Revista Bicicleta Edição Digital 05

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Dois anos depois da tragĂŠdia causada pela Samarco




 EDITORIAL EDIÇÃO DIGITAL 05 / MAIO - JUNHO 2017

O

rompimento da barragem de Fundão, no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km de Mariana-MG, ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, foi considerado a maior tragédia ambiental da história brasileira. Controlada pela Samarco, a barragem de rejeitos de mineração devastou cidades, vitimou pessoas, danificou fauna e flora, dizimou a vida no Rio Doce. Logicamente, o desastre atingiu também as vias de passagem na região, inclusive alguns trechos do Caminho dos Diamantes. Dois anos depois, Antonio Olinto e Rafaela Asprino voltaram à região para atualizar o seu guia Estrada Real Caminho dos Diamantes. Acompanhe, na matéria de capa, os motivos para seguir pelo trajeto alternativo sugerido pela dupla cicloturista. Veja também a sugestão de roteiro internacional pela Eslovênia, uma abordagem sobre as bicicletas tandem, a inspiradora história de superação de Mônica Furtado, as incríveis bicimáquinas do guatemalteco Carlos Marroquín. Boa leitura.

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Revista Bicicleta, com periodicidade mensal, é publicada pela Ecco Editora Sede / Assinaturas / Correspondência Rua Tuiuti, 300 - Bairro Cruzeiro Rio do Campo - SC -89198-000 assinatura@revistabicicleta.com.br bicicleta@revistabicicleta.com.br Fone: (47) 3564-0001 - Fax: (47) 3564-1212 Diretor de Redação Anderson Ricardo Schörner Jornalistas / Repórteres / Redatores e Colaboradores Álvaro Perazzoli / Antônio Olinto / Carlos Menezes / Cláudia Franco / Eduardo Sens dos Santos / Lima Junior / Paulo de Tarso / Pedro Cury / Roberto Furtado / Ronaldo Huhm / Valter F. Bustos Correspondente na Europa Fábio Zander Editor Executivo Therbio Felipe M. Cezar Revisão R. O. Petris Depto. de Arte / Web Alex C. Serafini Depto. de Assinaturas Adriano dos Santos Editor E. B. Petris



SUMÁRIO

DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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BICICLETA TANDEM SINCRONIA A DOIS

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A ESTRADA REAL

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Dois anos depois da tragédia causada pela Samarco

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BICICLETA ELÉTRICA E A TENDÊNCIA CYCLE CHIC Um incentivo ao público feminino

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EXPEDIÇÃO LJUBLJANA DUBROVNIK

46

AS BICIMÁQUINAS DE CARLOS MARROQUIN

54

TOUR DE FRANCE EM ALTO ESTILO Ou como nasceram os gregários

58

ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS CAPACETES

66

EXPEDIÇÃO GUATEMALA

24

De cabana em cabana

78

PEDALANDO NA ROLIÚDE DO NORDESTE

86

O LADO ROSA DA FORÇA

92

É SEMPRE TEMPO DE RECOMEÇAR Uma história de recuperação baseada no apoio do amor.

78



PELOTÃO EDIÇÃO DIGITAL 05 / MAIO - JUNHO 2017

ANDERSON RICARDO SCHÖRNER

THERBIO FELIPE M. CEZAR

DIRETOR DE REDAÇÃO

EDITOR EXECUTIVO

Ciclista urbano e entusiasta da bicicleta.

Professor universitário, conferencista internacional e cicloturista.

anderson@revistabicicleta.com.br

ANTONIO OLINTO Cicloturista renomado, formado em direito e conferencista. antonioolinto@gmail.com

therbio@revistabicicleta.com.br

CLAUDIA FRANCO Responsável pela Escola de Bicicleta Ciclofemini, palestrante, atleta amadora e embaixadora Specialized. claudia@ciclofemini.com.br

EDUARDO SENS DOS SANTOS Ciclista amador, entusiasta da história do ciclismo e co-idealizador do Desafio Desbravadores.

CARLOS MENEZES Biólogo, fitter, atleta de MTB e cicloturista. biocicleta@carlosmenezes.com.br

eduardo_sens@yahoo.com

EDUARDO ALMEIDA

PAULO DE TARSO

Cicloativista, cicloturista, palestrante e ciclista amador.

Cicloturista, arquiteto e um dos criadores do Sampa Bikers.

xcycleadventure@gmail.com

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paulinho@sampabikers.com.br



ROLÊ

TRIPLICOU

O número de food bikes nas ruas de Belo Horizonte de 2014 pra cá. No 1º Encontro de food bikes de BH, realizado em 2014, eram 13 negócios presentes.

227%

Foi o aumento do fluxo de ciclistas depois da implantação da ciclofaixa da Rua da Consolação, em São Paulo. Segundo dados do Cebrap, em 2015 eram 243 viagens/ dia; em 2017 o número subiu para 795 viagens/dia.

641

Ciclistas ficaram feridos e 53 morreram nas rodovias estaduais e federais de Santa Catarina em 2015 e 2016, segundo reportagem do Diário Catarinense. É uma média de um ciclista ferido a cada 27 horas.

APLICATIVO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS EM BIKES TANDEM É LANÇADO EM SÃO PAULO A partir do segundo semestre de 2017, o paulistano terá à disposição o Bikxi, aplicativo que permite agendar viagens de bicicleta tandem por algumas das principais avenidas de São Paulo. O projeto é do economista Danilo Lamy. Segundo Danilo, serão 11 bicicletas rodando pelas ciclovias da Faria Lima e Paulista. O custo será entre o transporte público e o táxi. Um ciclista experiente pilota a bicicleta à frente, e o passageiro vai atrás, com a possibilidade de ajudar a pedalar ou não, já que o pedivela do passageiro é com roda livre. As bikes possuem auxílio elétrico, “porta-luvas” para piloto e passageiro, um bagageiro atrás, luzes, retrovisor, sistema de marcha no cubo de 7 velocidades Shimano Nexus e acabamentos em couro. Saiba mais no site do aplicativo: bikxi.com.br

Ou cerca de R$ 3.700 é o subsídio que Oslo, capital da Noruega, decidiu disponibilizar aos seus moradores para a compra de bicicletas elétricas cargueiras, que custam entre US$ 2.500 a US$ 6.400. O objetivo é que mais pessoas troquem o carro pela bicicleta, mesmo quando forem fazer compras, por exemplo.

© REPRODUÇÃO

US$ 1.200



ROLÊ

© REPRODUÇÃO

PROJETO PARA INCENTIVO À BICICLETA CONECTA BRUSQUE E ALEMANHA Por meio do projeto Pedalar pelo Município, que incentiva o uso do transporte sustentável e redução de CO², a cidade catarinense de Brusque participará competindo com a cidade alemã de Karlsruhe, entre os dias 17 de junho a 7 de julho. Durante 21 dias, todas as atividades relacionadas ao uso da bicicleta serão cadastradas no site www.stradtradeln.de/kommunen, onde será contabilizado qual cidade pedalou mais.

O UberEats, aplicativo da Uber para entrega de comida que chegou ao Brasil para concorrer com o iFood, anunciou que seus pedidos poderão ser entregues também por ciclistas. O interessado em prestar o serviço precisa ser maior de 18 anos e preencher um cadastro no app. Não há nenhum requisito com relação à bicicleta. O valor pago ao ciclista varia de acordo com a distância e tempo percorridos. O app promete sincronizar a hora em que o pedido está pronto para sair do restaurante, com a hora em que o entregador chegará para pegar a comida. A partir do momento da coleta do pedido, o usuário acompanha todo o trajeto do entregador pelo smartphone.

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© DIVULGAÇÃO

ENTREGAS DA UBEREATS SERÃO REALIZADAS EM BICICLETA



© DIVULGAÇÃO

ROLÊ

FUORIPISTA

A ERGOMÉTRICA QUE É UM VERDADEIRO OBJETO DE DECORAÇÃO Em comemoração ao 20º ano da conceituadíssima feira de móveis e decoração SaloneSatellite, em Milão, o estúdio italiano Adriano Design criou a Fuoripista, uma bicicleta ergométrica conceito que une funcionalidade e beleza. Como o objetivo era criar realmente uma peça de decoração, a bicicleta possui materiais que lhe dão um ar mais sofisticado, com vidro temperado, madeiras nobres, aço escovado e couro, o que realmente deixou o resultado final bastante elegante e com um design único. A peça foi constrúida especificamente para a feira, apenas uma peça, sem previsão de fabricação em escala comercial.

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O CICLISMO ESTÁ MAIS GLOBALIZADO? Recentemente, o ex-ciclista belga Eddy Planckaert afirmou que “agora o mundo todo está competindo”. De fato, diversas nacionalidades têm feito sua aparição no pelotão de frente das grandes provas: eslovacos, italianos, espanhóis, australianos, colombianos... Um trabalho de investigação sobre este assunto está sendo realizado pela Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. De fato, os resultados mostram que o ciclismo profissional certamente é um dos esportes que ficou cada vez mais globalizado. Não é tão internacional como o tênis ou o biathlon, mas é mais globalizado que o esqui, o golfe e os 100 m no atletismo. Há 50 anos, a supremacia dos belgas, italianos, franceses e holandeses em provas clássicas de um dia (como a Milão – San Remo, por exemplo) só era afetada vez ou outra por uma eventual vitória britânica. Agora, especialmente entre 2005 e 2015, o número de pilotos não europeus duplicou. Austrália, Colômbia e Estados Unidos são forças que podem ser mencionadas. Essa globalização, porém, não significa exatamente popularidade no país de origem do atleta. No Giro d’Italia 2016, por exemplo, a organização anunciou que o evento foi televisionado para mais de 100 países. Mas a maior audiência ainda está concentrada nos países com mais tradição no ciclismo, como Bélgica, Holanda e França. Ou seja, a conclusão é que o pelotão está mais internacional, mas o ciclismo não necessariamente pode ser considerado um esporte popular no mundo inteiro – ainda!

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VELÓDROMO OLÍMPICO É REINAUGURADO

© HUDSON MALTA

ROLÊ

Cerca de 3 mil pessoas marcaram presença neste final de semana no Campeonato Estadual de Pista 2017. A competição reinaugurou o Velódromo Olímpico da Barra da Tijuca e contou com a presença de grandes nomes do ciclismo como Gideoni Monteiro, Francisco Chamorro, Lauro Chamam, Sumaya Ali dos Santos e Kassio Freitas. Além de contar pontos para o ranking nacional, a competição também pontua no ranking estadual de Pista. Wellyda dos Santos Rodrigues e Cristian Egídio da Rosa venceram na Omunium; Sumai Ali dos Santos Ribeiro e Kacio Fonseca da Silva Freitas venceram na Keirin. Os resultados completos estão no site www.fecierj.org.br O Velódromo Olímpico do Rio é o mais rápido do mundo na atualidade, uma vez que o espaço sediou 33 recordes mundiais, batidos na Olimpíada Rio 2016. Com infraestrutura completa para o usuário, o local conta com socorristas de plantão nos horários dos treinos, estacionamento, seguranças, banheiros e sala para guardar bicicletas, facilitando os atletas que irão treinar. Atualmente o Velódromo conta com capacidade de 2.339 pessoas sentadas.

COMO TREINAR NO VELÓDROMO O interessado deve estar filiado à Federação (FECIERJ), ter participado da clínica de treinamento no Velódromo. A clínica tem um valor simbólico de R$ 50,00 pago direto ao professor credenciado.



