BLECAUTE Uma Revista de Literatura e Artes
A LEITORA - Alberto Lacet
Ano 3 – Nº8 - MAR. 2011
BLECAUTE Uma Revista de Literatura e Artes Campina Grande (PB) – Ano 3 – Nº8 – Mar. 2011
ISSN: 2238-930X
Copyright © 2011, Núcleo Literário Blecaute • All Rights Reserved. É permitida a reprodução total ou parcial desta edição de Blecaute: uma revista de literatura e artes; Os textos ou fragmentos de textos, quando reproduzidos, devem ter suas referências (autoria e lugar de origem da obra) devidamente citadas, conforme preconiza a legislação vigente no Brasil acerca dos direitos autorais (Lei 9.610/98); As opiniões emitidas nos textos são de responsabilidade exclusiva dos autores, sendo estes últimos responsáveis pela revisão e conteúdo de suas produções; É vedado o direito de qualquer cobrança pela reprodução desta edição. Periodicidade: Trimestral Capa: “A Leitora” – Alberto Lacet (PB) Dados técnicos: Óleo sobre tela (100 x 70 cm), pertencente ao acervo da Prefeitura Municipal de João Pessoa Site: http://www.albertolacet.com Contato: lacet.alberto@gmail.com Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio gaudencio_bruno@yahoo.com.br / @BrunoGaudencio Janailson Macêdo Luiz janailsonmacedo@hotmail.com / @jan_macedo João Matias de Oliveira Neto j.matias@msn.com / @j_matias
Apoio: Universidade Estadual da Paraíba 800 R454
Revista Blecaute: uma revista de Literatura e Artes, ano. 3, n. 8 (mar. 2010) – Campina Grande, 2011. 89 p.: il. color. ISSN: 2238-930X Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio, Janailson Macêdo Luiz, João Matias de Oliveira Neto. 1. Literatura. 2. Literatura – Ensaios. 3. Literatura - Contos. 4. Literatura – Poemas. I. Título. 21. ed. CDD
Site
http://sites.uepb.edu.br/revistablecaute
revistablecaute@gmail.com
Blog
@revistablecaute
www.revistablecaute.blogspot.com
ÍNDICE
EDITORIAL
Dias ainda melhores virão Os editores
CONTO
Amor de Deus Eduardo Sabino – MG
O SANTO OFÍCIO
Um mistério chamado Clarice Franklin Jorge – RN
POEMAS
Epifania, Rugidos e outros poemas Anna Apolinário – PB
ENSAIO
Tinha uma quadra no meio do caminho: Augusto de Campos homenageia João Cabral de Melo Neto
5 8 10 12
14
Fábio Vieira – PB TIRADAS DO BAÚ
Barriga de tanquinho Raoni Xavier – PB
POEMAS
Ars Aemulatoria Erico Nogueira – SP
CONTO
Sequestro João Matias de Oliveira – PB/CE
O AEROPAGO
Bojo, Fazendo Xixi e outros casos Valdênio Freitas – PB
POEMAS
CONTO
Zabé da Loca, Geografia e outros poemas Edson Bueno de Carvalho – SP A Virgem Sagrada Eduardo Quive – MOZ
História da arte: da pintura aos dias de hoje – A. N. Hodge Lauriceia Galdino – PB/RJ
22 23 29 34 37
42
47
ESTANTE
O escritor e seus fantasmas – Ernesto Sabato Janailson Macêdo – PB POEMAS
Almas Roubadas, Descalço e outros poemas Mauro Brito – MOZ
CONTO
A Pedra do Diabo Maxwell F. Dantas – PB
POEMAS
Acaso caos, Vestido de Medo e outros poemas Bruno Gaudêncio – PB
CONTO
A Laranja Ronie Von Martins – RS
ENSAIO
O Conto popular: apreciação lógica formal do contexto histórico, linguístico e cultural do narrador oral Félix Maranganha – PB/RN
49 51 54 64 68
72
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| Editorial – Março de 2011
DIAS AINDA MELHORES VIRÃO
A
LITERATURA PARAIBANA VIVE
um bom momento nesse início de 2011. Grupos,
eventos e parcerias literárias vêm sendo constituídas e/ou aprimoradas, todas com a presença da Blecaute, seus editores e parte considerável dos autores já publicados nos sete primeiros números da revista e da edição atual. Em janeiro, vários escritores naturais ou radicados na Paraíba deram vida ao CAIXA BAIXA, núcleo literário surgido a partir de uma ideia do escritor Roberto Menezes. Este, em princípio, propôs uma reunião informal entre autores do nosso estado que estivessem dando seus primeiros passos no caminho das letras, buscando uma melhor socialização entre os mesmos e a consequente elaboração de novas iniciativas no âmbito literário local. A ideia foi lapidada pelos poetas Jairo Cézar (publicado na 7ª edição da Blecaute) e um dos nossos, o Bruno Gaudêncio, que a transformaram no I Encontro de Jovens Escritores da Paraíba, ocorrido em 15 de janeiro no Bar do Elvis, João Pessoa-PB, arregimentando autores de diversos locais do estado. O evento, dentro da proposta de articular os novos escritores, tinha como objetivo a troca de informações e livros entre os participantes, visando à constituição de projetos coletivos, tais como antologias, círculos de debates e eventos. Durante o encontro, os autores e autoras presentes decidiram levar adiante a proposta de uma articulação literária mais sólida, o que acarretou na formação do CAIXA BAIXA, que, até o momento, já tem uma diretoria, avança em seu estatuto, conta com diversas redes sociais e possui um blog onde é divulgada a produção de seus membros: (http://caixabaixa.org/). Também constam dos objetivos do CAIXA BAIXA, para este ano, o lançamento de uma revista eletrônica e uma antologia com publicações, de diversos gêneros, de autoria de seus integrantes, a ser publicada pela FUNJOPE/PMJP. Os três editores da Blecaute estiveram presentes desde o início desse empreendimento cultural. Além disso, a revista firmou, nos últimos meses,
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algumas parcerias importantes. A primeira, com o Movimento Literário Kuphaluxa, formado por representantes da nova geração de escritores moçambicanos e responsável pela edição da Literatas: Revista da Literatura Moçambicana (http://revistaliteratas.blogspot.com/), editada em Maputo (MOZ). Assim como ocorre com o Núcleo Literário Blecaute, o Kuphaluxa, entre outras propostas, procura criar espaços para uma maior exposição dos escritores de seu país e mundo lusófono como um todo, principalmente entre aqueles autores que ainda buscam uma maior inserção nos meios de divulgação literária. Nesse 8ª número, a Blecaute traz produções de dois integrantes do Kuphaluxa e outras mais estão agendadas para as próximas edições. Passado o carnaval, aos que não curtem a época momina, acrescentamos: houve o nosso II Encontro de Literatura Contemporânea, realizado durante os dias de 06 e 07 de Março em Campina Grande − PB, durante o 20° Encontro da Nova Consciência. Toda a programação do evento pode ser conferida no site: www.elccg.blogspot.com.
Nos
dois
dias
do
evento,
58
e
64
pessoas,
respectivamente, passaram pela sala onde realizaram-se palestras, mesasredondas e lançamentos de livros, sempre privilegiando os saberes e produções locais, com a grata participação de convidados de outras localidades para o enriquecimento do debate acerca da trajetória dos livros − tema escolhido para mediar as conversas e palestras do encontro. Entre os/as conferencistas do evento, estava a poetisa e produtora cultural Mirtes Waleska, organizadora da II FLIBO − Festa Literária de Boqueirão −, que será realizada em Boqueirão (PB), entre os dias 24 e 27 de Março, e trará como homenageado o escritor paraibano Ariano Suassuna. Convidamos, então, os nossos leitores a participar da II FLIBO, inclusive das palestras de dois dos nossos editores, o Bruno Gaudêncio e o Janailson Macêdo, que darão suas respectivas contribuições na sexta-feira e no sábado. Para fechar a edição, outra grata novidade: travamos parceria com a Revista Científica e Cultural A Barriguda. Iniciativa de estudantes e professores do curso de Direito da UEPB, A Barriguda propõe-se a envergar o campo do saber jurídico também à dinâmica cultural da nossa cidade e do Estado. Para tanto, estivemos em reunião com os editores desta proposta para firmar parceria, da qual já surgiu, como um primeiro fruto, a coluna Blecaute, a
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ser mantida pelos seus três editores, dentro do site de A Barriguda (www.abarriguda.org.br). O ano mal começou e aguardamos não apenas a profícua continuidade dos laços já selados, das iniciativas ousadas e das produções independentes de nossos autores, mas também iniciativas e eventos que ainda virão: A Feira do Livro de Sapé e o Agosto das Letras, eventos promovidos, respectivamente, em Sapé − PB − e João Pessoa, capital do nosso Estado. Dias ainda melhores virão. Boa Leitura!
Os editores.
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| Conto
AMOR DE DEUS
Por Eduardo Sabino
E ELE DISSE, “DEUS É O AMOR”. Falava desenhando figuras geométricas. O olhar de criança em embalagem madura. “Como o amor se manifesta?” Ele com boca aberta para engolir as perguntas para todo o sempre. Ele admirando coisas no teto invisíveis aos outros. “Podemos falar sobre Raíssa?”. Agora sim, a primeira vez das circunferências azuis e das verdes. Sem tesão, ele me devora, o fogo no olhar celeste. “Aconteceu alguma coisa com a Raíssa?”. Digo que não, “Raíssa estava bem”. Os ajudantes dão gargalhadas, gorilas desalmados. Insisto em saber sobre a namorada. E o rapaz tira folhas amassadas do bolso. Quer mostrar um poema que fez. Ajoelha e pede para eu fingir ser a Raíssa. Aceito. Ele começa: “Amor é fogo que arde sem se ver...” Emudece. Se inibiu com o riso dos gorilas. “Deixem-nos a sós.”, exijo. O mais gordo cruza os braços: “Temos ordens de ficar aqui, madame. Ele é perigoso”. Improviso na cara uns traços de bicho. Ameaço chamar a diretoria se ouvisse mais uma risada. Quem se assusta é o jovem. Está fazendo um origami com o papel, os olhos amarrados no chão, enquanto peço, mais uma vez, para ouvir o poema. Coloco de novo a Raíssa no meio da frase, “o poema da Raíssa”, e os faróis se acendem de novo para ele encarnar aquele andrógeno de Camões e Dom Quixote. Só o coração de um louco pode sentir certas coisas. A poesia que vem desaparecendo do mundo se esparrama pelos corredores dos hospícios. Lá fora os números adestram as palavras, o sexo tapa o sexo com a máscara do amor, os catálogos de compras se estabelecem como os dicionários dos novos românticos. E aquele homem soltando estrofes de Camões como bolhas de sabão... Sou toda ouvidos. E coração. O caso dele não dói mais. Estou presa aos versos por vontade, num
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contentamento descontente, a solidão dos centros urbanos exalando da pele. O mito do plágio não tem mais nome e identidade. O jovem é Deus, é Camões, quem bem entendesse. Um beija-flor sugando néctar da merda para oferecer à Raíssa. Ao final, recompenso Quimões com duas ou três salvas de palmas. Ele sorri, “Raíssa vai gostar, não vai?”. O poema poderia animá-la, quem sabe? “Mas não há nada errado com seu amor?”, quero saber. “Você se sente correspondido?” “Não preciso ser...” Um mártir abobalhado. A avaliação psicológica é um encontro com o crucificado. Ele parece ter o poder de amar o céu, a terra, as pedras e os outros não amam nem as mães. “César!”, “César!”. Falo o seu nome e os olhos azuis estão de volta ao teto. “A Raíssa é pequena e frágil, César. Não escolheu estar com você!”. Ele se levanta. “Eu dou a vida a ela!”. O chute na cadeira. O dedo apontado para mim. “Eu dou a vida a ela, doutora!”. Os seguranças o agarram. Aplicam a injeção no braço e o colocam na maca. Ele adormece cortando em trindade o seu Deus: “Ra-ís-sa, Ra-ís-sa”. Fico sozinha na sala. As mãos de gelo seco voltando à estabilidade. Nada é tão assombroso quanto o ódio de quem ama. Oito horas de trabalho chegam ao fim. Pego o celular na bolsa e confiro: nenhuma chamada não atendida, nenhuma mensagem. A caixa de entrada do aparelho é um cemitério eletrônico. Sem noção do mundo, enviei três frases apaixonadas para o cafajeste. Abro o cofre e tiro de lá alguns objetos. Desligo a câmera na parede e tranco a porta. Só para carregar, sem medo, a boneca nos braços, alisar os cabelos de nylon, encarar os olhos de plástico. É feita de pano, a Raíssa, mas eu a invejo.
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EDUARDO SABINO (Minas Gerais) - Escritor e Jornalista. Autor do livro de contos Ideias noturnas: sobre a grandeza dos dias (Novo Século, 2009). Editor do blog de literatura Caos e Letras: www.caoseletras.com. Já colaborou com diversas revistas impressas e digitais como Cronópios, Germina, Plurale, Observatório da Imprensa, entre outras. O conto Amor de Deus integra livro inédito do autor.
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| O Santo Ofício
UM MISTÉRIO CHAMADO CLARICE
Por Franklin Jorge
NUMEROSAS
REEDIÇÕES
− e a publicação contínua e regular de livros sobre Clarice
Lispector − reiteram a grandeza de sua obra, cada vez mais lida e discutida, dentro e fora do Brasil. Nascida na Ucrânia, numa pequena aldeia, aqui aportou com apenas dois meses de vida, criando-se até os doze anos em Maceió e Recife, onde morou num cortiço da cidade velha e conheceu a solidão e a fome. Morreu prematuramente, de câncer, aos 57 anos, no Rio de Janeiro, em 1977. Conheci-a já erigida em mito e aureolada de mistérios, vivendo e escrevendo, a poucas quadras de minha casa. Lembro-me que a li, tardiamente, numa pequena coletânea de contos seus – “Os mistérios da rosa” --, uma publicação de bolso em papel-jornal, de baixo custo, destinada a estudantes. Ah, antes eu tentara ler seus romances “A maçã no escuro” e “A cidade sitiada”, porém confesso que não consegui ir até o final, por causa da extremada subjetividade e complexidade do seu pensamento. Porém, apesar desse começo malogrado, jamais desisti de Clarice, até que mergulhei em seus contos e não parei mais. “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” foi o seu primeiro romance que li do começo ao fim, numa tarde, na casa de minha avó, em Natal. Em seguida li “A Paixão segundo H.G.” e todos as suas obras já publicadas ou que apareceram depois, inclusive postumamente. Foi Hélio Tavares, depois procurador federal, quem primeiro me encorajou a ler Clarice, após meu fracasso inicial, e emprestoume “Uma Aprendizagem...”, que acabara de sair. Creio que cheguei a possuir todos os seus livros e os primeiros que se escreveram a seu respeito. Ela me deu, através de sua obra, uma idéia da grandeza e da originalidade da literatura brasileira.
