Ano 4 - Nยบ 10 - Dezembro de 2011
Campina Grande (PB) – Ano 3 – Nº10 – Dezembro de 2011 ISSN: 2238-930X
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Periodicidade: Trimestral CAPA: Jorge Elô (http://aventurasdavidacomum.blogspot.com/) Título: O Edredon rosa (2011) 80 x 50 cm, óleo s/ tela, compõe a exposição Desfragmentação do feminino, com data a definir. Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio gaudencio_bruno@yahoo.com.br / @BrunoGaudencio Janailson Macêdo Luiz janailsonmacedo@hotmail.com / @jan_macedo João Matias de Oliveira Neto j.matias@msn.com / @j_matias Flaw Mendes (Editor Visual) flawmendes@gmail.com / @flawmendes Apoio: Universidade Estadual da Paraíba 800 R454
Blecaute: Uma Revista de Literatura e Artes, ano. 4, n. 10 (Dezembro de 2011) – Campina Grande, 2011. 70 p.: il. color. ISSN: 2238-930X Editores: Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio, Flaudemir S. S. Mendes, Janailson Macêdo Luiz, João Matias de Oliveira Neto. 1. Literatura. 2. Literatura – Ensaios. 3. Literatura - Contos. 4. Literatura – Poemas. I. Título. 21. ed. CDD
Índice
Editorial: Dez vezes Blecaute! pág. 05 Conto: O Velho Elvis - Cadão Volpato (SP) pág. 06 Poemas: Mea Culpa, Profissão de fé e outros poemas - Wender Montenegro (CE) pág. 08 O Santo Ofício: Onde está Almir Borges? - Franklin Jorge (RN) pág. 10 Poemas: Caos e Entretenimento e Parábola do Peixe Enlatado - Ademir Assunção (SP) pág. 12 Conto: Prelúdio para Alaúde em dó menor - Juliano Guerra (RS) pág. 14
Poemas: Didi, Vavá e Jairzinho - Sérgio de Castro Pinto (PB) pág. 16 Ensaio: Memórias Póstumas de Castro Alves - Antonio Carlos Secchin (RJ) pág. 20 Tiradas do Baú: Éden: Terapia de Casal - Raonix (PB) pág. 28 Conto: Capitu. E Escobar - W. J. Solha (PB/SP) pág. 29 Poemas: Afinal, o que é você? e outros poemas - Eunice Boreal (PB) pág. 37
O Aeropago: O Morcego... - Valdênio Freitas Menezes (PB) pág. 40 Conto: Queda Livre - Renato Tardivo (SP) pág. 43 Estante: A Sombra do Vento (Carlos Ruiz Zafón) – pág. 45 Mabel Amorim (PB/AL) e SteamPink (Tatiana Ruiz (org.) Amanda Reznor (SP) pág. 46
Poemas: Alberto Lins Caldas (AL/PE) pág. 48 Poesia Imaginada: Flaw Mendes (PB) pág. 52 Ensaio: O Mítico Ofício de Assunção - Weslley Barbosa (PB) pág. 53 Conto: Fim de Carreira - Thiago Lia Fook (PB) pág. 59 Poemas: Dezoito Horas, a Louca e outros poemas - Sérgio Bernardo (RJ) pág. 66
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| Editorial DEZ VEZES BLECAUTE!!! TRÊS ANOS DE DEDICAÇÃO À LITERATURA A Revista Blecaute chega ao seu décimo número em três anos de existência. Ao todo, foram publicados 96 autores, de 16 estados da federação e 3 países diferentes (além do Brasil, Portugal e Moçambique também marcaram presença nesse período entre as páginas da revista). Poetas, romancistas, contistas, ensaístas, artistas gráficos... De novembro de 2008 para cá, os leitores em geral puderam conhecer, através da tela de seus computadores, um pouco da melhor literatura brasileira e, em alguns casos, lusófona. Neste número especial e comemorativo, temos os contos de Cadão Volpato − apresentador do Programa Metrópoles, da TV Cultura −, Juliano Guerra, Renato Tardivo, Thiago Lia Fook e W. J. Solha −artista múltiplo, homenageado com seus 70 anos de idade neste último mês em João Pessoa. Temos ainda os poemas de Sérgio de Castro Pinto − um dos nomes de maior destaque na poesia paraibana contemporânea, Ademir Assunção, Wender Montenegro, Eunice Boreal, Alberto Lins Caldas e Sérgio Bernardo. Os Ensaios de Antonio Carlos Secchin, Membro da Academia Brasileira de Letras − que relatou de maneira fabulosa a vida do poeta Castro Alves − e o Wesley Barbosa − que discute a poética de José Antônio Assunção. Não podemos nos esquecer das colunas literárias de Franklin Jorge – que fala de Almir Borges − e Valdênio Freitas – sobre as insconstâncias do ator de dormir, bem como das colunas visuais de Flaw Mendes, Raonix e a coluna Estante, com as dicas de leitura de Mabel Amorim e Amanda Reznor. Recentemente, recebemos o seguinte e-mail do poeta carioca Tanussi Cardoso: “Com muita satisfação, recebi o novo nº de BLECAUTE, atualmente uma das melhores publicações literárias e culturais do país”. O reconhecimento do nosso trabalho por diversos artistas, intelectuais, produtores culturais e leitores de variados segmentos sociais − sinalizado a cada edição lançada −, faz com que seja ainda mais reafirmado o compromisso da Blecaute, e do núcleo literário homônimo que a dá sustento, de se manter como um espaço de divulgação e circulação das produções literárias. Em breve, no mês de fevereiro, teremos a terceira edição do Encontro de Literatura Contemporânea, evento organizado pelo Núcleo Literário Blecaute em parceria com a ONG Nova Consciência. Como de costume nos anos anteriores, o Encontro será realizado no período do carnaval, como parte da programação de um encontro maior, o Encontro da Nova Consciência. Aguardem informações em nosso blog e web site. Os editores.
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| Conto O VELHO ELVIS Por Cadão Volpato Elvis envelheceu e mora numa grande cidade da América do Sul. Esta cidade não é Buenos Aires, como crê o senso comum. A nova capital de Elvis tem mil colinas. Ele estudou Arquitetura, só não tem diploma. Dos Beatles, gosta apenas das baladas, todas com piano. Acredita que tem muito açúcar no sangue. Também ouve jazz, só aquele feito até 1969, ano em que, diz ele, Miles Davis passou a usar óculos de inseto e eletrificou-se. Nada disso tem importância, porque afinal Elvis nasceu enrolado nas raízes do rock, em 56, e aí permaneceu. Manteve um par de costeletas e um topete num corpo de mais de 90 quilos. As bochechas são incrivelmente rosadas. Embora tenha se dopado bem menos do que o habitual, tudo nele já está embranquecido, incluindo os cabelos do peito, pois não usa tintura. Trabalhou no desenho e na fabricação de piscinas. Não deu certo. Trabalhou na prefeitura, onde também era chamado de Elvis. As pessoas sempre gostaram dele, e assim Elvis foi engordando, ainda que o amor emagreça, como dizem. Olhos azuis são sempre bem vistos, embora recessivos. Casou-se com uma amiga de infância de olhos castanhos, depois de muitas idas e vindas e um longo noivado. A lua de mel foi numa praia distante, da qual ela voltou com uma menina na barriga. Ele trouxe uma foto de calção de banho escuro. Nela, aparece branco feito um osso, e fanfarrão, nos últimos dias da sua juventude. Uma menina chegou de olhos bem abertos e pretos. Elvis estava à espera, atrás de uma máscara cirúrgica. Ainda era bastante moço, e chorava. A menina veio de cabelo escuro. Hoje ele tem 53 anos, ela, 27. Elvis nunca usou roupa de couro preta nem macacão branco cheio de franjas; não serviu o Exército e nunca saiu do país, o que, portanto, o impediu de conhecer a Alemanha. Já usou sapatos furados como qualquer homem comum, por isso não é rei. Não se veste como um homem da usa idade, nem como o rapaz que já foi. Abandonou-se ao que ficou com o tempo. Nunca na vida dirigiu nenhum caminhão, porque teria sido um pai ausente caso sumisse na estrada. Enquanto funcionário público teve tempo de sobra para se aperfeiçoar como pai e acompanhar tudo o que dizia respeito à menina – do primeiro grito de alegria causado pelos móbiles de corujinha sobre o berço ao casamento desastrado em 2005. Quatro anos depois é como tudo está agora: uma bagunça. Separada, ela é uma sombra mendicante do ex-marido. 06
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Às vezes deita a cabeça no colo macio do pai, que inventa histórias da pré-história do rock, da mesma forma que costumava fazer quando ela era criança. A diferença é que antes ela dormia, não chorava. Agora só chora e ri. Tem certa graça no almoço de domingo, caso o domingo não fosse imenso e se arrastasse na direção escura da segunda-feira, em geral ensolarada até a exaustão. Ela tem que ir para o trabalho. É encarregada de comprar livros estrangeiros numa grande livraria da cidade. Não dorme na casa do pai há muitos anos. Ou não dormia. Ao acordar agora, mal consegue abrir os olhos na triste claridade. Numa Santa Ceia do Rock, Elvis seria Jesus Cristo, ele começa. Buddy Holly estaria sentado à sua direita, usando óculos, do contrário não enxergaria a comida e o drama que está por se desenrolar. Chuck Berry sentaria à esquerda de Jesus, que usa costeletas. Não é estranho como eles comem todos no mesmo lado da mesa? Chuck era um ladrão de músicas. Era o bom ladrão que ficava na cruz ao lado de Elvis Cristo. Ele era bom de conversa e gostava da timidez do companheiro branco, porque assim podia aparecer sozinho lá em cima. E copiar até os seus assobios. O primeiro filme que vi foi uma Paixão de Cristo, ele continua. Os soldados romanos tinham capacetes azuis. Mas o filme era em preto e branco. Meu pai me levou, e disse que os romanos eram da mesma cor cinzenta de todo mundo. Já minha mãe me levou pela mão até o banco onde arrumaria meu primeiro emprego, aos 15 anos. Fui contínuo arquivista num prédio em forma de caixa. Trabalhava de gravata. Minhas gravatas eram berrantes e os sapatos tinham saltos de plataforma, no último grito da moda. Não havia metrô ainda. Meu cabelo era comprido, foi preciso cortar; então deixei, a muito custo, que crescessem as costeletas. E elas vieram ruivas. Dedilhando todas aquelas fichas verdes de nomes sujos na praça, cheguei à conclusão de que não gostava de dinheiro. Nove meses depois, dei a luz à liberdade. Elvis está mais para Las Vegas, onde até se picava nos calcanhares. Estava tão gordo que poderia ter morrido de tanto comer; desde então vem tentando parar. Vê com interesse os pratos vegetarianos, porque seu colesterol ruim é muito alto também. As pessoas não perdoam. Elas olham para o chafariz de suor que brota do seu corpo, que nem é tão pesado, só não é grande. Ainda assim, brilhante, rosado, ele olha de volta para elas com uma certa ternura e uma insatisfação que herdou da juventude. Olhos azuis, mesmo tristonhos, são sempre bem vistos. Cadão Volpato (São Paulo) Escritor, Jornalista e Músico. Apresentador do Programa Metrópoles da TV Cultura. Publicou: Ronda Noturna (1995, Iluminuras), Questionário (2005, Iluminuras), entre outros. Recentemente, enveredou pela literatura infantil lançando o livro Meu Filho, Meu Besouro (2011, Cosac Naify).
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| Poemas De Wender Montenegro MEA CULPA OU PROFISSÃO DE FÉ Ao poeta Francisco Carvalho Semear poeiras e andrajos de esperas dissecar os ossos das metáforas acender espantalhos no amarelo das espigas. Decantar o silêncio que sustenta o cais ostentar um colar de metonímias despir a voz da louca, cuja febre anuncia um evangelho apócrifo. Caminhar sob pedras como por milagre ouvir a foz rouca dos rios da infância borrifar no azul as flores do arco-íris. Pintar um verão vazio de andorinhas se encharcar de sol e devaneios hastear um lenço sujo de saudade ajustar os ponteiros na cópula dos pardais.
INVENTÁRIO O brasão está posto nas cãs da matriarca. As chaves da terra penduradas no peso dos anos lhe enferrujam a voz. Sete línguas mastigam as léguas do tempo; sete reses ruminam as vozes dos mortos. E meu filho dorme, alheio a tudo isso. Inocente ainda e derradeiro herdeiro apenas deseja palmilhar um sonho nas léguas do seu chão de berço. 08
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SOMBRA DE SAL E SILÊNCIO Não dizer palavra... Deixar o silêncio plantar sua nódoa na cinza dos olhos. E uma sombra há de vir, insustentável, e despojada de dor e remorso e cansaço trará numa das mãos linho novo, alfazema; na outra, conchas de praia deserta, frutos da estação, e ainda sem dizer palavra acenderá os cílios com o sal das águas de uma outra concha, essa mão que rasgará silêncios, tatuando na pele uma palavra gasta.
TECIDO DE ESPERAS O olhar colhe asperezas... Nenhuma alma de regresso às mãos cansadas de tecer esperas; nenhuma nau singra a saudade e a tessitura é desfeita pela ausência de abraços.
Wender Montenegro (Ceará). Poeta e Professor de História. Publicou seu primeiro livro Arestas (Poemas, All Print Editora, 2008), com o qual foi indicado para o Prêmio Codex de Ouro 2011. Blog: www.poesiawm.arteblog.com.br
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| O Santo Ofício ONDE ESTÁ ALMIR BORGES? Por Franklin Jorge
Flaw Mendes
Personificação do lobo da estepe, Almir Borges me foi apresentado por Lígia Bezerra, quando não teríamos ainda dezoito anos. Alguns anos mais velho, ele nos levou para um novo planeta literário através da leitura e discussão de obras em prosa e verso e de uma contagiante admiração por Kafka, a seu ver o maior de todos os escritores modernos, mestre paradigmático duma filosofia do irremediável que permearia a existência humana, representada pelo absurdo e gratuidade da barbárie.
