Revista Bicicleta Edição Digital 02

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E a hospitalidade do GalpĂŁo Caipira

de Francis de Mattos




 EDITORIAL EDIÇÃO DIGITAL 02 / DEZEMBRO 2016

S

e “perder” por aí pode ser, ironicamente, a melhor maneira de se encontrar, dizem os que viajam. É que uma viagem pode nos tornar mais humildes, mais abertos às mudanças, mais insatisfeitos com a rotina. A novidade de todo o dia pode te colocar em contato com coisas que você descobre gostar, com experiências que transformam a sua vida, com perspectivas novas sobre si mesmo, numa verdadeira “volta ao mundo interior”. Esta é a bússola que guia os cicloturistas como Francis de Mattos, que no artigo de capa desta edição, conta sobre seu pedal pelo Brasil. É, também, a orientação que tomou Charles Zimmermann em sua Volta ao Mundo, como você pode conferir numa entrevista empolgante e inspiradora! O Circuito Lagamar, em São Paulo, e o Vale das Videiras, no Rio de Janeiro, podem ser um bom lugar para você se perder numa próxima viagem. E para iniciar no cicloturismo, não perca as boas sacadas de Antonio Olinto em “Do ciclista ao cicloturista”. O esporte está em luto com a tragédia que encerrou precocemente a vida e a carreira dos jogadores e equipe técnica da Chapecoense, além de colegas da mídia. Ninguém poderia imaginar um final tão triste para o momento mais feliz da história do clube. Prestamos nossa homenagem em “O campeão voltou...”, certos de que você, leitor, que é da bicicleta, entende a entrega de um atleta de qualquer modalidade, e se sente tocado por este acontecimento. #forçachape Boa leitura e Viva Bicicleta!

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Foto Capa Wagner Henn

EXPEDIENTE

Revista Bicicleta, com periodicidade mensal, é publicada pela Ecco Editora Sede / Assinaturas / Correspondência Rua Tuiuti, 300 - Bairro Cruzeiro - Rio do Campo - SC -89198-000 assinatura@revistabicicleta.com.br - bicicleta@revistabicicleta.com.br Fone: (47) 3564-0001 - Fax: (47) 3564-1212

Diretor de Redação Anderson Ricardo Schörner Jornalistas / Repórteres / Redatores e Colaboradores Álvaro Perazzoli / Antônio Olinto / Carlos Menezes / Cláudia Franco / Eduardo Sens dos Santos / Lima Junior / Paulo de Tarso / Pedro Cury / Roberto Furtado / Ronaldo Huhm / Valter F. Bustos Correspondente na Europa Fábio Zander Editor Executivo Therbio Felipe M. Cezar Revisão R. O. Petris Depto. de Arte / Web Alex C. Serafini Depto. de Assinaturas Adriano dos Santos Editor E. B. Petris

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SUMÁRIO

108

O QUE É UM BIKE FIT DE VERDADE?

DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

24

BMX SUPER SPINE TOUR

36

O CAMPEÃO VOLTOU...

40

UMA PEDALADA DE NATAL

46

PEDALAR PARA DESVENDAR O MUNDO

Therbio Felipe entrevista Charles Zimmermann

VOLTA 132 A AO MUNDO INTERIOR de Francis de Mattos

142

CICLOTURISMO NO VALE DAS VIDEIRAS E a hospitalidade do Galpão Caipira

56

ELEGÂNCIA É RIQUEZA INTERIOR

60

GRUPOS DE PEDAL

68

LIMITAÇÕES NA MOBILIDADE?

72

MEDO DE ERRAR? PERFECCIONISMO? AUTODEPRECIAÇÃO?

76

DICK POOLE

82

DO CICLISTA AO CICLOTURISTA

90

JORNADA PELA COSTA DO MUNDO

Unidade na diversidade Vá de bicicleta elétrica

E o recorde que não foi quebrado

Pela preservação dos oceanos

96

HCH 1.200 KM 2016

104

POR UM BRASIL SEM DROGAS

114

MEU PEDAL NO ALENTEJO

124

GRUPO CLAUDINO

142

CICLOTURISMO NO VALE DAS VIDEIRAS

com a Butterfield

Audácia em favor das bicicletas

E a hospitalidade do Galpão Caipira

150

CIRCUITO LAGAMAR SÃO PAULO DE CICLOTURISMO História, cultura e paisagens

158

TRANS ESPINHAÇO

164

BIKE & WINE



PELOTÃO EDIÇÃO DIGITAL 02 / DEZEMBRO 2016

Anderson Ricardo Schörner

Therbio Felipe M. Cezar

DIRETOR DE REDAÇÃO

EDITOR EXECUTIVO

Ciclista urbano e entusiasta da bicicleta.

Professor universitário, conferencista internacional e cicloturista.

anderson@revistabicicleta.com.br

Antonio Olinto Cicloturista renomado, formado em direito e conferencista. antonioolinto@gmail.com

therbio@revistabicicleta.com.br

William Cesar Caldas Lopes Cirurgião dentista e empresário, apaixonado por bicicleta, tanto MTB para treinos e cicloturismo, quanto Speed para treinos e provas Randonnée ou Audax.

Claudia Franco Responsável pela Escola de Bicicleta Ciclofemini, palestrante, atleta amadora e embaixadora Specialized. claudia@ciclofemini.com.br

Eduardo Sens dos Santos Ciclista amador e entusiasta da história do ciclismo. eduardo_sens@yahoo.com

williamclopes@gmail.com

Mauro Melo Albuquerque

Carlos Menezes

Ana Cristina Sampaio

Cicloturista e Mountain Biker. Incentivador e entusiasta do ciclismo. Fez a travessia dos Andes, Estrada da Morte na Bolívia e Deserto do Atacama.

Biólogo, fitter, atleta de MTB e cicloturista.

Jornalista, ciclista amadora e entusiasta do uso da bike no mundo.

mauromeloalbuquerque@gmail.com

biocicleta@carlosmenezes.com.br

anacris_sampaio@hotmail.com



PLAYLIST Fotos Reprodução

BUTTERFIELD & ROBINSON 50 ANOS DE HISTÓRIA

Desde 1966, a Butterfield & Robinson realiza viagens em bicicleta ou a pé, incentivando as pessoas a “desacelerar para ver o mundo”. Nestes 50 anos, cruzou seis continentes e realizou roteiros em 80 países. E tudo começou com um trio de estudantes: George Butterfield, seu companheiro de quarto Sidney Robinson e sua esposa Martha Butterfield (irmã de Sidney).revistabicicleta.com.br/rb/cnj

HOMEM DE 77 ANOS REPETE RECORDE DESCER O PASSO DELLO STELVIO SEM GUIDÃO E SEM FREIOS

Em 1986, Giuliano Calore entrou para o Guiness Book ao descer o Passo dello Stelvio sem tocar as mãos no guidão e no freio. Para reduzir a velocidade, ele utilizava o pé direito no pneu traseiro. Agora, com 77 anos, ele repetiu o feito e foi além: tirou o guidão e os freios da bicicleta, e realizou a descida à noite. Vídeo da descida de 1986 revistabicicleta.com.br/rb/cnk Teaser do documentário da descida em 2016 revistabicicleta.com.br/rb/cnm

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REVISTA BICICLETA



PLAYLIST Fotos Reprodução

SISTEMA CRIATIVO PARA ESTACIONAR SUA BICICLETA

FANTASY LINE Os biker trials Kenny Belaey e Tom Oehler pedalaram em Sparta, Winsconsin (EUA), num parque com 600 estátuas em fibra de vidro, produzidas pela empresa local Fast Company, especialista neste tipo de produção. A Fast Company atende diversas solicitações, que vão desde restaurantes a postos de gasolina do mundo todo. Quando o trabalho está completo, os moldes de cada forma são armazenados neste parque, atrás da fábrica. Com estes moldes, Belaey e Oehler criaram um playground bem bizarro para o seu rolê. E a edição ficou hilária também! revistabicicleta.com.br/rb/cnn

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Espaço é um problema atualmente para muitas pessoas. Se você mora em um apartamento ou tem uma garagem pequena, talvez encontre dificuldades para estacionar sua bicicleta de uma maneira cômoda. Muitas pessoas utilizam suportes em paredes, até mesmo dentro de casa, e deixam as bicicletas expostas, compondo além de tudo a decoração do lar. Uma outra ideia muito bacana é este sistema, um elevador automático que lhe ajuda a colocar a bicicleta na vertical, reduzindo até 40% do espaço utilizado pela bike. revistabicicleta.com.br/rb/cnq





ROLÊ

400,1 KM

CICLISTAS SÃO, EM MÉDIA, 4 KG MAIS MAGROS QUE MOTORISTAS, MOSTRA PESQUISA

De ciclovias foram entregues em São Paulo pela atual administração (2013/2016), alcançando a meta prevista no programa do governo. Antes, São Paulo tinha 68 km de ciclovias e 30,3 km de ciclorrotas.

Segundo levantamento da União Europeia, quem usa a bicicleta como meio de transporte pesa cerca de 4 kg a menos do que usuários de automóvel. O estudo está sendo realizado com 11 mil voluntários em sete cidades europeias: Antuérpia (Bélgica), Barcelona (Espanha), Londres (Inglaterra), Örebro (Suécia), Roma (Itália), Viena (Áustria) e Zurique (Suíça). Adrian Davies, especialista em transportes e assessor do projeto, disse em entrevista ao jornal espanhol El País: “Ser mais ativo pode lhe tornar mais saudável, poupar dinheiro e melhorar sua vida. Em vez de ir à academia, por exemplo, você pode ir para o trabalho de bicicleta”.

40%

Dos atletas profissionais entrevistados pela Associação dos Ciclistas Profissionais (CPA) afirmaram serem contra o reinício dos testes com freios a disco. No ano passado, os testes foram suspensos pela UCI quando o ciclista Fran Ventoso se machucou ao supostamente atingir um disco durante a Paris-Roubaix.

Para saber mais sobre o projeto, denominado Pasta (sigla em inglês para Atividade Física através do Transporte Sustentável), acesse o site www.pastaproject.eu

US$ 8,9 MILHÕES

Serão investidos pela Prefeitura de Copenhague para instalar 380 sinais de tráfego inteligentes na cidade, com o objetivo de reduzir o tempo de viagem de bike e outros modais, como o ônibus.

De estradas e trilhas cicláveis serão inaugurados em 2017, no Canadá, que ligarão o país de canto a canto. Batizada de The Great Trail, a rota ciclística ligará 15 mil comunidades e será a maior trilha do mundo. Saiba mais no site thegreattrail.ca

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© LISA A / SHUTTERSTOCK

24 MIL KM



© MITAY20 / DEPOSITPHOTOS.COM

ROLÊ

COMO A BICICLETA REVOLUCIONOU A GENÉTICA Estudo realizado pelo professor Stephen Jones, da University College de Londres, respeitada instituição de pesquisa e ensino do país, mostra que o invento que mais influenciou mudanças de comportamento relativos a sexo e genética não foi a camisinha nem o viagra: foi a bicicleta, considerada por Jones a invenção mais importante dos últimos 100 mil anos da história humana. Em entrevista à BBC, o geneticista disse que com a bicicleta, os homens não se limitaram a encontrar sua parceira sexual na porta ao lado, mas sim, ter contato e relações com mulheres do povoado ao lado. Ou seja, o raio de distância entre o nascimento dos futuros cônjuges não parou de aumentar após o século XIX, quando a bicicleta se popularizou como transporte de massa. Para o professor Stephen Stearns, da Universidade de Yale, EUA, a bicicleta ampliou em 48 km a distância de "paquera" dos homens ingleses no final do século XIX. Como afirmou Jones, "se caminharmos por uma cidade como Londres hoje em dia, vemos uma variedade genética que não teríamos visto em outra época". Segundo a pesquisa, foi a bicicleta que possibilitou o início dessa diversidade. Buscando fontes da mídia impressa do final do século XIX, constatou-se notícias relatando que a bicicleta criou novas tendências de cortejo entre os jovens daquela época, e que isso levou a um reflexo importante na diversificação e evolução dos nossos genes.



ROLÊ

SHED, O MONSTRO Assista ao vídeo

revistabicicleta.com.br/rb/cw6

VIRZOOM, A ERGOMÉTRICA QUE TE COLOCA DENTRO DOS JOGOS Virzoom é uma bicicleta ergométrica que, em conjunto com óculos de realidade virtual, insere o usuário em jogos de vídeo game. A movimentação dos personagens e veículos é dada pela movimentação das pedaladas, e há botões para os comandos, além de um sistema de inclinação do guidão para movimentações durante os jogos. Sim, você vai querer ter uma dessas! Vídeo mostra a Virzoom sendo utilizada em diversos jogos de realidade virtual. revistabicicleta.com.br/rb/ct2

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© DIVULGAÇÃO

O pessoal da ONG norte-americana People For Bikes publicou no ano passado um vídeo muito bacana que mostra Shed, o Monstro, e a sua transformação a partir do momento em que começa a pedalar. A campanha tem o sugestivo slogan: “quando pessoas pedalam, coisas incríveis acontecem”. Vale o play!

© REPRODUÇÃO



EVENTO Texto Michel Will Fotos Blue Hebert

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BMX SUPER SPINE TOUR Com premiação de R$ 100 mil, o BMX Super Spine Tour ganhou destaque no circuito nacional com o diferencial de ser realizado dentro de shoppings de cinco cidades: Lages (SC), Juazeiro do Norte (CE), Juazeiro (BA), Varginha (MG) e Taubaté (SP). A etapa de encerramento aconteceu entre os dias 04 e 06 de novembro, no Via Vale Garden Shopping de Taubaté, com os melhores atletas da América Latina dando um show de manobras radicais.  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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O

Via Vale Garden Shopping, em Taubaté (SP), sediou a etapa final do Campeonato Brasileiro BMX Super Spine Tour, considerado o maior circuito da América Latina de BMX estilo livre, realizado em duas mini-rampas. Foi uma grande festa de encerramento do tour 2016, com grande presença de público, que foi recompensado com uma disputa de altíssimo nível entre os melhores atletas latino-americanos. Confirmando seu favoritismo, o venezuelano Daniel Dhers venceu a etapa com um rolê bastante consistente e um show de manobras executadas com perfeição. Ele levantou o público

026

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e mostrou porque é um dos melhores atletas do BMX mundial na atualidade. “A energia de hoje foi incrível. Todos deram o máximo de si e o público foi extraordinário. Parabéns a todos os atletas e organizadores. Não vejo a hora de voltar para o Brasil”, disse Daniel Dhers, logo após descer do pódio. Uma das revelações do circuito, Cauan Madona, de São José dos Campos (SP), surpreendeu a todos encerrando


sua volta com um back-flip (pirueta para trás), depois de ter andado muito forte e com combinações de manobras muito altas. Com isto, ele levou a segunda colocação na etapa. Caio Sousa “Rabisco”, de São Bernardo do Campo (SP), além de ficar com a terceira colocação com uma volta que explorou todos os elementos da Super Spine, venceu a disputa da melhor manobra, com um backflip barspin para fakie (uma pirueta para trás com um giro no guidão, voltando de costas). Na somatória das cinco etapas, André Jesus, de Ferraz de Vasconcelos (SP) foi o grande campeão do circuito. Ele venceu as etapas de Lages e Juazeiro do Norte, foi segundo lugar em Juazeiro e Varginha, e ficou na quarta colocação em Taubaté. Dessa forma, garantiu o título do BMX Super Spine Tour 2016 e levou um prêmio de R$ 15 mil. Ele comemorou muito o resultado: “estou muito feliz com o título. Treinei forte durante 

MELHOR MANOBRA

ETAPA DE TAUBATÉ-SP Caio Sousa “Rabisco”

São Bernardo do Campo – SP / Brasil

Manobra: back-flip barspin para fakie (uma pirueta para trás com um giro no guidão, voltando de costas).

Vídeo da etapa final do BMX Super Spine Tour, no Via Vale Garden Shopping, em Taubaté (SP). revistabicicleta.com.br/rb/cnu

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RESULTADOS FINAIS

TOP 5 DA ETAPA DE TAUBATÉ-SP Daniel Dhers / Caracas, Venezuela / Nota: 27,60 Cauan Madona / São José dos Campos, SP, Brasil / Nota: 23,33 Caio Sousa Rabisco / São Bernardo do Campo, SP, Brasil / Nota: 23,30 André Jesus / Ferraz de Vasconcelos, SP, Brasil / Nota: 23,28 Alessio Zein / Apóstoles, Argentina / Nota: 20,44 CLASSIFICAÇÃO GERAL FINAL NOME

LAGES

JUAZEIRO DO NORTE JUAZEIRO

VARGINHA

TAUBATÉ

PONTOS

ANDRÉ JESUS

250

250

180

180

120

980

CAUAN MADONA

70

90

120

100

180

560

DANIEL DHERS

-

-

250

-

250

500

todo o ano, me dediquei bastante para me manter constante ao longo das cinco etapas e agora felizmente estou colhendo um bom resultado, que pode abrir grandes oportunidades em 2017. O BMX Super Spine Tour 2016 foi incrível! O BXm brasileiro precisava dessa profissionalização, que veio em boa hora. Agradeço aos meus

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patrocinadores e não vejo a hora de competir o circuito 2017”. O BMX Super Spine Tour foi uma realização do Grupo Tenco (grupotenco. com.br), que administra mais de 15 shoppings em todo o território nacional, em parceria com a Dream BMX (dreambmx.com.br), a maior distribuidora de BMX do Brasil. 



ROLÊ

© REPRODUÇÃO

SITE AJUDA A ESCOLHER A CAIXA DE DIREÇÃO CERTA A italiana FSA lançou o site www.fsaeasyheadset. com para auxiliar o comprador a escolher a caixa de direção correta para a sua bicicleta, já que atualmente há inúmeros padrões disponíveis no mercado. Basta inserir as medidas internas e externas do tubo de direção do quadro, e o site sugere o modelo compatível, dentre 50 modelos produzidos pela FSA.

Veja o vídeo explicativo para utilizar a ferramenta on-line revistabicicleta.com.br/rb/ct3

180% DE IMPOSTO

PARA CARROS É IRRELEVANTE! Há algum tempo, um interessante artigo foi publicado no site copenhagenize.com, cujo título traduzido é: "Imposto de 180% sobre carros na Dinamarca é irrelevante". Essa alta carga tributária foi adotada justamente para desestimular o uso do automóvel, mas também para que retorne à sociedade um pouco do prejuízo causado por esse meio de locomoção. Segundo dados do COWI – Consultoria em Engenharia, Ciências e Economia Ambiental, para cada quilômetro percorrido de bicicleta o governo economiza cerca de 23 centavos, enquanto cada quilômetro percorrido de carro gera um custo de 16 centavos. O artigo é finalizado afirmando que os famosos 180% de impostos dinamarqueses sobre os carros precisam passar por reajustes, pois os salários têm aumentado no país e os malefícios representados pelo aumento no número de carros é maior do que em qualquer outro período da história. Além disso, o combustível também deveria passar por aumento de carga tributária, para subsidiar os custos do impacto da sua extração para o meio ambiente, ainda mais agora que os carros têm tecnologia para rodar de maneira mais eficiente, o que significa menos arrecadação. Seria uma maneira de racionalizar e economizar para poder investir em transporte público, compartilhamento no uso do automóvel e infraestrutura para bicicletas.

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CICLISTAS DO PEDAL XAXIM INSTALAM PLACAS DE CONSCIENTIZAÇÃO O grupo de ciclistas Pedal Xaxim tomou a iniciativa de instalar 12 placas de sinalização para prevenção de acidentes envolvendo ciclistas. Com R$ 5.200 investidos por 16 membros do grupo, as placas foram distribuídas ao longo de 30 km pela BR-480, no trecho de Vila Florindo Folle até Marema. A mobilização começou meses atrás, no intuito de contribuir para a segurança de quem usa a via para pedalar. Eles procuraram o Deinfra e solicitaram autorização para patrocinar e instalar as placas por conta própria. O ato é louvável e serve de inspiração para outros grupos, muito embora seja a sociedade tomando a responsabilidade que seria da esfera governamental. Membros do Pedal Xaxim: Felipe Ballin, Rudinei Gabriel, Roberto Gabriel, Matheus Detoni, André Detoni, Anacleto Ducati, Fernando Lunardi, Luis Paulo Lorenzon, Marcos Antonio de Faci, Odair Di Domenico, Fabiano Lunardi, Junior Reginatto, Andrigo Reginatto, Rafael Capello, Marcos Correa Vieira e Matheus Barrionuevo.

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ROLÊ

RELÓGIO DE PULSO QUE VIRA CICLOCOMPUTADOR Em campanha para financiamento coletivo no Kicstarter, o Moskito é um gadget suíço que, na pulseira, é um relógio de pulso capaz de ser pareado com o celular e informar chamadas, mensagens e e-mails; e no apoio da mesa ou caixa de direção, ele se torna um ciclocomputador com dados como velocidade, distância, velocidade média e “modo desafio”, se o objetivo é buscar um novo recorde em algum segmento do Strava. Vídeo de demonstração do Moskito revistabicicleta.com.br/rb/ct4

CONDENADO! Ricardo Neis, motorista que acelerou seu carro para cima dos ciclistas da Massa Crítica, em Porto Alegre (RS), no ano de 2011, foi condenado a 12 anos e nove meses de prisão, por 11 tentativas de homicídio e cinco lesões corporais. Neis perdeu também a licença para dirigir, mas manteve seu emprego como Funcionário Público e poderá recorrer em liberdade.

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O vídeo com o ato violento chamou a atenção do mundo todo revistabicicleta.com.br/rb/ct5



REFLEXÃO

Texto Eduardo Sens dos Santos

uando a chuva deu trégua a cerimônia finalmente acabou. Os sinos de todas as igrejas da cidade dobraram por uma longa hora, cabisbaixos. A água escorria chorosa pelas arquibancadas no estádio, misturada às lágrimas dos duzentos mil habitantes locais. Não era Macondo, mas eu preferia que fosse; não era uma cidade imaginária, não estava milhares de quilômetros distante. Ficava aqui, ao lado, a duas quadras da minha casa. Chapecó inteira, Santa Catarina inteira: o Brasil inteiro estava naquele sábado

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na Arena Condá, velando os corpos de seus atletas, diretores e jornalistas, quatro dias depois do sonho que vivíamos interromper-se num brutal assassinato coletivo nas montanhas de Antióquia, na Colômbia de Márquez. Os mortos então finalmente foram abraçados pelas suas famílias e enterrados sob a salva de tiros que dilaceravam o coração. Ninguém falava. Um silêncio triste que nem mesmo os sabiás ousavam romper. Os anos voltam no tempo… para 1973, quando cinco esportistas locais abriram mão de suas rotinas para fundir os dois times da cidade em um só. Sem dinheiro,


sem patrocínio, sem nada a não ser uma determinação descomunal. Rifas eram vendidas mensalmente para cobrir os custos dos ônibus velhos que levavam os jogadores para as partidas regionais. O uniforme — uma doação — era filho único de mãe solteira. Os próprios atletas lavavam, secavam, remendavam, passavam e dobravam seus meiões, calções, chuteiras e camisetas. O goleiro, nem luvas tinha. Torcer pela Chapecoense, no começo, era como torcer pelo último ciclista do pelotão, pelo sujeito desconhecido; por aquele que, todos sabíamos, não tinha a menor chance de qualquer coisa. Uma cidade do interior, nos confins de Santa Catarina, sem tradição no futebol. Essa era a realidade quando começou a Chape seus lentos e sólidos passos em direção à elite do futebol brasileiro. E tal como ocorre com o esporte em geral, aplaudimos sim as vitórias, mas aplaudimos de pé, com os olhos mareados, as grandes vitórias, as vitórias épicas, estóicas, aquelas conquistadas com o próprio sangue, com o último suspiro, com a força que vem das entranhas para alcançar a bola no último milímetro do campo e conseguir um passe para o gol. Essa era a realidade da Chapecoense. Nunca uma vitória lhe caiu no colo. Nunca um árbitro errou em seu favor. Nunca um patrocínio foi conquistado sem o extenuante trabalho da diretoria, dos apoiadores e da própria torcida. Parecia haver uma regra não escrita no regula-

mento que dizia que as vitórias da Chape só seriam homologadas pela Federação se fossem realmente sofridas. E essa regra a Chapecoense sempre cumpriu à risca. No acesso da Série D para a Série C, em 2009, por exemplo, após um ano extenuante de viagens pelo país inteiro, o jogo contra o Araguaia, do Mato Grosso, foi debaixo de granizo. O árbitro interrompeu a partida por dez minutos. O Verdão do Oeste perdeu, mas o saldo de gols garantia o campeonato e a classificação para a Série C. Em 2012, no caminho para subir da Série C para a Série B, caprichosamente o clima escolhido pelos céus para que a Chapecoense subisse foi o extremo oposto: 40°C sob um sol de rachar. No intervalo do jogo contra o Naviraiense, o calor era tanto que o técnico preferiu levar os jogadores para fora do vestiário, à sombra de uma mangueira, para ajustes táticos. A Chapecoense ganhou no jogo de ida, mas foi derrotado na volta. Mesmo assim, novamente de forma dramática, pelo gol qualificado, o resultado foi positivo e a Chape subiu. Hoje a provação é outra. Um time destroçado pela inconsequência de um piloto que levou o avião para o trágico voo daquele 29 de novembro; uma cidade que vai — que precisa — se reerguer, não apenas pela força de seu futebol, mas pela garra dos torcedores, da diretoria e da sua cidade, que do prefeito ao trabalhador braçal mais humilde chorou junto  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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© JULIO CAVALHEIRO / SECOM / FOTOSPUBLICAS (07-12-2016)

E isso tudo alenta. Alenta saber que essa é só mais uma provação na história do time que cresceu com a sua cidade e que tinha por principal missão alegrar o incansável povo chapecoense para mais uma semana de trabalho. Alenta a certeza de que nas dificuldades é que se faz uma nação forte e que, no caso da Nação Chapecoense, dos destroços do Avro RJ85 ressurgirá em pouco tempo nossa alegria e nosso orgulho. O que alenta —

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não há dúvidas — é saber que, mais uma vez, e como sempre foi na história da cidade, todos os chapecoenses estamos unidos em busca da superação. 

