítica oficial de Estado sob as hostes de uma corrida de um novo fundo para complementar a atuação e os contra qualquer inflação imediata, a ser criada e no recursos do FMI é bem-vinda, mas ociosa, pois nada horizonte. Aécio não pode dizer que colocará a taxa impede que cada um dos países do Brics participe Brasil, restabelecer a primazia da liberalização comercial e o aprofundamento dos acordos vigentes e para, em relação ao Mercosul, paralisado e sem estratégia, recuperar seus objetivos iniciais e flexibilizar suas regras a fim de poder avançar nas negociações com terceiros-países (1).

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de juros na casa dos 20%, independentemente da vontade daqueles que sustentam sua candidatura (a grande finança).Por outro lado, promete – de forma evasiva – que “o ganho real do salário mínimo será mantido”, assim como promete a ampliação e o aprimoramento do Bolsa Família (4). Uma promessa de difícil realização. É algo que vai de encontro ao seu próprio programa e pelos que o escreveram: uma tecnocracia liberal fanatizada pelo equilíbrio possível e somente possível nos marcos do “mercado livre”. O povo e suas necessidades, para essa tecnocracia, não Aécio com Armínio Fraga e João Dória Jr., do extinto “Cansei”: programa tucano atende ao passam de um ponto longe que há de mais maléfico na agenda do capital da curva em suas modelagens econométricas. Prova disso é o que pensa e expressa o principal da década de 1990 enquadra-se como uma das condiassessor econômico de Aécio, e ex-presidente do ções sinequa non, tanto para compreender o processo Banco Central, Armínio Fraga, que, questionado soiniciado em 2002, quanto para vislumbrar uma nova bre a política de ajustes do salário mínimo vigente, etapa de desenvolvimento, é muito objetivo que o deixa claroque o salário mínimo “é outro tema que candidato da oposição represente a apostasia aberta precisa ser discutido. O salário mínimo cresceu muiao processo histórico brasileiro atual e seu ciclo. to ao longo dos anos. É uma questão de fazer conta. Por quê? Os dois candidatos apresentam, de forMesmo as grandes lideranças sindicais reconhecem ma inequívoca, um compromisso com a “estabilidaque, não apenas o salário mínimo, mas o salário em de monetária”. Na prática, Dilma Rousseff é expresgeral, precisa guardar alguma proporção com a prosão de um acúmulo de forças, no campo das ideias, dutividade, sob pena de, em algum momento, endaqueles que acreditam no investimento como presgessar o mercado de trabalho” (5). suposto à formação de poupança e estabilidade. Seu Neste rumo de ajuste macroeconômico a todo governo foi marcado pela aceleração da transição dos custo, em seu programa de governo, no item “Popostulados do Plano Real a algo mais nitidamente lítica Macroeconômica”, fica muito claro o objetivo desenvolvimentista, acarretando em ruídos políticos de adotar “o cumprimento inequívoco dos comproque racharam a sociedade brasileiro ao meio. missos do tripé macro: inflação na meta, ou seja, no Já Aécio, para alcançar os objetivos expostos em centro da meta, superávit primário obtido sem artiseu programa de governo, deverá – de forma imediafícios contábeis e câmbio flutuante”. O programa vai ta – elevar a taxa de juros e promover uma quase “ânum pouco mais fundo ao apontar no item 1 de suas cora cambial” de forma a promover um “choque de “diretrizes”, o que segue: competitividade” semelhante a um “beijo da mulher aranha” à indústria nacional. Em um país com proAutonomia operacional do Banco Central, que irá levar blemas estruturais de oferta isso significa mais dea taxa de inflação à meta de 4,5% ao ano. Uma vez atingisindustrialização, queda na renda, da produtividade da, a meta será reduzida gradualmente, assim como a bando trabalho e da taxa de investimentos como um toda de flutuação, atualmente em mais ou menos 2%. (...). do redundando em barbárie social no horizonte (6). Enfim, utilizando a linguagem “deles”, não ocorrerá Partindo tanto da proposta do candidato quanto formação de poupança nenhuma, pois a perspectiva do pressuposto colocado no início do artigo onde a é de queda brusca do investimento produtivo com possibilidade de superação do quadro instituído em meados graves consequências à estabilidade social e nacional.

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Um retrocesso neste nível não deverá ocorrer sem ataques frontais à democracia eaos direitos dos trabalhadores, sem criminalizar brutalmente os movimentos sociais e sem uma reforma política restritiva. Assim, Aécio Neves torna-se o testa de ferro da Preferência pela Liquidez (7), da troca da inflação pela dívida pública como forma moderna de base material capaz de fazer uma classe exercer o poder sobre o restante da sociedade, partindo do sequestro da subjetividade e capacidade de formação de pensamento da própria sociedade. O apoio do oligopólio midiático e da academia colonizada é marcaindelével deste rumo.

“Mais mudanças, mais futuro” Um slogan que encerra muito em si. Mais mudanças, mais futuro é o nome do documento com as propostas da candidata Dilma Rousseff à presidência da República (8). Um curto documento-síntese de imensas realizações e transformações sociais e econômicas pelas quais passou o país desde 2003. Remonta a um interessante processo histórico de retirada de dezenas de milhares de brasileiros da linha da pobreza. Internaliza uma realidade que demanda, conforme o próprio documento Um Novo Ciclo de Mudanças. O plano de governo aponta para a realização de conceitos e objetivos nodais, entre as quais: “competitividade produtiva”, “sociedade do conhecimento” e “fortalecimento de um grande mercado de consumo de massas”. A reforma urbana é tratada sob o acicate do objetivo de “melhorar a qualidade de vida da população urbana”, que hoje corresponde a 81% dos brasileiros. Os governos Lula e Dilma por si retratam um processo histórico intenso e que se radicaliza. Neste aspecto é imprescindível que uma estratégia Nacional-Popular anexa ao processo histórico seja capaz de se impor à realidade. Aprofundar o rumo de políticas sociais justas e uma política externa séria, conforme a prática dos governos Lula e Dilma e o indicado no próprio documento, é só uma ponta do iceberg. Os primeiros 12 anos foram a fase do aprofundamento da democracia sob a forma de inclusão social e maior participação popular nos negócios do Estado. Muito ainda há de ser estudado e avaliado sobre este período. O passo seguinte, o cotovelo do processo histórico em andamento, é muito bem posto na proposta de Programa de Governo: aumento da produtividade, cuja base objetiva deverá ser alcançada por meio de revoluções diversas, entre elas as situadas nos setores de tecnologia, educação, ampliação massiva da banda larga e de espraiamento e aprofundamento de serviços públicos.

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Por fim, o futuro só será futuro se forem criadas condições políticas de superação das institucionalidades criadas no bojo do Plano Real. O espaço de manobra diante de um cada vez mais curto ciclo econômico vai se esvaindo na mesma proporção em que a luta política se aprofunda. Acumular forças, travar o debate de ideias no seio da sociedade e fazer política são meios para que o slogan “Mais mudanças, mais futuro” saia do papel. O Brasil não pode se dar ao luxo de outra apostasia de rumos, de mais uma década de 1990. Eis o sentido da luta e da estratégia. Nunca o Brasil precisou tanto de luta quanto de estratégia. E principalmente, de inteligência. * Elias Jabbour é doutor e mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP. Professor-adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e membro do Comitê Central do PCdoB.

Notas: (1) Diretrizes Gerais do Plano de Governo – Aécio Neves, p. 56. Disponível em: http://divulgacand2014.tse.jus. br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000085/idarquivo/229 ?x=1404680555000280000000085 (2) “Aécio sinaliza mudança na política externa”. O Estado de S. Paulo, 22-07-2014. Disponível em: http://politica.estadao. com.br/noticias/eleicoes,aecio-sinaliza-mudanca-na-politica -externa-imp-,1532170 (3) “Uma copa para os BRICS”. O Estado de S. Paulo. 27-07-2014. Disponível em: http://www.trela.com.br/arquivo/uma-copa -para-o-brics (4) “Governo federal é omisso na área de segurança pública, diz Aécio Neves”. Folha de S. Paulo, 22-05-2014, Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/poderepolitica/2014/05/1457818-governo-federal-e-omisso-na -area-de-seguranca-publica-diz-aecio-neves.shtml (5) “Gasto público deveria ser limitado por uma lei”. Disponível em:http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,gasto-publico-deveria-ser-limitado-por-uma-lei-diz-arminio-fraga,181922e (6) Idem. (7) Segundo Keynes, a taxa de juros de uma economia determina a preferência, ou não, pela geração de riqueza via formas “líquidas” ou “ilíquidas”. O investimento produtivo (D-M-D’) é uma forma ilíquida de geração de riqueza. A reprodução partindo de especulação no mercado de valores e pela via da manobra sobre títulos da dívida pública ou especulação imobiliária (D-D’) são formas clássicas de “preferência pela liquidez”. É expressão, também, de poder política da grande finança sobre a produção. (8) Mais mudanças, mais futuro. Programa de Governo Dilma Rousseff – 2014. Disponível em: http://divulgacand2014. tse.jus.br/divulga-cand-2014/proposta/eleicao/2014/idEleicao/143/UE/BR/candidato/280000000083/idarquivo/194 ?x=1404673131000280000000083


Eleições 2014

Sindicalistas e estudantes defendem governo e reeleição de Dilma Cézar Xavier*

Não é difícil entender por que a candidata à reeleição agrega a sua campanha de apoios os sindicalistas mais influentes, o movimento estudantil e as principais lideranças jovens do país. Os avanços no mundo do trabalho e da educação falam por si.

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iante do quadro de disputa eleitoral e assimetria no tratamento dado pela mídia às realizações do governo, setores específicos da sociedade se unem para defender os avanços alcançados com a atual aliança de governo. Foi o que ocorreu nos dias 7 e 11 de agosto, quando represen-

tantes da maioria das centrais sindicais e entidades estudantis se encontraram com a presidenta Dilma para declarar seu apoio à candidature à reeleição e dizer do impacto de seu governo para trabalhadores e para a juventude estudantil. Os sindicalistas mais influentes das maiores centrais sindicais do Brasil selaram o apoio, na noite do

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dia 7, uma quinta-feira, em um ato promovido no ves (PSDB), militantes importantes daquela central Ginásio da Portuguesa, em São Paulo. Na segundadeclararam seu apoio a Dilma. João Carlos Gonçal-feira seguinte, 11 de agosto, Dia do Estudante, em ves, o ‘Juruna’, enfatizou a unidade com as demais São Paulo, num evento carregado de entusiasmo jucentrais para garantir mais conquistas para o trabavenil, Dilma convocou a juventude a continuar a luta lhador brasileiro. “Vários militantes da Força Sindipara garantir mais avanços ao Brasil. cal estão aqui para exercer o seu direito político. A Ao lado do ex-presidente Lula e do ministro da Capresidente Dilma está dando continuidade à luta por sa Civil, Aloízio Mercadante, os presidentes da CTB, melhores salários e mais emprego, educação e saúCUT, UGT, NCTS, CSB e o secretário-geral da Força de. Esta busca não se dá de um dia para o outro, se Sindical reafirmaram, para a plateia lotada por milhadá com a unidade dos trabalhadores e a influência res de trabalhadores e trabalhadono próximo governo.” ras de diversos estados, a disposição O presidente da Central Única de luta em defesa da reeleição da dos Trabalhadores (CUT), Wagner “As diaristas não presidente Dilma tocando em temas Freitas, ressaltou que os últimos polêmicos que a mídia usou para governos criaram condições míniprecisam mais atacar o governo democrático e pomas para a luta de classes e fortatrocar sua mão de pular, como a gestão da Petrobras. lecimento dos sindicatos, enquanto, mundo afora, o sindicalismo se obra por um prato torna irrelevante dada a gravidade Sindicato forte para a de comida ou um da crise econômica e seus procesluta de classes sos decisórios delegados ao setor lugar pra dormir financeiro.“Hoje, temos o merca“Se depender dessa bancada porque agora temos do aquecido e a inflação contronão vamos permitir o retrocesso lada, o que nos permite fazer luta no Brasil. A Petrobras de antes era o Bolsa Família e de classe. Não podemos permitir marcada por acidentes, e a PetroMinha Casa Minha que a valorização do salário mínibras de hoje é a do Pré-sal e da Bamo seja destruída, isso, sim, acacia de Búzios. Não queremos retorVida. Agora, ela baria com a economia brasileira.” no ao passado do reajuste salarial coloca o preço no congelado e da negociação com os trabalhadores tratados na base da seu trabalho”. borrachada da Polícia Militar e da Futuro sem retrocessos Ivânia Pereira Tropa de Choque. Não temos dúvida de que estamos no caminho Em seu discurso, ex-presidente correto com a presidenta Dilma”, Lula concordou que nos governos declarou Adilson Araújo, presidente da Central dos anteriores, os trabalhadores não eram tratados com Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). decência e dignidade. “O futuro deste país começou Ivânia Pereira, secretária da Mulher Trabalhaem outubro de 2002, quando os trabalhadores tomadora da CTB, que dividiu o microfone com Adilson ram consciência e o seu destino nas próprias mãos. Araújo para representar as mulheres cetebistas reO futuro chegou quando a gente vê o filho de uma forçou o fato do governo ter mantido a estabilidade empregada doméstica estudando engenharia e o fie geração de emprego, assim como salaries melholho de um pedreiro estudando medicina. Para eles res e mais direitos trabalhistas, apesar da crise in(os adversários) o futuro é abstrato. Mas o futuro ternacional. “Precisamos reconhecer o avanço que é o povo construindo junto uma nova realidade paconquistamos nos últimos anos, a exemplo das trara este país”, disse Lula. Que completou: “O futuro balhadoras domésticas que não precisam mais trochegou quando a gente teve a coragem de quebrar os car seu trabalho por um lugar para dormir, porque preconceitos e eleger a primeira mulher presidenta. o programa minha casa minha vida já garantiu sua Enquanto os adversários prometem um futuro que moradia. As diaristas não precisam mais trocar sua nem sabem o que é, nós temos orgulho de dizer que mão de obra por um prato de comida porque agora o futuro é a reeleição da Dilma”. temos o Bolsa Família. Agora, ela coloca o preço no A presidenta agradeceu o apoio e parabenizou os seu trabalho. Por isso, nós, mulheres, somos Dilma trabalhadores pela coesão. “Vocês estão dando uma Rousseff”, afirmou Ivânia. lição de unidade, consciência, patriotismo e noção Apesar de Paulo Pereira da Silva, presidente do que está em jogo: avançar em direção ao futuro ou retroceder”, ressaltou Dilma. da Força Sindical, defender o voto em Aécio Ne-

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Dilma ouviu histórias de jovens que conseguiram mudar suas vidas e de suas famílias por meio das oportunidades educacionais

Segundo a presidenta, o projeto de governo implantado desde a eleição do ex-presidente Lula, mostrou que era possível garantir a estabilidade do País e “distribuir riqueza e incluir socialmente nossa população”. “Garantimos que o Brasil não ia jogar os problemas econômicos nas costas dos trabalhadores”, salientou. Lembrando que em 2002, a campanha de Lula foi de esperança para vencer o medo que a direita tentava impor à população a disputa agora demanda quea verdade vença o pessimismo, a falsidade e a desinformação. “Lembro a vocês que diziam que até a véspera da Copa, diziam que ela seria um fracasso. Da mesma forma que fomos capazes, faremos juntos outra vez”, concluiu. Ao final do ato, Dilma recebeu das mãos dos sindicalistas o Manifesto de Apoio, com propostas da Agenda da Classe Trabalhadora. Segundo o texto, falar em choque de gestão, como diz a “oposição conservadora”, é a “amarga lembrança” do arrocho salarial e de uma política de austeridade fiscal que assolara a classe trabalhadora tanto na época da ditadura civil-militar quanto nas “décadas perdidas para a hegemonia do neoliberalismo”. No texto, os sindicalistas pedem um debate amplo sobre uma série de questões que já haviam sido apresentadas antes da campanha pela reeleição de Dilma, como o fim do fator previdenciário, a redução da jornada de trabalho para 40 horas, e a revogação do debate sobre o Projeto de Lei 4.330, de 2004, sobre a terceirização.

Desta vez, porém, os dirigentes cobram de Dilma o compromisso de que haverá um processo permanente de diálogo. As entidades de representação dos trabalhadores apontaram dificuldades de diálogo durante o atual governo, por falta de um fórum permanente. “Ao apoiar a reeleição da presidenta, estamos certos de que a negociação destes e de outros temas importantes para os trabalhadores serão melhor acolhidos e terão maior possibilidade de negociação com o governo federal.”

Encontro de gerações No Dia do Estudante, Dilma tomou conhecimento de histórias de jovens que conseguiram mudar suas vidas e de suas famílias por meio das oportunidades educacionais criadas durante o seu governo e o de Lula. São alunos que acessaram universidades públicas e privadas por meio de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES – 1,6 milhão de contratos firmados), Universidade para Todos (Prouni – 1,4 milhão de bolsas concedidas), pela Lei de Cotas e outros dispositivos. Dilma aproveitou para destacar os resultados das políticas voltadas à juventude, que representam uma verdadeira revolução educacional no Brasil. São sete milhões de estudantes a mais nas universidades, 49 mil escolas em tempo integral, 422 escolas técnicas federais, além de mais de R$ 200 bilhões que serão destinados à educação nos próximos 10 anos, com o

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investimento em educação chegando a 10% do PIB O presidente nacional da Juventude do PT, (hoje representa 6,4%). Jefferson Lima, destacou que os avanços são imO presidente da União da Juventude Socialista portantes, mas que a juventude quer mais. “Que(UJS), Renan Macaxeira, destacou o grande comproremos mais direitos e mais oportunidades para misso do governo Dilma com a educação. “Muitos esos estudantes e a juventude brasileira. Aqui é um tudantes estão aqui hoje apenas porque seu governo e pouco da tropa que estará ao seu lado diariamendo presidente Lula acreditaram que o filho do pedreiro te, avermelhando todo o Brasil, intensificando também pode virar doutor. Isso é justiça social, avana mobilização. Teve Copa, mas não vai ter segunço da nossa democracia”, afirmou. Ele destacou um do turno”, reforçou Lima, parafraseando o modado que considera muito relevante, de que o númevimento de oposição ao governo durante a Copa. ro de eleitores com ensino superior Mais uma conquista importante no superou o número de eleitores que campo educacional foi a aprovasão analfabetos durante o último ção e sanção do Plano Nacional de “Confio em vocês governo. “Isso é o que queremos”, Educação (PNE). O Plano garante porque representam enfatizou Macaxeira. que mais de R$ 200 bilhões serão A presidenta Dilma Rousseff destinados à educação nos próxiuma parte da luta classificou, visivelmente emocionamos 10 anos, com o investimento em nova forma, da, o discurso de Renan Alencar cochegando a 10% do PIB (hoje, remo “primoroso”. “Confio em vocês presenta 6,4%). em nova escala, porque representam uma parte da Os estudantes brasileiros tamem relação ao que luta em nova forma, em nova escabém estão chegando ao exterior. Há la, em relação ao que foi nossa luta quase 3 anos foi lançado o prografoi nossa luta do do passado. Confio que vocês serão ma Ciência sem Fronteiras e desde passado. Confio que o meu combate, aqueles que vão então já foram concedidas 83,2 mil defender o sentido desse projeto de bolsas para alunos de 1,1 mil muvocês serão o meu um país soberano, democrático, em nicípios estudarem nas melhores combate, aqueles que todos possam realizar o sonho instituições de ensino superior de que querem realizar”, afirmou a 43 países. que vão defender presidenta. Presente ao encontro, o cano sentido desse didato petista ao governo de São Números que falam por si Paulo, Alexandre Padilha, afirmou projeto” que pretende implantar a Lei de Dilma Rousseff O Programa Nacional de AcesCotas para acesso a universidaso ao Ensino Técnico e ao Empredes paulistas como USP, Unicamp, go (Pronatec) tem atualmente 7,8 Unesp e Fatecs. “A cada cidade milhões de matrículas realizadas e para onde só se levou presídios, deve alcançar a meta de 8 milhões de alunos matricuFundação Febem e Fundação Casa, levaremos eslados em setembro de 2014. O programa já conta com cola técnica estadual para dar mais oportunidades R$ 14 bilhões em investimento. Ainda na educação, a aos jovens. Porque o jovem de São Paulo só tem transformação do Enem (Exame Nacional do Ensino curso técnico profissionalizante de graça inclusive Médio) na ferramenta principal voltada ao ingresso por conta do Pronatec de Dilma Rousseff ”, disse no ensino superior foi um passo importante para dePadilha. mocratizar o acesso aos cursos. Vários jovens relataram o impacto das políticas Outro pilar relevante foi a expansão das univerpúblicas em suas vidas, tornando-os protagonistas, sidades por meio do Programa de Apoio a Planos de ainda jovens, de suas vidas e de suas famílias. FoReestruturação e Expansão das Universidades Federam os casos do estudante baiano, que teve acesso rais (Reuni). Até 2002, eram 148 campi federais. Hoje à luz elétrica recentemente, pelo Programa Luz pasão 300 em funcionamento e mais 21 serão abertos ra Todos, e entrou para a universidade e hoje está até o fim de 2014. As escolas técnicas federais são outerminando o seu mestrado. Foi tocante o caso da tro episódio de sucesso. Em 12 anos de governos Lula jovem empregada doméstica, mãe solteira, que moe Dilma o país alcançou a marca de 422 escolas técnirava na casa de sua patroa, que passou a estudar cas federais. O número é 3 vezes maior do que o que pelo Pronatec e hoje é dona do seu destino. foi construído no Brasil em praticamente um século: entre 1909 e 2002 foram construídas 140 escolas. *Cézar Xavier é editor-executivo do portal Grabois

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Brasil

O Brasil acabou?

Projeto nacional e impasses na gestão territorial do Brasil Evaristo Eduardo de Miranda*

Cerca de 11 mil áreas que correspondem a mais de 34% do território nacional têm seu uso e ocupação atribuídos por decretos e leis do Governo Federal. Embora grande parte seja resultante de pressões legítimas salta aos olhos a falta de diretrizes de um projeto nacional para reger o uso e a ocupação de terras no Brasil

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uem ou o que define o uso e a ocupação das terras no Brasil? Mudanças significativas ocorreram recentemente, sobretudo após a Constituinte. Em 25 anos, o governo federalizou mais de um terço do território nacional destinando-o a unidades de conservação, terras indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos de reforma agrária, áreas militares, projetos de infraestrutura etc. Sem planejamento estratégico adequado, coordenado ou suficiente, esse conjunto de territórios resultou essencialmente da lógica e da pressão de diversos grupos sociais e políticos, nacionais e internacionais. Todos revestidos de suas justificativas e legitimidades. Mas esse processo anda muito distante de qualquer diretriz estratégica de um projeto nacional. O espaço para atribuição de terras reduziu-se rapidamente, apesar da dimensão do país. O estoque das terras ditas devolutas diminuiu. Destinar terras a uma finalidade ou a um grupo implica, cada vez mais,

retirá-las de outra e de outros, quase sempre com altos custos e conflitos. De certa forma, o Brasil acabou. A demanda de terras para atividades privadas também prossegue em função da necessária e inexorável expansão das cidades, da agropecuária, da silvicultura, dos complexos industriais, mineradores e energéticos. O país está diante de um desafio de gestão territorial, gerador de conflitos cada vez mais agudos. A definição e a aplicação de um projeto nacional são fundamentais para organizar e direcionar esse processo, bem como sua avaliação. O debate da gestão territorial estratégica do Brasil é incontornável. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, até outubro de 2013, 1098 Unidades de Conservação (UC) ocupavam 17% do Brasil. Aqui, na maioria dos casos, as Unidades de Conservação excluem a presença humana, enquanto na Europa, Ásia e nos Estados Unidos pode haver agricultura, aldeias e diversas atividades nos parques nacionais, sem evocar a ampla visitação turística.

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A atribuição de terras pelo goNas unidades de conservação, a Aqui, na maioria dos verno federal não acaba por aí. Sob legislação ambiental brasileira aincasos, as Unidades a responsabilidade do Instituto Nada define no seu entorno externo cional de Colonização e Reforma uma zona de amortecimento onde de Conservação Agrária (INCRA) existem 9.128 as atividades agrícolas (e outras) excluem a presença assentamentos, de diversas naturesão limitadas por determinações da zas e estágios de implantação. Eles gestão da unidade de conservação humana, enquanto ocupam 88,1 milhões de hectares, (proibição de transgênicos, de pulna Europa, Ásia ou seja, 10,2% do Brasil ou 14,4% verizar com aviação agrícola etc.). A do que resta quando descontado o largura dessa zona é variável. Estie nos Estados território já atribuído às áreas promativas avaliam o seu alcance entre Unidos pode tegidas. Essa área equivale a quase 10 e 80 milhões de hectares adicioo dobro da cultivada atualmente em nais (1% a 9% do Brasil). haver agricultura, grãos no Brasil. Segundo a FUNAI, 584 terras aldeias e diversas Pelos dados do INCRA e da Seindígenas ocupam aproximadacretaria de Políticas de Promoção da mente 14% do território nacional. atividades nos Igualdade Racial, as 268 áreas quiReunidas, essas duas categorias de parques nacionais, lombolas decretadas ocupam ceráreas protegidas, eliminando-se ca de 2,6 milhões de hectares. No as sobreposições, ocupam 247 misem evocar a ampla conjunto, mais de 290 milhões de lhões de hectares ou 29% do país. visitação turística hectares, 34% do território nacional, Segundo a International Union for estão atribuídos por decretos. Sem Conservation of Nature (IUCN), os 11 considerar as áreas militares com países com mais de dois milhões de uma superfície total maior que a do estado de Sergipe. quilômetros quadrados existentes no mundo (ChiO mapa do Brasil com mais de 11.000 áreas atrina, EUA, Rússia etc.) dedicam 9% em média de seus buídas, essencialmente pelo governo federal, permiterritórios às áreas protegidas. Com quase 30%, o te visualizar a complexidade da situação atual (MaBrasil é o campeão mundial da preservação. Mapa 1

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Brasil pa 1). Ele ilustra espacialmente o presente desafio da gestão territorial e fundiária. Cada uma dessas unidades ou entidades pede um tipo de gestão, avaliação e monitoramento específicos e transparentes. E implicam custos e investimentos governamentais. O governo federal continuará atribuindo-se mais e mais extensões de terra que, na maioria dos casos, sairão do controle dos estados e municípios. Há estados em que boa parte de seu território já foi “federalizada” por decretos federais de atribuição de áreas

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que estarão por muito tempo sob o controle de órgãos e instituições federais. No caso do Maranhão, por exemplo, toda a fachada do litoral está nessa situação. Além das áreas já atribuídas, existem milhares de solicitações adicionais para criar ou ampliar unidades de conservação, terras indígenas, assentamentos agrários e quilombolas. As novas áreas reivindicadas, cada vez mais, já estão ocupadas pela agricultura, por núcleos urbanos etc. Como arbitrar e direcionar esse processo, sem um marco referencial como o de

As novas áreas reivindicadas, cada vez mais, já estão ocupadas pela agricultura, por núcleos urbanos etc. Como arbitrar e direcionar esse processo, sem um marco referencial como o de um projeto nacional?

Mapa 3

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um projeto nacional? Esse quadro complexo de ocupação e uso territorial representa um enorme desafio de governança fundiária e envolve conflitos graves, processos judiciais, impactos sociais e implicações econômicas significativas. Essas demandas adicionais de terras por parte de grupos, minorias e movimentos sociais, todos com sua lógica e legitimidade, precisam ser compatibilizadas com o crescimento das cidades e suas demandas sociais e ambientais (áreas verdes, sistemas de abastecimento de água, de tratamento de esgotos etc.), com a destinação de locais para geração de energia, para implantação, passagem e ampliação da logística, dos meios de transportes, dos sistemas de abastecimento, armazenagem e mineração. No planejamento territorial dessas realidades agrárias e socioeconômicas é necessário considerar, localizar e incluir geograficamente as quase 50.000 obras do PAC. E agregar, em breve, as futuras ações do PAC 3, bem como os investimentos estaduais e privados. Tudo isso tenta se implantar em meio ao labirinto de terras intocáveis e excluídas dessas finalidades. Aspectos do quadro natural também são essenciais para contextualizar esses processos e situações territoriais, pois eles ocorrem em bacias

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hidrográficas (gestão da água, hidrovias...), em biomas (biodiversidade, fragilidades...), em contextos geológicos, pedológicos, climáticos (semiárido, trópico úmido...) etc. Diversas dessas dimensões possuem regras específicas, legislações, marcos jurídicos e até agências reguladoras. As soluções não são simples e o melhor compromisso deve ser buscado. Esta também é uma pauta estratégica para a democracia e para o avanço de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Os sistemas de gestão territorial estratégicos, apoiados em geotecnologias e modelos numéricos e cartográficos, podem ajudar na compreensão do potencial e dos limites da base de recursos naturais e dos processos de uso e ocupação das terras. Eles também podem simular cenários, possíveis impactos decorrentes e reduzir conflitos existentes ou potenciais. E deveriam ser utilizados nas tomadas de decisão nas esferas públicas e privadas para apoiar um debate mais equilibrado e com visão estratégica nessa temática. Mas esse debate anda mais escasso que as terras. * Evaristo Eduardo de Miranda é doutor em ecologia, coordenador do Grupo de Inteligência Territorial Estratégica (GITE) da Embrapa.