ENTENDA MELHOR

Objeto de curiosidade de muitos. Por onde ela passa, todos ficam de olho. Muitos dizem que não passa de duas bicicletas que foram emendadas. Mas se observarmos mais a fundo ficará fácil perceber que existe muita engenharia por trás da construção de uma bike dessas. Texto Carlos Menezes

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© CANNONDALE / DIVULGAÇÃO

BICICLETA TANDEM SINCRONIA A DOIS


© ARQUIVO PESSOAL

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A BICICLETA SOCIÁVEL Mediante essa dificuldade, chegamos a confeccionar nossa própria tandem, de uma maneira artesanal e caseira. Retirando o lado “lúdico” da construção do próprio quadro e da montagem da própria bicicleta, não recomendo fazer isso, pois, por mais redondo que fique o resultado, o projeto de engenharia é comprometido. Essa mesma bike foi sorteada durante um Passeio Ciclístico, e depois de alguns meses o ganhador nos confessou que 

Nosso primeiro contato com uma tandem foi por meio de uma bicicleta de aluguel no complexo turístico do Barreiro, na cidade de Araxá-MG. Desde então, sempre ficou a vontade de ter nossa própria tandem e iniciamos uma pesquisa por esse modelo de bike. Descobrimos que no Brasil existe poucas opções no mercado, mas quando olhamos os sites “internacionais” das grandes marcas, constatamos que esse modelo é muito comum lá fora. EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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© ARQUIVO PESSOAL

s grandes marcas internacionais apresentam modelos com componentes de ponta. A maioria das bikes do Brasil são fabricadas por seus próprios usuários. Algumas marcas chegam a se arriscar em modelos básicos. Atualmente, uma boa opção nacional é a brasileira Gillot (www.gillot. com.br), que fabrica excelentes bikes tandem customizadas. Para quem está de fora, pedalar uma tandem pode parecer algo engraçado, diferente ou chamativo, mas para quem já controlou uma bicicleta assim sabe que a sensação é muito boa e exige extrema sintonia entre os usuários. O jogo de corpo e a sincronia nas pedaladas precisam estar afiados. A confiança de quem vai atrás do piloto deve ser completa, afinal, todo o comando de freio e direção não estão sob seu controle. Em contrapartida, para o piloto, saber dessa responsabilidade se transforma em um peso a mais durante a pedalada. Mas o importante é que juntos podem percorrer longas distâncias somando seus esforços. Casais ao pedalar juntos podem reforçar seus laços.


nunca havia conseguido aprender a andar de bicicleta e que a tandem que havia ganhado no sorteio possibilitou que ele perdesse o medo de pedalar. Surge aí, então, uma outra utilidade para esse tipo de bici. Pessoas que por qualquer motivo não conseguem aprender a pedalar, podem ter a experiência com o auxílio de um piloto. Outro aspecto que estimula o uso da tandem são projetos sociais com deficientes visuais, que permitem que eles desfrutem do prazer de pedalar, sentir o vento no rosto associado a uma incrível sensação de liberdade. Mas a maior utilidade de uma tandem veio recentemente. Com a gravidez

da esposa, veio o receio dela cair e comprometer a gestação. Então compramos uma tandem para ser utilizada durante a gravidez. Após o nascimento, apenas incluímos uma cadeirinha para que o filho pudesse pedalar conosco. Esse pedal em família é algo inexplicável. Por mais que eu discorra sobre o prazer de compartilhar o pedal com toda família, qualquer palavra seria incapaz de traduzir esse prazer. Atualmente, já preparamos a segunda cadeirinha para exercitarmos a família toda sobre as duas rodas. Então, se você ainda não teve a oportunidade, fica a minha sugestão: experimente uma tandem! 



CICLOTURISMO / CAPA Texto Antonio Olinto Fotos Rafaela Asprino

A ESTRADA REAL DOIS ANOS DEPOIS DA TRAGÉDIA CAUSADA PELA SAMARCO Em maio de 2017 voltamos à região de Mariana para verificar a situação no trecho do Caminho dos Diamantes atingido pelo rompimento da barragem da Samarco. Infelizmente, a estrada ainda está bloqueada. Mapeamos um trajeto alternativo para atualizar o Guia Estrada Real Caminho dos Diamantes, e elencamos a seguir uma série de informações oportunas ao cicloturista que deseja pedalar pela região.

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untamente com toda a nação brasileira, recebemos com muito pesar a notícia do rompimento da barragem da Samarco nas proximidades do distrito de Bento Rodrigues/ MG. Além das vidas humanas perdidas e do terrível impacto ambiental, sabíamos que o descaso na condução dos trabalhos de mineração havia causado outras perdas irreparáveis. A irresponsabilidade na gestão dos rejeitos da mina destruiu a história de vida dos habitantes desta localidade, juntamente com um pedaço da história do nosso país. Qual a importância de Bento Rodrigues?

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Afinal, é só um distrito afastado de Mariana. Talvez seja uma coincidência, mas a capa e a contracapa de nosso guia foram feitas com fotos tiradas nessa região. Um cicloturista vive mais o caminho que os pontos de chegada ou partida, talvez por isso sintamos tanto pesar por esta perda. Em nossas experiências de viagem, aprendemos que, seja qual for a tragédia ocorrida em um local, por mais remota que seja a localidade, os habitantes desenvolvem maneiras precárias, mas eficientes, para retomarem o tráfego, e quem está a pé ou de bicicleta pode aproveitar estes mesmos meios de tra- 

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© REPRODUÇÃO GOOGLE MAPS

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ANTES

DEPOIS

 Último ponto onde é possível chegar no trajeto entre Camargos e Bento Rodrigues

vessia, em uma pequena canoa, lombo de burro ou mesmo carregando a bicicleta às costas morro acima. Imaginávamos que em Bento Rodrigues seria igual, mas dessa vez, este princípio geral não se repetiu e, dois anos depois da tragédia, não tivemos nenhuma notícia de colegas cicloturistas que tivessem atravessado pela região. Terminados os trabalhos do Guia Circuitos do Sul, partimos imediatamente para Mariana a fim de estudar uma solução para o problema. Segundo o site do Instituto Estrada Real, tanto um cavaleiro, como um caminhante ou um cicloturista, deveriam fazer o trajeto de Santa Rita Durão até Mariana de ônibus, ou então dar uma volta por um caminho chamado de Sabarabuçu, que é quase a metade do comprimento de todo o Caminho dos Diamantes. Ora, este tipo de solução não nos parece um conselho que um cicloturista oferece a outro ciclo-

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turista... Este ponto do texto é um bom momento para o cicloturista brasileiro conhecer melhor a realidade do Instituto Estrada Real, por isso pedimos ao leitor que veja atentamente a entrevista que fizemos com o idealizador do Projeto Turístico Estrada Real, Áttila Godoy, em São João Del Rey. Como geólogo, testemunha dos fatos através de anos de experiência e lida com o Instituto e grandes mineradoras, ele explica como funciona uma mina, as razões do acidente, as possibilidades de recuperação e, principalmente, qual o papel que o Instituto Estrada Real tem tido durante esses anos de existência. Após ver a entrevista, acreditamos que ficará mais fácil compreender as razões das ações e omissões do Instituto Estrada Real. Agora que você já viu a entrevista, voltemos às constatações de nosso trabalho


Entrevista com Attila Godoy, idealizador do Projeto Turístico Estrada Real youtu.be/ArtXqcF0sUQ

de campo: a partir de Mariana, a estrada termina no ponto 22,09 da planilha MARIANA-CAMARGOS-BENTO RODRIGUES, a ponte de madeira que aparece em nosso documentário foi levada pela lama. A partir de Santa Rita Durão (cerca de 5,60 km da cidade), a estrada, que a rigor é pública, está interrompida por um portão de ferro, com segurança privada paga pela Samarco. Nosso conselho ao cicloturista é desviar

pela rodovia de asfalto MG-129, passando por Antonio Pereira, conforme mostra no mapa do circuito em seu guia e nesta atualização gratuita. Para quem ainda acredita nas informações do site do Instituto Estrada Real, aconselho fazer uma pequena enquete nas mídias sociais, averiguando junto aos colegas ciclistas de Mariana sobre a frequência do uso da MG-129 como pista de treino. Particularmente, costumo acre- 

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Barragem Germano (Samarco) Igreja Queimada - Antonio Pereira

Distrito de Antonio Pereira

Espelho retrovisor - equipamento de segurança obrigatório e essencial para pedalar em rodovias. Belas formações rochosas na MG 129


SIM, É PERIGOSO... É MUITO MAIS PERIGOSO QUE FICAR EM CASA VENDO TELEVISÃO... ditar muito mais em um ciclista que em alguém que só usa o carro como veículo. Em nossos trabalhos de campo vimos vários ciclistas pelo caminho, desde fortes atletas top de linha até ciclistas rurais se deslocando para algum centro urbano. Mas não é perigoso, Olinto? Sim, é perigoso... É muito mais perigoso que ficar em casa vendo televisão... Quando tomamos o protagonismo do filme de nossas vidas assumimos vários riscos, o risco está muito conectado à própria aventura, sendo ele aparente ou não. Entretanto, podemos afirmar que a MG-129 não é mais perigosa que outras tantas estradas que um cicloturista terá que passar em sua vida de viagens e treinos. Afinal, infelizmente, em nosso país, o trânsito mata mais que vários conflitos armados ocorridos pelo mundo afora, e nem por isso as pessoas deixam de ir ao trabalho ou até a cidade ao lado com seus veículos.

um grau de respeito acima da média que esperávamos. Talvez por já ser consagrado como campo de treino de ciclistas ou simplesmente por ser o mountain biking um esporte popular no estado de Minas Gerais. Em nossos dois guias da Estrada Real, procuramos ser muito fiéis ao leito histórico da estrada utilizada no princípio do desenvolvimento da região das minas este é o espírito deste guia, “O Caminho dos Diamantes”. Vamos às razões históricas deste novo circuito: observando a data e o traçado do mapa abaixo, é fácil notar que havia um caminho direto entre Ouro Preto e Catas Altas, passando por Antonio Pe- 

Espelho retrovisor, cuidado e atenção são os ingredientes fundamentais para superar os riscos do dia a dia de viagens, treinos e uso urbano de qualquer veículo. No geral, viajar de bicicleta nos mostra um mundo mais fraterno que aquele exposto na mídia, a MG-129 nos mostrou EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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 A "nova sinalização" do trajeto da Estrada Real

reira. Se imaginarmos como era feito o deslocamento a norte em 1700 (época do ouro), percebemos que o roteiro direto (Ouro Preto-Antonio Pereira-Catas Altas) era mais lógico, pois os primeiros exploradores faziam o caminho a pé (cavalos e burros foram animais trazidos pelos europeus), em linha reta, preferencialmente pelo alto dos morros, onde a mata é menos densa. Em qualquer ponto da estrada que tenha uma vista da mata nativa do vale do Rio Doce, um cicloturista pode imaginar como deveria ser difícil se deslocar por essa densa floresta, isso sem falar nas dificuldades de orientação e defesa. O caminho passando por Mariana e Bento Rodrigues tornou-se tradicional na época dos Diamantes, quando o poder político de Mariana já era forte e os vales já estavam desmatados. Para um cicloturista, acreditamos que valha a pena dar a volta e passar por Mariana. Conforme comentado no corpo do guia,

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a região das minas sofreu períodos de fome e, entre 1700 e 1701, o bandeirante português Antonio Pereira chegou à região com o intuito de produzir víveres para as áreas mineradoras. Assim como em outras cidades, esta operação se mostrou muito lucrativa de forma que, por volta de 1716, uma grande igreja matriz já estava erguida. Em 1830 um incêndio destruiu todo o madeiramento da igreja, mas deixou exposto até os dias de hoje a magnitude de sua fachada, alicerces e paredes: uma atração rara para a região das minas, cuja grandeza faz lembrar os Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Como jamais foi restaurada, a população local passou a utilizar a área interna como cemitério, aumentando ainda mais a originalidade deste atrativo. Acreditamos que só por este monumento já valeria a pena a parada, mas a cidade ainda possui outras atrações como a


Gruta de Nossa Senhora da Lapa e um garimpo de Topázio Imperial ainda em atividade. Esta tonalidade de topázio é única no mundo. Seguindo a norte de Antonio Pereira o movimento de veículos diminui, mas aumenta um pouco o volume de caminhões a serviço das mineradoras, afinal, Mariana e Catas Altas tem pouca relação, ambas comercializam diretamente com a capital utilizando outras rodovias. Não é à toa que a MG-129 foi asfaltada antes da histórica Estrada Real, é ela que faz o

acesso às minas da Samarco, ou seja, foi o poder econômico que ditou a prioridade na construção do asfalto. A MG-129 está a oeste do caminho interditado, como consequência o cicloturista poderá ver melhor e mais de perto as belas formações da Serra do Caraça. No caminho o cicloturista passará também ao lado das minas e verá o trabalho dos caminhões gigantes, movendo cerca de 345 toneladas de terra e minério de uma só vez. 