© FRANCISCO MEDEIROS / ME / FOTOSPUBLICAS (07-12-2016)

ao cantar “O campeão voltou” no velório coletivo, mas lavou o rosto em seguida para arregaçar as mangas e se reorganizar, desta vez mais forte e melhor ainda.


A SINA DE COMUNICAR Por Therbio Felipe M. Cezar

“A tragédia da vida é o que morre no homem enquanto ele vive”. - Albert Schweitzer A explicação, às vezes, é um melisma sem sentido. Neste momento de profunda comoção pelo país e mundo, tendo em vista a tragédia com o avião da empresa Lamia, justificam-se as manifestações generalizadas de solidariedade dirigidas às famílias e amigos das vítimas. Dias atrás, externamos nosso profundo respeito e pesar relativo a dor e à saudade, especificamente, dirigidos à nossa Chapecoense, nossos vizinhos do mesmo estado. Diante do que nos cabe enquanto profissionais de comunicação, não podemos nos eximir, também, de prestar reconhecimento ao trabalho dos vinte colegas de mídia, de diferentes veículos, que partiram em mesmo voo. Ficamos imaginando, tensos e tristes, como seria o pesar de nossas famílias caso o assento fosse ocupado por um de nós. É uma tarefa hercúlea permanecer nos bastidores quando o assunto é o trabalho que fazemos. Poucas pessoas, eu digo poucas mesmo, sabem como é o cotidiano dos profissionais de mídia. Em resumo, objetivamos comunicar os fatos; elaborar sínteses mais próximas da realidade; capturar instantes históricos em imagens eternizadas por nossas lentes; buscar informações através de pesquisas com as mais variadas metodologias e fontes; falar de improviso e com um domínio da língua pátria mais exato que muitos acadêmicos; estudar um tema exaustivamente até dominá-lo; planejar a embalagem da notícia para que chegue ao público da melhor forma; analisar contextos que vão além do fato comunicado para não sermos tendenciosos; comparar dados históricos comuns ou não ao fato para inseri-los em uma realidade possível e cognoscível; criar peças publicitárias que encantem; verificar as tendências para o

futuro que, talvez, não conheçamos, enfim. E tudo isto, na esmagadora maioria das vezes, deixando nossos lares, nossas famílias e amigos, em algumas ocasiões por tempo indeterminado, ou seja, até o trabalho ser concluído. Pode parecer lugar comum, mas não o é. Faça chuva ou sol, na montanha gelada ou no sol escaldante. Na presença de pessoas simpáticas ou não, nas ruas das metrópoles ou nos ermos mais incógnitos, em meio a uma turba violenta ou um grupo em oração. No desconforto, no cansaço, na pressão. Para dar a boa notícia ou a péssima, não importa. Sim, é possível que em vários momentos a gente nem queira tomar um voo, pegar o próprio carro ou a bike para cobrir um determinado evento, mas é preciso ir. Podemos até não estar com grande vontade de sair em pleno aniversário do nosso filho, esposa ou próprio, mas não podemos dar-nos este luxo. Pouco importa que somadas as horas para fazer aquela foto ou no chá de banco no escritório do cliente esperando outro colega de mídia sejam maiores do que as de descanso; na verdade, importa sim, senão não haveria sentido algum. Aquilo que você assiste, vê, lê, ouve, sente, repassa, compartilha, curte, baixa, grifa, vira a página, em resumo, é produzido por gente que você nem imagina que exista e que jamais irá receber o seu agradecimento. Mas o que fica de tudo isso? A esperança. O que fazemos é tão importante para nós que trocamos um dia de nossa vida por isto.A esperança é o que permanece. Nossos sentimos às famílias de todos os colegas que se foram e um abraço a todos aqueles que seguem a sina de comunicar.  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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HISTÓRIAS DA BICICLETA Texto Eduardo Sens dos Santos

UMA PEDALADA DE NATAL

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O Atendo.

telefone toca e acordo assustado. Na tela me aparece um nome familiar. Eddy Merckx. Devo estar sonhando. Me belisco. Será realmente verdade?

- Meu velho, Feliz Natal, vamos sair hoje? - E...ddy? - gaguejo. - Claro, quem poderia ser? Tudo bem? - Tudo... vamos sim, mas hoje é véspera de Natal. Para onde vamos? - Vamos encontrar o Hinault e o Moser. Pedalzinho de 60 km, montanha, que tal? - Er... Rinault? Moser? Tá falando sério? - Você bebeu, foi? Cara, levanta essa preguiça aí e vamos logo. Leva comida, porque da última vez ficou feio pra você. - Sim, afinei feio aqui com a turma do pedal de terça-feira. Mas como você sabe? - Cara, eu sei de tudo. Aliás, sei também que vamos todos levar presentes de Natal para as crianças de Capiberi, lá em cima do morro, certo? - Cer... certo - gaguejei de novo, e odeio quando gaguejo. - Beleza, abraço. Às oito chegamos aí. Olhei no relógio e eram seis horas da manhã. Ainda incrédulo, fui ao banheiro, lavei o rosto, bati umas duas vezes na cara para ver se acordava mesmo e fui pra cozinha. Café forte, banana, uma torrada com doce de leite. Meu Deus, que ano puxado, lembrei. Devo estar delirando por causa do estresse acumulado. Só pode ser isso. Merckx mora na Bélgica, Francesco Moser na Itália e Bernard Hinault na França. Os três são os maiores campeões de ciclismo de todos os tempos. E eu, aqui no Brasil, um amador,

vou pedalar com esses monstros sagrados do ciclismo mundial? É claro que só podia ser invenção da minha mente. De qualquer forma, como faço dia sim e dia não, peguei minha roupa, a caramanhola, conferi a pressão dos pneus e a lubrificação da corrente e saí em direção à pracinha do bairro, onde sempre encontro meus companheiros de pedal. Na saída peguei os fones de ouvido e mantive minha rotina de só ligá-los depois de ouvir o clipar da sapatilha no pedal. É o sinal — e que sinal delicioso — para começar a pedalar. Ninguém na praça. É claro, deve ter sido sonho — comecei a rir de mim mesmo, a ponto de quase gargalhar. Eddy Merckx, Bernard Hinault e Francesco Moser aqui? Que viagem, pensei. Que viagem… Mas a praça está estranhamente vazia. Nenhuma daquelas mães-animadorasde-festa que a esse horário já estariam inundando o parque infantil com incentivos aos seus filhos. Nem mesmo o pessoal da limpeza urbana. Olho à volta e na verdade me assusto quando vejo que não há mesmo nenhuma alma viva no raio da minha visão. Confiro o celular. A chamada estranha continua lá. Se foi sonho, ainda estou nele. Mas mal se passam trinta segundos e ouço o inconfundível ruído do cassete de uma bicicleta chegando. Eddy Merckx de fato, em carne, osso e zigomáticos, sempre proeminentes; uma camisa surrada da Molteni, sem capacete e com boné para trás; é ele mesmo. Droga, pensei, devo estar com algum tipo de estafa de final de ano. - Fala aí, garoto - diz Eddy Merckx e estende a mão com um soquinho para me cumprimentar. - Tudo certo? - Vamos lá - ordena Eddy, apressado. - O pedal é pesado.  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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Ainda sem entender muita coisa, saímos pela rua defronte à escola e também não vejo sinal de carros, caminhões, nada. Não é domingo; será feriado? Mas nem em feriados a cidade fica tão morta. Véspera de Natal, sim, mas geralmente é sempre um corre-corre danado nesse dia… - Como foi o ano? - me pergunta Eddy. - Foi excelente! Viajei muito; a empresa foi um sucesso absoluto. Comprei até uma caminhonete importada. Vale quase um apartamento! Melhor não podia ter sido, ainda mais com essa crise aí pegando quase todo mundo. - Sorte a sua - disse Eddy. - Mas muita gente sofreu esse ano, não é mesmo? Não entendi o tom dessa última frase, mas parecia que o Canibal — seu apelido dos tempos de profissional — queria me dizer algo. Deixei que ele seguisse na frente para organizar meus pensamentos. O caminho normalmente seguiria reto, entretanto de um instante para outro dobramos na esquina, à direita, e saímos do percurso. Entramos num bairro residencial, com muitas casas baixas. - Ali mora o Klaus - me disse Eddy. - Lembra dele? - Não estou lembrado - respondi. - Quem é? - Dono daquela empresa que te fornecia peças de alumínio…

esposa chorava, com as mãos no rosto, e estranhamente eu conseguia ouvir tudo: - Como vamos passar este Natal? - indagava ela. - Estamos falidos. Até o final do mês vai faltar comida. E as crianças, o que será delas? - Eu sei - disse Klaus, desanimado. - Mas que culpa tenho se aquele infeliz nos quebrou? Ele sabia que não tínhamos como dar conta daquele pedido, mas mesmo assim forçou a barra. Tudo para nos tirar da jogada e dar o contrato para o cunhado. Empenhei três meses da nossa produção nisso, e agora estamos devendo aos fornecedores, aos funcionários e com a conta bancária bloqueada. Só nos resta vender o maquinário. - Não, não… - chorava desconsolada a esposa. Imediatamente reconheci de quem estavam falando. Eu tinha sido responsável por aquilo. Para favorecer meu cunhado e convencer os sócios a rescindirem o contrato com a empresa de Klaus, forjei pedidos que sabia que não pagaria. Klaus já negociava há dez anos conosco. Quando ele avisou que o pedido estava pronto, neguei tê-lo feito. Ele gritou, ameaçou me processar, mas apenas sorri satisfeito. O pedido que eu falsifiquei não continha assinatura nenhuma. O que eles falavam de mim, portanto, era tudo absolutamente verdade. Mesmo desmascarado, não consegui me confessar com Eddy. Resolvi mentir:

- Ah, sim, deixamos de negociar com ele na metade do ano. Não estava dando certo a parceria.

- Não sei exatamente de quem estão falando, Eddy, mas esse cara tinha um material de péssima qualidade. Outro fornecedor ganhou a conta…

- Sim… - me disse Eddy, mas sem concordar comigo. - Dá uma olhada lá dentro.

- Sei… - disse Eddy - seu cunhado…

A casa estava toda fechada e achei maluquice essa história de olhar lá pra dentro assim. Mas foquei melhor o olhar e as paredes desapareceram como que por mágica. Era como se eu tivesse visão de super-herói. Lá dentro, reconheci Klaus e sua família, com duas crianças pequenas e um cachorro. A

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Calei-me apenas. A casa ficou para trás. Seguimos novamente em direção ao parque ao redor do qual eu costumava treinar sprints. Dei duas voltas e, de repente, percebi que estava sozinho. Eddy havia desaparecido. Claro, só podia ser sonho. Conferia no ciclocomputador a distância percorrida quando uma mão tocou meu ombro. Eddy, pensei. Mas não. Era


Bernard Hinault. - Berrr—nard? - gaguejei novamente, merda. - Sim, e quem mais, meu velho?! - Que honra - eu disse. - A honra é toda minha. Poder pedalar com um grande empresário como você. Feliz Natal. - Feliz Natal! - eu disse — e nos cumprimentamos com um aperto de mãos. Depois daqueles minutos desagradáveis com Eddy, o elogio caiu bem e retomei meu bom humor. Eu quis perguntar onde estaria Merckx, mas Hinault não me deu tempo. Logo ordenou: - Vamos pegar à esquerda ali na frente. Tenho algo para te mostrar. - Claro - eu disse, feliz por estar ao lado de uma lenda do ciclismo mundial. Chegamos próximos a uma edificação enorme, que até então eu desconhecia, embora ficasse apenas a pouco mais de cinco quilômetros da minha casa. Era um hospital. - O que tem aqui? - perguntei, já com medo. - Olhe lá para dentro. Da mesma forma que antes, bastou focar minha visão que consegui enxergar através das paredes. Passei pelos quartos da ala de oncologia, pela pediatria e cheguei ao corredor do hospital, onde diversas pessoas aguardavam alguma coisa. Alguns homens mexiam com ferramentas num grande aparelho. Uma mãe desesperada gritava com o filho no colo, dizendo que ele tinha um tumor na cabeça. Não a reconheci e fiquei aliviado. Podia ser uma funcionária que demiti quinze dias atrás, mas não creio que fosse. - Não conheço aquela mulher - me defendi, preventivamente. - Eu sei - disse Hinault. - Mas você sabe que hospital é esse? Olhei para uma das portas e vi o nome escrito numa logo. Hospital Municipal de

Capiberi. Uma onda gelou minhas costas naquele instante. Lembrei. Havíamos vencido a licitação para vender o tomógrafo do hospital. Comprei um aparelho inutilizado no Paraguai, troquei o acabamento externo, meu engenheiro conseguiu colocá-lo a funcionar e então entreguei na comissão de licitação para dois dias de uso depois a máquina parar de funcionar. Paguei cinco mil de propina para o diretor aceitar aquela porcaria e mesmo assim lucrei tanto que deu para comprar a caminhonete e ainda sobrou para um jet-ski. Foi o melhor negócio do ano… para mim… - Como foi negociar com o hospital? - Hinault me perguntou. - Fo-fo-foi bom… - respondi baixo, quase inaudível, de vergonha. - É bom quando os negócios vão bem… - disse Hinault com um olhar tão impassivo que deu medo; lembrei de dona Raquel, minha professora de português da segunda série. - É verdade… Eu nunca fui religioso, mas comecei a acreditar em anjos e demônios. O que estava me acontecendo? E para onde me levaria aquilo tudo? Onde Hinault queria chegar? Eddy tinha falado também de Moser no telefonema cedo. O que me aguardava ainda nessa pedalada? Hinault voltou para a estrada principal e entramos numa longa reta. Aproveitei para baixar a cabeça e girei os pedais com força, como se estivesse me penitenciando. Ficamos assim por um quarto de hora, voando baixo. Hinault — eu conferia de vez em quando — continuava na minha roda. Foram apenas quinze minutos, mas me recordei de cada dia do ano. Ouvi minha própria voz gritando para a secretária que derramou café no tapete do meu escritório; vi minha mão assinando a demissão dos dois funcionários mais antigos que, embora fossem dos melhores da empresa, logo iam se tornar um passivo trabalhista grande demais. Até mesmo aquele sábado de madrugada, quando  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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fomos à empresa, eu e meu sócio, para abrir o sistema de efluentes direto na rede pluvial, e comemoramos com cerveja gelada a economia de dois caminhões limpa-fossa. Tudo eu via em terceira pessoa. E só então comecei a entender o que se passava. - Salve! Pedalando muito? - uma nova voz surgiu ao meu lado, quando eu lutava contra uma subida íngreme em curva. - Moser? Francesco Moser? Como vai? - Eu vou muito bem. E você? Feliz Natal. - Feliz Natal - eu disse. Fiquei com medo do que pudesse vir agora. Eddy Merckx e Bernard Hinault, meus ídolos no ciclismo, haviam pedalado comigo só para me dar uma lição de moral. E eu odiava lições de moral. Mas o que mais Moser poderia fazer? Temi que, de tantas iniquidades que eu havia cometido, essa pedalada nunca mais fosse acabar. - Morri, será? - perguntei a mim mesmo, em voz alta. - Ha, ha, ha, ha - gargalhou Moser. - Não, não; fique tranquilo. - É que estão acontecendo coisas estranhas hoje - respondi. - Cuidado! - gritou Moser. Um menino de 10 anos com os pés descalços no chão havia saído correndo atrás de uma bola e, por pouco eu não o atropelei. Estávamos na periferia de Capiberi. Um lugar pobre e sujo. Crianças barrigudas, retratos de políticos das últimas eleições, esgoto correndo a céu aberto. Freei forte, a bicicleta rabeou e tive de parar para me recuperar do susto. O menino chegou perto de mim. - Nossa, que bicicleta legal… - disse o garoto, de olhar ingênuo. - Olhe por onde anda, imundo! - ralhei com ele, exageradamente, por conta da adrenalina.

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- Você não o está reconhecendo? - perguntou Moser, apontando com os olhos para o menino. - Não… espere, só um momento… Parei sem fôlego. Era como se a Terra suspendesse sua rotação por alguns segundos. Olhei nos olhos do menino, que ameaçavam chorar. Girei a cabeça ao redor e reconheci não apenas o menino, mas a rua, a casa e a bola. Aquele menino era eu mesmo, trinta anos atrás. Era eu que morava naquela rua pobre, naquela casa pequena e abafada; e aquela que me chamava na varanda era a minha mãe. - Você está um pouco mudado… - me disse Moser, ao perceber minha constatação. Eu não consegui responder. Fiquei apenas calado, observando. O menino corria para a sua mãe. Aquela bola, com o couro de um dos gomos sempre dependurado, foi o melhor brinquedo de toda a minha vida. - Aqui você não tinha tantas ambições, não é mesmo? - Não - respondi, vencido. - Trapacear nas regras do futebol, no botão, na bolinha de gude, nada disso era permitido, não é mesmo? - Não… - Mentir, falsear, corromper… isso não era ensinado em casa, não é mesmo? Segurei as lágrimas, nervoso. Só então percebi em que me havia transformado. A ganância, a cobiça desmedida, as vidas que eu usava como se fossem cartas de um baralho. O mal que isso causava para os outros — e no final das contas para mim mesmo. De uma criança meiga e ingênua, transformeime sem perceber num homem mesquinho, egocêntrico. Voltei-me para Francesco Moser, que me amparou estendendo o braço em minha direção.


- Como pude? Como? Por quê? - supliquei a Moser que me desse respostas. - Não sei responder… - disse o campeão - só entendo de ciclismo. Só sei que no nosso esporte se você cair, tem de levantar e seguir adiante, custe o que custar, doa o quanto doer. Do contrário, você está fora. E as minhas corridas prediletas eram as grandes voltas, com muitas etapas, em que eu podia corrigir no dia seguinte os erros da véspera. Se a sua vida for parecida com uma grande volta, tudo isso pode ser consertado; cabe a você colocar todas as coisas nos seus devidos lugares. Até mesmo o coração daquele menino… ele deve voltar a bater no seu peito. Compreendi em silêncio. Havia muito o que fazer. O tempo perdido, os anos pensando apenas em mim. Tudo tinha que se transformar em passado; o presente era dolorido demais, mas só eu tinha em minhas mãos o guidão do futuro. Fiz um pequeno sinal com a cabeça — entendi a lição — e convidei Moser para voltarmos. Aquela pedalada de pouco menos de vinte quilômetros havia me exaurido. No caminho de volta, pedalando a favor do vento, as estradas vazias novamente, lembro apenas do cheiro de mato úmido e de folhas amarelas caídas no chão ao longo de um pequeno bosque. Devemos ter conversado um pouco mais; não sei. Sei que quando me aproximei da cidade novamente Moser, Hinault e Merckx pedalaram comigo por alguns instantes e ficaram para trás. Era o sinal. Agora corrigir os rumos estava sob a minha responsabilidade. Em casa, depois de uma ducha fria, senteime à frente do computador. Dei folga aos funcionários naquela tarde e agendei uma reunião para o primeiro dia útil depois do Natal. A lista de afazeres era grande, mas já não me assustava. Meu jovem coração de menino finalmente voltava a bater. 


ENTREVISTA Therbio Felipe entrevista Charles Zimmermann Fotos Charles Zimmermann

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PEDALAR PARA DESVENDAR O MUNDO Autor. Palavra simples com conteúdo complexo. Aquele que origina algo, que cria a partir da sua forma de ver, pensar e sentir o mundo. Aquele que elabora um resultado decorrente de sua maneira particular de ser no mundo. Estas seriam, humildemente, algumas formas através das quais ouso compreender o viajante e escritor catarinense de Jaraguá do Sul, Charles Zimmermann. Ele compõe histórias baseadas em suas experiências enquanto viajante, e tais relatos apresentam uma perspectiva especial somente possível para quem ousa ir além das possibilidades de encontrar a cultura do outro ao viajar. É com esta intenção que entrevistamos o autor de Travessia - 747 dias de bicicleta pelo mundo e de tantos olhares diferenciados sobre a realidade que construímos juntos. 

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T Charles, antes de tudo, obrigado por aceitar o convite da Revista Bicicleta e ceder esta entrevista. Algumas de suas obras são Nos confins do Oriente, Deserto Feliz, Terra estrangeira, Estrada para o Grande Deserto, Travessia, além do livro que está sendo escrito neste exato momento e que decorre de sua mais recente experiência de viagem à Índia e ao Tibet. Sei que os livros, além do rock’n’roll, sempre foram muito presentes em sua vida. Esta paixão por ler contribuiu de que maneira para criar em você esta paixão por contar histórias de vida, como tem feito há algum tempo? C Eu que agradeço a vocês pelo convite e oportunidade. Sem dúvida, a leitura contribuiu e contribui para esse processo. Acredito que não existe escrita sem leitura. Sem leitura você não consegue escrever o que teu coração sente. Sou um cara que começou a ler tarde. Não era inserido num ambiente de leitores ou frequentadores de biblioteca. Programas de viagens ou assistir entrevistas com viajantes me levaram a ler livros sobre montanhismo e expedições. Citaria as obras “No ar rarefeito”, “Sete anos no Tibet”, “Annapurna” de Maurice Herzog, os livros de Amyr Klink, em especial o primeiro denominado “100 dias entre o céu e o mar”; “No coração das trevas” de Joseph Conrad (trata de uma estupenda história nas selvas africanas), “Moby Dick”, “A pior viagem do mundo” que relata uma expedição a Antártica, “Na natureza selvagem”, onde a última frase desse livro veio à minha mente por diversas vezes na viagem de bicicleta e que acabou por gerar o livro Travessia.