Brasil

Com a Cúpula de Fortaleza, BRICS aceleram tendência a um mundo policêntrico Ronaldo Carmona*

Em histórica reunião, aliança entra em nova fase e potencializa margem de manobra de cada um de seus integrantes e destes como conjunto diante da anárquica “ordem” internacional de transição que o mundo vive

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6ª Cúpula dos países BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), recém-realizada na cidade de Fortaleza, por seus resultados e pelas perspectivas que aponta, é sem dúvida a mais significativa iniciativa geopolítica brasileira na história recente, tendo em vista suas consequências no grande jogo da disputa por espaço e poder na “ordem” internacional contemporânea (1). É, assim, um grande lance na geopolítica mundial.

Afinal, as decisões da Cúpula de Fortaleza representam novo e firme passo na diminuição relativa de poder das potências tradicionais, ao passo que significam claro movimento de aumento da influência dos novos polos de poder no mundo expresso pelos países BRICS. Estas decisões e a reiterada e crescente coesão política em torno dos grandes temas em voga na situação internacional jogam a favor da tendência à multipolarização, contribuindo assim para o desfecho e o desenlace da transição no mundo.

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Representando pouco mais de 40% da população essa ascensão. O ceticismo e a má vontade do Ocimundial e quase ¼ da economia global, os países dente com os países BRICS – parte ideológica da luBRICS, ao iniciarem um segundo ciclo nas Cúpulas ta geopolítica em curso no mundo – se contradizem anuais de Chefes de Estado e de Governo, dão um com os fatos, já que essa coalizão vai demonstrando salto de qualidade. Se o primeiro ciclo de Cúpulas crescente capacidade de coesionar-se tendo em vista – realizadas entre 2009 e 2013 – foi marcado por convergirem os interesses nacionais de cada um de consolidar o BRICS como instrumento de coordenaseus integrantes. ção política de grandes países em desenvolvimento quanto aos principais temas da agenda internacioCúpula de Fortaleza atendeu ao nal, o segundo ciclo inicia-se com a institucionalizainteresse nacional de cada um dos ção do bloco, através da criação de meios para interpaíses BRICS e deles em seu conjunto vir mais solidamente na ordem internacional. A partir da reunião de Fortaleza, o BRICS passa Atendendo, portanto, ao interesse nacional de a contar com instrumentos institucionais para opecada um de seus integrantes, a 6ª Cúpula do BRICS rar mudanças na arquitetura financeira e monetária constituiu-se em um êxito, solidificando a aliança. internacional: o Novo Banco de Desenvolvimento Para o Brasil, a participação no BRICS represen(NDB, em sua sigla em inglês), o Banco do BRICS e ta um caminho a favor do aumento da margem de o fundo comum de reservas do BRICS, chamado formalmanobra do país diante de um conturbado cenário mente de Arranjo Contingente de Reservas (CRA, na internacional, por meio de aliança com grandes paísigla em inglês). ses emergentes com interesses naMas em Fortaleza os países cionais convergentes, essência da Do ponto de vista BRICS seguiram avançando na crescente solidez da aliança. Reperconstrução de uma visão comum cutirá também sobre seu entorno geopolítico, o em um conjunto de temas sensígeográfico e estratégico, como veBanco e o Fundo veis da agenda global. De grande remos à frente. importância política é o posicioEspecificamente na 6ª CúpuBRICS atuam namento do BRICS, na Declaração la, ao Brasil, como anfitrião, intediretamente na de Fortaleza, sobre a situação da ressava dar passos adicionais na Ucrânia, francamente favorável ao consolidação do agrupamento gadiminuição da rantindo resultados efetivos na refim do conflito, por uma solução influência dos união. Não por acaso, o país manopacífica; assim, oposto à tentativa brou positivamente para garantir o do “Ocidente” de isolar a Rússia (2). Estados Unidos lançamento do NDB em Fortaleza. Tentativa, aliás, que tem tido como e da União Para a Rússia, a reunião de produto expressiva diminuição das Fortaleza teve um sentido estraambiguidades da política externa Europeia junto tégico chave, sobretudo tendo em russa pós-soviética, tornando os aos países em vista que, diante do retorno do países BRICS uma prioridade para protagonismo de Moscou no ceMoscou e solidificando sua aliança desenvolvimento​ nário internacional, recrudescem geopolítica com a China. movimentos das potências estabeA Cúpula de Fortaleza, por seus lecidas para constrangê-la em seu próprio entorno resultados, desqualifica a análise (ou melhor, o desejo) geográfico – vide o avanço da Organização do Tracomum entre os think-thanks e analistas dos grandes tado do Atlântico Norte (Otan) sobre a Ucrânia. Em meios de comunicações dos países centrais, segundo Fortaleza, foi a primeira presença do presidente Puos quais, por sua diversidade cultural e geográfica, os tin em um foro multilateral pós-Crimeia e o segundo países BRICS seriam incapazes de celebrar acordos movimento expressivo de buscar romper a tentatientre si. Para estes, os conflitos prevaleceriam sobre va de isolamento – o primeiro foi a visita de maio a a cooperação. Pequim, ocasião em que assinou importante acordo Na quadra atual, ao contrário, torna-se o BRICS energético. uma sólida aliança tática a favor da transição para a Mas Obama seguiu sua ofensiva antirrussa e multipolaridade, no que corresponde ao interesse numa provocação (extensiva ao país anfitrião da nacional de seus integrantes na aspiração por muCúpula) anunciou novas rodadas de sanções estandança da posição relativa destes países no sistema do o presidente Putin em Brasília. A derrubada do internacional. Com o NDB e o CRA, ademais, o BRIavião da Malaysia Airlines no leste da Ucrânia – dois CS passa a ter “dentes” adicionais para sustentar

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Brasil dias depois da reunião de Fortaleza e aproximadamente no mesmo momento em que o avião de Putin retornava a Moscou – somou-se a essa ofensiva, numa nítida operação que, em termos militares, se pode denominar como “operação de bandeira falsa” (3). Dias depois, foi a vez de Putin apresentar a retaliação: sendo o 5º maior importador de produtos agropecuários, Moscou anunciou o cancelamento das compras nos mercados europeu e norte-americano – apenas a União Europeia exportou US$ 13,8 bilhões em produtos agrícolas à Rússia em 2013. Num gesto importante, deu sinais de que buscará no mercado brasileiro parte importante destes produtos. Também a indústria de Defesa russa, objeto de pesadas sanções ocidentais, poderá buscar o mesmo caminho junto aos países BRICS. Para a Índia, a reunião de Fortaleza representou a primeira viagem internacional do novo primeiroministro, Narendra Modi. É expressivo constatar que o primeiro encontro de Modi com seus dois grandes vizinhos – Rússia e China – tenha se dado em solo brasileiro – a partir do qual pactuou adensamento da presença indiana na Organização de Cooperação de Xangai, aliança chave na disputa geopolítica no heartland do mundo. As intervenções de Modi reiteraram o compromisso da Índia com o BRICS, reforçado pelo fato de o primeiro-ministro voltar a Nova Déli com a primeira presidência do NDB – vale lembrar que essa ideia surgiu na 4ª Cúpula, realizada na Índia em 2012. Para a China, a participação no BRICS aporta ao interesse central da política externa chinesa contemporânea: “a busca ativa de um entorno internacional pacífico em benefício de seu próprio desenvolvimento”, nas palavras do presidente Xi Jinping (4). Ademais, a aliança aporta à aspiração deste país em adensar sua presença no cenário internacional e de aumentar sua diversificação financeira. A relação com grandes países detentores de matérias-primas também serve ao interesse chinês de garantir o fluxo regular destes bens ao país, sustentando o desenvolvimento chinês. Neste caso, além da relação com Brasil, Rússia e África do Sul – grandes detentores de matériais-primas – a aliança facilita-lhe o acesso ao entorno destes países, especialmente à América Latina e ao Caribe e à África (5). A África do Sul, por sua vez, tem especial interesse em consolidar os compromissos que ela pilotou

na Cúpula de Durban (2013), relativo ao apoio dos países BRICS à integração africana através do financiamento da infraestrutura: o país ocupa a presidência da União Africana. Tendo em vista este objetivo, Zuma sai de Fortaleza com um escritório do NDB, que será inaugurado concomitantemente à sede de Xangai, renovando compromissos com a prioridade do governo de Tshwane.

O Banco e o Fundo do BRICS: um novo Bretton Woods? Além da renovada e crescente coesão política, a 6ª Cúpula foi marcada, como dissemos, pelo surgimento do Banco e do Fundo do BRICS. Para alguns analistas, um novo Bretton Woods se desenhou em Fortaleza. Exageros à parte, foi correta a interpretação da transcendental decisão, expressa nas palavras do presidente sul-africano, Jacob Zuma, segundo o qual a reunião foi “a historic and seminal moment which saw for the first time since the post-Bretton Woods Institutions era, the creation of a new and unique financing initiative” (6). O Banco (NDB) surge com capital autorizado de US$ 100 bilhões e capital inicial subscrito de US$ 50 bilhões, com contribuições por igual dos cinco sócios (7). Mas a medida em que se consolide, diz um analista, “o Banco vai atrair outros depósitos e crescer dez ou vinte vezes” (8). Isso se explica pela capacidade de alavancagem própria de uma instituição financeira desta natureza e da possibilidade de atrair capitais de fundos diversos. A China, por exemplo, com alta liquidez, poderá no Banco encontrar alternativa de rentabilidade para seus recursos. O Fundo, por sua vez, “um miniFMI”, com caixa comum de US$ 100 bilhões, é importante se-

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guro contra crises futuras no balanço de pagamentos no Fundo Monetário Internacional (FMI) que a tos, ameaça presente no contexto da persistência cadeira correspondente aos países Benelux (Bélgide manobras monetárias dos países ricos, sobretuca, Holanda e Luxemburgo). O G-7 possui 43% dos do dos Estados Unidos, que, diante da retirada dos votos no FMI; o BRICS, em seu conjunto, 10,3%, a estímulos em resposta à crise, têm tomado medidas despeito de representar cerca de ¼ do Produto Inque geram (uma ainda moderada) saída de divisas terno Bruto (PIB) mundial. nas economias emergentes – uma “fuga para liquiVale lembrar que os países BRICS têm aportado dez”, nas palavras de Belluzzo (9). significativas quantias de recursos ao FMI no pósDo ponto de vista geopolítico, as iniciativas atuam -crise, tornando-se, ineditamente credores da instidiretamente na diminuição da influência dos Estados tuição. Como lembra Paulo Nogueira Batista Júnior, Unidos e da União Europeia – via instituições que diretor do FMI indicado pelo governo brasileiro, em controlam com mão de ferro o FMI e o Banco Mun2012 “a China anunciou US$ 43 bilhões adicionais dial – junto aos países em desenvolvimento, criando (ao FMI); o Brasil, a Rússia e a Índia anunciaram alternativas de financiamento desUS$ 10 bilhões cada; e África do pojadas das condicionalidades poSul entrará com US$ 2 bilhões. Na O surgimento das lítica e econômica aviltantes destas rodada anterior de levantamento instituições tradicionais – é certo, de empréstimos para o FMI em novas instituições draconianas para uns e suaves pa2009, os países BRICS entraram do BRICS gera ra outros. Por exemplo, a Ucrânia, com o equivalente a US$ 92 bilhões com a instalação do direitista gover– a China com US$ 50 bilhões, Braampla expectativa no pró-Ocidente em Kiev, teve aprosil, Rússia e Índia com US$ 14 bientre os países, vado em tempo recorde empréstimo lhões cada” (10). de US$ 18 bilhões. O mesmo difiO Banco aparece como atrativa especialmente cilmente ocorreria, por exemplo, se alternativa para a alocação de liquipor seu potencial um país como a Argentina necessidez e das cada vez mais vultosas retasse do mesmo apoio – ao menos servas em divisas dos grandes países de avançar no que aderisse a um pesado programa emergentes, trocando os títulos “sefinanciamento de ajuste. guros” como os treasuries (títulos do O fato é que as funções precíTesouro norte-americano), de baixa da infraestrutura puas do Banco Mundial e do FMI remuneração, por investimentos de integração na – que conforme concebido 70 anos em potencialmente rentáveis obras atrás em Bretton Woods, são “fide infraestrutura na América Latina América Latina e nanciar o desenvolvimento” e “cone na África, com garantias em opeCaribe e na África ter crises no balanço de pagamenrações governo a governo. tos” – são cada vez mais de difícil No caso da China, o país desde execução, quer por seus critérios ideológicos ultralibe2009 vem anunciando uma estratégia de reduzir a rais, que por sua própria dimensão insuficiente diante exposição – e portanto a vulnerabilidade – de mandas necessidades do mundo atual, caracterizado pela ter grande parte de suas reservas aplicada em títulos enorme carência de recursos para infraestrutura e finorte-americanos (11). Aliás, o NDB cabe como luvas nanciamento do desenvolvimento no mundo, sobrena estratégia chinesa de diversificação monetária e na tudo pelos países em desenvolvimento; a Unctad (sibusca da internacionalização do renminbi. gla inglês para Conferência das Nações Unidas sobre Assim, o surgimento do NDB e a alocação de Comércio e Desenvolvimento) estima essa demanda parte das reservas no CRA podem ser lidos como em US$ 1 trilhão, apenas para infraestrutura. movimentos de diminuição da exposição dos paíO surgimento do NDB e do CRA decorre, assim, ses BRICS em relação ao dólar. Há que perguntar-se da enorme resistência dos países do establishment quais serão suas consequências em médio e longo em ceder poder e reformar os organismos finanprazo para a hegemonia do dólar no sistema financeiros internacionais – fato expresso sem meias ceiro internacional. palavras no ponto 18 da Declaração de Fortaleza. Na medida em que isso se manifeste com clareza, Mesmo diante da enorme carência por recursos há riscos de recrudescimento da guerra financeira do no mundo, os países do G-7 resistem em ampliar G-7 contra o BRICS. Afinal, a governança financeira o papel de instituições como o Banco Mundial ao internacional é cada vez mais marcada por impacmesmo tempo em que resistem em diminuir seu tos geopolíticos, derivados do fato de que no próprio controle. A China, por exemplo, possui menos voâmbito do G-20 se cristalizam cada vez mais niti-

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Brasil damente dois blocos de força: de um lado, o G-7 – uma coalizão de países do velho status quo liberal, sobretudo com o recente expurgo da Rússia – e, de outro, o BRICS e seus aliados. Jim O’Neill, em artigo de balanço da 6ª Cúpula no The Telegraph, chega a falar em “duas facções” em disputa no G-20 (12). Do desfecho desta luta, em boa medida resultará a arquitetura financeira internacional do século XXI. Medidas promissoras no sentido de impactar sobre a hegemonia do dólar são a crescente utilização de moedas nacionais nas relações entre os países, traves de acordos de trocas de moedas (swaps) e outros mecanismos. O NDB, ademais do grande potencial financeiro, poderá jogar papel relevante Líderes do BRICS solidificam a aliança por uma nova ordem mundial na atualização da teoria do desenvolvimento diante dos desafios deste século XXI. Afinal, os países BRICS, para além de suas à mesa”, cujo acesso lhes era vedado; em seguida, diferenças, apontam para uma proposta de desenbuscaram “mudar o cardápio”. Diante da impossivolvimento “não-neoliberal”, baseado em investibilidade, passam a “estabelecer sua própria mesa” mentos produtivos e em infraestrutura. Rejeitam a (15). Esse é o significado do surgimento dos promis“perspectiva neo-rentista e de reforma econômica sores Banco e Fundo do BRICS. clássica” (13). Vale lembrar que o Banco surge apoiado no Repercussões para o entorno know-how e na expertise de robustos bancos nacioestratégico brasileiro nais de desenvolvimento de seus integrantes. É o caso do Brasil, com o BNDES, banco que tem dimenDiante da premência do tema do desenvolvimensões superiores ao próprio Banco Mundial. to no mundo, o surgimento das novas instituições Sendo o surgimento do NDB e do CRA movimento do BRICS, sobretudo do Banco, gera ampla expecde profundos impactos geopolíticos e geoeconômico, tativa entre os países em desenvolvimento, especialcabe destacar a demonstração de visão estratégica do mente por seu potencial de avançar no financiamenBrasil na manobra que permitiu seu anúncio em Forto da infraestrutura de integração na América Latina taleza. Em relação ao Banco, é amplamente conhecie Caribe – sobretudo na América do Sul – e na África. do o fato de que o Brasil foi o único dos cinco países Essa percepção se expressou fortemente no “sea não pleitear a sede da instituição, exatamente para gundo ato” das reuniões do BRICS: a reunião com os melhor se posicionar para outro pleito: o de indicar o presidentes sul-americanos em Brasília, que repetiu primeiro presidente da nova instituição. Consta, no a experiência da Cúpula de Durban, quando se reuentanto, que às vésperas da reunião dos líderes em niram os cinco chefes de Estado e líderes africanos. Fortaleza, um impasse permanecia entre Nova Déli e A presidente chilena, Michele Bachelet, fez Pequim pela sede do Banco; foi quando a presidenta menção direta à possibilidade de financiamento, Dilma orientou que o Brasil cedesse a primeira presipelo NDB, da carteira de projetos de infraestrutura dência à Índia, possibilitando o desfecho que estabedo Conselho de Planejamento e Infraestrutura da leceu sua sede em Xangai e, assim, o exitoso resultaUnasul (Cosiplan), cuja lista de prioridades abarca do da reunião de Fortaleza (14). Ao fazê-lo, o Brasil financiamento na casa de US$ 17,3 bilhões. Aqui, também amarrou o compromisso do novo governo inaliás, cabe referência à incapacidade do Brasil de diano com os países BRICS. Mas, fundamentalmente, financiar essa carteira de projetos, causa básica permitiu uma cartada decisiva no tabuleiro de xadrez dos impasses atuais para se avançar no projeto de geopolítico global. integração sul-americana e decorrência de incomComo disse um analista, numa interessante anapreensões estratégicas de expressivos setores de logia, os países BRICS começam querendo “sentar-se suas elites (16).

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O boliviano Evo Morales comentou que o NDB, cujo capital é três vezes o PIB da Bolívia, é oportunidade para acabar com “submetimento e condicionamento” que as instituições tradicionais impõem aos países latino-americanos. O presidente Rafael Correa saudou especialmente a criação do CRA; vale lembrar a defesa frequente, pelo equatoriano, de um fundo de reservas do Sul. Argumenta Correa que, com sua constituição, ao invés de os países em desenvolvimento enviarem dólares para o primeiro mundo utilizariam suas reservas para financiar seu próprio desenvolvimento. O presidente Nicolas Maduro, por sua vez, argumentou que as decisões de Fortaleza “mudarão o curso na história do século 21”. O venezuelano fez elogios à “liderança virtuosa” do Brasil na América Latina e propôs uma aliança entre o NDB e o Banco do Sul. Dias depois, a Cúpula do Mercosul, reunida em Caracas, reafirmou a necessidade de entrada em operação do Banco do Sul. Do ponto de vista geopolítico, para o Brasil, a possibilidade de financiamento dos projetos de integração em seu entorno geográfico pelo NDB introduz fatores importantes. Ao mesmo tempo em que poderá ajudar a equacionar o grave problema do financiamento do projeto de integração – fator de paralisia e esgotamento – manterá a tendência, que já vem de alguns anos, de adensamento da presença das novas potências em nosso entorno, juntando-se a presença das antigas potências tradicionais, especialmente dos Estados Unidos. Dado que atualmente há sério problema de coesão interna em torno dos termos da ascensão internacional do Brasil – com o Estado possuindo visão estratégica consideravelmente superior à de suas elites, sobretudo aquelas mais vinculadas a interesses mercantis no estrangeiro –, transitoriamente, até que se estabeleça maior unidade, resultará inevitável maior presença de potências extrarregionais – velhas e novas – em nosso entorno geográfico. As duas potências membros do Conselho de Segurança da ONU tratam de fazê-lo quer por mecanismos bilaterais, quer multilaterais. No primeiro caso, toma-se nota da tournée dos presidentes Putin e Xi por ocasião da vinda a Fortaleza e Brasília. O russo também visitou Cuba, Nicarágua e Argentina, antes de chegar a Fortaleza. Já o chinês saiu de Brasília para Buenos Aires, visitando depois Venezuela e Cuba. Em Brasília, ambos tiveram extensa agenda de reuniões bilaterais com mandatários sul-americanos. A China reuniu-se com a troika da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) e realizou, com o apoio do Brasil, uma Cúpula China, Países da América Latina e Caribe. O grande país

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oriental anunciou um ambicioso plano denominado “1+3+6”, a ser lançado no Foro Ministerial China/ Celac, a ser realizado em Pequim no próximo ano (17). Em Brasília, anunciou também linhas de crédito com desembolso chinês de US$ 5 bilhões para um Fundo de Cooperação. Por fim, os chineses acertaram com o Brasil e o Peru a criação de um grupo de trabalho tripartite para financiar a Ferrovia transcontinental – velha ambição geopolítica brasileira, desde Mário Travassos –, que ligará o Atlântico ao Pacífico, ainda que provavelmente com trilhos e locomotivas made in China. Chamam a atenção os elevados financiamentos chineses à Venezuela: nosso vizinho, desde que começou a funcionar o fundo chino em 2001, recebeu cerca de US$ 50 bilhões, dos quais 95% já foram quitados. Como disse o chanceler Elias Jaua, a equação é “energia para a China, financiamento para o desenvolvimento da Venezuela” (Correo del Orinoco, 2307-2014). Atualmente, a Venezuela envia cerca de 600 mil barris de petróleo/dia para a China, propondo aumentar estes envios “em médio prazo” para 1 milhão de barris/dia (CO, 20-07-2014). Na visita, Xi anunciou novo crédito de US$ 4 bilhões à Venezuela. O BRICS vai, assim, dialogando com o entorno geográfico de cada um de seus integrantes. Após a criação, em Durban (2013), do BRICS/África Council, estabelece-se em Brasília o mecanismo BRICS/Unasul. Mais amplamente, surgem os Foro China/Celac e, propõe Putin, um Foro Celac/União Euro-asiática. As novas alianças são importantes para a América Latina no sentido de diversificar relações. Potencialmente, afetam a própria presença tradicional dos Estados Unidos em seu primeiro perímetro geopolítico primário.

Conclusões De fato, após a 6ª Cúpula os países BRICS dão um salto de qualidade e, mais amplamente, a própria luta por quais serão o desfecho e o desenlace da atual transição na “ordem” internacional entrará em novos capítulos. Contramovimentos recrudescerão; não sendo uma transição que ocorre manu militari, ao contrário – que acontece com a preservação da posição estratégica da grande superpotência do planeta –, é de se esperar a intensificação de manobras diretas ou indiretas voltadas a fomentar contradições entre os países BRICS. Persistirá e se intensificará a “geopolítica da contenção”, que nestas páginas abordamos em dois recentes artigos (18) – especialmente aquelas voltadas contra a coesão nacional e territorial de cada um dos BRICS.


Brasil A presidência pro tempore brasileira do BRICS vai até a 7ª Cúpula, que ocorrerá dias 09 e 10 de julho de 2015 na cidade de Ufa, na Rússia – simbolicamente localizada geograficamente na fronteira terrestre russa entre a Europa e a Ásia, marcando ponto de contato entre Ocidente e Oriente. Será o período de implementação do chamado Plano de Ação de Fortaleza – que prevê amplo leque de iniciativas, e sobretudo por avançar no desafio de dar operacionalidade aos acordos de Fortaleza, em especial no funcionamento do Banco do BRICS, previsto para até 2016. Não terá passado despercebida a proposta verbalizada pelo presidente russo Vladimir Putin em Fortaleza, propondo um novo e ousado desafio geopolítico: o da conformação de uma associação energética entre os países BRICS (“BRICS Energy Association”). A ideia inclui a formação de um banco de reserva de combustíveis (“Fuel Reserve Bank”) e de um instituto de política energética (“BRICS Energy Politic Institute”) (19). A aliança reuniria dois dos maiores produtores de petróleo – a Rússia e (potencialmente, pelo pré-sal) o Brasil – e os dois maiores consumidores, a China e a Índia. Ao Brasil, um dos maiores produtores de petróleo em médio prazo, resulta interessante entrar no grande jogo da geopolítica de energia por esta via. Enormes potencialidades poderá ter no futuro próximo a aliança dos países BRICS. Quanto ao presente, não por acaso vale observar o que disse um veterano observador do cenário internacional e protagonista dele há mais de cinquenta anos, o presidente cubano Raúl Castro – que se deslocou a Brasília na condição de país membro da troika da Celac. Para Raúl, as reuniões de julho foram “um fato histórico que não tem comparação” (Granma, 19-07-2014). * Ronaldo Carmona é pesquisador de Teoria Geopolítica na Universidade de São Paulo (USP). Membro do Comitê Central do PCdoB

Notas (1) Outra ação geopolítica destacada do Brasil foi em 2009, quando da articulação diplomática entre Brasil, Turquia e Irã que resultou na assinatura da Declaração de Teerã sobre o dossiê nuclear iraniano, que provocou, naquele momento, a entrada destes novos atores no cenário geoestratégico global, gerando contundente reação do status quo. (2) Em março, na votação da ONU de hipócrita resolução patrocinada pelos países da Otan, pela “integridade territorial da Ucrânia” (sic), num gesto político de grande relevância, os quatro BRICS se abstiveram conjuntamente. A Declaração de Fortaleza apresenta a primeira opinião comum dos países

BRICS quanto à crise na Ucrânia. No ponto 44, lê-se que “Expressamos nossa profunda preocupação com a situação na Ucrânia. Clamamos por um diálogo abrangente, pelo declínio das tensões no conflito e pela moderação de todos os atores envolvidos, com vistas a encontrar solução política pacífica, em plena conformidade com a Carta das Nações Unidas e com direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos”. (3) False flag em inglês. São operações militares ou de inteligência que aparentam ser realizadas pelo inimigo de modo a tirar partido das consequências resultantes. Que interesse teriam os rebeldes ucranianos em atacar um avião civil de passageiros? Ao governo direitista de Kiev, ao contrário, surgiu uma oportunidade para liquidar com força militar extrema o movimento separatista. (4) Entrevista a quatro meios de imprensa da América Latina, em 14 de julho de 2014. (5) Ainda que, vale dizer, a primarização nesta relação é objeto de crescente preocupação, por exemplo, dos países latino-americanos. É o caso do Brasil que, em 2013, teve nas commodities 87% de suas vendas à China enquanto que, de suas importações deste país, 60% foram de produtos industrializados (Carta Capital, 23-07-2014). (6) “Um momento histórico e seminal, que viu pela primeira vez desde as instituições de Bretton Woods, a criação de uma nova e única iniciativa de financiamento” (tradução livre). Ver http://www.thepresidency.gov.za/pebble.asp?relid=17711 (7) Ao contrário das instituições de Bretton Woods, o NDB surge com uma governança rigorosamente equivalente em termos de distribuição de poder entre seus cinco sócios fundadores. É altamente questionável, portanto, a interpretação de certos analistas ocidentais de que o Banco seria um “instrumento da expansão chinesa”. (8) Michael Wong, professor da City University de Hong Kong, em entrevista à BBC Brasil, 15-07-2014. (9) “Em um mundo de inevitáveis colisões”. Carta Capital, 23-0714. (10) “Os BRICS no FMI e no G-20”, dezembro de 2012. (11) Ver artigo, que teve ampla repercussão à época, de Zhu Xiao-chuan, presidente do BC (Banco Popular da China). (12) Ver http://www.telegraph.co.uk/finance/globalbusiness/10991616/ The-Brics-have-a-100bn-bank.-Can-the-West-start-takingthem-seriously-now.html (13) Como disse Michael Hudson, em Carta Capital, 23-07-2014. (14) O Brasil presidirá o Conselho de Administração do NDB e terá a próxima presidência após a gestão indiana; a Rússia presidirá o Conselho de Governadores (ministros). (15) Anthony W. Pereira, do King’s College de Londres (The BRICS Post, 15-07-2014). (16) O Brasil tem sido o principal contribuinte (70%) dos recursos do Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM) do Mercosul, voltado para financiar projetos de desenvolvimento no bloco regional, entretanto, com valores modestos. Em sete anos, o FOCEM financiou 45 projetos no valor de US$ 1,4 bilhão. (17) Sendo que o “1” se refere a um “programa a elaborar” (Programa de Cooperação China-América Latina e Caribe 20152019), o “3”, três “grandes motores” (comércio, investimentos e cooperação financeira) e “6”, as seis áreas prioritárias de cooperação (energia e recursos naturais, construção de infraestruturas, agricultura, manufatura, inovação científica e tecnológica e tecnologia da informação). (18) Ver “Geopolítica do BRICS” (Princípios nº 131) e “A ascensão brasileira em xeque” (Princípios nº 129). (19) Ver http://eng.kremlin.ru/transcripts/22677

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Entrevista com Manoel Rangel

Uma política de Estado para o cinema e o audiovisual Fábio Palácio*

Cineasta Manoel Rangel, diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine)

O Estado brasileiro tinha uma atuação meramente de estímulo à produção de filmes baseada em recursos de incentivo fiscal. Essa atuação tornou-se mais complexa. Converteu-se pouco a pouco numa política de desenvolvimento econômico e cultural 58


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Brasil

tual diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o cineasta Manoel Rangel vem jogando papel destacado na construção de uma política de Estado para o setor de cinema e audiovisual em nosso país. Com trajetória oriunda dos movimentos sociais, Rangel presidiu entidades como a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (1989-1990), a União da Juventude Socialista (1991-1992) e o Centro de Memória da Juventude (1994-1996). Entre 1999 e 2001, esteve à frente da seção paulista da Associação Brasileira de Documentaristas. Presidiu, ainda, a Comissão Estadual de Cinema da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (20012002). Foi assessor especial do ministro da Cultura Gilberto Gil (2004-2005) e secretário substituto do Audiovisual no mesmo período. Coordenou, então, o grupo de trabalho sobre regulação e reorganização

institucional da atividade cinematográfica e audiovisual no Brasil. Em 2005 foi nomeado membro da diretoria colegiada da Ancine. No ano seguinte, após a aprovação e constituição do Fundo Setorial do Audiovisual, assumiu a Presidência da autarquia, cargo ao qual foi reconduzido em 2009 e, novamente, em 2013, quando a presidenta Dilma Rousseff o confirmou à frente da agência até maio de 2017. Rangel exerce desde 2011, concomitantemente, a Secretaria Executiva da Conferência de Autoridades Audiovisuais e Cinematográficas Ibero-Americanas. Nesta entrevista, realizada no último dia 5 de agosto na Cinemateca de São Paulo, o presidente da Ancine aborda a situação atual e os grandes desafios nacionais no segmento cinematográfico e audiovisual. De suas respostas, sempre ocupadas em apontar avanços e dilemas, emerge rico panorama das políticas elaboradas e implementadas nos últimos anos.