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Eu me lembro que, ao chegar ao Rio, a caminho de casa, comprei e li dentro do táxi a sua crônica semanal publicada no Jornal do Brasil, naquele dia, coincidentemente, inspirada em Lúcio Cardoso, por quem ela fora apaixonada, segundo vim a saber depois, ao participar do círculo que subsistia em torno da memória do autor de “Crônica da
casa assassinada”, do qual Maria Helena e
Walmir Ayala eram os nomes mais eminentes desse fervoroso culto. Esse texto de Clarice foi depois transcrito em “A descoberta do mundo”, que possuí e me foi roubado com outros livros de minha biblioteca, vendidos na pedra dos sebos de Natal, nos anos noventa do século passado [assunto, aliás, que daria uma boa crônica não tivesse eu que mexer em merda...]. Meu Deus, agora noto que este espaço está acabando e não escrevi nada do que pretendia dizer sobre Clarice, uma autora que evidentemente não cabe numa crônica, nem mesmo numa enciclopédia, tamanha a complexidade do que escreveu em meio às dificuldades e privações da vida cotidiana, que para ela foi um desafio permanente, pois, afinal, em pleno dia se morre. Talvez, antes do ponto final, ainda possa acrescentar quanto era admirada, por exemplo, por Luisa Mercedes Levinson, grande escritora e por muitos anos minha amiga, considerada pela critica portenha e espanhola “a Clarice Lispector da Argentina”, a quem um dia presenteei com um exemplar de “Aonde Estivestes de Noite” ou de “A Via-crucis do Corpo”, não lembro ao certo, cujas páginas internas recobri com uma fina camada de ouro em pó, um presente do meu pai que eu trouxe comigo de minha temporada no inferno da Amazônia... Sei também que costumava beber café com coca-cola, para não dormir, e adorava galinhas, que considerava bichos quase humanos, inteligentíssimos. Há em um desses inéditos, mais precisamente em “Os Diários do Rio”, uma página curta que Jorge Antonio escreve sobre um encontro de Caio Fernando Abreu com Clarice, numa rua do velho centro do Rio de Janeiro. Surpreendemos a escritora conversando com um camelô, naquela parte do centro que conhecemos como “Saara”, uma espécie de feirão do Alecrim, porém mais pitoresco e civilizado. ______________________________________________
FRANKLIN JORGE (Rio Grande do Norte) - Escritor e Jornalista. Vencedor do Premio Luis Câmara Cascudo em 1998, com o Livro: Ficções Fricções Africções (Mares do Sul, 1998). Edita o blog O Santo Ofício: http://www.franklinjorge.com/
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| Poemas
POEMAS DE ANNA APOLINÁRIO
EPIFANIA
Grafito em tua alma Um verso vermelho Serpe sibilina Estilhaço de estrela
Tatuo em tua boca Que mordo com rimas A flauta de fogo Da minha poesia
RUGIDOS
Sombras de beijos faíscam em minha nuca Arquejos percorrem meu pescoço Minha boca é um cóagulo lírico Sutura que sangra poesia Minha pele se emaranha em flamas E o meu olhar se enlua
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TRAVESSIA Minha verve se contorce num beco escuro Atiro paredes sobre os meus soluços Vandalizo caminhos com os meus pés mudos Brinco insana sob labaredas
DISSONANTE Sinfonias de soluços regem meu corpo Os olhos destoam lágrimas torpes Os dedos rangem versos rotos E o coração estilhaça um grito de açoite
SAFIRA Sou toda pétalas Papoula em riste Doce libélula Me polinizou
Sou toda pétrea Rara safira Que a mão do amor Enfim lapidou
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ANNA APOLINÁRIO (Paraíba) - Poeta. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba. Membro do Núcleo Literário CAIXA BAIXA. Publicou em 2010, seu primeiro livro de poemas: Solfejo de Eros, pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores (Rio de Janeiro). Edita o blog Rosa na Redoma: http://rosanaredoma.blogspot.com/. Twitter: @annapolinario
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| Ensaio
TINHA UMA QUADRA NO MEIO DO CAMINHO: AUGUSTO DE CAMPOS HOMENAGEIA JOテグ CABRAL DE MELO NETO
Por Fテ。bio Vieira
Joテ」o/agrestes (1985)
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O
POEMA FOI PUBLICADO EM
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1986 no livro O Anticrítico e depois foi incluído em
Despoesia (1994, p. 77). É uma resposta ao poema “A Augusto de Campos”, escrito por João Cabral de Melo Neto, o qual inicia seu livro Agrestes de 1985 e faz uma homenagem a Augusto de Campos. Se tomarmos o poema apenas no sentido horizontal, teremos catorze “versos” hexassílabos, amarrados por mais de uma modalidade de rima. Entretanto, “João/agrestes” está disposto em quatro colunas compostas de um ou dois termos. Este expediente altera a percepção horizontal, ao mesmo tempo em que impõe e autoriza a leitura em sentido vertical do texto, quando articula o poema a partir de uma matriz polissêmica. A sintaxe de “João/agrestes” não é a que se apresenta nos poemas de OVONOVELO (1954-1960), em que a ligação verbal é quase ausente e o processo de leitura deve ser construído pelo leitor apoiando-se no jogo entre os substantivos e a organização espacial dos termos na página. “João/agrestes” está mais próximo do livro Stelegramas (1975-1978) (títulos recolhidos na antologia Viva vaia: poesia 1949-1979), especificamente do poema “Miragem” no qual as marcas sintáticas estão explícitas, além do aproveitamento da “página como unidade”, não mais como receptáculo pacífico dos versos enquanto medidas melódicas. Procedimento incorporado por Mallarmé em seu livro Um Lance de dados (1897), em cujo prefácio esclarece sobre a nova forma de organização espacial do poema. O poema está em forma de quadrícula, figura mais identificada à fase ortodoxa da produção de Augusto de Campos, a qual segundo Gonzalo Aguilar (2005) inserese entre 1956-1960, época caracterizava pela atuação programática dos poetas Noigandres: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O poema foi feito na década de 1980, momento em que cada membro do grupo já havia enveredado por caminhos individuais. E antes de tudo, fiquemos calmos, pois se tratando de Augusto de Campos qualquer classificação automática de sua obra pode levar a equívocos, cada poema de sua lavra deve ser visto como uma poética, na qual amplo repertório, regido por critérios sincrônicos, é colocado em circulação. O poema foi incluído na seção “Profilogramas” do livro Despoesia, literalmente, a projeção gráfica de um sentimento referente ao homenageado: um íconesentimental, ou uma qualidade primeira do artista em foco. Em “Profilogramas”, além de Cabral, são homenageados: Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Waldemar Cordeiro, Lygia Azeredo, entre outros. “João/ agrestes” plasma o
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sentimento desse amor/amizade (“philo, philia”) a partir da “quadra”: “monograma” da poesia de Cabral. Para Haroldo de Campos (2004, p. 81),
a quadra é a unidade compositiva mais característica de João Cabral de Melo Neto, não tomada como forma fixa (ou fôrma), mas como um bloco, como unidade-blocal de composição, elemento geométrico pré-construído, definido e apto consequentemente para a armação do poema.
Provavelmente, é no livro Quaderna, que há maior evidência do uso da quadra como “unidade”. No poema “A palo seco”, do livro Quaderna, as qualidades do canto flamenco são aproximadas ao modo de poetar conciso.
Cabral colheu de
maneira viva essa tradição do cantar seco, e espelhou-a em poemas: “não o de aceitar o seco/ por resignadamente,/ mas de empregar o seco/ porque é mais contundente.” (2003, p. 149). No cante hondo (canto fundo), a guitarra e a dança são coadjuvantes, o núcleo desse ritual cigano é o canto acompanhado com discretos acordes e palmeado contido. Expressão artística a quem Federico García Lorca dedicou ensaio: “Teoria e jogo do duende”. No poema de Augusto a quadrícula vai além da quadra, quando amplia as possibilidades da composição através da fragmentação das palavras e da multiplicação combinatória de leituras, autorizada pela organização matricial do poema. Da quadra cabralina ficou o ritmo do hexassílabo, o campo semântico reduzido, o jogo com palavras cotidianas, o afastamento da “dita poesia profunda”. Em “João agrestes” os quatro versos horizontais da quadra podem ser tomados como as quatro colunas verticais da quadrícula. Dessa maneira, o texto gera outros significados, além da sugestão de enxergar no quadrado da quadrícula o ícone da quadra: a unidade-quadra projetada na unidade-quadrícula. Lendo as quatro primeiras linhas das colunas na vertical temos: “uma fratura tão osso/ fala tão ácida tão/ tão ex tão osso/ faca posta aço só”. Veja que o aspecto do poema é mantido, desdobrando o texto em ambiguidade. Mesmo na sequência menos inteligível, o sentido é mantido: “tão ex tão osso”, o prefixo “ex-” significando “movimento para fora”. Por esse ângulo, o isolamento gráfico do prefixo “ex-” enriquece o texto, quando motiva a leitura nos eixos horizontais e verticais. O recurso reforça a imagem da fratura física “que está à mostra, à vista”, em convergência com a fratura da linguagem por metalinguagem, “fala fraturada”,
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qualificada por refletir e mostrar criticamente suas entranhas, expostas nas qualidades de “faca, aço e osso”. “Não uma poesia sobre poesia, mas uma poesia que empresta a linguagem de seus objetos para com ela construir o poema”, este comentário de João Alexandre Barbosa (2009, p. 108) acerca da metalinguagem em Cabral, poder ser estendido tranquilamente ao poema de Augusto. A primeira linha horizontal vale uma poética: “uma fala tão faca”. Fala/faca: menor variação sonora tanto maior variação imagética. Aproximação sonora e choque de imagens díspares. A imagem é criada apoiando-se na economia vocabular e no deslocamento das classes de palavras. A linguagem substantiva de Cabral é lembrada quando aciona o mesmo mecanismo de adjetivar por substantivos: “fala faca”, “osso osso”, qualidade potencializada pelo advérbio “tão”, que ao provocar ritmo e musicalidade nas primeiras quatro linhas, o faz sem se dirigir a qualquer verbo, tão somente ao realce da palavra-coisa, da palavrasubstantivo, processo que somado ao jogo de assonâncias e aliterações, evidencia a materialidade dos signos envolvidos. A aproximação sonora se dá através da imagem e da ideia contidas nesse movimento inicial. A “fala” é “faca”, a “fratura” é “ácida” e “aço”, o “osso” é “só”. A linguagem é cortante e carrega o rigor da condensação e da não dispersão. Simplicidade e despojamento atingidos pela concentração da imagem: fala/voz que mostra ao exterior suas qualidades de tutano, utilizando um campo semântico que amalgama som e sentido. A imagem dessa fala/voz substantiva permanece e é fixada pelo jogo sonoro: tão “aSO> osSO> SÓ”. Quando isola os prefixos e faz repetição de termos, o poema de Augusto lembra os jogos geométricos de Cabral. A exemplo das palavras: “bala, faca, relógio” do poema “Uma faca só lâmina”, contido em livro homônimo. Nesse jogo, ao retomar um termo, a palavra ganha novos matizes que fazem rebrilhar a concretude da imagem. Quando repete com mestria os termos, transforma a redundância em informação. Pois, alimenta a imagem com substantivos conhecidos, ao contrário de buscar apoio em uma imagem abstrata. Na repetição de grupos iguais, cria-se o espelhamento de letras: “osSO/SÓ”. Em seguida surge uma confissão em primeira pessoa que faz a fusão com a trajetória criativa do poeta Augusto. A ambigüidade é reveladora, na tensão do termo “ad verso”, que pode ser lido como: o não achar a medida concentrada da poesia do mestre, colocando-se na posição de discípulo “aquele que aprende”, e ao
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mesmo tempo, não achar contrário/adverso aquilo que o eu lírico faz, em relação ao mestre. Neste sentido último, as duas poéticas em questão, não se encontram em oposição, mas com acento convergente. Por extensão, acrescento que se trata de duas poéticas da “concreção”, termo cunhado por Haroldo de Campos para designar o processo geral da poesia entendido como um fazer a partir da valorização do material concreto da linguagem, e não restrito apenas ao movimento histórico da Poesia Concreta. A “concreção” não está muito distante da “função poética da linguagem” equacionada por Roman Jákobson (1971). Em ambas as tendências, a materialidade da linguagem torna-se evidenciada, recurso que dificulta a relação automática entre nome e coisa. Em outras palavras, através da valorização do significante, expressa pela função poética da linguagem, ocorre maior possibilidade de desautomatizar a arbitrariedade unívoca da linguagem. O diferencial da poética de Augusto mora na exploração radical e constante das áreas extraverbais do signo. É bastante sintomático que a palavra “concreto”, a qual tem grande valor referencial para a poesia de Augusto, surja após a reincidência da primeira pessoa: “eu procuro e (eu) não acho/ o ad verso do que (eu) faço”. A diferença entre as pessoas e os tempos verbais, afasta a identificação entre o “eu” e “o concreto” (terceira). Por sua vez, o “concreto” é identificado ao “outro”, equação que desestabiliza o processo de identidade, pois nessa comparação o “concreto” é prismatizado em múltiplos sujeitos. “O concreto é o outro” faz eco com a frase “EU é um outro”(“Je est un autre”), enigma expresso por Rimbaud na “Carta dita do vidente” (1871), na qual indetermina a unidade do “eu” enquanto persona e enquanto sujeito lírico. Ao parodiar Rimbaud, o trecho sofre desvio, desdobrando-se em “canto paralelo: “eu/concreto é um/o outro”. Dessa maneira, cria-se um campo de ambiguidade pela presença do chiste. É justamente nesse desvio psicológico que uma verdade pode ser revelada em tom descontraído. Quando o poema diz: “o concreto é o outro”, pode estar sinalizando liberdade de procedimentos e ampliação de repertório. Ainda que “concreto”, não é o que se limitou a identificar como “concreto”: redução do termo aos programas e manifestos da década de 1950 e consequentemente aos poemas que elidem as pessoas da enunciação. Ser concreto sendo o “outro” pode ser a devoração antropofágica do diferente, ou a apropriação de outras poéticas, de estrangeiras dicções, ou ainda a abertura para a “outridade”, termo caro a Octávio Paz (2003, p. 107):
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A outridade é antes de mais nada a percepção de que somos outros sem deixar de ser o que somos e que, sem deixar de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte. Somos outra parte. Em outra parte quer dizer: aqui, agora mesmo enquanto faço isto e aquilo. E também: estou só e estou contigo, em um não sei onde que é sempre aqui.
Fica evidente a tendência ao diálogo sincrônico com a tradição, incluído a liberdade de tempo e espaço.
Sem que se torne necessário explorar a mirada
existencial da citação de Octávio Paz, a noção sugerida é a de uma contemporaneidade total, um tempo em diálogo com todos os tempos, o “outro” pode ser a colheita das tradições vivas que permanecem vivas, e o poeta pode usá-las criativamente em seu labor. Neste sentido, o trecho pode ser reescrito: “o concreto é a outridade”. Augusto de Campos permaneceu como poeta concreto, pois incorporou a “outridade” em seu fazer. Foi o único do grupo dos poetas concretos que continuou sendo concreto ao longo dos seus 60 anos de sua produção. A verticalidade de suas criações atualizou a poesia brasileira e produziu um produto artístico de exportação, que levará certamente bastante tempo para que seja digerido e assimilado pelos leitores. O que atrapalha é congelar o termo “poesia concreta” aos pressupostos teóricos da década de 1950. Não podemos ser maledicentes e ficar repetindo que o plano piloto para a poesia concreta caducou ninguém viu “o fim do ciclo do verso”. Na obra de Augusto o verso continua vivo, principalmente no seu importantíssimo trabalho como tradutor de poesia. Para ler a obra de Augusto é necessário tomar o texto como linguagem. Jogo de símbolos que se abrem para os ícones não-verbais. Por essa ótica, o diálogo entre as duas poéticas referidas em “João/agrestes” não deve ser datado nem rotulado por visão estanque, mas por uma “poética sincrônica” (JÁKOBSON, 1971; CAMPOS, 1977) apoiada na evolução das formas artísticas. Num terceiro movimento, iniciado na aditiva “e” da linha 8, o coloquial abre-se em reconhecimento e carinho a João Cabral, região do poema dominada pela emoção do “sem palavras”. A imagem do abraço encontra reforço no “enjambement” entre as linhas 8 e 9 ( “ e não encontro nem palavras para o abraço”) e 13 e 14( “nunca houve um leitor contra mais a favor”). Neste dístico final a aproximação
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entre as duas poéticas é uma resposta explícita à última estrofe do poema de Cabral (2009, p. 28): “Envio-o ao leitor contra, / envio-o ao leitor malgrado/ e intolerante, o que Pound/ Diz de todos o mais grato;”. O verso 11: “o menos ante o sem”, talvez tenha capturado com economia aquilo que de mais característico está vivo na obra dos dois poetas: a concisão. Ou o processo de condensação, ao qual o poeta Ezra Pound (2001) indicou como uma das características medulares da poesia: “condensare”. O trecho traz um eco de dois livros de Augusto: O Rei Menos o Reino, e Poetamenos, e reverbera no trecho do “Poema-Orelha” de Drummond: “a poesia mais rica é um sinal de menos”. Imagem utilizada mais de uma vez por leituras acerca da obra cabralina. Linguagem substantiva, condensação imagética e sonora, fatores que para leitores desavisados podem soar como frieza e ausência de emoção. Aqui é o domínio do movimento inteligente, visto como uma dança entre sentimento e pensamento, não há dicotomia, “aquilo que em mim sente está pensando” (Fernando Pessoa). O poema sente pela rede dos seus significantes, e faz do pensamento, música rica de intenções. O bastão é passado do mestre ao discípulo. (Que luxo da poesia brasileira, nesse revezamento entre amigos, ter Cabral e Augusto na mesma raia, é mais que luxo é um prazer.) A raça desses poetas é a da interseção daquela qualidade sutil que se esconde mais do que se mostra, diz sem dizer explicitamente. Não é o cultivo da forma pela fôrma. O trabalho racional com o objeto lingüístico e de linguagem que é o poema já carrega a subjetividade em si, essa história de frieza da forma, é para quem não enxerga beleza no raciocínio. Informação também é beleza. Além do mais, não existe mesquinhez de sentidos, após o trabalho de freqüentar essa “quadra quadrícula”, a emoção é “redonda”, a imagem latente não cessa de projetar idéias sentimentais. O poema é uma máquina de imagens e emoções, mas ainda é uma homenagem àquele que fez da quadra pequena seu palco iluminado. Da voz para dentro, frequente no solo seco do sertão nordestino/andaluz, o seu canto de floração do Poema. Freqüentar esse quadrado pode trazer alento ou estranheza às almas. Dentro do quadrado há uma voz, dentro do concreto há um “eu” que procura, que não acha, que não encontra as palavras, e faz poesia com o “não”, o “sem” e o “menos”. Abraço entre as poéticas de mesma raiz: “distinta liga de aço”. Cabral preparou o verso-sulco para Augusto semear sua poesia. Augusto lavrou o deserto, explodiu o
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“versus” em: “ad, não, des, in, sem”, abriu possibilidades para que os mais jovens semeiem ideogramas nos jardins da poesia brasileira. Augusto homenageia o irmão mais velho modulando com a mesma harmonia. Apropriação criativa. Além de usar grupos semânticos bem próximos aos utilizados pelo autor de “Psicologia da Composição”, (faca, aço, osso) homenageia a oficina enfurecida de Cabral, com o mesmo expediente: a exploração da materialidade dos signos regida pela concisão.
Referências
AGUILAR, Gonzalo. Poesia Concreta Brasileira: As Vanguardas na Encruzilhada Modernista. São Paulo: Edusp, 2005. BARBOSA, João Alexandre. “Balanço de João Cabral de Melo Neto”. In: As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2009. CAMPOS, Augusto de. Viva vaia: poesia 1949-1979. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007. _____. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. _____. A arte no horizonte do provável. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. JÁKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971. MELO NETO, João Cabral de. Agrestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. ______. Melhores poemas de João Cabral de Melo Neto. Sel. de Antonio Carlos Secchin. 9. ed. São Paulo: Global, 2003. PAZ, Octávio. Signos em rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
______________________________________________ FÁBIO VIEIRA (PARAÍBA) – Ensaísta. Doutorando em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou vários ensaios em antologias e revistas literárias. Membro do Núcleo Literário CAIXA BAIXA. Autor do livro: Oriente ocidente através: a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski (Ideia, 2010). Twitter: @ffabiovieira
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| Tiradas do Baú
______________________________________________ RAONI [RAONI XAVIER] (Paraíba) – Ilustrador e quadrinista. Atualmente, prepara um livro de contos e dá vida às personagens Sirci e Lila (www.sircielila.com.br). Membro do Núcleo Literário CAIXA BAIXA e Clube do Conto da Paraíba. É um dos escritores que integram o NANO ROMANCE: http://nanoromance.blogspot.com/. Twitter: @raonix00
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| Poemas
ARS AEMULATORIA (Fragmento)
Por Erico Nogueira
“Que piano pesado”, pensei, quando li que na entranha um tumor (de tão cego um glaucoma) corroía a rainha, fundida em Enéias. Acenderam a lâmpada, então, da manhã, e os vapores noturnos lá fora cederam;
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mas cá dentro (a rainha pra irmã) “Já enlouqueço; sei que é sonho o que sonho – e não durmo, vigio; desde que ele chegou, foi entrando, mostrou quem e qual ele fosse, que braço, que face, pareceu-me, no sangue, no traje, um olímpico;
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há metais e metais: ele é a liga mais dura trabalhada no mar que marulha e martela; ah, não ter prometido o que já prometi – se viúva, passar quanto viva na tumba, e, morrendo, no leito, ser noiva de novo –,
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e agarrava, qual ímã, essa liga tão rara; minha irmã, te confesso: depois que um irmão abateu outro irmão, meu esposo, e seu sangue inda corre, inda cheira, inda mancha esta casa, só Enéias tocou minha corda mais funda:
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– mas não; não sei que digo; ou sei: que a terra se abra e me trague, ou bem relâmpagos me desintegrem, e eu desça ao Érebo, à perpétua treva, se eu, vergonha!, violar os votos que votei; até que chegue o dia da última viagem’.