 Atualização gratuita do Guia Estrada Real Caminho dos Diamantes goo.gl/vqnLXK

MG 129, dia 10/05/2017, quartafeira, às 14h40. Sim, é possível fazer essa foto, pedalando tranquilamente pela rodovia.


Para adquirir este ou outros guias, dvds e livros www.olinto.com.br

O caminho passa ao lado de outra barragem da Samarco (Germano), mas fique tranquilo, você irá pedalar pela parte alta, mesmo que ela venha e se romper também, você estará a salvo. Se as imagens da tragédia não estivessem tão recentes em nossa mente e não estivessem tão associadas à morte de

pessoas e da natureza, poderíamos dizer que a vista do alto da barragem é linda e surreal! Parece um salar, mas tem várias e belas cores que contrastam com o verde ao redor, ressaltando o vivo e o morto. Após 32,25 km o cicloturista já poderá sair da MG-129 e seguir em direção a Santa Rita Durão, continuando normalmente sua viagem pelo Caminho dos Diamantes, ou se tiver pressa, poderá continuar por mais 1,72 km e reencontrar as planilhas do guia conforme indicado. Os caminhantes terão dias duros, mas poderão continuar seu caminho a pé sem depender de veículos automotores. 





© MICROGEN / DEPOSITPHOTOS

CYCLE CHIC

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BICICLETA ELÉTRICA E A TENDÊNCIA CYCLE CHIC

UM INCENTIVO AO PÚBLICO FEMININO Texto Anderson Ricardo Schörner

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conceito Cycle Chic tem ganhado força nos centros urbanos brasileiros. E uma inovação da indústria ciclística muito bem-vinda neste cenário é a bicicleta elétrica, tanto por sua praticidade quanto pela promoção da cultura da bicicleta no país. Interessante observar que a união da bicicleta elétrica com a tendência Cycle Chic pode ser um incentivo para o público feminino utilizar cada vez mais a bicicleta em seus deslocamentos cotidianos. A evolução das e-bikes é perceptível não só na tecnologia empregada, mas também no desenvolvimento de designs mais elaborados. Esse cuidado com a estética da bicicleta tem conquistado o público Cycle Chic, especialmente as mulheres. As estruturas grandes, pesadas e meio desajustadas visualmente dão lugar a modelos com acabamento mais caprichado, baterias mais pequenas e

estrategicamente disfarçadas. O público da bicicleta elétrica compartilha de alguns ideais dos ciclistas Cycle Chic. O principal objetivo para ambos é utilizar a bicicleta como um meio de transporte e, para tanto, não se preocupam com a utilização de acessórios de performance e roupas aerodinâmicas. O vestuário é informal, casual, o mesmo que seria utilizado se o percurso fosse realizado de carro ou a pé. Pontualmente, a bicicleta elétrica pode contribuir para a confiança das mulheres. Elas tendem a se sentir mais receosas no momento de encarar uma distância grande ou com maior grau de dificuldade, com subidas ou trânsito mais intenso. Neste momento, poder contar com o auxílio elétrico pode ser determinante para que ela continue no pedal. E se for de uma maneira elegante, como toda mulher preza, melhor!  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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CICLOTURISMO

EXPEDIÇÃO LJUBLJANA DUBROVNIK Em outubro de 2015, concluí a Expedição Ljubljana – Dubrovnik, uma travessia de bicicleta desde a capital da Eslovênia até a “pérola do Adriático”, na Croácia. A ideia surgiu da necessidade, como proprietário da Larbtur Viagens e Turismo, em adquirir conhecimento sobre o destino turístico do Mar Adriático, aliado ao desafio esportivo de uma cicloviagem de mais de 500 km. Além disso, não seria nada mal conhecer pessoalmente o escritório do nosso parceiro comercial Happy Tours Slovenia. Texto e Fotos Luiz Eduardo Barcellos

A

pós reunião com meus amigos e parceiros Rok Bulc, Nando Cabral e Aleksandra Jezersek, fui conhecer a bela e simpática cidade de Bled. A cidade fica na costa do lindo Lago Bled, onde há uma ilha no meio e um impressionante castelo medieval – o

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mais antigo castelo da Eslovênia - no topo de um penhasco íngreme com vista para o lago. À noite, fiz um passeio ao redor da cidade velha de Ljubljana. Na manhã seguinte me encontrei com Rok no hotel. Era hora de iniciar a aventura. Fomos a um posto de gasolina para 


© FESUS / 123RF.COM

Bled, seu lindo lago e seu impressionante castelo medieval – o mais antigo da Eslovênia.

A caverna de Postojna, a mais conhecida do mundo.

Neum, a única cidade costeira da Bósnia-Herzegovina.

© NIGHTMAN1965 / 123RF.COM

© SYKWONG / 123RF.COM

Ljubljana, capital da Eslovênia.


encher os pneus da bicicleta e depois pegar a estrada! Mas com menos de 6 km rodados minha roda traseira furou e, após trocar a câmera, quebramos a válvula ao bombear o pneu com excesso de vontade. "Pois é... isso vai ser uma aventura e tanto", pensei. Nós seguimos em direção a Postojna por estradas secundárias. A temperatura estava perfeita para pedalar, a vista é muito bonita, e subimos com tranquilidade. Fomos direto para a caverna de Postojna, que é a mais conhecida do mundo e maior atração turística da Eslovênia. Um trem elétrico transporta os surpresos visitantes em passagens subterrâneas por entre incríveis formações rochosas. Depois da caverna, fomos para o Castelo de Predjama. Uau! O castelo é incrível! Definitivamente, é uma atração para não se perder. Foi a minha atração favorita na Eslovênia. Nove quilômetros de distância das cavernas, o castelo está empoleirado em um penhasco vertical e foi mencionado pela primeira vez no ano de 1274. O castelo era frio, úmido, nada acolhedor, mas seguro para seus habitantes. Na Idade Média, a segurança estava acima de tudo. O castelo teve muitos proprietários ao longo dos séculos. O mais famoso foi o cavaleiro Erazem Lueger no século XV, uma espécie de Robin Hood local, que ficou cercado em sua fortaleza por um ano e um dia devido a uma ordem do imperador austríaco Fredrick III para capturá-lo e matá-lo. Depois de visitar o castelo, Rok pegou o trem de volta para Ljubljana e eu pernoitei em Postojna. Rodamos um total de 78 km com elevação cumulativa de 1.227 m. Quando acordei no dia seguinte eu sabia

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que esta segunda fase seria difícil. Eu estava sozinho e quando parti de Postojna chovia e fazia frio. A chuva se foi depois de 10 km, e o frio não incomodava enquanto estava pedalando até a fronteira da Eslovênia com a Croácia, passando por montanhas, rodeado por bosques e florestas. Depois de passar o controle de passaporte, já em território croata, rumei ao sul para Rijeka pela estrada estadual D8 que tem pouco tráfego, pois corre paralela à autoestrada A7. Ver o mar ao longe deixa você mais motivado e, após uma longa descida, eu estava de frente para o maravilhoso Mar Adriático. Antes de ir para Rijeka, não podia deixar de visitar Opatija, local onde a antiga família imperial austríaca costumava passar vários meses do ano. Depois do almoço fui para Rijeka, concluindo assim o segundo estágio com um total de 76,4 km e ganho de elevação acumulado de 771 m. De Rijeka, tive um transporte para apanhar o ferry para a ilha de Pag, onde começaria o próximo estágio. A ilha de Pag é um destino fantástico. Praias espetaculares, charmosas cidadezinhas e excelentes rotas de ciclismo. Além disso, há várias atividades como vela, snorkling, kitesurf ou apenas ficar relax na praia. O ambiente convida os visitantes para atividades outdoor. Sem falar nas festas e raves selvagens que acontecem durante as férias de verão do continente europeu. Foi onde vi mais ciclistas. Comecei esta fase em Novalja, pedalei praticamente toda a ilha de Pag, até chegar em Zadar. O tempo estava ótimo, foram vistas deslumbrantes e uma atmosfera amigável. O fluxo de carros na estrada estava tranquilo, pois a alta tem-


MAS COM MENOS DE 6 KM RODADOS MINHA RODA TRASEIRA FUROU E, APÓS TROCAR A CÂMERA, QUEBRAMOS A VÁLVULA AO BOMBEAR O PNEU COM EXCESSO DE VONTADE. "POIS É... ISSO VAI SER UMA AVENTURA E TANTO", PENSEI. porada já havia acabado. Minha primeira parada foi na cidade de Pag, que vi pela primeira vez do topo de uma colina. O centro de Pag oferece um ambiente agradável para almoçar e tomar uns drinks apreciando a bela vista do Mar Adriático. Mas eu ainda tinha um longo caminho para chegar a meu destino, então enchi minha garrafa d’água e segui em frente. Parei para almoçar a menos de 6 km de Zadar. Eu estava faminto e exausto. Rodei um total de 80,9 km com uma altimetria acumulada de 896 m. No dia seguinte o tempo estava péssimo. Deixei Zadar sob chuva forte. Parei com apenas 5 km rodados e me abriguei numa pequena construção tipo borracheiro de beira de estrada, onde dentro só havia um cachorro. Pensei se não seria melhor voltar e pegar um ônibus... Finalmente parei para almoçar em Pirovac, cerca de 50 km de Zadar, onde conheci um casal da Bélgica que estava em uma cicloviagem com duração de um ano. Quando eu vi o volume de bagagem deles prometi a mim mesmo que não reclamaria mais da minha. Chegamos a Sibenik juntos, o tempo estava muito melhor do que de manhã. Fiquei impressionado com a beleza da Catedral de Saint James, nomeada Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Para aqueles

que planejam visitar a Croácia, Sibenik é uma cidade que merece uma visita. Além da Catedral, a fortaleza de Saint Michael e o Parque Nacional Krka são outras excelentes atrações. Nesta fase, foram 72 km de distância e 445 m de elevação acumulada. Acordei animado para a próxima fase; eu estava ansioso para chegar a Trogir. Havia muitas subidas, mas a estrada estava vazia e o tempo estava bom. Meu amigo Rok estava certo, Trogir é uma joia. Da próxima vez vou passar uns dias lá para apreciar essa extraordinária cidade medieval com calma. Almocei uma macarronada com frutos do mar acompanhado por um excelente vinho branco croata! Depois do almoço peguei a estrada novamente. Próxima parada: Split. A chegada foi um tanto confusa com trânsito intenso e muitos caminhões. Finalmente cheguei ao espetacular Palácio de Diocleciano (datado do fim do século III / início do século IV) completando um total de 78 km e 757 m de altimetria. Bem... Depois de uma longa viagem, tive tempo suficiente para algumas cervejas antes de entrar no ferry para Stari Grad (Ilha de Hvar). Após cinco dias consecutivos de pedal, eu não via a hora de tirar um dia de  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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Hvar possui praias belíssimas.