Princípios – Qual o diagnóstico do setor de cinema e audiovisual em nosso país? Manoel Rangel – O setor avançou muito ao longo dos últimos doze anos, desde a criação da Agência Nacional do Cinema em fins de 2001. Construímos, nesse período, uma política pública de cinema e audiovisual que antes não existia. O Estado brasileiro tinha uma atuação meramente de estímulo à produção de filmes baseada em recursos de incentivo fiscal. Essa atuação tornou-se mais complexa. Passamos a ter uma atuação reguladora e a fiscalizar o mercado. Passamos a contar com fundos públicos para investir no desenvolvimento do setor, para além do incentivo fiscal. Ao construir essa política pública, com esses instrumentos, nós abrimos o foco. O que antes era apenas apoio à produção de longas-metragens, num viés quase assistencialista, converteu-se pouco a pouco numa política de desenvolvimento econômico e cultural. Passamos a mirar também a televisão, aberta e paga, além de outros espaços de veiculação. Abarcamos o campo público de televisão e estimulamos a parceria entre as televisões privadas e a produção independente. Colocamos em cena a expansão do parque exibidor, das salas de cinema, e o fortalecimento das distribuidoras brasileiras independentes. Construímos um novo marco regulatório para a televisão por assinatura, porque entendíamos que este era o nó do processo da conver-

gência digital. Um nó que, uma vez desatado, permitiria liberar novas energias no crescimento desse importante serviço, que por sua natureza encontra-se entre o universo das telecomunicações e o universo da comunicação social, já que as operadoras de TV por assinatura congregam tanto serviços de banda larga quanto de entrega de conteúdo por meio de seus canais. Construímos então, ao longo destes últimos doze anos, uma política nacional de cinema e audiovisual com essa complexidade. No âmbito dessa construção formulamos um plano para o setor. Desde 2012 temos um plano de diretrizes e metas para os próximos dez anos. Nunca houve, no segmento brasileiro do audiovisual, planejamento sequer de curto prazo, quanto mais de médio, longo prazo. E o mais importante: o plano foi pactuado entre todo o setor do audiovisual e o governo. Reunimos dezoito representantes do setor – televisão aberta, televisão paga, telefonia, produtores, distribuidores, exibidores, gente também de fora do eixo RioSão Paulo – em debate com nove representantes de ministérios. Ao final aprovamos por consenso esse plano, depois de muito debate e diversos ajustes. O plano de diretrizes e metas orienta a ação do poder público na construção do setor, na resposta aos diversos gargalos do desenvolvimento econômico. O que nos norteia? Fazer do Brasil um dos cinco maiores mercados de cinema e audiovisual do mundo. Ao

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lado disso, intentamos favorecer uma forte produção de conteúdos brasileiros e a mais ampla incorporação da sociedade no acesso aos serviços audiovisuais. Julgamos ser isso vital para desenvolvimento da nossa indústria, mas também para o desenvolvimento da economia brasileira e para a inserção do Brasil no mundo. Este é, portanto, o ponto em que nos encontramos hoje. As políticas têm surtido efeito. Para que façamos ideia, o mercado de TV por assinatura cresceu em 2011 e 2012 à taxa de 25 a 27%. Cresceu em 2013 à taxa de 12% e vai crescer no decorrer deste ano à taxa de 11%. Claro, há um pequeno decréscimo na taxa de crescimento, mas isso é natural à medida que vamos atingindo patamares mais elevados de desenvolvimento do setor. A mesma coisa acontece no mercado de salas de cinema: o crescimento tem sido da ordem de 8 a 9% ao ano. Temos hoje uma participação de mercado de 18,6% do filme nacional. Fechamos 2013 com o lançamento de 129 filmes. A título de comparação, em 2002 eram apenas trinta as obras lançadas; a participação de mercado do filme brasileiro era da ordem de 8,7%. E pior: essa participação estava sob a responsabilidade das chamadas majors, as mesmas que controlam a distribuição de filmes estrangeiros. Desde 2010 essa situação mudou, com a maior parte da bilheteria de filmes nacionais nas mãos de distribuidoras brasileiras independentes. Princípios – Como se posiciona o Brasil no contexto internacional? Manoel Rangel – O Brasil é hoje o décimo mercado em termos de ingresso e de faturamento do mercado de salas de cinema. O peso da economia do audiovisual na economia brasileira é equivalente ao peso do setor na economia francesa. Essa comparação reveste-se de importância porque a França é, depois dos Estados Unidos, o principal polo de produção de conteúdos, de desenvolvimento de uma indústria nacional de conteúdos audiovisuais, excetuando-se o mundo asiático, que é um mundo à parte. Índia, Coreia, Japão e China têm peculiaridades no seu desenvolvimento econômico e na sua tradição cultural que implicam uma experiência, no setor do audiovisual, muito particular e não reproduzível. No mundo ocidental, contudo, a França pode ser tomada como parâmetro para nós. O peso da economia do audiovisual na economia brasileira é superior ao peso do setor na economia de países como o México. Isso significa que temos uma posição de força. Porém, como costumamos afirmar, se por um lado isso é relevante, por outro é ainda insuficiente para o alcance de nossos objetivos estratégicos. Por quê? Porque quando observamos essa proporção,

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esse peso da economia do audiovisual na economia como um todo, não visualizamos com clareza o peso das empresas brasileiras e da produção brasileira. Nosso desafio não é apenas fazer crescer o mercado interno. É também fazer crescer a participação da produção brasileira, das empresas brasileiras no mercado interno, inclusive porque julgamos que esta é uma importante alavanca para a inserção internacional. Princípios – O Brasil vivenciou nos últimos anos um robusto processo de desconcentração de renda e inclusão social, cuja face mais visível encontra-se na ascensão da chamada “classe C”. Quais os impactos desse processo no setor do audiovisual? Manoel Rangel – Os impactos são profundos. O crescimento do mercado de televisão por assinatura decorre de alguns fatores, sendo o principal deles as transformações na socioeconomia brasileira, a incorporação da chamada “classe C” – que compreende mais de 40 milhões de brasileiros – ao mercado de consumo. Um segundo fator importante para a expansão do mercado de TV por assinatura é o novo marco regulatório, materializado na lei 12.485, também denominada Lei da TV Paga. Um terceiro fator pode ser localizado nos estímulos garantidos pela política governamental, no sentido de construir um arranjo capaz de favorecer a produção de conteúdo brasileiro. Essa produção é importante por causa do grau de identidade que a população brasileira tem com a produção local... Princípios – ...E, se a população adquire maior poder aquisitivo e não se aumenta o volume da produção local, essa maior capacidade de consumo tende a ser escoada para a produção estrangeira... Manoel Rangel – ...Tende a escoar para a produção estrangeira. E, visto de outra maneira, porque no caso da TV paga essa relação é um pouco diferente, se não há conteúdo brasileiro ali, tende a haver menos relação afetiva do brasileiro com aquele serviço, e ele, portanto, pode não aderir àquele serviço. É aqui, portanto, que está a dosagem. É um equilíbrio delicado que existe nessa equação. Princípios – A ascensão social da chamada “classe C” também foi determinante para a expansão do mercado de salas de cinema? Manoel Rangel – É a “classe C” que tem dado base ao ritmo de expansão das salas de cinema. Esse mercado cresce a uma taxa de 8% ao ano. O dado é bastante relevante, porque na Europa e na América do Norte cai o número de salas de cinema. É verdade que no Brasil há uma defasagem muito grande, mas somos um país cujo parque exibidor tem crescido consistentemente.


Brasil O México tem um mercado robusto, forte, já próximo da saturação, e por isso cresce menos. Mas, entre os outros países, o Brasil é o que mais cresce. Os efeitos desse processo são muito fortes. O que hoje está em questão é como isso passa a refletir-se no tipo de produção de conteúdo que é feito, na qualidade dessa produção, e como a produção brasileira pode dialogar mais fortemente com essa parcela de brasileiros que adquire direitos de cidadania e adentra o mercado de consumo.

so. Está lá no nosso diagnóstico que a expansão da infraestrutura de banda larga é indispensável a essa nova qualidade dos serviços. Está lá a expansão da TV por assinatura como questão crucial. A sociedade brasileira, e essa “classe C” que se incorporou, vê o acesso a esses serviços como a confirmação de que ela mudou de patamar. Há, portanto, a questão do ganho simbólico: além de ter emprego, além de ter renda, além das melhorias O plano de de vida na forma do acesso a bens, esse brasileiro que diretrizes e metas ascende socialmente almeja também para o audiovisual Princípios – As manifestações de os símbolos dessa mudança de patajunho de 2013 colocaram em mar. E o acesso aos serviços culturais desenhava, já em pauta a demanda por serviços é determinante nesse processo. 2012, um cenário urbanos de qualidade. Isso inMesmo antes do plano de direclui, naturalmente, cinema, TV trizes e metas, algumas medidas impara os serviços do por assinatura e internet banda portantes vinham sendo adotadas. setor, dialogando larga. De que forma a Ancine Lançamos em 2010, ainda com o trabalha para atender a esses presidente Lula, o programa Cinema intensamente com anseios? Quais as principais dePerto de Você, voltado à expansão do os anseios que finições do plano de diretrizes e parque exibidor. As medidas incluem metas? desoneração fiscal da ordem de 25%; seriam expressos Manoel Rangel – Toda aquela movilinha de crédito subsidiado com vernas manifestações mentação de junho fez explodir algo bas do próprio setor – sem drenar, que os formuladores de política púportanto, recursos do tesouro; made junho blica nas diversas áreas já vinham peamento dos municípios carentes apontando: a dificuldade significatide salas de cinema, e provocação aos va de levar serviço público com certo empreendedores privados, para que padrão de qualidade à imensa maioria dos brasileiros. se propusessem esse desafio. Porque no Brasil tem uma As manifestações de junho deram um caráter agudo coisa curiosa. O Estado, além de tudo, tem que cumprir àquilo que já era crônico. Havia respostas sendo consa função de chegar no empresário e dizer: Acorda! Tem truídas e aplicadas. O Minha Casa, Minha Vida é uma aqui uma oportunidade e você deve se lançar! resposta objetiva ao problema da carência de habitação. O Mais Médicos é uma resposta objetiva à carência Princípios – Uma característica que, aliás, diferende infraestrutura no atendimento à saúde. Esse procia bastante nossa classe empresarial daquela de grama foi lançado em setembro, mas vinha sendo gespaíses como os Estados Unidos, cujo empresariatado havia mais de um ano e meio. do é mais ativo, mais prospectivo... No terreno do cinema e do audiovisual, o plano de Manoel Rangel – ...E muitas vezes lidera o processo de diretrizes e metas desenhava, já em 2012, um cenário expansão econômica e de modernização do país. No para os serviços do setor, dialogando intensamente com Brasil é paradoxal, mas cabe ao Estado uma parcela os anseios que seriam expressos nas manifestações de relevante da responsabilidade sobre a modernização. junho. Em que sentido? Está lá no nosso diagnóstico Foi assim na década de 1930, com Getúlio Vargas. Foi que o processo de transformação social exige uma quaassim durante o regime militar, nos governos Médici lificação da vida nas cidades, com melhores serviços e Geisel, e é assim no ciclo inaugurado com o governo prestados, e que o cinema é parte indispensável disLula. É um paradoxo, porque seria de se esperar uma

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relação mais equilibrada, no sentido de também haver liderança por parte da sociedade civil na modernização do país. Mas no Brasil a marca é a do Estado modernizador. Claro que o Estado, ao atuar, expressa forças sociais, empresariais e populares, sentimentos difusos na sociedade. Mas seu foco deveria ser regular e estimular investimentos, e não planejar e impor a expansão econômica. É um paradoxo. É diferente dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha. É mais próximo da realidade asiática, na qual o Estado também tem papel determinante na direção do processo modernizador. Característica que, aliás, independe do regime econômico, valendo para países tão distintos quanto Coreia do Sul, Japão, China, Índia e Vietnã.

pação do mercado de cinema e de televisão. No Brasil, já atingimos uma capacidade de planejamento, pelos distribuidores privados, de três, quatro anos. Acreditamos que isso pode intensificar-se e que podemos alcançar um horizonte de planejamento de seis, sete anos. Em nosso país, o planejamento de longo prazo é uma grande deficiência em todas as áreas da vida nacional, sejam elas públicas ou privadas. O Brasil de Todas as Telas é um investimento de um bilhão e duzentos milhões de reais, a ser feito ao longo de 2014 e no início de 2015. Estamos investindo setecentos milhões em produção de filmes e séries de TV, noventa milhões em desenvolvimento de roteiros e formatos e mais trezentos e dez milhões na expansão do parque exibidor. Há ainda os investimentos Princípios – Quais os objetivos do recém-lançado do terceiro eixo do programa, oriundos do Programa programa Brasil de Todas as Telas? Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego Manoel Rangel – O Brasil de Todas as (Pronatec), que incluem cinco mil Telas é nossa ferramenta para execubolsas de formação em doze capitais A sociedade tar muitas das diretrizes e perseguir de todas as regiões do Brasil. Essas muitas das metas do plano para o cidades oferecerão cursos de formabrasileira, audiovisual. Ele tem quatro eixos. O ção de mão de obra para a indústria particularmente a primeiro relaciona-se ao desenvoldo audiovisual. Com o programa nós vimento de roteiros e formatos de temos o objetivo de produzir cerca chamada “classe obras audiovisuais. Propomos um de 450 roteiros e formatos. PretenC”, vê o acesso aos forte investimento de base no modemos também produzir cerca de mento imediatamente anterior ao duas mil horas de conteúdo, entre serviços culturais da produção de uma obra, quando filmes e séries de televisão. Tudo isso como a confirmação é necessário ter um bom roteiro, ter é indispensável ao cumprimento da um bom formato desenvolvido. O seLei da TV Paga – que fixou obrigade que ela mudou gundo eixo é o da produção de filmes ções de carregamento de conteúdo de patamar. Há, e séries de televisão, em larga escala, brasileiro –, à ocupação do mercado no país inteiro. O terceiro volta-se à de salas de cinema e ao escoamento portanto, a questão capacitação de mão de obra técnica, dessa produção, que precisa chegar à do ganho simbólico para fornecer insumos ao desenvolsociedade brasileira. vimento da indústria do audiovisual, Eu destacaria dois aspectos que gerando empregos de alta renda e de são muito relevantes no desenho do alto valor agregado. Por fim, o quarto eixo do programa programa. Primeiro: vamos produzir conteúdo nas 27 é a expansão do parque exibidor. unidades da Federação. Mais que isso, ativamos o pacEm torno de cada um desses eixos, de cada uma to federativo para a política de cinema e audiovisual: das ações executadas dentro desses eixos, a gente diadezoito governos de estado e dezenove prefeituras de loga com uma série de objetivos que estão fixados no capitais já lançaram ou estão lançando nestes meses plano de diretrizes e metas. Por exemplo: o objetivo editais com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, de fortalecer as produtoras brasileiras independentes. dos estados e das prefeituras de capitais. O esforço No eixo de produção de filmes e séries há uma linha abrange 23 unidades da Federação – só quatro delas de investimento que coloca recursos à disposição das ficaram de fora até o momento. Nunca houve nada distribuidoras brasileiras, para que elas planejem a similar, ainda que alguns desses governos locais já tiocupação do mercado. Temos o objetivo de aumentar vessem investimento em produção de conteúdo audioa participação de mercado do filme brasileiro. Então, visual. Nós aumentamos o investimento daqueles que ao impulsionar a distribuidora brasileira, nós estamos tinham e trouxemos muitos outros para construírem estimulando que ela tenha capacidade de planejar a ações junto ao setor. Investimos noventa milhões de ocupação do mercado nos anos vindouros, de maneira reais do Fundo Setorial do Audiovisual e alavancamos similar àquilo que fazem os grandes estúdios, as maoutros noventa e oito milhões em investimentos dos jors. Elas têm planejado sete, dez, quinze anos de ocuestados e das capitais.

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Brasil Princípios – Qual a importância, para o audiovisual, da recente aprovação do Sistema Nacional de Cultura? Manoel Rangel – O Sistema Nacional de Cultura é muito relevante. Em primeiro lugar, ele representa um esforço de coordenação das políticas públicas de cultura no país inteiro. Além disso, ele estimula a construção de secretarias de cultura e de conselhos de cultura, e impulsiona a destinação de recursos específicos para a área nos estados e municípios. Ele constrói, portanto, um pacto federativo que favorece o desenvolvimento de todas as políticas de cultura. De certo modo o momento que estamos vivendo ainda é de início da implantação do Sistema. A ação que colocamos em marcha este ano, à qual me referi anteriormente, envolvendo estados e prefeituras de capitais, é a maior ação já realizada dentro do Sistema Nacional de Cultura, em termos de investimento casado e de articulação do pacto federativo na produção de conteúdos culturais. Mas acho que o Sistema Nacional de Cultura está destinado, guardadas as devidas proporções, a ter a importância que o SUS teve para a saúde e que a ambição de um sistema nacional tem para a educação. Princípios – O Brasil vive um momento de crescente prestígio e afirmação internacional. Qual a importância do setor do audiovisual para a ampliação daquilo que muitos denominam soft power? Manoel Rangel – É crucial. Quando pensamos a política de cinema e audiovisual, trabalhamos muito fortemente com o desenvolvimento do mercado interno, porque entendemos que esta é nossa alavanca para a projeção e a inserção internacional. Entendemos que a indústria do audiovisual é determinante para a economia brasileira, mas também para a inserção do Brasil na economia internacional. É determinante, ainda, para a circulação, na cena internacional, da nossa cultura, de um modo de vida dos brasileiros. É determinante para que os outros povos possam conhecer melhor o que é o Brasil, o que é o povo brasileiro e quais são os dilemas da sociedade brasileira. Em outras palavras, nossa visão combina um elemento de ordem econômica com outro de ordem cultural. Na primeira chave, partimos da percepção de que vivenciamos um momento de desenvolvimento. Esse momento dá-se em um contexto mundial marcado pelo crescimento da importância do setor de serviços, no qual se inclui o território do entretenimento. A indústria do audiovisual é parte determinante do setor de entretenimento e, portanto, o desenvolvimento dessa indústria no Brasil é decisivo para que possamos trazer para nós – pela mão de empresas brasileiras – um naco

importante da circulação de ativos nessa área. Esse é o aspecto econômico da questão. Mas há também o outro lado da história, que é o da afirmação cultural. Todo o mundo conhece bem a experiência norte-americana. Filmes e séries de televisão dos Estados Unidos são veículos do modo de ser dos estadunidenses, de sua cultura. São veículos de seus produtos, de sua economia e de sua força. Acreditamos que, sem alimentar as mesmas ambições hegemônicas dos Estados Unidos – as quais incluem um componente militarista –, a produção audiovisual brasileira, de filmes, novelas e séries de televisão, será sempre muito importante para que se conheça o que é o aporte da cultura brasileira, para que se projete a imagem do país lá fora, para que nossa imagem seja gerada por nós mesmos, numa troca rica com outras culturas, com outros povos. No entanto, creio que, para além de uma questão nacional, para além de uma questão importante para o desenvolvimento do Brasil e nossa afirmação, esta é uma questão crucial para a humanidade. Vejo a produção audiovisual, e a produção cultural de um modo geral, como a preservação e a renovação de um conjunto de valores, hábitos, experiências que se condensam num modo de pensar, de encarar a vida. Tudo isso pode ser e será determinante em algum momento da trajetória humana sobre a terra, para que a gente seja capaz de encontrar saídas diante das múltiplas crises que a humanidade vive e viverá. A existência de distintas experiências será sempre determinante nessa busca de saídas. Por isso a indústria do audiovisual é importante não apenas sob a ótica nacional, mas também sob a ótica da própria espécie humana. * Fábio Palácio é jornalista, doutor em Ciências da Comunicação (ECA-USP)

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Califado: reino de terror que serve ao imperialismo Lejeune Mirhan*

Um olhar à geopolítica das lutas sectárias no Oriente Médio revela que têm pouco de religiosas e muita coincidência com os objetivos imperialistas de potências ocidentais. A relação formadora da CIA e “rebeldes” lembra o financiamento à Al Qaeda, em seu início, expondo a hipocrisia da “guerra ao terror”

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Internacional

os meses de junho e julho a grande imprensa publicou muitas matérias sobre o “Califado”. Eles se apresentam como ISIS/ISIL e vêm cometendo as maiores barbaridades no mundo. Nesta mesma revista já havia aparecido o tema do “Califado” há cerca de um ano atrás. Agora, em função do que eles chamam da “proclamação” do novo Califado e da auto-investidura de um novo “Califa”, precisamos entender melhor o que vem ocorrendo no mundo árabe e islâmico.

O fundador dessa grande religião monoteísta foi Mohammad, ou Maomé, nascido no ano 570 da nossa era, na cidade de Meca, e morto em 632 na cidade de Medina, ambas hoje situadas na Arábia Saudita. Essas são as duas principais cidades consideradas sagradas para o Islã. A terceira viria a ser Jerusalém, a primeira direção da oração dos muçulmanos, que foi conquistada quatro anos depois da morte do profeta. Maomé foi o que se pode dizer de um gênio. Na política, na administração do Estado, nas questões de organização de um povo. E, principalmente, na criação de uma grande religião para o seu povo áraIntrodução be. Assim como o cristianismo não rompeu a velha aliança do judaísmo, mas estabeleceu uma nova, Pretendemos ajudar os leitores a se esclarecerem com novos valores e com um novo sobre os fenômenos do Islã político, líder – Jesus –, o Islã também não o significado de “Califado”, as raírompe nem com o judaísmo, nem Assim como o zes históricas do Islamismo no sécom o cristianismo. culo VII na Península Arábica com cristianismo não Maomé faz uma mescla de Mohammed (Maomé), seus postuideias e teorias de cada uma desrompe a aliança lados, bem como mencionar os prisas religiões, e mesmo dando novas meiros Califas. do judaísmo, mas versões de episódios e fatos históriPretendemos comentar sobre a cos anteriormente contados de ouestabelece novos primeira partilha feita do mundo tras formas. Maomé não tem papel árabe entre as potências vencedovalores e o novo divino como Jesus. O Alcorão – liras da Primeira Guerra Mundial, líder – Jesus –, o Islã vro considerado sagrado para toque ficou conhecida como Acordos dos os muçulmanos – menciona 25 de Sykes-Picot. também não rompe profetas, sendo Adão e Noé os priÉ nosso objetivo comentar someiros, passando por Jesus e o prócom o judaísmo e o bre as várias correntes existentes prio líder da nova Igreja, Maomé, no Islã moderno e atual, seus princristianismo como sendo seu último profeta. cípios, objetivos, postulados e sua Com a idade de apenas 25 anos força. casa-se com uma viúva chamada Khadija, que era Falaremos sobre o que vimos chamando de “Intambém comerciante. A partir desse momento, ternacional do Terror”, entrelaçando com as lutas conta a história, Maomé afastava-se de sua tribo antiimperialistas da atualidade. – Meca – e adquire o hábito de passar as noites em cavernas próximas, meditando. Eis que, conAo final, apresentamos algumas ta a história, ele teria recebido as mensagens diconclusões retamente de Deus, através do anjo Gabriel (aliás, o mesmo que aparece nas religiões mosaicas tanPara preparar o presente trabalho, lemos em torto para Abrahão, quando este estava sendo testano de 40 artigos de 15 autores, em 11 páginas na Indo por Deus para sacrificar seu filho, quanto para ternet, em sua maioria dedicadas ao Oriente Médio, Maria quando anuncia para ela que terá um filho e referenciadas na bibliografia final. ainda que fosse virgem). Daí em diante, praticamente tudo foi registrado Os primórdios do Islã e os primeiros pela história documental (diferente do judaísmo e Califas cristianismo, em que poucas coisas e fatos são documentados). Diz-se que, durante 23 anos, Maomé Os árabes da Península Arábica não cultuavam recebeu os versículos do Alcorão (chamados de Sunenhuma religião monoteísta. Ao contrário, eram ratas) e os repetia aos seus seguidores que imediatapoliteístas. Conviviam com uma pequena comunimente anotavam. Posteriormente à sua morte, todas dade de judeus, como em todo o mundo árabe – e o essas Suratas foram organizadas e transformaram-se faziam em paz –, e o cristianismo praticamente não no livro chamado Al-Corão sagrado. havia chegado àquela parte do mundo.

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Os quatro primeiro Califas

Este último era primo do profeta e seu genro, depois, casou-se com a sua filha Fátima. Desde que Maomé morreu em 632, uma parte Após a morte de Maomé, em 8 de junho de 632, significativa da comunidade islâmica já achava que abre-se uma grande disputa na comunidade islâmiAli deveria ser o sucessor do profeta. Isso inicia uma ca para saber quem seria seu sucessor. Muito paredisputa e uma divisão na comunidade que são sencido com a religião cristã nesse sentido quando esta tidas até hoje, entre os sunitas e os elege um novo papa, o processo su“xiitas”, que significa “partidários cessório é quase dinástico e ficava de Ali”. nas mãos de poucos. O Califado O filho primogênito de Ali, Existiram apenas quatro CaliHassan, não quis assumir o cofas, chamados “bem-orientados”. governa sob a mando do Califado. A indicação São eles: O primeiro foi Abu Bakr, religião islâmica, deveria cair sobre seu irmão Hustio do profeta, que governou pousein que, no entanto, é sacrificado co tempo, de 632 até 634. Esse foi com o Corão barbaramente, tendo virado o seo único dos quatro que morreu de servindo de nhor dos mártires do Islã e adoramorte natural. Todos os outros três do pelos xiitas até os dias atuais. seriam assassinados. Constituição, No dia de sua morte os xiitas, que O segundo Califa foi Omar a Sunna com devem representar apenas 20% Ibn Al Khattab, que governou dez dos cerca de 1,6 milhões de muanos, de 634 até 644. Foi o período as tradições e çulmanos existentes em todo o de grande expansão do Islã como os costumes de mundo, realizam as maiores mareligião, e sob o seu Califado Jerunifestações do mundo, chamado salém foi conquistada. O terceiro Maomé e a sharia, de “dia do martírio”. Só no sanCalifa foi Othman Ibn Affan, que como se fosse o tuário em sua homenagem, no governou de 644 até 656. Por fim, o Irã, 20 milhões de pessoas partiquarto e último Califa, Ali Ibn Abi Direito islâmico cipam todos os anos. Thalib, governou entre 656 e 661. Xiitas na celebração do martírio do imã Houssein no Barein

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Wikicommons


Internacional O significado de Califado

Aqui devemos registrar, de forma resumida, a principal diferença, em termos de doutrina, entre sunitas e xiitas. Tanto sunitas como xiitas entendem Podemos dizer que Califado é uma espécie de forde forma clara – e nisso são praticamente unânimes ma de governar os humanos sob a religião islâmica. O – que as revelações divinas encerram-se com a morte objetivo do Islã – governar a comunidade muçulmana do profeta Maomé. Mas, para os xiitas, eles levam com base em regras do Alcorão sagrado – dever-se-ia em conta a existência dos chamados imãs, homens imediatamente estabelecer um Essábios descendentes do profeta tado islâmico, governado exclusiva(usam turbante sempre preto). Os mente por um Califa ao qual todos O acordo Sykesxiitas não consideram os Califas deveriam ser fiéis. O Corão seria como os sunitas. uma espécie de Constituição. Picot (1916) dividiu Aqui é importante também Os muçulmanos seguem mais regiões árabes mencionarmos o conceito de jihad. um livro. Chama-se Sunna, ou seja, Quase sempre traduzido por “gueras tradições e os costumes do proentre potências ra santa”, o conceito nada tem a feta Maomé, que foram sistematiocidentais. ver com guerra. Ele guarda uma rezados na forma de livro e deveriam lação direta com “empenho” e “esser seguidos por todos. Por fim, a Inglaterra, forço” individual e interior de cada sharia, que é o conjunto de leis e reFrança e Rússia muçulmano na busca de uma fé gras que devem ser observadas por perfeita. Maomé mesmo menciona todos os muçulmanos. É como se abocanhariam na sunna duas jihads. A primeira, à fosse o Direito islâmico. partes importantes, qual chamou de “Maior”, é mais Assim, o Califado, nesse conteximportante, já definida acima. A to inicial da implantação da religião mas Lênin segunda, à qual chamou de “Meislâmica na Península Arábica, podenunciou o nor”, seria a expansão e difusão do de ser definido, de forma resumiIslã entre outros povos. da, como a única forma de governo segredo aprovada pela teologia islâmica.