Introduziu assim em nosso convívio, como uma epifania, os mestres da crueldade e do paradoxo – Antonin Artaud, Beckett, Ionesco –, fazendo-nos submergir nas águas do Existencialismo sartriano e do expressionismo alemão em todas as suas formas verbais e visuais. Talvez acreditasse, como o outro Borges, na salvação pela arte. Hermann Hesse era um de seus mestres, aquele que talvez melhor o explicaria, para nós que nos deixávamos encantar por seu magnetismo intelectual, pois ninguém melhor do que ele para merecer tal reconhecimento. Era, vocacionalmente, um mestre; um educador de almas. Pound ensinou-lhe a apreciar a técnica, a perícia no fazer, exigidas de todo artista criador cônscio do que faz. Sobretudo ele nos fez economizar tempo, dando-nos o paideuma dos autores essenciais e imprescindíveis que devemos ler e reler – sobretudo reler -, porque souberam dizer melhor o que outros disseram antes. Para Almir Borges não se justificava repetirmos os achados dos que vieram antes; seria o mesmo que nos confessarmos preguiçosos ou acomodados às fórmulas gastas. Era preciso aproveitar ao máximo o que Proust chamava de “conhecimento posterior”. Sua figura de excêntrico e personalidade carismática me obsessionam desde então. Vejo-o de pé, abrindo um livro, na sala de minha avó, dizendo-me que não perdesse tempo. Fez-me ler e discutir o “A B C da Literatura”, a “Arte da Poesia” e uns fragmentos de “Os Cantos”, que somente viriam a ser traduzidos e publicados no Brasil uns vinte anos depois. Pound constituía para Almir Borges uma espécie de Bíblia da qual nunca se separava, tendo-o sempre como magistrado em matéria de estética e criação literária. Impossível não ler Pound, como um moderno Virgilio, mestre dos que sabem. 10
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Magro e alto como o Quixote, tinha uma barba selvagem e eriçada, muito negra e crespa, como a de antigos guerreiros assírios que há nos relevos. Era desses tímidos que fogem do mundo e se dão bem com todos. A mim sempre me intrigou por sua quase infinita sabedoria e conhecimento das letras, sempre orientando-nos por um gosto particularíssimo de leitor sofisticado, eternamente enamorado dos abismos metafísicos e existenciais que ao mesmo tempo deliciavam e infernizavam a vida do adolescente inquieto e fatigado que fui. Quero lembrá-lo ali, parado, no centro do meu quarto, passando as páginas de um livro, lendo em voz alta um ou outro trecho que depois interpretava a partir das entrelinhas. Detendo-se num parágrafo, resumindo a metafísica de um autor estimado, enfatizando que para o artista o Tempo é o bem mais precioso, não podendo por isso mesmo ser desperdiçado em circunstâncias que podemos transcender com insatisfação e pesquisa. “Curiosidade” – repetia Pound. – “Não existe arte sem curiosidade”. Amava a poesia, que por seu subjetivismo e cadência está mais próxima da música do que da literatura. Costumava dizer-nos que nela o ritmo contava mais que a rima e a metrificação, embora, num bom verso, sempre há ritmo e frequentemente rimas internas. Disse-me que prestasse atenção à prosa minimalista de Kafka, superior aos seus títulos mais notórios. Emprestou-me seus contos fabulosos escritos em apenas alguns parágrafos. Ensinando pelo método comparativo, mostrava pelo exemplo a excelência dos bons e a mediocridade dos maus autores. E, resumindo sua pedagogia socrática, repetia – ler a excelência dos autores nos faz economizar tempo tempo tempo — capital que entra na elaboração das obras duradouras. Fez-me ver que o existencialismo era um novo humanismo – o humanismo de um mundo forjado pelo absurdo, crueldade e falta de sentido.
Franklin Jorge (Rio Grande do Norte). Escritor e jornalista. Publicou: Ficções, Fricções, Africções (Mares do Sul, 1998), O Spleen de Natal (Editora da UFRN, 2001), entre outros. Vencedor do Prêmio Luis Câmara Cascudo em 1998.
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| Poemas De Ademir Assunção
CAOS E ENTRETENIMENTO O cenário amanheceu mais surtado do que o costumeiro. Ondas radiativas dissolvem as escamas dos peixes na Baía de Todos os Santos. Golfinhos nucleares afundam fragatas na Festa Literária de Parati. Balas esmigalham ossos & músculos — pilhas de corpos descartados superlotam caminhões de lixo: os aterros sanitários entraram em falência irreversível. “Aleluia! Aleluia!” – bradam pastores insanos nos subterrâneos da Sé, evangelizando motoboys e ladrões de carro com bíblias falsificadas no Paraguai. Homem de Aço assiste a tudo pela janela do Tower Jungle Hotel. Olhos de cyborg flagram o sol de estanho se infiltrando nas rachaduras, procurando brechas entre os escombros — frágeis filetes de luz lambendo a pátina de um mundo sem memória, quase sempre escuro — vidas desfocadas pela névoa constante — o céu de madeira sempre fechado, rajado de nuvens pesadas, sem movimento. “Houve um tempo em que o dinheiro era o Grande Deus. Mas venderam até mesmo as migalhas do sagrado e o Grande Deus se tornou inútil. Não mais existem dias. Não existem noites. Apenas caos & entretenimento” — diz o livro que ninguém lê. Homem de Aço estilhaça a janela com o punho, arremessa o livro no microondas e acende um cigarro. A vida aqui é um grande reality show. E não haverá vencedores no final. (28/04/2011)
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PARÁBOLA DO PEIXE ENLATADO Explosão vermelha na vazante, lua artificial, céu escuro. Uma nuvem de cloro cobre os barracos da periferia. Cavalos relincham em pânico. Tontura & desmaios entre paredes precárias, vidas cobertas por tapumes miseráveis. Até os camundongos vomitam restos de lixo. O rio Pinheiros lança borbulhas de esgoto sobre automóveis congestionados. Policiais reprimem golfinhos suicidas com spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. Árvores de alumínio tremulam na brisa seca. Encurralado por um destacamento de ônibus em frangalhos, o Mendigo Kamaiurá levanta os olhos para o céu de lata e grita para seus fantasmas: “Choveram balas sobre a pele das tardes. Assassinaram o crepúsculo e roubaram minha alma. Oh, Grande Pai, devo agradecer pelo peixe enlatado que me dão de esmola?” O coração é um músculo involuntário coberto de trevas. Tremor de terra, ranger de tijolos, fissuras no concreto armado. A Sucuri Destronada desperta do sono e se remexe no solo abaixo dos sepulcros. A cúpula da catedral começa a desabar. (22/05/2011)
Ademir Assunção (São Paulo). Poeta, Jornalista e Letrista de Música. Publicou: A Máquina Peluda (prosas, Ateliê Editorial, 1997), Zona Branca (poemas, Travessia dos Editores, 2006), entre outros livros. Site: http://zonabranca.sites.uol.com.br/ e o blog: http://zonabranca.blog.uol.com.br/
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| Conto PRELÚDIO PARA ALAÚDE EM DÓ MENOR Por Juliano Guerra Ontem sonhei com a figueira. Meu Deus, quanto tempo. Tanto tempo desde os paraquedistas mortos – eram as folhas... – e desde o choro convulsivo olhando pro chuveiro. A água me engasgava. Eu tinha ódio de ser o filhote de Ana, a empregada contrabandeava doces do supermercado. Ana tinha cheiro de alfazema e era a marca branca de um piano que fora arrancado do centro da sala. Uma marca branca, uma ausência... De qualquer jeito, eu já contei isso tudo em outro lugar. Eu já contei do meu cabelo escorrido e de como o Doutor – esse era meu pai – tinha voz de mercúrio cromo e me odiava veladamente, mas com constância. Isso porque eu era “a cara” de Ana, a fugitiva. Ana, a marca branca de um piano inexistente. Como toda boa família estragada, a gente tinha o “quarto das lembranças”, onde eu não podia ir. Também na estante, abaixo dos livros de medicina do Doutor, havia Ana, o espaço vazio dos livros de Ana. O que ela lera? Fora tão infeliz quanto eu naquela casa? Por isso fugiu? O Doutor não conseguia me encarar, baixava os olhos. Dois ocos na mesa de jantar. Uma figueira seca do lado de fora. Isso, eu falava da figueira. Do meu sonho. Nele, era outra vida – mais antiga, impossível – e o Doutor, metido num casaquinho dos anos setenta, plantava a figueira comigo. Eu pensava, no sonho, “Meu Deus, meu Deus, daqui a duzentos anos eu vou chorar embaixo dessa árvore!”. O cabelo dele era tão longo quanto o meu... Depois o sonho avançou pro dia em que perdemos as terras. Então eu vi, mais uma vez, o Doutor se entortar como um velhinho... Como se todas as forças da natureza agissem sobre ele, como se o mundo tivesse vencido. Aliás, acho que era exatamente isso, o mundo nos vencera. Um padrinho picareta está eternamente assinando escrituras de terra... Jesus Cristo gargalha segurando uma Polaroid. Nas fotos, eu sou um menino plantando uma figueira. Depois estou sendo sodomizado em algum banheiro, gemendo de ódio e satisfação enquanto uma úlcera come as entranhas do velho. Poucos dias depois – outra foto – eu estou recebendo a notícia de frente pra uma tela. Um fundo azul celeste esperava qualquer coisa. Imediatamente eu soube o que era, instintivamente o pincel rasgou uma mancha vermelha, diagonal, que atravessou o quadro de ponta a ponta. Depois veio o roxo do vestido de Ana – um dia eu invadi o quarto das lembranças... – e eu chorei como se a empregada que me dava os doces tivesse morrido. Quando a necrose nos meus braços se confundia aos galhos de uma figueira seca... Jesus Cristo era um alemão bonito e sempre meio pelado pro qual a gente se ajoelhava. Tampinhas alaranjadas flutuavam pelo apartamento – “use uma vez e destrua” – e o Doutor estava condenado eternamente a ficar entre a casa e a figueira, me olhando partir num carro 14
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que nunca mudava de distância. Pra sempre partindo, mas – pra sempre, o tempo significando pouca coisa – atrelado a um homem velho que eu odiava e a uma árvore seca. O nome da coisa era “Uma Ferida no Céu”, me consumia. Então voltei pra casa enfiado no meu terno preto e tendo de novo doze anos. A casa, solene e canalha, me esperava. Finalmente cumpria seu papel verdadeiro, tornava-se o que sempre fora, um abrigo para mortos, um mausoléu. O padrinho benevolente permitia o velório do Doutor naquela casa, como era sua vontade. Só então entendi que a figueira não era mais minha. Era a maldição de outro, finalmente. As folhas que caíam – criancinhas, paraquedistas... – não eram mais da minha conta. O “lar” era uma tela azul celeste com uma mancha vermelha. Uma ferida no céu. Mais uma vez: para sempre, um homem velho e sendo devorado pelo lado de dentro, que me odiava. Que me chamava pelo nome. “O menino está com tosse, Doutor”, dizia a empregada. Então ele me punha um termômetro debaixo do braço e, se eu tivesse sorte, punha também a mão na minha testa por uns poucos instantes. Essa é minha patética lembrança de afeto paterno. Ontem sonhei com uma vida de mentira. Com a mesma casa de sempre. Um menino e um velho curvados sobre uma muda de figueira, sorrindo. Alaúdes e oboés ressoavam nesse sonho. Ana voltava e dizia “amo vocês”. A figueira fazia quinhentos anos e continuava verde e imponente, nossas três sepulturas sob ela, protegidas. A empregada punha balas sobre a minha sepultura e chorava – “foi tão moço” –, aquilo era bonito. Acordado, vejo que pende da persiana uma tela. É um fundo azul celeste. Então uma mancha, pútrida, uma ferida. Meus pés se espalham pelo apartamento, criando raízes. Minhas veias necrosadas saltam dos braços, buscando o teto. Pássaros doentes fazem ninho na minha boca. Minhas últimas lágrimas não caem. Sou uma figueira seca.
Juliano Guerra (Rio Grande do Sul) – Músico, Compositor e Escritor. Prepara o disco solo "Deusdará", a ser lançado em Abril de 2012.
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|Poemas De Sérgio De Castro Pinto
didi didi bate a falta com efeito. o goleiro adversário é puro espanto: vê a bola de couro me-ta-mor-fo-se-ar-se em uma folha seca do mais triste outono. a torcida faz a festa. e a bola não é mais a bola, a redonda, o balão, a esfera, não é mais folha-seca, mas a semente, o goivo, a flor do gol explodindo em primavera.
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vavá: o leão da copa “Parecia fácil para Schrojt, mas a boina não tapou o sol devidamente e, com isso, o goleiro soltou a bola no pé direito de Vavá, que saiu comemorando o último gol no mundial do Chile contra a Checoslováquia”. (Da internet) o sol puxou os raios da cabeça descabelou-se amarelou perdeu a cor ante o brilho da fulva juba e da garra afiada do leão artilheiro que encandeou o arqueiro da checoslováquia com fome de... goooooooollllllll!
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jairzinho: o furacão da copa furacão tornado brisa estufando a rede do adversário e o peito pátrio da torcida
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leônidas (I) ciclista da bicicleta que és, a bola pedalas com os pés e de ponta-cabeça levitas: beija-flor que sorve o néctar do gol e embriaga a torcida.
Sérgio de Castro Pinto (Paraíba). Poeta e Professor de Literatura na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Expoente da moderna poesia paraibana, fez parte do Grupo Sanhauá na década de 1960. Publicou os livros de poemas: O Cerco da Memória (UFPB, 1993), Zoo Imaginário (Escrituras, 2005), O Cristal dos Verões (Escrituras, 2007), entre outros.
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| Ensaio MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE CASTRO ALVES
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Por Antonio Carlos Secchin Morri no dia 6 de julho de 1871, às três e meia da tarde, na cidade de Salvador. Nasci no dia 14 de março de 1847, na fazenda das Cabaceiras, perto de Curralinho, cidade que hoje tem o meu nome. Não estranhem o fato de eu começar minhas memórias pela data da morte. Diante da eternidade, não há muita diferença entre o que é princípio e o que é fim: tudo se mistura, se apaga e se acaba na roda-viva dos séculos.