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Dubrovnik, a pérola do Adriático.


 descanso para recuperar minha musculatura. Não poderia ter escolhido melhor lugar: Hvar Town. A cidade é acolhedora, as praias são lindas, opções variadas de passeios de barco e de bicicleta, visual espetacular da Fortaleza de Hvar... Dia seguinte era hora de encarar o que tudo indicava ser a etapa mais difícil. Eu iria atravessar toda a Ilha de Hvar, percorrendo 80 km pelas montanhas (apesar de ser uma ilha, foram 1.808 m de altimetria) desde Hvar Town até Sucuraj, onde iria atravessar de ferry de volta para o continente e pegar um transporte até Neum (a única cidade costeira da Bósnia-Herzegovina). A ideia inicial era atravessar de Hvar para Kórcula, mas tive que me adaptar à situação, pois não havia mais ferry devido ao término da alta temporada (somente catamarãs, que não permitem o transporte de bicicleta). Sem sombra de dúvidas foi o estágio mais difícil. Mas também foi o trajeto mais legal. A ilha é linda, com diversas baías de água azul turquesa, e a estrada após Stari Grad estava vazia. Passei pela região das vinícolas com seus vinhedos, olivais e campos de lavanda. Com a conclusão do estágio anterior, entrei na reta final de minha expedição turística. Saí de Neum com tempo bom e segui para Ston para visitar a famosa muralha da cidade. Posteriormente segui para Slano onde faria o último pernoite antes de seguir para Dubrovnik. Ao chegar à pequena cidade, estava no alto da colina procurando a pousada quando um habitante, percebendo que eu estava perdido, me ofereceu ajuda e um copo de vinho de sua produção local. Era

Quem leva LARBTUR www.larbtur.com

exatamente o que eu estava precisando! Foram 49 km de distância e 1.099 m de altimetria. Finalmente chegara o último estágio! Eu estava completamente animado e motivado para concluir minha solitária aventura. Mas estava com medo! O tempo havia virado novamente. Não chovia muito, mas o vento estava muito forte. Bem que o motorista que me levou de Sucuraj para Neum me avisou: “cuidado na estrada no sábado, pois a previsão é de tempestade”. Pensei: “Ah não! Não posso desistir agora. Falta pouco... menos de 40 km”. Na verdade faltavam 36,8 km e 1.060 m elevação acumulada. Respirei fundo e pus o pé na estrada. Fortes rajadas de vento contra e de lado, a depender das curvas da estrada, me faziam segurar o guidão com muita força para não perder o controle da bike. Tinha que manter também o controle mental, não adiantava ficar ansioso querendo chegar logo. Paciência! Mesmo nas descidas eu não conseguia ganhar muita velocidade, pois o vento me segurava. E assim fui, lutando contra os fantasmas dentro da minha cabeça e contra o “Yugo” (o forte vento sudeste) até a fantástica cidade de Dubrovnik, “a Pérola do Adriático”! Foram 549 km com altimetria acumulada de 8.063 m em nove dias, sendo oito dias pedalados e um day off, para concluir com sucesso a expedição.  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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CICLOCIDADANIA

“EU VI NA TECNOLOGIA MOVIDA A PEDAL UM FUTURO MELHOR”. 46

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AS BICIMÁQUINAS DE CARLOS MARROQUIN

Texto Anderson Ricardo Schörner Fotos David Branigan Colaboração Sarah Claudette

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arlos nasceu de uma família agrícola de San Andrés Itzapa, em janeiro de 1974. Único filho homem, e mais novo de cinco, recaíram sobre seus ombros grandes responsabilidades, desde cedo. “Meus pais trabalhavam na costa do Pacífico, no comércio de café e frutas, e só passavam os fins de semana em casa. Eu e minhas irmãs trabalhávamos nas terras da família, no cultivo de hortaliças e criação de animais”, relembra Carlos. A vida em família foi desestabilizada, como a de muitos guatemaltecos, pelo fantasma da Guerra Civil da Guatemala, conflito armado que ocorreu entre 1960

e 1996. Com o pai recebendo ameaças de morte, a família Marroquin fugiu para a costa do Pacífico e lá viveu na clandestinidade até o fim da guerra. A volta para San Andrés Itzapa se deu só depois que os acordos de paz foram assinados. Ele diz: “junto com os sobreviventes da guerra, lutamos para recomeçar, recuperar nossas terras e nossa casa. Em pouco tempo, a comunidade internacional se sensibilizou com a situação do nosso país, e uma enxurrada de agências de ajuda internacional e ONGs se espalharam por toda a Guatemala”. Foi justamente o trabalho de uma dessas  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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ONGs que lhe trouxe um novo propósito e uma nova esperança...

O INÍCIO Em 1999, a Pedal Canadá começou a trabalhar em Itzapa. O grupo de voluntários projetava máquinas agrícolas a partir de bicicletas inutilizadas doadas à ONG no hemisfério norte, com o propósito de aliviar o árduo trabalho das viúvas da guerra. Assim que conheceu o trabalho, Carlos se sensibilizou e se envolveu rapidamente. “Tornei-me voluntário e viajei para comunidades remotas, testemunhando o sofrimento das mulheres e crianças que lutavam pela sobrevivência das aldeias dizimadas. Eu vi na tecnologia movida a pedal um futuro melhor para essas famílias”, afirma. Carlos contribuiu voluntariamente com o Pedal Canadá até 2001, quando foi criada a ONG nacional Maya Pedal para dar continuidade ao trabalho iniciado pelos canadenses. Nesta nova etapa, ele assumiu a posição de mecânico chefe. Os trabalhos realizados tornaram San Andrés Itzapa reconhecida internacionalmente por seu impacto positivo e criatividade sustentável. “Em 2012”, diz Carlos, “renunciei ao cargo na Maya Pedal e iniciei um novo empreendimento, chamado Bici-Tec. Nesta empresa seguimos a mesma essência dos trabalhos anteriores: temos o intuito de aumentar as oportunidades econômicas e reduzir a pobreza nas zonas rurais da Guatemala através da concepção, produção e distribuição, a preços acessíveis, de bicimáquinas,

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uma tecnologia culturalmente apropriada e não poluente. E, a partir deste ano, vamos compartilhar os conhecimentos sobre esta tecnologia em produção de bicimáquinas em um curso para estudantes guatemaltecos e internacionais”. Mas, afinal, o que são estas bicimáquinas?

MÁQUINAS FEITAS DE BICICLETA Imagine uma mulher viúva, mãe de cinco filhos, que precisa cuidar dos afazeres do lar e, ao mesmo tempo, lidar com os trabalhos típicos da zona rural, como recolher água nos poços, por exemplo. No departamento de Chimaltenango, há inúmeros casos assim. Mesmo com uma manivela boa e um bom sistema de roldanas ou polias, a ação de puxar o balde cheio de água dos poços profundos leva, em média, três minutos. “Uma bicibomba pode puxar o balde cheio para cima em 30 segundos”, comemora Carlos. Uma bicimáquina é uma máquina movida a pedal, construída a partir da estrutura de uma bicicleta inutilizada, que oferece uma alternativa mais rápida, sem custo com energia elétrica ou combustível, para tarefas pesadas ou entediantes que, de outra forma, seriam executadas manualmente. Na empresa de Carlos, as bicicletas continuam sendo importadas de ONGs que tem por objetivo recolher e dar uma nova utilidade a bikes abandonadas em países como Canadá e EUA. Segundo 


BICIMÁQUINA É UMA MÁQUINA MOVIDA A PEDAL, CONSTRUÍDA A PARTIR DA ESTRUTURA DE UMA BICICLETA INUTILIZADA


Carlos, “essas máquinas permitem que os agricultores diminuam o tempo de processamento em algumas tarefas, e possam se dedicar a outros afazeres e aumentar suas receitas. Bicimáquinas são um meio termo entre o artesanal e o industrial, oferecendo uma solução livre de emissões e eficiente para tarefas árduas, sem tirar o elemento humano da equação”. Ele mesmo corta, solda, desenha, monta e transforma uma bicicleta velha em uma máquina. A bicibomba para usar em poços, por exemplo, pode recolher de 5 a 10 litros de água por minuto em um poço com até 30 metros de profundidade, reduzindo significativamente o tempo e o trabalho envolvido na coleta de água para o uso diário. O conceito é simplesmente adaptar o sistema para substituir a

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manivela pelo pedal. Carlos relata: “uma dessas bicibombas foi instalada em uma escola rural no norte de Cruz Quiché. Um sistema de tubos ligados à bomba fornece água para os vasos sanitários e para as pias da escola”. Outra bicimáquina bastante popular é a debulhadora de milhos. Muito prática para a produção na agricultura familiar, esta máquina economiza muitos dias de trabalho manual durante a colheita. A bici-moinho, uma “usina” que mói qualquer tipo de grão ou comida, é base para a debulhadora de milhos, de forma que a família que quiser as duas máquinas pode comprar uma unidade, com peças intercambiáveis. O bici-liquidificador alcança uma velocidade de 6.400 rotações por minuto no processamento de alimentos.


Segundo Carlos, “esta máquina cria oportunidades econômicas para as famílias e está sendo usado para a produção de produtos que vão desde bebidas frescas até shampoos orgânicos”. O mesmo ocorre com a bicimáquina que remove a casca dos grãos de café. “A potência dela é de quatro sacas por hora. Esta ajuda à produção permite que os agricultores produzam seu próprio café e obtenham melhores retornos sobre seus cultivos”, diz. Outros exemplos são a máquina de ralar coco ou a descascadora de nozes, que permitem ao agricultor vender o produto final com um lucro maior do que

o produto bruto. Com uma visão incrível e capacidade de sonhar grande – e realizar -, Carlos é uma inspiração para todos nós em termos de solidariedade e criatividade. Além disso, soube se utilizar de uma máquina realmente incrível e que melhor aproveita a energia humana, a bicicleta, para servir a uma causa tão merecedora como a ajuda às famílias rurais pobres da Guatemala. Uma máquina que, mesmo velha e abandonada, pode renascer com uma nova forma, para cumprir o mesmo objetivo: oferecer liberdade e uma nova realidade ao seu usuário. 




© FOTOGRAAF ONBEKEND

HISTÓRIAS DA BICICLETA

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TOUR DE FRANCE EM ALTO ESTILO ou como nasceram os gregários Texto Eduardo Sens dos Santos

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avia uma época em que qualquer um com dinheiro e tempo - e pernas suficientemente fortes - podia entrar no pelotão do Tour de France. E naquele tempo aparentemente coisas muito estranhas aconteciam. Uma destas histórias é a do barão Henri Pépin de Gontaud, um ávido e riquíssimo ciclista francês que só queria aproveitar da melhor forma possível os dias que passaria no selim. Naquela primavera de 1907, o barão de Gontaud chamou alguns de seus funcionários do castelo que habitava na periferia de Toulouse e lhes informou a

novidade: “vocês vão correr comigo o Tour de France deste ano”. Ele, o barão, e todos os funcionários sabiam que não se tratava só de um passeio, mas sim de uma corrida duríssima, com 4.488 km divididos em apenas 14 etapas, algumas com até 350 km. Tempos gloriosos. Em 2014 o Tour teve “só” 3.663 km, com 21 etapas. A função deles seria a de fazer companhia ao rico patrão, qualquer que fosse o ritmo dele, além, é claro, de servirem como mecânicos, carregadores de peso e tudo mais que um serviçal daquela época tinha por obrigação fazer. Os domestiques (serviçais em francês) Jean Dargassies e Henri Gauban ficaram  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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estupefatos. Até então o trabalho que tinham no castelo era simplesmente lustrar móveis, talheres, copos, manter a roupa do patrão alinhada, concordar gentilmente com tudo o que se dizia e jamais cometer a indelicadeza de se intrometer na vida privada do empregador. Certamente não estava na carteira de trabalho a função de “correr o Tour de France”, a corrida mais longa, mais dura, mais brutal do mundo. Para garantir que aceitariam de bom grado a oferta, o barão fez uma proposta irrecusável. Os três comeriam apenas nos melhores restaurantes e dormiriam nos melhores hotéis do percurso. Depois de cofiar o bigode para alinhá-lo para o alto, o chefe acalmou os serviçais, dizendo regiamente a célebre frase: “eu não tenho a intenção de vencer”. Sua verdadeira intenção era, como revelou em seguida, simplesmente “pedalar por prazer”. Aparentemente a dupla titubeou, e o barão ampliou a generosidade. Prometeu a ambos que, vencendo ou não, como recompensa pagaria os quatro mil francos previstos como premiação ao vencedor do Tour de France pelos organizadores, uma pequena fortuna à época. E assim começou o Tour de France de 1907. A partida foi em Porte Bineau, às 5 h 30 min. Henri Pépin não estava muito preocupado com a largada e conversava calmamente com uma donzela, cumprimentando e jogando beijos para outras senhoritas com seu chapéu, adereço que o acompanharia durante