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E a irmã: ‘Rainha e irmã, meu sol e meu espelho, a flor sem néctar, nem zangão, nem fruto: só, é horrenda aberração ao deus, é feio aborto, e às sombras do que foi – vê bem –, indiferente; ninguém, até então, fechou-te a cicatriz,
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nenhum dos generais, nem grego ou africano: mas contra quem te cura, contra ti, lutar por quê? não te dás conta, irmã, que terra é essa? desertos vêem-se ao sul, e a leste e a oeste vêem-se gente que bebe e nada em sangue – se é que é gente;
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os deuses, foram eles, sim, soprando a brisa, que as naus de Tróia, d’além-mar, trouxeram cá; darás à luz, irmã, e ao mundo, um novo mundo se a mão de Enéias te colher: e um mundo teu; então implora, pede, sacrifica, faz,
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e, maquiada e bela, enteia os convidados, enquanto o inverno acossa o mar, e chove pedra no mar cuja fundura vês, e mais ninguém’.
A rainha escutou: sem temor, sem melindre, assoprou sua brasa, assoprou, fê-la fogo;
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foram despoluir-se, primeiro, as irmãs, e, depois, vinho e sangue verteram aos deuses; (leio “Dido pulquérrima, tensa, tremendo, consulta as vísceras pulsáteis que oferece” e penso que esse verso bem agrade a um açougueiro
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e há um verso de Virgílio para cada qual); sacerdotes estúpidos: ai, de que adiantam promessas, templos, ritos a quem desvaria? enfiada na medula ũa agulha incandescente palpita em Dido como a lava num vulcão;
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infeliz, delirando, ela vaga, ela erra, ela foge co ferro fatal no seu flanco, como a corça, de longe, no bosque cerrado, distraída trespassa da frecha o pastor; agora abre os portões a Enéias, vai com ele,
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e ostenta quanta glória esplenda em ouro puro; agora solta a língua, agora cala, agora, o sol cansado e fosco, inventa outra audiência, e, louca, diz “Conta de novo os teus trabalhos”, e Enéias os dramatiza, dá-lhes som, ação;
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depois que se despedem, e a escura luz da lua tomba do céu, e as pálpebras, pesadas, tombam, só Dido rola só nos seus tapetes persas, e estando, escuta e vê quem lá já não está, e já pensa num filho, e o já pega no colo,
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e o amor que a desengana mal tenta enganar; “as torres de defesa estão pela metade, ninguém se alista, ninguém compra a minha guerra; os muros meio-erguidos, toda a obra ao meio, e andaimes que eu pensava fossem dar no céu”.
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Foi quando Juno a viu, e a peste que a roía: e, ainda que de peste um deus jamais se aflija, seu busto, duro pórfiro, (acho) amoleceu; ‘Cupido e tu’, falou a Vênus, ‘bravo, bravo; dois imortais, vencendo a carne mole e estúpida – mesmo real –, merecem, certo, o nosso aplauso;
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de Cartago a rainha é mais bela que tu? por quanto tempo mais? (que é o tempo para um deus?) ela surta, desmaia, até baba por ele; que tome, pois, a sua mão, e, como o Nilo,
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fecunde-a, irrigue-a, sob o sol que o chicoteia; não fôssemos assim, entre ônix e esmeralda, modelo inexeqüível do mortal cinzel, teu sangue a minha, o meu lavava a tua mão; dá-me-la cá; fechado?’; nem tola nem nada
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a rainha do Olimpo, a quem Vênus, de tola, ela sim, se fazendo, acedeu: ‘Que demente quereria fechada a mão que vejo aberta? a sorte, o labirinto, espero tenha um fio como este que predizes: dois num corpo só;
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vai, agora escancara o teatro do mundo, e escrutemos, de Enéias e Dido, o papel’; ao que Juno: ‘Espiar quais enredos, que tramas, que finíssimos fios dos bonecos mortais movimentam cabeças e membros e artelhos,
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só pode um deus, não nós, que ainda não tem nome; nós sopramos, tentamos, tocamos o corpo, só senhores dos mil elementos e humores;
amanhã, cortejados por cães e criados, Enéias e a rainha vão caçar, tão logo
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o breu, já meio azul, a luz dissolva em dia; trombeta, lança, rede, presa, e muito vinho, e trombeta de novo, e de repente nuvem, tão túmida e tão cheia que um trovão lacera, já vomitando água e gelo e densa noite, e cada um por si, e dois, como mercúrio, não mais que de repente, então, no mesmo espaço,
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e o mesmo fogo, o claro-escuro, e o ato, enfim, consumando o himeneu, o desejo, o destino’; Vênus sorriu como cristal gelado: – tlim...
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E lançaram do escuro o tal disco solar, e cavalos e galgos e afiada equipagem e escudeiros e pajens e todos os príncipes esperavam surgir, circundada de damas, no cabelo mais ouro que os fios do cabelo,
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combinando com a capa o seu lábio de púrpura, de um sorriso mais claro que o sol, a rainha; ela surge, um sonoro “oh!” propaga, qual onda, qual onda que quebrasse dá de encontro a Enéias que ao vê-la agora espuma curva-se e, do chão,
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apanha os louros que a maré deixou na praia; no alto da escarpa chegam antes os troianos, antes de todos chega Enéias, cujos cachos, nadando, então, no vento mole, hipnotizam o cardume de cores subindo após ele;
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a caçada começa, começa a emboscada: são gamos, são bisões, é gente em algazarra, e em fuga, para ali, acolá, se o céu despenca; é Dido, e então Enéias, ai, na mesma gruta, e fogueira que fulge, e granizo que grassa,
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e o lamento dos coros da terra e do céu; foi aquele o fatídico início do caos: quando amor sobrepõe-se ao juízo, à decência, a despeito do nome – “paixão”, mesmo “amor” –, malgrado meu, malgrado teu, malogra tudo.
Voava, entanto, escuro sob a noite má abutre ou algo assim, e quanto mais voava
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tanto maior (pior) e com menor controle; em cada pena esconde um olho e orelha e língua; vai ouvindo e vai vendo e piando no mundo
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os defeitos de alguém, para um bem mil malfeitos; “este inverno chuvoso – e, pois, inavegável – retém nas praias de Cartago um tal Enéias, capitão de galés, donjuan de rainhas, entre as quais já se inclui, sim, desgraça, ai, a nossa;
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esquecidos do mundo e da própria cabeça, ambos fruem o almíscar dos corpos de ambos, e se entregam a um luxo que aqui, por decoro, não se pode dizer sem perder a cabeça; é troiano o malvado, e, tão logo for rei,
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marchará contra um rei nosso antigo aliado tendo a carne de nossos varões por escudo; que homem, que herói, que deus seria assim cruel? que mulher cega assim? acudi, acudi”.
______________________________________________ ERICO NOGUEIRA (SÃO PAULO) – Poeta, Tradutor e Professor de Línguas e Literaturas Clássicas. Doutorando em letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (USP). Vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, categoria Poesia, em 2008. Colunista do site Terra. É autor dos seguintes livros: O livro de Scardanelli (Poemas, 2008) e Dois (Poemas, 2010). Edita o blog: http://ericonogueira.blogspot.com/
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| Conto
SEQUESTRO
Por João Matias de Oliveira
Prezada Carolina, Você sempre me acusou de ter mãos femininas, lembra? E, beibe, eu não batia punheta para você com outras mãos. Saiba que há tempos, quando você se foi, sinto no calor dos dedos a vontade de te escrever esta carta. Não veja nisto o rompante de um ex-amante apaixonado readquirindo, no redemoinho das palavras, aquele mesmo sentimento descartado em várias folhas amassadas na lixeira – os poemas todos em papéis picados. Por este arcaico meio de comunicação – mesmo na forma de e-mail, enviado por correspondência comum – procuro apenas manter um embora envergonhado, mas distante “olá” não correspondido. Esta seria talvez uma chance de te ver, sem contudo encontrar. Como funciona isso? Quando escrevo imagino a pessoa a quem me dirijo. A mão na multidão que acena e se comunica. Torço o nariz como não viu. Aguardo sua resposta. Carolina minha vida depois de você ficou uma merda, esta é a verdade. Fui despejado daquele quartinho furreca onde você me conheceu e juntos assistimos pela oitava vez Laranja Mecânica tomando Fanta. Você de minissaia beje acariciava meu cabelo na nuca – minha necessidade, meu ritual. A cada toque seu, a casa pulava de alegria e renovação. Minha santa na escrivaninha nunca foi tão polida. E não há mais nada.
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Penso: será que ela me responde? Será que assim, um nado sofrido na superfície de um drama italiano, uma ópera bufa, galgaria as escadarias de uma resposta? Não, não. Você sempre me acusou de ser um ator dramático chinfrim – e agora representando. Desses a quem as lágrimas revelam apenas as pantomimas de um personagem em um palco sem platéia. Estava dirigindo antes de escrever a carta. Na verdade, volto do açougueiro, pago sem maiores consternações pelo serviço prestado para os rogos de um amante cabisbaixo. Percorri uma estrada perdida de falsos testemunhos, de culpa, com apenas uma mão ao volante. Me desculpe por tudo. Você não sente, mas eu escrevo com o peso da minha mão esquerda enquanto, envolta de esparadrapos, a direita se desculpa pingando sangue. Segue em anexo a mão direita – sou destro – como prova do meu arrependimento.
***
Amanheceu e eu não quero pensar em você novamente. Os dígitos passeiam pela folha em branco como na relva entre laranjeiras em que nos conhecemos. Lembro de você: pega uma laranja e não se importa de estar azeda, chupa-a com os lábios que ainda engrossam, no mesmo dia, tantas imprecações por eu ter desfeito o ninho de pássaros amarelos. Eu pisava um por um. Você chorava. Depois é que se sente mal pelo rapaz cruel, impiedoso, mordaz. Coração mole, doce, gentil – corrigia logo você. Perceba sua inconstância, ainda não achando palavras audazes com que me amaciam e me amassam, feito folha de papel manchada de batom e blandícias em versos mal feitos. É a segunda comparação com folhas desde a última carta. Ao contrário de você, eu curto essa constância de caráter, algo de que tu duvidava. Mas, eu não te batia somente pelo gosto de bater. Confesso: bater em você era mais do que um fetiche, era a consolidação do amor até a extremidade dos dedos. Seus olhos verdes refletiam o que eu infelizmente não queria ver. Seu monstro pessoal, o monstro moral. Todos os
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dias deitado do seu lado na cama e, confesso, não a percebi chorar silenciosa sob o travesseiro – tantas noites, tanta confusão. Não me olhe com o olhar de culpa, com o olhar verde do passado – eu te imagino nesse exato momento. Sim, eu sofri. Sofro por você e também sofro por mim agora – é como se te visse diante de mim. Falo de você em uma manhã nublada, um domingo ameno, a relva campeada de flores e um laranjal brilhando a frutos – a chuva passou. Falo de cheiros e sensações: seu perfume de rosas, seu caráter de anjo, sua saia talco de bebê, sua calcinha de renda, sua penugem quente de sal e suor. Tu não percebe, mas o nariz também se comunica. Ele te cheira, nariz danado. Em anexo: a mão esquerda cortada, limpa de sangue, sem coração pulsar por ela.
***
Chegaram a um consenso particular, a empregada, meu – nosso – cachorro Alex e o periquito Kubrick: eu não conseguiria escrever muito tempo sentado na cadeira de madeira, com as duas mãos cortadas e a ponta do nariz digitando – e estou gripado – na máquina Remington antiga. Cada tecla é um cheiro novo que me aproxima de ti, sob os toques duros do nariz com elas. O catarro vem de brinde. Sinto ficar mais poético no decorrer desta trama pessoal, Carolina. Sabe, seu cheiro, aqueles laranjais. O suco aqui do lado com o canudo – ainda de laranja, só tenho laranjas aqui. Eu venho embromando, mas quero que você volte. Fui um mal namorado, um mal patrão, um mal amante. Queria então sua proximidade, depois de tantos anos, para voltar a escrever e encenar alguma coisa. Juro não mais te bater, juro não mais te fazer chorar – te imagino rogando por isso. Juro não cortar um fio do seu cabelo. Por que não me responde? Duas mãos cortadas, minha consternação, e nada? Descobri, tenho religião. Sua saída, meu abandono neste cubículo e os livros de dramaturgia empilhados na estante revelam a santinha nunca percebida na
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mesa da escrivaninha. Ela parece tão contigo. O rosto liso, as dobras do sorriso. Olhos pretos. Boca lânguida. Corpo suave. Você toda em cerâmica. Você encenava, encenava muito, e talvez não suportasse a concorrência de vê-la competir comigo. Uma psique louca ainda desacordada quando te conheci: a própria Geni do Rodrigues. Você me descortinou esta paixão prematura e confusa em apresentações no Centro Cultural Banco do Brasil. Mais importante que o saque é o depósito. E eu te comprei por um preço irrisório: poucas flores. Estávamos na mesma peça – lembra? Tu Ofélia, tão linda – noto o brilho nos olhos, a lembrança nos lábios chorosos. Por favor, volte – peço em lágrimas, juro. Rezo por ti. Aí vai a ponta do nariz também, em anexo, cortando-o agora e pondo nessa embalagem de papel crepom. Por favor – fungando sangue – dessa vez responda.
***
O que restaria então a não ser beijar-lhe em cada uma das teclas de sua espinha dorsal em decúbito na cama de casal – lembra? Então, é o que faço agora. Escrevo-lhe com a língua e os lábios em um notebook que comprei. Fácil? Para principiantes não. Sou seu amante conjugal mais velho e experiente. O terceiro depois dos dois casamentos começados e não terminados – você tão boba com aqueles caras, meu amor, matei e mato um por um. Fui uma benção em sua vida. Até hoje lembro você com cigarros e café na varanda à espera da sorte. Sua sorte chegava ao fim da tarde – eu, do trabalho – e punha-a na cama, com todos os tesões cantados pelo vento forte. Sinto estar sendo enganado pela nova empregada em uma maquinação para ela herdar minha herança. Casei-me por condição de auxílio em todo esse drama. E percebo que tu nada, né, porra? Não responde! Você nunca espanava direito minha escrivaninha, ficavam pedaços ainda de lápis espalhados por ela. Você nunca limpava direito a sala e parte da cozinha. Puta que pariu, você ainda teria aquela roupa em babados com que fazia isso?
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Seus cabelos chegarão à terra, sobre meu caixão, ah se vão. Em anexo, uma certidão de óbito.
***
Olá Carolina, sou eu novamente, escrevendo já do túmulo, provavelmente. Ótimo que você procurou por mim e achou escondida esta carta na terceira gaveta do quarto. Tu agora pode finalmente lamentar a merda que fizeste. Caralho, lhe disse que me mataria. A empregada me fez assinar uma declaração de bens – ainda tinha os lábios, escrevo-te pouco antes do caso do nariz. Não o fiz. Tenta arrumar declaração do tempo que passamos juntos, rouba o dinheiro da preta velha. Faz o seguinte, compra véu e grinalda e se enterra junto comigo no caixão. Já estou por lá, pega uma pá e me alcança. Beija aí os lábios. O fedor se cura com desodorante spray. Te espero.
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Você não vem?
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JOÃO MATIAS DE OLIVEIRA NETO (Paraíba/Ceará) – Escritor e editor. Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Autor dos livros de contos Aos Olhos de Outro (2007) e O Vermelho das Hóstias Brancas (2009). Integra os núcleos literários Blecaute e CAIXA BAIXA. Blog: http://blogmatias.org. Twitter: @j_matias
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| O Aerópago
BOJO, FAZENDO XIXI E OUTROS CASOS
Por Valdênio Freitas
Bojo.
E LEVARAM EMBORA O VASO sanitário. Começou a não funcionar direito a descarga, escorrendo água pelo banheiro, rachaduras na base, até que um dia não era mais possível fazer nada. Ele ficou triste, pois o que ia embora no vaso sanitário era boa parte de sua vida . Não que tivesse feito besteiras dignas de comparações fecais. A história não trata disso.
Fazendo Xixi.
7 anos de idade. O garoto ia no banheiro e notou que na parte interna do vaso sanitário uma pequena mancha se formava. Pensando que fosse alguma sujeira, faz xixi em cima pra ver se sai. Tenta várias vezes e nada.
Quando se é criança qualquer detalhe chama atenção e abre espaço para uma imaginação. Toda vez que ia no banheiro para fins líquidos, só acertava na manchinha do vaso. Mirava lá e ficava apenas observando atentamente, assim como todo garotinho faz quando se dedica a alguma coisa aparentemente fútil pra quem desaprendeu a ser criança.
Mijando.
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Dizem que a hora de urinar é um dos momentos pensativos de um homem. Imagens de alívio e liberdade passando pela cabeça. Mijar é a verdadeira anistia da bexiga.