Meus pais foram o doutor Antônio José Alves e dona Clélia Castro, filha de um sargento que foi um dos heróis da Independência da Bahia, conquistada em 2 de julho de 1823. Em muitas províncias os portugueses não acataram a proclamação do Sete de Setembro, e queriam nos manter atados à Coroa lusitana. Na Bahia, meu avô materno José Antônio da Silva Castro ajudou a derrotar o general Madeira, comandante das tropas inimigas, para assim confirmar a independência do Brasil. Papai foi um médico famoso. Estudou na Europa, de onde enviava cartas bem românticas à minha futura mãe. Casaram-se, e logo encomendaram a prole: José Antônio foi o primeiro; eu, Antônio, o segundo; Guilherme, o terceiro; sem esquecer João, de morte prematura. Essa seqüência masculina só foi quebrada em 1852, com o nascimento de Elisa. A vida na fazenda começava a ficar limitada demais para a ambição de meu pai. No começo de 1854, fomos morar em Salvador, no solar Boa Vista. Essa casa, que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo, que, louco de ciúmes, a teria fulminado com uma bala de ouro. No solar nasceram minha querida irmã Adelaide e a caçula Amélia, em 1855, empatando em 3 x 3 o jogo entre homens e mulheres. Além de praticar a ciência, papai era dado à pintura. Em 1856, foi um dos fundadores da Sociedade das Belas-Artes da Bahia, mesmo ano em que iniciei os estudos no Colégio Sabrão. Mas logo me transferi para o Ginásio Baiano, do doutor Abílio César 20
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Borges, futuro Barão de Macaúbas. Para a época (1858) as idéias do doutor eram o máximo: estudávamos várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos, éramos incentivados a participar de torneios literários. Para mim, que já trazia o amor à arte cultivado em família, foi uma espécie de preliminar (desculpem a imodéstia) para a glória futura. Celebrávamos principalmente as datas cívicas, e esse amor prematuro aos feitos brasileiros deixou sementes que iriam germinar na minha poesia de adulto. Eu já gostava de falar em público, de recitar poemas que, cuidadosamente, anotava num caderninho. Mais tarde, tive a sabedoria de dar fim a essa poesia, impedindo que os primeiros textos de Cecéu (como eu era conhecido) fossem publicados em livro. Desse período, a péssima notícia foi a morte de mamãe, em 1859, aos 33 anos. Desesperado, meu irmão tentou o suicídio. Não gosto de falar disso. Diferente de outros poetas, me incomodaria retratar minha mãe nos poemas. E o mano teve uma reação de louco. Loucura e morte eram os temas da moda: eu sofri os dois na carne. A grande mudança, que me arrancou em definitivo das indecisões e devaneios do fim da infância, se deu em 1862, quando fomos, eu e José Antônio, morar no Recife para seguir os cursos preparatórios à Faculdade de Direito. Fomos trocando de endereço até nos estabelecermos numa “república” de estudantes. No ano seguinte publiquei no número 1 de um jornal acadêmico, A Primavera, meu primeiro poema contra a escravidão: “A canção do africano”. Devo dizer que, à época, estava repetindo o curso de geometria, pois tinha levado bomba em 1862. Como a grande maioria da humanidade, sempre tive graves problemas na hora de me entender com a matemática e seus derivados. O consolo é que, para fazer poesia, quase nunca é preciso contar além de 12 sílabas, e esse número basta para acolher o universo inteiro. Um grande prazer, não só meu, mas de todos os companheiros de geração, era o teatro. O divino Victor Hugo, fonte inesgotável de inspiração, já havia escrito muita coisa sobre o drama romântico. Exemplo desse drama era Dalila, de Octave Feuillet, que foi à cena no teatro Santa Isabel com a atriz Eugênia Câmara. Difícil descrever o impacto que a presença dela exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais importante de minha vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão, ao mais profundo fundo dos cafundós do inferno. Mas isso é história para mais tarde: por enquanto, tenho apenas 16 anos, e corre o ano de 1864. Sou um rapaz bonito, talentoso, querido pelos colegas (apesar de me acharem orgulhoso em excesso) e marcado por duas novas perdas: a do ano letivo na Faculdade de Direito e a do meu irmão José, morto em fevereiro. Quanto à primeira, paciência! Estive na Bahia, faltei mesmo mais do que devia, e as faltas não foram abonadas. Mas meu irmão... Em outubro do ano anterior já dava sinais de desequilíbrio. O jeito foi mandá-lo ao Rio, a ver se melhorava. Acabou suicidando-se. Sofri, me lembrei da primeira 21
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tentativa; a segunda, desgraçadamente, dera certo. Loucura e morte se abraçaram, e comemoraram as bodas em cima do cadáver de José. Para compensar tanto infortúnio, 1865 correspondeu a um período de grande felicidade. Repetente, já sabia as matérias do primeiro ano de Direito; sobrava-me tempo para desenvolver o projeto do livro Os escravos. Morava no bairro de Santo Amaro, em companhia da dengosa Idalina, a quem homenageei n“As aves de arribação”. Eu brincava dizendo que estava muito bem instalado entre mortos e doidos: a casa ficava entre um hospício e o cemitério. Em 11 de agosto, obtive meu primeiro grande sucesso público: recitei “O século” na sessão comemorativa da abertura dos cursos jurídicos; nove dias depois, foi a vez de “Aos estudantes voluntários”, no teatro Santa Isabel. Voluntários, é claro, da guerra do Paraguai: até eu me alistei no Batalhão. “O século”, que reservei para abrir meu livro Os escravos, é um grito de crença na juventude e no futuro, é uma aposta na força do novo. Apesar do sangue militar do avô materno, nunca fui um apologista da guerra. Cantei, sim, os feitos heróicos, as batalhas vitoriosas contra a opressão - só em louvor do Dois de Julho escrevi cinco poemas. Se acham que exagerei, saibam que num único livro de outro poeta, Félix da Cunha, há 7 poemas dedicados ao Sete de Setembro! Naquele tempo a palavra da poesia, além de ser íntima, também devia ser cívica. Daí tantas confissões de amor à pátria num tom vibrante, que os críticos, décadas depois, me censuraram. Mas não era com sussurros que se incendiava o público: era com entusiasmo, dramaticidade, retórica. Eu tinha consciência de que fazia alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá no aconchego das cadeiras de balanço. Mais tarde, num deles, lido na rua (“Pesadelo de Humaitá”), cheguei a anotar: “Não se publica”. Foram publicados... O poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é nunca o dono do destino do poema. A guerra do Paraguai foi o último grande conflito externo que atingiu o reinado de D. Pedro II. As lutas internas (a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, a Farroupilha) já haviam sido sufocadas e, derrotado o Paraguai, desenhou-se para o país um longo período de letárgica e superficial tranqüilidade. Sim, porque agora o inimigo estava dentro de nós, em nossas famílias, sorvendo o sangue e o suor de uma raça em tempos de suposta paz. Como acreditar em paz, tendo ao lado os guerreiros negros vencidos pela escravidão? É certo que, desde 1850, já se proibira o tráfico de escravos. Pouco antes de minha morte, eu ainda comemoraria, em 1869, a proibição da venda de seres humanos em pregão público. Mas era pouco. Para mim, abolição e república eram palavras quase irmãs: uma puxava a outra, naturalmente. Alguns poetas falavam mal do Governo; para eles, uma troca de Gabinete resolveria a contento a questão. Eu não queria trocar um Gabinete: queria mudar de regime. Abaixo a monarquia! Chamaram-me de “o poeta dos escravos”, e eu me orgulho do epíteto. Acho, porém, que ele 22
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não diz tudo: sempre quis ser “o poeta da liberdade”. A escravidão era uma das mazelas, talvez a mais horrenda, que devíamos combater em prol da liberdade. Mas, além da liberdade social, era preciso lutar pela econômica, pela política, pela (por que não?) afetiva... Muitos dizem que minha obra está composta de uma parte política e de uma parte lírica. Eu penso que vigora sempre o mesmo amor à humanidade, sob roupagens diversas: amor coletivo e amor pessoal, e não saberia dizer qual o mais importante.
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Mas voltemos às minhas dores: em 1866, eu, que já era semi-órfão, tornei-me órfão por inteiro. Assisti a morte de papai em janeiro, na Bahia, durante as férias da Faculdade. Procurei não transportar o peso de tantas perdas para a minha poesia. Particularmente, achava exagerado o gosto pelo doentio que os poetas da geração anterior à minha desenvolveram. Eu queria apostar na vida, mas vivia perdendo a aposta... De vez em quando, porém, eu ganhava. E o prêmio, no caso, não foi pequeno: o amor de Eugênia Câmara. Após um longo período de indecisões e recuos, que nunca soube com clareza se eram meus ou dela, finalmente consegui arrancá-la do empresário com quem vivia, e levei-a, junto com a filha, para morar comigo num subúrbio do Recife. Dediquei-lhe muitos poemas, alguns recitados em público, e que, na paixão do amor ou no desespero da perda, testemunham a intensidade da nossa relação: “Dalila”, “Meu segredo”, “Amemos”, “O vôo do gênio”, “A uma atriz”, “Fatalidade”, “O 'adeus' de Teresa”, “O gondoleiro do amor”. Para ela escrevi, no fim do ano, o drama Gonzaga ou a revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição, paixões... em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se confundia com a própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o papel principal. Sonhava vê-la em cena interpretando meu texto com seu talento fulgurante, decerto bem superior ao da 23
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concorrente Adelaide Amaral, atriz aclamada pelo poeta Tobias Barreto. Durante algum tempo, aliás, minha sina foi entrar em conflito com Tobias. Começamos como amigos temos inclusive poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas, tornamo-nos rivais e acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias. O Tobias era feio, velho, escrevia mal e declamava pior ainda. Nos recitativos ficava nervoso, tinha um jeito desastrado, não controlava a voz. Já eu, que possuía domínio cênico, entrava vestido de negro, com uma flor na lapela, óleo nos cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz no rosto, para parecer mais pálido. Por modéstia, não direi que freqüentemente as moças ficavam tão próximas do delírio quanto os rapazes, da inveja. Mas nem depois de morto eu descansei do Tobias: um historiador literário, Sílvio Romero, sergipano como o poeta, resolveu promovêlo postumamente às minhas custas, afirmando a superioridade do conterrâneo sobre mim. Até hoje, todos só se lembram de Barreto por isso, naturalmente para discordar de Romero (aqui, sou o primeiro da fila). Continuava devotado às causas sociais. Fundei, com Rui Barbosa e outros colegas da Faculdade, uma sociedade abolicionista e participei de um comício republicano dissolvido pela polícia, quando criei de improviso os versos de “O povo do poder”. No terreno sentimental e seria desse modo até o fim - vivia em sobressaltos. A companhia teatral de Eugênia iria excursionar ao sul do país, e necessitava de sua maior estrela; nessas circunstâncias, eu não poderia acompanhá-la. Para meu alívio, Eugênia rompeu com o empresário e decidiu ficar definitivamente (até quando?) comigo. Motivado, arrematei o Gonzaga em fevereiro de 1867 e deixei o Recife, aonde nunca mais voltaria, na direção da Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir encenar o texto em Salvador. Depois de curto período no hotel Figueredo, instalamo-nos no solar Boa Vista, casa de minha infância, então semi-abandonada pela família. O impacto desse reencontro eu registrei no poema “A Boa Vista”. Ao lado de Eugênia, eu sentia minha carreira se fortalecer. Nesse período, esbocei A cachoeira de Paulo Afonso, que só seria publicada cinco anos após meu falecimento. Um grande sucesso foi a declamação de “Quem dá aos pobres, empresta a Deus”, numa sessão beneficente no mês de outubro, em prol das famílias dos mortos na guerra do Paraguai. Mas a verdadeira consagração ocorreu no dia 7 de setembro, quando finalmente subiu à cena, no teatro São João, o meu Gonzaga, tendo à frente do elenco Eugênia e, no papel de Tomás Antônio Gonzaga o esquecido Eliziário Pinto, ator e poeta, cujo belo “Festim de Baltazar” permaneceu como uma espécie de filho único do autor, reproduzido em muitas antologias do começo do século XX. Pobre Eliziário, de tanto brilho naquele 7 de setembro, e hoje sem qualquer migalha no festim da literatura... Imaginam um autor delirantemente aplaudido após a estréia? Multipliquem por mil, e ainda será pouco. Fui chamado à cena depois de cada ato, sob estrondosa ovação. Não 24
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satisfeita, a multidão carregou-me em triunfo, sobre os ombros, até minha casa. Era a glória, mas baiana. Quem sabe eu não seria bafejado pela consagração nacional? Decidi prosseguir os estudos de Direito, interrompidos na temporada em Salvador, na cidade de São Paulo. Incluí no roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde tencionava conhecer nosso maior escritor, o cearense José de Alencar. Em fevereiro de 1868 já estávamos no Rio, Eugênia e eu. Munido de uma carta de apresentação, visitei Alencar, então residindo na Tijuca, sabendo que tocava numa corda sensível do mestre: li para ele o Gonzaga. Meu anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro brasileiro, mesmo tendo fracassado na tentativa. Pregava um teatro baseado em nossa História exatamente o que eu fizera, ao invocar em meu drama a Inconfidência Mineira. A receptividade foi muito boa, a ponto de Alencar encaminhar-me a outro talento que se firmava na literatura fluminense: o jovem Machado de Assis, a quem visitei no domingo de carnaval. O resultado desses encontros se traduziu nas crônicas publicadas no Correio Mercantil, a de José em 22 de fevereiro e a de Joaquim em 1 de março, ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Isso contribuiu para que, em São Paulo, minha acolhida superasse toda expectativa. Lá cheguei em fins de março. Joaquim Nabuco, bem mais tarde, diria que eu era “o eleito da mocidade” e que representava “a dignidade e a independência das letras”. Outro colega chamou-me “mais um semideus do que um poeta”. Lúcio de Mendonça, que seria o fundador da Academia Brasileira de Letras, escreveu que quando eu me exibia à multidão “era grande e belo como um Deus de Homero”. Creio que há algum exagero nisso tudo, mas, para corresponder a tanto carinho, ofereci à Paulicéia o melhor do que dispunha: meus versos. Em abril, compus a “Tragédia no mar”, que todos insistem em conhecer pelo subtítulo, “O navio negreiro”; eu recitaria esses versos no dia 7 de setembro, no Grêmio Literário da Faculdade de Direito de São Paulo. Em junho declamei, no teatro São José, a “Ode ao dous de julho”, meu mais conhecido poema sobre a data, e, no mesmo mês, escrevi “Vozes d'África”. Para culminar, Gonzaga foi representado com o maior ator da época, Joaquim Augusto. Tudo estaria perfeito, não fossem as cada vez mais constantes desavenças com Eugênia. Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações. Sopravam-me histórias de adultério. No entanto, sei que ela me amou, como sei que, talvez, meu amor tenha sido insuficiente para sua paixão. Não a recrimino. Em determinado momento, largou a carreira para me seguir. Agora me largava para seguir a si própria. Abatido, desgostoso, procurei refúgio em algumas distrações: caçadas, por exemplo. Maldito dia de novembro, quando fui ao Brás. Sem querer, ao transpor uma vala, acionei o gatilho e a bala se cravou no meu pé esquerdo. Resultado: plantei ali a semente de chumbo da minha morte. Nunca me curei de todo, e à ferida do pé se acrescentaram problemas infecciosos e pulmonares. Sem Eugênia, prostrado ao leito em seis meses de sofrimento, disse adeus a São Paulo e fui tratar-me no Rio, 25
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em maio de 1869. Os médicos concluíram que a única alternativa seria a amputação do terço inferior da perna, e eu concordei: ficaria com menos matéria do que o resto da humanidade. Ainda permaneci no Rio até o fim do ano, quando decidi retornar à Bahia. Com o navio se afastando da Guanabara, visualizei, repentinamente, duas tristezas: a da noite, que descia dos céus, e a da solidão, que subia do oceano. Entre mar e céu, vaga e vento, brotou-me um nome, Espumas flutuantes, para assim chamar o livro que reuniria meus poemas. Em Salvador, aquecido pelo calor dos trópicos e da família, cheguei a sonhar que me curaria. Dediquei-me com afinco à preparação da obra; em fevereiro de 1870 redigi o “Prólogo”, em que aludi aos tempos felizes no Sul, à transitoriedade da dor e da alegria. Fiz questão de assinalar data e local de muitos poemas, como se, com isso, estivesse dizendo que escrevi o que a vida me ditou, e a cada dia o ditado foi diverso. Encarreguei o amigo Augusto Guimarães de acompanhar a publicação do livro em seus detalhes: tipografia, papel, tiragem, e meti-me no interior da Bahia, de volta a Curralinho, em busca de sossego mental e regeneração física. Revi Leonídia Fraga, namoradinha de infância, que me inspirou “O hóspede”. Na fazenda Santa Isabel dei por encerrada A cachoeira de Paulo Afonso. Retornei a Salvador em setembro. À medida que me enfraquecia, o livro ganhava corpo: nasceu forte e belo. Em novembro despachei para o Rio os primeiros exemplares das Espumas flutuantes. Nessa altura, a doença abandonava a marcha lenta e já galopava, feroz, no meu corpo. Recolhi-me em definitivo ao abrigo da família, e só abri uma exceção no dia 1 de fevereiro de 1871, quando, combalido, arranquei forças para declamar em público um poema em solidariedade às crianças vítimas da guerra franco-prussiana. Na minha vida pessoal, fui ainda aquinhoado com um amor diverso de todos os que até então vivera: apaixonei-me por Agnèse Murri, viúva, jovem, linda, italiana. Professora de canto e piano da mana Adelaide, foi a casta musa para quem compus “Noite de maio”, “Versos para música”, “Remorsos”, “Gesso e bronze”, “Aquela mão”, “Longe de ti”, “Em que pensas?”. Nunca foi minha, mas, na memória inesgotável do desejo, será minha para sempre. Seis de julho de 1871, três e vinte da tarde. Daqui a dez minutos vou morrer. Peço à mana que me ajude a levantar da cama, quero ir à janela e ver ainda uma vez o sol. Com grande esforço apóio-me ao parapeito; a respiração ofegante, o suor, o suor, essa dor no peito. Imóvel, sinto que a luz do sol se escurece, ou talvez seja eu que esteja escurecendo dentro do dia que insiste em brilhar. Três e meia. Castro Alves não existe mais. Bem. E depois? Cada um seguiu seu rumo. Leonídia, por exemplo, se casou cinco anos após minha morte. O solar Boa Vista virou hospício, e um dia internou uma mulher velhinha e doida Leonídia. Quando faleceu, encontraram em seus pertences cópias amarelecidas de versos meus. Agnèse voltou para a Itália, e hoje em dia deve estar regendo o 26
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coro dos querubins. Versos publicados, esquecidos, fracassados, traduzidos, improvisados, não escritos. Talvez a biografia de um poeta seja a soma de seus versos e a multiplicação de seus sonhos. Em meio a tantas tempestades, ouso dizer que fui feliz. Tive a bênção de ser o último poeta a casar povo e poesia, e já estava bem morto à época do divórcio. Por isso, se ainda quiserem saber de mim, não me ouçam mais tratem de ouvir meus versos, porque, em minha vida, eu afirmei: Último trono é o poema! Último asilo a Canção!