Acordos de Sykes-Picot

Aqui damos um salto gigantesco na história, pois não é objeto deste trabalho contar a história do Islã. O que temos de fato é que o islamismo virará um grande império, governado sempre por Califas. Expande-se imensamente por três continentes e provavelmente deve ter sido o maior que a humanidade conheceu em termos de área geográfica dominada. Chegamos ao início do século XX. Particularmente a partir da Primeira Guerra Mundial, eclodida em 1914, que opunha

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os aliados França, Inglaterra e Rússia (chamado de Tríplice Entente) contra a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano (turcos). Aos que gostam de história e de cinema, recomendo o filme Lawrence da Arábia, baseado na vida do escritor T. E. Lawrence, inglês (1888-1935), autor do livro famoso Os sete pilares da sabedoria. O filme foi agraciado com sete prêmios Oscar e tornou-se um clássico. Lawrence era um oficial inglês baseado no Cairo e solicita deslocar-se para a Península Arábica para ser um elemento de ligação com líderes árabes tribais para enfrentar o Império Otomano. Thomas Edward Lawrence vai se arabizando a cada dia. Mantém-se ao lado dos árabes, faz-lhes promessas em nome da Inglaterra – as quais nunca iria cumprir. Sente-se traído e afasta-se da vida pública. Nesse contexto, um acordo iria mudar completamente a história da região para sempre. François Georges Picot, representando a França e, do outro lado, representada por Mark Sykes, a Inglaterra, com o apoio da Rússia, celebram o chamado Acordo de Sykes-Picot no dia 16 de maio de 1916, antes mesmo do término da Primeira Guerra. Os bolcheviques, quando tomam o poder na Rússia em outubro de 1917, denunciam esse acordo e trazem seus termos a público, pois era secreto. Trata-se da completa divisão de todo o Oriente Médio entre as potências vitoriosas da época. Uma nova era colonial se abriria naquele momento. Os principais termos desse acordo foram referendados no Tratado de San Remo, de 26 de abril de 1920, e pela então Sociedade das Nações em 24 de junho de 1922. Grosso modo, a Inglaterra abocanha a Jordânia, Iraque e a Palestina, enquanto a França ficaria com a Síria, Líbano e Sudoeste da Turquia. Finalmente, a Rússia fica com a Armênia e o Curdistão. Até a Itália posteriormente seria agraciada com ilhas do mar Egeu. A região mencionada, para os árabes chamava-se Al Sham (O Levante). Era uma vasta região que compreendia os seguintes países da atualidade: Síria, Líbano, Jordânia, Iraque, Palestina, Chipre, Sul da Turquia. Toda essa região falava o árabe e tinha uma cultura comum fazia séculos. A partir dos acordos de 1916, e mais precisamente de 1920 quando assina-se o tratado de final da Primeira Guerra, as potências imperialistas começam a desenhar linhas imaginárias de fronteiras, criando países que nunca existiram de fato, mas eram apenas nomes de regiões.

O surgimento do fundamentalismo islâmico Há duas grandes correntes fundamentalistas do Islã na atualidade. A primeira chama-se wahabista.

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Esta foi fundada no século XVIII por Mohammad bin Abi Al Wahhab, de onde deriva a corrente, com a ajuda e o incentivo dos ingleses. Este dizia pregar a pureza do Islã, os seus fundamentos e princípios. Procura resgatar os princípios básicos do monoteísmo islâmico baseados exclusivamente no testemunho da fé e na unicidade de Alá, o seu Deus. Essa corrente é hegemônica na Arábia Saudita. Esta, por sua vez, financia as derivações islâmicas que se materializam em especial na Frente Al Nusra na Síria e Frente Islâmica, que praticam as maiores barbaridades contra aquele povo milenar. Uma segunda corrente fundamentalista é a chamada Irmandade Muçulmana, que é forte no Egito, onde surgiu em 1928, organizada pelos intelectuais Hassan El Banna e Sayed Qutb. Ela possui ramificações em vários países árabes. O primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, pertence a essa corrente, bem como o Hamas palestino. Ela prega a volta do Califado islâmico. Seu grande lema pode ser assim resumido: “Deus é o único objetivo. Maomé o único líder. O Corão é a única Lei. A Jihad é o único caminho. Morrer pela Jihad de Deus é a nossa única esperança”. Por essas orientações vemos o quanto são fundamentalistas. E usarão todas as armas ao seu dispor, mesmo o terrorismo, para alcançar seu objetivo.

O novo “Califado” O mundo foi pego de surpresa com a proclamação de um novo Califado no final de junho. E seu novo “califa” foi indicado como sendo Abu Bakr Al Baghdadi, nome em homenagem ao primeiro Califa bem orientado. Seu nome verdadeiro é Ibrahim Awwad Ibrahim Ali Al Badri Al Samarrai. Não se sabe muito a seu respeito. Fala-se que seria doutor em Ciência Política pela Universidade de Bagdá. Desde 2003 quando os americanos ocuparam o Iraque a partir de abril, Ibrahim passou à luta da resistência. Fundou no Iraque uma “filial” do grupo terrorista Al Qaeda do então Osama Bin Laden. O nome adotado foi Estado Islâmico do Iraque e do Levante (cuja sigla em inglês correta é ISIS e não ISIL). Essa organização adota práticas terroristas. Sistematicamente divulgam vídeos na Internet que mostram as barbaridades que seus militantes cometem, em nome de Alá. Aqui vale registrar que a grande maioria dos sunitas e xiitas não concorda com essas práticas, às quais considera avessas aos preceitos do Islã. De fato, a religião islâmica é extremamente tolerante, apesar da imagem criada pela imprensa-em-


Internacional Sipa PressRex

O líder do Estado Islâmico Abu Bakr al-Baghdadi aparece em uma mesquita em Mosul, Iraque em sua primeira aparição pública

te obrigados a converterem-se ou presa e mídia internacional. MosCriou-se imagem morreriam. É a volta da barbárie. tram muçulmanos como sendo E tudo isso com apoio dos Estados terroristas, seja em filmes, artigos, distorcida dos Unidos, como veremos. romances. Criou-se assim uma muçulmanos. O imagem distorcida dos muçulmanos. A religião islâmica determina A luta anti-imperialista Islã determina a que tanto judeus quanto cristãos no mundo Árabe proteção a judeus devem ser protegidos sobre o império islâmico. Não se aceita violência Com as revoltas árabes após e cristãos sob o que não seja para a autodefesa. 1920, cria-se no Oriente Médio império islâmico. Nas localidades que esse agruuma corrente nacionalista árabe pamento terrorista controla, a muito forte – que vai influenciar a Não se aceita sensação é de que se volta no tomada de poder no Egito em 1952, violência que não tempo, ao século VII, da época de sob liderança de Gamal Abdel NasMaomé. É imediatamente proibiser, do movimento dos jovens ofiseja autodefesa do o consumo de cigarro e álcool e ciais. Essa corrente também acaas mulheres devem passar a usar baria por defender a laicidade do imediatamente o véu que lhes coEstado, coisa muito rara na região. bre todo o rosto. A legislação passa a ser a sharia e A malfadada “primavera árabe” foi exemplo proclama-se o Estado Islâmico. Sem Constituição e dessa luta política. De um lado, forças conservadosem qualquer democracia participativa. ras querendo manter tudo como estava e, de outro, Esse agrupamento terrorista, que se articula certas alianças informais de correntes progressistas, com a Frente Al Nusra na Síria e com a Al Qaequerendo criar um novo mundo árabe, livre da doda no Afeganistão, entre outros grupos terroristas, minação imperialista. pretende ter a hegemonia política não só na região Tenta-se há quase quatro anos derrubar o presichamada de El Sham (Levante), mas uma hegedente da Síria, Bashar Al Assad, que, com seu exérmonia mundial. Um governo islâmico planetário. cito árabe, resiste e vem vencendo todas as batalhas. Cristãos, seguidores de outras denominações ou Bashar, como que para calar a boca do imperialismo, mesmo pessoas sem religião, seriam imediatamenfoi reeleito em 3 de junho passado para um mandato

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de sete anos com 86% dos votos válidos dos sírios, Forças Armadas iraquianas da época de Saddam, geem eleições livres e limpas atestadas por observadoneral Izaat Al Duri, sunita e ex-baatista, faz aliança res internacionais. com os sunitas e terroristas do ISIS para derrubar É antiga a aliança dos EUA e a sua agência de um governo eleito democraticamente de um primeiinteligência, a CIA, com grupos fundamentalistas ro-ministro xiita. árabes de orientação sunita. Em 1979 foi exataDessa forma, no bojo de uma grande luta polímente a CIA que montou e treinou os terroristas tica, formam-se basicamente dois grandes campos: da Al Qaeda, no Afeganistão. Isso porque a URSS De um lado, os que defendem a soberania de seus havia ocupado militarmente esse países e possuem concepções anpaís. Na imprensa-empresa estati-imperialistas e, de outro, os que No bojo da luta dunidense esses terroristas eram são aliados dos EUA, qual seja, tochamados de “guerreiros da liberdos os agrupamentos terroristas política, há os dade” (sic). O que resta dessa orem ação na região. que defendem ganização terrorista hoje pode-se São objetivos da CIA no Oriente dizer que é uma herança da guerMédio: 1. Afundar esse mundo em a soberania de ra fria que, em tese, terminou em guerras sectárias; 2. desestabilizar seus países com 1991. governos com posições contra os Neste momento no mundo EUA; 3. redividir as fronteiras do concepções antiárabe a única lógica por trás dos mundo árabe, criando Miniestados -imperialistas e EUA, Arábia Saudita e Israel de sectários, em uma nova espécie de apoiarem esses agrupamentos terSykes-Picot (CHIN). Tais objetivos há os aliados dos roristas sunitas é exatamente para coincidem com o do ISIS. EUA, sendo todos enfraquecer a Síria, o Iraque e o Irã, além do Partido Hezbolláh, do Conclusões iniciais os agrupamentos Líbano. É o que vem sendo chaterroristas em ação mado de “arco da resistência” ao Sabemos de muitos projetos imperialismo. Os objetivos estrados EUA e seu braço de inteligêntégicos dos Estados Unidos coincia a CIA, para o mundo árabe. O cidem claramente com os do ISIS e dos terroristas mais forte hoje é tentar dividir a Síria em três reem geral (WHITNEY). giões, da mesma forma que querem dividir o IraVemos hoje no Oriente Médio um profundo vaque. Este seria uma região sunita, outra xiita e o zio político. Os Estados Unidos perderam as duas Curdistão ao norte. A extrema-direita estadunidense (Tea Party, reguerras em que se meteram na região. A do Iraque, publicanos, neocons etc.) embarca nesses projetos e de quem foram expulsos pelo atual primeiro-minisé apoiada, lamentavelmente, por parte de uma dita tro Nuri El Maliki, que não aceitou a imposição de esquerda, tanto no Brasil como no mundo. Temos completa imunidade jurídica para os quase cem mil dados concretos de que os terroristas do ISIS vêm soldados que lá estavam. No caso do Afeganistão, as sendo treinados pela CIA na cidade jordaniana de tropas estadunidenses devem deixar o país no próxiSafawi desde 2012 para que possam combater os mo ano, sem serem vitoriosas. governos de Bashar e Maliki, apresentando-se como Não podemos aceitar o que a imprensa-empre“rebeldes” (ESCOBAR). sa insiste em dizer e confundir: o conflito regional Hoje, instalar o tal “Califado Islâmico” visa claé exclusivamente religioso. Tenho dito, é verdade, ramente a derrubar Maliki do Iraque. O posicionaque existem componentes religiosos, mas a luta é mento de seu governo hoje não obedece a ordens de essencialmente política. De um lado, contra a doWashington, é amigo do Irã, recusou a exigência dos minação imperialista. De outro, lutar contra Israel, sauditas de que seu governo teria que ter sunitas e, o um enclave sionista e neocolonial no coração do mais importante, venceu eleições democráticas. Ou mundo árabe. seja, vamos vendo que o discurso estadunidense de Poderíamos dar aqui vários exemplos que com“levar democracia” é verdadeira falácia. Vamos venprovam isso. Em 2003, os xiitas do Iraque apoiaram do ainda que seu discurso desde 2001 de “combater a ocupação pelos EUA do país, para derrubar o goo terrorismo” é pura mentira, pois os EUA alimenverno de Saddam Hussein, um sunita. No Líbano, tam, financiam, treinam terroristas o tempo todo. ao contrário, os sunitas estão basicamente em uma Pagarão um elevado preço por isso os EUA e seus coligação política mais vinculada ao campo ocidenaliados europeus. tal. Agora mesmo no Iraque, o ex-comandante das

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Internacional Nossas conclusões são claras: o ISIS terrorista que a mídia carinhosamente chama de “rebeldes” (sic) possui três grandes objetivos no mundo árabe: 1. Destruir a soberania dos Estados da Síria e do Iraque; 2. enfraquecer todos que forem aliados do Irã; e 3. dividir a Síria e o Iraque em três pequenos Estados sectários (MOON OF ALABAMA/ GREAVES). Vimos recentemente as sanções que tanto os EUA e a União Europeia impuseram à Rússia. Em um momento que Israel perpetra os maiores massacres contra o povo palestino, que matou maior nú-

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mero de palestinos – quase dois mil – e mais de 300 crianças, ao invés de o mundo impor duras sanções e punições contra Israel, a punida foi a Rússia. Há algo de errado nesse mundo. * Lejeune Mirhan é sociólogo e assessor político e sindical do PCdoB. Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo (Brasil). Escritor, arabista e professor membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa, Membro da International Sociological

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2. Livros de apoio ARMSTRONG, Karen. Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. JALAL, Ayesha. Combatentes de Alá. São Paulo: Larousse, 2009. LEWIS, David Levering. O Islã e a Formação da Europa. São Paulo: Amarilys, 2010. SALINAS, Samuel Sérgio. Islã: esse desconhecido. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009. Observação: a imensa maioria destes artigos citados foi traduzida pelo coletivo de tradutores denominado Vila Vudu, ao qual agradeço. Os da página Oriente Mídia foram traduzidos pela equipe do portal.

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Elementos de reflexão sobre a conjuntura política colombiana: paz, governo, sociedade e Constituinte Pietro Alarcón*

Ato de posse de Juan Manuel Santos. O presidente colombiano venceu o segundo turno com o voto pela continuidade dos diálogos de paz e a solução política do conflito social e armado.

Em curto prazo, para o novo governo da Colômbia, o objetivo é a construção da Unidade, em torno de uma Frente Ampla pela Paz e a partir do aprofundamento dos diálogos entre os diversos setores do país comprometidos com o projeto de uma paz duradoura e estável

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s mudanças democráticas são usualmente o resultado de uma confluência de fatores, que podem ser sintetizados na incapacidade de uma classe dominante e autoritária de prosseguir no seu exercício hegemônico de poder, tanto político quanto econômico, jurídico e ideológico, e concomitantemente no aumento considerável da consciência popular que se projeta numa elevação da capacidade

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de resposta política, identificando objetivos táticos e estratégicos, dentro de uma trajetória consistente e persistente de ações, tanto no marco institucional quanto no extrainstitucional. Sob essa premissa as peculiaridades da situação da Colômbia constituem um pano de fundo paradigmático. Destarte, o presente artigo é uma breve reflexão sobre o momento político e jurídico do país, que leva em conta algumas das variáveis que inci-


Internacional dem numa possível mudança em favor da paz, do direito à vida e do desenvolvimento de um governo democrático e popular.

guerra, tocando o modelo econômico de acumulação da riqueza social e reorientando o gasto público. Tendo em vista a evolução do processo de paz e a postura governamental do momento, as perspectivas O processo de paz de uma solução política ao conflito social e armado dependemda conjugação de uma sorte de fatores que Dentre outras linhas de exploração possíveis da se entre-cruzam com vários inimigos e fragilidades. realidade colombiana, o centro de gravidade político Dentre os primeiros fatores, há que se ressaltar, é constituído pelas conversações de paz em Havana e por um lado, a oposição franca dos setores militaristas o novo quatriênio de governo de Juan Manuel Sanno contexto das Forças Armadas. A visão de controtos. Neles se concentram debates le territorial e incremento das ações como o da natureza do poder atual bélicas – que gera constante pressão e daquele que se pretende instalar sobre o governo para que, mesmo ​Uma mudança na chamada etapa de pós-conflito. dialogando, os combates continuem da vida nacional Logicamente que nessa trilha, por – é reforçada pelo importante papel derradeiro, se ausculta também implica um conjunto que lhes é assignado no terreno geouma desejável nova relação entre os político. Destaque-se, nesse sentido, de transformações: indivíduos, membros do povo, e o a realização neste mês de agosto na Estado, com fundamento na suprecidade de Cali do VI Foro de Inteliuma abertura de macia do primeiro sobre o segundo, gência e Segurança Hemisférica, pacanais de expressão afastando a arbitrariedade e a viotrocinado pelas Forças colombianas lência como forma de resolução de em conjunto com o Comando Sul do povo soberano, conflitos e de ação político-estatal. dos Estados Unidos (3). a efetivação das Vale lembrar que uma reflexão Por outro lado, existem setores sobre a situação do país implicivis interessados na manutenção liberdades públicas ca reconhecer a existência de um da guerra como grande negócio e e dos direitos conjunto de condições históricas como tática de manutenção de pobastante peculiares, dentre elas: o der, tanto nos âmbitos locais e resociais, o fim do desenvolvimento de uma ação militar gionais como no nacional. paramilitarismo e patrocinada ou permitida pelo Estado Adicione-se a isso que as debiliatravés das suas forças armadas e da dades do processo se inscrevem na da violência estatal utilização de grupos à margem da legaprópria política de paz do governo como forma de lidade para minar as bases da organiatual. Trata-se de uma combinação zação sindical, camponesa, estudantil, de retórica midiática, com alardes realizar a política dentre outras, com fundamento no conde mudanças no plano internacioceito de inimigo interno (1); a forma de nal reaproximando o país dos viziluta armada com expressão política que avançou de autonhos – mas que aplica nacionalmente o plano de ação defesa camponesa a movimento insurgente (2); e, quanconjunto com os Estados Unidos (4) –, conversações to ao contexto geopolítico, ingerência permanente dos na mesa de diálogo, incentivo ao uso da força como Estados Unidos como elemento de balanço e equilíbrio no mecanismo de contenção da ação cidadã e incapacimeio das crises estruturais do sistema, suporte de apoio aos dade política para plasmar um cessamento bilateral governos diante dos avanços populares em várias etapas da das ações armadas dos grupos em combate. vida nacional e, finalmente, ponto de apoio territorial para Analisemos esta visão, separadamente, no tópico controle estratégico da América do Sul. a seguir. Daí que uma mudança da vida nacional impliO governo de Santos que um conjunto de transformações, as mais determinantes, uma abertura de canais de expressão do Tem-se observado que historicamente na Copovo soberano, a efetivação das liberdades públicas lômbia vigora um regime político de democracia ule dos direitos sociais, e o fim do paramilitarismo e da trarrestringida, que é caracterizado pela ausência de violência estatal como forma de realizar a política. Os mecanismos de participação política que permitam o diálogos entre a insurgência e o Estado se inscrevem controle popular da ação governamental; e também nessa lógica, partindo da discussão de uma agenda por um Estado, agressivo e violento, expressão de uma e da elaboração de um plano de possíveis soluções classe configurada, de um lado, pelos latifundiários e, aos problemas diagnosticados como causadores da

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de outro, por segmentos modernizadores da econoSantos venceu no segundo turno com o sufrágio mia fortemente aliados a capitais transnacionais. consciente de uma grande parcela da esquerda que O regime político entra em crise pela incapacidanão teve dúvidas sobre o que representava o cande de dar respostas às exigências de uma sociedade didato do ex-presidente Uribe, marcadamente de que passou a se organizar lutando pela satisfação franco retrocesso para a manutenção dos diálogos das necessidades públicas, alcançando níveis ime aportou mais de 2 milhões de votos. Importante portantes de consolidação, organicidade e presença ressaltar que o voto não pode ser interpretado conacional e internacional, especialmente nas áreas mo fator de respaldo ao modelo econômico e nem política, sindical e comunitária. Particularmente na sequer à política de paz de maneira integral. O voto Colômbia, a luta social no campo derivou em formas foi pela continuidade dos diálogos e sua ampliação de resistência armada que originaàs demais guerrilhas, constituinram o atual movimento insurgente. do-se num episódio que valoriza Sem pretender esgotar o assunum passo tático e estratégico dado O regime político to, há décadas observa-se uma crino sentido de seguir com a espeentra em crise se sistêmica governamental, que se rança por uma paz com justiça soexpressa, por um lado, na ausência cial, que pretende contribuir com pela incapacidade de programas concretos de governo as mobilizações e a forte pressão de dar respostas dos partidos tradicionais que sejam popular para que essa esperança se capazes de acolher as expectativas frutifique. às exigências de populares, refletindo-se numa altísA esquerda retrocedeu nas eleiuma sociedade sima abstenção eleitoral e em reivinções parlamentárias, mas recudicações permanentes nos setores perou muito terreno no segundo que passou a se de economia e serviços. Por outro turno com a aliança entre a União organizar lutando lado, são notórias as dificuldades Patriótica e o Polo Democrático e para exercício da oposição política nesse contexto votou pela solução pela satisfação em virtude das constantes ameaças política e não militar ao conflito sodas necessidades paramilitares e a ausência de garancial colombiano. tias de segurança. Importante menNa simbiose entre retórica de públicas, alcançando cionar que há, ainda, um número paz e programa de governo, Santos níveis importantes expressivo de legisladores que são aposta num reformismo com pouréus de processos em andamento cas pretensões transformadoras. de consolidação, a partir de investigações feitas pela Habilidosamente, o Executivo tenorganicidade e parapolítica – cumplicidade entre chefes ta apresentar-se como alternativa das bandas armadas paramilitares, o programática confiável sob a visão presença nacional narcotráfico e os membros do Congresso e de uma terceira viaà colombiana. e internacional nas do Executivo no governo de Uribe. Na verdade, a chamada AgenNesse marco, as visões das elida Interna 2019 outorga privilégios áreas política, sindical tes do país sobre a paz e os comproaos seguintes setores econômicos: e comunitária missos para uma reformulação do “minerador-energético, biocombustíveis, Estado evidenciaram-se na última petroquímico, gestão ambiental, agrocampanha eleitoral. Um discurso pesqueiro, agroindustrial e agropecuário, de extrema agressividade é o signo de segmentos turístico, de comunicações e software. Nesse conjunto joga um comprometidos com a manutenção e incremento papel central o minerador-energético, chamado a ser a chave da guerra cuja raiz é o paramilitarismo arquitetado do modelo de acumulação no imediato futuro. As condições financeiramente há alguns anos com recursos oriunsão favoráveis, assim, a uma reprimarização da economia, dos do narcotráfico. E um discurso neoliberalizante com efeitos negativos pelo incremento do deslocamento da poque, sem renunciar ao enfoque militar, se camufla pulação rural, a diminuição do emprego, a redução da oferta numa retórica de impacto: defesa da produção nacional, de alimentos, a exploração irracional dos recursos naturais e ou seja, impossibilidade de discutir os acordos com a afetação do ecossistema”(5). os Estados Unidos no Tratado de Livre Comércio; A oligopolização da questão minerador-energéequidade, luta contra a pobreza, modernização do Estado, tica, flexibilizada durante o governo de Uribe, conreconciliação nacional, mas que mantêm o mesmo traseguiu que três empresas repartam a exploração do tamento de favorecimento ao sistema financeiro e setor: AngloGoldAshanti da África do Sul, Greystar aos controladores da produção. do Canadá e Muriel Mining dos Estados Unidos.

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Internacional Assim, Santos caminha entre as pressões populares, as negociações em Havana, as investidas do militarismo e as exigências do setor que representa – um segmento da oligarquia transnacionalizada que se inclina por não abrir o Estado a novos atores, senão preservá-lo e colocá-lo à sua disposição para a modernização do capitalismo na atual fase da globalização neoliberal.

O movimento social e a luta pelo direito à paz A luta social vive um momento importante em vários âmbitos, particularmente nas iniciativas dos camponeses, nas greves do setor judicial e da saúde, nas lutas estudantis que se mantêm nos grandes centros urbanos, nas expressões pela paz, pela soberania alimentar, contra o desemprego e a carestia. Nessas manifestações, se distingue a rejeição ao descumprimento dos acordos assinados pelo governo em 2013 e,ao mesmo tempo, uma fórmula de pressão constante sobre o Executivo para que avance na execução de políticas públicas objetivas. Veja-se com calma: no ano passado houve, segundo um informe do CINEP intitulado Programa por la Paz, um período de auge da luta social e da mobilização popular (6). No total, foram registrados 1027 protestos que, segundo o Instituto, conformam o maior leque de lutas sociais desde 1975. As causas objetivas deste aumento considerável são essencialmente as seguintes: a) a resistência ao modelo econômico de abertura de importações de extrativismo quem tem sua origem nos compromissos do Estado nos marcos dos Tratados de Livre Comércio (TLC); b) a rejeição à maneira como o Estado trata o conflito social, sobre a base da violência e da militarização da vida nacional; c) a relevância das dimensões cultural e política na luta social (7). Neste marco de ações do campo popular, deve-se registrar a consolidação de processos de organização como a Marcha Patriótica, o Congresso dos Povos, o ressurgimento da União Patriótica e o início (em julho deste ano) da Frente Ampla pela Paz. Tratam-se de estruturas orgânicas relevantes que corroboram a diversidade e complexidade da luta pela unidade. Abre-se caminho para uma ação coordenada nos vários âmbitos da ação popular, com fundamento na construção de uma alternativa real de poder. Entretanto, uma das fraquezas reconhecíveis do processo de paz é que ainda os setores populares não se articulam o suficiente para uma defesa organizada, de maneira a interferirem no conteúdo das negociações, isto é, como aponta Jairo Estrada, ainda

não se imprime aos diálogos uma condição de elemento necessário para uma nova realidade. Expõe o professor colombiano que a única garantia para que os diálogos e negociações com a insurgência cheguem a um feliz termo se encontra na apropriação social do processo na forma do movimento com capacidade dissuasiva perante as tentativas e ameaças de ruptura e com conteúdos que tenham como propósito transformações para a democratização real em todos os campos da vida social, mas que em apoios ou amplas alianças pragmáticas e transitórias baseadas no abstrato propósito da paz, as quais – dada a correlação de forças existentes – podiam se converter em fato recorrente. A difícil tarefa do campo popular consiste justamente em que ao tempo em que consiga isolar e derrotar o militarismo e a ultradireita, construa seu próprio projeto demarcado e claramente diferenciado do poder de classe em posições de governo(8). Em que pese esta constatação, a proposta de uma Assembleia Constituinte que consolide os possíveis acordos de justiça social para a paz democrática pode dinamizar esse projeto. A seguir abordaremos brevemente o tema.

As possibilidades de uma Constituinte A discussão que está em pauta é a de um processo constituinte com profunda responsabilidade democrática, como formalização que converteria as aspirações populares em marco teórico-prático, regulador da economia, da política e da juridicidade, no meio das contradições de uma sociedade plural, que isole os ferrenhos inimigos de qualquer mudança social. Trata-se de ganhar uma Assembleia Nacional Constituinte de arraigo popular, que outorgue um suporte aos possíveis acordos de paz, orientando de forma dirigente e programática a ação do Estado e de um governo comprometido com as transformações para a justiça social.

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Seu resultado, a nova Constituição, teria legitique determine a consolidação de mecanismos que midade para regular a concorrência de atores políconsolidem a soberania popular. ticos, nos marcos da civilidade, da tolerância, com Entretanto, como salientaZubiriaSamper, exisbase principiológica em valores e fins resultantes tem objeções e críticas a esse processo no país, como dos processos de diálogo e das discussões amplas e resultado de uma análise da conjuntura colombiana, democráticas sobre os temas nacionais, com um esnas hipóteses: a) a correlação de forças atual não favoretatuto para a oposição política, autênticas garantias ce um processo pelo motivo de uma possível direitização do para a ação participativa sem a ameaça paramilitar país; b) é uma proposta irrealizável nas condições atuais; de passado e do presente, estabelecendo uma estruou por razões de ordem conceitual: c) trata-se de um tura político-administrativa para a concretização dos “culto” ao “movimentismo”e à autogestão das massas; direitos sociais e o reconhecimento das liberdades d) culmina na legitimação do “constitucionalismo burpúblicas. guês”(11). Certamente, é possível constaA questão referente a se tratar Certamente, é tar que na América Latina as passade um culto ao movimentismo não gens de um Estado de fato a outro parece razoável. A luta social eleva possível constatar de democracia representativa de a consciência de classe e aquilo que que na América corte liberal tiveram a insígnia de se denomina movimento popular um processo constituinte. É o caso é a ação prática do povo transforLatina as passagens do Brasil, por exemplo, em 1988. mada em força social. Importam as de um Estado Logo, os processos de mudança imdimensões dessa força, e também o postos pela Revolução Bolivariana grau de consciência sobre os objetide fato a outro na Venezuela, a Revolução Cidadã vos de mudança da sociedade e do de democracia no Equador, bem como o governo Estado (12). popular da Bolívia também têm Sob outro aspecto, o processo representativa sido emoldurados por processos constituinte não legitima necesde corte liberal constituintes caracterizados pela sariamente certo constitucionalismo promulgação de textos que estabeburguês. O constitucionalismo cotiveram a insígnia lecem as bases de uma democracia mo movimento político e jurídico de um processo participativa e alicerçadorade sigsugere o reconhecimento do poder nificativas reorientações do gasto popular para a criação de um esconstituinte. É o público em favor da efetivação dos tatuto fundamental que contenha caso do Brasil, por direitos sociais. um elemento instrumental, a seNesses termos, a Constituição paração de funções e um elemento exemplo, em 1988 passa a ser o documento que estafinalístico, a efetivação dos direibelece as regras do jogo político, e tos fundamentais (13). O procesos diversos atores concorrem para direcionar a socieso constituinte não pode ser um processo pautado dade política em um ou outro sentido. O texto conspelas elites, tampouco deve ser tratado de uma retitui um ponto de chegada e de partida, uma prounião de intelectuais para a redação de um texto a posta de soluções e coexistências possíveis, que nega ser outorgado. Trata-se de um processo vivo e de o imediato passado. Assume-se um compromisso incalculável avanço para o aprendizado para o moconstitucional a partir de uma garantia de legitimivimento popular. dade dos atores sociais, um modelo de vida para a Resulta de um reducionismo fatal para as aspicomunidade política (9). rações sociais eliminarem a possibilidade de novos Nos países de governo popular, ao contrário da patamares de democracia com base em que os suvisão clássica do poder constituinte, logo da promulportes jurídicos estariam contidos num documento gação da Carta se fortalece um poder constituinte difuconstitucional que consolida a democracia burguesa. so, que se subordina ao poder constituído em função O importante é o processo de discussão dos direitos de mandatos concretos, que vigia e controla a realidas pessoas, sua vocação para lutar por eles no pano dade democrática da sociedade (10). institucional e extrainstitucional e, logo, torná-los Na Colômbia, a possibilidade de estabelecer um evidentes. governo democrático-popular poderia passar por A questão de um possível rumo à direta sugere um processo constituinte na diretriz de ser o suque a sociedade permaneça nas condições atuais. porte jurídico da paz, com fundamento no respeito Todavia, esse rumo seria tomado em caso de uma à dignidade da pessoa humana e à justiça social e Constituinte que viesse a manter tudo como está ou

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Internacional Arquivo Marcha Patriótica

“Paz com justiça social e Constituinte Nacional” são algumas das reivindicações que o povo colombiano tem expressado em suas manifestações – organizadas pela Marcha Patriótica e outros movimentos. Plaza Bolívar em Bogotá/CO, 2013

a retrocedermos em matéria de direitos. Se for assim, a classe no poder não tem na Constituinte uma necessidade política. Para que abrir uma discussão sobre uma nova Constituição se basta uma reforma a partir do Congresso para retroceder no que já existe? Daí que falamos em ganhar popularmente uma Constituinte. A riqueza está no processo de edificação da sua normatividade, isolando os inimigos da mudança e tão logo promulgada utilizar seu texto como um arsenal de direitos e plataforma de luta. A Constituinte é uma proposta para mudar para frente impondo um novo marco político, econômico e jurídico, sua instalação e conformação implica um predomínio da resistência à fascistização do país e a derrota do projeto retórico que nada acrescenta a uma nova realidade. Trata-se de trabalhar as bases valorativas e finalísticas de uma nova ordem.