A não ser que estivesse sozinho em banheiros públicos, o jovem jamais usava mictórios por que não se sentia a vontade. Até que bebeu umas cervejas pela primeira vez - aquilo tinha gosto estranho no início - e sentiu vontade de ir ao banheiro que estava lotado. Dos quatro mictórios apenas um estava livre: justamente o do meio. Tentou esperar, mas não dava. Ficou lá uns dois minutos apenas parado enquanto um rodízio de pessoas querendo eliminar urina acontecia nos mictórios ao lado. Estava tenso até que começou a prestar atenção nos azulejos, na tubulação do banheiro e enfim, tudo fluiu. Mas para a completa superação do trauma de usar um mictório em um banheiro lotado, começava a tomar medidas interessantes. Começou a prestar atenção nos pequenos buracos que todo mictório tem e tentar acertar neles. Depois de várias cervejas, isso fazia pensar em algumas coisas:
Pensamento Urinário Nº 1: Conseguia acertar perfeitamente os buraquinhos do mictório. Não errava nenhum. Poderia quem sabe, estar revolucionando a obra de arte - já revolucionária - de Duchamp, tentando continuar a destruição de um conceito de arte a partir de um ataque uretral. A urina dissolvendo um paradigma artístico.
Pensamento Urinário Nº 2: O livro dos recordes tem algumas marcações bizarras. Mas será que existia alguém no mundo que mijava tão bem feito ele? Acertava todos os buraquinhos em uma perfeição milimétrica. Mesmo entrando pra o Guiness, na seção de recordes bizarros, seria o registro de uma superação - uma contribuição prática para o ato humano de urinar dirigido ao sexo masculino.
Pensamento Urinário Nº 3: Depois dos exames anti-doping que pegaram Maradona, todo mundo sabe que cannabis sativa deixa vestígios na urina. Se for fazer exame daqueles que precisam mijar em um pote, não fume maconha, senão teus pais descobrem.
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 36
Pensamento Urinário Nº 4: Pensava na história que ouviu uma vez que dizia que, em uma penitenciária, um grupo de presos sempre mijava no mesmo local. Depois de 10 anos, a parede começou a ceder, o que facilitou para fazer um túnel. Mijar realmente é uma ação libertária.
Urinando. As mulheres reclamam que todos os homens erram a mira do vaso sanitário. Ele era diferente, pois toda a vida desenvolveu uma mira infalível nos vasos sanitários. Bastava imaginar o local daquela manchinha no vaso sanitário- a nostalgia da infância – que jamais errava o tiro amarelo. De fato, era um Clint Eastwood urinário: antes um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que urinar fora do vaso sanitário. Chegou a um alto grau de maturidade. Não era um homem igual a todos os outros como as mulheres costumam classificar. Além da questão de ser um cavalheiro apenas pelo seu método de urinar, também se preocupava com o mundo. Nos jornais, agora todos falavam uma palavra apenas: sustentabilidade. Em tudo que você faz deve ser sustentável, diziam as propagandas de TV. Pensava o quanto urinar estava envolvido em um projeto de um novo modelo para gestão de recursos hídricos no mundo – bem aventurados aqueles que urinam no banho. Urinar e não dar a descarga é uma falta de educação sustentável.
Mas seu vaso sanitário da manchinha foi embora. Se os animais urinam pra demarcar território, ele urinou pra demarcar a vida. Talvez entraria em crise, já estava ficando velho e a coordenação motora ia se esvaindo, e poderia ser que um dia o risco de uma incontinência urinária fosse real. A fralda geriátrica marca o eterno retorno em que está imersa a vida humana.
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VALDÊNIO FREITAS MENESES (Paraíba) – Cronista. Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande e cronista/editor do blog O Aerópago: http://www.oaeropago.blogspot.com. Twitter: @Valdeniofm
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 37
| Poemas
POEMAS DE EDSON BUENO DE CARVALHO
Zabé da Loca
és como foi minha avozinha lenço amarrado na cabeça olhos grandes de olhar comprido destes que devoram tudo com carinho e cuidado gente de granito e pés suaves mesmo para trilha de pedras muheres com dobras e rugas quase uma centena de anos cansados rostos com sombras e o dedo com o osso apontado mulheres de parar o vento com o silêncio e mover pedras com o sussurrar constroem casas com barro cacimbas no seco donas da terra e da água e aproximam o ventre do ar
senhoras que vestem o mundo e tecem com os panos e fiam o algodão das nuvens
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ai que os anjos esfarrapados da caatinga os anjos vaqueiros e pascentadores de bodes os anjos moleques a tramar travessuras os anjos de todas as partes e os afogados e o louco poeta na margem da metrôpole todos param para ouvir um pedaço de cana soar as trombetas do céu.
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geografia
todo dia um horizonte novo se cria em minha janela geografia que pássaros trazem florestas incrustadas nas garras ou andaimes de guindastes gigantes com força titânica a empilhar viadutos a janela que sobrou da velha sala a que dá para o quintal dos fundos é a janela para outro mundo a pores de sol coloridos as auroras se costuraram em alinhavos de cores quentes e a medida que anoitece se transladam em cinzas de azuis
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o horizonte
uma linha morta que traça mortalha de montanhas que vemos mas ali não estão
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velho rádio
às vezes admirava-me quando olhavas sem sorriso e a noite engolia teus cabelos mergulhados aos poucos em uma grande tina
a água que refletia estrelas e a luz morta que atravessou o espaço e o lago de teus olhos imensos desejo de chorar em escamas abraçadas aos cântaros escadas para o céu tocavam insistentes no éter e no velho rádio na sala
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e esta cozinha era uma pista imensa de deslizes não mais sabia que viver não era mais que isso catar fragmentos de raios cósmicos que perfuravam o vidro da janela e observar lento e persistente a chama de uma vela ao se consumir incorporando seu combustível ao ar até que este se extinga meus papéis senis perdidos de seu sentido e livros amontoados aos cantos e estantes indeléveis poetas vociferando canções lúgubres marcha soldado sem direção e rebeliões que se dissolviam em terebentina e álcool enquanto isso cebolas e batatas ferviam em borbulhantes panelas com seus diálogos e estouros e borbulhares eu olhava pelos vidros e com um dedo infantil garatujava um nome na neblina enquanto olhos me observavam da possível floresta nós nascíamos todos os dias como narcisos e voltávamos e voltávamos sempre
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açucareiro
perdidas formigas insistem em atacar o açucareiro (fortaleza inexpugnável de plástico) e observo todos os seus fracassos (e secretamente comemoro) a vida deve ser isso um imenso açucareiro nós sabemos como abri-lo e não fazemos
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EDSON BUENO DE CARVALHO (São Paulo) – Poeta. É autor dos livros: O Mapa do Abismo e Outros Poemas (2006), De Lembranças & Fórmulas Mágicas (2007), entre outras obras. Foi vencedor do Prêmio Off-FLIP de Literatura (2006), IV Concurso Literário de Suzano (2008), entre outros. Participa do grupo poético/ literário Taba de Corumbê da cidade de Mauá –SP. Edita o blog: http://umalagartadefogo.blogspot.com/
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| Conto
A VIRGEM SAGRADA
Por Eduardo Quive
OUTROS
DEMASIADOS SÉCULOS
se passaram antes que o inverno imperasse na
zona. Renunciara-se antes, os deuses dos sacerdotes e dos Cabrais e elegera-se o rei Ngonhama (1) como o régulo mais rei do Deus me livre, como se antes não fosse! Mas motivara-se a sua acessão ao rei Cuhanha (2), como coroamento do seu trono que era promissor e demasiado aterrorizante o suficiente para proteger as terras que já eram designadas Livre-me Deus, tendo na mesma altura, se elegido duas raças humanas distintas: as donzelas e os não me toques, cujos seus deuses divergiam, igualmente. Era o princípio do fim das misturas entre as impurezas e as mulheres que seriam do futuro mais promissor da terra e inventariam um Deus me livre que trouxesse mais deuses poderosos, com potenciais para conquistar outras redondezas. Acreditara-se desde os anos descendentes que as donzelas eram as maiores e melhores feiticeiras que as terras podiam produzir com tamanha produtividade e excesso de conquistas sem fim, principalmente, se se efectuasse o sacrifício da donzela mais frondosa, oferecendo-a ao homem mais forte da zona, que não ejaculara nunca, e se uniam na noite do luar mais inominado.
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 43
Todos concordavam com estas deontologias satânicas e promissoras, compro metendo-se a não abandonar as tradições mais antigas dos deuses da sorte e prosperidade. Os não me toques também foram distinguidos dos Zé-ninguém e de outros adimonizados, foi como se tivesse separado a água do óleo. Estes já nasceram diferentes. Aproximavam-se outros tempos em Deus me livre. Acompanhando o abandonar das tradições que já ganharam e tomaram espaço entre as raparigas
de
Maputo
e
doutras
cidades.
Passava-se
da
era
dos
acontecimentos, tendo se assinalado no próximo século com a ascensão dos não me toques e os seus respectivos deuses. Contara-se que os não me toques sempre foram intocáveis. Nunca alguém os pudesse tocar, nem eles mesmos, podiam o fazer... sob decreto nenhum! Nasceram numa altura em que o Deus mais poderoso distribuíra os poderes mais satânicos e temidos da terra, por isso foram sempre temidos e aveniados, como um ferro quente. Nunca antes se vira coisa igual! Nem mesmo o Umbeluzi (3), com a quantidade de crocodilos já foi tão temido algum dia, muito menos o Zambeze com a sua energia eléctrica dispersara gente da sua aproximação, pelo contrário, pela natureza da desgraça, as maiores comunidades, são dependente de tal água para sobrevivência, mesmo a cada dia haver relatos de mortes. Cada vez mais a verdade se expressava na vida dos nativos. As donzelas tomaram por outro lado, o seu poder, na noite de transição onde, habitualmente, faziam-se grandes mudanças na zona. As virgens perdiam a virgindade, as corujas tomavam o espaço e outros terrores faziam-se de habitantes em todo Deus me Livre. Juntando todos os feiticeiros, desde o nordeste ao sudoeste, mesmo passando pelos céus e pelas terras, escavando qualquer verdade que fosse, mas nenhuma donzela seria descartada. Nenhuma mesmo. Mandaram encerrar todas as fronteiras, principalmente a mais infernal, do lado da vila do Leproso, para não permitir que nenhum ser humano
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daquela espécie se fizesse presente nas escolhas e para não aborrecer os deuses que consagrariam a distinção, tão esperado. Seria uma cerimónia que contaria com a presença de todos os espíritos mais temidos. Prepararam todas as mulheres da zona, incluindo as mais férteis, como as esposas dos casa sessenta e cinquenta, que pareciam um jambaloeiro de tanto dar filhos, aliás, foram assim chamados porque constituíam famílias com esses números, Sessenta e cinquenta. Essas nem mesmo os cegos as desconhecem, mas tinham que estar lá, na lista de adivinhamento das virgens sagradas. Recolheram todas as mulheres, incluindo os bebés mais recentemente nascidos. Não podiam em hipótese alguma a virgem não se achar. Estavam todas no centro da vila, nas palhotas da praça dos deuses, lugar sagrado que fizera a vila merecer o Nome de Deus me livre, bem em frente das matas de outros Swikwembos (4) e estavam nuas, do jeito como chegaram a aquelas terras. Todas estavam sem roupas, feitas de galinhas depenadas na sexta-feira santa! Nunca antes vira coisa igual. Todas as mulheres estavam expostas aos olhares dos homens, alguns não tinham coragem. O Padre Couto, não tivera coragem de olhar para a mulher com a qual trai o seu deus, por outro lado, o a honra de outras raças nobres estava em causa. Todas as mulheres estavam lá. Filhos que olharam as suas mães em estado de nudez atormentador, e o rei Ngonhama, todo atento aos detalhes de cada mulher. Nunca antes vira o corpo de uma mulher com tanta inteireza! Nada estava oculto, o rei fazia questão de confirmar. O Deus das donzelas e a virgem sagrada descobriram-se naquela assustadora cerimónia, recheada de verdades, antes obscuras em muitos olhos. Pousaram todas as mulheres do Deus me livre, algumas com peitos a bater os joelhos e outras mais lisas que uma parede. Surge uma voz repentina no meio do silêncio!
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− Grandes homens, mulheres e mais novos. Deuses dos mulungos (5) e dos Ngonhamas. Deuses dos Ngunis (6) e outros espíritos das nossas terras. Eis as donzelas... − Faltou o envocamento dos nossos deuses! Reclamaram de imediato os espectadores da cena. O rei silenciou-se perante os gritos que vinham de forma abstracta, mas eram vozes diferente reclamando o envocamento dos seus deus mais supremos. − Nós somos os Ndaus (7), mas não ouvimos os nossos deuses! − E os Ngungunhanes (8), Zuid (8), Nwamatibsana (8), nós é Changana (9) e Ronga (10)!? Todos e outros reclamavam, incluindo os macuas e Macondes (11) que também viram os seus filhos a tombarem para a libertação daquelas terras! O rei não sabia o que dizer e determinara instantaneamente! − Esta terra não é dos Ndaus, nem dos Changanas, e se mais um quer reclamar, mandarei os feiticeiros mais temidos e confiados para os amaldiçoar. Vocês são imigrantes desconhecidos. Deus me livre não é vosso – Disse. Retomando ao seu discurso e sem mais interferências, proclamara. − Daqui sairá a donzela de que se precisa para oferecer os espíritos para o sacrifício que salvará os filhos desta terra, e mais nova delas, será sacrificada para o mais poderoso homem na noite mais próxima de lua cheia. Iniciava-se assim o rito que punha a prova o feiticeiro de confiança do Rei Ngonhama para adivinhar quem são as donzelas e que de seguida o faria sobre o respectivo Deus que mereceria o presente sagrado. E foi assim, até que se distinguira Mhoki, como o Deus representante mais supremo das mulheres preparadas para o futuro do Deus me livre e escondera-se a divida mulher para o sacrifício da noite de luar. Assim, As trevas estavam libertadas para dominar naquelas terras e o céu se encheu de escuro que até hoje conduz os destinos de muitos. Nem todos a reconhecem como a terra do Livre-me Deus, mas a verdade é que os dias já se passaram e a virgindade depois de passar por muita valorização,
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passou a ser a meta que nenhuma mulher quer atingir, e a sociedade, essa, nem se quer a valoriza mais. Seus os dias que passaram…
Pequeno Glossário
1. 2. 3. 4. 5.
Ngonhama – Leão (também usado como nomes tradicionais em Moçambique) Cuhanha – Viver, vida. Umbeluzi – nome de um rio que atravessa a província de Maputo. Swikwembos – Deuses, espíritos. Mulungos – Brancos (em XiChangana, língua predominantemente falada nas províncias de Gaza e Maputo, no sul de Moçambique) 6. Ngunis – Tribo da região centro de Moçambique, concretamente na província de Sofala. 7. Ndaus – Idem 8. Ngungunhane, Zuid, Nwamatibsana – heróis combatentes da zona sul de Moçambique, no antigo império de Gaza. 9. Changana – Tribo da zona sul de Moçambique, concretamente na Província de Gaza. 10. Ronga – Tribo da zona sol de Moçambique, concretamente da província de Maputo. 11. Maconde – Tribo da zona norte de Moçambique, concretamente da província do Cabo Delgado.
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Eduardo Quive (Moçambique) – Escritor, Jornalista, Ativista dos Direitos Humanos e HIV/SIDA. Membro fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, sediado no Centro Cultural Brasil – Moçambique. Trabalha no Jornal O Escorpião. É editor de dois blogues de literatura moçambicana pertencentes ao Movimento Literário Kuphaluxa, (kuphaluxa.blogspot.com e revistaliteratas.blogspot.com). Edita ainda os Blogues pessoais: noitesdalma.blogspot.com e quivismo.blogspot.com
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| Estante
HODGE, A. N. A História da Arte: da pintura de Giotto aos dias de hoje. Belo Horizonte: CEDIC, 2009.
A HISTÓRIA DA ARTE: DA PINTURA
de Giotto aos dias de hoje, é uma obra resumida
e ilustrada, que sintetiza os principais movimentos da pintura no ocidente, nos possibilitando vislumbrar algumas das obras menos famosas de grandes pintores, bem como suas localizações no tempo, contribuições para a história da arte e os movimentos aos quais se vincularam. Escrito pela britânica A. N. Hodge, estudiosa e curadora de arte, esta obra foi pensada para atingir o público amante da arte e para aqueles que têm interesse em conhecer um pouco sobre o assunto. Organizado de forma rigorosamente cronológica, este trabalho não tem como pretensão realizar uma análise aprofundada sobre os movimentos,
obras e
artistas elencados.
Contudo
procura
associar
movimentos e pintores, a exemplo da influência de Turner sobre impressionistas como Monet e Pissarro ou em quê aspectos o grande represente do Rococó, o Francês Jean-Antoine Wateau inspirou-se nas
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 48
figuras de Rubens, ao mesmo tempo em que manteve fortes ligações com a arte flamenga. Tendo como pretensão mapear a história popular da pintura no ocidente, temos nessa obra uma visão panorâmica da pintura e dos pintores, acompanhada
de
belíssimas
ilustrações
desde
o
medievo,
mais
especificamente a partir de Giotto, até os dias de hoje, se constituindo uma espécie de guia elaborado a partir de um critério plenamente subjetivo. A seleção dos artistas inclui alguns dos que ainda vivem e mulheres, principalmente àquelas abraçadas pelo círculo impressionista como Mary Cassatt e Berthe Morisot, que comumente estão ausentes dos livros e manuais de história da arte. E para completar sua obra, Hodge encerra com um histórico dos métodos técnicas empregados pelos artistas ao longo do tempo para criar suas pinturas, partindo da cera, passando pelo ovo até chegar ao uso do óleo como elemento de ligação dos pigmentos.
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LAURICEIA GALDINO DOS SANTOS (Paraíba/Rio de Janeiro) – Historiadora. Mestranda em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Pesquisa a história da arte entre a antiguidade e a modernidade.