Antonio Carlos Secchin (Rio de Janeiro). Ensaísta, poeta e Professor de Literatura. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicou: 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Galo Branco, 2006), Memórias de um leitor de poesia e outros ensaios (Topbooks/ABL, 2010) entre outros. O texto acima foi publicado juntamente com antologia de Castro Alves, pela Fundação Banco do Brasil/ Organização Odebrecht em 1997.
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| Tiradas do Baú Por Raoni Xavier
RAONI [RAONI XAVIER] (Paraíba) – Ilustrador e quadrinista. Atualmente, prepara um livro de contos e dá vida às personagens Sirci e Lila (www.sircielila.com.br). Frequenta o Clube do Conto da Paraíba.
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| Conto CAPITU. E ESCOBAR Por W. J. Solha Ele chegou à casa de Bentinho ao anoitecer, mas foi Capitu quem o recebeu e o livrou da bengala, valise, chapéu-coco (as luvas dentro), dizendo que os criados já se haviam recolhido e que o marido fora sozinho ao teatro, como previsto (ante o argumento, dela, de que não se sentia bem). Ficaram os “cunhadinhos” – como gostavam de se alcunhar - livres para o balanço do pecúlio que, em segredo, a senhora Capitolina Pádua Santiago amealhava e o amigo convertia em libras. - Ah, do que somos capazes por ele! – Escobar disse, no que ela avaliou que alguém que lhe prestava tal serviço e ainda lhe chegava com gravata inglesa, perfume francês, lenço português, botins italianos e charutos de Havana… bem que merecia um cognac Martell, pelo que foi servi-lo, pois estava um pouco frio. A Escobar, por outro lado, não escapara o vestido em mousseline de seda pura e os suntuosos braços nus (que o marido proibia e o clima ...quase que... coibia). Acudiu-lhe a idéia de que a noite sempre põe a mulher numa aura especial, que duas ou três doses de champagne - “... um brandy também serve...” - completam à perfeição. - A banca de advogado de teu marido rende-lhe uma fábula - disse com algum chiste mas é sempre animador, para alguém tão bem-sucedido, que a esposa não lhe jogue o esforço pela janela com galhardas festas, com incessantes despesas nas joalherias Gondolo e Laboriau, ou na oficina de costura de Madame Saisset e no cabeleireiro Desmarais - tudo de que a minha querida Sancha não abre mão! – riu - limitando também os failles, chamalottes, tafetás, merinós, leques de gaze, além da variedade dos chapéus chics, produzindo – completou ao vê-la chegar com a salva que lhe expunha o drink e dois pratos - ... seus próprios fios d´ovos e marrons glacês, para economizar na confeitaria Castelães ou com o mestre cozinheiro do Hotel Pharoux. Soube que cortaste até as encomendas de compotas e marmeladas às madres da Ajuda! Depois de pinçar o Martell no que Capitu passava rumo à mesa, atentou para a delícia do farfalhar e dos frufrus da saia larga e do fragrante deslocamento de ar que o movimento dela provocava. Tomou o cognac em dois goles, examinando a nuca sob o penteado alto e os ombros da amiga, lembrando-se – de frente - das formas exuberantes do famoso nu de Pedro Américo - “A Carioca”. Rememorou, extasiado, as… redundâncias… que certamente existiriam também ali, tudo exato, evidentemente, ao contrário do estado atual do corpo da pobre Sanchinha, já mãe. Em Capitu, além da ausência de sobras e estrias, os seios ainda não tinham sido convertidos em mamas. “Ela deve ser... sensationnel!”, concluiu. Quando ela se voltou, Escobar baixou os olhos claros para o resto do cognac, voltando a erguê-los no que a 29
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ouviu dizer-lhe, triste: - Mas tudo que eu possa fazer por meu marido me parece pouco, mon cher, pois ele anda cada vez mais acabrunhado... por ainda não ser pai. Principalmente, pareceu-me, depois que Sancha deu à luz. - Mais economia – ele brincou, devolvendo-lhe o cálice à salva - O nhonhozinho, se encomendado, iria exigir parteira, mucama, chocalhos de lata, brinquedos, boticários... e uma ama-de-leite, a menos que iaiá Capitu passasse a consumir o Vinho Biogênico ou o Xarope Vitaminol, para lhe garantir o aleitamento. Continuou a falar, olhando crítico para os bons móveis de jaracandá, para a reta do teclado sob a cordilheira de notas no imponente Steinway, para as toalhas de Flandres, para as jarras e baixelas da Índia, para os licoreiros de cristal, biscoiteiras de porcelana, aparelhos para lavatório em prata, para “A Cidade Vista do Adro da igreja da Glória do Outeiro” (um belo óleo de ninguém menos que Quinsac de Monvoisin, com a casa deles incluída). Ao sentar-se ao lado de um dos magníficos candeeiros, no marquesão, recolhendo um charuto do casaco, passou ainda os olhos pelos álbuns de litografias “Panorama da Cidade do Rio de Janeiro” e “Lembrança do Brasil”, expostos no precioso console com tampo de mármore, à disposição dos visitantes. Aí consternou-se ante o próprio daguerreótipo que havia na sala do casal – com sua dedicatória no canto inferior direito - , junto ao de Dona Glória - mãe de Bentinho. - Não brinque com coisas sérias, mio caro... - A sério, Capitu: a frustração de Bentinho preocupa-me muito. Não era apenas isso que o angustiava, entretanto. Ela se casara por interesse, evidentemente - o noivo era o único que não atinara no fato. Se, porém, muito gastara no atacado quando da aquisição das melhores alfaias, agora – na verdade - poupar no varejo valia para ela o livro dos sete selos. E em esterlinas. “Mas para que... realmente?” – ele se perguntou. “That´s the question!” E não admitiu a insidiosa hipótese: tudo pretexto para trazê-lo aos encontros furtivos, na fé de que ele tomasse o resto da iniciativa para o que fatalmente viria. Ergueu os olhos para ela, no que a viu repetir com velatura na voz, como se lhe ouvisse os pensamentos: - Não brinque com coisas sérias, Escobar... - Mas não estou a brincar! Sei que Bentinho de fato não está bem. Ele se levantou. E disse, tornando-a mais opressa: - Ele vive a repetir-me “Nada me mata a sede de um filho”, “Queria um menino, triste que fosse, amarelo e magro”, “Uma criança, um filho é o complemento natural da vida”. - Oh, meu Deus, Escobar!... – e ela, inesperadamente, correu para buscar arrimo nos braços dele, que a estreitou com força, charuto ainda sem lume entre os dedos, ele angustiado, de imediato, com a excitação que o contato lhe provocara. Segurou-a pelos soberbos ombros 30
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nus e afastou-a de si, dizendo: - Eu, ainda ontem, garanti a ele e o repito para ti: “Virá, se necessário”. Ela olhou-o num e noutro olho, para ver se lhe apanhava um pensamento oculto. - Mas não vem – vaticinou aflita, voltando a abraçá-lo, apertando-o ainda mais, para suplício e gozo do amigo, que a ouviu murmurar junto de seu ouvido - Ah, meu Jesus:o tanto que já pedi em orações, o Bentinho ainda mais que eu!... De repente ouviram sons de um coche, cavalo a trote. Capitu se afastou com urgência, recompondo o vestido e os cabelos, Escobar meteu a mão esquerda na algibeira, também recuando, a sege passou direto, para alívio deles, a “cunhadinha”, lívida, dizendo: - Sabe de uma coisa? Vamos mudar de assunto e fechar as contas. Ele assentiu, acendendo o charuto no candeeiro a seu lado ( esquecido dos acepipes que lhe haviam sido oferecidos ). Pôs o havana entre os dentes, pegou a valise de sobre a mesa, seguiu Capitu até o gabinete de Bentinho,viu-a dar a volta ao bureau pesado e sentar-se na poltrona giratória. Acomodou-se também, ainda tenso, na cadeira de palhinha diante dela, maleta inglesa no colo. Capitu afastou o tinteiro de bronze, juntou os jornais a uma pilha de autos, deixou o tampo livre. - Quanto temos? Charuto preso entre os dentes, olhos apertados por causa da fumaça, Escobar desafivelou as duas cintas da valise, abriu-a, e dela tirou o envelope, que estendeu à proprietária: - Dez libras. - Ôh!... Antes que ela contasse as esterlinas, ele sacou um livro, depositou-o sobre o móvel, virou-o para que Capitu o recebesse de frente e estirou o braço, deslizando o volume sobre o negro verniz até ela: - Isto é um presente meu para o nosso amigo ver o quanto a vida dele é tão boa quanto a de Júpiter, que gozou de uma lua-de-mel de trezentos anos com Juno. Capitu riu e maravilhou-se: - “L´Enfer De Dante Alighieri”! Escobar estirou o braço esquerdo novamente e, com as pontas dos dedos, abriu a capa de popelina vermelha do volume, dizendo “Ele não fala francês, mas olha aqui”, e lhe mostrou, na folha de rosto, o detalhe que viu de cabeça para baixo: “Accompagnée du texte italien”. - Oh, Escobar, Bentinho vai ficar muito feliz!... - E mais, quando souber das libras – sorriu. – Receba antes, entretanto, por isso, minha homenagem a ti – e pôs mais um livro sobre o móvel, diante dela, este com encadernação em 31
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marroquim e fechos de prata, as figuras de Virgílio e Dante em relevo dourado na capa – Vê? Capitu levou as mãos ao rosto, deslumbrada: - “The Inferno”! E olhou para Escobar: - Tu és das Arábias, caro! – e, erguendo-se enquanto avançava - Estira-te para que te dê um beijo estalado na testa. Ele fez o que ela lhe disse, recebeu o mimo, e, depois, roçou os lábios na suave pele da face dela, aspirando-lhe o perfume, controlando-se para não... deixar, novamente, evoluir a excitação, forçado, já, por isso, a sentar-se. E aqui percebo que “Dom Casmurro”, publicado em 1899, em plena Belle Époque (1890-1914 ), data o casamento do Doutor Bento de Albuquerque Santiago e da senhorinha Capitolina Pádua bem para trás, num distante março de 1865. Mas não pode ter sido, pois Escobar – isto cerca de dois anos depois do casório – disse em seguida: - Vi teu entusiasmo e o dele quando Machado de Assis publicou no Globo uma tradução para o Canto XX do “Inferno”. Esse jornal é de 1874. - Fiquei sabendo, depois, que o José Pedro Xavier Pinheiro também se empolgara e resolvera traduzir “A Divina Comédia” toda e que, depois de verter os primeiros cantos para o português, mostrou-os ao romancista, que considerou o trabalho primoroso. Bom, não vou muito com Machado, mas... - Por que não? - Hm... várias razões – ele tirou uma escarcela da valise - O homem é mulato, filho de uma portuguesa com um pardo, e no entanto – apesar do prestígio - nunca mexeu uma palha pelo movimento abolicionista. Também não toma partido pelo fim da monarquia, nem se define entre as grandes correntes filosóficas do século, como o materialismo, positivismo, evolucionismo, monismo transformístico, hartmmannismo... - Mas ele é tão elogiado... - É. Pelos sevandijas, capadócios, pelos louvaminheiros de profissão. Na minha opinião, porém, ele tem uma prosa anacrônica, imitativa, deslocada, artificiosa, com conteúdo pouco variado, entrecho pouco movimentado e monotonia de narração, insistindo sempre num superadíssimo sense of humour à Swift, Sterne, ... Lamb, ... Thackeray. Sei que nenhum autor é completo: Lucas, por exemplo, se esquece de mencionar a coroa de espinhos no evangelho dele, e João, veja só, omite algo ainda mais “insignificante”: o sermão da montanha inteiro! No Machado, porém, a lacuna, embora não tão grave, é...chocante, pois ele escreve para mulheres e sobre mulheres, mas o que se... sabe... é que tem muito pouca experiência... de mulheres!.. 32