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toda a corrida. A previsão daquele dia era de oito horas de pedal até Roubaix e Pépin estava otimista: “vamos partir, mas lembrem-se, nós temos todo o tempo do mundo”. De fato tinham. O trio chegou nada menos que doze horas e vinte minutos depois do vencedor da etapa, Émile Georget, média que se repetiu nos dias seguintes e que pouco importava porque, naquela época, o Tour de France se decidia por pontos e não por tempo. Henri Pépin e seus domestiques não tinham pressa alguma, porque sabiam que um minuto ou dez horas depois não faria a menor diferença. No melhor estilo fair play, o barão acabou ficando conhecido de todos no pelotão. Brincava e ajudava quem precisasse. Mandava seus domestiques buscarem comida, água e todo o tipo de apoio. Jean-Marie Teychenne, um ciclista que competia naquele ano, foi encontrado pelo trio deitado numa vala. A expressão facial de Jean-Marie confessava: estava nas últimas por conta da tal fringale, a hipoglicemia que atinge o ciclista depois de horas sem se alimentar direito. O ciclista balbuciava e o que se podia ouvir foi um resmungar decidido: abandonaria a corrida ali mesmo. O barão não aceitou. “Não seja tolo! Junte-se a nós”. Limpou a lama do número 76 nas costas de JeanMarie e ordenou a seus serviçais que o conduzissem até a próxima pousada, onde deveriam limpá-lo e alimentá-lo como se fosse um convidado de honra


em seu castelo. Você deve estar pensando se eles concluíram a corrida. Não, claro que não. Pépin, como alguns outros ciclistas naquela quinta edição do Tour, definitivamente não estava ali pelo pódio, mas sim pelo estilo, pela glória que é participar do que ainda hoje é considerado um dos desafios mais árduos que a espécie humana já se impôs. Levaria ainda cem anos para surgir o “Eat, sleep, ride, repeat”, mas os genes da filosofia de amor ao ciclismo já estavam engatilhados. Bem... Na quinta etapa, Henri Pépin estava farto e disse a seus gregários, satisfeito: “estimados senhores, tive dias maravilhosos até aqui, obrigado”. E assim mesmo, sem mais nem menos, pagou o prêmio prometido e tomou o primeiro trem de volta para seu castelo. Maiores detalhes simplesmente se perderam no tempo. Mesmo ciclistas e jornalistas esportivos mais antigos controvertem em diversos pontos e até mesmo em boa parte da história. Mas uma coisa parece certa: foi com Henri Pépin que nasceram os gregários (domestiques), estes heróis do ciclismo que colocam o nariz no vento, sem ligar para as horas, os dias nem os anos que se passam, tudo para simplesmente poupar os líderes da equipe do esforço de vencer a resistência do ar, tornando o esporte algo além de mágico! 


EQUIPAMENTO © PEDALPEDLAR.CO.UK DIVULGAÇÃO © SPECIALIZED DIVULGAÇÃO

Revestimento externo em couro que rendeu um bom estilo a alguns desses capacetes. Perto de 1900.

ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS

CAPACETES No começo, ninguém se importava em usar capacete. Hoje parece tão óbvio! E mesmo com os acidentes, foi necessária uma tragédia para que alguém tomasse a iniciativa em mostrar ao mundo por que proteger a cabeça é tão importante. Texto Pietro B. Petris

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O oficial inglês Thomas Edward Lawrence.

nglaterra, 1935. As motocicletas já tinham uma certa popularização, e estavam em amplo uso por exércitos. Um dos usuários das barulhentas era Thomas Edward Lawrence, um oficial inglês que ficou famoso por seus relatos detalhados e realistas sobre a guerra no Oriente Médio, na qual ele foi uma peça chave como líder dos árabes rumo à independência. “Lawrence da Arábia”, como ficou conhecido, era um homem virtuoso, com uma ávida busca pelo conhecimento. Era inclusive, um cicloturista! Viajou pela França com sua bicicleta nos anos de 1906 até 1908.

andando de bicicleta, os quais ele não tinha visto devido à uma depressão na estrada. Lawrence tentou desviar deles, mas perdeu o controle da motocicleta e foi arremessado por cima do guidão. Como estava sem capacete, Lawrence sofreu graves lesões na cabeça, que o deixaram em coma.

Depois, Lawrence desenvolveu uma paixão especial pelas motocicletas. Até que no dia 13 de maio de 1935, enquanto Lawrence pilotava sua Brough Superior SS1000 de volta para casa em Clouds Hill, Inglaterra, se deparou com dois garotos

O exército inglês deu pleno apoio ao estudo do Dr. Cairns e logo equipou todos os seus soldados motociclistas com capacetes. Mais tarde, o governo inglês determinou como obrigatório o uso do capacete para os motociclistas. O modelo foi copiado por muitos países ao redor do mundo em pouco tempo. Ainda assim, nem todos os países seguem a rigor essa lei. No Estados Unidos, por exemplo, as leis mudam de estado para estado, e alguns preferem não privar a liberdade de quem quer andar sem capacete, o que pode ser visto em vários filmes provenientes da terra do tio Sam.

Hugh Cairns era neurocirurgião na equipe de médicos que cuidou de Lawrence. Após seis dias em coma, Lawrence faleceu. O Dr. Cairns ficou indignado com a grande perda. A partir disso, ele começou um estudo, denominado “Perda desnecessária de vidas por pilotos de motocicleta devido a ferimentos na cabeça”.

NO CICLISMO A primeira fase estava completa: mostrar que proteger a cabeça é muito importante. Mas ainda  © LICENSED UNDER PUBLIC DOMAIN VIA WIKIMEDIA COMMONS HTTPSCOMMONS.WIKIMEDIA.ORGWIKIFILELAWR.GIF

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CAPACETES, ELMOS E ETIMOLOGIA A palavra capacete é espanhola. Significa “peça de proteção para a cabeça”. Em catalão, a expressão é cabasset. Essas expressões derivam do latim capaceum, que era a denominação de uma cesta usada para colher frutas. Já a cesta ganhou o nome devido as expressões capãx e capãcis, que significam algo que pode segurar coisas, e de capere, que significa conter, apanhar. Já a expressão em inglês, helmet, dá a entender um diminutivo da palavra helm, que é traduzida como elmo. Os elmos eram capacetes de guerra da idade média usados por várias nações, principalmente europeias. A palavra helm é inglesa (para os saxões, frísios e antigos alto-alemães a palavra também é helm), mas tem origem na língua proto-germânica, que é a língua ancestral de todas as línguas germânicas modernas, como o inglês, alemão, holandês, dinamarquês, norueguês e outras. Nesta língua primitiva da qual existem poucas inscrições sobreviventes (nenhum texto completo dela sobreviveu) a expressão que deu origem ao elmo é helmaz, que significa “cobertura protetiva”. Indo ainda mais fundo, na língua que deu origem à língua proto-germânica, a língua proto-indo-europeia possuía as expressões kelmo-s (cobrir, esconder) e kel- (esconder, proteger) que pelo visto deram origem à expressão em proto-germânico.

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não haviam capacetes próprios para ciclismo. Isso não quer dizer que nunca tenham pensado nisso. Nos primórdios da bicicleta, muitos ciclistas tentaram fazer seus capacetes, ainda mais os que usavam bicicletas altas como os velocípedes. A maioria não funcionou. Com o aumento do número de ruas pavimentadas, de ciclistas e da velocidade que essas ruas permitiam que os ciclistas atingissem, aumentou também o número de acidentes com bicicletas, cujos casos fatais em grande maioria envolviam ferimentos na cabeça. Já nos anos 1880 surgiram capacetes feitos principalmente de cortiça, o melhor material disponível para isso na época. Alguns tinham revestimento em couro. Perto de 1900, os capacetes se tornaram muito bem ventilados: eram basicamente, uma faixa de couro ao redor da cabeça, com uma faixa de lã por cima. Depois mais tiras foram adicionadas por cima da cabeça, com revestimento externo em couro, o que rendeu um bom estilo a alguns desses capacetes. Até o começo dos anos 70 esses capacetes eram utilizados e chamados de “redes de cabelo” (hairnets). Segundo os ciclistas que os utilizavam, eles não eram muito eficientes contra impactos. Mas eles evitavam que você perdesse sua orelha ao cair e deslizar sobre o asfalto. Cientes da necessidade de proteção, clubes de pedal testaram capacetes de hockey e montanhismo, mas eles tinham vários problemas, como peso, tamanho,


obstrução da visão e falta de ventilação. Então foi dado um passo muito importante: em 1974, a Bell Capacetes introduziu o Bell Biker, o primeiro capacete desenhado e fabricado para ciclismo. Ele utilizava EPS – Poliestireno Expandido - como material de absorção de impacto e tinha entradas de ventilação cônicas. Logo depois, a Mountain Safety Research lançou seu capacete de ciclismo também, que seguia a linha dos capacetes de montanhismo, utilizando EPS. Testes posteriores apontaram que esses dois capacetes, junto com outro conhecido como Bailen Bike Bucket, um capacete de tamanho único, eram os mais eficientes disponíveis para ciclismo na época.

EVOLUÇÃO Os testes e a fabricação dos capacetes exigiram mais uma coisa: não havia padrões para fabricação de capacetes! Em 1984, o comitê norte-americano ANSI adotou a ANSI Z80.4, o primeiro padrão para capacetes funcional dos EUA. Na metade da década de 1980, os capacetes se caracterizaram por forros de EPS com cascos rígidos em ABS ou policarbonato. O próximo grande passo no conceito dos capacetes ocorreu quando a Bell lançou um capacete infantil, chamado “L’il Bell Shell”, que não possuía casco e era fabricado inteiramente em EPS, rendendo alto nível de proteção. Ele era baseado em um capacete produzido por pediatras para proteger a cabeça de crianças após cirurgias. No entanto, a Bell limitou a ideia aos capacetes

infantis, por achar que capacetes adultos obrigatoriamente deveriam ter um casco rígido. Aproveitando a deixa, em 1986 um designer chamado Jim Gentes desenhou um capacete de ciclismo com algumas entradas para ventilação e sem casco, formando o desenho Giro Sport para comercializar o conceito. Por ser leve, o capacete se tornou uma febre, e a Giro começou a vender grandes quantidades, mesmo com o preço elevado do produto. Mas a febre dos capacetes de EPS logo revelou falhas catastróficas dos equipamentos no primeiro impacto, já que o EPS tende a se despedaçar caso não haja algo que o mantenha no lugar. Por causa disso surgiram capacetes de EPS com capas, como redes de Nylon ou em Lycra. No começo dos anos 90, foi dado mais um passo com o retorno dos cascos. Dessa vez eles foram fabricados em PET e outros plásticos. O casco ajudava a manter o EPS no lugar com o impacto, além de fazê-lo escorregar sobre o asfalto ou pavimentos. Em pouco tempo esse método substituiu os outros, como os fabricados apenas em EPS com capas e os capacetes de casco rígido. O casco de PET era produzido separado do 

NÃO HAVIA PADRÕES PARA FABRICAÇÃO DE CAPACETES! EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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EPS e depois colado.

arredondados voltaram (ufa).

Outra inovação veio ainda na década de 90, por moldar a espuma no casco. O casco é colocado dentro do molde antes, e então a espuma preenche o molde. Como esse processo usa temperaturas elevadas, o PET não se qualificava mais para ser o material do casco. Outros materiais mais resistentes, como o policarbonato, assumiram a vaga. Os avanços também permitiram capacetes mais finos.

Um dos últimos estilos que entrou para o hall dos capacetes de ciclismo foi o capacete derivado do skate, aqui chamado de coquinho. Não só um acessório para proteção, esses capacetes inauguraram um campo para arte e estilo.

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No final da década de 90, houve uma onda de capacetes com designs pouco práticos, que estendiam a traseira do capacete, criavam elevações e curvas, em busca de estilo – estilo esse que custava o peso, o equilíbrio e a discrição do capacete. Mas com a virada do milênio os capacetes mais normais e

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MATERIAIS O principal material usado nos capacetes ainda é o EPS. ‘Ainda’ porque ele é o principal material desde a década de 1950 em outras modalidades. Quando usados outros materiais, continuam sendo em grande maioria espumas deformáveis. No final da década de 1980 surgiu o EPP – Polipropileno Expandido, uma


espuma muito parecida com o EPS, porém um pouco mais elástica, muito usada na indústria automotiva. Apesar de chegarem a ser fabricados e comercializados, os capacetes em EPP não decolaram devido a algumas características indesejáveis. A General Eletrics também lançou um composto, que eles chamaram de GECET, originalmente desenhado para outro propósito, mas que foi apreciado para capacetes por conseguir evitar quebras e rachaduras, permitindo capacetes mais finos e com maiores aberturas para ventilação.