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 49
SABATO, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
O ESCRITOR E SEUS FANTASMAS. Meu livro de cabeceira? No momento, um de meus livros de mochila, que carrego pelos nove cantos de Campina. Sabe esses livros que você pode abrir em qualquer página e colher informações e reflexões úteis? Sim, úteis. Do utilitarismo menos evidente que existe: aquele em que nos utilizamos de um objeto, pessoa, situação ou, no meu caso, de um livro para manter vivo um sonho, uma pretensa vocação ou seja lá o que represente a literatura na vida de um escritor iniciante. Ernesto Sabato, romancista argentino dono de uma extensa trajetória intelectual e vencedor do Prêmio Cervantes (1984), como a maioria dos bons autores da chamada literatura latino-americana, é visceral em suas convicções. De acordo com sua compreensão, a literatura não deve ser encarada como passatempo ou evasão, seja por escritores, seja por leitores, mas como a forma mais completa de examinar a condição humana. Tese que, por si, já se torna (pré)texto para infindáveis reflexões, digressões e debates. Sua obra é uma espécie de compilação de textos curtos ou curtíssimos que versam sobre o ofício de escrever e, mais ainda, sobre a relação entre literatura, existência e sociedade na vida de um escritor. Tem, justo, como foco os
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 50
fantasmas que circundam internamente o escritor quando este resolve assumir o risco de se aventurar por uma relação conturbada, arriscada e cheia de incertezas com a literatura e consigo mesmo; em outras palavras, de por meio da literatura encarar não só os desafios do ofício de escrever e da criação artística, mas suas barreiras pessoais, as agruras de seu tempo histórico e os limites intrínsecos da condição humana. A obra foi publicada na argentina em 1963, dois anos após o lançamento de Sobre Heróis e Tumbas, obra mais conhecida de Sabato, considerada por parte da crítica como o melhor romance argentino do século XX. O escritor e seus fantasmas, por sua vez, é um livro que pode ser apreciado da forma clássica: da capa à última página, através de um movimento sequencial e contínuo. Ou lido da minha forma preferida, através de escolhas aleatórias, descontínuas e livres. Desse modo, você pode, por exemplo, folhear despreocupado(a) a primeira parte do livro e, de repente, ao passar pela página 23, deparar-se com o trecho abaixo, um entre os vários fragmentos quase aforísticos distribuídos no decorrer da obra: “A CONDIÇÃO MAIS PRECIOSA DO CRIADOR
O fanatismo. É preciso ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se a sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante pode ser feito.”
Se você é um(a) escritor(a) em início, meio ou término de trajetória e se identificou com essa minha breve indicação de leitura; ou, sendo escritor(a) ou não, sentiu uma inquietação repentina, sinal de extrema discordância: deixe um espaçozinho sobrando em sua cabaceira, mochila, biblioteca... Melhor! Faça uma visita à parte mais tempestuosa de sua consciência, converse um pouco com os fantasmas que te acompanham e pondere se Sabato é capaz de te ajudar a compreendê-los melhor.
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JANAILSON MACÊDO LUIZ (Paraíba) – Escritor, Editor e Historiador. Mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Autor de Luz para sua gente e para sua terra: notas sobre a História da UEPB. Integra os núcleos literários Blecaute e CAIXA BAIXA. Mantém o Blog Sonhos Literários: http://www.sonhosliterarios.com/. Twitter: @jan_macedo
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 51
| Poemas
POEMAS DE MAURO BRITO
Almas Roubadas
São quarto e meia Latidos incandescentes se desenrolam Devaneios na madrugada me cantam, Ha meus sentimentos! Alvejados à navalhas de macacadas Badaladas com zumbis Agasalhados em mantos Proceder caminhada ancestral Almas habitam o clarear da fraqueza Roubam-se rendilhados momentos Nem pavio, nem chama Ausência do lume encandeiam vidas fúteis Na manhã, na alma Descansar o brio luar Tu e eu, em sonhos paralelos, encubamo-nos Roubados foram corações lapidados Me rodeiam tiroteios melancólicos água em louvor de pensamentos Imediatos anseios na razão do ser Os cantos da alma roubada Amanhecida em orvalho de primavera
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 52
Descalço
Poeira na contingência da invalidez Sarcasmo fútil sem música Saudades dos gotejares na chuva miúda de Setembro Mapira acesa, madrugadas tantas, dos mapikos dançantes De órbitas contrárias dos ditos e afirmados Ninguém sofre mais que a morte Porque ela habita solenemente sombras Do sol caminhando para as colinas Canhoeiros confusos na dança desenfreada das cigarras, ekaa Confusas minhas mãos entre quem escolhe e quem é escolhido, Maneirar sempre de boas maneiras Lentes da lebre Pois que sou vidente de mim para o mundo Nos canaviais, assobios de cana-de-açúcar já khomalada Pés vazios no campo do mundo Revisitando passados
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 53
Capulanas Dançantes
As lenhas ao lume Soltam-se assobios, de melancólicos olhares e faces Gerações se misturam, aplaudem com júbilo da aurora as mamanas, atiçam o tantã dos batuques, levantam poeira, levantam plateia, lenços, missangas e capulanas A lua vestida de cores, também festeja ao alto Timbilas, paus, e latas se casam ao som maluco Junto ao cair da noite, é festa, é noite, os mochos entoam melodias É capulana, é batuque, cores e notas se juntam no pátio no meio da aldeia Nada se esconde tudo se deslumbra mwanas dançam sobre o chão nu e gelado acompanhando o cantar da mata A floresta ressuscita do calar nocturno, todas almas voam sobre o céu A aldeia, em fim, todos se descobrem, aleluia! dizem os cocuanas é capulana, é nossa, é nosso mistério, as suas ondas navegando no vazio do mar a sura delicadamente inundando bocas mucume e vemba banham corpos ancestrais na orgia dos loucos
______________________________________________ MAURO BRITO (Moçambique) – Poeta. Membro do Movimento Literário Kuphaluxa em Moçambique. É editor do blog: poesimentosvivos.blogspot.com e tem textos publicados nos blogues do Kuphaluxa: kuphaluxa.blogspot.com e revistaliteratas.com
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 54
| Conto
A PEDRA DO DIABO
Maxwell F. Dantas
− A vista aqui do balde do açude é linda, não é Clécio? − Realmente. Toda essa imensidão do açude, o pôr do sol refletindo nele...do outro lado a vista de toda a cidade...estamos rodeados pela beleza das coisas de Deus! − De deus e do diabo. − Do que você está falando? − Da Pedra do Diabo. Naquela época, Clécio tinha ido a Boqueirão para fazer estudos de paleontologia para o mestrado, sobre uma ossada de uma preguiça gigante, encontrada próxima a um povoado na zona rural daquela cidade. Eu era sua namorada e o ajudava na análise de dados da pesquisa. Mas também faço documentários; combinei com Clécio no segundo dia, que sairia para dar uma volta na cidade, em vez de acompanhá-lo, no intuito de encontrar algo de curioso para documentar. Tenho preferência por temas perturbadores, do tipo que provocam tremores em nossas certezas. Afinal, as cidades de interior são ricas em lendas e causos. Passamos lá uma semana. Fui informada sobre um senhor que conhecia a lenda de uma pedra: a Pedra do Diabo. Esta pedra fica localizada às margens do açude Epitácio Pessoa. Mais precisamente “ao pé” da represa, que aqui na cidade chama-se balde. Bem no início do balde, do lado esquerdo - no sentido de quem vem da cidade para o açude -, há um pequeno morro, que é a cabeça de um dos lados do boqueirão, sobre o qual a pedra se impõe, como se fosse uma plataforma que dá para um tímido abismo. Contornando a base desse morro desliza sobre a lateral
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 55
do balde uma escadaria de quarenta e dois degraus, que começa no nível da cidade e vai até o nível da estrada lá em cima; um acesso para quem prefere caminhar à carro ou moto. A pedra fica ilhada entre cactos, xique-xiques, macambiras e outras plantas características do cariri paraibano. Um fato curioso é que na outra extremidade do balde, ao lado de um restaurante, existe a imagem de uma santa, formando ironicamente um maniqueísmo involuntário. Fui à casa daquele senhor. Ele contara-me que aquela pedra servia de plataforma, na época da construção do açude Epitácio Pessoa, para subir e descer equipamentos e ferramentas, através de uma engrenagem de roldana com corda. Segundo o velho homem, como ainda não havia o balde do açude, o penhasco que beirava a pedra era bem mais alto que hoje. Ao manusear a engrenagem, muitas pessoas se machucaram, e até morreram, caindo lá de cima. “Por isso que chamam de pedra do diabo, aquela pedra é maldita”, disse o senhor enfaticamente. E acrescentou que sabia disso porque seu pai havia trabalhado na construção do açude, tentando, assim, atestar a legitimidade da informação. − Quer dizer que o senhor acredita que estes acidentes aconteciam por causa de alguma influência maligna da pedra? Que não eram apenas acidentes? Indaguei-o. − É claro que eu acredito nisso, moça! É que você é nova... viveu pouco ainda... é de cidade grande. Mas o cão se encarna nessas coisa: numa pedra, numa estrada, disse ele apontando para o chão, e continuou: “Quer ver... Em noite de lua cheia vá lá para a rua da independência umas onze horas, doze horas da noite e fique olhando para a ladeira do cancão, lá do outro lado do rio. Nessas noite aparece um farol dum carro descendo a ladeira. De repente você vai ver o farol do carro se movendo como se ele tivesse capotando. Depois vá lá e você vai ver que não tem carro nenhum. Ele fez uma pausa e concluiu falando em tom solene: − É moça, é assim... isso é quando gente ruim morre nesses lugar, aí acontece essas coisa. Olhe, quer um conselho: esqueça esse negócio de pesquisar sobre a Pedra do Diabo. Não é bom mexer com essas coisa não. Contei para Clécio o que tinha descoberto. − Acontece que você não pode se apoiar apenas na versão desse senhor. Não tem nenhuma fonte histórica na biblioteca da cidade?
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Campina Grande, ano 3, n. 8, mar. 2011, p. 56
− É possível que tenha, mas ainda não verifiquei... Eu soube de um tal de mestre Afonso que conhece muitas histórias antigas do local. É também um senhor de idade. Vou procurá-lo para tentar descobrir algo mais sobre essa Pedra do Diabo, declarei em tom sinistro. Ainda naquele mesmo dia – que era o segundo na cidade -, depois de termos saído do balde à tardinha (onde observávamos o belíssimo por do sol), jantamos no hotel. Depois de assistirmos o vídeo com a entrevista que fiz pela manhã, Clécio ficou no quarto organizando os dados que colhera naquele dia (que, aliás, era tarefa minha), e eu saí em busca de mestre Afonso num bar onde, segundo informações, ele gostava de jogar sinuca à noite. Era um senhor alto, todo de preto, cabelos grisalhos sob um chapéu respeitoso, expressão concentrada e sisuda.
− Com licença, o senhor é mestre Afonso? − Sou eu mermo, respondeu ele com olhar desconfiado. − Eu poderia dar uma palavrinha com o senhor? − É sobre o quê, hein? − É que eu estou fazendo uma pesquisa sobre sua cidade; mais precisamente sobre a Pedra do Diabo. Me disseram que o senhor conhece essas histórias antigas daqui. Ele olhou orgulhoso para os companheiros de jogo, aprumou o taco para mais uma tacada e disse: − Deixe eu ganhar desse caba besta aqui que eu converso com a senhora. Seu estilo de jogo era singular: ao tacar, o braço que segurava o taco tremia apontando em direção a bola, como se pudesse teleguiá-la para a caçapa. Fosse isso ou mal de Parkinson, a bola caiu e ele ganhou o jogo. Por sorte filmei aquilo. De início ele relutou, mas cedeu à câmera. Sentamos à mesa distante da sinuca, ele acendeu um cigarro, tragou lentamente e começou a contar que antigamente, bem antes da construção do açude na década de 50, aquela pedra já era usada como local maligno, onde o mal era aprisionado. “Naquele período”, disse ele, “o demônio possuía as pessoas, mais do que hoje; os padres tentavam expulsar o tinhoso, mas quando não tinha jeito...quando a pessoa tinha pouca fé, o bicho não saía, sabe! Aí um dia alguém disse que se enforcassem a pessoa pendurada lá na pedra...a alma
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dela descansaria e o bicho ficaria aprisionado na pedra”. Garantiu que uns rapazes que gostavam de beber lá em cima da pedra à noite (“desses que gostavam dessa música barulhenta que a meninada escuta hoje em dia”), encontraram uma corda escondida na fenda que a pedra tem bem no meio. E que esses mesmos rapazes já escutaram gritos misteriosos, certa vez quando se aproximavam dela por volta da meia noite, que julgaram ser de alguém que supostamente morrera ali. Perguntei-lhe se ele acreditava nisso. Como resposta ele disse que concordava com “aquele home que disse que tinha mais coisa entre o céu e a terra do que agente podia imaginar”. Contudo, acrescentou que, segundo seu avô lhe contara, isso era uma prática dos antigos índios cariris, que habitavam essa região muito antes da chegada dos Oliveira Ledo. Não exatamente o enforcamento, mas matavam os guerreiros que aprisionavam nas batalhas, naquela pedra, acreditando que, assim, seus espíritos não voltariam para suas tribos para fortificar seus companheiros. Fiquei horrorizada com aquilo. Pessoas enforcadas naquele local...e os tais rapazes o freqüentavam friamente...será que faziam rituais lá? Agradeci a mestre Afonso pelas informações e voltei para o hotel, onde mostrei o relato gravado a Clécio. Ele riu ironizando. Disse que era uma bela história de terror.
− Mas, e se as pessoas foram realmente enforcadas cruelmente? E essa história de aprisionar o espírito na pedra? − Hálida, você disse que está horrorizada, mas eu acho mesmo que você está empolgada com este assunto. Lembre-se que temos dados para analisar sobre a ossada da preguiça. − Claro meu amor. Eu só preciso fazer mais algumas imagens da pedra e entrevistar mais alguém. Mas amanhã saio para campo com você. Pensando nas palavras de Clécio, eu percebi que para compreender a natureza de uma crença, são necessárias doses simétricas de empatia e ceticismo. Na manhã seguinte, enfrentamos novamente o sol pesado de verão do cariri. No caminho para o Quarenta, povoado onde foi encontrada a ossada, passamos pelo balde. Olhei para a pedra. Ela parecia observar imparcialmente a cidade, enquanto ironicamente, na outra extremidade havia a imagem piedosa de uma santa, posta sobre uma pedra menor que a outra. A paisagem
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às vezes verde, às vezes da cor do árido, misturava-se com o calor que fazia dentro do carro. Uma orquestra fragmentada de chocalhos de bois e de bodes tocava, regida pelo balançar preguiçoso dos galhos das algarobas. Uns urubus ao norte faziam um redemoinho no céu. Aproximando-se do local, se impunham outras pedras maiores que aquela. De quem seriam estas? Seriam todas as pedras do diabo? Escavar um achado paleontológico é trabalho lento e delicado. Algumas pedras soterradas atrapalhavam o trabalho, ao serem confundidas com ossos da preguiça pré-histórica. Havia quatro homens da região ajudando Clécio - que observava, removia cuidadosamente o excesso de terra e resíduos, discriminava as condições e eu anotava tudo. Era trabalhinho chato, pois eu não era paleontóloga, era documentarista. Como profissional dedicado e meticuloso, Clécio nem se dava conta do sol castigante que petrificava meu corpo. Ao meio dia, quando encerramos as atividades escavatórias do terceiro dia, um dos ajudantes nos convidou a comparecer a comemoração de seu aniversário logo mais à noite, num barzinho próximo ao hotel onde estávamos hospedados. Clécio concordou. Ele gostava de estar em uma mesa de bar rodeado de amigos. Chegamos ao bar às nove horas, atrasados porque ele demorou em telefonema para a universidade. Depois de algumas cervejas, tira-gostos, piadas e cigarros, aproveitei a oportunidade para perguntar casualmente às pessoas presentes no bar sobre a história da Pedra do Diabo. Ironicamente, quase ninguém sabia nada a respeito, nem deram importância ao assunto. Fiquei desapontada com o desinteresse das dezenas de pessoas a quem abordei. Em visita à biblioteca na mesma tarde, constatei que não havia nenhum registro histórico sobre isto. Talvez a apatia para com o assunto se devesse a impressão lítica que as pessoas têm do diabo. Notei um desconforto amarelo na reação de algumas pessoas. Outras disseram: “do diabo! Vixe! Não sei, nem quero saber!” O fascínio vívido, embora cauteloso, que senti nos dois senhores que me relataram sobre a pedra, não era compartilhado por quase ninguém mais naquele lugar. Lá pelas tantas, se juntaram à nossa mesa um senhor e seu sobrinho. Quase tomada por uma obsessão, me apossei da atenção daquele homem, ao saber que era natural da cidade e que havia trabalhado informalmente na construção do açude quando ainda era molecote (vendendo todo tipo de coisas,
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fazendo mandados, etc). Ele pareceu animar-se em perceber que alguém se interessava por assuntos históricos da cidade. Fez uma descrição detalhada da área onde situava-se a pedra, antes da construção do açude. Anotei tudo com afinco. Fixei a imaginação na parte do relato em que contou sobre várias pessoas que afirmaram ter visto o diabo sentado na pedra, fumando um charuto, quando ao crepúsculo, passavam pela antiga estradinha que cruzava o boqueirão entre o rio Paraíba e a pedra. Confessou ele mesmo nunca ter visto tal cena, mas suas palavras eram ornadas de um tom apaixonado. Pena não estar com a câmera naquele momento. Notei que ele estava um pouco incomodado quando se viu sem espaço para falar de outros assuntos com os colegas ali presentes, ao passo que eu o bombardeava de perguntas. Aproveitou enquanto eu anotava o relato freneticamente, para descontrair-se com outros assuntos junto a seus consortes. Era a pausa que o sobrinho (que se chamava Wilson e aparentava uns dezenove anos) precisava para instigar-me ainda mais, quando se aproximou e disse, com uma segurança eloquente no olhar, que melhor do que entrevistar alguém a respeito da pedra, era ir lá à noite. Aquilo foi como lançar um fósforo num monte de palha embebida em gasolina. O convite era sedutor o suficiente para satisfazer-me tanto quanto desagradaria a Clécio, que simultaneamente à conversa animada com os outros, tentava assimilar o assunto que eu tratava tão envolvida com o rapaz. O conhecia o bastante para saber que ele não concordaria em visitar a pedra à noite. Era demasiado convencional para estas “transgressões”. Mas não pense que abandonei a hipótese. Ao contrário, comecei a elaborar mentalmente um estratagema para poder aceitar o convite do rapaz, sem a companhia nem o consentimento de Clécio. Ainda mais quando deduzi que aquele era um dos jovens que mestre Afonso mencionara. Envolta em circunlóquios, convenci forçosamente meu namorado, depois de uma tensa discussão diplomática, a me esperar no bar enquanto eu iria ao hotel pegar a câmera para registrar um novo relato, pois não queria atrapalhar a sua participação na comemoração. Deixei o bar junto do rapaz que, sem perder tempo, me levou de moto até a pedra, onde dois outros amigos o esperavam. Clécio “me mataria” se soubesse, mas o receio adormecia diante da excitante curiosidade e do fascínio.