Por diversas vezes eu estava numa explosão de felicidade por atingir o alto de tal montanha, acampado num cenário paradisíaco ou pedalando numa estrada que ainda posso desenhar em detalhes aquela paisagem, e essa frase vinha sempre à mente: “de nada vale a felicidade se ela não é compartilhada”. Queria alguém do meu lado naquelas horas, queria compartilhar tamanha alegria, felicidade. E quanto ao Rock and roll, ele é uma paixão desde adolescente. Na volta ao mundo de bicicleta sempre que possível criava uma oportunidade no fim de tarde para ouvir música. Pelas manhãs, quase sempre acordava com música. O que mais ouvia era Bob Dylan, Rolling Stones, David Bowie, Johnny Cash. Enquanto pedalo não ouço música. Acredito que os fones de ouvido tiram nossa concentração. T Travessia – 747 dias de bicicleta pelo mundo é, sem dúvida alguma, um sucesso literário, elogiado por personalidades internacionais como o jornalista e escritor Fernando Gabeira, além de dezenas de sites de crítica literária, presente em feiras do livro e em livrarias por todo o Brasil. Entre outras questões, é o seu primeiro livro que tem como fio condutor a bicicleta, companhia escolhida por você para “viajar na velocidade das pessoas”. Ao ler esta obra, a noção que se tem é que a palavra ‘desafio’ não se encaixa perfeitamente neste tipo de empreitada. Como foi preparar-se para mais de dois anos de viagem de bicicleta pelo mundo e em que medida a escolha pela bicicleta contribuiu para o sucesso da Travessia?  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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C A bicicleta surgiu para mim como instrumento para conhecer o mundo aos poucos. Em 2004, realizei uma viagem de um ano pela Ásia resultando no livro “Nos Confins do Oriente”. Eu, um ciclista desde criança, - uso a bicicleta nas oportunidades do meu cotidiano -, quando estava na China, na cidade de Pequim, fiquei observando o balé dos ciclistas pelas ruas. Eram muitos ciclistas, mais que pedestres. Certo dia tomei coragem e fui pedalar entre eles. Entrei em ruelas e parece que comecei a pedalar dentro das casas das pessoas. Da porta via-os fazendo a refeição, matando o frango, escovando os dentes. Passava rente às roupas estendidas, notava melhor o uniforme das crianças que iam para escola. Daí, foi se moldando a ideia de um dia, quem sabe, sair mundo afora de bicicleta. Fiz outras viagens, ao Continente Africano, Cuba, América Central, voltei à Ásia, ao Oriente Médio e sempre que possível alugava ou tomava emprestado uma bicicleta para conhecer as cidades maiores. E acontecia algo assim: tomava um ônibus a determinado destino e quando lá chegava ficava na minha cabeça com aquela imagem da igrejinha, aquela casinha, aquela senhorinha agricultora

"A BICICLETA SURGIU PARA MIM COMO INSTRUMENTO PARA CONHECER O MUNDO AOS POUCOS"

que via da janela. Tinha certeza, se estivesse de bicicleta teria desfrutado esses momentos e chegaria ao destino com o pensamento literalmente no destino. E aí que entra o “viajar na velocidade das pessoas”. Para mim, a bicicleta permite sentir, cumprimentar as pessoas, sentir o calor, o frio, perceber os cheiros de cada lugar (sou uma pessoa muito olfativa). Defino a bicicleta enquanto rápida o suficiente para se mover de um povoado a outro, de uma cidade a outra, e devagar o suficiente para se reunir com pessoas. Quanto à escolha da bicicleta para o sucesso do livro Travessia, creio que vem no embalo desse processo de repensar os valores da vida. Falo de pensar no modo de viver também e do modo de conhecer o mundo. Na França, por exemplo, não é estranho um casal sair em lua de mel numa viagem de cicloturismo (encontrei um casal francês nessa condição enquanto pedalava pela costa do rio Danúbio, na Alemanha). Nessa onda do slow travel, que convida a observar mais, viver mais o lugar, enfim, a bicicleta se encaixa perfeitamente. A bicicleta numa viagem é tendência sem volta, é irreversível. Cada vez mais ela fará parte para conhecer novos lugares, diferentes culturas, diferentes pessoas. T Se percebe, em todas as suas obras, uma carinhosa curiosidade pelos modos de vida, pela cultura e pessoas que encontras. Você nos oferece uma obra de texto e fotos reveladoras, desmistificando algumas questões que, em muito, habitam o imaginário coletivo e o senso comum preconceituoso sobre o desconhecido. Aquilo que não é  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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conhecido, não necessariamente, deve ser ruim. Há tanta coisa linda naquilo que não conhecemos, é o que ofertas como autor. As paisagens, por sua vez, são o pano de fundo para encontros emocionantes e ricos em troca de conhecimentos. Por favor, você poderia falar um pouco a respeito desta tônica? C Sou um apaixonado pelas pessoas daqueles lugares que visito. Aprendi ao longo do tempo que o estranho naquele lugar sou eu e não as pessoas que lá vivem. No início das minhas viagens voltava para casa e dizia: que povo estranho aquele da Índia. Agora é diferente. O modo distinto como as pessoas vivem nesse planeta me fascina. Seja um ritual fúnebre no interior da Indonésia que se transforma numa grande festa após o sepultamento do corpo, o ritual de cremação dos corpos na Índia, a organização monótona nas ruas da Alemanha, o prazer por festas e celebrações que temos enquanto latino-americanos, entre tantos outros. É difícil criticar tal cultura no mundo. Aqui falamos que os indianos são atrasados, que os chineses não são pessoas educadas. Mas, o que é realmente atraso ou ser educado? A Índia é uma nação de 3.000 anos de história. A China, por sua vez, tem 5.000 anos. Tudo é uma questão de valores. E a mim, compreender isso é um aprendizado contínuo. Acredito que de todos os lugares têm o que ser extraído no tocante à beleza. Extrair a beleza das coisas é uma grande sacada para o sucesso de uma viagem. T Grandes autores já apresentados aqui na Revista Bicicleta, como o Antonio

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Olinto – No guidão da liberdade, Danilo Perrotti Machado - Homem Livre, Arthur Simões – O mundo ao lado, Thiago Fantinatti – Trilhando sonhos, e mais recentemente o Guilherme Cavallari – Transpatagônia – Pumas não comem ciclistas, entre tantos outros inestimáveis escritores, trazem visões bastante íntimas sobre estar no mundo em cima de uma bike. Em sua perspectiva, pedalar por entre caminhos desconhecidos em direção às gentes e seus universos culturais tem que peso em sua vida, após alguns anos da realização da cicloviagem? C Sim, tem bastante influência na minha vida. Viajar de bicicleta consiste em carregar a tua própria casa. O que carregas nos alforjes é tudo o que tens. O que aprendi com a bicicleta é que podemos viver e ser felizes com pouco. Não estou dizendo que devemos abdicar das coisas ao nosso redor. Digo que se perdemos todos os bens materiais também podemos ser felizes e é isso que a bicicleta me ensinou. Aprendi que todas as pessoas nesse mundo querem ser felizes e todos nós, nesse mundo, buscamos maneiras de ser felizes. T Queremos, enquanto revista, que mais e mais pessoas acessem este repertório incrível de experiências por trás do universo do cicloturismo. Em Travessia, você revisita países que já conhecia, muitas vezes, motivado pela segurança que um local conhecido traz, além da simpatia que geraram por primeira vez. Dentre tantas paisagens e culturas visitadas e apresentadas neste livro, você poderia, por favor, destacar três que, em sua visão, lhe trouxeram 


"O QUE APRENDI COM A BICICLETA É QUE PODEMOS VIVER E SER FELIZES COM POUCO."


boas surpresas? C A Índia, sem dúvida, é o país mais diferente e interessante desse mundo. Sempre digo que existe dentro do mundo um outro mundo que se chama Índia. Ela é fascinante e contraditória. Digo contraditória porque prega paz entre povos, é a maior democracia do mundo, porém, seu sistema de castas é visível. Desde 2004 vou à Índia e nada mudou nesse sentido. Fascinante, não só porque é o berço de grandes impérios, das maiores religiões, mas por suas belezas naturais que vão de montanhas nevadas a florestas úmidas, de praias a desertos. E o povo é superinteressante, claro.

relance. Quais as ideias implícitas ao escolher tal imagem composta para a capa de seu livro e que aprendizados tal experiência cicloturística tem a ver com isto? C A escolha dessa capa foi como uma definição ou fechamento da viagem. Seria tal como se alguém perguntasse o que eu Charles concluiria dessa viagem. Responderia que nesse mundo todos somos iguais e a maneira que enxergamos o mundo se dá de acordo com os óculos que temos. Esse é a travessia de cada um de nós, o título do livro.

O Peru é um país fascinante. Além da riqueza da história dos Incas, as paisagens com montanhas são as mais belas que vi nesse país.

T O sucesso do livro Travessia tem gerado oportunidades de falar ao vivo em palestras pelo Brasil. Meses atrás, já compartilhamos espaços de palestras em Santa Catarina e no estado de São Paulo, onde a proximidade com leitores e futuros leitores é bastante rica. Em ambas ocasiões, ficou patente a simplicidade com que relatas tua profunda experiência de mundo. Queremos pedir que deixe aqui uma mensagem aos nossos leitores e futuros leitores seus.

T Filosoficamente, eu diria que as diferenças é o que nos faz, enquanto humanidade, tão semelhantes. A capa do livro Travessia – 747 dias de bicicleta pelo mundo é, ao mesmo tempo, inusitada e criativa, formada por duas imagens separadas ou unidas por um istmo, e que retratam duas mulheres separadas por mais de 8 mil quilômetros, e que ao mesmo tempo, parecem idênticas se olhadas de

C Usaria a frase de Raul Seixas: “antes de ler o livro que o guru lhe deu, você tem que escrever o seu”. Todos nós temos nossa história de vida para contar, portanto escreva-a. E se tem um sonho de viajar mundo afora, seja de bicicleta, de mochila nas costas, que seja uma viagem sustentável, claro, vá. O mais difícil de tudo numa viagem é a partida. É preciso soltar as amarras, como diz Amyr Klink. 

A Indonésia é um arquipélago de uma fauna única. Aqui me fez lembrar o pio dos pássaros e ruídos dos macacos que serviam de trilha sonora enquanto lá pedalava. Infelizmente, essa fauna está ameaçada com o desmatamento, diria que totalmente descontrolado.

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© LIGHTPOET / DEPOSITPHOTOS

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ELEGÂNCIA É RIQUEZA INTERIOR

“Existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância do comportamento. É um dom que vai muito além do uso correto dos talheres e que abrange bem mais do que dizer um simples obrigado. É a elegância que nos acompanha da primeira hora da manhã até a hora de dormir e que se manifesta nas situações mais prosaicas, quando não há festa alguma nem fotógrafos por perto”. (Trecho do texto Elegância, de Martha Medeiros). Texto Anderson Ricardo Schörner

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grande diferencial – na atitude de adotá-la cotidianamente. Esta evidência revela um comportamento refinado, ao qual associamos o verdadeiro sentido de elegância.

Sim, existe beleza em uma roupa bem cortada de tecido nobre, nas joias com pedras preciosas ou nas bolsas de grife. Da mesma forma, existe beleza na bicicleta e, principalmente – e aqui está o

Basta acessar os blogs protagonizados por Mikael Colville-Andersen, espalhados pelo mundo. Não é o batom, mas o sorriso que dá elegância aos ciclistas fotografados. Não é o corte de cabelo ou o formato dos óculos, mas o semblante amigável que torna estes ciclistas chiques. Não são os cremes e maquiagens 

chique do Cycle Chic é um pouco diferente daquele chique glamoroso associado ao dinheiro e ao luxo; ele está muito mais para a ideia de elegância da qual a escritora, jornalista e poetisa gaúcha Martha Medeiros brilhantemente expressa em seu texto.

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o que os tornam bonitos, mas sim as expressões que sinalizam o respeito e a atenção com o trânsito. Eles optam por cores que não necessariamente serão adotadas como tendência nas semanas de moda, mas que contrastam agradavelmente com a cidade. Talvez a maior elegância dos adeptos ao Cycle Chic seja o gesto, especialmente

cialmente elegantes. O chique do Cycle Chic não está no brilho dos anéis, correntes e colares. O brilho que realmente cativa é o da educação e do respeito. É ter um estilo próprio, não melhor ou pior do que ninguém. É a elegância de saber ouvir, e quando falar, ter o mesmo tom de voz com o garçom e com o dono do restaurante. Ser elegan-

O CHIQUE DO CYCLE CHIC NÃO ESTÁ NO BRILHO DOS ANÉIS, CORRENTES E COLARES. O BRILHO QUE REALMENTE CATIVA É O DA EDUCAÇÃO E DO RESPEITO. É TER UM ESTILO PRÓPRIO, NÃO MELHOR OU PIOR DO QUE NINGUÉM. expresso na escolha pela bicicleta para se locomover. É a elegância do comportamento desobrigado, natural, que acompanha cada um durante todo o dia, e não apenas no “obrigado” forçado ou no bom-mocismo das horas em que se convém praticá-lo.

te pela gentileza gera felicidade, outro traço marcante de quem é chique. Essa tal felicidade, que ninguém sabe ao certo o que é, se manifesta especialmente em coisas simples.

Essa elegância não se compra. Ela vem de uma visão empática do mundo, que se traduz em generosidade, como respeitar o espaço das pessoas, e a bicicleta é um dos meios de transporte que melhor traduz este respeito.

Se essa elegância não se compra nem pode ser mecanicamente incorporada, aprendida em um livro de etiquetas, como fazer para tê-la? A resposta está na continuação do texto de Martha: “a saída é desenvolver a arte de conviver, que independe de status social”.

Essa elegância não se aprende em livros de etiqueta. Ela só se manifesta verdadeiramente quando se é espontâneo, humano. Quem adere ao Cycle Chic contribui para a humanização do espaço urbano, fomenta o contato, o bate-papo informal, o olho no olho, coisas essen-

A bicicleta é um instrumento para a arte de conviver, capaz de trazer à vista gentileza, felicidade e, por consequência, elegância, não aquela expressa por luxos materiais, mas por uma atitude carregada de riqueza interior. 

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GRUPO DE PEDAL

GRUPOS DE PEDAL UNIDADE NA DIVERSIDADE Texto Therbio Felipe M. Cezar

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Não se assuste, meu senhor. Eles estão pelas ruas, a qualquer hora do dia. Até mesmo pelas madrugadas, eles se movem. Não se assuste, minha senhora. Eles vestem formas multicoloridas e, por vezes, refletivas e luminosas, alguns silvam apitos que sinalizam sua presença, outros têm gritos próprios, característicos. Não se assustem. Eles se movem sem deixar marcas, veloz e silenciosamente. Não se assustem. Eles tomaram as cidades e estão invadindo os campos, praias, montanhas e florestas. Eles estão entre nós desde 1992 e já se tornaram parte daquilo que percebemos ao nosso rededor. Parte do cotidiano. Parte de nós. Não são aliens, meu senhor, minha senhora. São os Grupos de Bicicleta e vieram para ficar! 

Pedalada das meninas Soul Frame Foto e Vídeo ©

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S

into uma inveja danada dos ciclistas que participam de grupos organizados pelo país. Como viajo semanalmente para várias e diferentes partes do Brasil, não tenho a oportunidade de integrar estes coletivos de ciclistas. Mais ainda, quando os visito a convite ou de forma oportuna, sinto respeitosamente a estreita ligação que, naturalmente, se constituiu entre seus integrantes, rolê a rolê, trilha a trilha, passeio a passeio. Ainda que, em grande parte, sejam receptivos a visitantes, os grupos de bicicleta têm características bastante peculiares ao esporte e se adaptar a elas não é tarefa fácil. Cada grupo tem um ritmo, uma pegada, um horário, um dia da semana, um motivo, um objetivo, um método, uma estética, um repertório de roteiros/rotas, um líder ou responsável, um símbolo, um grito de guerra, uma logo, enfim.

Sendo assim, cada grupo tem a sua personalidade e, como tal, se tornam interventores concretos da realidade, seja lá na capital manauara com o Pedala Manaus e CADA GRUPO Guaribike, TEM A SUA seja em – RS PERSONALIDADE Pelotas com o Pedal E, COMO TAL, Curticeira SE TORNAM e o Pedal INTERVENTORES Domingueira; CONCRETOS DA com o PBA REALIDADE – Pedalando

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Bem Acompanhado e com o SingleTrack na capital alagoana; com o Lapa Bike, Gira Bike, Pedala Joinville, Pedala Jaraguá, Pedala Pomerode, com o Pedal Goiano, Pedala Uberaba, com o Brutas do Pedal, com o Poa Bikers, Katingudos, Pedala Vovô, Pedala Paraíba, Pedala Mooca, Pedala Guará, Pedala Schroeder, Pedala Gente Limas, As Amazonas da Bike, Pedala Itapema, Pedala Planalto, Pedala Floripa, Pedalagente, Pedal Pesado, Pedala Ciclo Regert, Pedala Blumenau, Pedala Bauru, Vamos de Bike CG, Bikers Rio Pardo, Pedalli, Papaléguas Bike, Pedal Cerrado, Rebas do Cerrado, Trator do Cerrado, Elas no Pedal, Tribo das Bikes, Saia na Noite, Pedal das Meninas, Pérola Bike, Pedal Maravilha, Brasília Batom Bikers, Rodas da Paz, ou até mesmo a Bike Patrulha da Polícia Militar de Santa Catarina e a turma do Pedalentos, entre milhares de outros elencos de ciclistas praticamente em todas as regiões do país. Ufa!! Vamos ser práticos. Imagine que, hipoteticamente, nas cidades com população entre 5 e 85 mil habitantes, que deve ser em torno de 55% das mais de cinco mil municipalidades brasileiras, exista um grupo de ciclistas organizados com mais de 20 integrantes. Conseguimos fazer o cálculo aproximado de quantas pessoas, organizadamente, estão pedalando pelo Brasil varonil? Ocupando as ruas em horários alternativos, os grupos de bicicleta retalham o tecido urbano em busca de ver, perceber e sentir a cidade que constroem, diuturnamente. Não


importa se usam mountain bikes, speeds, fixed gears, clássicas, confort ou do autêntico estilo SRD (Sem raça definida). Costuram, logo depois, por ruas inacessíveis durante o horário comercial. Contudo, não estão invisíveis. Se fazem notar desde as concentrações em praças públicas, postos de gasolina, padarias, lojas de bicicletas, portas dos shopping centers, petshops ou até mesmo nos bike-cafés. Antes de dar o primeiro giro em grupo, têm seus posts repercutidos e curtidos milhares de vezes nas mídias sociais por todo o tipo de pessoa, sejam adeptos adictos do ciclismo, amigos, familiares, esportistas de outras modalidades, incluindo também aqueles indivíduos que não pedalam, ainda. Vale salientar, porque é justo, que o pioneirismo da organização destes grupos se deve a algumas pessoas que, há alguns anos, alcançaram extrema notoriedade. Renata Falzoni, Arturo Alcorta e Paulo de Tarso Martins, possivelmente, sejam os precursores na história do ciclismo nacional referente à criação de grupos urbanos de ciclismo organizado; o Night Bikers, de Renata e o Sampa Bikers, de Paulo de Tarso. Ambos deixaram um legado de imenso valor para os atuais grupos de bicicleta, os quais, além de pedalar semanalmente ainda organizam eventos, cicloviagens e ações de cunho social. Porém, nos chega por sussurros das mídias sociais que, talvez seja possível, na mesma época, a existência de outro grupo de ciclistas, na capital Rio de Janeiro, com o sugestivo nome de Rio Bikers.

OCUPANDO AS RUAS EM HORÁRIOS ALTERNATIVOS, OS GRUPOS DE BICICLETA RETALHAM O TECIDO URBANO EM BUSCA DE VER, PERCEBER E SENTIR A CIDADE QUE CONSTROEM, DIUTURNAMENTE. Muitas vezes, pergunto para um integrante ou outro, quando visito algum grupo de ciclistas, os motivos de pertencer àquele grupo. As respostas, por mais que possam gerar interpretações sem fim, invariavelmente, são concluídas pela expressão “...e eu me sinto muito bem com isto!” Mais do que unir-se a um grupo de ciclistas pelo conjunto de desafios que este lhes proporciona, os integrantes estão cientes dos benefícios quanto à saúde física e mental que este lazer descompromissado lhes permite. Indo além, também estão cientes do testemunho positivo dado diretamente àqueles que se encontram vitimados pela dependência do automóvel, ironicamente, impassíveis, inertes e amedrontados. Mas, nem tudo são flores. Concordando com Sérgio Novis, um dos precursores de pedalar em grupos da capital das Alagoas, ainda existem em várias partes do país os grupos seletivos no tocante à performance, nos quais só participa aquele ciclista que se encontre dentro dos parâmetros que o grupo determina. Da mesma maneira, também, ainda existem aqueles grupos que selecionam seus integrantes pelo valor ou marca da  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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alagoas Divulgação ©

cabral adventure

pedala planalto

NG Fotos / Ney Evangelista ©

Divulgação ©

KATINGUDOS © Divulgação

BRUTAS DO PEDAL © Virgilius da Costa

vício pedal © Divulgação

aventureiros do pedal © Vilmar Costa


pedal da mari

bicicletando

Edson Fischer ©

Divulgação ©

pedala brasília

TRATOR DO CERRADO

Divulgação ©

Divulgação ©

cicloturita Divulgação ©

pedaL BY TUCA Luiz Roberto ©

pedaL NATIVO Divulgação ©

SMURFS © Divulgação

MACEIÓ Therbio Felipe ©


ANDANDO DE BICICLETA EM GRUPO, ENSINAM BRINCANDO QUE JUNTOS SE PODE MUITO MAIS DO QUE ISOLADAMENTE. JUNTOS SE TRANSFORMA MUITO MAIS E MELHOR, A TODOS E A CADA UM.

bike.

São realidades elitistas que ainda persistem, mas que são a minoria, na verdade. Em sua essência, os grupos de ciclistas são fraternos, identificados com a cultura de sua região e com as realidades desiguais que apresentem. Pluralidade e companheirismo são palavras que encontram ressonância quando o tema são os Grupos de Pedal. Neles, percebemos cada vez mais a figura feminina, motivada pelo esporte e pela sensação de segurança que pedalar acompanhado proporciona. São mulheres de diferentes faixas etárias, nível socioeconômico e experiência com a bicicleta. Porém, lá encontram uma maneira de lazer ativo que as condiciona a encarar os desafios cotidianos em uma sociedade machista que não aceita as diferenças, e que sequer oportuniza que as desigualdades se percebam, a cada dia, mais débeis. Tenho encontrado, da mesma forma, um sem-número de ciclistas acima dos 65 anos de idade. Estes companheiros são reconhecidos por seus confrades

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como mestres do pedal e da vida, como é o caso do Arestides Porangaba, de 73 anos, recém-chegado de um pedalzinho pela Patagônia Argentina. Confidenciou seu parceiro de pedaladas, o experiente ciclista Claudovan Freire, que Arestides representa muito para os ciclistas alagoanos. Bom, agora já se tornou público o apreço que os membros dos grupos de pedal sentem pelos amigos que a bicicleta oportunizou. Não podemos nos furtar de dizer que tais grupos são instrumentos para que a Ciclocidadania alcance patamares mais altos a cada dia. Mais estruturas cicloviárias para trabalho e lazer estão, forçosamente e ainda a passos lentos, sendo implantadas pelo país, dada a presença cotidiana destes coletivos de ciclistas transformando a paisagem urbana como uma lufada de vento e exigindo melhorias. Se trata de um ativismo silencioso, pero no mucho. É bem possível que poucos integrantes dos grupos de ciclistas se deem conta de seu contributo para mitigar a neurose urbana. Na verdade, muitos deles nem sequer saberão. São eles agentes de transformação social pelo testemunho, não pelo discurso. Tudo bem, alguns críticos irão dizer que “estes caras estão aí fazendo o seu lazer, nada há nisso de tão compromissado politicamente”. Pois bem, então, eu prefiro considerar e reforçar que não existe uma forma de convencimento maior do que dar o exemplo. Fazer é bem mais concreto do que dizer que se irá fazer.


Os grupos de bicicleta estão fazendo a sua parte na construção de uma ideia positiva e irreversível a respeito do irrefutável benefício que a bicicleta proporciona, individual e coletivamente. Perdoem o trocadilho, mas é a Corrente do Bem. Mal sabem eles que participam de um movimento social e antropológico de proporções globais, ainda que mascarado de lazer ativo sobre rodas e dependente da propulsão humana. Este é, determinantemente, um caso de aprender e ensinar ludicamente. Andando de bicicleta em grupo, ensinam brincando que juntos se pode muito mais do que isoladamente. Juntos se transforma muito mais e melhor, a todos

e a cada um. Pedagogicamente, isto é revolucionário. É nosso desejo que novos grupos se formem ou que se reforcem os laços que unem os membros de antigos grupos. Que nossa presença nas ruas, ainda que a lazer e esporte, seja uma presença carregada de sentido, além do mero diletantismo. Que os grupos de bicicleta, formados por atletas ou esportistas, sejam exemplos de homens e mulheres que encaram seu lazer como uma maneira de transformar a realidade, mesmo que não saibam. E que sua constância pelas ruas e ladeiras seja a viva presença de um futuro melhor. E viva a bicicleta, sempre! 