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– E o senhor, pelo que andei sabendo, tem muita... Ele a encarou, surpreso. Ela foi mais precisa: - Eu soube da atriz. – pausa – Bailarina?... Escobar abriu a boca para lhe dizer que há mulheres – ao contrário dela e de Sancha que liberam os homens dos torturantes prefácios e posfácios no momento em que eles..., mas baixou os olhos claros mais uma vez. Ela o socorreu: - Ah, não pense que te reprovo! Para te ser sincera, apreciaria que meu Bentinho não fosse tão... casmurro, tão ex-seminarista, tão... bentinho! Pelo amor de Deus!... Quem sabe ele já teria o ansiado filho, se assim não fosse!... Escobar não entendeu o que ela estava dizendo. Que o marido não a tocava? Ah, não: - Achas que... a esterilidade é tua?! - Como saber? - Com tua saúde?! Ficaram por um momento calados. Escobar derrubou a cinza enorme do charuto no cinzeiro, sugou uma tragada substancial, e disse, indicador e médio como os de Cristo, havana ao meio, as palavras saindo em meio à fumaça: - Acho que se Machado os conhecesse, a ti e ao Bentinho, faria dos dois seus personagens. Acho, mesmo,.que se veria projetado em teu marido e veria Dona Carolina em ti, pois, além de também jamais ter... “transmitido a nenhuma criatura – ele disse isso em algum lugar – o legado da nossa miséria”, ele tem motivos fortes para também ser tímido, pois – além de mulato - é gago, epilético, raquítico, ... e foi pobre... - Mas a pobre da rua de Matacavalos era eu!... - Costuma-se fazer dessas trocas, em literatura. Machado se apaixonou pela Carolina, quase Capitolina, com quem se casou. Ela, como tu, era uma jovem inteligente e desembaraçada. Ele, como é escuro e leitor de Shakespeare, acabaria fatalmente por mencionar Otelo algumas vezes, principalmente se sabedor de que existe alguém louro por perto, como eu, tendo estes encontros secretos contigo, o que o faria pensar num final igualmente trágico para ti. Capitu sentiu-se desconfortável. Pegou o calhamaço na pasta que Escobar lhe entregara, viu que era um manuscrito, mudou novamente de assunto: - E isto? - Ah! Como eu lhe dizia: assim que soube que o Xavier Pinheiro fazia a tradução de toda “A Divina Comédia”, fui de ceca em meca atrás de conseguir uma cópia dela para ti... e aí está! - Jesus! Tu sempre consegues o que queres?! - Só o que tu queres!... E o Bentinho. 33
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Olharam-se nos olhos. - Mas...ao contrário do que disse Machado – Escobar prosseguiu -, a tradução do Xavier Pinheiro non me piace. Vero! Veja o primeiro verso do original italiano – disse erguendo-se e dando a volta à grande secretária, postando-se de pé ao lado de Capitu, declamando-lhe de cor – “Nel mezzo del cammin di nostra vita...” Viu-a erguer o rosto para ele, atenta, e comentou: – Trata-se de algo simples, direto – e traduziu - “No meio do caminho de nossa vida...” Mas leia a versão do nosso traditore – curvou-se, passando o charuto para a mão esquerda, abrindo o calhamaço com a direita, seguindo o texto com o indicador: - “Da nossa vida em meio da jornada...” - Arrevesou tudo! - Não é? Xavier Pinheiro destrói os melhores achados de Dante. Como este – virou algumas páginas – Aqui, no canto V, temos esta frase citadíssima: “Nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miseria” ( Capitu gostou dos sons da voz dele na palavra “misérrria”).”Nenhuma dor maior – ele transpôs - que a de se recordar o tempo feliz na miséria”. Mas olha só o que o nosso sacripanta concebeu: “Não há tormento mais dorido que recordar o tempo venturoso na desgraça”. Escobar sorriu, deu uma tragada, soprou a fumaça para o outro lado, pegou “L´Enfer”, girou a capa dura. - Felizmente o melhor do volume é isto – e leu em português o que estava em francês “Com os desenhos de Gustave Doré.” - Doré? “Dourado”? - Conhece? - Não. - É, infelizmente o mundo trabalha em ordem cronológica, mas não alfabética. Isso é mister dos enciclopedistas, que ainda não têm verbetes para novos gênios como ele, Gustave Flaubert e Gustave Moreau! Isto é coisa novíssima! Ele gostou de vê-la abrir o in-fólio e levá-lo ao rosto, aspirar-lhe o cheiro dos papéis e tintas novos. Mas o sorriso dela se diluiu ante a força poderosa da ilustração que lhe surgiu ao recuar o livro, enquanto Escobar abandonava o charuto ao cinzeiro: - Meu Deus, que ilustração, que cena impressionante! O que é isso? Virgílio e Dante, de pé no alto de uma alta escarpa escura, mantos ao vento, olham pasmos para o céu tomado pela horda enorme de... casais nus!... que, vindo em sinuosas lá dos confins do cânion sinistro, densa como uma revoada de pássaros ou gafanhotos, passa por cima de suas cabeças, no desfiladeiro, milhares deles momentaneamente iluminados por uma luz como que de relâmpago. 34
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Escobar disse em francês, para não chocá-la tanto: - Sont les luxurieux, impudiques et morts pour amour… O lábio inferior, dela, ficou preso entre os dentes, o rosto no clarão do assombro, Escobar completando: - Nessa leva estão Semiramis, Dido, Cleópatra, Helena de Tróia, Tristão, todos no segundo círculo do Inferno. Aí, quando Dante quer interrogar alguém nessa turba, calha de o turbilhão baixar no que passam abraçados perto dele Francesca da Rimini e o cunhado, Paolo Malatesta, mortos pelo marido, Gianciotto, por... terem-se eles apaixonado. Eis os dois – Escobar disse em voz baixa, virando a página. O belo casal, que se destaca na escuridão, solto sobre o abismo, enche os olhos de Capitu, que ora olha para o belo Paolo em parte envolto em manto, ora para Francesca com as costas contra o corpo do amante, a maravilhosa nudez completamente exposta. Lá estava a fenda sangrante da punhalada entre os seios da linda pecadora. Escobar, agora mais junto da amiga, vira mais uma página e deixa a mulher de Bentinho sem fala ante a nova cena: Virgílio e Dante juntos, vistos de costas, ambos coroados de louros, o mestre com o braço direito no ombro do discípulo, as cabeças de ambos inclinadas, os dois ouvindo a flutuante Rimini que lhes fala enquanto o Malatesta se contorce de dor atrás dela, meio milhão de outros casais passando ao fundo, no alvoroço do vendaval. - Como foi essa história, o que é que ela conta ao Dante? – Capitu perguntou. Escobar abriu o livro – ainda nas mãos dela - na parte do texto em italiano, e leu em voz baixa, como se fosse Francesca: - “Noi leggiavamo un giorno per diletto... di Lancelotto come amor lo strinse...” - Não entendi, não entendi. O que é que tem Lancelot? Escobar se valeu da tradução de Xavier Pinheiro: - “Por passatempo eu li, e o meu dileto, de Lanceloto extremos namorados: éramos sós, de coração quieto”... - Ts – ela fez, impaciente. - “Un jour – Escobar tentou noutro texto – nous avons pris du plaisir en lisant de Lancelot, qui fut esclave de l´amour. Nous étions seuls tous deux et sans aucun soupçon”. - Vejo a coisa ainda meio obscura... - “One day – ele leu noutro volume – for our delight we read of Lancelot. How him love thrald´d. Alone we were, and no suspicion near us.” Inútil. Escobar deu a própria versão: - “Um dia… estávamos a sós…eu e Paolo... lendo a história de Lancelot”. Lancelot, tu sabes, seduziu a mulher do rei Arthur, de quem ele era o mais fiel cavaleiro. “Foi quando chegamos” – Escobar avançou na interpretação, engolindo em seco e repetindo – “Foi quando 35
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chegamos àquele ponto que falava do sorriso dela que ansiava ser beijado... por um amante perfeito...” Viu que Capitu arfava, excitada, e que tomava as rédeas da leitura, sôfrega, numa voz de contralto em ópera de Verdi: - “La bocca mi basciò... tutto tremante...” Ele sentiu a ereção doer, atrás dela. Nenhum adúltero pensa em útero, mas ele pensou, ao concluir: - … “quell giorno più non vi leggemo avante” Corroborou: - ... “that day we read no more”. Recuou alguns versos: - Isto é muito bonito, aqui, mais atrás: “Nossos olhos, por vezes, encontrados, cessam de ler…” Foi então que Escobar e Capitu, intensamente perturbados, muito próximos um do outro, se chegaram ainda mais. Ele baixou a cabeça, Capitu vacilou, fechou os olhos, narinas frementes, entreabriu os lábios e aguardou aquilo pelo qual – força era confessar - sempre esperara. E ele a beijou e a suspendeu até tê-la em pé, corpo masculino contra corpo feminino outra vez, e ela gemeu – tutta tremante - enquanto, na ilustração seguinte, Francesca, sentada, apartava as coxas e deixava cair o livro entre elas, sem ver que Gianciotto Malatesta se aproximava com o punhal erguido. ... Quando Bentinho chegou, deu com Escobar à porta do corredor, chapéu-coco e bengala na mão, dizendo-lhe. - Vinha falar-te sobre os embargos, mas vi que não havia ninguém na casa e já ia voltando... Que é da ”cunhadinha” ? - Ela não foi comigo. Queixava-se da cabeça e do estômago. Fui só, mas voltei com remorso, ao fim do primeiro ato, receoso por ela. - Bom, então falemos amanhã. - Não, não, falemos já. Sobe. Ela pode estar melhor. Estava.
W.J. Solha (Paraíba/São Paulo) – Escritor, Ator, Artista Plástico. Publicou diversos livros. Destaque para A Canga (Editora Moderna, 1979), Trigal com Corvos (Imprell, 2004), História Universal da Angústia (Bertrand Brasil, 2006). Vencedor de diversos prêmios, entre eles o Fernando Chinaglia (1974), João Cabral de Melo Neto (2005, UBE) e Graciliano Ramos (2006, UBE). O conto "Capitu. E escobar" foi publicado na antologia Capitu Mandou Flores, organizada por Rinaldo de Fernandes.
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| Poemas De Eunice Boreal
AFINAL, O QUE É VOCÊ? A palavra coisa excita A coisa que há e que foi A palavra é coisa que ex-cita A palavra foi e a palavra há A coisa da palavra é só Quando a palavra da coisa É em si, sol, lá, mi e fá Mas se a palavra é coisa Que coisa da palavra é você? Sol, mi, fá, ré, si, dó, sol, lá,
MÚLTIPLO Eu não me escondo. Eu sou segredo. O que mostro é grito, O que grifo é cachoeira.
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A POESIA FUGIU DO PAPEL Saltou aos olhos em câmeras e bits Criou formas com sprays e mármores A poesia trocou a métrica Pela coreografia E ganhou as teclas sorvendo jornais A poesia agora só canta em teatro É a maestrina titular Que de olhos atentos Rege outras formas. A poesia que já reinventou o poema Agora só reinventa a vida.
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BENDITO BAZIN (depois daquele Truffaut) Nunca tinha dado um mergulho. Já havia mentido. Roubava regularmente. Durante o dia subornava o professor de línguas, A tarde chantageava o amante de sua mãe, Só a noite é que era cinema. Cigarro, puberdade e Balzac. Não pensava em ser escritor, Queria mais, muito mais. Mas entre closes e bandidagens, Roubou uma máquina datilográfica E por não conseguir vendê-la Ganhou a escrita de todas as linguagens. Imerso no seu cine-poema Sofreu a pena da cela pequena E na primeira fuga, ao lembrar Do homem da projeção, chamou Seu melhor amigo de mar.