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Sentados no início da escadaria que dava acesso ao local da pedra, os dois rapazes perguntaram: “É ela?” De súbito um medo gelado invadiu minha mente. “É”, respondeu Wilson. Aquelas palavras e rostos soturnos não me sugeriam outra coisa senão que eu era uma vítima conduzida passivamente ao sacrifício em um altar em honra de Lúcifer. “Vamos lá?”. “Claro”, respondi confusa e incapaz de reação contrária. Ao aproximar-me da pedra por esse ângulo, notei a semelhança da parte frontal com um rosto monolítico. A penumbra que dominava o local era amenizada pela luz da lua, que estava cheia. Pulando uma cerca e esquivando-nos dos xique-xiques, chegamos ao topo da pedra. A visão lá de cima era particularmente inspiradora: a cidade tal qual um bordado de luzes e telhados; o brilho furtivo das águas do rio que se estendia ao lado; à esquerda, se via os antigos galpões do DNOCS e um antigo cemitério desativado, contíguo à estação de tratamento de água da cidade. O vento revolto agitava meus pensamentos, e os misturava com o frio que fazia lá em cima. Para abrandar a sensação ao mesmo tempo instigante e temerosa, me pus novamente na posição de documentarista e comecei a fazer-lhes perguntas sobre a história da pedra, as suas visitas a ela, intercalando com as informações que havia conseguido com os dois senhores e o tio do rapaz. Contaram-me que, de acordo com relatos do funcionário local do DNOCS, muitas pessoas morreram na construção do açude sob várias circunstâncias, e não só na pedra, como também em outros lugares da obra. Sobre mestre Afonso, esclareceram que ele era conhecido na cidade por inventar ou “apimentar” estórias, um contador de causos. Notava, no decorrer da conversa, uma simpatia extraordinária no olhar dos rapazes; eu era uma moça atraente (a despeito de qualquer narcisismo, eu garanto) acompanhada de três rapazes, em um lugar pouco convencional, a uma hora nada segura. Um deles acendeu um cigarro, outro sacou uma latinha de cachaça do bolso do casaco. Aceitei o cigarro apenas. Afinal, não misturaria cachaça com todas as cervejas que já tinha tomado no bar. Eu temia algum tipo de tentativa obscena dos rapazes, mas todo o desdém da maioria da população pelo mistério da pedra parecia influenciar meu expansivo interesse por ela. Alimentada por esta força, mas também por uma surpreendente gentileza dos rapazes, aos poucos fui me tranquilizando.
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− Afinal, por que vocês vêm beber aqui? O que a Pedra do Diabo representa para vocês? − Porque aqui, de alguma forma, sentimos liberdade. Parece que esta visão maravilhosa da noite e da natureza fertiliza nossos pensamentos com uma introspecção libertária, disse um deles. − A pedra do diabo representa um referencial simbólico para o nosso comportamento e a nossa forma de pensar, tão estranhos à cultura da nossa cidade. Algumas pessoas, em um determinado dia do ano que, aliás, será neste fim de semana, fazem uma procissão que sai da igreja católica, percorrendo a estrada que leva ao açude, até chegarem à imagem daquela santa do outro lado do balde. Creio que buscam redenção e purificação com esta atitude. Não queremos nada disto vindo aqui à noite, acrescentou o outro.
− Por que vocês não tentam fazer desta pedra um ponto turístico? − Esta pedra não é um ponto turístico, é um ponto de vista, defendeu o terceiro. A conversa enriqueceria bastante o documentário. Proporia a eles em seguida que tentássemos reproduzir, o mais fiel possível, aquele momento (pela manhã, é claro) no dia seguinte, quando eu estaria munida da câmera (que disse a Clécio ter ido buscar). Mas isto seria uma preocupação para o outro dia, pois agora outra mais contundente se apresentava a mim. Depois de curta pausa, Wilson levantou-se e, tendo notado em mim uma tendência impulsiva pelo estranhismo daquela situação, revelou um fato ainda mais curioso: disse que no interior da fenda, era possível ouvir uns ruídos cuja origem ninguém nunca soube explicar. Confessou que, como uma demonstração de coragem, na primeira vez que estiveram ali, cada um deles desceu na fenda que se abria no meio da pedra, e ficou lá por uns cinco minutos mais ou menos. Quando perguntei se ouviram os ruídos, ele me provocou: “só descendo você saberá”. É incrível que situações como esta possam parecer tão macabras, e ao mesmo tempo, tão fascinantes. Certamente, havia grandes chances de me deparar lá dentro com um morcego, uma cobra, uma aranha. Por outro lado, que espécie de documentarista seria eu, se não agarrasse a oportunidade ímpar de compreender empiricamente o meu objeto de investigação?
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Percebendo minha instabilidade diante da proposta, o rapaz me ofereceu duas velas e uma caixa de fósforos, e alegou que a fenda não era tão funda quanto aparentava. Apoiada em erupções de pensamentos, decidi penetrar na Pedra do Diabo. À medida que comecei a descida cuidadosa, uma sensação vertiginosa me tomou. Cheguei rapidamente ao fundo, com a sensação claustrofóbica de que seria esmagada pelas paredes que estavam a não mais do que dois palmos de distância do rosto e das costas. Todo o barulho ao redor, aos poucos foi diminuindo. Acendi as velas, mas em vez de claridade, um manto negro baixou lentamente sobre mim. De repente, me vi assustadoramente caminhando naquela estrada descrita pelo senhor. Parecia ser um fim de tarde cinzento. O leitor só entenderia a sensação que ora tento transcrever, se fosse àquela pedra à noite e entrasse naquela fenda como eu fiz. Os passos lentos cessaram e um grito surdo pulsou de minha garganta quando vi um homem elegantemente vestido em um terno branco, fumando um charuto sentado na pedra, que se destacava na encosta do morro, provavelmente a uns dez metros de altura. Fiquei petrificada. Ele me encarava; nenhuma palavra ou gesto foram trocados entre nós. O olhar era penetrante e latente, mas extremamente tranquilo. Experimentei várias e profundas sensações naquele momento. Porém, mesmo com a adrenalina explodindo em todo o meu corpo, não queria sair dali. Não houve nem mais um passo meu, nem se quer um movimento dele. Todavia, nosso olhar recíproco parecia travar um duelo. Não, não era um duelo: era um debate. Não sei exatamente quanto tempo passamos nos fitando em silêncio. Era como se a pedra fosse uma mão estendida com ele na palma. Não consigo precisar o tempo; aproximadamente três minutos...eu acho. − Hálida! Escutei meu nome cortar o silêncio. Não foi o homem de charuto, e sim Wilson, preocupado com meu estado atônito. Meio desnorteada, escalei de volta, precariamente, a parede da fenda, tremendo nervosa. Não expliquei com precisão o que tinha acontecido: “O que você viu?”; “Eu vi o que eu vi”. Uma neblina fria recém iniciada banhou meu rosto. Disse a eles que queria voltar para o bar imediatamente. Descemos os degraus todos calados. Quando cheguei, Clécio logo percebeu meu estado perturbado que mal conseguia disfarçar. Os rapazes foram embora sem entrar no bar. Nós nos despedimos do pessoal e
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voltamos para o hotel, onde, um pouco mais calma, fiz um relato truncado sobre o que tinha acontecido. Ele esboçou aborrecimento, mas recuou devido ao meu olhar assustado. Demorei a dormir naquela noite. No domingo à tarde voltei ao local para filmar a pedra e a fenda com a ajuda de Clécio. Alguns flashes daquela experiência ainda se acendiam na minha mente. As velas ainda estavam lá, derretidas. Os rapazes também compareceram como havíamos combinado, mas suas declarações não foram tão sinceras quanto naquela noite; provavelmente por causa da presença de Clécio com cara emburrada, que filmava nossa entrevista. A câmera, que estava posicionada na direção do balde, capturou involuntariamente a chegada da procissão que passava lentamente sobre ele, atrás de nós. O vento que soprava para o leste carregou o som das palavras que dizíamos, misturou com o dos cânticos religiosos da procissão, que sobre a imensidão do açude foram retalhados pelos últimos raios do crepúsculo.
______________________________________________ MAXWELL F. DANTAS (Paraíba) – Contista. Graduado em letras pela Universidade Estadual da Paraíba. Membro da ABES (Associação Boqueiroense de Escritores). Participou da Coletânea Poética: Novos Poetas do Cariri Paraibano (2010).
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| Poemas
POEMAS DE BRUNO GAUDÊNCIO
ACASO CAOS o caos que existe em nós não faz a cama, mas abre as portas, as pernas...
o acaso não liberta, mas deixa a chama, a chave, na porta... na pele.
acaso o caos não é o cobertor? a madeira que divide os nossos corpos na hora do sexo?
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VESTIDO DE MEDO guardarás a roupa do mistério no teu olhar de tecido, no branco ou azul do medo, entre os botões da memória.
CAFÉ AURORA na praça os relógios silenciam as horas, ao ouvir o gosto do Café Aurora, na conversa tola do cigarro lento.
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Quantas barbas brancas olham as lindas moças que desfilam aos ventos?
GUIMARAES ROSA
I
Guimarães Rosa, certeiro. A acertar no profundo. Ser sertão, virar mundo. Serrando sonhos sinceros.
Guimarães Rosa, inteiro. Nas mais intensas paisagens A descortinar personagens Vilões, ingênuos, selvagens.
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II
Ser tão certeiro Ser sertão inteiro Em sua imensidão Nas veredas da existência.
Sincero em sua missão, No cântico da emoção, Em sua Saga, Sagarana...
______________________________________________ BRUNO GAUDÊNCIO (Paraíba) – Escritor, Editor, Jornalista e Historiador. Mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Autor do livro: O Ofício de Engordar as Sombras (Poesia, Sal da Terra, 2009). Membro dos Núcleos Literários Blecaute e CAIXA BAIXA. Edita o blog Acaso Caos: http://acasocaos.blogspot.com/ . Twitter: @BrunoGaudencio
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| Conto
A LARANJA
Por Ronie Von Martins
MUITO
ALTA. E NA PARTE MAIS
alta. Zombando de sua impossibilidade, ela.
Grande e vistosa. Redonda. A laranja. Rosto voltado para cima maquinava em seu pequeno cérebro artimanhas fantásticas para apanhar a grande laranja. Outras menores e sem graça estavam ao seu dispor. Mas a grande. Ela. Estava longe. Distante de seus sete anos de idade. E o pior de tudo é que era um homenzinho como a sua mãe dizia. Não devia pedir ajuda. Aquilo era uma questão de honra. Era entre eles. A laranja e ele. Mas era alto. Isso podia ver. Do alto ela continuava zombando. Pedra. Sim. Colocaria à baixo todo o orgulho daquela laranja à pedradas. Agora ela sentiria o poder do seu braço. Agachou-se no chão e apanhou uma pedra. Precisaria de mais – pensou – e ao pé da laranjeira amontoou um pequeno número de pedras de todos os tamanhos e formas. Da janela de casa a mãe observando as “funções” do filho resolveu aproximar-se para ver o que acontecia e perguntou-lhe o que fazia. Apanhado de surpresa e não querendo se “entregar” e pedir a ajuda da mãe respondeu que estava fazendo uma montanha de pedras para carregar com o carrinho de plástico. O olhar do menino misto de mentira e ingenuidade era algo digno do sorriso que se fez no rosto materno. “Tudo bem meu filho, mas não vai te machucar... qualquer coisa a mãe ta lá dentro.” E com passos lentos e ainda com uma rápida olhada para o filho a mãe voltou-se para os seus afazeres.
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Levantou-se do chão onde estava sentado juntando as pedras e o pânico tomou conta. Quase chorou, quase chamou definitivamente a mãe. Mas segurou. Resistiu firmemente, “era um homenzinho...” aos seus pés jazia uma laranja, enorme furo, morta, seca. Um grande pássaro estava próximo de sua laranja. Ia furá-la, estragar a fruta, vencê-lo. Frustrá-lo para o resto da vida. Ficaria traumatizado. Ouvira seu pai dizendo esta palavra quando olhavam televisão, achou bonita, perguntou ao pai o que significava... o pai respondeu alguma coisa que ele não entendeu bem... sabia que tinha a ver com tirar algo de alguém, fazer alguém sofrer... por aí. Se o pássaro comesse sua fruta, estaria marcado pro resto da vida, seria um terrível “traumatizado”. Foi então que em desespero começou a tocar pedra na árvore. O pequeno corpo no esforço de jogar pedras nas alturas. Na cabeça. A pedra elevou-se, parecia ir longe, mas de repente, sem mais impulso, força ou vontade parou. Ele observou. A pedra morreu no ar. Os olhos do guri se arregalaram, e ela voltou. Certeira, veloz, pesada, “pum”. Na testa. O guri caiu, tentou segurar o choro, levantou-se, o corpo tremendo de vergonha, raiva e dor, os braços frenéticos no ar, as pernas saltitando e fazendo o pequeno corpo dar pinotes engraçados. Gritou. Chorou. A mãe e o pai correram. Não parava de chorar. A mãe perguntava o que acontecera, o pai com o filho no colo tentava encontrar alguma coisa errada, um arranhão, um machucado. Ainda aos gritos o menino percebeu no céu o pássaro que estava na árvore. Assustada a ave resolvera fugir. Olhou para o lugar onde a laranja se encontrava, lá estava ela. Parou de chorar e pediu pra sair do colo do pai. Disse que estava bem, que fora só um susto...o pai desconfiado olhou pelo terreno, procurando algum bicho, inseto, mas não encontrou nada. “Não quer olhar TV meu filho?” Não, o guri não queria, e os pais por fim resolveram voltar para dentro de casa. Aliviado e enfurecido, o “galo” na cabeça incomodando, o pequeno homem apanhou um pedra grande e atirou contra a árvore. Errou. E sobre o muro a pedra passou. A criança ouviu quando uma vidraça se espatifou. Do outro lado uma voz de homem gritou uma palavra que ele tinha lido na escolinha, na porta do banheiro, mas que não sabia o que significava. Mas pelo jeito que o homem falara não devia ser coisa boa. O coração parecia que ia sair da boca e um medo pesado e
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opressivo tomou-lhe o corpo e a mente. Seria preso. A polícia viria pegar-lhe. O resto da vida na cadeia. Como os filmes que via na noite quando o pai dormia e ele voltava a ligar a TV do quarto. Tinha que fugir. Tinha que fugir! Correu pra dentro de casa, apanhou a pasta do colégio, tirou os cadernos, enfiou o urso de pelúcia, apanhou a espada do He-man, precisava de proteção. Juntou um saco de biscoitos no armário, uma garrafinha de água na geladeira e ganhou a rua. Correu para a porta exatamente no momento em que o vizinho apertara a campainha. Tinha que ser agora. Deveria ser rápido, frio e calculista. Esperou o pai aproximar-se, no exato momento em que a porta abriu-se ganhou a rua. Uma golfada de ar gelado, uma sensação estranha invadiu seu corpo. Agora estava sozinho. Ele e o mundo. Não tinha casa, pai, mãe, amigos. Só o mundo e os perigos das aventuras que surgiriam. Correu para as esquina, o lugar mais longe que fora até agora. Faria seu lar ali. Sim. Aquela esquina seria seu novo lar. Faria uma cabana, encontraria um cachorro como amigo e começaria uma vida nova. Sentou-se em uma calçada e pensava na vida quando o Jovenal, o dono do armazém chamou-lhe. “Brincando seu Veriatinho?” O menino aproximouse, peito estufado, olhar severo e forte. Agora era um homem enfrentado o mundo. “Fugi de casa, agora estou morando sozinho.” Os olhos do Jovenal, homem gordo e simpático sorriram. “Então o jovenzinho resolveu abandonar a família?” O menino apenas fez que sim com a cabeça. “E onde vais morar?” “Aqui.” respondeu o menino. “Vou fazer minha casa nessa esquina.” O Jovenal entrou para o armazém e voltou com uma grande caixa de papelão. “Toma então, tenho uma bela casa aqui.” Os olhos do menino se iluminaram. Escorou a grande caixa de papelão ao lado do armazém e entrou. Uma sensação de conforto invadiu-lhe o corpo. Agora estava protegido, dentro da sua própria casa. Pegou a espada do He-man, abraçou-se ao urso e “enroscou-se como um cachorrinho para dormir”. As aventuras se sucediam uma atrás da outra. Dragões, feiticeira, índios, monstros, todos eles eram derrotados pela sua grande espada encantada. Lugares estranhos e nunca vistos eram desbravados, por onde andasse as pessoas o cumprimentavam, pediam sua ajuda. Sem dúvida tornara-se um grande herói.
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Acordou ouvindo a conversa do pai e da mãe. “Esse guri...” foi o que mais ouvia das conversas. Olhou assustado para os lados, estava no quarto, o seu quarto. A caixa de papelão do seu Jovenal ao lado da cama. “Pois é...” era a voz do Jovenal “ O rapazinho deitou na caixa e dormiu como uma pedra.” Estava novamente em casa. o que aconteceria? E a polícia? A mãe entrou no quarto, afagou-lhe os cabelos. Isso era bom. Muito bom. Algumas palavras. Muitos sorrisos. E a noite veio. O sono e o sonho.