LIMITAÇÕES NA MOBILIDADE? VÁ DE BICICLETA ELÉTRICA Texto Anderson Ricardo Schörner

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© MONKEY BUSINESS IMAGES

BICICLETA ELÉTRICA


U

m dos pré-requisitos para se locomover de bicicleta é estar com a saúde em dia. Mas há pessoas que possuem limitações de mobilidade ou que não podem exagerar no esforço físico. Idosos e portadores de problemas de mobilidade cada vez mais se utilizam das bicicletas elétricas para continuarem usufruindo dos benefícios do pedal e contribuindo com uma mobilidade urbana mais sustentável e humanizada. Contar com o auxílio elétrico permite que praticamente todas as pessoas continuem se locomovendo ao ar livre. Há uma variedade grande de bicicletas elétricas disponíveis no mercado brasileiro, que atendem a necessidades específicas. Por exemplo, existem formas diferentes de acelerador. Há os aceleradores manuais, tipo twist, acionado girando a manopla, como o acelerador de moto, e o thumb, que é acionado pelo polegar. Esse tipo de aceleração beneficia quem tem problemas de articulação ou deficiência na movimentação das pernas e realmente não podem pedalar. Já as chamadas pedelecs contam com o sistema PAS (sensor para auxílio a pedal). Há dois tipos de sensores: de velocidade, também chamado sensor de giro, que aciona o auxílio elétrico quando se atinge determinada velocidade; e de torque, que aciona o motor dependendo da força aplicada aos pedais. Essas e-bikes são indicadas para as pessoas que não têm limitação nos movimentos mas podem fazer ape-

nas exercícios leves, seja por restrição médica, por diminuição da resistência física ou por precaução. A autonomia da bateria é outra característica importante nesse caso. O ciclista com limitações de locomoção precisa contar sempre com o auxílio elétrico e, portanto, não pode ficar sem bateria no meio do caminho. Fique sempre atento aos níveis de energia e faça as primeiras saídas acompanhado, pois nem sempre a autonomia da bicicleta corresponde ao anunciado pela empresa. Com o tempo, é necessário fazer a troca da bateria, pois ela envelhece e perde capacidade. Outro fator a ponderar na hora de escolher sua e-bike, considerando que você tenha problemas de saúde ou mobilidade, é o peso do veículo, que pode ser um empecilho e até mesmo causa de acidentes. As bicicletas elétricas mais leves possuem bateria de lítio, mas de qualquer forma, o kit elétrico sempre agrega peso. Por isso, muitas empresas lançam e-bikes menores, com pneus aro 20 ou menos, deixando a estrutura da bicicleta mais leve e com o design que favorece quem tem deficiências ou limitações. O simples fato de ter o quadro mais baixo significa uma facilidade no momento de montar na bicicleta. Verificar se a bicicleta possui acessórios de segurança e conforto, como cobre-corrente e suspensão, também limitam as possibilidades de desequilíbrio e queda.  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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Por fim, esse perfil de usuário também pode dar preferência às e-bikes que vêm com complementos que facilitam as suas locomoções, como um bom bagageiro e uma cestinha, dessa forma, se for preciso levar alguma carga na bicicleta, elas terão um lugar específico, não sendo necessário levá-las penduradas no guidão ou pilotar com apenas uma mão, situações que também podem apresentar riscos. Outra dica importante é sempre utilizar os acessórios de segurança, como ca-

pacete, luvas, sinalizadores luminosos e roupas coloridas que o deixem bastante visível no trânsito. Esses componentes representam uma iniciativa mais preventiva para quem já não tem tanta agilidade e reflexo. Com esses cuidados na hora de escolher a e-bike, ela pode se tornar uma boa aliada na mobilidade de qualquer pessoa, mesmo com restrições de movimento, além de oferecer momentos de lazer e diversão ao ar livre, que também acabam limitados para essas pessoas. 



© DEPOSIT123 / DEPOSITPHOTOS

COMPORTAMENTO

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MEDO DE ERRAR?

PERFECCIONISMO?

AUTODEPRECIAÇÃO? Entenda por que você não deve ser dura demais consigo mesma no momento de aprender e vivenciar novas experiências, como aprender a pedalar na fase adulta, por exemplo. Texto Claudia Franco

Q

uando alguém convida uma ciclista iniciante para um pedal, seja passeio, treino ou até para participar de um curso ou uma corrida para amadores, a sua resposta geralmente é:

A Adoraria ir, mas não quero atrapalhar os outros ciclistas, sou muito lenta.

B

Não tenho certeza que darei conta daquele percurso.

E Só tem gente mais nova que eu, ficarei com vergonha.

Como ensino pessoas adultas a pedalar, a grande maioria quando faz contato comigo sempre demonstra muita vergonha, e diz:

A Sei que estou velha para aprender. B Sou velha para aprender, mas tenho que fazer aulas porque meu marido quer que eu pedale com ele.

posso ir, mas meu objetivo é só C Até poderia dar aula às cinco da C Você participar, nem pensar em competir. manhã? Quero ir ao parque quando iniciando e não quero fazer D Estou feio.

está bem vazio, não quero me expor, vou “pagar muito mico”.  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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Pessoas muito sensíveis à crítica acreditam que precisam a todo custo ter o melhor desempenho em tudo. Quem se ressente demais com a possibilidade de falhar, faz uma leitura muito dura e cruel dos acontecimentos e, no fundo, se acha incapaz de reverter os possíveis danos que poderia provocar a si mesma, como passar vergonha de não ter dado conta da subida, vergonha exacerbada por não acertar logo na primeira tentativa. O medo de errar, quando em excesso, é muito preocupante, pois a pessoa insegura tende a adiar demais as decisões e com frequência deixa de fazer ações prazerosas, como por exemplo, aprender a pedalar ou participar de uma pedalada com amigos.

QUANDO SUA AUTOCRÍTICA ESTIVER EM ALTA PERGUNTE A SI MESMA:

1 O que pode acontecer de pior?

2 Alguém de fato vai rir de mim, vão me colocar para baixo, serão indelicados?

3 Alguém deixará de me ajudar se eu precisar durante a pedalada?

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Esse fenômeno é desconcertante e o observo com maior frequência junto às mulheres. Talvez seja pelo histórico de sermos muitas vezes subestimadas, e aí continuamos alimentando este paradigma de geração em geração. O erro faz parte da vida, só tem sucesso quem sempre está em busca de evoluir, quem dá risada das próprias falhas e quem sabe

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que errar faz parte do processo de aprendizado. Como disse Winston Churchill, “sucesso é a habilidade de passar de fracasso em fracasso sem perder o entusiasmo.”

MUITAS TAMBÉM ESTARÃO LÁ PORQUE LARGARAM MÃO DA AUTOCRÍTICA, DO MEDO DE ERRAR, E OPTARAM POR BRINCAR, POR SE LIBERTAR E FAZER O QUE AMA MUITO:

Uma das formas de minimizar o medo de arriscar é expor-se ao imprevisível gradualmente. Encarar as dificuldades de uma situação que causa aflição ajuda a desenvolver um mecanismo que passa, automaticamente, a neutralizar o medo excessivo em situações similares futuras.

PEDALAR!

Muitas vezes ficamos envolvidos num drama pessoal e perdemos a noção da realidade. Os erros nos dão a chance de ter uma noção realista do nosso desempenho, de avaliar o que é necessário adquirir ou mudar para não errar novamente. Então, ao invés de não sair para o pedal, ao invés de não participar da competição ou do treino, vá e perceba o que é necessário aprender para melhorar o seu desempenho. Não é sentada no sofá de casa ou apenas pedalando em torno da pracinha que você vai conseguir evoluir sua técnica e/ou o seu desempenho


como um todo. É incrível que muitas de nós deixarão de ir a uma competição, um passeio ou até uma aula por deixar o medo de errar, a autocrítica e a autodepreciação impedir-nos de participar. Quando sua autocrítica estiver em alta e você perceber que está prestes a desistir da sua vivência com a bicicleta, pergunte a si mesma: O que pode acontecer de pior? Alguém de fato vai rir de mim, vão me colocar para baixo, serão indelicados?

Alguém deixará de me ajudar se eu precisar durante a pedalada? Tenha certeza de que você vai sobreviver se encarar o desafio e, o melhor de tudo, ficará orgulhosa de si mesma. Tenha certeza de que ninguém vai se incomodar com o seu desempenho ou falta de experiência. Todo mundo está indo só para ser feliz! Saiba que no meio de um grupo de ciclistas, muitas também estarão lá porque largaram mão da autocrítica, do medo de errar, e optaram por brincar, por se libertar e fazer o que ama muito: pedalar! 


HISTÓRIAS DA BICICLETA

© ARQUIVO HISTÓRICO

Texto Eduardo Sens dos Santos

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DICK POOLE

E O RECORDE QUE NÃO FOI QUEBRADO

O

s marceneiros têm um ditado: meça duas vezes, corte uma só. E se você pretende bater um recorde mundial sem passar vexame, a regra também se aplica ao ciclismo. Richard William Ewart Poole, com este nome pomposo, teve que engolir seus instintos de nobre inglês e baixar a cabeça ao constatar que no ciclismo não adianta choro nem mimimi. É um esporte para quem tem garra.

mais distantes uma da outra no Brasil. São então quase 6.000 km de estrada, de uma ponta a outra do Brasil.

No Brasil temos o Oiapoque e o Chuí, que distam uma da outra 5.500 km. Para os mais exigentes geograficamente, o correto é falar em Caburaí a Chuí, que tem “apenas” 300 km a mais entre um ponto e outro. São as duas localidades

Com rodovias bem pavimentadas, e com uma distância não tão absurda, não foi difícil para uns britânicos malucos, que adoram recordes mundiais, começarem uma nova brincadeira. Quem consegue ir de Land’s End para John o’ Groats em 

Quando as duplas sertanejas tocam na Grã Bretanha, falar em Oiapoque (ou Caburaí) ao Chuí não faz sentido algum. Pode não dar rima, mas lá a maior distância entre um ponto e outro está entre Land’s End e John o’ Groats. Pelas estradas disponíveis a rota fica em aproximadamente 1.350 km.

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© TEERAPUN / DEPOSITPHOTOS

Uma bicicleta modelo penny-farthing.

menos tempo? Sentados num pub, com seus bigodes molhados de cerveja Pale Ale, comendo batata e peixe frito e sem muito o que fazer enquanto não começava a colheita, alguns amigos resolveram que aquele seria o desafio do mês. Enxugaram a boca com a manga das puídas camisas amareladas e definiram a única regra para a competição: o ciclista escolhe o percurso, qualquer que seja. O primeiro a se impor o desafio foi J. Lennox, um ciclista que levou 6 dias e 16 horas para o desafio. Mas como foi ajudado por outros ciclistas em tandens (aquelas bicicletas para duas pessoas), pareceu fácil demais. Novamente no pub, com mais cerveja, desta vez uma Stout, e lá vem a regra número dois: o ciclista não pode receber ajuda externa. George Mills, de 18 anos, que já havia vencido a primeira edição da BordeauxParis, bateu na mesa e se dispôs à brincadeira. E foi o primeiro recordista oficial do percurso ponta-a-ponta da Grã Bretanha. Foram 5 dias, 1 hora e 45 minutos para rodar os 1.350 km. Mas George não usou uma bicicleta de carbono, com vinte marchas e 6 kg de peso… Isso foi em 1886, com uma penny-farthing, aquelas bicicletas de roda dianteira de até 60 polegadas (1,5 m) de diâmetro, rodas traseiras minúsculas e com 16 kg de peso total! Até hoje o recorde permanece. Ninguém nunca mais pedalou tão rápido uma penny-farthing de uma ponta a outra do

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país. Em 1908, já com bicicletas mais parecidas com as atuais, Tom Peck pedalou o percurso em muito menos tempo. Levou 2 dias, 22 horas e 42 minutos. A façanha é considerada maior ainda porque Tom caiu duas vezes da bicicleta, com severos machucados. E lembre-se de que o câmbio só seria inventado três décadas depois! Mas nada disso importa. Richard Willaim Ewart Poole, mais conhecido como Dick Poole, é o homem que colocou o percurso para sempre nas páginas da história do ciclismo mundial. E não por conta do recorde que ele quebrou, mas pelo recorde que ele não quebrou. Nascido em 1934 e trabalhando em período integral como contador, Dick


O PERCURSO DE LAND’S END A JOHN O’ GROATS Atualmente é um dos grandes destinos britânicos de cicloturismo.

John O' Groats Helmsdale Invernes Glen Nevis Crianlarich Glasgow

Annan

Arnside

Chester

Leominster

Bristol Tiverton Lostwithiel Land's End

tomou para si o desafio de superar seu amigo Reg Randall, que tempos antes havia cravado 2 dias e 10 minutos no percurso. Ambos pertenciam a clubes de ciclismo distintos e rivais entre si. Sim, imagine um Fla x Flu da bicicleta. Middlesex era o time de Dick Poole; Reg Randall defendia o Harlequin. “É teste para cardíaco”, diria Galvão Bueno. Eram 9 h 45 min da manhã quando Dick subiu em sua Mercian em Land’s End em direção a John o’ Groats com o objetivo de concluir o percurso em menos de 2 dias. A moderna bicicleta, sonho de todo atleta na década de 1960, já era equipada com câmbio no guidão e oito marchas. Entusiastas disparavam na frente com seus carros para ajudar a bloquear os sensores dos semáforos, que se fechavam automaticamente quando um veículo se aproximava pela via principal. Os sensores serviam justamente para detectar a presença de automóveis. Como uma bicicleta não é tão volumosa quanto um carro ou uma moto, o sinal permanecia aberto, colocando em risco o corajoso desafiante do recorde. Amigos servem para estas coisas, e lá estavam eles, colocando almofadas de borracha sobre os sensores, que mantinham a pista livre para o recorde. As regras então já haviam sido aprimoradas. Agora era proibido até mesmo que os veículos de apoio ultrapassassem o ciclista, para não gerar qualquer tipo de ajuda aerodinâmica. Numa época sem Google Maps ou GPS, era complicado encontrar rotas alternativas para sair de trás do ciclista e chegar na frente  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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dele sem ultrapassá-lo pela mesma via. Tão estressante quanto pedalar era acompanhar o ciclista de um carro. Poole começou a pedalar e logo começou a chuva. E o frio. Assim que a noite caiu suas lanternas se mostraram inúteis. A água não deixava as baterias funcionarem. As roupas, feitas ainda de lã, encharcaram. A brutalidade mal havia começado. Comida, pelo menos, não podia faltar: foram dois quilos de arroz, cinco litros de salada de frutas, três litros de bebida láctea, doze laranjas, quatro litros de café, cinco litros de chá e quatro litros de um refrigerante chamado Ribena. E Dick finalmente quebrou o recorde, com 1 dia, 23 horas, 23 minutos e 1 segundo. Mas, quando qualquer um cairia desmaiado no chão, Dick decidiu pedalar mais um pouco… “Eu estava naquele estado que se espera de alguém que tenha pedalado de uma ponta a outra do país”, Dick Poole afirmou anos depois. “Mas eles começaram a dizer que eu deveria continuar um pouco mais e tentar o recorde das 1.000 milhas (1.609 km), o maior que existia. Eu não queria, mas me convenceram dizendo que faltavam apenas 200 km e que bastava eu prosseguir em ritmo de passeio. Eu concordei. Descansei um pouco e retomei em seguida”. Sim, até ali Dick Poole já era o recordista mundial do percurso original, de Land’s End a John o’ Groats. Mas os amigos queriam mais. E ele sabia que podia. Dick descansou por trinta minutos e subiu novamente em sua Mercian.

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Bastava pedalar a 20 km/h para quebrar dois recordes de uma vez só. As pernas mal haviam esfriado e o guidão apontou para a estrada novamente. E então veio o vento contra. E começou a chover granizo. Foi sofrido, mas ele não desistiu. Como o percurso de 1.000 milhas ainda não havia sido medido, a partir de John o’ Groats o organizador pegou o carro e acompanhou Dick Poole pelos 200 km restantes, tomando o seu tempo periodicamente, para ter certeza de que o ritmo seria apto à quebra do recorde. E para maior garantia, resolveram que Dick pedalaria não “apenas" 1.000 milhas, mas 10 milhas a mais, para que o recorde fosse realmente incontestável. Com 2 dias e 8 horas, sob aplausos e gritos eufóricos de satisfação, Dick e seus amigos estouraram a champanhe que comemorou a quebra do recorde mundial também das 1.000 milhas, com mais de duas horas e meia de folga. Para a homologação do resultado, o percurso teria que ser medido novamente, já que até então não havia marcas claras. Começaram então os trabalhos e, ao final da medição, a cara dos árbitros não foi nada bonita. Quietos, decidiram rever o trabalho. E assim fizeram mais uma vez para, depois de alguns dias, concluírem que… faltavam míseros 250 metros para que Dick Poole tivesse completado as 1.000 milhas. Com a firmeza de um inglês que está acostumado com o chá sempre às cinco horas, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos, o árbitro declarou que Dick podia ter batido o recorde de Land’s End a John o’ Groats, mas não havia nem sequer feito cócegas


no recorde das mil milhas. Parabenizou-o pelas 999,9 milhas mais rápidas do mundo, mas declarou que o recorde não havia sido quebrado. As medições foram refeitas ainda mais uma vez. Os clubes de esportes motorizados ajudaram a medir com os odômetros de seus veículos, mas, não havia como esticar as estradas. 999,99 milhas nunca serão 1.000 milhas. A matemática é tão severa quanto uma septuagenária britânica importunada no meio de sua novela favorita por uma visita que não se anunciou. Poole nunca mais tentou bater o recorde e

NÃO HAVIA COMO ESTICAR AS ESTRADAS. 999,99 MILHAS NUNCA SERÃO 1.000 MILHAS.

até hoje acredita piamente que seu nome deveria ter sido inscrito nos anais do ciclismo mundial por este feito. Mas o fato é que faltaram 250 metros, muito mais que “quase nada” para quem já havia pedalado mais de um milhão e seiscentos mil metros naqueles dois dias. Para se consolar, em sua aposentadoria, Dick Poole conta ainda hoje às suas netas Gemma e Elysia, na cidade de Reading, onde vive, que sim, o vovô Dick foi campeão e seu recorde durou mais de três décadas até ser quebrado em 2001 por um rapaz chamado Gethin Butler, que levou 2 dias, 7 horas e 53 minutos para completar as 1.000 milhas - 1.000 milhas mesmo, sem faltar nem um metro. 


CICLOTURISMO

DO

CICLISTA AO CICLOTURISTA

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Outro dia falamos sobre os encontros que tivemos com outros cicloturistas. Às vezes fico imaginando quais características nos fazem reconhecer um cicloturista. Claro que em Ladakh é fácil, mas como seria em nosso dia a dia?  Texto Antonio Olinto Fotos Rafaela Asprino / Arquivo Pessoal

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s equipamentos podem mostrar um pouco da cultura e da personalidade do cicloturista. Algo que podemos perceber no Brasil é que muitos cicloturistas descendem do mountain bike, afinal, no geral, para viajar de bicicleta alguém terá que treinar e já estar capacitado a pedalar por horas e horas, ou seja, já existe um ciclista capacitado antes de um cicloturista de primeira viagem. Baseando-se nos princípios de agilidade de uma competição, quem já se acostumou a usar uma mochila de hidratação começa sua primeira pequena viagem carregando todo o equipamento da mesma forma, ou seja, todo o peso extra é colocado no local onde o equilíbrio é mais comprometido. Além de aquecer e machucar as costas, o peso da mochila é integralmente transferido para o corpo, que por sua vez passa para o ponto onde fica apoiado na bicicleta, ou seja, a

já tão sofrida parte “sentante” sofre mais ainda. Geralmente todo este sofrimento costuma ensinar rapidamente aos ciclistas que não é bom carregar nada nas costas. Como em cada mudança existe sempre um coeficiente de rejeição, fica sempre algum resíduo do que era antes, que o ciclista ainda não quer deixar para trás. Na primeira viagem tem sempre alguém que quando comprou o quadro nem sabia que deveria ter pontos de fixação

PARA VIAJAR DE BICICLETA ALGUÉM TERÁ QUE TREINAR E JÁ ESTAR CAPACITADO A PEDALAR POR HORAS E HORAS, OU SEJA, JÁ EXISTE UM CICLISTA CAPACITADO ANTES DE UM CICLOTURISTA DE PRIMEIRA VIAGEM.

para futuramente colocar um bagageiro, ou pior, comprou um quadro com suspensão traseira que impede a fixação de bagageiro. De longe poderá reconhecer este cicloturista, pois seu bagageiro é pequeno e está preso no canote de selim. Já ouvi falar de muitos bagageiros destes que quebraram, no entanto, pode ser uma solução razoavelmente eficiente para quem viaja com carro de apoio ou em regiões de clima bom com facilidades pelo caminho, que suprime a necessidade de carregar muito equipamento. Conforme aumenta o tamanho da viagem, aumenta a necessidade de carregar água e podemos ver surgir suportes de caramanholas extras por todos os lados 

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DO CICLISTA AO CICLOTURISTA

O CICLISTA MOUNTAIN BIKER

BOLA NAS COSTAS

PONTOS DE FIXAÇÃO

Na eminência de um cicloturista geralmente há um ciclista capacitado: e quase sempre ele vem do mountain biking.

Na primeira cicloviagem, acostumado com a mochila de hidratação, o ciclista tende a levar todo o seu equipamento nas costas.

Para transferir o equipamento das costas para a bike, o ciclista descobre que precisa de pontos de fixação. Se não houver, usa um bagageiro preso no canote do selim.

BAGAGEM Na empolgação o ciclista planeja várias viagens e aumenta a bagagem, instalando um par de alforjes traseiros e ocupando o espaço sobre o bagageiro.

BAGAGEM FRONTAL Depois, ele também instala um bagageiro sobre a roda dianteira e uma bolsa de guidão. O pensamento, nesse momento, é algo como: “quanto mais bagagem, maior a aventura”.

MAIS ÁGUA

MENOS É MAIS Finalmente, o ciclista descobre a configuração ideal de bagagem para a sua viagem.

Com o aumento das distâncias das viagens, surgem suportes de caramanholas extras por toda a bicicleta.

DESAPEGO E SIMPLICIDADE Com esses dois princípios, sua bagagem reduz para somente o que é “essencial”, e assim ele consegue chegar a todos os lugares que sonhou.

NOVAS ROUPAS As roupas de competição são substituídas por roupas cotidianas, para melhor inserção nas comunidades por onde passa.

INTERAÇÃO COM AS PESSOAS Enquanto pedala, atrai de forma compulsiva e carismática pessoas interessadas em sua história e com elas compartilha sua experiência de vida.

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ESTE É O GRANDE SERVIÇO QUE A BICICLETA CARREGADA FAZ, ATRAI AS PESSOAS DOS LUGARES PARA VIR CONVERSAR COM O VIAJANTE DE UMA FORMA ESPECIALMENTE COMPULSIVA E CARISMÁTICA.

ou outras formas alternativas de carregá-la.

como compram todo tipo de equipamento “necessário”.

Pode-se observar em um ciclista com o tempo de viagem a tendência de ir deixando os uniformes característicos de competições para usar roupas do dia a dia a fim de misturar-se melhor com a gente do caminho.

Um mecânico hábil pode fazer furação em um quadro ou instalar um bagageiro de uma forma adaptada sem grandes prejuízos, desde que não seja muito solicitado em uma grande viagem.