Eunice Boreal (Paraíba). Poeta. Graduanda em Filosofia na UFPB e Música Erudita na EMAN. Tem publicações no Livro da Tribo, no Portal Cronópios entre outros sites de literatura. Blog: http://eunasce.blogspot.com/
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| O Aeropago Por Valdênio Freitas Menezes A Consciência Humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto! - Augusto dos Anjos O morcego (1) Não é apenas a cama que conecta sono e sexo: a insônia é a impotência sonífera. O comprimido do calmante é a pílula azul do insone. Para dormir, precisamos pensar em algo, mas também não dormimos se pensarmos demais. Pra muitos, dormir não é nada fácil, pois precisa-se de um ambiente propício, sem barulho (ou com barulho de chuva), TV ligada, música, roupas, luminosidade, tranquilidade. A verdade é que a fantasia não é monopólio do sexo. A catalepsia e o fim das diferenças de classe social Tinha uma velha senhora no bairro que morei na infância que dizia: só se consegue dormir plenamente quando não se tem nenhuma dívida - moral ou financeira - com algo ou alguém. Mesmo sem nenhuma destas pendências, o jovenzinho V.K.M estava numa fase que não conseguia dormir de forma alguma. A concentração na escola ia mal. Viajando em pensamentos na sala de aula, piscava os pesados olhos, ia ao banheiro, molhava o rosto, mas nada reanimava. Na aula de história, ouvia alguma coisa perdida dos professores falando de pobreza, desemprego, falta de moradia etc. Já que isso estava tão distante de sua vida quanto a voz dos professores na sua cansada mente. Quanto ao seu nome, o K. junto ao M. não era um simples encontro de sobrenomes: significava que era muito, muito rico, e não tinha motivos. O K. vinha de minha mãe descendente de família tradicional sempre que seu avô frisava que tinham vindo da Europa e que tinham ancestrais medievais nobres, o que se poderia ver nos brasões das antigas jóias da família. O M. era do pai, um desses que começou com pequenas vendas e conseguiu crescer financeiramente, justo aquela já conhecida história de vida de superação que as revistas e palestras anunciam e pedem para seguirmos o exemplo. Tudo começou uma certa manhã que V.K.M não estava acordando de sonhos intranqüilos, porque não conseguia fazer algo que é pré-requisito para ser um sonhador. Ficou pensando em família, escola, seus esportes, viagens de natal, negócios da empresa do pai, dinheiro, cartões, aí passava pra família, suas tias amigas de condessas e primeiras damas. 40
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Chegou um momento em que ficou simplesmente esperando a passagem do status “acordado” para “dormindo”. Será que era amor? Algum primeiro acidente amoroso na sua vida? Não era fácil saber porque V.K. na época não nos contou nada e nem contava nada à sua família. Trancava-se no quarto à noite e ficava esperando o dia amanhecer. Pensava apenas em dormir, mas não conseguia dormir. Por volta dos 12 ou 13 anos, V.K descobriria que dormimos a vida inteira, mas que as pessoas morrem sem aprender a dormir. Chegava em casa, comia algo e já via a hora avançada, mais 15 minutos pra começar o horário oficial de insônia. Tentou colocar alguma música pra descansar, mas nada. Comprou disquinhos que reproduziam o som de chuva que também não faziam efeito. Deitou na cama, enrolou-se em uns cobertores e começou a pensar em algo que o fizesse dormir. Às vezes, antes de dormir fazemos um inventário do dia. Foi aos cadernos da escola, pensou um pouco, folheou os livros, viu as imagens : - “E se eu fosse um mendigo?” Começou a pensar. Dormiria na rua, enrolado em cobertores, será que debaixo de uma ponte? Armaria uma tenda de papelão? Todas as respostas pra essas perguntas vieram em uma serenidade profunda em seu espírito, uma calma que o invadiu e que fez com que adormecesse profundamente. Dizem que o jovem Sidarta Gautama, o Buda, viveu até certa idade da sua vida e foi privado pela sua rica família de todo o sofrimento mundano. Seu pai não deixava o filho sair do palácio para que ele não visse os moribundos, doentes e miseráveis das vilas e povoados próximos. Quando ele já mais velho sai e começa a ver os sofrimentos do mundo isso o angustia e daí começa seu caminho para a iluminação. Mais ou menos isso aconteceu com V.K.M. Sua projeção imaginária pra dormir colocava de ponta-cabeça qualquer ato heróico de Robin Hood: se imaginava como pobretão, sem ter onde morar e dormia como aquelas pedras que não sabemos como e nem há quantos milênios estão no topo das montanhas. No dia seguinte, a vida ganhara novo sentido. Nem se fosse a sua primeira vez na cama sem ser apenas pra dormir ficaria tão alegre. Ficava horas e horas na escola esperando anoitecer pra chegar em casa e realizar sua fantasia. Diferente daquele garoto mais bonito da escola, que as meninas amavam mas que quando a mãe e a irmã saiam de casa, ficava usando os vestidos dela e V.K.M achava que tinha fantasias mais interessantes pra se pensar. Quem ele seria hoje a noite? Um mendigo debaixo da ponte? Ou fixaria o corpo e mente na beira de uma estrada isolada? No frio, talvez na neve? Ou no calor, deitado nas areias da praia, enquanto os carros passavam ao lado? Também começou a arriscar uns cochilos à tarde. “Mendigos devem dormir o dia todo, pensava”, 41
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Um dia pensou uma ótima antes de dormir: era um mendigo, que dormia perto de sua escola. No frio, de manhã cedo, via seus pais passeando com o cachorro e suas frases ressoando nos ares: “filho, você vive bem, hoje, mas seu pai trabalhou e a vida é dura” ; “sua vida é muito boa, não reclame de nada” ; “ filho, tomou banho? Levou o lanche? Escovou os dentes? Tá com febre? Tá precisando de dinheiro? Quanto?”. Depois via seus amigos da escola passando no ônibus, rindo de algo, brincando entre si, falando alto. Viu algumas garotas da escola que sorriam. Sua irmã sorria bastante e acenava de longe, sendo divertida do jeito que só uma criança sabe fazer indo pros primeiros dias de aula. No seu sono, toda e qualquer luta de classes se apaziguava e, assim, a cura da insônia tinha sentença perpétua.
V a l d ê n i o F r e i t a s ( P a r a í b a ) C r o n i s t a . B l o g : h t t p : / / w w w . o a e r o p a g o . b l o g s p o t . c o m
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| Conto QUEDA LIVRE Por Renato Tardivo Sempre detestei aquele trabalho. “Enfadonho”, tossiria o meu avô. Eu não sabia o significado daquela palavra estranha. Na escola, era mediano por excelência: jamais fui reprovado, jamais obtive um oito. Mas bobo eu não era e de cultura tossida, como o legado do meu avô, eu nunca quis saber. Havia coisa mais importante. E era a convicção de que aquele trabalho guardava a minha grande oportunidade. Comecei boy. “Muito bem”, disse o avô, “o trabalho dignifica o homem, meu filho”. Nunca entendi bem as razões, mas o dono do cartório, para quem eu prestava diretamente a maioria dos serviços, sempre apostou suas fichas em mim. Em pouco tempo, passei a chefe de outro boy; coordenava atrás de uma mesa o seu vaivém pela cidade. Estava ficando mais confortável, pelo menos. Quando concluí os estudos, o patrão me chamou em sua sala. Veio com uma conversa esquisita, tinha real interesse em bancar os meus estudos na faculdade, desde que em um curso noturno. “Faculdade?” – eu levei um baita susto. Em casa, meu avô, que já não tossia, balbuciou convalescente um viva às pessoas de bem. Entrei em Ciências Contábeis. Minhas atribuições no cartório foram encorpando à medida que eu avançava no curso. Quando dei por mim, estava formado e era, depois do meu chefe, a pessoa mais importante naquele estabelecimento enfadonho. Casamentos, contratos, balancetes. Era a mesma chatice de sempre. No entanto, havia uma coisa, esta sim, de que fui gostando mais e mais com o tempo. Via os casais chegarem com a criança. Às vezes eu mesmo fazia o registro e, nessas ocasiões, me regozijava com tamanho poder. A pessoa passava a existir, para o que no fim das coisas importa nessa vida, depois daquele registro. O meu registro. A certidão de nascimento tinha para mim poder parecido com mágica. Simples: uma folha de papel, alguns dados, o nome e só. Mas tinha mais. Um dia, o fascínio por certidões de nascimento exorbitou. E eu tive uma grande ideia. A ideia que me salvaria. Eu podia criar uma pessoa. Bastava digitar uma página. Poucas palavras. Um nome. Data e local de nascimento. Avós. Pai e mãe. Mãe. Eu não tenho muitas lembranças da minha. Restam apenas três imagens, e a 43
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mesma tristeza nos olhos. Eu devia ter uns nove anos quando comecei com essa história. Dizia à minha mãe (eu só tinha nove anos) que para mim havia uma única solução: morrer e nascer de novo. Ficava desconsolada, a pobre. Quem morreu foi ela. Acho que de desgosto. Desde então, vivi obcecado pelo grande feito: morrer e nascer de novo. Mas jamais vislumbrara uma possibilidade real para isso. Para mim. E posso dizer que me resignei. Até o dia em que tudo mudou. Assim que registrei o meu nascimento, eu saltei para a morte. Este era o grande segredo: de fato não conseguiria morrer e nascer de novo. Eu não era bobo, e descobri que precisava primeiro nascer de novo para em seguida morrer. Foi o que fiz. Joguei-me ao encontro de pontos distantes. Luzes, corpos, vultos. Lá embaixo, um emaranhado de signos. E fui dar nesse breu em que não se sabe direito quem é quem. Em que não há chão. Onde as palavras voam, à procura de si mesmas, para aterrar em areia movediça. Eu crio pessoas. E, como mágica, reverto a tristeza da mãe. Transformo o avô no meu leitor principal; às vezes penso que ele e o dono do cartório sempre foram a mesma pessoa. Enfim escritor, eu sigo a forjar vidas – a minha e a dos outros.
Renato Tardivo (São Paulo) - Escritor, Psicanalista e Professor Universitário. Autor de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp, no prelo) e do livro de contos Do avesso (Com-Arte), do qual faz parte “Queda livre” – conto que abre a coletânea.
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| Estante A sombra do vento, de Carlos Ruiz Zafón / Objetiva, 2007 Por Mabel Amorim A Barcelona da primeira metade do séc. XX serve de pano de fundo de um romance instigante e perturbador. A primeira cena nos leva ao Cemitério dos Livros Esquecidos, um lugar que qualquer ávido leitor da face da terra gostaria de conhecer e percorrer seus corredores, descobrindo tesouros literários. Seguir os passos de Daniel Sempere narrados pelo próprio, não é tarefa que se realize incólume. Impossível não se envolver nos mistérios que permeiam a narrativa e a cada capítulo não desejar ardentemente decifrar os segredos do enigmático Julián Carax. Em meio à trama, personagens encantadores e divertidos surgem e crescem na história, como Fermín, o ex-mendigo, enquanto outros tornam-se perigosos. Um homem sem rosto, um livro maldito, vidas destroçadas, um criminoso perverso e um jovem que busca a verdade e a felicidade de um grande amor, esses são alguns dos elementos que o espanhol Zafón magistralmente utilizou na construção de uma história que não se permite ser largada enquanto o último parágrafo não for lido. E ao fazê-lo, sentimonos plenos, completos, mergulhados na sensação prazerosa que só os excelentes enredos proporcionam aos que concluem a sua leitura. “A sombra do vento” é um convite ao mais puro deleite literário.
Mabel Amorim (Paraíba/Alagoas). Escritora. Publicou: A Última Chance (Romance, Scortecci, 2008) e Os Segredos do Sótão (Infantil, Meta Editora, 2010).
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| Estante SteamPink, Org.: Tatiana Ruiz – Estronho, 2011 Por Amanda Reznor O gênero steampunk ainda não foi assimilado pela maioria dos brasileiros; prova disso é que todos os colegas fora do círculo literário com quem entro em contato (sejam eles de qualquer região do Brasil) para divulgar minha participação na antologia SteamPink me perguntam o porquê deste título. “SteamPink, meus amigos, nada mais é que o trocadilho de 'punk' com 'pink', uma brincadeira feita pela Editora Estronho, uma vez que a antologia foi escrita apenas por mulheres”, lhes respondo. E eles, mais aliviados: “Ah, sim! E o que é steam... steam ou quê, mesmo?”. Embora não seja necessário saber de quê se trata o gênero para compreender seus contos, é interessante conhecê-lo para captar o contexto da obra: steampunk, um subgênero Sci-Fi (ficção científica), é uma junção do inglês “steam” (vapor) e “punk” (inconvencional) e faz referência, em geral, ao século XIX (Era Vitoriana, Belle Époque, Revolução Industrial) ou outras eras passadas, entremeadas de inventores, damas sensuais, vilões marcantes e máquinas futurísticas, preferencialmente movidas a vapor. Exemplos clássicos de inspiração do steampunk seriam os escritos de Júlio Verne. Por ser um território mais dominado pelos homens na literatura, porém, a Estronho abriu as portas para um desafio – a retratação do gênero apenas por autoras, dando o toque peculiar das mãos femininas. O resultado? A antologia SteamPink tem recebido feedback positivo dos leitores (constatação via redes sociais – postagens em blogues,Twitter e Facebook), propiciando não só a popularização do gênero como também a da qualidade dos textos das escritoras que participaram da seleção (sim, esta era uma antologia aberta e seus contos passaram pelo rigoroso padrão da Estronho), mulheres que ainda se mantinham no anonimato e que agora tiveram a oportunidade de se inserir no mundo literário. Além disso, sendo lançado em agosto deste ano, durante o FANTASTICON, o livro já teve sua primeira edição esgotada. A retomada de filmes como Sherlock Holmes e d'Os Três Mosqueteiros, (este em cartaz) e de outros com lançamento marcado, como SuckerPunch – Mundo Surreal, exploram nas telas o gênero steampunk e provam que a antologia veio à luz na hora certa – o público que se identificar com a ambientação, vestimenta e engenhocas dessas e outras produções (outra 46
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bastante conhecida foi a do Van Helsing) certamente se encantarão com SteamPink! Mas esta não é a única possibilidade do gênero na literatura nacional; a Editora Draco e a Tarja Editorial possuem vários títulos steampunk publicados, e a própria Estronho lançou, concomitantemente ao SteamPink, a antologia Deus exMachina. Porém vale ressaltar: nenhum outro livro recebeu a inspiração, a visão e a contemplação de treze escritoras sob uma única capa (e, brinque-se de passagem, uma Senhora Capa!), culminando na experiência deliciosa que nos proporciona a antologia ao tragar-nos para o passado da Europa, Brasil e Estados Unidos, percorrendo desde aventuras pelas terras, ares e mares até guerras e intrigas policiais, sortilégios e inventos secretos. Pronto para evaporar pelas engrenagens? Então se arme com sua melhor expectativa, colete ou corselete e adentre esta máquina do tempo!