A Frente Ampla pela Paz Embora, como temos afirmado, se advirta que na Colômbia se avança na continuidade de um processo iniciado há alguns anos e que teve no ano 2013 um marco importante de referência, a possibilidade de modificar a correlação de forças, implica-se avançar num terreno de unidade política para a paz e a justiça social, isto é, uma nova qualidade da luta política popular com participação de todos os setores e sobre a base de uma paz com compromissos e agenda transformadora. O afunilamento das contradições econômicas não permiteno curto prazo, as colocações do tradicional neodesenvolvimentismo ou de teses de terceira via pretendida por Santos. Nesse sentido, as propostas de atual governo podem cair no vazio, o que dilata-

ria as soluções do conflito social e armado. Estaríamos diante de uma reedição das propostas que não modificam a essência do regime econômico. Mesmo assim, o fracasso governamental não seria ainda suficiente para reformular o país e cimentar a paz. Nesse sentido, uma força plural de expressão política e destinada a retirar da institucionalidade e do controle das linhas do poder econômico à classe tradicionalmente hegemônica torna-se um caminho necessário de se trilhar. Por isso, no curto prazo o objetivo é a luta pela unidade, ampla, flexível, e com base em acordos programáticos para a construção de uma Frente Ampla pela Paz. Não se trata de uma aliança eleitoral para 2015, mas do resultado do aprofundamento dos diálogos entre os diversos setores do país comprometidos com o projeto de uma paz duradoura e estável que, a partir da identificação dessa finalidade, concretize os meios políticos, as táticas e os mecanismos de organização capazes de torná-la possível. *Doutor Pietro Alarcón é professor da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da PUC/SP

Notas (1) Tras los Pasos Perdidos de la Guerra sucia. Bruxelas: NCOS, 1995, p. 7 e seguintes. (2) Martha Harnecker entrevista Gilberto Vieira. Combinação de todas as formas de luta. Bogotá: Suramérica, p. 14-15. (3) Consulte-se http://www.cgfm.mil.co/CGFMPortal/faces/index. jsp?id=26097. Acesso em 18 de agosto de 2014. (4) http://wsp.presidencia.gov.co/Especiales/2011/Paginas/TLC_ EEUU.aspx. Acesso em 15 de agosto de 2014. (5) ANZOLA, Libardo Sarmiento.“Colombia: reprimarização econômica e violência. In: Le Monde Diplomatique. Edición colombiana, julhode 2010. (6) Informe Especial CINEP/ Programa por la Paz. Luchas sociales en Colombia 2013. Disponível em http://cinep.org.co/ index.php?option=com_docmam&task=doc_download&gid=314&Itemid=117&lang=n (7) Veja-se SAMPER, Sergio de Zubiria. “Dilemas Políticos del Campo Popular”. In: Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico, agosto de 2014, p. 7. (8) “Revolución pasiva o inflexión política hacia la democratización real”. In: Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico, agosto de 2014, p. 12. (9) ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Trotta, p. 13-14. (10) Negri, Toni.O Poder Constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, p. 18 e seg. (11) SAMPER, Sergio de Zubiria.“Dilemas políticos del campo popular”. Revista Izquierda, nº 47. Bogotá: Espacio Crítico, agosto de 2014, p. 9. (12) CAICEDO, Jaime.Colombia en la hora latinoamericana. Bogotá: Izquierda Viva, p. 139. (13) ALARCÓN, Pietro. Ciência Política, Estado e Direito Público. São Paulo: Verbatim, p. 117 e seg.

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A guerra criminosa de Israel contra o povo palestino Socorro Gomes*

O império estadunidense e o sionista estão comprometidos com um objetivo que colide frontalmente com os interesses da humanidade, buscando eliminar qualquer resistência ao saque (principalmente de petróleo e gás) e à dominação

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nquanto a humanidade assiste estarrecida e indignada às explosões de casas, hospitais, escolas, redes de abastecimento de água, e aos “eficientes” ataques com os mais novos instrumentos da morte, os drones, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o chefe do maior e mais pérfido império do mundo, foi a público expressar seu “firme apoio ao exercício do direito de defesa de Israel, (...) apoio às medidas militares de Israel para garantir que não haja mais disparos contra seu território”. Obama reforça seu apoio incondicional a Israel, dando seu eloquente voto protetor no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em sessão que deliberou pela criação de uma comissão de investigação das denúncias de crimes de guerras cometidos por esse país. Dos 47 membros do Conselho, o único voto contrário à investigação foi exatamente o dos Estados Unidos. O holocausto dos palestinos, executado pelo regime de Israel, a que a humanidade assiste horrorizada, conta com o total apoio dos Estados Unidos. Recentemente, o presidente deste país endossou o envio de

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Jovem socorre criança palestina dentro de uma escola da ONU em Gaza, que foi bombardeada por Israel, em 24 de julho

mais US$ 225 milhões para o aperfeiçoamento do sistema antimísseis IronDome, a Cúpula de Ferro. A cifra se somará aos US$ 3 bilhões anuais em ajuda militar ao seu incondicional aliado. Assim, o presidente Obama tem deixado clara a sua criminosa cumplicidade com a matança dos palestinos. Somente nesta última operação, a “Margem Protetora”, de acordo com a Autoridade Nacional Palestina, o número de mortos já passa de dois mil, entre os quais mais de 500 crianças, e cerca de 10.000 feridos. A absoluta maioria das vítimas fatais era civil, em torno de 74%, afirma a ONU. Mais de 10 mil lares palestinos foram bombardeados e quase 500 mil civis foram forçados a deixar suas casas e áreas de residência. Centenas de escolas, hospitais e mesquitas foram destruídas ou gravemente danificadas. Seis escolas da ONU foram atacadas em bombardeios que causaram a morte de mulheres e crianças assustadas, homens civis e funcionários das Nações Unidas. Mais de seis mil palestinos buscavam refúgio em duas escolas diferentes bombardeadas, o que causou a morte de 16 pessoas em uma, e 10 em outra. Os civis abrigavam-se fugindo


Internacional tinos como os contidos no PlanDalet, de atrocidades que podem ser consique detalhava a lista de vilas palestideradas crimes de guerra, ressaltou nas a serem destruídas e os métodos a comissária da ONU para direitos a serem utilizados para a expulsão humanos,NavyPilay, horas antes dos palestinos que ali viviam (intido cessar-fogo do dia 5 de agosto. midação, bombardeios, incêndios Estes são dados que corroboram as de casas, assassinatos). Como desdenúncias feitas contra o Estado de creve Pappe: “(...) a política sionista Israel pelas autoridades palestinas se transformou em uma iniciativa sobre o genocídio do seu povo. para a completa limpeza étnica do Não nos espantemos se o crimipaís, demorou seis meses para comnoso governo de Israel “transforO poder destruidor pletar a missão”. Expulsaram cerca mar” a infância palestina martirizada e assassinada em uma “‘grave do sionismo vai além de 800.000 pessoas de suas terras, limpando-as de sua presença e pasameaça à segurança de Israel, que de sua gigantesca sando a ocupá-las permanentemenprecisava ser eliminada.” Ou então te, saltando para os 82% de terras na afirmação de que eram “escuforça bélica. Sua palestinas nas mãos dos sionistas, dos”, portanto “os palestinos são os capacidade de atualmente. responsáveis pelas mortes”. O poUm dos mitos principais era de der destruidor do sionismo vai mais construir mentiras, que Israel era o “Davi lutando contra além do que sua gigantesca força contando com uma Golias”, quando já naquele momenbélica. Sua ignominiosa capacidato o regime havia feito um acordo de de construir mentiras, contanrede midiática com o mais forte Exército árabe de do com uma rede midiática de alto de alto poder então, o da Jordânia, para garantir poder tecnológico e a cumplicidade a expulsão e a ocupação das terras das grandes potências – transfortecnológico e a do povo palestino. Muito ao conmando as vítimas em culpadas pecumplicidade das trário da propaganda de que os julas bombas lançadas por Israel em deus estavam sofrendo uma ameaça seu território, pela destruição de grandes potências iminente de extinção, as palavras suas casas e pomares, pela diáspora – transformando as do maior representante do Estado palestina, pelo assassinato de seus filhos ainda crianças –, está entre os vítimas em culpadas de Israel, David Ben Gurion, são elucidativas dos objetivos reais dos mais importantes instrumentos de pelas bombas sionistas: “Devemos usar do terror, dominação, usados em abundânassassinatos, intimidações, corte de cia, ontem por Hitler e hoje pelos lançadas por Israel todos os serviços sociais para expulimperialistas sionistas. sar da Galileia os palestinos”, afirQuem não enxerga a campanha mou o novo primeiro-ministro, em maio de 1948. constante para esconder a origem semita dos palestiAções como o massacre de 254 pessoas, mulhenos com o cínico objetivo de acusá-los de serem anres e crianças em Deir Yasin foram relatadas por um tissemitas? Pois se o mundo tiver conhecimento da oficialda Cruz Vermelha, citado no livro de Antônio origem semita de ambos– árabes palestinos e judeus–, Basallote História da expansão sionista sobre a Palestina cairá por terra a falsa e sórdida acusação de antisse(1948-2010): “Aqui a limpeza étnica havia sido realizamitas a todos os que condenam o sionismo e seu mais da com metralhadoras, depois com granadas de mão, de meio século de matanças contra o povo palestino. terminando com facas.” É através da propaganda suja e criminosa – por ser Outro grande mito sobre o qual se fundou o mofalsa e servir à destruição de um povo e sua cultura vimento migratório de judeus de todo o mundo em – que os invasores se fazem de vítimas, e fazem das direção à Palestina, cuja maior parte do território foi vítimas agressores. O historiador e pesquisador judeu transformada no Estado de Israel, foi o de que se traisraelense, Ilan Pappe, renomado estudioso da questava de um “uma terra sem povo para um povo sem tão palestina-israelense, tem dedicado atenção espeterra”, de acordo com a estratégia sustentada de necial aos acontecimentos de 1948, elucidando fatos da gar a existência do povo palestino. maior importância para o entendimento do chamado Além disso, a representação da “ameaça” repreconflito. Pappe tem denunciando os grandes mitos de sentada pelos árabes e, em específico, pelos palesIsrael, as sórdidas mentiras destiladas desde quando tinos, é auxiliada pela comunicação das potências o nascente regime assassinava maciçamente os pales-

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imperialistas, como os jornais, rádios e cinemas instrumentalizados por Israel. É comum vermos “analistas” de grandes veículos de comunicação transmitirem venenoso discurso segundo o qual os palestinos “não se importam” com suas crianças, não têm amor à vida, entre outros mitos empenhados na sua desumanização. A comunicação a serviço da destruição da imagem das vítimas dos sionistas é uma poderosa arma para buscar suprimir qualquer possibilidade de resistência deste povo martirizado, como demonstra o último ataque à Faixa de Gaza: castigar, enfraquecer e destruir a recém-nascida unidade entre as organizações políticas do povo palestino, principalmente Al-Fatah, à frente da Autoridade Nacional Palestina, e a organização política do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), esta sim, a real e imediata motivação da matança. O que a potência sionista quer é um povo desnaturado, despojado de sua dignidade, silenciado pelo medo, paralisado pelo terror que lhe é imposto. Uma missão impossível. Como disse uma companheira palestina, “nesta guerra genocida, os palestinos perdem a vida e Israel perde a alma!” Numa demonstração de ódio e preconceito contra o povo palestino e de absoluto desprezo às até hoje inócuas resoluções, censuras, e condenações da ONU, o Exército sionista promove uma caçada aos palestinos que buscam inutilmente refúgio nos prédios da ONU. Estas agressões que provocam um sentimento de dor e profunda revolta nos povos do mundo inteirosão uma macabra repetição dos crimes de que foram vítimas os judeus, os ciganos, os homossexuais, os socialistas e comunistas, sob o nazismo, com os mesmos falsos pretextos: de que eram terroristas, que escondiam armas nos guetos, que eram um perigo para a segurança do Estado alemão e do seu povo. É um martírio semelhante, imposto há mais de seis décadas pelo Estado de Israel ao povo palestino, que vive hoje com o que restou do seu território, preso no maior campo de concentração que jamais existiu, cercado por um muro de mais de 700 quilômetros na Cisjordânia e o bloqueio completo a Gaza, com militares armados de fuzis e metralhadoras noite e dia, vigiando-os, dali só saindo se tiver um “passaporte”, uma autorização do Exército invasor. Mesmo esta nesga de terra que restou está ocupada pelo invasor, e o povo palestino proibido de circular em sua própria terra: as estradas, em sua grande maioria, tal qual na África do apartheid, só servem para os israelenses. Como se não bastasse tanta humilhação, o Exército sionista espalhou os postos de controle militar, com seus jovens e arrogantes soldados de armas em riste contra aqueles que são por eles considerados menos que humanos, separados de seus parentes por um gigantesco muro, assistindo quase

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que impotentes (pois não se pode comparar os “foguetes caseiros” palestinos com os mísseis de altíssima tecnologia, com as bombas, com os tanques, a artilharia pesada ou com os drones de Israel) à destruição de suas casas, ao incêndio de seus sítios, quando não são simplesmente ocupados por colonos trazidos de qualquer parte do mundo, que não por acaso fazem parte de um plano de ocupação meticulosamente calculada do território do povo palestino. As tropas de Israel destroem as redes de abastecimento de água e as já precárias redes de esgoto, os hospitais e escolas, promovem práticas de limpeza do território, com a imposição do terror, do medo da expulsão, ou da matança sistemática. O objetivo é cada vez mais cristalino: impedir a criação do Estado palestino definido pela ONU ainda em 1947. Para consumar este crime contra o direito de existência plena do povo palestino, Israel construiu toda uma estratégia para impedir o avanço da organização política, administrativa e diplomática das representações palestinas, negando pela força bruta das armas a criação do Estado da Palestina durante mais de seis décadas. Eventos históricos recentes, de grande significado para o avanço da luta do povo palestino por seu Estado – como o reconhecimento pela ONU do estatuto de Estado observador (não-membro) e o acordo entre a Autoridade Palestina e o Hamas – foram dois momentos a partir dos quais Israel intensificou seu virulento ataque ao povo palestino. Nos dois casos, contando com o apoio do governo dos Estados Unidos; no primeiro, em um acesso de “insatisfação” com a Unicef pela integração da Palestina em seu seio, o império estadunidense deixou de contribuir financeiramente com o órgão, num calote chantagista, em retaliação. No outro episódio, a construção da unidade entre palestinos, o governo de Israel chega ao paroxismo do ódio, motivo real que o levou a promover a mais recente chacina em Gaza, alegando exercer um tergiversado “direito à autodefesa” contra a resistência palestina no território sitiado há quase oito anos, tachada de “terrorista”. Aliás, o termo parece ser herdado, na concepção do regime israelense, por qualquer militante palestino, qualquer membro da resistência, seus familiares, vizinhos ou qualquer habitante de Gaza. Criando uma teia de mentiras e de mitos, como recomenda a doutrina nazista de Joseph Goebbels, o Estado terrorista de Israel tem buscado transformar um povo agredido, usurpado no sagrado direito a seu território, à sua nação plena e soberana, em “terrorista”. Horror dos horrores: o Estado de Israel, a quarta potência militar do planeta, com suas mais de duzentas ogivas nucleares, bombas de fragmentação, drones, mísseis e tanques, enfim, com os mais


Internacional modernos e eficazes instrumentos pais. Restou-me um filho. Toda a mide destruição e morte – contando nha família foi morta pelo Exército ainda com o apoio incondicional israelense”. Esta existência singela e da maior potência bélica do planedensa de sofrimentos e resistência ao ta, os Estados Unidos –, através de invasor é a verdadeira ameaça, não seu poder midiático e com a cumsó aos sionistas, mas aos seus manplicidade de seus próceres, inclutenedores e beneficiários, o imperiasive no Brasil, tem o poder de se lismo estadunidense que, fazendo passar por ameaçado em sua segutábua rasa da Carta das nações Unirança por um povo sem armas, sem das, no direito de resistência do povo Exército, sem recursos, vivendo em ocupado contra o invasor, se bem que O objetivo é cada verdadeiros campos de concentraneste caso abissalmente assimétrico vez mais cristalino: ção, sem direito às mínimas condiem voz uníssona com os sionistas, ções de vida digna, vítima de uma vociferaque a paz depende dos paimpedir a criação política genocida e que tem como lestinos! Que os palestinos têm que do Estado palestino única arma, além de alguns estise desarmar,no mesmo momento em lingues e foguetes artesanais, sua que aumenta a ajuda financeira para definido pela ONU própria existência martirizada. Esaumentar o poder de ataque do exérainda em 1947. Para cito agressor! A humanidade não ta sim, grandiosa, heroica, teimosa em sua resistência, que só pelo fato pode aceitar mais esta ignomínia! isso Israel construiu de perseverar em existir é um libeImpor como condição para a Paz, a toda uma estratégia, aceitação por parte do povo palestino lo acusatório, não só contra o Estado terrorista que lhe suprime os da aberração de um não-Estado, decom a força bruta meios de existência, que dia após sarmado, cercado militarmente, (um das armas, contra dia impõe-lhes, do amanhecer ao protetorado israelense) manietado e anoitecer, o terror e a humilhação, impotente, como condição à Paz. o avanço da as prisões e torturas de milhares de O atual primeiro-ministro de Isorganização política, rael, Benjamin Netanyahu, tem afircrianças e adolescentes, devassando arrogantemente sua existência mado reiteradamente o seu reconheadministrativa e com postos de controle militar escimento ao apoio fiel e constante dos diplomática das parramados em todo o seu territóEstados Unidos ao seu governo e à rio, do que sobrou de suas terras, sua chamada “política de seguranrepresentações avançando mais e mais na busca ça”, outro mito construído para maspalestinas de anexação, através da colonizacarar a ocupação expansiva da Palesção militar e prisões sistemáticas tina e a opressão do povo que resiste de crianças e jovens, buscando calnaquela terra, sobre o qual é imposto cinar qualquer sonho de permanência deste povo em um regime de segregação e violações sistemáticas dos sua própria terra. direitos mais básicos, garantidos por diversas convenPara os ocupantes, a simples existência do Estado ções internacionais. Essa dissimulação cínica da seda Palestina é inaceitável e têm afirmado isto aos quagregação, da imposição de uma negação essencial da tro cantos do mundo. A verdade é quea própria exiscondição de uma “ocupação”. Reconhecer esta situatência desse heroico povo evidencia uma acusação ção imporia a Israel obrigações enquanto a “Potência que se estende inevitavelmente para quem mantém, Ocupante” que é – de acordo com a própria ONU –, apoia e fortalece a política de limpeza étnica conduzicom base, principalmente, em inúmeros artigos da da por Israel, os Estados Unidos. quarta Convenção de Genebra, sobre a Proteção das Depois de seis décadas de holocausto, só de estaPessoas Civis em Tempos de Guerra, de 1949. rem vivos os palestinos gritam ao mundo: “Eu sou Inúmeras resoluções emitidas todos os anos por filho de Mustafá, morávamos, em 1948, ali naquela cinco órgãos principais da ONU desde a década de terra hoje ocupada por Israel, esta é a chave de nossa 1940 são deliberadamente violadas por Israel. Exemcasa, meu pai me entregou antes de morrer,” ou: “Vieplos são a 181, da Assembleia Geral, que estabelecia mos para Gaza, e agora nossa casa foi bombardeada um Plano de Partilha que já garantiapara a criaçãodo por Israel. Não temos para onde ir. Não temos como Estado de Israel 53%, ficando para o Estado da Pasair daqui. Não queremos sair daqui!” E, ainda, “Eu lestina 47% com uma população duas vezes maior acabo de perder meus filhos, minha mulher, meus que a hebraica; a 194, de 1948, que pretendia finali-

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zar a guerra entre Israel e vizinhos árabes, estabelecia uma Comissão de Conciliação e reconhecia o direito das centenas de milhares de refugiados ao retorno às suas casas e terras, ou à compensação pelo que foi destruído, entre as mais de 400 vilas devastadas; e as resoluções 237 e 242, de 1967, que exigiam a retirada israelense dos territórios sobre os quais avançou na ocupação durante a Guerra dos Seis Dias, em junho daquele ano, e afirmavam o direito dos novos refugiados ao retorno. Estes são apenas alguns exemplos flagrantes e específicos – que podem ser comprovados também no direito internacional geral – das graves violações israelenses que sustentam a ocupação da Palestina, com a cumplicidade ativa dos Estados Unidos que, enquanto membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas com poder de veto, barraram dezenas de resoluções que condenariam Israel. A única força capaz de deter a máquina israelense do apartheid é a resultante da indignação e revolta dos povos, da consciência humanista dos que não se curvam ao império da força bruta e do terror. É a força da resistência do povo palestino que, na sua dor infinita, eleva acima dela sua dignidade, sua valentia e determinação de não se deixar subjugar. De fazer valer seu direito sagrado à resistência e à luta em defesa de seu território. De quem não acredita e não aceita a rendição diante do Exército invasor, que pretende impor, como condição de cessar-fogo, que o povo palestino se dobre desarmado e indefeso, submetido ao quarto exército mais armado da terra. Não, mil vezes têm dito os palestinos. Não! Não pode a força bruta rasgar tantas resoluções da ONU, que determina a retirada de Israel das terras ocupadas e a devolução aos seus donos, os palestinos. Não, mil vezes não! Israel não pode passar por cima do direito internacional e promover a carnificina que tem promovido contra o povo palestino e sair impune! Não, mil vezes não! Israel não pode continuar suprimindo o direito à vida de um povo e continuar impune. É preciso que as pessoas que acreditam e têm compromisso com a Paz e com uma ordem mundial sob o primado da justiça, da igualdade e do respeito entre povos e nações intensifiquem movimentos e pressões no sentido de fazer valer as resoluções da ONU acerca do Estado do povo palestino e sobre as fronteiras entre os dois Estados, assim como as denúncias de crimes de guerra cometidos por Israel, sempre acobertados pelos Estados Unidos. Não podemos aceitar o cínico argumento da quarta potência militar do planeta de que a existência do Estado da Palestina ameace sua segurança, numa afronta à nossa inteligência. O que querem os sionistas é um povo desarmado, indefeso e inexistente no cenário internacional, fácil presa de sua política de limpeza étnica!

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A sustentação que lhes garante os EUA obedece à lógica da sua própria busca de controle e hegemonia na região, faz parte da estratégia de “reformatação do Oriente Médio”, na qual o papel de Israel já de há muito está definido como seu esbirro, e em troca da proteção imperialista lhe fornece mão de obra para escabrosas operações na guerra suja contra governos e países soberanos, a exemplo do Iraque, Líbia, Síria, os dois primeiros transformados em um teatro de horrores a serem atacados, saqueados destruídos, e a Síria que resiste valentemente, ameaçada pelas hordas criadas pelo império, de divisão do seu território. Os fortes liames que ligam estas duas potências no ataque aos palestinos têm deixado cada dia mais claro o quanto é grande o patrocínio dos Estados Unidos às ações de Israel contra os direitos e a vida do povo palestino. A destruição e a morte, como na Síria, na Líbia, no Iraque, servem à busca de concretizar sua política de “implantação de um novo Oriente médio”. Ou seja, para controlar países ricos em fontes energéticas, nomeadamente petróleo e gás, e dominar esta região de ligação entre três continentes: África, Europa e Ásia. Ao fim e ao cabo, o império estadunidense e o sionista só poderiam ter esta relação simbiótica, ambos comprometidos com um objetivo que colide frontalmente com os interesses da humanidade, buscando eliminar qualquer resistência ao saque e à dominação. A repetição do dantesco holocausto contra um povo que tem a mesma origem que a sua, a semita, mostra a confiança de Israel na cumplicidade das suas potências aliadas, principalmente os Estados Unidos, o principal beneficiário, financiador e protetor das políticas do regime israelense, que lhes tem garantido a impunidade.”e a criação de seu Estado soberano, que ocorrem nos mais diversos países, são uma demonstração inequívoca da condenação dos povos à política de limpeza étnica de apartheid levada a cabo pelo Estado de Israel. Neste sentido, cresce a convicção da imperante necessidade de romper os acordos comerciais, e especialmente os acordos militares,com o Estado de Israel. Nações e povos compromissados com uma nova ordem mundial sob o império do respeitoà soberania e autodeterminação dos povos, devem cessar todo e qualquer acordo que fortaleça de alguma forma Estados que têm como principal razão de ser a destruição de um povo com fins de conquista. A resolução do conflito Israel Palestino é uma questão de toda a humanidade.