No outro dia jogava bola no pátio. Era um grande jogador de futebol, a árvore era o adversário, ridículo, pesado, e ele driblava o oponente do jeito que entendia, era um craque do futebol. Correu, driblou, cansou. Sentou-se satisfeito, o jogo havia acabado trinta e nove a zero para ele. A árvore não havia feito nenhum gol. Sentou-se no chão. Ofegante. Um silêncio enorme invadiu a manhã. “Pum” a laranja despencou na sua cabeça. Meio tonto e enfurecido, sem perceber o que fazia, apanhou a laranja e lançou-a sobre o muro. Arregalou os olhos. Uma careta. Esperou o berro que escalou o muro e saltou aos ventos: − Mas que merda!!
______________________________________________ RONIE VON ROSA MARTINS (Rio Grande do Sul) – Escritor e Professor de Literatura. Tem dezenas de textos publicadas em revistas e suplementos pelo Brasil e outros países da América do Sul, a exemplo da Cronópios, Verbo21, Portal Literal, Caos e Letras, Literatura del Mañana, Revista Capitu, Literatura em Foco, na Revista Germina – Literatura e Arte, na revista La Hojarasca, Revista Letras Uruguay.
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| Ensaio
O CONTO POPULAR: APREENSÃO LÓGICA FORMAL DO CONTEXTO HISTÓRICO, LINGUSTICO E CULTURAL DO NARRADOR ORAL
Por Félix Maranganha
O
ATO DE NARRAR, NO MUNDO
atual, pode ser considerado uma arte em extinção.
As ações bélicas que antes eram a causa das grandes histórias como a Ilíada ou as Lendas do Rei Artur são hoje traumáticas, e os soldados que retornam das guerras não mais compreendem o distanciamento narrativo entre o ouvinte e a história contada, mas apenas calam-se diante do inevitável pesadelo da guerra1. O distanciamento comum ao ato narrativo está presente no mito, de forma dupla, uma vez pela narração, e outra vez na psicologia do símbolo mitológico2, pelo qual tudo ocorre em tempo e espaço indefinidos. A narração é essencialmente um relato de experiência pessoal inserido no universo social, por meio do qual um objeto qualquer entra no mundo histórico a partir do momento em que entra no mundo humano3. Qualquer coisa que participe no universo social dos homens, sendo uma narrativa, um pente, um pássaro, uma pedra ou uma ideia, a partir do momento em que é criado pelo homem, ou retirado do mundo natural, perde seu valor de ser infinito em si mesmo e realiza-se como valor limitado pelo meio social4. Oculto por uma cortina temporal, séculos de indivíduos são construídos de maneiras diferentes, de acordo com as múltiplas manifestações dos povos aos quais eles pertencem, inserindo esses objetos em contextos histórico-sociais de modo a imprimir neles
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1985. p. 202. 2 CAMPBELL, Joseph. As transformações do mito através do tempo, 1993, p. 15. 3 GOUVEIA, Arturo. Escritos adornianos. João Pessoa, Ideia / UFPB, 2010. p. 13. 4 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Martin Claret, 2003. pp. 142 e 143. 1
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muito mais que suas marcas físicas, despindo-os de seu infinito natural para fazê-los soma de valores sobrepostos por sua história social. Entre os inúmeros objetos, naturais ou originários diretamente do mundo humano, podemos listar as manifestações populares mais diversas como as danças, as músicas, os jogos, os contos, as rezas, além dos saberes agrícolas, que muitas vezes imprimem-se de elementos arcaicos que são escondidos sob a superfície do apreensível diretamente. No caso do conto popular, ele “oferece à comunidade um terreno de experimentação em que, pela voz do contador, ela se exerce em todos os confrontos imagináveis”, tornando-se mais que meramente uma narrativa despropositada de um fato distanciado dos ouvintes por causa da presença do narrador oral, mas um organismo com função de estabilizador social,
no
qual
persistem
tradições
narrativas
orais
para
além
das
transformações culturais5. Fisicamente é uma sucessão de sons e palavras que criam um contexto internamente verossimilhante inserido no gênero épico, mas seu valor histórico transcende seu valor físico justamente por ser ele uma das muitas ferramentas de reinserção e reinterpretação histórica que construímos ao nosso redor em que uma “prática do contar histórias equivale a um despojamento, também ao nível das relações materiais que sua circulação envolve”6. O conto popular “não pode ser compreendido plenamente desvinculado de seu contexto”7, pois o mesmo se manifesta no contexto de sua enunciação, sendo, portanto, um objeto histórico, nos quais os contadores retiram experiências do fundo de suas memórias, e de relatos já ouvidos por eles mesmos de outros contadores de histórias. Mas o contexto do conto popular é mais que registro histórico, ele ganha, no ato de sua enunciação, papel cívico-social. O contador de histórias geralmente relata os contos no contexto do trabalho manual, em conjunto com outros trabalhadores, para espantar o tédio inerente à execução do mesmo8. Assim, o conto popular insurge-se não apenas no contexto históricosocial, como também no universo das classes trabalhadoras.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. pp. 56 e 57. LIMA, Francisco Assis de Sousa, apud AYALA, Maria Ignez Novais. “O conto popular: um fazer dentro da vida”, in: Anais do IV Encontro Nacional da ANPOLL. São Paulo-Recife, 26 a 28 de junho de 1989, p. 263. 7 AYALA, Maria Ignez Novais. “O conto popular: um fazer dentro da vida”, in: Anais do IV Encontro Nacional da ANPOLL. São Paulo-Recife, 26 a 28 de junho de 1989, p. 260. 8 AYALA, Maria Ignez Novais. Op.Cit. p. 262. 5 6
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A confusão acerca do papel histórico do conto popular talvez se dê por ser ele confundido com o cordel. Tanto o cordel quanto o conto popular são representantes de uma tradição, mas o processo que os forma é distinto. O cordel apropria-se da uma tradição mista entre oral e escrita, com relativo compromisso simbólico com a literatura canônica, como consta na História da Donzela Teodora9, na qual coexistem contos maravilhosos, epopeias medievais e versificações de romances aventurescos, mas o conto popular se centra em uma tradição perdida, sobrevivente apenas na memória dos contadores. Ou seja, o cordel apresenta, em seu material extenso, algumas histórias que constituem um relato sobre movimentos sociais e políticos, como cangaço e “salvações do Norte”, uma ética atual que se insere na narrativa da tradição, e o enredo, mesmo distanciado no tempo, reveste-se de um caráter ético-histórico contemporâneo ao cordelista, como bem afirma Ruth Brito Lêmos Terra:
A observância de fidelidade aos textos geradores se explica no fato mesmo de consulta a uma fonte impressa. No caso da História de Carlos Magno, acrescenta-se ainda o peso de um referencial verídico, referenciado em datas e com o alcance de um ‘modelo histórico do sertão’, que remete a um tempo e a uma ordem idealizados10.
Portanto, conto popular e cordel são coisas distintas, mesmo que tomem de empréstimo elementos uns dos outros, como as aventuras de Jesus e São Pedro recolhidas por Gonçalo Fernandes Trancoso, que vêm emprestadas das hagiografias em verso e prosa medievais e reinterpretadas de forma lúdica, ou o Romance do Pavão Misterioso e a História de João de Calais, cordéis nitidamente influenciados por uma tradição de contos feéricos populares ou por uma antologia tradicional de contos heróicos. Mas ambos valem-se em sua totalidade das tradições do grupo em que são produzidos11 e são, portanto, registros históricos de sua cultura.
TERRA, Ruth Brito Lêmos. Memória de Lutas: Literatura de Folhetos do Nordeste. São Paulo, Global, 1983. pp 68 e 69. 10 TERRA, Ruth Brito Lêmos. Op. Cit. p. 69. 11 ARANTES, Antonio Antunes. O trabalho e a fala: estudo antropológico sobre os folhetos de cordel. Editora Kairós / Funcamp. p.55. 9
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Segundo Câmara Cascudo12, o conto popular é uma expressão da psicologia coletiva de um povo, uma estrutura orgânica formada por entidades individuais transcendente ao indivíduo e que alcança o nível da coletividade histórica, mas que toma como substrato desse comportamento social a própria constituição psíquica e biológica que se manifesta no âmbito individual. Mas sendo uma psicologia coletiva entendida como recurso de armazenamento histórico de símbolos e imagens de uma cultura, os elementos mais simples em estrutura nas narrativas culturais, os mitemas13, são entendidos como elementos de significação básica em uma hermenêutica redutora dos símbolos culturais, da qual o próprio Câmara Cascudo era representante. Hermenêutica redutora também era a de Marx e Adorno, fortemente usados por Arturo Gouveia em sua teoria. Por outro lado, preconizando essa psicologia coletiva, somos tentados a compreender a cultura como formada da união das psicologias individuais de vários seres humanos. Como são humanos, então todos possuem um arcabouço comum, e podemos inferir uma interpretação dessa psicologia coletiva como aquela pensada por Carl Gustav Jung14 em toda a sua terminologia confusa e generalizante dos arquétipos. A confusão ocorre por pertencer Jung a um sistema hermenêutico essencialmente instaurador, que busca justamente o significado que pode ser sinalizado por qualquer significante, do mesmo modo que o significante pode assumir qualquer significado. A instauração do símbolo se dá justo no ponto de convergência entre esses infinitos. Partindo de uma hermenêutica redutora, transformando toda narração básica em mitema, podemos que existem unidades de significação que servem de base para as culturas orais, através das quais o modo de pensar do povo nada mais é que um registro histórico, um documento mais ou menos fixo do quadro da literatura oral de um país ou povo. Nesse sentido, a psicologia popular transposta para a sua realidade física, a do conto popular, é mais que sons e movimentos de um contador de histórias, e torna-se objeto histórico, com
CASCUDO, Câmara. Verbete: “Conto popular”, in: Dicionário do Folclore Brasileiro. 10ª ed. Rio de Janeiro, Ediouro, s/d. pp. 303-306. 13 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 14 Freud foi descartado não somente por pertencer a uma hermenêutica redutora cartesiana, uma vez que Marx também segue a mesma linha reducionista, mas por este confundir aquilo que causa o processo com o objeto que associa-se com essa causa. Dentro desse contexto, a visão pansexualista de Freud não serve para compreender a estética da historicidade arqueológica do conto popular tratado aqui neste texto. 12
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capacidade de cristalizar ou transformar através dos mesmos elementos, e capazes de influenciar a história e o homem. O conto popular assume essa função de documento-sobrevivência, através do qual os costumes, os usos e as fórmulas jurídicas de uma época anterior à enunciação mais recente sobrevivem em períodos posteriores, culminando no ato da narração do mitema. Ele também imobiliza a moral e os valores de uma época que se distancia do contador de histórias no tempo e no espaço. Pensando desse modo, contos populares cavaleirescos que circulavam entre as cortes palacianas da Idade Média imprimem uma moral cristã em que o amor é tratado como inacessível e sofrível, em que o ideal não é o sentimento, mas a submissão do amor ao dever, impossibilitando a realização social do mesmo. Nisso, a estrutura dos contos projeta o sofrimento e a submissão no objeto amoroso. Já nos fins da Idade Média, essa alegoria ética das relações feudais veio a servir de base para a poesia palaciana e influenciou a constituição temática das trovas, como bem afirmou a filóloga Carolina Michaëlis de Vasconcelos15. De igual monta, grandes epopeias, como a Ilíada e a Odisséia, são transcrições de uma narrativa oral do século VIII a.C., possivelmente mista de verso e prosa, cujo texto foi estabelecido em meados do século VI a.C., a mando do tirano grego Pisístratos. Essas epopeias transmitem fatos ocorridos até doze séculos antes de Cristo, mas que sofreu acréscimo / perda de elementos com o passar das gerações. Elementos sociais que foram sendo decantados no conto em todo esse período de quatro séculos entre o fato histórico e a narração oral fixa, que se interpõem em camadas para a apreciação após sua passagem para o modo escrito. Uma vez engessada, a narrativa oral deixa de modificar-se diante daquele texto, e sua enunciação extra-escrita torna-se meramente uma versão do texto fixo. Até seu registro em tábua, papel ou pergaminho, os poetas tornavam o desenvolvimento narrativo um amontoado de estruturas e sobre-estruturas mais ou menos coerente, mas constantemente bombardeado pela atualização do rito, pelas lendas, pela imaginação, pelo mito e pela história, organizando uma mega-estrutura complexa na qual os elementos são alienados por não mais significarem aquilo que significaram em seu contexto original.
15
VASCOCELOS, Carolina Michaëlis de. Cancioneiro da Ajuda, vol. II. pp. 450-464.
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Aqui podemos trabalhar com ambas as hermenêuticas, uma vez que o símbolo, por ser uma estrutura pré-social de significado, finda por significar algo histórico com a presença humana do significante. Mas os símbolos também são pós-sociais, ou seja, os significados com os quais os seres humanos nascem16, os arquétipos, absorvem valores históricos a partir do momento em que transcendem o mundo do indivíduo e publicam-se nos mitos. Da mesma forma, a redução das narrativas a unidades significativas, sendo estas consideradas significantes estruturais chamados mitemas, as transforma em elementos simbólicos sempre que reinserimos sua manifestação externa e social no mundo do indivíduo. Se a narrativa, após sua criação, torna-se objeto histórico, podemos entender porque, quase três milênios depois de Homero, no século XIX, a novelística romântica consagra o conto popular, ainda que na forma estilizada de contos de fadas ou de terror trazidos de volta à vida pelos Irmãos Grimm ou por Hans Christian Andersen e Edgar Allan Poe. Sua consagração, similar à fixação escrita das epopeias gregas, foi possível apesar de não ser uma unidade de elementos coadunados em sua origem, e muito menos uma narrativa típica de um único povo, mas uma fusão de elementos de historicidades diversas num único corpo coeso17. Sendo um objeto histórico, ele é submetido a todas as influências sociais sob as quais estão também todos os demais objetos históricos. Por causa dessa multiplicidade nas origens, as narrativas populares como as que geraram as grandes epopeias estão embebidas em um universo no qual cada contador de histórias ou poeta insere ou filtra os elementos que recebe e transmite o novo corpo para a geração seguinte. De contexto em contexto histórico, o distanciamento típico do ato de narrar permite com que o narrador possa manter elementos de uma época anterior à sua no conto popular, mesmo que esse elemento não seja aceito pela ética atual ao enunciador. Logo não existem contos em blocos únicos, assim como não existe uma única história de Odisseu, ou uma única versão das lendas arturianas. Isso significa que mesmo as narrativas populares primárias – aquelas que derivam diretamente dos fatos históricos – já são, em si, variantes de contos e relatos com distanciamento ouvinte-enunciado que os narradores populares confirmam de fatos vividos em sua experiência empírica. JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis / Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 88. 17 CASCUDO, Câmara. Op. Cit. 303. 16
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O objeto histórico não pode ser compreendido retirado da história, e muito menos retirado de seu contexto. Se um objeto possui uma trajetória que perpassa vários séculos, não se pode compreender o objeto retirando-o dos séculos aos quais pertence, e muito menos fazendo um recorte de um ou dois desses séculos. Todo objeto histórico é completo por si mesmo, e sua compreensão só pode ocorrer no nível de sua manifestação no mundo real, sua fenomenologia. Como a narrativa popular é um objeto histórico que assume a importância individual de conselheira e o homem enquanto indivíduo é mais receptivo a um conselho quando se verbaliza uma situação em que a ideia daquele conceito se insere18, o conto popular, também como objeto histórico, reinterpreta outro contexto histórico-social anterior, mantendo a identidade estrutural, mas assumindo novos elementos fenomenológicos da narrativa primária. Após o fato histórico, os poetas se pautam em estruturas anteriores para transmiti-lo aos demais de sua sociedade, estruturas essas nas quais persiste a sobrevivência de usos, costumes e fórmulas jurídicas de períodos anteriores, e nelas inserem a narração de suas experiências. É o que ocorre com a Ilíada e o Mahabharata, que, apesar de distantes no tempo e no espaço, possuem estruturas semelhantes no que concerne às suas personagens centrais, Aquiles e Árjuna. Enquanto o grego se recusa a guerrear por ter sua presa de guerra retirada de seus braços por um rei amigo, o indiano evita entrar no confronto para não ter de matar seus primos e amigos. Tanto um como outro são impelidos à guerra por dever e consciência, e por verem entre seus mais próximos o resultado de sua ausência. Características como essas, que poderiam ser extensamente citadas, prenunciam a presença de elementos ainda anteriores aos gregos e aos indianos, provindos de um universo indo-europeu mais arcaico. Portanto, tanto Aquiles quanto Árjuna são personagens históricas, pois se realizam na história, mas ambos foram esvaziados de sua factualidade e preenchidos de valores simbólicos ainda anteriores à cultura que formou as personagens, já presentes na psicologia popular antes mesmo de gregos e indianos constarem como povos. Mesmo imediato ao fato histórico, sua narração ocorre em uma estrutura pré-existente. O conto popular é uma dessas estruturas e também mantém atuais os usos, os costumes e as fórmulas jurídicas de épocas anteriores. A oralidade é, então, 18
BENJAMIN, Walter. Op. Cit. p. 202.