Amanda Reznor (São Paulo) – Escritora e Compositora. Tem produções publicadas em diversas antologias e coletâneas. Blog: http://amanda-reznor.blogspot.com
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| Poemas De Alberto Lins Caldas
* ● assim a saliva ● ● espesso esperma ● ● aço q atravessa ● ● esse frio esse ar ● ● olhar marfim ● ● braços e dedos ● ● garras e dentes ● ● carne sem pressa ● ● estilhaço e gozo ● ● loucura ogiva ● ● ardente e macio ● ● agarro e se abre ● ● quase cheio ● ● sempre vazio ●
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* ● devora os filhotes q nascem ● ● frios como pedras de ● ● gelo ● ● mastiga seus minusculos ● ● ossos depois de rasgar a ● ● pele ● ● inda vivos ela lambe o sangue ● ● q se espalha e morde ate ● ● matar ● ● depois com a lingua recolhe o ● ● resto e mastiga gulosa e ● ● feliz ● ● essa noite dormira tranquila ● ● não existem mais os gemidos ●
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* ● com a lamina toda ● ● afiada corto ● ● sem derramar nenh ● ● uma gota de sangue ● ● porq esse ● ● vazou hora a hora ● ● dia a dia antes disso ● ● agora é a ● ● carne e seus ossos ● ● esses tendões e ● ● todas as margens ● ● todos os risos as ● ● esperas a terra ● ● tostada a borda q se ● ● dissolve no meio ● ● olhar assim ● ● bem no centro ● ● desse lugar nenhum ●
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* ● atravessamos eu e ● ● meus leopardos esse ● ● deserto aberto o ● ● centro em toda ● ● parte bordas em ● ● lugar nenhum afi ● ● ando todas as ga ● ● rras esperando arma ● ● dilhas emboscadas tudo ● ● q impediria nosso ● ● avanço entre essas ● ● ruinas porq sabemos eu e ● ● meus leopardos q esse ● ● deserto devora todos nos e ● ● nossos leopardos sempre sem ● ● se saciar so nos ● ● resta os passos nessa ● ● areia quente antes do vento ● ● miragens todos os dias o ● ● frio perverso das noites a ● ● espera do q não existe ● ● inferno do peso ao ● ● caminhar e assim eu e ● ● meus leopardos temos q ● ● continuar ate mesmo agora ● ● nessa tempestade no tempo ● ● da solidão dos fracos ● Alberto Lins Caldas (Alagoas/Pernambuco). Poeta e Professor. É autor dos livros de contos “Babel” (Revan, Rio de Janeiro, 2001), “Gorgonas” (Companhia Editora de Pernambuco, Recife, 2008) e do romance “Senhor Krauze” (Revan, Rio de Janeiro, 2009).
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| Poesia Imaginada
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Por Flaw Mendes
Flaw Mendes (Paraíba) – Ilustrador e Artista plástico. Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Blog: http://flawmendes.blogspot.com
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| Ensaio O MÍTICO OFÍCIO DE ASSUNÇÃO Por Weslley Barbosa A poesia do paraibano José Antonio Assunção é, sem dúvidas, uma das mais ricas da literatura de nosso estado. Nome presente nos meios artísticos desde a década de 1970 (tendo participado do grupo de jovens artistas que deram vida à revista Garatuja), Assunção, antes mesmo de publicar sua primeira obra, já recebia uma significativa quantidade de leituras e análises. Com o passar dos anos, a fortuna crítica em torno do autor cada vez mais se adensou, com a contribuição de vários nomes significativos de nossa crítica (Elizabeth Marinheiro, José Mário da Silva, Antônio Morais de Carvalho e Milton Marques Júnior são alguns exemplos). Compreendemos, portanto, que não assume simples tarefa aquele que busque, atualmente, estabelecer um olhar inédito acerca da obra do poeta em questão. Entretanto, aceitamos humildemente o desafio, não no intuito de lançar um grito isolado e pretensioso em relação às demais vozes que a analisaram, mas sim assumindo o papel daquele que, tendo colhido dos mestres acima, não se priva da oportunidade de também abrir, para possíveis interessados, mais uma porta de entrada para o estudo da rica poesia de Assunção. Apesar de ter publicado pouco – O câncer no pêssego (Idéia, 1992) e A trapaça da rosa (Manufatura, 1998), além de possuir outra obra ainda inédita: A casa do ser – José Antônio Assunção mostra em seus textos os traços marcantes de uma cosmovisão bem definida e uma maturidade poética inquestionável. Deixando transbordar dos seus versos as vozes de um Pessoa, um Drummond, um João Cabral, um Camões, um Borges, ou mesmo os clássicos, a exemplo de Homero, o poeta paraibano não se alheia da imprescindível tarefa (para aqueles que se mostrem dispostos a produzir relevante e verdadeira poesia) de lançar um olhar subjetivo e transfigurador sobre a realidade, subjetividade esta que aqui se manifesta de maneira ímpar em nossas letras. Plural nos leitmotive com os quais produz seus poemas, Assunção contempla desde o mais universal dos temas, o amor (veja-se a primeira parte dO câncer no pêssego, Nas crinas da paixão), até a morte (a segunda parte da mesma obra, intitulada O exercício de Sísifo, é um exemplo, além, como bem lembra Hildeberto Barbosa em Os labirintos do discurso, de toda a obra A Casa do Ser), passando também pela metalinguagem (última parte dO Câncer, Outro Exercício de Sísifo, o exemplifica) e até pelo erotismo (como se vê no poema Entre pérola e ostra, na primeira parte da referida obra). Um leitmotiv, no entanto, chamou-nos especial atenção, quando da leitura de O câncer no pêssego: o da “busca”. Assim, a partir de agora trilharemos um caminho que nos leve a esboçar um quadro acerca do modo como essa busca se dá na referida obra, a partir de três momentos diferentes, de acordo com as três partes do livro: no amor (primeira parte), no 53
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próprio “eu” do poeta (segunda parte) e no fazer poético (terceira parte). Em todos esses momentos o mito está presente, mas está presente ressignificado, portando a dura capacidade de amplificar as angústias do eu lírico. Não erraria aquele que definisse o ser humano como o ser que está em constante busca. Desde a nossa origem procuramos algo: respostas para nossa existência, avanços tecnológicos, novas terras, novos mundos, novas vidas. Por vezes essa busca chega ao nível da utopia, daí que idealizamos inúmeros eldorados, fontes da juventude, elixires, entre outras coisas ao longo de nossa história. Daí também surge o mito. Poderíamos esboçar um conceito de mito partindo daquilo que vemos como sua maior característica: é fruto da necessidade humana de buscar explicações. Surge como uma forma de se responder a certas perguntas que não são possíveis de serem respondidas no âmbito racional. O homem olha para si mesmo e reconhece a própria incapacidade, fragilidade. Se reconhece fraco e busca o amparo: eis o mito, talvez a mais bela criação da humanidade. Ele parece ser a busca última, derradeiro refúgio para a espécie. Mas, e quando o mito, ao contrário de servir de refúgio apenas expõe nossas fragilidades? Que fazer quando reconhecemos no mito a inutilidade de nossas buscas? Como agir diante de Sísifo que, com seu eterno ofício sem valia, apenas nos faz enxergar que não há luz nem fim, no atro túnel em que nos lançamos? José Antonio Assunção também se dá conta desta trágica sina. Mas antes, lança-se, desprendido, arriscando-se no labirinto do amor. Mesmo ciente da fragilidade do sentimento, o eu lírico doa-se, diferente do que fizera Ulisses, “num barco sem mastros / e tímpanos bem abertos”, ao canto das sereias (O canto das sereias, p. 13). Eis ai o tema e o tom de Nas crinas da paixão, primeira parte da obra. De peito aberto o eu lírico se lança na “primeira busca” do livro. Busca-se o amor. Diríamos melhor ainda: busca-se o melhor modo de amar – “como fazer um teu poema / sem trair teu corpo, / esse teu cheiro de amêndoa?” (Teu corpo, p. 19). Dessa intensa busca por satisfação, realização amorosa, surge o desejo, materializado em poemas portadores de um perceptível caráter erótico. Os versos abaixo, retirados de Entre beijo e bocas (ranhuras), podem exemplificar isso: (I) Há mais que pérolas na ostra que apertas entre as coxas; há bem mais que pérolas no céu crustáceo 54
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dessa ostra. (II) Entre teu sexo e tua boca, o tempo de saber teu corpo na ponta da língua.(p. 24) distância nenhuma: Belíssimos versos em que o desejo, a paixão, parecem assumir o primeiro plano. O eu lírico busca a saciedade do corpo, sem saber que nisto mesmo pode residir o ácido que corrói o amor. Entra-se assim num jogo de altos e baixos, em que ora impera a mansidão e a fluidez do amor, ora o fogo e o espasmo da paixão. Entregando-se de corpo e alma a um sentimento que mescla pluma e pedra, flor e espinho, não resta ao poeta uma alternativa que não sofrer as conseqüências de sua entrega, expressa, como dissemos acima, no poema O canto das sereias. Aos poucos o poeta vai dando-se conta das agruras do amor – “contradição de mar / e mangue; / convulsão de mitos / em céu de pântano” (Entre mar e mangue, p. 27) – e de quanto são traiçoeiras as amadas (Bacante, p. 31). Sem se enganar em nenhum momento, mas também não buscando exilar-se do sentimento, o eu lírico segue amando, embora demonstre não mais esperar, nos laços amorosos, o preenchimento das lacunas de seu ser. Na segunda parte (O exercício de Sísifo) impera a busca pelo autoconhecimento: “agora eu me expurgo de mim mesmo / em busca do outro em que me encarcero” (O doublé, p. 41). É ai que o mito ganha mais força. É ai que o poeta se reconhece Sísifo, em eterna e vã labuta. Veja-se um trecho do poema O espelho de Sísifo (p. 45): Busca o homem o indizível Deus que o duplo enigma lhe desvende, Esse: o da vida e o seu anverso. Serei o espesso espelho De Sísifo em seu um outro espelho, ou Me perderá para sempre O pó do tédio sobre o tempo? (...) O homem busca desvendar o enigma da vida para poder ver-se a si mesmo 55
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desvendado. O eu lírico que não se realizara totalmente no amor, conforme se viu acima, quando tratamos da primeira parte do livro, tenta achar em si mesmo as respostas de que necessita: “As minhas arestas, eis meu desafio. / Fio por fio vou me destecendo, / e onde mais cedo mais me artimanho. / Quanto de mim é diamante ou blefe?” (Arestas, p. 43). Novamente, no entanto, a busca é vã. Novamente não logra êxito o eu lírico, aumentando ainda mais seu sentimento de incapacidade diante do mundo, da vida e de si mesmo. Daí a identificação com Sísifo, figura constante em todo o livro. Tal qual o mito grego que se via obrigado a, por castigo dos deuses, empurrar uma pedra para o topo de uma montanha e, tendo chegado enfim próximo de concluir a tarefa, a pedra rola novamente morro abaixo, fazendo-o recomeçar, o poeta reconhece a inutilidade de si, de seus atos, de suas buscas. Compreendemos ainda mais a dura sina de ambos quando percebemos que há, nos dois, a noção da inutilidade. Eles sabem que seu trabalho/busca é inútil. O poema O exercício de Sísifo (p. 50), dá-nos uma exata noção disso: “és todo Sísifo e porque Sísifo, / jamais escalarás o cume de teu ser”. Não encontrando em si mesmo as respostas que busca, o eu lírico parece culpar o meio, o ambiente que o cerca, pelas suas angústias. Provavelmente por isso, em alguns poemas desta parte do livro, haja uma super-valoração de outras geografias. Passa-se a uma busca pelo novo, o exótico, como forma, talvez, de encontrar algo que o complete: “nunca te amaram Europas, Orientes / com seus feéricos paços e Sherazades (...) nunca um exotismo, sequer um Saara / que te furtasse ao sempre périplo / de teus mesmos tristes páramos” (p. 53). O clima persiste em outros poemas, como Paris-Texas (p. 58) e Veneza (p. 59). No primeiro, inclusive, já percebendo esse artifício também como algo inútil, professa dois dos mais belos versos do livro: “aos olhos de um homem em crise / toda geografia é o mesmo acidente”. Homem em crise, o eu lírico de Assunção dera-se à busca de novas geografias, numa tentativa de fuga, de evasão. Todavia, parece, em certo momento, perceber que essas geografias apenas lhe proporcionariam novos acidentes, não aqueles topográficos, geológicos, mas os acidentes frutos do olhar do poeta, já “fatigado”, como diria Drummond, por toda uma vida de percalços. A “sísifa busca” de Assunção, todavia, não cessa: ao contrário, ganha novos matizes, recheados, como não poderia deixar de ser, com a mais bela poesia, conforme acontece com o poema Natal, 1987 (p. 67). Aqui, o eu lírico já “menino antigo”, relembra o gesto perdido no tempo de vasculhar os sapatos na manhã de Natal. A busca, que normalmente deveria resultar em um sorriso alegre diante do presente, não tem resultado diferente das demais, já aqui narradas: o eu lírico, teimoso, insistente e, diríamos, disposto a assumir mesmo para sua vida o duro “ofício de Sísifo”, “suporta o presente”, mas o presente de sua vida, esse atual e angustiante momento de sua vida. O futuro? O último poema desta parte do livro responde, 56
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em tom meio que apocalíptico: “além de mim / (e do escuro que me veste). / nada. / nem mesmo um gato” (Soledade, p. 68). A terceira e última parte do livro (Outro exercício de Sísifo) trata talvez da maior busca de todas: a busca da poesia. Predominantemente metalingüístico este momento da obra expressa o trabalho não apenas deste, mas de todos os poetas, que também se assumem Sísifos, na eterna luta (também vã, como já dizia Drummond) de lutar com as palavras. O propósito do poeta agora é, não encontrando as desejadas respostas no amor, nem em si mesmo, ao menos, conseguir expressar-se, confessar-se ao mundo, talvez na esperança de encontrar leitores que com ele se identifiquem, que se assumam também, eternos carregadores de pedras: “o que quer o poeta, / senão ser lido? / ser lido e amado / por seu garimpo” (Grafito, p. 72). Assunção compara o fazer poético com um trabalho, um duro trabalho de avanços e retornos, de usos e reusos (A pedra lavrada, p. 76), continuando, assim, na sua identificação com a figura de Sísifo. Fazendo do mito adjetivo (O sísifo silêncio, p. 81), o poeta elenca alguns dos elementos com os quais seriam feitos os poemas: “de tempo e palavra”, “do não”, do próprio “enleio de Sísifo”, “do rum das amadas” e do “sísifo silêncio”. Mas, teria o poeta, ao escolher como terceira e última grande busca a própria poesia, conseguido enfim encontrar as respostas que desejava? Será que este eu lírico clivado de angústias poderia, no fazer poético, encontrar um pacífico ancoradouro? O próprio poeta responde a esta pergunta, nos dois últimos poemas. Primeiro em Duplo duelo (p. 87), onde compara a palavra a um revólver, que precise ser armado, apontado e também, lógico, polido, limpo por dentro, ao passo que é áspero por fora. Porém, no momento do confronto, no instante do bang (como diria Antonio Morais de Carvalho em seu poema Pensação), a palavra vez por outra encalha, sem conseguir ser disparada pela língua falha (revisitando aqui, inclusive, Bilac e Augusto dos Anjos). Por fim, em (Desfecho ou tradução) (p.89), o poeta confessa-se, pela terceira vez, derrotado: Nada me ocupa mais que a palavra E toda palavra me culpa. Nada me atrai mais que a palavra E toda palavra me trai. No plano da microestrutura, os elementos lingüísticos utilizados apenas reforçam a constituição de leitmotive ligados à busca. Incontáveis são as vezes em que são utilizados elementos que remetem à pergunta, à dúvida: pronomes interrogativos (“Qual o suporte do pacto amoroso?” – p. 27) e o próprio sinal de interrogação (“onde guardavas, então, / essa 57
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líquida reserva?” – p. 76) são exemplos. Dois pontos (“eis o estóico mundo” – p. 63), apostos, hífens, surgem com o objetivo de trazerem consigo algumas respostas, que logo são demonstradas ilusórias pelos advérbios de negação (“nunca te amou o inelutável” – p. 53) e as conjunções adversativas (“mas, não:” – p. 30). Já os verbos, majoritariamente no presente (“busca o homem o indizível” – p. 45), atestam uma consciência que, tentando superar o passado e sabendo inútil sonhar o futuro, já sabido sombrio, apenas vive o presente, tentando se reerguer enquanto espera a próxima queda (“Agora eu me expurgo de mim mesmo” – p. 41). Já os adjetivos refletem o quão duro e obscuro é o destino do poeta (“pesadas”, “perdido”, “férrea”, “inútil”, além da própria adjetivação de Sísifo – “sísifo silêncio”). Enfim, trilhamos aqui mais um caminho rumo à fértil seara da poesia de José Antônio Assunção. Nosso percurso analítico, dividido, conforme o livro, em três partes, não indica uma rígida divisão de temas na obra. Ao contrário, os três principais temas que encontramos apenas são mais recorrentes em determinado momento, mais não deixam de perpassar toda a obra, assim como a recorrência ao mito. Esperamos ter dado mais uma contribuição, embora modesta, não apenas para a fortuna crítica sobre o autor, mas também para a divulgação de sua obra para as novas gerações de leitores e estudantes. É preciso que adotemos, também, o ofício de Sísifo: buscando e rebuscando, incontáveis vezes, adentrar o reino da poesia, de que Assunção é bravo guardião, ainda que, assim como acontece com este poeta em Duplo duelo, não saibamos, satisfatoriamente, engatilhar a arma.