* Socorro Gomes é presidente do Centro Brasileiro de Solidariedade e Luta pela Paz (Cebrapaz) e do Conselho Mundial da Paz (CMP)


Brasil

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1914 – guerra e revolução José Carlos Ruy*

Mesmo no mundo de hoje, cem anos depois da Primeira Grande Guerra, o imperialismo tenta, a um custo bárbaro e brutal, submeter os povos e conter sua luta pela superação e ultrapassagem do sistema capitalista. Neste sentido, guerra e revolução são dimensões da luta de classes que ficaram unidas desde 1914

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O

História

grande conflito iniciado em 1914 siO primeiro parágrafo daquele documento, intinalizou duplamente o ponto final de tulado A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia, diz: “A uma época histórica e o início de outra, guerra europeia, que foi preparada no decorrer de demarcada pelo maior desafio enfrencênios pelos governos e pelos partidos burgueses de tado pelo sistema capitalista. Assim, todos os países, rebentou. O aumento dos armamen1914 pode ser tos, a extrema agudização considerado coda luta pelos mercados mo o marco inicial do sécuna época do estágio atual, lo XX e do prolongado conimperialista, do desenvolflito que opôs os esforços vimento do capitalismo conservadores pela manunos países avançados, e os tenção e o fortalecimento interesses dinásticos das do sistema capitalista à monarquias mais atrasaluta dos povos e dos tradas, as da Europa Oriental, balhadores para alcançar o deviam conduzir inevitaavanço civilizacional reprevelmente, e conduziram, sentado pela superação do a esta guerra. Conquistar modo de produção capitaterras e subjugar nações lista e o começo da transiestrangerias, arruinar a nação para o socialismo. ção concorrente, saquear Desde 1815, as O historiador marxista as suas riquezas, desviar a Eric Hobsbawm definiu como limiatenção das massas trabalhadoras contradições entre tes para o “curto século XX” as datas das crises políticas internas da Rúsa burguesia e o de 1914 e 1991, que indicam o inísia, Alemanha, Inglaterra e de oucio da Primeira Grande Guerra e o tros países, a desunião e o entonteproletariado, e fim da União Soviética. Hobsbawm cimento nacionalista dos operários entre as nações tem razão se prestarmos atenção aos e o extermínio de sua vanguarda tempos a que ele se refere. No século com o objetivo de debilitar o moeuropeias, se anterior, desde 1815, as contradições vimento revolucionário do proletaacentuaram e entre a burguesia e o proletariado, e riado, é o único real conteúdo, sigentre as nações europeias, se acennificado e sentido da atual guerra” levaram à Grande tuaram e levaram à Grande Guerra (LÊNIN, 1979, p. 559). Guerra cujo início, cujo início, em 1914, indicou a aberA análise de Lênin, com sua tura de uma nova época que teve costumeira precisão, une elemenem 1914, indicou sua marca mais forte no esforço de tos do passado que chegava ao fim, a abertura de uma construção do socialismo, terminado com outros que apontavam para o – pelo menos na Europa – em 1991 nova época que teve futuro. Ele alinha entre os motivos (HOBSBAWM, 1995, p. 30). da guerra a disputa interimperiasua marca mais Aquele conflito colocou um fim lista que opunha principalmente a na época histórica marcada pela Alemanha aos países europeus doforte no esforço consolidação do capitalismo conminantes (a Inglaterra e a França), de construção do correncial e da hegemonia burgueos interesses dinásticos de monarsa. Época também da emergência quias ultrapassadas, e o temor dos socialismo da revolução proletária, que já tinha governos e das burguesias ante a surgido com os grandes levantes revolução proletária que se punha populares e proletários da primavera na ordem do dia. dos povos europeia na metade do século XIX. Os conflitos na Europa Central e nos Bálcãs deMenos de um mês após o início da guerra o diriram o pretexto para a guerra. Aquela região era margente bolchevique V. I. Lênin foi autor de um manicada pela confluência de interesses, crenças e modos festo do Comitê Central do Partido Operário Socialde viver ligados às grandes monarquias atrasadas. democrata da Rússia (publicado em 1º de setembro Ali o império alemão (unificado sob Bismarck e a de 1914), com o registro preciso das razões da guerra hegemonia prussiana desde a época da Comuna de e do desafio que estava colocado para os socialistas Paris) se confrontava com interesses dos enfraqueci(LÊNIN, 1979). dos impérios austro-húngaro, russo e otomano. Três

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daqueles impérios (austro-húngaro, russo e alemão) era da guerra total”. E o conflito foi visto por muiformavam, desde o Congresso de Viena (1815), a tos analistas contemporâneos como a falência da Santa Aliança, que foi a fortaleza da reação contra a civilização e mesmo da humanidade (HOBSBAWM, revolução, o constitucionalismo e a democracia. 1995, p. 30). Não se compreende o século XX, diz O pretexto para o início da guerra, em 1914, foi ele, sem que se entenda aquela guerra e o período a morte, por um nacionalista sérvio, do arquiduque prolongado de confrontos armados que ela iniciou. Francisco Fernando, herdeiro do trono austro-húnE que passaram a ter proporções gigantescas. No ségaro, ocorrida em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, culo XX, eles “iriam dar-se numa escala muito mais na Bósnia. Foi o estopim daquele conflito longamenvasta do que qualquer coisa experimentada antes”; te preparado. A grande potência imperialista era ena guerra de 1914, avalia, inaugurou “a era do massatão a Inglaterra, cujos tentáculos estavam em todo o cre” (IDEM, IBIDEM, p. 32). planeta (era o império, dizia-se, onde o Sol nunca se Foi a primeira guerra na qual a tecnologia moderpunha), com seu poderio baseado na enorme força na, industrial, foi usada extensamente. Foi o cenário naval que permitia ações militares em todas as reinaugural dos horrores das armas químicas, e ambos giões. Para opor-se a ela o kaiser Guilherme II (1888os lados usaram gases venenosos em larga escala, ma1918) iniciou, na década de 1890, uma política de tando massivamente soldados e mesmo a população armamento que dotou a Alemanha civil. Submarinos também passade uma força naval capaz de rivaram a ser amplamente usados, seja Aquela guerra lizar com o poderio britânico. Seu no combate direto a navios inimiobjetivo era alcançar, a favor da gos, seja como arma para ameaçar pode ser entendida burguesia alemã, a redistribuição navios mercantes e impor o blotambém como uma imperialista dos domínios coloniais queio a portos das nações inimigas, e dos mercados no mundo. Este foi causando vítimas entre a população etapa, sangrenta, o verdadeiro objetivo da guerra. civil submetida à fome e a todo tipo da revolução Outra razão apontada por Lêde carências. Foi na Primeira Grannin era a necessidade dos governos de Guerra que se usou, também pedemocráticoburgueses de se contraporem à luta la primeira vez, os limitados aviões -burguesa na revolucionária dos trabalhadores, de então, e os tanques de guerra. cuja presença era cada vez maior A mobilização para a guerra Europa. Foi um no cenário europeu. Este esforço envolveu números estonteantes. passo na derrota de contenção conservadora se dava No total, foram quase 70 milhões em dois níveis – um era ideológico; de combatentes. Do lado aliado da aristocracia o outro mais propriamente policial. (tendo à frente Inglaterra, Franque, a rigor, só No aspecto ideológico aqueles goça, Itália e Rússia), foram cerca de vernos tudo fizeram para fortalecer 43 milhões de soldados, contra os se consolidou na o sentimento patriótico de seus tra25 milhões da Alemanha e as pogrande guerra balhadores, colocando-os em opotências centrais. Quase 20 milhões sição aos trabalhadores dos demais foram mortos (10 milhões de civis seguinte​ países. O sucesso desse esforço e mais de nove milhões de militapode ser observado no fato de que res – entre os aliados foram onze os próprios partidos socialistas da II Internacional milhões de mortos; entre alemães e seus aliados, o apoiaram decididamente a política belicista de seus morticínio passou de oito milhões). Foi o primeiro governos, levando ao que Lênin chamou de “bancarconflito onde a capacidade de matar, ampliada pela rota” daquele socialismo. Mas havia também o esaplicação da tecnologia, alcançou escala tão giganforço, que pode ser considerado policial, de liquidar tesca. a organização dos trabalhadores e separá-los de seus Aquela guerra pode ser entendida também colíderes mais consequentes, com o uso inclusive do mo uma etapa, sangrenta, da revolução democrátiassassinato puro e simples, como ocorreu no final da co-burguesa na Europa. Foi um passo na derrota da guerra com a perseguição aos comunistas alemães aristocracia que, a rigor, só se consolidou na grande e o assassinato dos dirigentes revolucionários Rosa guerra seguinte, a de 1939-1945, quando Adolf HiLuxemburgo e Karl Liebknecht. tler, para vingar-se dos oficiais prussianos que ouAquela guerra inaugurou a época de conflitos exsaram armar um atentado para matá-lo, em junho tensos; aliás, o título do capítulo I do livro de Eric de 1944, praticamente dizimou a classe latifundiária Hobsbawm sobre o século XX é justamente este – “A dos junkers (ver BARRACLOUGH, 1975).

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História O arranjo de classes formado na Europa com a Revolução Francesa do final do século XVIII foi baseado em uma aliança liderada pela burguesia e que envolvia a plebe de trabalhadores urbanos e, principalmente, de camponeses. Aquele arranjo foi radicalmente alterado na segunda metade do século XIX, com a emergência da revolução proletária. As jornadas de 1848, quando as massas das principais nações europeias se levantaram, foram percebidas como ameaçadoras pela burguesia. Não é A Primeira Guerra mundial por acaso que aquele foi o contexto no qual foi o cenário inaugural Karl Marx e Friedrich Engels redigiram o dos horrores das armas Manifesto do Partido Comunista, definindo o químicas e do grande uso de programa e os objetivos do proletariado. tecnologia moderna A aliança de classes que vinha desde a Revolução Francesa foi rompida deste então e a burguesia, temerosa, juntou-se à aristocracia em nome da defesa da ordem. E da protasma da revolução proletária, como Lênin apontou. priedade! Marx registrou essa mudança em O Capital. Este esforço foi em vão. A “insurreição parisiense de junho e sua sangrenta Na Europa, no outono de 1918, ao final da guerra, repressão fez com que se unissem em bloco, tanto na ocorreram movimentos revolucionários nos países do Inglaterra como na Europa Continental, todas as fracentro e sudeste, como antes ocorrera na Rússia, em ções das classes dominantes, latifundiários e capita1917. Houve tentativas revolucionárias em todos eles. listas, especuladores da Bolsa, lojistas protecionistas Foram antecedidos pela revolução na Rússia one livre-cambistas, governo e oposição, padres e livres de, em fevereiro de 1917, o czar foi deposto e tentou-pensadores, jovens prostitutas e velhas freiras, sob -se implantar uma República parlamentar, à maneira a bandeira comum da salvação da propriedade, da ocidental. A crise política desembocou na vitória dos religião, da sociedade! A classe trabalhadora foi por revolucionários dirigidos por Lênin, em outubro (ou toda parte proscrita, anatemizada, colocada sob a Loi novembro, pelo calendário ocidental), que deu início à des suspects, uma lei de exceção que permitia, na Franprimeira e mais durável tentativa de construção do soça do Segundo Império, a prisão e o banimento, sem cialismo. Em A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia, três qualquer formalidade, dos que fossem considerados anos antes, Lênin já havia delineado o caminho revoinimigos do governo” (MARX, 1978, cap. VIII). lucionário que levou à vitória. Naquele documento há Nesta nova aliança das classes proprietárias, as uma veemente condenação da traição ao socialismo monarquias europeias (principalmente aquelas que pelos partidos da II Internacional, particularmente o Lênin incluiu entre as mais atrasadas: a alemã, a auspartido alemão que, entre eles, era o maior, o mais imtro-húngara e a russa), e a velha e decadente aristoportante e o mais influente. Lênin os condenou por cracia dos demais países, obtiveram uma sobrevida. A não se oporem à “conduta criminosa dos governos” aristocracia passou a governar ao lado da burguesia e defenderem a fusão da política da classe operária em arranjos antirrevolucionários e antidemocráticos “com a posição dos governos imperialistas”. E apreque levaram até as primeiras décadas do século XX a sentou aquela que, em sua opinião, era a única posição práticas do velho absolutismo enraizado nos séculos correta naquela conjuntura: transformar a guerra imanteriores à Revolução Francesa. Elas só foram derroperialista em guerra civil revolucionária. Os socialistas tadas, e saíram de cena, ao final da guerra (MAYER, deviam, escreveu, responder à guerra da burguesia e 1977 e 1987). dos governos com a “redobrada propaganda da guerra A guerra, iniciada como uma disputa interimpecivil e da revolução social”, e insistiu que aquela era “a rialista para a redivisão do mundo entre os países única palavra de ordem proletária justa”. Foi seguindo dominantes, e para resolver disputas territoriais enesta orientação que o partido bolchevique chegou ao tre as velhas e decadentes dinastias, terminou com poder em 1917 e mudou o rumo da história. uma ameaça maior para o domínio da burguesia. Para Lênin e os bolcheviques, a Revolução Russa As classes dominantes tinham também o objetivo seria o prenúncio de outra, nos países industrializade derrotar a luta dos trabalhadores e afastar o fandos, principalmente na Alemanha. Esta esperança

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tinha algum fundamento. Em janeiro de 1918, diz Hobsbawm, houve uma onda de greves políticas e manifestações contra a guerra na Europa Central; elas começaram “em Viena, espalhando-se via Budapeste às regiões tchecas da Alemanha, culminando na revolta dos marinheiros austro-húngaros no Adriático” (HOBSBAWM, 1995, p. 73). Mas a esperança dos bolcheviques foi frustrada. Na Alemanha, a derrocada do império e a assinatura do armistício, em 11 de novembro de 1918, desencadearam um processo de luta de classes que poderia levar a um desfecho revolucionário. Os conselhos de operários e soldados (uma versão local dos sovietes) proliferaram, principalmente nas grandes cidades, mas enfrentaram a oposição dos dirigentes do Partido Socialista da Alemanha (SPD, Sozialistische Partei Deutschlands). Segundo o historiador Micos Hajek, na Alemanha os dirigentes do SPD, em outubro de 1918, teriam aceitado a instauração de uma monarquia parlamentar com algum verniz social. O Tratado de Mas a derrota na guerra os colocou, já em 9 de novemVersalhes reuniu os bro de 1918, à frente de uma ingredientes que, revolução que não queriam nem apoiavam. Eles aposta14 anos depois, vam numa democratização levaram os nazistas gradual da República junker-burguesa e, para manter a ao poder e a outra revolução nesse âmbito deguerra mundial, mocrático-burguês, “contra as tentativas revolucionárias iniciada em 1939 do proletariado, aliaram-se pela mesma inclusive com os generais prussianos” (HAJEK, 1985, Alemanha que 171). Em 9 de novembro o tentavam conter príncipe von Baden, herdeiro do império alemão, transferiu o governo ao dirigente do SPD, Friedrich Ebert. E há notícias de que Ebert teria dito ao príncipe que odiava a revolução e tudo faria para evitá-la. A revolução alemã desembocou assim na República de Weimar e suas limitações e contradições. Em dezembro de 1918, em Berlim, o 1º Congresso Nacional dos Conselhos de Operários e Soldados rejeitou a transferência do poder aos conselhos (ao contrário do que ocorreu na Rússia em 1917, com a vitória da palavra de ordem “todo poder aos sovietes”).

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Revelavam aqui sua essência contrarrevolucionária ao defender que se deveria esperar pela Assembleia Constituinte para institucionalizar o novo regime republicano (LOUREIRO, 2005, p. 70). O governo do SPD apoiou-se nos mal-afamados freikorps (“corpos livres”, também conhecidos entre os operários como “guardas brancos”) da direita alemã, formados por ex-combatentes inconformados com a derrota na guerra – oficiais, suboficiais, gente proveniente das camadas médias monarquistas, ou antigos operários que não queriam deixar o exército. Estes verdadeiros esquadrões da morte formaram “o principal apoio militar do governo socialdemocrata”, sendo “os responsáveis pela derrota, em janeiro de 1919, dos operários revolucionários” (HAJEK, 1985, 175). Eram corpos paramilitares que tiveram forte apoio do ministro da Defesa do governo socialdemocrata e membro do SPD, Gustav Noske, apelidado de “carniceiro sanguinário”. Ele os usou para reprimir o levante revolucionário de janeiro de 1919, e foi um desses esquadrões da direita que assassinou os líderes revolucionários Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, em Berlim, em 15 de janeiro de 1919. Isto é, a revolução alemã, ocorrida no fim da guerra e que poderia desembocar no socialismo, entrou no labirinto que levaria à sua derrota, depois de muita luta. Houve uma breve República Soviética na Baviera. Outra tentativa, também na Europa central, ocorreu na Hungria, onde uma República Soviética conseguiu manter-se entre março e julho de 1919. Ambas – na Baviera e na Hungria – foram eliminadas com ferocidade. O Tratado de Versalhes, que marcou o fim da guerra, teve o duplo objetivo de conter o ímpeto imperialista da Alemanha (e salvaguardar os interesses da principal potência imperialista de então, a Inglaterra), e de isolar a Rússia soviética para impedir que o exemplo revolucionário se espalhasse. A Alemanha foi obrigada a reconhecer os prejuízos que causara a outras nações, ficando obrigada ao pagamento de pesadas indenizações que inviabilizaram sua estabilidade econômica e seu desenvolvimento. Isso a levou a uma profunda desagregação econômica e social na década seguinte, ao desemprego e à miséria popular, e a uma inflação numa escala jamais vista. Dessa maneira o Tratado de Versalhes reuniu os ingredientes que, 14 anos depois, levaram os nazistas ao poder e a outra guerra mundial, iniciada em 1939 pela mesma Alemanha que tentavam conter. Os vitoriosos também procuraram “tornar o mundo seguro contra o bolchevismo”. Esta era a meta das grandes potências; elas apoiaram a criação de novas pequenas nações para formar um “cordão de isolamento” contra a URSS, cujo regime revolucionário seria “um imã para forças revolucionárias de todas


História as partes”. E, como analisou Hobsbawm, “os muitos pretendentes à sucessão, pelo menos na Europa, eram vários movimentos nacionalistas que os vitoriosos tendiam a estimular, contanto que fossem antibolcheviques, como convinha”. Eles formariam “uma espécie de cinturão de quarentena contra o vírus vermelho” (HOBSBAWM, 1995, p. 38, 39, 40 e 73). O nazismo que sucedeu à República de Weimar não foi apenas consequência das imposições feitas pelos vencedores da guerra, mas também do esforço de conter a Revolução Russa e derrotar a classe operária e o socialismo. Ele resultou também da pretensão dos dirigentes do SPD de parar a revolução na Alemanha. Uma revolução é um processo histórico e político objetivo cuja eclosão não depende da vontade de um grupo de dirigentes ou de um partido – ela resulta do entrechoque das “camadas tectônicas” que movem a sociedade, a luta das classes antagônicas, cuja solução pode levar ao avanço ou à paralisia do processo histórico. Seu desencadear está ligado assim a estas condições objetivas e também à existência de um partido e líderes capazes de cumprir suas responsabilidades históricas. Na Rússia, os bolcheviques, dirigidos por Lênin e seus camaradas, deram uma resposta positiva a este desafio, e tiveram êxito. Na Alemanha, a direção do SPD tentou parar a revolução, presa à crença de que seria mais adequado e “democrático” deixar a solução do confronto para a Assembleia Constituinte. E fracassou. A conclusão que se impõe é a de que, da mesma forma como uma revolução não é deflagrada pela mera vontade de um grupo de revolucionários, ela também não pode ser detida por escolhas políticas feitas por aqueles que deveriam estar à sua frente. Por isso, na Alemanha, o processo social da revolução continuou; e, com a derrota dos operários revolucionários, ele evoluiu para a direita, e a saída lógica para as contradições que o moviam foi a chegada ao poder, em 1933, da direita em sua pior e mais retrógrada e sanguinária expressão, o nazismo. Passados cem anos de seu início, os efeitos da guerra de 1914 permanecem. Ela inaugurou a era dos grandes conflitos imperialistas pela divisão das zonas de influência no mundo, e foi também uma etapa na luta pela transição ao socialismo. Estas etapas ainda não estão concluídas. As lutas e os massacres na Europa, na década de 1990, devem ser vistos como consequências longínquas do acerto entre as nações ao final da guerra. “Os conflitos nacionais, que despedaçaram o continente na década de1990”, escreveu Eric Hobsbawm, “são as galinhas velhas do tratado de Versalhes, voltando mais uma vez para o choco” (HOBSBAWM, 1995, p. 39).

Bolcheviques, dirigidos por Lênin, deram uma resposta positiva aos desafios nazistas e as pretensão dos dirigentes do SPD

E há também a questão da revolução proletária que, disse Lênin, é característica de nossa época. Aquela guerra trouxe para o primeiro plano a luta do imperialismo contra a revolução socialista. Isso ajuda a entender o mundo que se seguiu a ela. Onde houve outro conflito gigantesco (a guerra de 1939 a 1945). Seguido pela divisão do planeta em duas áreas antagônicas durante a chamada “guerra fria”, opondo as nações capitalistas (o “Ocidente”, formado pelos EUA e Europa Ocidental) ao bloco socialista liderado pela URSS. E mesmo o mundo de hoje, no qual, cem anos depois, o imperialismo tenta, a um custo bárbaro e brutal, submeter os povos e conter sua luta pela superação e ultrapassagem do sistema capitalista. Neste sentido, guerra e revolução são dimensões da luta de classes que ficaram unidas desde 1914. * José Carlos Ruy é jornalista

Referências BARRACLOUGH, Geoffrey. “Adolf Hitler, ex-mito”. In Cadernos de Opinião, n. 1, Rio de Janeiro, 1975. HAJEK, Micos. “A discussão sobre a frente única e a revolução abortada na Alemanha”. In: HOBSBAWM, E., 1985. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos – O breve século XX -1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. ____________. História do Marxismo. Vol. VI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. LÊNIN, V. I. “A Guerra e a Socialdemocracia na Rússia”. In: LÊNIN, V. I. Obras Escolhidas, T. 1. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. LOUREIRO, Isabel. A revolução alemã (1918-1923). São Paulo, Editora UNESP, 2005. MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. México DF, Fundo de Cultura Económica, 1978 (Cap. VIII, Item 6). MAYER, Arno. A força da tradição. São Paulo: Cia. das Letras. 1987. Ver também MAYER, Arno. Dinâmica da contrarrevolução na Europa, 1870-1956. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977

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Anos 1990: a dinâmica macroeconômica a partir do Plano Real e a nova (des)configuração do mundo do trabalho (1)

Tamara Naiz Silva*

N

o início da década de 1990, a economia brasileira passava por uma fase de amplas e profundas mudanças, buscando um processo de integração do país à nova ordem mundial. Essas mudanças estruturais repercutiram na organização produtiva e financeira, no balanço de pagamentos e nas contas públicas. Do ponto de vista das repercussões desse processo sobre o mercado de trabalho, avaliamos que elas foram negativas, pois aqui os problemas do capitalismo contemporâneo, decorrentes do padrão de acumulação global predominantemente financeiro, se sobrepuseram aos problemas históricos do

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A crença de que o mercado regularia a produtividade do trabalho e da produção industrial regeu a política de abertura econômica avançada por FHC. O resultado foi a precarização do trabalho, e desvio de uma economia desenvolvimentista voltada para a industrialização para uma economia, finalmente, rentista e financeira, como no “primeiro mundo” capitalismo brasileiro, tardio. Desse modo, a fase é marcada pelo crescimento das taxas de desemprego aberto e pela precarização geral do trabalho, termos que acentuaram ainda mais a heterogeneidade do mercado de trabalho brasileiro. Não é simples avaliar (lideranças públicas e privadas), mas é perceptível o fato de que, em face à mudança de tom observada em nível mundial, nossas lideranças governamentais adotaram opções políticas (2) que favoreceram fortemente a desestruturação do mercado de trabalho na década de 1990. Historicamente, o mercado de trabalho brasileiro é marcado pela heterogeneidade e pela precarização.


História incentivos fiscais foi levado a cabo com o objetivo de Mesmo o estabelecimento de uma economia indusreduzir o papel ativo da ação estatal nas atividades trial complexa e integrada não foi capaz de superar econômicas. Adicionalmente, muitos órgãos goveras desigualdades herdadas de décadas. Francisco namentais foram fechados, e o quadro de funcionáOliveira, em seu livro Crítica à razão dualista, aponta rios públicos foi enxugado, reduzindo sobremaneira que isso se deve em parte à alta velocidade da urbao papel do Estado na geração de empregos. nização que se processou no país, associada à maA partir da implantação do Plano Real, em 1994, nutenção de uma estrutura fundiária concentrada. foi alcançado um sucesso no combate à inflação crôNesse contexto, apesar do dinamismo do mercado nica, que assolava a economia brasileira desde os de trabalho urbano (em especial no período comanos 1980. Com o real, as bases da arquitetura ecopreendido entre 1950 e 1980), a rapidez do processo nômica estavam montadas, e o combate à inflação, de migração despejou nas cidades um contingente objetivo primeiro da política econômica brasileira, de população que não pôde ser totalmente absorvido subordinando todas as demais políticas do Estado no mercado de trabalho formal capitalista. a esse propósito, combinava a utilização de uma Ainda na década de 1990 assistiu-se a um moviâncora cambial sobrevalorizada com o processo de mento de reforma que alterou radicalmente os rumos abertura comercial, que oferecia meios para que o econômico e social do país. Na perspectiva de ação governo submetesse os produtores nacionais a uma do governo e na orientação das políticas públicas, forte pressão competitiva por parte dos produtores este movimento foi apresentado como parte de um estrangeiros que implicava o deseesforço de modernização da indúsquilíbrio do balanço de pagamentria e dos serviços nacionais e ainda tos, que passou a depender da incomo uma tentativa de redefinição Em que medida tensificação dos fluxos de capitais das bases de inserção da economia as mudanças na externos, que foram abundantes brasileira no mundo. Para Marcelo no início do processo de abertura Proni e Winês Henrique, organizadécada de 1990 financeira do país. dores do livro Trabalho, mercado e foram parte de uma A afluência dos capitais estransociedade, a proposta do governo fegeiros dependia das altas taxas de deral nesta década, principalmente real necessidade juros, mas também da credibilidaapós o Plano Real, “baseava-se na de adaptação de dos mercados, da confiança nas crença de que o capital estrangeiro intenções do governo brasileiro de se encarregaria de promover o deao cenário do realizar os ajustes macroeconômicos senvolvimento do país e seria suficapitalismo e as reformas institucionais definiciente para desencadear uma onda dos pelo Consenso de Washington, modernizadora da sociedade brasiinternacional ou garantindo um ambiente propício leira” (2003, p.8). resultaram das à valorização da riqueza financeira. Buscou-se nesse processo romPortanto, acompanhando a política per de forma definitiva com o Estaescolhas das elites? macroeconômica de estabilização, a do Nacional Desenvolvimentista e agenda de reformas estruturais com introduziu-se um novo modelo de vistas à desregulamentação da economia e à redução desenvolvimento econômico que visou a integrar o da atuação do Estado nas atividades econômicas foi país à recente ordem das finanças desreguladas (3). ampliada. Reforçaram-se os programas de privatizaA desregulamentação e a flexibilização constituíção do setor público, de ajuste fiscal, a lógica de forram as bases do novo modelo de desenvolvimento, talecer a regulação privada das relações de trabalho e passaram a ser identificadas como instrumentosem detrimento da regulação social, a flexibilização do -chave para resolver os impasses supostamente comercado de trabalho e a focalização da política social. locados pelo desenvolvimentismo. Foi assim que, a Entendia-se que essas reformas eram indispensáveis partir da década de 1990, o Brasil se inseriu na nova ao pleno funcionamento do mercado e ao crescimenordem econômica mundial reproduzindo, em conto econômico, além de garantirem a “credibilidade” dição subordinada, um programa de reformas pródo país frente ao sistema financeiro internacional. mercado que vinha sendo implementado pelos paíPara o governo, as reações à política macroecoses de capitalismo avançado desde o final dos anos nômica eram explicadas como o preço a se pagar 1970. pela necessidade de ajustamento da economia no Dando concretude ao projeto ainda no ano de sentido da sua modernização. Um documento ofi1990, com Collor de Mello, um expressivo programa cial do governo federal sobre a Nova política Industrial de privatização de empresas estatais e de redução de

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comendações do Consenso de Washington, estava (4) defende que essas mudanças estariam levando à apoiada em basicamente quatro pressupostos: (i) a modernização do Estado, em contraposição ao papel estabilidade dos preços criaria condições para o cál“voluntarista”, outrora assumido. culo econômico de longo prazo, estimulando o invesA Nova Política Industrial vigente no Brasil apretimento privado; (ii) a abertura comercial, associada senta diretrizes distintas das que orientaram a à valorização cambial, imporia disciplina competitiva ação do governo federal durante as seis décadas de aos produtores domésticos, forçando-os a realizarem substituição de importações. A abertura e a estabiganhos de produtividade; (iii) as privatizações e o lização econômica são elementos fundamentais das investimento estrangeiro removeriam os gargalos de transformações em curso, que envolvem uma ampla oferta da indústria e de infraestrutura, reduzindo os restruturação industrial. A ação do agente governacustos do país e melhorando a eficiência; e (iv) a libemental não traz a marca do “voralização cambial, associada à preluntarismo desenvolvimentista”, visibilidade da taxa de câmbio real, e orienta-se para estimular o setor A proposta do atrairia poupança externa, compleprivado a promover a restruturamentando o esforço de investimengoverno federal ção industrial, que já se traduz em to doméstico e financiando o déficit melhoria da produtividade e leva “baseava-se na em conta corrente. a economia brasileira a tornar-se O modelo de desenvolvimento crença de que o mais competitiva. (PRESIDÊNCIA adotado a partir dessa lógica, porDA REPÚBLICA, 1998, p. 2, grifos capital estrangeiro tanto, definiu o mercado como o no original). motor primordial do processo, e se encarregaria Essa polaridade entre o suposto não mais o Estado. Supôs que o “voluntarismo” de outrora e a nede promover o acirramento da concorrência, a cessidade de se construir um Estado partir da abertura comercial, indesenvolvimento moderno foi defendida de tal modo duziria a uma rápida transformaque Andrea Galvão afirma: “Fernando país e seria ção da estrutura produtiva, finando Henrique Cardoso elegeu a era ciada pelo processo de abertura suficiente para Vargas como alvo de seu governo”, financeira, tudo em direção a uma já que o presidente e seus ministros desencadear trajetória de desenvolvimento promoveram uma árdua crítica, e “sustentável”. uma onda mesmo um ataque aos direitos traEssa estratégia exime o Estabalhistas historicamente conquistamodernizadora do de intervir e regular para apedos, procurando sempre a prevalênnas “criar um ambiente favorável” da sociedade cia do pactuado sobre a lei. e evidencia a perspectiva política No entanto, tal estratégia de brasileira” antipopular desse projeto. Desse desenvolvimento, associada às re-

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História

modo, como pudemos perceber, essa estratégia de desenvolvimento condicionada pelas expectativas do mercado foi responsável por uma trajetória de baixo crescimento econômico ao longo da década de 1990. A implantação desse modelo refletiu a incapacidade de articulação de um projeto de desenvolvimento de longo prazo. Nesse contexto, os agentes privados foram estimulados a guiar suas decisões pelos princípios de liquidez, centrando-se essencialmente no curto prazo. Temos como resultado desse processo o agravamento da desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, como veremos mais detalhadamente à frente. A tabela abaixo mostra que, além do baixo crescimento anual da atividade econômica no período, há uma intensificação do desemprego aberto, que passou de 5,44% no primeiro ano de governo de FHC para 8,35% em 1988, último ano do primeiro mandato. Tabela 1 Taxa de desemprego e

variação do PIB real (1990-1999)

