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Não puxeis a cordinha em vão Bruno Vieira

Não puxeis a cordinha em vão

Bruno Vieira

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Era um dia meio cinzento. O ônibus se encontrava relativamente vazio, quer dizer, com todos os lugares ocupados, mas sem gentes espremidas pelas portas traseira e dianteira. O coletivo subia um dos viadutos da Lagoinha com sentido ao Centro de Belo Horizonte. E, vocês sabem como a nossa engenharia é deveras inteligente, a Antônio Carlos hoje é duplicada, mas os viadutos são os mesmos da década de 1980 – com duas faixas, muretas baixas e vazadas e, para piorar, o viaduto faz uma curva que, dependendo da velocidade do motorista, dá uma vertigem e um medo de cair na Estação Lagoinha, metrô (metrô, não, trem elétrico) localizado logo abaixo.

Voltemos ao ônibus. O coletivo já subia o Elevado quando o rapaz deu o sinal. Ele se sentava à janela, e o moço que estava no corredor fez uma gentil menção de se levantar. Foi aí que o diálogo começou. – Quer levantar, moço? – Não, não. Obrigado, vou esperar ele parar no ponto. – Mas, moço, você puxou a cordinha. O senhor vai ter que levantar. – Levantar? Mas meu ponto não chegou ainda. – Mas por que, então, o senhor puxou a cordinha? – Uai, já para avisar ao motorista que vou descer no próximo. – Mas todo mundo do ônibus vai descer no próximo ponto. É o Centro…

– Bom, eu puxei porque eu quis. Só isso. – Tá, mas uma vez puxada a cordinha, o senhor tem que se levantar. – Gente! Pra que isso? Eu sempre puxei a cordinha ou apertei o botão e fiquei sentado esperando o meu ponto chegar! – Senhor, isso é errado! – “Errado”? Como assim? – É, senhor! O senhor não pode puxar a cordinha e ficar assentado. – Onde que isso tá escrito? A BHTrans resolveu cagar essa regra? – Não, senhor, tá aqui. – Aqui onde?

– Aqui, no Nosso Livro Sagrado. – … Hã??? – É, senhor. No Nosso Livro Sagrado tem um mandamento que fala isso.

– Mandamento? – É. Olha aqui. Décimo primeiro mandamento … – Mas, peraí, não eram dez mandamentos? – Não, senhor. Sempre foram onze. – Como assim? Sempre aprendi que eram dez mandamentos, como não matar, não roubar…

– Mas tem o décimo primeiro, senhor. Que é esse daqui.

– “Não puxeis a cordinha do ônibus e permaneceis sentado, sob pena de pecado”? Mas que p…

– Olha o palavreado, senhor. Estamos num coletivo… – Mas que pitomba é essa? – É um mandamento. Tá aqui, escrito. – Não vá me dizer que sempre foi assim… – É, senhor. Sempre foi. Está escrito, assim procedeis. – Então quer dizer que no Velho Testamento existia ônibus? – Isso eu não sei, senhor, mas está escrito. – E só porque está escrito você segue à risca? – Uai, senhor, o que está escrito deve ser seguido. Conforme o que está escrito. – Mesmo para o meu caso? Poxa, eu toda a vida puxei a cordinha e fiquei sentado… – Pois é, senhor. Arrependa-se então para merecer o perdão. – Perdão? – É, senhor. Se o senhor permanecer sentado, tendo puxado a cordinha, o senhor está em pecado. – PECADO? Ah, fala sério… – Estou falando, senhor. Não estou inventando. Apenas seguindo o que está escrito. – “Apenas seguindo o que está escrito”. Falou o papagaio de pirata! – Senhor, essa expressão é inadequada para o que o senhor quer dizer de mim. Papagaio de pirata é aquela pessoa que aparece indevidamente numa foto. Acho que o senhor quer dizer que estou de trololó. – Esperto até que você é, hein? – Com a bênção do Nosso Livro Sagrado. – Nosso, vírgula! SEU livro sagrado. – Mas ele pode ser seu também, se o senhor quiser. Basta… – Me arrepender e levantar depois de puxar a cordinha. – Isso, senhor. – Até que chegue no Centro, eu vou ardendo no inferno…

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