O FUTURO DOS CAPACETES Nos últimos anos surgiram muitas alternativas ao EPS, mas ele continua sendo o chefe dos materiais para capacetes. Entre as alternativas surgiu até um capacete de papelão. A ideia pode parecer pouco promissora, mas imagine: papelão é barato, reciclável, e portanto, ecológico, ainda mais se comparado ao EPS, que leva séculos para se decompor naturalmente. Papelão ainda pode ser pintado facilmente, e se necessário, pode ser ajustado conforme a cabeça do piloto sem maiores dificuldades. Entre os mais recentes avanços no campo da proteção de cabeças estão capacetes que aguentam mais de um impacto. Isso na verdade não é novidade, mas a ideia nunca tinha sido plenamente desenvolvida e comercializada. Capacetes dobráveis também apareceram no mercado recentemente. Os capacetes ficam cada vez mais leves, mais eficientes, e esperamos nós, mais baratos. Ainda há muito o que descobrir sobre o comportamento dos capacetes e sobre os materiais usados neles. Boas cabeças ainda vão descobrir novos meios de proteger nossas cabeças. 




EXPEDIÇÃO Texto por Hans Rey / Fotos Stefan Voitl

EXPEDIÇÃO GUATEMALA DE CABANA EM CABANA

A lenda do mountain biking extremo, Hans Rey, e seu amigo e biker trial, Tom Oehler, exploraram as terras altas da Guatemala, na América Central, e foram ver de perto o projeto Wheels 4 Life, iniciativa apadrinhada por Hans que oferece bicicletas gratuitamente a pessoas em situação de pobreza no país. 

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evin, um jovem de 18 anos, mora na esquina de uma rua empoeirada na periferia de Antigua, Guatemala. Dois anos atrás, ele recebeu uma bicicleta Wheels 4 Life de sua escola, a Escuela Proyecto La Esperanza. Lá está em andamento um excelente programa educacional que atende pessoas extremamente atingidas pela pobreza na área da antiga capital guatemalteca. Ele salta na carroceria da nossa pick-up e nos guia até sua humilde casa, onde vive com a mãe, em um edifício de tijolo primitivo com uma porta de metal e sem água encanada. A sala é pequena, e ao lado de sua cama ele armazena seus poucos pertences: roupas, material

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escolar, troféus de futebol, e seu bem mais precioso: a amada bicicleta. É graças a esta bicicleta que ele pode ir à escola muito mais rápido e ser mais pontual, e sua família não precisa mais pagar todo dia o 1 quetzal (cerca de R$ 0,50) da passagem de ônibus. Kevin está prestes a começar um curso universitário para completar sua educação e trilhar um futuro mais digno. Sua paixão é o futebol, mas para chegar em casa ele anda de bicicleta por uma colina íngreme com facilidade e cruza estradas lidando com vacas e trânsito, como um mensageiro de bicicleta de Nova Iorque. Foi assim minha chegada na Guatemala. 


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Há alguns meses, o fotógrafo austríaco Stefan Voitl perguntou se eu gostaria de me juntar a ele e ao também austríaco piloto de trial, Tom Oehler, em uma aventura de bicicleta, ao mesmo tempo em que visitaríamos o projeto Wheels 4 Life. A ideia era montar uma coleção de fotografias da expedição para expor e vender; o dinheiro arrecadado seria direcionado para algum projeto da Wheels 4 Life.

A EXPEDIÇÃO Nós nos encontramos na Cidade da Guatemala, onde conhecemos o operador de turismo local, Matt, da

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Oldtown Outfitters. Ele sugeriu uma expedição remota “cabana a cabana” nas montanhas com altitude de 10 mil pés (3 mil metros). Durante os primeiros dias, fomos nos ambientando com passeios nas estradas de paralelepípedo da pitoresca cidade colonial de Antigua, cercada por vários vulcões ativos. E quando digo ativos, quero dizer fumegantes e expelindo lava. Passeamos pelo primeiro parque de bicicleta da Guatemala, o El Zur. Depois, transportados por um caminhão durante 45 minutos, chegamos na metade do caminho até o Volcan de Agua para abraçar um Downhill de 20 km através da 


"SEM ELETRICIDADE OU FOGO, ESTÁVAMOS CONTANDO APENAS COM OS COBERTORES FORNECIDOS NAS CABANAS."


Na primavera de 2015, Stefan Voitl exibiu suas fotografias em uma exposição em Viena, durante o Argus Bike Festival. Mais informações sobre Stefan em www.voi.tl Interessado em visitar a Guatemala? Entre em contato com Oldtown Outfitters: adventureguatemala.com Para saber mais sobre a Wheels 4 Life www.wheels4life.org Tom Oehler  /tom_oehler Hans Rey  /hansnowayrey

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exuberante floresta nublada e com um terreno de solo vulcânico solto e empoeirado.

começamos a nossa subida para fora do vale congelado para alcançar os primeiros raios de sol.

Alguns dias mais tarde, depois de cinco horas de carro pela zona rural, chegamos perto de Todos Santos, na base da Cordilheira Cuchumantanes / Highlands. O objetivo era percorrer o caminho através de Laguna Magdalena e Chortiz até a cidade de Acul Quiche. Durante três dias, dormimos em cabanas simples e fomos alimentados por famílias locais. As trilhas, quando tínhamos uma, eram técnicas e lentas. Muitas vezes tivemos que empurrar a bicicleta e caminhar em pequenas picadas. Entre fazendas distantes e dispersas e errantes pastores ao longo do caminho, raramente estávamos sozinhos, mas sempre longe da civilização.

Este foi um grande dia. A maior parte do percurso que realizamos nunca havia sido feita em bicicleta e em vários trajetos não havia nenhum tipo de rastro. Até a pequena aldeia de Chortiz tivemos que atravessar vários vales e cordilheiras, sempre a uma altitude de cerca de três mil metros. Nosso ponto mais alto estava em 3.200 metros. Curiosamente, neste local ainda há árvores que crescem nesta altitude e, felizmente, o ar não pareceu tão fino quanto nos Alpes.

Quando chegamos ao pequeno povoado de Laguna Magdalena, os moradores ficaram bastante surpresos aos nos ver descendo a encosta áspera com nossas MTBs. A aldeia foi nomeada assim por causa da bela lagoa e cachoeira que há perto da cabana onde estávamos. Assim que o sol se punha, eu colocava cada peça de roupa que tinha. Sem eletricidade ou fogo, estávamos contando apenas com os cobertores fornecidos nas cabanas. Depois de uma partida divertida de dados e um frasco de aguardente local, fomos para a cama antes das nove. Quando acordamos, as estrelas ainda eram visíveis no céu escuro e o chão estava congelado; não querendo perder muito tempo,

Por causa das fotos, filmagens, só chegamos ao nosso destino depois do pôr-do-sol. Além disso, a natureza técnica da trilha nos atrasou, mesmo sendo o Tom muito habilidoso e, com facilidade, fluindo em sua linha através dos rock gardens. Quando chegamos na cabana, duas mochileiras do Reino Unido e seu guia já haviam arrebatado a maioria das camas. Tivemos que nos dispersar com alguns colchões e cobertores no chão. Uma ducha estava fora de questão, e a água para consumo tinha que ser filtrada. Uma família local nos convidou para sua casa, com piso de terra e uma fogueira no meio da sala onde as mulheres preparavam uma refeição saborosa: caldo de galinha, macarrão, batatas e ovos; o mesmo seria servido no café da manhã do dia seguinte. No dia seguinte, a última etapa da nossa viagem começou com a longa  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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"BELAS TRILHAS, TERRENO NATURAL E UM SERTÃO GUATEMALTECO SELVAGEM FORNECIAM UM GRANDE CENÁRIO PARA A NOSSA AVENTURA." 

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"EU TAMBÉM ESTAVA FELIZ POR VER O NOSSO PROJETO, INICIADO HÁ TRÊS ANOS, GERANDO FRUTOS." 76

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descida para a Hacienda San Antonio, uma fazenda de queijo. A trilha me fez lembrar do caminho das tropas militares nos Alpes Italianos durante a Segunda Guerra Mundial. Encontramos alguns pastores e cavalos de carga que transportam suprimentos para as terras altas. Um dos cavalos se assustou com as rodas de rolamento e caiu no matagal. Tivemos que ajudar a remover a carga pesada do cavalo para que ele pudesse voltar à trilha; felizmente, o cavalo estava bem. Belas trilhas, terreno natural e um sertão guatemalteco selvagem forneciam um grande cenário para a nossa aventura.

PROJETO WHEELS 4 LIFE De volta a Antigua, fomos visitar a escola EFTC (Educação de Crianças) para conhecer mais sobre o projeto Wheels 4 Life e também as 31 crianças que receberiam uma bicicleta de nós enquanto estávamos lá. A Wheels 4 Life é uma instituição de caridade sem fins lucrativos que fornece bicicletas para pessoas que necessitam de transporte nos países em desenvolvimento. A EFTC é uma escola administrada por uma instituição de caridade sem fins lucrativos com sede no Reino Unido. O seu setup é impressionante. Eles não só oferecem educação a mais de 600 crianças, mas também dão acesso aos seus alunos aos cuidados de saúde, nutrição, transporte (como aconteceu com as bicicletas que doamos) e, quando

Confira o vídeo da aventura de Hans Rey e Tom Oehler pela Guatemala. revistabicicleta.com.br/rb/cf6

necessário, conselho psicológico e terapia para crianças e famílias que passaram por experiências traumáticas. Além disso, o apoio educativo inclui bolsas universitárias inserindo futuramente essas crianças em postos de trabalho e dando uma oportunidade para romper o ciclo vicioso da pobreza. Muitas dessas famílias vivem com menos de US$ 1 por dia e muitas vezes três ou quatro crianças partilham uma pequena sala e uma cama grande. Eu estava muito ansioso para ver Stefan e Tom apoiar minha causa e ser inspirado por ver pessoalmente a situação e as dificuldades que essas crianças estão enfrentando. Eu também estava feliz por ver o nosso projeto, iniciado há três anos, gerando frutos. Alguns dos estudantes da instituição agora estão frequentando a universidade, sonhando com trabalhos na área administrativa e na crescente indústria do turismo na Guatemala. Isto é muito gratificante!  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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CICLOTURISMO / CAPA Texto e Fotos Paulo de Tarso

PEDALANDO NA

ROLIÚDE DO NORDESTE

Em uma das regiões mais secas do Brasil encontra-se a cidade de Cabaceiras-PB, distante 180 km de João Pessoa, em meio à caatinga. Seus roteiros turísticos atraem turistas brasileiros e estrangeiros e são ótimos para a prática do cicloturismo rural, para aqueles que querem se aventurar com as magrelas.  78

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ocalizada numa das mais secas regiões do Brasil, a cidade de Cabaceiras é hoje a coqueluche do turismo rural na Paraíba. Trata-se de um município tranquilo, com cinco mil moradores, onde todo o mundo tem um pouco de artista e algo a dizer por meio da força criativa. Ali, em meio à caatinga seca e retorcida, roteiros turísticos de extrema beleza atraem brasileiros e estrangeiros dispostos a desvendar os segredos escondidos nas trilhas e rochas da região. Além de

O CENÁRIO É TÃO ORIGINAL QUE A CIDADE JÁ FOI ESCOLHIDA PARA SEDIAR PELO MENOS 30 PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS 80

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todos os destinos turísticos, como o já famoso Lajedo de Pai Mateus, a própria cidade de Cabeceiras é um destino cheio de atrativos. A arquitetura do século passado nos faz voltar no tempo com suas casas de cores alegres. O cenário é tão original que a cidade já 


 ONDE É

 MELHOR ÉPOCA

Na Região Nordeste, entre o Rio Grande do Norte (ao Norte), Pernambuco (ao sul) e Ceará (a oeste), próximo à cidade de Campina Grande (PB).

De abril a julho, até o sertão permanece boa parte do tempo com o céu carrancudo, mesmo que não caia uma gota de água. O resto do ano, como é de lei no Nordeste, é sol seguro.

 COMO CHEGAR João Pessoa recebe voos das principais capitais brasileiras e é o ponto de partida obrigatório para uma viagem para a Paraíba. A outra opção é pegar um voo até Campina Grande. De carro ou de ônibus, chega-se a todas as regiões do estado. A BR-230, que vai do Ceará, é a principal via de acesso ao interior passando por Campina Grande. De lá saem diversas estradas estaduais rumo ao sertão.

ONDE FICAR Hotel Fazenda Pai Mateus – www.paimateus.com.br – Para percorrer as trilhas locais, somente com guia do hotel.