Muitos que viajam de bicicleta pela primeira vez tornam-se viciados logo na primeira dose. Começam a planejar novas viagens compulsivamente, assim

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Bem, agora com o bagageiro traseiro instalado, o ciclista já encontra mais espaço e confiança, logo instala um par de alforjes, que nada mais é que bolsas idênticas colocadas nos dois lados do


A CARGA NA BICICLETA É A MANEIRA PELA QUAL OS CICLOTURISTAS SÃO RECONHECIDOS...

bagageiro para ajudar no equilíbrio do conjunto e manter o peso da bagagem mais próximo do centro de gravidade da bicicleta, o ponto onde está o movimento central. Será que já observou como são grandes os pratos em restaurante por quilo? Com um prato grande o faturamento aumenta, pois cobram por quilo e o cliente tem sempre a tendência de encher o prato seja qual for o tamanho, independente da fome. Da mesma forma, vendo aquele espaço vazio em cima do bagageiro, o cicloturista não resiste ao convite para preenchê-lo. Alguns acham que o bagageiro traseiro é pouco e instalam um bagageiro sobre a roda dianteira, colocam um alforje e às vezes até algo mais na parte de cima. Isso sem falar na maravilhosa “bolsa de guidão”. Nada é mais característico em

um cicloturista que uma bolsa de guidão, um verdadeiro símbolo, um sonho de consumo. Ganhei minha primeira bolsa de um amigo espanhol em Pamplona. Muito básica, nada mais era que uma simples bolsa amarrada no guidão através de fitas, sem qualquer estrutura ou sustentação. Não importava, estava feliz com ela e pedalei até os Estados Unidos quando comprei uma de verdade, que está até hoje na bicicleta exposta no Museu da Bicicleta de Joinville. A bolsa de guidão fica suspensa longe de qualquer parte rígida da bicicleta e mesmo que a bike chacoalhe, objetos delicados dentro dela estarão protegidos. Sua outra função deriva do poder que tem de ser rapidamente destacável da bicicleta. Costumo carregar nela documentos e dinheiro, mantendo-a sem-  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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PARA SABER MAIS Clique aqui e acesse a série Dicas de Cicloturismo, em vídeos, de Antonio Olinto e Rafaela Asprino. revistabicicleta.com.br/rb/cng

pre comigo. Nem sei quantas vezes fui reconhecido ou reconheci cicloturistas, mesmo sem bicicleta, simplesmente por levarem a tiracolo uma bolsa de guidão. É sempre uma festa, pois a gente cumprimenta na certeza, não há como errar, é mais certo do que ver uma marca de queimado de sol no meio da coxa. Sem muita experiência, mesmo os melhores técnicos em planejamento costumam levar coisas a mais. Recebemos muitos e-mails de cicloturistas contando que superestimaram as necessidades da viagem quando carregaram a bicicleta. A Rafaela, antes de me conhecer, logo no segundo dia de viagem pelo Caminho da Fé, despachou quase todo seu equipamento de volta para casa, com alforje e tudo, manteve somente uma pequena mochila embrulhada em um plástico e presa no bagageiro. Quando comecei a volta ao mundo, uma bicicleta cheia de bagagem me fascinava. Parecia que quanto mais bagagem

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maior seria a aventura. Pouco a pouco fui reduzindo o que carregava para um “somente o essencial”, mais “essencial” que antes. O tempo de viagem me mostrou necessidades diferentes das que eu imaginava e acabei chegando a nossa configuração atual. Para reduzir o equipamento, mais que uma busca de melhor eficiência nas pedaladas, faz parte do aprendizado maior que uma viagem de bicicleta pode dar, o desapego e a simplicidade. Às vezes o melhor é carregar isso ou aquilo a mais, nem que seja só por precaução. Entretanto, às vezes a evolução passa por um “deixar para trás”, por um “não possuir”, por um “tomar um risco” de não ter e perceber que nem faz falta. Às vezes, menos é mais. Tentamos, sempre que possível, trazer este aprendizado para nosso dia a dia fora das viagens. A carga na bicicleta é a maneira pela qual os cicloturistas são reconhecidos, sem ela somos ciclistas normais. No dia que cheguei de bicicleta em Paris fui


direto para a Torre Eiffel e cinco parisienses formaram uma roda para falar comigo, parecia uma coletiva de imprensa. No outro dia, sem carga, ninguém nem me cumprimentava pelas ruas da mesma cidade. Como não há regras, não temos como saber em que “fase evolutiva” um cicloturista está. Será que ele errou no cálculo? Será que ele está indo para um lugar muito distante e difícil? Também pode ser um minimalista do tipo “roots”? Será que já passou por aqueles lugares que sonhou ir um dia? Existe uma forma simples de saber. Basta ir até ele e perguntar. Este é o

grande serviço que a bicicleta carregada faz, atrai as pessoas dos lugares para vir conversar com o viajante de uma forma especialmente compulsiva e carismática. Se prestarmos atenção, em sua retórica reconhecemos o grau de conhecimento do cicloturista. Mais que os altos números dos quilômetros da viagem ou de países visitados, em suas histórias podemos perceber sua sabedoria. Mais que os feitos, busque os aprendizados que teve: é sempre gratificante parar para conversar com um cicloturista, pois ele tem experiências de vida para nos contar. 


INICIATIVA

JORNADA PELA COSTA DO MUNDO Pela preservação dos oceanos Texto Anderson Ricardo Schörner e Guilherme Gevaerd Fotos Guilherme Gevaerd

N

a edição 57 (novembro/2015) da Revista Bicicleta, publicamos uma entrevista com Guilherme Gevaerd, que está à frente do projeto World Coast Journey (Jornada pela Costa do Mundo) – pela preservação dos oceanos. Naquela ocasião, ele havia terminado a primeira de oito etapas programadas para percorrer toda a costa marítima do mundo, finalizando sua pedalada pelo lado europeu do Mar Mediterrâneo. O objetivo de Guilherme com este projeto é chamar a atenção para o problema do lixo nos oceanos. Em sua viagem, ele apresenta o projeto em escolas e faz limpezas nas praias por onde passa. Além da bicicleta, Guilherme quer utilizar apenas meios de transporte que não

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poluem, como o barco a vela com o qual pretende atravessar o Atântico. Sacolas, pedaços de rede, objetos e vasilhames de todos os tamanhos são encontrados no lixo marinho. Às vezes, enrolados em uma tartura ou no estômago de alguma carcaça de animal. Estima-se que, anualmente, um milhão de pássaros marinhos e 100 mil animais que vivem no mar morrem em decorrência do lixo. “Sempre gostei de andar de bicicleta e meu sonho era viver num veleiro. Sou amante do mar e da natureza, e eu não queria ver todas estas coisas acontecendo sem fazer nada”, diz o catarinense de Lages, que agora acaba de encerrar a segunda etapa de sua jornada pelo mundo: da costa da Holanda até a Espanha. Acompanhe!


DA HOLANDA ATÉ A ESPANHA Por Guilherme Gevaerd

Nesta etapa do projeto World Coast Journey, iniciei a viagem em Amsterdã, na Holanda. Lá, comprei uma bicicleta dobrável que pudesse transportar no barco a vela de volta para o Brasil. Com isso, a cicloviagem foi bem mais difícil do que a da primeira etapa, feita com uma mountain bike. A ideia era seguir toda a costa da Holanda, Bélgica, França, Espanha e Portugal, voltando para a Espanha até Punta Umbria, de onde começarei minha travessia pelo Oceano Atlântico em um barco a vela para a América Central. Pedalar na Holanda e na Bélgica foi incrível. Em todo o trajeto há pistas cicláveis, podendo escolher diversos caminhos, sempre com vias separadas dos carros, no meio da natureza, em bosque

ou caminhos no meio das dunas. Paisagens incríveis onde dormi na areia da praia com o saco de dormir. Quando cheguei na França, próximo à cidade de Calais, estava muito cansado e sem bateria no celular para ver quantos quilômetros estava da praia, então, decidi parar no primeiro lugar que encontrasse para dormir. Encontrei várias árvores no caminho e decidi parar ali, já estava escurecendo e montei a rede, comi e quando estava quase dormindo chegou um rapaz do Egito procurando o caminho com a luz do celular. Falei que o caminho era do outro lado e ele levou um susto pois estava muito escuro. Ele falou que não entendia inglês ("no english") e me respondeu em árabe, e eu respondi que não entendia árabe ("No árabe"). Tentei em espanhol, português e em italiano conseguimos conversar. Ele me perguntou o que estava fazendo ali, e expliquei do projeto World Coast 

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Veja o documentário contando a história de como iniciou o projeto World Coast Journey, dados sobre a poluição dos oceanos, e as experiências que inspiraram o desenvolvimento do projeto. revistabicicleta.com.br/rb/cpd

Journey. Então, ele me alertou que ali não seria um bom lugar para dormir, que poderia ser perigoso e me convidou para dormir em sua casa. Foi assim que cheguei no campo de refugiados de Calais, conhecido como Jungle, com aproximadamente nove mil pessoas vivendo sem nenhuma estrutura, sem tratamento de esgoto, sem apoio do governo, com a polícia fazendo repressões constantes com gás, sem nenhuma real condição de vida. Cheguei ali por uma coincidência incrível, e meu plano era ficar apenas um dia. Depois, resolvi ficar uma semana, para conhecer mais e ajudar no que eu pudesse. Mas eu estava sendo também ajudado, conhecendo pessoas e histórias de vida muito difíceis, embora eles sempre estivessem com um sorriso no rosto, prontos para ajudar, com um coração enorme. Essa experiência me fez entender muito

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melhor a vida e o que realmente são problemas. A maioria das pessoas apenas criam problemas em suas cabeças e não sabem nem nunca passaram por algo parecido, para saber o que eles realmente são. As dificuldades, na maioria das vezes, nos ensinam muito. Como eu tinha que chegar em Punta Umbria, na Espanha, no início de novembro para fazer a travessia do Atlântico em um barco a vela, eu tinha que decidir se seguia pedalando com o projeto (ainda faltava França, Espanha e Portugal) ou se continuava vivendo no campo e ajudando aquelas pessoas maravilhosas que fugiram da guerra em seus países, buscando o sonho de uma vida nova na Europa, sem guerras. Porém, quando chegam são tratados como animais, de forma inferior, tendo problemas com a polícia e o governo, além de sofrer o preconceito das pessoas. Diante disto, decidi ficar o máximo que conseguisse e deixar o projeto da cicloviagem para dar


sequência depois. De Calais até Punta Umbria seguindo a costa ainda seriam mais de 2.500 km, o que exigiria mais de um mês para completar. Como tinha decidido ficar em Calais, acabei pegando carona, ônibus e pedalei mais 300 km até chegar no destino e me encontrar com o Barbarossa. Barbarossa é o barco a vela do Silvio Franceshini (www.y-tronics.com/en/), que conheci no ano passado quando estava fazendo a viagem pela costa do Mar Mediterrâneo e desde então mantemos contato. Viajando de veleiro ele também viu muitos dos problemas referentes ao lixo e ao plástico nas praias

e nos oceanos. E agora vamos juntos fazer a travessia do Atlântico com o Barbarossa sem poluir a natureza, desta vez utilizando a força da natureza, o vento para nos levar até Barbados, na América Central. Partiremos de Punta Umbria para Ilha Madeira, Ilhas Canarias, Cabo Verde e finalmente Barbados. De Barbados ainda tenho que encontrar outro barco para chegar à costa da América do Sul e seguir pedalando para voltar ao Brasil. Depois, pretendo construir um barco a pedal para ir do Brasil até o Caribe e seguir com a minha Jornada pela Costa do Mundo pela preservação dos oceanos. 




LONGA DISTÂNCIA

HCH

1.200 KM 2016 Texto e Fotos William Lopes

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Tive a privilegiada experiência de participar no HCH 1.200 km, prova válida pelo calendário Randonnée Mundial, que ocorreu entre os dias 06 e 09 de julho. Com largada e chegada na Bélgica, passamos por Paris e uma boa parte do interior da França. Foram 86 h envolvidos na prova, que foi dura, mas de um visual muito lindo! 

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de todas as idades viajando só ou com a família, nas ciclovias longe do tráfego, cruzando pequenas cidades pela zona rural. Eles também vivem o ciclismo como primeiro esporte. As cidades possuem ídolos antigos e atuais. Nosso evento coincidiu com o Tour de France e em todos os lugares que passamos, tanto na França como na Bélgica, as tvs estavam ligadas no Tour e as pessoas assistindo, torcendo e discutindo sobre a corrida. É incrível! Num primeiro momento, todas essas diferenças foram estimulantes, pois era muito seguro pedalar ali. Mas, por outro lado, foi complicado, uma vez que as estradas para bike passam longe do movimento e é mais complicado conseguir água e alimentação. Demorei dois dias para pegar o jeito: em quase toda igreja ou praça tem uma torneira, e em qualquer casa que parávamos, já perguntavam se tínhamos o suficiente, se queríamos água gelada para abastecer as caramanholas.

1 dia o

Meta 378 km Largamos de uma escola em Herentals, na Bélgica, às 5 h em ponto. Jan, o organizador, nos deu algumas orientações e pediu para que o grupo se mantivesse unido até a saída de Bruxelas. Logo percebi o volume do pedal que os europeus têm, e também muita experiência. A cultura da bicicleta naquela região é total, todos pedalam desde muito cedo, a infraestrutura é fantástica e todas as cidades são pensadas para facilitar o uso da bicicleta. Assim, é comum pessoas

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As vias para bicicleta criam um emaranhado de estradinhas, o que acabou complicando quando estávamos próximo ao Ponto de Controle (PC) em Vilaparisi, região metropolitana de Paris. Por sorte, tanto eu como Moisés, outro brasileiro que estava comigo na prova, estávamos com GPS. Cruzamos por muitos bosques Du Roi (bosques de caça dos reis da França), tudo muito escuro, com barulho do vento e dos animais. Só não deu medo porque eles não vivem a violência que assola nosso país, mas foi tenso, pois não podíamos errar. No fim deu tudo certo e chegamos ao PC onde nos esperava o Jan, mostrandose muito preocupado por termos demorado a chegar. Falei que o caminho foi meio truculento devido aos diversos


cruzamentos. Ele nos ofereceu cerveja, eu estranhei, agradeci e fomos para o quarto. Lembrome de olhar o relógio pela última vez à 1 h 30 min, e coloquei o despertador às 3 h 30 min.

2O dia

Meta 285 km Às 5 h largamos em comboio para o dia mais bonito da prova. Seguimos até Paris, que é irresistível: Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Trocadero, Rio Sena, Catedral de Notre Dame, cada ponto turístico incrível... Mas o tempo não para. Esse tipo de prova é contra o relógio e se você se atrasar um pouco pode pôr tudo a perder. A prova dos 1.200 km deve ser feita em, no máximo, 90 h. Se você fizer uma conta simples verá que parece tranquilo, afinal,

a velocidade média deveria ser, então, 13,33 km/h. Certo? Totalmente errado! Esse tempo inclui tudo, ou seja, tempo para descanso, alimentação, assistência na bicicleta, eventuais fotografias, pedir informações etc. Na realidade, devemos estar preparados para pedalar sempre acima dos 21 km/h de média, sendo o ideal pelo menos 24 km/h. Não é fácil. Se você começar muito forte, 

A cultura da bicicleta naquela região é total, todos pedalam desde muito cedo, a infraestrutura é fantástica e todas as cidades são pensadas para facilitar o uso da bicicleta."

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por quanto tempo conseguirá manter o ritmo? Quanto isso vai te custar em termos de desgaste físico? Vale lembrar que não existe carro de apoio, ou seja, o Randonnée deve ser independente. Aí vem outra questão: o que levar? Quanto levar? Se levar muito pode quebrar por excesso de carga, se levar pouco pode ficar sem peças, água ou alimento. O desafio está aí. É um jogo de xadrez, pura estratégia. Passando a parte turística de Paris, veio a parte do trânsito de uma metrópole, onde gastamos muito tempo, pois pegamos a hora do rush quando estávamos de saída. Só não foi mais difícil devido à infraestrutura de ciclovias e educação dos motoristas. Em direção a Orleães, num

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trecho muito bom de andar, não fosse o vento contra e o calor, a cerca de 2 h de Paris nos pegamos economizando água. Isso não era bom, pois com o ar seco e quente deveríamos nos hidratar. O que aconteceu é que não havia cidade nem casas, só plantações, que naquele trecho lembram muito os campos gerais do Paraná. Em uma casa conseguimos nos hidratar e 20 minutos à frente encontramos o Jan fazendo um PC secreto com água e algo para comer. “Encham as caramanholas, porque daqui pra frente não tem nada. Serão horas de pedal sem infraestrutura”, disse ele. Alguns quilômetros adiante começou um trecho onde grudavam uns pedregulhos nos pneus. Aquilo foi me incomodando,


pois minha bike estava com para-lamas e eu tinha que parar a todo momento. Estavam refazendo o asfalto e tinham acabado de aplicar as pedrinhas sobre o piche. Simplesmente não dava para pedalar devido ao volume de pedras que grudavam nos pneus. A única saída era descer da bike e empurrar. Estávamos todos empurrando as bicicletas por uma plantação de batatas, quando um funcionário da estrada nos informou que o trecho com piche seria de aproximadamente de 3 km. Pensei: “e agora? Todo mundo cansado, calor, isso vai atrasar muito”. Mas o Randonnée é isso também! Quando voltamos a pedalar, o vento deu um tempo e pudemos

compensar o atraso. Orleães é mais uma cidade linda da França, com suas construções de cartão postal. Depois do almoço, seguimos por uma ciclovia margeando o Rio Loire, por uma rota com relevo bonito e muitas plantações, mas também muito calor e vento. Começamos a pegar o jeito para comer e obter água, e as coisas começavam a se encaixar. Rodamos até Cosne-Cours-sur-Loire, com paisagens lindas. Na pequena cidade de Sully há um castelo que parece coisa de filme, com um fosso ao redor. Dormimos durante 4 h, o que foi bom para recuperar as energias, já que sofremos muito 

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durante o segundo dia de pedal. Novamente, Jan me ofereceu uma cerveja. Pensei: “o cara é o organizador, uma pessoa extremamente responsável. Por que não tomar a cerveja que ele me oferece?”. Sendo assim, tomei e... Não é que funcionou? Depois ele me explicou que para eles a cerveja é alimento, muito rica em carboidratos. E o álcool, tomando de maneira correta, não faria mal.

3O dia

Meta 275 km Já somávamos mais de 700 km e o dia seria difícil pelo volume da altimetria. O incrível é que estava rendendo muito. Eu me sentia mais à vontade no quesito alimentação. Passamos pela região

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principal do vale do champanhe, mais especificamente Épernay, e as paradas para fotos foram inevitáveis, o que acabou nos atrasando. De qualquer forma, a oportunidade não poderia ser dispensada, pois dali saem os mais famosos champanhes do mundo. Em vários locais estavam sendo servidas taças das melhores marcas. Como foi complicado resistir a tudo e não ingerir nada. Mas faz parte do processo. Foco é um bem muito grande numa prova dessas, e não dava para brincar. Finalmente, chegamos a Champfleury. Devido ao horário, o único restaurante aberto era justamente um muito chique. Mas não tínhamos o que fazer: era tudo ou nada. Lá fomos jantar no restaurante fino, com todos os clientes muito bem vestidos e nós com má aparência e a essa altura fedidos. A metre, no entanto, nos recebeu muito bem e ali comi a melhor carne da minha vida, não sei se de tão bem-feita ou de tanta fome. Foi fantástico e nos deu energia para superar os últimos 30 km de subidas até Reims.

4O dia

Meta 275 km Jan abriu um champanhe e cada um deu

uma bicada para comemorar a largada para o último dia. Novamente saímos às 5 h e todos estavam juntos. Percebi a preocupação dos belgas conosco, “os dois brasileiros”. A todo momento eles queriam saber se estávamos bem. O planejamento da rota foi perfeito, pois nesse último dia já não havia tanta novidade e foi a região menos fotografada. Por isso, poucas paradas para fotos fizeram o pedal render mais. Próximo à chegada, passamos por algumas das mais lindas ciclovias, com muitas árvores e pequenos canais, tudo muito limpo. Muitas pessoas, das mais diversas idades, pedalando. Emocionante. Às 19 h chegamos a Morkhoven, região de Herentals. Todos nos aplaudiram, foi muito lindo. Particularmente, parecia que eu estava vivendo um sonho. A sensação de ter realizado algo que eu queria muito. Sensação maravilhosa. Ainda teve uma festa de premiação com french fries and chicken, não faltando as melhores cervejas belgas. Como a cerveja deles é saborosa! Não resisti, tomei algumas das melhores. Naquela noite dormi com a sensação de missão cumprida: 1.203 km em um total de 86 h. Simplesmente inesquecível!  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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CICLOCIDADANIA

POR UM BRASIL SEM DROGAS Ciclistas do Maranhão realizaram segunda edição da Maratona Contra as Drogas e durante os 2.740 km pedalados, distribuíram mais de 50 mil panfletos e sensibilizaram um sem-número de pessoas quanto a importância de se proteger dos vícios.

Texto Mauro Melo de Albuquerque Fotos Divulgação

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edalar 2.740 km foi o desafio dos ciclistas que participaram da Ultra Mega Maratona – Tour Brasil Rio 2016 – por um Brasil sem drogas. Os mais de 26 ciclistas maranhenses saíram de Imperatriz (MA) rumo ao Rio de Janeiro, cidade-sede dos Jogos Olímpicos deste ano. Foram aproximadamente 20 dias percorrendo as rodovias do país com um forte objetivo: sensibilizar o Brasil contra as drogas. Os maratonistas chegaram a Brasília no dia 19 de julho, onde se juntaram aos mais de 700 ciclistas da capital na maior mobilização contra as drogas já vista no país, além de voluntários de diversos grupos do Distrito Federal e cidades do entorno. A concentração foi no Parque

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da Cidade, depois os atletas pedalaram pela Esplanada dos Ministérios até a Torre de TV, onde aconteceu um ato público de apoio à luta contra as drogas, além de apresentações musicais. Também visitaram o hotel do crack e a cracolândia da cidade. Uma comitiva de 42 pessoas, dentre eles 26 ciclistas, seguiram com sete veículos, incluindo ambulância, carreta, ônibus, carros de apoio, carro de som etc. Durante os vinte dias, esses corajosos ciclistas enfrentaram o cansaço, a dor, o perigo das estradas, estradas sem acostamento e mesmo assim, em cada cidade deixavam o seu recado contra as drogas. Foram mais de 50 mil panfletos


de sensibilização, prevenção e convocação para que todos dessem as mãos ao enfrentamento contra esse mal que está destruindo milhares de famílias e aumentando a criminalidade. As mobilizações chamavam a atenção para que todos apoiassem as comunidades terapêuticas (em torno de duas mil) que espalhadas pelo Brasil, muitas delas sem nenhum apoio governamental, lutam pra mudar essa realidade, acolhendo, tratando e devolvendo à sociedade milhares de acolhidos curados desse mal. Adivando Júnior, organizador da Ultra Mega Maratona, delegado regional da Fennoct e líder de uma comunidade

terapêutica (CT) em Imperatriz, no Maranhão, conta que o objetivo do projeto é estimular a prática de esportes e conscientizar a sociedade dos males causados pelo uso de drogas, além de lutar pela manutenção das comunidades terapêuticas. “A ideia surgiu da vontade de alertar a população de que as drogas estão destruindo os sonhos dos nossos jovens e sensibilizar os governos dessa nação da importância de se investir nas CTs. Em todas as cidades a participação de ciclistas foi surpreendente. Em Brasília, a Fennoct (Federação das Comunidades Terapêuticas (CTs) do Norte Nordeste), a Confenact com o seu presidente, Célio Barbosa, e a Ong Salvi a Si 

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mobilizaram mais de 700 ciclistas e CTs no maior movimento do Brasil contra as drogas. Em Belo Horizonte não foi diferente. Na praça sete e na cracolândia (existem cracolândias em todo o país), com o apoio do deputado Eros Biondine (frente parlamentar de apoio às CTs), os Mega Maratonistas deixaram o seu recado. Já no Rio de Janeiro, em pleno fervor dos jogos olímpicos, a caravana contra as drogas chegou no dia 30 de agosto na Praia de Copacabana, sendo recepcionada por milhares de turistas e imprensa internacional. Com os ciclistas de todo o Brasil, plantamos as sementes dessa luta que nunca pode parar. Todos juntos – sociedade, atletas e governo – faremos a diferença ao enfrentamento

às drogas nesse país”, explica Adivando. Os ciclistas da Ultra Mega Maratona saíram do Maranhão no dia 10 de julho e seguiram pedalando pelos estados do Tocantins, Goiás, Distrito Federal, Mina Gerais e chegam ao Rio de Janeiro no dia 30 de agosto, cinco dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Esta é a segunda vez que o grupo realiza uma maratona ciclística. A primeira edição foi em 2015 quando percorreram 640 km desde Imperatriz (MA) até a capital do estado, São Luís. Assim a Ultra Mega Maratona Brasil sem drogas assinou mais um capítulo na luta contra as drogas e pelas Comunidades Terapêuticas de todo o país. 