Ano

Taxa de Desemprego

Variação do PIB

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

4,65 5,24 6,14 5,75 5,44 4,96 5,81 6,14 8,35 8,26

-4,35 1,03 -0,54 4,92 5,85 4,22 2,66 3,27 0,13 0,19

Fonte: IBGE/PME – Elaboração da autora

Enquanto o goverDesregulamentação no buscou privilegiar a atuação dos agentes e flexibilização privados, com suas deconstituíram cisões de curto prazo, a abertura comercial as bases do expôs o setor produtinovo modelo de vo nacional, sobretudo a indústria, a uma desenvolvimento, concorrência desidentificadas como truidora, que levou à desnacionalização ou instrumentos-chave a um fechamento de para resolver parte de seu aparelho. Outra face da mesma os supostos moeda (ou a mesma impasses do face da mesma moeda) foi a enxurrada de desenvolvimentismo produtos importados, que foi responsável pela substituição de boa parte da produção nacional em vários setores (SOUZA, 2007). Considerando ainda que na década de 1980 a estrutura produtiva brasileira ficou praticamente estagnada, numa fase em que surgiam diversos avanços tecnológicos e a modernização das plantas produtivas pelo mundo, os efeitos fragilizadores, e mesmo destruidores, da nova política comercial sobre ela foram ainda mais impactantes. Essa nova realidade econômica impôs às empresas que se mantiveram instaladas no Brasil um rearranjo, a partir de um forte processo de reestruturação produtiva. As empresas promoveram significativos cortes de pessoal, se desverticaliza-

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ram (5), centraram o foco de suas atividades em que grandes empresas ocupam na acumulação casegmentos de mercado nos quais possuíam maior pitalista, já que essas pequenas e médias empresas capacidade de competição, redefiniram produtos voltadas para o ramo de serviços, além de se carace processos, adotaram técnicas de produção flexíterizarem pela baixa remuneração, como apontou veis, poupadoras de mão de obra, Dedecca, se inseriam numa posição e pressionaram pela flexibilização de subordinação ao grande capital, das relações com seus trabalhadocontribuindo para baratear seus A polaridade entre res. Foi posto em prática, também, custos com mão de obra e direitos o “voluntarismo” um acentuado processo de destrabalhistas. centralização produtiva, transfeDesse modo, percebemos que o de outrora e a rindo-se as sedes das fábricas para modelo econômico adotado, além construção de um locais com níveis pequenos de rede estabelecer uma forte mudanmuneração e organização da força ça na orientação da forma de o Estado moderno de trabalho e elevados incentivos Estado intervir na economia, profoi defendida fiscais. Nesse contexto, essas novocou uma desestruturação do vas ocupações, ainda que ligadas à setor produtivo, favorecendo o de tal modo que atividade industrial, são cada vez setor financeiro da economia em FHC elegeu a mais instáveis e precárias. Segundetrimento do setor produtivo, ao do dados da Pesquisa Nacional por mesmo tempo em que deslanchou era Vargas como Amostra de Domicílios (Pnad), o um movimento de reestruturação alvo, promovendo grau de formalização da indústria e concentração do capital produde transformação caiu de 72,5%, tivo, com constante pressão para ataques aos direitos em 1989, para 62,9%, em 1999. a redução dos custos do trabalho. trabalhistas Esse processo teve como conAssim, fica aparente que as iniciasequência o que foi chamado de tivas pró-mercado e a abertura às “especialização regressiva”, pois a finanças globais tiveram um efeiestrutura produtiva brasileira procurou se concento negativo sob a perspectiva produtiva, já que os trar prioritariamente em setores intensivos e em refluxos de capitais entrantes não foram capazes – e cursos naturais e mão de obra, para os quais o país não tinham mesmo a intenção – de financiar investeria, por “vocação”, melhor capacidade de concortimentos necessários para um projeto de desenvolrência – abdicando, para tanto, do investimento em vimento mais efetivo. setores industriais mais dinâmicos e assentados em * Tamara Naiz Silva é mestre em História pela um uso mais intenso de tecnologia e capital. Universidade Federal de Goiás Esses elementos juntos determinaram uma marcada modificação na estrutura ocupacional, caracterizada pela crescente participação dos setores terciários, e em pequenos e médios empreendimenNotas tos (6). Os mecenas desse tipo de desenvolvimento de(1) Este artigo faz parte dos estudos, análises e resultados obtidos fendiam que o processo era positivo e expressava na pesquisa da dissertação de mestrado Financeirização ecoa emergência de uma sociedade de “serviços monômica e mercado de trabalho no Brasil, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal dernos”, alicerçada numa forma de organização de Goiás, sob orientação do professor Dr. David Maciel. econômica menos concentrada e contribuiria para (2) Refiro-me ao processo indiscriminado de abertura financeira, a geração de emprego e renda. Todavia, a experiênà implementação do combate à inflação ancorado na moeda cia brasileira nos anos 1990 mostra que a grande sobrevalorizada e nas elevadas taxas de juros e à desnaciomaioria das ocupações foi formada por empreennalização de segmentos econômicos, inclusive por meio da privatização de importantes empresas estatais, processos dimentos pequenos e voltados para o consumo das que levaram a um movimento de reestruturação produtiva. famílias e indivíduos, tendo como marca dessas (3) Essa integração foi estimulada pelo chamado Consenso de ocupações o “baixo rendimento e a pouca qualifiWashington, orquestrado principalmente pelo Banco Mundial cação, justificadas pela baixa produtividade obtida e Fundo Monetário Internacional (FMI) no processo de renenesse tipo de atividade” (DEDECCA, 2005, apud gociação das dívidas externas dos países subdesenvolvidos. Diante do retorno da liquidez ao cenário financeiro internacioSOUZA, 2007, p. 52). nal, os países em desenvolvimento construíram uma institucioAssim, se torna difícil a compreensão de que esse nalidade que garantiu as condições de viabilidade do regime movimento tenha de fato reduzido o espaço central

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História financeirizado, acreditando que qualquer obstáculo ao fluxo de capitais seria contrário aos interesses nacionais de desenvolvimento e modernização. (4) Segundo o documento Nova Política Industrial: Desenvolvimento e competitividade a nova política para a indústria desdobrava-se nas seguintes linhas mestras: 1) Promoção de competitividade; 2) modernização empresarial e produtiva; 3) redução do “Custo Brasil”; 4) criação de ambiente institucional favorável a maior competitividade; e 5) estímulo à educação e qualificação do trabalhador. (5) A literatura sobre o tema apresenta que o movimento de desverticalização das grandes empresas foi amplamente marcado pela terceirização de diversas atividades e pela recorrente utilização da subcontratação em substituição à contratação direta da mão de obra. Dessa forma, as grandes empresas conseguiram flexibilizar o uso da força de trabalho e aumentar a produtividade, transferindo custos e responsabilidades trabalhistas para as subcontratadas (na maioria das vezes, conta própria ou pequenos empregadores). (6) A partir dos dados da PME/IBGE é possível perceber como as modificações estruturais da economia brasileira impactaram na estrutura ocupacional das regiões metropolitanas no período 1991-1998, e indicam que a participação dos ocupados na indústria de transformação caiu 3,81 pontos percentuais (passando de 18,67 em 1991 para 14,86 em 1998), enquanto no setor de serviços ela se elevou 3,97 pontos entre o início e o término do período abordado (passando de 49,78 em 1991 para 53,75 em 1998).

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A esquerda brasileira e o marxismo contemporâneo

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João Quartim de Moraes* Wilson Dias/ABr

Marcha de Abertura dos Fóruns de Porto Alegre e Canoas

Após os anos infames da década de 1990, o movimento de ideias marxistas reafirmou sua presença no pensamento brasileiro, notadamente junto à geração mais jovem 96


Teoria

O

Reconfiguração da esquerda

metido com a herança da grande Revolução de Outubro 1917, quem ampliou sua influência na esquerda brasileira. Nos meios intelectuais e no movimento estudantil, a defecção dos que estavam ligados ao “Partidão” foi amplamente compensada pelos militantes da nova geração, aos quais o marxismo proporcionou, a despeito de sua limitada presença na política partidária, os instrumentos teóricos para compreender e desmistificar, durante aqueles anos infames, a lógica antropofágica do capital financeiro.

fato de que um movimento revolucionário tenha sido aniquilado não lhe tira a importância histórica nem muito menos a grandeza moral. Na memória coletiva da esquerda brasileira, a luta armada de 1968-1975 se inscreve, em que pesem seus erros e ilusões, como uma corajosa rebelião contra um iníquo e detestável regime de exceção. De “Globalização” neoliberal imediato, entretanto, o esmagae guerras coloniais mento da luta guerrilheira e os duNos países mais ríssimos golpes sofridos pelos coricos da Europa, Os grandes retrocessos da hismunistas conduziram a um eclipse tória social da humanidade condas ideias marxistas e leninistas. A os ideólogos do temporânea estão estreitamente fundação do Partido dos Trabalha“pensamento único” articulados. Foi no Chile, sob a dores (PT) em 1980, incorporando bota de Pinochet, que os “Chicaforte componente operário mobiproclamavam que a go-boys” aplicaram experimentallizado nas grandes greves nos suderrubada do muro mente a política econômica que búrbios industriais de São Paulo, seria levada adiante na Inglaterra, reconfigurou a esquerda brasileira, de Berlim anunciava a partir de 1979, pela ultrarreacioconduzindo a um declínio relativo um mundo sem nária Margaret Thatcher e logo em da influência comunista. O próprio seguida, pelo macarthista Ronald marxismo, embora presente em muros nem Reagan, que chegou à presidênalgumas tendências do petismo, fronteiras, em que os cia do Império estadunidense em não chegou a pesar decisivamente 1980. O objetivo principal do comno pensamento ideologicamente trustes guiar-se-iam plexo de medidas impostas pelos eclético do partido em seu todo, apenas pela dois parceiros no centro hegemôno qual preponderava a influência nico do capitalismo internacional da esquerda cristã. O Partido Colivre competição era destruir o “WelfareState”, a fim munista do Brasil (PCdoB), alvo de reduzir os “custos sociais” da principal do terrorismo de Estado valorização do capital. desde o início da Guerrilha do Araguaia, pesadaO recuo do movimento comunista europeu no mente golpeado até os estertores da ditadura militar, contexto da derrocada soviética de 1989-1991 farecompôs sua organização nos anos 1980, mas sua cilitou novos ataques ao “WelfareState”. Nos países influência sobre os intelectuais permaneceu limitamais ricos da Europa, os ideólogos do “pensamento da, comparativamente à do PT. único” proclamavam que a derrubada do muro de No final daquela década, a crise letal do bloco soBerlim anunciava um mundo sem muros nem froncialista do Leste Europeu propagou perplexidade e teiras, em que os trustes, cartéis e outros “conglomedesânimo no movimento comunista, em particular rados multinacionais”, desvinculados de qualquer junto às correntes identificadas ao eurocomunismo e base nacional, guiar-se-iam apenas pela livre compeao “valor universal da democracia”. Não foi difícil à tição. A esse conto de fadas, que prosperou mesmo propaganda liberal difundir a ideia de que a derrocaem certos ambientes de esquerda contaminados por da da URSS decorrera do “fracasso” da economia cendoutrinas social-liberais, foi dado o nome de globalitralmente planificada e, por conseguinte, comprovazação. Os marxistas desmistificaram-na, mostrando ria também o do marxismo, do comunismo e da ideia que ao influxo da “desregulamentação” do mercamesma de socialismo. O Partido Comunista Brasileiro do de capitais, massas crescentes de investimentos (PCB), dito “Partidão”, já há alguns anos em franca especulativos sugaram parcelas cada vez maiores da deliquescência, juntou-se às longas colunas de demassa da mais-valia internacional. A riqueza social, sertores ansiosos por ser acolhidos pelos inimigos da e sobretudo a miséria da grande maioria da humanivéspera. O PCdoB resistiu ao incessante fogo de bardade, ficou mais subordinada do que nunca às maniragem dos meios de comunicação a soldo dos donos pulações dos vampiros das bolsas de valores. do capital, mas foi o PT, ideologicamente descompro-

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A frenética ofensiva do capital financeiro provoChina. Na lista das agressões militares neocoloniais cou o desemprego crônico de dezenas de milhões de incluem-se também a Somália, o Sudão, o Haiti, o trabalhadores, prioritariamente dos mais fracos e vulMali, o Tchad. Sem esquecer o apoio irrestrito e os neráveis (turcos na Alemanha, norte-africanos e nearmamentos letais que o governo dos Estados Unigros na França etc.). A mão de obra estrangeira foi dos proporciona aos “serial killers” que governam o empurrada para fora, como laranja já espremida. Essa Estado facho-sionista e promovem o lento, gradual e é a causa da proliferação tentacular do racismo, da xeimplacável extermínio do povo palestino, encurralanofobia e do neofascismo em toda a Europa ocidental, do no gueto de Gaza e no muro da Cisjordânia. que contaminou aqueles setores do sindicalismo que, A imensa regressão social provocada pelo neolipara defender o emprego, trocaram a luta de classes beralismo suscitou na Europa e nos Estados Unido pela caça ao imigrante. O muro do México (muito mobilizações de protesto contra os banqueiros em maior e mais mortífero do que o de particular e o capitalismo em geral. Berlim) é apenas o exemplo mais Três delas tiveram forte impacto: sórdido das novas barreiras policiais a de 1999, contra a Organização Os movimentos que foram sendo erguidas, à mediMundial do Comércio em Seattle; da que o “enxugamento” neoliberal a de 2000 em Praga contra a reu“antiglobalização” reduzia drasticamente a oferta de nião do FMI em 2000; e a de 2001 opuseram um empregos, mesmo os mais penosos em Gênova contra a reunião do G8. e insalubres. Elas foram todas atacadas com fúcorajoso “não” O desmantelamento da URSS ria por forças policiais pesadamenà comemoração rompeu o equilíbrio estratégico que te armadas; em Gênova, eufóricos ela vinha mantendo com o cartel com a volta do milionário corrupto indecente dos imperialista agrupado na Otan sob Berlusconi e seus sócios neofascisfinancistas comando dos EUA. “Esquecida” tas ao governo da Itália, os “carabida função “defensiva” em nome nieri” e outros agentes da máquina neoliberais. Mas da qual tinha sido criada no início repressiva mataram um manifespermaneceram no da guerra fria, a Otan lançou uma tante e feriram seiscentos (2). série de expedições coloniais visanEsses movimentos “antigloestágio da revolta do a recuperar algumas das posibalização” opuseram um corajoso espontânea ções perdidas para as revoluções “não” à comemoração indecente de libertação nacional vitoriosas na dos financistas neoliberais. Mas Ásia e na África a partir de 1949, permaneceram no estágio da requando triunfou a grande revolução nacional-popuvolta espontânea. A influência que eles receberam lar chinesa, dirigida pelo Partido Comunista. da crítica marxista ao capitalismo não venceu a reAntes mesmo de que assentasse a poeira do muro jeição que manifestavam pela teoria leninista do de Berlim, os mercenários do Pentágono invadiram partido revolucionário. Preferiram a doutrina da o Panamá para prender o presidente Noriega (que obsolescência da “forma partido”, nova versão do conhecia a fundo as torpezas da CIA, com a qual haculto à espontaneidade, que corresponde ao caráter via antes colaborado) e quebrar a espinha dorsal do espasmódico do combate que travaram. Em 2011, Exército panamenho, ainda impregnado do espírito quatro anos depois do desencadeamento da crise patriótico que lhe legara o coronel Torrijos. Foi só um internacional do capital financeiro, o movimento começo: o cartel da Otan invadiu o Iraque em 1991 “Occupy Wall Street” agitou a cidadela do dólar, sem e ajudou a direita croata, ao longo dos anos 1990, a afetar seriamente, porém, os pregões da bolsa. É destruir a Iugoslávia. Em 2001, tomando por pretexque por trás de Wall Street está o Pentágono, bem to o até hoje não bem esclarecido atentado dito das mais difícil de ocupar. “Torres Gêmeas”, que criou o clima de histeria propíA iniciativa “antiglobalização” de maior alcancio ao lançamento da Cruzada antiterrorista comance, da qual a esquerda brasileira participou decisidada pelo psicopata George W. Bush, os “aliados” vamente, foi a organização do Fórum Social Mun(=Pentágono e satélites) despejaram um dilúvio de dial, com o objetivo de reunir, sob o lema “um outro fogo e explosivos no Afeganistão e outro no Iraque mundo é possível”, “entidades e movimentos da em 2003; em 2011 bombardearam a Líbia para apoiar sociedade civil de todos os países do mundo”, reos terroristas a soldo dos sheiks do petróleo; quisepresentando as diversas correntes de opinião que ram fazer o mesmo na Síria em 2012, mas recuaram se opõem ao neoliberalismo. Os partidos, “enquanto diante da firme oposição da Rússia, secundada pela tais”, não foram convidados. As três primeiras reu-

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Teoria Anti-imperialismo e socialismo

Combinando forte planejamento estatal e estímulo aos investimentos capitalistas, a China se tornou uma grande potência econômica, emparelhando com os Estados Unidos

niões do Fórum ocorreram em Porto Alegre (2001, 2002 e 2003). Combinando atividades culturais, políticas e artísticas, elas foram todas bem sucedidas, com presença crescente de militantes, notadamente de jovens. A de 2003 juntou mais de cem mil participantes, vindos de 125 países. Elas prosseguiram nos anos seguintes, na Índia em 2004, novamente em Porto Alegre em 2005, depois em vários países da África, Ásia e América Latina, Brasil incluído. Algumas, ditas “policêntricas”, foram desdobradas em eventos simultâneos em vários pontos do mundo. O largo e duradouro êxito dos fóruns sociais deve-se em boa medida ao caráter amplamente aglutinador de sua plataforma política e ao forte apelo mobilizador de suas festas cívicas, abertas às mais diversas manifestações da cultura popular de todos os países. Essas características, entretanto, explicam tanto o grande sucesso quanto os limites do movimento. Este contribuiu para formar a consciência anticapitalista e internacionalista de uma nova geração de militantes. A crítica ao neoliberalismo é indispensável para se compreender a lógica que permite a uma minoria de milionários vampirizar o trabalho e a riqueza social. Mas para que um outro mundo seja possível é preciso desmantelar a formidável máquina de dominação e exploração que oprime a humanidade. Tarefa imensa, para a qual não há receita pronta, mas que não pode prescindir da crítica marxista ao capital nem da teoria leninista da organização revolucionária.

A relação internacional de forças ainda é fortemente marcada pelas consequências do desastre soviético. Mas a situação dos anos 1990 foi alterada. Embora continue acumulando tétricas montanhas de cadáveres, com o concurso do facho-sionismo, a Otan não é mais “dona do mundo”, como diziam os sabujos do plantel midiático. Combinando forte planejamento estatal e estímulo aos investimentos capitalistas, a China se tornou uma grande potência econômica, emparelhando com os Estados Unidos num extraordinariamente curto prazo. Na Rússia, Putin reconstituiu o Estado, prostituído pelo ladrão Yeltsin, reaproximou-se da China e levou adiante uma política anti-hegemônica, tirando seu país da miserável situação em que o deixara o ébrio comandante da contrarrevolução de 1991. Na América Latina, a eleição de Chávez à presidência da Venezuela em 1998 rompeu o muro neoliberal e o isolamento de Cuba. Daí em diante, as vitórias eleitorais de Lula no Brasil em 2002; de Kirchner na Argentina em 2003; de Tabaré Vazquez no Uruguai em 2004; de Evo Morales na Bolívia em 2005; de Rafael Correa no Equador; e de Daniel Ortega na Nicarágua em 2006levaram à formação de governos de centro-esquerda ou esquerda, alguns com participação dos comunistas. Eles promoveram, com maior ou menor consequência, a redistribuição de renda, a melhoria dos serviços públicos, uma política externa voltada

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As tendências marxistas minoritárias do PT, bem como o PCdoB, procuram impulsionar um programa socialista, que pressupõe o aprofundamento da democracia, o desenvolvimento das forças produtivas e o êxito da luta anti-imperialista

para a integração econômica regional e para a solidariedade contra a hegemonia estadunidense e um esforço – com resultados desiguais e, no conjunto, insuficientes – para impulsionar um desenvolvimento econômico autocentrado e equilibrado. As referências teóricas e doutrinárias de vários partidos e movimentos que participaram destes avanços sociais e políticos combinam ideias inspiradas do marxismo e da teoria leninista do imperialismo com tradições revolucionárias regionais (bolivarismo, indigenismo, sandinismo etc.). No Brasil, doze anos de governo de centro-esquerda, com Lula e depois Dilma na presidência, puseram marxistas e comunistas diante de uma situação política inédita desde o governo João Goulart. Para triunfar em 2002, e em seguida para governar, Lula teve de fazer sérias concessões aos círculos dirigentes da burguesia. Elas não o impediram, porém, de levar adiante programas sociais que arrancaram da miséria dezenas de milhões de brasileiros e de pôr fim ao alinhamento perante o bloco imperialista comandado pelos EUA. As tendências marxistas minoritárias do PT, bem como o PCdoB – integrantes do bloco de sustentação das duas sucessivas presidências, cuja amplitude abriga interesses heteróclitos e muitas vezes conflitantes –, procuram impulsionar um programa socialista, que pressupõe o aprofundamento da democracia, o desenvolvimento das forças produtivas e o êxito da luta anti-imperialista pela soberania nacional no âmbito da integração econômica latino-americana. Após os anos infames da década de 1990, o movimento de ideias marxistas reafirmou sua presença no pensamento brasileiro, notadamente junto à geração mais jovem. Entretanto, parte dos intelectuais marxistas e alguns agrupamentos comunistas perma-

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necem hostis, em nome da pureza doutrinária, a qualquer participação na frente governamental. Reduziram com isso sua propaganda à reiteração dos grandes princípios e à denúncia das misérias do capitalismo. Na falta de uma tática concreta, a capacidade que têm esses agrupamentos de influir no curso dos acontecimentos é muito limitada. O avanço do estudo e da difusão do marxismo é uma condição indispensável para a transformação socialista da sociedade brasileira, mas só a luta política de massas abrirá caminho para viabilizá-la. João Quartim de Moraes – Filósofo e Cientista político, professor universitário, membro do Conselho Editorial da Revista Crítica Marxista e integrante do Cermarx (Centro de Estudos Marxistas – Unicamp)

Notas (1) O presente artigo reelabora inteiramente tópicos de um estudo mais amplo, “Il marxismo in Brasile”, elaborado para Karl Marx 2013, coletânea editada por Roberto Fineschi com o objetivo de oferecer uma visão panorâmica da produção teórica marxista em escala internacional durante a primeira década deste século. A coletânea foi publicada em italiano como número especial da revista teórica Il Ponte, LXIX (5- 6), maio-junho 2013. (2) Sempre indulgente com os crimes fascistas, o aparelho judiciário italiano inocentou a maioria dos 44 acusados pelas brutalidades de Gênova; apenas sete foram condenados em 2013. A AmnestyInternational considerou a ação da polícia neofascista de Berlusconi e seus sócios neofascistas “o mais grave atentado contra os direitos democráticos num país ocidental desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A intenção da frase é boa, mas qualquer que seja a extensão que se confira ao termo “país ocidental”, ela certamente inclui Espanha e Portugal, que permaneceram sob poder fascista até meados dos anos 1970. Quem sabe a grave omissão se deva ao hábito mental dos humanistas liberais de identificar “ocidental” a “democrático”. Omissão ainda mais reveladora dos preconceitos “ocidentais” da AmnestyInternational é a do massacre de outubro 1961 em Paris. Durante a guerra de libertação nacional da Argélia, Maurice Papon, ex-colaborador dos ocupantes nazistas e chefe de polícia da região parisiense, decretou toque de recolher para os argelinos, que já vinham sendo sistematicamente molestados pelos policiais. No dia 17 de outubro, mobilizados para dissolver uma vasta manifestação de protesto em Paris, os argelinos foram literalmente massacrados pelas tropas de Papon. No dia seguinte, centenas de cadáveres boiavam no Sena.


Teoria

Sociedade dos Amigos de Lênin Lançada em 6 de junho de 2014, a Sociedade dos Amigos de Lênin (SAL) se propõe a estimular o estudo, a pesquisa e a divulgação do pensamento de Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin, em especial nos campos da economia política, da filosofia, da cultura, do Estado, da ciência política, da experiência de transição à construção do socialismo e seus desenvolvimentos na contemporaneidade. Realizada no auditório da sede nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), em São Paulo, a solenidade reuniu acadêmicos, estudantes e militantes progressistas. Na ocasião, foram apresentados e debatidos o Manifesto de constituição e a coordenação da nova entidade. Sérgio Barroso, diretor de Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois (diretoria à qual a SAL é vinculada), comenta, nesta entrevista, a ideia e os propósitos da Sociedade

Manifesto da Sociedade dos Amigos de Lênin (SAL)

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ste manifesto argumenta acerca da necessidade de criação de uma Sociedade dos Amigos de Lênin, no Brasil. Baseando-se em debates da Fundação Maurício Grabois, a ideia inspira-se na famosa sugestão de Lênin preconizando a formação de um “Clube de amigos de Hegel”. Essencialmente, nossa proposta pretende retomar as contribuições do grande teórico e político russo, em dimensões prospectivas e contemporâneas.

1. A inteligência revolucionária da nossa época Em janeiro deste ano completaram-se 90 anos da morte de Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido

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por Lênin. Diferentemente de anos passados, desta vez registraram-se iniciativas celebrando o legado desse gigante da luta revolucionária pelo socialismo. Entretanto, mesmo em crise sistêmica da sociedade burguesa, persiste uma visão negativa do legado teórico e político de Lênin e das épicas jornadas de Outubro 1917, das quais foi o grande inspirador e dirigente. Sua firme oposição aos principais líderes da socialdemocracia europeia, que haviam capitulado perante a deflagração, em agosto de 1914, da Grande Guerra Mundial entre as potências imperialistas, tornou-o a maior referência, entre os marxistas revolucionários, no combate pela renovação e revigoramento do marxismo e pela construção de uma estratégia revolucionária adequada aos novos tempos caracterizados pela transformação imperialista do capitalismo. Assumiram a fundo, no combate pelo socialismo, a defesa da paz entre os povos, da independência nacional, contra a guerra e o colonialismo. Quando a Revolução soviética triunfou, a maior parte da humanidade ainda vivia sob o domínio de potências coloniais, notadamente da Inglaterra, a França, a Alemanha e o Japão e Holanda etc. Foi ao influxo das ideais de Lênin que os marxistas passaram a defender o direito das nações à autodeterminação e conclamaram a luta os povos dos países dependentes e coloniais contra a opressão nacional. Lênin era um radical inimigo do dogmatismo e das ideias estereotipadas no interior do marxismo: “A história em geral e a das revoluções em particular é sempre mais rica de conteúdo, mais variada de formas e de aspectos, mais viva e mais ‘astuta’, do que imaginam os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das classes mais avançadas”. Absorvendo ideias pioneiras de Engels, ele travou intenso combate à petrificação doutrinária da teoria marxista, que devia ser um “guia para ação”. Para ele, Marx e Engels apenas haviam colocado as pedras iniciais da construção naquele poderoso sistema teórico, cabendo às sucessivas gerações dar prosseguimento à grandiosa obra. Se o marxismo não conseguisse dar conta dos novos fenômenos que surgiam no movimento histórico, poderia degradar-se e transformar-se num dogma incapaz de intervir no curso dos acontecimentos. Lênin sugeriu ainda que as revoluções tenderiam a eclodir nos elos mais fracos da cadeia imperialista, não necessariamente onde o capitalismo fosse mais avançado. Constatou que a lei do desenvolvimento desigual criava possibilidades de rupturas revolucionárias, sustentando firmemente que o início da construção do socialismo poderia ocorrer num único país ou num pequeno número de países localizados na

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periferia do sistema. Isso foi plenamente comprovado por revoluções ocorridas no século XX.

2. A força atual da teoria leninista

Quase um século depois de sua publicação, O imperialismo, etapa superior do capitalismo continua sendo um instrumento teórico indispensável à compreensão da lógica concreta do capital. Segundo Lênin, o capitalismo central, mais avançado, se reproduz em permanente tensão entre a “decomposição” e o “desenvolvimento”. “O imperialismo é a época do capital financeiro e dos monopólios, que trazem consigo, em toda a parte, a tendência para a dominação, e não para a liberdade. A reação em toda a linha, seja qual for o regime político. (...) Intensificase também, particularmente, a opressão nacional e a tendência para as anexações, isto é, para a violação da independência nacional”. A dialética materialista de Marx aponta os limites objetivos do modo capitalista de produção e suas rupturas recorrentes, mas abstém-se de especular sobre seu colapso final. A lei do desenvolvimento desigual do capitalismo – para Lênin uma lei absoluta – é fundamental para entender as determinações que impulsionam a dinâmica do sistema atual de relações internacionais capitalistas. A crise sistêmica do capitalismo que estamos presenciando inscreve-se num ciclo de agudas crises provocadas pelo predomínio do capital financeiro da época do imperialismo, que amplia o desenvolvimento desigual entre os países centrais e periféricos e estimula os conflitos e as guerras neocoloniais. Lênin elaborou um novo aporte teórico ao entronizar a questão nacional na revolução. Assim como a ideia de formação social a partir da própria experiência nacional mesclada por atraso secular e impulso industrializante. A elaboração por Lênin de uma teoria da transição ao socialismo na Rússia Soviética, baseada na análise no capitalismo de Estado e que naquele período se expressa na construção da Nova Política Econômica (NEP), tem uma dramática atualidade. Para ele, a construção do socialismo em países periféricos deveria ser longa e conhecer várias etapas. Num primeiro momento, combinariam elementos socialistas e capitalistas; planejamento e mercado. Outra importante ideia-força deixada por Lênin é que não existem modelos únicos de revolução ou de transição. Cada povo, a partir de suas condições históricas e consciência social, deverá construir os seus próprios caminhos. Nesse sentido, os partidos comunistas autenticamente revolucionários só poderiam consolidar sua influência junto ao inaba-


Teoria lável trabalho de massas; intervindo nos acontecimentos políticos e não fugindo deles. Questão universal e perene da luta de classes no capitalismo, o esquerdismo professava – e professa – rejeição a quaisquer compromissos com outras camadas sociais ou forças políticas não comunistas. Lênin, pelo contrário, advogava a necessidade de se estabelecer acordos e compromissos na luta política. A história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro – dissertou ele em 1920 – realizou--se cheia de casos de manobras, de acordos e compromissos com outros partidos, inclusive burgueses. Mas, sublinhava: “há compromissos e compromissos”. Atuar e aprender no movimento com as massas, alterar quando necessário as posições táticas; não temer “ficarmos sós” dadas as circunstâncias.