 DICAS Pedalar no sertão sob um sol escaldante não é fácil. O ideal é acordar bem cedo, às seis horas da manhã e sair para pedalar enquanto o sol está fraco. Se for de avião a melhor opção é viajar sempre pela TAM, é a companhia que cuida melhor das bicicletas, além disso, é permitido levar a bicicleta montada.

 QUEM LEVA Sampa Bikers www.sampabikers.com.br EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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COISA DE CINEMA É PEDALAR POR LÁ, NO SERTÃO, EM MEIO A SINGLETRACKS foi escolhida para sediar pelo menos 30 produções cinematográficas, sendo que a mais conhecida é o filme O Auto da Compadecida. Por ser um “estúdio a céu aberto”, a cidade foi batizada de Roliúde Nordestina, identificação que foi colocada bem na entrada da cidade em um morro, quase como na famosa Hollywood americana... A Igreja Matriz é um dos lugares destacados no filme e merece uma visita. É em Cabaceiras, também, que se realiza a Festa do Bode Rei, um evento que atrai centenas de visitantes e coloca a cidade definitivamente no circuito nacional. Coisa de cinema é pedalar por lá, no sertão, em meio a singletracks, estradinhas espetaculares onde a caatinga tem ca-

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racterísticas diferentes de outras regiões do Nordeste: em vez da planície comum nesse tipo de bioma, há montes, áreas de lajedo e muitas rochas. Um imenso mar de granito se destaca na paisagem, com dezenas de blocos que há milhares de anos serviu de habitat para os índios que deixaram suas marcas. Você também vai estar em contato direto com a encantadora cultura poética e romântica desse povo hospitaleiro, humilde, trabalhador e incomensuravelmente rico na preservação de seus costumes, tudo isso de bicicleta! Mas é importante sair para pedalar bem cedo, pois a região tem o menor índice pluviométrico do Brasil e é muito quente. 





MULHER Texto Anderson Ricardo Schörner

O LADO ROSA DA FORÇA Sabe aquele ciclista raçudo, determinado, que desafia constantemente o seu limite? Ele está presente em todas as corridas da região, belisca um pódio aqui e ali, é a celebridade nas reuniões de família, quando entusiasticamente fala sobre a quilometragem pedalada no último final de semana ou aquela subida incrível onde venceu a última prova. Pois é, ele possivelmente conta com uma grande aliada, que embora não esteja nos holofotes, é tão determinada quanto abnegada, e não mede esforços para dar o suporte necessário ao seu companheiro!

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uitas vezes abordamos os benefícios e a diversão que é pedalar. Falamos sobre a adrenalina de uma trilha, a sensação de liberdade de um pedal na estrada, a emoção de uma competição. É realmente uma sensação indescritível, mas... Bem, haverá suor, lama, roupa suja, aquela hora que a fome bate, ou até um momento de desânimo quando a performance não está sendo alcançada satisfatoriamente.

© JOANA GASPAROTTO KUHN E BRUNA FRIEDRICH

É aí que surge, meio que anonimamente, o “lado rosa da força”: a namorada ou esposa. Elas se sacrificam para oferecer o conforto e o apoio necessário ao companheiro. Elas fazem a roda girar sem subir na bicicleta. Lavar a roupa, fazer o suporte durante a competição, oferecer aquela palavra de incentivo quando o desconforto bate, ou ter que lidar com o aborrecimento de um dia sem pedal são tarefas aparentemente simples, mas que fazem toda a diferença a favor dos ciclistas. Joana Gasparotto Kuhn, de Dom Pedrito/ RS, conheceu o universo da bicicleta quando começou a namorar com o atleta Marcelo Bendlin Leon “Rato”, atual Campeão Gaúcho Elite de MTB e Marathon 2016, e Vice-Campeão Brasileiro Sub-30 de MTB 2016. “Sou apaixonada por bicicleta há uns três anos”, diz ela, “e é incrível como a bicicleta mexe com as pessoas. Por exemplo, eu não sou a única na vida do meu namorado, ele tem ainda a Speed e a Mountain Bike. Você imagina como é ter um namorado compartilhado para três?”

A mesma situação experimenta Bruna Friedrich, de Caxias do Sul/RS. “Descobri o mundo mágico da bike há 15 anos, quando conheci meu marido, Jander Flores, e desde então encontrei muitas gurias que vivenciam o ciclismo da mesma forma: com algumas pedaladas, mas principalmente apoiando os nossos parceiros ciclistas, pois aprendemos que não há como competir com as bikes, então, as temos como aliadas”. Assim como Bruna e Joana, muitas mulheres se tornam a melhor amiga da bicicleta, pois pedalar torna o seu companheiro uma pessoa mais feliz. Por isso elas afirmam: namorar um ciclista mudou a sua vida por completo. “Todos os dias”, diz Joana, “meu namorado precisa treinar, ou seja, ele fica em torno de 2 h concentrado na bike, nem o celular atende. Além disso, ele fica mais umas horas por semana fazendo a manutenção das bicicletas. É líquido no pneu, cabo de freio que precisa lubrificar, câmara furada e por aí vai... Eu até ajudo, segurando a bike ou alcançando as chaves e a graxa, mas na maioria das vezes ele está tão estressado que precisa fazer isso logo para treinar depois, que fica num humor impossível. E o gênio dele quando chove e não pode sair pra pedalar? Quem 

NAMORAR UM CICLISTA MUDOU A SUA VIDA POR COMPLETO." EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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© JOANA GASPAROTTO KUHN E BRUNA FRIEDRICH

aguenta isso somos nós, inúmeras mulheres que lavam a roupa cheia de barro e que fazem apoio nas provas com água e gel. Nós estamos ali para estimulá-los ainda mais, e tenho certeza de que, mesmo quando não demonstram, eles valorizam muito o que fazemos”. E se você acha que fazer a assistência em provas ou treinos é moleza, veja o que Bruna diz a respeito: “quando falamos em apoio, parece uma ação muito fácil, mas só quem vive isso sabe o quão árdua é essa tarefa. No dia a dia, temos que estar atentas à alimentação dos atletas, auxiliar na manutenção das bicicletas, ter cuidado com os equipamentos, lavagem das roupas, na maioria das vezes super embarradas, além de ter que dar aquele apoio psicológico para que façam um bom treino. Até que chega o grande dia: a competição, dia da equipe de apoio

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© JOANA GASPAROTTO KUHN E BRUNA FRIEDRICH

acordar cedo, viajar, se informar do percurso da prova, dos melhores pontos de apoio, preparar toda a suplementação, e como eles são indecisos, temos inúmeras opções de gel e garrafas para que nada falte neste momento de tensão. Após isso, temos que tirar fotos da largada e correr para os pontos de apoio, ficarmos atentas aos nossos atletas, tirar mais algumas fotinhos, marcar os tempos para informar a eles como está o desempenho e, então, correr ao lado da bicicleta, em uma subida, trocando as garrafinhas. Logo após o apoio, ainda corremos para tentar tirar aquela foto da chegada. Em meio a tudo isso, ficamos na torcida para que estejam indo bem, pois sabemos que o bom humor deles depende disso. Logo após acontece a premiação e as despedidas. Retornamos para casa exaustas, e mesmo não sendo as estrelas principais do evento, amamos o que fazemos. Somos várias mulheres, que moram em locais distintos, que vivem no dia a dia situações muito


parecidas e que se encontram para apoiar seus atletas, celebrar a amizade, compartilhar conhecimento, conhecer lugares diferentes e dar muitas risadas”. Às vezes, elas sentem como se estivessem depois das bicicletas na escala de prioridades. O dinheirinho que sobra, por exemplo, vai para a coroa nova ou para a corrente, mas nada substitui o sentimento de parceria entre o casal, segundo Joana: “eu não bebo nada se ele não beber. Aí, mesmo numa janta apenas com as amigas, o garçom pergunta o que você vai beber, e é tão automático dizer ‘suco de laranja’ ou ‘água com gás’. Eu mudei muito por ele. Tenho me alimentado melhor, tenho optado por dietas menos calóricas, e exercitado o corpo. São escolhas que fiz, porque ver o rosto dele ao final de uma prova, conversando com os amigos sobre como passou pelo Rock Garden,

QUANDO ELE VOLTA PARA CASA DE UM TREINO, ELE PARECE MAIS SERENO, EM PAZ CONSIGO MESMO.” ou como alcançou o pelotão escapado com tanto vento, com um sorriso de felicidade, não tem preço. Por um sorriso assim, de orelha a orelha, vale qualquer esforço. Às vezes fico com ciúmes 

© THAÍS PIAZZA ROSSI

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‘delas’. Por outro lado, quando ele volta para casa de um treino, ele parece mais sereno, em paz consigo mesmo. O ruim é quando o tempo está para chuva, e ele lembra que precisa treinar no rolo. Nossa, aí sim é tenso. São altos e baixos, como em qualquer esporte, e dar apoio de moto durante os treinos, o seguindo e vendo o progresso conquistado é recompensador, porque estar ao lado dele em um universo tão saudável e que o deixa feliz é o principal motivo de eu ainda dizer: ‘eu vou contigo’, ou ‘não esquece o gel’. Outra consideração importante é que a gente vai pegando gosto pelo esporte, e eu até já estou querendo uma bike. Além de tudo isso, estar com ele me dá a oportunidade de conhecer pessoas

maravilhosas nesse meio, com mulheres que fazem o mesmo que eu, lavam roupas cheias de barro, levam sanduíche e isotônico nas provas, gritam e desejam força nas subidas, e que acima de tudo, se divertem, conhecem lugares incríveis e amam os seus atletas e o esporte que eles escolheram”. Na próxima vez que sair para pedalar, com a roupa limpinha e as garrafas abastecidas, lembre-se de valorizar a sua companheira, que com muita determinação e compromisso, faz todo o possível para vê-lo na bicicleta, feliz, e comemora como se fosse ela própria a brilhar, cada vez que você expande seus próprios limites! 



SUPERAÇÃO

É SEMPRE TEMPO DE RECOMEÇAR A história de uma atleta que experimentou a pior queda que qualquer ciclista pode ter em sua trajetória: a queda da vitalidade. Uma história de recuperação baseada no apoio do amor.  Texto Eduardo Almeida Colaboração Amélia Demarque Fotos Arquivo Pessoal

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© JOANA GASPAROTTO KUHN E BRUNA FRIEDRICH


H

á certo tempo eu não pedalava na companhia de Everson e Mônica, pois durante um período, um fato de saúde impediu nosso convívio. Ter a companhia desse casal passou a ser meu sonho em minhas pedaladas. Por isso quero relatar a experiência que tive no carnaval de 2017, no qual pude ver o encerramento de um período complexo, de ajustes para uma vida completamente diferente e com novos conceitos, desejos e metas, ser finalmente concluído. A história é sobre Mônica Ferreira Furtado, que reside atualmente na cidade de Macaé e tem um grande ensinamento a dar para todos nós sobre força de vontade, história de amor e, principalmente, vontade de viver. Para colocar em uma boa sequência, vamos aos fatos como se deram. Em 2010, Everson Furtado, seu marido, estava com sobrepeso, passou por sinistro médico, sendo hospitalizado duas vezes, e então resolveu pedalar para conter um problema de pressão alta. Para fazer companhia ao seu marido, também por convite de amigos, Mônica comprou sua primeira “mountain bike” e pedalou em novembro desse mesmo ano, pela primeira vez, num pedal de estradas de terra. O casal começou a participar de várias pedaladas em grupo, iniciando uma vida completamente nova, com prática regular de atividade física, controle alimentar e regra de horários. A saúde de Everson já estava se equilibrando e a vontade de