Weslley Barbosa (Paraíba). Poeta, Ensaísta e Professor de Língua Portuguesa. Graduado em Letras pela UFCG. Publicou: Suspiros mal-ditos (Poemas, Ixtlan, 2010). Blog: http://suspirosmal-ditos.blogspot.com/.
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| Conto FIM DE CARREIRA Por Thiago Lia Fook
I - Curriculum Vitae
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II – Entre vistas Domingo à noite. Jantar em família: — E a entrevista de amanhã, preparado? — Na ponta da língua. — O salário é bom? — Nenhum começo é bom. Mas, depois... — A carreira é promissora, não é? — Para quem for determinado... — Você vai ficar rico? — Não sei, mas vou trabalhar com afinco... — Esse menino vai longe! Os sonhos vão longe e, em cada par de olhos, um brilho específico: a alegria do avô, o orgulho da mãe, a admiração da irmã. Segunda, às nove. Na sala de espera, quatro candidatos. Olhares trocados, protocolarmente. Doutor Fabiano Porto! – a chamada começa. Cafezinho de um, pigarro de outro. Ponteiro adiante. Doutora Raquel Pinto! Restam dois: conversa breve, queixo erguido. Doutor Paulo Figueiredo! Sai ligeiro, cabisbaixo. Doutor João Gonçalves! — Entraremos em contato. Na segunda entrevista: ... — O que o traz aqui? – o olhar, inquisidor. — A vontade de fazer justiça e lutar pelo direito. — Não somos uma entidade filantrópica... – com malícia. — Quero vencer, dar o melhor de mim e ser um bom advogado! ... — Não espere facilidades. Se quiser vencer, terá que sofrer no princípio! — Estou pronto! — Trabalho árduo. Dedicação exclusiva. Disposto? – energicamente. — A postos! ... — Na segunda, às oito. – enfim, o sorriso. Comemoração: 60
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— Parabéns! Seja feliz! — Sim, serei! Serei sócio! – no olhar, o brilho. Algum tempo depois: III – Vida corrida Segunda–feira. O despertador toca às seis em ponto. Antes do trabalho, o mar. Vence o torpor, vai à rua. Um, dois, três quarteirões: a calçada, a caminhada, a garota gostosa a piscada a bunda adiante, a parada. Mergulho na água' de coco' no lixo. Um dois três e meia – volta volver: para casa, às pressas, a hora escorre, o carro na espera, o cliente – já! Três, dois, um quarteirão: o banho, café d'a (sete e meia!) carreira, e
às oito e meia, o batente: agenda e-mail, cliente. No começo... mas depois... uma amante! Dei-lhe o troco... um não, dois pares... bem dado... uma coisa apenas: preservar os meus filhos... e a pensão? Pelo menos... Depois do sufoco, o colega consola: é assim no princípio, divórcio, reclamação trabalhista, tenha paciência e trabalhe com afinco, o dia das grandes causas chegará. Por enquanto, chegam as dez horas: audiência na vara do trabalho. Conheço sim senhor... nunca vi não senhor... sim, sempre por lá... não, uma única vez... sim senhor... não senhor... sentença na quinta... segunda audiência... vi nunca vi trabalhou não trabalhou com a mais absoluta certeza alguém mente – o martelo: parte o dia ao meio. Almoço: a fila, bandeja, a mesa e a conta. Cansahhhh... À tarde, a petição: excelentíssimo senhor doutor juiz, a parte vem expor e requerer... dos fatos... dos fundamentos... pede e aguarda deferimento. Duas e meia: audiência. E ainda falta o recurso, o prazo no fim. No fórum: aperto de mão do ilustre causídico, aceno festivo do 61
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insigne jurista, boas tardes de suas excelências – o meritíssimo juiz, o eminente parquet. E as testemunhas: sem título nem crédito. A prostituta das provas! – bem dizia o professor Amorim. Sim... não... sei... não sei... Quatro e – quatro da tarde! Corredor afora, escadas abaixo. Encontro corrido: — Meu Desembargador! — Quero vê-lo Ministro! De volta a computador nas costas, recurso e prazo. Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente, Egrégio Tribunal, Colenda Turma, Ínclitos Magistrados da Corte Suprema do Estado, data maxima venia, o doutíssimo juiz monocrático, a preclara sentença et coetera. Diante do exposto: pede reforma. Ao fórum, às pressas, o prazo, mais rápido, o proto(Ave, Maria...)colo. No escritório, ainda à espera, papéis. Autos até: oito horas! E o auto: movendo-se para casa, banho, mesecama. Variações sobre o tema da segunda. Na terça, sem mar: escritório mais cedo, audiência às nove; petições, clientes, recursos e o prazo. A terça à tarde contra o relógio. Quando deu por si, seis horas! À noite o sono de encontro à cama. Insônia: para um lado, para o outro, copo com água, água no bojo, um carro rasga a rua e freia bruscamente na esquina, os olhos abertos prosseguem sem freio, para um lado, para o outro, o dia será cansativo, para um lado, para o outro, um pio na esquina – do sono, afinal. Trimmm, trimmm, trimmm: quarta-feira. Seis hohhhh... mais um pouco: soneca. Outra soneca: um pouco. Agora, sem jeito. Café mais café: — Que é pra ver se fico aceso! E rua. Manhã difícil: Hipnos declara guerra a Têmis, acerta-lhe um feixe de luz dentro do olho e a balança oscila acima dos autos. Puta enxaqueca! Entre os colegas, compreensão: para casa, descanso. No superego, controle: persistência, superação. O prazo escorre, a testa lateja, as letras se espremem na tela. Tudo está turvo e, logo mais, consumado. Um comprimido, mais uma página, menos enjôo, outro argumento, ainda a dor, quase no fim, audiências à tarde: pede deferimento. Que saco! Impressão... — Joãozinho, você está um saco surrado. Almoce em casa e só volte amanhã. — Mas... — É uma ordem! Enfim, nos braços de Morfeu, Fobetor e Fântaso... No dia seguinte, café-conversa da manhã com a mãe: — Meu filho, pegue mais leve! — Se eu pegar leve agora, a vida pegará pesado comigo amanhã! — Mantenha o foco, mas aproveite um pouco... — Haverá tempo suficiente depois... — Bom trabalho! 62
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— Até mais tarde! Até o fim da tarde: bis in idem. À noite, o amor: — Feliz? — Muito! — Me ama? — Bastante! — Um beijo, abraços e CENA PROIBIDA PARA MAIORES DE 81 ANOS Sexta-feira. Audiência difícil: testemunha insegura, raposa na escuta, juiz irritado. No escritório, notícia ruim: recurso importante foi desprovido. Não há tempo a perder com lamento; há prazos a cumprir. E cliente na linha: o juiz não despachou... não há motivo pra isso... sim, sim, irei na segunda... hoje será impossível... a senhora precisa conter-se... temos trabalhado com afinco... não se preocupe, nós venceremos. E o prazo escorrendo. Meio dia no protocolo, escritório antes do almoço: autos debaixo do braço, o fim de semana promete. Saindo, no entanto: — Doutor Brantes quer conversar com você. Ele espera na sala. Garganta engasgada. Passo após passo, pulso mais pulso, batida na porta: entre, sentese, o que bebe? Sorriso acanhado. Só ouvidos: ... — Temos acompanhado seu trabalho... — Tenho dado o melhor de mim! ... — Já é tempo de vê-lo atuar em algo maior... — Estou pronto para qualquer desafio! ... — A ação da Arequipa. Quero você no time! — O senhor não vai se arrepender! ... Na rua, de vento em popa: — Uhhhhuhhhh!!!!!!
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IV – Pit stop Em casa, as saudações costumeiras. Da namorada, o beijo orgulhoso. Na roda de amigos, a torcida e o barulho. No sábado, o show na Domus Hall. — Se eu fosse vocês, não iria mais a festas ali. Não se lembram da morte daquele rapaz, justamente na saída do estacionamento? – adverte a mãe, preocupada. — Bobagem, mãe! Risco, a gente corre o tempo inteiro. Se não for na saída da festa, é na chegada em casa ou no meio da rua... — Mas é sempre bom evitar... — O que ninguém pode evitar é a vida, dona Lúcia! Beijo! — Avise quando chegar e dê um toque depois de sair, pelo amor de Deus! No domingo, almoço em família e o brinde: — A Joãozinho, nosso orgulho! Ao futuro! V – Fim de carreira Segunda–feira. O despertador toca às seis em ponto. Antes do trabalho, o mar. Vence o torpor, vai à rua. Um, dois, três quarteirões: a calçada, a caminhada, a garota gostosa a piscada a bunda adiante, a parada. Mergulho na água' de coco' no lixo. Um dois três e meia – volta volver: para casa, às pressas, a hora escorre, o carro na espera, o cliente – já! Três, dois, um quarteirão: o banho, café d'a (sete e meia!) carreira, e
às oito e meia, no primeiro batente: — Aí, moral, vai passando a carteira, o relógio, a chave do carro! — Que é isso, rapaz!
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— Sem conversa ou eu mando bala! Anda logo, porra! No primeiro segundo: “eu sou um trabalhador esforçado e esse filho da puta pensa que é só gritar com um revólver na mão que vai tirar de mim o que eu ganhei com suor e sacrifício. Vai tirar o caralho! Quero ver se ele é macho!” No segundo seguinte: — Então, vai pegar! No terceiro segundo, João Gonçalves dos Santos Neto, brasileiro, solteiro, advogado, tira a carteira do bolso e atira o volume do outro lado da rua. Cheio de planos: quer ver o bandido dar as costas e, então, derrubá-lo no chão, desarmá-lo, prendê-lo, chamar a polícia, seguir sua vida... Mas ouve um estampido e, no quarto segundo, está morto.
Thiago Lia Fook (Paraíba) – Escritor. Publicou: Poesia Natimorta e outros poemas (Bagagem, 2010). Blog: http://thiagoliafook.blogspot.com/
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| Poemas De Sérgio Bernardo
DEZOITO HORAS A tarde compra um lote de sol inverossímil, uns dormem, uns acordam, no extremo da praça a bica doura uma mistura de limo e água, o funcionário de uniforme laranja produz: varre com fúria as margens do asfalto, rio de automóveis.
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A LOUCA Ergueu as paredes de ar da sua casa, pôs dentro móveis de caixas de leite que não bebeu, pendurou na linha do asfalto o quadro do pôr do sol no Arpoador. Por trás de uma cortina de plástico, imaginando muros, escondeu-se da cidade, uma cidade que não a vê. Entrou em si com seus jornais, garrafas e a estranha coleção de folhas secas vindas com qualquer vento.
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FALHA GEOLÓGICA
Mar de fósseis em cada esquina, a urbe agoniza com cheiro de maresia no asfalto. Nas praças navegam horizontes apagados, sem mapeamento possível, num hemisfério de sucata. Jornais nunca lidos espalham palavras na sombra desses homens, de borco uns, uns de lado, mastigando guimbas com lábios cheios de felicidade. Perdidas memórias nos arquivos, houvesse algum tempo para reavê-las, seria minúsculo. Mas não há: o tempo fendeu-se como falha geológica geradora de mortos. Também não há identidade nas reentrâncias das ruas, entre havaianas, copos descartáveis, a sopa da noite, todos sangram por poros iguais, cruzam a mesma praia nua. Quem dera houvesse ao menos conchas.
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INCÔMODO A larga rua, o trânsito das moscas obliqua o dos carros, acima o zumbido de aviões esporádicos, passos se localizam pelo mapa do asfalto, quando a vida incomoda mais que a raiva dos marimbondos.
Sérgio Bernardo (Rio de Janeiro) Poeta. Publicou: Caverna dos signos (2005, poesia e narrativa), a convite da Secretaria de Cultura de Nova Friburgo/RJ, cidade onde mora; e Asfalto (2010, poesia), pelo Selo Off Flip, durante a Off Flip, evento paralelo à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Faz parte da equipe do blog Concursos Literários (http://concursos-literarios.blogspot.com)
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Como publicar Os autores que se interessarem em divulgar suas produções na Blecaute devem enviá-las para o e-mail:
revistablecaute@gmail.com Os arquivos devem ser compatíveis com o editor de texto Microsoft Ofice Word (2003 ou superior) e se enquadrar nas seguintes categorias: Poemas (devem ser enviados entre quatro a cinco
poemas, com até cinco páginas no total); Conto (poderá ser enviado um conto, sugerimos no
máximo oito páginas); Ensaio (poderá ser enviado um ensaio sobre temas
ligados à literatura e/ou demais artes, incluindo cinema, música, artes visuais e artes cênicas, sugerimos o máximo de oito páginas); Dicas de Leitura (poderão ser enviadas três dicas de leitura, com até uma página, acrescida de uma imagem da capa do livro sugerido em boa resolução).
o An
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III Ano
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11 e 20
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