3. A fecundidade da construção de Lênin nas adversidades hodiernas

Do legado teórico marxista em Lênin sublinhamos principalmente: a) a lei do desenvolvimento desigual do capitalismo, compreendendo assimetrias e disputas entre o núcleo dos países no estágio do imperialismo, e destes com os países periféricos; b) a análise da degeneração multiforme do capitalismo central, até as guerras; c) a elaboração sobre a evolução do declínio civilizatório deste capitalismo, às revoluções proletárias da nossa época; d) uma nova teoria da transição ao socialismo; e) a sistematização da teoria de conhecimento e a atualização da con-

cepção de materialismo; f)os inusitados aportes culturais captados no nascedouro da nova sociedade, novos desafios da educação a partir de fundamentos epistemológicos profundamente transformadores. De outra parte, sabemos que Lênin passou a ser “sacrificado”, muitas vezes em nome de um Marx “metodológico” ou quase inofensivo. Coincidentemente à derrota da experiência da construção socialista, configurada numa bipolaridade sistêmica mundial. Da omissão aos ataques a Lênin, setores da intelectualidade buscam eliminar o ineditismo histórico da Revolução de Outubro de 1917. Em fidelidade à nossa história, elencamos entre as razões fundantes em nos dispormos a construir uma Sociedade dos Amigos de Lênin recordando igualmente o forte impacto obtido pelas ideias dele entre pensadores e revolucionários no Brasil. O que conclama reforçar em nossos dias a difusão de seu pensamento, de sua obra, de suas realizações políticas. Ademais do perscrutar os caminhos da ideiaforça da transição socialista no Brasil.

Coordenação Nacional: Lígia Maria Osório, Marly Vianna, Zoia Prestes, Rita Coitinho, João Quartim de Moraes, Augusto Buonicore, Walter Sorrentino, Fabio Palacio, e A.Sérgio Barroso (coordenador).

Nasce a Sociedade dos Amigos de Lênin (SAL) Aloísio Sérgio Barroso (foto ao lado), diretor de Estudos e Pesquisas da Fundação Maurício Grabois, comenta a ideia da Sociedade e os passos que levaram à sua constituição Portal Grabois – Como surgiu a ideia de fundar a Sociedade dos Amigos de Lênin? Aloísio Sérgio Barroso: A ideia tem mais ou menos um ano. Surgiu nos debates da Fundação Maurício Grabois e em cursos da Escola Nacional do PCdoB sobre o capitalismo imperialista da nossa época, tendo por base a definição de Lênin no livro O Imperialismo, fase superior do capitalismo, o que ele já então assinalara como

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a predominância do capital financeiro; assim como o imperialismo como reação em toda linha e promotor da tendência à guerra. Tanto a predominância se acirrou muito, como, mesmo depois de duas guerras mundiais, se expandiram as tentativas de recolonização. Especialmente a invasão do Afeganistão em 2001 pelos Estados Unidos, a ocupação do Iraque em 2003, bem como essas últimas tentativas de guerra pelo imperialismo, em particular o americano, mostrando mais do que nunca a sua faceta agressiva, belicista. Por outro lado, existe a crise atual do capitalismo, que tem o componente da finança como fundamento decisivo, que começou em 2007. Foi a partir dessas discussões que apareceu a ideia da necessidade de criar a Sociedade dos Amigos de Lênin. Concretamente, um programa de estudos e atualização abrange a economia política e o imperialismo, a filosofia — o desenvolvimento do materialismo dialético, para o qual o próprio Lênin deu uma grande contribuição na sua época —, a parte de ciência política e Estado, o debate sobre categorias da transição ao socialismo na experiência de construção do socialismo, o capitalismo de Estado por um determinado período etc. Ou seja: os elementos que compuseram a época de Lênin, o desenvolvimento dessa teoria, formariam, digamos assim, um ponto de partida para pesquisas em torno da atualidade e permanência desses temas. Como a Sociedade dos Amigos de Lênin funciona, concretamente? A obra de Lênin, sua teoria e o olhar sobre o desenvolvimento dela, temos consciência disso, são muito vastos. Temos muita consciência disso. As traduções das obras completas de Lênin, em várias línguas, passam de 50 volumes. Por exemplo: a tradução da editora espanhola Akal, muito renomada, tem 57 volumes. Muito preciosa e detalhada. Estou comentando isso para dizer que muita coisa da obra de Lênin não se conhece ou pouco se tem conhecimento. Muitos aspectos do seu pensamento são pouco conhecidos, notadamente pelas novas gerações de lutadores sociais. Somente pesquisadores honestos, intelectuais vinculados ao movimento comunista, tiveram a oportunidade de se debruçar sobre ela com muito detalhe e por um longo período. Por exemplo: o professor Moniz bandeira, pesquisador e historiador brasileiro de primeira linha, seguramente é dos pioneiros a difundir a biografia de Lênin no Brasil. Ele diz, logo na abertura do seu livro Lênin. Vida e obra (Paz e Terra, 1978): “[Lênin] Escreveu, em trinta anos, cerca de dez milhões de palavras, cada uma intimamente vinculada ao processo da maior revo-

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lução social da história.” Também Florestan Fernandes introduziu uma coletânea de artigos de Lênin (1979). Os comunistas João Amazonas e Maurício Grabois de lhe renderam homenagem, em A atualidade do pensamento de Lênin (1971). Já o filósofo francês Lucien Sève, que deve ter próximo de 90 anos, um grande estudioso de Lênin, disse que passou 50 anos da vida estudando sua obra. Em outro ângulo, pouco se conhece um artigo de Lênin, publicado no jornal Pravda em 1921, denominado “Para o 4º aniversário da Revolução de Outubro”, em que ele fala do imperialismo após a publicação do seu clássico sobre o tema. Lênin diz no artigo da inevitabilidade de o imperialismo provocar guerras. Ele escreveu isso em 1921, logo após a Primeira Guerra Mundial, e mais à frente, em 1939, iniciava-se a Segunda Guerra Mundial. Lênin estava convicto do aguçamento das contradições interimperialistas, de que elas prosseguiriam. É um texto pouquíssimo conhecido, debatido sobre esse ângulo, esse aspecto. Por isso, a SAL terá como objetivo também a divulgação de aspectos do pensamento de Lênin, de textos da sua obra, no sentido de difundir o pensamento dele. Há um ponto inicial para tratar de temas tão vastos? O nosso objetivo é claramente modesto, porém luminoso. Porque não se trata apenas de homenagear o nome desse grande pensador revolucionário e primeiro estadista do socialismo do planeta. Trata-se, essa é uma preocupação nossa, de constituirmos um núcleo de pesquisas e, a partir disso, promover de debates, conferências, elaborações de textos, novas contribuições em torno da obra do Lênin, nacionais e internacionais. E fundamentalmente fazer reflexões sobre a incidência em aspectos contemporâneos dessa teoria. Por exemplo: o problema da dominação imperialista na América Latina hoje, vis à vis a nova experiência de construção de governos progressistas. Sabemos, a exemplo, que a tentativa de desestabilização da Venezuela é um traço muito marcante na história recente do continente latino-americano. E essa desestabilização, via golpe de Estado, tem um endereço


certo: o imperialismo norte-americano. Esses proQual o alcance pretendido para a Sociedade blemas estratégicos, particularmente no nosso condos Amigos de Lênin? tinente, tem muita relevância para Estamos pensando como as peso direcionamento e consciência das soas poderão se associar, se vinculutas de hoje. lar, quais serão os mecanismos de Todas as pessoas algum compromisso dos interessaque têm interesse A Fundação Maurício Grabois dos. Vamos ter muita flexibilidade promoveu recentemente uma em relação a isso. Todas as pessoas em conhecer, atividade com esse conteúdo, que têm interesse em conhecer, elaelaborar ou não foi? borar ou difundir questões acerca Exatamente. Consideramos um da obra de Lênin certamente vão difundir questões marco a vinda aqui no Brasil do procurar a Sociedade, vão procurar acerca da obra de professor português José Barata se inteirar sobre como podem conMoura, um filósofo e grande martribuir etc. Não precisa, evidenteLênin certamente xista contemporâneo, a convite da mente, ser especialista na obra de vão procurar a Fundação Maurício Grabois, em Lênin. Basta ter interesse em co2010. Ele esteve conosco e fez uma nhecê-la e difundi-la. Sociedade, vão exposição sobre Lênin e a filosofia, Queria agregar que entre os teprocurar se inteirar seus ensinamentos para hoje. Isso mas propostos teremos também a resultou em um livro, editado pecultura. Lênin foi um grande insobre como podem la Editora Avante, em 2010 (Sobre teressado, um grande estudioso contribuir Lenine e a filosofia. A reivindicação de dos problemas da cultura da nova uma ontologia materialista com projecsociedade. Existem entre nós comto), muito valioso porque analisa as panheiros que estão pesquisando, contribuições de Lênin sobre a filosofia, indicando os debatendo isso. É um tema também disperso nas desdobramentos na luta de ideias do nosso tempo, obras de Lênin. Sabe-se pouco que esse tema reflexões, enfim um balanço sobre o desenvolvimenteve um grande apelo para Lênin. A nova to do seu pensamento filosófico. cultura socialista, a cultura soviética, Isso foi mais um componente que nos ajudou a as suas bases, desenvolvimento etc. refletir sobre a necessidade de que a Fundação Maurício Grabois disponha desse novo instrumental, elaMatéria originalmente publicada no Portal borando iniciativas sobre o pensamento de Lênin. Grabois (www.grabois. Queremos intensificar a reflexão, a contribuição no org.br) em 06 de sentido de procurar identificar as principais questões junho de 2014 correspondentes ao desenvolvimento do pensamento marxista a partir de uma visão leninista contemporânea, com o objetivo de apontar as linhas das posições revolucionárias transformadoras no século XXI; que elas sejam avivadas, sejam colocadas em discussão, noticiadas, difundidas para reflexão e atividade político-ideológica. Quais serão os próximos passos da Sociedade dos Amigos de Lênin? Vamos divulgar o Manifesto tratando dos objetivos e do esboço programático, e organizar as atividades da Coordenação. É uma nova área da Fundação, de pesquisa, reflexão em torno das contribuições sobre o desenvolvimento do pensamento de Lênin. Não tem orientação pré-fixada, nada disso. Será um espaço fundamentalmente de reflexão e de pesquisa sobre a obra do Lênin. Além da coordenação e do Manifesto, vamos ter um espaço de divulgação no Portal Grabois. A ideia é criar uma página específica para a Sociedade.

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A morte do touro Mão de Pau: o encantamento de Ariano Suassuna Joan Edesson de Oliveira*

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Ariano buscava o Brasil real, diferente do Brasil oficial. Ele perseguia “a pedra angular para a futura edificação de nossa Pátria como Nação”

m um artigo publicado em 04 de julho de 2000, na Folha de S. Paulo, Ariano Suassuna faz uma referência ao Cego Oliveira, músico e poeta popular do sertão cearense. Já bem velho, em depoimento prestado ao cineasta Rosemberg Cariry, o cego declarou que “uma vez, na hora de acabar o toque, cantei uma despedida tão bonita que uma mulher disse: ‘Faz pena um homem desse ter que morrer um dia!’”. Ariano, em referência a isso, escreveu: “De minha parte, não sei tocar rabeca, não mereço comentário tão belo e comovente...”. Começo, então, pela morte, por vários motivos: porque o mestre Ariano encantou-se recentemente; porque a morte foi tão recorrente na sua vida; porque o tema da morte foi sempre presente na sua obra. Acho que Ariano nasceu de fato aos três anos de idade. Embora oficialmente nascido em 16 de junho de 1927, penso que foi em 9 de outubro de 1930, quando assassinaram seu pai João Suassuna, ex-governador da Paraíba, que Ariano acordou para a vida. A partir daí, essa marca vida/morte se fez presente muito fortemente, no homem e na obra.

“Aqui morava um rei quando eu menino Vestia ouro e castanho no gibão, Pedra da sorte sobre meu destino, Pulsava junto ao meu, seu coração. (...) Mas mataram meu pai. Desde esse dia Eu me vi, como cego sem meu guia Que se foi para o Sol, transfigurado. (...)” 106 106

A morte de João Suassuna se grudou nas retinas do menino, os olhos esbugalhados e apavorados do novilho novo, na ferra, o branco do olho engolindo o mundo. Na anca direita, naquele distante outubro, o ferro da morte, sua proprietária; na anca esquerda, a marca da freguesia, o sertão. Ariano foi ferrado ali, bezerro ainda, o ferro em brasa lhe marcou e ele carregou essas duas marcas com orgulho por todo o sempre. A marca da freguesia foi, contudo, mais forte que a marca de propriedade. Pertencia à morte, é verdade, ela era a matriarca num mundo patriarcal, senhora de homens e bois e bichos vários; mas vivia no sertão, sua freguesia, que cantou enquanto pode, nas suas quase nove décadas de vida. Ariano foi cantor e arauto de um sertão medieval, mestiço, de uma mestiçagem violenta, forjada no extermínio dos índios para ocupar os seus territórios com as fazendas de criar; uma mestiçagem nascida do tronco e do chicote para que os negros compreendessem que tinham dono, senhores de vida e morte; uma mestiçagem que ocorreu sempre sob o domínio do branco, olho azulado, com fumos de nobreza no sobrenome e nos baús de couro abarrotados de ouro e prata. Mas Ariano, ele próprio, era desses brancos, não era mestiço. Jamais quis sê-lo. Sabia o seu lugar no mundo, pertencia à classe dos que mandavam.


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Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, uma das peças fundamentais para que o compreendamos melhor, afirma que,

Egresso do patriarcado rural derrotado pela burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes poderosas (...). Sei, perfeitamente, que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não de outra, que vai fazer de mim um camponês pobre. Contudo, Ariano fez uma opção, a de se colocar na defesa do povo brasileiro e da sua cultura. Mais especificamente, em defesa do sertão e da sua cultura popular. No mesmo discurso, afirma que, como “escritor pertencente a um país pobre e a uma sociedade injusta”, está a serviço, convocado.

Pode até ser que o País objete que não me convocou. Não importa: a roupa e as alpercatas que uso em meu dia a dia são apenas uma indicação do meu desejo de identificar meu trabalho de escritor com aquilo que Machado de Assis chamava o Brasil real e que, para mim, é aquele que habita as favelas urbanas e os arraiais do campo. Para mim, essa fala sintetiza a vida e a obra de Ariano Suassuna. Ele foi exatamente isso, um intelectual a serviço, um intelectual “convocado”. Muitos poderão até torcer o nariz pelo uso do termo, mas ele foi um intelectual engajado, em defesa do Brasil, do sertão e da cultura popular. Neste sentido, Ariano foi sempre radical e intransigente. De uma intransigência tal que o levou, várias vezes, a ser incompreendido e atacado por alguns. Agora mesmo, por ocasião da sua morte, alguns voltaram à carga: “Ariano não compreendia a diversidade do Brasil; Ariano exagerava na sua defesa da cultura popular; Ariano não conseguia enxergar além dos estreitos limites do termo ‘popular’”. Enganam-se todos, a meu ver. Ariano tinha a mais absoluta clareza e o mais absoluto conhecimento sobre a diversidade da nossa cultura e, se há algo de que não se pode acu-

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sá-lo, é de reducionismo do termo “popular”. Nele, o popular e o erudito se fundiram perfeitamente. Ariano só pode ser compreendido dentro de sua obra. A obra, por sua vez, só pode ser bem compreendida conhecendo a vida do seu autor. Quaderna, personagem central do Romance d’A pedra do reino, seria o próprio Ariano? Quaderna parece, a mim, uma mistura de Quixote com Sancho Pança. Nele convivem um mundo ideal e um mundo real, a fantasia quixotesca com a realidade nua e crua de Sancho. E Ariano não era exatamente assim? Não habitavam, nele, essas duas metades? O que ele era, senão um sonhador com o mais absoluto senso de realidade? O Auto da compadecida pode ser situado no mesmo campo. Ali, o sertão é retratado em toda a sua crueza, um “sertão poento”, como ele gostava de dizer, duro, cru, propriedade da morte. Ao mesmo tempo, um sertão de festa. O Auto é outra mistura de fantasia e realidade, de uma realidade que beira a fantasia, de uma fantasia que poderia perfeitamente ser real. Como isso é possível? Não sei. Como Chicó, “só sei que foi assim”. Assim também o erudito e o popular em Ariano. Onde começa um e termina o outro, quem se arriscaria a dizer? No Movimento Armorial, rica e bela contribuição cultural, essa fusão se fez quase à perfeição. Os ferros de marcar gado no sertão fazem parte do armorial, bem como os reis das cavalhadas, os personagens dos reisados, as cortes presentes em tantos dos folguedos populares do sertão. Talvez por isso, em algum momento, tenham dito que Ariano se aproximava dos monarquistas. Ariano enxergava aquele sertão medieval, e o medievo era espaço de reis e rainhas. Por isso, no sertão, ainda hoje, tantos signos e símbolos remetam a isso. Ariano compreendeu, para além do entendimento comum, o que estes signos e símbolos representavam. Há incompreensão também na afirmação de que ele “exagerava” em defesa da cultura popular e no ataque sistemático que fazia à chamada “cultura de massas”; na defesa intransigente do que era “brasileiro” e no ataque aos estrangeirismos de qualquer espécie. Nunca consegui enxergar nisso qualquer “exagero”. Talvez, Ariano agisse no sentido da “curvatura da vara” de Lênin. A cultura do povo, tão massacrada, escondida, ridicularizada, precisava vir para o centro do palco. Para isso, era necessário o “exagero” da sua defesa, era necessário curvar a vara até o outro extremo, para que se encontrasse um ponto de equilíbrio. O exagero, noutro sentido, integrava a obra de Ariano. O exagero “rabelaisiano”, no dizer de Mikhail Bakhtin. Os personagens mais importantes de Ariano são rabelaisianos, não tenho dúvidas. Suas obras mais


Cultura importantes remetem à ópera bufa, ridicularizando os poderosos. O riso, em Ariano, era arma dos oprimidos, era o tapa na cara que os opressores recebiam, por vezes, sem sabê-lo.

Obra complexa, múltipla, recheada de símbolos, a de Ariano. O que eram as onças, tão presentes em seus poemas? Morte, mulher, coragem, lealdade. Significavam cada uma dessas coisas em cada tempo, às vezes mais de uma a uma só vez. Em O mundo do sertão, o poeta canta:

Diante de mim, as malhas amarelas do mundo, Onça castanha e destemida. As onças de Ariano são douradas, amarelas, pardas, castanhas. Mas são sempre fêmeas, sejam a morte ou a mulher, a coragem ou a lealdade. Ariano buscava o Brasil real, diferente do Brasil oficial. Seguindo os passos de Machado de Assis, como afirmava, queria o Brasil real. Naquele discurso de 1990, quando ainda tateávamos em busca de um rumo, recém-saídos da noite da ditadura, Ariano perseguia

A pedra angular para a futura edificação de nossa Pátria como Nação. Uma nação na qual a cisão atual seja substituída pela indispensável identificação e onde, pela primeira vez em nossa atormentada História, o Brasil oficial se torne expressão do Brasil real. Agora, Ariano se foi. No último 23 de julho ele foi, enfim, completar a trindade que se bateu para compreender e defender a cultura popular e o sertão. Juntou-se a Leonardo Mota e Câmara Cascudo que, antes dele, palmilharam terrenos muito próximos, e bateram-se dura e valentemente em batalhas muito parecidas. Formam, agora, uma trindade popular sertaneja. Sua morte deve ser motivo de tristeza, mas eu prefiro celebrá-la, mais uma vez, na forma rabelaisiana de Bakhtin. As sentinelas feitas no sertão não são momentos apenas de tristeza. Ali, ao redor do morto, enquanto se o pranteia, também se contam as suas histórias singulares, descambando quase sempre para

a pilhéria e o riso. O riso vence a morte, e a morte nada mais é do que a promessa de um renascimento. Ali, amigos, conhecidos, ou apenas o passante solidário, aguentam a noite inteira, movida a café, cigarro e uma caninha, que ninguém é de ferro em vigília tão longa. Quase sempre, no meio da sala da casa pobre, o morto, arrumado em sua melhor roupa, espera o dia seguinte, pois agora terá todo o tempo para esperar. Lá fora, no riso e na pilhéria, sua obra parece continuar. Creio que o sertão, desde 23 de julho, faz sentinela para Ariano. Para o romancista, para o teatrólogo, para o poeta tão alto que passou quase despercebido. Sua obra continua. Os versos que escreveu para o pai, inspirados na obra do poeta Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha, o Fabião das Queimadas, analfabeto e alforriado com o dinheiro que ganhou como cantador, bem servem agora para o próprio Ariano.

Silêncio. A serra calou-se No poente ensanguentado. Calou-se a voz dos aboios, Cessou o troar dos cascos. E agora, só, no silêncio Deste sertão assombrado, O touro sem sua vida, Os homens em seus cavalos. Mestre Ariano se enganou uma vez, quando afirmou, falando sobre o Cego Oliveira, que não merecia tão belo e comovente comentário. Enganou-se o mestre. Faz muita pena um homem como ele ter que morrer um dia. * Joan Edesson de Oliveira é mestre em Educação Brasileira, sertanejo e leitor do mestre Ariano Suassuna

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Rui Facó, o marxismo com a cara do Brasil José Carlos Ruy

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Rui Facó – O homem e sua missão Autor: Luís-Sérgio Santos Ano: 2013 Págs: 275 Editora: Omni Preço: R$ 30,00 Disponível em http://www.ruifaco. com.br/artigoBiografiaRuiFaco.html

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om o lançamento de Rui Facó (uma biografia) o homem e sua missão, de Luís-Sérgio Santos, pode-se conhecer um pouco mais sobre seu autor, Rui Facó. Nascido em 4 de outubro de 1913, em Beberibe (CE), Facó foi um notável jornalista comunista cuja vida foi colhida, ainda jovem e no auge de sua produção teórica e intelectual, quando o avião em que viajava de Santiago do Chile à Bolívia caiu nos Andes peruanos, próximo ao vulcão Tacora, em 15 de março de 1963. Ele tinha apenas 49 anos de idade e viajava como repórter do jornal comunista Novos Rumos e para representar o Partido num congresso dos comunistas chilenos. Ele chegou nem mesmo a participar do lançamento de Cangaceiros e Fanáticos, que ocorreu logo depois de sua morte, em 26 de abril de 1963. Rui Facó era filho de uma família de pequenos fazendeiros, militares e intelectuais. Teve tios com importantes cargos na Segurança Pública no Ceará e na Bahia. Outro tio, Américo Facó, foi um poeta respeitado e amigo de Carlos Drummond de Andrade, que dedicou a ele o livro Claro Enigma (1951). Ele mudou-se para Salvador (BA) em 1936, para terminar o curso de Direito. E, na capital baiana, encontrou o Partido Comunista do Brasil. “Em 1935, a faculdade tinha uns quarenta jovens comunistas, militantes que se reuniam diariamente”, diz Luís-Sérgio Santos. Esse número diminuiu bastante depois do levante da Aliança Nacional Libertadora, em novembro de 1935. Mas Rui Facó, que se manteve filiado ao partido, teve forte atuação na imprensa baiana, trabalhando nos Diários Associados e no jornal A Tarde. Nos anos 1930, participou de Seiva, a revista dos comunistas; depois esteve em publicações partidárias como Continental (anos 1940), Estudos Sociais (anos 1950 e 1960), A Classe Operária, Novos Rumos (desde a fundação, em fevereiro de 1959, até sua morte, em 1963) etc. Toda essa atividade jornalística despertou o historiador (afinal, são atividades muito parecidas, uma voltada sobretudo ao relato do presente, e a outra à compreensão do passado) e o teórico marxista. Caráter teórico, aliás, fortalecido nos cursos em que participou principalmente na União Soviética, onde também exerceu funções profissionais na rádio Moscou, em programas dirigidos ao Brasil. O foco profissional de Rui Facó foi múltiplo, unificado pelos interesses e pela política do Partido. Ele foi, por exemplo, um dos roteiristas (com Jorge Amado e Astrojildo Pereira) do filme Vinte e Quatro anos de luta (1946), dirigido pelo cineasta comunista Ruy Santos. Foi também tradutor de livros marxistas, entre eles (com Josué de Almeida e Almir Matos) da História do Partido Comunista da União Soviética, lançado em português pela Editora Vitória em 1962. As referências sobre a vida de Rui Facó são escassas, e o livro de Luís-Sérgio Santos preenche esta lacuna. Com a morte de Rui Facó, naquele acidente aéreo em 1963, o marxismo perdeu uma de suas promessas mais veementes de desenvolvimento a partir do exame da realidade brasileira e suas contradições. O conhecimento de sua vida, suas lutas, seu espírito aberto e brincalhão, solidário e conceitualmente rigoroso pode ser fonte de inspiração para a continuidade e o aprofundamento da luta teórica que enriqueça o marxismo com feições brasileiras.


Livros

Blogueiros, uni-vos (mas nem tanto...) Felipe Bianchi e Altamiro Borges

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Blogueir@s, uni-vos (mas nem tanto...) Autor: Felipe Bianchi e Altamiro Borges Ano: 2014 Págs: 176 Editora: Anita Garibaldi Preço: R$ 20,00 Disponível para venda: http://www. baraodeitarare.org.br/

om o advento da internet, está em curso uma “revolução” nos meios de comunicação. As tiragens dos jornais e revistas despencam no mundo inteiro e vários veículos impressos já faliram ou migraram para a mídia digital. Os efeitos deste tsunami também se fazem sentir nas emissoras de rádio e televisão, com a queda de audiência e a migração – principalmente dos jovens – para as telinhas dos computadores, tablets e celulares. O bilionário mercado publicitário, que garante os altos lucros da mídia monopolizada, sente o impacto nas placas tectônicas. Diante deste cenário, os barões deste setor se utilizam de todos os expedientes para salvar o seu modelo de negócios e para manter os seus impérios midiáticos. Eles se sentem incomodados com o florescimento da blogosfera e das redes sociais. É certo que a internet não supera o poder dos monopólios da mídia. Tanto que vários países discutem novas leis para regular este setor estratégico, que hoje coloca em perigo a própria democracia. Até a “chavista” Rainha Elizabeth II acaba de aprovar normas rigorosas para a mídia impressa no Reino Unido. Na América Latina, vários governos progressistas sentiram a força desestabilizadora e golpista da velha imprensa e também adotaram legislações para coibir a ditadura midiática. O Brasil, infelizmente, está na “vanguarda do atraso” no que se refere à adoção de uma lei para a democratização dos meios de comunicação. Enquanto as mudanças legais não vingam, os ativistas digitais vão desempenhando o papel de uma guerrilha, fazendo o contraponto ao exército regular dos impérios midiáticos e reforçando a luta pela democratização da comunicação no país. Na eleição presidencial de 2010, por exemplo, eles ajudaram a desmascarar várias farsas montadas pela mídia tradicional, como no famoso episódio da “bolinha de papel” que atingiu a careca do candidato preferido da velha imprensa. Neste esforço, a blogosfera brasileira inclusive percorre um caminho inédito no mundo, tentando dar maior organicidade à sua atuação. Respeitando as divergências, ela procura construir a unidade na diversidade para aumentar sua força! O livro Blogueir@s, uni-vos (mas nem tanto...) é um esforço para entender esta realidade dinâmica, contraditória e apaixonante. Ele serve de roteiro para o debate e como um passo inicial e parcial no estudo das mudanças em curso. Além de analisar os impactos da internet no mundo e no Brasil, ele relata a experiência da blogosfera brasileira. Os depoimentos de vários ativistas digitais, que atuam com coragem e combatividade na luta de ideias, mostram que a riqueza deste movimento sui generis está exatamente na sua diversidade. As resoluções dos quatros encontros da chamada blogosfera progressista, ou simplesmente “blogprog”, ajudam a fixar a memória deste movimento ousado e unitário. * Apresentação do livro “Blogueir@s, uni-vos (mas nem tanto...)”, publicado pelo Centro de Estudos Barão de Itararé. Adquira o seu exemplar:contato@ baraodeitarare.org.br

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Faz pena um homem desse ter que morrer um dia!’ LÁPIDE

por Ariano Suassuna

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo nas pedras do meu Pasto incendiado: fustiguem-lhe seu Dorso alardeado, com a Espora de ouro, até matá-lo. Um dos meus filhos deve cavalgá-lo numa Sela de couro esverdeado, que arraste pelo Chão pedroso e pardo chapas de Cobre, sinos e badalos. Assim, com o Raio e o cobre percutido, tropel de cascos, sangue do Castanho, talvez se finja o som de Ouro fundido que, em vão – Sangue insensato e vagabundo — tentei forjar, no meu Cantar estranho, à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo! Soneto “LÁPIDE” de Ariano Suassuna, Com tema de Virgílio, o Latino, e de Lino Pedra-Azul, o Sertanejo

Ariano Suassuna1 João Pessoa, 16 de junho de 1927 Recife, 23 de julho de 201

Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem / Instalação inspirada no Movimento Armorial para o Projeto Paixão de Ler, em homenagem a Ariano Suassuna (Parque das Ruínas, Santa Teresa, Rio de Janeiro, 2013)

HOMENAGEM


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