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pedalar do casal foi aumentando. Em março de 2012, enfrentou seu primeiro desafio: subiu o temido “Pedacinho do Céu”, trecho conhecido que vai do Portal do Sana até o cume de uma montanha, na serra macaense. Ao descer, Mônica levou seu primeiro tombo de bike, com alguns pequenos ralados e boas risadas. Em maio de 2012, na segunda vez que participou do “Agulhas Negras MTB Cup”, em Resende-RJ, Mônica fez sua inscrição na categoria “Feminino Light”. Após alguns quilômetros de prova, encontrou seu marido Everson sentado ao largo da trilha, esperando ambulância, que prontamente disse para ela: “Pode ir, estou bem, só atropelei uma vaca. Vai embora”. E Mônica seguiu, ainda que preocupada, até cruzar a linha de chegada. Uma boa surpresa aconteceu quando seu nome foi chamado para subir ao pódio em primeiro lugar na sua categoria. A felicidade tomou conta, o gosto da vitória fez com que a vontade de treinar de forma regular viesse à tona. Em 2013, ela enfrentou seu primeiro desafio de dois dias de pedal quando participou do “De Macaé para os Braços de Dercy”, no qual os ciclistas percorrem estradas e trilhas, em torno de 110 km por dia, subindo serras e até mesmo atravessando rios com água na altura da coxa. Mas para Mônica, não eram só os treinamentos que valiam o esforço. Ela queria pedalar para curtir com Everson em locais interessantes. Nesse mesmo


Monica em sua primeira pedalada, 2010 

ano de 2013, foram para a Chapada Diamantina dentro de um pacote de cicloturismo e pedalaram por oito dias, totalizando 680 km. Trouxeram muitas experiências e recordações dessas férias. O casal entrou de cabeça no universo do ciclismo esportivo. Eles resolveram planilhar os treinos e montaram uma tabela de participação em eventos de corrida, contaminados por todo o tipo possível de benefícios que o ciclismo pode ofertar. Federaram-se como atletas e iniciaram uma séria jornada de treinamentos, focados na melhoria contínua do físico para obter bons resultados nas provas. Mesmo quando estavam fazendo pedaladas para curtir, o casal estava sempre junto: Everson sempre com poucas palavras, mas muito focado em ajudar sua companheira. Um casal sempre bonito de se ver, com cuidados mútuos e muita demonstração de carinho, sendo um exemplo para todos que os observassem. Nesse ritmo de competições e treinos premiados, o casal passou por provas como Big Biker em 2014, na qual Mônica ficou em segundo lugar no Feminino Sport. Nesse mesmo ano, começou a treinar XCO e participou também da Taça Brasil, em Rio das Ostras, ficando em sexto lugar na categoria Feminino Elite, uma grande surpresa para Mônica que, mesmo treinando na pista em casa, pois morava na cidade, não imaginava que fosse alcançar esse resultado. Nesse

ano, Mônica foi campeã de XCO e XCM no estado do Rio de Janeiro e quinto lugar no Campeonato Brasileiro de XCM. Os sonhos começaram a ficar mais altos. Para dar uma relaxada no calendário de competições, no ano de 2015, o casal foi para a Europa, junto com outros dois amigos, fazer um tour de motor-home e pedaladas. Chegaram à Alemanha, passearam pela Holanda, França, Itália, Suíça e retornaram para a Alemanha, pedalando nesses países, num total de 15 dias. No dia 15 de novembro de 2015, Mônica participou do Ecomotion, em Paulo de Frontin-RJ, estranhou uma intensa dor de cabeça e já não obteve resultado satisfatório, ficando em quinto lugar, atrás de adversárias com as quais já havia competido anteriormente e vencido. Durante os dias após essa competição, preparando pra voltar à rotina dos  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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treinos, já não se sentia bem. No dia 19 do mesmo mês de novembro, uma fatalidade colocou todas as conquistas de Mônica por terra abaixo. Ela teve uma trombose cerebral e em decorrência, um AVC hemorrágico. A suposição do ocorrido é o uso de anticoncepcional em conjunto com uma mutação do gene da Protrombina (responsável pela predisposição à trombose). Hospitalizada, entrou em coma por 10 longos dias. No dia 21 foi levada para a capital, Rio de Janeiro, e todo um universo de exames foi iniciado. A respiração autônoma estava parando e uma série de atividades corporais começaram a cessar. Everson começou uma busca intensa por médicos e exames que pudessem qualificar e orientar a possibilidade de reavivar sua esposa. Cada dia que se passava, era mais desesperador para ele, que só recebia notícias de que Mônica poderia não ter reversão do quadro, podendo entrar em estado vegetativo. No sétimo dia de coma, um médico procurou Everson e pediu que assinasse um termo de permissão para abertura do crânio de Mônica e realização do procedimento de traqueostomia, tendo em vista que a mesma poderia necessitar de respirador mecânico. Nesse momento, ele percebeu que tudo poderia estar acabado e sentia que somente se Mônica tivesse grande força de vontade de viver poderia sair desse problema. As jornadas médicas continuaram, até que no décimo dia, quando Everson

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 Campeã Feminino Light em 2012.

foi em busca do médico para saber se tinham aberto o crânio, recebeu a notícia de que Mônica teve uma melhora surpreendente e extremamente inesperada. Agora o jogo tinha condições de ser mudado e uma das maiores receitas aplicadas por Everson foi o amor e cuidado com sua esposa. Mônica abriu os olhos no décimo dia e saiu do coma, sem conseguir falar e se mexer. A partir do décimo quarto dia começou a reconhecer alguns amigos. E desse dia em diante, Mônica havia se tornado uma criança, que não sabia mais falar, andar nem executar outra função que antes executava. Everson começou a grande jornada de recuperação junto com a sua esposa, acreditando que poderia ajudá-la


a reverter esse quadro abismal. É interessante ressaltar que Mônica nos revelou que no dia que reconheceu Everson, assustou-se ao vê-lo, pois de alguma maneira, em suas projeções mentais durante o período do coma, conseguiu pensar que ele já estava com outra mulher e que ela estava há muito tempo naquela condição. Durante os dias em que estava voltando do coma, Mônica percebeu que seu braço direito não funcionava, não conseguia ter visão completa pelo olho direito e já se imaginava ter perdido tudo, inclusive Everson. Para sua surpresa, estava ele lá, firme e forte ao seu lado, pronto para ampará-la durante os dias que viessem suceder. E passados 24 dias, Mônica saiu do hospital, foi para casa e já esboçava algumas palavras, embora pouco lembrasse dos nomes das pessoas e coisas. Everson guardou a bike de competição da Mônica em sua bag e a escondeu. Uma grande incerteza bateu sobre se um dia poderia vê-la pedalar novamente, pois não tinha mais nenhuma reação e reflexo. Toda uma série de acompanhamentos foi iniciada, começando a dar os primeiros passos, com ajuda de andador. Até mesmo uma caminhada num local barulhento, poluído, vendo pessoas apressadas, situação que para qualquer pessoa normal era desagradável e corriqueira, para Mônica era motivo de grande incentivo, pois ela sempre declarava: “estou viva!”. Diante dessa constatação, todas as concepções

da sua vida tinham se alterado e ela percebeu que estava no “segundo tempo da vida, como uma dádiva ofertada por Deus”. E sua missão a partir daquele momento era a de aproveitar cada dia, de forma diferente e melhor. Durante um bom tempo, começou a reaprender a falar, escrever, andar, aproveitando tudo isso para rever todas as prioridades da sua nova vida. E o casal que sempre foi unido, estava ainda mais unido. Everson passou a auxiliá-la e acompanhar todos os procedimentos de recuperação, intercalando com o seu trabalho. E assim foi, até que o acompanhamento médico liberou as caminhadas na praia e rapidamente Mônica começou a melhorar seu físico, até que iniciou suas trotadas na areia. Em setembro de 2016, Everson levou Mônica para o Parque Estadual de Ibitipoca, em Minas, para andar a pé pelas trilhas. E assim Mônica passou ao seu novo momento de superação de desafios pessoais, em novo nível, onde cada passo era uma vitória. Após um pedido especial ao médico que a acompanhava, Everson montou a bike de competição e levou Mônica para a ciclovia da orla da praia para que ela pudesse reaprender a pedalar como uma criança que vai desafiar-se sem rodinhas pela primeira vez. E para a grande surpresa de Everson, ele a viu equilibrarse sobre a bike e pedalar novamente pela primeira vez depois de um ano parada e sem chances de voltar a essa atividade. Nesse momento, todas as perspectivas se reacenderam. Apesar do medo da  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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 Retomando as técnicas de pedalar em singletrack, Mônica esbanja alegria e gratidão por onde passa.

NÃO EXISTE O FIM. CHEGAMOS A ETAPAS DA NOSSA VIDA QUE ACHAMOS NÃO TER CAMINHO PARA SEGUIR. CHEGAMOS A PENSAR QUE NÃO SABEMOS O QUE FAZER, FICAMOS SEM CHÃO. MAS ISSO PODE SER APENAS O INÍCIO DE UMA NOVA ETAPA. 98

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visão incompleta, do equilíbrio ainda comprometido, ambos perceberam que era a oportunidade de voltar tudo ao que era antes. Mônica foi iniciando suas pedaladas, até que em dezembro de 2016, para surpresa de todos os amigos de pedal, fez seu primeiro passeio de MTB, passando por locais tranquilos e mais planos, mas voltando a transpor um pequeno singletrack. Era só alegria e intensa satisfação para todos. E com apoio de Everson, foi retomando, aos poucos, suas pedaladas e começou a subir morros e pequenas serras, melhorando seu condicionamento. Para mim, foi uma grata surpresa quando combinei com Everson que Mônica viria para Minas, para escalar as montanhas e passear pelas trilhas da região. Seria o meu momento de vivenciar esse retorno à vida, de conversar e aprender muito


sobre vontade de viver, de reagir, de mudar a história e me tornar uma pessoa agradecida às condições oferecidas para trilharmos os nossos caminhos. Hoje vejo Mônica falando quase normalmente, com apenas alguns lapsos de palavras que insistimos, como auxílio, em completar e terminar sua fala. Para ela é bom, pois vai lembrando de como empregá-las. Tive a oportunidade de jogar com Mônica jogos lúdicos, que normalmente são jogados por crianças, mas que para ela voltou a ser inédito e saudável para sua recuperação. Pude compartilhar momentos nos quais ficamos conversando sobre todo esse susto que o casal passou, principalmente ela. Para coroar, uma boa pedalada, conforme prometido. Fui planejando e conversando com Everson sobre quais as condições do pedal, até que ele disse: “pode ser casca que ela vai dar conta”. E assim foi: percorremos 68 km, mais de 1.470 m de altimetria acumulada em Garmin, passando por uma descida técnica na trilha do Feixo, uma subida técnica pela trilha de pedras na Serra da Cruz, uma parada para almoço em Tuiutinga e uma subida pela Serra do Galba, até passar novamente por Dores da Vitória e retornar ao Sítio Ventania. Fui acompanhado de Amélia Demarque, que também tem mutação semelhante à da Monica, formatando dois casais pelas estradas de terra, trocando informações sobre esse assunto. É realmente emocionante ver toda essa transformação de perto, com tanta vontade de viver e de agradecer essa

nova oportunidade de vida. As próximas aventuras do casal serão a “Volta do Brigadeiro” em três dias e o trecho de Diamantina a Ouro Preto, da Estrada Real, em cinco dias. Mônica nos deixa a seguinte mensagem: “não existe o fim. Chegamos a etapas da nossa vida que achamos não ter caminho para seguir. Chegamos a pensar que não sabemos o que fazer, ficamos sem chão. Mas isso pode ser apenas o início de uma nova etapa. Cheguei a dizer para o Everson que se eu não conseguisse enxergar normalmente, devíamos comprar uma Tandem, mas eu sabia que eu queria voltar a pedalar. Eu acreditei que poderia viver tudo novamente e lutei por toda essa mudança dentro de mim, quando nem mesmo meu corpo me obedecia. Mas a nossa mente pode mudar tudo. Quando meu cabelo começou a cair, não imaginava mais que seria o fim, apenas achava que seria transitório. Quando as palavras me faltavam, deixei de ficar ansiosa e comecei a ouvir a forma como as pessoas completavam a frase, e para mim, estava ótimo da forma que elas falavam. Nunca mais me desesperei. Eu tinha fé que tudo ficaria normalizado. A família foi a chave para que tudo ficasse ajustado, pois eles também acreditavam na minha recuperação e auxiliavam nesses processos. Se eu tiver que falar com alguém sobre o que eu passei, o que eu quero que as pessoas saibam é que sempre existirá um caminho para seguirmos, e devemos ter forças para correr atrás daquilo que temos como foco. E o maior meio pra conseguir toda essa reversão foi a fé em Deus”.  EDIÇÃO DIGITAL 05 MAIO - JUNHO 2017

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