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um registro histórico da moral de outra época, ao mesmo tempo em que impede a mudança dessa moral por causa de sua estrutura rígida. O resultado é um corpo híbrido, em que a narrativa popular é mais que historicamente distanciada pela dicotomia ouvinte-enunciador, e mais que pelo distanciamento psicológico, mas ocorre aí um completo distanciamento ético-temporal, na qual nem o narrador nem o ouvinte se reconhecem mais na moral em desuso do conto popular. Levando isso em conta, uma Grécia de contexto essencialmente androcêntrica
e
de
religiosidade
baseada
na
figura
de
Zeus
torna
contemporâneos a Homero e Hesíodo momentos de papel feminino ativo como Helena de Troia diante do cavalo de madeira, ou ao apresentar como símbolo de virilidade justo o elemento de maior feminilidade entre as deidades gregas, a deusa Hera, de cujo nome deriva a palavra herói. Tais fórmulas ético-morais gravadas nos contos são anacrônicas no momento da enunciação, mas verossímeis para com o momento retratado pelo enunciado. Se isso é verdade, então a sobrevivência dessa fórmula se dá não apenas no âmbito textual, mas também numa dialética entre o movimento da enunciação e da fixação temática do enunciado. Os múltiplos elementos originais na formação do conto popular obrigam as fórmulas ético-morais a figurarem como parte de sua estrutura social, na qual momentos distintos deixam suas marcas, seja nas interpretações individuais, seja na construção de contos posteriores baseados na narrativa basilar. Se o conto popular não é um bloco único, as fórmulas morais também não são, exceto enquanto fatos históricos isolados de seu contexto. Na fixação dos modos, dos costumes e das fórmulas jurídicas isolam-se do contexto original e cristalizam-se no conto popular de modo a criar, por meio deles, um fóssil estrutural das tradições sociais distanciadas da narrativa. Sendo todo conto uma variante de outro conto, ocorre à formula moral apenas dois caminhos: fixar-se invariável e criteriosamente em referência ao contexto da enunciação, ou unificar as éticas das camadas das sucessivas gerações de poetas e contadores de histórias. De certa forma, as duas escolhas resumem-se a uma hermenêutica redutora ou instauradora, e filólogos, folcloristas e mitólogos, ao escolher um dos dois caminhos, retiram do conto popular seu caráter plural e polissêmico e, o mais importante, tiram do mesmo a objetividade histórica, e esquecem-se de olhar o objeto no nível de sua fenomenologia.
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Essa cristalização é inclusive motivo temático não somente desses contos, mas de outras produções similares, como o que podemos observar na hagiografia intitulada A Canção de Alexandre, na qual a recitação da obra se torna fixa e fechada, relatando um mundo moral com limites claros e precisos, como vemos nesses dois primeiros couplets:
Bons fut li secles al tens ancïenur, Quer feit i ert justise ed amur; S’i ert creance, dunt or n’i a nul prut. Tut est muez, perdut ad as colur: Já mais n’iert tel cum fut as anceisurs.
Aiuns, seignors, cel saint home en memorie, Si li preiuns que de toz mal non tolget. En icest socle nus acat pais e goie, Ed en cel altra la plus durable gloire! En ipse verbe sin dimes: Pater noster!19
Sendo o significante a forma empírica do signo linguístico-cultural, e o significado seu referente mental ou ideal, o símbolo surge quando o signo se torna vazio de significado20. Sendo o signo uma entidade concreta que remete a um significado concreto ou abstrato, submisso a uma rede de convenções, podemos deduzir que o signo é, portanto, uma construção histórico-social que sinaliza outras construções histórico-sociais, que são o significado e o significante. Se o símbolo se esvazia de seu significado, ele torna-se significante sem substrato, já inserido ou imposto por um meio social. Mas o símbolo ainda perde seu referente, ainda mais que o signo, na direção de um significante que é preenchido por um contexto social arbitrário. Após o resultado dessa necessidade conceitual de um determinado recorte histórico, o símbolo se reduz historicamente a uma alegoria. O símbolo polissêmico assume, ao esvaziar-se, a condição de significante histórico-social. E a história é um meio pelo qual a Em francês medieval. Tradução do autor: “Bem estava o mundo no tempo dos antigos, / pois nele reinava a fé, a justiça e o amor; / havia também a crença que hoje ridicularizamos. / Tudo mudou, o mundo perdeu sua cor: / ele não será mais o que era nos tempos de nossos ancestrais. // Tenhamos, senhores, esse santo homem na memória, / rezemos a ele para que nos lavemos de todo mal. / Que ele nos traga a paz e a alegria neste mundo, / e a glória eterna no outro [mundo]! / Nesta palavra dizemos então: Pater Noster.” 20 DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa, Edições 70, 1993. pp. 8 e 9. 19
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arquetípica individual e social fazem a mediação dos símbolos de épocas anteriores, mas, como no conto popular, o significado é uma ética própria e não mais em uso, esse tratamento meta-simbólico da história perde-se nele e o reduz à mera alegoria anti-simbólica. Seu enunciado entre os populares é uma narrativa cuja significação passa por uma interpretação direta e apreensível de seu enredo de acordo com o contexto social. A alegoria impõe ao conto popular a perda da arbitrariedade, e o traduz rapidamente de forma concreta a uma ideia de difícil compreensão21. Portanto, longe de figurar como narrativa popular simples, em que se relata a experiência vivida pelo narrador, o conto popular deixa de sinalizar algo infinito produzido por algo simbólico ao homem e assume suas funções de alegoria com significado também finito. Enquanto estrutura, o conto popular é um recorte alegórico de um momento histórico, mas ele mesmo atravessa os momentos históricos como formulação ético-moral e fixa-se como um todo fenomenológico passível de completa apreensão desde sua origem imediata à factualidade natural até sua consagração escrita posterior. O próprio conto popular pode figurar como uma estrutura maleável e adaptável a qualquer contexto histórico, mas prende-se às amarras do momento social a que sua temática se refere. Enquanto significante, ele é limitado pela redução do símbolo à alegoria, e enquanto significado, tem sua fronteira no dogma ético-moral que é contemporâneo à enunciação, e que agrega elementos novos a cada nova geração de contadoresouvintes. Apesar de falarmos sobre contos populares, aconteceu na história algo parecido com as albas, poemas medievais nos quais uma aventura amorosa permitida no passado, agora proibida pela atualidade de sua enunciação, ganhou novos significados nas penas dos clérigos medievais, que subvertem o sistema ético-amoroso romano no qual se inspiraram para um mundo éticoreligioso da Idade Média.
[...] esse simbolismo será subvertido nos séculos seguintes: entre os próprios clérigos nasce uma poesia alternativa, profana, em boa parte inspirada nos tratados amorosos de Ovídio. Em um manuscrito compilado no século X e guardado na Biblioteca do Vaticano, encontra-se uma estranha canção em latim cujas três estrofes misturam a temática litúrgica ambrosiana (uma 21
Idem. p. 9.
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exortação aos preguiçosos) com elementos da mitologia (os deuses Febo/Apolo e Aurora). Curiosamente, já apareceu aqui, em vez do galo, um vigia que grita “Levantai-vos!. [...]22.
Ou seja, na alba há um registro fixo dos costumes romanos, mas reinterpretados e realçados em um universo medieval cristão como uma arqueologia cultural, assim como ocorre com o conto popular, cujo valor absoluto é histórico enquanto registro dos costumes que são descritos no enunciado, mas seu valor relativo é mítico pela alegoria temática. Sua estrutura original também é mítica, uma vez que é a mesma estrutura que encontramos em paralelismo entre narrativas de povos distintos com origem em comum, como os gregos e os indianos, e suas respectivas epopeias fundadoras. Por ter uma estrutura em comum com o mito, o conto popular apresenta inclusive uma soma de elementos sobrepostos em camadas socialmente unidas, como no caso da mistura na alba entre o sistema litúrgico da igreja e os elementos mitológicos anteriores ao Cristianismo. Mas no mito, a soma vem a criar uma história mítica, que consiste em um relato por meio do qual, sem a necessidade de ser factual, constrói-se um cronograma da origem e dos prolongamentos da cosmogonia23. Portanto, o valor do mito é essencialmente simbólico, enquanto o conto popular reserva-se a um papel mais históricoalegórico, ambos preservando o papel distanciado do enunciado em relação à enunciação, e que vem a ser característica básica de todo o gênero narrativo. Mas o texto histórico-oral, assim como a história mítica, apresenta uma estrutura que imprime uma história exemplar, é uma exempla desatualizada, em desuso, enquanto a história mítica necessita da atualização ritual. Sendo a cosmogonia um modelo exemplar através da qual se realiza a criação por excelência, ela é copiada por hierogonias24 secundárias, ou seja, dela derivam os demais relatos de origem de uma cultura, ela é fixa e ritual25. O conto popular, por sua vez, sendo um modelo jurídico em desuso em uma sociedade, mantémse vivo por seu caráter alegórico, e é modelo a ser copiado por outros contos 22
GOMES CORREIA, Francisco José; VAN WOENSEL, Maurice J.F. Poesia medieval ontem e hoje: estudos e tradução. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 1998. p. 20. 23 ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Rio de Janeiro: Edições 70, 1976. p. 90. 24 Termo próprio, aqui no sentido de “criação sagrada”, mas aqui reportando a outras estruturas criacionistas como a teogonia (a origem do deuses) e a antropogonia (a origem do homem). 25 ELIADE, Mircea. Op.Cit. p. 25.
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populares. Ele é rígido e, ao mesmo tempo, dinâmico e sincrético na presença de outros textos similares, inexistindo assim derivação, e privilegiando-se o diálogo. A distinção entre a simbologia da cosmogonia mítica e o modelo do conto popular é que no segundo o modelo cristalizou-se inúmeras vezes no conto, sobrepondo camadas interpretativas umas às outras, mas preservando a camada ética original quase completamente intacta, enquanto a primeira é sempre submetida a novas interpretações sempre que o rito o torna atual. Sendo tanto o mito quanto o conto popular manifestações da narrativa oral e, portanto, da linguagem humana, infere-se ao mito o valor de estrutura narrativa sincrônica, uma vez que ele é válido enquanto atualidade e ritual, e ao conto popular um valor diacrônico, uma vez que o mesmo resgata modelos de épocas anteriores à sua enunciação. De qualquer maneira, por seu caráter oral, o mito ganha também o papel de retentor ético, mas em grau menor. Apenas quando o mito passa para o registro escrito e transforma-se em dogma é que ele assume o papel de alegoria, e o conto popular perde de forma completa sua função social e seu caráter histórico, extinguindo-se ou estilizando-se. Apesar de sua importância social, a escrita enquanto objeto histórico descaracteriza a simbólica do mito e elimina a alegoria histórica do conto popular. Mas isso não é um fato bom ou mal, mas apenas histórico, pois o texto escrito cria o fenômeno do leitor, um ente que obriga a si mesmo a uma leitura diferente da cultivada pelo ouvinte. Ou seja, o critério de decodificação e o processo histórico do texto são agora diferentes.
Déchiffrer un manuscrit, en restituer oralement le contenu à un public plus ou moins nombreux, n’était sans doute pas une tâche facile. Dans l’espace du manuscrit, un texte en vers possède, il est vrai, sa propre aération, créé son rythme par le changement de ligne d’un vers à l’autre. Les lignes serrées d’un texte en prose remplissent en revanche au plus juste les colonnes [...] des folios des manuscrits. Les lignes de ponctuation, quand ils existent, restent rares. Pourtant, dans la plupart des manuscrits d’oeuvres littéraires, se met en place, à partir du XIIIe siècle, un réseau de plus en plus dense de procédés qui facilitent la lecture du texte manuscrit en
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delimitant hiérarchisant, du ‘paragraphe’ au ‘chapitre’, des unités de lecture26.
O mito antes da escrita era recitado para atualizar uma ética sagrada anterior, mas sempre mutável pela dinâmica inerente aos sistemas de símbolos, enquanto o conto popular era recitado num contexto mais profano, sem compromisso ético com a atualidade. Fenomenologicamente, a narrativa popular profana compartilha com a sagrada o fato de ser um objeto humano e, portanto, inserido na história. Porém, diferente do mito, o conto popular não tem compromisso com uma história divina com seres sobrenaturais, e muito menos com a exaltação de antepassados míticos, assumindo sua função comparativa entre as diversas éticas que se sobrepuseram como camadas ao texto falado, mas apesar disso, ambos são relatos de sobrevivência histórica. O mito preserva o ritual e, portanto, o valor simbólico do relato tanto em estrutura quanto em referente27. O conto popular registra a permanência, pelo menos na memória coletiva, de um sistema de costumes já sem manifestação social, cuja alegoria ética é a única coisa que restou aos ouvintes e ao narrador. A essência do conto popular não é produto da ontologia simbólica presente no mito, mas de uma alegoria histórica que resulta de uma tensão dialética entre o presente da enunciação e o passado do enunciado. O conto popular dá uma sobrevida às fórmulas jurídicas dos antepassados justamente por, diferente do mito, não consistir de especulação filosófica acerca das origens ou do papel do homem no meio. Ele não nasce do espanto ontológico, mas da necessidade empírica de alegorizar o aconselhamento das regras de uma sociedade por meio de suas narrativas situacionais28.
26
BAUMGARTNER, Emmanuelle. Le récit médiéval. Paris, Hachette, 1995. p.12. Tradução do autor: “Decifrar um manuscrito restituindo oralmente o conteúdo a um público mais ou menos numeroso, sem dúvida não era uma tarefa fácil. No espaço do manuscrito um texto em verso domina, ele é verdadeiro em sua própria atmosfera, criado seu ritmo pela mudança de linha de um verso a outro. As linhas cortadas de um texto em prosa preenchem em compensação até mesmo a mais justa das colunas [...] das páginas dos manuscritos. As linhas de pontuação, quando existem, ficam raras. Portanto, na maior parte dos manuscritos de obras literárias, põem-se em seu lugar, a partir do século XIII, uma rede cada vez mais densa de procedimentos que facilitem a leitura do texto manuscrito ao mesmo tempo delimitador e hierarquizante do ‘parágrafo’ ao capítulo’, das unidades de leitura”. 27 ELIADE, Mircea. Op.Cit. p.93. 28 BENJAMIN, Walter. Op.Cit. p. 202.
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As grandes mitologias consagradas por poetas, ritualistas e teólogos, nos quais há uma tendência pela gesta dos deuses29 transformaram-se em sistemas imprecisos, porém necessários para a transcendência simbólica do homem religioso. Basta verificar que, entre os gregos, havia pulsões sociais contraditórias para um culto a Apolo e um a Dioniso, mas ambas aceitas como sistemas de transcendência simbólica, a mudança do sistema mítico acontece porque, uma vez essa mitologia sendo posta nas mãos das elites, por sua necessidade histórica e psicológica pelo lúdico, ela é desmistificada e posta à semelhança com as lendas e com os contos infantis30 e torna-se anticanônica, antitradicional31. Mas o homem, diferente dos outros animais, retém a capacidade de brincar, de apreciar a exploração de possibilidades diferentes32, e portanto faz surgirem várias versões do mito que se torna, enfim, várias versões de contos populares. A elite não é a única fonte dos contos lúdicos, pois os mesmos surgem entre os populares para finalidades diversas às da elite. “As narrativas populares são caracterizadas, comumente, por narradores e ouvintes, como forma de diversão, entretenimento ou brincadeira em tempo de folga, em geral à noite, depois do trabalho, ou em situações de festa, onde se reunem várias pessoas, o que possibilita a formação de um público para esta atividade literária”33. A ética original retratada nas ações das personagens do mito recitado ludicamente permanece como fórmula jurídica do tempo do enunciado, que sobrevive somente na enunciação como situação exemplar ou conselho, firmando a estrutura de uma ética perdida por meio do riso. A ética das epopeias gregas e indianas são vistas hoje como históricas e contempladas como meros objetos estéticos, e não mais como verídico-factuais ou passíveis de atualização ritual. Como resultado lógico, o conto popular mostra-se como receptáculo de vários sistemas sociais empalhados na história. D’As Mil e Uma Noites às fábulas de Esopo, eles assumem-se como uma espécie de sítio arqueológico feito de palavras, nos quais os estudiosos escavam na própria literatura oral não ELIADE, Mircea. Op.Cit. p.95. ELIADE, Mircea. Op.Cit. p.96. 31 BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François de Rabelais. 3ª ed. São Paulo-Brasília, Edunb-Hucitec, 1996. p.26. 32 ARMSTRONG, Karen. Uma breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.14. 33 AYALA, Maria Ignez Novais. Op. Cit. p. 262. 29 30
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somente modos de pensar e agir, mas momentos culturais próprios e distintos, muitas vezes imediatos ao fato histórico ali narrado, outras vezes sobrevivência de mitologias anteriores à conquista pelo povo que preservou o relato entre suas narrativas populares, como mito que foi encarado de forma lúdica e esvaziado de sua simbologia, perdeu seu significado no ritual, preservando-se como discurso linguístico de uma cultura historicamente afastada do narrador popular e do ouvinte, e de cujo valor histórico os mesmos não se dão conta Concluindo, podemos perceber que o conto popular, ao evadir-se do mundo das elites, já vazio do sentido místico de sua origem, é reinserido no mundo do povo que, à sua maneira, transforma o conto popular em fonte inesgotável de elementos éticos, sociais, históricos e também de fixidez simbólica, capazes de transformar-se novamente em mitos e de justificar novos rituais, num movimento de reversão histórica raro, mas não impossível, de reaproveitamento de elementos mortos no tempo. No conto popular, porém, mantém-se a problemática do esvaziamento da simbologia, da mesma maneira que no mito ocorre o esvaziamento histórico-factual. Ambos são referências maculadas pelo tempo e pelas sucessivas camadas narrativas de fatos que realmente aconteceram. Por outro lado, ambos são manifestações históricas produzidas pela arquetipologia psíquica individual que se tornou também objeto histórico humano. O conto popular mantém viva a estrutura ou o modo de contar os fatos históricos que foram cultivados pelas gerações que experienciaram os fatos, servindo como depósito de formas de narrar de um povo, marcando nesses formatos narrativos os costumes que cultivavam como uma impressão digital de um contexto espaço-temporal. Ele se fixa na história assim como também fixa a própria história.
______________________________________________ FELIX MARANGANHA [FÉLIX ANTÔNIO DE MEDEIROS FILHO] (Paraíba/Rio Grande do Norte) – Poeta e Ensaísta. Graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Graduando em Filosofia pela mesma instituição. Membro do Núcleo Literário CAIXA BAIXA. Possui um blogue para seus poemas, o Avenida Assimétrica (http://avenidassimetrica.blogspot.com), e participa da equipe do blogue Os Assassinadores (http://assassinador.blogspot.com). Twitter: @felixmaranganha
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