BIKE FIT

O QUE É UM BIKE FIT DE VERDADE? Texto Carlos Menezes

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entro do competitivo mercado globalizado, todos procuram uma maneira de se diferenciar, ou seja, oferecer um serviço que ninguém oferece ou oferecer um serviço com tamanha qualidade que nenhum outro concorrente consiga oferecer. Nos últimos anos, com o aumento do poder aquisitivo, os brasileiros têm investido cada vez mais em qualidade de vida. As academias estão lotadas, os estúdios pilates conquistaram seu espaço, os parques e as ruas cheios de pessoas praticando “running”, e como não podia ser diferente, as bikes também tiveram seu “boom” de mercado. O aumento do poder aquisitivo, juntamente com a busca de uma melhor qualidade de vida, fez com que as pessoas relembrassem do grande prazer que tinham em pedalar na infância, mas muitas vezes, limitados a bicicletas simples e sonhando com as grandes marcas/ modelos do mercado. Agora com a vida

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financeira organizada e vendo o grande número de pessoas pedalando, essas mesmas pessoas voltam para realizar aquele velho sonho de ter uma “boa bike” e junto arrasta amigos e familiares. Acontece que o mercado de hoje é muito diferente do mercado de 10 ou 20 anos atrás. As informações estão muito mais disponíveis aos consumidores, as pessoas leem e estudam mais, e priorizam bons produtos e serviços. Juntamente com isso, uma fatia do mercado vem se especializando cada vez mais para atender essa demanda, enquanto outra parcela permanece parada


no tempo. Ao mesmo tempo em que nos deparamos com “bike stores” ainda convivemos com “bicicletarias” que vivem há anos no mesmo padrão. Algumas até passam uma maquiagem, mas continua a mesma de sempre. No cenário descrito acima, os ciclistas descobriram que não basta investir nos melhores equipamentos. É preciso fazer a coisa de maneira correta, para se extrair o máximo da prática esportiva. Foi aí, então, que o Bike Fit conquistou o seu espaço. Já conhecido há alguns anos na Europa e na América do Norte, ganhou maior visibilidade na era “Armstrong”. Certamente ele foi uma vitrine para o mundo em relação ao Bike Fit. Sempre preocupado com os mínimos detalhes para extrair os melhores resultados, evidenciou a sua preocupação com equipamentos, medidas e posicionamento. No Brasil, essa ciência foi introduzida de forma lenta e desconfiada, no início visto como importante somente para atletas competidores à procura de tempos mais baixos. Outro ponto que vale ser mencionado é que naquela época existia um número menor de marcas e modelos e as geometrias

não apresentavam a grande variedade que existe hoje. As bikes eram muito semelhantes. Os estudos para desenvolvimento de quadros eram muito limitados, e os ajustes eram empíricos, baseados em altura do ciclista e comprimento do entre pernas (cavalo). Com o passar dos anos o número de bikes aumentou, as geometrias evoluíram e se tornaram específicas para cada propósito. Foi investido muito em estudos e pesquisas para melhoria de posicionamento, ganho de performance, conforto e prevenção de lesões, onde atualmente é possível avaliar um ciclista antes da compra e orientá-lo a adquirir a melhor configuração para seu biótipo/ condicionamento físico. Aparelhos que avaliam os ciclistas em três planos (3D) fazem uma análise dinâmica enquanto é simulado um intervalo de pedalada. As grandes equipes ainda submetem esses ciclistas a testes em túnel de vento para aprimorar a performance. Na última década, vários profissionais brasileiros da área da saúde se qualificaram para oferecer essa ciência àqueles que procuram por qualidade na pedalada. Pela escola que me formei, somos aproximadamente 35 profissionais em atividade. Somando as demais escolas de formação, acredito que o número total esteja por volta de 100 profissionais no Brasil. Juntamente com esse crescimento do mercado é possível observar uma crescente procura por esses serviços, muitas vezes baseados apenas no lado comercial do Bike Fit. Muitas pessoas vêm oferecendo esse  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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serviço sem ter a mínima noção do que realmente é Bike Fit. Curiosos que se autodenominam autodidatas (Dr. Google) devoram posts em sites sem nenhuma relevância científica e saem por aí aplicando suas metodologias. A última moda tem sido os aplicativos para smartphones ou páginas da internet que oferecem o “Bike Fit Calculator”. Se já não bastasse a falta de coerência dos métodos, ainda temos alguns termos científicos que dificilmente alguém que não tenha cursado anatomia saberia identificar com precisão. Dentro de uma sessão de Bike Fit um dos vários pontos importantes é a perfeita identificação e marcação dos pontos anatômicos com os sensores 3D. Recordo-me que há seis anos, quando assessorado por um consultor na elaboração do plano de negócios da minha empresa, um dos pontos a ser levantado era a concorrência. E quando entramos em contato com os concorrentes e perguntávamos sobre a formação o que ouvíamos era: “fulano pedala há mais de 20 anos”, “ciclano foi campeão da prova não sei das quantas”, “beltrano é um dos melhores mecânicos da região”. Como se isso fosse condição “sine qua non” para trabalhar como Fitter. Concordo que não são indispensáveis, muito pelo contrário, conhecimento de mecânica e experiência com bikes é importante sim, mas o mais importante é ter formação e estudos para isso. O conhecimento é a base da pirâmide. Caso contrário, os melhores cardiologistas seriam os que já sofreram uma parada cardíaca (pobres proctologistas). A próxima novidade será o que os lojistas vêm chamando de “a máquina de fazer Bike Fit”. Concordo que equipa-

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mentos são essenciais para a realização de um bom trabalho. Inclusive, valorizo muito e procuro sempre estar oferecendo o que há de melhor em equipamentos. Mas daí para ofertar um serviço onde a máquina é o realizador de Bike Fit, existe alguns anos luz de distância. Recentemente ouvi a seguinte expressão de uma das maiores autoridades em Bike Fit a nível mundial: “o melhor sistema de Bike Fit ainda são os neurônios”. Isso significa que mesmo tendo o melhor equipamento, se o material humano não possuir conhecimento para ler e interpretar as informações fornecidas pelo sistema, de nada vale o equipamento. Equipamentos transformam posicionamentos em números, que nos permite quantificar o quanto está bem ou mal posicionado e a partir daí os ajustes são realizados. Como analogia para ajudar a compreender, podemos utilizar o alinhamento e balanceamento de rodas para carro. O equipamento é fantástico, mas se me colocar diante dele ou de seus resultados, não sei o que significa e nem o que fazer para corrigir o problema. Já nas mãos de um profissional capacitado, o alinhamento sai de maneira impecável. Durante a anamnese, quando pergunto ao ciclista: “já realizou Bike Fit antes?”, não muito raro recebo a seguinte resposta: “já fiz com Fulano, um daqueles caseiros, mas nunca fiz um Bike Fit assim, de verdade”. De imediato me vem o pensamento. Mas se o Bike Fit não é de verdade, ele só pode ser o sou antônimo, ou seja, só pode ser de mentira. Percebido isso, dentro da minha curiosidade passei a perguntar: “mesmo sabendo que não é um Bike Fit de verdade, porque você fez?”, e na maioria das vezes ouço:


“ah, porque entre esse Bike Fit e nada, é melhor fazer esse Bike Fit sem fundamento”. Pois então, eu afirmo: nada é melhor do que esse caseiro, sim! Frequentemente recebo ciclistas que tiveram lesões devido ao mau posicionamento definido por pessoas que não sabem o que estão fazendo. Valorize seu corpo. Não o submeta às mãos de quem está interessado apenas no lado comercial do Bike Fit. Com certeza você já deve ter ouvido alguém falar: “eu não acredito em Bike Fit”. Bike Fit não é benza, mandinga ou simpatia, algo que é necessário acreditar para ter efeito. O grande diferencial do Bike Fit é mensurar a qualidade do seu posicionamento e poder trabalhar esses números para a evolução da qualidade da pedalada

CASO CONTRÁRIO, OS MELHORES CARDIOLOGISTAS SERIAM OS QUE JÁ SOFRERAM UMA PARADA CARDÍACA do ciclista. É criar um projeto a curto, médio e longo prazo para esse ciclista. É criar seu histórico de posicionamento e geometrias, para poder acompanhá-lo ao longo dos anos. É encaminhá-lo a profissionais das mais diferentes áreas, para aprimorar necessidades físicas que atualmente limitam seu posicionamento. Tendo como base tudo isso, frequentemente sou questionado de como identificar um bom lugar para fazer Bike Fit. Verifique: qual a formação do profissional? Onde ele estudou Bike Fit? Seus diplomas em Bike Fit são emitidos por qual centro de formação? Esse centro de formação é relevante? Ele procura se atualizar com 


frequência? Onde são feitas essas atualizações? Quais são os equipamentos por ele usados? Qual metodologia ele emprega nos ajustes? Qual sua experiência com Bike Fit? As informações por ele fornecidas e perguntas respondidas são pautadas em artigos científicos ou apenas no senso comum? Para ilustrar, dia desses recebi a ligação de um comerciante que vende o serviço de Bike Fit para seus clientes, querendo tirar uma dúvida. Do outro lado da linha,

BIKE FIT NÃO É MÉTODO, FÓRMULA, REGRA. É CIÊNCIA QUE AJUSTA A BIKE AO CORPO DO CICLISTA E NÃO O CORPO DO CICLISTA À BIKE

ele questionou: “estou com um cliente aqui em cima da bike e detectei que ele tem uma perna maior que a outra. O que me aconselha fazer?” Perguntei: “como você sabe que uma é maior que a outra?” Ele respondeu: “olhando dá pra ver”. De cara já pensei: caramba, que olho é esse que mede com precisão o comprimento das pernas? Querendo ajudá-lo questionei: “mas essa diferença é tíbia ou fêmur?”. Fui surpreendido pela

pergunta: “como assim?”, e percebendo que ele não sabia do que se tratava, dei sequência perguntando: “essa diferença de alcance que você percebe é estrutural ou funcional?”. Fui novamente surpreendido pela resposta: “como assim?” seguido da expressão: “vai com calma. O Bike Fit que faço aqui, não é um Bike Fit de verdade, é somente uma ajuda, uma orientação”. É disso que venho falando acima. Não existe ajuda, orientação, meio Bike Fit ou Bike Fit mais ou menos. Ou você fez ou não fez Bike Fit. Não adianta se iludir, perder tempo e dinheiro. Na pior das hipóteses uma lesão provocada por um mau posicionamento vai lhe custar muito mais tempo e dinheiro para se reabilitar. Digo e repito: Bike Fit não é método, fórmula, regra. É ciência que ajusta a bike ao corpo do ciclista e não o corpo do ciclista à bike. E o corpo é dinâmico, sofre alterações em relação à capacidade motora, flexibilidade, peso, condição física, distribuição antropométrica, sendo necessário acompanhamento e orientação profissional. O Bike Fitter, sempre que vê alguém entrar pela porta do seu Estúdio Bike Fit, antes de enxergar o cliente e o ciclista, enxerga um ser humano que merece respeito e cuidados, e que confia sua saúde física nas mãos de um profissional. 



ROTEIRO INTERNACIONAL Texto e Fotos Ana Cristina Sampaio

Meu pedal No

alentejo com a butterfield “Se a vida é equilibrio e movimento, nada melhor do que andar de bicicleta.”

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om essa frase eu ganhei o primeiro lugar no concurso cultural promovido pela Revista Bicicleta, no início de 2016. O prêmio, uma cicloviagem pelo Alentejo, em Portugal, pela operadora Butterfield and Robinson, aconteceu em outubro. Foram cinco dias de pedal “categoria lazer”, na companhia de minha filha Luciana, de 24 anos. Quando embarquei nessa aventura não poderia imaginar que a viagem superaria as minhas melhores expectativas.

DIA 1 Encontramos o grupo no hotel Bairro Alto, em Lisboa. Eram todos casais texanos e canadenses de meia idade, à exceção de Megan e Ralph, que viajavam desacompanhados. De brasileiros, nós e o guia Marcos Grellet, que nos recepcionou no hotel. Partimos em uma van vestidos para pedalar. Em pouco mais de uma hora chegamos ao destino: uma pequena venda no meio da estrada que liga Lisboa ao Alentejo. Lá nos esperavam as bikes da marca italiana Bianchi e os demais guias: o italiano Riccardo Pasquin e o alemão Tim Schellenberger. Escolhemos para pedalar bikes híbridas, mas havia quem pedalasse bicicletas de estrada, e-bikes e até uma tandem (dupla). A van de apoio da Butterfield and Robison carrega bicicletas extras, de modo que é possível trocar de experiência de pedal se quiser. Mantivemos as nossas até o fim da viagem, mas nos arrependemos de não provarmos a e-bi-

ke, que alguns ciclistas optaram para atenuar as subidas do percurso. Após um lanche rápido preparado pela equipe da BnR, partimos para nossa descoberta das estradas vicinais do Alentejo, seguindo em direção a Avis. O primeiro trecho foi de pouco mais de 26 km, percorrendo cenários repletos de oliveiras. A estreia terminou num restaurante típico, com comida e vinhos portugueses, o que, aliás, mostrou-se o ponto alto do passeio e uma especialidade da empresa: transformar a experiência de pedalar no exterior num misto de esporte, gastronomia, cultura, arte e história. Eles realmente nos surpreenderam nesse quesito. Após o almoço, pedalamos mais 7 km até o primeiro hotel do passeio - o Herdade da Cortesia, ao lado da cidade de Avis. Alguns optaram por fazer um trecho mais longo, de 30 km. Os hotéis escolhidos são todos de primeira linha e, devido à baixa temporada, estavam praticamente vazios, tornando a estadia mais privativa e acolhedora. Após um mergulho na piscina de borda infinita e um passeio pelos arredores do lago Maranhão, que margeia o hotel, nos encontramos para uma degustação de vinhos e pintura de azulejos portugueses. Essa parte “artística” eu só pude completar com a ajuda da professora. Até que meu “galinho português” não ficou tão mal.... Em seguida, no jantar servido com requinte, o bate-papo nos permitiu conhecer um pouco mais dos amigos de pedal. Uma turma divertidíssima e super acos-  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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tumada a pedalar, especialmente com a BnR. A fidelidade à empresa é tão grande que os canadenses de Vancouver Bill e Ruthie estavam na sua vigésima viagem. O americano Ralph fazia sua 13ª. Uma ameaça de chuva no dia seguinte movimentou o fim da noite. Os guias trataram de colocar à disposição uma alternativa de passeio caso houvesse ciclistas não muito dispostos a pedalar no mau tempo. Decidimos encarar o pedal com qualquer clima, afinal, estávamos ali para isso. Aceitamos o convite dos canadenses Richard e Karen para nos encontrarmos às 9 horas e partirmos para o segundo trecho da viagem. Uma peculiaridade dos pedais da BnR é que eles são autoguiados com o apoio de um guia pedalando e outros dois na van. As orientações de cada percurso vêm acopladas na bicicleta ou podem ser baixadas no aplicativo. Assim, os ciclistas imprimem seu próprio ritmo, contando sempre com suporte para lanches, uma troca de bike ou até mesmo interromper o pedal.

DIA 2 O céu amanheceu nublado, mas a previsão de chuva não se concretizou. Alguns ciclistas foram conhecer as ruínas de um castelo, como proposto na noite anterior, mas a maioria resolveu encarar a estrada. Foram 42 km costeando a barragem do rio Maranhão e por estradas desertas, em meio não só a oliveiras, mas a rebanhos de ovelhas e cabras, numa região agrícola do Alentejo. Após cerca de três horas, retornamos ao hotel para um piquenique à beira da piscina, o que significa dizer que comemos e

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bebemos novamente o que há de melhor na gastronomia local. À tarde, visitamos uma plantação de cork trees, as árvores que produzem a cortiça das rolhas. O local também é usado para caça esportiva, e pudemos ver veados e javalis circulando. A visita terminou com um jantar na casa dos proprietários, as iguarias harmonizadas com os vinhos por eles produzidos. Como era aniversário da ciclista Megan, a noite terminou com fogos de artifício. Que comemoração!

DIA 3 Partimos pedalando de Avis em direção ao Convento do Espinheiro, próximo a Évora. Esse foi o dia mais desafiador, pois aceitamos o convite do casal Richard e Karen para pedalar o trecho após o almoço. Foram 40 km do hotel até o restaurante, também uma casa de proprietários portugueses, fabricantes de seus próprios vinhos. Após algumas taças de brancos, tintos e rosés, e uma comida preparada e servida pela dona da casa, a companhia dos canadenses nos deu ânimo para os 23 km seguintes, em meio a quintas, haras e mais rebanhos. Chegamos ao segundo hotel de nossa estada, desta vez um cinco estrelas digno de contos de fadas. O Convento do Espinheiro é também spa e museu. Relaxamos na piscina aquecida e, antes do jantar, fizemos um tour guiado pelo hotel. Em seguida, nos reunimos na adega subterrânea para a comemoração dos 50 anos da BnR. Usando a técnica do "sabrage", o guia Riccardo abriu o espumante com um facão e convidou os mais corajosos a repetir o feito. O facão foi entregue de presente para o ciclista 


Decidimos encarar o pedal com qualquer clima

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do dia: o canadense Bill, de 74 anos, na sua vigésima viagem pela BnR, havia apostado corrida com Riccardo no último trecho do pedal. O guia italiano, de 37 anos, confessou que perdeu. Também pudera, Bill treina na estrada entre Vancouver e a estação de esqui de Whistler. São 120 km de curvas sinuosas em uma serra belíssima. A noite terminou com o jantar no restaurante do hotel. Oportunidade para mais vinhos e comida portuguesa de primeira.

DIA 4 Esse foi o pedal em que entramos na cidade de Évora. Saímos do hotel rumo à cidade patrimônio mundial da humanidade, conhecida pelo seu aqueduto e templos romanos. Foram 31 km, muitos dos quais em estrada movimentada, mas me senti segura o tempo todo. A paisagem ao redor de Évora é até mais bonita do que as que vínhamos apreciando. Logo de cara demos com um castelo abandonado numa colina. Seguimos quase todos juntos até adentrarmos Évora pelo aqueduto. Confesso que a cena foi uma das mais bonitas que presenciei no passeio. Deixamos as bikes com Tim e seguimos para um almoço por nossa conta. Exploramos um pouco a cidade e nos encontramos às 14 h para uma visita guiada à famosa Capela dos Ossos, à catedral e ao templo romano. Voltamos para o hotel e seguimos para uma degustação na adega Cartuxa, uma das mais conhecidas na Europa, de propriedade da Fundação Eugênio Almeida. Lá, provamos o famoso vinho Pêra-Manca, cujo tinto custa cerca de 300 euros a

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garrafa, não sem motivo: Pedro Álvares Cabral o levou em sua viagem de descoberta do Brasil e o ofereceu aos índios. Tivemos ainda a recepção dos cantores portugueses que nos brindaram com uma apresentação do Canto do Alentejo, cantigas que os trabalhadores entoavam na colheita das uvas. Mais uma noite de aprendizados e sabores.

DIA 5 A viagem chegou ao seu último dia em grande estilo. Saímos do Convento do Espinheiro em direção à cidade de Montemor-o-Novo para nos hospedarmos no também cinco estrelas Land'Vineyards. Os últimos 40 km de estrada nos deixaram em uma pequena vila para o almoço, servido no cantinho do seu Manuel, um restaurante pequeno e acolhedor que lotou com a nossa presença. Após mais uma refeição magnífica, seguimos de van para o hotel. Apenas Bill e Marcos encararam pedalar os últimos quilômetros desse trecho. Aproveitamos novamente a piscina aquecida, alguns fizeram massagem no spa, e nos reunimos para o jantar de despedida no próprio hotel, que abriga o único restaurante medalhado com a estrela Michelin do Alentejo. Mas antes, uma apresentação de fado exclusiva para o grupo, sob céu estrelado e o friozinho do outono. A noite prometia. Ao final, trocamos e-mails, nos congratulamos, agradecemos aos guias Marcos, Riccardo e Tim pela maravilhosa experiência de viagem, e desejamos um feliz regresso a todos. Terminamos brindando com um excelente vinho do Porto, em meio às histórias e risadas da viagem. 


transformar a experiencia de pedalar no exterior num misto de esporte gastronomia cultura arte e historia

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 O grupo que pedalou no Alentejo.

Sobre a butterfield No dia seguinte, partimos bem cedo em direção ao aeroporto de Lisboa, onde terminava a nossa aventura de bike pelo Alentejo. Posso afirmar que foi um dos melhores presentes que recebi e os dias proporcionados pela BnR serão inesquecíveis. Marcos, Riccardo e Tim não são apenas guias e ciclistas experientes, mas pessoas cultas, alegres e com grande bagagem de vida. As conversas com eles foram memoráveis. Os colegas americanos e canadenses (George, por exemplo, tem 76 anos e pedalou uma bike híbrida por todo o percurso) demonstraram como o ciclismo é um esporte de longevidade e saúde. Contar sobre o Brasil e conhecer um pouco mais sobre aqueles dois países foi sem dúvida um ponto alto da viagem. À BnR, empresa canadense que faz cicloviagens desde 1966, resta dizer que sua competência e profissionalismo está estampada em todos os detalhes. Não é à toa que Bill, Ruthie e Ralph conheceram o mundo pedalando. Por fim, meu eterno agradecimento à Revista Bicicleta, que, ao final, nos proporcionou tudo isso. 

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A B&R proporciona para seus viajantes os melhores roteiros de bicicleta e caminhada em diversos destinos incríveis há 50 anos! Nossos guias são pessoas espetacularmente criativas e divertidas que, além de guias, são profissionais de diversas áreas e lugares! Os hotéis que nos hospedamos são sempre os mais interessantes de cada região, que vão desde castelos até os típicos ryokans. E é claro que não podemos esquecer das fantásticas experiências gastronômicas que fazem parte das viagens da B&R: um verdadeiro banquete medieval no Château de Brou no Vale do Loire; uma massa caseira em uma fazenda na Puglia ou uma degustação do melhor carneiro do mundo na Nova Zelândia! Só de falar já ficamos com água na boca!





EVENTO Texto Therbio Felipe Fotos Moises Saba

G R U P O

CLAUDINO AUDÁCIA EM FAVOR DAS BICICLETAS

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Um evento muito bem elaborado foi a fórmula escolhida pelo Grupo Claudino de reunir representantes, lojistas e mídia especializada de todos os estados brasileiros em sua cidade-sede, Teresina – PI, para apresentar as ações e valores do grupo, seu referencial tecnológico, suas perspectivas para o mercado nacional e ainda a filosofia que propulsiona gestores e milhares de colaboradores há 58 anos. 

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a fala do vice-presidente do grupo, João Claudino Júnior, se percebe a recorrência da expressão “relacionamentos”, da mesma forma que se constata o valor que eles têm em todas as escalas de atuação do grupo. O jovem empresário acompanhou incansável e pessoalmente todas as etapas do evento, desde as boas vindas até cada uma das visitações às instalações de seus empreendimentos. Demonstrou, como não poderia ser diferente, controle absoluto sobre os números e estratégias de seu conglomerado empresarial, falando durante todo o tempo usando de seu carisma e cordialidade.

AUDAX AUGE 50 2017

Os convidados tiveram a oportunidade de, além de visitar cinco das quatorze empresas do grupo, compreender melhor o conjunto de princípios que norteiam a solidez de investimentos e as escolhas da gestão desta que é considerada uma das mais bemsucedidas organizações econômicas do país. Esta história de sucesso começa em Bacabal (MA), em 1958, com os irmãos João e Valdecy Claudino, quando da inauguração daquela que seria a empresa que daria origem ao grupo, Armazém Paraíba. De lá para cá, um sem número de investimentos em expansão do grupo foram feitos, o que resultou em variados segmentos


de negócios industriais, agência de publicidade, equipamentos rodoviários, construtora, gráfica, frigorífico e shopping centers, entre tantas outras. A metodologia em buscar soluções para a perenidade de seus empreendimentos demonstra uma gestão equilibrada do conhecimento empresarial e dos meandros do mercado, haja vista as investidas corporativas, anos atrás, à China, por exemplo, em busca de expertise e qualificação.

importantes de todo o evento, visto que os convidados puderem acompanhar toda a sequência de produção das bicicletas, tirar dúvidas e receber a cada pouco detalhes sobre os números que fazem da marca uma das mais presentes em todo o território nacional. Esclarecendo, a marca AUDAX de bicicletas é desenvolvida e produzida na planta industrial situada em Manaus – AM.

Enquanto o grupo de convidados caminhava pelas instalações da Socimol, responsável pela produção dos colchões Ônix e da Gráfica Halley (uma das mais bem equipadas do país) diversos personagens da história do grupo foram apresentados, a fim de compreender-se melhor como relacionamentos duradouros contribuem para a fixação de ideais e valores dentro de uma organização empresarial.

Logo após a visitação, foi oferecido um almoço no refeitório dos funcionários da Houston, a fim de que provássemos dos sabores regionais e que a visita à Teresina também aproximasse os convidados da cultura e sua gente. Surpresa maior foi a presença, durante o almoço, de uma jovem orquestra de câmara de um projeto social local mantido pelo Grupo Claudino, que embalou com canções instrumentais complexas e muito bem conduzidas, o almoço de todos.

A visitação à Houston Bicicletas, sem dúvida, foi um dos pontos mais

Mais tarde, a visitação ao Teresina Shopping e à mega store Armazém  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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LANÇAMENTOS

AUDAX

2017

MTB, ENDURO, ESTRADA E CYCLECROSS


Paraíba ali presente, possibilitou a noção da cadeia produtiva envolvida pelo grupo, desde a produção ao varejo. O Shopping, inaugurado em 1997, está totalmente ampliado e atualizado com o que há de mais moderno em conforto, segurança e serviços, e em nada deixa a desejar em relação a empreendimentos do mesmo porte em metrópoles da região sudeste, por exemplo.

O evento foi encerrado no Araxá Bike Park, a fim de que os presentes pudessem testar alguns dos lançamentos 2017 dos modelos da AUDAX, em um ambiente descontraído. Todos os diversos modelos mountain bike, enduro, estrada e cyclecross da AUDAX estavam expostos de forma a que informações sobre cada um deles pudessem ser repassadas e conferidas  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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in loco. Ali também foi a oportunidade encontrada para uma rodada de negócios com o acompanhamento de representantes e pessoal da área comercial da marca. Em conversa informal com diversos lojistas de várias partes do país, percebeu-se o impacto positivo que eventos como este causam nos atores da linha de frente do mercado, aqueles que estão dia após dia em contato com o cliente final. Ficou patente o projeto do Grupo Claudino em dar continuidade ao estreito relacionamento com os

mercados, dentro e fora do país, e se tornar a referência em termos de gestão de grupos empresariais no Brasil. Finalizando, chamou muito a atenção o fato de que, em inúmeros momentos das visitações, João Claudino Junior agradecia tanto a funcionários, gestores e, principalmente, aos convidados por aceitarem o convite de estar lá. Esta postura demonstra, mais uma vez, os valores inegociáveis que escreveram páginas de sucesso e transformação das realidades sociais do seu entorno, e fica a sensação de que ainda há muito por escrever. 



ENTREVISTA / CAPA Therbio Felipe entrevista Francis de Mattos Fotos Francis de Mattos

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A VOLTA AO MUNDO INTERIOR DE FRANCIS DE MATTOS Ele tem 33 anos, é natural de Campo Grande – MS e, atualmente, sem profissão definida. Ele largou a profissão e as comodidades inerentes para se lançar em busca de ser feliz, meta que alcança cotidianamente pelas estradas do Brasil, entre encontros inusitados e paisagens. Francis não está em fuga, mas sim, em busca. Não usa computador de bordo porque, para ele, o número de quilômetros não importa, e sim, as experiências. Ele acredita que quem pedalou 10 mil km tem os mesmos méritos que quem pedalou 500 km, porque quem irá avaliar as experiências que cada um teve? Francis sustenta uma profunda gratidão como eixo das suas relações e carrega em seus alforjes emoção suficiente para esta viagem ao coração dos homens e ao seu próprio. 

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"COMEÇA AGORA. COMECE ONDE ESTÁ. COMECE COM MEDO..."


T Francis, queremos saber sobre sua experiência com cicloturismo. Contenos, resumidamente, a respeito das viagens que realizou e daquelas que mais marcaram e porquê. F Eu considero que essa seja minha terceira "viagem longa", pois havia realizado anteriormente viagens de dois dias geralmente, com ida num dia, e volta no outro, então, cicloviagens de prazo mais longo foram duas, e estou na terceira atualmente. A primeira foi uma viagem de praticamente um mês pelo interior do estado de Mato Grosso do Sul, atravessando o Pantanal na sua parte mais rica em fauna e flora, em contato com animais que só havia visto em documentários ou em fotos antes. A segunda viagem foi a mais marcante, pois foi minha primeira viagem de bike em terras estrangeiras, e bem longe da "zona de conforto". Foi uma viagem de três meses entre Nova Zelândia e Austrália. São países que dispensam apresentações, e tive pela primeira vez a experiência de viajar num lugar sem ter a certeza de onde iria passar a noite, como seria o dia seguinte, e nem a quem recorrer - não iria adiantar muito ligar para minha mãe pedindo ajuda do outro lado do mundo, né? (risos). Então, esses fatores marcaram muito, foram as primeiras vezes que tive que usar todos os equipamentos de camping disponíveis, pois passei algumas noites

totalmente isolado da civilização, por conta de ter problemas técnicos e estava no meio de uma trilha. E o que mais marcou mesmo, no fim das contas, foram as pessoas. Nunca havia experimentado ficar hospedado na casa de "completos estranhos", e ser (bem) recebido no lar de pessoas que você nunca viu antes, foi enriquecedor. T Você largou a profissão de analista de sistemas para se jogar na estrada em bicicleta. Como foi esta tomada de decisão? Que aspectos você considerou com mais valor para escolher por este projeto de pedalar pelo Brasil por um tempo? F Na verdade, era uma vontade antiga. Aos 25 anos, defini uma meta ousada de ficar milionário e sair viajando pelo mundo. Não deu muito certo, né, daí comecei a pesquisar formas alternativas de fazer a viagem ao mundo, mas sem precisar de um milhão na conta bancária. Foi então que vi uma reportagem na televisão sobre um casal de poloneses dando uma volta ao mundo de bicicleta, e imediatamente fiquei apaixonado! (Caso houver interesse, o face deles: facebook.com/ BikeTheWorld/ ) Como já era usuário da bicicleta, estava insatisfeito como minha vida ia caminhando, era super ligado em sustentabilidade, meio ambiente, natureza, e principalmente, desapego e liberdade, então, a bicicleta era o "meio  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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"...COMECE COM A DÚVIDA. COMECE COM AS MÃOS TREMENDO. COMECE COM A VOZ TREMENDO, MAS COMECE..."


de transporte perfeito" para tal aventura!

perspectivas?

O aspecto que mais levei em conta para iniciar essa viagem pelo Brasil foi considerar que é um país muito grande, com riquezas e diferenças culturais que merecem ser exploradas, e quero sentir como é a hospitalidade do povo brasileiro, pois antes de embarcar em outros territórios novamente, sempre quis conhecer melhor o nosso quintal de casa.

F Essa pergunta, para mim, é muito filosófica. Eu quero, na verdade, é ser feliz. Então, pode ser que minha viagem "de volta ao mundo" acabe na próxima esquina, se eu vier a encontrar algum motivo que me faça ficar, ou se simplesmente não tenha mais prazer na aventura. Mas, por enquanto, as perspectivas são mesmo conhecer o Brasil inteiro, com muita calma, ir parando em algumas cidades a fim de conhecer com maiores detalhes cada pedaço de chão. Não estou com pressa, não é uma corrida, então, simplesmente "passar" por uma cidade não é algo que desejo, e sim "viver" aquele local, sentir como é ser um morador de tal lugar, e sentir um pouco da vida em cada lugar que me atrair.

T Para você, quais as experiências que mais marcaram sua trajetória dentro do cicloturismo antes deste novo projeto? F Sem dúvida foram com as pessoas. Eu já havia lido vários relatos de outros cicloviajantes falando que as pessoas marcavam mais que os lugares, e sempre ficava com ar de desconfiado, achando que era conversa de "bom moço", mas que a cereja do bolo realmente eram os lugares, paisagens e tal. Ah, como foi bom quebrar a cara!!! Definitivamente, as pessoas são mesmo o que mais marca numa viagem assim! Talvez estar sozinho por um longo período nos faça aproximar dos outros com mais facilidade, talvez até uma certa carência, então, as conexões são muito fortes. Incontáveis foram as vezes que, ao agradecer e me despedir das pessoas, não conseguia segurar a emoção e as lágrimas vinham sem parar! T E agora, com este novo projeto, o que você pretende realizar? Quais as

T Costumo dizer que no cicloturismo a necessidade que a gente tem de ser recebida é diretamente proporcional à necessidade das pessoas nos receberem. Você tem uma profunda relação com a rede Warmshowers e outras organizações do gênero. Por favor, fale-nos a respeito do seu envolvimento com este movimento e o que podemos esperar para o futuro. F Warmshowers é uma rede de troca de hospitalidade, ou seja, você pode abrir sua casa para viajantes tendo o prazer de ajudá-lo ao oferecer suporte, ouvir boas histórias e, na outra parte, pode pedir para se hospedar na casa de outras pessoas enquanto estiver  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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viajando. O princípio da reciprocidade é o que move a rede toda. Antes de começar minha viagem pela Oceania, já havia hospedado oito viajantes em minha casa, e todas as experiências foram muito bacanas! Pude perceber o que cada um "buscava", o que os fazia viajar dessa maneira e como gosto muito de conversar, era um prato cheio receber um viajante em casa. Quando eu parti para criar minhas próprias aventuras e fiquei hospedado em diversas casas, sempre agradecia muito e ficava muito emocionado com a hospitalidade das pessoas. No Brasil, estamos vivendo muito a cultura do medo. Somos ensinados desde pequenos: "não converse com estranhos", por exemplo. Quer maior mostra do que essa de como somos, desde cedo, orientados a não dar aberturas e nos isolarmos? Então, essas organizações vão justamente na contramão desta forma de pensar, e quando você está numa viagem desse tipo, cada gesto de generosidade marca demais. Essas redes são facilitadoras para conectar viajantes precisando de um lugar para descansar e passar uma noite tranquila com as pessoas que estão dispostas a colaborar com a aventura dos viajantes. Foi um sentimento de gratidão tão grande, que atualmente sou voluntário nessas organizações e atuo na tradução destas páginas, simplesmente por desejar o melhor para elas e ver seu

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crescimento cada vez maior! Sobre o futuro, eu sinceramente espero que cada vez mais pessoas possam se cadastrar nessas redes, oferecendo qualquer tipo de ajuda, hospitalidade, ou simplesmente dicas, sugestões e qualquer auxílio para os viajantes, pois é uma situação do tipo ganha-ganha, em que ambos os lados são beneficiados: quem precisa, e quem pode ajudar. T Na cicloviagem que você está empreendendo, o que mais marcou até o momento. Algum encontro especial? Francis: Escolher um apenas é difícil, pois foram várias boas surpresas ao longo de todos esses dias, mas uma que me marcou demais foi a experiência de ficar abrigado em um Centro de Recuperação para Alcoólicos e Drogados. Tive um furo no meu pneu, o que acabou me atrasando para chegar a meu destino, e já começava a escurecer quando comecei a procurar algum lugar para pouso. De repente, vejo na fachada de um local que lá se tratava de uma instituição desse tipo, nem pensei duas vezes e fui pedir solidariedade. Fui prontamente recebido e tive uma experiência incrível com pessoas que se encontram numa instituição com estas características. Ouvir suas histórias e poder contar a minha foi algo tão recompensador! Me lembro de um senhor falando que meu exemplo o mostrava que é possível encontrar prazer fora do mundo das drogas. Nossa, o que dizer depois de ouvir 


"...COMECE E NÃO PARE. COMECE ONDE VOCÊ ESTÁ, COM O QUE VOCÊ TEM. APENAS COMECE."


isso? Acho que quando você tem a oportunidade de "dar algo em troca", quem mais sai ganhando é quem dá este algo, quem se oferece, pois saber que, de alguma pequena forma, você pode ter ajudado a mudar a vida de uma pessoa para melhor, não tem preço! T Que aspectos você leva mais em conta ao planejar e organizar suas cicloviagens? F Primeiramente, é a questão de onde, provavelmente, irei passar a noite: se tenho algum conhecido, algum contato ou local que possa descansar com tranquilidade. Mas com o tempo, na estrada, começamos a acreditar em "algo a mais", e que tudo vai dar certo no final do dia, nem que seja achar algum canto simples, para armar nossas barracas e ter uma experiência diferente. Quanto à organização, creio que um cálculo da quantidade desejada de dias na estrada, para saber a quantidade de roupas, o terreno a ser desbravado, para ver se a bicicleta está em boas condições e ter ferramentas e peças reservas. Mas, isso tudo é apenas um detalhe, pois o que importa mesmo é a resposta à sua última pergunta. T Por último, gostaríamos que você deixasse uma mensagem positiva aos nossos leitores cicloturistas e àqueles que ainda não experimentaram esta sensação de viajar de bicicleta.

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F A maior mensagem que creio que possa deixar é a seguinte: o que você mais precisa para começar uma aventura dessas está dentro de você, e somente você pode acender ou apagar essa chama. O nome disso: vontade! Se você tiver a sincera vontade de embarcar numa dessas, poderá ir com uma bicicleta sem marchas, sem alforjes impermeáveis, sem equipamentos high tech, que a mágica da estrada vai acontecendo. Mas, para isso, você precisa sinceramente se encarar no espelho e perguntar para você mesmo: é isso mesmo que eu quero? Estou disposto aos riscos e situações de dúvida que surgirem no meio do caminho? Se você realmente tem essa vontade, queimando por dentro do peito, deixo uma citação aqui para servir de empurrãozinho: “Start now. Start where you are. Start with fear. Start with pain. Start with doubt. Start with hands shaking. Start with voice trembling but start. Start and don’t stop. Start where you are, with what you have. Just…start.” — Ijeoma Umebinyuo "Começa agora. Comece onde está. Comece com medo. Comece com a dor. Comece com a dúvida. Comece com as mãos tremendo. Comece com a voz tremendo, mas comece. Comece e não pare. Comece onde você está, com o que você tem. Apenas comece". 



© THERBIO FELIPE

CICLOTURISMO

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Muito bem guardada entre as montanhas da Região Serrana do Rio de Janeiro, pertencente à Serra dos Órgãos, se encontra esta notável localidade que, aos poucos, se abre ao cicloturismo como novo destino de excelência. O Vale das Videiras reúne predicados de alto valor quando a proposta é pedalar em segurança, integrar-se à natureza e à cultura local, além de escutar o silêncio, disfrutar de boa mesa, conhecer gente bacana e desejar voltar.

CICLOTURISMO NO

VALE DAS VIDEIRAS E

A HOSPITALIDADE DO

GALPÃO CAIPIRA

Texto por Therbio Felipe

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o chegar no centrinho da localidade, em frente ao coreto da pracinha, permita-se fechar os olhos e respirar fundo. Em alguns segundos a gente desconecta da estrada de asfalto e se sente inserido em um ambiente onde o tempo, necessariamente, anda um pouco mais devagar. Já consagrado entre os ciclo-endureiros, o Vale das Videiras, junto ao distrito ecológico de Araras, em Petrópolis-RJ,

apresenta extensões de Mata Atlântica de extrema beleza, cachoeiras e rios de água límpida por todos os lados, estradinhas de terra conservadas, microclima de montanha, comunidade doce e atenciosa, além de uma estrutura de serviços que se destaca pelo cuidado e bom gosto. Para encarar as cristas do vale com mais de 1.500 m de altitude, basta levantar os olhos, pois elas estão por toda a parte. E se quiser conferir, existem  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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inúmeras vias de singletrack prontas para elevar o nível de endorfina dos aventureiros. Conformado por caminhos rurais que permitem acessar as localidades históricas de Secretário, Rocio, Paty do Alferes, Miguel Pereira e Paraíba do Sul, o Vale das Videiras é uma hub para cicloturismo e ciclismo ainda inédita na região. Falando em hub (rede de conexões), há quatro anos os empresários Zé Felipe e Felipe Figueira se uniram para criar uma estrutura que fosse a base de apoio de alto nível aos ciclistas que escolhessem a região para pedalar. Fazia falta, àquela época, oferta de alimentação e produtos regionais de padrão superior, bem como local para que os ciclistas pudessem tomar aquela ducha revigorante antes de voltar às suas casas. Nascia, então, o Galpão Caipira, um conceito de hospitalidade e serviços que busca contemplar uma experiência a mais aos ciclistas que acorrem à região. Há um ano e meio atrás, o jovem Luiz Binato de Castro Filho, esportista apaixonado por bicicletas e velocidade, uniu-se ao grupo para incrementar a gestão da área comercial do empreendimento e ampliar a atração de ciclistas e cicloturistas para o Vale das Videiras. Estivemos pedalando por lá a convite deles no último final de semana de outubro. E a experiência foi uma grata surpresa, a começar pela oferta de mountain bikes para alugar da marca Specialized, todas perfiladas à calçada do Galpão Caipira, facilitando a escolha

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do visitante em levar ou não a sua bike, ou até mesmo, possibilitar que outros turistas que não sejam ciclistas, possam experimentar uma pedalada. Em 2015, mais um nome de peso do cenário de bicicletas do Brasil se une ao grupo. Renato Estrella, que já consolidou sua marca em Ipanema, Barra e Jardim Botânico (Rio de Janeiro), colocou junto ao Galpão mais uma de suas bike stores completas da Specialized, contando com toda a linha de equipamentos, bikes e mecânica para manutenção. Sem falar que, enquanto você espera pela sua bike, a prosa simpática e bem esclarecida com o casal Renato e Márcia e com o jovem e talentoso piloto Thomas Silva, é um predicado a mais. A oferta gastronômica do Galpão é um caso à parte. Em um ambiente super acolhedor e fagueiro com cara de fazenda, você pode degustar iogurtes e queijos regionais surpreendentes e alguns petiscos acompanhados de aguardentes tipo exportação. Mas, se a ideia é ir além, o restaurante do Galpão inclui um cardápio muito bem elaborado com pratos gourmets tanto para desjejum quanto refeições, vinhos de excelente procedência, cafés e delicatessen. Atente para o ravióli de linguiça caipira com molho de jaboticaba ou o ragu de costela com polenta, são simplesmente fantásticos! Ah, e não poderia deixar de destacar. A atenção gentil, educada e hospitaleira do pessoal de atendimento do Galpão Caipira é algo que impressiona. Ainda que deixem o cliente à vontade no ambiente, 


© FOTOS: NICOLAS AMIEL

GALPÃO CAIPIRA, UM CONCEITO DE HOSPITALIDADE E SERVIÇOS QUE BUSCA CONTEMPLAR UMA EXPERIÊNCIA A MAIS AOS CICLISTAS QUE ACORREM À REGIÃO.


GALPÃO CAIPIRA Estrada Almirante Paula Meira, 8320 Centrinho - Vale das Videiras Petrópolis/RJ - CEP: 25725-029 TEL: (24) 2225-3072 contato@ogalpaocaipira.com.br www.ogalpaocaipira.com.br AMAVALE Associação dos Moradores do Vale das Videiras Estrada Almirante Paulo Meira, 8201 Vale das Videiras Petrópolis/RJ – CEP: 25725-029 TEL: (24) 2225-3002 www.amavale.org LÁ NA BETH GASTRONOMIA Estrada Almirante Paulo Meira, 8111 Vale das Videiras Petrópolis - RJ - CEP: 25725-029 TEL: (24) 2225 32 84 / 99246 3773 beth.vale@icloud.com RESTAURANTE NAS VIDEIRAS Rua Almirante Paulo Meira 8400 Petrópolis - RJ - CEP: 25725-029 TEL: (24) 2225-8162 nasvideiras@restaurantenasvideiras.com.br RENATO ESTRELLA BICICLETAS SPECIALIZED VALE DAS VIDEIRAS Estrada Almirante Paulo Meira, 8320 lj 4. Vale das Videiras Petrópolis - RJ Cep: 25725-029 TEL: (24) 22258678 Horário: Sexta a Domingo: 8 h às 17 h. www.renatoestrella.com.br

fazem por onde, em meio a sorrisos que não atrapalham a competência, garantir que os minutos ou horas que ali se passem sejam de bem-estar, comodidades e entrega de serviços que surpreendem. E se a gente acha que parou por aí, ledo engano. Lembra quando eu comentei

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sobre a proposta dos idealizadores de ser um ponto de apoio aos ciclistas? Pois então, à disposição se encontram vestiários impecáveis para ambos os sexos, com toda a privacidade, numa embalagem charmosa e produtos Granado. Ao lado dos vestiários, mais um espaço para o deleite dos visitantes, ciclistas ou não: um spa com massagens e tratamentos com pedras quentes, climatizado e silencioso, para deixar o corpo e a alma novos em folha. Mas, vamos pedalar, não é? Em questão de poucos minutos é possível acessar cachoeiras ou seguir pelas estradas do Facão, do Imperador, Fazenda Inglesa ou em direção à Vila Suzana e o Vale das Princesas, quem sabe até chegar ao Mirante do Quilombo, passando por encostas e paredões de ciprestes dos dois lados da via de terra. A altimetria é convidativa, nada que assuste ou que constranja o ciclista, muito pelo contrário. Caminhos não faltam e paisagens à revelia são o que o ciclista encontra por lá. E quando o pedal terminar, junto às mesas do Galpão Caipira, existe uma mesinha com um cesto de toalhas brancas úmidas e geladas para gerar refrescância imediata. Um cuidado com detalhes que faz toda a diferença. E as opções oferecidas ainda culminam num ato final: pode-se escolher relaxar no Spa da Cachoeira, uma área reservada a uma experiência diferente. Em meio à mata tem-se uma espécie de um barracão crioulo com teto verde, duas macas 


© FOTOS: NICOLAS AMIEL

CAMINHOS NÃO FALTAM E PAISAGENS À REVELIA SÃO O QUE O CICLISTA ENCONTRA POR LÁ.


divididas por cortinas brancas de frente para uma cachoeira. No entorno, uma mesa onde, após a massagem, é oferecido um champanhe. Quer mais? Sim, ainda há muito mais. As Suítes Caipira oferecem um charmoso ambiente de hospedagem para descansar e passar a noite. Há um paraciclo junto à porta de entrada de cada uma das quatro confortabilíssimas suítes, produtos Granado no toilette, máquina de café expresso e frigobar, camas super king size e ar condicionado. Tem-se a poucos metros da pracinha, o centrinho do Vale das Videiras, um outro espaço para experiências gastronômicas, cinema, ateliês, decoração de interiores e muito mais. Não deixe de experimentar também da hospitalidade e dos sabores do bistrô Lá na Beth. Após caminhar por uma passarela sobre um riacho e entre árvores, você encontra um ambiente super charmoso para degustação de iguarias sob a batuta competente da simpática anfitriã, com atendimento em vários idiomas. A Beth pode ainda reservar imóveis para estadias mais prolongadas. Uma das excelentes opções para refeição é o Restaurante Nas Videiras, elegante chalé a poucos passos do Galpão Caipira, que conta com um forno à lenha muito bem pilotado, focaccias e pizzas surpreendentes e exclusivas, carta de vinhos recomendada, além de atendimento cortês e profissional, uma das marcas

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do Vale. O espaço é super agradável e é bastante concorrido nos finais de semana. Vale conferir. A estrutura do Vale das Cachoeiras ainda é contemplada pela forte presença da AMAVALE, Associação dos Moradores do Vale das Videiras, uma entidade que desenvolve oferta de atenções à comunidade e espaços para educação, lazer, saúde e cultura. A feirinha aos sábados pela manhã é um ponto alto do final de semana no Vale das Videiras, reunindo pequenos produtores agroecológicos e suas iguarias, in natura ou preparadas com esmero, tudo isso ao som de boa música ao vivo. Pelo que se percebe, em poucas horas de permanência no Vale das Videiras, a comunidade está bastante bem inserida na produção do lazer e da hospitalidade do entorno, apresentando uma dose generosa de gentileza quando o assunto é servir. Como citei ao final da introdução deste texto, o desejo por voltar ao Vale das Videiras permanece. Fica a sensação de que encontraram uma fórmula de envolver a comunidade na oferta turística associada ao bem receber, além de oferecer excelentes caminhos para o pedal que interligam atrações naturais e culturais, e de quebra, conservar um ambiente rico em diversidade biológica e suas histórias. Vale das Videiras: um lugar para regressar mil vezes. 



CICLOTURISMO

CIRCUITO LAGAMAR

SÃO PAULO DE CICLOTURISMO HISTÓRIA, CULTURA E PAISAGENS

Uma das dimensões fundamentais do Cicloturismo é a questão ambiental, a conservação da natureza pelo uso sustentável. Pedalar por entre imensidões verdes sob o risco de degradação é uma maneira de permitir que mais e mais gente se sensibilize sobre aquele patrimônio e, assim, tome consciência. Com lançamento previsto para 14 de novembro deste ano, o Circuito Lagamar São Paulo de Cicloturismo lança também um desafio às comunidades pertencentes ao circuito e aos visitantes: conservar a maior extensão contínua de Mata Atlântica do Brasil através do Cicloturismo! Já preparou seus equipamentos? O convite já está feito. É hora de pedalar por aqui! 

Texto Therbio Felipe M. Cezar Fotos Therbio Felipe M. Cezar e Circuito Lagamar Divulgação

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mociona cruzar a ponte que liga Ilha Comprida (ponto de partida do Circuito) a Iguape e deparar-se com um cenário que conta uma parte quase esquecida da história do país, datada de 1.531 ou antes, possivelmente. Emociona mais ainda ver a senhorinha pedalando com um pouco de esforço sua bicicleta sem raça definida, indo para o trabalho, feliz. Como ela, centenas de outros ciclistas cruzam por nós, nos dois sentidos, como se fizéssemos parte do vai-e-vem cotidiano daquele lugar cheio de memórias, onde o tempo fez por onde esquecer de si mesmo. Vale ressaltar, inicialmente, que a proposta de lançar um circuito de Cicloturismo reunindo cidades onde a bicicleta já faça parte do dia a dia da população é uma cartada certeira. Em uma iniciativa inédita no país entre uma consultoria ambiental e uma intendência municipal, a WM Multiambiental e a Prefeitura de Ilha Comprida respectivamente, foi levada a cabo a ideia de proteger o rico patrimônio socioambiental e cultural daquele contexto geográfico através de uma prática responsável de Turismo. Entre tantas opções, a escolha foi pelo Cicloturismo, reconhecido pelo mundo como uma das experiências de Turismo com maior geração de benefícios a médio/longo prazo. É possível que em nenhum outro circuito de cicloturismo no país tenha havido tal preocupação a priori, de garantir a sustentabilidade socioambiental tendo como meio a atividade cicloturística.

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O Circuito Lagamar São Paulo de Cicloturismo, distante pouco mais de 200 km da capital paulista e 260 km de Curitiba, tem início na municipalidade de Ilha Comprida, passando pelos municípios de Iguape, Pariquera-Açu, Jacupiranga e Cananéia, regressando à Ilha Comprida pela beira do mar, passando pelas dunas de Juruvaúva, Boqueirão Sul e Estrada da Vizinhança, perfazendo aproximadamente 180 km. Nenhum dos trechos que compõem o circuito superam 65 km de distância entre os pontos. Pedalamos por lá em final de agosto a convite dos responsáveis pelo circuito e nos deparamos com um tipo de experiência que, no mínimo, vai mexer com a cabeça dos amantes do esporte. Primeiramente, este é um circuito concebido para favorecer que principiantes em Cicloturismo tenham acesso imediato à prática, dada a mínima altimetria dos caminhos rurais, ribeirinhos e litorâneos. Inúmeras passagens de pontes, várias balsas, presença constante de parques estaduais como o de Campina do Encantado, a Estação Ecológica dos Chauás e da Estação Ecológica Juréia-Itatins. E os atrativos não param por aí: são incontáveis mananciais, cachoeiras, comunidades agroecológicas que praticam o repovoamento de abelhas, praias, dunas (possivelmente as últimas dunas intocadas do estado de São Paulo), canais, manguezais, povoados históricos, enfim, tudo isto gerando um conjunto eclético de motivadores que soma-se à docilidade da cultura caiçara daquele povo, revelando cenários plenos de simplicidade. 



Quando citamos simplicidade queremos abordar a maneira tremendamente tranquila com que se pode percorrer tais caminhos, o que motiva sobremaneira a que novos cicloturistas aceitem a mínima dificuldade como um convite. É comum ouvir a passarada num alvoroço e estardalhaço pelas manhãs e aos finais de tarde, cruzar com espécimes lindos como a Maria-Faceira ou com o voo estonteante pelo estuário lagunar dos quase extintos Guarás, naquele vermelho absoluto pintando a tela do dia e tirando o fôlego dos desavisados. Também chama a atenção a presença dos botos em seu bailado, ora ou outra sendo avistados pelos canais. As Vilas Caiçaras, como a de Pedrinhas, por exemplo, conservam a cultura nos mínimos detalhes, como a cachaça com cataia e os pratos à base de pescado feitos à maneira Caiçara. As festas religiosas também atraem turistas aos milhares para a região, como a de Bom Jesus de Iguape, no final de julho e começo de agosto. Não deixe de conhecer as rabecas e violas feitas artesanalmente por caiçaras na Vila Nova, antigamente usadas para animar os fandangos, além da comunidade caiçara de Vila do Prelado. Ou seja, como se vê, este circuito é muito mais do que feito de belas praias. O centro histórico de Iguape, por sua vez, abriga um sem-número de casarios coloniais datados do final do século XVIII, tombados pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em 2009, além da Basílica de Bom Jesus do Iguape onde se encontra o Museu de Arte Sacra. Passear por entre as ruas

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deste casco repleto de patrimônios a céu aberto é bastante aprazível, contando com variada e saborosa gastronomia local à base de peixes e frutos do mar, banana verde, taioba e arroz lambe-lambe (cozido com caldo de peixe, mariscos e vinho branco). Quem já experimentou o bolinho frito de taioba sabe do que estamos falando. A simplicidade presente na cozinha caiçara é, possivelmente, sua grande surpresa. Pariquera-Açu é o caminho de acesso a Jacupiranga, ladeado por mangues, campos e pequenas colinas. Nesta última, Jacupiranga, esperam o cicloviajante as corredeiras dos rios Pindaúva Grande e Guaraú, além das Cachoeiras do Roncador, do Desemboque, da Queda, da Figueira, Setúbal e do Ribeirão do Salto. Então, os banhos de água doce de ótima qualidade também estão garantidos aos cicloviajantes. Os grupos de pedal, como o MTB Riders de Jacupiranga, têm realizado um importante trabalho de monitoramento de trilhas além de atividades culturais e sociais que amplificam a caracterização de um circuito plural e diverso, além de aumentar consideravelmente o número e qualidade dos praticantes de Mountain Bike. Seguindo de Jacupiranga em direção a Cananéia, voltam os caminhos rurais cercados de muito verde pelo trecho de 45 km. Com mais de quatro séculos de história, Cananéia é uma estância balneária tranquila em meses fora da temporada alta de verão, sendo possível acessar com facilidade os casarios do centro da cidade próximos à Avenida Beira Mar. Os restaurantes e o artesanato local 


O CIRCUITO LAGAMAR

PARA SABER MAIS Conheça um pouco mais do Circuito Lagamar neste vídeo da cicloturista Claudia Jak. revistabicicleta.com.br/rb/cnv


brindam os visitantes, além da cidade oferecer boas opções de hospedagem e serviços, incluindo as sete praias de seu território e a Ilha do Cardoso. O último trecho, de 65 km, leva de Cananéia ao Centro de Ilha Comprida, inicialmente por um trecho muito interessante, sendo possível pedalar na areia da praia. O contraste de abandonar a pedalada por entre a mata e jogar-se a pedalar pela extensa faixa de areia junto ao mar possibilita a reflexão, tamanha é a amplitude da visão e a ausência quase total de civilização. O pedalar tranquilo favorece que logo a faixa urbanizada de Ilha Comprida que orienta em direção ao centro da cidade, apareça. A Estância Balneária de Ilha Comprida conta com variada gastronomia, locais para camping, pousadas, padarias e cafés, passeios de Catamarã, além de ser o ponto de encontro de esportes de aventura e da boa música. Agora, Ilha Comprida também passa a ser um lugar no sul do estado de São Paulo onde o Cicloturismo é muito bem-vindo. Citamos a visão de futuro do atual prefeito municipal, Sr. Décio José Ventura, que voltou parte de sua atenção para a potencialidade do Cicloturismo, apostando na criação do circuito que também irá beneficiar as cidades circunvizinhas. Em nossa opinião, aproximar os cicloviajantes destas comunidades é uma ação ciclocidadã baseada em multidiversidade, portanto, cabe o elogio ao

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gestor público e ao consultor ambiental pela ousadia. Vale lembrar também que o Turismo de Massa (aquele baseado em consumo gerado pela aglomeração de centenas de milhares de pessoas em uma temporada alta) está com os dias contados, dada a tomada de consciência da população de que, muitas vezes, destinos massificados são sinônimo de péssimo atendimento, esgotamento de recursos, violência urbana, falta de água e saneamento, filas intermináveis nos restaurantes e supermercados, trânsito caótico em plena época de férias, pessoas estressadas, produtos servidos de qualquer forma, entre tantos outros agravantes. Isto não é desenvolvimento, ao contrário, isto é um retrocesso. O Cicloturismo é uma forma inteligente de conservação da biodiversidade: cultivar uma presença positiva junto à natureza e o convívio com as culturas tradicionais, investindo em Turismo de Experiência. Como dissemos ao começo desta matéria, conservar através do uso sustentável é uma maneira de educar para o presente e para o futuro. E o Cicloturismo pode ser, com certeza, uma das formas mais interessantes de gerar desenvolvimento cidadão, limpo, responsável, humanizado, acessível a todos. Ficamos felizes por mais um circuito assumido pela gestão pública e oferecido à comunidade. E viva a Bicicleta, sempre! 



NAS LENTES

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TRANS ESPINHAÇO

2016 Texto Antônio Gonçalves (Ticorico) Fotos Marcos Leão

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om realização do Pedal Verde, a Trans Espinhaço é uma travessia pelas montanhas da Serra do Espinhaço, especificamente na Serra do Cipó. O Campo Base foi a Pousada Ao Pé da Serra, a 130 km de Belo Horizonte. O primeiro dia de pedal tinha uma proposta bem técnica, difícil, com seus 73 km amedrontadores, afinal, choveu a semana inteira, embora no final de semana do pedal o tempo colaborou bastante. Iniciando em um pequeno trecho da MG-10 em asfalto, logo chegamos à beira do rio onde teríamos que atravessar as bicicletas de balsa. Dali em diante só trilha pela serra. Essas 

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travessias são marcadas por inúmeros locais para fotografar, como o Curral das Éguas, também chamado Cânion das Éguas. Depois de um trecho em que é necessário empurrar a bike morro acima, viramos a montanha. Seguimos meio que sem trilha, rumando para o norte. Nosso apoio foi montado estrategicamente numa prainha do Rio Parauninha e após umas belas nadadas, seguimos para o alto da serra. Pedala-se bem rápido nesta parte. É uma sensação interessante pedalar a ermo nessas trilhas, pois não se veem pessoas ao longo da rota; já bois, são muitos - e dos bravos. Em determinado momento da travessia pensamos como eles: nos agrupamos para parecermos maiores e vamos nos distanciando. Pernas pra que te quero. No fim da tarde, uma parte dos integrantes já apresentavam cansaço, mas tínhamos que encontrar um trecho da trilha com uma descida longa e bem técnica. Hora de instalar os faróis. Chegamos à noite ao nosso segundo

Campo Base, sob um céu recheado de belas estrelas e uma temperatura bem agradável. Foram 12 horas de um mountain bike da melhor qualidade, diverso, inóspito, exploratório e de belezas indescritíveis no topo da serra. Ao redor da fogueira, com uma proza boa e a noite calma, foi demais ver a lua crescente morrendo no contorno do Cânion. Pernoitamos em uma casa grande, de frente para a fenda do Cânion do Peixe Tolo, lugar incrivelmente belo. No segundo dia, enquanto alguns integrantes ainda estavam na pilha de rodar um pouco mais de bike, outros adentraram no Cânion para curtir um banho de cachoeira. Ali está uma das cachoeiras mais belas do roteiro, a Rabo de Cavalo. Travessias estruturadas têm essa característica, trabalha experiências, socialização do grupo, novas amizades para outros giros e muito companheirismo. Sempre saímos de um lugar e chegamos a outro. Ficam as cenas, as lembranças e uma sensação muito boa de um programa intenso e marcante. 

CONTATO TRANS ESPINHAÇO Antônio Gonçalves (Ticorico) antoniogoncalves3489@terra.com.br

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ENTREVISTA Anderson entrevista Cesar e Tiago, do projeto Bike & Wine Fotos Arquivo Pessoal

BIKE & WINE Cesar Mincato (49 anos) e Tiago Fiamenghi (32 anos), ambos residentes em Caxias do Sul (RS), já estão com a mente em fevereiro de ano que vem, quando ganha vida o projeto Bike & Wine. Ou melhor, o projeto que mistura bicicleta, vinho e viagem já está em andamento, com todos os preparativos que uma cicloviagem de cerca de 1.000 km exige, ainda mais para dois amigos que não são atletas e que redescobriram a bicicleta há pouco. Mas é no dia 11 de fevereiro de 2017 que eles começarão a girar os pedais em Porto Alegre (RS), rumo à Montevidéu, no Uruguai, com o objetivo de se divertir, tomar bons vinhos, encontrar boas histórias, estâncias, bodegas... E inspirar outras pessoas a fazerem o mesmo! Batemos um papo com os dois para conhecer mais sobre o projeto e sobre a história deles. Pegue uma taça de vinho, acompanhe e comece a se inspirar desde já!

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essoal, como e quando se deu o seu envolvimento com a bicicleta?

CESAR Sempre pratiquei esporte, vôlei, futebol, tênis... Nos meus quase 50 anos, escolhi pedalar como uma maneira de manter a forma e ter um esporte que pudesse condicionar por muitos anos. TIAGO Eu gostava de andar de bike quando era pequeno, assim como a grande maioria de nós. Quando cresci, fiquei um bom tempo sem pedalar. No final de 2015, eu me mudei para uma região mais central da cidade, mais próxima do meu escritório. Decidi que era hora de mudar alguns hábitos também. Comprei uma bike urbana, para pedalar de casa até meu trabalho. Senti muito o ritmo no início. A distância até o meu escritório era pequena (2 km), mas chegava lá todo suado e cansado (risos)... Bicicleta, Uruguai e vinho. Bah, é muito bom gosto junto. Qual foi a inspiração para este projeto? Como foi o insight pra empreendê-lo? CESAR Em fevereiro de 2016, pedalei solo até Torres, 220 km. Gostei de fazer longas distâncias. Decidi que iria até Punta del Este em 2017. Conversando informalmente com meu compadre Tiago, propus que viesse junto, ele sugeriu que montássemos um projeto e começamos a juntar interesses em comum: vinho, bike, natureza... Daí pra frente foi tudo natural pra nós. TIAGO A inspiração veio em um momento descontraído, tomando um vinho junto com o Cesar em seu restaurante.

Ele me comentou sobre o pedal que havia feito até a praia e a sua vontade de ir até Punta del Este pedalando. Talvez pela influência do vinho, falei que queria ir junto. Ele acreditou que eu estava falando sério e a partir dali tudo aconteceu. Montamos o projeto, apresentamos para alguns amigos, que prontamente apoiaram a ideia, e aí estamos, prestes a iniciar a aventura. Como o nome sugere, a viagem tem como um de seus pilares a cultura do vinho. Como pretendem explorar isto? A rota foi escolhida privilegiando regiões vinícolas? CESAR A rota é uma velha conhecida minha por motivos de férias. Conheço alguns vários lugares dos quais vamos passar, mas o olhar do ciclista é contemplativo e esse caminho foi uma escolha natural por suas extraordinárias belezas naturais. Quanto às bodegas, o Uruguai se tornou um lugar encantador pela sua excelência no tratar com o mundo enogastronômico e esta rota oferece ótimas opções. TIAGO Eu sou um entusiasta do mundo dos vinhos. Em 2010 fiz um outro projeto que envolvia vinhos, mas o destino era Mendoza, na Argentina. Conheço o Cesar há pouco tempo (uns três anos) e foi em um momento de descontração, regado a um bom vinho, que surgiu a ideia do pedal. Cientes de que o Uruguai é um país que tem também uma tradição ligada a vinhos, pensamos em unir algumas das nossas paixões: pedalar, tomar vinho e viajar. O resultado foi o Bike & Wine. Falando em vinho, parece que o brasilei-  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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ro está aprendendo mais sobre a arte de degustar vinhos e inserindo esta bebida em seu cotidiano. Vocês, por exemplo: de onde veio o seu fascínio por esta iguaria? CESAR Possuo um restaurante em Caxias, mas antes disso já trabalhava com armazém especializado em vinhos e afins. Gosto e estudo sobre vinhos, foi uma conjugação muito fácil. Além disso, considero que consumido moderadamente, proporciona um estado espiritual para podermos ter uma vida mais voltada às coisas que realmente interessam. TIAGO Quando era mais novo, eu era muito mais da cerveja. Eu aprendi a tomar vinho com um antigo amigo, mais velho, que me dizia que também já havia sido como eu, mas que com o tempo havia aprendido a apreciar o contexto do vinho. E foi realmente isso que me fascinou no vinho. Diferentemente de como era o consumo da cerveja (agora com as artesanais o contexto mudou), beber vinho envolvia um contexto que me agradava. Geralmente acompanhado de uma boa comida, boa música e boas companhias. O vinho me acalma, me deixa mais tranquilo e relaxado. Gosto de chegar em casa e tomar uma taça de vinho. Acredito que se for consumido com equilíbrio, é uma bebida que proporciona um bem-estar que vai além do físico. Fale um pouco sobre a preparação da viagem. CESAR Essa pergunta é muito importante. Fisicamente, treinamos em nossa academia patrocinadora, INSPIRE, e mesmo possuindo uma rotina de traba-

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lho puxada, entregamos o máximo nos treinos para podermos estar à altura do desafio. Pedalamos aos fins de semana e mantemos com nosso outro patrocinador, BIO FORTE SUPLEMENTOS, uma ótima alimentação conjugada com acompanhamento de nutricionista. Mentalmente estamos ansiosos pelo desafio, mas preparados. Sabemos das dificuldades, vento, calor etc... E por fim, o material, bikes, temos o acompanhamento de nosso outro patrocinador, GUENOA, que está nos dando grande apoio. TIAGO Para mim foi um ano muito intenso. Um ano de muitas mudanças, viagens e imprevistos. Confesso que nunca fui um grande fã de academia, mas a partir do momento que treinar virou um meio para um objetivo maior, consegui ter a disciplina necessária para me preparar para a pedalada. Moramos em um local frio, que somente nesse ano fez mais de 600 horas de frio. Então, tinha dias que saímos para treinar com temperatura próxima a zero grau. Pedalamos em dias frios e quando não havia condições de pedalar na rua, treinávamos na academia ou no rolo da bike. No meu primeiro pedal de longa distância (125 km), nos últimos 20 km quase fui traído pela minha mente. Já estava muito cansado, em uma subida interminável, calor e em uma estrada movimentada e sem acostamento. Ali surgiu aquela “vozinha” na minha mente dizendo “cara, o que tu tá fazendo?, “para a bike e liga para alguém”, “que projeto é esse?”. A parte mental é tão importante quanto a física, pois nesse mesmo dia, depois de oito horas pedaladas, cheguei em casa com perna sobrando. Ou seja, quase desisti por uma traição da minha mente.


ro perto de sua casa, e você verá coisas que nem imaginava a no máximo 15 minutos pedalando.

E assim é para a vida. Muitas das limitações que encontramos é a gente mesmo que coloca. Tendo como base a experiência de vocês na preparação para esta viagem, o cicloturismo pareceu algo elitizado ou, ao contrário, acessível e democrático? Por quê? CESAR No meu entender, democrático e acessível. A minha teoria é que você só precisa de uma bicicleta e espírito, simples assim. Faça o seu próprio rotei-

TIAGO É uma questão de foco. Pedalar no final de semana é uma coisa. Se preparar pra pedalar 1.000 km em duas semanas é outra. Envolve muito mais do que apenas uma boa bike. Tem a questão física (treinamento), nutricional e suplementar, além do seu bem mais valioso, que é o seu tempo. Mas o mais difícil é começar, depois que um corpo entra em movimento ele tende a ficar em movimento. É físico (risos). Qual é a quilometragem estimada, e o tempo estimado para cumprir a cicloviagem? CESAR Estimamos aproximadamente 1.000 km entre 11 e 12 dias. Dependemos das questões climáticas também. TIAGO É isso aí! Com relação à rota, quais são as principais dificuldades que imaginam encontrar? Já percorreram este caminho  EDIÇÃO DIGITAL 02 DEZEMBRO 2016

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de alguma forma, ou será novidade para vocês? CESAR Como mencionei antes, conheço a rota de carro, e o que realmente pode dificultar muito é o clima. Calor, vento muito forte. Mas acho também que isso faz parte do sacrifício para dar conteúdo para o projeto. Se queremos inspirar pessoas, e isso é um dos pilares da nossa jornada, prever dificuldades cria um senso de responsabilidade a tudo que estamos fazendo, o que faz com que tenhamos mais disciplina para encarar isso de maneira comprometida. TIAGO De carro é super tranquilo. De bike são vários os desafios. Estaremos pedalando em estradas bem movimentadas, nem sempre em boas condições, isso por si só exige muita atenção e gera bastante desgaste. Já pedalamos grandes distâncias, maiores do que vamos pedalar diariamente lá, mas o desafio é pedalar 100 km em um dia, mais 100 km no outro, mais 100 km no outro... Ou seja, a recorrência e a frequência de esforço físico pode gerar alguma lesão. Além disso, estamos à mercê do tempo. Essa época do ano é muito quente nessas regiões e ainda tem a questão do vento e da chuva. Mas isso faz parte da aventura. E o destino Montevidéu, Uruguai: cada vez mais brasileiros parecem procurar conhecer este país vizinho. Qual é a sua impressão sobre este país? CESAR Sou suspeito para falar do Uruguai, pois visito-o de maneira turística desde 1990. Possuem uma maneira leve de viver, são educados e atentos às coisas que realmente importam na vida.

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REVISTA BICICLETA

É um país muito interessante. TIAGO Gosto muito do Uruguai. É um país que tenho uma relação próxima, pois a família da minha mãe é de Dom Pedrito (fronteira com Uruguai), então, tive muita influência da cultura uruguaia na minha infância. Acho um país super agradável e com uma energia boa. As praias de lá acabaram virando um point turístico, mas ainda encontramos lugares charmosos e tranquilos por lá. Além disso, é um país com uma tradição enogastronômica riquíssima. Quais desdobramentos esperam da viagem? Ou seja, o que pretendem fazer para levar esta experiência a outras pessoas, depois? CESAR Pessoalmente, esta viagem será um divisor de águas para mim. Tenho 50 anos, e o projeto Bike & Wine está só começando. Teremos surpresas para todas as pessoas que quiserem participar do nosso jeito de ver a vida. Eu e o Tiago estaremos, logo que voltarmos, apresentando uma "plataforma" para que mais pessoas compartilhem desse sentimento que é pedalar, ir de maneira contemplativa a lugares que estão literalmente muito próximos de nós. TIAGO O projeto tem muito valor. As pessoas olham admiradas para o que estamos prestes a fazer, pois pensam que não é para elas esse tipo de projeto. Se enganam. No início de 2016 eu pedalava pouco mais de 5 km e já ficava muito cansado. Hoje estou prestes a pedalar 1.000 km e sinto que tenho todas as condições de completar o percurso e chegar bem no destino. O Bike & Wine é muito mais do que um projeto pontual.


Ele inspira. Ele mostra que não há limites para os nossos sonhos, contanto que haja dedicação, disciplina e muita diversão no caminho. A velha máxima de que “os fins justificam os meios” não é válida para mim. O único fim que existe é a morte, o resto é tudo “meio”. Ou seja, o projeto tem que ser divertido, leve, alegre e regado a bons vinhos. Além disso, em 2017 já temos em mente a evolução do projeto. Iremos levar a filosofia do Bike & Wine para outras pessoas através de uma plataforma de experiências. Por hora não podemos falar mais da ideia, mas aguardem nossa volta que teremos novidades. Por fim, pretendem alimentar alguma

rede social ou site com atualizações durante a viagem, para que o leitor possa acompanhar? TIAGO Sim, iremos manter o nosso Facebook atualizado diariamente. Queremos fazer transmissões ao vivo do projeto. Além disso, irá com nós uma grande amiga nossa, a Andreia, que além de uma grande dentista, é uma fotógrafa fora de série. Com o registro de suas fotos, iremos publicar um livro da nossa jornada. Também estão previstos uma exposição fotográfica e um mini documentário da nossa aventura. Nos acompanhem no Facebook que manteremos a página constantemente atualizada: www.facebook.com/bikeEwine/ 



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